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UMA PROPOSTA DE LÍNGUA MATERNA INSTRUMENTAL PARA O

ENSINO FUNDAMENTAL

Tânia Maris de AZEVEDO


Universidade de Caxias do Sul
Vania Morales ROWELL
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Resumo: É inquestionável a relação existente entre a linguagem e a estruturação do


pensamento. É inquestionável, também, que a linguagem, principalmente a verbal, é,
senão o principal, um dos principais veículos de aquisição de conhecimento em todas as
áreas. Diante disso, faz-se necessário repensar o ensino de língua materna no Ensino
Fundamental, uma vez que o enfoque dado até hoje à disciplina de Língua Portuguesa
não tem contribuído para facilitar a aprendizagem nas demais disciplinas que compõem
o currículo desse nível de ensino. Assim, o que se propõe é redimensionar o
planejamento da disciplina de Língua Portuguesa, conferindo-lhe um caráter
instrumental na direção do desenvolvimento das competências lingüísticas atinentes à
compreensão e produção oral e escrita dos textos que servem de base para a aquisição
de conhecimentos nas outras disciplinas curriculares do Ensino Fundamental, de 5ª a 8ª
série. Conseqüência natural desse processo é a capacitação dos professores de língua
materna – quer nas licenciaturas, quer em termos de formação continuada –, para que
possam atuar com eficácia no sentido da instrumentalização lingüística dos educandos,
concebidos como sujeitos conhecedores que efetivamente são.
Palavras-chave: aquisição de conhecimento; ensino instrumental de língua materna;
formação de professores.

Introdução

O ensino de língua materna, hoje, parece estar um tanto desfocado em relação ao


seu objetivo, principalmente no que se refere ao Ensino Fundamental: à metalinguagem
é conferido o status de protagonista, quando deveria, no máximo, ser coadjuvante.
O estudo da língua tem se reduzido à memorização de regras gramaticais
aplicadas a uma única modalidade, a língua escrita, em uma única variante, a padrão-
culta. A língua é tratada como uma dobra sobre si mesma no sentido de que o estudo da
estrutura e da forma é visto como suficiente e até mesmo essencial para que, como
conseqüência natural e necessária, o sujeito aprenda a produzir e compreender
eficientemente textos/discursos reais, aqueles inseridos em situações cotidianas de
comunicação, quer escolares, quer não.
Obviamente, e a experiência é testemunha disto, essa conseqüência não é assim
tão natural e, menos ainda, necessária. Muito pelo contrário, a “aprendizagem” da
metalinguagem parece até distanciar o aprendiz das tarefas de compreensão leitora e de
produção de textos/discursos. O estudo da gramática normativa acaba por inibir e
limitar a atividade de produção do aluno, pois este tem sempre a impressão de não saber
escrever, como se a língua escrita fosse uma modalidade a que somente os grandes
literatos têm acesso, longe, portanto, do uso corrente advindo de necessidades
cotidianas. Tanto é assim que é comum ouvir, nos mais diversos meios e nas mais
diferentes profissões – inclusive na de professor –, profissionais afirmando
categoricamente não saber “colocar suas idéias no papel” e ter dificuldade para ler um
texto mais especializado e mais complexo.
É preciso lembrar que a criança chega à escola como usuário da língua e com
uma competência comunicativa de base já bastante desenvolvida em nível oral, além de
contar com uma imaginação prodigiosa e extremamente fértil em termos de
possibilidade de criação e potencialidade de aquisição de recursos lingüísticos para
aprimorar sua expressão verbal.
A escola, na contramão desse processo, introduz a criança no mundo do código
escrito, desprezando o que ela já domina lingüisticamente e impondo a ela um registro
desvinculado do seu contexto de uso. Unidades desprovidas de sentido – como letras,
sílabas, palavras e mesmo orações – são trabalhadas num universo totalmente artificial,
impondo ao sujeito aprendiz a condição do “não saber”, da plena ignorância, como se o
falante já não dominasse estruturalmente mecanismos básicos de uso da língua. A
língua escrita é colocada ao aluno como uma ilustre desconhecida, sem qualquer
vínculo com a língua que ele já usa, e usa proficientemente em várias situações
enunciativas.
Por outro lado, as demais disciplinas curriculares tratam a aquisição do
conhecimento em suas áreas, cada uma no seu nicho, como retenção de conteúdos
temáticos, de informações específicas, sem que haja consciência de que a linguagem é o
principal veículo de interação, por meio da qual se dá a construção do conhecimento, e a
língua a ferramenta maior de acesso às informações e de processamento/sistematização
delas rumo à construção dos saberes.
Essa falta de consciência faz com que os professores que atuam com as outras
disciplinas que compõem o currículo do Ensino Fundamental não se percebam como
também professores de língua materna, como se o processo de apreensão e apropriação
do conhecimento não fosse mediado pela língua.
É nesse contexto que se circunscreve o presente trabalho cujo objetivo é o de
propor uma abordagem instrumental para o ensino de Língua Portuguesa no Ensino
Fundamental (mais especificamente, de 5ª a 8ª série), ou seja, uma abordagem que
conceba a língua como “ferramenta” para a aquisição de conhecimentos em todas as
áreas, desde o acesso à informação até a estruturação do pensamento e dos diferentes
raciocínios que cada área impõe ao sujeito conhecedor.
São diferentes textos, diferentes estruturas, diversos campos semânticos a serem
dominados e mobilizados para que o sujeito possa transitar pelas várias áreas e pelos
múltiplos tipos de conhecimento. São requeridas do aprendiz diferentes habilidades
lingüísticas para a construção dos diversos saberes atinentes a cada forma de conhecer e
cabe à escola, a cada professor e, mais especificamente, ao professor de língua materna
a instrumentalização lingüística do aluno para a construção do conhecimento.
O que defenderemos aqui são algumas concepções acerca do ensino e do ensino
de língua materna, algumas formas de conceber a língua como instrumento de interação
humana e mediadora da aquisição de conhecimentos. Portanto, não filiaremos este
trabalho a nenhuma teoria lingüística em especial, mas a determinadas posturas que,
transpostas ao ensino, possam dar conta da real função da língua na construção do
conhecimento. Se houver necessidade de explicitar alguns pressupostos teóricos,
certamente, estes estarão vinculados às chamadas teorias enunciativas, pois cremos que

