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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Olá Marcelo!

Muito obrigado pela confiança!

Minha leitura crítica é feita da seguinte forma:

Ao longo da leitura anoto minhas sugestões, observações, impressões e sugestões de


reescrita e edição.

Vou colocá-las, junto com os problemas de ortografia que conseguir ver, em NEGRITO!

Ao final, dou um parecer sobre a visão geral da obra e sugestões gerais sobre como
melhorar ainda mais o texto.

Todas as observações, sugestões, críticas construtivas e reflexões farei sobre o seu texto tem
como base a minha experiência subjetiva de leitura, os meus trabalhos como escritor e de
editor, e o meu desejo de contribuir para que a sua história seja narrada da melhor e mais
efetiva forma possível.

Gosto de deixar isso claro porque ajuda muito na recepção das sugestões. O meu objetivo
com a leitura crítica é sugerir mudanças quando sinto serem necessárias, visando melhorar
ao máximo o seu livro.

Mas sempre gosto de ressaltar que você é o autor e que possui a visão final de sua obra.
Espero que minhas sugestões e reflexões te ajudem na revisão de sua obra.

Recomendo assistir os meus vídeos de dicas para escritores, para se familiarizar com a
terminologia que uso em minhas leituras críticas, como POV narrativo, trama, estrutura
em atos, etc.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Segue o link das minhas NITRODICAS - Video Dicas para Escritores:

https://goo.gl/BK0eUT

Um grande abraço e continue firme nessa árdua jornada de escritor!

Prof. Newton Rocha (Newton Nitro)

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Marcel Pinie -O mal de Caravaggio

Copyright ©2019 – Todos os direitos reservados ao autor:

ISBN: 978-85-60702-02-2

1ª Edição

Capa: Daniele Lugli

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou
reproduzida em qualquer meio ou formato, seja ele impresso, digital, áudio ou visual sem a
expressa autorização por escrito do autor.

Nota do Autor

Segue as minhas observações e impressões!

Escrever não é uma tarefa fácil. Embora seja um ato solitário, nenhum escritor trabalha sozinho.
Os personagens e incidentes citados no livro são produtos da imaginação do autor e foram
descritos de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais (vivas ou falecidas),

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descritos de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais (vivas ou falecidas),
Caravaggio - Marcelo Nogueira

negócios, empresas, eventos ou locais é mera coincidência. Não devendo nunca, esta obra, ser
confundida com a vida real ou fatos verídicos.

Gostei da introdução!

“A melhor maneira de se enfronhar em falsificação é entrar em contato com um falsário.”


Thomas Hoving.

“O perigo que se não vê guarda a imprecisão do pensamento humano.” Joseph Conrad

Dedicado à Silvana Pagno, sempre presente.

À minha tia Sonia, in memorian.

Prólogo

Dias antes de um importante leilão em Buenos Aires...

“Acredite Mila, nem todo mundo sabe! Quanto mais vezes estas pinturas são vendidas, quanto
mais aparecem em coleções e paredes de reputação ilibada, mais autênticas são!”

Separe com um parágrafo as falas e pensamentos, para ficar mais claro para o leitor e mais
agradável de ler.

Foi com estas palavras que Janus respondeu ao meu comentário. (qual foi o comentário? Não
está claro no texto, recomendo colocar o comentário para iniciar o prólogo) A galeria aonde
estávamos não destoava muito das que existem na Recoleta e no resto do mundo. Ele costumava
chamá-las de um mal necessário para a sobrevivência deste mercado.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Quebra de parágrafo aqui.

Mas a realidade, e isto eu aprendi com ele, é que poucos adquirem uma pintura por gosto.
Infelizmente, a maioria compra pelo status que pode obter através da assinatura emoldurada.
Esta ostentação é o que alimenta este mercado bilionário.

Quebra de parágrafo.

Acredite, não era o caso dele.

Quebra.

Eu percebi que o comentário de Janus havia deixado a galerista incomodada. E talvez por este
motivo, a galerista tenha se empenhado, ainda mais, para convencer-nos da autenticidade do
Frans Hals. Verdade seja dita, ela não mentiu.

MOSTRE o diálogo, ficará melhor do que esse sumário. Coloque as falas da galerista
contrastando com as falas de Janus e do narrador. Ficará mais imersivo. Busque sempre
MOSTRAR mais do que SUMARIZAR o que está acontecendo.

O catálogo da casa de leilões e os recibos que ela mostrou eram genuínos. Os papéis não
deixavam dúvidas. Por mais incrível que pareça, aquele pequeno retrato de um bêbado, sorrindo
maliciosamente, e com um macaco nos ombros, também havia percorrido uma longa estrada
para reencontrar Janus. E mesmo após tantos anos, sem que ninguém desconfiasse, Janus e
aquele bêbado, que deveria ter sido pintado nos anos de ouro da pintura holandesa, pareciam rir
do mesmo destino.

Quebra.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Foi só depois que ele acertou o preço e o destino daquela horrível moldura, que nós saímos para
o nosso último jantar. Para ganhar coragem, ele pediu ao garçom uma dose dupla de whisky. O
álcool sempre ajuda nestes casos.

Quebra.

— Mila, antes de partir eu gostaria que você ficasse com este quadro. Isto é para você! —
disse ele, me estendendo o pacote. (Use aspas ou travessão, mas nunca os dois. Recomendo
usar travessões para falas e aspas para pensamentos.

Ao usar travessões, siga a seguinte estrutura:

— Ele está vindo? — perguntou fulano.

— Não — cicrano respondeu.


— Então vamos! — ela disse.

Só se coloca ponto de interrogação ou exclamação antes do travessão, ponto final não é


necessário.

Minutos depois, ouvindo sua história e olhando para aqueles olhos, eu não pude controlar o
desejo de ligar o gravador. Mas foi somente agora, anos após seu desaparecimento, encarando o
Franz Hals pendurado na parede, foi que eu entendi que ganhando este quadro, eu também
havia ganho o direito de contar esta história. (repetição de “ganhar, ganho”, sugiro usar
variações)

Parte 1

Chiaroscuro

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Como ele mesmo havia dito: “O problema começa quando o telefone toca.”
Quebra.
No momento em que o telefone toca, apesar da penumbra, uma poeira brilhante dançava na
claridade do ateliê. Embora ele (Ele quem? Apresente logo o nome do personagem para o
leitor!) estivesse confuso, não acordado, não totalmente adormecido, conseguiu anotar o
endereço e jogou o maldito aparelho no chão.
Quebra.
Naqueles dias, ele vivia quase na solidão. Cercado apenas de esboços, telas e tintas. O “Atelier”,
onde ele passava a maior parte do tempo, ficava no final do corredor.

Quebra.

Sem conseguir dormir, ele acendeu um cigarro. Ignorando o torcicolo, ele se levantou da
poltrona, caminhou até a janela e afastou a cortina. Em silêncio, ficou assistindo o movimento
dos feirantes.

Quebra.

Lembrava (não entendi esse itálico aqui, recomendo mudar) perfeitamente do dia quando a
viu, pela primeira vez. Trovões. Raios. Tímida, ela sorriu. Uma luz emanou daqueles olhos. Um
calafrio percorreu a espinha dele. Durou um aperto de mão; ou quem sabe o tempo de moverem
os lábios num simples “olá”. Para ele, foi amor à primeira vista. E, antes mesmo que
percebessem as afinidades, desabou sobre eles, feito um prenúncio do que estaria por vir, a
tempestade.

Quebra.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Aos poucos o burburinho da rua invadiu o cômodo.


Quebra.
Desperto, Janus (nomeie desde o começo. Coloque o nome da mulher também, para já
começar a situar o leitor) sentiu-se pronto para finalizar a pintura. Num gesto longo, retirou o
pano que cobria a tela sobre o cavalete. Deu uma leve retocada de amarelo chumbo no reflexo
do rosto e adicionou óleo de noz na mistura. Recuando, limpou as mãos suadas na camisa.
Incomodado (com o quê?) , pegou a lupa e removeu o pingo de tinta na lente.

Intrigado, (com o quê? Não está muito claro) apoiou a mão na mesa, cheia de pigmentos e
pincéis guardados em latas de cereal.

Quebra.

No negócio dele não se pode depender das circunstâncias externas, para que as coisas
aconteçam.

Quebra)
E foi movido (melhor: Movido por) por este sentimento de urgência, que ele abriu a pequena
caixa de metal sobre a mesa e pegou uma foto. Ele queria captar algo além do que as formas lhe
transmitiam. Algo que lhe restituísse a felicidade perdida e que naquele retrato parecia tão
verdadeira.

Sendo bem honesta, (a narradora é mulher? Quem é ela?) eu não acredito que ele tenha
aceitado este trabalho só pelo dinheiro.

Quebra.

Foi em Roma que ele descobriu Caravaggio. Ele me disse que toda vez que visitava a capela
Contarelli, sentia-se atraído pela figura do pintor oculta na composição. É bom que se saiba que
o pintor, ali retratado, escondido atrás da coluna, não era um artista qualquer! Mas um gênio que

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o pintor, ali retratado, escondido atrás da coluna, não era um artista qualquer!-Mas
Caravaggio um gênio
Marcelo que
Nogueira

vivenciou a miséria, recriou a pele, a superfície radiante e a aparência das coisas como nenhum
outro do seu tempo.

Quebra. Você precisa usar os parágrafos para dar o ritmo da narrativa. Regra básica:
mudou de cena, de estado emocional, de lembrança para o presente e vice-versa, quebrou a
narrativa de alguma forma, coloque uma quebra de parágrafo. A leitura fica mais
agradável e você pode guiar a atenção e a emoção do leitor, como em um poema.
Recomendo ler poemas para pegar o “ritmo” e a “música” da prosa.

Sem pressa, Janus devolveu a foto na caixa. Retomou os pincéis e se aproximou do cavalete.
Imitando um maestro, ergueu o pincel. Mas hesitando por um momento, voltou até a mesa e
abriu o livro exatamente na página do “São Mateus e o Anjo”; o da primeira versão,
desaparecida durante a segunda guerra. Depois de meses trabalhando na composição, sentiu uma
súbita inspiração.

Quebra.

Foi somente após fechar o livro que ele associou o rosto da mulher sorrindo na foto com o rosto
do anjo. Decidido, aplicou, sem hesitar, a última velatura.

— Uma falsificação quase perfeita, não fosse a falta de pátina do tempo, (ele havia me dito
certa vez) Ele me disse.

Percebendo algo estranho, Janus tocou a face do anjo.

— Meu Deus! Não pode ser! Parece com ela! — repetiu baixinho (para si mesmo).

Um bom começo de texto, está interessante. Recomendo nomear logo de cara o Janus,
estabelecer melhor quem é a narradora já no prólogo, acho que precisa estar mais
explícito. Outro problema de ter um narrador explícito é o fato de que você não pode

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explícito. Outro problema de ter um narrador explícito é o fato de que você
Caravaggio não pode
- Marcelo Nogueira

entrar na mente de Janus sem quebrar a ilusão da narrativa.

Minha sugestão seria usar uma voz narrativa de terceira pessoa próxima (como você já
está fazendo, mas sem identificar o narrador). Ou narrar em primeira pessoa, pelo ponto
de vista de Janus.

Acho que o problema que vi aqui é a mudança brusca da primeira pessoa para a terceira
pessoa misturada com primeira pessoa no começo do texto. Veja isso na reescrita. Eu
sugeriria manter um POV para o livro inteiro (já que é bem curto). Escolha terceira
pessoa próxima ou primeira pessoa (Janus).

E essa foi a minha leitura crítica, espero que minhas sugestões lhe sejam úteis!

Caso você se interesse nos meus serviços de leitura crítica, o trabalho de leitura crítica no
seu texto de 23 mil palavras (cobro 0,02 por palavra) ficará em 460,00. Levarei cerca de 25
dias para terminar, mas a cada 10.000 palavras analisadas (cerca de 7 a 10 dias) eu te envio
o que já foi feito. O depósito pode ser feito na conta abaixo:

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Newton Ribeiro Rocha Júnior


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Um grande abraço e continue nessa sua jornada de escritor!

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

No dia combinado, enrolou a tela e guardou-a no tubo. As horas pareciam não passar. Mesmo
assim, resolveu deixar o apartamento. Não queria atender outra ligação de Camilo desmarcando
o encontro. Ele deslizou pela escadaria do velho edifício sem fazer barulho. No térreo, hesitou
por um momento, queria evitar os vizinhos. Desconfiado, abriu e olhou através da pesada porta
de madeira. Àquela hora do dia os ambulantes ocupavam a ruela estreita.
“Flores”! “Flores”! Gritou a florista de voz esganiçada do outro lado.
Antes de continuar a caça de fregueses, ela lançou um olhar zombeteiro, na direção dele, e
desapareceu rua acima. Janus apertou o passo. Desta vez, alterando a rotina, que consistia em
atravessar a Porta Magenta, treinar boxe no ginásio e apreciar o movimento na Galeria Vittorio
Emanuele II. Sem parar, ele cortou pelo Parque Semplone, contornou o castelo Sforzesco e
seguiu pela via Dante até alcançar a praça. Com o sol forte àquela hora do dia, a Catedral
assumia uma atmosfera altiva e solene. Turistas pediam informações. Disparavam cliques. Para
não fugir da regra, a Praça do Duomo estava lotada. Do alto da agulha maior, desde 1744, a
estátua dourada da Madonnina do Perego, isolada de outras três mil esculturas, vigia Milão.

Curiosa, uma menina ao seu lado falou qualquer coisa numa língua estranha. Nervoso, ele tentou
disfarçar. A garota riu; apontando para a mão dele. Como se tivesse sido pego em uma ação
vergonhosa, ele saiu à procura de uma lixeira. Janus queria se livrar da carta. Mas antes de
arremessar a bola de papel no lixo, ele desamassou e releu os garranchos. Em seguida, atraído
pelo cheiro de comida, cruzou a praça e caminhou em direção ao letreiro; CAFÉ COVA.
Assim que ele terminou de pendurar o tubo na cadeira, a garçonete veio ao seu encontro.
Diligentemente, ela anotou o pedido sem tirar os olhos da caderneta. Cartazes e fotos decoravam
as paredes daquele lugar, ocultando os efeitos da umidade na parede. Surpreso, Janus
reconheceu Lênin no cartaz pendurado sobre o caixa. E logo acima dele, Nastassia Kinski, nua,

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reconheceu Lênin no cartaz pendurado sobre o caixa. E logo acima dele, Nastassia
Caravaggio Kinski,
- Marcelo nua,
Nogueira

enrolada numa imensa cobra amarela. Sem cerimônia, ele pegou um jornal esquecido sobre a
mesa ao lado. Na tentativa de passar o tempo, correu a vista pelas manchetes. Eu me recordo
que nesta parte do relato, ele disse uma frase marcante:
“No dia em que nos conhecemos, nada me atraiu mais, do que a melancolia que pairava sobre
o rosto dela”.

Ainda hoje, tanto tempo depois dele ter me contado esta história, eu acredito, que tenha sido esta
“melancolia” a verdadeira razão dele ter participado do golpe. Ele havia afundado neste olhar
como se afunda num atoleiro. E eu sei bem o que isto significa!
Satisfeito, Janus olhou o relógio, chamou a garçonete e pagou a conta. Quando deixou o lugar,
distraído, quase foi atingido por um ciclista que passava. Refeito do susto, procurou um banco
vazio. Sozinho, ficou observando os passantes. Uma gorda de patins, namorados trocando
carícias. Esta longa espera trouxe desconforto. Mas é sempre assim, quando o cérebro não sabe
o que fazer, o corpo também não responde. O ponteiro do relógio da torre avançou. No céu uma
sombra escondeu o astro dourado.
Incomodado com a demora, Janus percebeu que os guardas do parque o observavam. Desde
muito cedo, sempre estivera preparado para explicar suas ações. Entretanto, no silêncio da praça,
não houve questionamentos e nem respostas. Apenas o maldito silêncio de cemitério fechado.
Cansado de esperar, deixou a praça em direção a Via Manzoni, e embarcou no único táxi
estacionado em frente ao La Scala.

Enquanto o carro enfrentava o tráfego lento das ruas milanesas, ele fechou os olhos,
imaginando-a ao seu lado.
Assim que chegou ao antigo edifício, subiu os degraus de dois em dois. Refeito do esforço, abriu
a porta e entrou no apartamento. Desanimado, ele abandonou o tubo sobre o aparador e
examinou, atentamente, o reflexo pálido no espelho. Sorriu triste para a figura refletida no
espelho. Não demorou muito, desabou no sofá. Houve épocas em que, barbas, não eram
incomuns entre os pintores. Caravaggio, Baldassare e até um dos dodges de Veneza cultivaram
uma.
“Não se iluda, somos todos iguais!” Ele me disse, naquela noite, quando deixamos a galeria.

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“Não se iluda, somos todos iguais!” Ele me disse, naquela noite, quando deixamos a galeria.
Caravaggio - Marcelo Nogueira

“Desde que o ser humano surgiu na face da terra ele busca pelo amor sexual e pelo amor do
mundo. Esta última é a busca mais perigosa! Aonde os inocentes não se aventuram e o
imprevisível é rotina.” É bem provável que naquela noite, sentado e tendo como companhia a
pintura que recriou, Janus tenha se sentido tocado pela sina do pintor. Que também, como ele,
enfim como nós, passou a vida tentando ser amado e reconhecido. Não demorou muito, Janus
adormeceu.

Quando ele acordou, minúsculos pontos brancos percorriam o céu da cidade. O calor estava
insuportável. Uma sirene gritou longe. A campainha estrilou. Uma... duas, ele se levantou
assustado. Correu até o olho-mágico.
“Quem é?” A voz rouca de uma velha: “Senhor! Trago uma mensagem para o sr. Janus.”
Sonolento, ele abriu a porta. Ela segurava um envelope: “O senhor Janus está”? Ela perguntou
indiferente, elevando a voz rouca, enquanto arqueava a testa velha cheia de pregas.
“Eu sou Janus” ele respondeu surpreso, reconhecendo a florista da calçada. A velha estendeu a
mão cheia de veias.
“Desculpe o transtorno. Algumas coisas não saíram como o planejado. Aguardo você em Roma.
Hotel De La Minerve, próximo a Piazza Navona. Afinal, você mesmo me disse uma vez: Os
navajos costumam tecer suas mantas com falhas, para que os demônios possam sair”. Hèléne.

II
Hèléne

Imagino que desde o embarque em Paris, ela experimentava aquela tristeza romântica dos bem-
nascidos. “Weltschmerz, dor do mundo”. Assim os alemães definiram, desde o século XIX, o
estranho sentimento que se intensificou ainda mais, no exato momento em que o carro
atravessou a Via dei Imperiale. Sem desviar o olhar das ruínas do Fórum de Trajano, Hèléne
pediu ao motorista, após contornar o Palácio Venezia, que a deixasse na Via Dei Cestari. Como

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pediu ao motorista, após contornar o Palácio Venezia, que a deixasse na Via Dei Cestari. Como
Caravaggio - Marcelo Nogueira

toda mulher apaixonada, ela preferiu caminhar sozinha o resto do trajeto. Quem disse que
lembranças não pesam? Hèléne havia escolhido um restaurante que atendia na elegante Via
Palombella. Clientes, desacompanhados como ela, antes das nove da noite, eram raros.

“Senhora, por favor”! Convidou o maître, ajeitando a cadeira. Prontamente, o garçom abriu o
cardápio e serviu o vinho. Desconfiada, ela observava ao redor. Tentava certificar-se de que o
homem que estava no voo, que decolara de Paris na noite anterior, continuava seguindo-a. Não
demorou muito, um homem se levantou e atravessou o salão. Hèléne acompanhou-o com o olhar
até que ele desaparecesse pela porta giratória. Sem apetite, ela escolheu uma massa que dava
fama ao lugar. Em seguida, levou à boca a taça e lentamente, bebeu um longo gole. Um calor
subiu através do vértice da cintura com uma delicadeza geométrica até chegar à cabeça. E junto
deste calor, uma sucessão de recordações. Antes de prosseguir este relato, é bom que se saiba
que ela detestava o meio em que vivia. Detestava, ainda mais, a maldita galeria que herdou após
a morte do pai. Eventualmente, para afastar o tédio, ela viajava para encontrar clientes ou
adquirir uma obra prima. Sua única razão, até então, para contatar Janus fora o sumiço do pintor
russo, descoberto nas ruas de Pigale, meses antes, e que simplesmente desaparecera.

