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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

CRISTIANE VIANA DA SILVA

A CONDIÇÃO FEMININA NAS OBRAS DE JÚLIA LOPES DE


ALMEIDA PUBLICADAS DE 1889 A 1914

TERESINA – PI
2014
2

CRISTIANE VIANA DA SILVA

A CONDIÇÃO FEMININA NAS OBRAS DE JÚLIA LOPES DE


ALMEIDA PUBLICADAS DE 1889 A 1914

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado Acadêmico em Letras, da
Universidade Estadual do Piauí, como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Letras. Área de Concentração:
Literatura, Memória e Cultura. Linha de
Pesquisa: Literatura, Memória e Relações de
Gênero. Orientadora: Profa. Dra. Algemira de
Macêdo Mendes.

TERESINA – PI
2014
3

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
MESTRADO ACADÊMICO EM LETRAS

CRISTIANE VIANA DA SILVA

A CONDIÇÃO FEMININA NAS OBRAS DE JÚLIA LOPES DE


ALMEIDA PUBLICADAS DE 1889 A 1914

Dissertação apresentada ao Programa de


Mestrado Acadêmico em Letras da
Universidade Estadual do Piauí, como
requisito parcial para obtenção do título de
mestre em Letras. Área de concentração:
Literatura, Memória e Cultura.

BANCA EXAMINADORA

__________________________________________________________
Profa. Dra. Algemira de Macêdo Mendes
(Presidente – UESPI)

___________________________________________________________
Profa. Dra. Edilene Ribeiro Batista
(1a Examinadora- UFC)

___________________________________________________________
Prof. Dra. Maria Edileuza da Costa
(2a Examinadora- UERN)

___________________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria do Socorro Baptista Barbosa
(Examinadora Suplente- UESPI)
4

S586c Silva, Cristiane Viana da.


A condição feminina nas obras de Júlia Lopes de Almeida
publicadas de 1889 a 1914 / Cristiane Viana da Silva. - 2014.
176f.

Dissertação (mestrado) – Programa de Mestrado Acadêmico em


Letras da Universidade Estadual do Piauí, 2014. “Orientadora:
Profª. Dra. Algemira de Macêdo Mendes”.

1. Representação feminina. 2. Escrita feminina.


3. Júlia Lopes de Almeida. I. Título.

CDD: 800

Ficha elaborada pelo Serviço de Catalogação da Biblioteca Central da UESPI


Grasielly Muniz (Bibliotecária) CRB 3/1067
5

Dedico essa dissertação às pessoas mais presentes em minha


vida:
Minha mãe, pelo exemplo de vida que é e por ser minha eterna
protetora.
Meu pai, meu exemplo de dedicação, pelo carinho, incentivo
aos estudos, ajuda e compreensão.
Meu irmão, José de Ribamar, minha cunhada, Carol e meus
sobrinhos, Géssyka, José Filho e Thiago, pelo incentivo direto
ou indireto.
Meu amor, Joanir, pelo constante apoio, carinho e
compreensão, tanto nas horas difíceis como nos momentos
agradáveis.
Dedico ao meu filho de quatro patas Astor, e a toda minha
família por todo carinho, compreensão, incentivo e confiança.
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AGRADECIMENTOS

Inicio meus agradecimentos por DEUS, já que Ele colocou pessoas tão
especiais a meu lado, sem as quais certamente não teria dado conta!
Aos meus pais, José e Valmira, obrigada por tudo que vocês me deram e me
ensinaram. Agradeço pela sua generosidade e simplicidade, pelo amor
incondicional, pelo carinho e afeto. Não encontro palavras que consigam agradecer,
simplesmente sou envolvida por um enorme sentimento: a gratidão.
À minha orientadora, Professora Dra. Algemira de Macêdo Mendes, obrigada
pela firme orientação, infinita paciência e compreensão, por acreditar em mim, me
mostrar o caminho da ciência, fazer parte da minha vida nos momentos bons e ruins,
por ser exemplo de profissional e de mulher que sempre fará parte da minha vida.
Aos professores da Pós-Graduação, pela competência, dedicação e estímulo.
Manifesto meus agradecimentos à Secretaria de Pós-Graduação do Mestrado
Acadêmico em Letras, em especial à secretária Rosenir pela prontidão em me
auxiliar sempre que precisei.
A meus amigos do mestrado, pelos momentos divididos juntos, pelas discussões
pelo Whatsapp. Obrigada por dividir comigo as angústias e alegrias. Obrigada pela
amizade!
Possuir amigos que pensam de formas tão distintas, enriqueceu
significativamente a minha formação. Agradeço a enorme diversidade que me rodeia
e que me desorienta às vezes, ajudando a captar diferentes olhares sobre a mesma
realidade.
Gostaria de agradecer à UESPI pelo ensino gratuito de qualidade sem o qual essa
dissertação dificilmente poderia ter sido realizada e a todos mais que eu não tenha
citado nesta lista de agradecimentos, mas que de uma forma ou de outra
contribuíram não apenas para a minha dissertação, mas também para eu ser quem
eu sou.
Gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino
Superior (CAPES) pelos dois anos de bolsa, possibilitando que esta pesquisa se
concretizasse.
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Por que a ciência nos é inútil?


