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A CONCEPÇÃO DE CLASSES SOCIAIS E SUA

RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO: A


CONTRIBUIÇÃO DE BOURDIEU

MATHEUS SILVEIRA DE SOUZA

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS


HUMANAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

2018
RESUMO

O artigo aborda as contribuições de Pierre Bourdieu para a discussão sobre classes sociais
e educação. Para tanto, em um primeiro momento discorremos sobre os conceitos de
habitus, capital cultural e campos. Após a elucidação desses conceitos, é analisada a teoria
de Bourdieu sobre o sistema de ensino e as relações deste com a estratificação social, a
herança familiar e as diferentes estratégias de investimento escolar. Por fim, apontamos
os limites da teoria bourdiesiana sobre educação e as críticas construídas sobre a sua teoria
que buscam avançar na análise de classes sociais e educação.
Palavras-chave: Educação e classes sociais; capital cultural; Bourdieu; desempenho
escolar

INTRODUÇÃO

A distribuição desigual de recursos materiais e simbólicos em uma sociedade esteve


presente em diferentes períodos históricos e em sociedades com diferentes estruturas
organizacionais, sendo que os argumentos para a sua justificação se alteraram no decorrer
do tempo, passando por justificações de ordem moral, religiosa, natural e social. Dessa
forma, na Grécia Antiga a diferença entre homens livres e escravos era legitimada com
base em argumentos naturais, afirmando que havia, por natureza, homens que nasciam
livres e homens que nasciam escravos, bem como que a suposta superioridade dos homens
em relação às mulheres e a condição de submissão destas últimas em relação àqueles eram
naturais e pré-estabelecidas.1 Na Índia, onde a sociedade é dividida em castas, sendo as
castas inferiores impuras, o argumento justificador da estratificação social é de ordem
religiosa, composta pela noção de Kharma e Dharma. Nas sociedades capitalistas as
relações deixam de ser naturais para se tornarem predominantemente sociais, vinculadas
à ideia de relações contratuais garantidas pelo direito positivo. Assim, os argumentos para
a justificação das desigualdades não são nem naturais nem religiosos, mas sim sociais,
conectados à noção de meritocracia e autonomia individual.

Essa estratificação social, que consolida uma desigual distribuição de recursos – materiais
e simbólicos – entre os indivíduos de uma mesma sociedade encontra-se imbrincada em
outro conceito, qual seja, o de classes sociais. O conceito de classes sociais recebeu

1
CROMPTON, R. Class and Stratification. Cambridge; Oxford, Polity Press, 2003
diferentes olhares teóricos durante o tempo. Podemos apontar, pelo menos, quatro
correntes teóricas que se debruçaram sobre esse conceito e lançaram mão de diferentes
construções para explica-lo. Dessa forma, destacamos a abordagem2 de Marx3, dos
neoweberianos4, dos neomarxistas5 e de Pierre Bourdieu6.

Nessa perspectiva, realizaremos, em um primeiro momento, uma análise de classes


sociais, dando enfoque à abordagem realizada por Bourdieu. Para melhor compreensão
do pensamento bourdiesiano, discorreremos sobre o conceito de habitus, capital cultural
e campos.

Em outro momento, guardaremos foco ao tema da educação e sua relação com as classes
sociais, discutindo a construção do objeto de análise a partir da origem social, estratégias
de investimento escolar, destino de classe e desempenho escolar. Nesse sentido, o
conceito de capital cultural exerce relevante influência para a explicação de distintos
desempenhos no ensino quando consideramos o campo do ambiente escolar.

Dessa forma, podemos nos perguntar se a educação é capaz de diminuir as desigualdades


de classe e conferir emancipação aos indivíduos ou se servirá, em suma, como um
mecanismo de reprodução da própria estrutura de classes e legitimação das desigualdades.

Por fim, abordamos os limites da teoria sociológica de Bourdieu sobre educação,


considerando pesquisas recentes que tentam mobilizar indicadores parecidos e avançar
na análise do tema.

1 - OS DIFERENTES OLHARES SOBRE AS CLASSES SOCIAIS

Karl Marx e Engels, na abertura do Manifesto do Partido Comunista, afirmam que em


diversas épocas da história podemos encontrar, em diferentes sociedades, a existência de
classes sociais distintas. Dessa forma, “a história de todas as sociedades até hoje
existentes é a história das lutas de classe”, antagonizada por “homens livres e escravos,
patrícios e plebeus, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em

2
Destacamos que as referências apontadas dos neoweberianos e dos neomarxistas não representam um
esgotamento dos autores dessa corrente, mas sim, o sublinhamento dos seus maiores expoentes.
3
MARX, K. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. 2. ed. Lisboa: Avante, 1984.
4
GOLDTHORPE, J. “Social Class and the Differentiation of Employment Contracts”. In: _____. On
Sociology. Stanford, Stanford University Press, 2007.
5
WRIGHT, E. O. “Class Analysis”. In: _____. Class Counts: Comparative Studies in Class Analysis.
Cambridge, Cambridge University Press, 1997
6
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
resumo, opressores e oprimidos”7. Para Marx, classes sociais são definidas de acordo com
a localização dos indivíduos dentro das relações de produção. Assim, haveria três grandes
classes presentes na sociedade, quais sejam, capitalistas, proprietários fundiários e
proletariado8. De acordo com Marx, o poder estatal é inseparável do poder econômico e
a sociedade capitalista permite a existência de uma igualdade política ao lado de uma
desigualdade material, como coexistência necessária para o modo de produção capitalista.

Goldthorpe, um dos maiores representantes dos neoweberianos, analisa as classes de


acordo com os diferentes tipos de contratos de trabalho existentes, sendo que o contrato
de trabalho estabelecido entre empregado e empregador determinará diferentes classes
sociais9. Nessa perspectiva, os contratos podem ser de dois tipos: contratos de trabalho e
relações de serviço, sendo que o primeiro envolve trabalhadores manuais e não manuais,
pouco qualificados e o último envolve cargos de gerência e trabalhadores com alta
qualificação.

