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FICHA CATALOGRÁFICA

Dados para catalogação na fonte


Setor de Processamento Técnico
Biblioteca do IFPA - Campus Belém

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará. Núcleo de Estudos


Afrobrasileiros.
Visibilizando o invisível / Helena do Socorro Campos da Rocha (organizadora).
— Belém: IFPA, 2013.
250 p. : il ; 21 cm.

ISBN: 978-85-62855-27-6

1. Educação. 2. Estudos afrobrasileiros 3. Afroindígenas – tradições e


costumes. I. Rocha, Helena do Socorro Campos de. II. Título.

CDD: 301
FICHA TÉCNICA

INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO PARÁ - IFPA


Reitoria
Élio de Almeida Cordeiro

Pró-Reitoria de Extensão – PROEXT


José Alberto Alves de Souza

Direção Geral Campus Belém


Carmen Monteiro Fernandes

Diretoria de Extensão e Integração Instituto-Empresa– DIREI


Cláudia Regina Lançado Sgorlon Tininis

Coordenação do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros – NEAB – IFPA


Helena do S. C. da Rocha
EQUIPE DE ELABORAÇÃO

Organização
Helena do S. C. da Rocha
Autores

Agenor Sarraf Pacheco

Alik Nascimento de Araújo

Ana Paula Palheta Santana

Danna Caroline Monteiro Góes Leite

Diego Armando dos Santos Mota

Helena do S. C. da Rocha

Luiz Carlos Cruz Cunha

Sandy Bouth Sanches

Silas Neves de Sousa

Design Gráfico
Leandro de Lima Pinheiro

Arte da Capa
Rubens Pinheiro Técnico em Artes Gráficas lotado no NUPAED.
Os ninguéns

As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns


com deixar a pobreza, que em algum dia magico a sorte
chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas
a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanha,
nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte,
por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a
mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou
comecem o ano mudando de vassoura.
Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a
vida, fodidos e mal pagos:
Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, tem folclore.
Que não tem cara, tem braços.
Que não tem nome, tem número.
Que não aparecem na historia universal, aparecem nas
páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os
mata.
(Eduardo Galeano. O Livro dos Abraços, 2002)
“FACE A FACE”: CONTATOS AFROINDÍGENAS NA AMAZÔNIA: Cultura, Identidade e
Hibridismo na Etnia Tembé Tenetehara – Alto Rio Guamá - PA (1949- 2010)

Alik Nascimento de Araújo

Luiz Carlos Cruz Cunha

Agenor Sarraf Pacheco

Introdução

Pensar as questões de identidade e cultura dentro da realidade brasileira a partir da busca por
organizações populacionais “puras” e “primárias” significa omitir toda heterogeneidade típica,
resultante dos encontros entre povos e nações distintas. Os anseios em delimitar e caracterizar o
que seria o “Povo brasileiro” há séculos tem servido de objeto de estudo ao trabalho de inúmeros
antropólogos, sociólogos, geneticistas, historiadores, entre outros, os quais formularam as mais
diversas teorias que vão desde as conclusões biológicas de Nina Rodrigues (1896)1 até a ideia
de “Democracia Racial” defendida por Gilberto Freyre2. Trata-se de um processo que não tem
mostrado perspectiva de fim o que se percebe em trabalhos mais recentes como os de Da Mata3,
Guimarães4 e Cardoso de Oliveira5.

Dessa forma, a busca pelo “rosto” brasileiro teve forte contribuição à produção de valiosas
literaturas, que serviram de base para a elaboração desse artigo, organizado em eixos temáticos
necessários à compreensão da presença do negro dentro dos aspectos histórico, político, social
e cultural da etnia Tembé.

O lócus pesquisado foi a Terra Indígena Alto Rio Guamá que até a atualidade é conhecida
pela sigla RIARG, referente ao seu antigo título de Reserva indígena do Alto Rio Guamá, no
município de Santa Luzia do Pará, na porção nordeste do Estado.

As motivações que levaram a realização desta pesquisa guardam relação com a formação
profissional de ambos os autores que puderam compartilhar experiências no campo da docência
junto à etnia Tembé. Na qualidade de professor contratado pela SEDUC-PA (2008 até os dias
atuais), Luiz Carlos Cruz Cunha passou a ministrar aulas da disciplina Língua Portuguesa, junto
às comunidades indígenas Jacaré e Pirá, da etnia Tembé e Alik Araújo na categoria de instrutora
contratada pela SEDUC- PA entrou em contato com os Tembé e outras etnias paraenses a partir
do curso de formação de professores indígenas (2009).

Essa convivência permitiu que s autores fossem amadurecendo interesse de estudo


ao longo das disciplinas ministradas no curso de Especialização em Educação para Relações
1 Entre os escritos do autor, ver RODRIGUES, Raimundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade
penal no Brasil. Salvador: Livraria Progresso, 1957.
2 Entre as obras mais referendadas sobre a temática racial, temos: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senza-
la: formação da família brasileira sobre o regime da economia patriarcal. 47. ed. rev. São Paulo: Global, 2003.
3 DaMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
4 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, 1999
5 CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Os (des) caminhos da identidade. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo, v. 15, nº 42, fev. 2000, pp.7- 20.
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Etnicorraciais, oferecido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA.
As aprendizagens adquiridas possibilitaram um panorama maior de leituras e opiniões sobre a
temática cultura e identidade, suas diferenças e relações. Sobre essa questão Pacheco, citando
Denys Cuche, assinala que “a cultura depende em grande parte de processos inconscientes.
A identidade remete a uma norma de vinculação necessariamente consciente, baseada em
oposições simbólicas”6. Nossa opinião sobre o assunto.

Por observar uma forte presença negra naquela terra oficializada como indígena, a
investigação interessou-se por apreender os sentidos das experiências sociais compartilhadas
entre índios e negros. É preciso assinalar que a partir de 1949, inúmeras alterações são sentidas
no universo social da RIARG devido à presença e atuação de afrodescendentes advindos do
Estado do Maranhão. Assim, foi pensando na possibilidade de este trabalho vir a tornar-se útil
no sentido de provocar reflexões sobre a temática em tela, que se procurou captar, por meio das
narrativas orais, a importância da presença negra no fazer-se contemporâneo da etnia Tembé.
Isso não pressupõe defender ou julgar a compreensão étnica que os próprios agentes sociais
envolvidos nas tramas do cotidiano fazem de si. A investigação parte do respeito às matrizes
culturais que formaram as sociedades amazônicas e construíram o conjunto de identificações
com as quais diferentes grupos sociais vêm operando. Prima-se pelo debate cultura e identidade
que leva em consideração, sem deixar de problematizar as formas dominantes que criaram um
sistema de identificação muitas vezes excludente, o respeito à dignidade humana desses distintos
agentes históricos7.

A pesquisa procura compreender a dinâmica cultural e social da aldeia Jacaré utilizando


do trabalho de Pacheco que fundamentado nos Estudos Culturais8, especialmente em Mary
Louise Pratt, opera com o conceito de “zonas de contatos”, como

Constituídas por territorialidades que desvelam espaços de moradia, trabalho, cele-


brações religiosas e ambientes onde se reproduzem e se reafirmam cosmologias, ima-
ginários e crenças, permitiram a índios, negros e afroindígenas, desde o período colo-
nial, operar com astúcias de suas memórias9.

Tendo em vista a complexidade do problema apresentado percebeu-se a importância


de trabalhar as seguintes questões: como viviam os negros antes de se tornaram presentes na
RIARG no final da década de 40? Em que contexto histórico ocorreu o processo migratório
de negros para a Terra Indígena Tembé Tenetehara do Alto Rio Guamá? Quais as principais
consequências decorrentes da hibridação entre negros e os índios Tembé, a partir de 1949? De
que forma é possível organizar um trabalho de cunho historiográfico a partir da memória de
membros da etnia Tembé?

Para alcançar o entendimento do negro como agente social dentro do ambiente indígena,
6 PACHECO, Agenor Sarraf. Os Estudos Culturais na Aldeia Sororó: encontros, memórias e caminhos para
a educação indígena. In: NEVES, Ivânia dos Santos e COSTA, Alda Cristina (orgs.). Crianças Aikewára: entre a
tradição e as novas tecnologias na escola. Belém: UNAMA, 2011, pp. 08-18.
7 MOURA, Glória. “O direito à diferença”. In: MUNANGA, Kabengele. Superando racismo na escola. 2a
edição revisada. Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 75.
8 A partir de agora utilizar-se-á a sigla ECs.
9 PACHECO, Agenor Sarraf. E O NEGRO VESTIU O ÍNDIO...: Intercâmbios Afroindígenas pela Amazô-
nia Marajoara. Artigo aceito para publicação nos Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPHU – SP,
2011, p. 10.
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adotou-se uma compreensão dialética do processo sócio-cultural que, de acordo com Severino,
“permite ver a reciprocidade sujeito/objeto eminentemente como uma interação social que vai
se formando ao longo do tempo histórico”10. Esse caminho possibilita perceber a relevância das
ações e reações produzidas por índios e negros dentro da terra indígena.

Optou-se por uma pesquisa de caráter qualitativo, tendo em vista que não se priorizou
fazer um levantamento numérico dos indivíduos existentes na aldeia Jacaré, mesmo tendo os
dados numéricos dessa população. Foi dada maior importância a detectar as teias de relações
desenvolvidas entre os diferentes agentes históricos, para que dessa forma fosse possível
compreender a importância da hibridação no sentido das vivências dessa comunidade indígena.
Sobre essa metodologia de pesquisa Chizzotti afirma que

os pesquisadores que adotaram essa orientação se subtraíram à verificação das regu-


laridades para se dedicarem à análise dos significados que os indivíduos dão às suas
ações no meio ecológico em que constroem suas vidas e suas relações, à compreensão
do sentido dos atos das decisões dos atores sociais ou, então, dos vínculos indissociá-
veis das ações particulares com o contexto social em que estas se dão11.

