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O analista cidadão
Temos agora a Conferência de Pequim sobre as mulheres, sobre o lugar e a condição das
mulheres. O grupo de lésbicas não necessita de analistas que as represente; elas mesmas
reclamam o reconhecimento de uma série de direitos e gritam mais do que qualquer um
possa fazer por elas. Não precisam de advogados, são pessoas maiores que lutam pelo
reconhecimento de seus direitos. Com tudo isso os analistas ficam um pouco perdidos,
não sabem exatamente se têm que gritar mais para se fazerem escutar ou se devem
serenar os ânimos.
A primeira vista os analista não tinha idéias realmente interessantes sobre esse
temas foi assim que os analista se mantiveram digamos na posição do intelectual
crítico.
O que se esperava do intelectual critico era que se mantivesse em seu lugar, tranqüilo, e
que se dedicasse somente a criar, a produzir o vazio. O intelectual criticava algumas
orientações decididas pelos outros e se mantinha nessa posição.
O analista crítico é o analista que não tem nenhum ideal, que chega a se apagar, que
é tão só um vazio ambulante, que não crê me nada.
Esta prática estimulou certo ideal de marginalização social da análise, um ideal do analista
concebido como marginal, o inútil, o que não serve para nada, salvo para esta posição de
denúncia de todos os que servem para algo.
Laurent propõe destruir esta posição. A função do analista não é essa, daí o interesse que
há em reinseri-los no dispositivo da saúde mental.
Um analista cidadão no sentido que tem esse termo na teoria moderna da democracia. Os
analistas precisam entender que há uma comunidade de interesses entre o discurso
analítico e a democracia, mas entendê-lo de verdade.
O analista não precisa se manter numa posição critica, podendo intervir com seu dizer
silencioso. O dizer silencioso implica em tomadas de partido ativas silenciar a dinâmica
de grupo que rodeia qualquer organização social. No ponto de vista do analista quando se
juntam três, a dinâmica do grupo esta em marcha, quer dizer, desencadeiam-se
determinadas paixões imaginárias.
Laurent cita o exemplo de Bion que durante a segunda guerra soube organizar grupos com
aqueles jovens que não queriam ir para a guerra. Ele pretendia ali avaliara o que era da
ordem da patologia, ou seja, o que poderia curar e o que não se podia curar nesses
indivíduos expulsos do ideal. Através da mediação de pequenos grupos, suprimindo a
paixão narcísica de serem rechaçados do ideal, era possível reinseri-los e dar-lhes um
destino humano. Podiam escolher de maneira mais ética o que fazer da vida.
Assim o analista, mais que um lugar vazio, é o que ajuda a civilização a respeitar a
articulação entre norma e particularidades individuais.
O analista, mais além das paixões narcísicas das diferenças, tem que ajudar, mas com os
outros, sem pensar que é o único que esta nesta posição. Há de ajudar a impedir que, em
nome da universalidade ou de qualquer universal, seja humanista ou anti humanista,
esqueça-se a particularidade de cada um. Esta particularidade é esquecida no Exército, no
Partido, na Igreja, na Sociedade Analítica, na saúde mental.
Os analistas são agora, no nosso mundo, dos poucos que escutam os loucos, quando se
torna mais fácil preencher fichas convencionais do serviço psiquiátrico. Mas os analistas
não devem se limitar a escutar, também precisam transmitir a particularidade que esta em
jogo.
Assim os analistas não devem se manter como analistas críticos. Haverá que pedir algo a
saúde mental, pedir uma rede de assistência em saúde mental, que seja democrática e
que seja capaz de receitar só direitos de cidadania dos sujeitos que estão nesse campo e
nesse marco concreto da saúde mental.
O dizer silencioso do analista consiste em contribuir para que, cada vez que se intente
erigir um ideal possa-se denunciar que a promoção de novos ideais não é a única
alternativa. Tão pouco se trata de retomar aos valores da família e aos velhos tempos,
quando se cria um pai. O que existe hoje é o tempo do debate democrático, aberto, critico
e sem dinâmica de grupos. E neles os analistas têm que incidir muito ativamente e se não
o fizerem ninguém o fará por eles.
Os analistas devem opinar sobre coisas precisas, começando pelo campo das
psicoterapias e sem esquecer as transformações cientifica dos ideais, do pai como ideal.
Pois se der sua opinião em termos gerais, não se tem nenhuma incidência na forma de
civilização.
Nesse sentido o analista útil, cidadão é alguém que avalia as práticas e também
aceita ser avaliado, mas ser avaliado sem temor, sem um respeito temeroso,
cauteloso. Os analistas têm que demonstrar os resultados de sua prática.
Tudo isto deve permitir tirar-nos do que foi aquela posição de exclusão de si mesmo. E por
outro lado, o analista que toma partido dos debates, o analista útil e cidadão é
perfeitamente compatível com as novas formas de assistência em saúde mental, formas
democráticas, anti-normativas e irredutíveis a uma causalidade ideal.
Devemos lembrar que o desejo de curar, que permite incidir sobre a depressão,
sobre a falta de existência efetiva de um desejo ou de um ideal, pode produzir-se de
novo. E tem um reverso: é que também pode conduzir a uma posição cínica.
Parece evidente que não há melhor critério de perda de saúde mental que o da
perturbação dessa ordem.
E isto leva Miller a concluir que o mais importante na vida, com respeito à saúde mental, é
andar bem na rua.
