Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
TERESINA – PI
2014
2
TERESINA – PI
2014
3
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________
Profa. Dra. Algemira de Macêdo Mendes
(Presidente – UESPI)
___________________________________________________________
Profa. Dra. Edilene Ribeiro Batista
(1a Examinadora- UFC)
___________________________________________________________
Prof. Dra. Maria Edileuza da Costa
(2a Examinadora- UERN)
___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Baptista Barbosa
(Examinadora Suplente- UESPI)
4
CDD: 800
AGRADECIMENTOS
Inicio meus agradecimentos por DEUS, já que Ele colocou pessoas tão
especiais a meu lado, sem as quais certamente não teria dado conta!
Aos meus pais, José e Valmira, obrigada por tudo que vocês me deram e me
ensinaram. Agradeço pela sua generosidade e simplicidade, pelo amor
incondicional, pelo carinho e afeto. Não encontro palavras que consigam agradecer,
simplesmente sou envolvida por um enorme sentimento: a gratidão.
À minha orientadora, Professora Dra. Algemira de Macêdo Mendes, obrigada
pela firme orientação, infinita paciência e compreensão, por acreditar em mim, me
mostrar o caminho da ciência, fazer parte da minha vida nos momentos bons e ruins,
por ser exemplo de profissional e de mulher que sempre fará parte da minha vida.
Aos professores da Pós-Graduação, pela competência, dedicação e estímulo.
Manifesto meus agradecimentos à Secretaria de Pós-Graduação do Mestrado
Acadêmico em Letras, em especial à secretária Rosenir pela prontidão em me
auxiliar sempre que precisei.
A meus amigos do mestrado, pelos momentos divididos juntos, pelas discussões
pelo Whatsapp. Obrigada por dividir comigo as angústias e alegrias. Obrigada pela
amizade!
Possuir amigos que pensam de formas tão distintas, enriqueceu
significativamente a minha formação. Agradeço a enorme diversidade que me rodeia
e que me desorienta às vezes, ajudando a captar diferentes olhares sobre a mesma
realidade.
Gostaria de agradecer à UESPI pelo ensino gratuito de qualidade sem o qual essa
dissertação dificilmente poderia ter sido realizada e a todos mais que eu não tenha
citado nesta lista de agradecimentos, mas que de uma forma ou de outra
contribuíram não apenas para a minha dissertação, mas também para eu ser quem
eu sou.
Gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino
Superior (CAPES) pelos dois anos de bolsa, possibilitando que esta pesquisa se
concretizasse.
7
Nísia Floresta.
8
RESUMO
RÉSUMÉ
Le travail traite sur le romans Memórias de Marta (2007), A Família Medeiros (1919)
et A Silveirinha (1997), de l’écrivain Júlia Lopes de Almeida. L'étude a été comme
objectif anlyser la condition féminine dans les œuvre de Júlia Lopes de Almeida
publiées de 1889 à 1914, en mettant au point sur la trajectoire bibliographique de
Júlia Lopes de Almeida , ainsi que l’écriture ficcionel de cette auteur. Cette étude a
également fait une analyse des stratagèmes du discours narratif dans ses œuvre
Memórias de Marta , A Família Medeiros et A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida.
Une analyse simultanée de la vie et des œuvres de Júlia Lopes de Almeida à partir
d'une approche relationnelle que nous a permis de conclure que cette auteur a mis
en pratique dans son écriture et dans leurs actions concrètes, un féminisme possible
dans le contexte de son temps et dans les limites données par l'environnement social
dans lequel elle s'est développée. L’aménité présente dans ses œuvres on réfère
plus à recours stylistiques que le caractère doux du féminisme proprement dit. Et
c'est précisément en raison de ses interventions peu agressifs que l'écrivain avait
garanti l'accès à la grande masse des lecteurs distribués par de nombreuses extraits
sociaux. Ainsi, elle peut présenter à son publique lecteur, surtout des femmes, les
thématiques comme l'importance de l'éducation pour les femmes, la politique et la
critique du fanatisme religieux. Cette étude visait à analyser la représentation des
figures féminines dans les romans almeidianos à travers des théoriciens comme
Salomoni (2005 ), Zolin (2005 ), Xavier (2007 ), Telles ( 2007), Stevens (2005 ),
Souza (2011 ) ,Sharpe (1994 ) Rodella (2010 ) , Perrot (2012 ) , Oliveira (2008 ), De
Luca (1999 ) et Showalter (1994 ). Il été fait une recherche bibliographique sur les
principales caractéristiques des personnages féminines et de l’auteur par rapport à
son style d'écriture.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12
2.2 Ressonâncias da crítica literária sobre a obra de Júlia Lopes de Almeida ...... 31
1 INTRODUÇÃO
A autora com suas ideias feministas contribuiu, com seus contos e poemas,
em A Mensageira, Única, O Quinze de novembro e Kosmos, revistas dedicadas às
18
Pode-se afirmar que Júlia Lopes de Almeida teve uma efetiva participação na
imprensa, já que, além de ter atuado como cronista em jornais como a Gazeta de
Campinas e O País, publicou dois importantes romances em forma de folhetim, A
Família Medeiros e a Viúva Simões na Gazeta de Notícias. Ao longo de sua carreira
literária, a autora colaborou em jornais, atuou como conferencista em eventos que
tratavam da ampliação dos direitos femininos, como o Consejo Nacional de Mujeres
de la Argentina em 1922, além do Congresso Feminista de 1922. Foi também
presidente honorária da Legião da Mulher Brasileira e ainda ocupou a cadeira
número 26 da Academia Carioca de Letras. Segundo Souza (1978, p. 23) “A Cadeira
Vinte e Seis tem como patrono um nome excepcional: Júlia Lopes de Almeida”.
Ao longo de sua carreira, Júlia Lopes de Almeida fez muitas viagens a
Europa, onde teve algumas de suas obras traduzidas para o francês. Segundo De
Luca (1999), em 1925 Júlia Lopes de Almeida mudou-se para a França para
acompanhar sua filha Margarida Lopes de Almeida em seus estudos em Paris, só
retornando ao Brasil em 1932, oito anos depois.
Salomoni (2005), ao fazer uma análise de sua bibliografia, identificou um
intenso movimento literário, marcado pela publicação de vinte e cinco livros, além de
contos, colaborações em diferentes jornais do Brasil e de Portugal. Essa alta rotação
de publicação é indicação de uma boa aceitação de seus escritos, supondo um
provável sucesso de público pelo fato de haver um curto espaço de tempo entre a
publicação de um livro para o outro, além das diversas reedições de seus livros.
Pode-se dizer que a condição de pertencimento a uma classe social abastada
contribuiu positivamente para sua carreira, uma vez que a autora foi beneficiada
pelas aquisições culturais de sua família, sobretudo do seu pai, que, possuidor de
uma formação intelectual vivenciada na Europa, cedeu a ela um ambiente amplo,
com acesso a possibilidades educativas diversas e restritas à maioria da população.
Pode-se perceber em um trecho de sua entrevista concedida ao João do Rio:
Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto.
Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de
os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-
me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura
de papel uma porção de rimas [...] De repente, um susto. Alguém
batia a porta. E eu, com a voz embargada, dando voltas à chave da
secretária: Já vai! Já vai! (ALMEIDA apud RIO, [s/d], p. 10).
20
Júlia Lopes de Almeida teve uma vida intelectual bastante ativa para as
mulheres de seu tempo: participou de várias reuniões literárias no Rio de Janeiro do
século XIX, inclusive as da criação da Academia Brasileira de Letras (ABL) por volta
de 1895, mas não foi incorporada como membro nem mesmo como participante de
reuniões para sua criação em 1896 (SALOMONI, 2009). Este aspecto pode ser
explicado, em parte, devido a sua condição de mulher. Seu marido, Filinto de
Almeida, sem nenhuma produção literária considerável, ocupou a cadeira número 3
da ABL.
Júlia Lopes de Almeida apesar de não ser tão mencionada entre os manuais
literários brasileiros tampouco entre os “mais célebres escritores” brasileiros, foi uma
das mais importantes escritoras de sua época. Dotada de grande versatilidade,
escreveu desde contos infantis, romances e manuais para mulheres, com destaque
para o Livro das Noivas, o Livro das Donas e Donzelas.
Peggy Sharpe (2004) organizou cronologicamente as obras de Júlia Lopes de
Almeida da seguinte forma:
a) A obra precursora foi Memórias de Marta, em 1889, publicada sob a forma
folhetim na extinta Tribuna Liberal do Rio de Janeiro;
b) Em seguida, A Família Medeiros, publicado no Rio de Janeiro em 1892,
sendo o primeiro folhetim do jornal carioca Gazeta de Notícias do período
de 16 de outubro a 17 de dezembro de 1891;
c) A viúva Simões, em 1897, publicado primeiramente na versão folhetinesca,
na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 1895. Foi reeditado pela
revista Mulheres de Florianópolis em 1999 com introdução de Peggy
Sharpe;
d) A falência, publicado em 1901 pela Editora Oficina das Obras d’A Tribuna
do Rio de Janeiro (ver edição atualizada, erroneamente designada como
“2ª ed.”, São Paulo: HUCITEC / Secretaria da Cultura, Ciência e
Tecnologia, 1978);
e) A intrusa, publicado pela Editora Francisco Alves do Rio de Janeiro no ano
de 1908 e divulgado em folhetim no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro
em 1905. Sua segunda edição foi lançada pela Livraria Simões Lopes em
1935.
21
e) Era uma vez…., publicada pela Editora Jacintho Ribeiro dos Santos do Rio
de Janeiro em 1917 (conto infantil).
A referida autora também escreveu peças teatrais como:
a) A herança, lançada pela Tipografia do Jornal do Comércio do Rio de
Janeiro no ano de 1909 (peça em um ato representada em 4 de
setembro de 1908 no Teatro da Exposição Nacional comemorativa do
Centenário da Abertura dos Portos no Rio de Janeiro); e,
b) Teatro, lançada pela Renascença Portuguesa da cidade do Porto em
1917 (três peças: Quem não perdoa, Doidos de amor e Nos jardins de
Saul).
1
A oração foi proferida pela autora no Campo de São Cristóvão ao entregar aos alunos da Escola
Militar a bandeira que lhes foi oferecida pelas senhoras brasileiras em 7 de setembro de 1922.
24
De acordo com Moreira (2003), suas palavras confirmam que escrever não é
algo inato, que precisa ser elaborado com muito exercício. Vale ressaltar que, para
alguns críticos e historiadores literários, esse ideal de simplicidade, de escrever para
que suas semelhantes a entendessem sugeria inabilidade para o ofício, ideia que
Moreira rechaça ao assinalar que esta atitude, tendo sido vista como uma postura
simplicista diante da criação literária, não significa descuido com o texto ficcional,
2
RIO, João do. Momento Literário, s/d. (Brito Broca assinala 1905 como o ano de publicação).
3
No acervo de Cláudio Lopes de Almeida, neto de Júlia Lopes de Almeida, estão guardadas três
pequenas cadernetas em que ela fez variadas anotações (SALOMONI, 2005).