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o uso da língua e sua função na interlocução devam ser a tônica do processo educativo
em se tratando do ensino da língua materna.
Como já foi dito, o Ensino Fundamental não é lugar de discussões
metalingüísticas e muito menos de prescrições gramaticais, mas, se o objetivo é
proporcionar ao aluno situações que o levem a construir conhecimentos e formar
conceitos, nesse nível de ensino, a língua portuguesa deve ser tratada desde os seus
diversos usos, quer em termos de leitura, quer de produção, e o aporte teórico que pode
alicerçar essa concepção de ensino só poderá ser aquele inscrito na perspectiva
enunciativa da lingüística.
Dados os limites desse estudo, não se tem a pretensão de propor soluções
definitivas para o problema detectado, mas apenas elencar algumas reflexões que
poderão contribuir para que o ensino de língua materna assuma sua principal função no
Ensino Fundamental: a de municiar o aprendiz com os mecanismos lingüísticos
necessários à compreensão e produção dos diversos gêneros discursivos presentes no
cotidiano de qualquer cidadão e daqueles gêneros de que se valem as demais disciplinas
curriculares para tratar o conhecimento.

1. Alguns conceitos de base

No momento em que se concebe a linguagem como responsável pela


estruturação do pensamento, e a língua como veículo dessa estruturação e, portanto,
como instrumento fundamental à aquisição de conhecimento, faz-se mister discutir,
mesmo que breve e superficialmente – dadas as limitações impostas pela configuração
deste trabalho –, alguns conceitos que se põem na base de uma proposta de ensino
instrumental da língua materna.
Não há como pensar o ensino de língua sem pensar antes no ensino como
educação formal. E falar sobre a educação formal requer uma breve reflexão sobre o
conceito de homem em suas relações com os conceitos de natureza, cultura, sociedade.
O homem só difere dos outros animais por ser capaz de, pela interação com seus
semelhantes, agir sobre a natureza no sentido de transformá-la de acordo com suas
necessidades de sobrevivência e, também, por ser o único a preservar o fruto dessas
constantes transformações – a cultura – ao longo da história, para que as gerações
futuras possam se valer delas sem ter que refazer o caminho já trilhado.

O ser humano distingue-se dos outros animais e assume a condição de sujeito,


principalmente, por ser o ÚNICO:
− dotado de racionalidade, o que lhe possibilita abstrair, distanciar-se da “realidade” a
ponto de, por meio da percepção, compreensão, interpretação, representar-se e
representar o mundo;
− capaz de, por sua alteridade constitutiva, constituir-se na intersubjetividade e auto-
referir-se, por meio da linguagem;
− a manter sua identidade, independentemente das alterações físico-químicas, afetivas, de
personalidade, de caráter que ocorrem com ele ao longo da vida;
− a poder refletir sobre si mesmo, pois é dotado de consciência – consciência esta que lhe
permite inclusive ter consciência da existência de seu próprio inconsciente, de sua
experiência pessoal intransferível;

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− a concretizar a idéia de liberdade, por ser capaz de conceber e fazer escolhas e poder
operar essas escolhas dentro dos meios interno e externo, avaliando-as e avaliando sua
própria operacionalização.1

Essas potencialidades do ser humano que o diferenciam dos outros animais e o


tornam único têm na base – e, ao mesmo tempo, como principal instrumento de
atualização, de concretização – sua capacidade de linguagem, a competência humana de
constituir-se, constituir o outro e constituir seu mundo na e pela linguagem.
Para abstrair, compreender, interpretar, representar-se e representar o mundo,
referir e auto-referir-se, preservar sua identidade, refletir sobre si mesmo, sobre seu
conhecimento e sobre suas próprias formas de conhecer e aprender, bem como para
realizar, tornar concreta a idéia de liberdade, exercendo sua cidadania, o homem se vale
da linguagem, e, mais especificamente, do sistema lingüístico que põe em uso.
A condição social do homem, a interação com os demais da mesma espécie, bem
como a preservação da cultura construída só é possível porque o homem possui uma
linguagem, uma forma de simbolizar, de representar, de abstrair dos fenômenos
conceitos que perduram por meio da linguagem.
Da relação do homem, como sujeito conhecedor que é, com a natureza e com os
outros sujeitos, relação desencadeada pelos conflitos que a sobrevivência cotidiana
impõe, surge o processo de educação informal que, novamente via linguagem, é o
grande responsável pela preservação da cultura e pela consolidação da sociedade.
A educação informal tem por características: (a) a não-sistematicidade, uma vez
que não é planejada nem regida por preceitos didático-pedagógicos; (b) a
espontaneidade, já que acontece na justa proporção da necessidade, nos diferentes
grupos e relações sociais, à medida que os conflitos surgem como elementos
perturbadores da estabilidade do indivíduo/grupo; e (c) a circunstancialidade, visto que
o processo não tem local e hora marcados, efetiva-se conforme a exigência das situações
problematizadoras.
Por meio do processo educativo informal, são transmitidos valores, crenças,
mitos, enfim, regras de convivência de um grupo, de geração em geração.

