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2018
RESUMO
O artigo aborda as contribuições de Pierre Bourdieu para a discussão sobre classes sociais
e educação. Para tanto, em um primeiro momento discorremos sobre os conceitos de
habitus, capital cultural e campos. Após a elucidação desses conceitos, é analisada a teoria
de Bourdieu sobre o sistema de ensino e as relações deste com a estratificação social, a
herança familiar e as diferentes estratégias de investimento escolar. Por fim, apontamos
os limites da teoria bourdiesiana sobre educação e as críticas construídas sobre a sua teoria
que buscam avançar na análise de classes sociais e educação.
Palavras-chave: Educação e classes sociais; capital cultural; Bourdieu; desempenho
escolar
INTRODUÇÃO
Essa estratificação social, que consolida uma desigual distribuição de recursos – materiais
e simbólicos – entre os indivíduos de uma mesma sociedade encontra-se imbrincada em
outro conceito, qual seja, o de classes sociais. O conceito de classes sociais recebeu
1
CROMPTON, R. Class and Stratification. Cambridge; Oxford, Polity Press, 2003
diferentes olhares teóricos durante o tempo. Podemos apontar, pelo menos, quatro
correntes teóricas que se debruçaram sobre esse conceito e lançaram mão de diferentes
construções para explica-lo. Dessa forma, destacamos a abordagem2 de Marx3, dos
neoweberianos4, dos neomarxistas5 e de Pierre Bourdieu6.
Em outro momento, guardaremos foco ao tema da educação e sua relação com as classes
sociais, discutindo a construção do objeto de análise a partir da origem social, estratégias
de investimento escolar, destino de classe e desempenho escolar. Nesse sentido, o
conceito de capital cultural exerce relevante influência para a explicação de distintos
desempenhos no ensino quando consideramos o campo do ambiente escolar.
2
Destacamos que as referências apontadas dos neoweberianos e dos neomarxistas não representam um
esgotamento dos autores dessa corrente, mas sim, o sublinhamento dos seus maiores expoentes.
3
MARX, K. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. 2. ed. Lisboa: Avante, 1984.
4
GOLDTHORPE, J. “Social Class and the Differentiation of Employment Contracts”. In: _____. On
Sociology. Stanford, Stanford University Press, 2007.
5
WRIGHT, E. O. “Class Analysis”. In: _____. Class Counts: Comparative Studies in Class Analysis.
Cambridge, Cambridge University Press, 1997
6
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
resumo, opressores e oprimidos”7. Para Marx, classes sociais são definidas de acordo com
a localização dos indivíduos dentro das relações de produção. Assim, haveria três grandes
classes presentes na sociedade, quais sejam, capitalistas, proprietários fundiários e
proletariado8. De acordo com Marx, o poder estatal é inseparável do poder econômico e
a sociedade capitalista permite a existência de uma igualdade política ao lado de uma
desigualdade material, como coexistência necessária para o modo de produção capitalista.
Bourdieu confere uma ampliação à noção de classes sociais por não considerar apenas
critérios relacionados à posição dos indivíduos dentro das relações de produção, suas
remunerações, ou ainda, os contratos de trabalho existentes entre empregado e
empregador. Assim, ao inserir os conceitos de capital cultural e capital social, Bourdieu
apresenta outras formas de dominação que não são determinadas exclusivamente pela
dimensão econômica das relações sociais.
Dessa forma, o sociólogo francês afirma que a classe social não é definida por uma
propriedade específica, como a profissão ou a renda, nem mesmo pela soma de diversas
propriedades (sexo, idade, origem social, raça10, etc), ou ainda pela cadeia de várias
propriedades ordenadas por uma propriedade fundamental – posição nas relações de
produção – em uma relação de causa e efeito.
Em outro sentido, para Pierre Bourdieu a classe social é definida “pela estrutura das
relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma
delas e ao efeito que ela exerce sobre as práticas”. Em outras palavras, a classe não é
definida por uma característica social específica, nem mesmo pelo amontoado de diversas
7
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista, São Paulo: Global, 2006
8
HADDAD, Fernando. Trabalho e classes sociais. Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 2, p. 97-123
9
GOLDTHORPE, J. “Social Class and the Differentiation of Employment Contracts”. In: _____. On
Sociology. Stanford, Stanford University Press, 2007.