Na configuração da pesquisa de campo, inicialmente realizou-se um acompanhamento do


cotidiano dos habitantes da aldeia indígena, percebendo seus hábitos culturais e sua organização
política e social. Para esse intento, realizaram entrevistas com pessoas da comunidade que
conviveram e ainda convivem, com problemas agrários e também de saúde enfrentados pelos
Tembé a partir de 1949. E para tais questionamentos será evidenciado o negro migrante, José
Sousa, 76 anos, conhecido na região como Zé Preto, no intuito de obter uma narrativa mais
compreensível sobre as transformações ocorridas naquele contexto socio-histórico.

A preocupação centrou-se em realizar uma análise de como a realidade sócio-cultural foi


construída, desconstruída e, principalmente, reconstruída a partir das percepções e ações de
vários agentes, focalizando as tensões existentes entre as ideias do que seria indígena e o que seria
negro. Em outras palavras, objetivou-se sondar as apropriações identitárias dessas populações
em encontro, num território onde tradicionalmente ficou compreendido como “terra de índio”.
Nesses quadros, Roger Chartier ajuda a compreender os sentidos do conceito de apropriação:

[…] tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e mo-
mentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler. A apro-
priação como entendemos, tem como objetivo uma história social das interpretações,
remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais,
culturais) e inseridas nas práticas específicas que as produzem12.

Nos caminhos metodológicos, a pesquisa filiou-se a História Oral. Conforme o historiador


Paul Thompson, esse caminho para o registro do saber “devolve a história às pessoas em suas
10 SEVERINO, A. J. “Teoria e Prática científica”. In: Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo:
Cortes, 2007, p. 116.
11 CHIZZOTTI, Antonio. “Pesquisa Qualitativa”. In: A Pesquisa Qualitativa em Ciências Humanas e Soci-
ais. São Paulo. Editora Vozes. 5ª Ed. 2010, p. 25.
12 CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. p. 16.
74
próprias palavras. E ao lhes dar um passado, ajuda-as também a caminhar para um futuro
construído por elas mesmas”13. Significa democratizar a escrita da história e trazer para dentro
do conhecimento acadêmico vozes de experiências sociais tradicionalmente desvalorizadas
frente às formas hegemônicas de documentar a vida humana.

O período de 1949 a 2010, escolhido pela investigação, tem sua justificativa por se tratar
de um processo de valorização da memória sobre a população tradicional Tembé, no qual “Seu”
Zé Preto e dona IldaTembé, por estarem entre os moradores mais antigos da RIARG configuram
como fontes históricas vivas de parte da trajetória desse povo e de sua hibridação; entretanto,
serão apresentadas situações pontuais que ocupam um papel fundamental na organização dessa
sociedade indígena.

Para a formulação da pesquisa, os mecanismos de coleta de dados adotados foram: entrevistas,


gravações, fotografias, vídeos, anotações de situações observadas, levantamento bibliográfico e
documental sobre a Terra indígena da RIARG e demais informações no que diz respeito à história
de seus habitantes. O levantamento documental realizado foi de relevância crucial ao bom
desenvolvimento desse trabalho, pois, “determinados registros têm como característica o fato de
servirem como documento de situações que ocorreram no passado, seja afastado ou recente” 14
e tratando-se dos Tembé, assim como boa parte das comunidades indígenas que têm a oralidade
como principal fonte de conhecimento, justifica a importância do registro textual dessas fontes
orais.

Em resumo, optou-se, numa primeira parte deste artigo, intitulado “Complexos e reais:
conceitos de Cultura, Identidade e Hibridismo”, apresentar os conceitos e bibliografias que aqui
serão aludidos sobre as noções de cultura, identidade e hibridismo levando em consideração
a realidade social analisada. Num segundo momento, a seção “Viajantes e guerreiros” faz uma
análise historiográfica com base na trajetória e experiência de negros e indígenas, habitantes da
etnia Tembé Tenetehara em Santa Luzia do Pará, abordando questões sobre identidade, cultura,
artesanato, vestuário, agricultura, hábitos alimentares e problemas agrários entre outros. E nas
Considerações finais são apresentados os resultados da pesquisa, levando em conta seus avanços
e limitações em torno da problemática apresentada.

1 Complexos e reais: conceitos de Cultura, Identidade e Hibridismo

Esse artigo apropria-se do aporte teórico dos ECs (Estudos Culturais), que segundo
Canclini tem por objetivo perceber a maneira como as sociedades em contato, quase sempre
conflitivo, reconstroem-se e recriam-se dentro de uma relação dialética. Para o autor trata-se
do exercício: “de ver como dentro da crise da modernidade ocidental […] são transformadas as
relações entre tradição, modernismo cultural e modernização socioeconômica” 15. O autor ainda
alerta sobre a importância de que “é preciso ir além da especulação filosófica e do instituicismo
estéticos dominante na bibliografia pós-moderna16”.

Stuart Hall está entre os pioneiros dos ECs que ao formular um novo “olhar” sobre as
sociedades globais, influenciou decisivamente na nova escrita do conhecimento na área das
13 THOMPSON, Paul. História Oral: a voz do passado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 337.
14 MOROZ, Melania. “Planejamento: previsão de análise e plano de coleta de dados”. In: O processo de
pesquisa: iniciação. Brasília: Liber. 2ed. 2006, p. 79.
15 GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed.
São Paulo: Edusp, 2008, p. 32- (Ensaios Latino-americanos).
16 GARCÍA CANCLINI, Néstor. Op. Cit., 2008, p. 32
75
humanidades. Assim para uma melhor compreensão do nascimento desse campo de investigação,
em suas próprias palavras é válido acompanhar:

Os Estudos Culturais como problemática distinta, emergem de um momento desses,


nos meados da década de 1950. Certamente não foi a primeira vez que suas questões
características foram colocadas na mesa […], consiste do “registro de um número de
importantes e contínuas reações as mudanças em nossa vida social, econômica e polí-
tica” e que oferece “um tipo especial de mapa pelo qual a natureza das mudanças pode
ser explorada”. Os livros pareciam inicialmente simples atualizações dessas preocupa-
ções anteriores desse mundo do pós-guerra. Retrospectivamente, suas “rupturas” com
as tradições de pensamento em que estavam situados parecem tão ou mais importan-
tes do que a sua continuidade com as mesmas17.

Como exemplo de sociedades que detêm particularidades provenientes do contato


e intervenção com outras culturas, apresenta-se a realidade de alguns habitantes da aldeia
indígena Jacaré, que de imediato seriam caracterizados visualmente como negros – tendo como
base o senso-comum, mas que possuem a ancestralidade da cultura indígena. Esse processo
explica-se por meio das mesclas africanas, trazidas por um negro oriundo do Maranhão, mais
especificamente da comunidade de negros de São Bento, para esta aldeia, o qual contribuiu para
negritar a identidade e a cultura indígena, mesmo sendo classificado pelos órgãos oficiais como
índio.

Quando trata do termo identidade, Barth aduz que é uma construção dada a partir de
elementos que definem um grupo em contraposição ao outro, podendo esses serem superficiais
aos olhos do observador, mas que dada às diferenças, tornam-se efetivas e relevantes no próprio
grupo18. Assim, discutir identidade é discutir diferença e a dinâmica de mudanças que um agente
social atravessa em seu processo de constituição.

Stuart Hall advoga que existem pelo menos duas maneiras de refletir sobre a identidade
cultural. Uma primeira assertiva compreende

a identidade como indivisa, um verdadeiro modo de ser coletivo imposto de forma


artificial, que as pessoas com uma história e ancestralidade em comum partilhariam.
[...] As identidades culturais refletiriam as experiências históricas comuns e os códigos
culturais partilhados que nos forneceriam, enquanto povo uno, um quadro de referên-
cias e de sentido que, sob a mutabilidade das divisões e vicissitudes de nossa história
concreta, se caracterizaria pela estabilidade, imutabilidade e continuidade 19.

Tal compreensão poderia ser aplicada a maneira como tradicionalmente se analisou a


identidade dos diferentes agentes históricos das sociedades indígenas. Poderia se dizer que
todos os habitantes de uma aldeia ao comungarem dos mesmos “códigos culturais” alinhavaram
17 HALL, Stuart. “Estudos Culturais: dois paradigmas”. In: Da diáspora: identidades e mediações culturais.
Organização de Liv Sovik; Tradução Adelaine La Guardia Resende et al. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003, p. 124.
18 BARTH, Frederik (org.). Etnic group and boundaries: the social organization of culture difference. Oslo,
Johansen & Nielsen Boktrykeri, 1969.
19 HALL, Stuart. Cultural identitaty and diáspora. In: RUTHERFORD, J. (org.). Identity: community, cul-
ture, difference. London: Lawrence and Wishart, 1990, p. 224 (Tradução de Regina Afonso).
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sua identidade em igual direção, consolidando a integridade e coesão social do grupo. Daí
seria possível assinalar que, de modo indistinto, sem levar em conta as diversas gerações e suas
diferentes relações e compreensões de mundo, construíram uma identidade estável e essencial.

A segunda compreensão de identidade apresentada por Hall, com a qual essa pesquisa
estabelece conexões, aponta não apenas para os pontos de semelhanças nos encontros entre povos
e culturas distintas ou mesmo em sociedades aparentemente coesas, mas focaliza as diferenças.
Junto aos aspectos que diferenciam uma pessoa de outra, leva-se em conta seu constituir-se,
fazer-se, tornar-se. Tal caráter deixa ver que as identidades “sofrem transformações constantes.
Longe de fixarem eternamente num qualquer passado essencializado, estão sujeitas ao contínuo
jogo da história, da cultura e do poder”20.

Discutir os sentidos do conceito de identidade exige que se conceitue cultura. Por essa
necessidade, neste trabalho opera-se com a compreensão de cultura na direção dos ECs que
o entende como “uma forma completa de vida, material, intelectual e espiritual”21. Assim,
símbolos, significados, “ideias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder22”
açambarcam seu campo de atuação.