25
não implicou em um fazer literário menos acurado, menos cuidadoso. É antes fluidez
e clareza.
Para a escritora lusitana Guiomar Torresão4, a escrita de Júlia Lopes de
Almeida, tanto nos contos como nos seus demais escritos, possuía "um estilo
naturalmente elegante e sempre despretensioso, sem o excesso da retórica de que
sofrem quase todos os debutantes literários" (TORRESÃO, 1987, p. 99).
Salomoni (2005), acentua também o caráter didático da obra de Almeida,
visando à educação da mulher, como o faz Constância Lima Duarte com: Educação
e ideologia: construindo gêneros (1999).
Duarte resgata para o estudo da escrita feita por mulheres a importância
delas "nas letras nacionais", como formadoras de consciências e por suas
capacidades de "alterar a práxis social da época, no que diz respeito às relações
homem/mulher" (DUARTE, 1999, p. 439).
A referida autora afirma que com a chegada da Corte ao Brasil, educadoras
portuguesas, inglesas e francesas vieram para cuidar da educação das meninas de
famílias ricas. Foi nesse mesmo período que se instaurou uma significativa mudança
no contexto social do país, uma vez que junto aos estrangeiros vieram os ideais
revolucionários que acabaram com a escravidão e resultaram na proclamação da
República e conquista de muitos direitos aos cidadãos brasileiros. Esse quadro
social também influenciou na mudança da consciência e reflexão feminina diante da
sua verdadeira posição e resultou na luta por seu lugar na sociedade.
Na visão de Batista (2012), quando se esperava que nos livros de Júlia Lopes
de Almeida pudesse se identificar apenas o seu conformismo com um modelo de
dominação cultural masculino, também se constataram outros elementos, e dentro
das possibilidades da autora estava a defesa de alguns interesses da mulher
brasileira, como uma melhor formação educacional.
Elementos estes que fazem de Júlia Lopes de Almeida uma intelectual que
apresenta ao seu público leitor uma visibilidade histórico-social da mulher brasileira.
Seus manuais são considerados instrumentos capazes de capturar aspectos acerca
da história da mulher e do seu significado, bem como a contribuição para a literatura
brasileira e a sua importância intelectual na defesa dos interesses femininos.
4
TORREZÃO, Guiomar. Júlia Lopes de Almeida. In: A Mensageira - revista literária dedicada à
mulher brasileira. São Paulo: edição Fac-Similar, Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP, v. I, 1987
26
latente, ainda não havia chegado o momento em que a narrativa de autoria feminina
questionaria o papel da mulher.
Oliveira (2008), entretanto, analisa que é possível encontrar na escrita de
Julia Lopes de Almeida uma marca de resistência comum a outros textos de autoria
feminina, que se materializa na construção das protagonistas femininas à medida
que elas se constroem como sujeitos do feminino. Entende-se que, ao se
constituírem enquanto sujeitos, as personagens desconsideram o discurso social
imposto ao seu sexo e o transgridem, apresentando desejos próprios e os
vivenciando.
Medeiros (2011) argumenta que, o fato de Júlia Lopes de Almeida,
aparentemente, não ter promovido o rompimento com tais modelos não quer dizer
que ela tenha, necessariamente, comungado com eles. No caso da autora, a
estrutura das obras pode ter seguido um modelo bem-comportado, não
apresentando, em sua fatura, nenhum elemento que viesse opor-se ao que já vinha,
em termos literários, sendo feito e tomado como modelo aceito.
Estruturalmente, as fábulas dos corpora parecem não apresentar nenhuma
ruptura e, por isso, podem ser vistos como textos a partir de um modelo bem-
comportado de escritura. Se a estrutura é bem-comportada, o tratamento dado aos
temas não o é.
Afinal, pode-se perceber, que mesmo inconscientemente, a autora, ao
representar em suas obras as desigualdades entre os sexos, a subordinação do
feminino ao masculino, estava criticando valores e construções sociais contra os
quais o feminismo levantou suas bandeiras de luta. A postura política empreendida
por Júlia Lopes de Almeida não foi alicerçada no embate direto contra os valores e
as imposições da sociedade patriarcal em que ela viveu, mas esteve calcada na
negociação com esses valores e imposições (MEDEIROS, 2011).
Embora concebida neste espaço de tensão entre dizer e não dizer, a literatura
de autoria feminina resistiu através de escritoras que romperam barreiras, caso em
que se enquadra Júlia Lopes de Almeida, através de suas lutas e reinvindicações
por acesso à educação e representatividade social para as mulheres.
As obras almeidianas serviram também como espaço de resistência a partir
do qual as mulheres escritoras aprenderam a ouvir a si mesmas, a perceberem-se
como grupo oprimido e, paulatinamente, desenvolveram estratégias de auto
superação contra os discursos misóginos fomentados por uma sociedade de base
29
pelo fato de não ser conhecida pelo sobrenome do esposo, como era comum e
regular, mas, pelo seu sobrenome de solteira: Silveira.
Advoga Salomoni (2005) que a prosadora carioca pode ter influenciado a
sociedade de sua época, principalmente ao transformar a mulher em seu objeto
literário. Sua escrita possui elementos que incluíam intimismo, cotidianidade,
minúcias do universo feminino, abundância de personagens e protagonistas
femininas, linguagem afetiva, abuso dos diminutivos, sentimentalismo na relação
mãe-filha, dentre outros aspectos que podem ser definidores de uma marca de
gênero. Não se incluía aqui aquela denominação “viril” com que os críticos rotulavam
as obras consideradas de “valor”.
Fanini (2012) afirma que, no que diz respeito ao acervo de Júlia Lopes de
Almeida ter se convertido em acicate às pesquisas sobre sua atuação literária e
percurso artístico, é possível considerar o final da década de 1980 como um
importante ponto de inflexão a partir do qual o interesse pela obra da escritora
começou a se fazer notar. Júlia Lopes de Almeida adquiriu maior expressividade nas
décadas seguintes, a ponto de inspirar análises que, gradualmente, têm concorrido
para a reavaliação de sua relevância para o campo literário e artístico brasileiro.
Seja a partir de abordagens interessadas em reconstruir sua experiência artística e
social, ou em iluminar as aproximações entre “forma literária” e “contexto social”, ou
então por meio daquelas análises voltadas para a identificação não somente dos
32
trunfos sociais que, ladeados pelos predicados individuais, contribuíram para que
conquistasse projeção e prestígio literários.
Ainda que consagrada como romancista, a ponto de vir a ser considerada por
críticos do período uma das mais expoentes prosadoras da belle époque tropical, o
ingresso de Almeida no mundo literário dá mostras da precoce ligação que
estabeleceu com o teatro e de seu interesse por esta arte que, ao longo de sua
trajetória, iria transcender, e muito, a mera fruição desinteressada. Júlia Lopes de
Almeida mostrou-se especialmente inclinada a atuar como dramaturga, tendo suas
incursões nos legado um repertório significativo, composto por dezesseis peças,
quatro delas publicadas e as demais ainda inéditas e, diga-se de passagem,
inexploradas (FANINI, 2012).
Sobre isso, De Luca (1999) acrescenta inclusive que Júlia Lopes de Almeida,
na medida em que se fazia apreciar e respeitar pela intelectualidade de seu tempo,
abria para as brasileiras um novo espaço, antes vedado a elas, realizando assim a
façanha de tornar-se uma verdadeira profissional das letras em um terreno
monopolizado pelos homens.
Nesse sentido, cabe ressaltar sua opção pela produção de textos escritos em
prosa: apesar de naquela época já possuir um número significativo de mulheres
5
Valhe-se, aqui, da expressão utilizada por Décio de Almeida Prado (2003, p. 10) para definir o
talento dramatúrgico de Jorge Andrade.
6
Muito embora sem datação precisa, Rosane Salomoni estima que a edição do romance em questão
tenha sido publicada entre 1925 e 1932 pela editora Truchy-Leroy (SALOMONI, 2005, p. 59). As
peças indicadas são A Senhora Marquesa, Vai Raiar o Sol e O Dinheiro dos Outros.
33
De acordo com Costruba (2010), Júlia Lopes de Almeida deixou uma obra
vasta e extensa que analisou a vida cultural, social e política de sua época.
Enfrentou críticas que possibilitaram a ela uma melhor formação intelectual. Alguns
desses críticos formavam uma tríade: José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio
Romero. O primeiro sempre elogiava os trabalhos de Júlia:
que suas obras eram “(...) epopeias domésticas que foram nossa Bibliothèque
Rosé”. (GRIECO, 1947, pp. 129-146).
Júlia Lopes de Almeida foi reconhecida pelo seu valor intelectual a ponto de
ser citada no Diccionário Bibliographico Brasileiro pelo Doutor Augusto Vitorino Alves
Sacramento Blacke (1899, p. 241):
Marly Jean de Araújo Pereira Vieira (2002) assinala também que Júlia Lopes
de Almeida procurou fazer da moderação um traço significativo em sua produção
literária, intenção expressa no seguinte comentário que fez em 1897, na revista
literária feminina A Mensageira:
7
ALMEIDA, Júlia L. In: A MENSAGEIRA: revista literária dedicada à mulher brasileira (1897- 1900).
São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987. Edição fac-similar, v. 1. P. 53.
36
do século XIX e começos do XX. Sob esta ótica, Telles (1997, p. 436) afirma que a
autora
pode superar sua condição social pelo estudo e pelo trabalho, principalmente no
caso feminino. A condição feminina do final do século XIX está confinada aos
afazeres domésticos: a mulher é criada para casar, criar filhos e cuidar de seu lar, e
a autora busca mostrar que a mulher é a educadora ideal e que pode sim congregar
seus afazeres domésticos com o estudo e o trabalho.
Sob essa ótica, as narrativas almeidianas falam, sobretudo, de mulheres que
apresentam suas vontades, desejos e imposições. Júlia Lopes de Almeida começa a
ocupar um espaço significativo na cena literária brasileira, como também começa a
produzir uma obra que se peculiariza por apresentar configurações femininas que
aparentemente rompem os padrões sociais da mulher de meados do século XIX e
século XX (SOUZA, 2011).
Mendonça (2003) afirma que reconhecida hoje pela revisão do cânone que
vem sendo feita pela crítica feminista, como um dos grandes nomes da literatura
feminina do final do século XIX e início do XX, Júlia Lopes de Almeida, também em
sua época, foi bastante celebrada, embora não o suficiente para que seu nome
fosse destacado na história da literatura brasileira.
Na revista A Mensageira, para qual contribuiu em seu primeiro número e em
mais alguns outros, seu nome já era citado como romancista. No número sete dessa
revista, de 15 de janeiro de 1898, Pelayo Serrano publicou um artigo intitulado
Intelectualidade feminina brasileira, no qual ao citar os nomes de brasileiras que se
destacavam no cenário literário, assim se refere à escritora: “Como romancista, d.
Júlia Lopes de Almeida, a mais conspícua de todas, autora da Família Medeiros, da
Viúva Simões, seus romances melhores e de mais fôlego, não falando dos Traços e
Iluminuras, do Livro das Noivas, dos Contos Infantis...”