10
De acordo com Bourdieu, características como raça e gênero são secundárias para a análise, embora nesta
exerçam efeitos, e sempre são mediadas pela classe social do indivíduo.
propriedades sociais, mas sim pelas relações estabelecidas entre as diferentes
características (propriedades) sociais existentes.
Essa afirmação acima tem relação direta com o fato de Bourdieu desenvolver um
pensamento relacional, que não considera as características sociais em um sentido
substancialista, que guarda um valor em si mesmo, mas sim na relação que essas
características possuem com outras classificações. Dessa forma, o objeto de análise está
em constante movimento e relação com outros campos, bem como os indivíduos, além de
serem classificados, são também classificantes, ou seja, também produzem classificações.
É relevante apontarmos que o sociólogo francês nega a visão marxista que atribui um
ajuste quase exato entre classe e ação coletiva, como se os integrantes de uma mesma
classe social agissem coletivamente, da mesma maneira, sempre em busca de um mesmo
objetivo. Para Bourdieu não há, também, uma conexão direta entre classes sociais e
consciência de classe, enquanto consciência plena, incompleta ou falsa do sistema de
exploração e dos interesses decorrentes deste.11 O que poderia ocorrer, em verdade, é uma
ação coletiva de classe em decorrência de um sujeito que representasse os interesses
daquela classe coletivamente. Dessa forma, o que conectaria a posição objetiva de classe
às práticas dos agentes não seria a consciência de classe, mas sim o habitus.
Para obter uma melhor compreensão do pensamento bourdiesiano sobre classes sociais,
é necessária a elucidação de alguns conceitos chaves do autor. Referimo-nos aos
conceitos de habitus, campo e capitais.
11
SALLUM JR., Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova [online]. 2005, n.65, pp.11-42.
12
BOURDIEU. A Distinção
estrutura estruturada e estruturante13. A visão que os indivíduos terão sobre o espaço
social será diferente, variando de acordo com a posição que tais indivíduos ocupam nessa
estrutura. Nas palavras de Bourdieu:
Vale fazer uma ressalva, ainda, sobre a abordagem dos conceitos bourdiesianos. Tais
conceitos, como habitus, capital cultural, capital social, entre outros, devem ser pensados
de forma relacional e não substancialista, enquanto definições estáticas que valem para
toda e qualquer situação e possuem um valor intrínseco. Assim, o contínuo movimento
da sociedade e do pensamento não permite a definição estática desses conceitos, de modo
que esses devem ser pensados na relação que possuem com outros conceitos, bem como
visualizados de acordo com o campo social que estão relacionados. O olhar que Bourdieu
constrói para analisar a realidade auxilia na compreensão de seu pensamento relacional,
conforme iremos expor abaixo.
13
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
14
BOURDIEU. Op. Cit
15
SALLUM JR., Brasílio. Classes, cultura e ação coletiva. Lua Nova [online]. 2005, n.65, pp.11-42.
objetivo da distribuição de indicadores materiais de diferentes tipos de capitais16. A
segunda, por sua vez, tem como objeto de estudo não a realidade, mas as interpretações
que os indivíduos fazem dela, considerando que a realidade nada mais é do que a
representação produzida pelos agentes. Nessa perspectiva subjetivista, a realidade seria
apenas o produto de estruturas mentais e linguísticas.17 Dito de outro modo, os
subjetivistas afirmam que deveríamos estudar tão somente o que os indivíduos pensam
sobre a realidade, como uma espécie de explicação das explicações. Assim, deveríamos
apreender o mundo social a partir das operações cognitivas dos agentes sobre a realidade.
Em oposição, os objetivistas acreditam na análise da realidade social a partir de suas
estruturas e de seus dados objetivos, como se os próprios indivíduos que pertencem a tais
estruturas não influenciassem na construção, preservação ou transformação de tais
estruturas, e ainda, como se os agentes reagissem mecanicamente a estímulos mecânicos
oriundos de tais contextos sociais.
16
BOURDIEU, Pierre. Capital simbólico e classes sociais. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2013, n.96,
pp.105-115.