Bourdieu confere uma ampliação à noção de classes sociais por não considerar apenas
critérios relacionados à posição dos indivíduos dentro das relações de produção, suas
remunerações, ou ainda, os contratos de trabalho existentes entre empregado e
empregador. Assim, ao inserir os conceitos de capital cultural e capital social, Bourdieu
apresenta outras formas de dominação que não são determinadas exclusivamente pela
dimensão econômica das relações sociais.

Dessa forma, o sociólogo francês afirma que a classe social não é definida por uma
propriedade específica, como a profissão ou a renda, nem mesmo pela soma de diversas
propriedades (sexo, idade, origem social, raça10, etc), ou ainda pela cadeia de várias
propriedades ordenadas por uma propriedade fundamental – posição nas relações de
produção – em uma relação de causa e efeito.

Em outro sentido, para Pierre Bourdieu a classe social é definida “pela estrutura das
relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma
delas e ao efeito que ela exerce sobre as práticas”. Em outras palavras, a classe não é
definida por uma característica social específica, nem mesmo pelo amontoado de diversas

7
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, São Paulo: Global, 2006
8
HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 97-123
9
GOLDTHORPE, J. “Social Class and the Differentiation of Employment Contracts”. In: _____. On
Sociology. Stanford, Stanford University Press, 2007.
10
De acordo com Bourdieu, características como raça e gênero são secundárias para a análise, embora nesta
exerçam efeitos, e sempre são mediadas pela classe social do indivíduo.
propriedades sociais, mas sim pelas relações estabelecidas entre as diferentes
características (propriedades) sociais existentes.

Essa afirmação acima tem relação direta com o fato de Bourdieu desenvolver um
pensamento relacional, que não considera as características sociais em um sentido
substancialista, que guarda um valor em si mesmo, mas sim na relação que essas
características possuem com outras classificações. Dessa forma, o objeto de análise está
em constante movimento e relação com outros campos, bem como os indivíduos, além de
serem classificados, são também classificantes, ou seja, também produzem classificações.

É relevante apontarmos que o sociólogo francês nega a visão marxista que atribui um
ajuste quase exato entre classe e ação coletiva, como se os integrantes de uma mesma
classe social agissem coletivamente, da mesma maneira, sempre em busca de um mesmo
objetivo. Para Bourdieu não há, também, uma conexão direta entre classes sociais e
consciência de classe, enquanto consciência plena, incompleta ou falsa do sistema de
exploração e dos interesses decorrentes deste.11 O que poderia ocorrer, em verdade, é uma
ação coletiva de classe em decorrência de um sujeito que representasse os interesses
daquela classe coletivamente. Dessa forma, o que conectaria a posição objetiva de classe
às práticas dos agentes não seria a consciência de classe, mas sim o habitus.

Para obter uma melhor compreensão do pensamento bourdiesiano sobre classes sociais,
é necessária a elucidação de alguns conceitos chaves do autor. Referimo-nos aos
conceitos de habitus, campo e capitais.

2 - PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES SOBRE HABITUS

Bourdieu refere-se ao habitus como “princípio unificador e gerador das práticas”,12


“como forma incorporada da condição de classe e dos condicionamentos que ela impõe”.
Em outras palavras, habitus seria “o produto da interiorização das estruturas objetivas”,
que confere aos indivíduos condições homogêneas de existência, o compartilhamento de
práticas semelhantes, bem como uma certa homogeneidade de condicionamentos sociais.
Nesse sentido, as estruturas sociais objetivas inserem-se nos indivíduos como disposições
mentais, por meio do habitus, de modo que ao mesmo tempo que o habitus gera práticas
classificáveis, ele engendra determinada capacidade de classificar, ou seja, é uma

11
SALLUM JR., Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova [online]. 2005, n.65, pp.11-42.
12
BOURDIEU. A Distinção
estrutura estruturada e estruturante13. A visão que os indivíduos terão sobre o espaço
social será diferente, variando de acordo com a posição que tais indivíduos ocupam nessa
estrutura. Nas palavras de Bourdieu:

“o habitus é, com efeito, princípio gerador de práticas objetivamente


classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação (principium
divisionis) de tais práticas. Na relação entre as duas capacidades que definem o
habitus, ou seja, a capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da
capacidade de diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é
que se constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de
vida14”
A partir desse conceito podemos afirmar, por exemplo, que o gosto – enquanto sistema
de esquemas de percepção e apreciação - que para o senso comum “não se discute”,
chegando-se a afirmar que “cada qual tem o seu”, é muito menos aleatório do que se
costuma pensar. Assim, o gosto por filmes, jogos, músicas, vestimentas, decoração, artes
plásticas, teatro, livros, etc tem um reflexo e uma influência direta do habitus de classe
que o indivíduo compartilha. Considerando que o habitus é um conjunto pré-reflexivo de
disposições para agir, esse seria caracterizado mais como um inconsciente de classe do
que como uma consciência de classe.15

Vale fazer uma ressalva, ainda, sobre a abordagem dos conceitos bourdiesianos. Tais
conceitos, como habitus, capital cultural, capital social, entre outros, devem ser pensados
de forma relacional e não substancialista, enquanto definições estáticas que valem para
toda e qualquer situação e possuem um valor intrínseco. Assim, o contínuo movimento
da sociedade e do pensamento não permite a definição estática desses conceitos, de modo
que esses devem ser pensados na relação que possuem com outros conceitos, bem como
visualizados de acordo com o campo social que estão relacionados. O olhar que Bourdieu
constrói para analisar a realidade auxilia na compreensão de seu pensamento relacional,
conforme iremos expor abaixo.