Foi somente depois de remexer velhos cartões de visita que ela se lembrou do italiano
estabanado na Rue de Berry. Após uma pintura ter sido vendida, por uma soma astronômica,
numa casa de leilões, em Roma, Camilo, tentou vender na galeria de Hèléne, uma paisagem,
supostamente, atribuída ao mesmo autor. Para alguém experiente como ela, após analisar a
pintura, foi fácil concluir que a falsificação superava, em muito, as “criações” que adornavam as
paredes chiques de Paris. A sensação, ao devolver o quadro, mesmo tentando passar um ar sério
de reprovação, foi como a descoberta de um baú do tesouro enterrado no quintal. Entretanto,
antes de continuar procurando, ela resolveu, por conta própria, visitá-lo. Dias depois,
elegantemente trajada, adentrou no antiquário do italiano. Camilo a reconheceu de imediato.

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elegantemente trajada, adentrou no antiquário do italiano. Camilo a reconheceu de imediato.
Caravaggio - Marcelo Nogueira

Encarando Hèléne com um ar matreiro, pediu à sua assistente que continuasse a atender o outro
cliente. Não demorou muito, Hèléne envolveu-o na conversa e perguntou sobre a paisagem,
oferecida meses antes.

Como se fossem velhos conhecidos, o italiano a convidou para visitar as preciosidades


guardadas no escritório. Em determinado momento da conversa ela escolheu, entre os tesouros
duvidosos que ele oferecia, uma pintura atribuída ao pintor holandês Jan Mankes. Naquela tarde
fria, assim que terminou o chá, Hèléne pagou e saiu com o pacote. De tudo, o mais importante
era o pedaço de papel, com um número de telefone anotado, que ela havia guardado na bolsa.
Diante do sumiço do pintor russo e da urgência, ela decidiu apostar na indicação de Camilo.
Dias após o primeiro contato telefônico, numa manhã em que as árvores balançavam com o
vento, eles se encontraram pela primeira vez. Acredito que como em todo primeiro encontro,
depois de superadas as formalidades, percorreram lado a lado, unidos por uma forte atração, os
arredores da Praça des Vosges. A princípio, interessados, um no outro, mas receosos para
assumir o desejo. No entanto, sem ter consciência da força chamada amor, entregaram-se no
primeiro olhar. Desde o início, imaginei que ela deveria ser destas pessoas que ficam horas
observando e imaginando destinos. Destas que, como eu, quando precisam ficar só, procuram as
salas de cinema.

“Desculpe senhora”! Disse o garçom, equilibrando os pratos. “Aqui está... Bom apetite”! Parece
que posso vê-la, de olhos fechados, inspirando o ar lentamente. Deixando o cheiro adocicado do
presunto de Bayonne invadir as narinas e açular a memória já descortinada pelo vinho. Não
demora, outras lembranças surgem estimuladas pelo olfato. Hèléne lembrou-se da primeira visita
ao ateliê de Janus! De como havia se surpreendido com o talento do falsário. Deve ter sido
Aristóteles quem disse que ao comunicar muitos arcanos da natureza e da arte, infringe-se um
sigilo celeste e que males podem acontecer. O que não significa que os segredos não devam ser

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sigilo celeste e que males podem acontecer. O que não significa que os segredos não devam ser
Caravaggio - Marcelo Nogueira

revelados, mas que compete aos sábios decidir quando e como. Talvez por isso Janus evitasse
pintar na frente dela e eu também nunca o tenha visto pintando algo. Como ele mesmo disse,
preferiam aproveitar as horas desfrutando outros prazeres; a Catedral de Notre Dame elevando-
se sobre o Sena, os piqueniques no Boulevard Saint Germain, a feira de Clignancourt, a luz da
lua que invadia o quarto, banhando os corpos sobre a cama. No íntimo, como todos aqueles que
se amam, lamentavam a onipresença impossível aos corpos que sofrem a lei da gravidade.

Os dois preferiam o silêncio do cinema ao burburinho das ruas. Também acreditavam que a
arquitetura existia apenas para delimitar o vazio, abrigar expectativas e proteger os amantes da
indiferença da natureza. Ao invés das festas, preferiam o diálogo com os livros que sempre
podem ser interrompidos sem muitas explicações. Antes dele iniciar seu trabalho em Milão, os
dois foram a um herbanário adquirir pigmentos antigos. Hèléne já não conseguia esconder o
sentimento que lhe atravessava o peito. Não demorou muito, após a partida de Janus, o tal
“cliente” apareceu na galeria. Apesar do sorriso, o cliente exibia um olhar frio. Sua voz,
mantinha uma forma grave de pronunciar as palavras. O que imprimia, ao simples cumprimento,
força suficiente para intimidar uma pessoa normal. Quando ele apareceu, sem avisar e disposto a
negociar o Caravaggio, Hèléne compreendeu o tamanho da encrenca em que ela e Brodski
haviam se metido. Mas, certamente, ela não era o tipo de mulher que podemos chamar de
normal. Não como a sociedade espera das mulheres bem-nascidas.

Foi semanas antes dela conhecer Janus, numa festa organizada por Brodski, que ela e o “cliente”
encontraram um denominador comum além da Champagne; a pintura de Caravaggio. Durante a
conversa, o cliente florentino, se entusiasmou pela ideia de recuperar um quadro desaparecido.
Ele, o cliente, não percebia, enquanto fazia perguntas, que a vaidade o arrastava para águas
profundas. Quanto mais ouvia sobre o Caravaggio perdido mais ele o desejava.
No exato momento em que o cliente fez menção de tocá-la, ela piscou para a assistente. Isto,

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No exato momento em que o cliente fez menção de tocá-la, ela piscou para a assistente. Isto,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

entre elas, sinalizava que a assistente deveria interromper a conversa e chamá-la para atender o
telefone. Fingindo interesse, parado em frente a uma marinha, com as mãos nos bolsos da calça,
o cliente sorriu. Depois, anotou algo sobre o bloco de notas que estava sobre a mesa e deixou a
galeria.
Uma vez ouvi que a mítica surdez de Beethoven, isto muito antes do fim do cinema mudo, foi à
primeira resolução do artista contra a presença da cultura de massa como inferno sonoro.
Depois, um Van Gogh, enlouquecido, cortou a orelha para não sucumbir às vozes internas e
externas. Assim como eles, os amantes vivem cercados de diálogos, sussurros e gemidos.

Deve ser por isto que, quando os amantes estão juntos, os olhos irradiam a transparência,
comovente, dos que falam somente através do coração. Inocentes, espalham sentimentos, feito
galhos que balançam ao sabor do vento procurando um lugar silencioso. Repetindo a sina dos
inspirados por Eros, tentam recriar o paraíso. Todos os amantes, acreditam, por alguns
momentos, serem maiores que o mundo.
Eu também acreditava, até Janus desaparecer de Buenos Aires depois daquele maldito leilão.
Agora, lembrando daquelas semanas que antecederam este fato, evoco para mim mesma a lenda
de Shams de Tabriz. Um poeta estranho, de rara beleza, que viajava pelo oriente médio
confrontando as regras. Um iluminado, que reza a lenda, jogou os manuscritos de Rumi no
fundo do rio, e depois os retirou intactos. Porém, estavam em branco; a água havia apagado as
palavras. Um sinal para que Rumi imprimisse seus próprios versos. Gostava de se passar por
louco e seus versos influenciaram outros rebeldes.
O nome de um destes rebeldes, Arthur Rimbaud, eu acabo de anotar no canto da página. A letra
miúda, manchada pelo impacto das lágrimas, deixam evidente a tristeza. O mesmo Chiaroscuro
da alma que eu sinto e Hèléne sentia.

III
Janus

A viagem até Roma foi cansativa. Janus ficou aliviado quando deixou o aeroporto. “Piazza
Navona” ele ordenou ao taxista. Nas ruas romanas o trânsito estava pior do que na capital

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Navona” ele ordenou ao taxista. Nas ruas romanas o trânsito estava pior do que na capital
Caravaggio - Marcelo Nogueira

milanesa. Nos cafés, conversas e risos.


Como das outras vezes em que estivera na cidade, ele foi atacado pela melancolia que não é
dolorosa, mas nunca se dissipa a menos que você encontre algo mais interessante. Sentiu-se
perdido, rodeado pelos peitoris cobertos de gerânio, da Piazza Navona.
Crianças se divertiam ao redor da fonte. Da antiga rivalidade, entre Bernini e Borromini,
sobraram apenas fontes, eternizando, no meio da praça, a disputa entre um papa e a cunhada. O
ocre envelhecido das fachadas emociona. É assim, sem o que visitante se dê conta, pouco a
pouco, que esta cidade invade e arrebata quem anda por suas vielas.

Revelando segredos aos destemidos. Inspirando, a resistência do velho contra o novo. Como se a
antiguidade das fachadas, não aceitasse o cortejo da modernidade e das ideologias. Reagindo
como no dia em que largaram Aldo Moro, morto, em pleno centro da cidade. Roma é mistério.
Além, é claro, fuligem e sirenes.
Em silêncio, Janus atravessou a Piazza em direção a Via Corso Del Renascimento. Passo largo;
seguiu para a Igreja San Luigi dei Francesi. Na entrada, desprezou as criações de Guido Reni,
Sermoneta e do Cavaleiro D’Arpino. Seguiu direto para a quinta capela do lado esquerdo da
nave.
Ainda pairava no ar o cheiro de mirra e vela do serviço matutino. Sozinho, ele deixou a mochila
de lado e contemplou as pinturas, exatamente no local onde foram penduradas na presença de
Caravaggio. Aproveitando o silêncio, ajoelhou e rezou como há muito não fazia. Desta vez a
primeira versão da pintura que ele observava com devoção, desaparecida do Kaiser-Friedrich
Museu, e recusada, séculos antes, porque o Santo foi considerado vulgar para as representações
da época, estava pronta. Meticuloso, tomou o cuidado de reproduzir cada detalhe.

Foi durante o retorno para o hotel que as coisas começaram a ficar estranhas. Janus percebeu,
antes de entrar no hotel, que um homem parado do outro lado da rua, encarou-o demoradamente.
Consultando o passaporte falso, ele preencheu a ficha de hóspede. Depois, perguntou ansioso, se
havia algum recado. A recepcionista balançou delicadamente a cabeça, como se tivesse medo de
desmanchar o coque nos cabelos.
Já dentro do quarto, de molho num banho quente, barba feita, recordou a última conversa com

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Já dentro do quarto, de molho num banho quente, barba feita, recordou a última conversa com
Caravaggio - Marcelo Nogueira

Camilo. “Pinturas são ficções da estética! São tramas que se tornam legíveis sobre o cavalete.”
Ele me disse com uma certa ironia, uma vez em Santelmo. Eu sabia que houve tempos em que
as pinturas serviram de guia para iletrados. E que mais tarde, os pintores trocaram as antigas
corporações de artesãos pela proteção dos soberanos. Mas hoje, as pinturas servem apenas para
despertar o bolso! A verdade, e isto concordei com ele, é que mesmo sendo falsas ou
verdadeiras, continuam a fascinar tanto quanto as pinturas da Capela Sistina. Grandes
impostores, isto é o que eles são! Não há pintor que não roube de outro a sua criação.
Substituindo o roubo pela imitação.

Foi exatamente para recriar uma destas “ficções da estética” que o destino colocou Hèléne em
seu caminho. Fazendo com que ele mergulhasse no estranho mundo de um pintor do século
XVII. Um pintor misterioso e cuja obra se resume em cerca de oitenta pinturas.
Observando o canudo sobre a mesa do quarto, Janus recordou o velho professor. Um ex-aluno
de Léger que produziu Braques, Picassos, Kupkas e Kandinskis. Um verdadeiro canibal de
estilos. Esperto, o tal professor, nunca falsificava pinturas, apenas aquarelas, pastéis e desenhos.
Ao contrário do holandês, Meegeren, que falsificou Vermeer e foi vítima da própria soberba nos
tribunais. Meegeren foi desmascarado após utilizar, como modelo, o rosto de Rodolfo Valentino
e Greta Garbo nas suas pinturas. O telefone tocou. Tão alto que o coração dele acelerou.
Trazendo-o de volta a realidade.
“Sim”!
“Senhor, há uma pessoa aguardando-o”, anunciou a voz feminina do outro lado da linha.
“Quem deseja”? Janus respondeu prontamente, surpreso. Em seguida, vestiu uma roupa e
desceu até o lobby.

A recepcionista apontou, discretamente, a figura solitária, sentada do outro lado do Hall. Um


animado grupo de turistas americanos conversava no saguão. Segundo Janus, o homem nem fez
menção de se levantar. Afundado no sofá, o rosto do homem estava escondido atrás do jornal.
Ele parecia distante do mundo. Janus se aproximou.
“Olá”! Ele disse mantendo o tom amistoso.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

“Ah! O famoso Janus”! Respondeu a figura elegante, baixando o jornal.


“Será que podemos dar uma volta”?
Os dois caminharam, durante algum tempo, em silêncio, pelas ruelas estreitas. O homem alto,
basta cabeleira cinza, aparentava não mais do que setenta anos. Os gestos elegantes e a gravata
lhe davam um ar aristocrático.
“Hèléne está ansiosa para reencontrá-lo” revelou o homem, enquanto ajeitava a gravata.
Logo depois de contornarem o mercado de flores entraram no carro.
“Já conhecia Roma”? Disparou o animado motorista.

“Parece que todos os caminhos levam a Roma”! Janus não escondeu a impaciência na resposta.
Postes de luz azulada ponteiam o caminho. Em pouco tempo, grandes áreas verdes e a brisa do
mar denunciam a proximidade de Ostia. Não demora muito, uma trilha íngreme, rodeada de
ciprestes, termina em frente ao imenso portão de ferro escuro. Um vigia aparece e abre o portão.
Lentamente o carro avança. Logo surge sob a claridade dos faróis, uma fachada sólida,
esculpida, copiada de algum palacete urbano.
Depois de Brodski abrir algumas correspondências, os dois jantam na espaçosa sala. Janus não
consegue deixar de notar o nu pendurado sobre a lareira. Inclinada pelo peso da moldura, a
mulher de olhar lascivo, parece querer desabar sobre os dois. Neste lugar, Brodski vivia recluso
desde a morte da esposa. “Leiloeiro”, Janus me respondeu quando perguntei sobre a profissão do
tal Brodski. Influenciado pela bebida, Brodski deixou escapar que trabalhara, na juventude, com
um grande estudioso da arte italiana.
“No final da ocupação nazista fui acusado de colaboracionista, isto quase me custou o
pescoço”! Revelou com tristeza.

Janus serviu mais conhaque e afundou na poltrona.


“O que você sabe sobre Hèléne”? Janus disparou.
“Apenas o suficiente. E também que você é tão talentoso quanto o russo. O problema é que
precisamos avaliar a pintura antes de fechar o negócio. Por isso sugeri levá-la a Berlim”.
“Conheço um ex-oficial que trabalhou para a ERR*. É verdade que envelheceu, mas ainda
possui uma memória excepcional e as notas escritas por Hofer, o curador de Goering.”

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

“Hèléne não comentou nada sobre isto. Não vou a lugar algum sem explicações!” Irritado, Janus
levantou-se e andou até a janela. Com a mão trêmula acendeu um cigarro e deslizou o olhar para
um ponto escuro da noite. Em silêncio, Brodski recolheu os copos e deixou a sala. Logo em
seguida, uma voz quebrou o silêncio:
“Janus”!
Ele permaneceu calado.
“Janus”! Chamou a voz novamente.

Quando ele virou o rosto, viu que era ela! A face marmórea entristecia a expressão do sorriso. O
rosto e os cabelos pareciam feitos da mesma matéria delicada e pálida. Olhos iluminados.
Assim lhe pareceu, quando ela avançou em sua direção. O vestido revelou sob o tecido, o corpo
magro e bem feito. Um audível suspiro quebrou o silêncio entre eles. Hèléne beijou-o
demoradamente.

IV
Os dois ainda dormiam, quando o sol despontou por entre as árvores do jardim. Sobre o lençol,
os primeiros raios de sol atingiram e espalharam as cores do imenso vitral. Janus levantou-se
com cuidado, não queria despertar Hèléne. Afastando o lençol, ele estendeu os braços num
longo espreguiçar. Como nos dias em que faziam amor; ignorando o frio, ele abriu a janela e
deixou a luz inundar o quarto. Não demorou muito, ele sentiu as pálpebras pesadas e novamente

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deixou a luz inundar o quarto. Não demorou muito, ele sentiu as pálpebras pesadas e novamente
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adormeceu. Desta vez, como raízes entrelaçadas, misturaram pernas e braços. Fico imaginando
se os dois não sonharam o mesmo sonho. Adormecidos, encontraram no silêncio a melhor
resposta para tantas perguntas. Como se a profunda semelhança, entre eles, fosse de um
antepassado comum.

Era uma manhã gloriosa. Dessas que só acontecem quando o dia é bem frio e o céu de um azul
puro e refrigerado. O imenso plátano, ao lado da fonte, resiste a entregar suas folhas à
voracidade do outono. O vento leva, para longe, as folhas amareladas. Pássaros, empoleirados
nos galhos, secam as asas, numa imensa algazarra. Ao lado da casa, as árvores continuam
submersas no nevoeiro. De mãos dadas, os dois somem na estreita trilha íngreme. Hèléne tem
mãos frias e ternas. Os dedos, longos, revelam um toque, macio e perigoso, que só as mulheres
fatais possuem.
“Esta encomenda me lembra a primeira. Você deu os retoques finais e quase a esqueceu no
hotel”. Sem dizer nada, Janus levantou-se rápido da grama, deu um grito rouco e avançou na
direção dela. Segurando-a nos braços.
“Tire a roupa”!
“Você me deseja”?
“Mais do que tudo”!
“E a pintura”?
“Amanhã”! Respondeu, inclinando o corpo sobre o dela.

Na manhã seguinte ao reencontro, depois de avaliar alguns objetos, Brodski decidiu ficar na
casa de leilões por mais um tempo. Surpreso com a manchete do jornal, leu a matéria sobre o
assassinato do italiano. Espantado com o que acabara de ler, pensou em telefonar para Hèléne.

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assassinato do italiano. Espantado com o que acabara de ler, pensou em telefonar para Hèléne.
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Mas antes, como precaução final, discou o número do seu contato em Berlim. “A polícia
encontrou Camilo morto! O tiro certeiro explodiu na testa! Nem um único vestígio foi
encontrado pela perícia. Serviço profissional. Não se preocupe! Os investigadores acreditam se
tratar de crime passional”. Foi com esta informação e uma entonação irônica, que o interlocutor
encerrou a conversa. Não sem antes mencionar algo sobre o anúncio da flexibilização das
fronteiras alemãs. Perturbado com as notícias, carregando um pacote de massa caseira e o jornal
dentro da pasta, Brodski desceu a escadaria da Praça Espanha. No céu limpo de Roma, surgiu a
primeira estrela e as luzes começaram a se acender. Num gesto automático, o velho leiloeiro
apertou a pasta contra o peito. Havia semanas que ele sentia algo estranho no ar.

Não sabia definir esta sensação, mas desconfiava que o mundo, tal como ele havia conhecido,
estava drasticamente sendo alterado. Durante o trajeto lembrou do acidente que matou sua
esposa. Naquela época estavam recém-casados. Brodski lentamente passava de meliante “bem –
aprumado” para um verdadeiro Beaumarchais. Foi ele quem vendeu a pintura de Jan Mankes,
adquirido, por Hèléne, no antiquário do italiano, ao oligarca russo. Confiando na opinião de
Hèléne, Brodski arriscou. Acima de tudo, ele havia compreendido o recado. Através de Camilo,
haviam encontrado o falsário que necessitavam. Apesar do impacto da notícia, sobre o
assassinato de Camilo, trazer à tona uma série de impressões negativas, os olhos claros do
lituano não transparecem medo. Mas o final da conversa com seu contato alemão deixou-o
apreensivo quanto ao futuro da Alemanha Oriental. Noite, faz frio.

Na manhã seguinte, Janus e Hèléne retornaram ao hotel. Através da janela do carro, podiam
avistar os turistas que chegavam para aproveitar o mar.

“Precisamos entregar logo esta pintura”! Hèléne disse ansiosa.


“E quando será isto”? Janus reduziu a marcha na curva e continuou acelerando em direção à
Praça de San Marcello.
“Espero que breve... muito breve”! Ela respondeu.
Em silêncio, margearam o Tibre, e perto da Via Della Pilota. Demorou até conseguirem uma

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Em silêncio, margearam o Tibre, e perto da Via Della Pilota. Demorou até conseguirem uma
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vaga para estacionar. Dado o adiantado da hora, o lobby do hotel estava lotado e havia apenas
uma funcionária atendendo no caixa. Na vez dele, apressado, entregou o dinheiro. A moça
esticou a mão, devolvendo o troco, em liras italianas, por baixo do guichê, com um sorriso
fingido. Assim que ele pegou a mochila e guardou o troco no bolso, correu, abrindo espaço por
entre os passantes. Das poucas coisas que ele contou sobre o passado, e isto significa, muito
antes dele viver em Buenos Aires e muito antes dele conhecer Hèléne, fora que Camilo foi o
primeiro a reconhecer seu reconheceu seu talento. Naqueles dias, Janus percorria galerias em
busca de encomendas para garantir o almoço.