Adensa-se essa leitura em Hall, para quem cultura constitui-se “o terreno real, sólido, das
práticas, representações, línguas e costumes de qualquer sociedade histórica específica. [...] as
formas contraditórias de senso comum que se enraizaram na vida popular e ajudaram a moldá-la”23
também fazem parte de seu campo de atuação. Em outro texto, esse intelectual diaspórico
interpreta cultura como sendo “algo que se entrelaça a todas as práticas, por sua vez, como uma
forma de atividade humana: como práxis sensual humana, como a atividade através da qual,
homens e mulheres fazem a história”24.

Darcy Ribeiro em sua obra O Povo Brasileiro chega à conclusão de que

surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com


índios silvícolas campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como es-
cravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais
díspares, tradições culturais distintas formações sociais defasadas se enfrentam e se
fundem para dar lugar a um novo, num novo modelo de estruturação societária. Novo
porque surge como etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes for-
madoras fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética de traços cul-
tuais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como gente nova,
um novo gênero humano diferente de quantos existam25.

E nessa linha de entendimento sobre o “povo brasileiro” que se reconhece como pluriétnico
e singular utiliza-se o conceito de hibridismo na finalidade de compreender as complexidades
20 Idem, p. 226.
21 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Tradução de Walternsir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
tores, 1979, p. 16.
22 NELSON, Cary et al. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Alienígenas na sala
de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. São Paulo: Vozes, 1995, p. 14.
23 HALL, Stuart. Gramscis relevance for the study of race and ethinicity. Journal of Communication Inquiry,
10(02), 1986, p. 26.
24 HALL, Stuart. Op. Cit., 2003, p.123.
25 RIBEIRO, Darcy. Introdução. In. O povo brasileiro: a formação e o sentido de Brasil.2ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 20.
77
inerentes à dinâmica ocorrida na formação social dos indígenas da aldeia Jacaré, situada à margem
esquerda do Rio Guamá, da Terra indígena em questão. Trata-se de “processos socioculturais
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetos e práticas”26. O conceito de hibridação aqui defendido se dá pelo
fato desse termo poder abarcar em si várias outras ideias de misturas, contatos e trocas das mais
diversas naturezas; abrangendo os sentidos biológicos, econômicos, culturais e sociais, pois...

[...] os termos empregados como antecedentes ou equivalentes de hibridação, ou seja,


mestiçagem, sincretismo e crioulização, são usados em geral para referir-se a proces-
sos tradicionais, ou a sobrevivência de costumes e formas de pensamento pré-moder-
nos no começo da modernidade.27

Esse exercício permite ampliar a visão, que até então tem sido destinada as transformações
ocorridas na cultura e organização dos povos; possibilitando, dessa forma, compreender a sua
heterogeneidade, auxiliando nos posicionamentos obtidos em relação a todo esse quadro.

Tal questão se insere cronologicamente entre o final da década de 1940 ao ano de 2010.
Sobre esse período é importante ressaltar as significativas mudanças no campo da legislação
brasileira que teve como principais representantes a promulgação da Constituição Federal de
1988, as Reformas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação do ano de 1996, as Leis Federais
10.639 de 2003 e 11.645 de 2008; as quais, resultado de antigas e atuais lutas sociais, foram
elaboradas no intuito de tirar da marginalidade temas, agentes e histórias subterraneamente
esquecidas.

Em meio a essas questões, é valido indagar qual seria o papel delegado às populações
que foram historicamente interditadas: econômica, social e culturalmente, mesmo sendo
fundamentais ao desenvolvimento material e cultural brasileiro como: os povos indígenas e as
populações africanas e afro-brasileiras. Não se pode esquecer que durante séculos os grupos
no poder agenciaram uma série de estratégias para dificultar a implementação das conquistas
garantidas nos marcos legais, negando a própria cultura e identidade do povo brasileiro.

Ribeiro está entre aqueles que se lançaram ao propósito de entender os inúmeros sentidos
do que seria o “brasileiro”, mas admite que “a nossa realidade se retrata em traços mais gerais,
resultando num discurso explicativo útil para fins teóricos e comparativos, mas insuficiente
para dar conta da causalidade de nossa história”28. Com isso infere-se que ao especificar quais
indivíduos podem ser caracterizados como índios ou negros deve-se considerar os vários casos
que fogem às descrições imagéticas tradicionais do que seria o padrão indígena ou negro.

Dessa forma, os autores do artigo entendem a relevância da atuação negra nos campos
político, social e cultural do cotidiano de vida na aldeia Jacaré do Alto Rio Guamá, cuja realidade
imagética, de acordo com pressupostos tradicionais, pode ser determinada tanto por negros
quanto por índios. Esse aspecto coloca em questão as teorias raciológicas que pregam o “mito
das três raças”29 tão difundidas durante o século XIX e início do século XX. Tais teorias tinham
26 GARCÍA CANCLINI, Néstor. Op. Cit., 2008, p. 19.
27 Idem.
28 RIBEIRO, Darcy. Op. Cit., 1995, p. 14.
29 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Uma história de diferenças e desigualdades. In: O espetáculo das raças: cien-
78
como sustentáculo ideológico a concepção de que existiria uma hierarquia entre brancos, índios
e negros, na qual os primeiros ocupariam um patamar intelectual superior em relação aos
demais grupos humanos, que, por sua vez, passaram séculos sobrecarregados com o estigma de
seres primitivos e, por conta disso, fadados a inferiorização social.

E como finalidade última de se obter uma percepção mais sólida sobre as questões de
identidade, cultura e hibridação provenientes das relações de contato entre negros e índios
entende-se a importância do estudo em questão, no sentido de possibilitar avanços, no que
diz respeito ao reconhecimento das particularidades inerentes às dinâmicas das populações
tradicionais.

Para tal é preciso identificar os pontos específicos da migração dos negros que chegaram a
RIARG em 1949 e com isso a investigação dedicou-se a reconhecer as transformações históricas
em meio a esses processos migratórios. Outrossim, os autores desse texto preocuparam-se em
procurar elementos que os possibilitassem a ter uma noção mais esclarecida sobre os motivos
que provocaram a hibridação de indígenas da etnia Tembé com negros migrantes do Maranhão
no contexto histórico eleito pela pesquisa. Dessa forma, foi possível sistematizar uma análise
acadêmica sobre a etnia dos Tembé Tenetehara, tendo como ponto de partida as fontes orais
presentes naquela terra indígena.

Portanto, este trabalho chama atenção à complexidade de definir grupos humanos, como:
negros ou índios, haja vista que, tem como objeto de pesquisa os moradores da aldeia indígena
Jacaré, onde mesmo se tratando de uma sociedade reconhecidamente indígena não se pode
negar que são detentores de traços fenotipicamente negros.

2 Viajantes e guerreiros: a trajetória de “Seu” Zé Preto e dona Ilda Tembé (1949 a 2010).

O maranhense José Sousa, conhecido pela alcunha de “Zé Preto”, é neto de escravos vindos
de região desconhecida da África. Nasceu na comunidade de negros de São Bento no Estado do
Maranhão no ano de 1934, atualmente com 76 anos, dentre os quais, 60 vividos na RIARG, onde
desempenhou um papel de destaque na “articulação” de trabalhos reconhecidos como de suma
importância a esse povo indígena.

“Seu” Zé levava uma vida intensa em São Bento, trabalhava na lavoura como a maioria
dos negros daquela comunidade. Suas principais atividades eram o cultivo do arroz, algodão, a
produção de farinha e cana de açúcar da qual produzia rapadura e cachaça. Além dessas tarefas
também tinha destaque a extração de óleo do coco babaçu. Tratava-se de um grupo tradicional
que exercia a sua prática de auto-sustentabilidade com base na agricultura familiar, como aborda
Schmitt, Turrat e Carvalho para os quais esses

[…] grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilom-


bos se constituíram a partir de uma grande diversidade de processos, que incluem as
fugas com ocupação de terras livres e geralmente isoladas, mas também as heranças,
doações, recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a

tistas, instituições e questão racial no Brasil. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, pp. 43- 66.
79
simples permanência nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes
propriedades, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do sistema es-
cravocrata quanto após a sua extinção30.

José Sousa, ou melhor, seu “Zé Preto”, como prefere ser chamado, seria mais um como
tantos outros de sua terra não fosse sua vontade de “ganhar dinheiro”. Assim, movido pela
necessidade de “mudar de vida”, resolveu arriscar e ir em direção ao estado do Pará em busca de
novas oportunidades para trabalhar. Foi então que no ano de 1949, aos dezesseis anos, saiu de
sua terra natal com o objetivo de pelo menos tornar mais digno seu futuro, pois, na comunidade
de São Bento, a perspectiva de vida não era segredo: o sofrimento era a única certeza.

Foto de seu José de Sousa, aos 76 anos, em sua casa no município de Capitão-Poço- PA, em 15
de dezembro de 2010. Acervo Pessoal.

Essa fotografia mostra que “Seu” Zé nos dias atuais não contempla a garra inerente aos
seus anos de juventude quando com o pensamento positivo e uma ideia fixa, partiu para uma
viagem que durou 12 longos e ameaçadores dias. O perigo foi sem dúvida uma companhia
inseparável de seu Zé em toda a viagem. Não existia estrada que ligasse os dois estados, portanto,
os viajantes se aventuravam a pé por uma antiga linha do telégrafo, semelhante a uma trilha que
atravessava os estados.

Para a manutenção do telégrafo, a empresa conservava a cada seis léguas (30 km) uma
cabine denominada de estação, com um telefone e um funcionário. Essas estações serviam de
base, tanto para os funcionários da empresa que administravam a linha quanto também para
aqueles que caminhavam por ela, a exemplo de “Seu” Zé e tantos outros que por ali passaram.
O percurso era sempre feito em grupos por conta de frequentes ataques indígenas aqueles que
trafegavam pela trilha. Essas investidas foram um meio encontrado pelos indígenas de defender
seu próprio território. Esses conflitos, por muitas vezes, implicava em mortes tanto para
aventureiros quanto para os índios.