Sabe-se que existem aqueles que já não tornam a sair de casa. Mas isto molesta também
a ordem pública, no âmbito da família. Pode ser um signo importante que um adolescente
fique encerrado em seu quarto. Isso pode levantar uma suspeita desde o ponto de vista da
saúde mental.
Parece, portanto, que a saúde mental é fundamentalmente, uma questão de sair, de entrar
e também de voltar. Voltar depois de haver saído, é essencial à ordem pública.
É também função dos trabalhadores de saúde mental decidir se alguém pode circular entre
os demais pelas ruas, em seu país, entre os países, ou se, pelo contrário, não pode sair de
casa.
Os trabalhadores da saúde mental se reconhecem próximo aos da polícia e aos da
justiça. A saúde mental tem como objetivo reintegrar o indivíduo à comunidade
social.
Miller relaciona o conceito de saúde mental com ordem pública, segundo afirma os
pacientes de saúde mental são selecionados a partir de uma perturbação dessa
ordem pública. Assim os trabalhadores de saúde mental se reconhecem próximos
aos da policia e justiça. No entanto, o critério de responsabilidade é essencial para
sabermos quais as perturbações concernem a policia e quais concernem à saúde
mental.
O termo sujeito, portanto, não se introduz a partir do mental, mas a partir do direito. Pode-
se ver aí a imagem do totalitarismo: que o outro decide sempre e que, em um Estado
semelhante, são todos os demais que estão loucos. A prova é que não se pode sair do
país.
O psicanalista, como tal, não é um trabalhador de saúde mental e talvez seja esse,
precisamente, o segredo da psicanálise.
Isto é nosso trabalho si dirige a enfermidades mentais nas quais há um sujeito de pleno
direito. Um sujeito que pode responder pelo que faz e pelo que diz.
O sujeito da enunciação é aquele que pode tomar distância com respeito ao que ele
mesmo enuncia. É o sujeito que pode notar que disse algo, porém não sabe porque ou
não crê no que diz. A partir desta conexão entre saúde mental, ordem pública e
psicanálise podem-se entender a importância que Freud deu ao conceito de sentimento de
culpa.
E pode-se dizer que é uma pré-condição da prática analítica. É um dos objetivos das
entrevistas preliminares. E quando comprovamos que existe, podemos dizer que há sujeito
capaz de responder.
Miller destaca os canalhas e os paranóicos como aqueles que a culpa esta ausente
colocando em dúvida a possibilidade de um tratamento analítico.
Falamos da pulsão quando as coisas se apresentam nessa dimensão em que não se pode
deixar de fazê-las e com o problema de saber se, nesse sentido, há sujeito de direito ou
não. Lacan pôde dizer que a pulsão é acéfala – sem objeto – e que nessa medida há como
uma suspensão do sujeito de direito.
O sentimento de culpa também tem efeitos: no luto patológico, em que o sujeito esta
tomado pela culpa da perda. Ou na psicose onde o culpado é o outro. Vemos um exemplo
clássico, no caso Schreber, onde Deus é culpado por tudo.
Só um sujeito de direito pode ter sentimento de culpa, isto é, um sujeito que pode
dizer “tenho direito a”.
É necessário que o analista tenha se curado do sentimento de culpa para que possa
dirigir a cura de outros e ao mesmo tempo é necessário não estar curado dela
enquanto sujeito.
A castração não tem sentido senão para o sujeito de direito, para o sujeito que pode dizer
“tenho direito a”.
No entanto é importante destacar uma condição fundamental para que essa passagem
não se torne aquilo que, na Itália, é chamado de nova cronicidade.
Pode parecer paradoxal, porque a clinica está ligada à doença. Para retomar a dimensão
da clínica, que é a dimensão do homem, devemos introduzir quatro tempos:
A cronicidade é uma outra coisa que não a incurabilidade; também o sintoma neurótico
não é curável.
Podemos citar um exemplo: se em uma orquestra for introduzido um músico que, em vez
de tocar música, produz rumores estranhos, quando é que ele será verdadeiramente
excluído da orquestra? Quando for expulso da orquestra ou quando toda a orquestra
começar a, também, fazer rumores?
Lacan sustenta que o psicótico é um sujeito estruturado, mesmos se ele se encontrar fora
do discurso social. Não discutir com ele, não falar com ele é uma forma de excluí-lo. Mas,
também ficar com ele sem o discurso é uma forma de exclusão e de segregação.
Noutros termos, a segregação, que se pode criar com a abertura dos manicômios, é
criar outros lugares onde se faz barulho sem falar. A abertura dos manicômios não
exclui a segregação.
A respeito dessa perspectiva, propondo a construção do caso clínico.
Viganò chama atenção para o fato de que a luta antimanicomial, com a abertura dos
manicômios não significa o fim da segregação. Ao contrário podemos criar outros
lugares tão segregatórios como os manicômios. Para o autor, apenas a construção
do caso clínico exclui a segregação. Vejamos o que ele chama de construção de
caso clínico.
Caso vem do latim cadere, cair para baixo, ir para fora de uma regulação simbólica;
encontro direto com o real, com aquilo que não é dizível, portanto impossível de ser
suportado.A palavra clínica vem do grego Kline e quer dizer leito. A clínica é
ensinamento que se faz no leito, diante do corpo do paciente, com a presença do
sujeito.
É um ensino que não é teórico, mas que se dá a partir do particular; não é a partir do
universal do saber, mas do particular do sujeito.