Camilo o incentivou, desde o início, comprando material para que ele executasse desenhos e
aquarelas, que depois eram vendidos no antiquário. Somente após reler o bilhete de Camilo, na
praça em Milão, alertando-o, que Janus entendeu que a morte do amigo não fora um simples
assalto. O bilhete manchado de sangue e a letra apressada confirmaram as suspeitas de Janus. De
qualquer maneira, ele me disse, “Um roteiro variado é ideal para se garantir um bom filme.” O
voo para Berlim decolaria às nove da noite. Enquanto dirigia, a caminho do aeroporto, Janus
desatou a rir sem motivo. Imaginava que com sorte, mudaria de destino. Decidiu apostar, desta
vez sem erros. Entusiasmado, aumentou o volume do rádio e acelerou. Mas o mais importante,
ele não cometeria falhas idiotas, como a do falsário húngaro Elmyr de Hory, imortalizado, no
cinema, por Orson Welles. “Você conhece esta história? Não? Certa ocasião, na pressa de
assinar um Matisse falsificado, Elmyr esqueceu de escrever o “e” no final do nome. Foi sua
perdição.” Ele me disse, rindo.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Parte dois
Shibui

V
“9 de novembro de 1989”. Eu quase caí da cadeira quando Janus repetiu esta data. Para mim foi
absolutamente memorável aquele dia. Eu estava lá com a equipe de reportagem cobrindo a
queda do muro para uma rede de televisão argentina. Mesmo perdida em meio àquela multidão,
reunida na Alexanderplatz, é bem provável que estivéssemos perto um do outro. Enquanto
assistia algumas pessoas forçarem a passagem através da fenda no muro, Janus passou o braço
ao redor da cintura de Hèléne. Empolgado, beijou-a demoradamente. Tendo a noite como pano
de fundo, emocionados e sem saber ao certo o que estava acontecendo, contemplavam o
Reichstag iluminado pelos fogos de artifício. A cidade estava diferente dos escombros
iluminados pelo fogo; logo após a invasão do exército vermelho na segunda grande guerra.
Fogos de artifício e brados de alegria podiam ser ouvidos por toda parte.

Resplandecia sobre a multidão a cúpula formada de aço e vidro. Como em uma noite de gala, a
sempre jovem Berlim, onde sopram os geladíssimos ventos vindos das regiões russas, exibia sua
arquitetura orgulhosa de mais um feito heroico. Ossis e wessis, unidos por um sentimento
comum de liberdade, celebravam a união do Reichstag à porta de Brandemburgo. Entretanto,
Janus e Hèléne mal sabiam que próximo dali um homem de rosto ossudo e olhar pétreo,

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Janus e Hèléne mal sabiam que próximo dali um homem de rosto ossudo e olhar pétreo,
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observava-os atentamente. Assim que acabou de fumar, ele atirou o cigarro no chão e caminhou
em direção ao casal. Depois de passar por um animado grupo que marretava o muro, pousou de
leve a mão sobre o ombro de Janus. O rosto ossudo parecia inexpressivo. Os olhos cinzentos,
reveladores, estavam contra ele. Os dois trocaram um leve aceno de cabeça. Hèléne não
disfarçou o desconforto ao reparar a enorme cicatriz que percorria a têmpora esquerda até quase
chegar ao nariz. A cicatriz, resultado de uma sutura malfeita, fora ganha ali, na defesa do
Reichstag. O homem lamentava não ser um dos quatrocentos e cinquenta mil mortos na guerra.
Para ele o mundo estava decadente e a guerra não havia alterado, para melhor, as relações
pessoais. Este homem, Helmuth, no vigor da juventude, havia obedecido cegamente à doutrina
do partido.

Filho de um eminente biólogo, abandonou o desejo de ingressar na faculdade de medicina e


destacou-se na SS. Sem que houvesse escolhido, meses antes dos russos colocarem as botas em
Berlim, fora designado para secretariar o Marechal Goering. Enquanto esteve em Berlim, fora o
responsável por catalogar e cuidar do transporte das pinturas e objetos destinados à Carinhall.
Também foi a última pessoa, logo após a visita do curador, Walter Hofer, a tocar na versão
original do quadro de Caravaggio; São Mateus com o anjo.
Helmuth Goethe conservou deste período apenas lembranças. Mas possuía ainda a mira e o
sangue frio dos tempos da STASI. Durante a guerra fria, matar não tirava o sono e a conspiração
atômica se tornou paranoia mundial. Nesta época, Helmuth participava do antigo sistema de
espionagem e contava com a ajuda de Brodski para enviar informações ou esconder pessoas.
Para ele, o barulho dos fogos de artifício evocava o combate travado contra os russos. Mas longe
do passado, em meio à algazarra dos morteiros e lágrimas de felicidade, morria o comunismo na
Alemanha. Nesta noite, alemães de ambos os lados do muro, expurgavam os fantasmas da
guerra.

Mas para Helmuth, que viveu o nazismo e conhecia a ganância dos poderosos, tudo isto
significava apenas mero jogo de cena.
Assim que deixaram a praça, os três embarcaram num sedã, rumo ao setor soviético. No
caminho, trocaram algumas opiniões sobre o provável futuro da RDA. O lugar escolhido era

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caminho, trocaram algumas opiniões sobre o provável futuro da RDA. O lugar escolhido era
Caravaggio - Marcelo Nogueira

simpático. Um hotel discreto, tipicamente familiar. Dentro do quarto, sobre a mesa, uma bandeja
com copos e uma garrafa. Brodski não parava de falar. Helmuth, emborcava uma dose após a
outra. Os dois trocavam elogios e reminiscências. Só depois de algum tempo se deram conta da
presença de Janus e Hèléne no quarto.
“Muito bem, ele é todo seu”! Brodski disse, apontando o canudo sobre a mesa.
Enquanto Janus retirava a pintura do canudo, os outros três permaneceram em silêncio. Os olhos
de Hèléne percorreram toda a extensão do quarto a procura de alguma ameaça. Era possível
escutar ao longe, uma ópera de Verdi. Quando Janus terminou de desenrolar a tela sobre a mesa,
os olhos de Helmuth estavam cobertos por uma fina película vermelha. As duas figuras
majestosas da composição pediam atenção.

“Mein Goth!” Ele murmurou entre soluços. Diante dele estava uma das raras pinturas que
sobreviveram ao sangrento ataque russo em 30 de abril de 1944.
A beleza e o realismo das figuras eram impressionantes, apesar do verniz oxidado e escuro que
cobria boa parte da tela. Sem demora, Helmuth puxou uma lupa do bolso. Daí em diante as duas
figuras, o velho apóstolo e o anjo andrógino, guiaram sua mão. A cena toda desfilou,
vertiginosamente, sob a pequena lente que o alemão empunhava. Cada detalhe, ampliava, cada
vez mais, a perplexidade de Helmuth diante da composição. Ele se viu mergulhado numa onda
amarga de tristeza enquanto revivia os dias que antecederam a invasão russa.
Para ele, os ideais contidos na composição não superavam o realismo com que o pintor tratou a
superfície das figuras. O realismo das figuras e seus gestos ajudaram-no a perseguir os
contrastes e semelhanças com a pintura original guardada em sua memória. “É ela, tenho
certeza!” Foi o que ele concluiu quando terminou de examinar a pintura. Helmuth estava
convencido de que era a pintura salva, antes da chegada do exército russo, e que ele perdera após
escapar do museu, em chamas, para uma patrulha de civis armados.

No dia seguinte, apesar das nuvens carregadas sobre o céu de Berlim, não demorou muito, a luz
entrou pela persiana contrariando as previsões. Antes de se despedir, o alemão, deixou com
Brodski, o diário e as fotos do arquivo de Goering. Helmuth demorou a galgar os degraus e
aparecer na calçada. Quando chegou do outro lado da rua, a figura ossuda acenou. E logo,

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aparecer na calçada. Quando chegou do outro lado da rua, a figura ossuda acenou. E logo,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

desapareceu entre os que ainda comemoravam a queda do muro de Berlim nas ruas. Dentro do
quarto, as mãos de Brodski tremiam. Retirando o conteúdo do envelope, ele iniciou a leitura das
anotações.
Diário
Reichstag/ Berlim (1943)
Recebi hoje, 11/04/43, no comboio capitaneado pelo oficial Helmuth Goethe, o lote de
preciosidades. Entre elas, encontra-se, um quadro de Caravaggio. Segundo relato o quadro foi
retirado da capela Contarelli. Em troca de um casaco de lã e duas garrafas de vinho. O
percurso iniciado em Roma parou um dia em Florença, seguiu por Veneza, alcançando Villach,
dois dias depois, na Áustria. A movimentação de tropas se intensificou em Praga e na região da
Boêmia. O comboio trouxe armamentos, quem sabe assim, vençamos de vez.

As baterias foram descarregadas em Munique. A munição, junto com os cofres, em Berlim.


Selecionei o Caravaggio para Carinhall e enviei as outras para Lhose. O sonho de transformar
Berlim, na capital do Reich alemão, está ficando cada vez mais próximo. Ziegler entregou o
projeto para o mural da Chancelaria. O Fuher, pessoalmente, incumbiu Speer de construir o
museu. Lamento que tenham cortado a pintura e queimado a moldura original.
01 - Caravaggio – (São Mateus com o anjo – 1599)
02 - Mantegna – (figura -?)
03 - Annibale Carraci - (São Lucas – 1592)
04 - Guido Reni – (cena religiosa – 1611)
05 - Giuseppe Arcimboldo – (alegoria de inverno – 1563)
06 - Oito figuras de mármore (representação de imperadores romanos)
Brodski havia encontrado nas páginas do diário, uma relação de obras consideradas
degeneradas, anotações esparsas e mapas. Num destes registros, estava grifado a palavra
“Conquistar”.

Tratava-se de um globo terrestre do século XVI. Seu antigo dono: Johannes Kepler.

Brodski permaneceu enfurnado no quarto, comparando as fotos e lendo as anotações. Examinou,

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Brodski permaneceu enfurnado no quarto, comparando as fotos e lendo as anotações. Examinou,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

minuciosamente, cada detalhe da pintura.


Ele desconhecia o fato de que antes de iniciar a falsificação, Janus tomara o cuidado de preparar
uma base semelhante à usada por Caravaggio. Um tom escuro de aspecto e textura grossa. Ainda
em Paris, Janus e Hèléne haviam adquirido uma tela do século XVII, de autor desconhecido, nas
mesmas dimensões. Seguindo as lições do antigo professor, Janus deixou a tela descansar em
uma solução e removeu com uma espátula a tinta amolecida. Misturando as raspas com uma
solução alcalina obteve um pó, que misturado com óleo de noz, pigmentos triturados em um
almofariz e fuligem, resultou em uma tinta com mais de 400 anos. O que dificultaria, e muito, as
análises científicas acerca da idade do pigmento e seu real período. Também deixou alguns
“pentimentos” na Obra. Isto, no jargão dos “experts”, constituiria sinal característico de um
Caravaggio.

A técnica que Janus havia empregado enganaria até mesmo os cinco exames pelos quais toda
pintura antiga deve passar. Ele foi tão cuidadoso, que evitou o uso do amarelo de Nápoles, que
como ele havia aprendido, apareceu na pintura europeia somente em 1615.
O último passo seria encontrar o “expert”, em território neutro, e obter o laudo. Quando Brodski
convidou Helmuth para “auxiliar”, havia deixado claro que o auxílio consistiria apenas na
entrega dos arquivos. Mais uma vez Berlim salvara Brodski. Se naquela manhã, após a chegada
dos tanques russos em Berlim, Jacky, o pai de Hèléne, não tivesse retirado Brodski da fila de
colaboracionistas, provavelmente, o marchand não teria descoberto as pinturas que fizeram a
fortuna da sua galeria em Paris depois da guerra. Pinturas estas, evidentemente, surrupiadas e
escondidas por Brodski, durante o caos da guerra.
Anos depois, logo após a morte de Jacky, foi Brodski, quem apresentou Hèléne ao mundo das
artes. Ao longo do caminho, o trio trocou algumas palavras; alternadas com um silêncio que só
era quebrado pelo barulho da chuva. Para deixarem o lado oriental, Brodski havia alugado um
Trabant. Lento, o carro percorria com dificuldade o trajeto para o aeroporto de Tegel. uadros que
muitas vezes eram vitais para garantir as boas relaçtos outros que viriam a ser comercializados
pelo pai de Helene.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Na mesma hora, nos arredores de Florença, uma cerimônia se iniciava. Reunidos em uma sala,
os mais ilustres e antigos membros, da confraria, recepcionavam seu mais novo integrante.
Distante das vozes e gestos, o patriarca, Savério Marini, deixava a vista vagar pela paisagem que
circundava a sala. O biombo estava com sua família desde o século dezoito. O imenso tigre,
delineado com suaves pinceladas sobre o fundo negro, espera o momento exato para dar o bote
fatal; espreitando, uma garça branca, entre as folhagens. Ele, Savério, também aguardava, não
com a mesma paciência do tigre, o momento certo para colocar as mãos no Caravaggio. Savério
era rigoroso no que tangia as tradições e laços familiares. Por isso exigia dos postulantes, após
provarem ao longo do tempo, fidelidade e respeito, o ritual. Prática que consiste na perfuração
do dedo indicador com espinho de laranjeira e um juramento. Deixando que o sangue pingue
sobre a estampa da Anunciação da Virgem Maria, Gino colocou as mãos gordas em concha e
deixou que Savério queimasse a figura da santa.

Mudando a estampa, em fogo, de uma mão para outra, repetiu com Savério: “Como papel, eu o
queimo, como Santa, eu a adoro, e assim como este papel arde, possa minha carne arder se eu
trair a fraternidade.”

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

VI
‘Zurique, aqui estamos nós’! Brodski anunciou logo que deixaram o aeroporto.
Havia meia dúzia de carros a disposição. Hèléne preferiu o que pertencia a um taxista indiano.
“Nada como enganar um expert, quando se é um expert.” Janus pensou enquanto os prédios da
Bahnhotstrasse deslizavam pelo vidro do carro.
Em meio ao trânsito, Brodski tentava identificar a discreta fachada neoclássica do banco, na
Paradeplatz. Assim que o motorista estacionou, Brodski abriu bruscamente a porta do carro.
Devido ao horário, sem esperar os demais, e com medo de encontrar as portas fechadas, ele
galgou os degraus e entrou rápido pela porta giratória. O motorista retirou a bagagem e
agradeceu, sorrindo, os francos que Hèléne depositou em sua mão. Atrás deles, o sol morria
deixando o crepúsculo coalhado de sangue. Diante da luz bruxuleante, Hèléne parecia ainda
mais perigosa e sedutora.
“Por favor, Sr. Elias” anunciou Brodski.

Minutos depois, um rapaz de sorriso tímido, saiu do elevador. Cumprimentou Brodski e fez sinal
para que o seguissem. No elevador, Brodski se manteve impassível. As câmeras o
incomodavam. Diante do espelho aplicou alguns golpes de pente na cabeleira cinza. Assim que a
porta do elevador abriu, Hèléne ergueu as sobrancelhas, espantada. O Hall abobadado do último
andar cheirava a riqueza e poder. Como nos filmes de Edward G. Robinson, o anfitrião que os
recebeu, é baixo, calvo e de maneiras contidas. Obviamente, fruto da tolerância legal exercida
na Suíça. Por de trás dos óculos, pequeninos olhos vivazes brilhavam como bolinhas de gude.
Prontos para reagirem ao menor distúrbio. A boca discreta, por debaixo do fino bigode, exibia
um sorriso de boas-vindas.
“Não é que você veio”! Disse o banqueiro, estendendo a mão. Brodski retribuiu o gesto e
colocou o canudo sobre a mesa. Ágil, com a ponta dos dedos girou e removeu a tampa do
canudo. Em silêncio, desenrolou a pintura sobre a mesa. Elias não disfarçou o espanto.
Reconheceu estar diante de algo valioso. Como aquelas pinturas que os traficantes traziam para
os cofres do banco, em troca de polpudos empréstimos.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Embora, detestasse negociar com bandidos, ele não questionava a origem dos tesouros que
chegavam ao banco. Afinal, pelas leis suíças, os clientes não eram obrigados a declarar
informações. Muito menos valores.
Depois de ouvir as instruções do banqueiro, Brodski contou sobre a pintura desaparecida na
segunda guerra mundial. Refeito do surpreendente relato, Elias ordenou ao funcionário que
removessem a tela para o cofre. Neste território neutro, aguardariam a visita e o parecer do
expert indicado por Helmuth. Deixar a pintura no cofre, gerou alívio em Janus. Naquela noite,
depois que deixaram o banco, Janus e Hèléne ficaram abraçados, contemplando a cidade,
através da janela do quarto.
No dia seguinte, logo após o café, encontraram Brodski no saguão do hotel. O sol inundava de
luz as fachadas da Bahnhofstrasse. Eles haviam combinado almoçar com Elias. Mas antes,
visitariam a rua Limmatquai e passariam o resto da manhã sob os vitrais criados por Chagall.

“O expert é a chave para o nosso sucesso”! Concluiu Brodski, admirando o teto da catedral.
“Não se preocupe, vamos convencê-lo.” Hèléne levantou-se e fez o sinal da cruz. A luz
despejava reflexos dourado e vermelho nas paredes da Catedral. Percorrendo o rosto de Hèléne,
o reflexo avermelhado, tingiu de sangue todo o seu corpo, tornando dramática sua figura.
É bom que se diga que durante anos a Suíça manteve-se neutra nas questões da guerra.
Alimentando de sangue uma tradição de pacifismo e neutralidade. Receptando e guardando o
ouro do Reich a Confederação Helvética ajudou a retardar o fim da guerra. Vendendo armas e
municiando de francos suíços os cofres alemães a Suíça impediu que seu território fosse
anexado e sua população dizimada. Quando a Alemanha invadiu a Polônia, os bancos alemães
estavam à beira da falência. Sem o subsídio dos bancos suíços a guerra teria sido encurtada e
centenas de vidas poupadas. Cem mil refugiados judeus foram impedidos de entrar no território
suíço. A simples presença da letra “J” em seus passaportes significava a morte em campos de
extermínio. A suíça foi à prostituta de Hitler.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

O almoço, num restaurante do primeiro andar do hotel Savoy, transcorreu tranquilo. Elias,
curioso sobre o destino da pintura, misturou, ao longo da conversa, anedotas e fatos sobre as
agruras de ser banqueiro na Suíça. Desde que deixara sua terra natal, para aventurar-se na Suíça,
sentia-se cercado de inimigos. Todos prontos para tomar-lhe o banco ao menor deslize. Entre
goles de Rivella e baforadas longas a conversa seguia.
O riso e as vozes se misturavam aos aromas da raclette. A música alta impedia Janus de
entender, com clareza, o que diziam as vozes em meio ao burburinho do salão. Mesmo fingindo
interesse na conversa, o esquecimento impossível de quem se é e das coisas do mundo o
atormentava. “Schopenhauer estaria certo?” Ele me perguntou certa vez. “Se a vontade cega é
realmente a coisa em si, a essência de tudo, por que não permitir que o desejo deseje? “
Quando o relógio bateu três da tarde, estavam prontos para retornar ao hotel. Deixando Brodski
e Elias para trás, Hèléne e Janus seguiram em direção à ponte Munsterbrucke.

Brodski cochichou algo para Elias e entregou-lhe um envelope. Antes de entrar no hotel, num
gesto rápido, Brodski virou-se. Desconfiado, esperava identificar entre os transeuntes na
calçada, o homem que seguia o grupo desde que deixaram o hotel.
Quarenta e oito horas depois, Brodski conseguiu contatar Helmuth. E foi sem nenhum aviso,
numa tarde chuvosa, em plena segunda feira, que Rubini apareceu no banco. Os cabelos
revoltos, empapados de chuva, a barba rala na face macilenta e o sotaque denunciaram a
presença do expert nos monitores. A figura encorpada arrastava a capa encharcada pelo corredor.
Rapidamente, Elias discou o número do hotel. Não demorou muito, o expert colocou a mala e a
capa, encharcada, sobre a cadeira em frente à mesa do banqueiro. Ofegante, ele apertou a mão
de Elias e pegou uma caderneta no bolso. Enquanto tentava fechar a valise, falava sem parar,
alternando inglês e italiano.
“Tudo desaparece no esquecimento”, Janus havia me dito uma vez, logo que nos conhecemos. O
velho judeu que o adotara, havia lhe ensinado que o esquecimento era o retorno definitivo da
alma ao Ain Sof.

