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CADERNOS DE GR ADUAÇÃO: DIALOGANDO COM A PR Á XIS

LICENCIATUR A SEM FRONTEIR AS


Semiosferas em transformação

DEPARTAMENTO DE ESTÁGIOS E BOLSAS


CETREINA – SR-1 UERJ
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Reitor
Ruy Garcia Marques

Vice-reitora
Maria Georgina Muniz Washington

Sub-reitora de Graduação
Tania Maria de Castro Carvalho Netto

Sub-reitora de Pós-graduação e Pesquisa


Egberto Gaspar de Moura

Sub-reitora de Extensão e Cultura


Elaine Ferreira Torres

Diretora do Departamento de Estágios e Bolsas


Maria Isabel de Castro de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial
Bernardo Esteves
Erick Felinto
Glaucio Marafon (presidente)
Jane Russo
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
Italo Moriconi (membro honorário)
Ivo Barbieri (membro honorário)
Lucia Bastos (membro honorário)
CADERNOS DE GR ADUAÇÃO: DIALOGANDO COM A PR Á XIS

LICENCIATUR A SEM FRONTEIR AS


Semiosferas em transformação

Organização
Tania Maria de Castro de Carvalho Netto
Carmem Praxedes

DEPARTAMENTO DE ESTÁGIOS E BOLSAS


CETREINA – SR-1 UERJ

Rio de Janeiro
2016
Copyright  2016, Carmem Praxedes e Tania Maria de Castro Carvalho Netto.
A cópia para fins didáticos é permitida mediante citação às fontes.
CETREINA SR-1 UERJ
www.cetreina.uerj.br CONSELHO CONSULTIVO
Organização: Carmem Praxedes e Tania Maria de Castro Carvalho Netto
Assessoria Técnica: Adriana Carvalho Claudio Elias (UERJ)
Estagiários do Cetreina: Patrícia Quilelli, Romulo Tone, Celly Saba (UERJ)
Yago Gomes Tomé de Souza Darcília Marindir Pinto Simões (UERJ)
Capa: Fernando Alkmim Dirceu Pacheco (UERJ)
Edna Maria dos Santos (UERJ)
Colaboração do Instituto de Letras da UERJ: Eliete Jussara Nogueira (UNISO)
Revisão e normalização de textos: Flávio Barbosa (CEFIL) Maria Aparecida Cardoso Santos (UERJ)
Estagiário: Iuri Pavan Dias Maria Isabel de Castro de Souza (UERJ)
Revisão dos abstracts: Escritório Modelo de Tradução Ana Cristina César Maria Georgina Muniz Washington (UERJ)
Estagiárias: Julia de Moraes Roveri e Maira Moura Rafael Ferreira (UCE)
Supervisora: Tania Saliés Silene de Moraes Freire (UERJ)
Versão dos resumos para o italiano: Escritório Modelo de Tradução (Escritad - UERJ) Vania Boschetti (UNISO)
Alcebíades Martins Arêas
Estagiária: Erika Marques
Tradução de citação em espanhol: Beatriz Sanchez

EdUERJ
Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Rua São Francisco Xavier, 524 – Maracanã
CEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Tel./Fax.: 55 (21) 2334-0720 / 2334-0721
www.eduerj.uerj.br
eduerj@uerj.br
Editor Executivo Glaucio Marafon
Coordenadora Administrativa Elisete Cantuária
Coordenadora Editorial Silvia Nóbrega
Assistente Editorial Thiago Braz
Assistente de Produção Mauro Siqueira
Revisão Thiago Braz
Diagramação Emilio Biscardi

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
L698 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação /
organização Tania Maria de Castro Carvalho Netto,
Carmem Praxedes. - Rio de Janeiro: EdUERJ, 2016.
203 p. – (Cadernos de Graduação: dialogando com a práxis)

ISBN 978-85-7511-427-8
“Departamento de Estágios e Bolsas CETREINA SR1 UERJ”

1. Educação. I. Carvalho Netto, Tania. II. Praxedes, Carmem.


I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sub-reitoria de
Graduação. Departamento de Estágios e Bolsas. II. Série.

CDU 37
Os textos aqui publicados expressam a opinião de seus autores.

Apoio EdUERJ
Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada.
Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.
Cora Coralina
Agradecimentos
À professora Lená Medeiros de Menezes e a todos
aqueles que colaboraram com mais este sonho.

Dedicatória
Àqueles estudantes presentes em todos os tempos,
formas e modos em nossos corações.
Sumário

Apresentação.................................................................................................................................................. 11

Lançando mais um olhar às licenciaturas ............................................................................................ 13


Carmem Praxedes e Tania Maria de Castro Carvalho Netto

Repensar a semiosfera................................................................................................................................. 17
Franciscu Sedda

Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar................................... 27


Dirceu Pacheco

Por uma geografia adaptada ao seu meio: o uso da WebQuest......................................................... 51


Laleska Costa de Freitas e Nilton Abranches Júnior

Os aspectos sutis da violência................................................................................................................... 61


Romário de Araújo Mello

Expandindo os horizontes da licenciatura: experiências de formação do


núcleo de desenvolvimento linguístico.................................................................................................. 67
Marcello de Oliveira Pinto

Formação sem fronteiras: um olhar inovador acompanhado de desafios..................................... 75


Katia Ferreira Fraga

Olhares contemporâneos: o hipertexto do mundo............................................................................. 85


Erick Silva Bernardes

Reflexões sobre a função da universidade na formação docente..................................................... 93


Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu
Avaliação na educação infantil: conversas iniciais............................................................................. 103
Silvia Cavalcante Lapa Lobo e Eliete Jussara Nogueira

A formação de professores de idiomas na era pós-método – a perspectiva dos


problemas de ensino.................................................................................................................................. 113
Rômulo Francisco de Souza

Ensino de língua portuguesa em exame............................................................................................... 127


Magda Bahia Schlee

Práticas didático-pedagógicas para formação inicial de alunos da


licenciatura francês/português da USP: desenvolvimento de competências
interculturais e utilização de tecnologias no ensino de línguas estrangeiras............................... 137
Heloisa Albuquerque-Costa

Impressões e transformações de uma aluna no processo de iniciação científica........................ 149


Ilduara Silveira dos Santos

O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e


reflexões nos cursos de licenciatura....................................................................................................... 155
Daisy Lucia Gomes de Oliveira

O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões...................... 175


Lúcia Deborah Ramos de Araujo

Interações em sala de aula: espaços de testagem ou de ensino-aprendizagem?.......................... 189


Fernanda Ortale

Licenciaturas: caminhos... soluções?..................................................................................................... 201


Carmem Praxedes e Tania Maria de Castro Carvalho Netto
APRESENTAÇÃO

Os Cadernos de Graduação: dialogando com a práxis, em seu primeiro número


sob a temática Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação, trazem à dis-
cussão questões inerentes ao mundo do trabalho, do ensino e da aprendizagem, vistos
como práticas continuadas e de amplo interesse social. Sua produção e estrutura partiram
da observação da realidade universitária com um foco especial nas licenciaturas.
Sabemos que dentre todas as urgências que o Brasil tem duas delas são molas
propulsoras para o desenvolvimento do bem-estar social de todos os cidadãos brasilei-
ros, da primeira infância à terceira idade; são elas a educação e a saúde; a primeira por
propiciar e conduzir à compreensão ampla dos fatos, seres, coisas e objetos do mundo;
a segunda por possibilitar a preservação da integridade física e fisiológica, de modo a
viabilizar a máxima mens sana in corpore sano. Por isso, entendemos que ao por à mesa
a discussão sobre a formação de professores, incluindo todos os seus atores, damos
início à revitalização das licenciaturas na UERJ. Com essa visão, propusemos o tema
Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação, por entender que não há
fronteiras para o ensino e a aprendizagem, cônscios de que se aprende e se ensina – sim,
todos nós somos professores e aprendizes de tantas formas e por toda a vida. Quanto
às semiosferas em transformação, fomos a Lotman (1985) revisitar o termo, no âmbito
dos Cadernos, muito bem representado pelo Sardo Franciscu Sedda, no capítulo Re-
pensar a semiosfera, destacando aqui o fato de ser ela o espaço do sentido e de esse exigir
relação, pois o que é a vida do professor-educador senão o compreender da necessidade
de se estabelecer múltiplas relações com todos os atores do processo educacional, de
que toda a sociedade participa? Nesse sentido, os Cadernos trazem em seu primeiro nú-
mero textos que descortinam as práticas do cotidiano escolar e universitário inerentes às
suas estruturas de poder, aos seus meios e instrumentos de avaliação, ora muito claros
para todos nele envolvidos, ora nem tanto...
Em uma profusão de sinestesias, poderemos perceber os sabores e dissabores,
os sentidos e os meandros de processos que são tão complexos quanto a própria vida
12 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

humana, tão orgânica e tão inquieta quanto os organismos que habitam as galáxias.
E, assim, movidos pela emoção e pela paixão é que todos nós somos aprendizes e
professores, não apenas no espaço delimitado da sala de aula, mas também num con-
tinuum de nossas existências.
Sem a intenção de nos estendermos muito, agradecemos a todos os autores pela
confiança que nos foi depositada e conclamamos a comunidade a nos enviar mais tex-
tos de estudantes, técnicos, docentes e demais envolvidos, de alguma forma, no mundo
da escola, da universidade e do trabalho. Não esperamos somente textos acadêmicos
produtos de pesquisas, embora esses sejam sempre bem-vindos, mas também depoi-
mentos oriundos da experiência e dos relacionamentos com todos os que se envolvem
ou se envolveram com o ensino e aprendizagem; afinal, a semiosfera exige relações...

Tania Maria de Castro de Carvalho Netto


Carmem Praxedes
Lançando mais um olhar às licenciaturas

Carmem Praxedes (UERJ)


Tania Maria de Castro Carvalho Netto (UERJ)

“O conhecimento só é bom se nos faz melhores”. Essa frase, atribuída a Sócrates,


quando articulada à palavra universidade estabelece uma tensão dialética, cujos termos
contrários conhecimento X o ser-melhor podem e devem coexistir como meta da Univer-
sidade enquanto instituição de ofício.
Em suas origens medievais, a universidade vinculava-se à cidade entorno da qual
se organizava o trabalho: "o surgimento dos ofícios, comerciais ou artesanais; a vin-
culação profissional tornava-se um dos dados essenciais da consciência de si mesmo"
(Verger, 1990, p. 27).
Conhecimento e consciência são palavras tão próximas a ponto de uma poder ser
definida pela outra, muito embora tanto uma quanto a outra exista independentemen-
te da universidade, que, enquanto instituição social, necessita constantemente buscar
caminhos – os mais diferenciados – para provocar os olhares aos conhecimentos em
sua variedade e, com isso, fazer efervescer as consciências. Todas elas em sua máxima
diferença de humanistas, cientistas ou tecnologistas dos grupos mais típicos do colégio,
acadêmico ou vocacional (Teixeira, 1998, p. 54).
A universidade, vista ao longo da História, se refaz saindo da clausura para se
abrir a todos os cidadãos enquanto membros ativos em seus espaços. Atualmente, ela
não é apenas dos iluminados, aristocratas ou clérigos. Ela é de todos e para todos, ou
seja, faz-se necessária, por se entender sincronizada e atualizada com e pela sociedade,
sem medo de ser rotulada de utópica, mas se fazendo real no dia a dia, através das prá-
ticas daqueles que ousam sonhar e concretizar.
No entanto, cidadãos sonhadores e concretizadores, capazes de buscar caminhos
para por em prática os seus sonhos, considerados utópicos pela tradição universitária,
14 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

ainda se debatem e embatem na construção dessa universidade. À guisa de exemplo,


destacamos as variadas disfunções burocráticas que dificultam, e muito, o avanço da-
queles que se preocupam com o coletivo. Assim, a universidade se inscreve na tensão
entre a transformação para o bem-estar social e a manutenção do status quo de alguns.
Entretanto, a universidade é uma instituição complexa com forte vínculo polí-
tico e social, cuja tradição muito se manteve, nisso perdendo apenas para a Igreja ao
longo da História. Para mudá-la, a espontaneidade pode se associar ao planejamento,
bem como às iniciativas que visem à informação de docentes e discentes para a difusão
de saberes convergentes às práticas de estágio e trabalho, assim como de seus correlatos.
Diante dessa estrutura complexa nas relações que engendra, a universidade é
desafiada a se renovar, não só na sua edificação, mas também em suas práticas mais
comuns, como as de ensino, estágios e nas relações humanas. Se outrora apenas poucos
privilegiados podiam fazer os tours europeus pela França e Itália, atualmente, projetos
como Sócrates, Erasmus Mundus, Leonardo, Comenius, entre tantos outros, viabilizam
a circulação de estudantes secundaristas e universitários a fim de estagiarem em escolas,
centros de estudos e universidades do mundo todo. O que era inicialmente um proje-
to político de criação de uma elite dirigente europeia, transforma-se, paulatinamente,
numa romaria de integração mundial, preconizada por jovens, que em detrimento de
uma bandeira de partido, levantam bandeiras de vida e bem-estar para todos. Esses
jovens observadores da realidade, também através de monitores e celulares, não são
alienados, muito pelo contrário, eles observam a realidade em comunidades cujo al-
cance é global, sabedores de que não existe apenas uma realidade, mas diversas faces de
um mesmo ser, coisa ou objeto que é percebido diferentemente por cada um de nós.
Tudo é múltiplo em sua unidade, tudo é complexo em sua simplicidade. Com essa
visão, não nos é mais permitido – eticamente – compreender multiculturalismo como
um amontoado de culturas em contato, que não se permitem retroalimentar, ou seja,
aproximar-se da cultura do outro não é submeter-se sem reflexão àquilo que o outro
entende como praticável. Da mesma sorte, multilinguismo não é o conhecimento de
um punhado de línguas de forma mecânica, mas a consciência de que as línguas tam-
bém dialogam entre si e estão num constante processo de transformação e mudança.
Por fim, política inclusiva não é apenas permitir o acesso do outro por ele ser diferente,
mas a compreensão de que a diferença é uma condição de todos nós por fazermos parte
de um processo de evolução que prevê diversos estágios, que não são em sua totalidade
necessariamente confortáveis. Isto é, se olharmos para a nossa própria história, enquan-
to seres humanos, poderemos compreender que as diferenças fazem parte da nossa vida.
O fato é que enquanto nômades, por natureza, estamos (re)construindo cami-
nhos, roteiros e instrumentos mais rápidos, mais econômicos e mais precisos para que
Lançando mais um olhar às licenciaturas 15

possamos buscar o nosso autoconhecimento, através do reconhecimento de tantos ou-


tros da nossa e de muitas outras espécies.
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro possui atualmente 29.413 estudan-
tes de graduação,1 40 cursos de graduação, dos quais 15 têm licenciaturas,2 totalizando
34 habilitações nessa modalidade e ainda 1 Instituto de Aplicação – o CAP UERJ.
Diante desse contingente de jovens, seus sonhos, anseios e desafios a Sub-reitoria de
Graduação da UERJ – SR-1 – tem investido na criação de veículos de informação e
comunicação para melhor e mais rapidamente alcançar e envolver os corpos docentes
e discentes. O Laboratório de Tecnologias de Informação e Comunicação – Latic, a
Revista Eletrônica do Vestibular – DSEA, os vídeos das Mostras de Estágio – CETREI-
NA são exemplos de realizações consolidadas que têm desenvolvido, com excelência, as
metas as quais se propuseram.
Movido por essa sinergia, a SR-1/ CETREINA – UERJ se propõe a organizar,
anualmente, um e-book – Os Cadernos de Graduação – tendo em vista suscitar a dis-
cussão sobre assuntos vinculados ao cotidiano da universidade, especialmente aqueles
que lancem o olhar para as práticas de estágio, tal qual suas possibilidades e realizações
no mundo contemporâneo, considerando os seus fatores históricos determinantes, as
suas adequações e autenticidades, o compromisso da universidade com a nação e os
seus conflitos sociais, a inclusão de um número crescente de cidadãos e a preocupação
com a saúde mental e física dos estudantes.
As publicações institucionais caracterizadas como imagens de políticas gestoras
refletem o quanto os dirigentes pretendem interagir com a população universitária.
Atualmente, diante da adesão das instituições de ensino superior – IES – às políticas
inclusivas ampliou-se, por sua vez, a urgência em disponibilizar espaços variados que
possam aproximar os gestores da comunidade universitária para o bom andamento do
serviço público de qualidade.
Para tanto, um e-book institucional destacará questões inerentes ao cotidiano
universitário por diversos ângulos, de modo que várias visões sobre um mesmo objeto
sejam postas em discussão de forma dinâmica e passível de retorno dos autores, assim
como o que é feito com a Revista do Vestibular da UERJ. Contudo, com o foco dire-
to no mundo do estágio e do trabalho e nas diversas significações que a universidade
possa ter, nesse contexto, e no das relações humanas. Nesse sentido, enfatizamos aqui

1
Fonte: Data UERJ, 2015, p. 65.

Disponível em: <www2.datauerj.uerj.br/pdf/DATAUERJ_2015.pdf>
2
Instituto de Artes (1), Educação (4), Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (3), Faculdade de
Formação de Professores (7), Instituto de Física (1), Instituto de Biologia (1), Instituto de Educação Física
(1), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (3), Instituto de Geografia (1), Instituto de Matemática e
Estatística (1), Instituto de Letras (9), Instituto de Química (1) e Instituto de Psicologia (1).
16 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

o pensamento de Darcy Ribeiro (1969), segundo o qual a web nos permite não só a
formalização do processo de ensino e aprendizagem, como também a viabilização de
veículos de reflexão desses e dos demais processos.

Referências

RIBEIRO, Darcy. A Universidade Necessária. São Paulo: Paz e Terra, 1969.


TEIXEIRA, Anísio. A Universidade de Ontem e de Hoje. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
VERGER, Jacques. As Universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990.

Biografias

Carmem Praxedes é professora associada do Instituto de Letras da UERJ, pós-


-doutora em Letras pela FFLCH, da USP (2012) e doutora em Linguística – Semiótica
e Linguística Geral – também pela USP (2002). Em 35 anos de docência, desses 25 de
UERJ, dedicou-se à educação infantil, ao ensino fundamental, à educação a distância,
ao ensino de graduação e pós-graduação (lato sensu), à pesquisa e à gestão universitária.
e-mail: clppraxedes@gmail.com

Tania Carvalho Netto é professora associada da Faculdade de Educação da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrado em Educação pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro e doutorado em sociologia pela Universidade de São Paulo.
Atualmente é diretora do Departamento de Estágios e Bolsas/ CETREINA/ UERJ.
e-mail: tania_cnt@yahoo.com.br
Repensar a semiosfera1

Franciscu Sedda
(Universidade de Roma
“Tor Vergata”)

Nunca sozinhos

A nossa realidade cultural parece uma contínua proliferação de semiosferas den-


tro de uma única semiosfera. Ou, em termos mais prosaicos e filosóficos, uma contínua
proliferação de mundos no mundo. Contudo, o que é exatamente uma semiosfera?
Retomando Lotman, o criador do termo e do conceito, a semiosfera pode de-
finir-se simplesmente como o espaço do sentido. Mais detalhadamente, a semiosfera
é considerada como o continuum semiótico no interior do qual a “vida do sentido” se
faz possível. A ideia, desenvolvida em 1984, é a de que não é possível existir um signo
ou uma linguagem que funcionem sozinhos ou em isolamento (ver Lotman, 1985). O
sentido exige relação. O significado é sempre constituído e definido em relação à... E
isso significa que cada elemento da semiose, naquilo que nos pareça concluído em si
mesmo, é devedor pela própria existência do seu ser por parte de junções mais amplas.
Ainda mais profundamente, ele existe somente enquanto terminal de uma relação.
Naquilo que esta não possa ser acolhida, conceitualizada ou imediatamente percebida.
Assim, um signo adquire significado somente como parte de um sistema de signos
mais amplo. E uma linguagem funciona somente em correlação a outras linguagens.2

1
Tradução de Carmem Praxedes do original em italiano Ripensare la semiosfera.
2
Veja-se aqui em seguida a primeira Tese para o estudo semiótico da cultura escrita por Lotman e pelos outros
estudiosos da Escola de Tartu: “No estudo da cultura, um ponto de atualização é o pressuposto de que toda
a atividade do homem voltada a elaborar, trocar e conservar informação possui certa unidade. Os singulares
sistemas sígnicos, mesmo pressupondo estruturas com uma organização imanente, funcionando somente
18 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

A semiosfera é então o lugar em que os signos podem emergir reenviando-se uns aos
outros; as linguagens se fazem eficazes traduzindo-se reciprocamente, o sentido – mais
geralmente – pode ser criado, trocado e transformado.
A semiosfera é um pouco como o mar para as correntes marítimas e para os pei-
xes que se movem através delas. As duas últimas não poderiam existir sem o primeiro.
E, todavia, o conjunto não seria aquilo que é sem as partes que o compõem. Difícil
pensar um mar sem correntes e sem peixes. As partes da semiosfera são então como os
espelhos, alguns “mágicos”, caberia dizer, por meio dos quais capturamos uma imagem
do conjunto. Mais semioticamente se deveria dizer que as partes são ao mesmo tempo
uma tradução parcial e uma hipótese performativa de uma (determinada) totalidade
dinâmica.3 Somente tendo em mente esse jogo podemos experimentar tornar a ideia de
semiosfera em algo interessante e frutuoso, pois ela é um mecanismo complexo. Mas,
sobretudo, é um conjunto que implica, para o seu funcionamento, diversos paradoxos
estruturais.

Matrizes relacionais4

Querendo aprofundar o estudo dos mecanismos estruturais da semiosfera, devemos


relevar que essa, enquanto espaço “interno”, não pode existir sem a simultânea presença
de um espaço “externo”.5 No seu aspecto mais geral e abstrato, a constituição de uma
semiosfera se baseia na relação entre um espaço semiótico e um espaço extrassemiótico.6
Esta relação é mediada pela presença de uma fronteira que simultaneamente une e
divide os dois espaços. De fato Lotman pensa na semiosfera como uma linguagem, uma
forma semiótica, que filtra e regula a tradução do extrassemiótico em alguma coisa de
significativo do ponto de vista do espaço interno, da linguagem de chegada. O espaço
externo, desse ponto de vista, aparece então como uma matéria amorfa que espera por
ser plasmada e articulada pela linguagem, um pouco como o que acontece nas visões

em união, apoiando-se um no outro. Nenhum sistema sígnico possui um mecanismo que lhe permita fun-
cionar isoladamente” (Ivanov et al. 1973; agora In Lotman, 2006, p. 107).
3
Nesse sentido, uma semiosfera, ou ainda melhor, uma determinada formação semiótica age como a
forma signo indexical de Silverstein, que ao mesmo tempo pressupõe e cria o seu contexto de ocorrência
(Silverstein, 1993, p. 36).
4
NT: Agradecemos a sempre valiosa contribuição de Aurora Fornoni Bernadini, ao nos clarear os bosques da
tradução.
5
Pode ser útil reinvocar aqui uma das definições de cultura dada por James Clifford (1980, p. 220): a totality
in process, composed and recomposed in changing external relations. Ver também Clifford (1988).
6
A oposição entre “cultura” e “natureza” pode ser vista como uma das mais comuns objetivações desse tipo de
relação. A dinâmica entre espaço semiótico e espaço extrassemiótico se encontra, todavia, também na base
de outras grandes categorizações do mundo social. Lotman, por exemplo, faz habitualmente referências à
oposição entre “civil” e “bárbaro”.
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 19

propostas por Saussure (1922) e Hjelmslev (1961). Todavia, aprofundando o ponto de


vista da semiótica da cultura, deve-se notar que esta matéria amorfa não é simplesmente
externa, mas circunda e até mesmo passa constantemente através da forma semiótica.
Em tal sentido, retomando a metáfora marinha, podemos conceber a semiosfera como
uma rede jogada na matéria: capaz de se impregnar da matéria e dela capturar somente
alguns elementos, somente algumas configurações emergentes. Tal fato significa que
estes elementos e configurações que a nossa rede procura trazer à tona, não deixam, de
qualquer modo, de fazer parte da matéria, sendo eles nela imersos. O fundo (ou o pano
de fundo) instável e energético pressiona as bordas da forma que é sobreposta ao próprio
fundo, não se dissolvendo no momento em que a matéria se transforma em substância
graças à forma.
Ainda mais radicalmente, Lotman e os outros estudiosos russos de semiótica da
cultura sugerirão que é a mesma semiosfera que produz o seu caos interno, a sua ine-
vitável irregularidade. Em outras palavras, cada semiosfera teria a sua peculiar forma
de caos. Desenvolvendo essa ideia poderíamos dizer que não somente cada semiosfera,
mas certamente cada formação semiótica7 contém e produz caos, ou melhor, a sua es-
pecífica forma dele.
Oportuno como um discurso oral que consegue produzir sentido enquanto é
cheio de redundâncias, incongruências, contradições, desvios, erros, vazios. Estenden-
do o valor desse exemplo devemos então reforçar que cada semiosfera, cada formação
semiótica, produz simultaneamente sentido e não sentido através de um complexo
articular-se de formas de ordem e de caos.

A necessidade do outro

Chegamos aqui a um segundo ponto. Como notamos anteriormente, também o


mais simples mecanismo relacional implica uma ideia dinâmica da cultura e das cultu-
ras. Essa visão traz consigo múltiplas consequências. A primeira é aquela que definimos
como espaço “externo”, o lado de fora, geralmente concebido como lugar do caos e da
desordem, poderia ser, e geralmente é, o espaço de outra semiótica, de outra linguagem,
de outra semiosfera. Somente que não é percebido ou reconhecido enquanto tal.
Essa falta de reconhecimento pode ser devida à ignorância ou à dominância, cabe
dizer o que pode envolver relações de saber e de poder. Além disso, em circunstâncias nor-
mais, o externo é simplesmente reconhecido como o espaço do outro o da alteridade. Um
pouco como quando reconhecemos que alguém atrás de nós na estrada ou em um local

7
Para uma conceptualização das formações semióticas enquanto conceito sintético dos mais comuns objetos
semióticos “signo”, “texto” e “discurso” veja-se Sedda (2015).
20 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

está falando outra língua, mas não sabemos dizer nem de qual língua se trata, nem qual
é o conteúdo do que se está falando. Ou ainda, como se fôssemos colocados diante a uma
das fórmulas matemáticas de que reconheceremos a sua essência “fórmulas matemáticas”,
mas sem delas adivinhar minimamente nem o sentido nem ao menos o emprego.
Querendo experimentar construir uma tipologia da relação com a alteridade, po-
deríamos dizer que o espaço externo assume diversas formas. Esse pode ser o espaço da
não cultura: cabe dizer, o lugar de uma ausência de “valores”, o que semioticamente sig-
nifica um espaço privado de diferenças articuladas, até mesmo de forma. Em segundo
lugar pode ser considerado como espaço de negação da cultura, isto é, de uma cultura
que nega e ameaça os “nossos” valores, o nosso sistema de diferenças. Enfim, o terceiro
lugar, pode ser o espaço de outra cultura com valores diferentes, mas que poderiam ser
considerados e percebidos como similares ou complementares aos nossos.8
Traduzindo essa tipologia cultural em uma de postura política, poderíamos dizer
que essa leva a três grandes tendências: expansionismo (ordem que se projeta em dire-
ção ao caos); protecionismo (ordem que se defende de uma outra que a nega); aliança,
diálogo ou indiferença (entre ordens diversas).
Na realidade cultural essas tendências se fazem menos nítidas, tornam-se cícli-
cas, sobrepõem-se, pluralizam-se, às vezes até mesmo se contradizem ou se chocam. O
protecionismo pode se tornar defesa do – presumível – caos incipiente, como acontece
com muitos Estados Europeus diante do êxodo de imigrantes, e o expansionismo pode
ser uma voluntária exportação do caos, por exemplo, na forma do “medo terrorista”
que mina a certeza da vida cotidiana. A mesma percepção da alteridade pode variar e
de fato o faz – enchendo-se de um valor atrativo ou repulsivo – estratificando-se no
interior da semiosfera. Além disso, segundo Lotman, cada semiosfera cria no seu inte-
rior uma imagem do outro (dos seus muitos outros). Essa presença do externo dentro
do espaço interno é assim necessária e fundamental que, mesmo se não há um externo
por traduzir, a semiosfera é levada a criá-lo, a inventar o seu próprio outro. Em outros

8
Estamos evidentemente desfrutando as relações lógicas elaboradas por Greimas (1983) e Greimas e Cour-
tés (1979). Faça-se atenção ao fato desta descrição parecer implicar uma devida assiologização positiva
do espaço interno e uma negativa do espaço externo. Isso não é de todo devido. O mecanismo relacional
não é ainda semanticamente marcado, segundo a categoria euforia/disforia (e poderia ainda recair no seu
conjunto no espaço da aforia). Por exemplo, pode-se pensar em cada vez que se diz: “Aquele sim é um país
civilizado, onde tudo é organizado e o povo é honesto”. De fato, coloca-se aqui o positivo (e também certa
ideia de “ordem”) no espaço exterior em respeito ao próprio espaço. Ou em caso contrário: “Em outros
países são livres de verdade, cada um vive como acredita ser melhor, não como aqui onde estamos como
sob uma ditadura e todos devem se conformar”. Mais em geral se considera que o externo pode também
ser interno àquela que a certo nível parece ser uma única semiosfera: uma coletividade diversa, um estilo de
vida diverso e um lugar diverso podem aparecer como elemento de alteridade – de ameaça, regeneração ou
em uma alternativa mais neutra – respeito àquilo que a esse ponto aparece como o código dominante em
uma dada semiosfera.
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 21

termos, dentro de um dado sistema cultural existe sempre a posição do outro. Os casos
do encontro cultural, por exemplo, os encontros coloniais, demonstram que a chegada
do outro foi geralmente gerida colocando esta alteridade dentro da posição que lhe era
já reservada dentro de alguma “cosmologia local”.9

Fronteiras e espaços

O terceiro ponto a se levar em consideração e o fato de a fronteira ser móvel e


instável.10 Em primeiro lugar porque o posicionamento da fronteira depende do ponto
de vista do observador. Então, a diferentes observadores, postos no interior de diferentes
semiosferas, a mesma fronteira aparecerá naquele lugar posicionada em modos diferen-
tes. Em segundo lugar porque o espaço da fronteira, como o dito anteriormente, é o da
tradução entre interno e externo. Isso significa que a fronteira é tudo, menos estática.
Aliás, esse é o lugar do mais fraco nível de estruturalidade e de um mais alto nível de
dinamismo. Em terceiro lugar, porque a fronteira não é necessariamente uma linha, mas
é muito habitualmente um verdadeiro espaço: um “terceiro espaço”,11 não só no sentido
de que é espaço entre os demais, mas também no sentido do que ela é capaz de produzir
a sua própria personalidade semiótica, com as suas regras e os seus valores. O fenômeno
linguístico creolo, cabe dizer das assim ditas línguas de contato, é geralmente utilizado
para representar o resultado do encontro entre duas formas semióticas que, em longa dis-
tância, tendem a gerar uma nova linguagem. O que geralmente ocorre por meio de um
processo de hibridização e sincretismo – inicialmente percebido como empobrecimento,
exemplificado por línguas pidgin – das duas linguagens de partida.12

Um dispositivo glocal

O quarto ponto é que a semiosfera é um dispositivo glocal.13 Uma semiosfera se revela


sempre como parte de uma semiosfera “maior” ou como um conjunto de semiosferas
“menores” articuladas coletivamente. Pense-se na assim dita cultura humana: ela pode
ser vista não apenas como um conjunto de culturas espacial e informativamente mais

9
Ver, por exemplo, Sahlins (1994, 2000); West (2007). Um clássico na matéria é Todorov (1982).
10
Para algumas importantes reflexões epistemológicas e semióticas sobre as fronteiras, ver Tagliagambe (1997)
e Hammad (2004).
11
Bhabha (1994).
12
Sobre o creolo e a creolização veja-se Bernabé et al. (1989), Glissant (1996). Sobre os creolos e os pidgins
do ponto de vista semiótico, veja-se Fabbri (2000).
13
Sobre o glocal e a glocalização Robertson (1995), Robertson, White (2004). Para um ponto de vista semi-
ótico sobre esses conceitos, Sedda (2004, 2012, 2014).
22 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

limitadas, mas também, segundo Lotman, como um texto que flutua dentro de uma
semiosfera maior, de que não se conhece a linguagem.
Pense-se à exploração desse paradoxo no imaginário midiático – do filme Matrix
à série de TV Fringe – mas também o modo em que o ponto de vista pan-humano
é constantemente relativizado e localizado dentro de diversos discursos: sejam esses
aqueles religiosos que olham intensamente a transcendência, sejam aqueles das ciências
que fazem da terra e da humanidade somente uma específica manifestação de leis do
cosmo e da natureza.
Agora, para falar metaforicamente da semiosfera, devemos notar que as
semiosferas não são postas uma dentro da outra como algumas bonecas russas, as
matrioska. À produção do assim chamado isomorfismo estrutural, cabe dizer de nexos e
configurações estruturais homogêneos que se reverberam de nível em nível, é questão
de poder: isso depende da capacidade de reproduzir o mesmo modelo semiótico –
uma configuração de relações sobre níveis hierárquicos diferentes. E, simultaneamente,
sobre a possibilidade de confirmar constantemente essa hierarquia específica com
os seus níveis e metaníveis. Todavia, a verdade é que as semiosferas se cruzam, ao
menos em algum nível, produzindo tensões conflituosas14. Os conflitos de fidelidade
que cada pessoa vive constantemente podem ser o mais imediato testemunho: como
mensurar, por exemplo, o próprio pertencimento à comunidade nacional e o próprio
pacifismo se a mesma comunidade decide entrar em guerra? Como escolher quando
o amor por uma pessoa lhe faz lutar, hipoteticamente, à lealdade que devemos a um
grupo social (ou mais banalmente ao nosso time de futebol!)? Aqueles que poderiam
semioticamente definir como conflitos de destinadores, ou seja, entre autoridades que
subentendem a nossa vida e aos valores que nos parecem necessários e justo perseguir,
exemplificando na experiência da vida cotidiana o potencial colossal das hierarquias
que regem uma semiosfera. Pense-se, mais abstratamente, no caso da convivência
de modelos de cidadania definidos pelas políticas do Estado nacional e aqueles que
emergem das comunidades locais e das suas práticas. Ou às tensões que se aprisionam
quando os valores e as práticas seculares propostas pelo Estado convergirão com os
religiosos considerados universais e, por sua vez, traduzidos dentro dos mundos da vida
local. Ou ainda quando diferentes pontos de vista ideológicos disputam a definição
de um “fato” ou “evento” particular. Ou, enfim, quando a linguagem oficial de uma
específica semiosfera se encontra circundada e desafiada por outras linguagens, que
entram naquela semiosfera pelo exterior, as que nela já estavam presentes a um nível
hierárquico inferior e a certo ponto reemergem e assumem dignidade nova.
À luz desses raciocínios não nos surpreende o que disse Lotman:

14
Sobre esse assunto, ver as ideias de disjunção e de produção de localidade In Appadurai (1996).
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 23

[…] na realidade da semiosfera as hierarquias das linguagens e dos textos são menos
habituais: elas interagem como se se encontrassem em um único nível. Os textos pare-
cem imersos em linguagens a eles não correlatos e podem faltar os códigos capazes de
decodificá-los (Lotman, 1985, pp. 63-64).

Tradução e autoconsciência

Todavia, uma grande parte do trabalho social é dedicada exatamente à criação de


metaformações-metatextos ou metalinguagens15 – como uma constituição nacional ou
uma língua padrão.16 Esses não apenas reafirmam a presença de uma hierarquia, mas
oferecem também um espaço semiótico comum para a coletividade. Esse espaço pode ser
visto como um terreno de tradução que permite a comunicação, a autoconstituição e
o reconhecimento coletivo, mas também, ao mesmo tempo, uma arena conflitual, um
espaço onde se torna possível compartilhar um conflito, ou ainda melhor produzir con-
flitos compartilhados.
No mais alto metanível esse movimento de unificação assume a forma de auto-
consciência. Do ponto de vista semiótico cada semiosfera tende em direção à autocons-
ciência. É perceptível que esse não é um momento de autotransparência da totalidade
em direção a si mesma, no entanto, mais facilmente, uma metadescrição (hipotetica-
mente) compartilhada pelo coletivo:

Para colocar em ato a sua função social, [a cultura] deve intervir como uma estrutura
subordinada a princípios construtivos unitários. Essa unidade se transforma no modo
que segue: em uma determinada etapa do seu desenvolvimento chega, para a cultura,
o momento de autoconsciência: ela cria o seu próprio modelo, que dela define a fisio-
nomia unificada, artificialmente esquematizada, elevada ao nível estrutural. Sobreposta
à realidade desta ou daquela cultura, tal fisionomia exercita sobre ela uma potente ação
ordenadora, dela organizando integralmente a construção, levando de si harmonia e eli-
minando contradições (Lotman e Uspenski, 1975, p. 65).

Resulta, então, como dentro da semiosfera tensões conflituais em direção da uni-


dade ou da diversidade, na homogeneização ou na heterogeneização, na articulação ou
na disjunção, como se estivessem constantemente em jogo. Essas tensões estão no ato
entre semiosferas, através delas mesmas, no interior de uma única. A mesma luta entre
diferentes modelos de unidade e diferentes modos de articular os coletivos reforça esse

15
Mantivemos esse e os demais compostos conforme o original com hífen.
16
Na relação social alguns standard e algumas redes em geral, veja-se Grewal (2008). Para um ponto de vista
sobre as redes mais próximas da semiótica, Latour (1991, 2005).
24 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

duplo efeito paradoxal. Por isso, nos mais altos metaníveis da semiose cultural de uma
dada semiosfera, nos encontramos a nos confrontar com aqueles que podemos definir
como embates de (meta) definições. O que demonstra, ainda mais uma vez, que cada
semiosfera, cada formação semiótica, produz possibilidades de unidade e diversidade,
de ordem e de caos.

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Biografia

Franciscu Sedda é pesquisador de semiótica na Università di Roma Tor Ver-


gata e autor de diversos livros sobre o assunto. Foi entre 2007 e 2009 vice-presidente
da Associação Italiana de Estudos Semióticos. É o idealizador e organizador do Úìze
Festival de Carloforte, dedicado às ilhas, em cujas duas primeiras edições participaram
Umberto Eco, Franco Cassano, Paolo Fabbri e Omar Calabrese.
e-mail: sedda@lettere.uniroma2.it
Prova: que gosto tens? ou histórias de um
praticante na avaliação escolar

Dirceu Pacheco (UERJ)

Cada palavra ou locução leva consigo sua história,


motivo pelo qual uma leitura completa não somente
evoca significados de acesso imediato, mas também
alusões mais vagas.
George Steiner

No cotidiano incorporamos, de maneira gradativa, às nossas redes de conheci-


mentos, um conjunto de ações, palavras, conceitos e reflexões que vai sendo adquirido
em diferentes contextos de aprendizagem e que nos conduz à aquisição de novos sabe-
res e à ressignificação das práticas e discursos anteriormente obtidos.
Entretanto, quando se vivencia situações e experiências semelhantes por diversas
vezes, torna-se difícil identificar, pela memória, o instante no qual esse saber ou refle-
xão, agora incorporado ao nosso discurso e às nossas ações, teve sua origem.
Das lembranças que tenho acerca de minha prática como docente em cursos de
extensão – de pequena e média duração, para professores das redes pública e privada
de ensino, em diferentes municípios e estados brasileiros e, também, na Universidade,
com alunos do curso de licenciatura na Faculdade de Educação da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ) –, não sei qual foi o momento, já que não consigo
datá-lo com precisão, que incorporei e passei a utilizar um determinado desafio como
dinâmica para iniciar discussões acerca dos processos da avaliação da aprendizagem
escolar e das experiências que nesse campo venho desenvolvendo há pelo menos quase
três décadas.
O desafio consiste em, num primeiro momento desses encontros, escrever no
quadro de giz ou lousa a palavra PROVA, procurando estabelecer com meus interlo-
cutores uma aproximação e posterior reflexão acerca da polissemia desse termo, bus-
cando evidenciar, para além do sentido denotativo, aqueles que no espaço-tempo escolar
(ALVES, 2000) lhe imprimem um sentido conotativo e que se expressam pelo caráter
28 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

autoritário, opressivo, sentenciador e excludente desse instrumento de medida, tão re-


corrente nos processos de avaliação da aprendizagem escolar.
A seguir, proponho que os participantes desses encontros busquem formar ou-
tras quatro palavras dicionarizadas reordenando as mesmas cinco letras que escrevem a
palavra que nomeia esse temido recurso didático. Ou seja, na ordem alfabética temos:
A, O, P, R e V. Nesse exercício, que soa como um desafio, interessa-nos destacar ini-
cialmente que entre as combinações ou rearranjos é possível escrever a palavra PAVOR.
Esta constatação quase sempre promove uma surpresa geral e bastante descon-
forto para aqueles profissionais, ou futuros profissionais, da educação que se sentem
seguros, na imagem que Hoffmann (1994) nos propõe da PROVA enquanto a rede de
segurança do professor, e a respeito da qual Esteban (2000, p. 8) nos alerta, dizendo
que se faz necessário “incorporar em sua dinâmica a dimensão ética” para além de seus
limites técnicos. Proponho, com base nessas informações, que venhamos a refletir sobre
o que, inicialmente, chamarei de uma conspiração lexicológica e as possíveis relações que
cada um de nós, educadores, podemos e devemos estabelecer entre a PROVA enquan-
to recurso didático, os sentidos e representações produzidos por nossos alunos acerca
desse instrumento, nossas práticas avaliativas e a cultura escolar.
Nas memórias que neste texto (re)crio das experiências vividas em minhas prá-
ticas educativas como professor da educação básica em instituições públicas de ensino,
recordo-me de que foi o Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira – o
CAp-UERJ –, a instituição onde, pela primeira vez, acerquei-me dessa reflexão que
estou me propondo a discutir neste artigo.
No CAp-UERJ trabalhei como professor de história nos ensinos fundamental
e médio entre 1986 e 1993. Neste espaço tempo tive a oportunidade de desenvolver
inúmeras atividades pedagógicas – principalmente com turmas da então quinta série,
atual sexto ano – que foram marcadas por uma sistemática ação educativa instituinte,
destacando-se, de forma peculiar por sua originalidade, aquelas relacionadas com a
avaliação e que denomino provas diferenciadas ou alternativas, visto que se distinguiam
das convencionais por algumas diferenças.
Houve um grupo de estudantes que, nesta instituição, acompanhei do sexto ao
oitavo ano – entre 1987 e 1989 – e, cumprindo um acordo que havia estabelecido com
ele, tornei a encontrá-lo – não completo, mas com vários remanescentes – no segundo
ano do ensino médio, em 1992.
Em 1988, propus que esses grupos de estudantes que, como meus alunos, ha-
viam participado, no ano e série anteriores, de inúmeras atividades lúdicas e criativas, –
incluindo-se nesse contexto as provas que ficaram conhecidas como Cabeluda, Essa vai
ser fogo e a Prova de arrepiar (Pacheco, 2001) –, e que agora formavam as turmas 611
e 612 – atual sétimo ano –, fizessem um registro avaliando o significado da PROVA,
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 29

que, de uma maneira geral, é reconhecida como o principal instrumento que a escola e
os professores têm ao seu dispor e utilizam em suas práticas educativas cotidianas para
avaliá-los. Para realizarem essa tarefa, eles poderiam usar a(s) linguagem(ns) verbal,
escrita e/ou iconográfica, identificando as imagens/representações que eles possuíam/
produziam acerca desse instrumento de medida.
Todavia, nesta mesma época, assumi a turma 614, com a qual não havia tra-
balhado anteriormente. Resolvi, no início do ano, fazer com esses alunos a mesma
proposta. Assim, enquanto as duas primeiras turmas, de forma inevitável, acabaram te-
cendo comparações entre as provas alternativas de história e as demais provas realizadas
por outros colegas de outras áreas do conhecimento, a terceira turma – a 614 –, que
não havia participado dessas experiências, acabou produzindo textos e imagens muito
emblemáticas sobre seus autores: nós professores.
São alguns desses registros produzidos nessa ocasião por essas três turmas, e que
hoje fazem parte do meu acervo autorreferencial (Viñao, 2000), que utilizo na tessitura
(Alves, 2001) dessa narrativa, que procura estabelecer conexão entre essas imagens/
representações e suas possíveis inter-relações com a linguagem, a cognição e a cultura,
considerando que os significados conotativos, construídos de forma individual ou co-
letiva por aqueles alunos, podem ser atribuídos ao conjunto formado pelo significante
PROVA e as quatro outras palavras escritas a partir do reordenamento das letras P, R,
O, V e A, reforçando e consolidando nos diferentes espaços-tempos da educação a miti-
ficação e mistificação das provas no processo de avaliação.
Este é um exercício curioso, creio que original em relação à avaliação ou como
queiram à medida, e que, neste texto, será tratado como uma possível e divertida cons-
piração da lexicologia, não deixando de reconhecer a importância de inúmeros e atuais
estudos sociolinguísticos. Muitos dos quais se utilizam e fazem referência à “Hipótese
de Sapir-Whorf”, segundo a qual não é possível imaginar a interpretação de um texto
(palavra ou conceito) sem ter em conta suas coordenadas culturais.
Considero importante ressaltar que não tenho o hábito, nos textos que até então
vinha produzindo, de explorar a origem etimológica/sentidos das palavras ou conceitos
com os quais trabalho. Simplesmente, tenho a confessar que possuía certo preconceito
quanto à utilização desse tipo de recursos nos textos que lia e, principalmente, nos que
produzia. Contudo, o cotidiano tem suas artimanhas e sabedorias e nos ensina, em
nossas ações mais simples, que devemos nos acautelar e evitar posicionamentos unilate-
rais e radicais, mais apropriados para o pensamento científico herdado da modernidade.
Assim, seguindo as lições que venho tomando com os autores das pesquisas com os co-
tidianos, tenho procurado estar atento para não incorrer em situações que me levem a
afirmar, de forma radical, que dessa água nunca beberei.
30 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Brook (1995 apud Alves, 2001), nos indica que ao assumirmos um ponto de vis-
ta que nos pode ser útil, devemos defendê-lo até a morte. Entretanto, paradoxalmente,
não devemos levá-lo muito a sério, abandonando-o sem constrangimento quando se
tornar inútil.
Assim, acordado neste ponto com meu leitores, recorro ao Aurélio Século XXI
(Ferreira, 1999, p. 1656) e constato que a partir do verbete PROVA, que ocupa por
inteiro uma das três colunas existentes na página, é possível tecer uma rede de signi-
ficados construída num processo de reflexão acerca desse instrumento da avaliação
escolar e sua relação com os muitos sentidos ali explícitos e implícitos, que denotam os
conceitos de autoridade, rigor, testagem, julgamento, verdade e provação, entre outros.
PROVA, segundo o Aurélio (1999), é, no sentido dicionarizado, aquilo que
“atesta a veracidade”; sendo também “garantia”; “exatidão de um cálculo”; “verificação
da qualidade”; “concurso ou exame”; “provação”; “competição”; “primeira revelação
de um negativo”; “peça de processo judicial”; “ordálio” (juízo de Deus), entre outros.
Pode ser também uma “experiência para saber se uma roupa se ajusta bem ao corpo”
– não posso deixar de considerar que, neste sentido, sinto-me atraído a estabelecer re-
lações com Foucault (2000) e um dos seus clássicos: Vigiar e punir.
Há outros sentidos para essa palavra, como o que se refere à possibilidade de
identificarmos o sabor dos alimentos e bebidas, ideia/sentido que desenvolvi em minha
dissertação de mestrado, através da pergunta: “Prova, que gosto tens?”.
Das artes gráficas, onde a PROVA é “a impressão tirada para inspeção do
trabalho com a correção dos erros e falhas existentes” (Ferreira, 1999, p. 1656),
identifico o distanciamento entre as finalidades desse instrumento nas atividades
gráficas e naquelas desenvolvidas por docentes em seus cotidianos, nos espaços-tempos
escolares.
Quais os desdobramentos desse distanciamento sobre os alunos? Como eles se
sentem e reagem nesse processo que confere à PROVA um status de intocabilidade, que
a diferencia das demais atividades escolares, sendo ela o único elemento da prática pe-
dagógica considerado, em princípio, quase inegociável pelo professor e pela instituição
escolar? Quais são os fetiches e os rituais que constroem a rede de mistérios e mitos em
torno da e sobre a PROVA? Qual a nossa contribuição, enquanto educadores, nesse
processo de construção e consolidação desses ritualismos que conferem às PROVAS
sentidos de mito e mistério durante o processo de avaliação? Como esses processos
produzem sentidos/imagens/representações que são expressos nas falas e atitudes dos
alunos no cotidiano escolar, em relação às PROVAS? Essas são algumas questões que,
se não são para serem respondidas neste texto, aqui estão para nos provocar a pensar
sobre elas.
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 31

“As provas, para mim, sempre são a mesma coisa: ‘um trem fantasma’. Às
vezes entro na sala de aula para fazer uma prova um pouco calma, mas logo me
desespero com aquela questão que o professor tira do fundo do baú”, avaliou
Carolina, de 13 anos, aluna da turma 614/88, fazendo alusão ao brinquedo que,
no parque de diversões, estabelece com seus usuários uma relação que pode ser
definida como um misto de terror e superação de limites, num processo marcado
por sobressaltos, sustos e algumas sensações de alívio. Ali, o espectador, preso a
um lugar específico, submete-se passivamente a um jogo com regras e percurso
pré-determinados. Nada muito diferente das sensações que podem ser encontradas
nos espaços-tempos das salas de aula durante as PROVAS. Com a ressalva de que
neste segundo caso não se trata de uma opção, uma brincadeira ou um entrete-
nimento sem maiores desdobramentos, como o do parque de diversões, pois há
muito esse instrumento tem sido utilizado nos três níveis de ensino, de forma in-
discriminada, como aquele que, em última instância, promove ou exclui os alunos
do processo de escolarização.
Esta comparação estabelecida por Carolina e que nos remete à ideia de PA-
VOR – que significa grande susto, medo e terror – é a primeira das palavras dicio-
narizadas que trago, entre aquelas que se podem escrever a partir da possibilidade de
se reagruparem as letras que escrevem PROVA, e que, no imaginário do cotidiano
escolar, é uma das representações comumente relacionadas pelos alunos a este ins-
trumento de avaliação.
32 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Daniela, de 13 anos, também aluna da turma 614, em sua avaliação elaborou


uma sequência com dez fantasmas que assombram a vida dos estudantes quando o
assunto é PROVA. São eles: medo, pânico, pavor, perda de diversão, dor de cabeça, dor de
barriga, insônia, sono, cansaço e o resultado final: NOTA BAIXA.