Caso – o que sai da regulação simbólica, encontro direto com real, com o indizível.
Clínica – ensinamento que se faz com a presença do sujeito.
O homem, quando é tomado por uma doença mental, não se transforma por isso num
animal pavloviano.
A partir desse método, ele pôde revelar que os sintomas não são outra coisa que os
diferentes modos de adaptar-se a um rompimento com a realidade; de compensar o
desencadeamento efetivo da psicose que, em idade, era muito anterior e havia
passado despercebido tanto à família como aos médicos.
E Clérambault dizia que era preciso rever o edifício da psiquiatria, que era preciso
recolocar o sintoma sobre a base do automatismo mental, ou seja, nesse efeito de
rompimento da realidade. O fenômeno elementar, de fato, a verdadeira doença. Os
sintomas, estes se formam de modo gradual dependendo do sujeito, de sua cultura, seu
gosto, suas circunstâncias; de acordo com cada sujeito.
Para formalizar uma teoria dessa subversão, Lacan voltou a Freud e derivou a teoria
da forclusão. Aquilo que é forcluído para o sujeito, antes que apareça, os sintomas,
é a função paterna: aquilo que permite a cada sujeito se orientar na ordem, do
simbólico, na ordem, do social.
A função paterna é uma função de autoridade. Se o sujeito não se autoriza a falar, a dar
um nome aos objetos, permanecerá ligado ao objeto que é a mãe, de forma automática. E
aquilo que alguns chamam simbiose, na realidade não é simbiose, é um fenômeno
simbólico. É importante notar a proximidade desse automatismo, nos anos 20, com o
fenômeno da industrialização, caracterizado exatamente pela automação. É um tipo de
trabalho onde a decisão prescinde de uma autorização; o gesto do trabalhador torna-se
automático.
Para conseguir isso, Lacan dizia que o psiquiatra deveria se colocar como secretário do
alienado.
Aquele que reabilita deve ser, não tanto testemunha do desejo do sujeito, como na
neurose, mas testemunha de sua existência subjetiva, de sua habilidade para
trabalhar.
O autor parte do trabalho com psicóticos para demonstrar que a reabilitação exclui a
clínica. Lacan pôde revelar que aquilo que é forcluído para o sujeito, antes que
apareçam, os sintomas, é a função paterna: o que permite a cada sujeito se orientar
na ordem, do simbólico, na ordem, do social Portanto, os sintomas não são outra
coisa que os diferentes modos de adaptar-se a um rompimento com a realidade; de
compensar o desencadeamento efetivo da doença.
O segundo ponto é a diferença que deve ser estabelecida entre o caso clínico e o
caso social.
Podemos dizer que o caso social é aquele que se desenvolve a partir do peso crescente
de uma equação do tipo: saúde = mercadoria. O caso social, então, tende a ser aquele
dentro dessa lógica; é o caso do discurso do puro significante, dos instrumentos jurídicos e
assistenciais. O caso clínico, no entanto, compreende, além do significante, o objeto.
Assinalo que o caso clínico não exclui o caso social. Pelo contrário, o caso clínico é
a condição para que haja o caso social.
A questão se complica mais um pouco a partir do fato de que há, fundamentalmente, duas
construções da clínica que se opõem entre si: uma que mantém separado o caso clínico
do caso social, e outra que os articula entre si.
Esses dois modos de pensar a clínica podem ser tomados como duas formas de
entender a psicanálise e em particular, a transferência.
Temos duas orientações: Caso social: toda decisão e tomada por um grupo de
trabalhadores definem o tratamento ao qual o paciente é submetido, (relação T?P).
Caso clínico: o paciente é ativo no tratamento, torna-se analisante, (relação T?P).
Lembre-se: o caso clínico não exclui o caso social.
Todos os elementos do coletivo – por exemplo, desde as disposições práticas que têm a
ver com as saídas, as altas, até as atividades - são investidos de uma qualidade
pedagógica - interpretativa que esvazia qualquer possibilidade do sujeito fazer as
seguintes perguntas: o que eu faço aqui? O que torna a minha vida insuportável? O que
posso fazer para encontrar uma solução? Essas seriam as modalidades preliminares de
uma elaboração do sintoma e do início da transferência.
No entanto, a outra orientação clínica mantém esse vazio do tempo clínico, que não
é um vazio de assistência, mas um vazio de saber, como preliminar à entrada não
obrigatória, no discurso do analista.
Em síntese, trata-se de não colocar a pergunta: - O que podemos fazer por ele?, mas
uma outra pergunta: O que ele vai fazer para sair daqui?
A partir da construção do caso, nosso terceiro ponto, pode-se explicitar como esse
tipo de clínica funciona: Esse termo construção foi citado por Freud, que o distingue
da interpretação.
Portanto, a interpretação é uma operação simbólica que visa extrair o real do gozo pela via
dos significantes, enquanto a construção não visa reintegrar os significantes perdidos.
Freud registra a presença do arqueólogo que deve reconstruir as partes do monumento
perdido. Mas, ao contrário,a construção deve restaurar a topologia de um furo, de um furo
originário, não de um furo da perda do significante, mais exatamente do furo da falta que
causa o desejo. Seria mais preciso dizer que o trabalho de construção consiste no
testemunho das diversas fases do trabalho do analisante.
Para fazer o primeiro tipo de clínica é suficiente o termo transferência. Para o segundo tipo
não se aceita, a priori, que haja sintomas; aliás, isto está no centro do trabalho preliminar.