No início do século XX, tem-se uma citação feita por Mariana Coelho (2002, p.
331) que, em seu livro A Evolução do feminismo, assim se refere a nossa escritora:
Em seus textos, seja no formato em que for, percebe-se a luta por mudanças
na situação da mulher na sociedade. Os direitos da mulher, principalmente à
instrução, são tematizados, como acontece na revista A mensageira, em seu
primeiro número:
8
ALMEIDA, J. L. de. A Mensageira. São Paulo: Imesp/Daesp, 1987. v. 1. p. 3.
43
instrução não estará preparada. Além disso, é sob a perspectiva da mãe, tão
valorizada pela sociedade burguesa do século XIX, que ela reivindica a instrução
para a mulher: a mãe instruída pode melhor orientar os filhos e, portanto, melhor
cumprir sua missão. Aproveita a existência, na época, de grupos de homens que,
influenciados pelas ideias positivistas, justificavam o ensino para a mulher ligado à
função materna, como uma forma de afastar as superstições e incorporar as
novidades das ciências.
Júlia Lopes de Almeida não propõe à mulher que negue o papel que a
sociedade espera que desempenhe, de um esposa dedicada ao marido, às crianças
e desobrigada de qualquer trabalho produtivo, mas prevê a melhora do desempenho
deste papel. Ela não vai de encontro às regras estabelecidas pela sociedade para a
mulher, ao contrário, usa essas regras como argumento para reivindicar condições
que, sabidamente, dariam à mulher a independência em relação ao homem
(MENDONÇA, 2003).
É interessante notar que o discurso na produção romanesca de Júlia Lopes
de Almeida, quando entrevistada, deixa nas entrelinhas que não é feminista, suas
personagens são questionadoras, colocam em xeque o destino reservado à mulher
– o domínio da casa – e reproduzem o discurso de jornais libertários que apontavam
a instrução como uma “arma privilegiada de libertação” para a mulher,9 assim como
também existiam escolas libertárias que se preocupavam com a instrução das
meninas.
Embora na entrevista concedida a João do Rio, anteriormente citada, Júlia
Lopes de Almeida tenha respondido de forma evasiva a propósito do feminismo
(“Acabo de receber um convite de Júlia Cortines para colaborar numa revista
dedicada às mulheres. Descanse! Há uma seção de modas, é uma revista no
gênero Femina...”),10 essas narrativas são marcadas por questões amplamente
discutidas pelo feminismo da época.
Em nota manuscrita referente ao romance Memórias de Marta, a própria
autora relacionava cenas e personagens com a realidade vivida por ela:
A adjunta Marta não será por ventura a mesma pobre D. Marta que
ajudou minha irmã Adelina a ensinar-me as primeiras letras? Creio
9
LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE; BASSANEZI, op. cit., p. 446.
10
Esta entrevista está reproduzida em O Momento Literário, obra organizada por João do Rio a partir
de entrevistas concedidas por autores representantes da época.
44
11
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil,
província cisplatina e missões do Paraguai. Tradução de Rubens Borba de Moraes. São Paulo:
Martins, 1940
46
Floresta foi uma feminista que escandalizou muitas das jovens senhoras brasileiras
acostumadas ao simples afrancesamento de sua cultura. O Padre Lopes Gama
muitas vezes levantou a voz contra as feministas, acusando-as de serem terríveis
pecadoras. Para ele, a mulher deveria somente se preocupar com a administração
de sua casa. O referido padre não se conformava em ver a mulher servil, embora
medíocre, sendo lentamente substituída por outro tipo de mulher, uma mais
“mundana” que frequentava teatros e salões de festas. (SAFFIOTI, 2013).
No entanto, apesar da opinião predominante de que as mulheres brasileiras
do século XIX viviam sob um regime patriarcal e limitadas a uma vida doméstica,
Bernardes12 põe em questão tais afirmações, buscando novos dados. Ao contrário
do que se pode imaginar, após a análise de todos os depoimentos, romances e
artigos selecionados em sua obra, sua prefaciadora Queiroz confirma que:
Queiroz (1989) constata que uma das mais relevantes reivindicações dessas
mulheres foi o acesso à instrução, além do fato de elas estarem cientes de seu
estado de subordinação. A nova conjuntura econômica e social revela a
necessidade de dar à mulher algum nível de instrução, não se abandonando, porém,
a educação doméstica. Não há nessa época, contudo, o desejo de instruir
igualmente homens e mulheres, tampouco promover uma equiparação dos papéis
sociais dos elementos dos dois sexos.
A urbanização, que se acelerou na segunda metade do XIX e a
industrialização grandemente impulsionada nos anos 30 do século XX afetaram a
organização da família brasileira. Esses dois processos alteraram as dimensões da
vida da mulher, uma vez que ela teve seus papéis no mundo econômico
modificados. As mulheres saíram progressivamente da reclusão no lar para trabalhar
12
Maria Thereza Caiuby Crescenti BERNARDES, Mulheres de ontem?: Rio de Janeiro – século XIX.
48
13
Nadilza Moreira. A condição feminina revisitada. João Pessoa: Editora da UFPB, 2003.
49
seja, mulheres que, sem alterar a posição dos homens, desejavam ser incluídas em
novos espaços sociais sem que isso alterasse as relações de gênero. Júlia Lopes de
Almeida estava inserida, portanto, na dialética entre resistir e identificar-se à ordem
do discurso patriarcal que determinava os espaços e as relações de gênero.
Silva (2011) afirma ainda que ao contrário de pensar que a presença dessas
imagens estereotipadas sobre o feminino seja uma adesão inconteste à ideologia do
patriarcalismo, crê-se que a não abordagem de temas contrários à ordem patriarcal
tenha sido uma estratégia, “inconsciente”, utilizada por essa escritora para obter
acesso e, depois, reconhecimento e trânsito livre em espaços restritos apenas aos
homens.
Dessa forma, falando de mulheres cuja maior preocupação era as bagatelas
da vida doméstica, Júlia Lopes de Almeida estava dando os primeiros passos na
constituição de uma tradição literária feminina ao passo que, entre a aparente
banalidade do cotidiano, apontava, em suas obras, as fissuras do então sistema
ideológico vigente, evidenciando a submissão feminina em uma sociedade que
valorizava o patriarcalismo.
Júlia Lopes de Almeida é uma escritora cujas trajetórias no campo literário se
confundem, fazendo parte de um rol de escritoras pioneiras no campo das letras,
principalmente porque elas nasceram em uma sociedade que passava por
mudanças socioculturais bastante acentuadas, especialmente no que tange à
condição feminina. Neste caso, pode-se aplicar a essa autora o que disse Schmidt
(1995, p. 187) da escritora dos oitocentos:
14
O termo personagem refere-se tanto às personagens masculinas quanto às femininas
52
produção romanesca para evidenciar sua visão crítica acerca dos pensamentos
retrógrados e preconceituosos sobre a mulher. Seu discurso destaca a importância
da educação e, concordando com os positivistas, a nobreza do trabalho digno e
honesto para a mulher. Para tanto, ela faz com que seus personagens falem
ironicamente sobre os preconceitos e hipocrisias da sociedade. Em outros
momentos, permite, com sua habilidade de narradora, que se depreenda uma
mensagem crítica na fala deles e na maneira como os representa. A invisibilidade da
protagonista funciona, como uma metáfora da invisibilidade da própria mulher no
espaço público, social e profissional (MOREIRA, 2003).
Paralelamente à questão da condição feminina, Júlia Lopes de Almeida expõe
as hipocrisias sociais e, sutilmente, critica o mecanismo do favor, do oportunismo, no
caso, entre os funcionários e políticos, e as relações baseadas apenas no interesse,
que imperavam na sociedade carioca. Não é de se espantar que essas relações
influenciassem o comportamento feminino; assim, a prosadora, em vários
momentos, vai se posicionar, em relação à condição feminina, aceitando e, ao
mesmo tempo, recusando os valores vigentes. Essa acaba sendo uma estratégia
para se questionar o sistema patriarcal sem, no entanto, desautorizá-lo.
Convém ressaltar que, a partir da segunda metade do século XIX, o culto da
domesticidade será reforçado no meio literário em consequência da valorização dos
ideais burgueses. Essa tendência também se reproduzirá nos textos de Júlia Lopes
de Almeida, o que acaba sendo visto como redutor e limitador para as mulheres
empenhadas em expandir seus direitos.
No entanto, a autora pretende apresentar ao público leitor que é preciso
valorizar a educação feminina e promover o abandono dos preconceitos lançados à
mulher que trabalha. Interessa-lhe divulgar uma imagem de mulher que está
preparada para enfrentar os obstáculos, não importando a sua classe social. Com
isso, reduz-se o estereótipo da mulher absolutamente dependente e sem nenhuma
iniciativa, e projeta-se um novo perfil feminino, mas adequado às mudanças sociais
(MOREIRA, 2003).
De acordo com Medeiros (2011), acrescenta-se também que, considerando o
fato de que a maioria dos romances do século XIX e início do século XX tinham na
mulher a sua maior parcela de público leitor, pode-se dizer que estes mesmos
romances não estavam interessados em apenas contar uma história, mas
53
século e que se desenrolaria por todo século XX. Um dos pontos interessantes que
chama a atenção para este livro é o fato de que essas memórias são narradas por
uma mulher, é a própria Marta, personagem protagonista desta obra. Percebe-se
através desta personagem que uma das preocupações da autora foi a de dar voz à
mulher e demonstrar a sua importância para a sociedade.
O livro nos apresenta duas Martas: a mãe e a filha. A que nos apresenta a
narrativa é a segunda, que resolve por contar suas memórias já em idade adulta
deixando “claro que o mundo de cada um é limitado pelo que abrangem os raios de
sua capacidade visual ou pelo que lhe sugere a imaginação e que seu relato será
expressão fugidia de certas passagens e de certos seres” (ALMEIDA, 2007, p. 17). É
através dos frangalhos de sua memória que a Marta adulta tenta reconstituir seus
dias de menina, ou as impressões deixadas em sua memória daqueles dias.
Afirma Salomoni (2005), para que as duas pudessem sobreviver neste novo
ambiente Marta mãe passa roupas a ferro da manhã até a noite para sustentá-las,
enquanto a filha tenta se alocar a sua nova realidade, pois saíra de um lar feliz e
saudável para viver em condições quase que insalubres em um cortiço. Através da
dedicação de sua mãe Marta consegue sobreviver a este ambiente e através de
uma das freguesas de sua mãe vem a ser matriculada em uma escola pública. É
através deste gesto que a vida da pequena Marta é levada para outro rumo, é pelo
estudo que vai ser salva. Aqui neste ponto a centralidade do romance, uma vida que
estava fadada ao fracasso, à menina que teria o mesmo destino da mãe de engomar
noite e dia para se sustentar, foi direcionada para um destino mais confortável e
promissor com a sua inserção em uma escola.