Há cerca de três décadas esses registros estão em meu poder e agora – quando bus-
co estabelecer uma “leitura” acerca deles à semelhança das propostas de Manguel (2001),
entendendo o espectador comum na necessidade que tem de articular a imagem como
narrativa – mergulho nos simbolismos que essas imagens encerram, sabedor de que

quando lemos imagens – de qualquer tipo, sejam pintadas, esculpidas, fotografadas, edi-
ficadas ou encenadas – atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o
que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar
histórias (sejam de amor ou de ódio), conferimos à imagem uma vida infinita e inesgo-
tável (Manguel, 2001, p. 27).

No caso desta imagem, são dez fantasmas, como dez é também a pontuação
máxima que pode ser atribuída a uma PROVA. Teria sido coincidência, já que não
há no texto produzido por Daniela nenhuma referência a este fato, ou houve uma
intencionalidade nessa representação? Se não houve essa intencionalidade, terá sido a
produção dessa imagem, da forma como ela se apresenta, um reflexo do inconsciente
coletivo presente em todos nós, enquanto redes de subjetividades (Santos, 1995) que
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 33

somos? Se os dez fantasmas referem-se às sensações negativas que, de domínio público,


são atribuídas às provas, por que é que nós, educadores, continuamos insistindo na
utilização desse instrumento nos processos de avaliação? Estas são algumas entre as
perguntas possíveis a partir dessa imagem, que podem contribuir para a produção de
narrativas sobre ela e que, por sua vez, criarão novas imagens, num processo que se faz
contínuo e ilimitado.
Sobre a questão da PROVA, Barriga (2000) nos alerta para o fato de que o exa-
me, historicamente, está relacionado a questões sociais do império chinês e não a do
conhecimento, apesar de, administrativamente, reconhecermos hoje que dele é possível
obter alguns dados acerca de coisas que os indivíduos sabem. Esse instrumento, contu-
do, não é capaz de indicar o que o indivíduo realmente sabe e pode produzir.
No cotidiano da sala de aula, apesar da aparência, os alunos não são indivídu-
os passivos neste processo. Como praticantes, usam, durante as PROVAS, as táticas
(Certeau, 1994) mais diversas, que oscilam do pedido de ajuda aos professores para
que expliquem o que querem na(s) questão(ões) nas quais estão tendo dificuldade(s)
até as tentativas de cola, muitas vezes com sucesso, durante a aplicação das provas;
da ação de procurar não deixar nenhuma questão em branco, mesmo que se escreva
ali qualquer resposta, até o ato de faltar no dia da avaliação e ter que fazer, poste-
riormente, a inevitável segunda chamada sob a complacência dos responsáveis e dos
atestados médicos, pois os estudantes têm a sensação de que – e, muitas vezes, sabem
que – estão sendo injustiçados.
Injusto é, por sinal, um dos sentidos dicionarizados da palavra PRAVO, que
também se escreve com as mesmas letras de PROVA. Acaso, mera coincidência, cons-
piração léxica ou um estudo de caso para a sociolinguística? PRAVO é o mesmo que
“injusto; incorreto”, mas também assume, segundo o Aurélio (Ferreira, 1999, p. 1622),
o sentido denotativo de “mau, perverso, infame”.
Esses sentidos/sentimentos tanto são aplicados/atribuídos à PROVA, enquanto
o instrumento que os avalia – mede, classifica, sentencia e discrimina –, quanto aos
professores que surgem no imaginário dos alunos como sendo os responsáveis ime-
diatos dessa situação. Aqui não se pretende julgar, culpar ou isentar os docentes, mas
é preciso que cada um de nós possa analisar as próprias práticas educativas cotidia-
nas, principalmente no que se refere à avaliação, buscando identificar como estamos
lidando e nos utilizando desse instrumento e de suas representações junto aos alu-
nos, para que eles estejam construindo essas relações negativas. Em síntese, é preciso
pensar sobre por que eles, invariavelmente, nos veem como seus algozes quando o
assunto é a PROVA.
Dessa coletânea de avaliações feitas pelos alunos, principalmente aqueles da
turma 614, é possível constatar esses sentidos/sentimentos em textos e imagens como
34 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

os que se seguem, que aqui chamo de “a guerra”, “tédio” e “jogado na rua da amargura”,
explicitando as relações de poder, os dispositivos disciplinares e as sanções (Foucault,
2000) que fazem parte do universo do alunado, de um modo geral, em relação ao
exame ou à PROVA.

A GUERRA

A prova é uma merda* de “guerra” que nunca tem fim e que a gente luta sem armas, não
sabendo se vamos “morrer” ou “sobreviver”.

[Waldiro Cardoso Neto, 12 anos. CAp-UERJ – 1988/614]


* desculpe pelo vocabulário → Mas você pediu pra botar o que eu acho da prova.

TÉDIO

Prova, para mim, é um modo que o professor sem criatividade inventa para os alunos
fazerem e ele mostrar que tem esse instrumento de dominação para controlar os alunos.
Prova, significa que eu terei que ficar meu final de semana estudando (que tédio!).

[Luciana Barbosa Delgado, 12 anos. CAp-UERJ – 1988/614]

JOGADO NA RUA DA AMARGURA.

A: - Como explicarei a meus pais?

[Renato de Castro Araújo. CAp-UERJ – 1988/614]


Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 35

“Pequeno, limitado e apoucado” são sentidos denotativos que se podem atribuir


a PARVO, a penúltima entre as palavras dicionarizadas que pode ser escrita com as
mesmas letras de PROVA e que, sem grandes esforços, podemos associar a esse instru-
mento de avaliação.
Os estreitos limites do exame ou da PROVA, enquanto instrumento para avaliar
os alunos no atual contexto pedagógico e que tem servido de base para promoção ou
exclusão deles, há muito vêm sendo denunciados por inúmeros autores nacionais e
estrangeiros.
Na universidade medieval, quando surgiu no contexto educativo até o século
XIX, o exame ou PROVA era considerado parte do método e não tinha a finalidade de
atribuir notas nem promover os estudantes, sendo realizado somente quando esses se
sentiam seguros na obtenção do sucesso. Foi no século XX que ocorreu o estreitamento,
a limitação das finalidades do exame ou PROVA, que passou a ser o responsável pela
qualificação do desempenho do estudante e sua consequente promoção ou exclusão.

[...] quando o exame era parte do método, (os professores) tinham que resolver to-
dos os problemas de aprendizagem através de diversas tentativas metodológicas. Com
o aparecimento das novas funções do exame: certificar e promover, quando existe uma
dificuldade de aprendizagem, os professores e as instituições aplicam exames (Barriga,
2000, p. 61).
36 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Assim, a prática do exame ou PROVA se disseminou e enraizou no processo


escolar a partir do século passado, tendo como principal finalidade a certificação e a
promoção dos alunos.
Hoje, os professores passam mais tempo elaborando, aplicando e corrigindo pro-
vas do que buscando criar e aperfeiçoar métodos e atividades que contribuam para o
desenvolvimento da autonomia e a construção do conhecimento discente.
Quanto maior é o ano ou o nível da educação básica cursado, maior se torna
a exigência institucional e social para o aumento do número de verificações a serem
realizadas em que se busca, em última instância, quantificar o possível saber adquirido
pelos estudantes.
Assim, para dar conta dessa exigência escolar que pouco ou nada tem de peda-
gógica, sendo uma prestação de contas essencialmente burocrático-administrativa, as
instituições escolares e os professores, no dia a dia das salas de aula, reproduzem o mo-
delo hegemônico de avaliação, naturalizando as práticas da aplicação de PROVAS sem,
muitas vezes, se perguntarem sobre o sentido do que estão fazendo.
Algumas perguntas que nos levam a reflexões interessantes acerca dessa situação
podem – e devem – ser feitas por todos nós educadores: Com quais finalidades temos
aplicado provas no espaço-tempo escolar? Como, considerando o cotidiano de nossas
práticas educativas, estamos elaborando nossas provas? Quando elaboramos uma PRO-
VA, estamos atendendo a uma exigência burocrático-administrativa da escola/educa-
ção ou buscando, de forma efetiva, subsídios para agirmos auxiliando os alunos em seus
processos de aprendizagem?
A realidade profissional dos professores, principalmente os do 6º ano em diante,
há muito vem sendo a de trabalhar durante toda semana, inclusive sábados, em várias
instituições de ensino e nos mais variados horários. Assim, o que os professores relatam
quando entrevistados ou perguntados sobre o assunto avaliação, é que não possuem
tempo disponível em suas agendas para um investimento mais sistematizado na elabo-
ração de tarefas que estimulem a criatividade dos alunos nem mesmo para a elaboração
de instrumentos de avaliação mais adequados, éticos e justos, muito menos para a
própria formação profissional. Tal fato dificulta participações em cursos, congressos,
encontros, reuniões escolares e trocas de experiências que poderiam trazer novos conhe-
cimentos acerca do tema.
Aqui se torna preciso ressaltar que, junto com outros autores, defendo a tese de
ser a sala de aula, por excelência, o espaço-tempo da formação profissional (Pacheco,
2004). Contudo, reconheço que o mesmo não é o suficiente para dar conta da profis-
sionalização dos docentes no mundo atual.
Envolvidos nesse processo que nos reduz o tempo para investirmos em estudos,
pesquisas, cursos e na própria produção de nossas atividades pedagógicas cotidianas e
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 37

pressionados pelas exigências burocrático-administrativas escolares em relação à ava-


liação, como prazo para entrega de notas na secretaria e preenchimento de boletins e
pautas, nós, os professores, acabamos optando por práticas e modelos de avaliações,
centrados nas provas com questões convencionais, que valorizam a memorização e a
descontextualização dos conteúdos abordados.
Sentindo-se pressionado pelo corre-corre do cotidiano, indo de uma escola para
outra, tendo, quase sempre, muitas turmas e numerosos alunos para dar conta, não é
difícil entender, neste contexto, por que nós, professores, cedemos à tentação de orga-
nizarmos bancos de questões para elaboração de provas. Nesses bancos, informatizados
ou não, vamos acumulando inúmeras questões já prontas, retiradas de livros, jornais e
revistas que publicam provas dos mais diversos concursos públicos e que, independente
de serem usadas ou não, não raro, estão distantes daquilo que se passa na vida cotidiana
e em nossas salas de aula.
Há, por outro lado, a tentação do mercado oferecendo softwares e CD-ROMs
para montagem e organização de provas, com sugestão de milhares de questões, dividi-
das por tema e grau de dificuldades. Cabe aos docentes apenas a organização da prova
fast food, elaborada por meio da conjugação ou escolha de algumas dessas questões já
prontas e que são servidas aos alunos. Rápida em sua elaboração, fácil de ser corrigida
e de cumprir em tempo as metas e obrigações burocrático-administrativas exigidas pela
escola e pela sociedade, em que se destacam os responsáveis pelos alunos, esse instru-
mento, assim produzido, está muito distante do sentido que compreendemos e que
deve ser a avaliação da aprendizagem.
A PROVA há muito se tornou esse instrumento centrado na valorização da téc-
nica, distante da realidade cotidiana das salas de aula. Separada do método apoucou-se,
tornou-se um instrumento PARVO, pequeno, limitado, reduzido a produzir notas
ou conceitos para promover, ou não, os alunos, dando-lhes uma certificação ao final
dos cursos. Assim, no espaço-tempo sala de aula os estudantes não podem, de maneira
efetiva, gostar da PROVA nem daqueles que, de maneira direta, os ameaçam com esse
instrumento.
38 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Esta ilustração produzida para avaliar as provas é uma criação de dois alunos:
Rafael, de 12 anos, e Vinícius, de 13, ambos da turma 614. Seus autores deram-lhe o
título de O pobre aluno na sua batalha costumeira. Na imagem estão representados três
algozes: a bruxa, o troglodita e o demônio, que no cotidiano da sala de aula, para essas
crianças, representavam os diferentes tipos de professores que os ameaçavam durante
todo o tempo com sua arma principal – a PROVA.
Resta uma última palavra dicionarizada que pode ser escrita com as mesmas
letras de PROVA: VAPOR. A princípio acreditei não ser possível tecer relações com
a conspiração léxica que pude estabelecer com as palavras anteriores, pois não me senti
capaz de inferir-lhe carga de negatividade e possível associabilidade com a PROVA,
como foi possível com as demais palavras.
Recorri, pois, ao Aurélio (Ferreira, 1999, p. 2046) e lá encontrei “gás em tem-
peratura inferior à crítica” e fiquei me perguntando o que isso significa. Será possível
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 39

construir no meu discurso alguma relação dessa definição com a PROVA? Necessitan-
do ser ajudado na área da física, recorri a um colega, buscando ampliar minhas redes
de conhecimento acerca do tema. As informações que recebi, pelo celular, já bem tarde
da noite, não foram suficientes para que eu pudesse estabelecer alguma relação, muito
embora desconfiasse que fosse possível. Foram minhas limitações no campo do conhe-
cimento da física, aliadas ao pouco tempo para redigir esse texto, que me levaram a
desistir deste problema.
Voltei ao verbete no dicionário, ainda cheio de curiosidade. Nele há uma refe-
rência à expressão usada no interior brasileiro, associando vapor ao “trem”; nada de
fantasma, como anteriormente nos indicou Carolina, apenas o velho trem de ferro,
de caldeira a vapor, das muitas histórias que autores brasileiros consagraram através da
literatura e compositores imortalizaram nas letras de algumas canções brasileiras.
Em seguida, ocorreu uma maior aproximação do que eu pretendia ao deparar-me
com as expressões VAPORAR/ES (no plural), do latim VAPORE (vapor), cujo sentido
é o do entorpecimento cerebral, atribuído a vapores mórbidos que, acreditava-se, su-
biam ao cérebro e provocavam a embriaguez.
Foi, contudo, na expressão “a todo VAPOR”, que tem como sentido deno-
tativo “a toda velocidade; muito rapidamente; a toda a pressa” (Ferreira, loc. cit.),
que encontrei uma possibilidade efetiva de pensar as relações entre a escola, o
espaço-tempo sala de aula, nossas práticas avaliativas hegemônicas e, de forma mais
específica, as PROVAS.
Programas vastos e conteúdos excessivos que não cabem no calendário escolar;
exigência do cumprimento do livro didático adotado; paralisações eventuais pelos mais
diversos motivos; feriados; turmas grandes com alunos dos mais diversos; exigências
burocráticas draconianas; correções de inúmeros trabalhos individuais e em grupo e
aplicações de provas criam um contexto em que as coisas acontecem num ritmo alu-
cinante, com excesso de tarefas, exercícios, trabalhos, pesquisas e exames que passam
a exigir muito das crianças e dos adolescentes da educação básica, o que acaba por
prejudicar-lhes a aprendizagem.
Nos esquemas e modelos estabelecidos para o funcionamento das escolas, em
sua maioria, tem sido a PROVA o instrumento mais indesejável para os alunos, já que,
em última instância, vem sendo a ferramenta que classifica, sentencia e, muitas vezes,
exclui aqueles que não alcançam o desempenho exigido pelos professores, pela institui-
ção e pela sociedade. Entretanto, há também aqueles estudantes que rejeitam a escola
e seus mecanismos de controle, recusando-se a permanecer nela e evadindo antes de
concluírem sua escolarização.
Joana, de 12 anos, aluna da turma 614, criticou com uma sequência bastante
interessante esse estado de coisas no qual as crianças e os adolescentes, pressionados
40 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

pela velocidade como as coisas acontecem no seu cotidiano, não conseguem dar conta
das exigências, por vezes demasiadas, que lhes são impostas pela escola através de seus
representantes diretos, os professores, que desta forma passam a ser o alvo direto das
críticas dos alunos.
Em sua sequência de cinco quadros, Joana descreve a seguinte situação:
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 41

Neles observamos o excesso de matéria que deve ser estudada para a prova e que
aparece ironizado na expressão do item 1 ao 128, e a consequente crise nervosa do aluno
sufocado com a notícia. Todo o seu esforço para estudar usando livros, cadernos, anota-
ções e rascunhos, não o exime ou o impede do fracasso. Ele se sente minimizado frente
ao professor ou, talvez, a outro colega. Para concluir, é o professor, no imaginário dessa
criança, o sádico que quer e consegue reprová-lo, fato consumado no boletim colocado
como detalhe presente na quinta imagem.
Quando comecei a pesquisa acerca da possibilidade de encontrar significantes
que pudessem ser escritos a partir da reordenação das mesmas letras que escrevem a
palavra PROVA, buscando conhecer seus significados denotativos, e deparei com essa
situação inusitada na qual, PAVOR, PRAVO e PARVO, além de VAPOR possuem
sentidos conotativos que podem ser atribuídos às representações construídas pelos alu-
nos acerca deste instrumento de avaliação, considerei que estava frente a um desses
achados que o pesquisador, vez por outra, encontra em seu caminho e sobre o qual não
se pode deixar de escrever, pelo menos como um provocativo texto para seus interlo-
cutores futuros.
Nesse processo de busca, cheguei a uma quinta palavra, que não está dicionariza-
da, pois não chega a se constituir, de forma efetiva, numa palavra por inteiro, mas que se
encontra presente no espaço-tempo escolar e funciona como uma abreviatura utilizada
por professores, principalmente, no diário de classe, no final do ano letivo.
APROV. Essa é uma abreviatura usual entre os professores para APROVADO
e que, por uma conspiração lexicológica, inverte as imagens/representações construídas
pelos alunos em relação à PROVA e seus resultados até aqui apresentados.
Diferente das outras palavras, essa abreviatura passou a acompanhar o trabalho
que vinha realizando há muito tempo na educação básica, acabando por se transformar
numa das marcas das minhas ações educativas cotidianas, pois há muito fui deixando
para trás esta história de reprovação. Isso, contudo, não significa que eu tenha desistido
de ser professor ou que não me interesse pelos alunos ou tampouco tenha eliminado a
PROVA e outras formas de avaliação de minhas práticas educativas.
Na dificuldade institucional e social, já que vivemos numa sociedade que exige
o exame como certificação de conhecimento e competência, seria quase impossível eli-
minar a PROVA das minhas ações educativas. Dessa maneira tentei, num processo sis-
temático, encontrar formas que pudessem desmitificar e desmistificar esse instrumento
de medida, procurando subverter-lhe os sentidos autoritário, opressor e excludente
que criam no imaginário/representações dos alunos, um sentimento de repúdio a esse
mecanismo e aos professores que o utilizam, esquecendo-se da ética de que nos fala
Esteban (2000) e Penna Firme (1994).
42 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Visando subverter esse caráter opressor da PROVA, passei a investigar a pos-


sibilidade de criar instrumentos em que os estudantes pudessem registrar, de forma
efetiva, o que e como estavam aprendendo os conteúdos que havíamos trabalhado e o
que consideravam ser o mais importante para apresentarem ao professor como parte
do aprendido. Esta mudança no enfoque da cobrança dos conteúdos passou a dar-lhes
maior segurança e foi fundamental para contribuir na alteração das relações que eles
estabeleciam com a PROVA.
Se essa possibilidade, por um lado, arruinou o modelo tradicional de cobrança
feita na PROVA, no qual os alunos estão obrigados a demonstrarem domínio sobre os
conteúdos determinados ou escolhidos pelos professores, por outro, passou a conferir-
-me uma tarefa bem maior: a de estar atento ao que os alunos escolhiam para me dizer,
obrigando-me a retornar às turmas os conteúdos e conhecimentos que ainda não ha-
viam sido aprendidos ou considerados relevantes por eles, apesar de sê-los.
Neste processo foi fundamental minha passagem pelo CAp-UERJ, espaço-tempo
no qual pude criar e aplicar as chamadas provas alternativas. Nesta galeria existem des-
de as provas lúdicas, no gênero transformers, de corte e colagem, com formas específicas
e diversas, como Prova cabeluda/87, Essa prova vai ser fogo/87, Prova de arrepiar/87,
Prova mole/88, Prova osso duro de roer/89, Prova papa essa 511/90, Prova maluca/91,
entre outras, até as experiências mais radicais, como a Prova da cola/88, a Prova desor-
ganizada ou Só a mãe para resolver tal bagunça/92, a Prova mutirão/92 e a Prova você
decide/93, entre outras.
Da criação de convites e ingressos para que os alunos viessem fazer as provas,
inclusive a caráter, procurando criar uma atmosfera de descontração e festa, até a pro-
dução de novos tipos de questões, introduzindo desenhos e outras imagens, reportagens
e anúncios de jornais, palavras cruzadas, fragmentos de trabalhos dos próprios alunos,
passando pela recriação de questões objetivas tradicionais de provas, como as de lacu-
na, evocação ou respostas abertas, verdadeiro ou falso, associação, múltipla escolha e
escolha múltipla, até questões de ordem subjetiva, como análise de textos com novas
formas de apresentação, valorizando o lúdico e a criatividade, tudo foi motivo para ten-
tar promover o expurgo das imagens/representações negativas que aqueles estudantes
traziam acerca da PROVA.
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 43

Esta imagem é do convite para a PROVA DE ARREPIAR, na qual alguns alunos


e alunas entraram na proposta e se caracterizam conforme solicitado, já que estávamos
no mês do Dia das Bruxas. No convite pode-se ler:
44 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

CONVOCAÇÃO DO BRUXO-MOR

“Fadas, bruxas e duendes. Para completar dissolva tudo isso

Feiticeiros e curandeiros do Reino. em algumas gotas de orvalho do último

Gnomos, fantasmas e vampiros. suspiro de uma fria madrugada.

Diabos, diabinhos e diabões. Tcham! Tcham! Tcham! Tcham!

Todos os monstros da escuridão. Eis aí a poção mágica:

Eis aqui a convocação: A "poção da sabedoria".

Misture num só caldeirão Então ..., no amanhecer do dia 09 de outubro

uma dose de boa vontade, Lá por volta das 07 horas

uma colher de raspas de conhecimentos Sente-se à mesa com os feiticeiros

das aulas de História, (venha a caráter).

uma tesoura e muita COLA. Faça um brinde a sabedoria.

Adicione uma pitada de atenção Não tenha medo, se não ...

e outra de concentração, Você se arrepia.

uma caixa de lápis de cor,

de cera ou hidrocor.

A incorporação dessas experiências às minhas práticas educativas cotidianas, não


só no CAp-UERJ, mas nas outras instituições onde trabalhei como professor da edu-
cação básica, culminou na constituição do que venho chamando de o meu instituído
(Pacheco, 2001), que compreendo ser a maneira própria de cada um de nós estar na
profissão e que explicita-se nas imagens ou representações que o(s) outro(s) nos dele-
gam, com afirmações que acabam sendo incorporadas às nossas práticas, tais como isto
só pode ser coisa de fulano ou, então, mas também, só podia ser você!
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 45

Nesse processo de buscar refletir acerca da prática que vinha desenvolvendo, pas-
sei a fazer, de forma sistemática, avaliações das atividades que estávamos realizando no
cotidiano do espaço-tempo sala de aula. Criei para as provas alternativas um campo para
ouvir o que os alunos tinham a dizer sobre elas, questionando o que haviam gostado,
quais tinham sido suas dificuldades, que críticas gostariam de fazer acerca delas e que
sugestões teriam para tornar nossas aulas e futuras provas mais agradáveis. Hoje, pos-
suo um acervo significativo desses registros que estão sendo utilizados para produção
de narrativas como as que venho apresentando em congressos, encontros, bem como
publicando em revistas na área da educação e em algumas coleções de livros.
Dessa experiência acerca da avaliação das provas alternativas pelos alunos, trago
para esse texto as seguintes:
46 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Outros alunos preferiram se expressar através de desenhos, como a sequência


elaborada pelo aluno Márcio Ribeiro Alves, de 13 anos, da turma 611/88, na qual é
possível identificar que suas representações sobre as experiências que vivenciava naque-
la época estavam bem distantes daquelas atribuídas às provas tradicionais.

P: – Amanhã tem prova de história.

A¹: – Eu adoro essas provas criativas.

A²: – É, eu vou poder desenhar.

A³: – Eu adoro prova de história.

A: – É! Beleza.

Uma avaliação, do aluno Leandro C. de Mello, de 12 anos, da turma 612/88, é


a que considero, de forma definitiva, uma aprovação contundente ao trabalho que na-
quela época pude realizar com aquelas crianças. Há um texto precedendo um desenho;
em ambos ele traça uma comparação procurando demonstrar as diferenças entre o que
considerava ser as “provas normais” e as “provas e trabalhos de história”.
Prova: que gosto tens? ou histórias de um praticante na avaliação escolar 47

As provas normais são nossas


piores inimigas. Nas provas e
nos trabalhos de história já
não sentimos medo. Porque as
provas são trabalhadas sobre
a criatividade. Isso faz a
gente nem sentir se a prova é
difícil ou não. Nós só topamos
o desafio e encaramos com a
maior esportiva.
[Leandro C. de Mello, 12 anos.
612/88]

Ao contrário da imagem da “Prova de história” que acolhe o aluno, a “Prova nor-


mal” o repudia, utilizando inúmeros artifícios para amedrontá-lo, como caretas, babas,
chifres, “raio repeledor de aluno” e uma “postura corporal” de ameaça à sua integridade
física e intelectual.
No meu entender, essa imagem está impregnada de uma carga simbólica que jus-
tifica e reconhece que as ações instituintes que, naquela ocasião, pude desenvolver com
aqueles alunos conseguiram reverter, no imaginário de vários deles, as representações
negativas que possuíam em relação à PROVA. Como institucionalmente eu estava im-
pedido de eliminá-la de minhas práticas avaliativas, procurei como praticante (Certeau,
1994) apropriar-me desse instrumento usado na avaliação e, de uma forma singular, fui
constituindo-me professor.
Acaso? Coincidência? Conspiração do léxico? Relação linguagem-cognição-cul-
tura ou jogo articulado de palavras permitindo a produção desse discurso? Qualquer
que venha ser a hipótese dessa investigação, não tive nesse texto a pretensão de respon-
der a essas perguntas. O que me importou trazer para discussão com meus interlocu-
48 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

tores foi o fato da possibilidade de refletir acerca da utilização das provas, tradicionais
instrumentos de medida, nos processos de avaliação aprendizagem ensino (Alves, 2000)
e seus desdobramentos no cotidiano escolar, principalmente junto às representações
que os alunos fazem delas.
Ao embaralhar e reordenar as letras que escrevem a palavra PROVA, encontran-
do outras palavras/sentidos em VAPOR, PARVO, PRAVO e PAVOR, pude eleger
para o meu fazer cotidiano a única opção que não forma uma palavra dicionarizada –
que nem mesmo forma um vocábulo –, mas que, por sua vez, não carrega os sentidos
conotativos/metafóricos das demais que estão dicionarizadas e podem ser atribuídas a
esse instrumento utilizado nos processos avaliativos.
Ao preferir a inversão APROV às outras obtidas anteriormente, reconheço o
quanto tive a oportunidade de aprender com o meu ofício, com os alunos, no cotidiano
da sala de aula, neste processo de me tornar, na profissão, professor.

Referências

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usos. Teias, Rio de Janeiro. n. 1. p. 82-97. jan./jun. 2000.

Biografia

Dirceu Castilho Pacheco, professor adjunto da Faculdade de Educação da


UERJ. Professor aposentado da Educação Básica pelo Colégio Pedro II e ex-professor
do Colégio de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, CAp-UERJ e da SME-RJ.
e-mail: dcastilho23@gmail.com
Por uma geografia adaptada ao seu meio:
o uso da WebQuest

Laleska Costa de Freitas (UERJ)


Nilton Abranches Júnior (UERJ)

Introdução

Desde a primeira pesquisa sobre a educação em seus vários âmbitos, um questio-


namento é constantemente feito: como aprendemos? Tal questionamento tem nortea-
do o pensamento que tenta explicar o método de apreensão da realidade.
Uma das propostas mais amplamente utilizadas é aquela formulada a partir do
pensamento de Jean Piaget: o construtivismo. Tão crítica quanto a própria geografia,
acaba por se apresentar como sendo a que melhor se adapta ao ensino dos conteúdos
trabalhados por esta ciência, pois aproxima o estudante da realidade. É em tal teoria
que este texto pretende se apoiar.
Levando em consideração os postulados acerca da evolução da humanidade pre-
sentes no pensamento do renomado geógrafo Milton Santos, principalmente no que
se refere à teoria dos meios geográficos, este texto tentará apresentar o construtivismo
como sendo um facilitador na aproximação dos estudantes de sua realidade imediata.
Outro objetivo é justificar o uso da internet como alternativa ao estudo da interação so-
ciedade-natureza, sendo este feito a partir de uma das ferramentas mais artificializadas.
Este trabalho se apresenta como uma reflexão acerca das propostas de ensino e
aprendizagem. Tal fato lhe confere uma característica na qual as discussões acerca das
propostas formuladas pelos teóricos da educação sobressaem aos próprios conteúdos
trabalhados pela geografia enquanto disciplina escolar. Esse foco da discussão nas
teorias educacionais se mostra como um bônus, já que se entende como fundamental a
52 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

aproximação do universitário e futuro professor da discussão da forma de se ensinar os


conteúdos específicos do seu campo de conhecimento.

A filosofia de aprendizagem de Jean Piaget

O construtivismo, criado por Piaget já sob a influência da física relativista e da


mecânica quântica, tem como premissa a construção do conhecimento a partir da des-
construção do anterior. Isso pode ser compreendido como sendo nada mais do que a
lógica da renovação da natureza sendo utilizada nas salas de aula. Esse questionamento
do que antes se apresentava enquanto um saber consolidado serve essencialmente como
um estímulo à aprendizagem.
O parágrafo anterior apresentou um resumo deveras sintético do que orienta o
construtivismo, uma filosofia acima de tudo — tal destaque será explicado posterior-
mente. Se, por acaso, quem o leu nada sabia sobre ele, são essas palavras que começarão
a guiá-lo em direção à real compreensão do que será apresentado. Como isso ocorrerá?
Becker (1994, p. 92) defende que há dois modos de compreender, ambos distintos
do construtivismo, que justificam o processo de instrução das seguintes maneiras: um
empirista, muito utilizado no começo da geografia, e outro apropriador.
A partir do modo empirista, a teoria apresentada no parágrafo de síntese não
seria completamente entendida por falta de um estímulo a todos os sentidos. O saber
empírico é aquele que na psicologia se explica pela associação entre estímulo, criado
pelo objeto, e resposta, passivamente criada pelo aprendiz. Assim sendo, o parágrafo
só poderia ser entendido se estimulasse o adquirir do entendimento. Por outro lado,
segundo a teoria apropriadora, o sujeito já conhece parte do que lhe é ensinado, pois
a aquisição do saber é feita sobre uma sabedoria hereditária, quase como se dentro de
nossas mentes houvesse uma caixa com tudo aprendido em toda a história da humani-
dade. Ao contrário da empirista, que valoriza o objeto, a visão apropriadora valoriza o
sujeito, pois é por conta de seu entendimento prévio que a aprendizagem se faz.
Nota-se, a partir dessa comparação, que ambas as teorias não interpretam o conhe-
cimento como uma interação entre o sujeito e o objeto, mas sim como uma imposição de
um sobre o outro. Contudo, ao se refletir sobre a realidade, percebe-se que tal imposição
não condiz com o mundo, que há diálogo entre todos os agentes dos diversos fenômenos
existentes, sempre com uma troca mútua. A aprendizagem não poderia ser diferente, pois
ela é feita da relação do objeto com o sujeito, sem prevalência de nenhum dos dois.

o conhecimento é uma construção. O sujeito age, espontaneamente — isto é, indepen-


dentemente do ensino, mas não independentemente dos estímulos sociais —, com os
esquemas ou estruturas que já tem, sobre o meio físico ou social. Retira (abstração) deste
Por uma geografia adaptada ao seu meio: o uso da WebQuest 53

meio o que é do seu interesse. Em seguida, reconstrói (reflexão) o que já tem, por força
dos elementos novos que acaba de abstrair. Temos, então, a síntese dinâmica da ação e da
abstração, do fazer e do compreender, da teoria e da prática. É dessas sínteses que emerge
o elemento novo, sínteses que o apriorismo e o empirismo são incapazes de processar
porque só valorizam um dos polos da relação. Na visão construtivista, sujeito e meio têm
toda a importância que se pode imaginar, mas essa importância é radicalmente relativa
(Becker, 1994, pp. 90-91).

E de que forma os diversos autores que debatem a epistemologia genética de Jean


Piaget ou outras interpretações chegam a essa conclusão? A partir da reflexão. É por isso
que, anteriormente, houve um destaque no fato do construtivismo ser uma filosofia,
pois, ao contrário de outros estudos do modo de aprendizagem humano que impõem
um método com melhor didática, o construtivismo incentiva o pensar sobre a compre-
ensão, desde o que é, como ela acontece etc.:

O que faz o significado ser construído? O conhecimento é estimulado por uma questão
ou necessidade ou pelo desejo de entender alguns fenômenos. O que dá início ao proces-
so de construção do conhecimento é uma dissonância entre o que é entendido pelo aluno
e o que ele, ou ela, observam no meio ambiente (Jonassen, 1996, p. 71).

Eis que, refletindo sobre como os grandes autores do construtivismo chegaram a


tal teoria, observou-se uma dissonância, como dito na citação anterior. Tal filosofia foi
criada do começo a meados do século, época de vários aspectos relacionados à grandeza:
velocidades, mudanças, tragédias, saberes... Estava ainda sob a influência da segunda
revolução industrial, em que ainda não havia uma supressão do espaço de modo a tor-
nar pontos afastados tão próximos e distantes simultaneamente. E o que aconteceria
se ela tivesse sido criada agora? Baseadas na evolução dos meios geográficos, proposta
por Milton Santos (1994), as vanguardas, no construtivismo, não estariam no meio
técnico-científico somente, mas também no posterior, o informacional. As consequ-
ências disso, no entanto, serão respondidas no próximo tópico.

O construtivismo e os meios geográficos

Estudar os meios geográficos é, resumidamente, compreender a evolução do re-


lacionamento humano com a natureza, objeto de estudo da geografia. Há, por isso,
uma dupla função em contextualizar a filosofia construtivista com os novos tempos:
adaptá-la ao novo mundo e às novidades geográficas. Ou seja, esta é uma reflexão espe-
cializada no uso do construtivismo na geografia.
54 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Todavia, antes de haver tal adaptação, é necessário explicar o que são os meios
geográficos. Milton Santos os descreve como a sucessão de instrumentalização do meio
natural — ou o avanço da técnica no uso da natureza —, desde a natureza amiga à
hostil, o que justifica a simultaneidade de sua evolução com as revoluções industriais,
as quais mais alteraram a relação do ser humano com o ambiente.

A história do homem sobre a Terra é a história de uma rotura progressiva entre o homem
e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se
descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instru-
mentos para tentar dominá-lo (Santos, 1994, p. 5).

Existem estudiosos que nomeiam o primeiro meio geográfico como “pré-técni-


co”, o que é um erro. Não considerar como técnica a era antes da primeira revolução é
desconhecer o significado de “técnica” ou a história da humanidade.

As transformações impostas às coisas naturais já eram técnicas, entre as quais a domesti-


cação de plantas e animais aparece como um momento marcante: o homem mudando
a Natureza, impondo-lhe leis. A isso também se chama técnica (Santos, 2006, p. 157).

Esse era um período no qual as mudanças na natureza existiam, porém, eram dis-
cretas. O tempo natural ainda era muito valorizado e influenciava o humano. Até seu
estudo era em conjunto — não havendo uma separação entre o que era antropológico
e natural —, começando a existir apenas quando o meio se tornou técnico. Por que há
um destaque à técnica pós-primeira revolução industrial e não antes? Porque foi esta
que obteve maior domínio sobre a natureza, fazendo com que ela começasse a trabalhar
no ritmo da humanidade. Esse distanciamento também proporcionou um maior des-
respeito ao ambiente, iniciando-se, assim, os diversos tipos de poluição causados pelas
máquinas. Santos (2006) cita o ludismo, movimento contrário ao uso das máquinas,
como o precursor do futuro movimento em prol da proteção ambiental.
A ciência, com as grandes guerras, tornou-se mais próxima da técnica, tanto que
alguns estudiosos criaram o termo “tecnociência” — ou tecnologia —, como pode ser
observado no trecho subsequente a este parágrafo. O avanço de uma não acontecia sem
o da outra e, por isso, pode-se observar uma evolução mais acelerada nos vários ramos
da academia, principalmente os tecnológicos. Houve também um crescimento na im-
portância da informação, que se tornou inseparável também das já supracitadas ciência
e técnica. Tal tríade justifica o nome deste novo meio geográfico: o meio técnico-
-científico informacional.
Por uma geografia adaptada ao seu meio: o uso da WebQuest 55

Conforme suas origens na Grécia antiga, a tecnologia é o conhecimento científico (teo-


ria) transformado em técnica (habilidade). Esta, por sua vez, irá ampliar a possibilidade
de produção de novos conhecimentos científicos (Pinto, 2004, p. 5).

Há outra diferença entre os meios, além do envolvimento da técnica com a ciên-


cia e da informação com a natureza: há também a diferenciação da escala. Com a evo-
lução dos meios, a escala dos fenômenos foi reduzindo até que todos os setores sociais
chegassem à escala global. O efeito borboleta poderia justificar uma interação global
desde o início da humanidade, em que um bater de asas pode criar uma tempestade.
Essa é, contudo, uma relação subjetiva — percebida com um pouco mais de reflexão
—, enquanto a evolução dos meios tem provas concretas no cotidiano.
Recapitulando: o atual momento da sociedade é o meio técnico-científico infor-
macional, no qual os fenômenos ocorrem em escala global, em que a mídia interfere na
ciência que é indissolúvel da técnica. De certo modo, esse não é um bom cenário para
se criar uma filosofia: uma sociedade digital dependente das tecnologias, que pouco
reflete sobre elas além de seu funcionamento e estética. Por isso, talvez, em meio a uma
sociedade pouco questionadora em várias dimensões — o que facilita a disseminação
de falsos discursos —, o construtivismo seria mais urgente, e por isso foi criado.
Jean Piaget criou sua filosofia de aprendizagem em meio técnico-científico, ain-
da não informacional, no qual o efetivo era a interação da tecnoesfera — a constante
artificialização do meio ambiente — e a psicoesfera — o resultado das crenças, desejos,
vontades e hábitos que inspiram comportamentos filosóficos e práticos, as relações in-
terpessoais e a comunhão com o universo, pelas palavras de Milton Santos. Era e ainda
é uma relação desequilibrada, que pende mais para a psicoesfera, ou seja, a esfera da
subjetividade.
Ao comparar a filosofia construtivista com as esferas do meio técnico-científico,
nota-se que o diálogo sujeito-objeto proposto por Piaget acontece pela síntese da
psicoesfera com a tecnoesfera. Observando a artificialização por completo, e quando se
destaca a completude desse estudo, percebe-se referência nele do todo ao nulo — ou
seja, do espaço onde ainda não existe artificialização — e dos elementos socioculturais
em suas inúmeras maneiras, criando-se uma relação sintética e, enfim, o aprendizado.
O que torna mais complexo o mais recente meio geográfico é que, além das duas
dimensões citadas — prática e teórica —, há a virtual, visto que a rede de computado-
res conseguiu criar um novo espaço para refletir as consequências da natureza com a
humanidade. Esse espaço — que representa as crenças sociais, as tendências midiáticas,
as filosofias existentes e até a moral — tornou-se um intermédio entre a psicoesfera e
a tecnoesfera, pois representa a ponta de ambos, exceto em locais aonde a rede ainda
não chegou.
56 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

A rede de computadores permitiu, além dessa proximidade entre as esferas, uma


pluralidade e, também, uma uniformização. A primeira se percebe nos tempos encon-
trados na realidade, que não são, sem citar as rugosidades de cada espaço, somente os
locais como os globais.

Temos, sem dúvida, um tempo universal, tempo despótico, instrumento de medida he-
gemônico, que comanda o tempo dos outros. Esse tempo despótico é responsável por
temporalidades hierárquicas, conflitantes, mas convergentes. Nesse sentido todos os tem-
pos são globais, mas não há um tempo mundial (Santos, 1994, p.13).

Essa diferenciação entre o mundial e o global faz com que haja uma tendência à
uniformização do planeta. Tal discussão seria material suficiente para mais um texto,
contudo não é este o enfoque deste. Para não deixar de explicá-la, as seguintes palavras
de Milton Santos (1994, p. 15) podem enfatizar o que se intenta dizer aqui:

Uma coisa é um sistema de relações, em benefício do maior número, baseado nas possibi-
lidades reais de um momento histórico; outra coisa é um sistema de relações hierárquico,
construído para perpetuar um subsistema de dominação sobre outros subsistemas, em
benefício de alguns. É esta última coisa o que existe.

O primeiro sistema seria a mundialização, que, hierarquicamente falando, seria


feita de baixo para cima, próximo do que hoje se promulga na constituição — nas
leis, não no efetivo judiciário. O segundo, a globalização, em que os valores do capital
seriam os que direcionam o sistema, forçando os diversos grupos humanos a se adapta-
rem a ele, não o contrário.
É para demonstrar essa dicotomia da pluralidade contra a uniformização que
se propõe o uso da internet como ferramenta didática. Um quadro negro tem espaço
suficiente para dizeres que descrevam o real, uma apresentação informatizada poderia
ilustrar muito bem tal situação, mas uma busca guiada pela internet faria com que os
alunos estivessem aprendendo, estando próximos do objeto de estudo da realidade, sob
certo aspecto.
Obviamente, essa ferramenta não substitui completamente as outras, assim como
nenhuma outra o faz. Em um mundo tão plural, o uso de mais de uma ferramenta seria
o melhor método para possibilitar um caminho ao conhecimento. Contudo, sendo a
internet um elemento do cotidiano da nova geração, utilizado principalmente pelos
que estão em mais intensa fase de apreensão do real — jovens e adultos—, um uso
crítico desta teria maior chance de sucesso, pois ela já é uma ferramenta convidativa.
Por uma geografia adaptada ao seu meio: o uso da WebQuest 57

O caráter informacional do atual meio geográfico é um aspecto negativo da in-


ternet, já que, a partir dela, acontece grande parte da difusão dos falsos discursos em
prol dos interesses midiáticos. É por isso que, mesmo prezando a independência do
sujeito ao aprender, é necessário que haja um guia para o uso da internet. A partir desse
guia, o sujeito poderia, depois, conseguir discernir sozinho o que é manipulado ou não.
Assim entra a WebQuest.

A WebQuest e o professor do meio técnico-científico informacional

Dois anos após esse importante marco na história da internet, Bernie Dodge,
professor estadual da Califórnia, Estados Unidos da América, criou o conceito de
WebQuest, que propõe o uso da internet de forma criativa e orientada. Em sua proposta
inicial, o professor estadunidense

propunha a criação de um conceito – WebQuest – que auxiliasse na clarificação de um


determinado tipo de atividades que estavam sendo postas em prática no âmbito de um
projeto educacional de uso da internet. Assim definia WebQuest (literalmente, uma de-
manda na Web): ‘Uma WebQuest é uma atividade orientada para a pesquisa em que
alguma, ou toda, a informação com que os alunos interagem provém de recursos na
Internet, opcionalmente suplementados por videoconferência.[…]’ (WebQuest, 2007).

Eis ali novamente o destaque à orientação do professor. As informações, todas


oriundas da internet, podem ser uma das muitas falácias midiáticas facilmente compar-
tilhadas pelas diversas dimensões do mundo atual. Contudo, com a ajuda do professor,
os estudantes podem servir-se de materiais confiáveis e, ainda assim, virtuais, ajudando-
-os na construção do saber geográfico.
Além do estímulo aos alunos, o acréscimo de experiência pessoal faz com que
a WebQuest se adapte consideravelmente bem às diversas existências nos ambientes
educacionais do mundo, isso porque o professor, ao planejar a atividade nesse método,
deve prepará-la de modo a instigar a curiosidade de seus alunos, o que é particular a
cada um. Ou seja, ao se planejar uma aula pela perspectiva construtivista, há uma par-
ticularização do método de aprendizagem à habilidade cognitiva dos alunos, além de
sua condição e história.
Há outro motivo por trás do uso da WebQuest: a ferramenta se utiliza das mais
novas tecnologias, que, como já explicadas anteriormente, são a junção da ciência com
a técnica, as duas esferas de diálogo da realidade humana desde o século XIX. Como
ainda mais presente no cotidiano da humanidade do século XXI, seu uso como ferra-
58 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

menta educacional torna o conteúdo parte da zona proximal do estudante, facilitando


sua compreensão.
A internet torna-se também a melhor ferramenta para associar os conhecimentos
acadêmicos aos escolares. Hoje, não se observa muita interação entre a universidade e
a escola, o que faz com que a última esteja desatualizada em seu processo de difundir
conhecimento. A internet disponibiliza tal contato, mesmo que não o faça diretamen-
te, a partir de textos acadêmicos disponibilizados nas mais diversas plataformas on-line
existentes. Por ser um espaço no qual não há fragmentação hierárquica, mas maior
liberdade de locomoção entre os segmentos, o meio virtual pode servir para substituir,
com ressalvas, esse contato.

Conclusão

Conforme se tentou mostrar nos parágrafos anteriores, a filosofia construtivista


parece ser a que melhor se adapta aos meios geográficos. Ambas de base marxista, tendo
como orientação a dialética, fazem oposição de dois lados do real e, com a síntese desse
diálogo, apreendem o mundo.
Caso essa filosofia fosse pensada na atualidade, suas respostas teriam uma ferra-
menta de perfeita adaptabilidade ao intuito instrucional: a internet, que representa a
junção da tecnoesfera com a psicoesfera e do teórico com o prático. Tão influente no
presente, também auxilia a globalização, fenômeno que torna o tempo e o espaço mais
plurais.
Conclui-se, portanto, que se um professor desejar realmente ensinar seus alunos,
respeitando sua criticidade individual criada a partir de suas vivências pessoais, terá
que planejar uma aula em que o estudante não tenha o seu conhecimento posicionado
hierarquicamente abaixo daquele dominado pelo professor. Seu conhecimento deve ser
valorizado e realocado em uma posição ao lado do apresentado pelo professor. Somente
assim, novos saberes poderão ser construídos. Em geografia, essa prática pedagógica se
apresentaria como bastante apropriada, pois a forma como a sociedade tem se relacio-
nado com a natureza não se apresenta de modo fixo. A cada nova necessidade social,
cria-se um novo instante no qual a humanidade muda sua relação com a natureza. A
forma dessa relação varia de acordo com as necessidades impostas e pelas diferentes
escalas de estudo: por vezes, é marcada por atitudes de força, domínio e hostilização;
por outras, mostra-se de forma mais cuidadosa, doce e amigável.
Por uma geografia adaptada ao seu meio: o uso da WebQuest 59

Referências

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Webquest. Disponível em: <http://webeduc.mec.gov.br/webquest/>. Acesso em: 22 fev. 2014.