Nos seus últimos dias, quando ficou internado no hospital, segurava as mãos de Janus e, com a

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Nos seus últimos dias, quando ficou internado no hospital, segurava as mãos de Janus e, com a
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voz baixa, dizia que o tempo era o verdadeiro mestre. Desde o primeiro contato entre os dois,
houve admiração e respeito. Afinal de contas, também foi com coragem e rebeldia que o velho
conseguira sobreviver.
O velho havia resistido ao massacre de Lidice, defendendo a cidade e depois falsificando
documentos para que os judeus pudessem escapar dos nazistas. O outro, Janus, sobrevivera ao
abandono nas ruas, até ser adotado pelo velho. “Sabes que para criar o mundo Deus baixou sua
luz e formou o vazio?” Murmurava o velho, sempre que uma pintura chamava a atenção.
Janus confidenciou-me que a primeira recordação, ligada à vontade de pintar, veio de uma figura
de traços distorcidos que ficava sobre a lareira na casa aonde moravam. Durante anos ele ficou
enfeitiçado por aquele quadro. E foi por causa deste quadro, que um dia teve uma acalorada
discussão com o velho. E foi diante dela, segurando a mão do velho, que já partia para o
segundo tapa, que Janus prometeu que se tornaria um falsário tão bom quanto ele. Eram três
horas da tarde em Zurique. Raios despencavam do céu escuro.

Galhos sacudiam com violência e a tempestade deixava seu rastro prateado ao longo da avenida.
Não demorou para que os três chegassem ao banco. Impaciente, o expert aguardava-os. Feita às
apresentações, rumaram para o cofre. Na ampla sala reservada aos clientes, um espaço a prova
de som e de fogo, projetado para aguentar ao mais pesado dos bombardeios, pairava um silêncio
absoluto.
A primeira coisa que o expert imaginou foi que a pintura, estendida sobre a mesa, despertaria o
bolso de muita gente. Museus, instituições e marchands, inescrupulosos, o suficiente, fariam
qualquer coisa para obtê-la. Sem contar a mídia ávida por achados exóticos. Mas ele, o expert,
também já havia perdido a conta de quantos supostos “Caravaggios” passaram pelo seu crivo
nos últimos anos. Irônico, encarou-os com desdém.
Mais do que os detalhes do quadro, a beleza, de Hèléne, o perturbava. Havia imaginado uma
“Madame Hèléne” velha e de traseiro flácido. Como as que costumavam frequentar a sua cama
em troca de opiniões favoráveis. Era visível no rosto dele os excessos da noite anterior. Curvado
sobre a mesa e com as mãos espalmadas, sobre a tela, ele analisava os detalhes.

Primeiro, fixou os olhos no rosto do apóstolo, e na maneira como ele encarava o anjo; o que lhe

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Primeiro, fixou os olhos no rosto do apóstolo, e na maneira como ele encarava o anjo; o que lhe
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lembrou as execuções sublimes e cheias de energia do pintor. Depois procurou outras


características marcantes, e que os experts nunca deixam de notar, sempre que estudam uma
pintura de Caravaggio. Em seguida, ele cheirou demoradamente a tela. Não satisfeito, voltou a
repetir o procedimento, aproximando o nariz e cheirando, demoradamente, mais uma vez, cada
pedaço da tela.
Na realidade, ele tentava encontrar traços de um verniz muito utilizado por falsificadores. No
íntimo admitiu para si mesmo, estar diante de uma obra do mestre. Era uma pena que o verniz
oxidado sobre a pintura impedisse a visualização dos detalhes. Há duas ferramentas fatais nesta
profissão, eu vim a saber depois de ter começado a escrever esta história. O nariz e as mãos.
Com estas ferramentas, um verdadeiro expert, constrói ou destrói pretensas verdades artísticas.
Desconfiado, o expert cheirou o verso da tela. “O quadro foi reentelado pelo menos uma vez.”
Ele afirmou categoricamente, deslizando a mão pelo verso da tela. “O tecido resistiu bem e os
estragos são limitados”, continuou. Rubini também percebeu o “Pentimento”. Segurando a
pintura contra a luz, ele fez uma careta.

As gretas na superfície frágil do quadro – em espiral, na forma de rede – deixaram transpassar a


luz. Infelizmente, estas rachaduras características da idade, nem o melhor dos restauradores
poderia resolver. Depois de passar saliva na ponta dos dedos, o expert removeu a poeira sobre as
asas do anjo. Para seu espanto a profundidade e o frescor das cores revelaram a paleta do artista
sob o verniz.
“Observem o braço do anjo.” Ele disse.
“O que há de errado?” Curioso, Brodski se aproximou da tela.
“Parece haver outro em baixo, não?” Rubini perguntou, passando mais saliva sobre as asas do
anjo.
“É quase visível um “pentimento”. Ah! Não posso confirmar agora, seria precipitado. Preciso de
tempo para os testes. É preciso que olhos microscópicos pousem sobre a tela.” Disse, guardando
a caderneta.
“Quanto tempo?” Perguntou Hèléne.
“O suficiente minha cara.” Ele respondeu, cravando os olhos em Hèléne.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Ainda estava claro quando Brodski entregou à Rubini o canudo. Na movimentada cafeteria do
aeroporto, entre um assunto e outro, saborearam um Fizz de laranja e o famoso lebkuchen
servido sem creme. Se não houvesse mais imprevistos, o vôo do expert, atrasado, decolaria na
madrugada.

Distraído, talvez um pouco tonto devido aos drinques, Brodski descia a ruazinha sinuosa e
estreita, tomada de prédios de fachada medieval.
Algumas quadras depois, cansado, parou e acendeu o cachimbo. Absorto, nos próprios
pensamentos, contemplou demoradamente a vitrine da livraria. Surpreso, ele percebeu,
misturado aos reflexos do vidro, uma moto parada na esquina. Assustou-se, quando o
motoqueiro acelerou de forma agressiva. Não olhou para trás, mas havia reconhecido, no reflexo
da vitrine, o rosto pálido que havia visto no restaurante dias atrás.
Não demorou muito, a moto avançou na sua direção. Percebendo o risco, o lituano correu.
Durante a fuga, ignorou o rastro de fumaça e o cheiro de borracha queimada que empesteavam o
ar da viela.

Assustado, desviou por entre os carros estacionados, e virou na esquina seguinte antes do píer.
Acreditando estar protegido, Brodski procurou abrigo numa cabine telefônica, abaixou a cabeça
como se estivesse falando ao telefone e enfiou a mão no bolso do casaco. Foi quando ouviu a
moto frear. Num gesto rápido e preciso, o assassino sacou a arma. A fachada da cabine
estilhaçou inteira com a sequência de rajadas.
Habilidoso, sem descer da moto, o assassino recarregou e disparou outra rajada contra o corpo
do lituano. Depois recolheu a pequena foto manchada de sangue. Na viela deserta, tendo
somente a lua como testemunha, ele retirou o silenciador e guardou a arma. Em seguida,
acelerou e desapareceu na escuridão.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

VII
Quando Hèléne encarou Janus, chorando, ele se aproximou ainda mais. O que pode tê-lo
impedido de continuar a ler o resto da reportagem, mas que com certeza fez seus outros sentidos
chocarem-se. Sentiu como se estivessem dentro da mesma roupa; tão quente e macia era a pele
dela. Tamanha intensidade resultou numa percepção igualmente forte. Tão forte que Janus quase
caiu da banqueta. Os olhos de Hèléne estavam arregalados. Ela ficou apavorada com a manchete
estampada na primeira página do jornal. Brodski estava morto. Quanto a merecer ou não
merecer... A vida real não é como cinema, onde os vilões são punidos por seus pecados e os bons
triunfam. Rapidamente, atendendo ao pedido, a garçonete deixou a conta sobre a mesa e
recolheu os pratos. Janus agradeceu e deixou as notas sobre o balcão. No alto falante, uma voz
feminina anunciou o voo deles.

Além do mercado financeiro, o florentino atuava na área do entretenimento.

Os hotéis e boates do grupo são importantes centros de lazer em Roma e outras cidades do leste
europeu. Para ele não seria terrível ficar ali sentado se tocassem alguma música suave ao invés
da barulheira que sai do alto-falante. Apesar das luzes artificiais e da falsa alegria, Savério notou
que as garotas raramente sorriam. Aqueles rostos borrados de maquiagem deprimiam o velho
colecionador. Havia algo de sinistro no lugar; além da fumaça de cigarro barato e das faces
aparvalhadas, capazes de apavorar um homem como ele. O florentino não percebeu quando
Rocco chegou. Entediado, Rocco acendeu um charuto antes de pedir uma bebida e abrir a pasta.
Savério não conseguia se concentrar na conversa. O barulho da música e as luzes coloridas
tornavam o diálogo incompreensível. Quando Rocco estendeu o jornal sobre a mesa, o
florentino não escondeu a surpresa.
“Está morto?” Savério perguntou, aproximando ainda mais a foto.
“Morto!” Rocco concluiu, soltando uma baforada longa. Discreto, empurrou uma cigarreira,

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“Morto!” Rocco concluiu, soltando uma baforada longa. Discreto, empurrou uma cigarreira,
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com as iniciais L. F. B. na tampa, e uma foto manchada de sangue, na direção do florentino.


VIII

Durante a conversa no jantar, Janus contou-me que, por mais incongruente que pudesse parecer
a escolha da cidade para o encontro, Rubini parecia estar num lugar movimentado (barulho de
vozes ao fundo. Irritado, ele só conseguiu anotar o endereço, momentos antes da ligação cair.
Eufórico, pela conversa entrecortada com o expert, Janus pegou novamente o telefone, colocou
as moedas e discou o número do albergue aonde estavam hospedados. Enquanto aguardava, ele
olhou para o relógio da estação, 14h10min, um toque, dois, cinco. Daí a voz macia e o sotaque
de Hèléne:
“Alô? Querido!”
“Hèléne... Rubini quer conversar sobre a pintura.”
“Droga”, ela respondeu decepcionada; “este sujeito vai agir feito um idiota! Vamos recuperar a
pintura antes que ele estrague tudo.”
“Ele pensa que sou o contato. Não se preocupe, daremos um jeito.”
“Não foi isso que combinamos?”
“Eu acho que não será tão simples.” Ela falou baixo com um tom de voz frio que costumava
usar quando estava escondendo uma reação emocional.

“Anote o endereço, Hotel Villa, quarto 103, próximo ao Arco de Trajano”. “Encontre-me na
saída, dentro de duas horas.” Barulho alto de estática, quase uma desconexão.
Então Hèléne de novo, calmamente: “A ligação está péssima”. “Vou desligar, tenha cuidado”.
No caminho, em direção ao hotel, Janus lembrou da carta escrita por Camilo. Janus havia
entendido, desde que tomara consciência da habilidade para imitar estilos, que as belas
composições são o resultado de sentimentos exaltados. Aliás, sentimentos que sob múltiplas
condições, engendram obras-primas ou grandes tragédias. Agora, Janus estava a meio caminho
da sua tragédia.
Quando estava próximo do lugar onde o expert combinara o encontro, percebeu que não
carregava nenhuma arma. Janus sentia uma mistura de fome e medo. Sem um desjejum decente

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carregava nenhuma arma. Janus sentia uma mistura de fome e medo. Sem um desjejum decente
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no estômago, se precisasse lutar, provavelmente não conseguiria acertá-lo com toda força,
pensou. Definitivamente, o local escolhido não era para endinheirados. O prédio de estilo
napolitano, velho e decadente, nem de longe parecia um ambiente familiar. Era uma destas
construções cujo brilho dos metais havia perdido o lustro e as paredes revelavam descaso e falta
de recursos. Apesar da vizinhança bem cuidada a poucos metros dali. A sujeira acumulada
durante anos tornara o teto preto fuliginoso. O primeiro lance de escadas acarpetadas exibia
rasgos do tamanho de um grande pé. O elevador estava interditado. E para piorar as coisas,
quando Janus anunciou o número do apartamento, o porteiro cochilava em frente à televisão.
Sonolento, o porteiro apontou as escadas e balbuciou indiferente:
“Terceiro andar”.

“Sr. Janus”! O expert disse, abrindo a porta e recebendo-o surpreso.


“Belo tweed”! Precavido, ele apalpou o corpo de Janus a procura de uma arma. “Hèléne não
veio?” Rubini continuou, desconfiado.
O cheiro de quarto fechado infestava o ar. Janus ouviu uma mulher gritando e dois homens
discutindo, no apartamento ao lado.
“Precisamos conversar”. “Lamento pelo que houve em Zurique”. “Uma pena que a letra do seu
amigo não esteja legível.” Rubini colocou a mão no bolso, como se fosse puxar uma arma e
exibiu o diário de Goering.
“A farsa acabou meu amigo!” “Acabou!”
Rubini adotava, a cada pausa no discurso, uma expressão assassina. Sob o olhar vigilante dele,
Janus virou-se e contemplou através da janela o cenário que inspirara as bruxas a dançarem ao
redor das nogueiras.
“Imagino que esperam a minha confirmação?” Rubini perguntou, segurando o queixo de Janus.
No exato momento em que estava prestes a pegar o telefone, deu meia-volta e abriu a gaveta da
mesinha ao lado da cama.
“Mudança de planos rapaz!” “Vamos passear!” Acrescentou mostrando uma arma. Mantendo
Janus sob a mira do revólver, Rubini falou dos testes, da qualidade dos pigmentos e de como
surrupiara, no bolso do paletó de Brodski, enquanto o lituano se refazia no banheiro, o diário e o
bilhete. Entretanto, em nome da oportunidade, Rubini frisou mais de uma vez, ao longo da

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bilhete. Entretanto, em nome da oportunidade, Rubini frisou mais de uma vez, ao longo da
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conversa, não deixaria que prosseguissem sem ele.

Chamou atenção de Janus a conversa de Rubini sobre Helmuth. Afundado em dívidas de jogo,
Helmuth, mal pôde acreditar, quando Brodski convidou-o para se juntar a eles. Durante o
encontro, em uma cervejaria, escolheu com extremo cuidado as palavras. Não deixou
transparecer os problemas que vivia nos últimos anos. Naquele momento era importante fingir
para que Brodski acreditasse nele. Impressionado, após ouvir a história sobre a descoberta do
quadro, Helmuth se comprometeu a entregar o diário. Não deixaria escapar a chance de obter
uma boa soma e rever a pintura que ele dava como perdida. Na semana seguinte, de volta a
Berlim, Helmuth fez duas ligações para Brodski. A primeira para indicar Rubini. A segunda
pedindo dinheiro.
“Anda”! Rubini disse apontando a saída com a arma. Os olhos do expert estavam injetados e a
boca exalava um forte cheiro de bebida. Assim que ele fechou a porta, começou a assobiar uma
melodia infantil. Janus afastou-se da porta e sentiu um gosto metálico na boca. Os dois desceram
lentamente até a portaria. O falsário podia ouvir a respiração ofegante de Rubini logo atrás.
Assim que Janus ergueu a cabeça, percebeu refletida no espelho da entrada, a figura esguia
empurrando a porta giratória. Hèléne parecia oculta por um ar de beatitude. Como se fosse
incapaz de empunhar uma arma ou matar alguém. Decidida, no momento da ação, ela tirou uma
arma da bolsa. Janus só teve olhos para o vaso, imitação de alguma ânfora etrusca, que se
encontrava sobre a coluna de madeira. “Um belo argumento contra a cabeça dura do expert”,
pensou.

Aproveitando a distração do expert, Janus girou o corpo com agilidade e puxou Rubini pela
camisa. Desequilibrando-o, ele usou o quadril para dar impulso e o lançou o expert escada
abaixo. Sem perder tempo, num ato de reflexo, Janus agarrou o vaso e golpeou a cabeça do
expert com força. O vaso produziu um ruído desagradável ao se chocar contra o osso. Rubini

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expert com força. O vaso produziu um ruído desagradável ao se chocar contra o osso. Rubini
Caravaggio - Marcelo Nogueira

sentiu a cabeça girar e a visão sumir.


Quando Rubini abriu os olhos e rolou o corpo até ficar de barriga para cima, sentiu uma nova
onda de vertigem.
“Vocês vão matá-lo”! “Parem com isto”! Assustado, o porteiro saiu de trás do balcão e se
colocou diante deles. Cada vez que o porteiro balançava o corpo e falava, a barriga ondulava.
“E agora”? “Vamos negociar”? Janus berrou, chutando Rubini no rosto.
“Estão ali”! “Estão ali!”
Sem perder tempo, Hèléne, pulou o balcão. Na volta, Rubini cravou os olhos no rosto dela.
Demoradamente demais para que este olhar fosse classificado como um simples olhar. O
primeiro golpe atingiu-lhe o nariz. Um gemido brotou do peito. O expert se engasgou com o
sangue e tossiu copiosamente. Quando o braço de Janus mergulhou, novamente, o baque seco da
arma contra o rosto acelerou ainda mais seu torpor.
O problema foi que a visita, ao expert, durou mais tempo do que eles pretendiam. Assim que
entraram no quarto, Hèléne jogou a mochila sobre a cama e verificou o pente da pistola.
Rapidamente, arrumaram as coisas e pagaram a conta. Não seria fácil conseguirem um táxi.

Diante da situação, encravada no Golfo de Nápoles, a terra da Pizza e berço da voz de Caruso
seria o refúgio perfeito. Irritado, Janus notou um buraco na camisa, resultado da briga com o
expert. Assim que deixaram o albergue, um carro sacolejava, pesadamente, na viela escura.
Quase no final da viela, Janus conseguiu bater no vidro e deter a marcha do carro.
“Nápoles”! Repetiu ofegante. Cansado da corrida para alcançar o táxi, ele respirava com
dificuldade. Pego de surpresa o motorista sorriu amarelo, balançou a cabeça e baixou o vidro.
Confuso, repetiu:
“Nápoles! Esta hora senhor?”
“Por favor”! Janus agitou algumas liras e abriu a porta traseira para Hèléne.
“Deixe-nos em Nápoles. Não é tão tarde. E, afinal... Pode haver um extra. Por favor!” Disse
Hèléne.
Hèléne estava calma. O que, do ponto de vista psicológico, significava um péssimo sinal. Em
Nápoles encontrariam Cely. Uma ruiva, de olhos penetrantes, que deixara o frio cortante de

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Nápoles encontrariam Cely. Uma ruiva, de olhos penetrantes, que deixara o frio cortante de
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Moscou pela alegria do Quartiere Spagnoli. Ela arranjaria, sem maiores complicações, um
esconderijo seguro para a pintura.
Acertado o pagamento, o táxi contornou a praça em direção à autoestrada. Enquanto o motorista
acelerava, Janus sentiu o frio aumentar. Uma lebre cruzou assustada, à frente do carro. Aos
poucos, uma bruma densa envolveu a estrada, consumindo a paisagem. Perto de Nápoles,
avistaram uma patrulha. Era madrugada quando o guarda, imediatamente, após visualizar o
carro, gesticulou para o taxista seguir viagem. Para sorte deles, o guarda nem faz menção de
parar o carro e verificar os documentos.

Assim que chegaram às ruas de Vomero o taxista localizou o endereço da ruiva. O lugar era
famoso pela vista da baía de Nápoles. O porteiro manteve a classe; mesmo com o relógio
apontando três da madrugada. Amigo da ruiva, o porteiro, reconheceu Hèléne através da vidraça.
Imediatamente abriu a pesada porta de metal e os conduziu para dentro do hotel.
“Hèléne!” O porteiro esboçou um sorriso, do outro lado do balcão
“Por que não avisou que viria?” Eu teria providenciado tudo. “Esta hora, Cely, está dormindo.
Não se preocupem!” Concluiu, preenchendo a ficha de hóspedes. Nicolas sabia que o nome
Hèléne deveria ser omitido. Velouria, ela assinou.