17
BOURDIEU. Op. Cit.
18
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
3 - CAPITAL SOCIAL E CAPITAL CULTURAL: OUTRAS FORMAS DE
DOMINAÇÃO SOCIAL
A inserção das noções de capital cultural e capital social na análise de classes permite
uma ampliação na investigação da realidade, tendo em vista que desvela outras formas de
dominação social que não estão associadas tão somente ao capital econômico. Dessa
forma, a cultura é entendida como um recurso que pode ser acumulado, transmitido e
monopolizado19, servindo como processo de dominação de classes ou frações de classe
sobre outras. Para fazer um paralelo, não é só o dinheiro que pode ser transmitido e
acumulado, como forma de ampliação do capital econômico, mas a cultura – ou a
educação - também pode ser acumulada e transmitida de um agente a outro, enquanto
forma de ampliação do capital cultural. Desse modo, a luta de classes não seria apenas
uma disputa pela apropriação do capital econômico e os seus meios de produção, mas
também pela apropriação do capital cultural, bem como pelo poder de classificar uma
cultura como legítima e valiosa a ponto de ser disputada. Uma das primeiras mobilizações
da noção de capital cultural é feita por Bourdieu em seus estudos sobre o sistema
educacional, em que o autor explica o sucesso e destaque de algumas crianças na escola
em virtude do contato precoce que tiveram com a cultura legítima no ambiente familiar20.
Entretanto, apenas na década de 70, com o livro A Distinção, que Bourdieu mobiliza o
conceito de capital cultural para além do campo educacional, relacionando-o com estilos
de vida de diferentes classes, competências culturais, gostos, participação cultural, entre
outros fatores.21
19
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. (2011). Updating cultural capital theory: a discussion based on studies in
Denmark and in Britain. Poetics, Volume 39, Issue 6, p. 566-580.
20
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. Op. Cit.
21
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. Op. Cit.
disputas dos bens culturais e pela definição de quais bens serão legítimos. Em outro
sentido, ocupam uma referência passiva, marcando o contraste indesejável22.
Recentemente foi realizada uma análise sobre a existência de outro tipo de capital
cultural, que estaria dentro do capital incorporado, qual seja, o capital informacional. Esse
capital é caracterizado pelo conhecimento que os indivíduos possuem sobre o sistema de
ensino e os percursos escolares. Tais conhecimentos seriam valiosos ao passo que
serviriam de trunfo para o investimento em estratégias educacionais24. Embora essa
variação de capital cultural tenha sido apontada sinteticamente por Bourdieu, sua
verticalização só ocorreu nos últimos tempos.
O capital social é caracterizado, por sua vez, como o conjunto de relacionamentos sociais
que cada um pode utilizar para atingir seus objetivos. Dito de outra forma, a capacidade
do indivíduo de mobilizar uma rede de contatos e influenciar um elevado número de
pessoas. Já o capital simbólico é caracterizado pelo modo como o indivíduo, portador de
vários recursos, é percebido pelos outros agentes sociais.25
Vale destacarmos que a noção de capital cultural não é um conceito universal e estático,
mas sim relativo e mutável com o passar do tempo. Desse modo, uma prática que é
22
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
23
NEVES; PRONKO; MENDONÇA. Capital Cultural. In: Dicionário de Educação Profissional de saúde.
Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2009.
24
ALVES, Maria Teresa Gonzaga; NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins
and RESENDE, Tânia de Freitas. Fatores familiares e desempenho escolar: uma abordagem
multidimensional. Dados [online]. 2013, vol.56, n.3, pp.571-603
25
BERTONCELO, Op. Cit.
considerada valorizada, como cultura legítima, não possui um valor intrínseco,
substancial. Pelo contrário, tal prática classificada como legítima pode, amanhã, ser
considerada vulgar, de modo que o capital cultural deve ser enxergado sempre em relação
ao campo social que está inserido e ao marco temporal e histórico que se encontra. Para
exemplificar, apontamos que o jogo do xadrez, que começou como uma prática simples
e vulgar, foi paulatinamente se intelectualizando.26
26
PRIEUR, A., & SAVAGE, M. (2011). Updating cultural capital theory: a discussion based on studies in
Denmark and in Britain. Poetics, Volume 39, Issue 6, p. 566-580.