A educação é o vetor de transmissão da cultura enquanto que esta define o quadro


institucional da educação e ocupa um lugar essencial em seus conteúdos. A educação,
afirma-se, ocupa uma posição central no sistema de valores e os valores são os pilares em
que se apóia a educação. Postas a serviço das necessidades de desenvolvimento do ser
humano, a educação e a cultura tornam-se, quer uma, quer outra, meios e fins deste mesmo
desenvolvimento.2

Da exigência de organizar e disseminar conhecimentos, de modo a torná-los


comuns a grupos maiores e mesmo à sociedade como um todo, surge a educação formal,
ou ensino. Com ambiente e horários determinados, com profissionais especializados,
com material apropriado e programas curriculares estabelecidos, a educação formal,
diferentemente da informal, assume a configuração de processo: (a) sistemático –
metódica e metodologicamente organizado para propiciar a aquisição do conhecimento
produzido –, (b) programado – com objetivos e ações planejados previamente e
conteúdos hierarquicamente dispostos ao longo de um currículo – e (c) situado
artificialmente – em oposição à circunstancialidade que define o processo de educação

1
SANTOS, PEREIRA e AZEVEDO, 2004, p. 14-15.
2
NANCZHAO, 1998, p. 257.

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informal, a educação formal tem tempos e espaços definidos; ocorre por meio da criação
de ambientes de aprendizagem, antecipando necessidades e conflitos.
A educação formal passa a ser, então, um simulacro do processo educativo
informal, no sentido de que tenta reproduzir situações conflitivas na forma de situações
de aprendizagem, para que o sujeito conhecedor tenha acesso ao conhecimento social e
historicamente produzido.
Todo o processo educativo, seja ele formal ou informal, só é possível por meio
da linguagem e, mais especificamente, da língua oral ou escrita. Conhecimentos
matemáticos, físicos, químicos, geográficos, independentemente de terem uma
linguagem própria, um sistema de formalização e representação, são veiculados pela
educação, formal ou não, por meio do sistema lingüístico, da linguagem verbal, oral ou
escrita. Os questionamentos, as explicações, as definições, os exercícios didáticos têm
na linguagem verbal sua forma de expressão e o meio de decifração/compreensão de
símbolos, figuras e gráficos pertinentes às diversas áreas do conhecimento. Qualquer
que seja a forma de educação, da mais sistemática a mais espontânea, tem como veículo
mais utilizado a língua, justamente por ser ela o meio mais viável de transmissão de
informações e de processamento delas rumo à formação de conceitos e,
conseqüentemente, à construção do conhecimento.
Falando em conhecimento, este é outro conceito de base a ser aqui discutido,
pois de como o compreendemos e entendemos o ato de conhecer decorre a concepção
de ensino de língua proposta.
O conhecimento é visto aqui como o resultado, o produto do processamento, da
organização, enfim, da sistematização do conjunto de informações a que somos
expostos a todo instante ou a que nos expomos quando temos um problema a
solucionar. Essas informações chegam a nós de várias formas e por diversas vias, desde
o que é percebido sensorialmente até o que é intelectualmente captado ou acessado.
O que ocorre é que essas informações por si só não se constituem meios para a
solução de problemas, precisam ser inter-relacionadas para assumir a configuração de
conhecimento construído e, então, poder ser adaptadas, ressignificadas e aplicadas,
como instrumentos de resolução, a situações que se colocam como problemas.

O conhecimento só é conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações


e inserido nos contextos destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber. [...]
[A] informação é uma matéria-prima que o conhecimento deve dominar e integrar.3

O conhecimento resulta, por conseguinte, de uma ação do sujeito sobre o objeto


a ser conhecido. Não há, pois, transmissão de conhecimento, mas reconstrução,
ressignificação do objeto de conhecimento pelo sujeito por meio da ação, da interação,
que se faz, por sua vez, pela linguagem.
É a partir de um acontecimento que se institui como desafio/problema ao sujeito
que o processo de conhecer entra em ação, ou seja, que o sujeito, pela interação com
outros sujeitos e com as informações – objeto de conhecimento –, constrói uma rede de
relações entre essas informações e delas com a situação-problema, interpretando-as e
convertendo-as em possibilidades de solução ou de minimização do problema instituído.
O produto desse processo, independentemente da efetiva solução do problema, é
o que se concebe como conhecimento, uma vez que essa rede de relações estabelecida
foi incorporada pelo sujeito e poderá ser o alicerce de novas relações na busca de outras

3
MORIN, 2002, p. 16 e 18.

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soluções para outras situações conflitivas. A cada evento que se apresenta ao sujeito
cognoscente, ele localiza e mobiliza o que já assimilou a respeito, ressignifica e
reconstrói o conhecimento que já possui e, buscando novas informações, realizando
novas interações, incorpora novas redes de relações ao seu conhecimento prévio,
ampliando-o, redimensionando-o e/ou sedimentando-o para a solução de novos
problemas.
Assim, sucessiva e recursivamente, o conhecimento vai sendo construído,
aprofundado, alargado, e o sujeito vai se tornando mais autônomo, mais senhor de suas
interpretações e ações sobre o mundo e sobre si mesmo.
Como diz Luckesi (1989, p. 47-48),

o conhecimento é o produto de um enfrentamento do mundo realizado pelo ser humano que


só faz plenamente sentido na medida em que o produzimos e o retemos como um modo de
entender a realidade, que nos facilite e nos melhore o modo de viver, e não, pura e
simplesmente, como uma forma enfadonha e desinteressante de memorizar fórmulas
abstratas e inúteis para nossa vivência e convivência no e com o mundo.