Biografia

Laleska Freitas é uma carioca nascida em 24 de outubro de 1994, atualmente


graduanda em geografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi monitora
na disciplina de geografia agrária, sendo orientada em todas as suas linhas de pesquisa
pelo professor Nilton Abranches Júnior, doutor em Geografia.
e-mail: laleskacf@gmail.com

Nilton Abranches Junior é graduado em geografia — bacharelado e licenciatura


— pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre e doutor em geogra-
fia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em sua trajetória acadêmica,
ele tem pesquisado as relações entre sociedade e natureza, tentando entendê-las a partir
de uma ótica integracionista. Orientou trabalhos finais dos cursos de graduação, assim
60 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

como do curso de especialização lato sensu da UEPB, todos com ênfase em discussões
acerca da sustentabilidade espacial. Foi também bolsista PRODOC do PPGG/UFRJ.
Atualmente é professor adjunto do Departamento de Geografia Humana e coordena-
dor de graduação dos cursos de bacharelado e licenciatura em geografia do Instituto de
Geografia da UERJ (campus Maracanã).
e-mail: morais.nilton@gmail.com
Os aspectos sutis da violência

Romário de Araújo Mello (UNICAMP)

O riso cristalino das crianças encanta os adultos, principalmente se elas estão


se divertindo. Entretanto, quando o riso toma ares de galhofa é preciso estar atento.
Nesse momento, pelo menos para um grupo, a alegria espontânea dá lugar a um sorriso
amarelo. A chacota, a gozação e os apelidos tão comuns entre as crianças – e princi-
palmente entre os adolescentes – não devem, de maneira alguma, ser encarados como
traquinagens aceitáveis. Chamar alguém de “orelha de abano”, “rolha de poço”, “tuca-
no”, “baleia”, “pintor de rodapé” ou “branca azeda” (sem contar os nomes pejorativos
relacionados à cor da pele, nacionalidade e diferença de gênero) pode, num primeiro
momento, parecer engraçado, mas essas são formas de discriminação e só têm um ob-
jetivo: diminuir o outro. Esse tipo de gozação ganhou o nome de bullying.
A palavra bullying tem como origem o termo bully, que quer dizer brigão, valen-
tão, tirano. Sem tradução exata em português, ela exprime atitudes agressivas, inten-
cionais e repetitivas, que ocorrem sem motivação evidente, causando dor e intimidação
em suas vítimas. Esse tipo de atitude sempre ocorreu entre as crianças, mas, infelizmen-
te, não era tão levado a sério. A percepção desse tipo de brincadeira como algo nocivo
começou a delinear-se na década de 1990, quando estudos internacionais focalizaram
as causas de violência nas escolas e de suicídios na adolescência. Descobriram que por
trás de atos extremos estava o sentimento de diminuir o outro, insuflado pela perse-
guição na escola e a insidiosa e frequente gozação de colegas. Aliem-se a isso a ebulição
hormonal e a necessidade de autoafirmação, fatos típicos da adolescência, e se chegará
a uma receita explosiva. Podemos, portanto, considerar como bullying: pôr apelidos,
gozar, ofender, humilhar, discriminar, isolar, ignorar, intimidar, perseguir, aterrorizar,
amedrontar, tiranizar, dominar, agredir, bater, chutar, empurrar, socar, ferir, roubar e
quebrar. Os sintomas dos alvos dessas ações, por sua vez, são: resistência ou mal-estar
62 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

na hora de ir para as instituições de ensino, baixo rendimento escolar, opiniões depre-


ciativas sobre si, baixa estima, roupas e livros estragados, isolamento e depressão, pesa-
delos e sono instável e, em casos extremos, atentado contra a própria vida. O autor do
bullying normalmente está replicando situações que o constrangem ou o fazem sofrer.
O ato funciona como uma desforra. A gênese da questão para o autor do bullying é que
temos pela frente uma pessoa acostumada a ter vontades e ordens sempre atendidas,
a ser poupada continuamente de frustrações e limites, alguém que gosta da sensação
de poder e superioridade, ou que pode se sentir inseguro, inadequado, pouco amado,
sofrer intimidações e humilhações em casa, ter sido vítima de abusos e viver sob pressão
para ser sempre o melhor.
Hoje em dia, contamos, também, com o cyberbullying, forma virtual da prática.
Fofocas, apelidos maldosos, ameaças e gozações típicas do ambiente escolar passam a
circular também na internet, ganhando proporção maior porque o agressor pode se
esconder atrás de uma postagem anônima. As vítimas, geralmente, são pessoas tímidas
– adolescentes com poucos amigos, que não conseguem se defender do que lhes desa-
grada, por exemplo –, com alguma característica física ou comportamental marcante
como obesidade, uso de óculos, baixa estatura ou, ainda, indefinição quanto à orienta-
ção sexual. Seus agressores, por sua vez, gostam de dominar, pois foram mimados pelos
pais e costumam ser líderes de seus colegas. Os rapazes são a maioria – cerca de 60% –,
mas as moças costumam ser mais cruéis, apelando para a difamação, fofoca, esnobação
e exclusão do grupo, sem explicações.
Atualmente, uma outra ferramenta veio dar mais força às insidiosas maldades:
a comunicação eletrônica. É nos blogs, nas conversas pela internet ou pelo celular
que, rápida e eficientemente, se pode difamar alguém que, no dia seguinte, só encon-
trará indiferença no rosto dos que eram seus amigos. Por incrível que pareça, os mais
variados sites existentes, nos quais só entram “convidados”, podem servir como um
meio ostensivo de exclusão.
No fundo, os estudantes sabem: quem não foi vítima de bullying, ou está sendo
ou, um dia, será; é algo que tende a se solidificar na nossa sociedade, se não houver
intervenção. A despeito disso, todos têm interesse num ambiente mais sadio de tole-
rância e respeito às diferenças. As vítimas podem ficar cada vez mais encolhidas e, um
dia, explodir sem mais nem menos ou, ainda, quando ficarem mais velhas e se desco-
brirem poderosas por este ou aquele motivo, podem tornar-se agressoras. As ações de
apelidar com maldade um amigo ou ofender um colega na internet são consideradas
cyberbullying. O ambiente é favorável à propagação dessas inimizades, o que aumenta
também a agressividade entre os jovens.
Chicotadas, humilhações, tapas, xingamentos, cuspes no rosto, ameaças, abuso
sexual, estupro e até envenenamentos foram atos praticados por estudantes de gran-
Os Aspectos Sutis da Violência 63

des universidades públicas e privadas do Brasil, nos últimos dez anos, como parte da
recepção de candidatos aprovados no vestibular. O ritual é popularmente conhecido
como “trote”.
Vale salientar que, desde dezembro de 2014, relatos de práticas como essas vêm
sendo colhidas por integrantes de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na
Assembleia Legislativa de São Paulo, que apura a violação dos direitos humanos em
universidades paulistas.
Os depoimentos na CPI comprovam que pouca coisa mudou desde a morte do
estudante Edison Hsueh, em 1999, vítima de afogamento durante trote organizado por
alunos da Faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP). Ele foi jogado na
piscina da associação atlética da faculdade sem saber nadar. Em 2013, o Supremo Tribu-
nal Federal absolveu os quatro acusados do crime definitivamente, por falta de provas.
Mesmo em 2015, o trote ainda é uma ameaça para muitos jovens que estão in-
gressando no ensino superior. A pergunta que fica é: até quando as agressões ocorridas
dentro e ao redor de universidades e faculdades ficarão impunes no Brasil?
É inaceitável que estudantes que ingressam no ensino superior sejam obrigados
a se sujeitar às seguintes formas de violência durante o trote: tirar as roupas e correr
nus em festas e eventos; pintar o rosto e o corpo; consumir bebidas alcóolicas; receber
xingamentos e humilhações; levar chicotadas; participar de jogos que envolvem violên-
cia física; pular em piscinas; ter o cabelo cortado; sofrer abuso sexual e estupro; engolir
bebidas misturadas com urina; e, às vezes, ter até fezes jogadas no rosto e no corpo.
Na semana de 11 a 18 de outubro de 2014, um laudo que vazou do Instituto
Médico Legal de São Paulo apontou que a causa da morte do jovem Victor Hugo
Santos, de vinte anos, encontrado na raia olímpica da USP no final de setembro, teria
sido afogamento após o consumo de uma droga sintética relativamente nova no Brasil,
conhecida como 25-B-NBOMe – essa sigla se refere a um grupo de drogas alucinó-
genas derivada do ácido lisérgico (LSD). No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária já encontrou 11 variações, todas na lista de substâncias proibidas. A droga
– que guarda algumas similaridades com o LSD, mas tem sabor um pouco amargo e
pode levar até seis horas para produzir efeito – foi sintetizada há menos de dez anos,
provavelmente na Alemanha, e produz euforia e alucinações (alterações da percepção).
Efeitos colaterais indesejados incluem paranoia, confusão mental, convulsão e morte.
O episódio na USP pode servir de alerta para alguns fenômenos que têm acontecido
com relação ao uso desse tipo de substância entre os mais jovens.
Boa parte dos jovens consumidores das sintéticas não tem ideia do que está to-
mando. Denominações afetivas como “balas” (estimulantes) ou “doces” (alucinógenos)
são utilizadas para se referir a elas, que funcionam como uma espécie de aditivo para
as baladas. Não é incomum que, ao comprar um ingresso para uma festa, alguém da
64 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

turma se encarregue de arrumar o “combustível”. O conceito de “droga” que agrega


riscos e efeitos colaterais não é claramente percebido.
No Brasil, além da defasagem salarial das mulheres, que está, em média, 59%
abaixo do masculino, outros números revelados em novembro de 2014 escancaram
outra faceta perversa da questão do gênero: a violência sexual. Dados do oitavo Anu-
ário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2014)
mostram que o número de mulheres vítimas de estupro no Brasil pode ter alcançado
cento e quarenta e três mil em 2013, o que significa um estupro a cada quatro minutos.
O número é uma projeção, uma vez que foram registrados, de fato, 50.320 casos. As
estimativas dos especialistas são de que 35% dos episódios sejam oficialmente relatados.
De um lado, a cultura machista, o sexismo, a dificuldade do homem de lidar com
a nova mulher, a visão distorcida de que é posse masculina e a impunidade; do outro, o
medo e a vergonha das vítimas, que acabam dando combustível para que essa violência
continue.
No dia 12 de novembro de 2014, alunas da Universidade de São Paulo denun-
ciaram em audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo casos
de abuso e violência sexual e até mesmo de estupro na Faculdade de medicina. Um
inquérito aberto pelo Ministério Público Estadual investiga agressão e discriminação
a mulheres homossexuais. As vítimas afirmam que estariam acontecendo, também,
tentativas da direção da faculdade de ocultar os casos para preservar a imagem da
instituição.
O absurdo não é isolado da medicina da USP: nos últimos anos tem se repetido
em diversos cursos e universidades brasileiras. É muito grave que essa violência acon-
teça justamente com quem está sendo formado para cuidar de pessoas e salvar vidas. É
imperativo que as investigações avancem, que culpados sejam punidos e, além disso,
que se faça com alunos, desde o momento do trote, um trabalho profundo de respeito
aos direitos humanos, tolerância e compromissos éticos e profissionais. Como medidas
concretas, a universidade pode adotar medidas administrativas disciplinares, como ex-
pulsar alunos envolvidos em qualquer tipo de violência. Deve existir, também, alguma
forma de controle desses trotes. No caso de festas e outros eventos, deve se estabelecer
algum tipo de regra. Não há por que o consumo de bebidas e de drogas ser livre no
ambiente universitário.
Creio que o fim da violência depende da mobilização da sociedade e dos cursos
de licenciatura que preparam educadores.
Os Aspectos Sutis da Violência 65

Referências

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.


São Paulo, 2014.
MEDRADO, Hélio Iveson Passos. Violências do Cotidiano à Instituição Escolar. Porto de Ideias
Editora, 2010.
——. Violência nas Escolas. Sorocaba: Editora Minelli, 2008.

Biografia

Romário de Araújo Mello: embriologista e fetologista; especialista em mal-


formações embrionárias envolvendo aspectos genéticos e ambientais, com mestrado e
doutorado pela UNICAMP. Autor de Embriologia humana (Atheneu, 2002) e Embrio-
logia e fetologia da alma (Editora Schoba, 2015).
e-mail: roma.embrio@gmail.com
Expandindo os horizontes da licenciatura:
experiências de formação do núcleo de
desenvolvimento linguístico

Marcello de Oliveira Pinto (UERJ)

Introdução

Nos últimos anos, os cursos de licenciatura passaram por um movimento de res-


truturação orientadas pelas resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE/CP
2002, 2004, 2005). Paralelamente, os profissionais da educação discutiram a natureza
da formação de professores e as questões que englobam a construção de programas de
formação a partir de suas vivências e investigações. No campo das licenciaturas em
letras não foi diferente: a reconstrução dos currículos das licenciaturas tentou incorpo-
rar as preocupações relevantes à área. Neste texto, apresento uma proposta de ação no
espaço desta formação que tenta contemplar alguns desses anseios.

Contextos

No âmbito dos debates sobre os rumos das licenciaturas em letras, algumas ques-
tões (não exclusivas da área, é verdade) costumam ser recorrentes. Uma delas é a ideia
de que a formação do profissional/professor não deve se restringir apenas à natureza
específica de seu campo disciplinar, nem se fechar num intenso debate sobre as esferas
sociopolíticas que envolvem a educação. Isso aponta para a necessidade de se tentar
evitar, na construção dos currículos, uma fragmentação formativa. Soluções de cunho
68 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

interdisciplinar/integrativo que agregam os valores tanto das áreas específicas quanto


da práxis educativa parecem ser alternativas plausíveis e, embora estejam constante-
mente em pauta, são poucas as instituições de ensino superior que foram capazes de
implementá-las (Gatti e Barreto, 2009). Isso se deve, em grande parte, à pouca dispo-
sição dos próprios professores para redimensionar a natureza hermética das ementas e
conteúdos de suas disciplinas e ao fato de não articularem as suas disciplinas ao perfil
de profissional que pretendem construir. Desta forma, as licenciaturas, mesmo após
as reformulações recentes, não aparentam articular em seus currículos a formação das
áreas disciplinares aos campos da prática profissional, das formas de se trabalhar estes
conteúdos em sala de aula e dos fundamentos pedagógicos relativos às especificidades
de cada disciplina (precisamos lembrar que, em muitos casos, o próprio professor uni-
versitário, formado na sua grande maioria por meio do trinômio bacharelado/mestra-
do/doutorado, não passou por nenhum treinamento pedagógico).
Outra dificuldade para a implementação de um modelo de licenciatura alternati-
vo é a questão da própria prática pedagógica. Sabemos da relevância da experiência em-
pírica no contexto profissional e da importância dos estágios para o aprendiz. Sabemos
também que esta é uma área de tensão, pois os estágios obrigatórios são, em muitos
casos, realizados sem um planejamento e uma articulação com a proposta curricular do
curso e nem promovem o contato com os diversos sistemas de ensino que compõem o
universo de atuação do professor. Além disso, muitos não definem de forma transpa-
rente os critérios de supervisão das atividades do licenciando. Mesmo quando o estágio
não apresenta estes problemas, são raros os projetos que incluem um mergulho mais
intenso nas rotinas do mundo profissional. Como, por exemplo, a construção de ma-
teriais didáticos e sua pilotagem, atividades extracurriculares, organização de eventos e
oficinas, administração de recursos didáticos, tarefas de organização e manutenção do
ambiente de ensino, entre outras que, de alguma forma, possam incluir o licenciando
na rotina pedagógico-administrativa. Como sugere Paiva (2005), ainda seria profícuo
engajar o estagiário em

[...] projetos de pesquisas em forma de estudos de caso e pesquisAção e projetos de edu-


cação continuada em que estagiário e professor estabelecem parcerias para que, juntos, o
primeiro se forme e o segundo garanta sua qualificação continuada.

O estágio seria um espaço de engajamento amplo, que pudesse oferecer oportu-


nidades de reflexão sobre as práticas, sobre os problemas pontuais da regência, avaliação
do papel das escolhas dos materiais didáticos frente ao dia a dia da sala de aula, socia-
lização de experiências e análise de resultados. A situação ideal incluiria também uma
experiência de regência efetiva, supervisionada e desenvolvida com seus pares e super-
Expandindo os horizontes da licenciatura 69

visores, nos moldes da etapa clínica dos cursos de medicina. Em suma, é o momento
de fomentar a inserção do profissional no ambiente de trabalho de forma reflexiva e
colaborativa, fazendo-o perceber o caráter continuado e ininterrupto de sua formação
(ver Isaia e Bolzan, 2006, 2007; Maciel et al, 2012).
Com essas premissas em mente, esboçamos um projeto que pudesse prover opor-
tunidades para a licenciatura em letras, português-inglês, da Faculdade de Formação
de Professores (FFP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ao construir um
ambiente para implementar modelos que, posteriormente, pudessem ser incorporados
às experiências do núcleo curricular. Assim surge o Projeto Núcleo de Desenvolvimen-
to Linguístico (NDL), desenvolvido como uma experiência extensionista (por ser um
espaço criativo e extremamente relevante como ponto de encontro entre academia e
sociedade) que nos permitiu a liberdade que a estrutura curricular não oferece. O NDL
nasce, portanto, tendo como principais objetivos contribuir para a formação profissio-
nal do aluno de letras; oferecer à comunidade acesso ao ensino de línguas; promover a
oportunidade de ações pedagógicas suplementares que possibilitem o desenvolvimento
das competências linguísticas dos alunos da graduação; expandir os resultados das ações
propostas pelo programa à comunidade interna e externa; e desenvolver um ambiente
de estímulo à pesquisa.
Em relação a seu caráter fundamentalmente social, o projeto visa desenvolver
profissionais do ensino de línguas (e também suas literaturas) que sejam conscientes do
seu papel como profissionais e cidadãos e também cientes de seu compromisso social;
eficientes nas técnicas de ensino apropriadas a seus campos de conhecimento; capaci-
tados para atuar em contextos específicos de mercado e preparados para a realidade da
regência de turmas; engajados na análise dos problemas de suas práticas e transforma-
dores destes problemas em alternativas e inovações pedagógicas; criteriosos na escolha,
seleção e desenvolvimento de materiais; habilidosos na avaliação de necessidades espe-
cíficas dos contextos, de seus alunos e da sociedade.
O projeto funciona, desde então, como espaço e meio para professores da UERJ
que desejem desenvolver pesquisas e projetos interligados, oferecendo oportunidade
para os alunos monitores iniciarem seus trabalhos de pesquisa em sala de aula. Sejam
estes no âmbito da iniciação à docência, dos estágios internos complementares, da ini-
ciação científica ou da pós-graduação.
Aprovado pelas instâncias competentes da UERJ, o NDL começa suas atividades
em 2004 e se constitui em três eixos: o Curso de Língua para a Comunidade, o projeto
Ações Suplementares e, por fim, o Fórum Permanente de Estudos em Língua e Lite-
raturas em Língua Inglesa. Destacamos agora as características principais de cada um.
70 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Curso de Língua para a Comunidade

O Curso de Língua Inglesa para a Comunidade (ou CLIC, como é conhecido)


oferece ensino de língua estrangeira para o público interno e externo à UERJ. Os alu-
nos da licenciatura em letras são os monitores do projeto e, durante sua permanência,
devem ser supervisionados e avaliados pelos professores que fazem parte da equipe.
Entre seus objetivos específicos, destacamos a intenção de se iniciar um processo autor-
reflexivo com o objetivo de verificar, na ação, as visões de ensino/aprendizagem subja-
centes ao ensino de língua estrangeira. O curso já treinou mais de 130 licenciandos e
cerca de 3 mil alunos da comunidade interna e externa passaram pelos cursos de língua
inglesa e alemã, além de oficinas nestes idiomas e em língua portuguesa. É importante
destacar o impacto do projeto para toda a comunidade de letras da FFP, pois, graças a
seu empenho em busca do reconhecimento de sua proposta e de sua qualidade, recebe
um expressivo número de solicitações de vagas, fazendo com que a graduação em letras
e suas atividades tornem-se cada vez mais conhecidas pela comunidade.

Projeto Ações Suplementares

A proposta do projeto Ações Suplementares é apoiar o desenvolvimento das


competências de uso da língua inglesa dos alunos da graduação em português-inglês,
proporcionando uma atividade de apoio e acompanhamento monitorado paralelo à
graduação. Seu funcionamento ocorre da seguinte forma: o aluno, voluntariamente
ou por encaminhamento de professores do setor de língua inglesa, cumpre, ao longo
de um semestre, o mínimo de vinte horas em atividades de estudo individual dessa
língua, sob observação e auxílio de um monitor e supervisão de orientadores que
colaboram na construção de planos de estudo, seleção e confecção de material. O
projeto tem como metas específicas de longo prazo: produzir dados estatísticos em
relação às necessidades específicas da formação linguística do futuro professor de lín-
gua inglesa e à proporção dos alunos atendidos pelo programa; desenvolver recursos
didáticos e atividades específicas para o contexto de sua ação; promover crescimento
qualitativo do domínio de língua; analisar os dados obtidos; propor e operacionali-
zar outras ações que possam facilitar o desenvolvimento do conhecimento específico
do profissional formado pelo setor (como, por exemplo, o curso sobre os clássicos
da literatura em língua inglesa oferecido para os cotistas do primeiro período). É
importante citar a pesquisa, iniciada no fim de 2004, que coletou dados através de
questionários aplicados a cerca de 98% dos alunos matriculados naquele período, ob-
jetivando traçar o perfil do aluno de licenciatura em letras português-inglês e inves-
tigar sua experiência com a língua estrangeira. Recebemos cerca de vinte alunos por
Expandindo os horizontes da licenciatura 71

semestre em cada atividade do projeto e estimamos ter atendido cerca de quinhentos


alunos até o presente momento.

Fórum Permanente de Estudos em Língua e Literatura em Língua Inglesa

O Fórum Permanente de Estudos em Língua e Literatura em Língua Inglesa


(FELLI), cujo caráter é inter e pluridisciplinar, tem como objetivo a construção de um
espaço de divulgação do programa para a comunidade, incentivando a troca de infor-
mações e dados à disposição dos mestres e doutores do departamento de letras, dos
graduandos e da comunidade; funciona como um espaço constante de intercâmbio de
ideias e concretização de propostas. Assim sendo, o FELLI promove debates e encon-
tros entre os professores, graduandos e a comunidade e treinamento para os monitores
do projeto. Este eixo também é responsável pela análise e avaliação do impacto das
ações do programa, gerando dados estatísticos. Até 2008, o fórum realizou eventos
anuais que representaram a culminância das atividades do programa, contando com a
participação de profissionais convidados da área de letras, professores e pesquisadores
interessados na área de ensino e graduandos apresentando suas primeiras investigações.
Participam do evento não somente membros da UERJ, como também de um grande
número de universidades particulares e públicas do Rio, além de profissionais de outros
estados. É importante acentuar a participação engajada dos alunos, tanto na organiza-
ção dos eventos, que contou, por exemplo, com 13 monitores voluntários em 2005,
quanto na apresentação de suas reflexões e microinvestigações pedagógicas. Atualmente
realizamos nosso encontro anual como um evento interno de treinamento e avaliação
e promovemos um encontro de nível nacional em parceria com nosso outro projeto, o
Seminário Permanente de Estudos Literários (SePEL), que recebe entre quinhentas e
oitocentas inscrições de trabalhos em cada edição.

Desdobramento, resultados e perspectivas

Recentemente, passamos a contar com a ajuda dos recursos de produção editorial


do Laboratório Multidisciplinar de Semiótica (LABSEM), projeto parceiro que ofere-
ceu suas instalações no Instituto de letras do campus Maracanã para a realização de nos-
sa produção visual. Implementamos uma série de rotinas administrativas em ambientes
colaborativos on-line (banco de provas e recursos, por exemplo) e foi possível efetivar
um processo de gerenciamento digital, via web, das rotinas de matrícula e de geren-
ciamento de informações, incluindo um curso de treinamento on-line (via plataforma
Moodle) oferecido em parceria com o projeto LETRAS 2.0 da Faculdade de letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Destacamos também nossa parceria,
72 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

tanto com a editora Macmillan, que realizou, periodicamente, treinamento para nossa
equipe de língua inglesa – inclusive promovendo evento com Paul Davies, um dos au-
tores da série de livros didáticos Skyhigh, utilizada no curso até 2014 – quanto com o
Instituto Goethe do Rio de Janeiro, que nos oferece apoio pedagógico e material para
o treinamento dos monitores de língua alemã.
Dessa forma, a formação profissional desenvolvida no programa envolve partici-
pação e tomada de decisões nos níveis administrativos, de produção de conhecimento
e de ações de regência. Essa experiência transforma o aluno ao incluí-lo num espaço no
qual sua ação reflexiva é necessária, levando à tematização da função social da profis-
são e de seus desafios. Os alunos passam a desenvolver interesse pela pesquisa (não da
forma clássica da academia, ou seja, aquela na qual o aluno adere ao projeto já articu-
lado de um professor que pré-determina a questão a ser investigada) e solidificam suas
escolhas e decisões mergulhados numa “rotina profissional”. Além disso, a vivência no
projeto proporciona ao aluno uma gama de experiências que o destacam na hora de
entrar no mercado: os ex-bolsistas e voluntários atribuem ao seu tempo de participação
no projeto o fato de saber lidar com as diversas demandas no ambiente de trabalho.
Outros ainda construíram projetos de ensino próprios e atuam no ensino comunitário
gerenciando atividades, o que potencializa nossos objetivos além-muros.
Agregadas à formação do licenciando, o projeto oferece, ainda, oportunidades
aos que não podem custear o estudo de línguas estrangeiras nem material didático, que,
assim como os cursos e oficinas, é gratuito para aqueles que não podem arcar com os
custos. Isso gera um impacto significativo na esfera social de execução do NDL. Esta
face de nosso trabalho estimula, também, uma constante reflexão sobre o contexto de
nossas ações. Frequentemente questionamos e colocamos em pauta perspectivas sobre
as práticas pedagógicas comunitárias, sobre a história da ação comunitária no contexto
do estado e da nossa cidade e sobre os fundamentos teóricos e a construção da cidada-
nia mediada pelo desenvolvimento de habilidades linguísticas em língua estrangeira,
tornando o debate sociopolítico em torno da educação parte da experiência empírica
da formação do licenciando.
Nosso projeto é, em suma, um laboratório, uma rede articulada de atividades
e um espaço alternativo na configuração da formação do professor. Esperamos que
nossas atividades possam contribuir para a percepção da relevância de se tentar oxi-
genar as licenciaturas através de propostas de articulação de saberes e práticas. Tam-
bém, queremos pôr em foco a extensão universitária, que, para nós, além de um ca-
minho possível para o desenvolvimento de práticas mais democráticas de construção
de conhecimento, é uma bússola que revela novos sentidos para a atuação acadêmica,
muitas vezes centrada em objetivos que pouco transcendem desejos individualistas.
Esperamos, por fim, contribuir, por meio destas experiências, com aqueles que bus-
Expandindo os horizontes da licenciatura 73

cam pensar em formas de superar a fragmentação formativa que ainda pauta a estru-
tura das licenciaturas atualmente.

Referências

BOLZAN, D. P. V.; ISAIA, S.; MACIEL, A. M. R. Movimentos construtivos da docência/aprendizagem:


tessituras formativas. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO
– ENDIPE, 15., 2010, Belo Horizonte.Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2010. p. 2-14.
CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/ Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 1/2002. Diário Oficial
da União, Brasília, 18 de fevereiro de 2002, Seção 1. p.7.
CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/ Conselho Pleno.Resolução CNE/CP 2/2004. Diário Oficial
da União, Brasília, 1° de setembro de 2004, Seção 1, p. 17.
CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/ Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 1/2005. Diário Oficial
da União, Brasília, CNE/CP - Conselho Nacional de Educação/ Conselho Pleno. Resolução CNE/
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GATTI, B. A.; BARRETO, E. S. S. (Orgs.). Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNES-
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In: CUNHA, M. I. (Org.). Reflexões e práticas em pedagogia universitária. Campinas: Papirus,
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PAIVA, V.L.M.O. O Novo Perfil dos Cursos de Licenciatura em Letras. In: TOMICH et al. (Orgs.). A
interculturalidade no ensino de inglês. Florianópolis: UFSC, 2005. p.345-363. (Advanced Research
English Series).

Biografia

Marcello de Oliveira Pinto é pós-doutor pela PUC Rio e atua como professor
adjunto da UERJ, onde é co-coordenador da especialização em língua portuguesa na
FFP e vice-líder do SePEL-UERJ (Seminário Permanente de Estudos Literários) e do
Grupo de Pesquisa Nós_do_Insólito.
e-mail: marcellouerj@gmail.com
Formação sem fronteiras: um olhar inovador
acompanhado de desafios

Katia Ferreira Fraga (UFPB)

Introdução

Em 2009, por iniciativa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní-


vel Superior (CAPES), foi criado o Programa das Licenciaturas Internacionais (PLI)
com o objetivo de estimular projetos de melhoria do ensino e da qualidade na formação
inicial de professores nas áreas de química, física, matemática, biologia, letras, artes e
educação física. Esse programa de dupla titulação teve seu primeiro edital lançado em
2010, no qual se firmava o intercâmbio de estudantes de graduação em licenciatura —
em nível de graduação sanduíche — apenas com a Universidade de Coimbra. Uma das
justificativas para o lançamento do PLI foi o reconhecimento de que as áreas de ciências
humanas tinham poucas possibilidades de participação em programas internacionais e
essa experiência poderia motivar os estudantes a entrar na carreira docente e a atuar na
educação básica. É necessário ressaltar que um dos critérios de seleção dos candidatos
é o de ter cursado todo o ensino médio e pelo menos dois anos do ensino fundamen-
tal em escolas públicas brasileiras, buscando assim resgatar alunos oriundos do ensino
público — conhecedores dessa realidade — para que, formados, venham a exercer a
profissão no contexto em que estudaram, podendo aplicar seus conhecimentos na me-
lhoria do ensino básico.
O edital de 2012 ampliou o intercâmbio para outras universidades portugue-
sas — Universidade Nova de Lisboa, Universidade da Beira Interior, Universidade
do Algarve, Universidade de Aveiro, Universidade de Évora, Universidade de Lisboa,
Universidade do Minho, Universidade do Porto, Universidade Técnica de Lisboa
e Universidade Trás-os-Montes —, permitindo que mais estudantes tivessem a oportu-
nidade de vivenciar a experiência internacional de formação.
76 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

A partir de 2013, além do PLI-Portugal, também foram oferecidas vagas para


estudantes de francês e português na Universidade de Sorbonne, na França, visando,
mais uma vez, à diversificação curricular dos cursos de licenciatura brasileiros.
Esse breve histórico do Programa de Licenciaturas Internacionais se fez neces-
sário para poder situar as questões que abordaremos neste capítulo, no que tange à
formação de professores de línguas e às questões curriculares dos cursos de letras, área
de nossa atuação.

A experiência internacional na formação do professor de línguas

Os aspectos positivos de uma experiência de formação internacional são inques-


tionáveis. O valor agregado ao currículo, a possiblidade de conhecer outras organiza-
ções curriculares, outros conteúdos, outras metodologias, outras formas de avaliação,
outras organizações sociais somam-se a outros fatores culturais, tais como o conheci-
mento de outras organizações políticas, outras formas de falar e pronunciar, outros
hábitos alimentares etc. Enfim, um novo mundo que se apresenta e nos faz refletir so-
bre nosso próprio comportamento, nossa identidade e nossa realidade. Segundo Kern
(2000, p. 50),

não somos recipientes vazios aguardando passivamente ser preenchidos por mensagens;
ao contrário, produzimos entendimento atuando ativamente na construção de signifi-
cados que são baseados em parte naquilo que vemos e ouvimos e em parte nas nossas
expectativas provenientes de nosso conhecimento e experiência pré-existentes.

Para o profissional de letras em formação, a concepção de linguagem é crucial para


a escolha de suas ações pedagógicas e, ao vivenciar a experiência internacional de negocia-
ção e construção de sentidos em interação contextualizada, o futuro professor perceberá
que ensinar uma língua ultrapassa o simples ensino do código linguístico: é possibilitar
ao aluno agir socialmente através da língua. Ensinar e aprender uma língua é permitir que
o ser humano, através do acesso e do domínio das tramas discursivo-ideológicas, se apro-
prie de modos de pensar e ressignifique sua consciência, produzindo práticas culturais e
identidades. A experiência internacional permite formar o que Byram e Fleming (1998)
chamam de falante intercultural, ou seja, aquele que, consciente de suas identidades e
culturas, é capaz de estabelecer relações entre a cultura da língua materna e a da língua-
-alvo. Promover uma educação linguística intercultural é “equipar os aprendizes com
os meios de acessar e analisar quaisquer práticas ou significados culturais com que se
deparem” (Byram, 1997, p. 19), tornando-os mediadores de universos diferenciados
que se conciliam pela atividade de linguagem.
Formação sem Fronteiras: Um olhar inovador acompanhado de desafios 77

Além desse aspecto associado à língua/linguagem, a formação do professor de


línguas exige momentos de reflexão sobre o que Cicurel (2003) chama de façons de fai-
re, herdadas de uma tradição educativa que se deixa transparecer na forma de ensinar/
aprender. Podemos destacar alguns pontos observáveis da cultura educativa:

• os modelos de transmissão de conhecimento, tais como o papel da escrita, da


memorização;
• as regras sociais de funcionamento da sala de aula, o sistema de controle das
falas, do comportamento gestual ou, ainda, do vestuário;
• as diferentes formas de organização das atividades didáticas de acordo com a
metodologia adotada, o contexto;
• a forma de didatizar os conhecimentos (mais explícita/menos explícita);
• a forma de avaliação e de notação.

Poder estudar em uma instituição em Portugal ou na França permite que o pro-


fessor brasileiro em formação observe outra cultura educativa, reflita sobre aquela que
o acompanhou em seu percurso de estudante e abra novas perspectivas para sua atua-
ção futura. Alguns aspectos da cultura educativa, porém, podem dificultar a adaptação
dos alunos às instituições estrangeiras. Na segunda reunião geral de coordenadores do
Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), realizada na Universidade do Algarve
em 2013, houve relatos de coordenadores que indicaram a dificuldade encontrada por
parte de alguns estudantes no que se refere às relações de ensino-aprendizagem, aos
instrumentos de avaliação, aos períodos em que estas são realizadas e também no que
se refere ao conteúdo das disciplinas. Esse tema em questão — conteúdo curricular —
merece ser abordado individualmente na seção a seguir.

Processo de Bolonha: estabelecimento do espaço europeu do ensino superior

Em maio de 1998, por ocasião do octigentésimo aniversário da Universidade de


Paris, os ministros responsáveis pelo ensino superior da Alemanha, da França, da Itália
e do Reino Unido adotaram a Declaração da Sorbonne, que pretendia harmonizar a
arquitetura do sistema europeu do ensino superior. No ano seguinte, a Declaração
de Bolonha (19 de junho de 1999) reuniu 29 países signatários com linhas de ação
voltadas para o estabelecimento de um Espaço Europeu de Educação Superior, que
pretendia estimular a mobilidade de docentes e discentes, criar uma estrutura em ci-
clos compatível para a formação acadêmica com base no modelo 3+2+3 (licenciatura,
mestrado e doutorado), adotar um sistema de transferência de créditos (ECTS) e uma
maneira comum de descrever as qualificações. Outro objetivo do Processo de Bolonha
78 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

é a promoção da empregabilidade dos cidadãos europeus, contribuindo para o desen-


volvimento econômico, social e humano da Europa e o aumento da competitividade
com outros sistemas de ensino do mundo — Estados Unidos e Japão.
O Processo de Bolonha visa desenvolver a dimensão europeia na educação, so-
bretudo, através do ensino e divulgação das línguas dos Estados-membros. Segundo
Morgado (2009, p. 49):

No domínio curricular, a tendência tem sido para a progressiva europeização do currículo


quer através da elaboração de propostas curriculares que obedeçam a referenciais bem
definidos, quer pela implantação de critérios uniformes de organização curricular a diver-
sos níveis de regulação política, quer ainda pela definição de resultados de aprendizagem
(learning outcomes), de competências gerais e estratégicas comuns (Pacheco e Vieira,
2006). Embora a tentativa de construir um território curricular europeu tenha radicado,
até ao momento, mais em referenciais de estrutura organizacional do que na uniformi-
zação dos conteúdos programáticos, tudo indica que, a seu tempo, as opções curriculares
acabarão por enfraquecer as territorialidades curriculares nacionais, regionais e locais a
favor da legitimação de um conhecimento escolar internacional que represente não só as
metas que, em termos de educação e formação, cada nação deve concretizar no quadro
da Comunidade Europeia, mas também os interesses de certos setores de influência e dos
grupos sociais dominantes que se movem nesse contexto.

Essa “europeização” do currículo é um elemento complicador para os estudantes


brasileiros, pois a arquitetura curricular dos cursos de letras no Brasil, regida pela Lei
de Diretrizes e Bases de 1996, deve respeitar as diretrizes curriculares que, por sua vez,
orientam a incluir os conteúdos definidos para a educação básica. A carga horária das
licenciaturas, de acordo com a resolução nº 1 de 18/02/2002, é de 2800 horas, englo-
bando 400 horas de prática, 400 de estágio curricular supervisionado, 1800 de aulas
para os conteúdos curriculares de natureza científico-cultural e 200 para outras formas
de atividades acadêmico-científico-culturais. Ou seja, durante os quatro anos de for-
mação nas licenciaturas de letras, os estudantes brasileiros se preparam não apenas para
os conteúdos (saberes) que devem ser de domínio de um profissional das letras, mas
também para o conhecimento da prática — do savoir-faire da profissão —, por meio
dos estágios e das disciplinas voltadas para o ensino e a educação escolar.
O que se observa é que o sistema de ciclos das universidades europeias faz
com que a formação docente ocorra apenas no segundo ciclo (mestrado), pois no
primeiro os alunos focam nos estudos de língua, literatura e uma das línguas europeias.
Ressalta-se ainda que os conteúdos programáticos do ensino básico e secundário não
são semelhantes aos conteúdos da escola brasileira. Consequentemente, os estudantes
Formação sem Fronteiras: Um olhar inovador acompanhado de desafios 79

brasileiros que ingressam no Programa PLI podem encontrar dificuldades de adaptação


ao conteúdo das disciplinas que cursarão na instituição estrangeira.
Outro ponto sobre o qual devemos refletir é a questão dos créditos a cumprir nas
instituições europeias. As disciplinas — ou unidades curriculares, como são chamadas
por lá — representam geralmente três horas/semana de contato com o professor em
sala de aula, mas, para além desses encontros, há a contagem de horas em orientações
teóricas, trabalhos autônomos, trabalhos práticos que, juntos, vão somando horas rever-
tidas em créditos. Cada ano da licenciatura deve reunir sessenta créditos e os três anos
do primeiro ciclo chegam a 180 créditos, perfazendo um total de 1500 a 1680 horas.
Fica evidente, enfim, que a estruturação dos cursos não é a mesma e que não
há como buscar uma equivalência real das formações no Brasil e nas universidades
portuguesas e francesas. O que devemos avaliar e discutir são os aspectos positivos
que a dupla formação oferece aos estudantes e os desafios que deveremos enfrentar
para chegar ao objetivo proposto no programa: a melhoria do ensino e da qualidade
na formação inicial de professores, visando a sua atuação no ensino básico das escolas
públicas brasileiras.

Potencialidades sim, mas desafios e questionamentos também

A questão fundamental na formação, tanto inicial quanto contínua, é como passar da


dependência sem reflexão, da busca pura e simples de modelos a serem imitados, para
uma independência informada, uma independência que, a partir da análise de contextos
específicos, permite tomada de decisões que podem até contrariar os ensinamentos do
formador, mas que resultam de reflexões fundamentadas (Celani, 2010, p. 63).

A intenção do governo brasileiro de criar, através da CAPES, o Programa de


Licenciaturas Internacionais demonstra uma preocupação com a formação de profes-
sores e a consequente melhoria do ensino básico. Essa iniciativa desencadeou projetos
de cooperação entre instituições brasileiras, portuguesas e francesas que enriquecem as
pesquisas de vários docentes participantes do PLI e promovem a difusão de conheci-
mentos entre os pesquisadores e os discentes selecionados. Como dito anteriormente,
são inquestionáveis a importância e o valor de vivenciar dois anos de formação em
universidades europeias, principalmente quando o período de estudo é supervisiona-
do por uma coordenação da instituição de origem (brasileira) e por um coordenador
na instituição de acolhimento do estudante (instituição europeia). É evidente que a
mobilidade estudantil no ensino superior sempre existiu, pois as instituições de ensino
superior (IES) realizam acordos bilaterais com instituições do mundo inteiro e o corpo
80 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

docente da universidade também desenvolve parcerias e pesquisas conjuntas com gru-


pos e laboratórios de pesquisa. O que difere nesse programa é seu caráter institucional,
o que garante um acompanhamento mais detalhado do que ocorre com os estudantes
selecionados. As coordenações, em conjunto, devem criar estratégias de acompanha-
mento que permitam ajustes nos programas de estudo pré-selecionados, estimulem os
estudos deles e preparem seu acolhimento na instituição estrangeira, diminuindo as
chances de problemas de adaptação ao novo contexto cultural.
Essa cooperação entre as coordenações é vital para garantir o foco da formação:
a atuação docente na educação básica. Como bem diz Celani (2010), essa experiência
deve levar o discente a refletir e se informar sobre os contextos observados e não apenas
imitar modelos, até porque a licenciatura nas instituições europeias não prevê discipli-
nas de prática docente e/ou de estágios. Mesmo que os professores envolvidos no proje-
to decidam adaptar os programas de estudo incluindo visitas às escolas de ensino básico
das localidades em que se encontram as instituições, a realidade escolar de Portugal ou
da França em nada se assemelham à realidade escolar brasileira — nem em recursos e
instalações, nem em conteúdos e organização curricular.
Em sua palestra na II Reunião Geral de Coordenadores do PLI na Universidade
do Algarve, em 2013, o professor Antonio Fragoso relatou que a definição dos currí-
culos se deu a partir de um encontro entre cem universidades europeias.1 Estudantes
das respectivas instituições, empresas e empregadores de diferentes áreas do mercado de
trabalho definiram as dez competências mais importantes para um profissional. A par-
tir da escolha dessas competências é que os conteúdos das unidades curriculares seriam
definidos, a fim de alcançá-las. Ou seja, buscou-se definir currículos que não fossem
baseados somente em conhecimentos, mas também na aquisição dessas competências.
A questão curricular, por si só, já é um tema a ser discutido, repensado, analisa-
do pelas coordenações brasileiras e seus estudantes. Seria interessante propor à escola
brasileira um currículo baseado em competências exigidas pelo mercado profissional?
Ainda no tocante à questão curricular, o PLI exige que os candidatos seleciona-
dos tenham cursado todo o ensino médio em escolas públicas, o que é bastante louvá-
vel, pois oferece uma grande oportunidade de formação àqueles que certamente não
teriam possibilidade de ingressar em um programa de mobilidade entre as IES e uni-
versidades parceiras em função dos custos que representa. Os resultados apresentados
pelos alunos oriundos de escolas públicas, porém, em sua grande maioria, não são sa-
tisfatórios, vide o rendimento nas redações do ENEM, por exemplo. Tal exigência tem
criado dificuldades para os coordenadores de projetos, uma vez que se veem obrigados
a escolher os melhores alunos dentro de um universo que não representa, obrigatoria-

1
O vídeo da palestra encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0CrpYvr9Gag.
Formação sem Fronteiras: Um olhar inovador acompanhado de desafios 81

mente, os melhores alunos dos cursos de letras. Consequentemente, alguns dos alunos
selecionados não conseguem obter os 60 créditos obrigatórios para integralizar o ano
letivo na instituição estrangeira. Já houve, inclusive, acordo de algumas universidades
participantes do PLI para a redução de 60 para 48 créditos anuais.
O que percebemos desde o início do programa é que há um grande interesse em
ajustar as falhas, propor soluções e melhorar o envolvimento dos coordenadores de
projetos com as instituições estrangeiras.

Considerações finais

Devenir professeur, en effet, c’est investir dans l’avenir. Puisque c’est travailler, au quoti-
dien, sur les apprentissages. Nous aurions mauvaise grâce de désespérer du futur, quand,
justement, tout notre travail consiste à convaincre chacun de nos élèves que, contre toute
fatalité, un avenir différent est possible pour lui. Un avenir dans lequel, parce qu’il aura
réussi à apprendre, il pourra mieux se comprendre et comprendre le monde. Assumer,
prolonger et subvertir ainsi sa propre histoire (Meirieu, 2005, p. 107).2

O texto de Philippe Meirieu, professor de ciências da educação, não foi escolhido


ao acaso para iniciar as considerações finais deste capítulo. Ao tratar do trabalho do-
cente, Meirieu fala de investimento no futuro, de aprendizagem que leve a uma melhor
compreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca e, finalmente, de não desistir
do futuro, pois é justamente essa a função do professor: fazer acreditar que transfor-
mações ocorrem a partir do ensino/aprendizagem. Podemos dizer que o Programa das
Licenciaturas Internacionais foi um investimento no futuro e uma aposta de que, por
meio de realidades distintas, contato com culturas diferentes e propostas inovadoras,
os estudantes se sentirão motivados a buscar soluções para a escola pública brasileira.
Se dissemos anteriormente que é inquestionável a importância de uma experiên-
cia internacional para abrir nossas mentes para outras realidades, outras formas de ver o
mundo, outras metodologias de ensino, também é inquestionável dizer que a transposi-
ção pura e simples do que se viveu naquele contexto para a nossa realidade é impossível.
Temos outra vivência em relação à educação, outras leis que regem a escola brasileira e
os cursos de formação de professores e, infelizmente, outros políticos.

2
Tornar-se professor, na verdade, é investir no futuro, tendo em vista que é trabalhar, cotidianamente, sobre
as aprendizagens. Seria má vontade de nossa parte não acreditar no futuro quando, justamente, todo nosso
trabalho consiste em convencer cada um de nossos alunos que, contra toda fatalidade, um futuro diferente
é possível para ele. Um futuro no qual ele poderá se compreender melhor e compreender o mundo, porque
ele terá conseguido aprender. E, assim, assumir, prolongar e subverter sua própria história.
82 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Por mais que nós, professores, tenhamos crença no futuro para poder modificar
a escola pública brasileira, temos que contar com o desejo político de investir em edu-
cação. Os estudantes que regressarem do PLI terão, certamente, inúmeros projetos de
intervenção, sugestões de adaptação no currículo hoje existente, reflexões pertinentes
sobre o trabalho docente, as novas estratégias de ensino/aprendizagem e posturas dife-
renciadas sobre um currículo baseado em competências ou em conhecimentos, porém,
uma das mais valiosas contribuições que este programa pode deixar é a motivação para
que os estudantes lutem por melhorias na educação.
É evidente que um simples programa de mobilidade internacional não modifica
uma situação que perdura há anos, mas pode formar falantes interculturais que busca-
rão intervir na realidade para melhorar o futuro. Sabemos que a vivência junto ao sis-
tema educacional de Portugal e da França os afasta da dura realidade da escola pública
brasileira. No entanto, o afastamento permite que, ao retornarem, esses alunos tenham
novos olhares e soluções para os problemas brasileiros. Essa mesma discussão — for-
mar-se em um contexto contrastante com o da realidade da escola pública – existe em
IES que possuem Colégio de Aplicação (CA), pois os alunos em formação dizem estar
vivenciando “um faz de conta”, uma vez que, ao ingressarem no mercado de trabalho,
as escolas terão infraestrutura distinta daquela encontrada nos CA e seus alunos serão
diferentes e apresentarão mais problemas sociais do que os desses colégios de formação
docente, mas é exatamente na diversidade que lutamos por soluções.
A fim de que esses estudantes PLI possam verdadeiramente retornar com dispo-
sição para modificar a realidade, será necessário que os coordenadores criem mecanis-
mos de acompanhamento e estímulo aos estudos: “c’est travailler, au quotidien, surles
apprentissages”. Que as equipes já formadas possam fazer os ajustes necessários para o
sucesso do programa.

Referências

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drama and ethnography. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
BYRAM, M. Teaching and Assessing Intercultural Communicative Competence, Bristol: Multilingual
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CELANI, M. A. Perguntas ainda sem respostas na formação de professores de línguas. In: GIMENEZ,
T.; MONTEIRO, M. C. (Orgs.). Formação de Professores de Línguas na América latina e Trans-
formação Social. Campinas: Pontes Editores, 2010.
CICUREL, F. Figures de maîtres…. Le français dans le monde, Paris, n. 326, mar./abr. 2003. Disponível
em: <http://www.ph-karlsruhe.de/fileadmin/user_upload/dozenten/ schlemminger/introduction_a_
la_didactique/Cicurel-Fig-maitre.pdf>
KERN, R. Communication, literacy and language learning. Oxford: Oxford University Press, 2000.
Formação sem Fronteiras: Um olhar inovador acompanhado de desafios 83

MEIRIEU, P. Lettre à un jeune professeur. Issy-les-Moulineaux: ESF éditeur, 2005.


MORGADO, José Carlos. Processo de Bolonha e ensino superior num mundo globalizado. Educação
& Sociedade, Campinas, vol. 30, n. 106, p. 37-62, jan./abr. 2009. Disponível em: <http://www.
cedes.unicamp.br>

Biografia

Katia Ferreira Fraga é professora adjunta do Departamento de Letras Estrangei-


ras Modernas da Universidade Federal da Paraíba. Com mestrado em língua e literatu-
ras de expressão francesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em
estudos linguísticos pela Universidade Federal Fluminense, suas pesquisas atuais estão
voltadas para o ensino de francês para fins universitários, francês para fins específicos e
a utilização da web 2.0 como ferramenta de aprendizagem de língua estrangeira.
e-mail: kfraga@globo.com
Olhares contemporâneos:
o hipertexto do mundo

Erick Silva Bernardes (UERJ)

Introdução

O mundo de hoje tem sofrido constantes mudanças acerca de alguns aspectos


que movimentam a ordem cultural. Leituras aceleradas e acesso rápido às informações
são exemplos dessas transformações. Tantas inovações com relação às tecnologias dis-
poníveis refletem a demanda de “certa” versatilidade sobre os modos de atuação dos
educadores em seus diversos nichos de conhecimento, ampliando-os além do panora-
ma escolar e acadêmico. Em outras palavras, professores e profissionais da área educa-
tiva deverão adaptar-se com vistas ao mercado de trabalho. Nesse sentido, embasados
nos conceito de liquidez de Zygmunt Bauman (2014), buscamos pontuar algumas
peculiaridades que evidenciam a urgência de uma tomada de consciência acerca das
instabilidades que ocorrem no panorama escolar e acadêmico. Assim, compete aos pro-
fissionais educadores a conscientização de que terão de lidar com a mutabilidade e a
fluidez das informações neste mundo globalizado.
Portanto, discutiremos o papel do docente como provocador de olhares mais crí-
ticos em relação aos diversos gêneros de textos disponíveis nas mídias da era digital,
sejam eles impressos ou eletrônicos – com uma abordagem extra-muros escolares e
acadêmicos –, ao lidar com educadores, educandos e empresas que absorverão esses
profissionais.
Inicialmente, evidenciaremos o imbricamento entre os campos do conhecimento
que nos servem para compor o atual quadro sociocultural, ressaltando a importância
86 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

da adequação (docente e discente) contínua, para acompanhar as mudanças recentes


no campo educacional.
Na sequência, enfatizaremos a pertinência de enfoques mais abrangentes, que
deem conta do amplo espectro de informações destes tempos de globalização. Se, hoje
em dia, as semiosferas estão em fluxo mais evidente, ou seja, em constante processo de
reconfiguração, temos que pensar e articular nosso instrumental didático, consideran-
do o mundo pós-moderno como um instável, porém provocador hipertexto. Segundo
o E-Dicionário de termos literários, de Carlos Ceia (mídia digital):

O hipertexto é uma forma não linear de apresentar a informação textual, uma espécie de
texto em paralelo, que se encontra dividido em unidades básicas, entre as quais se estabe-
lecem elos conceptuais [...]. Este sistema global de informação pode incluir não só texto
mas também imagem, animação, vídeo, som etc., falando-se neste caso de hipermedia.
A exibição de museus, a apresentação de materiais acadêmicos, os livros electrônicos, os
pacotes educativos etc. são formas de hipermedia.