De fato, o requisito mínimo do sintoma, que justifica o fato de alguém procurar um analista
é que o sujeito sofra que se abra para uma demanda. Mas, isso não é suficiente para um
analista.
Ele deve conseguir que esse sujeito que sofre passe da posição de bela alma, da
posição de vítima inocente, para a posição daquele que suspeita de uma
cumplicidade própria, mesmos sendo enigmática, no sintoma do qual ele sofre.
Somente partindo desse ponto haverá trabalho do sujeito. Essa passagem é fundamental.
É uma passagem que não pode ser provocada, que poderá ser explicitada somente se
estiver atento à construção.
Essa escolha de ter o analista como interlocutor é que vai ser o sentinela do fato de que o
sujeito leu o sintoma como sendo da ordem do enigma.
Mas há uma outra passagem para a construção. De fato, não é certo que essa passagem
seja anterior ao trabalho do sujeito. Há sujeitos que, para não trabalharem, conseguem
produzir uma cura do sintoma muito milagrosa. Esta é uma forma de resistência. Para
ilustrar essa passagem da construção não se deve confundir o trabalho da construção com
o trabalho da supervisão.
Porém, no caso da construção, não se tem diante de si um analista expert, mas um público
que compreende também um colega não-analista. Nesses termos, a construção do caso
não exige um sujeito suposto saber, como na supervisão.
Quando houve o ato. Não que exista um ato bom ou um ato mau, correto ou errado.
O ato é um ponto de não retorno; é, pois, sempre alguma coisa eficaz.
O êxito feliz de um ato é aquele através do qual o sujeito no ato consegue dizer bem.
Aprende a falar, se preferirem. É esse ato que se trata de construir.
Falar bem é uma coisa difícil de ser colhida. Para Freud, construir o caso era também
construir a teoria. Em outros termos, a construção de um caso é o discurso mesmo do
psicanalista, que parte sempre do particular.
E isso pode levar muito tempo. Se houve um trabalho de construção, se foi possível notar,
por exemplo, que o paciente fez o mesmo gesto por meses e meses, que um dia ele dá
um sorriso e não mais aquele gesto – é preciso registrar que houve uma mudança.
Por exemplo, um paciente que sempre chegou antes da hora, um dia chega atrasado; é
preciso notar que aquele foi um bom dia. Pode ser também, que um dia ele falte – é uma
mensagem; é importante construir isso.
Não é uma frase inteira, não se pode interpretá-la nem lhe dar um sentido; é
suficiente notar que aconteceu alguma coisa – esse paciente fez um ato.
Durante três meses, ele vinha todos dos dias e não era um ato; um dia não vem, aquilo é
um ato.
Não interessa saber porque ele não veio; o importante é notar que houve um ato, uma
mudança. E se nós fizermos a construção, se trabalharmos em grupo, quando ele voltar à
freqüência normal podermos fazê-lo notar que houve alguma coisa. No mínimo podemos
dizer: “Eu estou contente porque você veio”. Isso talvez o surpreenda. É uma boa coisa, se
ele se surpreende. A surpresa é o início de uma demanda. Esse paciente perguntará:
“esse operador enlouqueceu? O que ele quer de mim? O que estou fazendo aqui, se esse
operador ficou contente por eu não ter vindo?...” Assim várias perguntas são possíveis...
Depois de meses de passividade!
O operador estará pronto a fazer isso se, em vez de interpretar, ele construir.
Viganò apresenta um exemplo: num centro para jovens psicóticos um rapaz foge. Essa
instituição se situa na periferia de uma cidade. Ele vai ao centro da cidade. O grupo se
reúne e pensa sobre o que fazer. Decide-se, então que dois operadores o procurem, mas
não lhe digam nada e deixem onde estiver. Encontram-no passeando pela cidade e
oferecem-lhe um sorvete. Ele aceita. Depois, despedem-se dele dizendo um “até
amanhã”.Essa intervenção teve um grande efeito. Naturalmente, o rapaz retornou à
instituição no mesmo dia, passando a enxergar os operadores e a instituição de outra
maneira.
Não era mais um lugar de onde fugir. Teve de se perguntar: o que estaria fazendo
ali? Até então ele sabia porque estava ali: estava ali para fugir. A essa altura, a
certeza havia desaparecido. Começou, então, a trabalhar. Esse exemplo é para
mostrar que a construção acontece bem antes da interpretação.
A interpretação tem um outro lugar; não aquele da instituição. É o lugar onde o paciente
deseja, caso queira apresentar a sua demanda de análise.
A construção que foi feita por aquele grupo, que resolveu ir até a cidade e tomar aquela
atitude, foi um diagnóstico de discurso. Percebeu-se que a relação do sujeito com o Outro
estava presa à idéia de ter que fugir. Não é um diagnóstico do sujeito, mas é um
diagnóstico do discurso daquele momento. Não é um diagnóstico que afirma que ele é
neurótico, psicótico, etc. A construção serve para operar o deslocamento do sujeito dentro
do discurso. Quando aquele rapaz se pergunta sobre o que os operadores querem dele,
está dentro do discurso. Há, portanto, uma ligação entre ele e os operadores. Antes, o
sujeito não estava no discurso, o seu Outro era somente os muros da Instituição.
Essa construção é escandida em dois tempos: num primeiro momento, ela tem que
situar em qual discurso do sujeito se é colocado. Num segundo tempo, procura-se,
então produzir um projeto que tenha objetivo.