Para a apreensão da realidade enquanto objeto de análise, Bourdieu critica duas


concepções de visualização do mundo social, denominadas objetivista e subjetivista (ou
marginalistas). A primeira afirma a existência de uma realidade objetiva independente
das consciências individuais, como um registro passivo do mundo social, um registro

13
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
14
BOURDIEU. Op. Cit
15
SALLUM JR., Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova [online]. 2005, n.65, pp.11-42.
objetivo da distribuição de indicadores materiais de diferentes tipos de capitais16. A
segunda, por sua vez, tem como objeto de estudo não a realidade, mas as interpretações
que os indivíduos fazem dela, considerando que a realidade nada mais é do que a
representação produzida pelos agentes. Nessa perspectiva subjetivista, a realidade seria
apenas o produto de estruturas mentais e linguísticas.17 Dito de outro modo, os
subjetivistas afirmam que deveríamos estudar tão somente o que os indivíduos pensam
sobre a realidade, como uma espécie de explicação das explicações. Assim, deveríamos
apreender o mundo social a partir das operações cognitivas dos agentes sobre a realidade.
Em oposição, os objetivistas acreditam na análise da realidade social a partir de suas
estruturas e de seus dados objetivos, como se os próprios indivíduos que pertencem a tais
estruturas não influenciassem na construção, preservação ou transformação de tais
estruturas, e ainda, como se os agentes reagissem mecanicamente a estímulos mecânicos
oriundos de tais contextos sociais.

Pierre Bourdieu, longe de desconsiderar as duas concepções de análise, engendra um


olhar que, de alguma forma, sintoniza e complementa ambas. Assim, ainda que haja
estruturas cognitivas utilizadas pelos agentes para conhecer a realidade, tais estruturas
não são categorias universais, como queriam os idealistas, mas sim estruturas sociais
incorporadas, ou seja, estruturas externas aos indivíduos que são internalizadas por esses
como esquemas mentais de pensamento e expressão18. Tais esquemas são “constituídos
no decorrer da história coletiva” e “adquiridos no decorrer da história individual,
funcionando no estado prático e para a prática (e não para fins de puro conhecimento).”

Dessa forma, é necessário realizar a apreensão tanto da realidade externa ao indivíduo, a


partir das suas objetivações, quanto a realidade interna dos agentes, enquanto esquemas
sociais internalizados para a interpretação da realidade. Portanto, as representações
sociais dos agentes também são produto das estruturas sociais e do ponto ocupado pelos
sujeitos no espaço social.

16
BOURDIEU, Pierre. Capital simbólico e classes sociais. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2013, n.96,
pp.105-115.
17
BOURDIEU. Op. Cit.
18
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
3 - CAPITAL SOCIAL E CAPITAL CULTURAL: OUTRAS FORMAS DE
DOMINAÇÃO SOCIAL

A inserção das noções de capital cultural e capital social na análise de classes permite
uma ampliação na investigação da realidade, tendo em vista que desvela outras formas de
dominação social que não estão associadas tão somente ao capital econômico. Dessa
forma, a cultura é entendida como um recurso que pode ser acumulado, transmitido e
monopolizado19, servindo como processo de dominação de classes ou frações de classe
sobre outras. Para fazer um paralelo, não é só o dinheiro que pode ser transmitido e
acumulado, como forma de ampliação do capital econômico, mas a cultura – ou a
educação - também pode ser acumulada e transmitida de um agente a outro, enquanto
forma de ampliação do capital cultural. Desse modo, a luta de classes não seria apenas
uma disputa pela apropriação do capital econômico e os seus meios de produção, mas
também pela apropriação do capital cultural, bem como pelo poder de classificar uma
cultura como legítima e valiosa a ponto de ser disputada. Uma das primeiras mobilizações
da noção de capital cultural é feita por Bourdieu em seus estudos sobre o sistema
educacional, em que o autor explica o sucesso e destaque de algumas crianças na escola
em virtude do contato precoce que tiveram com a cultura legítima no ambiente familiar20.
Entretanto, apenas na década de 70, com o livro A Distinção, que Bourdieu mobiliza o
conceito de capital cultural para além do campo educacional, relacionando-o com estilos
de vida de diferentes classes, competências culturais, gostos, participação cultural, entre
outros fatores.21

No intento de ilustrar o conceito apresentado, poderíamos apontar o gosto por música


clássica, por obras de arte, a apreciação da literatura, os conhecimentos adquiridos na
escola, todos como capitais culturais adquiridos de maneiras distintas, seja por meio de
instituições formais, como as escolas, seja em espaços de socialização primárias, como a
família. Não podemos ignorar, todavia, que o capital cultural serve como forma de
dominação na sociedade capitalista em virtude da existência de uma cultura legítima, que
só é acessada por algumas classes e frações de classe, e ainda, que os instrumentos para
a apreciação da cultura legítima são desigualmente distribuídos entre os indivíduos da
sociedade. Para Bourdieu, as classes dominadas não interferem nas lutas simbólicas pelas

19
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. (2011). Updating cultural capital theory: a discussion based on studies in
Denmark and in Britain. Poetics, Volume 39, Issue 6, p. 566-580.
20
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. Op. Cit.
21
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. Op. Cit.
disputas dos bens culturais e pela definição de quais bens serão legítimos. Em outro
sentido, ocupam uma referência passiva, marcando o contraste indesejável22.