Longe de casa, Savério Marini sentia-se desconfortável. Absorto nos próprios pensamentos,
mais por dor do que divagação, sem responder aos movimentos repetitivos da massagista,
segurava nas mãos um envelope. A última caçada havia exaurido as forças do florentino. Pura
falta de atenção, assim ele justificou o acidente, durante o jantar, após a caçada. O lobo, mesmo
preso na armadilha de ferro, conseguira lhe morder a perna. Fosse mais forte o ataque, teria
rasgado a malha de aço e atingido a carne com violência. Infelizmente o tempo cobra o preço.
Não possuía mais a agilidade de antes. Mesmo ferido, deu conta do lobo. Abatendo-o a tiros.
Depois da massagem, uma reunião nos arredores de Florença o aguardava. Mas antes que
vestisse o roupão, ao virar-se para entregar a toalha, não resistiu à curiosidade e abriu o
envelope. Ao terminar de ler, sentiu como se uma punhalada o atingisse no peito.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Prezado Marini:
“Estou com a pintura. Resolvi mudar os planos. Faz tempo que meu coração morreu, mas salvo
quem o matou ninguém mais sabe o que houve comigo. Feito uma holotúria, meu coração se
dividiu em dois: uma parte dele entregou-se à vida e a outra lhe escapou. Duas margens
estranhas. Numa a morte, noutra a vida. A verdade é que não quero eliminar Janus!”
Hèléne

“Maldita!” Savério gritou irritado, rasgando o telegrama.

IX
Janus havia me dito que Cely tinha olhos bem rasgados e cor de azeviche. Emoldurados por
grossas sombrancelhas douradas. E que o rosto dela se destacava dos outros. Apesar dela fazer
tudo para permanecer anônima em meio a multidão. Naquela noite, a ruiva bebia e dançava
como há muito não fazia. O absinto turvava os sentidos, produzia uma sensação estranha. O que,
de certa maneira, a estimulava e tornava seus movimentos ainda mais provocantes. Ao passar
por entre as mesas, ela deixava um rastro de perfume. Ah! Juventude! É nela que ocorrem as
ações mais corajosas, plenas de beleza e perigo! Aboletando-se à beira da cadeira, ela esvaziou o
copo e depois outra taça de champagne. Sentia-se distante apesar da euforia. Tão distante quanto
à pequena região russa, aonde nascera, Vladvostok. Depois de permanecer algum tempo

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à pequena região russa, aonde nascera, Vladvostok. Depois de permanecer algum tempo
Caravaggio - Marcelo Nogueira

observando o salão, Janus segurou o braço de Hèléne. Desta vez, o olhar dela, normalmente
cálido, estava frio e perdido.
“Então Garotas! O que faremos se o expert aparecer?”
“Nada! Vamos despistá-lo!” A ruiva respondeu sem levantar a cabeça.
“Esqueçam...vamos cair fora enquanto há tempo.”
Contrariada por ter de ir embora, Cely os conduziu até a saída da boate. Noite alta. Um grupo de
jovens, vestidos de preto, dançavam ao som de uma batida estranha e bebiam uma garrafa de
vinho na calçada. Foi uma longa caminhada até o bairro de Rione Sanitá. Assim que chegaram,
Hèléne estalou os lábios e avançou sobre a bandeja de lokuns com amêndoas.

Atendendo o pedido da ruiva, um rapaz de feições finas acendeu a brasa e o haxixe desprendeu
um aroma adocicado. Transformando, após algumas baforadas, as paredes, do velho café
oriental, nos cenários descritos por Thomas de Quincey.
A manhã estava mais quente do que o comum naquela época do ano e parecia haver uma leve
aura de tristeza ao redor da cidade. Na televisão a previsão do tempo era de sol e ar seco. Em
silêncio, Janus debruçou-se na sacada e acendeu um cigarro. Entre uma baforada e outra,
observava a Baía livre do nevoeiro. Segurando uma xícara fumegante de café e acompanhando o
ritmo lento das baforadas, tentava entender os últimos acontecimentos. Por mais que ignorasse a
importância do sonho nesta reflexão, a imagem da queda num abismo sem fim, continuava a
persegui-lo, noite após noite, e resumia, pelo menos de forma aparente, toda a situação em torno
deles. Debruçado sobre a sacada, deixou o sol quente e a brisa do mar acariciarem o seu rosto
enquanto acompanhava o voo das gaivotas ao redor das embarcações. Surpreso, compreendeu,
observando o Vesúvio ao fundo da baía, do quanto à beleza manipula nossa razão. Na realidade,
o que ele mais temia e evitava admitir, desde que lera o bilhete de Camilo, era que o reencontro
com Hèléne poderia significar o fim da linha para ele. Naquela mesma manhã, do outro lado da
cidade, a ruiva apertou, distraidamente, o botão do elevador. Ela não percebeu, logo que fechou
a porta do esportivo, o homem de camisa florida e curativo no nariz, com o rosto oculto sob um
boné, do outro lado da calçada, observando atentamente os movimentos dela. Durante algum
tempo o homem permaneceu parado. Seguiu-a, com os olhos, e só atravessou a rua, indo em
direção ao carro da ruiva, assim que ela entrou no prédio.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Cabelo preso, roupa colada no corpo bem feito, Cely procurava disfarçar a impaciência,
mexendo na bolsa enquanto aguardava. Quando deixou o elevador esteve a ponto de virar-se
rapidamente. Sentiu, como se alguém a espreitasse. Mas o longo corredor da agência de
despacho marítimo continuava vazio. Apenas as persianas sacudiam ao sabor do vento. Os raios
de sol espalharam-se por seu corpo. Distraindo-a por segundos.
“Okusan?” Disse a jovem de óculos preto, segurando uma fumegante xícara de café.
“Por favor, procuro San Zanichiro?”
“Uhhh! San Zanichiro... Onegaishimasu.” A garota repetiu o gesto.
O escritório do despachante ficava no final do corredor. O salto alto impedia Cely de
acompanhar os passos largos da funcionária a sua frente.
“San Zanichiro!” A funcionária anunciou, lentamente abrindo, a porta de vidro.
“Soo!” Prontamente a figura arqueada levantou e contornou a escrivaninha, com a mão
estendida.
“Olá! Quanto tempo! A que devo a honra desta visita? Por favor sente-se!”
Logo após uma breve troca de amenidades, Cely falou sobre a mercadoria que pretendia
despachar sem “burocracia”. Ouvindo-a, atentamente, o despachante acendeu o cachimbo preso
aos lábios. Antes da ruiva terminar o relato, ele abriu uma agenda de aspecto gasto e procurou
nas anotações o dono de uma pequena embarcação, em Salerno.

Concentrado, rabiscou os números numa folha. Animado, minutos depois, encerrou o


telefonema. Em seguida, passou às mãos da ruiva o número do barqueiro.
Zanichiro não lembrava um gangster. O modo sereno, com que tratava os problemas, refletia os
longos anos de trato comercial. As têmporas brancas e o olhar severo davam-lhe um aspecto
nobre. Quase como se ele fosse um samurai dos filmes de Kurosawa. Assim que ele entregou o
papel, Cely guardou-o na bolsa e emendou outro assunto. Desta vez sobre um tema que
interessava, e muito, para ambos, orquídeas. Antes de se despedirem, ela deixou um saquinho
cheio de sementes sobre a mesa de Zanichiro. Agradecida, disse algumas palavras em japonês,
afastou dele o olhar e saiu do escritório.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Para Cely, os anos na KGB ensinaram discrição. Aprendera com a experiência que o silêncio
vale ouro; e que gestos inocentes, geralmente, ocultam ações terríveis. Talvez por esta razão, ou
até mesmo antevendo o perigo, antes de sair de casa, carregando apenas uma bolsa, ela tenha
decidido esconder a pintura. Longe de olhares cobiçosos. Assim que o elevador chegou ao
térreo, ela decidiu aproveitar o resto da manhã, passeando pela Via Toledo.
Despreocupadamente, e sonhando com algum modelo exclusivo na Galeria Umberto I, ela abriu
a porta do esportivo pronta para ganhar as ruas. Surpresa com a resposta negativa do destino,
levantou cuidadosamente os braços. Tentou ignorar o medo. Afinal, se o homem apertasse o
gatilho, o estrago causado pela arma seria fatal. De olhos bem abertos, encarou o homem.
Cuidadosa nos movimentos, ela entrou no carro. Cely sabia que sua única chance de
sobrevivência, seria tomar a arma das mãos dele.

Num único movimento, brusco e rápido; forte o suficiente para arrancar a arma e disparar contra
a cabeça do inimigo. Acomodada no banco do motorista, ela deu a partida.
Inicialmente, partiram em direção ao embarcadouro Bausan. Assim que deixaram a área dos
contêineres, ela acelerou fundo. Na saída do porto, ele bateu no rosto da ruiva e com o cano do
revólver pressionou suas costelas. Ela tentou se desvencilhar. Foi quando um soco atingiu-a em
cheio no nariz. Em seguida, ele engatilhou, mirando a cabeça, pronto para disparar. Não seria
fácil livrar-se do corpo, ele pensou, desistindo da ideia. Neste momento, percebendo a hesitação
do assassino, Cely, num gesto rápido e preciso, soltou uma das mãos do volante e agarrou o
revólver. Desviando o cano e impedindo que os disparos a atingissem. Furioso, ele atingiu o
nariz da ruiva. Em alta velocidade, desgovernado, o carro cruzou a pista. O assassino afastou
dela o olhar. Fração de segundos largou o revólver e puxou um fio metálico, do bolso.
Cely respirava com dificuldade. Um filete vermelho escorria do nariz; formando uma camada
espessa sobre os labios. Uma dor aguda alfinetou-lhe a espinha, vendo o fio prateado na mão do
assassino. Sentiu, bruscamente, a mão do homem puxar-lhe o cabelo, entortando a cabeça para
trás. Num gesto desesperado, ela esticou a perna, procurando o pedal do freio. Freiou
bruscamente. A manobra fez o carro derrapar e atingir a barreira de contêineres, capotando em
seguida, diversas vezes. O impacto, do corpo do homem, contra o vidro, provocou um forte

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seguida, diversas vezes. O impacto, do corpo do homem, contra o vidro, provocou um forte
Caravaggio - Marcelo Nogueira

estalido, como a descarga de um raio; tingindo de vermelho o rosto da ruiva. Um longo silêncio
se fez. O teto do esportivo prensava o corpo de Cely contra o painel. As pernas amortecidas
impediam-na de escapar. Ela sentiu os cacos de vidro sobre o rosto e um forte cheiro de
gasolina.

Logo a pista ficaria cheia de Sirenes e paramédicos. Foi o último desejo de Cely antes de perder
a consciência. Depois, uma forte explosão consumiu o cenário a sua volta.

“Sfortunato!” Gritou Savério. O florentino estava possesso com o sumiço de Hèléne e a morte
de Rubini. O acordo foi encontrar o expert e trazê-lo vivo. Não podia aceitar esta falha. Afinal,
fora o seu principal assessor, que ficara responsavel por organizar a operação. Savério exigia
reparação! Em pé, de cabeça baixa, escondendo a vergonha sob o capuz negro, Luca o
tranquilizou. Após pedir desculpas, diante dos membros da confraria, e assumir o erro, fez uma
reverência. Em seguida, sentou novamente, afastou o capuz e colocou um estojo de laca
vermelho, salpicado de pontinhos dourados sobre a mesa. Sob olhares atônitos dos demais,
enrolou, cuidadosamente, o dedo na gaze branca; no melhor estilo dos filmes de Yakuzas. A laca
refletia o traço delineado pela luz azulada das velas. O ar estava fresco. Ao longe, as luzes
alaranjadas da velha Florença se multiplicavam na penumbra da sala. Ele segurou o punhal.
“Perdão senhor!” Disse envergonhado, olhando fixamente a mão esquerda aberta sobre o tampo
da mesa. O som da lâmina, decepando o osso, produzia um ruído seco e arrastado. Deixando
rastros vermelhos sobre o tampo e a roupa salpicada de pontinhos vermelhos. Para Luca a dor
maior estava na desonra do ato; insinuando incompetência e falha diante dos confrades.
Segurando a gaze, pálido e trêmulo, passou às mãos de Savério o embrulho. Indiferente, com um
gesto de aprovação, o florentino recolheu a oferenda e jogou-a no lixo; depois saiu da sala
batendo a porta.

A velha escadaria rangiu. Nas últimas semanas, Todo final de tarde, repetindo uma cadência
marcial, o florentino sobe até o último pavimento. O último lance de escada termina num amplo

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marcial, o florentino sobe até o último pavimento. O último lance de escada termina num amplo
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terraço envidraçado. É neste lugar que ele gosta de ficar quando precisa tomar decisões.
Enquanto examinava os tapetes estendidos sobre o chão, lembrou da expressão japonesa,
aprendida, anos antes, quando devorava os livros de Mishima.
Esta palavra, respeitada e revestida de uma aura mágica, nos círculos aristocráticos, significa a
perfeição absoluta “SHIBUI”. Os japoneses raramente pronunciam. Muitos, ao longo da vida,
nem chegam a ouvi-la. “Só se vê uma vez na vida”, murmurou para si mesmo. Foi esta palavra
que ele pronunciou para si mesmo, naquela festa, ao ver Hèléne, pela primeira vez.
Pensativo, ficou contemplando a paisagem ocre que se estendia quase até a linha do horizonte.
Ignorou os sinos que anunciavam o fim do dia. Savério já não pertencia ao tempo. Olhava fixo a
cidade estendida a sua frente. No seu interior, ocorria uma luta entre o desejo de matar Hèléne e
as razões que o faziam negar esta vontade. Não é novidade que os que são atraídos pela beleza,
esquecem do bom senso e seguem caminhos perigosos. A obsessão de Savério por Hèléne era
tão forte quanto sua dedicação aos negócios. E esta obsessão aumentou, ainda mais, quando
associou o rosto dela com o rosto do anjo na pintura. Desde o momento em que atendera a porta,
e depois em sua biblioteca, ouvindo o relato e as fotos mostradas por Rubini, ele afundara em
um silêncio branco.

Imaginou que mesmo depois de matá-la, não conseguiria viver com a lembrança daqueles olhos
no rosto do anjo. Enquanto ele acendia o charuto e pensava na melhor maneira de se livrar do
chantagista à sua frente, sentiu o ar escapar pelas narinas, espalhando uma nuvem de
arrependimento por ter atendido a porta.
Semanas depois, Gino permaneceu em Zurique e Rocco tomou um voo para a Alemanha.
Seguindo as ordens, deveriam aguardar o sinal para agir. Desta vez, Gino, agirá sozinho, ou
melhor, sem ajuda. Até então, matar Brodski havia sido a prova de fogo. Eufórico após o feito,
no telefone, Gino prometeu trazer o quadro.
É bom que se saiba que num primeiro momento para Hèléne e Brodski, o plano de recriar uma
pintura, dada como desaparecida, soou inocente e lucrativo. Para os dois, tão importante quanto
um plano, naturalmente, era encontrar os figurantes certos. Hèléne apostou na ganância de
Savério e no talento de Janus. Experiente, ela nunca duvidou que nas mãos de um falsário como
Janus, a pintura seria executada com maestria. Brodski e Hèléne, apoiados em comprovação

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Janus, a pintura seria executada com maestria. Brodski e Hèléne, apoiados em comprovação
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científica, sabiam que seria facil encontrar um comprador. Mas como todo plano simples, ao
longo do tempo se revelou complexo e perigoso. Apesar de acostumada a turbulências e fortes
emoções, Hèléne, em nenhum momento, cogitou que poderiam cair na própria armadilha. Para
os dois, bastava a ilusão de que Savério obteria prestígio com a descoberta do quadro. Mas o que
Hèléne ignorou, ao longo do plano, é que algo tão forte quanto o dinheiro havia sido despertado
nele. Tão forte e destrutivo quanto o que Hèléne sentia por Janus. E isto era o suficiente para
que todos corressem perigo.

As ruelas de Nápoles estão cheias de gatos. Durante algum tempo caminharam sem rumo.
Durante horas, erraram através de passagens estreitas, no mais absoluto silêncio. Assim que
chegaram, empurraram a porta do hotel sem esperança de encontrar alguma informação que
desmentisse a morte da ruiva.
“Ontem a polícia esteve aqui!” Nicolas anunciou.
“Não comentei nada sobre vocês. Procuravam documentos no quarto de Cely.”
Depois de consultar os jornais, tiveram a certeza de que o outro ocupante do carro se tratava de
Rubini. Com ajuda de Nicolas, abriram a suíte de Cely. As janelas continuavam abertas,
exatamente como ela havia deixado antes de sair para o encontro. A brisa do mar penetrava
através das cortinas. Decididos, logo que adentraram a suíte, iniciaram pelas gavetas do móvel
dourado, no pequeno corredor do Hall de entrada. Roupas e duas bolsas jaziam sobre uma
cadeira no meio da sala. Em alguns momentos, o silêncio da busca era quebrado pelo vozerio
dos turistas no corredor. Paredes cobertas de quadros, tapetes persas e móveis antigos
compunham a decoração, que mais se assemelhava aos luxuosos apartamentos da Avenida
George V. Dentro do quarto, revistas, sapatos e roupas davam ao cenário um ar caótico. Foi uma
caixa de porcelana que despertou a curiosidade de Janus. Curioso, ele avançou sobre a peça.
Enquanto mexia, ficou obeservando Hèléne, parada em frente a um grande espelho, ao lado de
uma poltrona. Seu rosto parecia iluminado.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

“Deixe isso, me ajude a tirar isto da parede.” Ela pediu, animada com a perspectiva de uma boa
surpresa.
Hèléne olhou com uma expressão divertida enquanto deitavam o enorme espelho sobre o sofá.
Sem dificuldade, arrancaram um pedaço da madeira que protegia o fundo. Janus reparou que
havia algo solto no interior do espelho. Com dificuldade, ele conseguiu remover, através da
fresta, o tubo. Durante um décimo de segundo, os olhares se cruzaram, como piratas que
encontram o mesmo baú. Cuidadosamente, recolocaram o espelho na parede. Quando deixaram
a suíte, já passava do meio dia. Subiram até o terraço. Instalados ao lado da amurada, com vista
para a magnifica paisagem, pediram uma bebida e abriram o tubo. Para surpresa deles, além da
pintura, encontram um envelope.
“Lembrei do espelho assim que entrei na sala. Faz algum tempo, eu precisei esconder uma jóia
ali. Depois de uma noitada em que nos excedemos, Cely falou do fundo falso no espelho.”
“Você tem razão Hèléne! A ruiva era esperta!”
“Não seja irônico! Ela continua nos ajudando, leia isto!”
San Zanichiro – área da alfândega – bloco 14/Mazarella

Chove fraco sobre Berlim. Em frente ao casarão, de dimensões razoáveis, onde Helmuth mora,
em plena região de Spandau, exceto por uma moto estacionada do outro lado da estrada, não há
nada à vista. A rua arborizada, que desemboca na margem do rio Havel, está deserta.

Não há uma viva alma por perto. Nem mesmo aquelas criaturas de quatro patas que são o pior
pesadelo de Rocco. O cenário perfeito para um assassinato, ele pensou. Envolto pela escuridão
da noite ele pula a grade e cruza o jardim. Cuidadoso, Rocco corre em direção à porta da
entrada. A fechadura já havia cedido quando uma luz se acendeu no andar superior. Ele cerrou
os punhos. Decidido, reuniu coragem e entrou.
Dentro da sala escura, um cheiro de fritura se misturava aos odores de cachimbo. Sem fazer
barulho, ele avançou até a escadaria. Lentamente, seus pés treinados galgaram os degraus de

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barulho, ele avançou até a escadaria. Lentamente, seus pés treinados galgaram os degraus de
Caravaggio - Marcelo Nogueira

pedra. Ele não estava ansioso, mas sim tomado por um sentimento de dever. Ouviu música vindo
do andar superior. Rocco não tinha certeza de quantos encontraria por lá. “Se Helmuth estiver
ali não sobreviverá para contar”, pensou. Para ele, o maldito alemão deveria ter pensado duas
vezes antes de se associar ao tal expert. Chantagear Savério fora um erro mortal para ambos.
Assim que Rocco venceu o último degrau, aproximou-se da porta. Reconheceu a voz do outro
lado da porta. Antes de entrar, ele conferiu o punhal no bolso e girou a maçaneta da porta.
Estava pronto para invadir o quarto, quando ouviu a vitrola sendo desligada.
A porta se abriu. Surpreso, Rocco encarou Helmuth que esta travestido de mulher. Paralisado,
continuou olhando para Helmuth, mesmo quando o punho do alemão partiu impetuoso na
direção do seu queixo. Um golpe duro, repleto de força e seco feito um Martini. Forte o
suficiente para quebrar um nariz. Cambaleante, Rocco invistiu contra o alemão, jogando-o
contra a parede. Irritado com a reação, Helmuth avançou disposto a esganar Rocco. Rocco
permanecia indiferente até sentir os dedos fortes do gigante alemão apertarem sua
garganta.Instintivamente, Rocco ergueu o joelho e atingiu Helmuth por entre as pernas. O
alemão recuou.