Era prática comum entre os funcionários das estações prevenirem a próxima parada
30 SCHMITT, Alessandra et al.” A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições
teóricas”. In: Ambiente & Sociedade, Ano V, nº 10, 1º Semestre de 2002, p. 01.
80
sobre a chegada de viajantes. “Seu” Zé lembra que “de manhã o funcionário ligava pra outra
estação avisando que a gente ia pra lá, aí ele já ficava sabendo que ia gente. Era muito perigoso
o caminho. E também não dava pra dormir no mato, a gente tinha que calcular direito, tinha
muito índio, podia matar a gente”31.

Quando, ao anoitecer, não aparecia nenhuma das pessoas anunciadas para chegar à
próxima estação, era quase certo o ataque indígena. Então, os agentes das duas estações do
telégrafo saíam para ver o que havia acontecido e, como era comum, já iam preparados para
fazer o enterro dos viajantes.

Depois de ter vencido todos os obstáculos da viagem, “Seu” Zé teve como seu primeiro
endereço, no estado do Pará, uma comunidade do interior de Bragança chamada Montenegro,
local onde se estabeleceu durante seis meses. Depois disso ele partiu para outra pequena cidade
às proximidades, chamada Ourém, cuja população é formada, em sua maioria por descendentes
de índios da etnia Tembé Tenetehara, segundo informam os moradores mais antigos daquele
município.

Ourém teve sua fundação no ano de 1727, por um navegante oficial da Coroa Portuguesa
chamado Luiz de Moura. A cidade ficou conhecida pela construção de uma Casa Forte a fim de
estabelecer o domínio português desde os tempos de colonização. Nesse período já encontrava
resistência indígena que era tida por prática de contrabando32.

Ao chegar a Ourém, “Seu” Zé fez algumas amizades dentre elas dois índios Tembé que
moravam naquele município chamados Ezequiel e Maximiano. E foi por intermédio desses que
conheceu Dona Ilda Tembé, fato que mudaria todos os planos feitos ao sair de São Bento.

Analisando a história da introdução de negros em terras paraenses, Vicente Salles se


remete aos tempos coloniais, nos quais eram trazidos da África para suprir a necessidade de mão
de obra responsável pelo sustento do sistema colonial, passando a ocupar a condição de escravo,
categoria social que até hoje é presente no imaginário brasileiro. Esses indivíduos trazidos eram
de diferentes sociedades, que exerciam formas de organização e manifestação social e cultural,
próprias, tal como Angola e a Costa da Guiné33.

Esse fato fez com que o próprio tráfico, que por mais de trezentos anos abasteceu de peças34
o Brasil, contribuísse à criação de uma realidade cultural heterogênea entre os próprios africanos
e posteriormente afrodescendentes brasileiros, especificamente no Grão Pará e Maranhão, como
retrata Salles.

A provisão de 18 de março de 1662 fala de negros de Angola, certamente da área de


cultura banto. Já a provisão de 1 de abril de 1680 fala de negros da Costa da Guiné,
portanto de provável origem sudanesa. O levantamento das diferentes nações intro-
duzidas no Pará é tarefa difícil de realizar [...] . Negros mina foram desembarcados
no Pará e Maranhão […]. Os negros chegados em 1753 de Bissau, capital da Guiné

31 Entrevista com José de Sousa, conhecido por Zé Preto. Como foi a sua chegada ao Pará? Realizada as
margens do igarapé São Pedro na aldeia Pirá na Reserva Indígena do Alto Rio Guamá às 12h30min. Duração 90
minutos. Filmagem acervo pessoal.
32 IBGE. Disponível em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/para/ourem.pdf. Acesso em 5 de
outubro de 2010.
33 SALLES, Vicente. O Negro no Pará sob o regime da escravidão. 3. ed. rev. Ampl. Belém: IAP; Programa
Raízes, 2005.
34 Termo utilizado durante os séculos XVI ao XIX relacionado aos escravos.
81
portuguesa, também podem ser incluídos nessa área. As notícias mais precisas sobre a
introdução de negro de Angola, banto, datam de 1759: nesse ano chegou o navio […]
com 500 negros da nação Moxicongo35.

Os encontros entre essas nações africanas com os diferentes grupos indígenas que
habitavam o vasto estuário amazônico, desde o período colonial, conformaram variadas
relações sociais. Em função da condição a que africanos e indígenas foram submetidos, sem
desconsiderar as estratégias elaboradas pela elite econômica e política regional para cooptá-
los em defesa de seus projetos de dominação, uma série de táticas de cooperação em busca de
liberdade e melhores condições de vida ali estiveram em execução, como também inúmeras
trocas culturais ali foram operadas. Nesses meandros, em meio a conversas, cantorias e rezas
em momentos de trabalho e descanso, africanos e indígenas elaboraram com sábia malícia
planos de fuga em meio aos olhos vigilantes de seus senhores, igualmente emprestaram entre si
saberes para curar-se assim como o gado, outros animais domésticos e plantas; estabeleceram
laços matrimoniais, ensinaram uns aos outros orações, vocábulos, confecção de objetos de sua
cultura material, práticas de fabricação de alimentos, instrumentos de pesca, caça, entre outros
conhecimentos que diferenciavam e uniram o continente negro com o “País das Amazonas”36.

Pode-se dizer, ainda conforme reflexões desenvolvidas por Pacheco, que desde o período
colonial e no rasgar dos tempos contemporâneos, negros, índios e seus descendentes erigiram
“zonas de contato” que acabaram por colocar em questionamento concepções essencialistas e
tradicionais de cultura e identidade37. Assim, se os quilombos coloniais eram formados somente
por um grupo de negros ou um grupo de índios, semelhantemente eles nasciam das astúcias
operadas por meio das sabedorias africanas e, especialmente, indígenas na compreensão do
regime das águas e geografia das matas38.

Não por acaso, Flávio Gomes, com grande habilidade no trato de uma vasta documentação
colonial, mostrou que, na Amazônia, os quilombos e mocambos eram mestiços39. Foi a partir do
diálogo com pesquisas realizadas por Gomes que Pacheco ao cruzar com escrituras de cronistas,
viajantes, etnólogos, literatos e outros historiadores, interpretou esses processos de hibridismos
como afroindígena. Em sua compreensão, na Amazônia, não se pode discutir história e cultura
africana negligenciando aquelas variadas relações sociais acima mencionadas. De maneira
categórica Pacheco assinala:

Por mais que esses encontros e empréstimos culturais tenham sido silenciados, to-
dos nós, quer nos identifiquemos como branco, índio, negro, quer nos identifiquemos
como europeu, judeu, árabe, americano, amazônida, caboclo, ribeirinho ou qualquer
outro adjetivo para marcar o lugar social de onde falamos, se habitamos na Amazônia,
somos alinhavados em nosso constituir-se e fazer-se cotidiano pelos conhecimentos
do mundo indígena e africanos em simbiose. Todos nós, de modo indistinto, estamos
com um pé na aldeia e outro na senzala ou no quilombo. Ou melhor se os quilombos
e mocambos são afroindígenas, nossos pés estão nesse território de liberdade, mesmo

35 SALLES, Vicente. “Procedência”. Op. Cit. 2005. p.81.


36 PACHECO, Agenor Sarraf. Astúcias da Memória: Intercâmbios afroindígenas no corredor da Amazônia.
In: Revista Tucunduba, UFPA, Belém, 2010.
37 Idem.
38 Idem, Ibidem.
39 GOMES, Flávio dos Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil (sécs. XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis, 2005.
82
que vivamos em constante vigilância. Minha compreensão desse processo, contudo,
não é negar as tradicionais identidades culturais com as quais os habitantes da região
operam para falar de si, de sua história e cultura, mas abrir brechas nos discursos es-
sencialistas e guetizadores sobre identidade e, ao mesmo tempo, chamar a atenção que
muitos habitantes da região ou tem sua árvore genealógica erigida pelas matrizes afri-
canas e indígenas, portanto, podem assumir, entre suas muitas identidades também a
de afroindígenas, ou, formaram-se culturalmente nos códigos afroindígenas que estão
esparramados no tecido histórico-social da região. Em síntese, minha escolha por cap-
tar esses intercâmbios visa dar visibilidade a esses dois grupos sociais que sustentaram
com sua força, sabedorias e crenças as fronteiras Amazônicas e, hoje, pelas políticas
de desigualdade social implementadas e continuamente reafirmadas pelos grupos no
poder, compõem mais de 40% da população pobre da região, batizada pelo IBGE de
modo arbitrário como pardos 40.

Diante dessa contextualização, em tempos contemporâneos, não fica difícil entender o


que ocorreu com “Seu” Zé Preto e sua futura esposa que agora o texto vai apresentar. Dona
Ilda Tembé nasceu às margens do rio Guamá atual Terra Indígena do Alto Rio Guamá. Em sua
narrativa conta que seus pais moravam em uma colônia chamada Prata, atualmente localizada
no município de Santa Maria do Pará, às proximidades do antigo Leprosário municipal.

Foto de dona Ilda Tembé, 87 anos, em sua casa na aldeia Pirá no dia 13 de dezembro de 2010.
Acervo pessoal.

Essa imagem mostra a índia Ilda Tembé em sua casa feita de barro e coberta de cavaco
na aldeia Pirá, evidenciando a transformação porque passaram, e ainda passam, as moradias
indígenas atualmente.

Os motivos responsáveis pela vinda dos pais de dona Ilda para a RIARG não são claros,
entretanto as informações obtidas de seu relato remetem a pensar em conflitos agrários ao

40 Interpretação oral de sua pesquisa apresentada no processo de orientação dessa monografia.

83
afirmar que “eles vieram fugidos dos cabanos”41. Os cabanos42 mencionados na fala da índia
mesmo lembrando os membros da famosa revolta paraense ocorrida de 1835 a 1840 em oposição
ao controle português na região, provavelmente seriam pessoas armadas que lutavam pela posse
de terras, cabendo lembrar que nessa região, por volta de 1920 era comum esse tipo de disputa,
haja vista a expansão dos limites da cidade com o início do processo de urbanização.