Para Souza (2011), Marta foi salva pelo estudo e pelo trabalho, é através dele
que a personagem narradora encontra respeito e aceitação na sociedade ao tornar-
se professora. Seu destino seria o mesmo que o de sua mãe se não tivesse se
enveredado pelo caminho educacional, várias vezes sua mãe a aconselhava para
que a filha se interessasse mais pelos afazeres domésticos, pois devia pensar em
65
15
Lassailly, Les roueries de Trialph, 1833, citado por Stéphane Michaud, La Muse et la Madonne.
Visages de la femme Rédemptrice en France et Allemagne de Novallis à Baudelaire , tese de
doutorado de Estado, Paris III, 19883, tomo II, p. 559, a sair or Seuil.
68
Como vê a mulher devia respeito ao pai, depois ao marido, e sobre tudo tinha
uma educação dirigida para os afazeres domésticos que eram ministrados pelas
próprias mães e madrinhas. O caráter urbano passa a ter tonalidade própria, criada
a partir de uma problemática que advém das novas funções que passa a se
concentrar nas cidades. Progressivamente a indústria, e as classes sociais que lhes
são caudatárias, orientavam as ações e os conflitos que ocorrem no meio urbano
(GOHN, 2001).
16
Obra Poética de Gregório de Matos. Rio de Janeiro, Record, 2ª edição, 1990, 2 volumes, tomo 2º,
edição de James Amado. p. 826.
70
sim poderia participar do processo político. Depreende-se, pelo texto, que Almeida já
sentia a ambição por parte das mulheres em participar das decisões políticas.
Júlia Lopes de Almeida publica A família Medeiros em 1892. Os debates
acerca dos percursos e dos destinos do Brasil nutriam aquele momento. Grosso
modo, de um lado, estavam os saudosistas do Império e, de outro, os partidários da
República.
Segundo Oliveira (2011), o texto faz questão de desnudar o ambiente de
paulatina queda da autoridade senhorial, apontando os diversos movimentos
contestatórios à época. Esse contexto é refletido na fala do Comendador, que se
mostra irritado e, ao mesmo tempo, assustado diante da indefinição quanto ao
futuro. Na verdade, Medeiros já percebe que a “vontade do pai” por si só já não é
capaz de garantir o status quo como fora anos antes, quando ele decidia toda a sua
sorte e de sua família:
–– Porque vivo num eterno balanço de ideia para ideia, sem me fixar
em nenhuma. Chego mesmo a recear ter perdido tempo na Europa,
há de crer? (ALMEIDA, 1919, p. 6)
No trecho acima é possível notar que Otávio não possui uma ideologia e por
isso se acha fraco e perdido. Segundo Gouveia Engel (2009), Júlia Lopes de
Almeida engajou-se nas lutas políticas de seu tempo, integrando a famosa geração
dos anos 1870 composta por intelectuais obcecados em pensar a realidade e o
futuro do Brasil, a partir de referenciais positivistas, cientificistas e realistas, enfim,
de “um bando de ideias novas”, conforme registrou Romero (1851-1914), um dos
maiores e mais controvertidos pensadores da época. Assim, a escritora defendeu a
abolição da escravidão e a república – alinhando-se com as posições assumidas
pelo pai – que entre 1874 e 1878 foi professor de um curso noturno para instruir
pobres e escravos em Campinas – e do marido – este último republicano radical.
Portanto a função simbólica se define como uma lição mediadora que informa
as diferentes modalidades de apreensão do real. Este real, opera por meio dos
signos linguísticos, das figuras mitológicas e da religião, ou dos conceitos do
conhecimento científico.
Em linhas gerais, Júlia Lopes de Almeida, através da literatura que cerca este
período, aborda aparentemente que a instituição política da Monarquia desapareceu
em 1889, mas as suas práticas sociais permaneceram por um longo período no seio
da sociedade republicana, até serem incorporadas tanto pela política quanto pela
simbologia da República. Tendo esta percepção como ponto de sua análise, ela
tentou apresentar ao público leitor, não apenas a crise do modelo monárquico, mas
também a disputa de representação que ocorreu dentro da sociedade brasileira a
partir das últimas décadas da Monarquia e bem como nos primeiros anos da
República.
opostos era permitida em nome de “Deus”, a missa servia como desculpa para
muitos cochichos e piscadelas (LOURO, 1993).
17
Tradução livre: - Oh! Murmurou ela, eu teria tido medo se os tivesse encontrado durante a noite,
sozinha!
- Eles não são malvados, fique tranquila. Apesar de tudo, como são engraçados os Brasileiros, hein?
84
narrativa, que assinala a sua forte personalidade no momento em que ela tem o
primeiro encontro com o futuro marido, sabidamente ateu. Nesse encontro ela surge
em sua presença toda coberta de santinhos e acessórios de referência religiosa,
procurando mostrar com a linguagem visual da vestimenta o tipo de mulher dedicada
que era à religião, de certa forma perpetuando alguns aspectos patriarcais.
De acordo com Oliveira (2011), a história da mulher brasileira, como a história
de tantas mulheres, é marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal que,
legitimada pela religião cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em
todas as esferas sociais.
Desde menina era ensinada a ser mãe e esposa, sua educação limitava-se a
aprender a cozinhar, bordar, costurar, tarefas estritamente domésticas. Carregava o
estigma da fragilidade, da pouca inteligência, entre outros que fundamentava a
lógica patriarcal de mantê-la afastada dos espaços públicos. A negação de outros
espaços além da casa/quintal as afastava também da educação formal, não sendo
permitido o acesso à escola.
A cena do primeiro encontro de Silveirinha e o Dr. Jordão, segundo Rodella
(2010), marca bem a oposição que se instaura durante todo desenrolar da trama
entre ela e o marido, pois, ao contrário de sua devoção, fé e esperança de convertê-
lo ao catolicismo está ele, um homem ateu, médico e que apenas compreende e
tolera o comportamento da esposa.
De acordo com a referida autora, como base elementar para geração do
sentido que constrói a personagem Silveirinha estão os polos do Sagrado versus
Profano, os valores relacionados a estas polaridades são evidenciados, no início da
narrativa, ancorados no /sagrado/, representados pela fé católica da moça em
oposição aos valores do /profano/, que se associam ao ateísmo do esposo.
Agnosticismo reforçado pela dedicação à medicina e à ciência e que não condiz com
o comportamento religioso extremado da esposa.
Na obra o diálogo entre a Condessa e Roberto Flores, que introduz o
romance, esta polaridade entra em evidencia e continua assim durante o desenrolar
da narrativa.
-Se é por isso quem registra a criança é o pai. Vê como fica bem
soante: Guiomar Jordão.
- Sim, Silveira, tinha-me esquecido; mas não Maria...
- Não penses que hei de criar minha filha fora do grêmio da Igreja.
Ela fará a sua primeira comunhão aos dez anos e...
- Pobre mártir. (ALMEIDA, 1997, p. 62)
Pouco a pouco, a mulher vai aprendendo que a sociedade espera que ela
considere o casamento como sua meta mais importante. Ao contrair casamento,
espera-se que ela dê sua parcela de contribuição à sociedade, gerando filhos. Com
o nascimento da prole é preciso que a mulher cumpra mais um importante papel, o
de educadora.
Segundo Oliveira (2001), neste romance Júlia Lopes de Almeida traz, para o
aconchego do lar, informações sobre o enfraquecimento do regime monárquico
diante dos movimentos pré-republicano e abolicionista, a realidade da escravidão e
as tensões provocadas com a proximidade da abolição, promovendo uma profunda
reflexão em torno dessas questões, além de expressar-se politicamente em relação
à tragédia da escravidão. Ao criar a personagem Eva, ela mostrou outro perfil de
mulher e levantou uma grande bandeira em prol das mudanças que a sociedade
exigia, entre elas, às relacionadas à educação feminina.
-Como assim?
- Pois não acabei de lhe contar que ela se apresentou ao noivo
coberta de santinhos? Certamente que não fez aquilo, senão para o
avisar: veja bem como eu sou e quais as minhas ideias. (ALMEIDA,
1997, p. 23)
exercício do culto, ou mesmo de seu espaço: o que acontece nas mesquitas do islã,
embora o profeta Maomé fosse cercado de mulheres, como relata Assia Djebar
(1985).
O catolicismo é, em princípio, clerical e masculino, à imagem da sociedade de
seu tempo. Somente os homens podem ter acesso ao sacerdócio e ao latim. Eles
detêm o poder, o saber e o sagrado. Entretanto, deixam escapatórias para as
mulheres pecadoras: a prece, o convento das virgens consagradas, a santidade. E o
prestigio crescente de Virgem Maria, antídoto de Eva. A rainha da cristandade
medieval.
- Que barbaridade! Nem você deve desprestigiar os padres. E isso
que está dizendo acaba com a reputação de um homem; tanto mais
que padre Gil é mais que um homem – é um santo!
- Eu não desacredito. Comparo-o apenas o monsenhor Pierre,
sempre bem escovado, tanto nas batinas, como você notou, como
nas ideias, que são de uma limpidez admirável (ALMEIDA, 1997, p.
41).
usada por ele para definir o campo religioso pertence ao mundo judaico-cristão e,
portanto, é muito familiar para a teologia, a saber, sacerdotes, profetas,
magos/feiticeiros e leigos. Essa terminologia foi utilizada por Max Weber que, por
sua vez, influenciou a análise de Bourdieu. O sacerdote seria aquele que, por
excelência, representa a instituição estabelecida. É aquele que vai produzir a partir
de dentro e vai defender a instituição. Ele não produz o novo. “O profeta, ao
contrário, é o agente religioso que, em situações extraordinárias, de crise, ou a partir
de grupos marginais, produz por seu discurso ou sua prática uma nova concepção
religiosa”. Já o feiticeiro é um autônomo que utiliza o imaginário religioso para
“atender interesses imediatos e utilitários de sua clientela”18.
O campo religioso, propriamente dito, tem como princípio a existência de um
grupo especializado na produção dos bens religiosos (o clero) e de um grupo que
produz excedente econômico (os leigos) para sustentar esse grupo especializado
que, em troca, produz o sustento espiritual. Bourdieu chama essa transação que se
instaura entre igreja e fiéis de “economia da oferenda”19. Essa objetivação do
sistema religioso desvenda que a igreja é também uma empresa. Só que essa
objetivação parece ser reducionista e pode levar ao esquecimento de que faz parte
da sua existência a necessidade de negar esse fato. Assim, Bourdieu (2010) afirma
que “a verdade da empresa religiosa é a de ter duas verdades: a verdade econômica
e a verdade religiosa, que a recusa”20:
Júlia Lopes de Almeida através da voz narrativa dos seus romances evidencia
certo conhecimento sobre o papel do lócus de enunciação nos processos de
produção de sentido no discurso literário. Em uma leitura atenta, é possível
18
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA,
Faustino (org.). Sociologia da Religião: Enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, (p. 177-197.) p.
186s., 188.
19
Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 158.
20
BOURDIEU, 2010, p. 184s.