Porque somos excluídas dos encargos públicos.
E por que somos excluídas dos cargos públicos?
Porque não temos ciência.
Por que [os homens] se interessam em nos separar das ciências a que
temos tanto direito como eles, senão pelo temor de que partilhemos
com eles, ou mesmo os excedamos na administração dos cargos
públicos, que quase sempre tão vergonhosamente desempenham?

Nísia Floresta.
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RESUMO

O trabalho versa sobre os romances Memórias de Marta (2007), A Família Medeiros


(1919), e A Silveirinha (1997) da escritora Júlia Lopes de Almeida. O estudo teve
como objetivo analisar a condição feminina nas obras de Júlia Lopes de Almeida
publicadas de 1889 a 1914, focalizando a trajetória bibliográfica da autora, bem
como a sua escrita ficcional. O presente estudo também fez uma análise dos
estratagemas do discurso narrativo em Memórias de Marta, A Família Medeiros e A
Silveirinha de Júlia Lopes de Almeida. Uma análise simultânea da vida e da obra de
Júlia Lopes de Almeida a partir de uma abordagem relacional permitiu concluir que
essa escritora colocou em prática, em sua produção literária e em suas ações
concretas, um feminismo possível dentro do quadro de sua época e dos limites
dados pelo meio social em que se desenvolveu. Sua aparente propalada amenidade
presente nas suas narrativas refere-se mais a recursos estilísticos do que ao caráter
brando de um feminismo propriamente dito. E fora justamente por causa das suas
pouco agressivas intervenções que a escritora teve acesso garantido à grande
massa de leitores distribuídos pelos mais diferentes extratos sociais. Assim, ela pode
apresentar a seu público leitor, na maioria mulheres, temáticas como a importância
da educação para o sexo feminino, a política e as críticas ao fanatismo religioso.
Este trabalho objetivou analisar a representação das figuras femininas nos romances
almeidianos, através de teóricos como Salomoni (2005), Zolin (2005), Xavier (2007),
Telles (2007), Stevens (2005), Souza (2011), Sharpe (1994), Rodella (2010), Perrot
(2012), Oliveira (2008), De Luca (1999) e Showalter (1994). Foi feita uma pesquisa
bibliográfica sobre as principais características das figuras femininas e da romancista
em relação a seu estilo de escrita.

Palavras – Chave: Júlia Lopes de Almeida, Representação feminina, Escrita


Feminina.
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RÉSUMÉ

Le travail traite sur le romans Memórias de Marta (2007), A Família Medeiros (1919)
et A Silveirinha (1997), de l’écrivain Júlia Lopes de Almeida. L'étude a été comme
objectif anlyser la condition féminine dans les œuvre de Júlia Lopes de Almeida
publiées de 1889 à 1914, en mettant au point sur la trajectoire bibliographique de
Júlia Lopes de Almeida , ainsi que l’écriture ficcionel de cette auteur. Cette étude a
également fait une analyse des stratagèmes du discours narratif dans ses œuvre
Memórias de Marta , A Família Medeiros et A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida.
Une analyse simultanée de la vie et des œuvres de Júlia Lopes de Almeida à partir
d'une approche relationnelle que nous a permis de conclure que cette auteur a mis
en pratique dans son écriture et dans leurs actions concrètes, un féminisme possible
dans le contexte de son temps et dans les limites données par l'environnement social
dans lequel elle s'est développée. L’aménité présente dans ses œuvres on réfère
plus à recours stylistiques que le caractère doux du féminisme proprement dit. Et
c'est précisément en raison de ses interventions peu agressifs que l'écrivain avait
garanti l'accès à la grande masse des lecteurs distribués par de nombreuses extraits
sociaux. Ainsi, elle peut présenter à son publique lecteur, surtout des femmes, les
thématiques comme l'importance de l'éducation pour les femmes, la politique et la
critique du fanatisme religieux. Cette étude visait à analyser la représentation des
figures féminines dans les romans almeidianos à travers des théoriciens comme
Salomoni (2005 ), Zolin (2005 ), Xavier (2007 ), Telles ( 2007), Stevens (2005 ),
Souza (2011 ) ,Sharpe (1994 ) Rodella (2010 ) , Perrot (2012 ) , Oliveira (2008 ), De
Luca (1999 ) et Showalter (1994 ). Il été fait une recherche bibliographique sur les
principales caractéristiques des personnages féminines et de l’auteur par rapport à
son style d'écriture.