Até a primeira metade do século XIX, os Tembé habitavam a região do Alto Pindaré.
A partir deste momento, começaram a migrar para a região do Gurupi, e mais além,
até a região – dos rios Capim, Guamá e Acará Pequeno, a convite do sertanista Manoel
Antônio. Um grupo destes atingiu até mesmo a ferrovia Belém-Bragança, sendo assen-
tado na localidade de Prata por missionários capuchinhos43.

Mapa da Reserva Indígena do Alto Rio Guamá- Acervo da FUNAI


41 Trecho da entrevista com Dona Ilda Tembé. Onde a senhora nasceu? Realizada em sua residência na
Reserva Indígena do Alto Rio Guamá, na aldeia Pirá às 16h00min. (duração 60 minutos). Filmagem do acervo pes-
soal, 14 de janeiro de 2011.
42 Para estudos mais aprofundados sobre a Cabanagem (1835-1840) ver: RICCI, Magda. Cabanagem, ci-
dadania e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. In.: Tempo. Revis-
ta do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 11, p. 15-40, 2006 e PINHEIRO, Luis Balkar Sa Peixoto.
A Revolta Popular Revisitada: apontamentos para uma história e historiografia da Cabanagem. Projeto História
(PUCSP), São Paulo, v. 19, 1999, pp. 227-241.
43 NIMUENDAJÚ, Curt. Mapa etnohistórico das populações indígenas Appud SALES, Noêmia
Pires.”Percorrendo à Historiografia Tembé de ocupação do território” . In: Pressão e Resistência: os índios Tembé-
Tenetehara do Alto Rio Guamá e a relação com o território. Belém: UNAMA, 1999, p.29.
84
Mesmo nascida na RIARG, dona Ilda Tembé quando jovem morou em Ourém onde
encontrou Zé Preto, período em que os Tembé estavam dispersos por boa parte da região
nordeste do Pará. A partir de então passaram a morar juntos, e motivados por projeto
federal de reorganização dos índios Tembé foram morar na RIARG, distante da sede do
município de Ourém aproximadamente 40 km. “A população Tembé total da Reserva é de
aproximadamente 800 índios, segundo estatísticas da FUNAI (Fundação Nacional do Índio)
[…] se contar os que estão fora das aldeias, sendo 11 do Alto Rio Guamá e 11 do Rio Gurupi”44
como demonstra o mapa.

Ao chegar à Terra Indígena, ainda em 1949, “Seu” Zé Preto se deparou com um quadro
lastimável. Os Tembé estavam sendo consumidos por uma epidemia de tuberculose, doença
infecciosa causada por uma bactéria chamada Mycobacterium tuberculosis ou bacilo de Koch.
Esta doença afeta, principalmente, os pulmões e rins, órgãos genitais, intestino delgado, além
disso os ossos também podem ficar comprometidos. A transmissão é direta, ou seja, ocorre de
pessoa para pessoa via gotículas de saliva contendo o agente infeccioso45.

“Seu” Zé Preto declarou que a epidemia foi um dos elementos que favoreceu a dispersão
dos Tembé pelo nordeste paraense, assim como o medo que esses indígenas tinham de ser
caçados e mortos pelo próprio Estado como nos informa.

Nesse tempo quando o Governo quis juntar os índios pra morar tudo junto. Muitos
não aceitaram porque tinham medo de ser tocaia pra matar índio. Tem muito índio aí
espalhado pela região de Bragança que se escondeu. Aqui pro lado de Irituia também
tem muita comunidade de Tembé que não veio como os índios de Itabocal46.

Segundo conta esse narrador, depois de controlada a tuberculose, apenas aproximadamente


50 índios ficaram vivos. Desse momento em diante seus filhos com dona Ilda fizeram parte de
um grupo que constituiu os novos Tembé da RIARG. Era o recomeço para essa etnia, porém
numa nova composição etnicorracial.

Já morando com dona Ilda Tembé e devido a costumes bem variados, foi inevitável o
choque cultural entre os dois. “Seu” Zé era remanescente de uma comunidade de negros e dona
Ilda, de matriz indígena, portanto, era natural que tivessem de fazer algumas adaptações no
que diz respeito à maneira de dividir o mesmo espaço. Tratou-se de uma recriação cultural que
englobou os mais variados aspectos da vida cotidiana, tais como: religião, língua, agricultura,
culinária, vestuário, dentre outros. Mas, de forma alguma se entendem essas transformações
como a eliminação dos costumes e crenças inerentes à cultura de seus povos de origem. Sobre o
assunto Néstor Garcia Canclini afirma.

Esses processos incessantes, variados de hibridação levam a relativizar a noção de


identidade. Questionam, inclusive, a tendência antropológica e a de um setor de es-
tudos culturais ao considerar as identidades como objeto de pesquisa. A ênfase na

44 SALES, Noêmia Pires. Op. Cit 1999. p 15.


45 ARAGUAIA, Maria. Turberculose. Disponível em : http://www.brasilescola.com/doencas/tuberculose.
htm. Acesso em 5 de outubro de 2010.
46 Entrevista com José de Souza, conhecido por Zé Preto. Como o Governo federal tratava os índios naquele
tempo? Depoimento citado.
85
hibridação não enclausura apenas a pretensão de estabelecer identidades “puras” ou
“autênticas”. Além disso, põe em evidência o risco de delimitar identidades locais au-
tocontidas ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à sociedade nacional
ou à globalização47.

Todavia, se imagine que por se tratar de uma aldeia indígena a língua fosse um elemento
que oferecesse dificuldades de contato, o que não foi o caso de dona Ilda e “Seu” Zé, haja vista
que eram poucos os índios que dominavam a língua indígena. O português já era a língua de
referência comunicacional.

Assim como a língua, a culinária também não foi algo que se configurou numa dificuldade
de convivência. Entretanto, existia um hábito que no início foi percebido pelo negro maranhense.
Tratava-se do fato dos indígenas se alimentarem sem a presença do sal algo que para ele, era
indispensável na dieta alimentar como se vê nessa fala.

Era muito diferente, lá em São Bento eu me alimentava de coisas que vinham do rio e
algumas poucas vezes carne de gado, já aqui apesar da maioria das aldeias se localiza-
rem na beira do Rio Guamá a caça era a principal fonte de alimentação. Algumas vezes
quando eu saia da terra indígena, comprava pirarucu, mas passava meses no fundo
do paneiro só sendo comido por mim. Os índios comiam sem sal, o que só veio a ser
incorporado à dieta alimentar indígena por influência de funcionários do próprio SPI
(Serviço de Proteção ao Índio) que utilizavam o sal como tempero dentro das aldeias48.

Foi clara a inclusão do sal de forma mais incisiva por parte de agentes externos à etnia
como trata dona Ilda:

Muita coisa mudou de quando eu me entendi pra cá, inclusive na nossa comida. O sal,
por exemplo, a gente sempre tinha um pouco, mas a gente quase não usava. Quando
vinha alguém comer em casa aí a gente usava o sal por causa da visita, aí a gente foi se
acostumando e hoje se não tiver o sal ninguém come49.

“Seu” Zé Preto é um homem de pouco conhecimento livresco, sua educação escolar foi
possibilitada pelo órgão responsável pelas questões indígenas que, na época, ofereceu essa
oportunidade aos índios, através do Programa Federal conhecido por MOBRAL (Movimento
Brasileiro de Alfabetização), implementado na década de 40 e que tentou configurar um
momento histórico de importância crucial de combate ao analfabetismo brasileiro. Pensava-
se em pôr em prática um mecanismo de erradicação desse problema nacional e que a partir
de 1969, já consistia em um programa proclamadamente voltado a oferecer alfabetização a
amplas parcelas dos adultos analfabetos nas mais variadas localidades do país e poucas áreas
47 GARCÍA CANCLINI, Néstor. Op. Cit., pp. 22- 23.
48 Entrevista com José de Souza, conhecido por Zé Preto. O que o senhor notou com relação à alimentação
fazendo uma comparação dos costumes indígenas com o modo como o senhor se alimentava em São Bento? De-
poimento citado.
49 Trecho da entrevista com Dona Ilda Tembé. Com relação à alimentação, seus hábitos alimentares foram
alterados por conta da presença do SPI ou por outros motivos? Depoimento citado.
86
indígenas participaram desse projeto, entre elas a região do rio Guamá. Contudo a sua eficácia
não contemplou os objetivos do Governo Federal, tanto que

ao longo dos anos 70, o Mobral diversificou sua atuação visando a sua sobrevivência e,
mais para o final do período, a responder às críticas em relação à falácia dos números
que apresentava como resultado ou à insuficiência do domínio rudimentar da escrita
que era capaz de promover. Um dos desdobramentos mais importantes nessa linha de
diversificação foi a criação de um programa que correspondia a uma condensação do
antigo curso primário, assentando as bases para a reorganização de iniciativas mais
sistêmicas que viabilizassem a continuidade da alfabetização em programas de educa-
ção básica para jovens e adultos50.

Esse projeto de inclusão através da alfabetização ficou desacreditado nos meios políticos
educacionais, o que levou o seu fim no ano de 1985; entretanto “Seu” Zé não pode terminar o
curso que , na área indígena, só teve a duração de dois semestres, mas afirma que o pouco que
aprendeu se deve a essa oportunidade.

Mesmo acostumado a lidar com a agricultura, “Seu” Zé não escondeu a surpresa ao ver a
grande quantidade de terra para trabalhar, pois, onde nasceu desenvolvia suas atividades de roça
em terrenos arrendados, toda a produção era dividida com o dono da terra. Por outro lado, dona
Ilda, que optou por não submeter-se à educação escolar, além de assumir os afazeres domésticos,
ajudava também na capina das roças, considerado um serviço mais leve. Fazia um tipo de açúcar
chamado “morena” e também sabão de semente de andiroba, mingau de mandiocaba e bebidas
indígenas como o caciri – espécie de bebida à base de mandioca fermentada. E, ainda que
ajudasse seu marido nas práticas agrícolas, dona Ilda não deixou de dedicar-se à manipulação
de ervas medicinais, o que mais tarde a tornou uma pajé muito respeitada em meio a seu povo.