100
descobrir muito mais do que mero relativismo nas palavras que a autora coloca na
boca de suas figuras femininas. A referida autora faz parte do seleto grupo de
mulheres produtoras de capital cultural nos processos de imaginação e simbolização
da identidade nacional brasileira, no final do século XIX e limiar do século XX.
Para Bourdieu (2009), cabe aos homens, situados do lado exterior, do oficial,
do público, do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos os atos ao
mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como matar o boi, a lavoura ou
colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que marcaram rupturas no curso
ordinário da vida. No que diz respeito, às mulheres, pelo contrário, estando situadas
do lado úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, vem serem-lhes atribuídos todos os
trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo visíveis e
vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os
trabalhos exteriores que lhes são destinados pela mítica, isto é, os que levam a lidar
com a água, a erva, o verde, com o leite, com a madeira e, sobretudo, os mais sujos,
os mais monótonos e mais humildes.
partindo para os valores da casa dos homens (cabanas) e das coisas (gavetas,
armários e cofres), dos ninhos e conchas, dos cantos, até chegar aos espaços da
imensidão e da miniatura, do aberto e fechado, e, por fim, ao valor ontológico das
imagens e da fenomenologia do redondo.
Bachelard (1989, p.358) mostra-nos os valores da intimidade do espaço, ou
seja, “a casa é nosso canto no mundo”, evidenciando a casa como nosso ponto de
referência no mundo, como signo de habitação e proteção. Essa imagem da casa
constitui-se um devaneio imemorial; promove a comunhão entre memória e
imaginação, lembrança e imagem. É como se a memória da primeira moradia
acompanhasse-nos durante toda a vida, todo sonho e devaneio, como se ela fosse
indelével na nossa imaginação.
De acordo com a citação acima, a família era, aparentemente, o elo dos seres
mortais à imortalidade. As fotografias guardadas nos álbuns de família juntamente
com as grandes listas de datas de casamentos, nascimentos e funerais
comprovavam a longa duração da genealogia. Os membros individuais deveriam
assegurar que a mortalidade do individuo deveria ser transcendida, ou seja, o traço
que era deixado pela vida não deveria ser apagado por completo, mas imortalizado.
Para Bachelard (1989), nossa imaginação trabalha a imagem dos espaços,
processando os valores de abrigo e aposento à casa da infância. Nos textos
literários, essas imagens são relembradas a partir da leitura, retornando-se a uma
antiga morada. É como reviver a casa natal, fisicamente inscrita em nós, ou seja,
como se a infância permanecesse viva. Será a topo-análise a encarregada de
estudar a manifestação dos lugares físicos de nossa vida íntima na consciência e
nas lembranças.
No trecho acima é possível perceber que Octavio esteve longe de sua cidade,
e ainda, da casa onde passou toda sua infância. O público leitor percebe que
durante sua chegada e o passeio até reencontrar sua casa que viveu na infância, ele
recorda e traz à tona as memórias de um passado que aparentemente continua o
mesmo, no que diz respeito, a arquitetura da cidade.
Gomes (2011) destaca que na ficção brasileira, a casa não é sempre um
espaço de tranquilidade e paz para a mulher, pois, em muitos casos, é descrita
como um local de embates e disputas para a personagem contrária às regras do
patriarcado. Buscando interpretar as dimensões subjetivas da fronteira da casa,
apresenta-se uma leitura sobre os sentidos estéticos e culturais do deslocamento da
mulher pelo espaço da casa no romance de autoria feminina brasileira. Tal
movimento da protagonista traz importantes reflexões culturais sobre as conquistas
sociais da mulher visto que aparentemente desmascara a opressão patriarcal com
suas posições adestradas.
21
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Rio de Janeiro: Fonte Universitária, 2009, p. 415.
22
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 13.
109
casa ele pode desfrutar a solidão. Segundo o autor “a casa é uma das maiores
forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”
(BACHELARD, 1989, p. 26). Mesmo quando ela é humilde e cheia de defeitos, no
devaneio torna-se reconfortante, dá estabilidade. É possível analisar em A
Silveirinha, o que afirma Bachelard sobre a casa como um abrigo para o homem e
mesmo seus amigos:
proteção: um em que ela não luta e outro em que ela luta com o universo. No caso,
da personagem Marta que viveu em uma casa onde predominava a insegurança e o
medo até que a situação se modifica e ela passa a ter desejos e sonhos e luta por
estes. Educação, trabalho e independência são os lemas para conquistar sua
autonomia.
O que caracteriza o canto é o silêncio, a imobilidade, a segurança. Nessa
situação de quietude e aconchego, a alma fica aberta ao devaneio, e o canto se
torna um armário de lembrança. (Bachelard, 1989). Para justificar a afirmativa segue
o trecho abaixo:
23
Como as imagens são variacionais, Bachelard delimita sua investigação ao exame das imagens
simples, as imagens do espaço feliz (topofilia), determinando os valores humanos dos espaços de
proteção (casa). Assim, a imagem poética do espaço segue uma linha que começa com a poética da
casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana, partindo para os valores da casa dos
homens (cabanas) e das coisas (gavetas, armários e cofres), dos ninhos e conchas, dos cantos, até
chegar aos espaços da imensidão e da miniatura, do aberto e fechado, e , por fim, ao valor ontológico
das imagens e da fenomenologia do redondo.
112
Uma das mais produtivas linhas de pesquisa desde sua implementação nos
anos de 1980 é a linha que se ocupa da recuperação da produção literária de autoria
de mulheres no século XIX. O descobrimento de um acervo significativo de obras
esquecidas em bibliotecas públicas e particulares tem levantado uma série de
questões pertinentes sobre os mecanismos de controle da instituição literária e,
particularmente, sobre a violência simbólica do sistema de representações
processada pela narrativa das histórias da literatura que manteve e mantêm a
invisibilidade dessa produção, como se a autoria feminina não tivesse existido antes
de Rachel de Queiroz e Cecília Meireles. Quando muito, depara-se com um ou outro
nome24.
A reconstrução da autoria feminina como objeto de pesquisa e de
especulação teórica tem levantado hipóteses sobre as razões de sua exclusão, entre
elas a força do discurso crítico, responsável, em última análise, pelo
estabelecimento de quadros de referência – critérios de valor e pressupostos
interpretativos – que regulam, até mesmo de forma subliminar, as condições de
recepção e de circulação de obras e, assim, definem quais são as obras que
merecem ser distinguidas como representativas da singularidade discursiva e
simbólica da cultura nacional. (SCHMIDT, 2008)
No ensaio Um romance de vida fluminense, da obra Estudos de literatura
brasileira, publicado em 1910, o crítico José Veríssimo assim se pronuncia com
relação à escritora Júlia Lopes de Almeida:
Não podemos afirmar se têm razão os que declaram que Júlia
Lopes de Almeida foi nossa George Sand. Parece-nos mesmo, que
não há motivos para, nesse terreno, se fazer comparações e traçar
paralelos. Júlia Lopes de Almeida dispunha de personalidade
própria, virtude que se evidencia principalmente em seus contos e
novelas curtas. Sua obra reflete com brilho e colorido uma época da
vida da burguesia rica do Brasil, sem preocupação de crítica social,
24
Veríssimo, “Um romance de vida fluminense”, p. 149.
114
Nesse sentido, muito embora essa afirmação traduza certa ambivalência quanto
ao sentido de “crítica social”, o juízo de valor emitido registra claramente uma
avaliação positiva quanto à inscrição da referida escritora no cânone da literatura
brasileira. Por essa razão, tanto mais incompreensível quanto menos justificável é a
omissão de qualquer referência à Júlia Lopes de Almeida na História da literatura
brasileira, de 1916, uma das obras fundadoras da historiografia literária e da
moderna tradição crítica brasileira. Tal omissão não passaria de mero lapso de
esquecimento se não se revestisse de um caráter paradigmático no que diz respeito
ao silêncio em torno da produção de autoria feminina do século XIX nas mais
importantes obras de cunho historiográfico e crítico da literatura nacional, obras que
tiveram um papel fundamental na constituição de um cânone prestigiado com o
estatuto de “literatura brasileira” que fixou as fronteiras de um campo de identidade e
valor concebido como parte substancial da memória cultural da nação. (SCHMIDT,
2008).
Para a referida autora, os estudos sobre obras de autoria feminina alteram
percepções do passado e desestabilizam a configuração dessa identidade,
integrando-se a um movimento que Hugo Achugar caracteriza como “fundacional” no
sentido de que, através da pesquisa, o passado é reconstruído post-facto por
gerações do presente através da localização no passado, do “momento que talvez
não tivesse o significado que o presente lhe atribui, inventando desse modo o
25
começo da memória” . Esse movimento, que nada tem a ver com a retomada da
razão historicista no sentido de estabelecer uma narrativa de origens e finalidade,
impulsiona as reflexões sobre processos de constituição dos cânones nacionais
como lugares autorizados e privilegiados de projeções imaginárias da identidade que
sustentam as representações simbólicas da nacionalidade, reflexões que
inevitavelmente levam a considerar a história literária enquanto um dos marcos
referenciais da memória nacional já que constitui uma narrativa que pretende
descrever o passado literário.
25
Achugar, “A escritura da história ou a propósito das fundações da nação”, p. 47.
115
26
Evoca-se aqui para explicar a concepção clássica de Ernest Renan quando esse afirma que o
esquecimento é fator crucial na concepção da nação e que a unidade é sempre conseguida pela
violência. Em seu What is a nation? [O que é uma nação?], afirma: “the essence of a nation is that all
individuals have many things in common, and also that they have forgotten many things” [a essência
de uma nação é que todos os indivíduos têm muitas coisas em comum, e também que eles
esqueceram muitas coisas]. Apud: Bhabha, Homi K. Nation and narration, p. 11. Ver também o texto
de Halbwachs, Maurice. La mémoire collective. A proposição de que a história literária cristaliza uma
modalidade de memória coletiva, em sintonia com a história oficial, se distancia do conceito de
memória coletiva apresentada por Halbwachs, cujas características básicas seriam a instabilidade e a
impermanência. (SCHMIDT, 2008).
116
quanto à mulher era bastante pragmática: ela deveria ser. Esse “dever ser” erguia-se
como um muro em relação ao resto do mundo do qual a mulher deveria ser
protegida, guardada. Seus papéis seriam definidos a partir do ideal de maternidade,
a Virgem Maria como paradigma do ser esposa e mãe, sustentáculo da ordem
doméstica e familiar; núcleo central da sociedade civilizada e católica.
(CAVALCANTI, 2001)
-Já me disseram. Contaram-me até que, por saber disso, a
Silveirinha, ao ser chamada pelo pai à sala para responder ao
pedido do noivo, se apresentou com todas as insígnias religiosas
que pôde arranjar na ocasião: fita ao pescoço, de Filha de Maria; no
peito todas as medalhas de santos e santas da corte celeste; e,
pendente das mãos, um grande rosário de contas grossas como
arçás (ALMEIDA, 1997, p. 23).
27
WELTER, Bárbara. The Cult of True womenhood: 1820/1860. In: GORDON, Michael. American
family in social-historical perspective. New York, Saint Martin Press, 1973, p. 16.