O capital cultural pode existir em três formas, a saber, incorporado, objetivado e


institucionalizado. O primeiro refere-se à interiorização pelo sujeito de processos de
ensino e aprendizagem, constituindo-se como parte integrante do agente (ex: habilidades
linguísticas, esquemas mentais, postura corporal, preferências estéticas). O capital
cultural institucionalizado seria a objetivação do capital cultural incorporado por meio de
títulos garantidos legalmente23. Assim, a obtenção de um diploma de graduação,
outorgado por uma universidade, é o reconhecimento institucional de um capital cultural
que determinada pessoa adquire. Por último, o capital cultural objetivado é materialmente
transferível e relaciona-se com os instrumentos necessários para a apreciação da cultura
legítima. Esse capital objetivado pode ser apropriado tanto materialmente quanto
simbolicamente, como a compra de um instrumento musical, de livros ou de obras de arte.

Recentemente foi realizada uma análise sobre a existência de outro tipo de capital
cultural, que estaria dentro do capital incorporado, qual seja, o capital informacional. Esse
capital é caracterizado pelo conhecimento que os indivíduos possuem sobre o sistema de
ensino e os percursos escolares. Tais conhecimentos seriam valiosos ao passo que
serviriam de trunfo para o investimento em estratégias educacionais24. Embora essa
variação de capital cultural tenha sido apontada sinteticamente por Bourdieu, sua
verticalização só ocorreu nos últimos tempos.

O capital social é caracterizado, por sua vez, como o conjunto de relacionamentos sociais
que cada um pode utilizar para atingir seus objetivos. Dito de outra forma, a capacidade
do indivíduo de mobilizar uma rede de contatos e influenciar um elevado número de
pessoas. Já o capital simbólico é caracterizado pelo modo como o indivíduo, portador de
vários recursos, é percebido pelos outros agentes sociais.25

Vale destacarmos que a noção de capital cultural não é um conceito universal e estático,
mas sim relativo e mutável com o passar do tempo. Desse modo, uma prática que é

22
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
23
NEVES; PRONKO; MENDONÇA. Capital Cultural. In: Dicionário de Educação Profissional de saúde.
Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009.
24
ALVES, Maria Teresa Gonzaga; NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins
and RESENDE, Tânia de Freitas. Fatores familiares e desempenho escolar: uma abordagem
multidimensional. Dados [online]. 2013, vol.56, n.3, pp.571-603
25
BERTONCELO, Op. Cit.
considerada valorizada, como cultura legítima, não possui um valor intrínseco,
substancial. Pelo contrário, tal prática classificada como legítima pode, amanhã, ser
considerada vulgar, de modo que o capital cultural deve ser enxergado sempre em relação
ao campo social que está inserido e ao marco temporal e histórico que se encontra. Para
exemplificar, apontamos que o jogo do xadrez, que começou como uma prática simples
e vulgar, foi paulatinamente se intelectualizando.26

Sobre o capital cultural e os demais capitais serem enxergados sempre em relação ao


campo social que se encontram, vale fazermos algumas elucidações. Um capital pode ter
maior ou menor valor, de acordo com o campo social inserido. Assim, o capital cultural
possui grande valor dentro do campo acadêmico, entretanto, no campo de negócios e
investimentos, o capital econômico provavelmente valerá mais que o capital social e o
cultural. Como podemos observar, não há um tipo de capital universalmente mais valioso
que os outros em todos os contextos e campos sociais, com validade universal e
atemporal, mas sim uma relação estabelecida entre capitais em diversos campos que lhes
confere diferentes valores e capacidades de mobilização. As lutas travadas pela disputa
desses capitais tomam formas específicas dentro de cada campo, de modo que os grupos
que ocupam as posições sociais constituem, em verdade, “lugares a defender e a
conquistar em um campo de lutas”27.

Em relação às lutas simbólicas, podemos apontar que as análises descritivas ou


explicativas de classe mostram sempre um conjunto pontual de distribuições e
redistribuições dos capitais. Para utilizar a metáfora de Bourdieu, pensemos em uma foto
tirada de uma partida de poker28. A foto será capaz de captar apenas um instante da
distribuição das fichas do jogo. Entretanto, a distribuição e redistribuição das fichas
ocorreram antes da foto e continuam ocorrendo no decorrer da partida, após a foto. O
mesmo pode ser dito em relação às lutas de classe. Embora a análise descritiva possa
captar um instante dessa partida, o caráter dinâmico das lutas de classes resulta em uma
contínua distribuição e redistribuição de recursos materiais e simbólicos, demonstrando
a fragilidade dessas análises. Em outras palavras, tais análises não captam a luta
amplamente, mas apenas um instante específico dessa disputa.

26
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. (2011). Updating cultural capital theory: a discussion based on studies in
Denmark and in Britain. Poetics, Volume 39, Issue 6, p. 566-580.
27
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
28
BOURDIEU, Op. Cit.
As classes dominantes, detentoras da distinção, estão sempre buscando novos bens para
apropriar-se em virtude da ameaça de vulgarização e divulgação desses bens. Nesse
sentido, quanto mais um bem cultural for divulgado e os instrumentos de acesso à
apreciação desse bem estiverem disponíveis, mais chances desse bem ser abandonado
pelas classes dominantes enquanto traço distintivo. Em outras palavras, a distinção se dá
pelo reduzido número de pessoas que podem acessar tais bens. Para citar um exemplo de
Bourdieu, um livro que ganhe uma versão de bolso, ainda que seja desejável ao autor,
pela ampliação das pessoas que terão acesso ao livro, poderá ser indesejável a certos
leitores, pela vulgarização que esse amplo acesso criará.29

Podemos destacar, também, a possibilidade de conversão de capitais, de modo que o


capital cultural, por exemplo, pode ser convertido em capital econômico. Uma ilustração
clara dessa conversão seria o professor universitário, que converte o seu capital cultural,
enquanto conhecimentos adquiridos ao longo do tempo e reconhecidos institucionalmente
na forma de títulos acadêmicos, em capital econômico, na forma do salário que receberá
da universidade. Outro exemplo seria a potencialização de um capital na relação que esse
possui com outro capital. Assim, uma pessoa que receba um diploma e possua um amplo
capital social terá mecanismos de potencializar esse capital cultural institucionalizado
(diploma) por meio da rede de relações que possui. De outro modo, uma pessoa que
receba o mesmo diploma, da mesma instituição, poderá não desfrutar da mesma
efetividade deste em virtude de um baixo capital social. Em outras palavras, o diploma
vale o que vale o seu portador.