Mots – clés : Júlia Lopes de Almeida, La représentation féminine, L’écriture


féminine.
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12

2 A TRAJETÓRIA BIBLIOGRÁFICA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA .................. 17

2.1 A redescoberta de Júlia Lopes de Almeida ...................................................... 17

2.2 Ressonâncias da crítica literária sobre a obra de Júlia Lopes de Almeida ...... 31

3 A ESCRITA FICCIONAL DE JULIA LOPES DE ALMEIDA .................................. 45

3.1 Ecos de uma escrita: submissa ou transgressora? .......................................... 45

3.1.1 Memórias de Marta: ecos da submissão? ................................................. 56

3.1.2. A Família Medeiros e a escrita militante de Júlia Lopes? ......................... 67

3.1.3. A Silveirinha e a escrita transgressiva? .................................................... 80

4 ESTRATAGEMAS DO DISCURSO NARRATIVO EM MEMÓRIAS DE MARTA, A


FAMILIA MEDEIROS E A SILVEIRINHA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA............ 90

4.1. Os múltiplos perfis femininos em Memórias de Marta, A Família Medeiros e A


Silveirinha .............................................................................................................. 90

4.2 O espaço como lugar da memória em Memórias de Marta, A Família Medeiros


e A Silveirinha ...................................................................................................... 100

4.3. Consonâncias e dissonâncias nos perfis femininos em Memórias de Marta, A


Família Medeiros e A Silveirinha .......................................................................... 113

4.3.1 As vozes dissonantes na obra Memórias de Marta ................................. 121

4.3.2. A transfiguração do estereótipo feminino na obra A Família Medeiros ... 129

4.3.3. A imagem do feminino em A Silveirinha ................................................. 140


11

5 CONCLUSÃO ...................................................................................................... 158

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 166


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1 INTRODUÇÃO

As primeiras vozes de contestação feminina que a história moderna registrou


se dirigiram contra a desigualdade sexual, o acesso a educação, ao trabalho e o
direito ao voto. Já no século XVIII, século das Revoluções, tanto na América quanto
na Europa, algumas manifestações femininas começaram a reivindicar os direitos de
cidadania. A partir da Revolução Francesa, acentuam-se as lutas, e as mulheres
começaram a intensificar suas atividades políticas e demandar direitos políticos
legais (BAUER, 2001).

Segundo Alves e Pitanguy (1991), houve uma delimitação da sexualidade


feminina e uma determinação da posição social inferiorizada para a mulher. Nesse
sentido, existiu e existe todo um conjunto de ideias, imagens e crenças que
legitimam, perpetuam e reproduzem a hierarquização de papéis sexuais. Mascara,
dessa forma, o seu conteúdo cultural em nome de aspectos naturais que se
fundamentam na biologia.
Neste sentido, Alves e Pitanguy (1991, p. 39) afirmam que:
O movimento feminista vem travando uma luta no sentido de
denunciar os conceitos de “masculino” e “feminino” na sua oposição
de “superior” e “inferior”. Esta hierarquização entre o masculino –
“superior” – e o feminino – “inferior” – é uma construção ideológica e
não o reflexo da diferenciação biológica. Esta diferenciação não
implica em desigualdade.