Desde essa perspectiva, o objeto de conhecimento não se apresenta ao sujeito


como um reflexo do real a ser assimilado, mas como um objeto a que o sujeito precisa
atribuir sentido. Por isso, o conhecimento é sempre, como diz Morin (2002), tributário
da interpretação, logo, da subjetividade, isto é, construído individual e transitoriamente,
não admitindo o caráter de verdade tácita e imutável.
A linguagem assume no processo de conhecer pelo menos três funções: a de
veicular a interação do sujeito cognoscente com o objeto de conhecimento,
possibilitando sua apropriação; a de estruturar e organizar o conhecimento resultante
dessa interação; e a de tornar consciente ao sujeito todo esse processo.

[...] o homem transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada


cultura. Mas a sua relação com o meio não se dá de forma direta, ela é mediada por
sistemas simbólicos que representam a realidade; e a linguagem, que se interpõe entre o
sujeito e o objeto de conhecimento, é o principal sistema de todos os grupos humanos.4

Quando o sujeito se questiona sobre algo, quando mobiliza o que já conhece a


respeito do que está investigando e, desde aí, estabelece novas relações a fim de se
apropriar desse objeto de investigação e, ainda, quando consegue tomar consciência do
caminho percorrido para desvendar o objeto que se lhe põe à frente, bem como do
resultado desse desvelamento, o faz por meio da linguagem, seja ela verbal ou não.
Como diz Vygotsky, a linguagem dá forma ao pensamento, estruturando-o. É por meio
da linguagem que o sujeito interpreta, constrói, reconstrói, ressignifica, redimensiona e
socializa o conhecimento.
Para Luria (1987, p. 202),

a presença da linguagem e de suas estruturas lógico-gramaticais permite ao homem tirar


conclusões com base em raciocínios lógicos, sem ter que se dirigir cada vez à experiência
sensorial imediata. A presença da linguagem permite ao homem realizar a operação
dedutiva sem se apoiar nas impressões imediatas e se limitando àqueles meios de que
dispõe a própria linguagem. Esta propriedade da linguagem cria possibilidade de existência
das formas mais complexas do pensamento discursivo (indutivo e dedutivo), que
constituem as formas fundamentais da atividade intelectual produtiva humana.

4
BEZERRA, 2002, p. 38.

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Se a linguagem é o instrumento fundamental do processo de conhecer e se o
conhecer pressupõe o aprender, a linguagem desempenha na aprendizagem função
igualmente essencial, como mediadora das relações entre o sujeito e o objeto a
conhecer.
Nesse sentido, quando se pensa uma proposta para o ensino de língua materna,
outro conceito de base a ser repensado é o de aprendizagem. É preciso saber como se
entende o processo de aprendizagem, como se aprende, para poder conceber uma
proposta de ensino, uma vez que o ensino só tem sentido se pensado da perspectiva do
aprender.
Não há espaço aqui para analisarmos todas as formas de aprendizagem,
restringir-nos-emos, pois, à aprendizagem formal, sistematizada, escolar.
Se o ato de conhecer pressupõe a construção de uma rede de informações
interconectadas, faz-se necessário aprender a tecer essa rede. A aprendizagem, aqui, é
vista como o desenvolvimento de competências/habilidades essenciais ao ato de
conhecer como as de observar, comparar, classificar, analisar, sintetizar, interpretar,
criticar, descobrir, estabelecer relações. Outra vez, o desenvolvimento de tais
competências/habilidades tem como principal ferramenta a linguagem e,
essencialmente, a linguagem verbal. Desde a mais simples observação até a construção
da mais complexa rede de relações tem na verbalização o maior instrumento de
representação/sistematização/consolidação.
Segundo Piaget, aprender é diferente de conhecer. Aprender, para o autor, é
saber realizar, ao passo que conhecer é compreender e distinguir as relações necessárias,
é atribuir significado às coisas. Nesse sentido, aprender diz respeito mais aos
procedimentos e às estratégias empregadas pelo sujeito para agir sobre o objeto de
conhecimento e decifrá-lo ou ressignificá-lo.
Novamente, aqui, torna-se essencial a consciência sobre esses procedimentos:
aprender a aprender, pois, é fundamental para o aprimoramento das estratégias
pressupostas pelo conhecer. A meta-aprendizagem, assim como a metacognição, é
fundamental para assegurar ao sujeito a autonomia do seu desenvolvimento, uma vez
que lhe permite otimizar processos e redimensionar estratégias em função do objeto a
conhecer.
A aprendizagem resulta de construções efetivadas pelo sujeito cognoscente por
meio de estágios de reflexão, remanejamento e remontagem das percepções que
ocorrem na ação sobre o mundo e na interação com outras pessoas5. A aprendizagem é
resultado de um processo de interação entre o mundo do sujeito e o mundo do objeto,
por uma integração ativada pelas ações do sujeito6.
A aprendizagem, por decorrência, só acontece à proporção que o aluno age sobre
os conteúdos específicos e, desafiado por situações problematizadoras, tem suas
próprias estruturas de pensamento previamente construídas ou em construção. E, ainda,
pelo desenvolvimento de competências/habilidades, mantém uma relação ativa como o
conhecimento, relação essa que produz transformações no sujeito cognoscente e no
próprio objeto cognoscível.
No entanto, a aprendizagem não pode ser vista como um fenômeno unicamente
individual. Se o ser humano é aqui entendido como um ser essencialmente social, só se
pode compreender a aprendizagem como resultado de um constante processo de
interação, não apenas do sujeito com o objeto a conhecer, mas do sujeito com outros
5
MORAES, 2000, p. 200.
6
Id. Ib.