27
BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2ª ed. rev. Porto Alegre: Zouk, 2017
28
BOURDIEU, Op. Cit.
As classes dominantes, detentoras da distinção, estão sempre buscando novos bens para
apropriar-se em virtude da ameaça de vulgarização e divulgação desses bens. Nesse
sentido, quanto mais um bem cultural for divulgado e os instrumentos de acesso à
apreciação desse bem estiverem disponíveis, mais chances desse bem ser abandonado
pelas classes dominantes enquanto traço distintivo. Em outras palavras, a distinção se dá
pelo reduzido número de pessoas que podem acessar tais bens. Para citar um exemplo de
Bourdieu, um livro que ganhe uma versão de bolso, ainda que seja desejável ao autor,
pela ampliação das pessoas que terão acesso ao livro, poderá ser indesejável a certos
leitores, pela vulgarização que esse amplo acesso criará.29
29
BOURDIEU. Op. Cit.
meritocracia, na modernidade e na autonomia individual, de modo a garantir iguais
oportunidades aos indivíduos através do acesso à escola30.
No Brasil, durante o século XX, houve uma difusão de diversas concepções de educação
que influenciaram políticas públicas educacionais e estabeleceram as diretrizes de ação
dos tomadores de decisão (policy makers). Inicialmente, houve uma disputa entre os
escolanovistas, representantes da Escola Nova, e a educação tradicional, representada
pelos educadores católicos, remarcando a antiga discussão entre educação pública e
educação confessional31. Após a Lei de Diretrizes e Bases de 1961, com alguma
predominância do escolanovismo, o Brasil passa pela fase da pedagogia tecnicista. Essa
pedagogia, influenciada pelo pensamento dos militares, que estavam à frente do governo,
e inspirada na teoria do capital humano, centra-se na ideia de racionalidade, eficiência e
produtividade. Essa tendência tecnicista, que tinha a educação como um instrumento de
satisfação das demandas produtivas do país, pode ser visualizada na promulgação da LDB
de 1971, que tentou universalizar a profissionalização do ensino de 2º grau, garantindo a
denominada educação propedêutica apenas aos usuários das escolas particulares. Nesse
sentido, as pesquisas de Bourdieu sobre o sistema de ensino influenciaram intensamente
os debates entre os educadores no Brasil à época32.
30
NOGUEIRA, Cláudio M. M; NOGUEIRA, Maria. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu:
limites e contribuições. Revista Educação e Sociedade. Ano XXIII, nº 78, Abril, 2002.
31
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico Crítica: Primeiras Aproximações. 8ª ed. Campinas/Autores
Associados, 2003
32
SAVIANI. Op. Cit.
33
NOGUEIRA, C. M. M; NOGUEIRA, M. A. Op. Cit.
Assim, na análise de classes sociais e educação, desenvolvida por diferentes
pesquisadores, são mobilizados indicadores como origem de classe, estratégias de
investimento educacional, destino de classe e desempenho escolar. Apesar da semelhança
referente aos indicadores utilizados, há uma diferença nos olhares construídos para a
explicação dos fenômenos sociais. O Programa de Nuffield, que tem Goldthorpe como
um dos seus maiores expoentes, realizou diversos estudos sobre estratificação. Para esses,
as chances de mobilidade deveriam ser entendidas como produto da agregação de ações
individuais, orientados pela possibilidade de maior obtenção de benefícios com o menor
custo possível (Rational Choice). Nesse sentido, alguns indicadores como (a) estrutura
do problema de decisão, (b) nível mínimo aceitável de realização escolar (variado de
acordo com a classe do agente) e (c) percepção da probabilidade de sucesso escolar, são
mobilizados para pesquisar a persistência e a mudança no desempenho escolar.34 Embora
essa abordagem tenha o mérito de olhar para a questão de forma ampla, considerando a
educação relacionada às estratégias de mobilidade social do agente (relacionando-as com
matrimônio e nível de fecundidade), possui a fraqueza de desconsiderar o componente da
cultura nessa análise, e não ser capaz de explicar como as preferências e escolhas dos
indivíduos estão relacionadas com as culturas de classe35. Para exemplificar, o agente
pode considerar o nível educacional que seus pais atingiram como patamar mínimo
aceitável de realização escolar e, esse nível de instrução dos ascendentes, por sua vez,
apresentará variações de acordo com a trajetória social do agente.