4 - EDUCAÇÃO E CLASSES SOCIAIS: EDUCAÇÃO SE APRENDE EM CASA?

Em meados do século XX a educação ganhou uma nova concepção na sociedade francesa,


como reflexo da massificação do ensino. Dessa forma, um caráter funcionalista ocupa
espaço, atribuindo à educação o papel de superação do atraso econômico, da solução para
as desigualdades sociais e enfrentamento do autoritarismo. A educação serviria como
espécie de fórmula mágica para a construção de uma nova sociedade, centrada na

29
BOURDIEU. Op. Cit.
meritocracia, na modernidade e na autonomia individual, de modo a garantir iguais
oportunidades aos indivíduos através do acesso à escola30.

No Brasil, durante o século XX, houve uma difusão de diversas concepções de educação
que influenciaram políticas públicas educacionais e estabeleceram as diretrizes de ação
dos tomadores de decisão (policy makers). Inicialmente, houve uma disputa entre os
escolanovistas, representantes da Escola Nova, e a educação tradicional, representada
pelos educadores católicos, remarcando a antiga discussão entre educação pública e
educação confessional31. Após a Lei de Diretrizes e Bases de 1961, com alguma
predominância do escolanovismo, o Brasil passa pela fase da pedagogia tecnicista. Essa
pedagogia, influenciada pelo pensamento dos militares, que estavam à frente do governo,
e inspirada na teoria do capital humano, centra-se na ideia de racionalidade, eficiência e
produtividade. Essa tendência tecnicista, que tinha a educação como um instrumento de
satisfação das demandas produtivas do país, pode ser visualizada na promulgação da LDB
de 1971, que tentou universalizar a profissionalização do ensino de 2º grau, garantindo a
denominada educação propedêutica apenas aos usuários das escolas particulares. Nesse
sentido, as pesquisas de Bourdieu sobre o sistema de ensino influenciaram intensamente
os debates entre os educadores no Brasil à época32.

Bourdieu aparece como um crítico do discurso retórico e otimista da educação,


formulando, a partir de um trabalho teórico e empírico, uma resposta para o problema das
desigualdades educacionais e dos limites do sistema de ensino, ao afirmar que a escola
serviria não como instância emancipadora da sociedade mas, em outro sentido, como uma
das instituições responsáveis pela reprodução e legitimação das desigualdades sociais e
da estrutura de classes. Nesse sentido, pesquisas quantitativas anteriores aos estudos de
Bourdieu, financiadas pelos governos da Inglaterra, EUA e França, haviam demonstrado
o peso da origem social sobre o destino escolar dos indivíduos33. Entretanto, tais
pesquisas, ainda que tenham servido para abrir o caminho a essas hipóteses desafiadoras
do senso comum de educação, não tiveram o mesmo alcance e influência que os estudos
desenvolvidos posteriormente por Bourdieu.

30
NOGUEIRA, Cláudio M. M; NOGUEIRA, Maria. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu:
limites e contribuições. Revista Educação e Sociedade. Ano XXIII, nº 78, Abril, 2002.
31
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico Crítica: Primeiras Aproximações. 8ª ed. Campinas/Autores
Associados, 2003
32
SAVIANI. Op. Cit.
33
NOGUEIRA, C. M. M; NOGUEIRA, M. A. Op. Cit.
Assim, na análise de classes sociais e educação, desenvolvida por diferentes
pesquisadores, são mobilizados indicadores como origem de classe, estratégias de
investimento educacional, destino de classe e desempenho escolar. Apesar da semelhança
referente aos indicadores utilizados, há uma diferença nos olhares construídos para a
explicação dos fenômenos sociais. O Programa de Nuffield, que tem Goldthorpe como
um dos seus maiores expoentes, realizou diversos estudos sobre estratificação. Para esses,
as chances de mobilidade deveriam ser entendidas como produto da agregação de ações
individuais, orientados pela possibilidade de maior obtenção de benefícios com o menor
custo possível (Rational Choice). Nesse sentido, alguns indicadores como (a) estrutura
do problema de decisão, (b) nível mínimo aceitável de realização escolar (variado de
acordo com a classe do agente) e (c) percepção da probabilidade de sucesso escolar, são
mobilizados para pesquisar a persistência e a mudança no desempenho escolar.34 Embora
essa abordagem tenha o mérito de olhar para a questão de forma ampla, considerando a
educação relacionada às estratégias de mobilidade social do agente (relacionando-as com
matrimônio e nível de fecundidade), possui a fraqueza de desconsiderar o componente da
cultura nessa análise, e não ser capaz de explicar como as preferências e escolhas dos
indivíduos estão relacionadas com as culturas de classe35. Para exemplificar, o agente
pode considerar o nível educacional que seus pais atingiram como patamar mínimo
aceitável de realização escolar e, esse nível de instrução dos ascendentes, por sua vez,
apresentará variações de acordo com a trajetória social do agente.

Para Bourdieu, a posição objetiva ocupada pelo indivíduo no espaço social lhe inculcará
determinado habitus (disposições de agir) e conferirá um maior ou menor volume de
capital cultural, econômico e social. Na análise da educação e das classes sociais, a ênfase
é dada para o capital cultural como componente que exercerá intensa influência no
desempenho escolar. Assim, a classe de origem do indivíduo será crucial para seu
desempenho escolar, tendo em vista que a posição de classe determina diferentes
estratégias de investimento na educação escolar, bem como desiguais distribuições de
capitais36. Essa desigual distribuição resulta em diferentes capacidades para mobilização

34
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
35
BERTONCELO, E. Op. Cit.
36
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
dos capitais e para a potencialização do capital cultural institucionalizado (títulos
escolares).