Cristina Pompa, historiadora que se dedica a estudar as particularidades do universo


ameríndio, apresenta a imagem do pajé como um agente histórico que desde os tempos coloniais
representa de forma grandiosa a resistência indígena, entretanto o seu principal instrumento de
batalha detém um aspecto particular, haja vista que não se trata de armas ou táticas de guerra
e sim do imaginário. Com isso a autora pode perceber as complexas relações engendradas pelo
contato intercultural entre brancos e índios. No Brasil os pajés também foram conhecidos como
xamãs.

A presença de “profetas” e “santidades” em terras de bárbaros e pagãos, em suma, re-


mete a um problema histórico-cultural: o do uso que foi feito destes termos na época
dos primeiros contatos, para entender uma alteridade antropológica que a descober-
ta colocava como um dilema. A projeção na humanidade selvagem de categorias tão
carregadas de sacralidades no mundo ocidental tinha em primeiro lugar uma função
analógico-classificatória (“a de nomear” o Outro através de uma linguagem conheci-
da), mas obedecia também a uma exigência teorética do missionatos de época colo-
nial, portadores de algumas instâncias profético-salvíficas da idade média que estava
terminando, instâncias que alimentavam as próprias descobertas que estavam aconte-
cendo51.
50 PIERRO, Maria Clara et al. Visões da educação de jovens e adultos no Brasil. In: Cadernos Cedes, ano
XXI, no 55, novembro/2001, p 59.
51 POMPA, Cristina. Profetas e santidades selvagens. Missionários e ‘caraíbas’ no Brasil colonial. In: Revista
Brasileira de História, v. 21, nº 40, São Paulo, 2001, p. 03.
87
Apesar da origem bem distinta e costumes culturais diversificados o casal se convergia
religiosamente em alguns aspectos, como em rituais de pajelança específicos de dona Ilda
Tembé que cultuava, e ainda cultua, dentre outros santos e entidades religiosas, a figura de São
Benedito, que por acaso é o santo de devoção de “Seu” Zé Preto. Educado desde os tempos de
São Bento a festejar essa entidade religiosa, ele narrou:

a minha religião sempre foi a católica, tenho minhas ladainhas, minhas orações, ia
à missa quando dava, e ainda em São Bento participei de muitas festividades de São
Benedito. Nunca interferi nos “trabalhos” [práticas de pajelança] da minha ex-mulher,
pelo contrário, ajudava na preparação e organização das festas, mas quando come-
çavam os rituais eu nunca participava diretamente, nunca acreditei muito naquelas
coisas. Nesse ponto acho que não influenciei, nem fui influenciado religiosamente,
apesar de muitas coisas serem muito parecidas com as que aconteciam no Maranhão,
principalmente no culto a santos da igreja católica como o próprio São Benedito52.

Para além da ação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), a RIARG também sofria a
intervenção missionária católica através do CIMI (Conselho Indigenista Missionário) órgão
criado no ano de 1972 pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, cujo principal discurso é
a luta em prol do direito à diversidade cultural dos povos indígenas por meio de projetos como
o Jornal “Porantim”, o Boletim “Mundo” e O Mensageiro para denunciar a violência a esses povos
e divulgar as suas ações e ideologias53.

Agentes do CIMI [...] também procedem visitas periódicas aos dois grupos (Gurupí e
Guamá). Além da discussão de problemas relacionados ao território, fazem nas aldeias
do Alto Rio Guamá o trabalho de evangelização, o que ocorre menos nas aldeias do
Gurupi. No Alto Rio Guamá, o trabalho de evangelização também ocorre a atuação do
pároco de Capitão-Poço, expressando-se a presença da Igreja Católica ai pela existên-
cia de três capelas54.

A religião sempre foi marcante na vida de dona Ilda Tembé. Já com o ofício de pajé não
pode deixar de perceber o avanço da “cultura do branco” sobre aquilo que considera seu mais
importante trabalho como índia e atribui essas transformações à presença do SPI e sua política
indigenista.

[...] ainda ontem mesmo eu tava na banca assistindo um trabalho (pajelança) feito
pelas minhas netas todas com traje do branco. Eu tava pensando como era lá no pas-
sado, era tudo diferente. São bonitas as coisas do branco, mas eu achava melhor do
jeito que era. Eu me arrependo de ter jogado todos os meus “preparos” no mato, tudo
que eu usava nos meus trabalhos era do mato, agora não. Até a bebida era nós mesmo
que fazia aqui. Os maracás, os tamborins, o cigarro de tauari, o incenso do mato, as
52 Entrevista com José de Souza, conhecido por Zé Preto. Sei que o senhor foi casado com uma curandeira,
uma espécie de pajé dos Tembé, isso fez com que o senhor deixasse de praticar a religião que trouxe do maranhão
ou o senhor acha que acrescentou algo da sua religião para a religião praticada pelos Tembé? Depoimento citado.
53 CIMI. Disponível em: http://www.interlegis.gov.br/cidadania/direitos/direitos-das-minorias/conselho-
indigenista-missionario-cimi.Acesso em 5 de outubro de 2010.
54 SALES, Noêmia Pires. Op. Cit., p 15.
88
defumações. Eu tava pensando ontem e decidi que vou fazer uma veste para o branco
e umas como era antigamente porque os cabocos aceitam porque aceitam mesmo, mas
não é certo usar roupa do branco nos nossos trabalhos. Até as velas era a gente que
fazia, era só misturar cera de abelha, breu e ananim55.

O artesanato para “Seu” Zé é outro elemento que exerce um papel crucial na cultura Tembé,
principalmente, com base no guarumã, onde diz que aprendeu tudo o que se pode imaginar
fazer, desde paneiro, tipiti, peneira, abano, tupé entre outras coisas. A partir de então repassou
esse conhecimento aos seus filhos. Em São Bento não existe guarumã, daí o seu interesse por
esse tipo de atividade56.

Para dona Ilda Tembé o artesanato, a religião, o vestuário, a moradia assim como a
agricultura sofreram transformações e perdas com a presença do branco e a falta de políticas
adequadas que levassem em consideração a preservação de seus costumes e tradições, visto que
o artesanato é um traço marcante entre as culturas indígenas de todo o mundo.

Antigamente quando marcava uma reunião, os homens pegavam seus arcos, flechas,
capacetes [cocar], pulseiras e se pintavam com tinta de jenipapo. E as mulheres pega-
vam seus maracás, saias de palhas e saiam atrás dos homens. Hoje, se você for numa
reunião por aqui, ninguém sabe que é índio. Quase ninguém usa mais o artesanato do
índio. Se tiver uma festa da nossa cultura aqui numa dessas aldeias, essas crianças só
vão se comprar um sapato novo, com o salto dessa altura, uma roupa nova, as mulhe-
res já são feias ainda usam um batom roxo, aí fica horrível57.

Tendo como base a vida que “Seu” Zé levava em São Bento, algumas mudanças se
faziam necessárias na aldeia e com o intuito de melhorar a qualidade de vida de sua família,
construiu uma casa de barro coberta de cavaco58 em substituição as cabanas feitas de ubim59
(palha) que encontrou quando ali chegou. O efeito foi imediato, logo passou a ser procurado para
construir outras casas pela aldeia. Talvez tenha sido essa a sua primeira e grande intervenção no
sentido de “melhorar” o que considerava ser uma má acomodação.

Roçados de grandes extensões também fizeram parte das ações iniciais desse maranhense
que, talvez sem perceber, mudava o meio de produção de subsistência, dando mais crédito ao
acúmulo de excedente com a colheita desses roçados.

Mesmo na condição de agente externo, “Seu” Zé Preto era trabalhador e muito querido
entre os índios, o que logo despertou a atenção do órgão que àquela época era legalmente
responsável pela tutela indígena: o Sistema de Proteção ao Índio conhecido como SPI. Essa
instituição considerou “Seu” Zé como um instrumento eficaz para que pudesse estreitar suas
relações com os indígenas da região. Foi então que no ano de 1954 passou a fazer parte do
grupo de funcionários do SPI, ocupando o cargo de “fiscal de terras” e tornou-se responsável por
55 Trecho da entrevista com dona Ilda Tembé. E a questão religiosa também sofreu transformações com a
chegada do SPI? Depoimento citado.
56 Entrevista com José de Souza, conhecido por “Seu” Zé Preto. O senhor sofreu alguma influência que con-
sidera muito importante da cultura indígena? Depoimento citado.
57 Trecho da entrevista com dona Ilda Tembé. E o artesanato? Depoimento citado.
58 Cobertura rústica feita de madeira.
59 Tipo de palha tirada de uma palmeira.
89
resguardar a terra indígena de caçadores, posseiros, madeireiros e do avanço de latifundiários,
função que desempenhou por 13 anos até a criação da FUNAI onde continuou com as mesmas
obrigações.

A carta de fundação o SPI teria que obedecer aos seguintes objetivos:

a) prestar assistência aos índios do Brasil, quer vivam aldeados, reunidos em tribus,
em estado nômade ou promiscuamente com civilizados;

b) estabelecer em zonas férteis, dotadas de condições de salubridade, de mananciais


ou cursos de água e meios fáceis e regulares de comunicação, centros agrícolas, cons-
tituídos por trabalhadores nacionais que satisfaçam as exigências do presente regula-
mento60.

O SPI foi responsável pela reorganização dos Tembé e de seus descendentes e cônjuges
como foi o caso de “Seu” Zé Preto, dentro da RIARG desde a década de 40 onde:

[...] iniciam, a partir de então, uma nova experiência social tendo os chefes de posto
como principal elemento organizador das relações sociais. Denominamos tais relações
“unidade tutelada”, posto que a experiência social é centrada na troca de favores ou “re-
ciprocidade”. Quer dizer, as relações sociais processam-se em termos de uma lingua-
gem cultural vinculada com uma “coisa” chamada “família”, linguagem que, usando a
terminologia do parentesco para definir essas relações e qualidades, envolve tanto um
jogo de paternalismo por parte dos chefes de posto, quanto diferenças entre as várias
“famílias tuteladas”. Isto é, estrutura-se um sistema de desigualdades sociais em termos
de relações “paternalistas” ou de “reciprocidade”61.