Assim, esse hiper texto acima referido nos “insere” em uma infinidade de dados
que se encontram à nossa disposição. Para nós, o hipertexto é uma rede de significados
no qual, involuntariamente, somos sujeito e objeto ao mesmo tempo. Nele estamos
lendo e escrevendo; em seus espaços somos autores e leitores produtores de conheci-
mento, ainda que inconscientemente.
Por fim, buscaremos reforçar o que Paulo Freire (2011, p. 31) chamará de “sa-
beres socialmente construídos na prática comunitária”. Compreendendo que educar
“exige respeito aos saberes dos educandos”, os quais vêm sendo configurados na leitura
do variado panorama global disponível à prática educativa. Esse hipertexto do mundo
é criado a partir das múltiplas esferas de conhecimento, e são essas mesmas esferas os
suportes que dão sentido às leituras daqueles que são educados e “treinados” para o
mercado de trabalho.

O mosaico cultural

No século XX, buscava-se delimitar campos daqueles saberes que viriam configu-
rar a nossa cultura (escolar e acadêmica), perspectiva própria daquela que foi denomi-
nada era tecnicista. Para os educadores daquela modernidade sólida (Bauman, 2014), as
esferas de conhecimento demarcavam territórios, na tentativa de estabelecer uma espé-
cie de “conformidade”, ou melhor, um terreno seguro em que se pudesse fundamentar
e definir as bases do que se convencionou chamar de disciplinas. Estas instâncias legi-
timadoras tomaram forma, as cadeiras multiplicaram-se além daquelas que já existiam,
Olhares contemporâneos: o hipertexto do mundo 87

como a matemática, a gramática, a geografia, dentre outras. Tal universo instituído


pelos campos disciplinares padronizou fórmulas, deu forma e, consequentemente, im-
pôs limites à interação entre as esferas de sentido.
Hoje, a política de círculos das relações dos campos que configuram as disci-
plinas é (com ressalvas) diferente. Vemos o início de um processo de mudança de pa-
radigma: aqueles conhecimentos historicamente adquiridos que nos serviram de base
curricular atenuam suas fronteiras e modificam suas relações de força, dinamizam-se,
enfim. Agora fala-se de pluralidade e/ou multiplicidade na educação pelo contato, mas,
como em toda reivindicação, não abandonamos aqueles conhecimentos adquiridos,
nas esferas das políticas públicas educacionais. Contudo, o mais importante é que,
diferentemente da era tecnicista, aumentamos a amplitude do nosso olhar: em vez de
matemática, falamos de matemáticas, ao invés de língua, de linguagens e, quanto à ge-
ografia, dizemos geografias.
A necessidade de novos posicionamentos docentes, propiciados principalmente
pelo acesso à internet, lançou-nos em um paradigma: apesar das muitas informações
que temos à nossa disposição, nem tudo é pertinente ou nos serve. Nesse sentido, é
“hoje tarefa do professor ‘ensinar’ os alunos a buscar a informação e a fazer a triagem
dela. Nem tudo o que está disponível nos meios eletrônicos (seja na televisão ou na
internet) é informação segura” (Ribeiro e Coscarelli, 2006, p. 81). Daí, consideramos
a prática docente uma pesquisa incessante, sintonizada com as tecnologias que surgem
a cada dia. Paradoxalmente, são essas instabilidades que alocam e realocam os campos
disciplinares, ou que (co)locam as semiosferas em curso, extrapolando o âmbito acadê-
mico e escolar em detrimento dos muitos conhecimentos disponibilizados e comparti-
lhados pelos veículos de comunicação – a saber, computadores, smartphones, televisores
digitais, dentre outros.
Por isso, com toda essa tecnologia, a atualização do educador se faz necessária e
torna-se indispensável transitar pelos muitos caminhos que a globalização nos proporcio-
na. Buscar metodologias baseadas no contexto não é tarefa fácil. Talvez por isso nos caiba
fundamentar nossas pesquisas no viés dialógico pensado por Mikhail Bakhtin (2011, p.
297), que vê na mistura de sentidos “reflexos mútuos [que] determinam o seu caráter”
ou uma ética da interação. Dito de outro modo, Bakhtin considerava a dialogia um dos
caminhos para se compreender a estética literária, que logo foi adaptada para os vários
âmbitos de aplicação docente como parte dos modos de relacionamento com o mundo.
Ainda nessa mesma linha de pensamento de imbricamento entre os saberes da
era global, Roland Barthes (2007, p. 37) dirá que os campos devem ter uma “relação
ancilar”, manter um “companheirismo de viagens” pelo menos “por algum tempo”,
porém devem “propor-lhes um protocolo operatório a partir do qual cada ciência deve
especificar a diferença de seu corpus”.
88 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Talvez esteja aí um modo de reconhecimento da existência das fronteiras dos


saberes que, apesar de estarem, segundo Zygmunt Bauman (2014), em franco processo
de diluição, ainda existem, mas não nos são impossíveis de transitar – um exemplo cla-
ro de equilíbrio dessa “balança” que mantém a engrenagem pós-moderna no contexto
econômico e cultural.
Assim, anulam-se os limites de mobilidade de atuação educacional, mas man-
tém-se o eixo de sentidos (campos disciplinares) naquilo que resolvemos chamar de
política pública ou política de círculos. São negociações arriscadas que, segundo o pro-
fessor Paulo Cesar de Oliveira, “podem ser descritas como políticas, no sentido em
que demandam uma reflexão crítica dos processos sociais e ideológicos que inscrevem
a contemporaneidade nas intempéries dos movimentos de globalização” (Ribas e Oli-
veira, 2014, p. 116). Apesar de dialógicas, as licenciaturas mantêm as noções de espaço
disciplinar e suas zonas de fronteiras em contato: interdisciplinaridade, transdisciplina-
ridade, intertextualidade etc. Sendo assim, esses movimentos semiológicos fomentam
o livre trânsito e potencializam, paralelamente, a troca de ideias entre os nichos de
conhecimento, através dos seus diferentes espaços.

Educação e globalização

Extrapolamos agora o âmbito acadêmico e escolar para remetermos a discussão


aos novos processos de formação cultural da era digital, a fim de direcionarmos nosso
olhar para a inevitável interferência na formação do futuro profissional dessa emergente
“Cibercultura”.
Quando levamos em conta que, desde muito cedo, as crianças da era da informá-
tica já lidam com meios eletrônicos de comunicação, torna-se urgente considerarmos
(como profissionais atentos) que essa tecnologia, que põe em contato o jovem de hoje
com uma enxurrada de informações, satura esse novo cidadão de dados descartáveis,
sobre os quais podemos obviamente inferir que nem tudo é aproveitado. No entanto,
dos dados que o educando absorve, uma grande parcela formará o seu conhecimento
de mundo, ou seja, “saberes socialmente construídos na prática comunitária” (Freire,
2014, p. 31). Partindo desta concepção, devemos compreender que a dinâmica do
mundo globalizado não se restringe mais aos meios didáticos – tampouco às academias
e escolas – como os modos de aprendizagem por repetição e/ou apenas aos textos im-
pressos, que exigiam um enfoque majoritariamente passivo.
A partir da “nova” (ou líquida) modernidade, através de “jogos eletrônicos, garo-
tos e garotas aprendem uma série de informações via ‘conhecimento simulado’” (Ribei-
ro e Coscarelli, 2006, p. 86). Dito de outro modo, esses jovens adquirem conhecimen-
to pelo processo (inter)ativo, e não passivamente, conforme se fazia outrora.
Olhares contemporâneos: o hipertexto do mundo 89

A internet viabilizou cursos a distância, aulas on-line, tutoriais e livros digitais.


Os chats, facebook e twitter inauguraram outros modos de articulação comunicativa,
cuja instantaneidade equivale a um simples piscar de olhos. Portanto, “não adianta
dar vazão a ódios e aversões quanto à tecnologia eletrônica”, tampouco abandonar os
tradicionais textos feitos de papel. “Da mesma forma que um dia o impresso foi alvo
de críticas” e se estabeleceu, “o eletrônico veio para ficar e tornar mais ágeis a busca”
(Ribeiro e Coscarelli, 2006, p. 86) da informação e, sobretudo, instrumentalizar alunos
e professores.

Ler, discutir, conhecer empiricamente, refletir, assistir a, manipular são formas de apren-
dizagem que a humanidade está habituada e desenvolvida para fazer há milênios. A escola
(assim como a universidade) pode aproveitar-se dessa maneira de adquirir conhecimento
e trazê-lo para dentro (Ribeiro e Coscarelli, 2006, p. 88).

Enfim, entendemos que toda essa rede de sentidos é o que podemos chamar de
hipertexto, porque nele o educando escreve, lê, dialoga e se inscreve, preparando-se, as-
sim, para a vida profissional. O hipertexto tornou-se um lugar de atuação – um espaço
sem fronteiras, sem muros – em que cada vez mais nos damos conta das transformações
que as políticas educacionais têm sofrido.

Texto e hipertexto

Um dos paradigmas da contemporaneidade é saber que, se por um lado, há be-


nefícios que as tecnologias nos proporcionam – rapidez da informação, comodidade e
entretenimento –, por outro, as redes digitais estão repletas de dados inúteis que pode-
riam alienar intelectualmente o sujeito hodierno.
Neste sentido, Zygmunt Bauman (2014, p. 13) dirá que vivemos momentos de
modernidade fluida, os quais evidenciam “elos que entrelaçam as escolhas individuais
em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as po-
líticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas [...] de ou-
tro”. Esses sintomas refletem individualismos excessivos que beiram o isolamento social
ou que, de modo contrário, denotam a massificação cultural do mundo globalizado.
Para Bauman (2014), se tomarmos como exemplo as trocas de mensagens dos
sites de relacionamentos, veremos que elas parecem reproduzir a mesma informação
para uma quantidade imensa de pessoas. Todos leem a mesma mensagem, veem o mes-
mo vídeo, mas, paradoxalmente, mantêm-se isolados do convívio social propriamente
dito. A aceleração dos meios culturais não permitiria que o homem dos tempos atuais
90 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

refletisse sobre a sua própria condição no mundo. Ele precisaria instruir-se cada vez
mais rápido, sobrando então pouco tempo para a educação.
Porém, ao darmos à tônica desta análise a busca por um viés mais produtivo,
longe do pensamento redutor, que vê em toda evolução ou novidade uma ameaça,
constataremos, conforme Pierre Lévy (1999, p. 157), que pela “primeira vez na história
da humanidade, a maioria das competências adquiridas por uma pessoa no início de
seu percurso profissional estarão obsoletas no fim de sua carreira”. Dito de outro modo,
a “transação de conhecimentos não para de crescer” e, consequentemente, a velocidade
da renovação dos saberes impulsiona alunos, professores e profissionais em geral a ade-
quarem-se aos recentes modos de trabalho, fomentando assim “reciclagens” contínuas.
Assim, para a nossa pesquisa, o universo cultural contemporâneo é um mun-
do sem muros em seu próprio hipertexto, dentro e fora das instituições educacionais.
Neste hipertexto mundial, serão as escolhas e as experiências renovadoras que darão a
tônica, ou melhor, determinarão os posicionamentos que assumimos enquanto educa-
dores atualizados.

Trabalhar quer dizer, cada vez mais, aprender, transmitir saberes e produzir conhecimen-
tos [...] o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e
modificam numerosas funções cognitivas humanas: memória (bancos de dados, hiper-
documentos, arquivos digitais de todos os tipos), imaginação (simulações), percepção
(sensores digitais, telepresença, realidades virtuais), raciocínios (inteligência artificial,
modelização de fenômenos complexos) (Lévy, 1999, p. 157).

Nesse sentido, evidencia-se uma dinâmica intelectual que foge à estagnação do


raciocínio e que, ao invés de recusar essa modernidade fluida (Bauman, 2014), faz uso e
também contribui para o seu fluxo. “Organizando a comunidade entre empregadores,
indivíduos e recursos de aprendizagem de todos os tipos, as universidades do futuro
contribuiriam assim para a animação de uma nova economia do conhecimento” (Lévy,
1999, p. 158).
Acerca deste panorama global de intercâmbio de conhecimento, Roland Barthes
(2007, p. 18) dirá que, na realidade, é nisso que consiste a nossa grande enciclopédia,
porque (em nosso entendimento) o hipertexto do mundo “faz girar os saberes, não fixa,
não fetichiza nenhum deles [...]. Por um lado ele permite designar saberes possíveis –
insuspeitos, irrealizados [...] nos interstícios da ciência”, por outro, estabelece contatos
que aproximam sentidos ou assuntos afins, culminando nas transformações pelas quais
passam as próprias semiosferas.
Sendo assim, é válido dizer que a educação contemporânea requer das licenciaturas
alvos, cujas reflexões sobre a condição humana pautam-se no reconhecimento de que
Olhares contemporâneos: o hipertexto do mundo 91

somos sujeitos ativos dentro (quer queiramos ou não) de uma ordem de engrenagem
social. Conforme Fusari e Ferraz (2001, p. 21), essas esferas de sentidos, do gira-
mundo da nossa contemporaneidade, vêm “se apresentando como um movimento
em busca de novas metodologias de ensino e aprendizagem”, evidenciando a
necessidade de “revalorização do professor da área”, bem como discussões e propostas
de redimensionamentos de trabalho, “conscientizando-o da importância da sua ação
profissional e política na sociedade”.

Considerações finais

Discutimos aqui as inter-relações que existem entre os vários nichos de conheci-


mento da nossa modernidade “líquida” (Bauman, 2014). Ao invés de focarmos nossa
atenção nos campos disciplinares, buscamos ressaltar a importância de se compreender
a necessidade de que as licenciaturas (e todo o seu contexto, professores, instituições de
fomento, escolas, universidades etc.) deem conta das contínuas mudanças no panora-
ma cultural dos tempos de hoje.
Dialogamos acerca dos dois lados do mar de mudanças no qual estamos mergu-
lhados. São peculiaridades que beiram o isolamento social alienante e que “se cruzam,
se interpelam, se chocam ou se misturam sobre as grandes águas do dilúvio informacio-
nal” (Lévy, 1999, p. 162).
Aproveitarmos ou não os movimentos desse franco processo de aceleração é a
nossa escolha. Por isso, trouxemos à baila um problema emergente: o das semiosferas
em transformação, que atravessa os cursos de licenciatura e suscita importantes ques-
tionamentos para os educadores de hoje.
Num primeiro momento, este texto poderia ter sido considerado um discurso
pseudopolítico ou uma crítica sem juízo sobre os modos de aproximação de estudantes,
professores e a comunidade que os cerca. O que fizemos, porém, foi evidenciar alguns
pontos relevantes em favor de um processo educacional mais interativo. Assim, dentro
de um sistema educacional mais amplo, ampliamos nosso horizonte, pretendendo ter
licenciaturas que compartilhem as mesmas afinidades, ou seja, provoquem o pensa-
mento em prol da produção de novos conhecimentos.

Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
92 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

CEIA, Carlos. E-Dicionário de termos literários (EDTL). Disponível em: <http://www.edtl.com.pt>.


Acesso em: 20 out. 2014.
RIBEIRO Ana; COSCARELLI, Carla Viana (Org.). Novas tecnologias, novos textos, novas formas
de pensar. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
FUSARI, Maria F. de Resende; FERRAZ, Heloísa C. de T. Arte na educação escolar. São Paulo: Cortez,
2001.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
RIBAS, Maria Cristina Cardoso; OLIVEIRA, Paulo Cesar Silva de. Leituras na contemporaneidade:
olhares em trânsito. Belém: LiteraCidade, 2013.

Biografia

Erick Silva Bernardes é graduando em letras pela Faculdade de Formação de


Professores da UERJ (FFP/UERJ), bolsista de estágio interno complementar (EIC),
coordenado pelo professor doutor Paulo Cesar Oliveira. Membro colaborador do gru-
po de pesquisa do CNPq, “Poéticas do Contemporâneo” (UERJ/UNIABEU/UESC).
e-mail: ergalharti@hotmail.com
Reflexões sobre a função da universidade na
formação docente

Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu (UERJ-CAp/ILE)

Contextualizando o problema

Não poderia iniciar estas reflexões sem retomar um fato contundente, ampla-
mente divulgado na sociedade brasileira, referente ao processo de aprendizado dos alu-
nos em fase obrigatória do ensino. Não há quem não tenha conhecimento do fato
de que os índices brasileiros de repetência estão diretamente ligados à questão do de-
senvolvimento da proficiência dos estudantes nos diferentes anos de escolaridade do
ensino básico. A escola brasileira não tem cumprido sua função de ensinar a ler, no
sentido lato do termo, e, também, no que tange ao ensino da escrita. Na verdade, não
se trata de uma dificuldade para a alfabetização especificamente, ou seja, de um mero
domínio do código, mas de garantia do uso eficaz da língua em todos os níveis de si-
tuações comunicativas nas quais nos envolvemos na vida. Para corroborar o triste fato
concernente à educação no Brasil, trago à baila trechos do texto de Cristóvão Buarque
intitulado “Basta de Fingir”, publicado em O Globo, 31/05/2014.

Nos últimos 20 anos, passamos de 1,66 milhões para 7,04 milhões de matrículas nos
cursos superiores, mas quase 40% de nossos universitários sabem ler e escrever mediocre-
mente, poucos sabem a matemática necessária para um bom curso nas áreas de ciências
ou engenharia, raros são capazes de ler e falar outro idioma além do português. Fingimos
ser possível dar um salto à universidade sem passar pela educação de base. [...] Comemo-
ramos ter passado de 36 milhões, em 1994, para 50 milhões de matriculados na educação
básica, em 2014, sem dar atenção ao fato de termos 13 milhões de adultos prisioneiros
do analfabetismo; 54,5 milhões de brasileiros com mais de 25 anos não terminaram o
94 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

ensino fundamental e 70 milhões não terminaram o Ensino Médio. Fingimos que os


matriculados estão estudando, quando sabemos que passam meses sem aulas por causa
de paralisações ou falta de professores (Buarque, 2014).

A par dessa realidade cruel à qual temos assistido ano a ano em nosso país, quero
trazer também à baila uma visão saudosista de um projeto muito bem sucedido que
a UERJ, nos anos noventa, encabeçou: O CPM, Curso de Formação de Professores,
Convênio UERJ–Faculdade de educação/município, que visou à criação de um curso
de Graduação para professores do município do Rio de Janeiro atuantes em sala de
aula. Para cursarem a graduação oferecida por nossa universidade, os docentes interes-
sados se submeteram a processo seletivo – o vestibular. Ao ingressarem na universidade,
tinham redução de carga horária docente, além de uma ajuda de custo, uma bolsa fi-
nanciada pelo próprio município. A matriz curricular do curso de graduação do CPM
foi elaborada por docentes uerjianos, lotados na Faculdade de Educação e no Colégio
de Aplicação, especificamente para professores das classes de alfabetização (denomina-
ção da época) às turmas de quarta série, com duração de quatro anos. Essa matriz sub-
sidiava teoricamente as questões da educação, de forma mais ampla, e as questões das
disciplinas, especificamente, propondo, dentre tantas visões, uma perspectiva interdis-
ciplinar no que tange à metodologia, característica principal dessa fase de escolaridade.
Os alunos da graduação – docentes da rede municipal – tinham de continuar em
sala de aula da rede municipal de educação, atuando como professores dela. Podiam
escolher um dos três turnos oferecidos pela UERJ (manhã/tarde/noite) para fazer seu
curso. Essas turmas foram um sucesso. Terminado o convênio, em quase duas décadas,
os docentes formados pela UERJ brilharam no município do Rio de Janeiro, atuando
em sala de aula e em cargos de função pedagógica nas escolas. Todos deram continui-
dade aos seus estudos, fazendo diferentes cursos de pós-graduação.
Procurando ser bem pragmática, as duas visões anteriormente apresentadas po-
dem gerar uma fórmula:

Visão da realidade + visão saudosista = Dicotomia que a universidade vive na


formação profissional dos licenciandos.

De um lado, a problemática que a educação brasileira vive; de outro, uma inicia-


tiva política bem-sucedida, situada em dado tempo, sem ter sido levada adiante.
Reflexões sobre a função da universidade na formação docente 95

O problema: políticas de formação de professores no Brasil

A crise que vivemos na educação, de um modo geral, hoje tem relação com
diferentes fatores. Um dos mais graves problemas ao qual imputo-a na educação é a
formação de professores. Embora toda a divulgação seja para um aumento sucessivo
de estudantes nos cursos universitários, há uma escolha cidadã muito mais político-
-econômica do que vocacional, muitas vezes, para a carreira a escolher no processo se-
letivo de ingresso às universidades. Nesse sentido, talvez as licenciaturas sofram a mais
forte queda na procura, observada na relação candidato/vaga dos cursos de licenciatura
e de pedagogia, a menor para quase todas as universidades. Acrescenta-se a esse quadro
o fato de que as universidades particulares têm, praticamente, cursos de licenciatura
sendo fechados ou destinados à formação em educação a distância (EAD). Consideran-
do as instituições públicas e privadas de nosso país, parece haver uma maior demanda
de estudantes nos cursos de licenciatura das universidades públicas. Não querendo
ser simplista, mas considerando apenas as denominadas disciplinas que compõem o
currículo da escola básica, pode-se estruturar um quadro de demanda com a seguinte
tendência de escolha como área de atuação profissional na área da educação básica:

Cursos de alta demanda, comparativamente – letras, história e geografia (nos dois


últimos anos).
Cursos de baixa demanda, comparativamente – matemática, física e química.
Demanda alternada – biologia (pesquisa ou licenciatura).
Demanda mercadológica – ed. física – curso de bacharel ou curso de licenciatura –
cursos de graduação em separado.

As tendências apontam para uma grave crise dos cursos de licenciatura: “Quem
quer ser professor?” Numa rápida verificação em editais de cursos em jornais especia-
lizados, vê-se o oferecimento de concursos de nível médio com salários que podem
chegar a R$ 6.000,00, em contraposição a salários para concursos docentes de menos
de R$ 2.000,00. Este, talvez, seja um dos mais fortes motivos para a baixa demanda de
candidatos à carreira docente. Ainda, corroborando a falta de investimento e provável
desinteresse, o Ministério da Educação (MEC) volta-se claramente para escolha das
ações que privilegiam os Institutos superiores em detrimento dos cursos de licenciatura
das universidades brasileiras, em especial das universidades públicas.
Nesse quadro, pergunta-se: que movimentos a UERJ tem feito para discutir suas
licenciaturas? A criação de fóruns de licenciaturas em vários campi é um dos movimen-
tos. Na UERJ, por exemplo, em 1998 foi instituído o Programa de Formação de Pro-
96 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

fessores – viabilizado pelo colegiado de licenciaturas. Após uma década e meia, indica-
-se a necessidade de rever diretrizes da licenciatura, no que tange à realização do estágio
supervisionado e à própria matriz curricular específica das licenciaturas. Movimentos
têm sido feitos para retomar essas discussões de forma mais abrangente nos institutos
básicos. Depara-se com sérios entraves para uma profícua discussão e tomada de deci-
são para a melhoria dos cursos de formação, atendendo às necessidades que se impõem.

Implicações teóricas

Chamo à cena alguns autores que podem embasar as reflexões aqui pretendidas.
Para Vásquez (2007), a consciência humana, como agente transformador e criador,
é essencialmente consciência prática, uma razão operante, ativa. A prática, como se
postula, não é apenas uma transformação do mundo material, mas uma transforma-
ção de condutas, atitudes, valores e sentimentos de uma totalidade que constitui o ser
humano, aquele que vai exercer a sua profissão, a sua práxis. Refere-se a um processo
de transformação da prática em práxis crítica, inovadora e criativa que não incorpora
somente a participação, mas o diálogo, a ação-reflexão-ação e a conscientização, como
possibilidade de superar a consciência comum ou espontânea presente na prática em-
pírica. De acordo com o autor, a filosofia da práxis tem como objetivo proporcionar
nossa consciência prática; ele defende a tese de que a categoria práxis é “atividade ma-
terial do homem que transforma o mundo natural e social para fazer dele um mundo
humano” (Vásquez, 2007, p. 3).
Marx e Engels (2007) concebem a práxis como uma atividade humana real,
efetiva e transformadora, pois ela enfoca a atividade social criativa humana como a
produção constante de novas soluções, conforme novas necessidades surjam quanto
a questões específicas concernentes ao trabalho. Essa ação criativa resulta da mediação
reflexiva que propicie novas compreensões e soluções, que agem como instrumento e
geram transformações nas condições de vida dos envolvidos.
Também é importante lançar os olhos a Vygotsky no que tange às escolhas meto-
dológicas em contextos de intervenção formativa que criem “aprendizagem que levem
ao desenvolvimento” (ver Holzman, 2009, p. 17). A discussão proposta pelo referido
autor está relacionada às discussões propostas por Marx e Engels, quanto ao método do
materialismo-dialético-histórico. Os autores salientam a compreensão da práxis como
a não separação da teoria, ou seja, do conhecimento e da prática – a ação – no desen-
volvimento do ser humano.
Evidentemente, várias são as linhas teóricas que embasam a formação de profes-
sores no Brasil, a exemplo do que ocorre no mundo. Porém, grande parte dos estudos
filiados à linguística aplicada e à educação está centrada na importância da formação
Reflexões sobre a função da universidade na formação docente 97

reflexiva e crítica de professores (ver Liberali, 2008 e Magalhães, 2004). Dentre os


autores mais conhecidos que propõem o papel da reflexão na formação dos professo-
res está Perrenoud. Para ele, a prática reflexiva é a chave da profissionalização do SER
PROFESSOR, uma vez que

a autonomia e a responsabilidade de um profissional dependem de uma grande capa-


cidade de refletir em e sobre sua ação. Essa capacidade está no âmago do desenvolvi-
mento permanente, em função da experiência e dos saberes profissionais (Perrenoud,
2002, p. 13).

Por isso, afirma-se que a autonomia está intimamente ligada à capacidade de


reflexão que deveria levar a uma prática reflexiva. A exemplo de Liberali (2004, 2008);
Magalhães (2002); Celani e Magalhães (2005), postula-se que a capacidade de criti-
cidade, fundamental para quem ensina (ver Freire, 1996), somente é efetivada pela
linguagem. Nesse sentido, há de se entender a função fundamental do estudante como
colaborador na construção do conhecimento, o que nem sempre é levado em conside-
ração, pois mantemos, ainda, uma visão passiva desse processo. A pesquisa-ação pode
propiciar a integração de teoria e prática, sem afastar o docente do momento sócio-
-histórico em que está inserido. É preciso aprender a agir sobre a prática pedagógica
para que cada professor na sala de aula, na sua prática, possa atuar com autonomia e
com criticidade. O fato é que os cursos de licenciatura nem sempre trazem essa visão na
formação dos docentes; ela pode existir como modus operandi de um grupo de docentes
universitários, mas não se constitui como uma prática da universidade. Por que este
distanciamento? Imputo tal ausência a uma “reação” a que denomino, neste momento,
“cultura da universidade”.

As implicações teóricas e a cultura da universidade

Se a formação docente está delegada predominantemente às universidades, há de


se entender o que implica dizer “cultura universitária”. De forma geral, pode-se afirmar
que na cultura universitária estão intrínsecas perspectivas, tais como:

1. Certo individualismo no trabalho, principalmente no âmbito das atividades


docentes.
2. Distanciamento da operacionalização dos conceitos teóricos em favor das
práticas.
3. Falta de interesse pela transposição didática.
98 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

4. Negação de saberes específicos para a docência (ainda se considera mera vo-


cação ser professor).
5. Currículo oculto que leva à construção dos aspectos negativos da identidade
profissional (ver Apple, 1979).
6. Prevalência dos discursos teóricos.
7. Maior valorização da atividade de pesquisa do que da atividade de docência.
8. Concepção de formação centrada na antecedência e hipertrofia da dimensão
teórica em relação à prática.
9. Certa desvalorização das práticas profissionais.
10. Desvalorização da licenciatura.
11. Altos níveis de competição (ainda que velada).

Esta visão é corroborada no documento oficial do Conselho Nacional de Educa-


ção, com a seguinte afirmação:

Nos cursos atuais de formação de professores, ou se dá grande ênfase à transposição didá-


tica dos conteúdos, sem sua necessária ampliação e solidificação – “pedagogismo”, ou se
dá atenção quase que exclusiva a conhecimentos que o estudante deve aprender – “con-
teudismo”, sem considerar sua relevância e sua relação com os conteúdos que ele deverá
ensinar nas diferentes etapas da educação básica (Brasil, CNE, 2001, p. 19).

Este elenco de perspectivas se afasta bastante das premissas teóricas que funda-
mentam o pensamento ora apresentado, que pode ser sumarizado em dois pilares, a
saber: criticidade que gera autonomia.
A despeito das perspectivas anteriormente elencadas, pode-se afirmar que há
quem goste da licenciatura e a valorize; há quem queira seguir por ela profissionalmen-
te e valorize a função docente e, também, há quem promova a interseção entre a teoria
e a prática. Entretanto, temos de admitir que a universidade não tem como dar conta
dessa função sozinha.
Faz-se necessário refletir sobre quatro pontos fundamentais, os quais se apresentam
em forma de perguntas: será caminho “acertado” levar os cursos de licenciatura a uma
vinculação entre a formação superior e as demandas imediatas de mercado de trabalho?
As demandas de mercado não são oscilantes? O perfil do aluno não mudou na última
década? A proposta pedagógica no ensino básico não mudou? Não precisa mudar?
Sem qualquer precipitação, como resposta às perguntas, há de se afirmar que
atender à mera demanda de mercado na formação dos cursos em nível superior é pers-
pectiva restrita, já que, para qualquer profissão, são oscilantes. Além disso, nosso pú-
blico-alvo – o estudante da escola básica – mudou bastante nesses últimos anos. É um
Reflexões sobre a função da universidade na formação docente 99

sujeito sócio-histórico que precisa ser olhado de forma diferente dadas as necessidades
sociais. Por conseguinte, as propostas metodológicas implementadas no ensino básico
precisam atender às novas demandas da sociedade. Da mesma forma, o público-alvo
dos bancos universitários dos cursos de licenciaturas também mudou. É necessário
preparar o docente para o trabalho com essa criança, ou esse jovem que chega à escola
com novas e prementes necessidades. Logo, entende-se que, nos cursos de licenciatura,
temos dois públicos-alvo atendidos, respectivamente, de forma direta e indireta.

Tendo isso em vista, o foco do processo de aprendizado nos cursos de formação


de professores deve descartar uma compreensão linear, casual e dualista do processo
de construção do conhecimento. Mais do que isso, é preciso descartar a visão precon-
cebida, focada nas ações dos estudantes que não gostam de aprender, de estudar, por
exemplo, para uma visão mais acurada de quem são os alunos, de como ocorre o seu
desenvolvimento, em que contextos sócio-históricos se inserem. Deve-se considerar no
processo de formação os contextos criados. Nesse sentido, a leitura e a escrita devem
mediar dialética e dialogicamente o processo ensino-aprendizagem nas diversas áreas.
Defendo, portanto, a importância da linguagem como única forma de alcance da auto-
nomia e da criticidade para os dois públicos-alvo de que tratamos.

Quo vadis?

Não há respostas fáceis e rápidas para as reflexões propostas, mas é preciso pensar
em pilares que conduzam a caminhos sem fronteiras na construção dos cursos de licen-
ciatura. É preciso ter em mente que não se faz prática sem teoria. Ao mesmo tempo, é
preciso ter a certeza de que não é possível formar um profissional diretamente, sem a
100 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

prática. Portanto, na relação intrínseca teoria/prática, é necessário rever o conceito de


construção do conhecimento, fundamental para a tomada de decisões em tela. Nesse
sentido, entende-se haver três pilares que se conjugam:

1. O debate proposto não pode se restringir a questões técnicas ou simplesmen-


te pedagógicas. É preciso olhar os dois públicos-alvo com os quais lidamos
como sujeitos sócio-históricos, inseridos em contextos sociais divergentes e
diferentes.
2. A formação de um professor deve estar pautada no perfil de um profissio-
nal que seja reflexivo, pesquisador, questionador, com saberes especializados.
Logo, não se pode prescindir das especificidades da disciplina que compõe
um dado campo de saber, mas o diálogo constante com a práxis é fundamen-
tal para essa formação.
3. O desenvolvimento da capacidade de atuar em prol da transformação du-
radoura da realidade educacional é um investimento a ser feito de forma
contundente nos cursos de licenciatura.

A formação dos docentes deve ser organizada em ciclo ininterrupto que concilie
saberes teóricos especializados e práticas de formação. Para tanto, é preciso um estrei-
tamento de laços entre a universidade e as secretarias de estado e de municípios, bem
como com a secretaria básica do MEC, que, coadunados para lidar com as necessidades
prementes na educação de nosso país e com os resultados das diferentes avaliações apli-
cadas, possam detectar as reais necessidades para a formação docente, para que corres-
pondamos às necessidades discentes nos diferentes níveis de escolaridade básica. Dessa
forma, em fluxo contínuo, tem-se:
Reflexões sobre a função da universidade na formação docente 101

Nas semiosferas em transformação há ações de médio e curto prazos e outras mais


imediatas. Importante, no entanto, é a escuta dessas secretarias para que a universidade
possa contribuir de imediato na formação dos professores. O município do Rio de Janei-
ro, por exemplo, conta com a Escola de Formação Paulo Freire, que poderia, em muito,
auxiliar para sairmos do senso comum na formação, apoiando-nos no desenvolvimento
de procedimentos teórico-metodológicos para a condução de projetos de formação, de
extensão e/ou de pesquisa no contexto escolar, na formação contínua de educadores em
espaços de produção colaborativa e crítica. Não percamos de vista, porém, que a lingua-
gem é a forma mais ilimitada de (trans)formação da práxis.
Por isso, o embasamento em linguagem, no sentido amplo do termo, na pers-
pectiva da leitura e da escrita, deve fazer parte da matriz curricular de qualquer curso
de licenciatura oferecido na universidade em qualquer uma das quatro grandes áreas
de conhecimento. Com certeza esse é o caminho mais profícuo para as transformações
que se fazem necessárias.
Para concluir, gostaria de citar Cagliari, que, em belíssima passagem, mostra a
fundamental importância da linguagem na construção do aprendizado humano.

O estado de fome é semelhante ao estado de dor. E convém lembrar aqui que as pessoas
não passam a vida com dor aguda ou com fome. Se se mantêm vivas é porque periodi-
camente sua dor ou fome cessa e o corpo ganha novo ânimo para continuar vivendo.
Nesse período recompõem-se não só o organismo biológico, como também o processo
de aprendizagem da vida, o qual inclui a linguagem (Cagliari, 2002).

Referências

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BUARQUE, Cristóvão. Basta de fingir. Opinião. Rio de Janeiro: O Globo, 31 maio 2014. Disponível
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1970].
——. Saberes necessários à prática educativa. 35. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2007 [1996].
HOLZMAN, L. Vygotsky at work and play: a postmodern culture of mind. Nova York: Routledge, 2009.
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(Org.) Trajetórias na formação de professores de língua. Londrina: EDUEL, 2002.
PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício do professor: profissionalização e razão pedagógica.
Porto Alegre: Artmed, 2002.
VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da Práxis. Buenos Aires: Clacso; São Paulo: Expressão popular, 2007.

Biografia

Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu é professora de língua portuguesa da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, desde 1985, atuando tanto no Ins-
tituto de Letras quanto no Colégio de Aplicação como professora associada. Doutora
em línguística pela UFRJ (2002); mestre em línguística pela UFRJ (1992); especialista
em linguística aplicada pela UERJ (1989). É bolsista FAPERJ pelo Programa Jovem
Cientista do Nosso Estado, desenvolvendo pesquisa sobre níveis de letramentos da es-
crita. Professora do Programa de Pós-graduação em letras com orientação de diferentes
estudantes de mestrado, doutorado e pós-doutorado, tem capítulos e artigos publica-
dos em livros representativos da área. Seu interesse está centrado nas questões referentes
à formação docente e ao processo ensino-aprendizagem de língua materna.
e-mail: teresatedesco@uol.com.br
Avaliação na educação infantil:
conversas iniciais

Silvia Cavalcante Lapa Lobo (UNISO)


Eliete Jussara Nogueira (UNISO)

Introdução

Será que nunca faremos senão confirmar


A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será, será que será, que será, que será
Será que esta minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir por mais mil anos?
Podres poderes – Caetano Veloso, 1984

Será que nunca faremos outra coisa senão concordar e confirmar a retórica sobre
a importância de um olhar avaliativo e interpretativo sobre as crianças e seus corpos em
desenvolvimento? Será que a retórica da necessidade de se avaliar o desenvolvimento da
criança em sua infância poderá ser no mínimo questionada, subvertendo a lógica desse
instrumento de poder, utilizado pela escola: a avaliação padronizada, em forma de fichas
ou em listas de critérios classificatórios?
Parafraseando Humberto Maturana (2009), que diz que o importante não é o
que desejamos mudar, mas sim o que desejamos conversar, pretende-se, então, nesse
artigo, conversar sobre a avaliação na educação infantil, buscando argumentos teóricos
e conceituais. Partimos da defesa de que o cotidiano da educação infantil não neces-
sita de avaliações formais, classificatórias, centradas na criança, pois todo e qualquer
104 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

processo de avaliação na escola tem como referência o olhar adulto, privilegiando com-
portamentos ideais – nem sempre reais – a serem atingidos. Essa conversa inicial é em
defesa da experiência na educação infantil, que não se mede ou classifica, mas se viven-
cia na sua potência, errando e acertando, mas continuando a experimentar e aprender.
Segundo Pereira (2009), constituir a infância como objeto de conhecimento ori-
gina construções de saberes específicos, que regulam o mundo social e subjetivo nesse
período. As mudanças no tempo e espaço infantil, no mundo contemporâneo, se con-
figuram por uma complexidade de fatores políticos, econômicos, sociais, advindos da
globalização, do neoliberalismo e do aparato tecnológico/digital, tornando nebulosas e
complexas as percepções sobre infância na educação.
Ancorada, na maioria das vezes, em um modelo de produção tipicamente em-
presarial que serve a um sistema capitalista, a escola estabelece instrumentos avaliati-
vos, dispositivos que têm por fim o controle e o poder sobre os corpos, sobre a vida.
Acrescenta-se a isto um contexto definido por Bauman (1999; 2010) como líquido,
fluido, de incertezas e voltado ao consumo, no qual se percebe um ambiente que mais
segrega do que integra, mais individualiza do que coletiviza, mais exclui do que inclui.
As práticas de avaliação na educação infantil, transformadas em fichas padronizadas,
estabelecem o que adultos almejam para a infância, estipulando uma expectativa ideal
a ser cumprida.
Ao ter como objetivo preparar a criança para o futuro é necessário entender qual
é o mundo futuro. A questão que se coloca nesse momento é se podemos preparar al-
guém para um futuro que desconhecemos. Antecipar os comportamentos esperados e
não permitir que a criança viva o presente com a justificativa da preparação para a vida
adulta pode impedi-la de sentir o mundo da sua infância. Será que temos esse direito?
Para compreender como a avaliação na educação infantil é um tema complexo e
controverso, precisa-se entender qual infância se quer. Utilizando conceitos de Deleuze
e Guattari sobre o devir criança (1997), Kohan analisa o poder do adulto sobre as
crianças e diz que

[...] as escolas, como máquina de ensino oficial, colocam a criança no contexto de coor-
denadas semióticas preestabelecidas, nas quais seja ela treinada – seja para mandar, seja
para obedecer. Na escola, a criança, infans, sem palavra, é introduzida no universo da lin-
guagem. Mas não para experimentar sua própria voz, mas para ser enquadrada num siste-
ma semiótico já definido, no qual ela dirá aquilo que se espera que seja dito, da maneira
como se espera que seja dito. Eis o que é aprendido na escola (Kohan, 2010, p. 116).

A princípio pode parecer que se trata apenas de organização e estruturação do


cotidiano, adotando-se propostas pedagógicas sem o uso de fichas ou técnicas de ava-
Avaliação na educação infantil: conversas iniciais 105

liação, porém não se trata somente de um problema técnico. Acreditamos ser, antes de
tudo, o problema das infâncias desperdiçadas no cotidiano da educação infantil.

O cotidiano de uma escola, seja pública ou particular, está sempre envolvido com uma
complexidade de situações, ações, interações, e a professora, embora planeje suas aulas,
lida com situações imprevistas, pois quando pisa na escola alguém grita que fulano está
chorando, e o outro rindo; ou se pode mudar de lugar; se hoje vai ter prova mesmo; se
pode beber água; se pode ir ao banheiro; de repente a diretora entra na sala para dar
avisos; o banheiro está quebrado, enfim um cotidiano escolar envolto com relações
humanas. Neste contexto em que muitas coisas podem acontecer ao mesmo tempo,
dizer que a relação em sala de aula é complexa é uma tentativa de dizer que as pesquisas
e estudos sobre a realidade escolar, antes de mais nada, são eliciadoras de reflexão. [...]
pensar sobre o cotidiano escolar, a partir de narrativas de situações concretas que desen-
cadeiam o disciplinamento de corpos e subjetividades de submissão a uma autoridade
(Nogueira, 2012, p. 206).

Os elementos que compõem a afirmação anterior nos remetem a refletir sobre a


educação infantil, as condições da formação dos professores para o atendimento a essa
faixa etária e as condições das práticas docentes cotidianas, mais especificamente a ava-
liação do desenvolvimento infantil. Nesse sentido, de acordo com Nascimento (2007,
p. 103), “por lei, a educação infantil é um nível de ensino e isto traz consequências
para o perfil do profissional que atua neste campo”. A formação de professores com
conhecimento específico para o estágio de desenvolvimento da criança, portanto, é alvo
de discussão, pois, de modo geral, a professora, com a formação generalista, terá que
avaliar uma criança, qualificar seu comportamento, decidir se atingiu ou não um obje-
tivo proposto por adultos, relatar aos pais os comportamentos acadêmicos da criança.
Será que o professor tem formação e direito para tanto? Segundo Pereira (2009, p. 92),
“a formação inicial dos professores é parte essencial das formas de governabilidade ins-
titucional escolar que tem afectado a infância”.
Promover um olhar sobre as práticas pedagógicas que estimule cada professor a
ser sujeito da própria história, de sua formação, e conhecer suas formas de subjetiva-
ção, promovendo novas maneiras para alcançar esse objetivo, é, segundo Gallo, o que
precisamos fazer:

Será preciso pensar uma outra política da infância, para perceber outros jogos de poder
que acontecem na escola – e eles acontecem; aprendemos com Foucault que sempre há
poder, há reação, há contrapoder, uma vez que o poder nada mais é que um jogo de for-
ças (Gallo, 2010, p. 117).
106 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Na procura de exercícios de pensamento, utilizamos os escritos de Michel Foucault


(1994), que desenvolve argumentos para mostrar que instituições como prisões, hospitais,
quartéis e escolas, entre outras, privam, “sequestram” temporária ou compulsoriamente
os indivíduos do convívio familiar, a fim de moldá-los a seus padrões de conduta,
disciplinando seu comportamento. Ainda segundo o filósofo, essas instituições seriam
lugares de criação de “corpos dóceis”, utilizando de regras que organizam ordens sem
explicação, a fim de estabelecer a obediência incontestável com um sistema de comando
sincronizado com o único objetivo de promover corpos disciplinados.

Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla,
quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro carac-
terísticas: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das
atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição
das forças). E para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve
manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza “táti-
cas”. A tática, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as ap-
tidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado
por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar
(Foucault, 1987, p. 150).

Ao descrever os mecanismos de disciplinamento, Foucault se refere à idade mo-


derna, na qual a disciplina foi um instrumento de dominação e controle destinado a
suprimir ou domesticar os comportamentos divergentes. Identificado pelo iluminis-
mo esse recurso consolidou, assim, um grande número de instituições de assistência e
proteção aos cidadãos – como família, hospitais, prisões e escolas –, e também inseriu
nelas mecanismos que controlam e mantêm os indivíduos na iminência da punição.
Tais mecanismos formariam o que Foucault chamou de tecnologia política, com
poderes de manejar espaço, tempo e registro de informações, tendo como elemento
unificador a hierarquia.

Essa combinação cuidadosamente medida das forças exige um sistema preciso de coman-
do. Toda a atividade do indivíduo disciplinar deve ser repartida e sustentada por injun-
ções cuja eficiência repousa na brevidade e na clareza; a ordem não tem que ser explicada,
nem mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento dese-
jado. Do mestre de disciplina àquele que lhe é sujeito, a relação é de sinalização: o que
importa não é compreender a injunção, mas perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo
com um código mais ou menos artificial estabelecido previamente. Colocar os corpos
num pequeno mundo de sinais a cada um dos quais está ligada uma resposta obrigatória
Avaliação na educação infantil: conversas iniciais 107

e só uma: técnica do treinamento que exclui despoticamente em tudo a menor represen-


tação, e o menor murmúrio; o soldado disciplinado começa a obedecer ao que quer que
lhe seja ordenado; sua obediência é pronta e cega; a aparência de indocilidade, o menor
atraso seria um crime (Foucault, 1987, p. 149).

Diante de todo o exposto, o ato de avaliar o desenvolvimento da aprendizagem


das crianças, na educação infantil, serve a um sistema maior do controle da vida em
desenvolvimento e à tecnologia política à qual se referiu Foucault, uma autoafirmação
do biopoder pela segregação, pela separação.
Um efeito colateral nesse sistema de controles é denominado por Bauman de
“refugo humano”, que diz respeito à população de pessoas que não são inclusas:

[...] a produção de “refugo humano”, ou, mais propriamente, de seres humanos refuga-
dos (os “excessivos” e “redundantes”, ou seja, os que não puderam ou não quiseram ser
reconhecidos ou obter permissão para ficar), é um produto inevitável da modernização,
e um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável efeito colateral da
construção da ordem (cada ordem define algumas parcelas da população como “desloca-
das”, “inaptas” ou “indesejáveis”) e do progresso econômico (que não pode ocorrer sem
degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de “ganhar a vida” e que, por-
tanto, não consegue senão privar seus praticantes dos meios de subsistência) (Bauman,
2005, p. 12).

“De fato, aquilo que define uma relação de poder é um modo de ação que não
age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação”. Isto
pode acontecer tanto pela violência quanto pelo consentimento. No entanto, é im-
portante notar que o poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, entendendo-se por isso
sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades, no
qual diversas condutas, reações e modos de comportamento podem acontecer. “Não
há relação de poder em que as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma
relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se então de uma relação física
de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar.” (Foucault,
1987, pp. 243-244).
A vida em sociedade permite, então, a possibilidade de alguns agirem sobre os
outros de formas jurídicas ou tradicionais de estatuto e de privilégio; diferenças eco-
nômicas com a apropriação das riquezas e dos bens materiais; de lugar nos processos
de produção; linguísticas ou culturais; na habilidade e nas competências, entre outras.
Toda relação de poder opera diferenciações que são, para ela, ao mesmo tempo condi-
ções e efeitos.
108 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Nesta análise, especificamente, o professor, como tradicional detentor do saber,


ocupa um lugar privilegiado em relação ao aluno. É ele quem determina o que será mi-
nistrado em sala de aula, com que profundidade, que tópicos devem ser valorizados ou
quais deles não merecem maior investimento de tempo. Nos instrumentos de avalia-
ção, são as suas concepções epistemológicas, sua “capacidade” de definir as prioridades
que determinam o que inquirir e como fazê-lo. Este privilégio garante ao professor agir
sobre o aluno em pleno exercício de poder.
Dentro do contexto escolar, como mostra Foucault, o principal dispositivo de
poder usado na relação professor/aluno era o “exame”, avaliação que determina quem
aprende e o que se aprende como adequado. Se o aluno demonstrar, pela avaliação, ter
adquirido o conhecimento, terá permissão de prosseguir sua caminhada de aprendiza-
gens; caso contrário, será barrado nesse trajeto. Não é por acaso que quando o assunto
é avaliação o que vem à cabeça de crianças e adultos é o medo, a prestação de conta,
a reprovação, o castigo. É o que tem recebido o nome de “Pedagogia do Exame”, por
meio da qual a “disciplinação” acontece.

O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza.