28
A Mensageira: Revista Literária dedicada à mulher brazileira. 1897 a 1900.
118
pelo fazer-se histórico, pela mudança e que asseguram a constante mutação dos
fatos.
Esta tensão entre o estável e o em movimento, entre o passado modelar e o
futuro como incógnita está presente na obra de Júlia Lopes de Almeida. Ao mesmo
tempo em que reforça alguns padrões adstritos à mulher como: bondade honra e
delicadeza, firmemente vinculados às construções católicas sobre o feminino,
propõe outros qualificativos, como por exemplo: inteligente, forte, combativa, entre
outros, vislumbrando já, no final do século XIX e início do XX, os novos papéis
sociais que a mulher chamaria para si. (CAVALCANTI, 2001).
Segundo Júlia Lopes de Almeida, Morrer não é acabar para os que deixam
na terra um pensamento29. A afirmação contida na epígrafe, retirada de uma
caderneta de anotações pessoais da publicista concretizou-se nos diversos gêneros
que praticou durante os cinquenta e três anos em que fez da pena literária
instrumento de realização e fonte de renda. Norma Telles (2007), em um dos
trabalhos pioneiros na área do resgate das obras de autoria feminina de nosso
passado, assim se expressou sobre aquelas que foram precursoras nessa área: À
mulher é negada a autonomia, a subjetividade necessária à criação. O que lhe cabe
é a encarnação mítica dos extremos da alteridade, do misterioso e intransigente
outro. É musa ou criatura, nunca criadora (1987). Ter subvertido a situação exposta
na sentença final da epígrafe, ou seja, tornar-se criadora, foi um projeto levado a
termo, plenamente, por Júlia Lopes de Almeida justamente em uma época em que
ser “das letras” era prerrogativa exclusiva dos homens SALOMONI (2007).
Salomoni (2007) mostra que a produção romanesca desta publicista carioca é
apontada pela crítica como portadora de características que a colocam no rol
Real/naturalista embora, em algumas obras, com acentuado subjetivismo romântico.
O Realismo e o Naturalismo foram as duas escolas literárias de domínio narrativo no
fim do século XIX e início do século XX. Sua contrapartida na poesia é chamada de
Parnasianismo. Apesar de se parecerem, o Realismo e o Naturalismo têm
diferenças, o Naturalismo é marcado principalmente pelo determinismo, a ideia de
que a natureza define o destino dos personagens. Essa parece ser a tônica geral, no
entanto, no mesmo período de vigência dessas escolas literárias que proclamavam
o domínio do objetivo sobre o subjetivo, a introspecção domina o mundo ficcional e
29
Estas cadernetas pertencem ao espólio da família e se encontram com o neto da escritora, Cláudio
Lopes de Almeida.
122
30
BRAYNER, Sonia. Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira - INL,
1979.
123
além deste romance, contém mais três títulos tipo de pequenos contos, intitulados
Nhá Tudinha, Prólogo de um romance e L’embarras du Chois. Ele foi saudado em
um artigo de jornal, Chrônica literária, assinado por J. dos Santos, publicado no
jornal A notícia, do Rio de Janeiro, com data de 11 de julho de 1899, que assim
começa: As Memórias de Martha, que acaba de publicar, a autora não chamou de
romance; chamou apenas de narrativa.
De acordo com Salomoni (2007), a história nos é referida como se a
protagonista tivesse a palavra. Em relação à terceira edição, da Livraria Francesa e
Estrangeira Truchy-Leroy - Paris, sem data e erroneamente considerada, algumas
vezes, como sendo de 1899, certifica-se do equívoco através de dois índices.
Primeiramente, olhando a lista de obras publicadas pela autora, constante na
segunda folha. Lá está assinalada a edição da conferência Brasil, apresentada pela
prosadora em 1922, em Buenos Aires, o que nos permite datar essa publicação
pelos idos da segunda década do século XX.
Em segundo lugar, as declarações da própria escritora e da filha Margarida em
cartas trocadas quando Júlia retorna ao Brasil após o intervalo de tempo vivido em
Paris, 1925-1931, nas quais a escritora aproveitou para reescrever algumas de suas
produções. Nessas missivas, em poder do neto da prosadora, Margarida afirma
estar embarcando e trazendo 1000 exemplares das “Memórias”. Assim há, pelo
menos até o estágio atual das pesquisas, três edições das Memórias de Marta
materializadas em papel, incluindo-se a de jornal, e que ao serem cotejadas entre si
acabam por revelar diferenças, uma reescrita feita de pequenos detalhes, episódios
modificados, sequências interrompidas que, no entanto, não alteram a história
original (SALOMONI, 2007).
Para a referida autora são três inícios diferentes, além de alguns parágrafos
finais omitidos nas duas últimas reedições, que operam na obra alterações de
significado, dão-lhe novo sabor, mas que de forma alguma desmerecem o texto
original. As mudanças representam, talvez, um amadurecimento. Júlia Lopes de
Almeida tinha somente vinte e quatro anos quando publicou esta obra pela primeira
vez. É aceitável, portanto, que após dez anos e muitas experiências de vida sua
visão de mundo tenha se alterado, levando-a a modificar alguns aspectos do texto
original. Afinal, ela não seria a única nem a primeira.
Memórias de Marta traz o passado sob a ótica subjetiva de quem o viveu e
retoma-o no presente através da escrita. Ela é sucessora das Memórias Póstumas
124
A adjunta Marta não será por ventura a mesma pobre D. Marta que
ajudou minha irmã Adelina a ensinar-me as primeiras letras? Creio
bem que sim. As cenas brutas do livro, o pequeno alcoólico, foram
pressentidas através do muro que dividia o meu colégio de um
movimentado cortiço de S. Cristóvão. Aquele ambiente inspirou à
minha sensibilidade de menina muita melancolia [...]
não foi uma infância feliz, tão pouco o lugar onde habitava quando criança era bonito
e alegre.
Para sobreviver, Marta-mãe passava roupa a ferro para fora desde a
manhã até a noite e a filha relata o reflexo da mudança na criança retirada de um lar
saudável para o espaço degradado: Enfraqueci, mirrei, encheu-me o pescoço de
caroços linfáticos (ALMEIDA, 2007, p.47). No cortiço, onde um matadouro nas
vizinhanças infeccionava o bairro enchendo-o ao mesmo tempo de mau cheiro,
insetos e urubus, a protagonista irá conviver com lavadeiras, mulatas e bêbadas,
com pretos quitandeiros, com o senhorio português, com operários galegos, com um
casal de rapazes tiroleses e com a família da ilhoa, portuguesa bruta, cujo filho
Maneco irá morrer de cirrose em razão das bebidas que lhe dá o vendeiro, só pelo
gosto de vê-lo cambalear bêbado. Nesse sentido, a preocupação e a denúncia
sobre a condição de vida das crianças, depois presentes na grande maioria de seus
livros, já marcam presença nessa obra de estreia. São páginas comovedoras,
testemunhas de que a ficcionista tinha uma consciência atilada das diferenças
sociais existentes na capital do Império no final do século XIX e da qual ela, junto à
temática do universo feminino, não poderia se eximir de retratar sob pena de falsear
a verdade. (SALOMONI, 2007).
Assim, Júlia Lopes de Almeida, mostra ao leitor que apesar das limitações e
graças à dedicação e aos cuidados da mãe, Marta cresce e, por insistência da mãe
de Lucinda, freguesa de Dona Marta, é matriculada na escola pública. A influência
do estudo na formação da pobre menina e a alteração que esse fator provocou no
destino da protagonista vêm assim ressaltadas: “Não esperavam nada de mim,
estudante medíocre e criança tímida, e foi com surpresa que as professoras me
viram responder a todas as perguntas com desembaraço e firmeza. Acordava em
meu peito outra alma, até então ignorada” (ALMEIDA, 2007, p. 30).
A escritora faz no texto uma campanha didática de valorização do estudo
atribuindo a este a capacidade de promover um crescimento interior, ao mesmo
tempo em que mostra ser este o caminho para que uma moça pobre, mas honesta,
possa sustentar a si e a algum familiar.
O apoio decisivo para a mudança virá através de uma representante da
comunidade de mulheres, a mestra D. Aninha: Eu era uma coisa. Foi ao seu impulso
que me tornei gente (ALMEIDA, 2007, p. 17). Com este suporte, apesar das
dificuldades financeiras e da descrença em si e em suas potencialidades, Marta
127
O trecho acima apresenta uma figura feminina que decide casar e o casamento
não é por amor, mas por vingança. Tal vingança sucede por causa de sua
imaginação que desde moça pensava que poderia obter autonomia e independência
com seu trabalho como docente. São ideias contraditórias apresentadas pela autora,
mas que condizem com tempo cronológico a que foi escrito o romance, a própria
autora apesar de ser uma grande escritora era mãe de família e dava extremo valor
a essas duas qualidades. Júlia Lopes de Almeida deixava claro que suas
responsabilidades de esposa e mãe eram indissociáveis a sua prática de escritora,
ela conseguia administrar suas duas atividades de forma exemplar sem se descuidar
nem de uma ou outra (SAMANTHA SOUZA, 2011).
De acordo com a referida autora, a sociedade brasileira do final do século XIX
transcendia por um período de grandes mudanças, políticas e sociais. Nesse
período surgiam às ideias de progresso e civilização, e por conta disto é possível
observar a constituição de novos modelos a respeito da vida familiar e o universo
feminino de acordo com o momento que vivia. Diariamente novos modelos eram
criados, novas ideologias que indicavam uma mudança no comportamento,
principalmente calcadas nas ideias cientificistas que ocupara lugar de grande
destaque nas rodas intelectuais. Em seu romance Memórias de Marta, a autora
retrata algumas destas mudanças, principalmente com relação ao papel da mulher
dentro do ambiente familiar e também na sociedade.
129
Júlia Lopes de Almeida tinha vinte e nove anos quando publicou esta
segunda narrativa longa. Na biografia escrita por Margarida há uma notação que diz
ter a prosadora redigido este romance ao mesmo tempo em que escrevia o anterior,
Memórias de Marta, entre 1885 e 1886. Certamente que a viagem empreendida com
os pais para Portugal, em princípios de 1887 e o seu casamento com Filinto,
ocorrido em novembro, em Lisboa, retardaram a publicação e obrigaram a uma
mudança no enredo, visto que quando o revela ao público, já é 1891 e a Abolição foi
decretada em 1888. Esse fator talvez tenha diminuído um pouco a ressonância do
130
tema31, não lhe prejudicando, no entanto, o valor histórico ou sua destinação como
texto de denúncia contra as atrocidades cometidas contra os negros. (SALOMONI,
2005).
Para a referida autora, tendo esse momento histórico como pano de fundo,
neste romance a escritora procurou fazer mais uma campanha silenciosa pela
“abolição” das diferenças de tratamento e de educação ministradas ao sexo
feminino. É no seio de uma típica família pertencente à aristocracia rural paulista que
a escritora vai focalizar o comportamento de seus componentes, permitindo que
valores antigos e modernos sejam confrontados.