Ainda segundo as autoras, o movimento feminista procura, através de uma


nova ação pedagógica, demonstrar como os livros didáticos reproduzem a imagem
tradicional da mulher e confirmam a diferenciação de papéis tanto no lar quanto na
esfera profissional: a mulher costura e coze, o homem lê o jornal; a mulher é
passivamente dada em casamento como prêmio, sem que seja cogitada sua
vontade. O que se procura, em suma, é denunciar, desvendar e transformar a
construção social da imagem da mulher.
A crítica feminista vem resgatar a mulher desse papel de subjugada ou
submissa ao homem, posto que “... trabalha no sentido de desconstruir a oposição
homem/mulher e as demais oposições associadas a esta numa espécie de versão
do pós-estruturalismo” (ZOLIN, 2005, p 182).
13

A compreensão do que vem a ser esta crítica na literatura feminista e como


opera, torna-se mais fácil quando se tem conhecimento de algumas noções prévias
acerca do feminismo entendido como o movimento social e político que se originou
em diferentes momentos e lugares do mundo.
A perspectiva de constituição de um sujeito político orienta e unifica os
movimentos sociais, dando-lhes "uma cara própria" que, por sua vez, indica quais
são as desigualdades sofridas e quais as reivindicações almejadas. Por muitos
anos, pelo menos desde o século XVIII, as ações do movimento feminista
orientaram-se a partir da unidade de todas as mulheres em torno do significante
"mulher". As ações galgadas, entretanto, oscilavam, em diferentes momentos
históricos, entre estratégias que se utilizavam de argumentos pautados nas noções
de igualdade ou diferença. (ALVES E PITANGUY, 1991).
Segundo as referidas autoras, essas estratégias tinham em comum o ponto
de partida de que havia uma diferença sexual para a qual se colocavam distinções, a
saber, entre os homens - que possuíam o acesso ao mundo público e à cidadania -
e aos demais sujeitos, mulheres, que se encontravam à margem dos processos
decisórios. Às feministas restava utilizar-se desse argumento - o da diferença sexual
- como porta de chegada e de partida. Essa escolha é chamada por Joan Scott
(2002) de paradoxal, já que as feministas usam da noção que as restringe - a de que
há uma diferença entre homens e mulheres - como possibilidade de alcance de
cidadania.
Percebe-se que a diferença sexual apoia estratégias paradoxais de igualdade
e de diferença em relação ao outro sujeito político que tem livre acesso aos diretos
do Estado-Nação. A segunda forma de uso desse mesmo significante "mulher" é
descrito por Judith Butler (2003). A autora problematiza a igualdade e a diferença em
relação ao que une e ao que separa todas as mulheres em torno do movimento
feminista e de mulheres.
Scott (2002) discute a relação da igualdade almejada por segmentos
marginais por meio de dois caminhos: o dos grupos e o do indivíduo. Na sociedade
moderna contemporânea, as leis se organizam em torno dos direitos dos indivíduos,
entretanto, os movimentos sociais buscam agregar a noção de grupo para acessar
diferenças que aparecem como da ordem cultural e, portanto, que ultrapassam os
direitos individuais. A autora coloca que há uma tensão presente na constituição de
uma identidade de grupo sobre a qual a discriminação está baseada. Nesse sentido,
14