No primeiro momento, declara-se o seguinte: percebemos que não existimos para esse
rapaz; para ele só existem os muros. No segundo tempo, o projeto é: vamos até a cidade
procurá-lo e mostrar que nós existimos.
Há, portanto, uma escansão lógica do tempo, do ver para compreender, onde o
saber não precede a construção, mas se segue à construção.
Seria um saber que precede, o saber do mestre, que teria declarado: Esse rapaz é um
psicótico perigoso; por favor, corram e tragam-no de volta.
Esse tema da construção tem pelo menos dois aspectos: o primeiro considera os sujeitos
com os quais lidamos; o segundo é inerente ao tema das várias profissões que já foi
citado. Em relação ao primeiro, os sujeitos com os quais lidamos nos serviços, em sua
grande maioria, não tem condições de se representar dentro do próprio discurso; eles são
privados mesmo de uma palavra elementar. A palavra, para eles, serve somente para
designar as identificações imaginárias, sendo isso que constitui o seu mal-estar
fundamental. O problema, então, é:
Como os sujeitos, partindo de uma posição tão pouco autêntica, poderiam construir
uma relação na qual haja a implicação de uma representação?
É necessário reativar a relação do sujeito com o Outro, de tal forma que essa relação
possa se sustentar na realidade. Estamos, agora, dentro de um campo que não é
previsível a priori. Estamos, também, num tempo que precede o ato.
A decisão não é tomada pela maioria, mas se impõe a partir do saber que é extraído
do paciente.
Naturalmente isso requer um grande e longo exercício, mas requer, sobretudo, uma
transferência de trabalho entre os membros da equipe. Ou seja, a idéia de que seja um
bem, igual para todos, produzir a verdade do paciente.
Essa construção é escandida em dois tempos: no primeiro ela tem que situar em
qual discurso do sujeito a equipe é colocada. Num segundo tempo, procura-se,
então produzir um projeto que tenha objetivo.
A decisão não é tomada pela maioria, mas se impõe a partir do saber que é extraído
do paciente.
Ora, nem todas as instituições são equivalentes. E a prática feita por muitos é, então,
diferente segundo o funcionamento institucional.
Tomem, por exemplo, o funcionamento institucional da igreja ou do exército, assim como
analisado por Freud: o Um fundador dá coesão à massa. É o amor do cristo, repartindo
segundo a justiça distributiva para cada crente, que faz com que os cristãos possam se
sentir todos os irmãos. Da parte do Exército, é a posição particular, misto de ideais e de
delírios, de um César ou de um institucional em que os muitos estão unificados
verticalmente por indefinição ao Um, que é o mestre, e horizontalmente entre “todos
iguais”. Essa coesão interna comporta diretamente, como conseqüência, a rejeição, a
recusa, o afastamento do dissidente, daquele que pensa diferente do chefe, daquele que
não o ama o suficiente. Aos que estão for do ideal da instituição reserva-se um desprezo
total. E para aqueles que estão em uma instituição concorrente, é o ódio, senão a guerra.
Ora, o nosso trabalho feito por muitos não sobressai desse Um do Mestre.
Nós todos o sabemos. Mas talvez o saibamos mais por apego a uma teoria do que por
nosso funcionamento real.
O discurso do mestre, com seu bem e seu mal, é o discurso que se impõe de
maneira automática e ele tem uma tendência natural a dominar toda instituição.
Esse não é o nosso quadro de referência. O nosso nos é dado por Freud, via Lacan. Ou
melhor, por Lacan a partir da descoberta de Freud.
O trabalho feito por muitos tem seu fundamento em um outro discurso, o discurso
analítico, que é o avesso daquele do mestre. É um trabalho que se sustenta não no
Um do Mestre, mas na falta desse Um do Mestre.
A análise também é um trabalho feito por muitos mas esse “muitos” é um pouco
particular:
Com duas saídas habituais: ou bem a instituição se torna uma sala de espera para
analistas, uma concha vazia que deixa ao outro a verdadeira responsabilidade dos
cuidados, ou bem a instituição desenvolve uma aversão sempre mais tenaz à análise e
aos analistas.
Instituição: a articulação entre Um e o múltiplo e no trabalho feito por muitos não
sobressai Um do Mestre. O discurso do mestre é o discurso que se impõe de
maneira automática, normalmente é o que domina toda instituição. O trabalho feito
por muitos se fundamenta sobre o discurso analítico, que é o avesso do mestre.
Sustenta-se não no Um do Mestre, mas na falta desse Um do Mestre. Importante
destacar que o trabalho da Instituição numa pratica feita por muitos não é uma
análise.
É, então, possível um trabalho feito por muitos, que não esteja fundado sobre o Um
do Mestre, em que a única possibilidade é a multiplicação das análises em
desacordo e a despeito de toda instituição? Como conceber esse trabalho feito por
muitos? De onde buscará sua fonte?
Podemos dizer que esse trabalho feito por muitos é o efeito de um desejo do Outro. Mas
que o desejo do homem seja o desejo do Outro é um dado de estrutura. Estruturalmente o
desejo do homem é, como tal, enganchado ao desejo do Outro. É exatamente nesse ponto
que se desdobram nossa riqueza e nossa miséria humana. Nós todos sabemos que face
ao Outro, ao capricho do Outro, é nossa relação ao significante que vem em nosso
socorro, metamorfoseado o capricho do Outro em desejo do Outro. É o caso do neurótico,
que choraminga porque o desejo do Outro se revela sempre ser para ele um corpete
estreito demais para suas vontades, mas que também é feliz por ter esse corpete, que lhe
permite escapar da goela escancarada do Outro.