Na volta, Helmuth deixou a cabeça à frente, chocando-se violentamente contra o peito de


Rocco. Os dois rolaram pelo chão. Rocco lutava com todas as forças para se livrar de Helmuth.
Novamente, por um descuido, ele ficou no caminho das mãos de Helmuth. Se ele permanecesse
onde estava terminaria com a traqueia esmagada.
No fundo, Rocco estava arrependido por não ter trazido a pistola. “Leve a pistola Rocco, voce
pode precisar!”, Gino disse antes dele partir. Num gesto desesperado, Rocco contraiu todos os
músculos do corpo e chutou Helmuth. O alemão berrou de dor; soltando, instintivamente, as
mãos pescoço de Rocco. Sem dar chance, Rocco agarrou o alemão pela gola do vestido e
aplicou-lhe uma forte cutelada no pescoço. Antes de Helmuth perder os sentidos, Rocco pegou a
navalha do bolso. O maldito mesmo perdendo os sentidos, ainda tentava se levantar. Foi quando
o rosto de Helmuth se contraiu ao receber o primeiro corte que dividiu sua bochecha. Mesmo
diante do fim os olhos cinzas do alemão se mostravam implacáveis. Rocco golpeou com mais
força. Desta vez a lâmina cortou a jugular e o sangue esguichava em profusão. O barulho da
lâmina se misturava ao som gorgolhante que saía da garganta de Helmuth. Rocco puxou a

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lâmina se misturava ao som gorgolhante que saía da garganta de Helmuth. Rocco puxou a
Caravaggio - Marcelo Nogueira

lâmina de volta, empurrando o corpo do alemão com o pé. Exausto, ele caiu sentado no corredor.
Não sei por quanto tempo seus olhos esbugalhados ficaram voltados para a poça de sangue sobre
o piso.
Quando Rocco se preparava para deixar a casa ele percebeu um vulto negro, avançando, em
meio a penumbra da sala. O impacto do salto, quase o derrubou. Era o pesadelo de quatro patas!
A fera negra escancarou a bocarra, decidida a estraçalhar-lhe o rosto.

Rapidamente, com uma das mãos Rocco conseguiu deter o avanço da mandíbula da fera e com a
outra, golpeou com a navalha varias vezes; até acertar, exatamente, entre os olhos. Ofegante,
Rocco olhou para o cão inerte no chão e abriu um sorriso. Precisava fugir.
Na estrada o vento atingiu forte o seu rosto, e parecia como um grito de terror alto, muito agudo.

XI

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Durante um bom tempo os dois mantiveram o olhar fixo no café do outro lado da rua. Foi
quando Hèléne reconheceu o homem. O mesmo que ela jurava ter visto, na noite anterior,
pedindo informações e rondando o lobby do hotel; o mesmo homem que ela acreditava, havia
matado Brodski e a seguia desde Paris.
Tal constatação, fora o motivo para que ela e Janus buscassem outro hotel. Saindo pelos fundos,
procuraram abrigo no bairro vizinho, Antignano. Despercebido, Gino fumava um cigarro atrás
do outro, misturado aos clientes do café. No momento em que ele fez menção de levantar, ela
disse algo para Janus, num tom negativo. Antes de seguirem, Hèléne certificou-se de que o
pedaço de papel com o endereço do despachante continuava no bolso do casaco. Janus ajeitou a
mochila no ombro dela. Lentamente, sem perder o homem de vista, os dois recuaram pela viela.
Caminharam com cautela, esperando que o homem aparecesse a qualquer momento. Antes de
apressarem o passo e desaparecer, Hèléne, viu Gino conversando com um rapaz. Assim que ele
ajeitou o chapéu e andou em direção à entrada da viela, ela teve uma percepção dolorosa. Mas
esta dúvida, longe de ameaçadora, na verdade a inspirou. Sua mão direita segurou a alça da
mochila com mais firmeza.

A via Falcone estava vazia quando alcançaram a saída do tortuoso vicoletto. Continuaram por
alguns quarteirões e aceleraram o passo em direção ao centro antigo. Atravessaram a Piazza Del
Mercato e seguiram até a via Chiaia como se fossem turistas.
Diminuindo o ritmo, Janus olhou ao redor. Procurava um lugar para descansarem. Cansados,
resolveram parar numa fonte a meio caminho da entrada principal do mercado. Hèléne o
abraçou. Ela estava assustada. Mas acreditava que nos labirínticos corredores do mercado,
conseguiriam despistar o brutamontes. Sem perder tempo, entraram numa das entradas do
mercado, seguiram pelo calçamento de pedras e se misturaram com a multidão.
Num golpe de vista, Janus avistou Gino, por entre as arcadas superiores, do outro lado do
mercado. Decidiram voltar, mas detiveram a marcha quando avistaram Gino, andando
calmamente, por entre os transeuntes, vindo em sua direção.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Desta vez tomariam outro caminho, longe da multidão, próximo à direita do setor de cerâmicas,
aonde uma placa dependurada sobre a rua apontava a direção do cais. Outra placa na saída
apontava, para a mesma direção; uma curva à esquerda a cerca de quarenta metros. Como num
jogo de cão e gato, Gino continuava atrás deles. Sem pestanejar, passo acelerado, viraram à
esquerda, seguiram adiante numa ladeira, por entre barracas cheias de peixes e roupas
dependuradas nas sacadas. Quando alcançaram uma rua aberta e movimentada, se misturaram
aos passantes. Alguns metros adiante, viraram a esquerda novamente e passaram sob uma
passarela de aspecto desgastado. Uma rua estreita com sobrados cheios de sacadas dos dois
lados, deserta, repleta de bandeirolas, latões de lixo e restos de feira, se estendia à frente.

Exaustos, sem saber ao certo onde estavam, resolveram parar. Não muito longe, ouviram o apito
de um navio.
Enquanto discutiam qual direção tomar avistaram Gino. Instintivamente, Hèléne pegou a
mochila e correu em direção ao final da rua. Propositadamente, Janus desacelerou a marcha.
O brutamotes o alcançou antes que ele atravessasse para o outro lado. Assim que Gino pegou na
camisa, o cotovelo de Janus atingiu-o em cheio na testa. Atordoado e surpreso com a reação
inesperada, Gino tentou derrubar o falsário. Aproveitando o desequilíbrio de Gino, Janus
golpeou-lhe nas pernas. Cerrou o punho direito e soltou um gancho contra o queixo do
brutamontes. Com a força do golpe, Gino caiu próximo à entrada de um bar fechado. Mesmo
atordoado, Gino ainda conseguiu ver Hèléne se aproximar. O brutamontes cuspia sangue e não
havia gostado nem um pouco da recepção. Gino tentou tirar a garrafa das mãos dela. Janus ouviu
o barulho do vidro se partindo. Hèléne bateu novamente com a garrafa e o sangue escorreu.
Gino desabou na calçada, feito um touro atingido entre os olhos por um martelo. Erguendo o que
havia restado da garrafa, Hèléne acertou-lhe a nuca com força.
Assustados, os dois correram ladeira abaixo. Por algum tempo, caminharam ignorando o
movimento na rua e as vozes dos transeuntes. Seguiram em direção aos apitos e o forte cheiro do
mar que aumentava à medida que a ladeira chegava ao fim. Não demorou muito, reconheceram a
zona portuária, andando em meio a armazéns e garagens de aspecto desleixado, ladeados por
trilhos de trem. As placas, os enormes guindastes e o entra e sai de estivadores nos navios, do
outro lado da imensa grade, comprovaram esta certeza. Só não sabiam, exatamente, em que setor

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outro lado da imensa grade, comprovaram esta certeza. Só não sabiam, exatamente, em que setor
Caravaggio - Marcelo Nogueira

estavam.

Avistando um grupo de trabalhadores, próximo a uma pilha de containeres, resolveram


perguntar. O homem de aspecto sujo os encarou. Desconfiado, traduziu com dificuldade as letras
do bilhete, e com um gesto de cabeça apontou a direção certa da alfândega.
Seguindo a dica, caminharam alguns metros, contornando uma imensa área de empilhadeiras. O
trânsito dos navios, ao longe, comprovava a fama do porto. Um dos mais movimentados do
mundo. Quando se aproximaram do embarcadouro Bausan, encontraram uma placa indicando o
setor dos despachantes aduaneiros. Dentro do prédio, não encontraram ninguém que
comprovasse que ali fosse o escritório de Zanichiro. Apesar da porta encostada, nenhuma alma
viva circulava pelo hall de entrada. Apenas uma pequena placa na recepção, Bloco 14/
Mazarella, comprovava o endereço escrito no bilhete.
Zanichiro tinha cerca de um metro e oitenta de altura. Talvez as têmporas brancas fizessem com
que ele parecesse, ainda mais, Tajomaru, o bandoleiro, interpretado por Toshirô Mifune, no
filme Rashomon. Porém suas maneiras delicadas e o olhar severo inspiravam confiança. Bem
vestido, ele era uma figura tão simpática que parecia impossível imaginá-lo, apesar da
semelhança, com o bandoleiro que estuprou a mulher do samurai no filme. Sentado, atrás da
escrivaninha, o velho despachante estranhou as duas figuras paradas diante da mesa. Não
aguardava ninguém àquela hora.
Aliás, nem precisava ter comparecido ao escritório. Voltou apenas para pegar a carteira
esquecida no dia anterior. Uma paralisação dos trabalhadores estava marcada para as próximas
horas. E, como ele mesmo sabia, não haveria despachos e nem papeladas a preencher até que
patrões e empregados chegassem a um acordo. Até que isto acontecesse, haveria muita baderna.

De qualquer forma, aproveitando a desculpa da carteira e por precaução, decidiu levar para casa
alguns papéis.
Não queria correr o risco, como da vez anterior, quando ativistas radicais, aproveitando a
ocasião e o apoio dos contrabandistas locais, arrebentaram e atearam fogo em alguns escritórios.
Sentado atrás da mesa, observava a dupla como se estivesse a ponto de pedir desculpas por não
reconhece-los.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Zanichiro deu-se conta de que não havia trancado a porta de entrada do prédio. Numa voz clara
e firme disse:
“Em que posso ser útil?”
sem perder tempo, quebrando o incomodo silêncio, Hèléne deu um passo à frente e fez as
apresentações. Ela colocou sobre a mesa o bilhete. Então, ficou olhando fixamente para ele.
Pacientemente, Zanichiro repousou as mãos entre os joelhos e convidou-os a sentar. Pediu
desculpas pela desordem. Em seguida colocou os óculos, segurou o bilhete com as mãos e
analisou a caligrafia. A letra continuava tímida, pensou. Abrindo a carteira, retirou outro bilhete
e surpreendeu-se mais uma vez, com a letra firme e bem desenhada da ruiva. Como combinado,
entre Zanichiro e Cely, quando os encontrasse, bastaria que Hèléne dissesse a senha. Um nome
anotado, no pequeno pedaço de papel, que ele segurava. No silêncio da sala, olhando um para o
outro, Janus observava a expressão calma do velho samurai.
“Acho que podemos confiar nele!” Hèléne deu de ombros.
“Qual a senha senhorita? Para ajudá-los preciso da senha.”

Confiante, ela se levantou e apoiou os braços sobre a escrivaninha. Cara a cara com zanichiro,
soletrou bem devagar:
“V-E-L-O-U-R-I-A.” Enquanto Hèléne se ajeitava na cadeira, Zanichiro permaneceu sentado, o
corpo magro curvado para frente. Dobrou o papel e não deixou transparecer o alívio pela
resposta dada. Hèléne olhou-o nos olhos e disse:
“O senhor vai ou não vai nos ajudar?”
“Se eu concordar em ajudá-los, será para retribuir a amizade de Cely, não porque acertaram a
senha.” Respondeu, travando, cuidadosamente, o cadeado da gaveta.
“Mas antes, quero saber como entraram nesta enrascada?”
Enquanto Zanichiro preparava o chá, Hèléne começou a contar. Por incrível que pareça, iniciou
com a compra do Frans Hals e foi até o maldito acordo com Savério. Mas quando ela revelou
seu amor por Janus acima do interesse pessoal, as lágrimas escorreram. Por este amor, Hèléne
confidenciou, abandonara o acordo entre ela, Brodski e Savério. Porém, ela não tinha a menor
idéia de como escapariam da fúria de Savério. Para Zanichiro, à medida que o relato prosseguia,

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idéia de como escapariam da fúria de Savério. Para Zanichiro, à medida que o relato prosseguia,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

Hèléne e Janus pareciam equilibristas. Tipos corajosos, mas não para serem imitados, pensou.
Zanichiro sabia que a beleza exige sacrifícios.
Houve um silêncio após o relato de Hèléne. Enquanto bebia o despachante pensava numa
solução. O que mais o aterrorizava era a possibilidade de que Savério, com seus tentáculos no
submundo, alcançasse todos eles.

Convencido, tirou o telefone do gancho e discou o número de um barqueiro em Salerno. Depois


da breve conversa, Zanichiro foi direto. Teriam de deixar Nápoles imediatamente. Enquanto
aguardavam o barqueiro, ele explicou o plano.
Pouco depois das onze da manhã o tal Luigi chegou. Era destes tipos que sempre parecem
atrasados. Esperto, não precisou de muitas explicações para entender que desta vez, ao invés de
mercadoria contrabandeada, levaria dois fugitivos. Sinal de que as coisas estavam sérias por ali.
Inicialmente, Zanichiro pensou em contar para Luigi toda a situação. Mas assim que o viu,
decidiu não informá-lo sobre a pintura. Deste modo, ainda que as coisas esquentassem, o lépido
marujo correria menos riscos por não saber demais. Para todos os efeitos, levava turistas que
fariam um tour por uma ilhota, na região da Toscana, chamada Porto Ercole.
“Dois dias apenas!” Insistiu Zanichiro, encarando Luigi.
As últimas palavras de Hèléne, antes de deixar o escritório, saíram da boca como se tivessem
sido expelidas por força de algum ato falho:
“Sempre que um homem morre, em algum lugar, outro fica agradecido.”
“É uma proposição aceitável para a nossa situação!” Rebateu Zanichiro.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Parte Três

O mal de Caravaggio

XII

Porto Ercole é dessas pequenas cidades fortificadas, entre tantas na Europa, não longe da foz do
Tibre, governada no passado pela Espanha. Antigo posto fronteiriço onde a anarquia e os
bandoleiros eram uma constante ameaça quando não eram dizimados pela malária. Apesar da
história movimentada, nos dias de hoje é apenas uma língua de terra, que mais se assemelha a
uma ilha, divertida para turistas abonados e que serve de tumba para os ossos de Caravaggio.
Amanhecia quando o barco chegou a Laguna di Orbetello. Aproximando do porto, Luigi
desligou o motor e deixou a embarcação flutuar até alcançar o píer. Hèléne despertou Janus. De
pé, na porta da cabine, enrolados no cobertor, assistiam, em silêncio, as luzes, da cidade,
apagarem-se lentamente. As mãos de Janus envolviam a cintura de Hèléne. Pelo mar, foi assim
que chegaram ao destino final desta história. Como fizera Caravaggio, perseguindo seus
pertences, após uma breve estadia na prisão em Palo, séculos atrás. Desesperado como eles,
Caravaggio tentava reaver as pinturas que havia feito para o Cardeal Borghese e que haviam
ficado na embarcação que partiu sem ele.
É bem provável que, neste momento, estivessem sob a inspiração da mesma esperança, ao
avistar, da amurada da pequena embarcação, o elegante palácio renascentista aberto ao mar,

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avistar, da amurada da pequena embarcação, o elegante palácio renascentista aberto ao mar,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

banhado pelos raios de sol do amanhecer.

Havia meia hora que Gino e Rocco aguardavam por Zanichiro. Quando o viram chegar, assim
que Nicolas apontou para a figura alta, do outro lado da calçada, Rocco pegou a seringa, deixou
o carro e caminhou ao encontro do despachante. Ignorando as crianças que brincavam na
calçada e um furgão que realizava entregas a poucos metros dali.
No banco de trás do sedan, Nicolas sentiu-se tomado pela náusea. Rapidamente, abaixou a
cabeça, por entre as pernas, e deixou fluir o liquido viscoso, de aspecto esverdeado, que brotava
das suas entranhas e respingava no terno de Gino. O brutamontes explodiu de raiva e por pouco
não matou o apavorado porteiro ali mesmo.
Gino ainda estava bastante ferido. Apesar das suturas no rosto e do curativo bem feito, sentia o
corte na nuca toda vez que movimentava o chapéu. E, novamente, sentindo uma pontada,
praguejou contra Nicolas. Quanto mais gritava, mais Gino ficava exaltado e com as veias do
pescoço saltadas. Só parou de praguejar quando Rocco abriu a porta e empurrou Zanichiro,
desacordado, para dentro do carro.
“Este aqui já era” Rocco ironizou, dirigindo o olhar para Nicolas. Despreocupado, Gino
consultou o relógio. A porta do sedan fechou, numa batida seca, e o carro arrancou cantando
pneu.

XII

Foi enquanto pesquisava sobre o pintor, ainda na cidade de Roma, que Janus, ouviu falar sobre o
“mal de Caravaggio”. Deve ter sido em um daqueles seminários chatos ou da boca daquele

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“mal de Caravaggio”. Deve ter sido em um daqueles seminários chatos ou da boca daquele
Caravaggio - Marcelo Nogueira

especialista em Caravaggio que havia terminado de publicar mais um livro sobre a vida do
pintor. Janus havia me explicado que de acordo com a lenda, que alimenta a fama de
Caravaggio, este mal acomete os que perseguem sua Obra. Geralmente, infecta de forma
violenta, os que tocam uma pintura “atribuída” ou em vias de atribuição. A contaminação é
rápida. O infectado usa todo tipo de estratagema, para obter a pintura.
Entretanto, sem perceber, a febre conduz o infectado à ruína. Como naquele caso, de um
importante estudioso italiano, que no final da velhice, lançou-se numa campanha, quixotesca,
atrás de uma pintura atribuída a Caravaggio e que no final se revelou falsa. Este estudioso,
acometido pela febre quando ainda era muito jovem, perseguiu o pintor, durante toda sua vida.
Morreu sem nunca ter conseguido uma pintura de Caravaggio.
Felizmente, para o grande público, a pintura deste rebelde só reapareceu, ou foi devidamente
reabilitada, na história da arte, três séculos depois de sua morte. Mais precisamente em 1951,
depois da exposição organizada por Roberto Longhi. Foi nesta época que Caravaggio deixou a
obscuridade. Fascinando a todos pela agilidade, elegância e clareza de suas composições. Isto é
o que tem dificultado as falsificações e o trabalho dos copistas, em diferentes épocas.

Janus, assim como tantos outros, acreditou, até colocar os pés na areia, abrir uma garrafa de
vinho, e relembrar passagens da vida do pintor, estar imune ao “mal de Caravaggio”. Enquanto
bebia vinho e contemplava as luzes bruxuleantes no fim da praia, lembrou do relato da chegada
de Caravaggio à Porto Ercole. Quase todos os relatos eram unanimes em dizer que o pintor
havia feito uma viagem recheada de incidentes violentos.
Não muito longe dali a pintura balançava ao sabor das ondas, segura, no barco que os trouxera
de Nápoles. Ancorado na enseada, o barco de Luigi servia de esconderijo. Ao contrário da falua
que havia partido de Porto Ércole, séculos atrás, levando os quadros que Caravaggio havia
pintado para o Cardeal; deixando-o desesperado e enfermo.
“Naqueles tempos, da boca ou da palavra escrita se conheciam as fofocas.” Janus provocou
Hèléne, enchendo os copos com o resto da garrafa.
“Mais ou menos como se faz agora, mas sem ajuda da imprensa!”
“Em Roma, publicaram na Piazza Veneza o avvisi. Nele escreveram que de Nápoles chegara
uma notícia sobre a morte de Caravaggio. Isto foi em 24 de outubro de 1609. Segundo relatos,

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uma notícia sobre a morte de Caravaggio. Isto foi em 24 de outubro de 1609. Segundo relatos,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

ele havia sido desfigurado por quatro homens. Para encurtar a história, ele continuava vivo.
Apesar da violência do ataque, sobrevivera. Pouco tempo depois, ele aportou como nós, no pico
do verão, nesta ilhota, em 1610.” Ele disse, abraçando Hèléne.
Janus sorriu e atiçou os gravetos na fogueira. Abraçados, permaneceram olhando fixamente para
as chamas.