Para Bourdieu, a posição objetiva ocupada pelo indivíduo no espaço social lhe inculcará
determinado habitus (disposições de agir) e conferirá um maior ou menor volume de
capital cultural, econômico e social. Na análise da educação e das classes sociais, a ênfase
é dada para o capital cultural como componente que exercerá intensa influência no
desempenho escolar. Assim, a classe de origem do indivíduo será crucial para seu
desempenho escolar, tendo em vista que a posição de classe determina diferentes
estratégias de investimento na educação escolar, bem como desiguais distribuições de
capitais36. Essa desigual distribuição resulta em diferentes capacidades para mobilização
34
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
35
BERTONCELO, E. Op. Cit.
36
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
dos capitais e para a potencialização do capital cultural institucionalizado (títulos
escolares).
Nesse ponto, vale considerar a afirmação de Bourdieu de que a escola não é uma
instituição neutra, que valoriza e dialoga com as diferentes culturas da sociedade, mas
sim uma entidade que valoriza e reproduz, na verdade, a cultura legítima produzida pelas
classes dominantes. Dessa forma, o contato precoce dos filhos das classes dominantes
com a cultura legitima – transmitida no próprio ambiente de socialização familiar - lhes
garante maior bagagem dos instrumentos necessários para a apropriação da cultura
transmitida na escola, considerando que a escola transmite, em suma, a cultura legítima
encontrada nesse ambiente familiar. Isto posto, os conhecimentos denominados legítimos
e o maior domínio da língua culta, trazidos de casa por algumas crianças, serviriam como
uma ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar.37
Em sentido diverso, os filhos das classes populares, por ocuparem outra posição no espaço
social, portarem um habitus diferente e não entrarem em contato – ou terem menor
contato - com a cultura legítima no ambiente familiar, iniciam-se na escola sem os
instrumentos necessários para a apropriação da cultura lá transmitida. Dessa maneira,
enquanto para uns a educação escolar é uma continuação da educação familiar, para
outros a educação escolar é algo estranho, novo e distante.
Aqui, vale fazermos a ressalva de que a desvantagem das classes populares nas escolas
não é produto de uma educação deficiente no ambiente familiar ou uma menor capacidade
intelectual dessas classes, mas sim, pela escolha do sistema de ensino em transmitir tão
somente a cultura denominada legítima, própria da classe dominante.
Para avançar na discussão, é relevante fazermos alguns apontamentos sobre a noção que
Bourdieu utiliza de arbitrário cultural. Embora nenhuma cultura seja objetivamente
superior a outra, as sociedades, especificamente as sociedades de classes, elegem uma
cultura para lhe darem o rótulo de legítima. A escola, como transmissora da cultura
escolar, escolhe a cultura das classes dominantes para denominar como legítima.
Entretanto, a autoridade pedagógica que a escola possui e exerce por meio da ação
pedagógica, só pode ser legitimada se for apresentada como uma cultura neutra. Assim,
quanto maior a capacidade do sistema educacional de se apresentar como transmissor de
37
NOGUEIRA, Cláudio M. M; NOGUEIRA, Maria. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu:
limites e contribuições. Revista Educação e Sociedade. Ano XXIII, nº 78, Abril, 2002.
conteúdos não arbitrários e não vinculados a nenhuma classe social, maior será a força da
sua autoridade pedagógica.38 Em outras palavras, a efetividade do papel exercido pela
escola se dá, intensamente, pela sua capacidade de dissimular a parcialidade da cultura
escolar.