O desejo do analista está, precisamente, na origem desse trabalho feito por muitos.
Uma instituição edificada sobre esse modelo permanece fiel ao seu projeto não na
repetição do mesmo, mas na surpresa e na invenção de cada um.
Essas duas instâncias são tão diferentes que elas não são incompatíveis.
Mas para que este Um do vazio mantenha-se é preciso , além do esforço de cada
um, alguém para ser o guardião do vazio central, de encarná-lo.
Nem por isso mestre, nem mestre de saber, mas servidor dessa tarefa e fiador, a quem
cada um da equipe possa se referenciar, em seu trabalho com os outros, a esse ponto
central que chamo o Um do vazio. Relação essencial para cada um, porque é daí que o
trabalho feito por muitos se torna possível, na iniciativa de cada um e no respeito pelo
estilo do outro, outro que é o colega ou a criança ela mesma, verdadeiro mestre de
ensinamentos sobre o saber e sobre a estrutura do inconsciente. É a relação a esse Um
do vazio que desvela as relações dos efeitos imaginários, das rivalidades internas ou
externas ao grupo, entre os muitos que nós somos. Rivalidades que estão, geralmente, na
origem de um empobrecimento de nosso trabalho.
Creio que isso se inscreve na linha de pensamento de Lacan: a psicanálise deveria estar
em condições de ter uma saída no mundo social, uma saída política bem mais vasta que
aquela que conhecemos.
Dizer que há algo de novo nas psicoses é falar sobre o mal-estar. Há, no nosso mal-estar
na civilização, alguma coisa que nos leva a querer algo novo. Os significantes da tradição,
os saberes que existem até há pouco tempo nos deixam insatisfeitos. E este nosso apetite
de algo novo é um índice da nossa falta de crença. Esperamos por uma nova teoria que
poderia nos acalmar quanto à incerteza, assim como a ciência. Nosso gosto pelo novo é o
efeito da ciência sobre toda a nossa civilização. Mas, no campo da saúde mental, no
campo clínico, estamos, no entanto, bastante longe da ciência, da ciência física. O que
tanto perturba, então?
A ciência que perturba é a biologia, e ela será a ciência do século XXI. O que há de
particular na biologia é um funcionamento que difere do da física; ela não tem como o real
a mesma relação de certeza que tem a física. A biologia é inseparável das suas técnicas
de acompanhamento, e os biólogos sabem fazer mais coisas do que eles podem
sustentar. Quer seja a clonagem dos organismos, as reproduções assistidas, a extensão
das indicações medicamentosas, a extensão das indicações de cirurgia, todas essas
técnicas excedem a episteme, o saber pelo qual a biologia pode responder.
Este fato deixa a todos com nosso déficit de crença, com uma estabilização
precária. Deixa todos infelizes. Este é um dos efeitos da forclusão generalizada. Não
se acredita mais em nada, e além do mais, temos razão de não acreditar mais em
nada.
Até que ponto ele acredita nos sistemas de classificações clínicas que utiliza? Nesse
sentido, a questão “há algo de novo nas psicoses?” é uma questões sobre a crença nas
classificações. É preciso fazer uma pequena investigação sobre as crenças clínicas.
Ela, que tem cem anos de existência e que ainda traz em seu vocabulário tantos conceitos
do século XIX, não consegue fazer a sua história.
Se a psicanálise não consegue fazer a sua história é porque há muitas divergências
entre as correntes psicanalíticas, entre as orientações, pois não há acordo entre as
diversas escolas psicanalíticas quanto ao estatuto do inconsciente.
São as neurociências ou as logociências que vão, finalmente, nos fazer sair do século
XIX? Em torno do vocábulo logociências, que é inabitual, Jacques-Alain Miller reunia as
ciências da linguagem, a lógica e a abordagem dos sistemas linguajeiros em geral.
Distingui-los das neurociências é tanto mais necessário visto que atualmente a biologia se
apresenta sob forma de linguagem, de linguagem artificial, o que confunde as pessoas.
Fala-se de “linguagem” na biologia tanto quanto nas ciências humanas. Simplesmente,
trata-se de uma linguagem inteiramente formalizada, uma linguagem que não conhece o
equívoco e sim, o erro. O erro de reduplicação é muito desagradável, pois ele é a causa de
certo número de doenças.
Fala-se de vírus ou ainda do DNA de Microsoft que, penetrando em tudo, irão infectar
todas as máquinas que encontram pelo caminho, transformando-as em receptores de
internet, da geladeira à máquina de lavar.
Freud definiu inicialmente uma clínica num plano essencialmente Kraepeliniano, porém
simplificado. Kraepelin, contemporâneo estrito de Freud, era professor de psiquiatria em
Munique.
Ele organizou, à maneira alemã, a clínica da época, de modo sistemático, como fez o
idealismo alemão.
um caso de obsessão, um caso de histeria e um caso de fobia. O caso Dora, para histeria,
o homem dos ratos, para a obsessão e Hans, para fobia. Tudo isso terminou em 1909,
depois as coisas começaram a se complicar.