as demandas por igualdade evocam e repudiam as diferenças que, em um primeiro


momento, não permitiram a igualdade.
Em outras palavras, a visibilidade do sujeito "mulher" é acionada através de
uma "identidade de grupo" para Scott (2005), sem, no entanto, agregar todas as
diferenças no interior desse significante. Há uma busca por igualdade do grupo e
dos indivíduos baseada na diferença que exclui. E essa identidade unifica-se em
torno de um termo: "a mulher".
Karla Galvão Adrião (2008) pensa nessa mesma linha argumentativa: o
feminismo "se depara com as dimensões que se abriram a partir da utopia de uma
vida sem desigualdades, de transformação social para todas e todos e, portanto,
também para as transgêneros". Ser feminista diz respeito, portanto, a um lugar de
possibilidades para pessoas que se autodefinem como partidárias de princípios
comuns a essa forma de ver e pensar o mundo. Segundo a referida autora, há uma
necessidade do próprio campo de ação militante de definir características identitárias
fixas, ou ainda, "estratégias essencialistas" que aproximem as lutas e as buscas por
direitos legais. As dicotomias se dão entre mulheres feministas que buscam seu
espaço de direitos, o qual se concentra em uma unidade interna que as constitua
nessa luta. Ou seja, debater sobre o que une e o que separa todas as mulheres,
levando em conta, ao mesmo tempo, que as mulheres são diferentes entre si quanto
a vários aspectos: sexualidade, raça/etnia, geração e classe social.
Nesse sentido de demanda por inclusão de um segmento como sujeito
político do feminismo, o que é possível perceber em termos de estratégias é que a
relação entre igualdade e diferença percorre um caminho mais audacioso no sentido
de que busca igualdade na afirmação de uma diferença aparentemente "biológica", o
sexo masculino, colocando, portanto, a identidade masculina em oposição à
feminina, através da inclusão de uma igualdade discursiva que afirma "se me sinto
feminista, então posso ser uma". O paradoxo da diferença sexual aqui ressaltado é
utilizado ao revés, ou seja, ao invés de afirmar a diferença sexual, fortalece a
possibilidade de trânsito dos lugares instituídos pelos corpos como masculino e
feminino.
É ressaltada a importância do sujeito "mulher" como unidade do todo.
Entretanto, ao se deparar com a chegada das mulheres situadas em segmentos
específicos, percebe-se que esse sujeito "mulher" sofre rupturas quanto ao seu
conteúdo uníssono. Argumenta-se que essas duas perspectivas são usadas, sendo
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uma voltada para fora, na relação do movimento de busca de igualdade de direitos,


enquanto a outra é utilizada internamente, na tensão entre diferença de segmentos e
unidade do movimento.
O exercício da escrita foi, para as mulheres do século XIX, uma forma de
romper os limites entre o privado e o público, sendo o primeiro o único local aceitável
para uma mulher até então. Escrever constitui-se como uma ação de transgressão
que ultrapassava os limites sociais acordados por uma sociedade conservadora e
escravagista (TAVARES, 2007).
Mendes (2007) pontua que as investigações tendo como tema os estudos
sobre a literatura de autoria feminina em geral dirigem-se às questões relativas ao
gênero, cânone, teoria ou críticas feministas. Uma questão pouco discutida ainda é o
lugar das escritoras na história da literatura brasileira.
Júlia Lopes de Almeida é um capítulo a mais quando se busca esclarecer a
posição social da mulher brasileira em finais do período oitocentista brasileiro. Nesse
particular, ela foi uma escritora com uma vasta produção literária e teve grande
importância para a literatura brasileira, pois pareceu pensar a literatura como um
produto estético não determinado pelo meio, assim como não construído para
determiná-lo como algo específico. Porém, as marcas culturais afetam os processos
de formação com suas peculiaridades e possibilidades, ou seja, o registro de uma
construção das diferenças e das distintas formas de se lidar com as experiências do
desenvolvimento social e cultural, tanto o individual quanto o coletivo (MEDEIROS,
2011).
Júlia Lopes de Almeida foi simpatizante dos pensamentos positivistas e
científicos de sua época. Ela acreditou que a República moveria o Brasil para o
progresso. No entanto, em um curto espaço de tempo, suas obras de linguagem
naturalista, indicavam a falência precoce de suas expectativas políticas. Mesmo
assim, Júlia Lopes continuou suas investidas junto ao seu principal público leitor: as
mulheres e as crianças.
A redescoberta de Júlia Lopes de Almeida e de sua produção ocorreu
principalmente nas últimas três décadas do século XX, notadamente no meio
acadêmico e particularmente nas áreas das Ciências Sociais e das Letras. Os
trabalhos mais recentes envolvendo a escritora estão revelando a riqueza de sua
produção e a sua importância no contexto em que vivia e no qual procurava influir
(SALOMONI, 2005).
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A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina, portanto, de uma