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sujeitos. No caso específico do ensino formal, a aprendizagem decorre
fundamentalmente das interações aluno-professor e aluno-aluno.
Segundo Wood7, a teoria vigotskiana atribui ao sucesso alcançado pela
cooperação a base da aprendizagem e do desenvolvimento. A instrução, tanto formal
como informal, em contextos sociais variados, realizada por colegas, familiares, amigos
e professores dotados de maior conhecimento, é o principal veículo de transmissão
cultural do conhecimento. O conhecimento encontra-se inscrito nas ações, no trabalho,
nas brincadeiras, na tecnologia, na literatura, nas artes e na fala dos membros de uma
sociedade. E apenas por meio da interação com os representantes de vários grupos
sociais e culturais é que o sujeito poderá adquirir, incorporar e desenvolver
posteriormente aquele conhecimento. Ou seja, é através das múltiplas inter-relações que
o indivíduo mantém com os diferentes grupos sociais que vai construindo seu
conhecimento e incorporando valores, crenças e atitudes que compõem a cultura e que,
por sua vez, fazem-na perpetuar-se.
O ato de conhecer pressupõe uma ação do sujeito sobre o objeto de
conhecimento, no sentido de compreendê-lo e decifrá-lo, processos que, por sua vez,
implicam o ato de refletir, já que nem todo o objeto de conhecimento está disponível
sensorialmente. É pela possibilidade de representar simbolicamente, ou seja, pela
linguagem, que o sujeito consegue abstrair, logo, analisar, hipotetizar, deduzir,
generalizar, transferir, projetar, acessar e processar informações, sistematizando-as e
incorporando-as na forma de conhecimento construído.
É pela linguagem que o homem se apropria do conhecimento. E é pelo
questionamento sobre a realidade (esta concebida como um ponto de vista do sujeito,
logo, individualmente percebida e compreendida) que o conhecedor conhece. Portanto,
é a língua que permite ao sujeito assumir uma atitude investigativa sobre o mundo,
questioná-lo e questionar o conhecimento produzido, e, assim, construir sobre ele seus
pontos de vista. É a língua o principal instrumento de tomada de consciência do mundo
pelo sujeito.
Para Wittgenstein e Foucault, a linguagem é atributiva, isso é, não há qualquer
correspondência estrita (necessária, em termos filosóficos) entre as palavras
(linguagem) e as coisas (mundo), mas que é pela linguagem que damos sentido às coisas
(ao mundo).
Conhecer nada mais é do que atribuir sentido ao que se nos apresenta; conhecer,
portanto, pressupõe a linguagem para tal atribuição de sentido. É por meio da linguagem
que o sujeito conhecedor age sobre o objeto a conhecer e, nessa ação, construindo
hipóteses e generalizações, confere sentido a ele, apropriando-se desse objeto e tomando
consciência do próprio processo de conhecê-lo, o que, conseqüentemente, lhe permitirá
decifrar novos objetos cognocíveis e implementar novas formas de conhecer.
De acordo com Vygotsky (1998), quando trata do processo de formação de
conceitos, o signo, ao mesmo tempo em que funciona como elemento mediador nesse
processo, afigura-se como sua síntese, uma vez que se torna a exteriorização, a
abstração, a formalização do próprio conceito formado. A linguagem, nesse sentido,
assume papel mediador e estruturante no processo de conhecer. É por meio dela, e mais
especificamente por meio da língua, que significamos e representamos o mundo que se
nos dá a conhecer.

7
1996, p. 45.

131
É a língua a responsável pela transformação do conhecimento em saber e em
saber-fazer, visto que ela possibilita a socialização de informações e o desenvolvimento
de habilidades que o raciocinar pressupõe. É pela propriedade de referir pela língua que
o sujeito se constitui, instaura o outro e constitui o mundo que o cerca.
As concepções até aqui discutidas formam o alicerce sem o que não seria
possível delinear uma proposta para o ensino de língua materna no Ensino Fundamental.
Somente quando se tem por base e se acredita que a função da língua é a de mediar o
processo de conhecer em qualquer área pode-se propor que o ensino de língua
configure-se como uma instrumentalização ao ato de transformar informações em
conhecimento e, posteriormente, outra vez por meio da língua, transformar esse
conhecimento construído em ferramenta para a solução de problemas que o viver e o
conviver impõem.
Assim sendo, é hora de repensarmos o ensino da língua materna desde essa
perspectiva: algumas concepções, algumas diretrizes, alguns redimensionamentos.