Dessa forma, a frase recorrente, usada tantas vezes na sala de aula das escolas de que
“educação se aprende em casa” guardaria um argumento, ainda que não intencionado pelo
interlocutor, que possui ampla sintonia com o pensamento bourdiesiano. Ora, se o sistema
escolar reproduz a cultura da classe dominante, fica claro que, pelo menos para os filhos
das classes altas, educação se aprende realmente em casa, de modo que a escola apenas
continuaria transmitindo parte da cultura legítima já transmitida no ambiente familiar
dessas classes. Ainda que desconsideremos a perspectiva de Bourdieu, da escola como
reprodutora da cultura legítima, o clichê acima ainda faz sentido para as reflexões. Isso
porque, a influência do ambiente familiar para o desempenho escolar será essencial, não
em relação ao contato precoce com a cultura legítima, mas sim pelas diferentes estratégias
de investimento educacional mobilizadas pelos membros familiares, como também pela
influência da família na formação das diferentes percepções de nível aceitável de
realização escolar que os filhos terão, considerando a trajetória educacional dos pais.
38
NOGUEIRA, C. M. M; NOGUEIRA, M. A. Op. Cit.
39
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
40
BERTONCELO, E. Op. Cit
investimento escolar para essa classe é consideravelmente menor, tendo em vista que
possuem pouco capital social e econômico para potencializar o capital cultural
institucionalizado – na forma de títulos, diplomas - obtido nas escolas e universidades.
Em outras palavras, o diploma vale o que vale o seu detentor.41 O risco também é maior
para as classes populares, em vista do investimento de longo prazo que precisariam fazer
para focar na educação e retardar a entrada dos filhos no mercado de trabalho. Enquanto
a entrada dos filhos no mercado de forma precoce pode render frutos imediatos, ao
representar um complemento da renda familiar, o investimento em educação, além de não
constituir uma garantia de retorno financeiro, é muito mais prolongada e arriscada. Dito
de forma sintética, no caso da classe trabalhadora, o investimento em educação tende a
oferecer um retorno incerto, baixo e de longo prazo42.
Bourdieu aponta três componentes dessa classe que representam sua ânsia de ascensão
social, quais seja, o ascetismo, malthusianismo e a boa vontade cultural. O primeiro diz
respeito à disposição da classe média em realizar sacrifícios e abrirem mão dos prazeres
imediatos em nome de um projeto de futuro. O malthusianismo relaciona-se com o
controle da natalidade, tendo em vista que menos filhos significaria mais capital
econômico para investir nos estudos. Por fim, a boa vontade cultura caracteriza-se como
a disposição da pequena burguesia em tentar apropriar-se da cultura legítima, por
diferentes meios, visando a aquisição de capital cultural44.
41
BOURDIEU. Op. Cit.
42
NOGUEIRA, C. M. M; NOGUEIRA, M. A. Op. Cit.
43
BOURDIEU. Os herdeiros. Paris: Les Éditions de Minuit, 1964.
44
BOURDIEU. Op. Cit.
classes sociais. A trajetória dos pais, enquanto originários de classes populares, classes
médias ou altas, também exercerá influência na intensidade desse investimento escolar.
O mesmo pode ser dito em relação às classes populares e classes altas, considerando que
há a existência não só de classes, mas também de frações de classes. Dito de outro modo,
o investimento em educação diferencia-se não só em razão da classe, mas também em
razão da fração de classe considerada.
Em relação às estratégias, as classes altas, por sua vez, também investiriam intensamente
em educação, mas de uma forma mais relaxada, ou laxista, para dizer com Bourdieu. Isso
porque, o volume de capital que possuem para mobilização tornaria muito improvável
uma trajetória de fracasso escolar, de modo que o sucesso educacional é visto como algo
natural nessa classe. Haveria uma diferença, ainda, em relação às frações da classe alta
relativa a parte com maior capital econômico e a fração com maior capital cultural. As
primeiras tenderiam a obter um capital cultural institucionalizado apenas como
legitimação das posições já obtidas em virtude do capital econômico. As últimas
tenderiam a investir fortemente na aquisição do capital cultural, como forma de acessar
as carreiras mais prestigiosas no sistema de ensino.
Devemos destacar, também, que a influencia do capital cultural será mais forte quanto
maior for a democratização do ensino no país, considerando reformas na área que
diminuíram o impacto do capital econômico na escolarização. Assim, em países como o
Brasil, em que a educação é intensamente estratificada em instituições públicas e privadas
- que oferecem ensinos de qualidade muito diferentes – a relevância do capital econômico
para a conversão do capital cultural em credenciais escolares será, provavelmente, muito
maior45.