Freud publica sobre a psicose após quatro anos de apaixonadas discussões com Bleuler –
psiquiatra suíço progressista que queria fazer avançar os tratamentos psiquiátricos. A irmã
de Bleuler era esquizofrênica, ele era-lhe inteiramente devotado e tinha todas as razões
para fazer as coisas avançarem. Ele enviou seus dois chefes de clínica, Karl Abraham e
Carl Jung , à Viena para conversar com o vienense que havia encontrado um novo
método. E, a partir de tese de Jung, de 1907 a 1911, foram quatro anos de discussões
apaixonadas. Em 1911, Freud concluiu e recusou a idéia bleuleriana de apreender a
psicose através de uma dissociação fundamental. Ele continua querendo situá-lo pelo
delírio, pelo aspecto fundamental. Ele continua querendo situá-la pelo delírio, o delírio é
tomar as palavras pelas coisas.
seis meses para Dora, quatro meses para O pequeno Hans, um ano para O Homem dos
ratos.
Com O Homem dos lobos, alguma coisa não pára de insistir: quatro anos de análise
para a vida toda, na qual se revezarão um certo número de analistas.
Mesmo em seu leito de morte, quando era interrogado por uma jovem e charmosa
jornalista, ele conseguiu despertar-lhe o interesse contando, uma vez mais, todas as suas
análises, tudo o que fez, tudo o que pensou. Ele não cessará de interpretar a sua vida, até
o seu último suspiro. Sobre o diagnóstico do Homem dos lobos, já existe uma pequena
biblioteca que ganha, a cada dois anos, um novo livro.
Ele dará indicações clínicas, mas no que diz respeito aos casos, está encerrado.
Ele não pode mais orientar os seus alunos com a mesma segurança quanto ao
desenrolar-se do tratamento. O próprio Freud ultrapassou um limite e encontrou um
fenômeno clínico particular, que é a própria desorganização que a psicanálise
introduz nas classificações existentes, sem que ela mesma consiga estabelecer um
sistema nosográfico sólido. É isso que fez com que Lacan constatasse sempre que
o único sistema nosográfico sólido é o da psiquiatria clássica. Quanto à psicanálise,
ela se orienta, finalmente, sobre esses grandes casos particulares que se tornaram
os casos clássicos da formação dos psicanalistas.
Antes de morrer, Freud toma certo número de preocupações para evitar os desvios na
pratica da psicnalise. No Esboço de psicanálise, ele estabelece alguns interditos.
São medidas de prudência, mas, evidentemente, desde antes da sua morte, todos os
interditos são transgredidos uns após os outros.
Mas, logo depois, a partir de 1949, vem a publicação de tratamentos de adultos psicóticos.
Os alunos de Melanie Klein, psiquiatras corajosos, transgridem tranquilamente todos os
interditos relativos às psicoses. Outros se juntam aos kleinianos.
Chega , finalmente, e sobretudo, a prática com crianças, que dá aos que a praticam o
sentimento de terem descoberto uma mina de ouro. Longe dos fantasmas ajuizados do
pequeno Hans, descobrem-se crianças invadidas pela mais agudas manifestações da
pulsão de morte, por angústias psicóticas, por deformações fantasmáticas corporais que
dão ao imaginário um aspecto central.
Eles estão, ao mesmo tempo,no estado maníaco de euforia e com a sensação de perder,
cada vez mais, o fio do sintoma freudiano.
A obra de Lacan é uma intervenção sobre essa extensão, para devolver o sintoma
freudiano estruturado pelo inconsciente ao seu lugar. Ao mesmo tempo em que
Lacan destaca o que o sintoma tem de literal, aquilo que constitui o seu “envelope
formal” - como ele dirá - ele ressalta que o sintoma é um endereçamento ao Outro.
Desde o começo Lacan se desloca entre dois pólos, entre duas preocupações. Desde
1938, no seu texto A família, ele fala, no singular, da “grande neurose moderna”, neurose
que, aos poucos, substitui todas as outras vistas por Freud.
O sujeito psicótico se torna o caso particular de uma série de casos, o daqueles que não
podem fazer de outra maneira a não ser dispensando o pai. A questão vai, então, mais
além das ingenuidades sobre os borderlines ou casos limites. O problema consiste em
interrogar de forma conseqüente a evolução clínica que dá sempre mais importância à
clínica do narcisismo – o narcisismo individual do inclassificável- e ao legado freudiano das
grandes classificações Kraepelinianas.
Seus alunos nem sempre perceberam a oscilação dos dois pólos que avançavam ao
mesmo tempo. Por exemplo, os mal-entendidos sobre o pai atraíram para psicanálise
freudiana o público dos jesuítas que, até então, se interessavam somente por Jung. Mais
tarde, nos anos 70, quando Lacan começou a falar mal do pai, eles se afastaram. Eles não
viram a coisa chegar, pois Lacan foi muito prudente.
Ele sabia que, em uma civilização, quando se começa a tocar nos Nomes-do- pai,
não se é jamais perdoado.
Sócrates havia começado a tocar nos deuses e a interrogar as crenças; não o perdoaram.
Na idade média escolástica, quando os lógicos começaram a logificar os nomes de deus, a
coisa acabou mal para alguns deles. No mundo moderno não se acaba mais na fogueira:
abre-se um processo e isso termina em uma acusação de imoralismo. Aliás, circulam
biografias de Lacan cuja nota dominante é Lacan, o imoralista. Essa é a acusação que
querem lhe fazer.