Devido a inúmeras denúncias e escândalos de corrupção, o então presidente do Brasil


Antonio Costa e Silva decreta a extinção do SPI. Entre as denúncias, Alonso apresenta os
seguintes projetos, os quais alguns deles podem ser entendidos, no mínimo, como irregulares
para com os indígenas e as terras da RIARG.

a) definir uma terra para esses índios que não tinham terra;

b) construir uma estrada que atravessaria a Riarg de norte a sul para facilitar a comu-
nicação com o P.I. [Posto Indígena] Pedro Dantas;

c) criar no centro da reserva, o P.I. Piriá para assentar nessa área os índios dispersos
pelos rios Capim, Acará e Moju – estes dois últimos objetivos foram paralisados logo
no início, segundo Expedito Arnaud, por falta de recursos;

d) viabilizar a produção agrícola através das roças do posto62.

60 GOVERNO FEDERAL. Lei 8072 de 20 de julho de 1910. Artigo 1º. Disponível em: http://portal.mec.gov.
br/secad/arquivos/pdf/educacaoindigena.pdf. Acesso em 5 de outubro de 2010.
61 ALONSO, Sara. “A disputa pelo sangue: reflexões sobre a constituição da identidade e unidade Tembé”. In.
Novos Cadernos NAEA, vol. 2, nº 2, dezembro 1999, p. 38.
62 Idem, pp. 38- 39.
90
A partir desse acontecimento, “Seu” Zé passou a ser funcionário da nova instituição
responsável pelas questões indígenas, trata-se da Fundação Nacional do Índio – FUNAI – a
qual se manteve ligado por mais por mais 15 anos saindo em 1982 por causa de sua separação
matrimonial, obedecendo as diretrizes da lei 5.371, de 5 de dezembro de 196763.

Em meio a todo esse processo “Seu” Zé foi por muitos anos a figura mediadora entre os
Tembé, o SPI e logo depois a FUNAI, cabendo a ele as tarefas de auxiliar na “reorganização” dos
índios em seu próprio território e preservar a área de constantes investidas, principalmente de
posseiros.

Nos primeiros anos, seu trabalho foi voltado para a agricultura. Foi ele quem, com a
experiência adquirida em São Bento, ensinou muitos índios a manusear instrumentos até então
desconhecidos como: o machado, a roladeira – conhecida por serrotão – bem como ajudou os
indígenas a fazer grandes roçados e também canoas como ele próprio afirma:

Sim, eles aperfeiçoaram algumas coisas que eles já usavam, mas não tinham muita
prática como, por exemplo, fazer canoa, cortar com machado e já aprenderam co-
migo serrar de roladeira, fazer roçados não só pra plantar o que comer, mas também
visando a sobra pra vender e com isso comprar algumas coisas que o SPI-FUNAI não
oferecia64.

Foi com a presença do SPI que “Seu” Zé, dona Ilda Tembé e todos os demais índios
sentiram as maiores transformações de ordem cultural em seu cotidiano, as quais se evidenciam
até os dias atuais.

Além de inspirar confiança no meio indígena “Seu” Zé era, e ainda é, muito carismático,
características que, somadas à política assistencialista implementada pelo SPI agradava a
população indígena, principalmente por causa do estado de miséria em que viviam, aspecto
constatado na fala de dona Ilda: “O SPI agradou muito o povo indígena, deixou a gente muito
diferente da maneira como a gente vivia. O SPI agradou muito os índios trazendo as coisas”.65

A indígena se referia as novas comidas, tecnologias e hábitos que estavam sendo inseridos
na aldeia por conta da atuação e trânsito dos funcionários desse órgão. E ao fazer uma análise da
gama de intervenções a que os Tembé estavam sendo inseridos, dona Ilda expressa visão crítica
frente às ações adotadas pelo Serviço de Proteção no que tange a descaracterização cultural dos
índios. Dentre outras coisas, lembra o impacto obtido na maneira de se vestirem:

[...] A gente usava aquela roupa que era nossa mesmo, uma tanga, saia de palha e pra
cima não tinha nada, mas, como tinha o pessoal do SPI andando aqui, a gente usava
roupa completa. Eles traziam roupas do branco e também a gente ficava acanhada de
usar aquelas vestes só até na cintura, de usar as nossas roupas. As mulheres do SPI
63 GOVERNO FEDERAL. Lei 5.371 de 5 de dezembro de 1967. Art. 7º. § 1º. Disponível em: http://www.
funai.gov.br/quem/legislacao/criacao_funai.htm Acesso em 5 de outubro de 2010.
64 Entrevista com José de Souza, conhecido por Zé Preto. O senhor aqui chegando trouxe na bagagem todos
os costumes da sua cultura que é bem diferente da que o senhor encontrou aqui. O senhor acha que de alguma
forma os Tembé adotaram alguns dos costumes da sua cultura? Depoimento citado.
65 Trecho da entrevista com dona Ilda Tembé. Qual a sua opinião sobre a atuação do SPI? Depoimento
citado.
91
também induziam a gente a usar roupas iguais as delas. Até as unhas eu pinto hoje,
tudo é influência do costume do branco, quando eu vejo as minhas netas com os lábios
tudo roxo [batom] acho muito feio, mas não posso fazer nada elas acham isso bonito66.

A presença do SPI na Terra Indígena acabou influenciando na instalação de novas


práticas e hábitos culturais. Os Tembé ao incorporarem em seu modo de vida outras maneiras
de se vestir e se pintar, abandonaram, em partes, os costumes deixados por seus ancestrais.
Deste modo, estimulados pelo assistencialismo tendencioso implementado nessa relação com o
governo federal, os Tembé realizaram empréstimos que quase sempre justificou a força do poder
hegemônico em sua reorganização social e expressões comportamentais.

Atos mais corriqueiros como, por exemplo: troca de ferramentas para o trabalho agrícola
com a condição de fixá-lo e delimitar território específico para o grupo, quando suas tradições
revelam a forma simbiótica na forma de lidar com a terra, a floresta, o rio e todo o conjunto de
sua riqueza animal, mineral e vegetal. Em outras palavras, bitolando os Tembé a espaços pré-
determinados, em uma espécie de aldeamento forçado aos moldes de um assentamento para
índios, o SPI conseguiu açambarcar para o governo todo o restante da terra indígena e facilitou
sua política de controle sobre esse povo.

Confinar os índios em uma “reserva” e aldeá-los, passou a ganhar interesse. Não só


este procedimento liberava as áreas de mata para o extrativismo sem riscos, liberava
lotes para os colonos que emigraram da “seca”, como também “pacificava” a popu-
lação indígena, para estabelecer um convívio sem antagonismos, para transformá-la
em ”mão-de-obra”, além de fornecedores de produtos baratos e em consumidores do
mercado capitalista67.

Diante dessas ações arbitrárias, quem não se submetia ao regime pretendido sofria como
represália a exclusão da categoria de indígena e consequentemente deixaria de ser “ajudado”
pelo SPI, ou seja, perderia o apoio assistencial agrícola e também na área da saúde, outro grande
problema enfrentado até os dias atuais.

Reconhecidamente prestigiado entre os indígenas, “Seu” Zé passou a representar os Tembé


em reuniões junto ao Governo do Estado e aos interventores que o representavam. Realizou,
inclusive, muitas viagens, sempre com posições firmes em relação aos direitos indígenas.
Algumas vezes, chegou até mesmo a se colocar contra alguns Tembé que aceitavam esse plano
de viver encurralados em lotes dentro de sua própria terra. O que não foi concretizado, graças à
resistência de muitos nativos que não concordavam com isso e dentre eles estava o maranhense,
“Seu” Zé Preto.

A questão agrária só aumentava as dificuldades da luta de “Seu” Zé junto aos Tembé.


Várias vezes sua vida foi ameaçada, por conta de sua atuação política que acabava prejudicando
muitos posseiros e grandes latifundiários atraídos pelas riquezas florestais.

Foi desde meados dos anos 60 - com as novas condições geradas a partir da implemen-
tação da política de “integração nacional da Amazônia”, desenvolvida na região pelo
66 Trecho da entrevista com dona Ilda Tembé. Como eram as roupas que vocês usavam naquele tempo? De-
poimento citado.
67 SALES, Noêmia Pires. Op. Cit., 1999, p. 15.
92
governo federal durante o regime militar, através, por exemplo, dos planos ou projetos
de colonização e da política de incentivos fiscais – que “novas” categorias sociais são
definidas na realidade social para definir os atores e suas práticas na região, entre estas,
fazendeiros, posseiros madeireiros, índios68.

Por ser profundo conhecedor da geografia da RIARG e na condição de funcionário da


FUNAI, no ano de 1971, foi lhe dada a responsabilidade de orientar a equipe técnica desse órgão
na abertura de ramais de demarcação da reserva. Esses ramais, também conhecidos como Picos,
só serviram, de fato, após 14 anos de sua saída da FUNAI com a homologação da terra por parte
da União. Entretanto, não foram poucos os conflitos erigidos em torno da demarcação dessa
terra indígena, tendo, por exemplo, o processo judicial levantado contra o fazendeiro Mejer
Kabacznick que conseguiu tomar posse de aproximadamente 6 mil hectares da terra indígena.
Somente em 18 de janeiro de 2010 foi enquadrado como esbulho possessório – extensão imprópria
de sua propriedade – como mostra o documento do processo aberto ainda na década de 70 e que
teve a sua apelação em 20 de março de 200869.

Mais um antigo sonho estava se materializando para os Tembé e novamente com uma
inegável contribuição de “Seu” Zé Preto. Mesmo que a Reserva Indígena Alto Rio Guamá tenha
sido criada em 194570, sua homologação tornou-se fato em 4 de outubro 1996, abrangendo os
municípios de Nova Esperança do Piriá, Paragominas e Santa Luzia do Pará. Esse território
possui uma superfície de 279.897,70 hectares e um perímetro de 366.292,90 metros englobando
territórios do Pará e do Maranhão.