Moreira (2002), afirma que no século XIX, o movimento de emancipação
feminina no Brasil foi muito perspicaz ao apropriar-se do discurso ideológico
dominante, que colocou a mulher em um pedestal, comparando-a a virgem Maria,
para que encarnasse o papel de mãe e de esposa perfeita, conforme determinava a
teoria positivista.
O positivismo defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma
de conhecimento verdadeiro. De acordo com os positivistas somente pode-se
afirmar que uma teoria é correta se ela foi comprovada através de métodos
científicos válidos. Os positivistas não consideram os conhecimentos ligados às
crenças, superstição ou qualquer outro que não possa ser comprovado
cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade depende exclusivamente dos
avanços científicos. A teoria positivista tornar-se-ia o poder espiritual da sociedade
moderna. Este tinha, agora, por função, governar e manter os princípios que deviam
presidir as diferentes relações sociais. Além disso, a ordem espiritual regulava e
transfigurava a hierarquia temporal do poder e da riqueza, devendo ser exercido
pelos filósofos e cientistas, substituindo os sacerdotes que o detinham no estado
teológico (COMTE, 1972).
Usando o discurso das elites para convencer e receber aprovação social, as
mulheres escritoras e combativas invadiram o espaço público e fizeram a revolução
dissimulada em favor próprio. Elas fundaram jornais, editaram numerosos artigos
literários e jornalísticos, insurgiram-se nos espaços públicos privilegiados do
masculino, e atraíram a atenção para as vozes femininas discordantes que
31
Segundo afirmou Lúcia Miguel Pereira (1950, p. 266), a primeira edição deste romance “se
consumiu em três meses”. Nadilza Moreira (2003, p. 76) registra uma segunda edição – pela Horácio
Belfort Sabino, 1894.
131
32
A MENSAGEIRA:Revista Literária Dedicada à Mulher Brasileira, 1897-1900. São Paulo: Secretaria
de Estado e Cultura, v.1, 1987. 384p. (Edição fac-similar).
33
SOUZA, Alfredo. Introdução à reedição de A família Medeiros. Rio de Janeiro: Empreza Nacional
de Publicidade, 1919.
132
presença deixando que as próprias personagens intervenham, falem por si, através
da introdução de estruturas dialogadas.
representação feminina que luta por seus ideais, no caso, a soltura de um escravo
que estava preso aos ferros. Assim sendo, uma possível percepção da presença do
discurso indireto livre.
O núcleo da narrativa, concentrado no clã Medeiros, colocará em relevo a
oposição discurso conservador X discurso moderno na medida em que as situações
serão forjadas a partir dessa dicotomia e se acentuarão ao destacar uma mulher
dentro da trama: Eva. (SALOMONI, 2005).
De acordo com a referida autora, o destaque que a narradora dá a essa
personagem acabará por transformá-la em protagonista e porta-voz das ideias
libertárias da própria autora em relação ao horror que representava a escravidão e a
consciência que tinha da sujeição da mulher ao poder patriarcal.
Segundo Zolin (2005), no âmbito da arte literária, até meados do século XX, os
discursos dominantes vinham circunscrevendo espaços privilegiados de expressão
e, consequentemente, silenciando as produções ditas "menores", provenientes de
segmentos sociais "desautorizados", como as das minorias e dos/as
marginalizados/as. O quadro comportava, de um lado, a visibilidade das obras
canônicas, a chamada "alta cultura", de outro, o apagamento da diversidade
proveniente das perspectivas sociais marginais, que incluem mulheres, negros,
homossexuais, não católicos, operários, desempregados, entre outros.
No contexto histórico e social, profícuo às manifestações da heterogeneidade
e da multiplicidade e inóspito aos discursos totalizantes, a crítica literária feminista,
bem como o feminismo entendido como pensamento social e político da diferença,
surge com o intuito de desestabilizar a legitimidade da representação, ideológica e
tradicional, da mulher na literatura canônica. Após um momento inicial de denúncia e
problematização da misoginia que permeia as representações femininas tradicionais,
ora prezas à nobreza de sentimentos e ao caráter elevado, ora relacionadas com a
Eva pecadora e sensual, o feminismo crítico volta-se para as formas de expressão
oriundas dos próprios sujeitos femininos. (ZOLIN, 2005).
Para a autora, a considerável produção literária de autoria feminina publicada à
medida que o feminismo foi conferindo à mulher o direito de falar, surge imbuída da
missão de "contaminar" os esquemas representacionais ocidentais, construídos a
partir da centralidade de um único sujeito (homem, branco, bem situado
socialmente), com outros olhares, posicionados a partir de outras perspectivas. O
resultado aponta para a reescritura de trajetórias, imagens e desejos femininos. A
134
levado de seiscentos!" (p. 16) – e a irmã mais nova, Noêmia: "Um anjo!" (idem).
Assim, de acordo com Zolin (2005), o exame cuidadoso das relações de gênero na
representação de personagens femininas, tarefa da primeira vertente da crítica
feminista, aponta claramente para as construções sociais padrão, edificadas, não
necessariamente por seus autores, mas pela cultura a que eles pertencem, para
servir ao proposito da dominação social e cultural masculina.
Nesse sentido, o feminismo mostra a natureza construída das relações de
gênero, além de mostrar, também, que muito frequentemente as referências sexuais
aparentemente neutras são, na verdade, engendradas em consonância com a
ideologia dominante: o engendramento masculino possui conotações positivas; o
feminino, negativas. (ZOLIN, 2005).
Tio Noêmia
Mulher-demônio Mulher-anjo
EVA
Negativa Positiva
Júlia Lopes de Almeida apresenta na sua obra A Família Medeiros, uma figura
feminina que representada pelo esquema acima, é pertencente a um aparente
quadro do modo tradicional de representação da mulher na literatura, mas com um
diferencial, a representação da mulher pela própria mulher como criadora e como
criatura, ou seja, a figura feminina Noêmia também apresenta a sua visão acerca da
prima Eva, no caso, de maneira positiva porque a considera um “anjo”.
No que se refere ao tema, o possível feminismo presente na obra de Júlia
Lopes de Almeida, feminismo entendido como movimento social e político, pôs a nu
as circunstâncias sócio históricas que envolvem a mulher, as quais foram tomadas
pela Crítica Literária Feminista como elementos determinantes em relação ao seu
modo de representação na produção literária. Do mesmo modo, fez perceber que o
estereótipo feminino negativo, largamente difundido na literatura, constitui-se em um
considerável obstáculo na luta pelos direitos da mulher (ZOLIN, 2005).
136
34
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001, verbete pós-estruturalismo.
139
seu legado como bem entendessem. O direito a escolher com quem seus filhos iria
casar já não mais faz parte de suas alçadas.
Para Zolin (2005), tais enfoques emergem da ênfase dada a certos aspectos,
em detrimento de outros. Mas todos são constituídos a partir da ideia básica do
pensamento feminista: desnudar os fundamentos culturais das construções de
gênero, neste caso, opondo-se às perspectivas essencialistas e ontológicas dos
estudos que abordam a questão da mulher, e ainda, promover a derrocada das
bases da dominação de um gênero sobre outro.
Júlia Lopes de Almeida em A Família Medeiros traz à tona uma figura feminina
que está à frente de seu tempo A posição social das mulheres daquele século era a
de figuras secundárias, privadas nas condições de acesso à educação, restritas à
figura masculina, sendo a mulher daquele período ainda submetida ao paradigma da
sociedade patriarcal na qual a figura masculina era representada pela figura do pai,
sogro, avô, amigo ou conselheiro, que estabeleciam e monopolizavam o
conhecimento como um bem titular. (BOSI, 2007).
Eva, aparentemente, vem representada como a transição deste conceito
estereotipado de sociedade e rompe com este tipo de conduta a partir de sua
personalidade aparentemente impulsiva e convicta de que não existem limites que a
separem de seus ideais.
Para Salomoni (2005), o texto não deixa dúvidas quanto à relação de igualdade
estabelecida pelo missivista que afirmara que as mulheres e porcos são colocados
no mesmo patamar e sofrem o mesmo processo de escolha, pela “pureza da raça”.
Fica subentendido que no critério “raça”, a inclusão da classe social dos futuros
noivos, sua origem e até mesmo a “virtude” da moça em disputa.
A citação acima mostra que o pai do pretendente deixa claro que não importa
qual será a escolhida, ele frisa, nesse caso, uma delas. A autora afirma que este
discurso, estrategicamente colocado por Júlia Lopes de Almeida, é um
140
damas que se espezinham mutuamente. Das mulheres e seus amantes, das damas
que falam francês e futricam. Mas, especialmente, de uma intriga clerical.
De acordo com Costruba (2011), paralelamente à história de Silveirinha, merece
destaque a personagem Xaviera, bem casada e com duas filhas, que se livra destas
e as interna no tradicional colégio Sion de Petrópolis, a fim de realizar as suas
investidas amorosas e sedutoras.
Nesse sentido, por conseguinte, a sociedade fútil e elegante do Rio de Janeiro
está cheia de arrivistas, de jovens que chegam do interior como aquele que já viera
de seu Estado bem instruídos pelos romances modernos, para saber como abrir
caminho na multidão compacta dos indiferentes da Capital. O segredo estaria em
saber fazer-se querido e protegido de uma das mulheres de prestigio de uma ou
duas mulheres de prestigio na sociedade. Fazer-se amado pelas mulheres é triunfar
dos homens. (TELLES, 1987).
Para a referida autora, os homens, nos romances de Júlia Lopes de
Almeida, são o mais das vezes interesseiros e inescrupulosos, casam-se por
dinheiro, tomam amantes pelos mesmos motivos. O dinheiro é central em muitos
momentos do enredo, aparece também quando alguém diz:
35
SINZIG, Pedro (org.). Através dos romances: guia para as consciências. 2ª ed., Petrópolis: Vozes,
1923. p. (52-53)
143
relações das pessoas entre si, das pessoas com o mundo que as rodeia e das
pessoas com tudo aquilo que as transcende. Como a própria palavra indica, a
função fundamental da religião é operar e consolidar, pela sacralização (ritos e
mitos), os laços estabelecidos na complexa rede de relações que estruturam e
mantêm as dinâmicas socioculturais.
A fábula se desenrola quando padre Pierre aconselha a Silveirinha a casar-
se com o Dr. Jordão que a pedira para salvar sua alma herege. Ele é ateu, mas
cuida dos ricos e dos pobres com a mesma atenção. Padre Pierre esboça táticas de
conversão que na verdade parecem táticas de sedução: todos os dias encontra com
a moça que lhe conta tudo que se passa entre ela e o marido e lhe dá conselhos,
como por exemplo, que há dias que ela deverá evita-lo e outros que ela deverá ser
terna e meiga com seu marido (TELLES, 1987).
Nesse sentido é possível observar o poder que a Igreja exerce
principalmente sobre as mulheres. A Igreja representa-se partidariamente no
sistema político liberal, ao lado de outras forças ideológicas e políticas, disputando
com elas o controle e a posse do poder político e, através dele, o controle ideológico
das massas. Porém, para conseguir chegar ao controle das massas, ela precisa
primeiramente conquistar as mulheres (GRAMSCI, 1975) 36.