perspectiva marginal com relação aos textos de autoria masculina. A mulher,
vivendo uma condição especial, representa o mundo de forma diferente. Júlia Lopes
de Almeida apresenta nas suas narrativas, especificamente Memórias de Marta
(1889), A Família Medeiros (1892) e A Silveirinha (1914), objetos de nossa pesquisa,
características que podem configurar um discurso onde o sexo, ou seja, as
representações femininas, tem consciência de si mesmo.
Objetivamente, a proposta dessa pesquisa é analisar a condição feminina nas
obras de Júlia Lopes de Almeida produzidas de 1889 a 1914, especificamente,
Memórias de Marta (1889), A Família Medeiros (1892) e A Silveirinha (1914).
Para tanto, o primeiro capítulo faz uma introdução histórico cultural sobre o
feminismo, bem como a vida e a obra de Júlia Lopes de Almeida. O segundo
capítulo lança luz sob aspectos remetidos a biobliografia da escritora, sua
redescoberta, e em seguida apresenta as ressonâncias da crítica literária sobre a
obra almeidiana.
O terceiro capítulo versa sobre a escrita ficcional de Júlia Lopes de Almeida e
os ecos de uma escrita submissa ou transgressora. Questionou-se se a obra
Memórias de Marta possui ecos da submissão, indagou-se se A Família Medeiros
seria uma escrita militante de Júlia Lopes e, somando-se a elas, teceram-se
reflexões sobre A Silveirinha e uma possível demanda sobre a sua escrita
transgressora.
O quarto capítulo disserta sobre os estratagemas do discurso narrativo nas
produções romanescas: Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha de
Júlia Lopes de Almeida. Primeiramente, apresentou os múltiplos perfis femininos em
Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha. Seguindo de uma
abordagem sobre o espaço como lugar da memória em Memórias de Marta, A
Silveirinha e A Família Medeiros. Ele também aborda sobre as consonâncias e
dissonâncias nos perfis femininos de Memórias de Marta, A Família Medeiros e A
Silveirinha, bem como as vozes dissonantes na obra Memórias de Marta, uma
análise sobre a transfiguração do estereótipo feminino em A Família Medeiros e a
imagem do feminino em A Silveirinha.
Por fim, nas considerações finais, os resultados obtidos até então são
apresentados, verificando-se as possibilidades futuras, retomadas do tema e
aprofundamento da pesquisa.
17

2 A TRAJETÓRIA BIBLIOGRÁFICA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

A história da mulher brasileira é marcada pelo estabelecimento da ordem


patriarcal que, legitimada pela religião cristã ocidental, estendeu o silenciamento do
feminino a todas as esferas sociais. A mulher do Brasil oitocentista era subordinada
e dependente do pai ou do marido, sendo tida como propriedade do homem e
silenciada por ele. O presente capítulo pretende apresentar a vida e a obra de Júlia
Lopes de Almeida, autora de romances, contos e crônicas, tendo obtido uma
inserção privilegiada no meio intelectual brasileiro, especialmente nas primeiras
décadas do século XX, o que pode ser avaliado tanto pelas constantes reedições de
suas obras bem como pela adoção de títulos que vieram a figurar como livros de
leitura para o ensino básico.

2.1 A redescoberta de Júlia Lopes de Almeida

Júlia Lopes de Almeida foi suscetível aos pensamentos positivistas e


científicos de sua época. Ela acreditou que a República moveria o Brasil para o
progresso. No entanto, em um curto espaço de tempo, suas obras de linguagem
naturalista indicavam a falência precoce de suas expectativas políticas. Mesmo
assim, Júlia Lopes continuou suas investidas junto ao seu principal público leitor: as
mulheres e as crianças.

Nascida no Rio de Janeiro em 24 de setembro de 1862 e originária de uma


família abastada e de participação nos círculos intelectuais do Rio de Janeiro era
filha dos imigrantes portugueses Dr. Valentim José da Silveira Lopes e de D. Antônia
Adelina Pereira. A família Silveira Lopes usufruía de condições financeiras
favoráveis: seu pai foi professor e proprietário do Colégio de Humanidades,
instituição fundada no Rio de Janeiro. O Sr. Valentim também se formou em
medicina na Alemanha enquanto a sua família permaneceu residindo no Rio de
Janeiro. Ao regressar ao Brasil já formado em médico, mudou-se com a família em
1869 para a cidade paulista de Campinas (SALOMONI, 2005).

A autora com suas ideias feministas contribuiu, com seus contos e poemas,
em A Mensageira, Única, O Quinze de novembro e Kosmos, revistas dedicadas às
18

mulheres e escritas principalmente por mulheres. Defendia também a educação


feminina, o divórcio e a abolição da escravatura. Colaborou em jornais como O Paiz,
A Gazeta de Notícias e A Semana. Dedicou-se também a escrever livros escolares.
Publicou A Família Medeiros em 1892, A Viúva Simões em 1897, Eles e elas em
1910. Lançou ainda A Silveirinha em 1913, Pássaro tonto em 1934 e Correio da
Roça em 1913. Faz parte também de suas obras: A Falência, Memórias de Marta e
Livro das noivas, contendo conselhos e lições femininas com objetivos morais e
econômicos. Publicou também os seguintes livros infantis: Contos infantis em 1886 –
escrito com sua irmã Adelina Lopes Vieira – Histórias da nossa terra em 1907, A
Árvore em 1916, Era uma vez em 1917 e Jornadas no meu país em 1920.