Sob o sol inclemente sol, Janus se arrastava na areia. Mesmo ferido, teve forças para gritar e
assistir a lancha se afastar; até tornar-se um ponto escuro no mar. Dentro da embarcação o
Caravaggio que ele havia recriado e a mulher que amava. Só, vagava sem direção. A faixa de
areia vermelho sangue parecia não ter fim. Quando o turbilhão de imagens cessou e ele abriu os
olhos, no quarto, não se sentia nada bem. O vinho em excesso e os pesadelos, que lhe acometiam
ao longo dos últimos dias, costumavam deixar uma marca indelével e um gosto amargo na boca.
Ele ouviu a água quente cair do chuveiro com força. Hèléne assobiava uma melodia triste. Desta
vez não acordara suado. Nem tentando agarrar o vazio, como das outras vezes, quando uma
espada lhe atravessava o coração. O pesadelo costumava deixar cenas borradas e um sentimento
de tristeza. Amassado na cama, em forma de concha, ele procurou se esconder do mundo sob o
lençol. Oito e meia da manhã. Logo, sairiam para resolver todo este imbróglio. Assim ela
prometera na noite anterior, logo depois de desligar o telefone.

“Não esqueça! Também sou colecionador!” Repetiu Savério ao baixinho, a sua frente.
Enquanto os dois observavam o enorme conjunto de rochedos suspenso no mar e conversavam
sobre pintura, Zanichiro agonizava nos fundos da propriedade. A conversa entre os dois, em
alguns momentos, só era interrompida pelos gritos do despachante.

“Comecei colecionando gravuras, espadas, depois pinturas”, emendou Savério.


“ O verdadeiro colecionador não se torna presa do que coleciona, mas do ato de colecionar”,

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“ O verdadeiro colecionador não se torna presa do que coleciona, mas do ato de colecionar”,
Caravaggio - Marcelo Nogueira

retrucou o baixinho de maneira irônica.


Verdade seja dita, Savério havia se tornado refém do próprio desejo. Mas por medo ou
precaução, preferiu não confessar esta fraqueza diante do baixinho. Seu desejo era apenas um:
“Hèléne.” Não a desejava como um colecionador normal deseja uma estátua que se encontra
num brique a braque entre trastes e móveis usados. Colecionar, para ele significava caça. Mas ao
contrário do baixinho com quem conversava, e cuja vaidade transformara num esnobe, ele não
costumava exibir publicamente suas paixões.
Diferente do que se pode imaginar, Nicolas, o porteiro, teve melhor sorte. Torturado por Gino e
Rocco, não demorou a declinar o que sabia. Na noite anterior ao aparecimento de Gino, no
Lobby do hotel, conversara com Hèléne. Sem perceber, ao longo da conversa, Hèléne deixara
escapar o nome “Zanichiro”. Mencionar este nome foi o suficiente para que Savério ordenasse a
morte do despachante. O baixinho olhou o relógio. Ansioso, fez um sinal para sua assistente e
pediu, num tom de voz autoritário, que removessem o corpo de Zanichiro para a lancha. Antes
de embarcar se despediu de Savério.
Em silêncio, Savério adentrou o galpão. Um capanga havia retirado e preparado a pele. A pele
estirada sobre a madeira exibia as tatuagens do despachante. O florentino sentiu um misto de
euforia e prazer. Contemplou, demoradamente, a pele estendida sobre a bancada. Como se
estivesse diante de algo sagrado, fez uma reverência.

As cores eram os tons de preto e vermelho. Grandes espaços de pele estavam cobertos pelo
método Tebori, gravado a mão. Esta técnica exige força e continuidade para uma aplicação
uniforme da tinta. Tudo é feito por agulhas amarradas e fixadas num suporte de madeira. Um
processo de tatuagem bastante doloroso. Valioso e reconhecido entre os samurais do Japão. A
figura da carpa vermelha, desenhada em direção ascendente, significa força para alcançar os
objetivos; a carpa em direção descendente indica objetivos alcançados. As flores de cerejeira que
aparecem ao redor das carpas vermelhas indicam o caminho do paraíso. Foi para este lugar que
Zanichiro desejou ir, antes que acabassem de remover sua pele, tudo virasse escuridão, e o
depusessem morto, no fundo do mar Tirreno.
Savério anotava poucas coisas. Para sua sorte ou azar, as informações que necessitava estavam
arquivadas na memória. Sabia de cor nomes e números que poderiam comprometer muita gente.

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arquivadas na memória. Sabia de cor nomes e números que poderiam comprometer muita gente.
Caravaggio - Marcelo Nogueira

Desde criança, reconhecia um rosto mesmo que o tivesse visto uma única vez. Entretanto,
nenhum outro rosto assombrou-o tanto quanto o rosto do anjo. Naquela noite, após analisar a
foto, exibida por Rubini, procurou fixar na memória, mais do que qualquer outro detalhe, aquela
expressão. Seu cérebro, no momento em que observava a foto, criava associações complexas.
Estas conexões foram suficientes para que o sorriso do anjo lhe parecesse tão familiar quanto o
sorriso de Hèléne. Mesmo para um observador, afeito ao estudo das pinturas antigas, como
Savério, o aspecto desconcertante da figura desafiava o conceito de santidade que os antigos
mestres representavam em suas composições. Estes detalhes, que lhe roubavam a atenção e
dividiam sua consciência, iam e vinham à medida que o jatinho ganhava os céus da Campânia.

Israel, Jerusalém.
Apesar do tumulto nas ruas, o motorista conseguiu avançar. Notícias, dando conta da morte de
um jovem palestino na prisão de Hasharon, incitara os ânimos de árabes e judeus ortodoxos
naquela manhã. Especialmente naquela região da cidade antiga onde os árabes lideravam o
comércio. Estava impossível estacionar até mesmo nas redondezas. Para azar do motorista, o
pequeno escritório dos irmãos Yariv está localizado nesta área, a poucos metros do Portão de
Damasco e ao lado de uma movimentada cafeteria.
Quase em cima da hora, sob o sol forte, Elias apareceu diante do segurança e apresentou-se de
forma discreta. Só então, a pesada porta de metal se abriu num longo rangido. Calmamente, ele
subiu os estreitos degraus da escadaria. Antes que terminasse de examinar o imenso mapa da
cidade, viu-se diante dos irmãos.
Pontual, como convém aos suíços, soube por dever de ofício, aguardar o melhor momento para
agir. Para Elias, matar os envolvidos era uma questão de honra e dever para com o amigo morto.
Obviamente, tudo deveria transcorrer dentro da mais absoluta discrição, como ele mesmo frisou
nas conversas anteriores. Durante a reunião, os irmãos Yariv revelaram a exata localização dos
assassinos de Brodski. Quando terminaram a conversa, o banqueiro pediu licença, se retirou da
sala e telefonou para a sede do banco. Enquanto aguardava a secretária atender, recordou o
almoço no restaurante do Savoy.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Depois de despedir-se de Brodski na entrada, deitado na confortável cama do hotel, ele


compreendeu que aquela carta escondia um pedido de ajuda. Aquelas palavras escritas por
Brodski foram o suficiente para que ele acionasse os irmãos Yariv. Assim que desligou o
telefone, o banqueiro se despediu dos irmãos. Quanto às informações, contidas no envelope,
sobre a localização de Hèléne e as atividades de Savério nos últimos dias, motivo da viagem
feita às pressas, ele as leria depois. Nos registros havia, inclusive, fotos da embarcação em Porto
Ercole. Ficou claro para o banqueiro que os negócios do amigo morto envolviam mais do que
pinturas. Todos, e incluiu a si próprio na reflexão, esvoaçavam ao redor do Caravaggio. Feito
insetos enfeitiçados pelo brilho da luz.
Para êxito total da missão, os irmãos precisariam chegar a Porto Ercole, nos próximos dias, sem
despertar suspeitas, pensou. Quando Elias atravessou a rua, sentiu alívio por não estar vestindo o
sobretudo de lã. Ansioso, ele desceu a escadaria, que conduz ao Portão de Damasco.
Misturando-se aos locais, ajeitou o solidéu na cabeça e caminhou em direção ao bairro judeu.

A certeza de que Savério não chegaria em Porto Ercole, nos próximos dias, durou pouco. Janus
e Hèléne ouviram de Luigi, estirados sobre a areia, que Zanichiro desaparecera sem deixar
rastros. Depois do almoço, resolveram voltar para a pensão. Na tentativa de evitar o sol
escaldante, decidiram cortar caminho por entre as ruínas do Forte Stella.

Não demorou muito, Janus reconheceu misturado entre os turistas que desciam do ônibus, o
homem de braços curtos, barriga proeminente e curativo no alto da cabeça: Gino. Logo atrás
dele, outro homem, mais alto e encorpado, abriu um guarda-chuva para se proteger do sol.
Como se estivessem procurando alguém, os dois homens observavam com atenção o movimento
ao redor da praia. Gino olhou impaciente para o relógio. Assim que Janus apontou para os dois,
Hèléne pegou o binóculo na mochila e aproximou-se com cautela da mureta. Logo, os dois

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Hèléne pegou o binóculo na mochila e aproximou-se com cautela da mureta. Logo, os dois
Caravaggio - Marcelo Nogueira

capangas seguiram o grupo de turistas em direção à fortaleza de Santa Carolina, do outro lado da
ilha.
No retorno, enquanto desciam os degraus carcomidos do forte, Janus e Hèléne discutiram uma
maneira de chegar até o barco, sem despertar atenção. Estava claro, para ambos, que os
capangas de Savério não vieram somente trazer o dinheiro e levar a pintura como combinado.
Ao cair da noite, pagaram a conta e deixaram a pensão. Sem perder tempo, caminharam em
direção ao centro antigo. Antes de deixarem a praça em direção à praia, Hèléne reconheceu Gino
passando apressado do outro lado da rua. Surpresa, ela avisou Janus e apontou para a figura que
dobrava a esquina. Instintivamente, os dois resolveram segui-lo antes de procurar Luigi na praia.
Gino estava a uma boa distância na frente quando diminuiu o passo. Desconfiado, Janus
imaginou que ele voltaria para atacá-los. Mas antes que isto se confirmasse, uma visão chamou-
lhes a atenção.

Escondidos, atrás de uma caçamba de lixo, observavam Gino e um outro homem conversarem
na porta de um restaurante. Gino estava atrasado para encontrar Rocco no cassino, mas resolveu
aceitar o convite do homem e entrou. Janus teve uma percepção corajosa. Imaginou que Gino
encontraria Savério dentro do restaurante. O que seria uma ótima oportunidade para acertarem
as contas. Antes de entrar no restaurante, ele beijou Hèléne e pediu, apesar da relutância dela,
que procurasse Luigi o mais depressa possível.
O salão estava lotado. Vozes se misturavam aos odores de comida. Os garçons que estavam em
pé, apoiados em um balcão escuro, assistiam a tudo, despreocupados. Assim que Janus se
aproximou da mesa, o homem que conversava com Gino na porta, levantou-se e sacou uma
arma. No momento em que efetuou o primeiro disparo, um golpe forte desviou-lhe o braço. Era
um garçom tentando desarmá-lo. Um segundo estampido e o garçom tombou morto no chão. No
terceiro disparo, em meio à tentativa de se levantar, o capanga de Savério gritou. Não pela dor
que sentiu ao ter o olho perfurado, mas por reconhecer Janus. O cheiro de sangue, quente e
inebriante, inundou o ar. Em meio à confusão, Janus tentou se esconder e o atirador só parou

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inebriante, inundou o ar. Em meio à confusão, Janus tentou se esconder e o atirador só parou
Caravaggio - Marcelo Nogueira

quando as balas pararam de sair do cano esfumaçado e o corpo de Gino ficou estirado sobre a
mesa. Surdo, devido aos estampidos, Janus abriu caminho e fugiu.
Em outro ponto da ilha, acontecia um espetáculo inusitado. O fogo engolia as embarcações
atracadas no píer. Uma enorme explosão lançou pelos ares o que restou do barco de Luigi.
Assustada, Hèléne procurou se misturar aos curiosos. Desesperada, assistia ao espetáculo das
chamas. Subitamente, em meio as divagações, ela sentiu uma mão forte lhe puxar o braço.

Antes que conseguisse gritar, Luigi tapou-lhe a boca. Vagarosamente, no ritmo do grupo que se
afastava do incêndio, atravessaram a faixa de areia em direção ao outro lado. Assustada, Hèléne
imaginou que a pintura estivesse destruída. Enxugando as lágrimas ela contemplava o cenário a
sua frente. As duas grandes pupilas verdes refletiam as chamas queimando o que restou das
embarcações atracadas.
“Não se preocupe moça! A pintura não estava no barco.” Luigi a confortou.
O esconderijo de Luigi não ficava muito longe da praia. Em segurança, do alto do morro os dois
podiam observar o movimento na praia. Era deste alto, cuja visão privilegiada alcançava até a
linha do horizonte, que Luigi vigiava, nos últimos dias, enquanto aguardava instruções, o barco
ancorado. Suas únicas companhias, nestas observações, eram o tabaco e a luneta de metal que
ele usava para localizar as banhistas e as embarcações. Assim que Luigi retirou a pintura,
escondida sob um monte de pedras, Hèléne soltou um grito e apontou em direção à praia. Do
alto, os dois reconheceram Janus.
Durante algum tempo, Janus ficou observando a luta dos pescadores para debandar as chamas.
Sem sucesso, ele tentava visualizar Hèléne entre os que circulavam pela areia. Sem saber o que
fazer, Janus resolveu seguir em direção ao Resort. Quando chegou em frente ao imponente
portão, reconheceu o capanga que estava com Gino na praia. Arriscando, colocou a mão no
bolso e se aproximou com cautela do brutamontes distraído.
“Parado! Coloque as mãos na cabeça! Se virar estouro teus miolos!” disse pressionando o corpo
do homem.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

“Que conversa é essa?” Rocco perguntou surpreso.


“Seja bonzinho e vamos entrar!” irritado, Janus golpeou a cabeça de Rocco, tão forte, que por
alguns segundos, o homem enxergou apenas um poço negro sem fundo e pontinhos dourados.
Dizem que os resorts, ao cair da noite, conservam uma atmosfera de indolência e conforto.
Durante o dia, para alguns frequentadores, a única tarefa permitida é estender o corpo sobre uma
espreguiçadeira na beira da piscina e acompanhar, com os olhos, ligeiramente ocultos pelas
lentes escuras, o desfile de corpos bronzeados.
Entretanto, quando o sol desaparece dando lugar a escuridão, frequentadores, mais afeitos a
riscos e fortes emoções, invadem as salas iluminadas artificialmente pelo brilho dos slots e das
roletas. Para estes caçadores não há piscinas, salas de musculação ou classes de dança. Apenas
fumaça, risos e apostas. Savério odeia estes antros frequentados por oportunistas da pior espécie.
Mas o que realmente o irritava, além da demora de Rocco e Gino, era o fato de não ter apostado
no vermelho mais uma vez. Pacientemente, apesar da raiva e da companhia barulhenta, na
cadeira ao lado, ele esperava o garçom trazer-lhe uma bebida. Sentia-se confortado por estar
prestes a resolver tudo. Definitivamente, ele não pretendia voltar para casa sem a pintura. Assim
que o crupiê anunciou o intervalo, Savério abandonou a mesa.
Na varanda, sob o imenso toldo, Savério acendeu um cigarro e consultou o relógio. Os dois
capangas estavam atrasados para o encontro, pensou. No fundo ele sabia que os idiotas serviriam
apenas para atrair Janus e Hèléne até ele.

Quando Savério percebeu a confusão dentro do salão, Janus estava lutando com Rocco. Rocco
havia conseguido segurar a arma. Antes de ser atingido, Janus desviou o cano da arma e acertou
o brutamontes no pescoço.
Para surpresa de todos, rajadas ecoaram no salão. Houve correria e uma intensa gritaria.
Lâmpadas e máquinas de caça níqueis estouraram. Savério disparou do lado de fora do salão. O
impacto da bala fez um dos seguranças atravessar a porta de vidro. Não demorou muito a
penumbra engoliu o cassino. Apesar de atingido de raspão na cabeça e nos braços, Janus
conseguiu procurar um lugar seguro. Hèléne, atingida nas costas, se arrastava no corredor por
entre máquinas de caça níqueis. Sem a mesma sorte, Luigi agonizava no chão; um buraco
fumegante na altura da testa, denunciava o motivo.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Houve uma pausa nos tiros. A fumaça tornou a atmosfera pesada. Savério e Rocco correram em
direção ao balcão do bar, na tentativa de se protegerem atrás dele. Janus se escondeu perto da
enorme mesa da roleta. Quando os disparos recomeçaram, antes de ficar desacordado, Janus
reconheceu o som abafado. Apesar da visão turva, ele conseguiu enxergar os dois atiradores. A
metralhadora que eles portavam era produzida apenas para unidades especiais. Leves, eram
mortais em espaços bastante restritos. Os irmãos Yariv disparavam, sem dar tréguas, contra
Rocco e Savério. Rocco, apesar de baleado, ignorou a dor e revidava os disparos. Assim que um
dos Yariv gritou algo em hebraico, o outro se afastou. Um filete de fumaça azulada começou a
sair da mão do israelense. Terminada a contagem, ele lançou o pequeno artefato redondo, por
sobre a cabeça e, em seguida, se atirou no chão. Assim que o objeto concluiu a trajetória e
desabou do outro lado do balcão, mergulhando o local em uma fumaça azulada.

A forte explosão que se seguiu iniciou um incêndio. Não houve reação, apenas uma segunda
explosão, tão forte quanto à primeira. No instante em que levantou a cabeça, Savério visualizou,
através de uma fenda no balcão, a figura vestida de preto, recarregando a arma. Ele não teve
dúvidas. Apoiou a arma sobre o corpo de Rocco e mirou. O impacto da bala, sobre a cabeça do
israelense, jogou-o longe. Os tiros recomeçaram. E desta vez, Savério não tinha mais balas na
escopeta. Soltando a arma, ele pegou a pistola que Rocco trazia no coldre. Ainda desorientado,
pelo impacto da explosão, Savério pôde ver quando Hèléne correu até o corpo de Luigi. Na
tentativa de salvar a pintura, imaginando que Janus estivesse morto, Hèléne avançou em direção
as chamas. Com uma expressão insana nos olhos, assistia o fogo queimar o corpo de Luigi e
avançar sobre a pintura.
Savério tentava arrancar-lhe das mãos a pintura. Ela o atacou com uma faca. O golpe na barriga,
desequilibrou Savério, mas não impediu que ele descarregasse a pistola contra ela. No instante
em que Hèléne desabou sem vida, Savério recebeu uma rajada e depois outra mais longa. Em
pouco tempo, o fogo se espalhou pelo salão.
Momentos antes das labaredas consumirem o lugar, Janus conseguiu levantar-se e ver o
mercenário recolher a pintura; desaparecendo em meio à escuridão. Arrastando-se até a varanda,
Janus rolou morro abaixo. Foi por muito pouco que ele não queimou junto com a estrutura que
cedeu em seguida. Na manhã seguinte, Janus acordou num leito de hospital cheio de fios e

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cedeu em seguida. Na manhã seguinte, Janus acordou num leito de hospital cheio de fios e
Caravaggio - Marcelo Nogueira

ataduras pelo corpo. Enquanto esteve hospitalizado, assistiu, através da minúscula janela na
enfermaria, o vai e vem dos carros de polícia e da imprensa. Nos dias que se passaram, enquanto
se recuperava dos ferimentos, rumores dentro e fora do hospital, especulavam sobre um ataque
de contrabandistas.

Outras versões, entre elas a da enfermeira que lhe auferia a pressão todas as manhãs,
comentavam sobre um acerto de contas entre a máfia. Em nenhum momento, ele ouviu algo
sobre um excêntrico colecionador ou uma Marchand chamada Hèléne; cujos corpos, estavam
reduzidos a cinzas entre os escombros do cassino.

De uma hora para outra, Porto Ercole se transformara num caos. Cadáveres ou
desaparecimentos eram raros. O incêndio deixou um ar de intranquilidade na região. Na noite do
acerto de contas, somente horas após o fim do tiroteio, policiais e bombeiros conseguiram
chegar ao que sobrara do cassino. Pego de surpresa com as mortes no restaurante, a explosão das
embarcações e o incêndio no cassino, o comissário de polícia, não conseguia estabelecer
conexões entre os acontecimentos. Suas justificativas, perante a opinião pública, atribuíam tudo
a uma suposta vendeta entre mafiosos.
Surpreendentemente, os turistas que conseguiram fugir do cassino não souberam descrever os
atiradores e nem o porquê da confusão. Os mais abonados, em seus iates e helicópteros,
abandonaram a região sem acrescentar nada; corroborando ainda mais para a versão oficial.
Oficialmente, respondendo aos questionamentos da imprensa, a administração do resort lançou
uma nota esclarecendo que só se pronunciaria após a conclusão das investigações. Os corpos
carbonizados não puderam ser identificados.
Para todos os efeitos, Janus estivera por lá apenas para apostar. Era a versão que ele repetia aos
policiais que o interrogaram no dia da sua alta. Já fora do hospital, caminhou pelo centro antigo
e comprou uma passagem de volta para Roma. Minutos antes de embarcar, procurou um banco
vazio e ficou contemplando o cenário.