Os limites da RIARG têm sua demarcação natural através dos rios Guamá, no lado norte
e Gurupi, extremo sul, já na divisa do Pará com o Maranhão. Seu interior é entrecortado pelos
rios Piriá e Coaraci-Paraná.

Essa área não conta apenas com a ocupação do povo Tembé, visto que abarca outras
populações tradicionais: Timbira, Urubu-Kaapor e Guajajara, ultrapassando a soma de 1.425
pessoas. Entretanto a única etnia que habita o lado paraense é a Tembé Tenetehara.

Apesar da reserva indígena estar reconhecida desde 1996, os povos indígenas ainda
não puderam ter a posse exclusiva dos recursos naturais que ali se encontram, pois a
área sofre invasões constantes por posseiros, grileiros e madeireiros, sendo constantes
as situações de conflitos agrários e ambientais às quais os indígenas são submetidos.
Pelo histórico de ocupação da área, uma fronteira agrícola consolidada, a reserva in-
dígena resguarda grande parte da floresta primária ainda presente na região do rio
Gurupi do nordeste paraense. No entanto, no entorno da reserva e até em seu interior,
já há áreas completamente exploradas, possivelmente degradadas que necessitam ur-
gentemente de intervenção71.

68 ALONSO, Sara. Op. Cit., 1999, p. 42.


69 Apelação civil. Processo nº 2005, 3.006620-5. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurispruden-
cia/5542010/agravo-de-instrumento-ai-200530066205-pa-2005300-66205-tjpa/inteiro-teor. Acesso em 5 de outu-
bro de 2010.
70 GOVERNO FEDERAL. Decreto 307 de 21 de março de 1945 na gestão de INTERVENTOR FEDERAL
Joaquim Magalhães Barata. Disponível em :http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/viewFile/108/162
. Acesso em 5 de outubro de 2010.
71 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Disponivel em: http://portal.mj.gov.br/dpdc/data/Pages/MJ6BF8D-
99BITEMID61E6C6AFE2A34AC4A80D5A7F8900C527PTBRIE.htm. Acessado em 21 de janeiro de 2011. Acesso
em 5 de outubro de 2010.
93
Da união do maranhense, neto de escravos, com a índia Tembé nasceram quatro filhos.
Hoje todos casados já com mais duas novas gerações que ainda moram em aldeias Tembé
espalhadas pela área indígena e 25 na etnia Assurini totalizando 89 pessoas. Olhando para
eles percebe-se facilmente que seus traços físicos os caracterizam como negros, levando em
consideração o padrão veiculado na mídia. Porém, inegavelmente são afroindígenas, conforme
categorizou Pacheco.

Tais grupos constituíram a população regional e seu desvelamento ajuda os habitantes


a identificarem genealogias de suas próprias formações culturais. Essa prática contri-
bui para afirmação, negação ou construção de novas identidades, como ocorre atual-
mente com as denominações “negro” e “preto”, quilombola, negro da terra, caboclo,
índio, descendente de índios, afroindígena72.

Os filhos de “Seu” Zé e dona Ilda são afroindígena não apenas pela mistura do fáceis negro
e indígena, mas também porque nasceram do contato e confluência de saberes, fazeres, crenças
e costumes dos dois principais grupos humanos que legaram a Amazônia e ao restante do Brasil
um patrimônio cultural material e imaterial, que o distingue de outras nações na América Latina.

Tomando como base a aldeia Jacaré, localizada à margem esquerda do rio Guamá, onde
mora dona Maria Tembé, filha do casal Zé Preto e Ilda Tembé, mãe de 13 filhos percebe-se que
o fenótipo negro avança a cada geração. O mesmo acontece com os demais filhos de “Seu” Zé,
evidenciando o domínio genético e fenótipo do patriarca maranhense. Contudo, a aparência,
relacionada ao negro, por vezes, causa constrangimento aos filhos e netos dessa rede familiar,
não sendo levada em consideração a tradição cultural indígena que sustentam.

Mesmo sendo assumidamente negro, “Seu” Zé diz nunca ter sido vítima de racismo, nem
em terra indígena nem quando esteve à frente de trabalhos fora da aldeia, como por exemplo,
em viagens promovidas pelo SPI-FUNAI. Porém, admite ficar meio sem jeito quando, em
tratamento médico, vai a outros órgãos de assistência indígena como relata.

Não sofri nenhum tipo de discriminação por parte dos Tembé por ser negro até por-
que os meus filhos puxaram quase todos para mim, negros de aparência, mesmo a mãe
sendo uma Tembé legítima. Só que fico um pouco acanhado quando vou para a casa
do índio (CASAI) em Icoaraci fazer um tratamento de saúde como estou fazendo no
momento. Alguns índios como Kaiapó, que são índios orgulhosos, me olham com um
olhar de cobrança, pois eles sabem que pela minha aparência, não sou índio73.

Quando inquirido sobre qual identidade assume, “Seu” Zé fala com naturalidade: “Eu me
considero negro porque nasci negro e não posso ‘pular fora’, porém pelo tempo que moro aqui e
sendo tutelado pela FUNAI me considero índio também”74. Percebe-se aqui a dupla identidade
assumida por “Seu” Zé, resultado do longo período que morou na aldeia e os trabalhos
desenvolvidos, além da representativa família ali constituída com esposa, filhos, netos e bisnetos.
72 PACHECO, Agenor Sarraf. Op.Cit., 2011b, p 08.
73 Entrevista com José de Souza, conhecido por Zé Preto. O senhor já sofreu algum tipo de discriminação
dos tembé por não ser índio? Depoimento citado..
74 Idem.
94
Passados mais de 20 anos, ocorreu a separação matrimonial com dona Ilda e logo “Seu”
Zé pediu afastamento da FUNAI, indo para São Bento onde permaneceu por 3 anos até voltar
para a terra indígena a pedido dos filhos. Atualmente, ele vive em Capitão Poço, município que
faz fronteira com a RIARG distante 15 km da aldeia Jacaré onde se encontra a maior parte de
sua família.

De saúde debilitada, “Seu” Zé vive constantemente em viagens a fim de tratar um problema


no coração. E dona Ilda, por sua vez, hoje com 87 anos continua morando na terra indígena na
companhia de uma neta, filha de dona Benedita Tembé, uma das três filhas de “Seu” Zé e dona
Ilda. Essa união possibilitou um recomeço aos Tembé do rio Guamá, principalmente na aldeia
Jacaré que hoje é constituída basicamente por filhos e netos dessa relação.

Entre os filhos de “Seu” Zé e dona Ilda encontra-se lideranças como Félix Tembé, hábil
no uso da língua Tembé e dedicado aos movimentos em prol de garantir a dignidade de seu
povo assim como toda uma linhagem que já abarca a terceira geração na qual estão presentes
importantes figuras na luta dos direitos indígenas Tembé, podendo se dizer com isso que

Em 1992, pela primeira vez, desde a criação da Reserva Indígena Alto Rio Guamá
(RIARG), as famílias Tembé da área do Guamá manifestam-se social e publicamente
como uma “unidade de parentes” ou “do mesmo sangue”. Esse processo de “reorgani-
zação-revolução”, como o denominaram os Tembé, representou um “tempo de união e
de luta” em que lutaram em defesa dos direitos sobre o território75.

As fotografias a seguir são elucidativas no sentido de nos dá uma amostragem dessa


linhagem, composta por lideranças e moradores das terras da RIARG que constituem nesse
afroindígena representante do híbrido, mas que não deixa de afirmar a sua identidade
indígena.

Félix Tembé, filho de “Seu” Zé e Ilda. Dona Maria Tembé, filha mais velha do casal
Liderança indígena e referência no uso moradora da RIARG
da língua indígena Tembé.
75 ALONSO, Sara. Op. Cit., p. 33.
95
Neto Tembé, neto de “Seu” Zé e dona Ilda, hoje cacique da aldeia Jacaré.

Após anos de batalhas dos Tembé pelo reconhecimento de sua identidade indígena e por
conseguinte, pelo direito a posse às terras da RIARG, a antropóloga Sara Alonso (1999) afirma
que a formação de famílias e redes de parentesco, foram elementos essenciais a causa dessa etnia
e nesse processo entende-se a contribuição dos feitos de “Seu” Zé Preto e da rede familiar que
criou junto à dona Ilda. Seus filhos e netos Tembé reconhecidos são símbolos de uma realidade
brasileira híbrida que ao colocar em questionamento concepções essencialistas de cultura e
identidade, contribui para sua recriação, negação ou reafirmação.

Considerações Finais

A história desse casal de origem étnica aparentemente tão distinta, de forma infeliz
carrega o algoz da discriminação social a qual, historicamente foram submetidos índios e
negros, como se ambos fossem elementos estranhos à sua nação. Isso ocorre pautado em toda
uma herança de marginalidade que ficou arraigada na mentalidade brasileira. Assim, esse artigo
compartilhou das ideias de Vicente Salles, o qual afirma que na composição étnica do Pará o
negro se solidariza aos indígenas nas vicissitudes sociais. Ambos foram privados de seus padrões
culturais e por conta disso, não mais tem relevância pensar em negros ou índios autênticos, visto
que ambos foram “amalgamados numa nova cultura, resultante da fusão de três componentes
étnicos”76.

O texto procurou desvelar uma trajetória diaspórica que teve como elemento
motivador a luta pela própria existência. José Sousa fugiu de uma vida sem muitas perspectivas,
saiu em busca do improvável, do oculto, do inesperado e nesse caminho conheceu Ilda Tembé.
76 SALLES, Vicente. Op. Cit., p. 93.
96
Outro itinerário foi traçado e uma história estava sendo escrita junto a um povo com o qual
compartilhou novos saberes e culturas. Esse encontro cultural permitiu que todos pudessem se
reinventar numa relação dinâmica, cheia de obstáculos e conflitos de identidades que lhe foram
impostos. Com isso, mesmo compreendendo o lugar diferente de onde dialogavam com seus
“iguais”, aprenderam a operar com o “jogo das identidades”, conforme historicizou Stuart Hall,
para defender suas representações, interesses e necessidades de vida.

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