É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir.
Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e
sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente
ritualizado. Nele vem-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demons-
tração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina,
ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se
sujeitam (Foucault, 1987, pp. 164-165).

Ainda segundo o autor (1987, p. 153), “o sucesso do poder disciplinar se deve


sem dúvida ao uso de instrumento simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizado-
ra e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame.”.
O discurso proferido pela instituição escolar na prática da avaliação do aluno é o
de que espera-se verificar se ele adquiriu os conhecimentos necessários para prosseguir
nos estudos ou exercer determinada função na sociedade; é isso que possibilitará a ação
do professor sobre o aluno. No contraponto desta afirmação, recorremos a Deleuze
(2005, p. 79), que diz “um exercício de poder aparece como um afeto, já que a própria
força se define por seu poder de afetar outras forças”.
A determinação, cada vez mais detalhada, do currículo a ser adotado nas escolas,
a extensão de todo tipo de técnicas de diagnósticos e avaliação dos alunos e a transfor-
mação dos processos de ensino em técnicas dirigidas à consecução de atividades concre-
tas refletem o espírito de racionalização tecnológica do ensino, na qual o docente vê sua
Avaliação na educação infantil: conversas iniciais 109

função reduzida ao cumprimento de prescrições externamente determinadas, perdendo


de vista o conjunto e o controle sobre sua tarefa. E mais: o poder da formação de corpos
quietos, imóveis, estáticos, está descrito nas fichas de avaliação, que desvalorizam as
experiências pedagógicas cotidianas como processo legítimo de aprendizagem.
De maneira geral, as crianças no cotidiano escolar entram facilmente num mun-
do imaginário, inventando histórias extraordinárias nas quais elas próprias são os heróis
e as princesas, dando vida aos objetos, aos animais e aos brinquedos. A lógica utiliza-
da nem sempre é de compreensão absoluta dos adultos, pelo contrário: muitas vezes,
como resultado de um pensamento utilitarista, os adultos se distanciam desse mundo
de descobertas e encantamentos. Porém, o problema se instala quando, além de não
compreender a lógica infantil, o adulto tenta impor a sua própria lógica, pautada na
competição do trabalho, na produtividade e nas exigências consumistas que antecipam
o mundo adulto.
Nessa sociedade globalizada propulsora e propagadora de seres subjetivos, frag-
mentados e de individualismo institucionalizado, a formação das massas, o controle e
poder da vida constituem, pois, o quadro histórico em que nascem as crianças hoje e
as consequências trazidas para suas vidas são percebidas, sobretudo, na escola para a
infância.
Soares, Nogueira e Gomes (2013) apontam que, para um “discurso da pós-mo-
dernidade que oferece uma série de dificuldades específicas que nos obriga a aceitá-lo
como fragmentado, contraditório e incompleto, sendo a essência da pós-modernidade
não ter essência, e sua identidade carece de identidade”, o professor carece, também, de
identidade, e de rever seu papel.
Foucault afirma que

o papel do intelectual não é mais o de se colocar um pouco a frente ou um pouco ao lado para
dizer a muda verdade de todos. O intelectual mudou de aspecto, e até sua função mudou; sua
função, agora, é de lutar contra as formas de poder exatamente onde ela é, ao mesmo tem-
po, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da ‘verdade’, da ‘consciência’, do discurso
(Foucault, 1987, p. 71).

Apresentamos, assim, para o momento, apenas inquietações resultantes dos pri-


meiros estudos realizados sobre o tema da avaliação na educação infantil.

[...] é preciso um saber astuto para se livrar das armadilhas que estão instaladas inclusive em
nós mesmos. Não é possível rir de nós mesmos, desarmar nossos pensamentos suicidas sem se
aventurar de forma astuta pelos labirintos da alma. É necessário um certo tipo de inteligência
110 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

para nos alegrar com a nossa própria estupidez e flagrar os comichões provocados pelos dese-
jos mesquinhos fabricados pelas máquinas de captura (Hara, 2012, p. 148).

Considerações finais

Diante de todo o exposto, perguntamos: quais seriam os objetivos de avaliar na


educação infantil? Medir o desenvolvimento das crianças? Sobre quais aspectos: bioló-
gicos, psíquicos, físicos, cognitivos? Quem determinaria quais aspectos do desenvolvi-
mento infantil são importantes/relevantes para serem avaliados? Como essa determina-
ção seria feita? Ao se instituírem instrumentos de avaliação no cotidiano escolar, o que
se pensa e deseja como ideal de desenvolvimento infantil?
Discutir as práticas divisoras, opressoras e disciplinadoras de instrumentos de
avaliação do desenvolvimento, para nós, não é, apenas, uma luta pela tomada de cons-
ciência, mas, antes, uma luta contra o poder.
Perguntamos no início desse artigo se poderíamos questionar a retórica sobre
a necessidade de se avaliar o desenvolvimento da criança nas escolas para a infância.
Construímos, então, nossos primeiros argumentos contrários à avaliação na educação
infantil, inspiradas em Foucault e sua teoria sobre a disciplina, preocupação genuína
do filósofo.

A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é
um tipo de poder, uma mobilidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de
instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma
física ou uma anatomia do poder, uma tecnologia. E pode ficar a cargo seja de insti-
tuições especializadas (as penitenciárias, ou as casas de correção do século XIX) seja de
instituições que dela se servem como instrumento essencial para um fim determinado (as
casas de educação, os hospitais) (Foucault, 1987, p. 153).

Antes de encerrarmos nossa primeira conversa sobre a avaliação na educação para


a infância, buscando em Foucault pistas para criar nossos argumentos de possibilidades
para a resistência. Partindo de outro olhar, se faz necessário, na atualidade, pressupor
que a contemporaneidade traz novos desafios, verdades e subjetividades frente ao ser
humano, sua infância e sua educação. Do mesmo modo, é de extrema relevância rom-
per com possíveis relações formatadas em prol desse outro olhar para a infância e seu
atendimento educacional, propiciando a morte das verdades instituídas para viabilizar
outra experiência da vida e da infância.
Avaliação na educação infantil: conversas iniciais 111

Para Gallo, as tensões que se apresentam entre a modernidade e a pós-moderni-


dade na educação devem ser enfrentadas de forma criativa e produtiva.

A tarefa imperativa é a de investigar a fundo o projeto moderno, tanto em seus aspectos


epistemológicos quanto em seus aspectos políticos; investigar a fundo também as pro-
postas contemporâneas, identificadas ou não como pós-modernismo, também em seus
aspectos políticos e epistemológicos (Gallo, 2006, p. 564).

Em suma, agir de modo que a tensão, a incerteza e o medo não nos impeçam
de pensar, e que o pensamento e a ação criativa sigam possíveis no ambiente escolar,
em especial na educação infantil, é o argumento para essa conversa inicial, que não
termina.
No mundo atual, a escola, especificamente a educação infantil, é convidada a res-
ponder as necessidades decorrentes de um mundo globalizado, implantando modelos
pedagógicos estruturados, baseados em propostas teóricas e pedagógicas que se fundam
em um sistema equivocado de crenças sobre a infância, que ignoram a realidade con-
creta das crianças inseridas nesses espaços educativos, suas formas particulares de ser, de
agir e de sentir; e, ainda, instituindo para esta etapa da educação o padrão escolar, tra-
çando objetivos de preparo para o ensino fundamental, implantando currículos e ações
de acompanhamento do desenvolvimento infantil – avaliação – impróprios, equivoca-
dos e desnecessários para esta fase do desenvolvimento do ser humano.

Referências

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HARA, Tony. Ensaios Sobre a Singularidade. São Paulo: Intermeios; Londrina, PR: Kan, 2012.
112 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

NOGUEIRA, Eliete Jussara. A construção de subjetividades nas práticas de disciplinamento: narrativas


sobre o cotidiano escolar. Série-Estudos, Periódico do Programa de Pós-Graduação em Educação da
UCDB. Campo Grande, MS, n. 34, p. 205-215, jul./dez. 2012.
PELLANDA, Nilze Maria Campos. Maturana e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. (Coleção
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PEREIRA, Fátima. Governo da infância e profissionalidade docente: narrativas em formação inicial de
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REVEL, Judith. Dicionário Foucault. Tradução: Anderson Alexandre Silva. Rio de Janeiro: Forense
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SOARES, Maria Lúcia Amorim; NOGUEIRA, Eliete Jussara; GOMES, Luis Fernando. No cenário da
pós-modernidade: a reiterada exigência de qualidade e excelência na educação contemporânea. Con-
jectura: Filosofia e Educação, Caxias do Sul, v. 18, n. 1, p. 120-134, jan./abr. 2013.
VELOSO, Caetano. Podres poderes. Intérprete: Caetano Veloso. In: VELOSO, Caetano. Velô. [S.I.]:
Polygram, 1984.

Biografia

Silvia Cavalcante Lapa Lobo é pedagoga, mestre e doutoranda em educação


pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba. Bolsista
pesquisadora da CAPES pelo Programa Doutorado Sanduíche no Exterior – BRASIL/
PORTUGAL (processo: BEX 0536/15-6).
e-mail: silvialobo1962@hotmail.com

Eliete Jussara Nogueira é psicóloga, doutora em educação pela Unicamp,


professora titular no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de
Sorocaba.
e-mail: eliete.nogueira@prof.uniso.br
A formação de professores de idiomas na era
pós-método – a perspectiva dos
problemas de ensino

Rômulo Francisco de Souza (UFMG/USP)

Introdução

Durante nosso percurso de doutoramento junto ao programa de pós-graduação


em letras: língua, literatura e cultura italianas da Universidade de São Paulo, tivemos a
oportunidade de realizar uma série de estágios supervisionados visando nossa prepara-
ção para atuar no magistério superior. Acompanhamos, na ocasião, entre outras, uma
disciplina de formação de professores de idiomas, de 120 horas, pertencente ao currícu-
lo do curso de licenciatura em língua italiana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas da Universidade de São Paulo, intitulada atividade de estágio: italiano.
A disciplina em questão, elaborada e ministrada anualmente pela Profa Dra. Fer-
nanda Landucci Ortale,1 desde o ano de 2009, chamou-nos especialmente a atenção
por se tratar de uma proposta de percurso de formação de professores de idiomas con-
dizente – do nosso ponto de vista, em consonância com Ortale (2010, 2011) – com a
essência da chamada Pedagogia Pós-Método (Kumaravadivelu, 2001).
Com efeito – como será visto adiante – trata-se de um percurso didático que
não limita a experiência do professor em formação a um mero passar por arcabou-
ços teóricos, em uma abordagem descendente, mas que lhe oferece – por meio de
uma didática inclusiva, dialógica, alicerçada no conceito de Aprendizagem Baseada
em Problemas (ABP) [Macphee, 2002; Larsson, 2001; Duch, 1996] e, especifi-
cadamente, de encaminhamentos de Problemas de Ensino (Ortale, 2010; 2011) –

1
Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Optamos por citar o nome com-
pleto da professora Ortale, no decorrer deste texto, ao nos referirmos à sua prática na disciplina atividade de
estágio: italiano. As referências à sua produção teórica seguem as normas da ABNT.
114 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

condições de adquirir autoridade e autonomia para que possa assumir uma postura
reflexiva sobre a sua prática, dando-lhe forma e implementando mudanças quando
considerar oportuno. É, como dissemos, uma disciplina condizente com os pilares da
Pedagogia Pós-Método, ou seja, com os parâmetros pedagógicos da particularidade,
da praticabilidade e da possibilidade (Kumaravadivelu, 2001, p. 538; 2006b, p. 171).
Neste texto, propomos uma reflexão sobre essa experiência de formação de pro-
fessores, trazendo para debate, especialmente, aspectos da sua dinâmica e dos seus
arcabouços teóricos fundamentais. Por conta das afinidades com essa concepção, na
próxima seção, discorremos sobre os pilares da Pedagogia Pós-Método. Os debates
abrangem o contexto de ruptura com a era dos métodos; a caracterização da nova
concepção pedagógica; e a função do formador de professores sintonizada com esse
viés. Na seção subsequente, discutimos sobre a proposta de formação de professores de
idiomas segundo a perspectiva dos Problemas de Ensino. Abordamos, principalmente,
seus principais aspectos teórico-operativos e instrumentos didáticos.

A pedagogia pós-método

A ideia de uma pedagogia pós-método surge no início da década de 1990 em


meio a uma conjectura teórica de falência da pedagogia baseada em métodos no âmbito
do ensino e aprendizagem de línguas (Souza, 2014), ou seja, em linhas gerais, como
reação a uma tradição marcada pela concepção de que o ensino de línguas deveria ser
pautado em métodos e abordagens teoricamente definidos e delimitados, cabendo ao
professor de idiomas estudá-los e, em sala de aula, executá-los com a maior fidedigni-
dade e presteza possíveis.
A crítica à noção de métodos de ensino de línguas pode ser constatada em Brown
(2002, p. 10), Allwright (1991, p. 7) e Kumaravadivelu (2006b, pp. 163-168). De
fato, enquanto os dois primeiros autores apontam uma série de limitações relativas aos
métodos – as quais elencamos por meio do Quadro 1 – Kumaravadivelu (2006b, pp.
163-168) expõe cinco mitos que, segundo ele, representam uma visão inflamada sobre
essa noção. São eles:

• Existe o melhor método, pronto e esperando para ser encontrado;


• Métodos constituem o princípio organizativo para o ensino de línguas;
• Métodos contêm um valor universal e são historicamente neutros;
• Teóricos constroem conhecimento e professores consomem conhecimento;
• Métodos são neutros e não possuem motivações ideológicas.
A formação de professores de idiomas na era pós-método – a perspectiva dos problemas de ensino 115

Quadro 1. Desvantagens dos métodos


• São construídos considerando-se as diferenças de um para o outro, ainda que
similaridades possam ser mais importantes, já que métodos que são diferentes em
termos de princípios abstratos parecem ser muito mais similares na prática de sala
de aula;
• Simplificam de modo infeliz uma série de fatores altamente complexos, como, por
exemplo, considerar as semelhanças entre aprendizes quando as diferenças podem
ser mais relevantes;
• Desviam energia de questões potencialmente mais produtivas, uma vez que o
tempo gasto para aprender como implementar um método particular significa
menos tempo para outras atividades, como, por exemplo, o design de tarefas de
sala de aula;
• Geram lealdade a uma marca, o que será, improvavelmente, útil para a profissão
(professor de idiomas), uma vez que promovem rivalidades inúteis sobre questões
essencialmente irrelevantes;
• Geram condescendência por transmitir a impressão de que respostas foram de fato
encontradas para todas as principais questões metodológicas da nossa profissão
(professor de idiomas);
• Oferecem um senso de coerência raso e externamente derivado para professores de
línguas, o que pode inibir o desenvolvimento de uma personalidade mais profunda
e, em última instância, de um senso de coerência mais valioso, internamente
derivado;
• Métodos são demasiadamente prescritivos, pressupondo demais sobre um contexto
antes de ele ter sido identificado. São, portanto, supergeneralizados no que diz
respeito à sua aplicação em situações práticas;
• Geralmente, métodos são distintos nos estágios iniciais de um curso de línguas, mas
são muito semelhantes uns aos outros nos estágios mais avançados;
• Pensava-se que os métodos podiam ser empiricamente testados por meio de
quantificação científica de modo a determinar qual seria o melhor. Descobrimos
que algo intuitivo e um pouco artesanal não pode jamais ser verificado claramente
por validação empírica;
• Métodos são carregados de agendas políticas e mercenárias por parte de seus
produtores. Frequentemente criam um centro de poder em torno de si, tornaram-se
veículos de um imperialismo linguístico, visando o desempoderamento periférico.
Fonte: adaptado de Brown (2002, p. 10) e Allwright (1991, p. 7) apud Souza (2014, p. 30).

Em linhas de síntese, o primeiro mito está relacionado à busca – quase obses-


siva – de qual seria o melhor método de ensino de línguas. Pesquisas sobre a eficácia
dos métodos, contudo, são inviáveis e improdutivas, já que envolvem elementos que
não podem ser controlados, tais como as demandas, os objetivos e as variantes dos
116 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

aprendizes e o perfil do professor. O segundo mito diz respeito à concepção de que os


métodos podem figurar como centro de toda a atividade de ensino e aprendizagem de
línguas, ou seja, como referência para todos os componentes dessa operação – como,
por exemplo, entre outros, o design do currículo, a elaboração do material didático e
as estratégias e técnicas de ensino. Nesse sentido, o autor lembra que métodos são ar-
cabouços demasiadamente limitados para explicar as complexidades da ação de ensino
e aprendizagem de línguas. O terceiro mito está relacionado à concepção de que uma
dessas propostas pode ser aplicada em qualquer contexto. Conforme lembra Kumara-
vadivelu (2006b, p. 165) esse mito pode ser desfeito na medida em que se observa que
métodos são, de fato, construídos a partir de demandas e contextos idealizados e que
são, por isso, essencialmente desconectados das realidades nas quais são aplicados. Ade-
mais, a busca por métodos universalmente aplicáveis consiste em um exercício de força
descendente que ignora o já citado contexto de utilização e o fato de que o professor de
idiomas possui algum tipo de experiência com a tarefa de ensino e aprendizagem de lín-
guas. O quarto mito se refere ao estabelecimento artificial de papéis antagônicos e bem
definidos entre a figura do teórico e a do professor, sendo que, enquanto àquele cabe a
construção de conhecimento, a esse resta a tarefa da prática. O quinto e último mito,
enfim, diz respeito à ideia de que a noção de método causa marginalidade e reflete uma
determinada visão de mundo. A marginalidade pode ser percebida, por exemplo, pela
segregação entre gêneros – ou seja, pela noção errônea de que aos homens cabe a teoria
e às mulheres a prática do ensino de línguas – e entre nativos e não nativos, especial-
mente no que se refere à marginalização do não nativo na tarefa de ensinar um idioma.
O reflexo e a representação de uma determinada visão de mundo, por sua vez, pressu-
põe a articulação de relações desiguais de interesse, ou seja, o que Pennycook (1989, p.
597) reconheceu como conhecimento de interesse.
Essa conjectura de insatisfação com a noção de método no âmbito do ensino de
línguas, conforme já acenamos, figura como contexto para a gênese da ideia de uma
pedagogia pós-método, para a qual o que importa – em detrimento à busca pelo melhor
método – é que o professor, baseado no que Prabhu (1990, p. 172) chamou de senso de
plausibilidade, entenda como a sua atividade docente pode melhor auxiliar os alunos
em seu processo de aprendizagem, levando em consideração as demandas do contexto
de aplicação, ou seja, empoderando esse professor. Empoderamento, nesse caso, é
compreendido como o resultado de uma condição de descentralização da tarefa de
elaboração de teorias e de tomadas de decisões pedagógicas (Kumaravadivelu, 1994, p.
29), as quais, uma vez outorgadas ao teórico no paradigma habitual dos métodos, passam
a figurar, na condição pós-método, como tarefa perfeitamente cabível ao professor, que
a realiza embasado na sua prática de sala de aula e no que Kumaravadivelu (1994, p. 30)
reconhece como pragmatismo baseado em princípios.
A formação de professores de idiomas na era pós-método – a perspectiva dos problemas de ensino 117

Vale esclarecer que, para o autor, o pragmatismo baseado em princípios significa,


conforme parafraseamos em Souza (2014, p. 32),

uma pedagogia pragmática, em que o professor toma decisões de cunho pedagógico asso-
ciando teoria e prática a partir do contexto de aplicação e com base em sua avaliação crítica,
oferecendo um tipo de ensino informado (Kumaravadivelu, 1994, apud Souza, 2014, p. 32).

Em alternativa ao método, Kumaravadivelu (2006b, p. 185) sugere a adoção


de propostas que ofereçam um quadro de referência coerente e compreensível, com-
patível com o estado atual do conhecimento, que possa guiar aspectos importantes
das atividades de sala de aula e de ensino de L2. Ele cita pelo menos três quadros de
referência, os quais considera como de orientação pós-método – a saber: o Quadro
Referencial Tridimensional de Stern;2 o Quadro de Referência Prático-Exploratório
de Allwright3 ; e o seu próprio Quadro Referencial de Macroestratégias.4 Ressaltamos
que, mais do que explorar cada um deles, neste capítulo, interessa-nos perceber que
todos pressupõem a centralidade no professor e no contexto de aplicação e que, ape-
sar da neutralidade em relação ao método, não são desconectados de teorias. Tome-
mos como exemplo, em consonância com Souza (2014, p. 33), o Quadro Referencial
de Macroestratégias de Kumaravadivelu, o qual se constitui de macro e microes-
tratégias. Nele, as microestratégias podem ser concebidas como operacionalizadoras
das macroestratégias, as quais, por sua vez, são compreendidas como planos gerais
advindos de conhecimento teórico, empírico e pedagógico sobre ensino e aprendi-
zagem de L2 (Kumaravadivelu, 2003, p. 38; 1994, p. 32). Destacamos, a seguir, as
macroestratégias propostas pelo autor:

1. Maximize as oportunidades de aprendizagem;


2. Facilite a interação negociada;
3. Minimize os problemas de intercompreensão – entre professor e aluno;
4. Ative heurísticas intuitivas;
5. Estimule a sensibilização para línguas;
6. Contextualize o insumo linguístico;
7. Integre as habilidades;
8. Promova a autonomia do aprendiz;
9. Aumente a consciência cultural;
10. Garanta a relevância social.5
2
Stern (1983); Stern (1985); Stern, Allen e Harley (1992).
3
Allwright (1993).
4
Kumaravadivelu (2003). O assunto é debatido também em Kumaravadivelu (2006a).
5
Tradução nossa.
118 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Concluímos esta seção trazendo para debate dois aspectos relativos à Peda-
gogia Pós-Método, os quais consideramos essenciais para sua melhor compreensão
e, consequentemente, para a argumentação que propomos neste texto. Abordamos,
em primeiro lugar, o tripé em que a concepção de Pedagogia Pós-Método se apoia e
pela qual se define. Discutimos, posteriormente, o papel do formador de professores
segundo tal perspectiva.
Em linhas de síntese, Kumaravadivelu (2001, p. 538; 2006b, p. 171), percebe a
Pedagogia Pós-Método como um sistema tridimensional composto por três parâmetros
pedagógicos inter-relacionados: o parâmetro da particularidade; o da praticabilidade; e o
da possibilidade. O parâmetro da particularidade está relacionado a uma “compreensão
verdadeira das particularidades linguísticas, socioculturais e políticas locais” (Kumarava-
divelu, 2001, p. 544), ou seja, a uma opção pedagógica sensível ao contexto, que, portan-
to, rejeita a adoção de princípios genéricos e predeterminados com o intuito de cumprir
objetivos também genéricos e predeterminados. O parâmetro da praticabilidade, por sua
vez, está relacionado à rejeição de um modelo artificial marcado pela relação dicotômica
entre aquele que elabora a teoria – ou seja, o teórico – e aquele que consome a teoria –
ou seja, o docente. Com efeito, conforme foi anteriormente acenado, na perspectiva da
Pedagogia Pós-Método, os professores são encorajados a “teorizar a partir de sua prática
e praticar o que teorizaram” (Kumaravadivelu, 2001, p. 544; 2006b, p. 173). O parâme-
tro da possibilidade, enfim, está relacionado à opção de trazer à tona, em sala de aula, a
consciência sociopolítica que os aprendizes carregam consigo, rejeitando, dessa forma, a
concepção de que o ensino e a aprendizagem de línguas se restringe aos elementos linguís-
ticos e funcionais. Esse parâmetro, como ressalta Kumaravadivelu (2001, p. 538; 2006b,
p. 171), tem inspiração, principalmente, nos trabalhos de Paulo Freire, Simon (1988),
Giroux (1988), Auerbach (1995) e Benesch (2001).
Conforme nos lembra Kumaravadivelu (2006b), as características e funções es-
peradas para o formador de professores na perspectiva da Pedagogia Pós-Método re-
fletem, essencialmente, os três parâmetros que a fundamentam, ou seja, os já citados
parâmetros da particularidade, da praticabilidade e da possibilidade. Dessa forma, o
professor formador terá a função de oferecer condições para que o professor em forma-
ção adquira autoridade e autonomia para que consiga assumir uma postura reflexiva
sobre a sua prática, dando-lhe forma e implementando mudanças quando considerar
oportuno. O autor aponta para a necessidade do estabelecimento de uma relação dia-
lógica entre o formador e os professores em formação e de um ambiente inclusivo,
no sentido de considerar a perspectiva desses professores, suas crenças, valores e co-
nhecimentos, como parte do processo de aprendizagem (Kumaravadivelu, 2006b, p.
183). Apresentamos, por meio do Quadro 2, o papel do formador em termos práticos,
segundo o autor.
A formação de professores de idiomas na era pós-método – a perspectiva dos problemas de ensino 119

Quadro 2. O papel do formador na perspectiva pós-método


• Reconhecer e ajudar os professores em formação a reconhecer as desigualdades
construídas nos programas correntes de formação de professores, os quais tratam
teóricos como produtores de conhecimento e professores como consumidores
de tal;
• Permitir que futuros professores possam articular seus pensamentos e experiências,
bem como compartilhar suas crenças pessoais, concepções e saberes a respeito do
ensino e aprendizagem de línguas, durante todo o percurso de formação;
• Encorajar os futuros professores a pensarem criticamente, de modo que possam
relacionar o seu conhecimento pessoal ao profissional ao qual estão sendo
expostos, monitorando como cada um formata ou é formatado pelo outro,
avaliando como o conhecimento profissional genérico pode ser usado para
construir a sua própria teoria sobre a prática;
• Criar condições para que os professores em formação possam adquirir habilidades
analíticas básicas sobre o discurso de sala de aula, que o auxiliarão a compreender
a natureza das interações nesse contexto;
• Direcionar parte de suas agendas de pesquisa para o que Cameron et al. (1992)
chamaram de “pesquisa empoderada”, ou seja, pesquisa com – em detrimento da
pesquisa sobre – seus professores em formação;
• Expor os professores em formação a uma pedagogia da possibilidade, ajudando-
os a engajar-se criticamente com autores que têm trazido nossa consciência sobre
poder e política, ideias e ideologias, que alimentam a formação de professores
de idiomas.
Fonte: adaptado de Kumaravadivelu (2006b, p. 183) apud Souza (2014, p. 35).

Cabe ressaltar que essa perspectiva se apresenta como uma ruptura com o mo-
delo de formação de professores tipicamente relacionado à ideia de método, ou seja,
uma proposta que limita a experiência do professor em formação a um mero passar
por arcabouços teóricos, submetendo-o a uma abordagem descendente, com o intui-
to de transmitir-lhe um conjunto de conhecimentos preestabelecidos; sugerindo-lhe
as melhores práticas, modelando o seu comportamento enquanto docente e avalian-
do seus hábitos pedagógicos (Kumaravadivelu, 2001, p. 551). Ortale (2010, p. 421)
ilustra essa perspectiva, lembrando que, no auge do método audiolingual, formar
professores significava prepará-los para aplicar determinado material didático, par-
tindo-se de uma “visão tecnicista de treinamento, compatível com a visão estrutura-
lista de língua e com a concepção behaviorista do processo de ensino-aprendizagem”
(Ortale, 2010, p. 421). Treinamento, nesse caso, conforme lembra a autora, citando
Freeman (1989, p. 29), está associado a um processo de teor prescritivo, em que se
120 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

apresentam modelos ao professor em formação, visando capacitá-lo a atuar de acor-


do com um método específico, imposto como ideal, em um determinando contexto.
Na próxima seção, discutiremos a proposta de formação de professores de idio-
mas segundo a perspectiva dos Problemas de Ensino (Ortale, 2010; 2011). Conforme
anunciamos, abordaremos seus principais aspectos teórico-operativos e seus instrumen-
tos didáticos.

A perspectiva dos problemas de ensino

Frente ao desafio de formar professores de línguas em uma perspectiva pós-mé-


todo, Ortale (2010; 2011) sugere a utilização dos Relatos de Problemas de Ensino,
os quais serviriam como deflagradores de reflexões sobre a prática de sala de aula. Em
suas palavras, Relatos de Problemas de Ensino são definidos como “uma narrativa ou
descrição sobre a sala de aula, realizada por um professor, e que pode apresentar difi-
culdades, preocupações com práticas futuras ou percepções negativas sobre práticas já
realizadas” (Ortale, 2010, p. 425). São, portanto, “expressão da percepção dos profes-
sores, carregada de sentido em relação aos contextos de ensino-aprendizagem em que
estão inseridos” (Souza, 2014, p. 94).
Ortale (2010, p. 425), com o intuito de melhor explicar o conceito, cita pelo
menos quatro exemplos de Relatos de Problemas de Ensino. São eles:

Exemplo 1 – “Nem sempre consigo responder perguntas de vocabulário dos


alunos e digo que vou levar a resposta na aula seguinte, mas me sinto mal
mesmo assim.”

Exemplo 2 – “Tenho na mesma turma uma aluna de 13 e outra de 69 anos.


Para mim é muito difícil conseguir administrar a classe com tanta diferença
de interesses e necessidades.”

Exemplo 3 – “Tenho grupos grandes, de quase vinte alunos, e há muita di-


ferença na velocidade de realização das atividades. Alguns terminam muito
rápido os exercícios e me olham com impaciência.”

Exemplo 4 – “Alunos que querem traduzir tudo atrapalham a aula. Às vezes


me esforço para fazer gestos e explicações em italiano e no final os alunos
traduzem para o português e ainda pedem uma confirmação minha” (Ortale,
2010, p. 425 apud Souza, 2014, p. 94).
A formação de professores de idiomas na era pós-método – a perspectiva dos problemas de ensino 121

Percebemos, em consonância com Souza (2014, p. 93), que uma leitura atenta
dos exemplos apresentados mostrará que os Relatos de Problemas de Ensino apon-
tam para variadas dimensões da práxis do professor de idiomas, conforme acenado em
Ortale (2010, p. 426). Corrobora a constatação dessa multiplicidade dimensional a
proposta de categorização dos Problemas de Ensino identificados pela autora a partir
dos relatos. São eles:

[...] interação professor-aluno ou aluno-aluno, conhecimento da língua-alvo, relação profes-


sor-livro didático, ensino das habilidades comunicativas, planejamento de aula, ensino da
gramática, correção, papel da língua materna/tradução (Ortale, 2010, p. 426).

Em sala de aula, ou seja, em um contexto de formação de professores de língua


italiana, a Profa Dra Fernanda Landucci Ortale propõe que seus alunos, professores em
formação, identifiquem, a partir dos relatos, Problemas de Ensino relacionados à pró-
pria prática. Conforme lembra Souza (2014, p. 93), os Relatos de Problemas de Ensino
são identificados pelos alunos, basicamente, de três maneiras:

1) Por meio de reflexões sobre a própria prática pregressa – no caso de professores em


formação com experiência de ensino de língua italiana; 2) por meio de reflexões sobre a
própria experiência, em cursos de língua italiana; e 3) por meio de entrevistas com pro-
fessores que já tenham prática no ensino de língua italiana – sendo as estratégias didáticas
2 e 3 utilizadas no caso de o aluno não ter tido qualquer prática antecedente com ensino
de língua italiana (Souza, 2014, p. 93).

Em linhas gerais, uma vez identificados, reunidos e elencados, caberá ao pro-


fessor em formação escolher aquele – ou aqueles – Problema(s) de Ensino com o(s)
qual(is) irá trabalhar durante o processo de formação. Esse professor irá reunir esfor-
ços no sentido de buscar encaminhamentos para os respectivos Problemas de Ensino,
empreendendo pesquisas, acessando referências bibliográficas, formulando reflexões,
dialogando com os colegas, com professores experientes e com o professor formador. O
processo culmina em uma aula – ministrada pelo professor em formação – cujo enfo-
que seja o Problema de Ensino relatado e trabalhado. Ortale (2010, p. 426) especifica
as ações do processo da seguinte maneira:

• Disponibilizar aos alunos professores a coletânea de relatos de problemas de ensino;


• Solicitar que cada dupla de alunos realize a seleção de dois relatos de problemas de
ensino;
122 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

• Determinar um plano de leituras e discussões de textos teóricos relacionados aos RPEs


[Relatos de Problemas de Ensino] selecionados;
• Definir ações colaborativas (realização de entrevistas, de questionários, análise de mate-
riais didáticos, elaboração de diários etc);
• Preparar apresentação do percurso de reflexões e de possíveis soluções / encaminhamen-
tos aos próprios colegas do curso de letras, ou então, preparar um aula cujo enfoque seja
o problema de ensino relatado.
(Ortale, 2010, p. 426)

Cabe mencionar que, na prática, conforme percebemos, ao participar da disci-


plina atividade de estágio: italiano na condição de estagiários, o acúmulo de reedições
dessa proposta de formação pode resultar no estabelecimento de Problemas de Ensino
recorrentes. Compreendemos que esse fenômeno pode gerar pelo menos duas implica-
ções, a saber: a possibilidade do estabelecimento de hipóteses cientificamente produti-
vas a seu respeito – bem como de um também produtivo contexto de investigação – e,
em consonância com a prática da Profa Dra Fernanda Landucci Ortale, a possibilidade
da criação de coletâneas de Problemas de Ensino, os quais podem ser apresentados aos
professores em formação, nas reedições do percurso, como opção complementar ao
levantamento de Relatos de Problemas de Ensino. Compreendemos que isso pode ser
feito no início do processo, como opção para a escolha dos Problemas de Ensino que
serão trabalhados. Consideramos que tal oferta não descaracteriza a iniciativa como
condizente com uma perspectiva pós-método, dado que o material é fruto genuíno de
levantamento de Problemas de Ensino – desde que se mantenha a estrita relação de
pessoalidade dos Problemas de Ensino em relação ao professor em formação, evitando
o estabelecimento de uma abordagem descendente, de caráter impositivo. Em outras
palavras, o procedimento é adequado desde que o professor em formação se identifique
com o Problema de Ensino selecionado na coleção.
Mediante nossa revisitação de Ortale (2010; 2011), fica clara a sintonia da pro-
posta da autora com os três parâmetros pedagógicos mencionados, que fundamentam
a Pedagogia Pós-Método (Kumaravadivelu, 2001). Com efeito, a proposta se apresenta
como uma didática inclusiva, dialógica, que oferece condições para que o professor em
formação adquira autoridade e autonomia para que possa assumir uma postura reflexi-
va e empoderada sobre a sua prática.
Consideramos oportuno indicar, contudo, outras estratégias relacionadas à di-
mensão operativa da proposta, as quais, do nosso ponto de vista, também dialogam
com esses três parâmetros, podendo figurar nesse arcabouço com o status de alternativa
ou de complemento. Referimo-nos, especificadamente, à adoção de contextos reais
de ensino e aprendizagem da língua-alvo e à confecção de portfólios digitais ou blogs
A formação de professores de idiomas na era pós-método – a perspectiva dos problemas de ensino 123

durante o percurso, sendo estes utilizados como meio para a elaboração de reflexões
sobre todos os aspectos do percurso – a descrição do contexto e dos Problemas de
Ensino enfrentados, bem como dos encaminhamentos encontrados; a justificativa e o
embasamento das escolhas metodológicas, do material didático e das técnicas adotadas;
a descrição do plano de aula; entre outros – e sobre aqueles mesmos contextos de ensi-
no e aprendizagem, como referência para a elaboração das aulas e como lugar para sua
realização no final do percurso formativo.
Naturalmente, compreendemos que, enquanto a adoção de contextos reais de
ensino e aprendizagem da língua-alvo dialoga, especialmente – mas não exclusivamen-
te–, com o parâmetro da particularidade, a confecção de portfólios ou blogs dialoga
com o parâmetro da praticabilidade, na medida em que oferece oportunidade para que
o professor em formação não apenas reflita sobre a sua prática, mas também teorize
sobre e a partir dela.
Fica claro, enfim, o embasamento da proposta de Ortale (2010; 2011) na meto-
dologia de ensino pautada no conceito de Aprendizagem Baseada em Problemas. Em
linhas gerais, essa metodologia, originada no campo do ensino da medicina e poste-
riormente aplicada em outras áreas, conforme nos lembra Macphee (2002), Larsson
(2001) e Duch (1996), está pautada na ideia de que novos conceitos devem ser intro-
duzidos, ou aprendidos, a partir de problemas complexos do mundo real, sendo tais
usados com o intuito de motivar, focar e iniciar processos de aprendizagem. Dessa for-
ma, ao serem apresentados aos problemas, motivados a mobilizar esforços no sentido
de tentar resolvê-los, e só depois apresentados a conceitos, os aprendizes são convidados
a uma aprendizagem ativa. O embasamento fica estabelecido, portanto, na medida em
que, como vimos, a proposta de formação de professores de idiomas na perspectiva dos
Problemas de Ensino (Ortale, 2010; 2011), essencialmente, lança mão da tentativa de
resolução de problemas complexos do mundo real – nesse caso, os Problemas de Ensi-
no, levantados por meio de relatos – como estratégia de formação.

Conclusões

Neste texto, revisitamos a proposta de formação de professores de idiomas des-


crita e observada na prática da Profa Dra Fernanda Landucci Ortale (2010; 2011), no
contexto da disciplina atividade de estágio: italiano. Engendramos uma reflexão sobre
essa proposta, trazendo para debate, especialmente, aspectos da sua dinâmica e dos seus
arcabouços teóricos fundamentais – os quais, compreendemos, podem aproximá-la a
uma perspectiva pós-método.
Dessa forma, discorremos sobre os pilares da Pedagogia Pós-Método, abordan-
do, essencialmente, o contexto de ruptura com a era dos métodos; a caracterização da
124 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Pedagogia Pós-Método; e a função do formador de professores sintonizada com esse


viés. Dissertamos também sobre a proposta de formação de professores de idiomas
segundo a perspectiva dos Problemas de Ensino (Ortale, 2010; 2011), abordando,
principalmente, os seus principais aspectos teórico-operativos e os seus instrumentos
didáticos.
Concluímos, em síntese, e em consonância com Ortale (2010; 2011), que a pro-
posta de formação de professores na perspectiva dos Problemas de Ensino é condizente
com a Pedagogia Pós-Método na medida em que se caracteriza como um percurso
didático que não limita a experiência do professor em formação a um mero passar por
arcabouços teóricos, em uma abordagem descendente e com o intuito de transmitir-lhe
um conjunto de conhecimentos preestabelecidos, sugerindo-lhe as melhores práticas,
modelando o seu comportamento enquanto docente e avaliando seus hábitos pedagó-
gicos (Kumaravadivelu, 2001, p. 551); em vez disso, oferece-lhe – por meio de uma
didática de formação de professores dialógica, inclusiva, no que tange à perspectiva
dos professores em formação (suas crenças, valores e conhecimentos), alicerçada no
conceito de Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) [Macphee, 2002; Larsson,
2001; Duch, 1996] e, especificadamente, de encaminhamentos de Problemas de Ensi-
no (Ortale, 2010; 2011) – condições para que adquira autoridade e autonomia e possa
assumir uma postura reflexiva sobre a sua prática, dando-lhe forma e implementando
mudanças quando considerar oportuno.

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126 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Biografia

Rômulo Francisco de Souza é doutor em letras: língua, literatura e cultura ita-


lianas pela Universidade de São Paulo. Mestre em linguística aplicada pela Universida-
de Federal de Minas Gerais. Especialista em planejamento, implementação e gestão da
EaD pela Universidade Federal Fluminense. Licenciado pleno em português e italiano
pela Universidade Federal de Minas Gerais.
e-mail: romim_it@yahoo.it
Ensino de língua portuguesa em exame

Magda Bahia Schlee (UERJ)

Introdução

A situação dos alunos egressos do ensino fundamental e do ensino médio

Tem se tornado tradição, a cada início de ano, a divulgação, pelos principais


veículos de comunicação do país, dos resultados apresentados por alunos de todo Bra-
sil nos exames responsáveis pela seleção de candidatos às principais universidades do
país, mais especificamente os resultados obtidos no Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Listas com os rankings das escolas das redes pública e privada figuram na
mídia, chamando-se atenção para o grande desnível entre as duas redes de ensino. De
modo geral, são as escolas particulares que apresentam melhor desempenho e, nesse
ponto, o Rio de Janeiro não difere do restante do país. Normalmente, são questões
conjunturais que determinam o melhor desempenho das instituições particulares: mui-
tas vezes estas pagam melhores salários, atraindo, assim, profissionais mais qualificados.
Uma melhor estrutura física, a utilização de diferentes recursos, reuniões periódicas de
planejamento e a cobrança e acompanhamento dos pais também são responsáveis por
esse melhor resultado. É digno de nota que o bom desempenho de escolas federais,
colégios de aplicação e escolas técnicas e militares no ENEM deve-se, justamente, às
condições gerais dessas instituições, que se aproximam das particulares.
Outro aspecto que também costuma ser destacado na mídia é o baixo desempe-
nho dos candidatos nas disciplinas em geral, mas principalmente em língua portuguesa
e redação. Na última edição do exame, por exemplo, 529 mil candidatos ficaram com
128 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

nota zero em redação, índice que representa 8,5% dos candidatos participantes, segun-
do o MEC. Resultados como esse confirmam o que se tem verificado há anos: o ensi-
no médio brasileiro está estagnado. Tal quadro, contudo, não é gratuito. As péssimas
condições das instituições de ensino fundamental e médio, os baixos salários pagos aos
professores, a má formação desses profissionais e políticas públicas de aprovação auto-
mática sem acompanhamento paralelo aos alunos são apenas algumas das causas que
levaram a esse cenário desolador.
Fica evidente, assim, que causas externas à própria escola interferem, de forma
decisiva, na determinação dos resultados referentes ao desenvolvimento da competên-
cia comunicativa dos alunos, pois, como qualquer instituição social, a escola reflete as
condições sociais do ambiente em que está inserida. Mas não são apenas essas condições
externas que têm sido responsáveis pela formação deficiente dos alunos egressos do
ensino médio nas habilidades de leitura e escrita. Na verdade, as práticas pedagógicas
desenvolvidas nas aulas de português não têm contribuído significativamente para que
os discentes ampliem sua competência no uso da língua portuguesa.
O resultado disso são os milhares de analfabetos funcionais – como são chamados
os alunos que chegam ao final do ensino médio, mas não sabem ler um enunciado, ex-
plicar uma ideia ou produzir um texto minimamente claro e coerente – que se formam a
cada ano. E os reflexos dessas práticas têm desdobramentos que atingem não só os resul-
tados em língua portuguesa e em outras disciplinas, mas também ultrapassam os muros
da escola. Com grandes dificuldades de leitura, os alunos, de modo geral, apresentam
problemas de entendimento de conteúdos de outras disciplinas. Como bem sinaliza An-
tunes (2003, p. 20), esse aluno

deixa a escola com a quase inabalável certeza de que é incapaz, de que é linguisticamente
deficiente, inferior, não podendo, portanto, tomar a palavra ou ter voz para fazer valer
os seus direitos, para participar ativa e criticamente daquilo que acontece à sua volta.
Naturalmente, como tantos outros, vai ficar à margem do entendimento e das decisões
de construção da sociedade.

Constata-se, assim, infelizmente, que o ensino de língua portuguesa não tem


contribuído para formar cidadãos mais críticos, mais participantes e atuantes política
e socialmente.
Mas, se as aulas de português não desenvolvem a capacidade de leitura e escrita
dos alunos, o que tem sido feito durante essas aulas? É isso que tentaremos mostrar na
próxima seção.
Ensino de língua portuguesa em exame 129

O que se faz nas aulas de português?

Um exame cuidadoso das aulas de língua portuguesa no Ensino Fundamental


e no Ensino Médio revela a manutenção de uma prática pedagógica reducionista e
descontextualizada. De modo geral, há nas aulas de português uma ênfase na análi-
se puramente metalinguística dos itens gramaticais em frases descontextualizadas. Os
alunos são apresentados às diferentes categorias gramaticais, aprendem a nomeá-las e
classificá-las, mas não sabem quando devem usá-las.
As palavras de Travaglia (1996, p.101) confirmam o que foi dito:

Observa-se também uma concentração muito grande no uso de metalinguagem no en-


sino de gramática teórica para a identificação e classificação de categorias, relações e
funções dos elementos linguísticos, o que caracterizaria um ensino descritivo, embora
baseado, com frequência, em descrições de qualidade questionável.

Um exemplo claro disso é o tópico gramatical sujeito. Nas aulas de língua por-
tuguesa, os alunos aprendem o que é sujeito e são apresentados aos seus diferentes
tipos, contudo, em situações reais de uso da língua, não são levados a refletir sobre os
efeitos de sentido que a escolha de um tipo de sujeito em detrimento de outro pode
provocar no texto. Ensina-se, assim, a identificar e classificar, por exemplo, o sujeito
indeterminado, mas pouco ou nada se fala sobre a utilidade discursiva do apagamento
do sujeito em alguns contextos e gêneros, ou seja, o conteúdo semântico específico da
indeterminação do sujeito não é abordado. Sabemos que a opção pelo sujeito indeter-
minado deve-se, muitas vezes, à intenção do enunciador de não explicitar em seu texto
o agente da ação verbal ou a figura do falante ou do ouvinte, mas nada disso é discutido
nas aulas de português. E a utilidade discursiva das diferentes categorias gramaticais
deve ser, necessariamente, explicitada, pois o simples domínio da nomenclatura não
torna o aluno apto a reconhecer tais conteúdos semânticos, principalmente pelo fato
de o estudo gramatical ser realizado em frases descontextualizadas que não permitem a
depreensão desses significados.
Além dessa perspectiva descritiva, a gramática ensinada na escola assume tom
prescritivo ao privilegiar os fenômenos linguísticos no âmbito do certo e do errado de
acordo com o padrão culto. Não se questiona aqui a importância do ensino do padrão
culto da língua, mas isso não é suficiente para desenvolver a competência linguística
dos alunos.
Antunes, em seu excelente livro Aula de Português (2003, pp. 31- 33), resume em
tópicos que tipo de gramática se ensina na escola:
130 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

• Uma gramática descontextualizada;


• Uma gramática fragmentada, de frases isoladas;
• Uma gramática da irrelevância, com primazia em questões sem importância para a com-
petência comunicativa dos falantes;
• Uma gramática das excentricidades;
• Uma gramática voltada para a nomenclatura e a classificação das unidades;
• Uma gramática inflexível, petrificada;
• Uma gramática prescritiva;
• Uma gramática que não tem como apoio o uso da língua em textos reais.

Apesar disso, tal prática pedagógica tem se perpetuado tanto nas escolas da rede
pública quanto da particular, e muitos professores ainda veem nela a única prática
possível para as aulas de português. Muitos professores podem até não ver resultados
efetivos em sua prática diária, mas não conseguem vislumbrar outras possibilidades,
seja pela falta de um embasamento teórico que lhes permita seguir novos caminhos ou
pela exigência de cumprir um programa que só valoriza a teoria gramatical.
Desse modo, a maior parte do tempo das aulas de língua portuguesa é gasta
no aprendizado ou, pelo menos, na tentativa de aprendizado dessa metalinguagem. A
tentativa é frustrada em muitos casos, pois os alunos, de modo geral, não veem nesse
conteúdo nenhuma utilidade e simplesmente memorizam toda a nomenclatura para
despejá-la nas provas sem qualquer reflexão.
Outro ponto que costuma agravar o problema do ensino de gramática em sala
de aula é o material didático utilizado. Apesar do trabalho do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), que tem representado excelentes avanços ao tirar o foco dos
manuais didáticos da análise puramente metalinguística, ainda são usados em sala livros
didáticos que privilegiam apenas a análise gramatical do ponto de vista formal. Muitos
desses manuais de fato apresentam textos e muitos deles enfatizam a preocupação de se
estudar a gramática através deles, mas, na verdade, o que a grande maioria faz é a retirada
de frases desses textos para mera identificação e classificação dos aspectos gramaticais
estudados em cada capítulo.
É digno de nota, contudo, que muitos desses manuais fazem uma seleção de
textos bastante oportuna, em que o aspecto gramatical a ser estudado aparece em pro-
fusão. Entretanto, em vez de explorarem a questão sob o domínio da textualidade,
relacionando o aspecto gramatical às intenções do enunciador, à distância hierárquica
entre os interlocutores, ao gênero textual ou a qualquer outro aspecto discursivo rele-
vante, fazem apenas a identificação e classificação sem referência a qualquer elemento
discursivo.
Ensino de língua portuguesa em exame 131

Tal prática de ensino de língua tem se mostrado inócua para o desenvolvimento


da capacidade de leitura e escrita dos alunos de maneira geral. A escola não tem for-
mado leitores aptos a ler e entender textos de diferentes gêneros (manuais, relatórios,
editoriais, tabelas, gráficos, entre outros) e perceber as marcas discursivas características
de cada um, as intenções do enunciador pelas escolhas gramaticais e lexicais realizadas.
Também não tem contribuído para tornar os alunos capazes de produzir textos de
diferentes gêneros. Aliás, é justamente sobre o trabalho com a escrita na escola que a
próxima seção tratará.