Nesse ponto, vale considerar a afirmação de Bourdieu de que a escola não é uma
instituição neutra, que valoriza e dialoga com as diferentes culturas da sociedade, mas
sim uma entidade que valoriza e reproduz, na verdade, a cultura legítima produzida pelas
classes dominantes. Dessa forma, o contato precoce dos filhos das classes dominantes
com a cultura legitima – transmitida no próprio ambiente de socialização familiar - lhes
garante maior bagagem dos instrumentos necessários para a apropriação da cultura
transmitida na escola, considerando que a escola transmite, em suma, a cultura legítima
encontrada nesse ambiente familiar. Isto posto, os conhecimentos denominados legítimos
e o maior domínio da língua culta, trazidos de casa por algumas crianças, serviriam como
uma ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar.37

Em sentido diverso, os filhos das classes populares, por ocuparem outra posição no espaço
social, portarem um habitus diferente e não entrarem em contato – ou terem menor
contato - com a cultura legítima no ambiente familiar, iniciam-se na escola sem os
instrumentos necessários para a apropriação da cultura lá transmitida. Dessa maneira,
enquanto para uns a educação escolar é uma continuação da educação familiar, para
outros a educação escolar é algo estranho, novo e distante.

Aqui, vale fazermos a ressalva de que a desvantagem das classes populares nas escolas
não é produto de uma educação deficiente no ambiente familiar ou uma menor capacidade
intelectual dessas classes, mas sim, pela escolha do sistema de ensino em transmitir tão
somente a cultura denominada legítima, própria da classe dominante.

Para avançar na discussão, é relevante fazermos alguns apontamentos sobre a noção que
Bourdieu utiliza de arbitrário cultural. Embora nenhuma cultura seja objetivamente
superior a outra, as sociedades, especificamente as sociedades de classes, elegem uma
cultura para lhe darem o rótulo de legítima. A escola, como transmissora da cultura
escolar, escolhe a cultura das classes dominantes para denominar como legítima.

Entretanto, a autoridade pedagógica que a escola possui e exerce por meio da ação
pedagógica, só pode ser legitimada se for apresentada como uma cultura neutra. Assim,
quanto maior a capacidade do sistema educacional de se apresentar como transmissor de

37
NOGUEIRA, Cláudio M. M; NOGUEIRA, Maria. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu:
limites e contribuições. Revista Educação e Sociedade. Ano XXIII, nº 78, Abril, 2002.
conteúdos não arbitrários e não vinculados a nenhuma classe social, maior será a força da
sua autoridade pedagógica.38 Em outras palavras, a efetividade do papel exercido pela
escola se dá, intensamente, pela sua capacidade de dissimular a parcialidade da cultura
escolar.

Dessa forma, a frase recorrente, usada tantas vezes na sala de aula das escolas de que
“educação se aprende em casa” guardaria um argumento, ainda que não intencionado pelo
interlocutor, que possui ampla sintonia com o pensamento bourdiesiano. Ora, se o sistema
escolar reproduz a cultura da classe dominante, fica claro que, pelo menos para os filhos
das classes altas, educação se aprende realmente em casa, de modo que a escola apenas
continuaria transmitindo parte da cultura legítima já transmitida no ambiente familiar
dessas classes. Ainda que desconsideremos a perspectiva de Bourdieu, da escola como
reprodutora da cultura legítima, o clichê acima ainda faz sentido para as reflexões. Isso
porque, a influência do ambiente familiar para o desempenho escolar será essencial, não
em relação ao contato precoce com a cultura legítima, mas sim pelas diferentes estratégias
de investimento educacional mobilizadas pelos membros familiares, como também pela
influência da família na formação das diferentes percepções de nível aceitável de
realização escolar que os filhos terão, considerando a trajetória educacional dos pais.

Desse modo, considerando que os diferenciais de classe no êxito educacional são


produtos, também, da variação na intensidade e natureza do investimento escolar39,
Bourdieu destaca diferentes estratégias de investimento em educação de acordo com cada
classe social. Destacamos que tais estratégias não seriam obra do acaso, mas sim fruto de
experiências de fracasso ou sucesso escolar vivenciadas pelas classes sociais e pelos seus
pares, que se inserem de forma inconsciente em suas práticas. Essas experiências, por sua
vez, possuem íntima relação com uma desigual distribuição de capitais na sociedade, bem
como com diferentes disposições para agir (habitus) vinculados às classes sociais.40 Vale
fazermos algumas considerações sobre essas diferentes estratégias.

As classes populares, dotadas de pouco capital econômico e cultural, tenderiam a investir


menos em educação por terem a percepção, em virtude das experiências acumuladas, de
que possuem chances reduzidas de sucesso escolar. Em primeiro lugar, o retorno do

38
NOGUEIRA, C. M. M; NOGUEIRA, M. A. Op. Cit.
39
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
40
BERTONCELO, E. Op. Cit
investimento escolar para essa classe é consideravelmente menor, tendo em vista que
possuem pouco capital social e econômico para potencializar o capital cultural
institucionalizado – na forma de títulos, diplomas - obtido nas escolas e universidades.
Em outras palavras, o diploma vale o que vale o seu detentor.41 O risco também é maior
para as classes populares, em vista do investimento de longo prazo que precisariam fazer
para focar na educação e retardar a entrada dos filhos no mercado de trabalho. Enquanto
a entrada dos filhos no mercado de forma precoce pode render frutos imediatos, ao
representar um complemento da renda familiar, o investimento em educação, além de não
constituir uma garantia de retorno financeiro, é muito mais prolongada e arriscada. Dito
de forma sintética, no caso da classe trabalhadora, o investimento em educação tende a
oferecer um retorno incerto, baixo e de longo prazo42.