2. Português instrumental: a língua a serviço da construção de saberes no Ensino


Fundamental

Se a educação formal é tida aqui como uma simulação dos processos de ensino e
aprendizagem desenvolvidos pela educação informal, o ensino da língua materna não
poderia ser concebido de outra forma. Assim, o ensino da língua portuguesa deveria
seguir na direção da aquisição da linguagem oral, no sentido de que essa modalidade da
língua é apreendida e aprendida em seu uso, pela interação do sujeito com outros que já
a detém. Ensinar língua materna, então, significa expor o sujeito aprendiz a diferentes
situações de emprego da língua, seja na modalidade escrita para aprendê-la, seja na
modalidade oral para aperfeiçoá-la.
Hoje, as aulas de língua portuguesa estão direcionadas prioritariamente à
aquisição e ao desenvolvimento da língua escrita, quer em termos de compreensão
leitora, quer no que se refere à produção de textos. A língua oral é relegada a um
segundo plano ou nem sequer trabalhada, sendo inclusive “atrofiado” seu uso no
ambiente escolar, já que as interlocuções são limitadas e rigidamente supervisionadas, e
as intervenções dos professores sobre a oralidade dos alunos vão exclusivamente no
sentido da correção e, ainda, da correção com critérios do nível culto da modalidade
escrita.
Além disso, o ensino do português está muito longe de priorizar as situações de
uso efetivo da língua a ser aprendida/aprimorada; a descrição ou mesmo a normatização
do sistema lingüístico é o foco dos currículos na Educação Básica. A língua como
objeto de ensino é uma língua atemporal, fora de contexto, portanto, desprovida de
qualquer função, mas plenamente recheada de regras e normas, cuja infração é sempre
motivo de punição; é a língua sobre si mesma e por si mesma, sem qualquer vínculo
com as possibilidades reais de emprego e, menos ainda, sem qualquer possibilidade de
criação sobre ou de rompimento do sistema que é tido como restritivo e coercitivo; é
uma língua fossilizada, sem ninguém que a atualize, que a realize, que atribua sentido a
ela.
Ora, sabe-se bem que o sentido não está na língua, como entidade virtual, mas no
contexto de uso das formas da língua; é o discurso, como diz Ducrot, que doa sentido, é
na parole saussuriana que o dizer se faz dito e, portanto, pleno de sentido. Então, como

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conceber um ensino de língua que a artificializa, que suprime dela o que lhe confere
sentido? Como esperar que o aluno aprenda a usar uma língua, a sua língua, ensinando
suas formas e estruturas descontextualizadas, fora da situação enunciativa que a faz
“fazer” sentido?
Diante disso e da crença de que a língua é, além do principal instrumento de
interlocução dos seres humanos, o principal elemento mediador na formação de
conceitos e, conseqüentemente, da construção de saberes pelos sujeitos, o que se propõe
aqui é quase o inverso disso. É um ensino de língua materna (em que as modalidades
oral e escrita tenham o mesmo status e sejam constante e concomitantemente
trabalhadas) cujas bases sejam as situações enunciativas, os contextos de interlocução,
os diferentes objetivos dos locutores, os diversos perfis dos interlocutores.

Nossos professores de língua – seja por formação profissional, seja por falta de formação –
são muito atraídos pela descrição de língua e pelo ensino de gramática. Sempre fazemos
sucesso na formação de professores quando discutimos as características formais e de estilo
de um texto ou gênero, a partir de nossos instrumentos. Por outro lado, nossos alunos não
precisam ser gramáticos de texto e nem mesmo conhecer uma metalinguagem sofisticada.
Ao contrário, no Brasil, com seus acentuados problemas de iletrismo, a necessidade dos
alunos é de terem acesso letrado a textos (de opinião, literários, científicos, jornalísticos,
informativos, etc.) e de poderem fazer uma leitura crítica e cidadã desses textos.8

Por isso, acredita-se que os gêneros discursivos, desde a abordagem de Bakhtin,


possam se constituir meios eficientes para o ensino da língua materna numa perspectiva
mais enunciativa e funcional.
A proposta desse autor vem ao encontro da função que se atribui aqui ao ensino
de língua materna no Ensino Fundamental, ou seja, a de instrumento do processo de
aquisição/construção de conhecimentos em todas as demais disciplinas que compõem o
currículo desse nível de ensino.
Como diz Bakhtin,

todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.


Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes
quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a unidade nacional de
uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados9 (orais e escritos)
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada
referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por
sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são
igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação.
Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da
língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominados
gêneros do discurso.10

Cada área do conhecimento – e, por conseguinte, no referido processo de


simulação, cada disciplina do currículo – possui formas específicas de expressar seus

8
ROJO, p. 27.
9
Conceito situado pelo próprio autor no campo da parole saussuriana, significa o ato de enunciar, de exprimir,
transmitir pensamentos, sentimentos, etc. Bakhtin, segundo seu tradutor, usa indiscriminadamente os termos
enunciado e enunciação, sem distingüi-los.
10
BAKHTIN, 2003, p. 261-262. Grifos do autor.