A escrita na escola

De modo geral, escreve-se pouco na escola. As atividades que envolvem o en-


sino de gramática consomem tanto tempo que sobra pouco espaço para as atividades
de produção de texto. A situação parece ser ainda mais grave na rede pública, onde
não há remuneração para a correção da produção textual dos alunos, como acontece
em algumas instituições particulares. Assim, com pouco tempo para o trabalho com a
escrita e diante da árdua tarefa da correção, para a qual muitos não são preparados, os
professores acabam não solicitando aos alunos que produzam textos. Nossa experiência
como uma das coordenadoras de um projeto PIBID (Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação à Docência) de Língua Portuguesa confirma esse fato. Não são raros os
relatos de bolsistas que, após acompanharem uma turma de ensino médio ao longo de
um ano, constataram que apenas duas redações foram solicitadas aos alunos.
Soma-se a isso a artificialidade do processo de produção de texto, totalmente
desvinculado dos diferentes usos sociais dos textos escritos. Os alunos veem o professor
como seu único interlocutor e escrevem para convencê-lo de que merecem um dez e
não para expressar seu ponto de vista acerca do tema. Escrevem aquilo que pensam que
agradará ao professor, mesmo que eles não concordem com a ideia apresentada. Na
verdade, a redação escolar é um gênero (se é que se pode chamar assim) que não circula
socialmente e, por isso, os alunos não veem nela nenhuma utilidade.
Desse modo, a escrita na escola não é vista como um processo de interação.
Apaga-se, assim, a figura do destinatário/leitor, fundamental para a produção de tex-
tos. Como o leitor é sempre o mesmo – o professor –, todas as escolhas que devem ser
feitas pelo aluno a partir da figura do leitor (grau de formalidade, distância social, grau
de instrução, faixa etária) deixam de ser consideradas. Assim, estratégias normalmente
adotadas pelo produtor de um texto em situações reais de uso da língua escrita para
alcançar a aceitabilidade do leitor não são realizadas.
O objetivo, a intenção do enunciador, no caso, o aluno, também desaparece por
trás de uma proposta apresentada pelo professor sobre um assunto no qual o aluno
132 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

nunca pensou. Assim, a intencionalidade, que, segundo Val (1999), consiste no em-
penho do produtor em construir um discurso coerente, coeso e capaz de satisfazer os
objetivos que tem em mente em determinada situação comunicativa, fica apagada em
função das condições de produção das redações escolares.
Outro problema recorrente nos textos produzidos na escola é o baixo grau de
informatividade. Segundo Beaugrande e Dressler (1983), a informatividade é um dos
fatores da textualidade que diz respeito ao fato de as ocorrências de um texto serem es-
peradas ou não, conhecidas ou não, no plano conceitual ou formal. Como o repertório
dos alunos em geral é reduzido em função da pouca exposição à leitura, o resultado da
produção escrita são textos repletos de clichês, com baixíssimo grau de informativida-
de. É a chamada intertextualidade com o discurso do senso comum, de acordo com
Val (1999).
Dada a artificialidade do processo da escrita, outro parâmetro da textualidade,
a situacionalidade, é menosprezado. A situacionalidade diz respeito “aos elementos
responsáveis pela pertinência e relevância do texto quanto ao contexto em que ocorre”
(Val, 1999, p. 12). É a chamada adequação à situação sociocomunicativa. Como a
redação produzida na escola não reflete usos reais da língua escrita, a situação comuni-
cativa acaba não sendo levada em consideração.
Percebe-se, assim, que as raras produções realizadas pelos alunos na escola aca-
bam tendo pouca utilidade para o desenvolvimento da competência escrita dos alunos,
pelo simples fato de não considerarem os fatores pragmáticos da textualidade, a saber,
intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e intertextualidade.
Na verdade, cremos que uma mudança no quadro atual de ensino de língua portuguesa
só será possível a partir de uma prática pedagógica que tenha como respaldo teórico
uma perspectiva que considere a língua não como entidade suficiente em si, mas sim
como instrumento de interação, que não existe em si e por si como uma estrutura arbi-
trária, e sim em virtude de seu uso para o propósito de interação.

Da necessidade de respaldo teórico coerente com os objetivos a serem alcançados

Toda a prática pedagógica descrita anteriormente reflete uma concepção que


examina a linguagem como objeto autônomo, investigando a estrutura linguística in-
dependentemente do uso. Afinal, como bem observa Antunes (2003, p. 39):

Toda atividade pedagógica de ensino do português tem subjacente, de forma explícita ou


apenas intuitiva, uma determinada concepção de língua (grifo do autor). Nada do que se
realiza na sala de aula deixa de estar dependente de um conjunto de princípios teóricos,
a partir dos quais os fenômenos linguísticos são percebidos e tudo, consequentemente,
Ensino de língua portuguesa em exame 133

se decide. Desde a definição dos objetivos, passando pela seleção dos objetos de estudo,
até a escolha dos procedimentos mais corriqueiros e específicos, em tudo está presente
uma determinada concepção de língua, de suas funções, de seus processos de aquisição,
de uso e aprendizagem.

Assim, não há como mudar o tratamento dado aos fenômenos linguísticos nas
aulas de português sem munir os professores e demais envolvidos na prática pedagógica
de um aporte teórico que lhes permita ver a linguagem sob nova perspectiva. Se o obje-
tivo é o de contribuir significativamente para que os alunos ampliem sua competência
no uso da língua portuguesa, só uma abordagem linguística de cunho funcional será
capaz de instrumentalizar essa prática. O funcionalismo, como se sabe, difere das abor-
dagens formalistas por conceber a linguagem como instrumento de interação social.
Consequentemente, seu interesse de investigação vai além da estrutura gramatical, ou
seja, está centrado também, e principalmente, nas circunstâncias discursivas que envol-
vem as estruturas linguísticas e seus contextos específicos de uso.
As abordagens funcionais, ao contrário das perspectivas formalistas, preocupam-se

com as relações (ou funções) entre a língua como um todo e as diversas modalidades de
interação social, e não tanto com as características internas da língua; frisam, assim, a
importância do papel do contexto, em particular do contexto social, na compreensão da
natureza das línguas (Neves, 1997, p. 41).

De posse de um arcabouço teórico que leve em conta a interação, os professores


estarão aptos a desenvolver atividades e estratégias de ensino que favoreçam o desenvol-
vimento da competência comunicativa dos alunos.

Como trabalhar os itens gramaticais de forma mais produtiva

Nesta seção, apresentaremos um exemplo do que se pode discutir em atividades


de gramática sob o ponto de vista funcional. Acreditamos que só um ensino dos itens
gramaticais que permita a reflexão sobre a utilidade discursiva de cada um deles levará
ao desenvolvimento da capacidade de uso efetivo da língua.
O ensino das classes gramaticais tem ocupado muito tempo das aulas de língua
portuguesa. Entre elas aparece o substantivo, definido como a classe de palavras “vari-
ável em gênero, número e grau que dá nome aos seres em geral” (Terra, 2004, p. 219).
Na grande maioria dos manuais didáticos, após a definição, são apresentadas as
classificações dos substantivos quanto à formação (primitivo, derivado, simples e com-
posto) e quanto ao elemento que designam (comum, próprio, concreto e abstrato); em
134 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

seguida, propõem-se exercícios que, de modo geral, enfatizam apenas a dimensão mor-
fológica da categoria gramatical sem qualquer referência a sua utilidade discursiva.
Observem-se os comandos dos exercícios extraídos de Terra (2004, p. 223):

1. Nos textos abaixo, aponte os substantivos.


2. Forme substantivos abstratos, conforme o modelo. Menino feliz – a felicidade do
menino.
3. Forme substantivos abstratos derivados de: pedra – livro.

Fica evidente que os exercícios apresentados, apesar de necessários num momen-


to inicial da aprendizagem sobre o tema, não são suficientes para desenvolver a com-
petência escrita dos alunos. Os exercícios são ainda mais inócuos quando apresentados
a alunos de ensino médio, como é o caso do manual em questão. Com abordagens
gramaticais desse tipo, que se esgotam na análise formal do item gramatical, é natural o
desinteresse dos alunos, já que os exercícios, além de totalmente desvinculados dos usos
discursivos dessa categoria, são extremamente elementares para alunos da faixa etária a
que se destinam.
No caso específico dos substantivos, é fundamental uma abordagem que leve
em conta o papel coesivo dessa categoria. São eles poderosos instrumentos de coesão
lexical, que também oferecem àquele que escreve a “possibilidade de manifestar a sua
atitude apreciativa, ou depreciativa, em relação aos termos-objeto da coesão” (Abreu,
2004, p.15). A ênfase nessa utilidade dos substantivos contextualiza o emprego da ca-
tegoria gramatical, destacando sua utilidade discursiva.
Não basta, contudo, mencionar esse aspecto. É fundamental a seleção de tex-
tos de diferentes gêneros que comprovem o que ficou dito, como o excerto abaixo,
extraído de uma reportagem publicada no jornal O Correio Popular, de Campinas,
presente em Abreu (2004, p. 28):

O campineiro ignora a legislação e continua usando telefone celular ao volante. A im-


prudência é facilmente notada nas ruas elegantes do Cambuí e em avenidas movimen-
tadas do Centro, como a Francisco Glicério. Nestas áreas de tráfego intenso, a irrespon-
sabilidade dos motoristas significa um risco cada vez maior de acidentes. O Conselho
Nacional de Trânsito (Contran) proibiu o celular no trânsito através da Resolução n. 4,
instituída no dia 16 de maio de 1994. [...] A responsabilidade pela punição à direção
perigosa, dizem, é da Polícia Militar. Os oficiais da 2a Companhia de Trânsito da PM, no
entanto, se afirmam ocupados o suficiente para fiscalizar e punir infrações mais graves.
Comportamento compreendido até pelo delegado Alexandre José Prado, da 7a Circuns-
Ensino de língua portuguesa em exame 135

crição Regional de Trânsito (Ciretran): “O uso do celular ao volante nem é considerado


crime pela legislação, mas apenas uma penalidade administrativa”, explica.

Na reportagem em destaque, os substantivos abstratos têm importante papel


coesivo. Os substantivos imprudência e irresponsabilidade retomam a ideia inicial do texto
O campineiro ignora a legislação e continua usando telefone celular ao volante, e marcam
ainda o julgamento do enunciador em relação ao fato, assumindo, assim, importante
papel argumentativo. Já os substantivos abstratos comportamento e uso, que também
retomam informações já apresentadas, fazem isso de forma neutra.
A nominalização dos adjetivos imprudente e irresponsável e dos verbos comportar-
-se e usar recebe o nome, segundo a perspectiva sistêmico-funcional, de metáfora gra-
matical, fenômeno que representa o uso de um recurso gramatical para exprimir uma
função que não lhe é intrínseca (Sardinha, 2007). É o que acontece quando usamos
substantivos no lugar de adjetivos ou verbos, pois a função direta ou original dos adje-
tivos (designar qualidades) e dos verbos (designar ações) passa a ser desempenhada por
um substantivo. Esse fenômeno, que tem importante papel discursivo na coesão textual
e na indicação de modalidade, traz consequências diretas para o sistema linguístico,
pois são necessários outros recursos para exprimir o sentido. Com a metáfora grama-
tical usamos substantivos e adjetivos (bom/mau comportamento) e, sem ela, verbos e
advérbios (comportou-se bem/mal).
É no mínimo ingênuo achar que os alunos, acostumados a um ensino de gra-
mática descontextualizado, fragmentado, voltado apenas para a nomenclatura, serão
capazes de fazer automaticamente a transferência de conhecimentos gramaticais para as
atividades de leitura e escrita. No caso específico dos substantivos, não serão exercícios
de formação de substantivos abstratos a partir de modelos dados que tornarão os alunos
aptos a reconhecer o papel coesivo dessa categoria. É fundamental, pois, uma mudança
nas práticas de ensino de língua portuguesa para que a capacidade de uso efetivo da
língua seja, de fato, desenvolvida pela escola.

Conclusão

Com base no que foi exposto, queremos crer que somente uma prática de ensino
calcada no funcionamento textual-discursivo dos elementos da língua será capaz de de-
senvolver a competência linguística de nossos alunos, tornando-os cidadãos capazes de,
por meio da leitura e da escrita, desenvolver seu papel social, uma vez que a língua fun-
ciona em textos que atuam em situações específicas de interação comunicativa e não em
palavras e frases isoladas e abstraídas de qualquer situação ou contexto de comunicação.
136 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Confirmamos, desse modo, as palavras de Travaglia (1996, p. 109), quando de-


clara que “a perspectiva textual tem a possibilidade de fazer com que a gramática seja
flagrada em seu funcionamento, evidenciando que a gramática seja a própria língua em
uso.” Só a partir dessa perspectiva será possível mudar o conceito de gramática usado
no ensino de língua portuguesa, dando o primeiro passo para a mudança efetiva da
prática atual.

Referências

ABREU, A. S.. Curso de redação. São Paulo: Ática, 2004.


ANTUNES, I.. Muito além da gramática: por um ensino de língua sem pedras no caminho. São Paulo:
Parábola, 2007.
——. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola, 2003.
BEAUGRANDE, R. A.; DRESSLER, W. U. Introduction to text linguistics. Londres: Longman, 1983.
GARCIA, O. M. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: FGV, 1986.
NEVES, M. H. M. N. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
SARDINHA, T. B. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007.
TERRA, E. NICOLA, J. de. Português de olho no mundo do trabalho. São Paulo: Scipione, 2004.
TRAVAGLIA, L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática no 1° e 2° graus.
São Paulo: Cortez, 1996.
——. Gramática: ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003.
VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Biografia

Magda Bahia Schlee é doutora em letras pela UERJ e mestre pela UFRJ. É
professora adjunta de língua portuguesa e integra o programa de pós-graduação lato e
stricto sensu da UERJ. Coordenadora do projeto PIBID na área de língua portuguesa
na UERJ. Desenvolve pesquisas na área de linguística sistêmico-funcional e ensino de
língua portuguesa. Integra o grupo de pesquisa SELEPROT, do Diretório Nacional de
Grupos (CNPq).
e-mail: magdabahia@globo.com
Práticas didático-pedagógicas para formação
inicial de alunos da licenciatura francês/
português da USP: desenvolvimento de
competências interculturais e utilização de
tecnologias no ensino de línguas estrangeiras

Heloisa Albuquerque-Costa (USP)

Introdução

Nos últimos anos observamos um aumento significativo do número de cursos


de línguas estrangeiras, cada um deles com suas particularidades, buscando responder a
demandas variadas advindas das mudanças ocorridas com a globalização, o desenvolvi-
mento de tecnologias de comunicação e de informação (TIC) e, sobretudo, a internet.
Podemos dizer que, na sociedade contemporânea, nossos hábitos pessoais, pro-
fissionais e acadêmicos foram pouco a pouco exigindo o uso de línguas estrangeiras.
Para comunicação na internet, por meio das trocas em redes sociais, de cursos on-line e
de chats, nas relações de trabalho, em se tratando de contratos com países estrangeiros,
nas atividades acadêmicas, devido aos programas de internacionalização com inter-
câmbio e recepção de alunos de vários países na universidade. Poderíamos continuar a
enumerar outras ações que fomos incorporando ao nosso dia a dia e que nos levam
a uma “imersão linguística” contínua.
Nas instituições de ensino, na rede pública em municípios e estados, em escolas
de línguas, nos institutos federais, em faculdades de tecnologia (FATECs), no estado de
São Paulo, cursos livres (de extensão curricular) nos centros de línguas das universida-
des e nos cursos de letras espalhados pelo Brasil em universidades federais, estaduais e
138 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

particulares, entre outros, a demanda para o aprendizado de LEs também tem crescido
e ofertas de cursos de línguas estrangeiras, nas modalidades presencial e on-line, vêm
sendo propostas para responder às demandas de diversas áreas do conhecimento. Ob-
servando as necessidades mais imediatas — como, por exemplo, preparação para pres-
tar um exame de proficiência, participação em entrevistas para uma vaga de trabalho
em uma empresa ou seleção em um processo de intercâmbio, leitura de obras originais
ou, ainda, aprendizado de uma LE para viagem de lazer, para fins profissionais ou de
estudos — e considerando também o contexto favorável de aquecimento da economia
brasileira, podemos afirmar que o interesse em aprender uma ou mais LEs tem sido
relevante.
Essa pluralidade de situações e demandas, além de promover, em certos casos, a
alteração da organização de algumas escolas de línguas e instituições de ensino superior
para investir na parte institucional e de formação de professores, provocou também a
necessidade de adaptação de currículos e inclusão de novas disciplinas na grade curricu-
lar, exigindo do professor, ou do futuro professor, um envolvimento maior, voltado ao
aperfeiçoamento de suas competências e habilidades em LEs para atuar nesses contextos.
Se considerarmos também os documentos oficiais da legislação brasileira, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de
1996, e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de língua estrangeira para o ter-
ceiro e quarto ciclos do ensino fundamental (Ciclo II) e ensino médio de 1998, pode-
mos também encontrar indícios de que há uma intenção de ampliar o ensino de línguas
estrangeiras, sinalizando para uma discussão sobre as políticas linguísticas no país:1

A aprendizagem de Língua Estrangeira no ensino fundamental não é só um exercício


intelectual em aprendizagem de formas e estruturas linguísticas em um código diferente;
é, sim, uma experiência de vida, pois amplia as possibilidades de se agir discursivamente
no mundo. O papel educacional da Língua Estrangeira é importante, desse modo, para
o desenvolvimento integral do indivíduo, devendo seu ensino proporcionar ao aluno
essa nova experiência de vida. Experiência que deveria significar uma abertura para o
mundo, tanto o mundo próximo, fora de si mesmo, quanto o mundo distante, em outras
culturas. Assim, contribui-se para a construção, e para o cultivo pelo aluno, de uma com-
petência não só no uso de línguas estrangeiras, mas também na compreensão de outras
culturas (Brasil, 1998, p. 34).

1
O inglês é obrigatório desde o ensino fundamental I e II até o ensino médio e o espanhol, segundo a Lei
federal n. 1.116, de 5 de agosto de 2005, também é obrigatório nas séries finais da escolarização, nas escolas
públicas e privadas, o que facultou a inclusão do ensino desse idioma nos currículos plenos da quinta à
oitava série do ensino fundamental (BRASIL, 2006).
Práticas didático-pedagógicas para formação inicial de alunos da licenciatura francês/português da USP 139

No entanto, é ainda pertinente reconhecer que há indefinições em relação a dire-


trizes que possam viabilizar concretamente iniciativas que promovam a educação plu-
rilíngue, por meio da qual o ensino e aprendizagem de língua(s) e cultura(s) poderiam
ser realizados nas diferentes instituições educacionais brasileiras.
Além de condições estruturais que são necessárias para se pensar em uma mu-
dança mais profunda, interessa-nos aqui discutir o perfil do professor que queremos
formar, com competências e habilidades que respondam às demandas para o ensino e
aprendizagem de línguas estrangeiras no século XXI.
Assim, um primeiro aspecto a ser considerado se refere à formação do professor na
perspectiva da interculturalidade, para compreender a necessidade da desconstrução de
uma concepção de ensino e aprendizagem que reforça o binômio uma língua/uma cul-
tura, para, no lugar, instaurar uma reflexão para o desenvolvimento de uma competência
intercultural que não passaria mais pela simples descrição e informação do que é a cultura
do Outro, mas sim pela compreensão da relação, da interação que podemos estabelecer
com o Outro, num caminho de descoberta e não de hierarquização entre culturas.
Um segundo aspecto presente no mundo atual está relacionado aos rápidos avan-
ços tecnológicos. Como usuários da internet em nossas relações pessoais, como profis-
sionais, em nosso campo de atuação e em nossos contextos de formação acadêmica,
constatamos que as inovações tecnológicas não param de crescer e interferem na ma-
neira como lidamos com o conhecimento, a informação e a aprendizagem.
No campo educacional, sites de ensino de línguas, jogos pedagógicos, cursos a
distância em diversas áreas do conhecimento, elaborados por especialistas, em muitos
casos das letras, respondem a solicitações de estabelecimentos de ensino, empresas, insti-
tuições particulares que buscam “modernizar” o ensino usando tecnologias. O professor
é chamado, nessas situações, para fazer a revisão de língua portuguesa e/ou de línguas
estrangeiras, de acordo com o tipo de atividade. Esse novo mercado de trabalho demanda
profissionais da área tecnológica (designer instrucional), mas também das letras, dos con-
teúdos específicos de cada língua, na revisão e, em muitos casos, na docência on-line, em
situações de ensino de português como língua materna ou estrangeira e das LEs em geral.
Nesse contexto, é necessário refletir com o professor sobre sua formação para a utilização
de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) no ensino de LE(s).
Entendemos que esses dois aspectos, o ensino e aprendizagem de LEs a partir do
desenvolvimento da competência intercultural e a questão do uso das tecnologias na sala
de aula presencial e virtual, são, no âmbito deste trabalho, os eixos que podem ser incluídos
em um programa de formação de futuros professores de LEs para atuar no século XXI.
A separação dos dois pontos adotada aqui é meramente didática, para facilitar
a leitura do texto. Em um contexto de formação de futuros professores nos cursos de
140 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

letras – licenciatura, os eixos podem vir articulados e podem levar em consideração as


necessidades e especificidades de cada contexto.
Nosso objetivo é de contribuir para a formação do futuro professor, apontando
alguns caminhos que o levem a se ver em situação de reflexão e ação críticas, compreen-
dendo os desafios que a sociedade contemporânea coloca para o ensino e o aprendizado
de línguas estrangeiras.
Nossa experiência vem do trabalho que desenvolvemos na formação de futuros
professores, mais particularmente, nas disciplinas que ministramos no curso de letras
francês/português (licenciatura) da faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da
Universidade de São Paulo, e nossa perspectiva é contribuir para que o aluno possa,
enquanto aluno e futuro professor, realizar essas reflexões em sua formação de forma
crítica e reflexiva.

Formação inicial de professores: por onde começar?

Após a publicação da LDB, as universidades passaram por modificações nos pro-


jetos pedagógicos, atendendo ao que a lei determinava em relação ao início da for-
mação pedagógica, que deixou de estar localizada somente na faculdade de educação,
passando a integrar a grade curricular da formação inicial do aluno. Assim, em todos
os cursos de formação de professores (física, biologia, matemática, letras etc.), o projeto
pedagógico deveria especificar os momentos nos quais as reflexões sobre o ensinar e o
aprender estariam presentes. Coube, portanto, a cada universidade definir as discipli-
nas que tratariam dessa temática e, no caso de ausência, a criação de novas que segui-
riam as especificidades de cada contexto institucional.
No caso da faculdade de filosofia, letras e ciências humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP), os cursos de letras criaram disciplinas específicas da Licen-
ciatura para as línguas estrangeiras e a língua materna (Albuquerque-Costa, 2010).
Na formação de professores da área de francês, duas disciplinas foram criadas:
a primeira, aquisição e aprendizagem do francês como língua estrangeira, de conteúdo
mais teórico, voltado ao estudo da evolução da didática das línguas a partir das teorias
de aprendizagem e metodologias de ensino, da metodologia tradicional à abordagem
comunicativa e, posteriormente, à abordagem para a ação (em francês approche actio-
nnelle). A outra disciplina, atividades de estágio em francês, é a que permite a realização
de práticas pedagógicas e elaboração de unidades didáticas a partir de temas sugeridos
pelos alunos e/ou pelo professor, segundo as questões que envolvem a didática das lín-
guas, as questões interculturais e de sala de aula.
Entendemos que, enquanto formadores, temos a responsabilidade de preparar
nossos futuros professores, numa perspectiva crítica, de formação para a cidadania,
Práticas didático-pedagógicas para formação inicial de alunos da licenciatura francês/português da USP 141

de abertura para o mundo, para outras culturas, e não somente nos conhecimentos
linguísticos (gramaticais e lexicais), como também é destacado nos Parâmetros Curri-
culares Nacionais (PCN) sobre o ensino de LE(s):

O tema transversal Pluralidade Cultural merece um tratamento especial devido ao fato


de o ensino de Língua Estrangeira se prestar, sobremodo, ao enfoque dessa questão.
Esse tema pode ser focalizado a fim de desmistificar compreensões homogeneizadoras de
culturas específicas, que envolvem generalizações típicas de aulas de Língua Estrangeira
do tipo, por exemplo, os ingleses ou os franceses são assim ou assado. É extremamente
educativo expor o aluno à diversidade cultural francesa, por exemplo, ao observar a
vida em uma cidade como Paris, em que grupos de nacionalidades diferentes tais como
franceses, argelinos, portugueses, senegaleses, e de outros tipos de minorias coexistem,
nem sempre de forma pacífica, na construção de natureza multifacetada do que é a
cultura francesa. Trata-se de algo extremamente enriquecedor para o aluno, que constrói
uma compreensão mais real do que é a complexidade cultural de um país e também uma
percepção crítica das tradicionais visões pasteurizadas e unilaterais de uma cultura (por
exemplo, as visões tradicionais de que os ingleses tomam chá às cinco horas da tarde ou
de que são todos extremamente polidos) (Brasil, 1998, p. 48).

Nesse sentido, podemos afirmar que o ensinar e o aprender não são estáticos no
tempo e espaço e que o uso da linguagem deve ser considerado em seus contextos de
produção, ou seja, na identificação dos elementos que fazem parte da situação de comuni-
cação, a quem nos dirigimos, em qual momento, em qual contexto, para quais objetivos.
Mas como concretizar esses princípios em um contexto de sala de aula de um curso
de letras – licenciatura, de formação de professores que se preparam para ensinar uma
língua estrangeira em um país onde ela não é língua materna nem segunda língua?
Inicialmente, é fundamental que o futuro professor aprenda e crie o hábito de
compreender e descrever o contexto de ensino e aprendizagem no qual a LE será en-
sinada. Para isso, é necessário que conheça a instituição, o programa de ensino, os
objetivos a serem atingidos e o perfil de seus alunos. Essa é a primeira etapa de uma
discussão sobre o que é ensinar, que denominamos caracterização do contexto de ensino
e aprendizagem.
Segundo Klett (2004), referindo-se mais especificamente à caracterização do es-
paço da sala de aula de LEs, professor e alunos estão permanentemente em situação de
comunicação oral/escrita em língua estrangeira. Isso significa que ao mesmo tempo em
que guardamos nossas marcas linguísticas e culturais da língua materna, por meio da
aprendizagem de novos sons, exercícios de prosódia e pronúncia, desenvolvimento da
compreensão oral de documentos de áudio e vídeo, leitura de textos de diferentes gêne-
142 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

ros, discussão sobre temas específicos que circulam na atualidade de um determinado


país, gestos que expressam outras formas de linguagem, desenvolvemos atividades nas
quais os alunos vão se expressar na língua-alvo, não em língua portuguesa. Reconhecer
estes aspectos para a autora é tomar consciência do que ela denomina de “étrangéité”.2
Esse aspecto pode parecer óbvio, mas é significativamente importante para que possa-
mos compreender que o ensino de LEs está relacionado a uma concepção de linguagem
como um fenômeno social, definido, portanto, em relação ao seu contexto institucio-
nal, histórico, social e sua relação com a diversidade de outras culturas. Assim, os aspec-
tos discursivos, linguísticos, sociais e culturais da LE são ensinados, numa perspectiva
que explicita o uso social da língua, o contexto de produção, quem são os interlocutores
e quais são as finalidades da comunicação.
A segunda etapa diz respeito à reflexão sobre os elementos interculturais presentes
no ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira. A “descoberta” do Outro, sua cul-
tura ou as culturas relacionadas à LE estudada se dá em um processo em que culturas
entram em contato, as de LEs e a nossa língua materna e as culturas que se expressam
na língua portuguesa, permitindo que o aluno perceba que línguas estão em contato.
Com a publicação do Quadro Europeu Comum de Referência para o ensino de
línguas (CECR),3 a discussão sobre o desenvolvimento de uma competência intercultural
na formação de professores e alunos em contexto de ensino e aprendizagem de LEs se
mostrou cada vez mais necessária. Trata-se da reflexão sobre uma mudança de paradigma
no ensino de línguas e culturas estrangeiras, da passagem do tratamento didático-me-
todológico dos “conteúdos culturais”, de uma perspectiva descritiva e informativa, para
o desenvolvimento de competências interculturais que mobilizem professores e alunos a
não adotar uma postura enciclopédica de acúmulo de conhecimentos sobre a(s) cultura(s)
associadas à LE, mas sim de investigação, de questionamento, de interação com o Outro.
Segundo Windmüller (2011), as situações de comunicação intercultural demandam, da
parte dos interlocutores, a conscientização de que vários elementos de ordem cultural de-
vem ser levados em consideração: quem são os interlocutores? Por que estão em situação
de interação? Quais são os hábitos e costumes que marcam a situação de comunicação
(règles de politesse, ritos convencionais etc.)? Quais marcas linguísticas devem ser privile-
giadas na interação? Há referências culturais que determinam a interação? Enfim, uma
série de aspectos que passam pelo verbal e pelo não verbal, atitudes, gestos, olhar, expres-
sões de sentimentos etc.

2
Característica de um texto oral/escrito em língua estrangeira que apresenta especificidades da língua estran-
geira estudada.
3
Neste capítulo utilizamos a versão em francês do Quadro Europeu Comum de Referência para as línguas,
disponível em: http://www.coe.int/t/dg4/linguistic/source/framework_fr.pdf (acesso em 14/01/2015).
Práticas didático-pedagógicas para formação inicial de alunos da licenciatura francês/português da USP 143

Mas, na prática, como isso se daria? Inicialmente, é preciso compreender que o


papel do professor nessas situações de ensino e aprendizagem não é o de transmissor
de informações, aquele que organiza e transfere “conteúdos”, mas o de mediador/
facilitador de um processo de investigação e interação entre as culturas. Nesse sen-
tido, nas aulas de licenciatura, o trabalho com pequenos projetos de elaboração de
unidades didáticas, tendo como foco o intercultural, permite aos alunos que se vejam
ao mesmo tempo como alunos em formação e em situação de preparação de aula, no
lugar de professor.
Em termos didático-metodológicos, trabalhamos desde a sensibilização e escolha
do tema intercultural da unidade didática até seu detalhamento na elaboração do
“plan de présentation”. Todo esse processo é realizado em língua francesa e pode ser
sintetizado da seguinte forma:

— Sensibilização à temática: pergunta-se aos alunos quais palavras eles associam


à palavra cultura, com o objetivo de identificar quais são as noções que têm do conceito.
Essa pequena atividade permite ao professor discutir teoricamente as abordagens
metodológicas que marcaram o ensino e aprendizagem de LEs: cultura como sinônimo
de civilização (fatos históricos, literários, por exemplo); cultura e culturas, ou seja,
a descrição de manifestações culturais de cada uma das culturas (francesa, britânica,
americana etc.), umas sem relação com outras (informações sobre reportagens atuais,
descrição de pontos turísticos, estereótipos, por exemplo) e a abordagem cultural como
manifestação de culturas em contato, em interação, segundo a qual os elementos factuais
são considerados, mas contextualizados dentro de um conjunto maior de relações. O
exemplo mais claro em relação a esse aspecto se refere às culturas de expressão francesa.
Durante muito tempo, no ensino da língua/cultura francesa, o professor tinha como
objetivo transmitir informações exclusivamente sobre a França sem levar em consideração
um fato muito simples, de que o francês está presente nos cinco continentes e que,
portanto, há diferentes manifestações culturais de expressão francesa além da França, as
quais, na maioria das vezes, desconhecemos.
— Escolha e justificativa do tema para a unidade didática: esse momento des-
perta bastante o interesse dos alunos, pois, em grupos, expressando-se em francês, eles
falam de seus gostos e preferências culturais, preconceitos e estereótipos, sonhos e até
mesmo projetos para conhecer a França e outros países, relacionando os temas que gos-
tariam de preparar e ensinar. Ao mesmo tempo em que sentem prazer em trocar com
os colegas, devem escrever e justificar o que tratarão na unidade didática.
— Planejamento da unidade didática: após a redação da justificativa, a etapa
seguinte é definir como e o que será pesquisado sobre o tema. É o momento no qual o
aluno aprende a elaborar detalhadamente os pontos que vão constar no seu trabalho.
144 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Trata-se de proceder a um levantamento de “conteúdos e informações”, de organização


da ordem na qual serão apresentados, chegando a definir um “plan de présentation”.
Além de aprender a organizar e realizar uma busca na Internet (o que não é óbvio), os
alunos aprendem um procedimento metodológico para pesquisa que pode ser utilizado
para qualquer outro tipo de trabalho que venham a desenvolver: justificativa do tema,
desenvolvimento, conclusão e referências bibliográficas. Devem incluir, também, as
formas de avaliação da unidade didática.

A terceira etapa que consideramos essencial em uma formação de futuros pro-


fessores de LEs é a reflexão e discussão sobre o uso de tecnologias no ensino de LEs. As
tecnologias sempre estiveram presentes na evolução do ensino de línguas estrangeiras.
O rádio, a televisão, os slides, os filmes, os vídeos, enfim, a história nos mostra como
as mudanças tecnológicas foram sendo absorvidas e utilizadas no ensino de LEs. Com
relação à internet e TIC, isso se deu da mesma maneira. No entanto, estamos em outro
momento tecnológico, no qual os diferentes recursos, aplicativos, mídias e o que está
disponível na internet desenvolvem-se muito mais rápido do que o planejamento e
trabalho de formação de professores.
Isso se reflete, também, na grade curricular dos cursos de letras – licenciatura.
No Brasil, ainda são poucas as universidades que criaram disciplinas para trabalhar
especificamente com as tecnologias, como é o caso da Universidade Federal do Pará
(UFPA),4 cuja disciplina é intitulada recursos tecnológicos no ensino de língua estrangei-
ra, e a Universidade Federal de Goiás (UFG),5 com a disciplina tecnologias e ensino de
línguas estrangeiras. Na Universidade de São Paulo não há disciplinas dessa natureza e
os trabalhos desenvolvidos são pontuais, na disciplina atividades de estágio de francês e
em projetos especiais como o Laboratório Virtual de Línguas (LAVIL),6 cujo objetivo
principal é a elaboração de material didático na plataforma Moodle.
No que se refere à formação de professores, na disciplina Atividades de estágio
– francês, os alunos realizam na Moodle atividades complementares à aula presencial.
Assim, seguem a organização didático-pedagógica de uso de um ambiente virtual para
a aprendizagem, observando, da perspectiva de alunos, como o espaço é organizado.

4
Currículo Licenciatura em Letras Português-Francês UFPA. Disponível em
<
http://www.ilc.ufpa.br/ensino/falem_habilitacao_frances.pdf>. Acesso em 05 jan 2015.
5
Currículo Licenciatura em Letras Português-Francês UFG. Disponível em
<
http://www.letras.ufg.br/up/25/o/2014_PPC_fra.pdf>. Acesso em 05 jan 2015.
6
O LAVIL é um projeto especial da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, do Departamento
de Letras Modernas, coordenado pela Profa. Dra. Mônica Mayrink e que tem como membro a Profa. Dra.
Heloisa Albuquerque-Costa e quatro monitores de graduação (dois de espanhol e dois de francês).
Práticas didático-pedagógicas para formação inicial de alunos da licenciatura francês/português da USP 145

Segundo Albuquerque-Costa (2011, p. 52), a publicação de uma atividade em


um ambiente virtual, como a plataforma Moodle, demanda que o professor explicite o
que deve ser desenvolvido, pois cada proposta “remete a uma ação com início, condi-
ções de realização, resultados explicitados”. Essa “exigência” é de ordem didático-me-
todológica na medida em que, no virtual, os alunos devem realizar as atividades sem
que dúvidas ocorram. Assim, podemos explicitar que o professor, nessa situação, deve

repetir a cada semana o formato de apresentação das atividades para favorecer a apro-
priação do espaço pelos alunos; descrever cada fórum, especificando as questões didáti-
co-metodológicas que serão desenvolvidas; explicitar de forma clara o(s) objetivo(s) da
atividade; definir as etapas que serão percorridas para sua realização; definir o produto
final a ser enviado; explicitar os prazos de realização e envio e as ferramentas que serão
utilizadas para a realização da atividade (Albuquerque-Costa, 2011, pp. 54-55).

Em se tratando da realização de uma unidade didática como atividade para a dis-


ciplina, o princípio de elaboração de projetos na área de tecnologias é o mesmo descrito
anteriormente, na unidade do intercultural, ou seja, envolver os futuros professores na
elaboração didático-metodológica da unidade que tenha necessariamente a utilização
de tecnologia. No nosso caso, essas atividades foram feitas a partir de recursos disponí-
veis na internet.
Entendemos como Braga (2013, p. 50) que, com a internet,

além da facilidade de acesso a textos das mais variadas naturezas e sobre os mais variados
assuntos, o aprendiz pode interagir com uma variedade enorme de produções multimí-
dias que integram sons, imagens, vídeos com legenda ou transcrição.

Assim, no contexto da licenciatura, podemos dizer, em síntese, que as orienta-


ções dadas aos alunos são as seguintes:

— Definição dos objetivos e competências a serem trabalhadas: essa etapa é sig-


nificativamente formadora para os alunos, pois eles devem fazer o exercício de formular
objetivos factíveis, levando em consideração as condições tecnológicas da instituição
onde imaginam que a aula será desenvolvida e também tendo em vista que a ativida-
de não precisa, necessariamente, trabalhar com todas as competências orais e escritas.
Portanto, será em função dos objetivos e das competências a serem desenvolvidas que o
tipo de recurso ou documento na internet será procurado, não o contrário.
— Escolha do recurso ou documento na internet justificando a adequação aos
objetivos definidos acima (clipe de música, exercício on-line, chat etc.).
146 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

— Definição das etapas que serão propostas aos alunos: nesse item, os alunos
devem detalhar o que será desenvolvido. Por exemplo, se o documento for um clipe de
música, quais são as etapas necessárias para a compreensão oral? Quais estratégias serão
desenvolvidas? Quais seriam as outras atividades que poderiam ser trabalhadas?
— Definição da avaliação da unidade didática.

Enquanto professores em formação, os alunos são levados a realizar uma ativida-


de de autoavaliação que comporta os seguintes pontos: o que você aprendeu durante a
elaboração da unidade didática? Destaque um momento significativo do curso e justi-
fique sua escolha. O que esse momento e aprendizado deixam como pistas para a con-
tinuidade de sua formação? Quais foram as dificuldades? Como conseguiu superá-las?
Esse momento é reservado para a reflexão metacognitiva do aluno/futuro pro-
fessor. Trata-se da reflexão sobre o percurso realizado, resgatando o que foi todo o
processo, etapa fundamental que todo professor deveria realizar.

Considerações finais

A reflexão que desenvolvemos neste texto foi pautada em questões relacionadas


à formação inicial de futuros professores de LE inscritos em disciplinas do Curso de
letras francês/português.
Entendemos que é no espaço da Licenciatura que a reflexão-ação-crítica dos alu-
nos vai se construindo. Nesse sentido, é fundamental abrir espaço para a reflexão sobre
a prática da sala de aula, a elaboração das atividades mais diversas possíveis, a discussão
sobre exemplos, a formulação de questionamentos e dúvidas, favorecendo o desenvol-
vimento da sua capacidade de observação, análise, elaboração e metacognição.

Referências

ALBUQUERQUE-COSTA, Heloisa. A formação de professores de língua francesa no curso de Letras


Francês/Português da Universidade de São Paulo. In: CESAR CRUZ, Neide; PINHEIRO-MARIZ,
Josilene. Ensino de Línguas estrangeiras: contribuições teóricas e de pesquisa. Campina Grande:
EDUFCG Editora, 2011.
BRAGA, Denise Bertoli. Ambientes digitais: reflexões teóricas e práticas. São Paulo: Cortez Editora, 2013.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de 1996.
DOU 23/12/96.
——. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto
ciclos do ensino fundamental: língua estrangeira. Brasília: MEC/SEF, 1998. 120 p. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ pcn_estrangeira.pdf>.
Práticas didático-pedagógicas para formação inicial de alunos da licenciatura francês/português da USP 147

——. Secretaria de Educação Básica. Orientações curriculares para o ensino médio: Linguagens, códigos
e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEB, 2006. Volume 1, 239 p. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>.
KLETT, Estela et al. Mosaïque du FLE: aspects didactiques et interculturels. Buenos Aires: Araucaria
Editora, 2004.
CONSEIL DE L’EUROPE. Cadre europeen commun de reference pour les langues: apprendre,
enseigner, evaluer. Disponível em: <http://www.coe.int/t/dg4/linguistic/ source/framework_fr.pdf>.
Acesso em: 14 jan. 2015.
WINDMÜLLER, Florence. Français langue étrangère: l’approche culturelle et interculturelle. Paris:
Belin Editora, 2011.

Biografia

Heloisa Albuquerque-Costa é professora e pesquisadora do Departamento de


Letras Modernas da FFLCH-USP. Desenvolve pesquisa nas áreas de formação de pro-
fessores de línguas estrangeiras, ensino-aprendizagem de língua francesa, ensino do
francês para objetivo universitário (FOU) e Tecnologias da Informação e da Comuni-
cação (TIC) para o ensino de línguas em ambientes virtuais de aprendizagem. 
e-mail: heloisaalbuqcosta@usp.br
Impressões e transformações de uma aluna no
processo de iniciação científica

Ilduara Silveira dos Santos (UERJ)

Eu deveria ter seguido a minha intuição.


Lembro-me de ter lido algo sobre seguir a intuição em um dos primeiros livros
do estágio de iniciação científica:

[...] uma pesquisa devidamente planejada, realizada e concluída, não é o simples resul-
tado automático de normas cumpridas ou roteiro seguido. Mas deve ser considerada
como obra de criatividade, que nasce da intuição do pesquisador [...] pois o problema da
pesquisa nasce da intuição, de alguma dificuldade existente (Rudio, 1991, p. 15, grifo
do autor).

Alguma coisa me dizia para iniciar um diário relatando minhas impressões sobre
o processo científico, mas deixei essa ideia de lado por considerá-la desnecessária. Eu
devia, no entanto, ter seguido a minha intuição, já que agora preciso desse relato e não
o tenho. Devo tirar do fundo de minha memória tudo o que percebi durante o processo
científico até hoje, pois devo fazer um relatório final de estágio.
Fiquei assustada no princípio com a quantidade de coisas que deveria ler, com
a possível falta de tempo, com uma possibilidade de não atender às expectativas da
orientadora, que eu não sabia bem quais eram. Sempre fui muito insegura de mim,
ou seja, também tive medo de não atender às minhas expectativas de ter tempo de ler
todo o material, desenvolver e exprimir minhas ideias sobre o conteúdo em textos que
tivessem uma boa redação (um dos meus maiores problemas).
A primeira coisa que a orientadora pediu que eu fizesse foi um anteprojeto com
base no modelo exposto no final do livro de Rudio (1991), só para que tivéssemos o
150 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

que conversar nas primeiras reuniões. Foi um grande desafio, uma vez que nunca tinha
feito nenhum projeto de pesquisa.
O primeiro que eu fiz ficou ruim, pois segui o modelo preenchendo os tópicos
propostos no livro. Na reunião ela não usou as mesmas palavras que eu para defini-
-lo, mas a sua expressão facial me dizia isso. Ela pediu que eu o refizesse e o segundo
ficou melhor.
Depois disso, a orientadora me passou alguns livros teóricos sobre o fazer cien-
tífico, a saber: Rudio (1991), Gewandsznajder (1989) e Triviños (1992), os quais fui
fichando sem saber bem para quê. O curioso é que eu me sentia bem em fazê-lo; eu,
que era uma aluna tão displicente, estava, enfim, inserida na vida acadêmica, como se
simplesmente fazer fichamentos fosse suficiente para isso.
Os livros foram me mostrando coisas que eu não fazia ideia de que existiam. Até
então, as únicas pesquisas que tinha feito haviam sido as escolares, ou seja, de modo to-
talmente desprovido de técnica, pois na escola, até mesmo na academia, os professores
pedem que os alunos façam pesquisa, mas não mostram como fazê-la.
Eu ainda estava me sentindo um peixe fora d’água com tantos fichamentos, reu-
niões que não tinha certeza de que estavam me levando a algum lugar e me perguntava
com frequência: “o que eu estou fazendo?” Mas, como sempre, deixei que o barco na-
vegasse livre pela correnteza, para ver até onde tudo aquilo me levaria.
Num belo dia, nos idos de 2005, a orientadora pediu que eu apontasse as minhas
dificuldades em relação ao seu projeto Ensino e Práticas de Ensino em Língua Estrangeira
– o caso do italiano. Agora, escrevendo minhas impressões, percebo como uma frase
pode mudar a vida de uma pessoa, e fico impressionada em como a minha pode ter
mudado de rumo com aquela frase que usei para apontar uma dificuldade. Lembro-
me da cena: respirei fundo e disse: “qual é a diferença entre semiótica e semiologia?”
Respirei fundo como se soubesse o que estava me aguardando.
Do jeito que a orientadora explicou, eu não entendi; creio que nem ela, se es-
tivesse no meu lugar, entenderia. Disse que me provocaria, deixaria que eu mesma
respondesse a essa pergunta. Naquela hora pensei que quem estava com preguiça, ou
não soubesse alguma coisa, fosse ela, mas hoje sei que, seja qual tenha sido o motivo,
foi bom que ela não me respondesse, e também sei que aquilo não poderia ser explicado
com um simples par de frases.
Sobre o assunto semiótica/semiologia, o primeiro livro que ela trouxe para eu
ler foi de Epstein (1986). Livrinho (diminutivo não pejorativo, o livro era pequeno
mesmo) interessante, pouco esclarecedor, mas me mostrou o básico da semiótica/se-
miologia como, por exemplo, a nomenclatura, as ideias de alguns pensadores, ou seja,
um primeiro passo.
Impressões e transformações de uma aluna no processo de iniciação científica 151

Nesse ínterim, eu já havia lido e fichado alguns capítulos de Eco (1996). Como
meu italiano ainda não era bom, fiz um vocabulário com as palavras que eu não sabia
e apareciam com frequência. O segundo livro sobre semiótica/semiologia foi instigante:
Noth (1995). Li e reli capítulos inteiros deste, perguntava-me sempre: “é isso mesmo que eu
estou entendendo?”
Certa noite, durante a leitura do livro, parei para refletir um pouco. Perto de
mim havia uma balança. Olhei-a de modo diferente. Como um ponto no mundo.
Como algo separado do que era. Já não era para mim, naquele momento, balança: era
nada. Isso fora causado por uma das tricotomias de Pierce: representamem é o primeiro
constituinte do signo que se relaciona a um segundo que se chama objeto, capaz de de-
terminar um terceiro, chamado interpretante. Olhando a balança, tentei separar esses
três constituintes do signo balança.
A semiótica/semiologia foi aos poucos tomando um espaço na minha vida: tudo
passou a ter um pouco disso. Ia aos sebos atrás de livros sobre o assunto, via filmes e
lia, tentando fazer análises semióticas/semiológicas. E creio que seja essa a relação do
assunto com o projeto da professora.
Outra questão que surgiu foi a diferença entre análise semiótica e análise do
discurso, em Ducrot e Todorov (1982) e Brandão (1995). Começamos no início do
ano de 2006 a segunda fase da iniciação científica: fazer a análise contrastiva entre os
pronomes italianos e portugueses, tomando como base Sensini (1997) para a língua
italiana e Bechara (2004) para a língua portuguesa.
As coisas ficaram estranhas para mim durante o processo de iniciação científica,
pois me sentia desafiada pelos professores e pelos colegas.
Uma professora nova chegou e fez uma pergunta aleatória para a sala: “como o
particípio presente aparece na língua portuguesa hoje?” Silêncio... De repente, a colega
que estava do meu lado diz “Ilduara sabe”. Ao que a professora pergunta: “você que é a
famosa Ilduara? Carmem me falou muito de você.” E noutra ocasião, cheguei atrasada
à aula e, quando entrei na sala ouvi alguém dizendo “A Ilduara sabe”. A sala, antes de eu
chegar, discutia um assunto para o qual não tinham a resposta, esperavam que eu che-
gasse para que ajudasse a responder a questão. Por acaso ou não, trazia comigo um livro
que abordava o assunto discutido. Depois, ouvi: “Viu? Eu sabia que a Ilduara sabia”.
Incomodava-me ser desafiada assim. Ser conhecida dos professores assim. Minha
insegurança me dizia que eu não daria conta das demandas, mas dava. Depois pen-
sando sobre isso, cheguei à conclusão de que eu não era desafiada, mas sim, referência.
O período da iniciação científica foi o mais fértil na minha vida acadêmica.
Descobri coisas que não fazia ideia de que existiam, tanto em relação à pesquisa quanto
a mim. Descobri até onde posso chegar, descobri que sou capaz e que meu único im-
peditivo é a insegurança. Esta se manifestou de forma latente em minha segunda apre-
152 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

sentação na Semana de Iniciação Científica (SEMIC): minha fala deveria ser de dez
minutos (o que muitos reclamam por ser pouco tempo), mas durou gaguejantes três.
Fiquei tensa, nervosa, mesmo com uma amiga tendo me dito que era bobagem
a tensão, pois eu havia estudado para aquilo. Mas o apoio dela, da orientadora e de
minha irmã não foram suficientes e minha apresentação foi atrapalhada, talvez pelo co-
nhecimento que acumulei e não consegui concatenar naquele momento. Era como se
tudo o que eu tivesse estudado devesse ser apresentado naquele curto espaço de tempo e
esse não fosse suficiente para organizar as ideias, que vieram todas de uma vez, de forma
desorganizada, em três minutos.
O período de iniciação científica acabou. Continuei a graduação, porém mais
madura, compreendendo melhor o mundo acadêmico, pensando que a maneira mais
produtiva de se estudar era fazendo pesquisa.
Hoje em dia, quando me envolvo no estudo de qualquer assunto, me pego pes-
quisando em mais de três fontes, correlacionando uma com a outra e notando seme-
lhanças e diferenças, percebendo em que ponto essas fontes se tocam.
A iniciação científica me abriu os olhos para o mundo, para percebê-lo de forma
mais ampla e saber que essa forma é pouca, há sempre mais coisas além do que nossa
percepção pode tocar. Uma ideia sempre pode ser vista através de milhões de maneiras
diferentes, e um ponto de vista é apenas um. Tentei, com esse escrito, resgatar o pro-
cesso de iniciação científica e em como este contribuiu para meu crescimento como
estudante e cidadã no mundo.