Afirma Norma Telles (1987) que o romance apresenta na fábula que todas as
mulheres sabendo do empenho na conversão do marido se prestam a serem álibis
da esposa para seus encontros diários. Mas, Magdalena, sua rival desde os bancos
escolares, rouba-lhes favores do padre, seus olhares languidos e mãos acariciantes.
Ele se torna frio com ela, que se desespera; manda-a cuidar de sua vida.
36
António Gramsci, Cuardemi del cárcere, Turim, Einaudi, 1975,vol. I, pp. 116-117, e vol. III, pp.
2079-2103.
144
vida dessa figura feminina que passa a cuidar do seu marido, apesar da tristeza de
não ter mais os conselhos de padre Pierre.
Telles (1997), afirma que a Silveirinha é uma figura à feminina que apresenta
uma personalidade forte. Todos comentam sua força de vontade, seu empenho
quando se propõe alguma coisa. O ridículo e o cômico que Júlia Lopes de Almeida
parece pintar nesse romance propondo ao seu público leitor uma mudança brusca
nos padrões patriarcais.
- Consinta que lhe diga, minha me, que não vale a pena sacrificar a
vida da criança à vida da mulher; antes que uma acabe, pode vir a
morte e não consentir que a outra principie...Se eu pudesse
escrever livros, diria: - deixai brincar as crianças e trabalhar os
adultos (ALMEIDA, 1997. P. 271).
Júlia Lopes de Almeida parece apresentar uma figura feminina que é rigorosa
com esses preceitos religiosos. Casa-se com a intenção de converter mais uma
alma ao catolicismo. Incentivada pelo padre Pierre, ou seja, pelo patriarcado e pela
Igreja. Porém, a Silveirinha é descartada quando não mais interessa a esse padre.
Um enredo com um jogo de intrigas e principalmente uma critica a Igreja que
dominava e detinha o poder sobre as mulheres. A fábula parece mostrar uma
transição e um rompimento com esses padrões. Apesar de a protagonista ficar
desnorteada com a quebra da amizade que ela tinha com o padre Pierre. O
surgimento de uma nova mulher, agora mais caseira, agora mais amável com o
marido, mesmo com suas crenças religiosas.
casamento, também visto como ascensão social. Segundo Lauretis (1994), o gênero
é também a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe.
Nesse sentido, a noção de gênero constrói uma relação entre uma pessoa e
outras pessoas previamente constituídas como classe, não se referindo a um
indivíduo isolado e sim a uma relação social. E as representações do gênero, na
visão da autora, são construções que se dão nas mais diversas instâncias sociais
por meio da literatura e das artes em geral. (LAURETIS, 1994). Além dessas
instâncias infere-se outras: a mídia, a religião, os currículos escolares, as relações
familiares, a língua do cotidiano, diferentes ideologias, enfim, todo um aparato
cultural e semiótico que ajuda a forjar identidades sexuais, sociais e raciais.
De acordo com Toril Moi (1988), a leitura feminista, não é considerada uma
leitura neutra nem imparcial (nenhuma leitura é), é sempre política, partindo do
pressuposto de que “todos falam a partir de uma posição conformada por fatores
culturais, políticos, sociais e pessoais” (MOI, 1988, p. 55). Nessa visão, todos falam
a partir das perspectivas de gênero, raça e classe, que se tornam aspectos de
profunda relevância a serem levados em conta na análise de uma obra literária.
Desta maneira, a crítica feminista oferece novas possibilidades de interpretação de
textos ficcionais ao postular que grande parte da produção e da recepção de obras
literárias se organiza em torno de certas configurações de gênero, e que o gênero
organiza o enredo e a construção dos personagens.
5 CONCLUSÃO
profissão, receber salários iguais, candidatar-se ao que quiser. Tudo isso, que já foi
um absurdo sonho utópico, faz parte da atualidade e ninguém não imagina mais um
mundo diferente.
Ao analisar essa somatória de fatores é possível concluir que se esta foi à
vitória do movimento feminista, um aparente ponto negativo foi ter permitido que um
forte preconceito, nesse sentido, gerado por causa de um inconsciente coletivo,
isolasse a palavra, assim não podendo se impor como motivo de orgulho para a
maioria das mulheres.
A reação desencadeada pelo antifeminismo, segundo Duarte (2003) foi tão
forte e competente, que não só promoveu um desgaste semântico da palavra, como
transformou a imagem da feminista em sinônimo de mulher mal amada, machona,
feia e, a gota d'água, o oposto de "feminina". Provavelmente, por receio de serem
rejeitadas ou de ficarem "mal vistas", muitas de nossas escritoras, intelectuais, e a
brasileira de modo geral, passaram enfaticamente a recusar tal título.
Ao adicionar outro fato, também é um ponto negativo do feminismo permitir
que as novas gerações, aparentemente, desconheçam a história das conquistas
femininas, os nomes das pioneiras, a luta das mulheres de antigamente que
denunciaram a discriminação, por acreditarem que, apesar de tudo, era possível um
relacionamento justo entre os sexos.
O problema de uma provável desinformação histórica acerca do feminismo
é, talvez, porque a história do feminismo não é muito conhecida, e tudo isso,
aparentemente, deve-se também ao fato de ser pouco contada. A bibliografia é
vasta e ampla, porém, o poder falocêntrico faz dessa, além de limitada, costuma
abordar fragmentariamente os anos de 1930 e a luta pelo voto, ou os anos de 1970
e as conquistas mais recentes. Na maior parte das vezes, entende-se como
feminismo apenas o movimento articulado de mulheres em torno de determinadas
bandeiras; e tudo o mais fica relegado a notas de rodapé.
Para Duarte (2003), deve-se pensar que o "feminismo" poderia ser
compreendido em um sentido amplo, como todo gesto ou ação que resulte em
protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de
seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de grupo. Somente
então será possível valorizar os momentos iniciais desta luta, no caso, contra os
preconceitos mais primários e arraigados, e considerar aquelas mulheres, que se
160
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. “Um leque que respira: a questão do
objeto em história”. In: ______. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP:
EDUSC, 2007, pp. 149-164.
BRITO BROCA. A vida literária no Brasil – 1900. 1ª. Ed. 1956. 4ª. Ed. Rio de
Janeiro: José Olympio: Academia Brasileira de Letras, 2004.
_________________. A mulher na literatura brasileira. In: ______. Românticos, pré-
românticos, ultrarromânticos: vida literária e romantismo brasileiro. São Paulo: Polis/
INL/MEC, 1979. (v.1 das Obras reunidas).
BAUER, Carlos. Breve História da Mulher no Mundo Ocidental. São Paulo: Xamã,
Edições Pulsar, 2001.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
BURKE, Peter. As fronteiras instáveis entre História e ficção. In: AGUIAR, Flávio
(Org.). Gêneros de fronteira: cruzamentos entre o histórico e o literário. São Paulo:
Xamã, 1997.
168
COMTE, Augusto. Opúsculos de Filosofia Social. Porto Alegre/São Paulo: Ed. Globo
e EDUSP, 1972.
Trad. Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1997.
FELSKI, Rita. Literature after feminism. Chicago: University of Chicago Press, 2003.
FOUCAULT, Michel. "A escrita de si". In: ______. O que é um autor? 3ª ed. [s.l.]:
Passagens, 1997.
GOMES, Carlos Magno Santo. A Mulher nas Fronteiras da Casa. In: XIII Nacional e
V Internacional Mulher e Literatura, 2011, Brasília. Anais do XIV Seminário Nacional
Mulher e Literatura ISSN-22380787 / V Seminário Internacional Mulher e Literatura.
Brasília: TEL, 2011. v. 1. p. 1-12.
HANNER, June. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São
Paulo: Brasiliense, 1981.
LEITE, Miriam Lifchitz Moreira. Outra face do feminismo. 1ª ed. -São Paulo: Ática,
1984. XVIII. (Ensaios; 12). p.63.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE & BASSANEZI
(op. Cit.), 1997.
MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa (Orgs). Dicionário da crítica feminista.
Porto: Afrontamentos, 2005.
MENDES, Algemira Macêdo. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história
da literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX.
Rio Grande do Sul: PUC-RGS, 2007. Tese de Doutorado em Teoria Literária.
MEDEIROS, Marcelo. Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco: uma escrita bem-
comportada?. In: XIV Seminário Nacional e V Seminário Internacional Mulher e
Literatura, 2011, Brasília. Palavra e poder: representações literárias, 2011.
MELLO, Rafael Cardoso de. Mulheres como letras: um breve estudo da imagem
feminina da Revolução Constitucionalista de 1932. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em História, Licenciatura Plena) – Centro Universitário Barão de Mauá,
Ribeirão Preto – 2004. p. 12.
MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (Orgs). Teoria política e feminismo: abordagens
brasileiras. Vinhedo, Editora Horizonte, 2012.
MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa (Orgs). Dicionário da crítica feminista.
Porto: Afrontamentos, 2005.
MOI, Toril. Teoria Literária Feminista. Trad. Amaia Barcéna. Madrid: Cátedra, 1988.
PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção: de 1870 a 1920. 2. ed. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
RIO, João do. “Um lar de artistas”. In: O momento Literário. Curitiba: Criar edições,
1994.
_________________. Momento Literário. Fundação Biblioteca Nacional,1994.
173
RIBEIRO, Helcion et al. Mulher e dignidade: dos mitos à liberdade. São Paulo:
Paulinas, 1989.
RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. Mulheres educadas na colônia. In: LOPES, et all
(org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
RAMOS, Tania Regina Oliveira. Narrativas de si: lugares da memória. Desenredo
(PPGL/UPF), v. 4, p. 4-9, 2009.
ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos. A mulher brasileira
nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero; Tradução: Mirna Pinsky. São
Paulo: Contexto, 2012.
SPIVAK, Gayatri. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
175
SOUZA. Maria Cristina de. A tradição obscura: o teatro feminino no Brasil. Tese
(Doutorado em Literatura Brasileira)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.
STEVENS, Cristina Maria Teixeira. Maternidade e Literatura: desconstruindo mitos in
Mulheres em ação: práticas discursivas, práticas políticas. Florianópolis: Editora
Mulheres, 2005.
_________________________. A mulher escrita: a escrita-mulher?. 1. ed. Brasília:
Departamento de Teoria Literária e Literaturas, 2009. v. 1. 181p.
TELLES, Norma. “Escritoras, escritas, escrituras”. In: PRIORE, Mary Del (org.).
História das mulheres no Brasil. 9ª ed. São Paulo: Contexto, 2007, pp. 401-442.
VERÍSSIMO, José. Letras e literatos. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro e Maurillo, 1919.
________________. “Um romance de vida fluminense”, em _______. Estudos de
literatura brasileira. São Paulo: EDUSP/Itatiaia, 1977.
XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Ilha de Santa
Catarina: Editora Mulheres, 2007.