Lacan sabia muito bem que isso ia lhe acontecer e evitou, então, falar dos Nomes-do-pai
antes de ter construído toda uma obra e toda uma Escola. Em 1964, quando começou seu
Seminário Les Noms-du-père, imediatamente ele viu o contexto e parou, dizendo que não
falaria mais disso. Simplesmente, como mostrou Jacques-Alain Miller em um brilhante
comentário sobre o seminário “inexistente”, Lacan retomou sistematicamente, a partir de
1970, tudo o que tinha a dizer sobre esse ponto.
E ele mostrou o que é uma clínica que funciona dispensando os Nomes-do-pai com
a condição de fazer uso deles. Ele construiu uma clínica à altura dos tempos do pós-
modernismo, à altura da descrença moderna, sem relativismo algum, centrada em
um real e, todavia, considerando essa descrença fundamental.
Embora Freud deixe escrito algumas práticas, que os analistas deveriam evitar, para
que não acontecessem desvios na psicanálise, antes mesmo de sua morte todos os
interditos são transgredidos uns após os outros. .A obra de Lacan é uma
intervenção sobre essa extensão, para devolver o sintoma freudiano estruturado
pelo inconsciente ao seu lugar. Lacan por um lado, conserva a distinção neurose-
psicose para interrogar o neurótico sobre a sua crença no pai, sobre o que significa
acreditar no pai, por outro, ele constitui a série de casos nos qual a identificação
não passa pelo Nome-do-pai. Ele construiu uma clínica à altura dos tempos do pós -
modernismo, à altura da descrença moderna.
A difusão dos medicamentos, a partir dos anos 60, a distribuição massiva, inicialmente da
clorpromazina, e em seguida da imipramina, prolongaram esse movimento de
desorganização. Esses primeiros antipsicóticos e antidepressivos deram lugar a outras
gerações de produtos que, no entanto, não apresentavam muita novidade.
As grandes categorias de ansiolíticos, antipsicóticos e antidepressivos foram
fixadas depois de um certo tempo, e é preciso um grande talento retórico da parte
do marketing dos grandes laboratórios para sustentar a exigência de novidades.
Seja como for, tudo isso permitiu que, nos anos 80, a psiquiatria se reintroduzisse na
medicina, o que foi inicialmente vivido como um encantamento, como o fim da vergonha
sobre a psiquiatria, que, com a dermatologia – o que era bastante conhecido – reunia os
médicos ruins. Contudo dez anos depois, a partir dos anos 90, um grande mal-estar
começou a se propagar.
É assim que, no próprio seio das linguagens clínicas, das práticas, níveis muito diferentes
se justapõem. A genética psiquiátrica não utiliza a mesma classificação clínica que a dos
professores universitários. Esses não falam a mesma língua que os epidemiólogos. A
epidemiologia européia e as epidemiologias mundiais têm dificuldades em entrar em
acordo, como testemunha a OMS- Organização Mundial de Saúde, cujas categorias não
são as mesmas que as do DSM.
O médico continua prescrevendo amplamente o prozac, já que lhe pedem. Ele se encontra
transbordado pela demanda.
O epistemólogo Ian Hacking, que se interessa pela epistemologia das ciências em geral,
serve-se das classificações psiquiátricas e da sua evoluções para mostrar o profundo
sentimento nominalista da nossa época, a descrença no realismo de estrutura. Em um livro
muito divertido, chamado Rewritting the soul (reescrevendo a alma), publicado em
Princeton há três anos, ele estuda a síndrome das personalidades múltiplas, entidade
considerada como novidade no DSM e reconhecida unicamente nos Estados Unidos e
mais em nenhum outro lugar. Essa entidade nasceu depois que a histeria foi expulsa de
todas as outras classificações, em parte sob a pressão dos movimentos feministas
americanos, que achavam que o termo histeria era uma injúria à feminilidade. A nova
categoria das personalidades múltiplas se implantou num movimento social derivado do
feminismo, o movimento de “reconquista das lembranças traumáticas”. O que vivemos foi
uma epidemia histérica contemporânea.
Da mesma forma, a categoria Child abuse (abuso de crianças) é uma categoria muito
fecunda clinicamente. No final do século XX, foi a partir do abuso de crianças que se
produziu saber, enquanto que durante todo o século XIX, foi a partir do parricídio, do
father abuse.
Vemos que atualmente ainda existem casos de parricídio, mas isso não incomoda mais
ninguém. Os assassinatos de pais, cometidos em série por certo número de adolescentes
psicóticos, não funcionam mais como produtores de saber.
Essa é uma categoria permite que se inclua na mesma categoria e nos programas de
tratamento pós-traumáticos toda uma série de acontecimentos sociais bastante diferentes,
não apenas todos os traumatismos de guerra como outrora, mas todos os traumatismos da
violência civil, o estupro, o terrorismo. E, sob a mesma entidade, chega-se a considerar
inclusive o holocausto, os desaparecidos da Argentina, etc., o que elimina toda dimensão
histórica possível, toda significação possível para o sujeito na esperança de redefinir uma
relação direta com o real do trauma. Na realidade, esse aumento do interesse pelo trauma
é baseado num movimento social maior, na angústia do nosso tempo, na angústia de um
sujeito cada vez menos protegido. O sujeito pós-histórico que tem cada vez menos o
welfare state para protegê-lo, cada vez menos segurança de emprego, cada vez menos de
segurança de alojamento no Outro, reconhece-se perfeitamente no estatuto de sujeito
traumatizado.
Com a nossa descrença moderna, nos encontramos nesse conflito entre nominalismo e
realismo.