Referências

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004. p.
162-202.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. 4. ed. Campinas: Editora da
UNICAMP, 1995.
DUCROT, Osvald; TODOROV, Tzvetan. Dicionário das Ciências da Linguagem. 6. ed. portuguesa,
orientada por Eduardo Prado Coelho. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982. p. 127-383.
ECO, Umberto. Come si fa Una Tesi di Laurea. 5. ed. Milano: Bompiani, 1996.
EPSTEIN, Isaac. O signo. São Paulo: Ática, 1986.
GEWANDSZNAJDER, Fernando. O que é o método científico. São Paulo: Pioneira, 1989. p. 3-21.
NOTH, Winfried. Panorama de semiótica: de Platão a Pierce. São Paulo: Annablume, 1995.
RUDIO, Franz Victor. Introdução ao projeto de pesquisa científica. 16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
SENSINI, Marcello. La grammatica della lingua italiana. Milano: Mandadori, 1997. p. 188-232.
TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Atlas, 1992.
Impressões e transformações de uma aluna no processo de iniciação científica 153

Biografia

Ilduara Silveira dos Santos é formada em letras com habilitação em italiano


pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2010, fez traduções para a revista
de fé e cultura Communio.
e-mail: ilduaras@gmail.com
O poder da avaliação educacional:
políticas e práticas na educação básica e
reflexões nos cursos de licenciatura

Daisy Lucia Gomes de Oliveira


(Colégio Pedro II)

Introdução

Neste sentido que, quando fazemos falar o silêncio que sustenta a


ideologia, produzimos outro discurso, o contra discurso da ideologia,
pois o silêncio, ao ser falado, destrói o discurso que o silenciava.
(Chauí, 1980, p. 25).

As questões que norteiam este estudo se relacionam às políticas de avaliação clas-


sificatórias e excludentes, atualmente aplicadas no Brasil, com as reformas econômicas
impostas pelo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, em detrimento de
políticas de avaliação educacional orientadas para a construção de conhecimento que
propicia uma educação mais democrática e igualitária. Desta forma, este trabalho se
fundamentou na pesquisa de material para obter conhecimento sobre diferentes con-
cepções de avaliação, critérios para elaboração de instrumentos de avaliação, avaliações
em larga escala, assim como as práticas do Banco Mundial nas políticas para a educação
básica pública. Traçamos as relações entre o poder da avaliação e as políticas internacio-
nais para a educação, assim como o papel da análise do desempenho escolar e, sobretu-
do, da educação, levando em consideração os indicadores sociais, educacionais e dados
estatísticos como essenciais para aprofundar nossas análises. Desenvolvemos a ideia de
156 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

que as instituições educacionais são de grande interesse para as intervenções do Banco


Mundial e que influenciam nas políticas sociais e educacionais aplicadas pelo governo
federal e pelos estados e municípios brasileiros, que, através da centralização de recursos
financeiros, em concordância com as agências multilaterais, passaram a formular e gerir
políticas setoriais.
São de grande interesse investigativo questões como a avaliação que se fundamen-
ta como um mecanismo de poder nas relações possibilitadas pela escola, assim como a
relação entre as avaliações educacionais, institucionais e em larga escala com as políticas
públicas para a educação e as políticas do Banco Mundial que, juntas, se alinharam às
diretrizes estabelecidas para o desenvolvimento e acumulação de capital, em detrimen-
to dos direitos sociais. As mediações políticas efetivadas entre o Estado brasileiro e o
Banco Mundial foram construídas, sobretudo, para a restauração dos mecanismos de
acumulação do capital e de favorecimento dos princípios do mercado em detrimento
das instituições nacionais. Assim, a sociedade brasileira – edificada sob a égide inter-
vencionista, mas capaz de reorganizar-se diante da necessidade de redefinição de outro
padrão de gestão e de inserção soberana no circuito internacional – passou a abrigar
as políticas imperativas procedentes do Banco Mundial, articuladas e pactuadas com
o governo federal, bem como com parte dos governos estaduais e das elites dirigentes
nacionais. A análise dos dados pesquisados apontou para o poder da avaliação e de
sua direta relação com as políticas internacionais para a educação, sendo apoiada pelas
teorias de Michel Foucault, que desenvolveu ideias acerca do poder, sujeito e discurso,
elaborando o seu conceito de poder por meio da disciplina, sua relação com a temática
do sujeito e sua eficácia no discurso institucionalizado.
Relacionamos, assim, os empréstimos para os projetos destinados à educação no
Brasil, todos com o discurso da qualidade, nos quais os diferentes instrumentos utiliza-
dos pelo Banco Mundial para a educação básica no Brasil destinavam-se, primordial-
mente, a Empréstimos para Investimento e Manutenção Setorial, Empréstimos para
Investimento Específico e Empréstimo para Programa Adaptável. Segundo argumen-
tação de Gorni (2002), o produto da relação entre avaliação e qualidade do sistema de
ensino foi o rendimento escolar obtido pelos alunos: a qualidade do trabalho pedagó-
gico ficou comprometida por enfatizar mais o trabalhador, o mercado de trabalho e o
desenvolvimento econômico do país do que o ser humano e o cidadão.
Sobre as políticas de avaliação educacional e sua relação com as reformas eco-
nômicas impostas ao Brasil pelo Banco Mundial, constatamos que sua relação deu-se
por meio da ineficiência do sistema escolar que antes se encontrava camuflado por
uma avaliação que selecionava e expulsava os alunos antes mesmo de concluírem um
determinado nível de ensino e que, hoje, revela como a escola funciona, explicitando
os níveis diferenciados de formação entre os alunos.
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 157

Também encontramos relações entre o aumento no número de matrículas e os


interesses econômicos internacionais, como o das construtoras, para criar mais escolas;
dos produtores de livros, para ter mais alunos consumidores; dos equipamentos esco-
lares e dos fornecedores da merenda escolar, dentre outros. Finalmente, nossa análise
apontou que o Banco Mundial exerce sua influência nas políticas educacionais não só
através de seus empréstimos, mas também, e, sobretudo, nas orientações praticadas em
acordos firmados com o governo brasileiro.
A respeito do crescente interesse na temática da avaliação no curso superior,
no próprio interior das licenciaturas, encontramos estudos acadêmicos que, paulatina-
mente, vêm percebendo a importância de analisar e debater esta realidade como forma
de conscientização na busca da qualidade do ensino superior tão professada pela socie-
dade. Constatamos o aumento das publicações sobre o tema, exemplificado nas obras
de Anastasiou e Alves (2004), Castanho e Castanho (2001), Sguissard e Silva Júnior
(2001) e Zabalza (2004).
Se, por um lado, as perspectivas quanto às políticas para o ensino superior, a for-
mação de professores e a avaliação educacional não favorecem uma transformação das
práticas avaliativas, por outro, o meio acadêmico também não tem se esforçado para
construir alternativas de se avaliar, inclusive os próprios cursos de licenciatura. Segun-
do Ludke (2002), a universidade pouco cuida da formação dos professores e, assim, a
formação para o exercício da avaliação escolar continua bastante deficitária.
Os cursos de licenciatura deveriam representar importante diferencial para a
construção de uma escola crítica. Uma centralização ou forte ênfase na análise da práti-
ca pedagógica de forma isolada poderia levar apenas ao retorno do tecnicismo, descon-
siderando os condicionamentos históricos e sociais e, mais uma vez, responsabilizando
o professor pelos desencontros impostos pelas políticas educacionais.

As interfaces da avaliação

Sabemos que a avaliação acompanha a história da humanidade desde as cita-


ções do Velho e Novo Testamento, quando tudo era julgado, até a própria história da
educação, na qual a avaliação vem sendo utilizada como um instrumento do aprovar
ou reprovar. A avaliação por meio da prática de exames, utilizada como instrumento
de aprendizagem, já era registrada nos séculos XVI, quando os jesuítas apresentavam
uma grande dedicação à aplicação de provas, e XVII, quando a pedagogia de Comênio
utilizava exames como forma de estímulo aos estudantes para aprimorar o trabalho
intelectual da aprendizagem.
A avaliação na escola moderna, com a prática de provas e exames, sistematizada
a partir dos séculos XVI e XVII, aperfeiçoou seus mecanismos de controle através da
158 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

seletividade escolar. Segundo Luckesi (1995), o aparecimento da burguesia ensejou a


reafirmação dos princípios de exclusão e marginalização dos indivíduos que formavam
a grande parcela da humanidade. Nesse sentido, ressaltamos que na sociedade alguns
poucos são proprietários dos meios e dos instrumentos de produção necessários à vida
humana, enquanto outros muitos possuem apenas sua capacidade de trabalho. O aper-
feiçoamento do modelo de produção baseado numa organização padronizada e em
série, e, em consequência, o desenvolvimento de uma maneira racionalista e positivista
de pensar, caracterizou, no século XIX, a primeira crise do capitalismo.
Essas práticas se encontram fortemente presentes na avaliação que hoje pratica-
mos, atribuindo notas dentro de uma ótica quantitativa, tratando a avaliação como um
processo autônomo dentro da construção de conhecimento e considerando o aluno
como um indivíduo passivo que deve realizar, sem quaisquer questionamentos, todas
as tarefas avaliativas escolares. Atualmente, a escola, dentro desta ótica de mensuração,
viabiliza o ato de avaliar, reforçado no processo ensino-aprendizagem e relacionado ao
modelo político-pedagógico vigente, se restringindo apenas a mensurar e quantificar os
conhecimentos adquiridos pelos alunos. Verificar não é avaliar, pois a avaliação pressu-
põe a atribuição de um juízo de valor que se apropria de um processo para a aferição da
qualidade de seu resultado. A lógica da dominação se apropria da avaliação, na medida
em que se posiciona como classificatória dos alunos e das instituições, autoritária no
desrespeito às relações sociais e excludente. Nada acontece de forma isolada, pois a
classificação, o autoritarismo e a exclusão estão articulados na confecção de um todo
indivisível, negando, dessa forma, o caráter formativo da avaliação, a qual deve se com-
prometer com a efetiva construção, através da função diagnóstica do aprendizado, para
possibilitar ao aluno o conhecimento para sua autonomia e competência.
A avaliação como construção de conhecimento deveria ser vista como uma refle-
xão transformada em ação, que deveria impulsionar novas reflexões do educador sobre
sua realidade e acompanhamento, passo a passo, do educando em sua trajetória. Um
processo interativo, através do qual educando e educadores aprendem sobre si mesmos
e sobre a realidade escolar no ato próprio da avaliação.
Segundo Hoffmann (1996, p. 66),

[...] quando a finalidade é seletiva, o instrumento de avaliação é constatativo, prova irrevogá-


vel. Mas as tarefas, na escola, deveriam ter o caráter problematizador e dialógico, momentos
de trocas de ideias entre educadores e educandos na busca de um conhecimento gradativa-
mente aprofundado.

A avaliação que não representa o processo ensino-aprendizagem quando os su-


jeitos se reduzem a notas – e, nos exames em larga escala, a relatórios técnicos – im-
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 159

pede que a educação seja transformadora, pois o que transforma o ensino é a disposi-
ção daqueles que ajudam na construção do novo: “Nem tudo o que é ensinado deve
transformar-se automaticamente em objeto de avaliação; nem tudo o que é aprendido
é avaliável [...] nem tem o mesmo valor” (Mendez, 2002, p. 35).
A quantificação como elemento estático do processo impede a reflexão e a
construção de novos saberes. Desta forma, a avaliação, dentro do modelo social li-
beral-conservador, se configura como um papel disciplinador de condutas sociais,
tornando-se critério para aprovação dos alunos, posto que o controle e a disciplina
funcionam como elementos de pacificação e aceitação dentro de um sistema, por
que não afirmar, autoritário e antipedagógico. Na medida em que se atribuem no-
tas dentro de um sistema classificatório, a avaliação entendida como controle estará
indelevelmente relacionada ao poder. Foucault (1999b) referiu-se ao assujeitamento
do sujeito como uma série de procedimentos e rituais que controlam o acontecimen-
to discursivo: há uma seleção do enunciante, quem pode falar; há uma seleção dos
enunciados, o que se pode falar; e há o controle da enunciação, como, quando e onde
se pode falar. Estas são as condições de produção do discurso, ou seja, de mera repro-
dução ou repetição, e nunca de transformação.
A avaliação é um tema recorrente em diversas áreas e, na Educação, é abordado
mais do que em qualquer outra área do conhecimento. Na avaliação educacional pode-
mos utilizar os testes como uma forma de medir o desempenho dos alunos ou, em larga
escala, como instrumento para medir o desempenho de uma rede de ensino. Segundo
Reis (2006), a avaliação em larga escala encontra sua justificativa na influência exercida
pelos elementos do mercado na educação dentro da concepção neoliberal, atrelados aos
resultados dos sistemas externos de avaliação da aprendizagem, visando à promoção
da competição entre as instituições escolares. Esse tipo de avaliação tem como função
básica fornecer, quer ao governo federal, quer ao estadual ou municipal, subsídios para
atuar nos diferentes sistemas de ensino. No Brasil, o Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (SAEB), que controla a avaliação externa brasileira, compreende a
Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC) – ou Prova Brasil – e a Avalia-
ção Nacional da Educação Básica (ANEB). Ainda conforme as palavras de Reis,

[...] a lógica utilizada é a de que o controle externo pode trazer eficiência e eficácia para o
ensino e a culpabilização dos indivíduos pelos fracassos das instituições é uma das represen-
tações dominantes na atualidade e permite tirar a responsabilidade dos setores privados em
relação aos problemas sociais gerados, pela escassez de investimentos para minimizar a falta
de emprego. Transfere-se para a instituição escolar a responsabilidade de preparar os indiví-
duos com novos valores e comportamentos para superar a crise econômica [...] esses discursos
e práticas têm levado a opinião pública a aceitar como causa dos problemas econômicos
160 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

e sociais a crise na educação, imputando a responsabilidade para as instituições educativas


(Reis, 2006, pp. 52-54).

Tanto as avaliações educacionais quanto as institucionais e as em larga escala


encontram-se indelevelmente relacionadas às políticas públicas para a educação e às
práticas do Banco Mundial.
Quanto ao Banco Mundial, podemos afirmar que, inicialmente, concedeu em-
préstimos de financiamento ao setor agrícola para aumentar a produtividade, com o
propósito de amenizar a situação de extrema pobreza em que se encontravam os paí-
ses ditos do terceiro mundo. Para efetivar este pensamento e com a diretriz de que a
educação era um fator primordial de desenvolvimento, o banco estimulou reformas de
ensino, para que se formasse mão de obra técnica qualificada para os setores produti-
vos. “Esta diretriz explica a ênfase conferida ao ensino profissionalizante no interior
dos projetos desenvolvidos à época pelo Banco junto ao ensino brasileiro” (Fonseca,
1996, p. 232). Percebemos, assim, as mediações que nortearam o processo de interven-
ção do Banco Mundial na formulação e monitoramento das políticas públicas para a
educação com o consentimento do governo federal. “O conceito de mediação indica
que nada é isolado, implica uma conexão dialética de tudo o que existe, uma busca de
aspectos afins, manifestos no processo em curso” (Cury, 1989, p. 43). Transformamo-
-nos, assim, ao agir e, ao agir, somos transformados. Dessa forma, repensar as condições
históricas é compreender que a sociedade capitalista é formada por grupos de interesses
contrários e que a educação que se desenvolve nela tende a atender às necessidades de
determinados grupos.
As políticas e práticas do poder da avaliação na educação básica são perpas-
sadas pelo estado e pelas referências político-ideológicas dos acordos internacionais
para a educação que orientam a aprendizagem praticada na escola. Quanto ao enten-
dimento dos termos “políticas” e “práticas”, pode-se dizer que “políticas” refere-se ao
conjunto de atos, de medidas e de direcionamentos abrangentes e intencionais, esta-
belecidos no campo econômico e estendidos à educação pública pelo Banco Mundial,
dirigidos aos Estados da América Latina e assumidos pelos governos locais, que tra-
tam de disciplinar, de ordenar e de imprimir a direção que se deseja para a educação
nacional. Quanto a “práticas”, diz respeito às estratégias de prescrições dirigidas para
o ensino ou para as questões específicas da educação básica pública, a fim de sanar
discrepâncias no sistema educacional, sendo orientações para viabilizar e operacio-
nalizar as ações e medidas que respondam satisfatoriamente aos problemas reais que
apresentam variação de acordo com o enfoque dado a cada região. São também os
canais de infiltração da resistência, das modificações no jogo de forças políticas e do
contraconsentimento dos sujeitos sociais.
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 161

O poder da avaliação e sua relação com as políticas internacionais para a educa-


ção por si só justificam a necessidade de promover um trabalho de conscientização para
que todos os sujeitos envolvidos no processo avaliativo de uma instituição escolar per-
cebam que o momento da avaliação não é nem um ajuste de contas nem um momento
de submissão. As orientações de um projeto político para a educação pública emana-
das pelo Banco Mundial, não somente para o Brasil como também para outros países
considerados em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, estabelecem parâmetros de
relações de poder e de ingerência dentro mesmo das estruturas institucionais educacio-
nais através do projeto político-pedagógico ou de programas que atingem o âmago da
escola pública. Com base em questionamentos sobre as reformas na educação e sobre o
plano de estabilização econômica, e também tendo em conta as possibilidades de con-
tribuição da educação na construção de cidadãos participativos e de uma política para
um ensino de qualidade que permita avaliar qualitativamente os saberes construídos,
torna-se quase óbvio relacionar as políticas de avaliação classificatórias e excludentes,
atualmente aplicadas no Brasil, às reformas econômicas impostas pelo Banco Mundial
e o Fundo Monetário Internacional (FMI), em detrimento de políticas de avaliação
educacional orientadas para a construção de conhecimento que propicia uma educação
mais democrática e igualitária.
Torna-se importante entender o discurso da avaliação como instrumento de poder
pelas possibilidades efetivadas de sua construção para o conhecimento da própria história
da humanidade, assim como de suas verdades e de seus saberes. Um dos discursos da
educação é a avaliação do ensino-aprendizagem. Uma de nossas preocupações é o en-
tendimento do modo pelo qual um ser humano se torna um sujeito, pois quando ele se
encontra em relações de produção e de significação, automaticamente se confronta com
relações de poder. Estas são as condições de produção do discurso, marcadas pela mera
reprodução ou repetição, e nunca de transformação. O poder pode ser exercido pela ame-
aça das armas, pelos efeitos das palavras, pelas disparidades econômicas, por mecanismos
mais ou menos complexos de controle, por sistemas de vigilância, com ou sem arquivos,
segundo regras explícitas ou não, permanentes ou modificáveis, com ou sem dispositivo
material; essas são consideradas, segundo Foucault (1995), modalidades instrumentais
daqueles que agem sobre a ação dos outros. Na educação, a avaliação ou o julgamento para
disciplinar seria simplesmente a não aprendizagem e o culpado seria, sem dúvida nenhu-
ma, o aluno, sofrendo a pena de ser excluído do sistema.
Sendo a educação um fenômeno regulado pelo Estado e a escola uma instituição
pertencente a ele, devemos considerar não só a avaliação realizada em sala de aula, sob a
responsabilidade do professor, como também a institucional, realizada em cada escola
pelo seu coletivo, e a feita em larga escala, realizada em âmbito nacional. Apresenta-se
uma tendência cada vez maior de se criar uma interação mais direta entre esses níveis
162 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

de avaliação. Ampliando esta visão interativa, poderemos inserir a avaliação no sistema


das políticas públicas que desde os anos 1990 foi apropriado pelas políticas neoliberais.
Iaies (2003) afirmou que um estudo feito durante a década de 1990, abordando o re-
sultado das avaliações em larga escala realizadas na América Latina, apontou para um
objetivo mais direcionado a um exercício de poder do que efetivamente a indicadores
de transformação de políticas públicas para a melhoria da qualidade da educação.
Devemos entender a avaliação como construção de conhecimento, diferente-
mente do que se apresenta em nossa prática escolar que objetiva uma função classifica-
tória ao invés de uma avaliação diagnóstica do aprendizado. Esse critério de valor clas-
sificatório e estático da nota impossibilita a reconstrução, através de uma reflexão sobre
a prática escolar, do objeto avaliado. Desta forma, a avaliação torna-se um instrumento
a serviço da dominação, no exato momento em que se materializa como uma forma
classificatória dos alunos e instituições e, também, como uma forma de autoritarismo,
que no desrespeito às relações, pratica a exclusão. Tanto a classificação quanto o autori-
tarismo e a exclusão se articulam de tal forma que se torna quase impossível promover
as mudanças necessárias ao exercício de uma avaliação com caráter formativo.
Os países passaram a discutir seus problemas e traçar linhas comuns de ação
política de forma abrangente. Em decorrência, recomendações gerais através de princí-
pios, diretrizes, planos e até mesmo avaliações passaram a funcionar como referências
capitais para os governos na educação dos países participantes e signatários de declara-
ções, acordos e convenções internacionais. Realizaram-se diversas reuniões de cúpula e
conferências mundiais, que geraram relatórios internacionais com orientações de refe-
rências político-ideológicas para a educação mundial e mesmo regional, patrocinadas
pelos organismos internacionais, com destaque para as agências da Organização das
Nações Unidas (ONU) – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciên-
cia e a Cultura (UNESCO), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) –, suas comissões e
escritórios regionais na área econômica – Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (CEPAL) – e técnica – Oficina Regional de Educação para a América Latina
e o Caribe (OREALC) –; organizações intergovernamentais regionais – Organização
dos Estados Americanos (OEA) e Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) –;
organismos internacionais financeiros – Banco Mundial, Banco Interamericano de De-
senvolvimento (BID) e Fundo Monetário Internacional (FMI) – e organizações multi-
laterais da área econômica e produtiva – Organização Mundial do Comércio (OMC)
e Organização Internacional do Trabalho (OIT). As referências político-ideológicas
para a educação, delineadas com a mediação de tais organismos, têm suscitado debates
e análises acerca de seus reflexos nas políticas para a educação básica brasileira.
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 163

Os sistemas de avaliação em larga escala realizados no Brasil pelo Ministério da


Educação (MEC), consolidados com a criação do Sistema de Avaliação da Educação
Básica (Saeb) pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Tei-
xeira (INEP/MEC), nos remetem a Franco e Bonamino (1999), que apresentam a
origem do Saeb, relacionada às demandas do Banco Mundial e aos interesses do MEC
em implementar um amplo sistema de avaliação na educação. A partir desse momento,
o que se constatou a respeito da avaliação em larga escala foi a consolidação do Saeb,
assim como das políticas vinculadas, a avaliação não só na educação básica, quanto no
Ensino Superior. A Prova Brasil, aplicada no 9º ano do ensino fundamental, estabele-
ceu, de forma definitiva, a difusão da avaliação em larga escala, pois seus testes, deixan-
do de ser censitários, passaram a fazer parte do cálculo do Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica (IDEB), que emite dados relativos ao fluxo escolar e à definição de
metas a serem alcançadas pelas escolas públicas até 2021. São iniciativas que tendem a
mobilizar redes de ensino e escolas a buscarem compreender e valer-se dos resultados
das avaliações de sistema no planejamento do trabalho escolar.
Há muito tempo, o Banco Mundial dedica-se a políticas de ajuda mútua, de coo-
peração técnico-financeira, assim como de empréstimos, principalmente para os países
latino-americanos devedores, sendo deles exigido o consentimento, em contrapartida
a uma quase irrestrita manipulação na redefinição das políticas sociais e educacionais,
diminuindo custos e ampliando a abrangência da educação, atendimento a um número
maior de pessoas, alterando de forma indelével seus processos decisórios. A década de
1990 assistiu ao Banco Mundial intervir sistematicamente na política educacional bra-
sileira através de empréstimos que perfizeram o total de US$ 1 bilhão em financiamen-
tos para a execução de seis projetos que contemplaram 13 estados brasileiros. Atual-
mente, o Banco Mundial tem US$ 13,3 bilhões em empréstimos concedidos ao Brasil
para projetos ativos em 19 dos 27 estados brasileiros. Assim, a maior parte dos novos
recursos financeiros irá para o financiamento de programas educacionais e projetos
sociais e de infraestruturas indispensáveis, segundo representantes do Banco Mundial.

Tabela 1. Projetos do Banco Mundial no Brasil de janeiro a abril de 2012


Project Name Country Status Approval Date
Ceara Rural Sustainable Development and
Brasil Active 05-APR-2012
Competitiveness
Sao Bernardo Integrated Water Management
Brasil Active 29-MAR-2012
in Sao Paulo Program
Piaui Green Growth and Inclusion DPL Brasil Active 06-MAR-2012
Pernambuco Rural Economic Inclusion Brasil Active 06-MAR-2012
164 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Amazon Region Protected Areas Program


Brasil Active 23-FEB-2012
Phase II (GEF)
Sergipe Water Brasil Active 26-JAN-2012
Upgrading and Greening the Rio de Janeiro
Brasil Active 26-JAN-2012
Urban Rail System Additional Financing
Fonte: World Bank.

Para o Banco Mundial (1996), tanto as condições de aprendizagem quanto os


resultados obtidos pelos estudantes determinam a qualidade da educação.

Aunque la disponibilidad de recursos afecta sin duda la calidad, la investigación y la experi-


ência em materia educacional demuestram que las políticas y las inversiones públicas puedem
influir em la calidad de la educación. En general, estas conclusiones no se aplican debido a
las modalidades predominantes de gastos y administración de lae ducación y a los intereses
creados conexos (Banco Mundial, 1996, p. 80).1

Tabela 2. Instrumentos de empréstimo adotados pelo Banco Mundial para a área de


educação básica no Brasil entre 1993 e 2004
INSTRUMEN-
ANO DE APROVAÇÃO
SITUAÇÃO ATUAL TO DE EM-
DO PROJETO
PRÉSTIMO
Empréstimo para Investimento e
Projeto Nordeste II 1993 Encerrado
Manutenção Setorial
Empréstimo para Investimento e
Projeto Nordeste III 1993 Encerrado
Manutenção Setorial
Projeto para a melhoria da
Empréstimos para Investimento
qualidade da educação bási- 1994 Encerrado
Específico
ca – Minas Gerais

Projeto para a qualidade da Empréstimos para Investimento


1994 Encerrado
educação no Paraná Específico
Empréstimos para Investimento
Fundescola I 1998 Encerrado
Específico
Empréstimos para Investimento
Fundescola II 1999 Em atividade
Específico

1
Ainda que a disponibilidade de recursos afete sem dúvida a qualidade, a pesquisa e a experiência
em matéria educacional demonstram que as políticas e os investimentos públicos podem influen-
ciar na qualidade da educação. Em geral, estas conclusões não se aplicam devido às modalidades
predominantes de custos e administração da educação e aos interesses criados afins (Banco Mun-
dial, 1996, p. 80). Versão de Beatriz Sanchez.
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 165

Empréstimo para Programa Adap-


Projeto Bahia I 2000 Encerrado
tável
Projeto para a melhoria
Empréstimos para Investimento
da qualidade da educação 2000 Em atividade
Específico
básica no Ceará
Empréstimo para Programa
Fundescola III 2002 Em atividade
Adaptável
Empréstimo para Programa
Projeto Bahia II 2003 Em atividade
Adaptável
Programa Integrado do
Empréstimos para Investimento
Maranhão: Projeto de 2004 Em atividade
Específico
Redução da Pobreza Rural

Desenvolvimento
Integrado de Pernambuco: Empréstimos para Investimento
2004 Em atividade
Projeto de melhoria da Específico
qualidade da educação

Fonte: World Bank (2005).

As orientações de um projeto político para a educação pública emanada pelo


Banco Mundial não somente para o Brasil como também para outros países conside-
rados em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, estabelece parâmetros, nada anima-
dores, de relações de poder e de ingerência dentro mesmo das estruturas institucionais
educacionais, por meio de projetos ou programas que atingem o âmago da escola pú-
blica e, inclusive, através de seu projeto político-pedagógico.
É interessante que se reafirme, para não esquecer, que, também para a educação,
o desenvolvimento, a segurança e os investimentos sempre foram os fundamentos prin-
cipais divulgados pelo Banco Mundial.
A percepção da atuação do Banco Mundial nas decisões educacionais brasileiras
pode ser revelada através das dificuldades enfrentadas pelo governo federal de planejar
a educação, distinguindo-a como fator de produção de recursos humanos que se apre-
sentam como importante razão de crescimento através da qualificação de mão de obra.
Também se percebeu sua influência por meio das propostas de redução de custos na
educação, priorizando a educação básica – 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental –, in-
centivando o ensino privado para os demais níveis de ensino e induzindo a atitudes que
priorizavam uma cultura empresarial para as escolas. “Para as ideologias dominantes, o
melhor antídoto para os males decorrentes do desemprego é a educação elementar e a
formação profissional.” (Leher, 1998, p. 26)
O programa econômico do governo brasileiro, além do seu cunho economicista
(Coraggio, 1996, p. 95), também compreende de forma irrefutável seu caráter político-
-ideológico (Leher, 1998, p. 227). Num sentido mais amplo, as diretrizes para a escola
pública, repletas dos pressupostos de desenvolvimento econômico e monitoradas pelas
166 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

equipes das instituições financeiras, correspondem às questões inerentes ao modelo


econômico e são eficazes instrumentos políticos de persuasão, permitindo não só o
controle como também a disciplina emanada pelo governo.
Uma das características da escola pública é ser uma instituição de controle social,
pois sempre esteve a serviço das políticas vigentes e assentada dentro de um modelo
de sociedade com profundas desigualdades. Em consonância com o pensamento dos
setores dominantes que a mantêm como reprodutora de uma ordem socioeconômica,
sua finalidade é realizar um modelo civilizatório de preparação dos indivíduos para que
desempenhem papéis sociais definidos. Na verdade, realiza-se, através da educação,
uma adaptação dos indivíduos às normas e valores vigentes numa sociedade de classes
bem definidas.
Torna-se importante considerar seis categorias de análise, a saber: as relações
entre o saber e o aprender na escola; o poder da avaliação e as políticas internacionais
para a educação; a avaliação como construção de conhecimento; a avaliação diagnóstica
do aprendizado; sistemas de avaliação em larga escala adotados na educação básica bra-
sileira; e as políticas de avaliação educacional, assim como sua relação com as reformas
econômicas impostas ao Brasil pelo Banco Mundial, resultado de uma construção de
conhecimento ou de uma subserviência.
Na realidade, nossa preocupação maior se concentra na sobrevivência de uma
escola pública de qualidade por ter sido sempre uma instituição em pauta. Ela tanto foi
alvo de campanhas em sua defesa, tendo como sujeitos das ações diferentes segmentos
da sociedade como, também, sofreu inúmeros ataques por parte dos interesses privatis-
tas voltados para a educação.
O poder do Estado regula e é regulado por esta trama, construindo uma
sociedade de relações de exploração e exclusão, mas uma sociedade que no limite
precisa sobreviver para que o capital também sobreviva. Não existe Estado Nacional ou
economia local que não tenha sentido a presença do fenômeno da globalização, e cada
um a sua maneira foi atingido pelos tentáculos do capital mundial. Apesar dos sempre
presentes interesses privatistas na educação, existe algo que faz com que a escola pública
capitalista se torne necessária.
É extremamente preocupante constatar o papel que as agências de financiamen-
to internacional exercem na ajuda financeira aos governos locais, com recursos sem-
pre acompanhados de condicionalidades, as quais funcionam como grilhões, mas os
competentes, subservientes e muito zelosos defensores dos interesses do capital local e
internacional recebem-nas em nome de toda a sociedade: intervenção sim, mas com
consentimento. É claro que este também encontra resistência em alguns segmentos
da sociedade.
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 167

No interior dos cursos de licenciatura, constatamos que há um distanciamen-


to de uma discussão que permita compreender os laços entre escola e sociedade. Os
profissionais da educação encontram-se tão envolvidos dentro dos muros constituídos
pela escola e pela sala de aula que pouca relevância é direcionada à formação reflexiva,
submetendo-se às exigências impostas pelas políticas e problemas educacionais. Além
disso, as políticas públicas têm contribuído para o processo de naturalização da exclu-
são (Pereira, 2006). As licenciaturas não ficaram imunes às transformações econômi-
cas, ideológicas e políticas que tanto atormentam nossa sociedade. Esta educação foi
fortalecida como um produto consumido apenas por aqueles que demonstram desejo
e competência para tal, e, cada vez mais, tem sido eficiente e eficaz na distribuição do
capital cultural de acordo com os lugares sociais de cada um (Bourdieu, 2001). Nesse
sentido, precisaríamos identificar a lógica da sociedade capitalista, globalizada e subor-
dinada ao princípio neoliberal, assim como o norte do trabalho pedagógico no interior
desta escola capitalista.
A partir destes questionamentos entendemos que a inclusão tem sido um tema
extremamente desafiador, um conceito que expressa múltiplas facetas, coexistindo tan-
to um sentido ideológico quanto político. Atualmente, o caminhar do ensino dentro
das licenciaturas demonstra um distanciamento da formação da consciência crítica,
com a participação coletiva, e da apropriação do capital cultural historicamente acu-
mulado pela humanidade. Faz-se necessário resgatar o processo de humanização e a es-
perança de que ainda é possível contribuir para a formação de pessoas com consciência
crítica sobre o mundo (Pereira, 2006).
Assim, apesar de a sociedade ser marcada pela divisão de classes, acreditamos ser
possível implementar um projeto de formação docente que não se silencia frente ao
imediatismo e à absolutização das ideologias que enfatizam o momento presente.
Observamos várias tentativas de construção de uma pedagogia que objetiva a for-
mação de cidadãos, sujeitos da vida social, dentro dos cursos de formação de professo-
res, sob a ótica da legislação vigente. Entretanto, tal finalidade não tem se efetivado de
maneira concreta em nossa sociedade. Constata-se o que se refere à realidade brasileira
que, de um lado, têm-se incorporado, nos últimos anos, cada vez mais os discursos e
as orientações da pedagogia internacional. Uma das grandes justificativas é a de que os
problemas educacionais não são de natureza teórica e sim prática e que as transforma-
ções educacionais podem ocorrer a partir do interior da escola, tendo o professor como
o grande responsável pela implementação das mudanças necessárias para alcançar uma
boa qualidade.
No entanto, a “forma” de organização do trabalho pedagógico dentro dos cursos
de formação de professores ainda representa um espaço passível de múltiplas problema-
tizações e perspectivas de estudos, em especial se analisadas à luz das políticas públicas
168 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

para a formação de professores. A busca pela compreensão crítica e explicitação das ló-
gicas que permeiam os espaços da sala de aula em cursos de licenciatura são motivações
que nos levam a continuar a caminhada no âmbito da pesquisa.
Questiona-se, também, o papel das políticas públicas para os cursos de forma-
ção no processo de profissionalização docente: como ensinamos e como nossos alunos
aprendem, como se dá a organização do trabalho pedagógico. Essa formação influencia
na atuação profissional, pois reflete todas as contradições sociais.
Precisamos entender ideológica e subjetivamente qual é a lógica imposta atual-
mente pelas políticas públicas de formação de professores. Entender que “a escola é
um espaço importante na disputa dos projetos da sociedade” (Esteban, 2007, p. 16).
Enquanto profissionais da educação, precisamos nos questionar sobre qual é a parti-
cipação dos cursos de formação de professores no sentido de acentuar ou amenizar a
realidade acima relatada como demonstração de que, no reino do capital, a educação
inclui para excluir, ou seja, autoriza projetos includentes ao mesmo tempo que não
possibilita a democratização da produção e apreensão do conhecimento. Reforça-se,
desse modo, o princípio do desenvolvimento do capitalismo: a exploração do homem
pelo homem, a prática de subordinação e de exclusão.
Quanto à avaliação nos cursos de licenciatura, os estudos, produções e pesquisas
crescem aceleradamente. Tanto as publicações sobre avaliação educacional quanto o
campo das políticas de avaliação têm sido temáticas de forte interesse por parte da
academia e vêm se transformando do ponto de vista das concepções. Nos últimos vinte
anos as produções teóricas têm sido unânimes em condenar práticas avaliativas tradi-
cionais, quantitativas e excludentes. Tais práticas, que estão ainda mais fortes e resis-
tentes no cotidiano da sala de aula, são condenadas insistentemente.
Um olhar mais cético sobre a questão poderia justificar superficialmente essa
realidade por meio de um simples entendimento do significado real da diferença entre
teoria e prática. No entanto, segundo Freitas (1995, p. 59), “é possível que a categoria
mais decisiva para assegurar a função social que a escola tem na sociedade capitalista
seja a da avaliação”. Essa afirmação explica por que tem sido tão difícil transformar
práticas avaliativas classificatórias, excludentes e seletivas em práticas inclusivas, já que
a sociedade atual garante sua manutenção por meio da exclusão.
Hoffman (1996b), após identificar os mitos que cercam a avaliação no 3º grau,
em especial nas licenciaturas, realizou trabalho de Programa de Aperfeiçoamento de
Ação Pedagógica, com docentes do ensino superior; um dos pontos que chamou sua
atenção foi que a avaliação era uma questão pedagógica pouco investigada nos meios
acadêmicos. Nessa pesquisa, ela afirmou que
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 169

[...] a importância de estudos dessa natureza está no delineamento de pressupostos meto-


dológicos que, justamente, superem a prática classificatória fortemente instalada, apesar do
discurso ‘aparentemente’ crítico de alguns professores. Porque o descrédito maior se situa na
metodologia (Hoffman, 1996b, p. 117).

Sobre as avaliações em larga escala, o Ministério da Educação dissemina a ideia


de que elas são um indicativo para melhorar a qualidade do ensino, reduzir as desigual-
dades, democratizar a gestão do ensino público e, principalmente, desenvolver uma
cultura avaliativa na qual se estimule o controle social sobre os processos e resultados
de ensino. Essas avaliações periódicas e padronizadas representam a prática da refor-
ma educacional voltada para o sucesso escolar, que obedece a políticas regidas pelo
mercado em vários países. Essa lógica de testar estudantes e professores direcionou os
currículos e aumentou o tédio em milhares de salas de aula. Efetivamente, as avaliações
em larga escala pouco interferem no cotidiano escolar. Embora sejam uma realidade
cada vez maior em muitos países, os resultados ainda não se apresentam suficientes para
modificar o ensino-aprendizagem das escolas.
É interessante observar que o Brasil apresentou avanços importantes nos indica-
dores quantitativos da educação básica, assim como no Fundo de Manutenção e Desen-
volvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUN-
DEB), que atende tanto a Educação Básica quanto a Educação de Jovens e Adultos.
No entanto, apesar de todos os caminhos diferenciados, no final da estrada en-
contramos a redefinição das políticas para a Educação tanto Básica quanto no interior
das Licenciaturas, tanto no Brasil quanto na América Latina, seguindo os fundamentos
político-ideológicos do Banco Mundial, que priorizam o capital e as suas diferentes
formas de reprodução.
As políticas educacionais brasileiras foram influenciadas diretamente pelas orga-
nizações financeiras mundiais, incorporando, gradualmente, seus procedimentos aos
conceitos econômicos manipulados pelo Banco Mundial, tais como racionalidade de
custos, produtividade e competitividade, assim como a redução de recursos nas áreas da
saúde, da educação, da cultura, assim como no desenvolvimento das pesquisas.
O subsídio do Banco Mundial se justifica porque, dentre os organismos interna-
cionais, é esse o que mais se dedica em suas políticas sociais para o campo da educação,
sendo por ele considerada como fator fundamental para a formação do capital humano
e reprodução das desigualdades sociais.

[...] a) Adequar as políticas educacionais ao movimento de esvaziamento das políticas de


bem-estar; b) Estabelecer prioridades, cortar custos, racionalizar o sistema, enfim, embeber
170 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

o campo educativo da lógica do campo econômico; c) Subjugar os estudos, diagnósticos e


projetos educacionais a essa mesma lógica (Coraggio, 1996, p. 11).

Somente para o governo brasileiro, entre os anos de 1993 e 2004 foram concedidos
empréstimos que financiaram 124 projetos em diversas áreas, ultrapassando a cifra dos
14 bilhões de dólares, e, deste total, 9,21% foram destinados à educação básica para o
desenvolvimento de projetos nas mais variadas regiões do país (Torres, 1996).

[...] estou convencido de que o desenvolvimento do mundo que vai surgindo diante de nós é
uma das tarefas mais importantes que a humanidade enfrenta neste século. Mas, devo acen-
tuar também que o BIRD é um organismo de investimentos para fins de desenvolvimento.
Não é uma instituição filantrópica, nem um organismo de bem-estar social. Nossa política
creditícia se baseia em dois princípios fundamentais: o projeto deve estar bem concebido e o
prestatário deve apresentar capacidade creditícia (Mcnamara, 1974, p. 109).

Nesse cenário, a educação pode ter um papel primordial. “O ensino não é a ala-
vanca para a mudança ou a transformação da sociedade, mas a transformação social é
feita de muitas tarefas pequenas e grandes” (Freire, 2001, p. 60). Assumir essa posição
não é resgatar a visão redentora de educação, é ter consciência de que a escola “sempre
foi uma arma nas mãos das classes dirigentes” (Pistrak, 2003, p. 30) e, por isso, projetos
que se posicionam contra essa lógica assumem pedagógica e ideologicamente oposição
à naturalização das coisas e dos sujeitos.
Precisamos, a partir do trabalho coletivo, amenizar a anestesia social/educacio-
nal que tem intensificado projetos/práticas individualistas. Segundo Pistrak (2003), a
reorganização da escola a serviço da transformação social não acontece com a simples
alteração dos conteúdos ensinados e, por que não dizer, com ajustes curriculares. É
um movimento mais amplo de mudança ideológica e também estrutural, em que toda
dinâmica da instituição visa à coerência dos objetivos de formação. Sabemos também
que o mesmo serve para as políticas de formação de professores. Essa mudança precisa
ser coerente com os objetivos de formação para a cidadania, uma formação na qual os
indivíduos sejam capazes de participar ativamente da construção de uma sociedade
mais justa e igualitária.

Considerações finais

Este trabalho teve como objetivo refletir sobre o papel da avaliação do desem-
penho escolar e, sobretudo, da educação, da educação básica e das licenciaturas, tendo
O poder da avaliação educacional: políticas e práticas na educação básica e reflexões nos cursos de licenciatura 171

consciência de que, para aceitar o grande desafio do desenvolvimento, não é possível


obter êxito sem o alicerce de um povo que se educa para a cidadania.
Nesse sentido, as políticas de formação de professores podem contribuir para a
construção de uma teoria pedagógica crítica que dê conta das novas formas de organi-
zação do trabalho pedagógico. Os espaços da sala de aula não podem se fechar na clás-
sica organização escolar, muitas vezes explicitada pelas disciplinas “responsáveis” pela
formação de professores – dentre elas a didática –, que, por meio de suas práticas, criam
relações de dominação e atribuem à escola uma função social seletiva e preparatória
para relações sociais de produção e reprodução, ou seja, contribuem com a manutenção
da organização social capitalista.

A Escola não é uma ilha na sociedade. Não está totalmente determinada por ela, mas não está
totalmente livre dela. Entender os limites existentes para a organização do trabalho pedagó-
gico ajuda-nos a lutar contra “eles”; desconsiderá-los conduz à ingenuidade e ao romantismo
(Freitas, 1995, p. 99).

Acreditamos que estudos nessa área constituem possibilidades de retomar como


objeto de análise e discussão a complexidade da organização do trabalho pedagógico,
à luz das atuais políticas para a formação de profissionais da educação, além de ser
uma possibilidade de pensar a formação de professores, defendendo como princípio
a resistência a uma lógica excludente e cruel de massificação e exploração dos sujeitos
e de compreensão das licenciaturas como espaços de formação docente carregados de
tensões, contradições e, também, de possibilidade de resistências. Assim, contribuire-
mos para a concretização de uma teoria pedagógica crítica da escola capitalista (Freitas,
1991). Justifica-se aqui a relevância de nosso estudo.
Também objetivamos esclarecer que as instituições educacionais são de grande
interesse para as políticas do Banco Mundial e que se encontram referendadas pelo
governo federal, pelos Ministros da Fazenda e da Educação, assim como dos Secre-
tários de Educação dos estados e municípios brasileiros, que, através da centralização
de recursos financeiros e em concordância com as agências multilaterais, passaram a
formular e gerir políticas setoriais.
Este trabalho, a seu modo, também revela, de certa forma, uma resistência, pois
trava uma luta do discurso e, nesta luta, pretende-se que outros pesquisadores não per-
maneçam neutros.
172 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

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Biografia

Daisy Lucia Gomes de Oliveira é graduada em licenciatura em música e piano


pela UFRJ, em filosofia pela UERJ, doutora em ciências da educação pela Universidad
Americana, professora de educação musical do Colégio Pedro II, diretora geral do
campus Engenho Novo II do Colégio Pedro II.
e-mail: daisycunha@gmail.com
O desafio do texto para docentes de todas as
disciplinas: construindo questões

Lúcia Deborah Ramos de Araujo


(UERJ/CP2/SELEPROT)

A era do texto

Sempre que novos docentes se formam, é inevitável refletir sobre o que se dese-
nha à sua frente. Todos sabemos que existe uma série de procedimentos técnicos no
fazer pedagógico, mas continua a nos encantar a magia do ensinar e aprender, que está
para além desta ou daquela técnica. Isso acontece porque se trata de um processo que
põe indivíduos em conexão, cada qual com sua mentalidade, cada qual com sua histo-
ricidade, carregando cultura, valores, crenças e conteúdos emocionais que atravessam
(e por vezes até complicam) as relações no espaço da sala de aula, seja ela tradicional ou
mesmo virtual.
O que um professor tem a oferecer a seus alunos? Seu conhecimento e
sua experiência. Ora, tais conteúdos são imateriais, ainda que possam repercutir
concretamente no mundo, com seus efeitos. A imaterialidade do saber não significa
que ele deva ficar confinado a uma mente – sabemos que não. Para dar curso ao saber,
tem-se a linguagem. Do contato de uma mente com o meio e com o outro, derivam
registros, experiências, elaborações. O que pode fazer com que isso se organize para o
próprio sujeito, estruturando-lhe uma visão do mundo, e o que permite a comunicação
dessa bagagem é a linguagem. Por meio dela, construímos nossos discursos, que se
materializam em textos. É o texto, portanto, a entidade material capaz de representar
discursos e carregar sentidos, viabilizando fluxos de saberes entre indivíduos e entre
grupos inteiros.
176 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

O papel do texto

Quando mencionamos a palavra texto, vem à mente, em primeira instância, a


ideia de um conjunto de palavras organizadas em frases, formando um sentido. É natu-
ral, afinal, o conceito de texto foi, durante muito tempo, restrito. Já há algumas déca-
das, entretanto, esse conceito se alargou, abarcando todas as configurações capazes de,
organizadas em signos, produzir e comunicar sentido. Esta é a acepção com que vamos
trabalhar neste artigo.
O mundo contemporâneo está especialmente preenchido de signos. Todo o nos-
so entorno se faz de signos, linguagens, todo o tempo. Não apenas os signos verbais
(palavras), mas também os não verbais, como sons, cores, imagens e até texturas estão
presentes no nosso cotidiano. Toques de celulares, vinhetas musicais que anunciam
programas, cores nas latas de lixo para orientação da coleta seletiva, logomarcas, placas
indicativas impressas e em braile, sinalização tátil para os cegos, nas ruas, shoppings e
instituições. Mandamos para o espaço sideral os nossos signos, em sondas que já ex-
trapolaram o sistema solar e seguem para o desconhecido, levando imagens, canções,
fórmulas matemáticas, um pouco de tudo o que representa a humanidade. No nível
micro, mergulhamos na linguagem do DNA, tão simples e tão complexa ao mesmo
tempo. Buscamos desvendar a linguagem das partículas em suas múltiplas combinató-
rias, presentes desde a gênese do universo.
O fato é que nossos sentidos são constantemente chamados a participar de pro-
cessos semióticos – aqueles em que se dá a construção do signo e sua ampla decodifica-
ção interpretativa. Umberto Eco (2007) já apontava essa realidade, quando, baseando-
-se na semiótica de Charles Sanders Peirce, situava a semiótica como parte da própria
cultura, uma vez que conteúdos organizados em signos carregam mais do que uma
simples mensagem específica – valores, crenças, ideologias, pontos de vista, esquemas e
modelos mentais. Sendo assim, não podemos, como cidadãos e, mais especificamente,
como docentes, ignorar esse universo de significações em que estamos imersos. Por
tudo isso, o texto tem um espaço especial nas práticas pedagógicas. Contudo, não foi
sempre assim.
O ensino tradicional apresentava aos alunos os fatos acabados. Não se construíam
conceitos, eles eram enunciados e representados em fórmulas e, muitas vezes, em
“macetes”. Muitos dos que hoje são docentes ou estão ingressando no magistério têm,
em suas lembranças, macetes memoráveis, engraçados, músicas que ajudam a lembrar
como se dá a coagulação ou como se calcula o seno ou o cosseno. São divertidas formas
de memorizar. Mas não necessariamente a memorização corresponde a aprendizado.
Sequências inteiras podem ser guardadas, sem que isso corresponda a um domínio,
por parte do aluno, dos conceitos. Não é raro, inclusive, observar a existência de casos
O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões 177

de alunos que mimetizam conhecimento, reproduzindo informação memorizada,


mas que, se submetidos à cobrança de uma função inversa do que dizem saber, não
conseguem corresponder.
Nesse sentido, para trabalhar o conhecimento de uma forma não apenas ampla e
dinâmica, mas relacionada ao contexto em que se inserem os alunos, o maior recurso,
além, é claro, da exposição de sala de aula, feita pelo professor (ela também textual),
é o texto. Isso porque ele confere à situação de aprendizagem os elementos necessários
para que, cognitivamente, o aluno estabeleça relações entre o que lhe é apresentado
como novidade e toda a sua bagagem de experiências e conhecimentos prévios. Como
já dissemos antes, deve-se considerar a existência de modelos mentais, que derivam de
representações analógicas estabelecidas pelo indivíduo para lidar com a realidade. Para
atribuir sentido a um texto, o leitor precisa colocá-lo em perspectiva, fazendo-o dialogar
com os modelos mentais construídos e produzindo os chamados modelos de situação:

[…] além da representação de sentido de um texto, os usuários da língua também cons-


troem modelos mentais dos eventos que são assunto desses textos, isto é, da situação que
eles têm como denotação ou referência – daí o nome de ‘modelos de situação’ escolhido
por Van Dijk e Kintsch (1983). (Van Dijk, 2012, p. 90).