Reparou na luz bruxuleante do píer e a bruma que, insistentemente, encobria Porto Ercole
àquela hora da manhã. Fechando os olhos, sentiu as lagrimas descerem e a brisa do mar.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

A lua cheia estava alta quando Yasser Yariv deixou o hotel em Bahnhofstrasse. Fiel aos
ensinamentos, aprendidos nas forças especiais, procurava movimentar-se sempre à noite durante
uma missão. Quando parou diante da fachada moderna, num dos bairros mais nobres de Zurique,
estava prestes a concluir uma dura tarefa. Desta vez o dinheiro não seria suficiente. Nada
poderia compensar a morte do irmão. Incomodado, tocou o interfone.
Em seguida, a porta se abriu e Yariv se encontrou numa ampla área envidraçada. Não demorou
muito, ouviu uma voz:
“Por favor, entre.”
“Caramba rapaz! Vocês danificaram a pintura quando decidiram encarar aqueles malditos.” Elias
ironizou.
“Acho que cumprimos nossa parte. Não se esqueça que esta porcaria custou à vida do meu
irmão!” Yasser respondeu seco, encarando o banqueiro.
Assim que chegaram ao terraço, Elias, num gesto displicente, colocou uma sacola ao lado da
espreguiçadeira. Sem perder tempo, Yasser abriu e esticou a pintura sobre a mesa de vidro.

“Esta é a minha aposentadoria?” Yasser apontou para a sacola. Na sequência, abriu a sacola e
começou a contar as libras. Havia o suficiente para garantir uma vida, legal e ordeira, em
qualquer País da América do Sul.
Enquanto Yasser conferia o dinheiro, Elias não tirava os olhos da pintura. Talvez estivesse sob
efeito da febre que atinge os que se aventuram a buscar um Caravaggio perdido. Tal o fascínio
que despertava a pintura, mesmo tendo sido danificada pelo fogo. Passando o dedo por entre o
buraco, logo acima da cabeça do apóstolo, imaginou que um bom restaurador poderia devolver a
beleza que a pintura possuía. Após o acerto, Yasser guardou o dinheiro e partiu. Na rua, sem
perder tempo, fez sinal para um táxi. Estava cansado para caminhar até o hotel e prometera a si
mesmo evitar problemas. Sentindo-se confortável abraçou a sacola contra o peito e afundou no
banco macio. Apesar de triste, sem a presença do irmão, imaginou, esboçando um discreto
sorriso, a nova vida que teria pela frente.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Foi somente horas após se despedir de Yasser, que Elias compreendeu que havia sido
direcionado, desde o início, para executar uma vingança. No quarto, deitado em sua cama,
apesar da sensação do dever cumprido, o sono não chegou. Ficou consultando demoradamente
um velho álbum de fotografias. Na manhã seguinte, releu mais uma vez a carta que recebera de
Brodski em frente ao Hotel Savoy.
Depois da leitura da carta e das informações que os Yariv levantaram, Elias compreendeu que o
último favor prestado ao amigo, estava sendo pago com aquela pintura. Brodski, por diversas
razões, temia que Savério pudesse matar Hèléne. Desde o princípio o lituano sabia com quem
estava lidando.

Por precaução, naqueles dias que antecederam sua ida à Suíça, depois de ler sobre a morte de
Camilo, iniciou um plano caso algo desse errado. Mas ainda assim, preferiu apostar que
terminariam bem e seguiu com o plano de Hèléne.
Para isso, deixou que o expert chantageasse Savério. Esquecendo, propositadamente, os diários
no bolso do casaco. Tranquilo, como agem os caçadores mais experientes, armou a armadilha e
esperou a fera. Ao contrário do que imaginara, não conseguiu proteger a própria filha e a si
mesmo da fúria de Savério. Não imaginou que naquela noite, logo após se despedir do expert,
no aeroporto de Zurique, seria fuzilado, a mando do próprio Helmuth. Seu maior erro foi ter
acreditado na lealdade de um bêbado. Mas o pior de tudo, com a morte de Brodski, Hèléne ficou
sem saber da participação de Elias no golpe e que o lituano, na realidade, era seu pai biológico.
Mas o que importava para Elias era o fato de que a tela, estendida sobre o chão, era tão
verdadeira quanto sua lealdade ao amigo morto. Recuperando a pintura, Elias provou não ter
esquecido os primeiros anos em Montevidéu; quando era apenas um refugiado e fora acolhido
por Brodski.
Tempos depois, dentro de um importante centro de pesquisas, Elias pôde admirar os detalhes
recuperados pela restauração. No lugar dos buracos de bala e das marcas do fogo, as cores e o
frescor da composição original. Era impossível para ele, e para os que observavam a pintura, não
se sentirem atraídos. Durante um bom tempo, Elias guardou a pintura, no banco, com o mesmo
zelo dispensado aos clientes mais importantes.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Foi somente no dia em que retirou a pintura do cofre, que Elias acreditou estar pronto para
reencontrar Janus. Por mais que evocasse a imagem do falsário, cada vez mais aquele rosto
apresentava contornos esmaecidos em sua memória. Com a localização de Janus e depois de
receber o aval de um importante museu, ele autorizou uma famosa casa de leilões a leiloar a
pintura.
É neste ponto, caro leitor, quando as coisas assumem contornos de despedida, que as luzes do
helicóptero se acendem e as pás começam a girar. Minutos após a entrega da pintura, a
barulhenta aeronave se ergue no ar. Do outro lado da pequena janela oval, a jovem representante
da casa de leilões acena para Elias. Timidamente, o banqueiro ergue a mão e retribui o aceno. O
helicóptero sobe, levando o Caravaggio para o outro lado do Atlântico. Neste momento, Elias
compreende que as obras de arte, sejam elas verdadeiras ou falsas, tais como as pessoas, também
possuem suas vicissitudes.

Epílogo

Há cidades que parecem submersas numa atmosfera de melancolia. É assim com Istambul,
Montevidéu e a mais cosmopolita das capitais latinas, Buenos Aires. Pelo menos era assim como
os visitantes a conheciam no início do século XX. Naquela época, Buenos Aires era uma das
cidades mais ricas do mundo. A Berlim dos trópicos. Cheia de prédios Art Deco e avenidas, cujo

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cidades mais ricas do mundo. A Berlim dos trópicos. Cheia de prédios Art Deco e avenidas, cujo
Caravaggio - Marcelo Nogueira

traçado, recordam a Paris de Haussmann e a Madri dos Bourbons.


Talvez por este fato, devido ao excesso de peso que este passado impõe, os portenhos tenham
aprendido a chorar suas tristezas através do tango. Esta é uma cidade de fantasmas ilustres, dizia
Borges. Certamente, um paraíso para quem, como eu, havia optado por desaparecer e viver
anonimamente.
Atrasado para encontrar Mila no Clarín, caminhei apressado, pela Praça San Martín. A
arquitetura desta cidade me fazia esquecer que estava longe da Europa há anos.
Preguiçosamente, livrarias e galerias de arte abriam suas vitrines para mais um dia de trabalho.
Apesar do trânsito eu podia ouvir o burburinho dos passeadores de cachorro e dos trabalhadores
da região que aproveitavam a sombra das árvores para se proteger do sol. Se não fosse a
insistência do garoto em vender um exemplar do jornal, assim que desembarquei do metro, eu
teria permanecido afastado do meu passado por mais algum tempo.

Mas o que eu havia acabado de ler, não teria parecido um sinal de azar, se não tivesse soado
feito uma trombeta do apocalipse. Todo este barulho havia quebrado a tranquilidade que eu
experimentava desde que parti de Porto Ercole. Inicialmente, eu não acreditei na manchete.
Apesar do espanto, continuei a leitura e vendo a foto, logo abaixo da chamada sensacionalista,
não tive dúvidas; era o Caravaggio que eu havia pintado.
O texto informava que um importante leilão seria realizado na próxima semana. Alguns dos
maiores nomes da pintura estariam na cidade para desespero dos colecionadores. Desespero,
porque as cifras pretendidas nem sempre acompanham a paixão ou cabem no bolso de quem as
cobiça. A cereja do bolo, segundo a reportagem, seria uma pintura de Caravaggio. A foto
estampada, no meio da primeira página, não deixou dúvidas. Era a composição pintada por mim
em Milão. Confuso, fechei o jornal e senti as pernas amolecerem. Rapidamente, procurei um
banco sob a sombra e voltei à leitura; desta vez atento aos mínimos detalhes. Tentei encontrar
alguma informação que denunciasse ou levantasse suspeitas sobre a originalidade do quadro.
Também procurei algo que se relacionasse a Hèléne ou Savério.
O clima de festa e o glamour ficavam por conta das celebridades convidadas, por uma grande

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O clima de festa e o glamour ficavam por conta das celebridades convidadas, por uma grande
Caravaggio - Marcelo Nogueira

companhia de seguro, para abrilhantar o evento. Eu estava intrigado. Não havia qualquer
menção sobre a origem do Caravaggio. Somente uma pequena nota sobre o museu que avaliara a
descoberta. A coluna social, escrita por um corpulento senhor, de barba branca, vestindo um
espalhafatoso terno amarelo e segurando um grosso charuto na mão ao lado do quadro, enaltecia
a escolha de Buenos Aires.

Pomposo, o colunista ressaltava o fato da pintura ter sido descoberta, por um destes acasos que
só acontecem em Hollywood. “Pura lorota!” Eu pensei; atirando o jornal no lixo. Naquela
manhã, assustado pelo impacto da notícia, decidi não encontrar Mila na redação e fui procurar
Lorenzo.
Na data marcada, a escadaria, que conduz ao edifício da casa de leilões, em Buenos Aires,
estava cheio de gente. Atrás do cordão de isolamento, populares gritavam para os ricaços que
chegavam em carrões. A garoa que caía sobre a cidade, não atrapalhava o vai e vem dos
fotógrafos. Procurei manter distância do movimento. Assim que apresentei o convite, passei pelo
detector de metais e fui direto para o elevador.
Já dentro do salão, acomodado na última fila, abri o catálogo direto na página do Caravaggio.
Não demorou muito, um senhor com cara de furão e óculos com lentes pequenas sem aro,
sentou-se na cadeira ao lado. Calmamente, antes de iniciar o pregão, meu vizinho folheou o
catálogo e me encarou de maneira amistosa.
Foi logo na abertura, que uma marinha de Vernet, ultrapassou os duzentos mil dólares. À medida
que os lances subiam e os telefones tocavam, o leiloeiro gesticulava, andava de um lado para o
outro e apresentava os atrativos da próxima atração. Tenho seiscentos no telefone, dou-lhe
uma... repetia eufórico, pronto para bater o martelo em um quadro de Tiepolo. Voltando sua
atenção para o salão, apontou para a plaqueta de uma senhora de chapéu vermelho. Setecentos e
cinquenta... dou lhe duas... foi quando o homem de cabelos brancos, timidamente, ergueu a
plaqueta e aceitou o desafio do leiloeiro. Quando o leiloeiro gritou empolgado “dou-lhe três”,
olhares curiosos dirigiram-se ao meu vizinho na última fila.

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Caravaggio - Marcelo Nogueira

Discreto, o homem acenou para o leiloeiro e voltou os olhos miúdos para o catálogo. Minhas
mãos tremiam à medida que o leilão avançava. Eu ainda não havia visualizado o Caravaggio,
entre os quadros expostos no palco.
Ao longo da semana que antecederam o leilão, eu acreditei que o pessoal de Savério estivesse
tentando me atrair para um acerto de contas. Mas diante de toda aquela cena, não acreditei que
Savério estivesse nesta armação. Enquanto eu divagava sobre os prováveis envolvidos, os
quadros desfilavam. Plaquetas subiam e desciam num ritmo frenético. Tão espantado quanto o
leiloeiro, eu não acreditei que a bela composição impressionista anunciada, um dos poucos
“modernistas” exibidos no pregão, não tivesse recebido lances.
“Por favor, senhores!” Repetia o leiloeiro, pedindo atenção para o próximo lote.
Foi preciso três homens para carregar o quadro. Rebuscada, a moldura que contornava a imensa
crucificação do século XVII, pintada pelo espanhol Alonso Cano, impunha respeito. Um breve
silêncio pairou sobre a plateia, sendo quebrado em seguida pelo burburinho das vozes e o toque
dos telefones. Levantando a mão, enquanto rabiscava um “X” ao lado da foto, sem erguer a
cabeça, o meu vizinho iniciou o combate. A disputa foi acirrada e por muito pouco ele não
perdeu. Distraído conversando comigo, demorou a cobrir uma oferta anunciada do outro lado do
salão. Um gordo de rosto vermelho, conhecido pecuarista de Mendoza, desistiu da briga quando
ele ergueu a plaqueta sustentando um lance que deixou a plateia estupefata. A desistência do
pecuarista, abriu caminho para o cara de furão, arrematar a pintura.

“Devo concordar que a tela é enorme”, eu disse num tom irônico.


“Gosto deste pintor”, o cara de furão respondeu calmo. De cabeça baixa, continuou murmurando
algo e rabiscou. Assim que terminou de rabiscar algo, o meu vizinho, sorriu e mostrou o
catálogo. Para meu espanto, havia circulado o número do lote que eu aguardava. Mas quando o
leiloeiro anunciou que anteciparia o lote de nº 77, a pedidos, meu coração disparou.
Como se estivéssemos hipnotizados, nós dois assistimos, sem esboçar qualquer reação, a entrada
dos auxiliares carregando o quadro. Diante da assistência assombrada, colocaram o quadro sobre
o cavalete de metal dourado e se afastaram devagar. A microfonia que invadiu a sala, acabou me
despertando do transe. Eu não acreditava no que meus olhos enxergavam. A pintura estava

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despertando do transe. Eu não acreditava no que meus olhos enxergavam. A pintura estava
Caravaggio - Marcelo Nogueira

restaurada e o rosto do anjo resplandecia sob o facho de luz.


Incrédulo, acompanhei os gestos do leiloeiro apontando e descrevendo os pormenores da
composição. Eu ouvi atentamente as explicações sobre a origem do quadro. Quando o leiloeiro
exibiu o certificado, emitido por uma importante instituição, quase caí da cadeira. O leiloeiro
continuou o relato, que tomava aspectos épicos e crescia em exageros. Chegando ao ponto de
anunciar, gesticulando teatralmente, que o próprio Hitler havia arquitetado o plano para salvá-la
dos russos.
“Antevendo a invasão dos russos, o próprio Hitler determinou a retirada da pintura.
Substituindo-a por uma falsa e ordenando que escondessem a original no leste europeu, dias
antes da chegada dos exércitos de Konev em Berlim”. O leiloeiro disse empolgado.

Segundo relatos, a original, redescoberta quase por acaso em algum canto da Europa, ele exibia
com toda pompa e circunstância, sobre o cavalete. Seu dever? Encontrar um comprador
argentino.
O leiloeiro implorava aos colecionadores presentes, em sua maioria argentinos, que não
poupassem esforços. Afinal, ele dizia, foi na Argentina, por graça e obra dos céus, ou quem sabe
inspiração de Perón, que ela reapareceu.
Talvez ele ignorasse, por pura comodidade histórica, o fato de que durante anos, o País do tango
acolheu membros do partido nazista. Foi também nesta terra de contrastes, o lugar onde homens,
como os irmãos Yariv, fizeram justiça a milhares de vítimas do nazismo. Sequestrando Eichman
numa ação cinematográfica, na cidade de San Fernando, a trinta quilômetros de Buenos Aires.
Mas a verdade era que, por mais que os argentinos tentassem manter o quadro em seu País, o
anúncio da venda do quadro circulara mundo afora e os telefones, que tocavam sem cessar no
salão, naquele momento, disparavam lances desde os Emirados Árabes.
Sem demonstrar preocupação, meu vizinho cobria todas as ofertas. Não se abalava com a
entonação firme que o leiloeiro dava aos lances que surgiam do lado argentino. Exibindo uma
confiança digna dos endinheirados, ele levantou a plaqueta e aplicou o golpe de misericórdia.
Elevando o preço sugerido para alguns milhões. O que impediu os argentinos de mantê-la em
casa. Cobrindo, inclusive, o lance de um renomado museu italiano. Este último lance gerou

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casa. Cobrindo, inclusive, o lance de um renomado museu italiano. Este último lance gerou
Caravaggio - Marcelo Nogueira

expectativa e curiosidade, acima da média, para os invejosos concomitantes presentes no salão.


“Vou bater... vendido para o cavalheiro do fundo!” Visivelmente chateado, o leiloeiro encerrou o
pregão.

Assim que baixou a plaqueta, meu vizinho abriu um sorriso sardônico e se levantou. Antes de
sair, convidou-me para acompanhá-lo. Confuso, eu demorei a entender, o que aquele cara de
furão dizia.
“Venha rapaz, por favor, me acompanhe!” Quando ele terminou de repetir a frase, eu despertei
do torpor que me mantinha longe daquela sala. Confiante, ajudei-o a vestir o paletó e
acompanhei-o até uma saleta reservada.
“Mas não é possível! Garanti e apostei que não o veria esta noite!” Elias, disse, animado.
“Bom! Acabo de perder algumas libras!” Elias disse, piscando para o velho com cara de furão.
“Por favor, sente-se. Esta noite tenho de cumprir uma promessa antiga.” Antes de acender o
cigarro, o banqueiro entregou à Janus a carta escrita por Brodski.
“Acredite sr. Janus, Brodski me fez prometer que o encontraria.”
Meu coração estava disparado. Instantaneamente, revivi os dias em Zurique ao lado de Brodski
e Hèléne. Assim como o banqueiro, eu também havia me preparado, dias antes, para sair do
leilão, assim que acabasse, e desaparecer de Buenos Aires. Graças a Lorenzo, minha ida para a
Patagônia argentina estava garantida. Através da RN3 eu chegaria ao meu destino. E novamente,
muito em breve, teria uma nova identidade e profissão.
“Sabíamos que viria ao leilão! Não iria deixar de conferir, não é mesmo? Mas fique bem claro
que não estamos negociando! Estamos desfazendo enganos.” Disse o banqueiro.

“Senhor Janus, em troca da pintura que o cavalheiro acabou de arrematar, comprometo-me,


conforme escrito nesta carta, a pagar-lhe o que é devido.”
“Foi Brodski quem escreveu estas instruções. Ainda em Zurique, prometi que o encontraria caso
algo acontecesse!”
Eu não acreditava no que ele estava dizendo. Já haviam se passado anos. Não fazia sentido este
reencontro. Apesar das desconfianças, preferi o silêncio ao invés dos questionamentos. Somente
quando percebi, ao longo da conversa, que Elias acreditava, piamente, na originalidade da

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quando percebi, ao longo da conversa, que Elias acreditava, piamente, na originalidade da
Caravaggio - Marcelo Nogueira

pintura, que resolvi abrir o envelope que ele havia colocado em minhas mãos.
Nas fotos, estava bem nítida a figura do homem mostrando a tela avariada. As fotos mostravam
a pintura, exatamente, como eu havia visto, minutos antes do fogo consumir o cassino. A última
foto, com o rosto aproximado, bastou para que eu reconhecesse o atirador.
Em seguida, o banqueiro passou-lhe os laudos que comprovavam a autenticidade do Caravaggio.
Cuidadoso, analisei as informações e refleti sobre os acontecimentos que me trouxeram até este
encontro maluco. Diante de todas estas evidências, entendi a mensagem de Brodski. Havíamos
sido traídos! Alguns pela beleza, outros pela ganância. Sem dizer nada, devolvi as fotos. Eu
estava decidido a ir embora, quando Elias colocou a mão sobre o meu ombro.
“Você fica ou volta conosco para Zurique?” Elias franziu a testa e num gesto educado, abriu e
estendeu-me a maleta cheia de diamantes. Depois, pediu licença e se dirigiu, acompanhado pelo
cara de furão, até o escritório do leiloeiro.

Naquele momento, apesar da mistura de emoções que eu sentia, não seria louco de esquecer
aquela maleta sobre a poltrona. E antes que Elias ouvisse a minha resposta, desapareci do
prédio, sem deixar rastros. Afinal de contas, com todos aqueles diamantes, seria difícil alguma
preocupação me alcançar. Quanto a Mila, é claro que eu sentirei falta! Ela é destas mulheres que
fazem um homem balançar. Mas ela já tinha ganho sua história. E, certamente, merece coisa
melhor!
Desde então, apesar de ter abandonado os pincéis, acho que não deixei de sorrir toda vez que
visito algum lugar e encontro uma falsificação pendurada na parede. Afinal de contas, como eu
costumava dizer à Mila, rindo, ao final das nossas visitas aos museus e galerias, um profissional
é sempre um profissional!

Fim

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