133
raciocínios e conceitos: definições, explicações, justificativas, questionamentos,
fórmulas, gráficos, mapas, esquemas, enfim, uma grande quantidade e diversidade de
gêneros discursivos aplicados às finalidades e necessidades de cada área e de cada
conceito trabalhado, analisado.
O sujeito aprendiz é exposto a essa multiplicidade de gêneros discursivos sem
que nenhuma instrumentalização lingüística lhe seja fornecida. A ideologia escolar tem
a falsa impressão de que o fundamental a ser ensinado é o conteúdo temático de cada
área, como se esse conteúdo não fosse veiculado por um conjunto de seqüências
discursivas próprias da área e que requerem domínio, por parte do sujeito cognoscente,
para que possam ser compreendidas e, então, aprendido, transferido e aplicado o
conteúdo que é por elas transmitido.
Desde essa perspectiva, à educação formal cabe não só ensinar o conhecimento
produzido em cada área mas também instrumentalizar o aprendiz para que tenha acesso
a esses conhecimentos e seja capaz de apropriar-se deles para construir seus próprios
conceitos e produzir novos conhecimentos.
Particularmente, à disciplina de Língua Portuguesa fica uma dupla tarefa: a de
instrumentalizar o aluno para compreender e produzir os gêneros discursivos cotidianos,
orais ou escritos, dos mais informais aos mais formais; e a de instrumentalizá-lo
também para operar, quer em termos de leitura, quer de produção, com os gêneros
utilizados pelas outras disciplinas, desde aqueles próprios das várias áreas do
conhecimento até os que são didaticamente usados pelas disciplinas para acesso e
construção do conhecimento produzido, a saber: os relatórios, resumos, resenhas,
esquemas, etc.
Ainda conforme Bakhtin,

em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições


específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma
determinada função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas
condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados
gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais
relativamente estáveis.11

Nesse sentido, o que se propõe aqui é que a função, a finalidade, a situação


enunciativa determinem a forma, os mecanismos lingüístico-gramaticais e textuais a
serem trabalhados, ensinados nas aulas de língua materna, e não o contrário como vem
sendo feito. Que a hierarquização dos conteúdos a serem trabalhados no Ensino
Fundamental, principalmente nas últimas quatro séries, em Língua Portuguesa, seja feita
com base nos gêneros discursivos veiculados nas outras disciplinas do currículo e que
seja assumida pela disciplina de língua materna a função instrumental que tem em
relação às outras que compõem o currículo.
Não se postula que seja abolido o estudo da forma em função da análise
enunciativo-discursiva, mas que esta seja priorizada e norteie o ensino daquela.
Acredita-se que tanto os recursos textuais (mecanismos que asseguram coerência e
coesão nos níveis macro e microestrutural) quanto os aspectos gramaticais sejam
tratados em função do gênero analisado, de acordo com o que é requerido pela situação
enunciativa.
De acordo com Rojo,

11
BAKHTIN, 2003, p.266.

134
toda prática de linguagem se dá numa situação (de comunicação, de enunciação, de
produção ou circulação) que é própria de uma determinada esfera social, em um dado
tempo e espaço históricos. Esta esfera neste tempo/espaço admite determinados
participantes (com relações específicas), temas e modalidades de linguagem e de mídia, e
não outros. Estes participantes articulam seus enunciados em gêneros específicos dessa
esfera e as propriedades composicionais e estilísticas desses enunciados em gêneros (forma
composicional, formas lingüísticas) serão dependentes das relações entre estes
participantes. Em especial, das apreciações de valor que estes façam sobe o tema e sobre
seus interlocutores.12

Cabe ao professor de língua materna criar situações-problema que desafiem o


aprendiz não só a compreender como também a produzir diferentes gêneros discursivos,
isto é, situações conflitivas cuja resolução dependa da produção/compreensão de
determinados gêneros. Só assim os alunos perceberão a importância de aprimorar-se
lingüisticamente para poder interagir em diferentes contextos e com diversos objetivos e
interlocutores e tirar o máximo proveito dessas interações.

Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos


enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo.
Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). Em termos
práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos
podemos desconhecer inteiramente sua existência. [...] até mesmo no bate-papo mais
descontraído e livre nós moldamos nosso discurso por determinadas formas de gênero, às
vezes padronizadas e estereotipadas, às vezes mais flexíveis, plásticas e criativas [...]. Esses
gêneros do discurso nos são dados quase da mesma forma que nos é dada a língua materna,
a qual dominamos livremente até começarmos o estudo teórico da gramática.13

Bakhtin acrescenta ainda que a língua materna – sua composição vocabular e


sua estrutura gramatical – não é apreendida por nós a partir de dicionários e gramáticas
mas de enunciações concretas que ouvimos e reproduzimos nas diferentes situações
discursivas, com os interlocutores que nos rodeiam. Assimilamos as formas da língua
somente nas e pelas enunciações. As formas da língua e as formas típicas dos
enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa
consciência em conjunto e estreitamente vinculadas.14
Aprender a falar, de acordo com o mesmo autor, significa aprender a construir
enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda,
por palavras isoladas). Há, segundo ele, entre os gêneros do discurso e as formas
gramaticais e destes com o discurso uma relação de inter-dependência em termos de
organização: os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma
forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas).15
Não entraremos aqui nos meandros da discussão lingüística existente entre tipos
textuais e gêneros discursivos (ou como quer Marcuschi, gêneros textuais). Não é
objetivo deste texto apresentar uma discussão teórica e terminológica sobre esse
assunto, no entanto, Marcuschi (2002) faz uma distinção interessante entre esses
conceitos e pensamos ser pertinente apresentá-la aqui, pois cremos ser possível aliar,