Em outro sentido, as classes médias tendem a investir fortemente em educação, tendo em


vista que possuem maiores chances de sucesso escolar, considerando a maior posse de
capital social e econômico que pode ser mobilizado para potencializar os títulos escolares
de seus filhos. Outro motivo relevante que ajuda a explicar esse alto investimento no
mercado escolar é o fato de que boa parte das pessoas dessa classe seriam originários das
classes populares e teriam acessado a pequena burguesia por meio da educação. Dessa
forma, há a esperança para essa classe de continuar ascendendo socialmente e atingir
outras camadas de classe através da educação43.

Bourdieu aponta três componentes dessa classe que representam sua ânsia de ascensão
social, quais seja, o ascetismo, malthusianismo e a boa vontade cultural. O primeiro diz
respeito à disposição da classe média em realizar sacrifícios e abrirem mão dos prazeres
imediatos em nome de um projeto de futuro. O malthusianismo relaciona-se com o
controle da natalidade, tendo em vista que menos filhos significaria mais capital
econômico para investir nos estudos. Por fim, a boa vontade cultura caracteriza-se como
a disposição da pequena burguesia em tentar apropriar-se da cultura legítima, por
diferentes meios, visando a aquisição de capital cultural44.

É necessário considerar que há variações no investimento escolar a depender da fração de


classe pesquisada, considerando a desigual distribuição de capitais entre as frações das

41
BOURDIEU. Op. Cit.
42
NOGUEIRA, C. M. M; NOGUEIRA, M. A. Op. Cit.
43
BOURDIEU. Os herdeiros. Paris: Les Éditions de Minuit, 1964.
44
BOURDIEU. Op. Cit.
classes sociais. A trajetória dos pais, enquanto originários de classes populares, classes
médias ou altas, também exercerá influência na intensidade desse investimento escolar.
O mesmo pode ser dito em relação às classes populares e classes altas, considerando que
há a existência não só de classes, mas também de frações de classes. Dito de outro modo,
o investimento em educação diferencia-se não só em razão da classe, mas também em
razão da fração de classe considerada.

Em relação às estratégias, as classes altas, por sua vez, também investiriam intensamente
em educação, mas de uma forma mais relaxada, ou laxista, para dizer com Bourdieu. Isso
porque, o volume de capital que possuem para mobilização tornaria muito improvável
uma trajetória de fracasso escolar, de modo que o sucesso educacional é visto como algo
natural nessa classe. Haveria uma diferença, ainda, em relação às frações da classe alta
relativa a parte com maior capital econômico e a fração com maior capital cultural. As
primeiras tenderiam a obter um capital cultural institucionalizado apenas como
legitimação das posições já obtidas em virtude do capital econômico. As últimas
tenderiam a investir fortemente na aquisição do capital cultural, como forma de acessar
as carreiras mais prestigiosas no sistema de ensino.

Devemos destacar, também, que a influencia do capital cultural será mais forte quanto
maior for a democratização do ensino no país, considerando reformas na área que
diminuíram o impacto do capital econômico na escolarização. Assim, em países como o
Brasil, em que a educação é intensamente estratificada em instituições públicas e privadas
- que oferecem ensinos de qualidade muito diferentes – a relevância do capital econômico
para a conversão do capital cultural em credenciais escolares será, provavelmente, muito
maior45.

Nesse sentido, parte dos educadores brasileiros pretendem enfrentar o problema da


distribuição de diferentes educações para distintas classes sociais46 - que oferece ensino
propedêutico para as classes altas, para ocuparem cargos dirigentes na sociedade e ensino
profissional e aligeirado às classes populares, para desenvolverem trabalho manual,
delimitando diferentes caminhos segundo a classe social do agente - bem como desafiar
a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Para tanto, apresentam como

45
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
46
FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e
estrutura econômico-social e capitalista. 3.ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.
solução a educação profissional integrada ao ensino médio, como forma de vincular a
educação propedêutica e a transmissão da cultura geral à educação profissional e ao
aprimoramento das competências manuais47.

Todavia, de acordo com Bourdieu, o problema a ser enfrentado seria mais complexo,
considerando que o oferecimento de uma escola pública, gratuita e universal para todos
os estudantes não seria capaz de solucionar as disparidades do desempenho escolar,
levando em conta a existência de diferentes bagagens culturais que os alunos trazem de
casa, bem como que a distribuição desigual de capitais entre as classes sociais cria
diferentes condições para a apropriação da cultura transmitida pela escola.

5 - CRÍTICAS À SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE PIERRE BOURDIEU

Embora Bourdieu tenha construído uma contribuição de enorme relevância para a


sociologia da educação e a análise do sistema de ensino, sua obra recebeu críticas
consideradas importantes para a continuidade das reflexões sobre as problemáticas
abordadas. A primeira crítica refere-se ao fato do sociólogo francês tratar o sistema de
ensino de modo homogêneo, como se não houvesse variações dentro da organização das
escolas, nos métodos pedagógicos, na ideologia dos professores, entre outros aspectos.
Assim, tais variações poderiam resultar em diferentes efeitos no desempenho dos
estudantes. Em outras palavras, uma análise na perspectiva microssociológica poderia
contrariar algumas das afirmações de Bourdieu, considerando que o modo de reprodução
social não seria homogêneo em todas as escolas e com todos os professores48.