45
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
46
FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre educação e
estrutura econômico-social e capitalista. 3.ed. São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1989.
solução a educação profissional integrada ao ensino médio, como forma de vincular a
educação propedêutica e a transmissão da cultura geral à educação profissional e ao
aprimoramento das competências manuais47.
Todavia, de acordo com Bourdieu, o problema a ser enfrentado seria mais complexo,
considerando que o oferecimento de uma escola pública, gratuita e universal para todos
os estudantes não seria capaz de solucionar as disparidades do desempenho escolar,
levando em conta a existência de diferentes bagagens culturais que os alunos trazem de
casa, bem como que a distribuição desigual de capitais entre as classes sociais cria
diferentes condições para a apropriação da cultura transmitida pela escola.
47
MOURA, Dante Henrique. Educação Básica e Educação Tecnológica: dualidade histórica e perspectiva
de integração. Holus, ano 23, vol. 2. Natal: 2007
48
NOGUEIRA, Cláudio M. M; NOGUEIRA, Maria. A. A sociologia da educação de Pierre Bourdieu:
limites e contribuições. Revista Educação e Sociedade. Ano XXIII, nº 78, Abril, 2002
49
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005
regiões brasileiras pode servir de contraponto à concepção da escola como reprodutora
dissimulada da cultura legítima, tendo em vista a valorização, em um primeiro momento,
dos conhecimentos carregados pelos próprios estudantes. Embora o estudo sociológico
de Bourdieu tenha sido desenvolvido considerando a sociedade francesa da década de 60,
a utilização e a grande influência de sua obra no Brasil nos permite estabelecer algumas
relações do seu pensamento com a realidade brasileira.
Outra fragilidade apontada à teoria de Bourdieu seria a existência pressuposta por este de
um encaixe exato entre a experiência social dos agentes e o habitus, de modo que existiria
pouco espaço para a indeterminação e contingência das relações 52. O fato de as disputas
simbólicas se darem apenas em torno das denominadas culturas legítimas também cria
50
ALVES, Maria Teresa Gonzaga; NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins
and RESENDE, Tânia de Freitas. Fatores familiares e desempenho escolar: uma abordagem
multidimensional. Dados [online]. 2013, vol.56, n.3, pp.571-603
51
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico Crítica: Primeiras Aproximações. 8ª ed. Campinas/Autores
Associados, 2003
52
BERTONCELO, E. Classes sociais, cultura e educação. Novos Estudos, São Paulo, n. 104, p. 159-175,
2016.
um reduzido ambiente para a ação das classes populares. Uma das alternativas para a
superação desse dilema seria a retomada do conceito de contradição 53. Esse conceito, de
origem marxista, indica a existência de inconsistências inerentes ao sistema capitalista,
que criariam espaço para o conflito e a transformação social.
CONCLUSÃO
Sobre o sistema de ensino, destacamos que para Bourdieu, esse estaria longe de cumprir
o papel defendido pelos funcionalistas – amparados na ideia de meritocracia e autonomia
individual – de servir como instrumento de inclusão social, de emancipação humana, e
ainda, de fórmula para o enfrentamento das desigualdades sociais. Em sentido diverso, a
escola serviria como um mecanismo de reprodução da estrutura de classes e legitimação
das desigualdades sociais, ao tratar de forma igual pessoas que são diferentes, bem como
ao escolher reproduzir, de forma dissimulada, a cultura da classe dominante. Nesse
sentido, a herança familiar e as estratégias de investimento escolar mobilizadas pelas
diferentes classes e frações de classe são indicadores relevantes para um maior ou menor
desempenho escolar.
Por fim, as críticas elaboradas à teoria de Bourdieu que buscam avançar na pesquisa sobre
a problemática em tela constituem importantes contribuições para o aprimoramento dos
métodos de pesquisa, dos indicadores utilizados para a apreensão do desempenho escolar,
53
BERTONCELO. Op. Cit.
bem como para a descoberta de possíveis soluções para as contradições evidenciadas no
sistema educacional das sociedades de classes.
REFERÊNCIAS