Assim é que um texto deve ser, na verdade, mais do que um cotexto para a cena
pedagógica; ele deve constituir um contexto, um conjunto de referências vivenciais e
culturais, capazes de facultar ao indivíduo aprendiz material para a formulação de ana-
logias e, como resultado, a construção de um aprendizado efetivo, histórico.
O texto pode ser literário ou não. Nada impede que um texto literário sirva de
base para, por exemplo, questões de biologia ou outra disciplina. Basta usar de cria-
tividade. Os textos cotidianos, oriundos de propagandas, jornais, revistas e até posta-
gens em redes sociais também servem ao ensino, devendo, claro, passar pelo crivo do
docente, que avaliará sua adequação, sobretudo quanto ao tema e à linguagem usados,
tendo em vista sempre a faixa etária a que se destina. Assim, notícias, charges, tirinhas,
anúncios, bulas, receitas, contratos, placas de sinalização, manuais, enfim, todo tipo de
texto interessa. Mesmo os que veiculem informação equivocada podem ser usados, se a
discussão da acuidade da informação for o tópico central.

O papel do docente não linguista quanto ao uso da língua portuguesa

Este ponto é polêmico, quando se questiona se o professor de outras disciplinas


deve corrigir ou não a expressão linguística de seus alunos. Tracemos as diferenças en-
tre corrigir e pontuar. Corrigir representa indicar inadequações e equívocos e apontar
178 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

a forma padrão. Requer, portanto, domínio da norma padrão por parte do docente,
para que suas correções não sejam um desserviço ao aluno. Além disso, o docente
deve ter clareza quanto ao que é variante da língua, aceitável conforme o contexto, e o
que de fato fere o sistema, comprometendo a inteligibilidade, sendo considerado um
erro. Pontuar, no sentido matemático, significa mensurar numericamente os desvios
gramaticais do aluno, o que é bem mais delicado e exige um docente muitíssimo bem
preparado em termos de língua portuguesa.
Por ser esse um terreno escorregadio para leigos e sujeito a tensões escolares,
recomendamos evitar a pontuação fora da disciplina de língua portuguesa; considera-
mos, contudo, que constitui compromisso do docente orientar e aprimorar a expressão
do aluno, sendo importante apontar desvios e até corrigi-los. O mesmo compromisso
estaria afeto aos professores de língua portuguesa, quando se depararem com impro-
priedades históricas, geográficas, biológicas, matemáticas etc. Em suma, o docente tem
um compromisso com a formação global de seu aluno, e todos, sem exceção, devem
enriquecer seu vocabulário e ampliar as possibilidades de expressar o seu pensamento
com fidelidade. Isso não tira do especialista a responsabilidade específica por sua área
de trabalho.
Sem dúvida, o perfil que o século XXI requer do docente é de uma abrangên-
cia intelectual capaz de ir do específico ao geral, dialogando com as áreas vizinhas e
até com outras, mais distanciadas da disciplina por ele ministrada. Isso corresponde
a um paradigma novo, de educação por projetos, em que saberes de diferentes ordens
conjugam-se em nome de um objetivo maior. É um desafio para o qual o docente
deve estar pronto – ele deve, antes de tudo, cuidar bem de sua expressão linguística,
de sua capacidade de ler, compreender, interpretar. Falando ou escrevendo, em sala,
em materiais didáticos ou em artigos, ao professor cabe exemplificar com sua própria
história a importância do domínio linguístico para os que desejam ampliar seus hori-
zontes intelectuais. Preparado, instrumentalizado, o professor poderá escolher melhor
os textos que figurarão entre suas produções didáticas e saberá explorar seu conteúdo e
suas conexões, tendo como foco as discussões de sua disciplina.

O texto no material didático

A inclusão de texto como parte de material didático e de questões de exames,


como Saeb, Enem, Enade, já não é novidade e pode ser verificada nas produções didá-
ticas contemporâneas. Mesmo assim, alguns equívocos acontecem. A falta de tradição
no lidar com o texto costuma conduzir o docente a um uso mecânico desse recurso.
Em outras palavras: o texto é usado, mas a questão elaborada simplesmente não dialoga
com o texto e, com frequência, até prescinde de sua leitura. Produz-se, nesses casos,
O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões 179

uma capa de modernidade para um procedimento dos mais tradicionais e mecânicos.


Mesmo escolas determinadas a avançar na qualidade de seus materiais podem recair
nesse equívoco.
Em material de apoio didático, no qual são apresentados conteúdos ao aluno, o
texto usado pode ser de extensão média, com cerca de uma lauda, porque há tempo
para trabalhar suas nuances e explorar as conexões que ele favorece. Nas questões de
exames, a situação é diferente: o aluno disporá de dois ou três minutos para resolver a
questão, o que obriga o autor a escolher um texto curto, de pouco mais de um pará-
grafo. Comumente são aproveitados fragmentos de texto. Veremos, a seguir, algumas
questões e avaliaremos o aproveitamento que fazem do texto.

Questões de matemática

Recentemente, circulou pela internet (num desses fenômenos de multicomparti-


lhamentos, nos quais se perde a trilha da publicação original) a seguinte imagem. Não
há sequer como garantir que a resposta apresentada pelo suposto aluno corresponda a
um evento real e, não, a uma criação oportuna. No entanto, não é isso que nos interes-
sa, uma vez que estamos dedicados a discutir construções de enunciados e seus efeitos
na aprendizagem e na avaliação. Portanto, sendo verídico ou não, o caso nos serve à
discussão perfeitamente.

Fonte: <https://twitter.com/hashtag/euaprendinoenem>.
180 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

A um breve olhar, pode-se perceber o fato mais gritante: o docente fez uma
confusão com os nomes que resolveu usar no problema e perguntou a respeito de um
personagem que não tinha entrado na história, fazendo lembrar o célebre poema “Qua-
drilha”, de Carlos Drummond de Andrade. Mas ainda há dois aspectos merecedores
de nossa análise nessa questão: um relativo ao aluno; outro relativo à construção do
enunciado. Vamos a eles.
O aluno demonstra perceber o equívoco do docente, ao denunciar o absurdo
com um questionamento sobre Rita em sua resposta (“mas quem é Rita?”); contudo,
inteligentemente, apresenta resposta que atesta o conhecimento que estaria sob avalia-
ção. Em outras palavras, o aluno parece conhecer o mecanismo de avaliação e, quem
sabe, até prever questionamentos futuros por parte do professor, caso apenas denun-
ciasse a incoerência do enunciado. Assim, em conduta de autoproteção, apresenta um
cálculo, demonstrando dominar o conteúdo em questão, e a ele acrescenta sua denún-
cia, em forma de pergunta.
O segundo aspecto diz respeito à cultura de construção de questões ainda vigente
em nossas comunidades escolares: a pergunta surge praticamente do nada ou de um
contexto extremamente minimalista. Com isso, fica a cargo do aluno realizar inferên-
cias e pressuposições que preencham as lacunas deixadas pelo docente. É curioso que
isso ocorra, muitas vezes, na direção da expectativa docente, revelando que há uma prá-
xis negociada e estabelecida em nossas relações didático-pedagógicas, em que o aluno,
treinado, sabe “o que o professor quer”. Sendo mais objetiva, chamo atenção para o
fato de que, em nenhum momento, se disse que o gasto de 38 reais foi o único, a partir
do total da mesada.

Mariana gastou 38 reais de sua mesada e ainda ficou com 42 reais.

Imaginemos que Mariana recebesse 480 reais e que tivesse comprado um telefo-
ne, no valor de 400 reais. Teria ainda 80 reais de sua mesada e só então gastaria os 38
reais mencionados na questão, ficando com os 42 restantes. Nada se declarou, objeti-
vamente, no problema, sobre a existência ou não de gastos anteriores de Mariana. O
docente pressupõe que o aluno não questionará esse fato, talvez pela faixa etária a que
pertença, talvez pelo próprio treinamento escolar a que vem sendo submetido, que o
faz dar à questão o tratamento esperado pelo professor: considerar o gasto de 38 reais
como o primeiro evento de uma situação, sem supor a existência de eventos anteriores.
Talvez (há possibilidade de que esta hipótese se aproxime da verdade dos fatos) o do-
cente sequer tenha cogitado sobre eventos anteriores, tal o treinamento escolar a que
ele, docente, foi submetido ao longo de toda a sua vida como aluno e ao longo de sua
estrada no magistério. Isso merece atenção e reflexão.
O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões 181

Que providência poderia evitar uma situação dessas? Simples: a preocupação em


contextualizar adequadamente o problema. Para isso, um texto seria desejável. Não um
texto mínimo, de duas frases, criado a pretexto da questão, mas um texto com quali-
dade linguística e com riqueza de informações, do qual o aluno pudesse extrair a cena
desejada pelo professor, sem desprezar os eventos circundantes.
Por fim, seria desejável que os elementos não verbais da questão tivessem função
além da decorativa. No caso em análise, o porquinho não dialoga diretamente com o
problema, apenas se harmoniza com ele pelo campo semântico da moeda, da poupança
(o que possivelmente nem seja o caso, já que Mariana – ou Rita – está gastando sua
mesada e nada garante que ela vá poupar os 42 restantes), tendo função meramente
decorativa.
Vejamos outro exemplo de questão de matemática, agora com utilização adequa-
da do texto e dos elementos não verbais.

O ano de 2012 pode inaugurar uma nova era: a era do alfabeto 3D.
Tudo culpa do Ji Lee. O artista sul-coreano resolveu dar uma roupagem mais
moderna para as nossas letras, tão queridas, mas tão paradas no tempo. A ideia
é simples: uma fórmula geométrica simples foi aplicada às letras, que, com a
ajuda de um software, giraram 360º em torno de um eixo vertical. No final
das contas, um formato totalmente novo é criado para cada uma delas. Para
visualizar a estética original, é só pensar em uma lâmina imaginária cortando
a nova letra transversalmente.

Fonte: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI310784-
17770,00-ARTISTA+CRIA+ALFABETO+D.html>. Acesso em: jul. 2012.

A sequência abaixo mostra como o software gera o novo formato para a letra A,
apresentado na última coluna do quadro abaixo
182 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Aplicando o mesmo processo na letra Z, a figura obtida será formada por:


(A) dois cones com vértice comum.
(B) um círculo cujo centro coincide com vértice de um cone.
(C) um circulo cujo centro coincide com o centro da base de um cilindro.
(D) uma esfera apoiada no centro de um círculo.
(E) um cilindro apoiado em uma semiesfera.
Gabarito: B

Fonte: <http://ensinomediodigital.fgv.br>.

O texto aparece adequadamente integrado à questão: a informação trazida por


ele é diretamente aproveitada para a resolução do problema. No caso, o texto diz como
é construído o alfabeto 3D e o aluno terá de usar essa informação para mentalmente
construir a representação 3D da letra Z e, posteriormente, escolher entre as alternativas
aquela que descreve adequadamente a imagem desenvolvida em sua mente. Entram
em jogo diferentes níveis e tipos de leitura: a verbal, que corresponderá à extração da
informação necessária a partir do texto; a imagética, que corresponderá à analogia entre
as imagens sequenciadas, estáticas, e um processo dinâmico de construção de figuras
3D; novamente a verbal, agora técnica, que corresponderá ao reconhecimento das de-
nominações de figuras geométricas e seu correto pareamento com a imagem construída
mentalmente pelo aluno.
Note-se que esta questão exemplifica muito bem a ideia de um modelo de situa-
ção que, evocado pelo texto, dialoga com o problema proposto e permite a construção
de uma analogia capaz de conduzir o aluno à resposta certa. Não foi necessário um
texto longo, apenas o suficiente para oferecer a moldura para a situação.

Questão de biologia

Vírus

Os vírus são estruturas acelulares que possuem um envoltório de prote-


ína em torno de uma ou mais moléculas de ácido nuclêico (DNA ou RNA).
Há vírus de DNA, outros de RNA e ainda os de RNA com a enzima trans-
criptase reversa.
A reprodução viral ocorre apenas no interior de células hospedeiras,
pois eles são parasitas intracelulares obrigatórios. Uma única partícula viral
(vírion) pode dar origem a muitos vírus em curto intervalo de tempo.
O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões 183

Vírus da Aids.
Fonte: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/parasitoses/parasitoses-4.php>

Quanto a padrões, processos biológicos e taxonomias, os vírus:


(A) Devido ao seu alto índice de mutação e por não obedecerem a um padrão
estrutural único, não estão inseridos em nenhuma das atuais categorias taxo-
nômicas.
(B) Apesar de seu índice de mutação ser alto, seu padrão se repete, o que difi-
culta sua classificação em qualquer categoria taxonômica.
(C) Não são suscetíveis a mutações, porém, o fato de não obedecerem a um
padrão estrutural único levou os cientistas a optarem por classificá-los em um
reino exclusivo.
(D) São classificados em um reino exclusivo para seres que são formados por
um capsídeo e uma molécula de DNA e que têm, como característica funda-
mental, o alto índice de mutação.
(E) Por serem seres unicelulares, estão classificados em um reino próprio, le-
vando em consideração o fato de sofrerem constantes mutações.
Fonte: Portal São Francisco, em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br>.

Texto verbal e não verbal combinam-se para oferecer ao aluno elementos com
os quais possa identificar realidades biológicas. O aproveitamento do texto é indireto,
184 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

sendo necessário que o aluno processe algumas informações e realize inferências. A


imagem, por sua vez, ilustra o assunto, uma vez que apresenta um corte de um vírus,
mas não colabora para a solução da questão, sendo dispensável.

Questões de filosofia

Vejamos inicialmente uma questão com uma breve introdução, um texto curtís-
simo, que se limita a apresentar um conceito geral, ao qual o aluno deverá relacionar a
alternativa correta. Note-se que a afirmação a ser assinalada pelo aluno apenas corres-
ponde a um procedimento de correlação semântica, baseado no conhecimento a que
ele teve acesso durante as aulas.

O tema da liberdade é discutido por muitos filósofos. No existencia-


lismo francês, Jean-Paul Sartre, particularmente, compreende a liberdade en-
quanto escolha incondicional.
Entre as afirmações abaixo, a única que está de acordo com essa concep-
ção de liberdade humana é:
(A) O homem primeiramente tem uma essência civilizada e depois uma exis-
tência manifestada na história de sua vida.
(B) O homem não é mais do que aquilo que a sociedade faz com ele.
(C) O homem primeiramente existe porque sendo consciente é um ser em si
para o outro.
(D) O homem é determinado por uma essência superior, que é o Deus da
existência, pois, primeiramente, não é nada.
(E) O homem primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal
como a si próprio se fizer.
Fonte: Vestibular UEMA, 2011.

A mesma temática da liberdade é retomada, de modo sutil, pela questão a seguir.


Ela usa uma charge, portanto um texto misto, para exigir do aluno que faça uma leitura
interpretativa de texto e imagem, realizando inferências a partir dos ditos dos persona-
gens, para então relacionar as inferências ao conteúdo visto em sala. São mais passos,
mais habilidades, maior complexidade cognitiva – justamente por isso, a questão enri-
quece o aluno que sobre ela trabalha.
O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões 185

Fonte: Prova de filosofia do Colégio Pedro II – Campus Tijuca II - 2014

Procedimento análogo ao que está exemplificado pelas questões pode ser adota-
do na produção de material de apoio para as aulas. Qualquer gênero textual serve. O
importante é que o docente realiza um aproveitamento integral do texto, fugindo ao
uso meramente pretextual. Integrar texto e comentário, texto, comandos e alternativas
resulta num maior aproveitamento para o aluno, além de contribuir para seu enrique-
cimento pessoal, além das fronteiras da disciplina a que atende.

Professor bom de papo

Quem não teve (ou desejou ter) aquele professor brincalhão, que inventa piadas
ou músicas? Quem não se divertiu com isso? O elemento lúdico no ensino é extrema-
mente produtivo: aprende-se melhor o que se aprende com prazer (e isso independe da
idade do aluno).
Contudo, a festa pode iludir alguns alunos mais jovens, mas, definitivamente,
não substitui a qualidade. Em pouco tempo, a memória se despede de algumas brin-
186 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

cadeiras e, se não houver conteúdo consistente, nada terá sobrado de um momento


aparentemente bem sucedido do ponto de vista pedagógico.
O poder do texto, discussão da qual partimos e para a qual voltamos, não se
restringe à expressão escrita ou graficamente registrada, mas expande-se para a oral.
Aliás, é no texto que reside a fortaleza do bom professor: ele envolve, encanta, apresenta
conteúdos com clareza, é capaz de realizar a metalinguagem do que disse, encontrando
novas maneiras (e mais inteligíveis pelo aluno) para dizer novamente o que precisa ser
aprendido. Ora, é fundamental que o docente saiba não apenas fazer construções frasais
claras, fáceis de acompanhar, mas que tenha uma boa sintaxe, uma boa concordância,
que realize escolhas lexicais precisas e eficientes – tudo isso com o tempero do ineditis-
mo da linguagem oral.
Assim, é necessário desenvolver essa habilidade, ter cuidados com a emissão da
voz, em termos de volume, tonalidade; cuidar do vocabulário técnico e do conversacio-
nal. O professor está sob holofotes e, mesmo que pareça ter paredes, sua sala é de vidro,
sobretudo com o acesso do aluno a tecnologias que facilmente (e nem sempre oficial-
mente) registram o cotidiano. O cuidado com a linguagem ganha importância. Para
os docentes que atuam em educação a distância, ela requer ainda maior investimento
e cuidado: é pela fala do professor que se faz o vínculo do aluno com um programa de
ensino a distância. Há muitos distratores para o aluno que está em casa, livre para se
desconectar no momento em que quiser – só uma fala consistente, organizada, clara,
agradável e carismática pode retê-lo.

Considerações finais

De tudo o que discutimos, destaco a importância de se cuidar da linguagem, não


apenas em termos temáticos e da profundidade do assunto apresentado em sala de aula,
mas em termos do manejo dos recursos linguísticos e extralinguísticos, de modo a per-
seguir a máxima eficácia comunicativa. A ampliação do domínio que o docente tenha
em relação à norma padrão está incluída nisso – o padrão carrega uma suposta neutra-
lidade (considerando que a neutralidade absoluta é utópica), despida de maneirismos
e marcas grupais. Por isso mesmo, é ideal para comunicações que tenham um espectro
amplo de interlocutores, como uma aula. Nesse terreno de relativa neutralidade, a
informação tende a transitar com maior clareza, de modo mais direto, favorecendo a
apresentação de conteúdos.
O mesmo se aplica aos enunciados e aos textos dos materiais didáticos. Não
importa se o docente é de uma área de conhecimento diferente da de humanas – o seu
compromisso com a qualidade deve perpassar a forma pela qual o texto é trabalhado.
Sabemos que o mau desempenho do estudante, sobretudo em provas, está frequen-
O desafio do texto para docentes de todas as disciplinas: construindo questões 187

temente relacionado a problemas na construção dos enunciados – cabe ao professor


cuidar para que isso se transforme.
Usar variados gêneros textuais, contextualizar as questões, buscar verossimilhan-
ça nas cenas que motivam questões e, sobretudo, construir textos e enunciados didáti-
cos que primem pela clareza e pelo bom uso da norma padrão – esses são compromissos
para um docente de qualidade.

Referências

ARAUJO, Lúcia Deborah Ramos de. Linguagens, códigos e tecnologias em perspectiva: o novo paradigma.
In: SIMÕES, Darcilia (Org.). Semiótica, linguística e tecnologias de linguagem: homenagem a
Umberto Eco. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013. pp. 363-385.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília, DF: 2000.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa.
Brasília, DF: 1998.
ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. Tradução de Antonio P. Danesi e Gilson C. C. de Souza.
São Paulo: Perspectiva, 2007. (Estudos, v. 73).
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Portal Ensino Médio Digital. Disponível em: <http://ensinome-
diodigital.fgv.br/bancodequestoes>.
LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1994.
PORTAL SÃO FRANCISCO. Questões e resumos. Disponível em: <www.portalsaofrancisco.com.br>.
ROJO, R. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo: Parábola, 2009.
VAN DIJK, Teun. Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 2000.
——. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução de Rodolfo Ilari. São Paulo:
Contexto, 2013.

Biografia

Lúcia Deborah Ramos de Araujo é professora adjunta de língua portuguesa


da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Colégio Pedro II. Membro
do Grupo de Pesquisas SELEPROT. Professora de língua portuguesa à distância, em
videoaulas, nos sites Descomplica e QG do Enem.
e-mail: luciadeborah@gmail.com
Interações em sala de aula: espaços de
testagem ou de ensino-aprendizagem?

Fernanda Ortale (USP)

Introdução

Profa: Laura, cos’hai fatto sabato scorso?


Laura, o que você fez sábado passado?
Laura: Ho andato al cinema.
Fui ao cinema.
Profa: Sono andata al cinema. E tu, Rita?
Fui ao cinema. (corrige o verbo auxiliar utilizado pela aluna)
Rita: Sono andata a una festa e ho conoscuto un italiano. Questo è verdade.
Fui a uma festa e conheci um italiano. Isso é verdade.
Profa: Hai conosciuto un italiano? Questo è vero?
Conheceu um italiano? Isso é verdade. (corrige o verbo no particípio passado e a palavra ‘verdade’,
pronunciada em português)
E tu? Che hai fatto sabato?
E você? O que fez sábado?
Sílvio: Sono uscito con gli amici.
Saí com os amigos.
Profa: Bravo!
Muito bem!

O excerto acima, extraído da gravação em áudio de uma aula de italiano minis-


trada por uma aluna do último ano do curso de letras, serve para refletir sobre como
se configuram as interações em sala de aula quando o foco é a estrutura e não o signi-
190 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

ficado do que é dito pelos alunos. Embora a professora tenha como mote “falar sobre
o último fim de semana”, o objetivo da bateria de perguntas encadeadas por ela é, na
verdade, testar se os alunos haviam aprendido como usar os verbos no pretérito perfei-
to em italiano de maneira correta. As interações são construídas de forma “engessada”
(Almeida Filho, 1993), pois o conteúdo do que é dito nas respostas parece interessar
muito pouco à professora, que, no turno seguinte à resposta de cada um dos alunos,
faz correções relativas à estrutura da língua (verbo auxiliar, particípio passado e uma
palavra em português).
Embora as perguntas feitas não sejam classificadas como perguntas-teste, ou seja,
perguntas cujo conteúdo das respostas é conhecido pela professora, o tom avaliativo em
relação aos verbos no passado está fortemente presente nas correções realizadas por ela.
Outra questão que corrobora a afirmação sobre a sua postura avaliativa é o fato de a
professora interromper o fluxo conversacional das ações narradas pelos alunos: ela não
pergunta para Laura a qual filme assistiu, nem dá continuidade ao episódio do encontro
de Rita com um italiano. Em ambos os casos, as oportunidades de instaurar uma con-
versa mais próxima às que ocorrem em interações cotidianas, com foco no uso e não na
forma (Widdowson, 1990), foram desperdiçadas pela professora. Isso não quer dizer que
as correções relativas à formação do tempo verbal em tela (passato prossimo) não devessem
ocorrer, mas, certamente, poderiam ser feitas em um segundo momento, não durante a
conversa cujo tema e as respostas dos alunos poderiam, de fato, constituir momentos de
comunicação autêntica, com foco no significado do que é dito.
Em relação aos momentos em que se deflagram conversas espontâneas, o estudo
de Corrias (2015) apontou a importância de propiciar momentos de produção oral não
guiada pelo foco na forma, visto que propiciam a configuração de interações autênticas
e o desenvolvimento da competência interacional dos alunos em língua estrangeira.
Nessa direção, Cadorath e Harris (1998) afirmam que na formação docente fal-
tam reflexões sobre as atividades imprevistas em sala de aula. O estudo das autoras
mostrou que a ênfase no planejamento de aulas, o predomínio do livro didático como
fonte dessas atividades traz, em muitos casos, três consequências indesejáveis: inibição
da interação entre professor e aluno, o esquivar-se das oportunidades de comunicação
genuína e o não aproveitamento de tópicos nas aulas para desenvolver atividades de
conversação.
Vários estudos apontam o discurso de sala de aula como ritualizado, um ritual
no qual as perguntas são aceitas como parte natural desse contexto. No entanto, é de
suma importância que se considere a sala de aula também como espaço de improvisa-
ção, como ocorre em qualquer interação face a face. Erickson e Shultz (1982) advertem
sobre a natureza improvisadora das interações face a face, a emergência, comparando-as
ao jazz e à comedia dell’arte. Ambos os tipos de manifestação artística têm como base
Interações em sala de aula: espaços de testagem ou de ensino-aprendizagem? 191

um tema a partir do qual podem ser criadas muitas variações. Essa natureza improvisa-
dora, segundo os autores, justifica-se pelo fato de que a interação é socioculturalmente
construída a cada momento. Considerar, portanto, o discurso como constituído local-
mente é essencial para caracterizar cada encontro como tendo uma vida própria.
Ainda em relação ao caráter improvisador da sala de aula, Cazden (2001) ca-
racteriza as interações nas aulas como convenções negociadas, como improvisações
espontâneas com base em padrões básicos de interação. O caráter improvisador do
discurso pedagógico também é apontado por Cicurel (1985), que o define como uma
fala improvisada que se constrói a partir de um modelo pré-existente, constituído por
procedimentos de ensino tais como: evocar o que é conhecido, antecipar o que vai ser
conhecido e recapitular. Professor e aluno, portanto, produzem um discurso parcial-
mente ritualizado devido às restrições dos papéis de cada um e à urgência das situações
de sala de aula. Nessa direção, as perguntas feitas pelo professor compõem parte do
esquema interacional compartilhado pelos atores do contexto escolar e, por essa razão,
apresentaremos a discussão sobre o traço perguntador na literatura sobre educação e
sobre ensino de línguas.

O papel controverso das perguntas na sala de aula de língua estrangeira

Na área de educação, o dueto “perguntar e responder” é reconhecido como lugar


comum. Dillon (1988) aponta que o método socrático – a maiêutica2 – pressupunha o
ensino como um processo de descobertas, construído por meio de perguntas e respos-
tas. É fácil constatar que as perguntas estão presentes de forma maciça em livros-textos,
em provas e no discurso do professor em sala de aula, mas as perguntas nesse contexto,
frequentemente, em nada se assemelham ao propósito da maiêutica.
A partir da década de 1980, vários estudos focalizaram o discurso de sala de aula
(Sinclair e Brazil, 1982; Cicurel, 1985; Cullen, 1998; Cazden, 2001; entre outros),
que, a partir de então, intensificaram-se, com outros trabalhos sobre o discurso do
professor e o uso de perguntas. Nas décadas de 1960 e de 1970, os estudos focaliza-
ram, sobretudo, a dimensão cognitiva, procurando investigar a relação entre o uso
das perguntas do professor e a sua importância para o desenvolvimento da aprendiza-
gem. Uma perspectiva interdisciplinar da literatura sobre a pergunta é apresentada por
Dillon (1982, 1988), de modo a oferecer um panorama dos estudos sobre o tema nas
diversas áreas: sociolinguística, psicologia, educação, entre outras.

2
Maiêutica: sf. Nome dado por Sócrates à sua dialética, como a arte de partejar os espíritos, i. é, de fazer o
interlocutor descobrir as verdades que traz em si pelo processo de multiplicar as perguntas a fim de obter,
por indução dos casos particulares e concretos, um conceito geral do objeto. Fonte: www.aulete.com.br.
192 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Há várias profissões para as quais o modo de estruturar as perguntas é essencial:


advogados, jornalistas e psicoterapeutas preocupam-se com a quantidade das perguntas
e sua eficiência para obter respostas válidas e confiáveis. No caso dos psicoterapeutas,
por exemplo, eles tentam fazer, em geral, com que os clientes façam processos de
autodescoberta, solução de problemas, livres associações etc. Nesse campo, estabelecer
o padrão interacional pergunta-resposta pode ser incompatível com o processo
terapêutico (Benjamin, 1978), por isso algumas técnicas substituem as perguntas pelo
silêncio deliberado.
Na área de ensino de línguas, encontramos categorizações do discurso do profes-
sor, como os estudos de Almeida Filho (1992), Cullen (1998) e Elder (2001), nas quais
o ato de fazer perguntas é parte de uma sala de aula ritualizada.
Desde os estudos pioneiros sobre a interação em sala de aula, de Sinclair e
Coulthard (1975) – os quais identificaram a recorrência da tríade iniciação do professor/
resposta do aluno/avaliação do professor –, vários outros debruçaram-se sobre o discurso
oral engendrado na sala de aula. Sinclair e Brazil (1982) retomaram o estudo da tríade
proposta na década anterior e ampliaram a análise sobre essa situação de interação,
caracterizando a fala do professor a partir de suas obrigações profissionais.
Trabalhando no contexto escolar de ensino de língua materna, Cazden (2001)
dedicou-se à análise da importância da linguagem na construção do conhecimento e
verificou o predomínio da tríade iniciação-resposta-avaliação nas aulas tradicionais, em
contraste com outros padrões interacionais identificados nas aulas não tradicionais.
Igualmente importantes são os trabalhos de Cicurel (1985, 1990), que apontam as
perguntas enquanto instrumento do professor para cumprir as obrigações profissionais,
ou seja, para operacionalizar o ensino segundo os propósitos do professor: fazer o aluno
produzir, assegurar a compreensão e avaliar a produção dos alunos.
Embora a literatura reconheça a pergunta como traço específico da sala de aula
e do discurso do professor, é preciso dizer que há um debate a esse respeito. Se, por
um lado, há autores que apontam as funções, tipologias e propósitos das perguntas do
professor; há, por outro lado, trabalhos que questionam sua validade para contribuir na
aprendizagem e defendem, inclusive, a hipótese de que as perguntas do professor pos-
sam ser prejudiciais à interação em sala de aula e ao processo de ensino-aprendizagem.
O principal representante dessa vertente que questiona a validade das perguntas
em sala de aula é Dillon (1979, 1978, 1988), que propõe uma reflexão sobre o mito
existente em relação à importância dada às perguntas do professor e à ideia de que
possam atingir determinados objetivos em sala de aula. O ponto crucial dos textos de
Dillon, apoiado em pesquisas da época, é que essas perguntas podem causar intimida-
ção, influenciar negativamente nos processos cognitivo e afetivo do aluno.
Interações em sala de aula: espaços de testagem ou de ensino-aprendizagem? 193

O autor utiliza vários argumentos para questionar a validade das perguntas


(Dillon, 1978). Primeiramente, afirma que em interações cotidianas as perguntas, em
geral, exprimem um pedido de informação e que, no entanto, as do professor, muitas
vezes, não têm essa finalidade, mas apenas testam a compreensão ou o conhecimento.
Para Dillon, a natureza das perguntas-teste influencia negativamente a qualidade da in-
teração, visto que dar uma resposta para alguém que já a conhece não é motivador. O
autor aponta pesquisas que comparam o efeito inibidor das perguntas em comparação
com o uso de outras técnicas não questionadoras e, em artigo posterior (Dillon, 1979),
propõe as seguintes alternativas ao uso de perguntas:

• uso de orações declarativas;


• reformulações do professor em relação ao enunciado do aluno;
• uso de perguntas indiretas;
• uso de orações imperativas;
• convite para que o aluno faça perguntas;
• o silêncio deliberado.

Uma vertente ponderada quanto à validade das perguntas é representada por


Napell (1978) e Hollingsworth (1982) que, essencialmente, defendem seu uso em sala
de aula desde que sejam elaboradas de maneira apropriada. Embora não esclareça exa-
tamente o que seria uma pergunta apropriada, Hollingsworth define as não apropriadas
como sendo aquelas que não estimulam a reflexão, que requerem respostas objetivas
consideradas certas ou erradas e as que exigem memorização por parte do aluno. Da
mesma maneira, Napell acredita que o professor deve evitar perguntas que subestimem
a capacidade dos alunos e, nessa perspectiva, um tipo de pergunta a ser evitado parece
ser a pergunta-teste.
Hollingsworth parte do princípio de que as perguntas podem resultar em um au-
mento da aprendizagem do aluno, mas relativiza o seu papel ao lembrar que há outros
fatores importantes no processo, tais como: a atmosfera de sala de aula estabelecida pelo
professor e o eventual medo do aluno de participar ou contradizer o professor. Além de
alertar para a influência de fatores psicológicos, seu texto aponta a importância de dar
tempo de resposta ao aluno, afirmando que apressar para que ele responda à pergunta
seria incompatível com o propósito de estimular processos cognitivos e, nesse sentido,
o “tempo de espera” é crucial.
Outro tipo de reflexão necessária refere-se à quantidade de perguntas em sala de
aula: há uma grande diferença entre o número de perguntas feitas pelo professor e pelo
aluno. Susskind (1979) observou, em contexto de ensino de língua materna, que uma
pergunta ao mês era feita por cada aluno. A autora aponta dados estatísticos que mos-
194 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

tram que quanto mais perguntas o professor fizer, menos perguntas os alunos farão.
Essa observação contrasta com a noção pedagógica de que as perguntas do professor
servem como estímulo para que os alunos participem e construam conhecimento.
Os estudos sobre as perguntas no discurso de sala de aula adquirem uma di-
mensão mais completa com os estudos sobre a tipologia das perguntas, tema que será
apresentado no próximo item.

Tipologia das perguntas

Um tipo de pergunta facilmente encontrada nas salas de aula e nos livros didáticos
é a pergunta-teste, apontada na literatura por Long e Sato (1983) e por Cazden (2001).
A pergunta-teste, como o próprio nome indica, tem o objetivo de testar o conhecimento
do aluno e, portanto, as respostas são previamente conhecidas pelo professor. Esse tipo
de pergunta contrasta totalmente com as perguntas referenciais, predominantemente
presentes em nosso cotidiano fora das salas de aula, cujo objetivo é obter informações
que o interlocutor não conhece.
Kleiman (1992) estudou a interação em duas aulas de língua materna, nas quais
os professores tratavam de um mesmo tópico: um deles centrava seu trabalho total-
mente no livro didático; o outro, não. A autora concluiu que, na aula centrada no livro
didático, os alunos parecem recusar-se a fazer perguntas e quem as faz não é o professor,
mas o próprio livro, hipótese que pode justificar a recusa dos alunos em interagir. Por
sua vez, na aula centrada no professor, os alunos perguntam mais e o professor conse-
gue passar do modo de controle para o de cooperação com mais facilidade. Ainda nesse
trabalho, a autora menciona a existência das perguntas de monitoração, cuja função é
apenas controlar a atenção e a compreensão do aluno.
Na área de educação, menciona-se, com frequência, a tipologia das perguntas
propostas por Bloom. Essa obra condensa as ideias de um grupo de pesquisadores que
decidiram elaborar um sistema de classificação de objetivos educacionais que estimu-
lasse “a pesquisa sobre avaliação e sobre as relações entre educação e avaliação” (Bloom
et al., 1976, p. 4).
A taxonomia do domínio cognitivo resultou em seis classes: conhecimento, com-
preensão, aplicação, análise, síntese e avaliação, que se apresentam em ordem hierár-
quica, isto é, dos mais simples aos mais complexos. A taxonomia tem como base a ideia
de que um comportamento simples e particular, ao integrar-se com outros, igualmente
simples, se torna complexo (Bloom et al., 1976, p. 16).
No primeiro nível, temos as perguntas factuais, que evocam fatos específicos,
informações, conceitos ou teorias. O segundo nível de perguntas refere-se à compre-
ensão, à capacidade de o aluno explicar o sentido do que aprendeu. As perguntas de
Interações em sala de aula: espaços de testagem ou de ensino-aprendizagem? 195

compreensão visam a explorar o significado das ações, suas consequências ou efeitos


por meio de descrição e classificação. O terceiro nível diz respeito à aplicação do
conhecimento, de regras ou princípios, à demonstração ou à dramatização. Pode-se
avaliar este nível com perguntas de aplicação, que enfatizam estratégias e formas de
trabalho em sala de aula. As perguntas de análise e de síntese são pouco utilizadas no
cotidiano escolar de aprendizagem, mas podem se tornar ferramentas importantes
para o professor incentivar o raciocínio dos seus alunos. Finalmente, no último ní-
vel, de avaliação, temos questões que se relacionam às ações de examinar, defender e
argumentar a partir de critérios claramente definidos. Uma síntese da taxonomia é
apresentada a seguir:

Tipo de pergunta Características

Evocam fatos específicos e estão relacionadas à capacidade de


Perguntas factuais
identificar, reconhecer, reproduzir, memorizar etc.
Perguntas de compreensão Solicitam ao aluno explicações, descrições, interpretações etc.
Perguntas de aplicação Exigem aplicação de regras ou princípios
Perguntas de análise Relacionam-se às ações de analisar, calcular, comparar, questionar etc.

Levam o aluno a compor, criar, desenvolver, modificar, or-


Perguntas de síntese
ganizar, planejar etc.

Relacionam-se à capacidade de avaliar, criticar, defender ideias


Perguntas de avaliação
etc.

Na década de 2000, foram publicadas duas obras que apresentam propostas de


reestruturação da clássica taxonomia de Bloom: Anderson e Krathwohl (2001) e Mar-
zano e Kendall (2007). A primeira é uma resposta às críticas de que a primeira taxono-
mia é uma simplificação da natureza do pensamento e de suas relações com a aprendi-
zagem. Na proposta de Anderson e Krathwohl (2001), a classificação passa a ter duas
dimensões. A primeira é a do conhecimento, com quatro níveis: conhecimento factual,
conceitual, procedural e meta-cognitivo; e a segunda refere-se ao processo cognitivo,
com seis níveis: lembrar, entender, aplicar, analisar, avaliar e criar.
A proposta de Marzano e Kendall, assim como a de Anderson e Krathwohl, apre-
senta um modelo bidimensional, mas com a diferença que os níveis de compreensão
não são hierárquicos, e sim inter-relacionados de acordo com a tarefa a ser executada.
Essa nova proposta apresenta um modelo de compreensão do processo de aprendiza-
gem do aluno mais coerente com os estudos mais recentes da área e mostra-se uma
ferramenta promissora de pesquisa.
196 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

Marcuschi (2005, p. 54) também propõe uma taxonomia das perguntas, produ-
zida especialmente a partir de análises de materiais didáticos para ensino de português
como língua materna. O autor apresenta a seguinte tipologia das perguntas presentes
nos livros didáticos:

Tipo de pergunta Características


A cor do cavalo de Napoleão São perguntas auto-respondidas.
Requerem apenas atividades mecânicas como copiar, transcrever, assinalar, apon-
Cópias
tar etc.
Inferenciais Exigem não apenas conhecimentos textuais, mas contextuais, enciclopédicos etc.
Levam em conta o texto como um todo e envolve processos inferenciais comple-
Globais
xos.
Subjetivas São perguntas cujas respostas ficam por conta das opiniões do aluno.
Vale-tudo Admitem qualquer resposta.
Objetivas Exigem apenas decodificação, pois a resposta encontra-se objetivamente no texto.
Impossíveis Exigem conhecimentos enciclopédicos externos ao texto.
Metalinguísticas Referem-se a estruturas linguísticas ou do texto.

Tanto a tipologia de Marcuschi quanto a proposta por Bloom, embora não se re-
firam especificamente ao contexto de ensino de língua estrangeira, nos trazem subsídios
para repensar a validade das perguntas que compõem a fala do professor, as perguntas
presentes nas atividades do livro didático e, em especial, a construção das interações em
sala de aula.

Considerações finais

Em consonância com o paradigma reflexivo na formação de professores (Schön,


1983, 1995; Zeichner, 1993; Pimenta e Ghedin, 2002; Perrenoud, 2002; Farrell,
2004; Marzano, 2012), acreditamos na necessidade de inserir, durante a formação ini-
cial, reflexões sobre a linguagem de sala de aula e, em especial, sobre o papel das per-
guntas feitas pelo professor.
Em relação à formação inicial, Magalhães (1998) apontou deficiências que desde
o final da década de 1990 ainda parecem presentes. Para a autora, há uma dissociação
entre o conhecimento formal e a prática de sala de aula, em que primeiro ocorre trans-
missão de conhecimentos descontextualizados que os alunos devem aprender e, em
um segundo momento, usam-se esses conhecimentos na solução de problemas. Em
Interações em sala de aula: espaços de testagem ou de ensino-aprendizagem? 197

qualquer um dos casos, ensinar-aprender é entendido como transmissão e devolução


de conhecimento formal.
Essa visão de ensino-aprendizagem, que dissocia teoria e prática, dificulta ao
professor a compreensão e reflexão sobre seu próprio fazer e caracteriza a formação
num sentido “dogmático”, conforme denomina Moita Lopes (1996). Segundo o pes-
quisador, a formação do professor de línguas que predomina nas universidades inclui
aspectos relativos à competência linguística, à competência literária e à competência de
ensino, mas esse profissional se ressente de uma formação teórico-crítica que lhe permita
fazer escolhas sobre o quê, como e por que ensinar. Sua proposta é que os alunos-futu-
ros professores se familiarizem com as tradições de investigação em linguística aplicada,
notadamente as práticas voltadas para a sala de aula, como a pesquisa-ação.
Uma das maneiras de inserir a reflexão como ponto crucial da formação inicial
é focalizar as aulas ministradas pelos próprios alunos-professores e, em especial, o dis-
curso do professor.
No caso do excerto citado no início deste artigo, vimos que o modelo pergunta
do professor-resposta do aluno, com foco na estrutura linguística (uso do passato prossimo)
e não no significado do que é dito pelo aprendiz, favorece a construção de interações
rigidamente guiadas, nas quais o professor busca a participação do aprendiz por meio
de perguntas cujo foco é a precisão gramatical das respostas.
Embora tenhamos apresentado uma discussão sobre a tipologia das perguntas na
área educacional e sua importância para analisar as interações nesse contexto, os dados
apresentados apontam que a atitude do professor diante do conteúdo das respostas dos
alunos é crucial na configuração das interações em sala de aula.
O conceito de pergunta referencial, apontado neste trabalho em oposição ao de
pergunta-teste, favorece maiores possibilidades de interações genuínas de comunicação
(Widdowson, 1990) apenas quando (e se) o objetivo do professor não estiver centrado
na testagem do conhecimento de regras linguísticas ou de informações previamente
conhecidas.
Concluímos nossas reflexões lembrando o paradoxo apontado por Dillon (1988,
p. 115) acerca dos padrões interacionais engendrados em contexto escolar, que consiste
no fato de que a maioria das perguntas na escola está sendo veiculada por professores,
livros didáticos e provas, enquanto os alunos, protagonistas na busca pelo conhecimen-
to, não são os autores da maioria dessas perguntas feitas em sala de aula.
198 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

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Biografia

Fernanda Ortale concluiu o mestrado e o doutorado em linguística aplicada


pela Unicamp. É professora da área de língua e literatura italiana da Universidade de
São Paulo e suas pesquisas focalizam a formação de professores, principalmente, as
contribuições da pedagogia pós-método para a formação e prática do docente de língua
estrangeira.
e-mail: ortale@usp.br
Licenciaturas: caminhos... soluções?

Carmem Praxedes (UERJ)


Tania Maria de Castro Carvalho Netto (UERJ)

Formar professores é um dos principais desafios que uma nação possa ter. Certa
vez, ao conversarmos com uma profissional de saúde, ela nos disse que considerava a
Educação mais importante do que a saúde. Colocamo-nos a olhá-la profundamente sem
nada dizer e ela, por sua vez, continuou: “Considero isso, pois aqueles que têm Educação
conseguem se cuidar melhor, preservando a própria saúde e a dos outros.” Gostamos mui-
to do que ouvimos, principalmente por ter sido proferido por um não professor, por um
profissional que não havia sido formado para ensinar, mas cuja compreensão sistêmica do
mundo o permitia ver na Educação o princípio da transformação social.
Nunca tivemos dúvidas de que a Educação, em sentido pleno, seja necessária
para o desenvolvimento humano, nem mesmo de que todos nós em todos os dias das
nossas vidas sejamos corresponsáveis por ela, de que ela seja a melhor base em que uma
sociedade possa se assentar. Por outro lado, sabemos que o termo Educação e as práticas
educacionais sofrem a influência e se delineiam conforme a cultura, a história, a políti-
ca, enfim, que a Educação esteja assentada nas dinâmicas sociais.
Com tamanha complexidade, não poderíamos esperar que a Educação, enquanto
um processo inerente à vida do homem, seja estática, finalizada ou desmotivada. Ela é
encaminhada para atender os interesses de um grupo ou de grupos sociais dominantes,
via de regra, mas ela precisa, muito diferentemente, se encaminhar para atender aos
interesses de toda a sociedade e ainda fundamentar-se em princípios de preservação,
mudança e evolução necessários não apenas para a espécie humana, mas para todos os
seres. Obviamente que se colocar no lugar de outros é um desafio repleto de limitações,
no entanto, devemos levar em conta os conhecimentos acumulados e não tornarmos
as limitações impedimentos para as tentativas de mudanças, além de estarmos sempre
202 Licenciatura sem fronteiras: semiosferas em transformação

muito atentos aos mais sensíveis – seres que por tantas vezes no largo da História foram
estigmatizados. Despir-se de rótulos, verdades absolutas, preconceitos e interesses es-
tritos é mais do que preciso e o universo conclama por isso. Nada mais é isolado, nem
assim o deve ser.
A Educação é um ato de vida, de sobrevivência, de subsistência, de bem-viver,
de convivência. E a formação de professores, através dos cursos de licenciatura, precisa
se consolidar nos diversos ambientes em que a vida se faça presente. A sala de aula,
cujos formatos não podem ser mais os mesmos, ainda precisa se revitalizar e se estender
aos jardins de academus; os estudantes e estagiários precisam conhecer e reconhecer
as diversas realidades do nosso país e dos países da América Latina, antes mesmo de
buscarmos os modelos de países e continentes mais distantes. Para tanto, os currículos
das licenciaturas precisam estar organizados de modo a contemplar a formação da área
foco – área de ingresso – com a formação docente, articulando o conhecimento e seu
relato teórico com ações e interações práticas, que possibilitem ao jovem licenciado
atuar nas escolas públicas, privadas, religiosas ou laicas de seu município, estado e país,
colocando-se criticamente em relação às diversas realidades, tendo em vista modificá-
-las para o bem de todos.
Os estudantes das licenciaturas precisam ser expostos a ações e atividades que
estimulem as suas múltiplas habilidades, realçando aquelas em que já são talentosos e
desenvolvendo aquelas que, porventura, estejam em estado latente. Eles precisam ainda
ser desafiados a ocupar os espaços de agentes, ao invés de passarem horas e horas ou-
vindo, na qualidade de pacientes. Precisam ser atores e também autores nesse processo.
A mudança das licenciaturas na UERJ é muito mais do que uma obrigação do
fazer, uma imposição legal, ela é, sobretudo, uma necessidade há muito conclamada
pelos nossos jovens estudantes. E eles têm muita razão... Uma breve observação de al-
guns currículos nos faz notar que os conteúdos da formação básica não dialogam com
os da formação docente, deixando sempre para mais tarde a construção de uma visão de
mundo a partir do professor. Qual é a restrição para que um aspirante a professor seja
estimulado a ver conhecimentos, processos e produtos científicos como algo passível de
ser ensinado? Não louvamos uma separação entre carreiras científicas e as de formação
docente. A questão que se impõe, a nosso ver, não é essa, mas a de saber articular, na
medida certa. E esse é o desafio posto, diariamente, a todos nós atuantes nas licenciatu-
ras, ciência e docência, ciências e o seu ensino. Uma das competências do docente é a
de remover o peso do discurso científico, de modo a integrá-lo ao cotidiano da vida dos
estudantes e, para isso, um dos percursos possíveis é o de buscar reconstruir os meios e
processos da descoberta, até mesmo quando ela se instaurou na complexa observação
de uma realidade específica, como a da queda da maçã, por Einstein.
Licenciaturas: caminhos... soluções? 203

Entendemos, pois, que Educação prevê fundamentação filosófica clara dos prin-
cípios e valores que elegem essa ou aquela matriz teórica, conteúdos básicos fundadores
e articulados com os da formação docente, espaços intracurriculares para as escolhas
particulares dos estudantes, tanto práticas quanto teóricas e, ainda, campos de estágios
variados, que permitam vivenciar e dialogar, criticamente, teoria e práxis ao longo de
sua formação discente. Por fim, para nós a formação docente precisa propiciar aos es-
tudantes uma flexível mas ainda sólida formação em que os saberes sejam transmitidos
às futuras gerações com o melhor sabor possível, através de processos de descobertas e
desafios propostos à reflexão de todos os envolvidos nesse caminhar de formação.

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