Outro fator importante a ser considerado é a existência de diversas experiências escolares


diferentes, que valorizam os conhecimentos prévios e a bagagem cultural dos alunos, bem
como a realidade em que esses estão inseridos. As contribuições de Paulo Freire e em
específico sua metodologia49, que parte da realidade concreta dos alunos para a
construção do conhecimento, inspirou diversos projetos de educação no Brasil. Podemos
citar o projeto de alfabetização “De pé no chão também se aprende a ler”, desenvolvido
no Brasil durante a década de 60, que a partir do método de Freire alfabetizava
trabalhadores rurais em um período de 45 dias. A aplicação desse método em algumas

47
MOURA, Dante Henrique. Educação Básica e Educação Tecnológica: dualidade histórica e perspectiva
de integração. Holus, ano 23, vol. 2. Natal: 2007
48
NOGUEIRA, Cláudio M. M; NOGUEIRA, Maria. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu:
limites e contribuições. Revista Educação e Sociedade. Ano XXIII, nº 78, Abril, 2002
49
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005
regiões brasileiras pode servir de contraponto à concepção da escola como reprodutora
dissimulada da cultura legítima, tendo em vista a valorização, em um primeiro momento,
dos conhecimentos carregados pelos próprios estudantes. Embora o estudo sociológico
de Bourdieu tenha sido desenvolvido considerando a sociedade francesa da década de 60,
a utilização e a grande influência de sua obra no Brasil nos permite estabelecer algumas
relações do seu pensamento com a realidade brasileira.

Críticas relevantes aparecem, também, a partir de 1980, com o desenvolvimento da


denominada “sociologia das relações família-escola”. Essa corrente investiga as
dinâmicas internas e os processos de socialização familiares, buscando desvelar as
estratégias desenvolvidas pelos pais no que se refere à educação dos seus filhos. Uma das
críticas dirigidas à teoria de Bourdieu vincula-se ao fato de este abordar a educação de
uma visão macro, pela perspectiva das classes sociais e as frações de classe, mas não por
uma visão micro, considerando as diferenças existentes nos ambientes familiares que
pertencem as mesmas classes sociais, bem como as diferentes formas de socializações
que ocorrem no seio familiar.50

Dermeval Saviani, ao abordar as diferentes concepções de educação existentes, aponta


que a teoria de Bourdieu sobre o tema teria como fraqueza o fato de não apontar caminhos
para a construção de uma educação diferente, que pudesse funcionar em favor das classes
populares, sendo assim uma corrente que fazia uma crítica às formas de educação
existentes, mas não apresentava uma proposta pedagógica51. Todavia, podemos nos
perguntar se seria o papel de um sociólogo apresentar soluções para os problemas que
evidencia na sociedade. A sociologia, como esporte de combate, já seria desafiadora ao
evidenciar as contradições da sociedade, ou deveria, além disso, apontar possíveis
caminhos a serem trilhados para a superação dessas contradições?

Outra fragilidade apontada à teoria de Bourdieu seria a existência pressuposta por este de
um encaixe exato entre a experiência social dos agentes e o habitus, de modo que existiria
pouco espaço para a indeterminação e contingência das relações 52. O fato de as disputas
simbólicas se darem apenas em torno das denominadas culturas legítimas também cria

50
ALVES, Maria Teresa Gonzaga; NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins
and RESENDE, Tânia de Freitas. Fatores familiares e desempenho escolar: uma abordagem
multidimensional. Dados [online]. 2013, vol.56, n.3, pp.571-603
51
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico Crítica: Primeiras Aproximações. 8ª ed. Campinas/Autores
Associados, 2003
52
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
um reduzido ambiente para a ação das classes populares. Uma das alternativas para a
superação desse dilema seria a retomada do conceito de contradição 53. Esse conceito, de
origem marxista, indica a existência de inconsistências inerentes ao sistema capitalista,
que criariam espaço para o conflito e a transformação social.

CONCLUSÃO

Dado o desenvolvimento realizado nos capítulos anteriores, algumas considerações


podem ser feitas sobre o objeto de pesquisa desenvolvido. Assim, Bourdieu constrói uma
abordagem diferente sobre classes sociais ao incluir a noção habitus, campos, bem como
de capital cultural e capital social, destacando outras formas de dominação social que não
estão exclusivamente ligadas ao capital econômico. A noção de fração de classe inserida
dentro das mesmas classes sociais estabelece a ideia de que há divergências de
posicionamentos e pensamentos no âmbito interno das classes, fazendo mais sentido
falarmos em classes e suas frações do que tão somente em classes sociais. Para
exemplificar, nas classes altas há dois extremos, composta pela elite intelectual e pela
elite industrial, de modo que os gostos, valores e ideologia dessas duas frações apresentam
importantes diferenças.

Sobre o sistema de ensino, destacamos que para Bourdieu, esse estaria longe de cumprir
o papel defendido pelos funcionalistas – amparados na ideia de meritocracia e autonomia
individual – de servir como instrumento de inclusão social, de emancipação humana, e
ainda, de fórmula para o enfrentamento das desigualdades sociais. Em sentido diverso, a
escola serviria como um mecanismo de reprodução da estrutura de classes e legitimação
das desigualdades sociais, ao tratar de forma igual pessoas que são diferentes, bem como
ao escolher reproduzir, de forma dissimulada, a cultura da classe dominante. Nesse
sentido, a herança familiar e as estratégias de investimento escolar mobilizadas pelas
diferentes classes e frações de classe são indicadores relevantes para um maior ou menor
desempenho escolar.

Por fim, as críticas elaboradas à teoria de Bourdieu que buscam avançar na pesquisa sobre
a problemática em tela constituem importantes contribuições para o aprimoramento dos
métodos de pesquisa, dos indicadores utilizados para a apreensão do desempenho escolar,

53
BERTONCELO. Op. Cit.
bem como para a descoberta de possíveis soluções para as contradições evidenciadas no
sistema educacional das sociedades de classes.

REFERÊNCIAS

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Marques Martins and RESENDE, Tânia de Freitas. Fatores familiares e desempenho
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