12
ROJO, p. 16-17.
13
BAKHTIN, 2003, p. 282-283.
14
Id. ib.
15
Id. ib.

135
como ferramentas pedagógicas para o ensino de língua materna, tipos textuais e gêneros
do discurso.
O autor16 diz usar a expressão tipo textual para designar uma espécie de
construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição (aspectos
lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas) e afirma que esses tipos abrangem
categorias como a narração, a exposição, a argumentação, a descrição e a injunção.
Já a expressão gêneros textuais (ou o que chamamos aqui gêneros discursivos) é
usada como uma noção propositalmente vaga para referir os textos materializados que
encontramos em nossa vida e que apresentam características sócio-comunicativas
definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica.
Os gêneros, segundo ele, são inúmeros, e alguns exemplos seriam o telefonema, a carta
comercial, a carta pessoal, o romance, o bilhete, a reportagem jornalística, o horóscopo,
o artigo científico, a resenha, etc.
Por estar didaticamente muito bem posto, reproduziremos o quadro elaborado
pelo autor17 para expressar essa distinção.

TIPOS TEXTUAIS GÊNEROS TEXTUAIS


1. construtos teóricos definidos por pro-priedades 1. realizações lingüísticas concretas definidas por
lingüísticas intrínsecas; propriedades sócio-comunicativas;
2. constituem seqüências lingüísticas ou seqüências 2. constituem textos empiricamente realizados
de enunciados e não são textos empíricos; cumprindo funções em situações
comunicativas;
3. sua nomeação abrange um conjunto limita-do 3. sua nomeação abrange um conjunto aberto e
de categorias teóricas determinadas por praticamente ilimitado de designações
aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, concretas determinadas pelo canal, estilo,
tempo verbal; conteúdo, composição e função;
4. designações teóricas dos tipos: narração, 4. exemplos de gêneros: telefonema, sermão, carta
argumentação, descrição, injunção e comercial, carta pessoal, romance, bilhete,
exposição. aula expositiva, reunião de condomínio,
horóscopo, receita culinária, bula de remédio,
lista de compras, cardápio, instruções de uso,
outdoor, inquérito policial, resenha, edital de
concurso, piada, conversação espontânea,
conferência, carta eletrônica, bate-papo virtual,
aulas virtuais, etc.

Se no ambiente escolar, e mesmo fora dele, o conhecimento se manifesta por


diferentes gêneros discursivos e se é papel da disciplina de língua materna
instrumentalizar o aluno para o livre trânsito entre esses gêneros para que possa se
apropriar do conhecimento produzido pela humanidade e, então, exercer plenamente sua
cidadania, acreditamos ser possível, no ensino de língua portuguesa, aliar, mesmo que
somente como instrumentos didáticos – uma vez que as bases teóricas que dão origem à
distinção feita por Marcuschi sejam em muitos pontos divergentes – esses dois pontos
de vista apresentados pelo autor.
Os tipos de texto, tanto quanto os aspectos gramaticais da língua, vêm sendo
trabalhados no ensino como fins em si mesmos. É comum vermos professores

16
2002, p. 22-23.
17
Id, p. 23.

136
destinarem grande parte do período letivo ao ensino de narrações e descrições
(principalmente no Ensino Fundamental), suas estruturas, seus elementos, seus subtipos
e, a par disso, categorizações e classificações lexicais e sintáticas, forçando ambientes
de compreensão e produção de textos que se “enquadrem” nessa tipologia, como se um
texto real fosse puramente narrativo ou descritivo.
Nossa proposta é que, partindo das situações enunciativas que dão origem aos
diversos gêneros discursivos (quer aqueles presentes no cotidiano, quer aqueles de que
se valem as demais disciplinas curriculares), analisando a finalidade de cada gênero, seu
estilo, seu conteúdo, os tipos de texto (ou, mais especificamente, as seqüências
discursivas que os constituem) sejam trabalhados para explicitar a composição
característica de cada gênero, sua construção composicional, como define Bakhtin.
Nesse sentido, tanto a tipologia textual quanto os aspectos gramaticais – que
passam a ser vistos como mecanismos de coesão e coerência textuais, portanto de um
prisma descritivo e não mais prescritivo – serão trabalhados em função dos gêneros
discursivos ensinados, ou seja, o uso da língua em contextos similares aos reais
determinará o estudo do sistema lingüístico.
Conforme o próprio Bakhtin18,

A língua como sistema possui uma imensa reserva de recursos puramente lingüísticos para
exprimir o direcionamento formal: recursos lexicais, morfológicos [...], sintáticos [...].
Entretanto, eles só atingem direcionamento real no todo de um enunciado concreto.

Uma instrumentalização lingüística com essa configuração parece-nos ser capaz


de facilitar ao aluno seu processo de formação de conceitos, a aquisição de
conhecimentos e, conseqüentemente, a construção dos saberes indispensáveis à sua
inserção na sociedade como verdadeiro cidadão.
Visto que o aluno, quando chega à escola, já domina a língua materna, o papel
do ensino da língua, mesmo da modalidade escrita, deve ser o de instigar, provocar e
promover uma tomada de consciência dos mecanismos e processos lingüísticos que o
sujeito já usa e de outros disponíveis no sistema lingüístico, quer oral, quer escrito, no
sentido de possibilitar a ele um uso mais efetivo e eficaz desses recursos no
desenvolvimento de competências/habilidades necessárias à aquisição do conhecimento.

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18
2003, p. 306.

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