Júlia Lopes faleceu em 30 de maio de 1934, de malária, adquirida em viagem


à África ao visitar uma das filhas, Lúcia Lopes de Almeida Noronha. Morreu aos
setenta e dois anos quando escreveu seu último romance Pássaro Tonto (1934).
Mesmo depois de sua morte Júlia foi reconhecida pelos seus pares, que lhe trataram
carinhosamente como “D. Júlia”. Segundo Pereira (1988, p. 2700,

Júlia Lopes de Almeida, na verdade, é a maior figura entre as


mulheres só pela extensão da obra, pela continuidade do esforço,
pela longa vida literária de mais de quarenta anos, como pelo êxito
que conseguiu com os críticos e com o público; todos os seus livros
foram elogiados e reeditados, vários traduzidos.
c

É interessante ressaltar que desde jovem, Júlia Lopes apresentou uma


forte inclinação para a literatura. Sua primeira crônica, escrita com apoio do seu pai,
foi lançada no jornal a Gazeta de Campinas em 1881, intitulada de Gema Cuninbert,
que falava sobre uma atriz italiana. Adiante, a autora intensificou suas atividades
literárias, dentre as quais se destaca como cronista do jornal O País no ano de 1884,
e em colaboração com sua irmã Adelina, lança o seu primeiro livro Contos Infantis,
em 1886.
Segundo Batista (2012), sua produção literária teve grande destaque
nacional, já que suas obras tiveram uma elevada circulação, mesmo considerando
que no período de seus lançamentos o número de analfabetos no Brasil era muito
elevado. Sua escrita também evidencia uma linguagem reservada principalmente ao
público de mulheres brancas, letradas e pertencentes à burguesa, já que no Brasil,
mesmo após a proclamação da República, as práticas de leitura e escrita era um
bem de poucos, mesmo entre moças de classe social alta.
19

Pode-se afirmar que Júlia Lopes de Almeida teve uma efetiva participação na
imprensa, já que, além de ter atuado como cronista em jornais como a Gazeta de
Campinas e O País, publicou dois importantes romances em forma de folhetim, A
Família Medeiros e a Viúva Simões na Gazeta de Notícias. Ao longo de sua carreira
literária, a autora colaborou em jornais, atuou como conferencista em eventos que
tratavam da ampliação dos direitos femininos, como o Consejo Nacional de Mujeres
de la Argentina em 1922, além do Congresso Feminista de 1922. Foi também
presidente honorária da Legião da Mulher Brasileira e ainda ocupou a cadeira
número 26 da Academia Carioca de Letras. Segundo Souza (1978, p. 23) “A Cadeira
Vinte e Seis tem como patrono um nome excepcional: Júlia Lopes de Almeida”.
Ao longo de sua carreira, Júlia Lopes de Almeida fez muitas viagens a
Europa, onde teve algumas de suas obras traduzidas para o francês. Segundo De
Luca (1999), em 1925 Júlia Lopes de Almeida mudou-se para a França para
acompanhar sua filha Margarida Lopes de Almeida em seus estudos em Paris, só
retornando ao Brasil em 1932, oito anos depois.
Salomoni (2005), ao fazer uma análise de sua bibliografia, identificou um
intenso movimento literário, marcado pela publicação de vinte e cinco livros, além de
contos, colaborações em diferentes jornais do Brasil e de Portugal. Essa alta rotação
de publicação é indicação de uma boa aceitação de seus escritos, supondo um
provável sucesso de público pelo fato de haver um curto espaço de tempo entre a
publicação de um livro para o outro, além das diversas reedições de seus livros.
Pode-se dizer que a condição de pertencimento a uma classe social abastada
contribuiu positivamente para sua carreira, uma vez que a autora foi beneficiada
pelas aquisições culturais de sua família, sobretudo do seu pai, que, possuidor de
uma formação intelectual vivenciada na Europa, cedeu a ela um ambiente amplo,
com acesso a possibilidades educativas diversas e restritas à maioria da população.
Pode-se perceber em um trecho de sua entrevista concedida ao João do Rio:

Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto.
Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de
os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-
me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura
de papel uma porção de rimas [...] De repente, um susto. Alguém
batia a porta. E eu, com a voz embargada, dando voltas à chave da
secretária: Já vai! Já vai! (ALMEIDA apud RIO, [s/d], p. 10).
20

Júlia Lopes de Almeida teve uma vida intelectual bastante ativa para as
mulheres de seu tempo: participou de várias reuniões literárias no Rio de Janeiro do
século XIX, inclusive as da criação da Academia Brasileira de Letras (ABL) por volta
de 1895, mas não foi incorporada como membro nem mesmo como participante de
reuniões para sua criação em 1896 (SALOMONI, 2009). Este aspecto pode ser
explicado, em parte, devido a sua condição de mulher. Seu marido, Filinto de
Almeida, sem nenhuma produção literária considerável, ocupou a cadeira número 3
da ABL.
Júlia Lopes de Almeida apesar de não ser tão mencionada entre os manuais
literários brasileiros tampouco entre os “mais célebres escritores” brasileiros, foi uma
das mais importantes escritoras de sua época. Dotada de grande versatilidade,
escreveu desde contos infantis, romances e manuais para mulheres, com destaque
para o Livro das Noivas, o Livro das Donas e Donzelas.
Peggy Sharpe (2004) organizou cronologicamente as obras de Júlia Lopes de
Almeida da seguinte forma:
a) A obra precursora foi Memórias de Marta, em 1889, publicada sob a forma
folhetim na extinta Tribuna Liberal do Rio de Janeiro;
b) Em seguida, A Família Medeiros, publicado no Rio de Janeiro em 1892,
sendo o primeiro folhetim do jornal carioca Gazeta de Notícias do período
de 16 de outubro a 17 de dezembro de 1891;
c) A viúva Simões, em 1897, publicado primeiramente na versão folhetinesca,
na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 1895. Foi reeditado pela
revista Mulheres de Florianópolis em 1999 com introdução de Peggy
Sharpe;
d) A falência, publicado em 1901 pela Editora Oficina das Obras d’A Tribuna
do Rio de Janeiro (ver edição atualizada, erroneamente designada como
“2ª ed.”, São Paulo: HUCITEC / Secretaria da Cultura, Ciência e
Tecnologia, 1978);
e) A intrusa, publicado pela Editora Francisco Alves do Rio de Janeiro no ano
de 1908 e divulgado em folhetim no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro
em 1905. Sua segunda edição foi lançada pela Livraria Simões Lopes em
1935.
21

f) Cruel amor, publicado em livro pela Editora Francisco Alves do Rio de


Janeiro em 1911. Sua primeira versão pública foi através de folhetim no
Jornal do Comércio do Rio de Janeiro no ano 1908;
g) Correio da roça, publicado também pela Editora Francisco Alves do Rio de
Janeiro em 1913, é considerado um romance epistolar e foi cuja primeira a
versão saiu em folhetim no jornal O País no período de 7 de setembro de
1909 a 17 de outubro de 1910.
h) A casa verde, publicado pela Companhia Editora Nacional em 1932, escrita
com Filinto de Almeida, tendo sua primeira versão publicada no Jornal do
Comércio do Rio de Janeiro no período de 18 de dezembro de 1898 a 16
de março de 1899, com pseudônimo comum de “A. Julinto”;
i) A Silveirinha, publicada pela Editora Francisco Alves do Rio de Janeiro em
1914. Sua primeira verão pública foi veiculada em folhetim no Jornal do
Comércio, também do Rio de Janeiro em 1913.
j) A isca, publicada no Rio de Janeiro, pela Editora Leite Ribeiro em 1922
(quatro novelas: A isca, O homem que olha para dentro, O laço azul e O
dedo do velho); e,
k) Pássaro tonto, lançado pela Companhia Editora Nacional de São Paulo em
1934.
Júlia Lopes de Almeida também produziu contos, segundo a lista de Peggy
Sharpe (2004):
a) Contos infantis, lançado pela Companhia Editora de Lisboa no ano 1886
(obra em verso e prosa por Adelina Lopes Vieira e Júlia Lopes de Almeida;
adotada para uso das escolas primárias do Brasil, esta coletânea teve 17
edições, sendo a última de 1927);
b) Traços e iluminuras, publicada pela Tipografia Castro & Irmão de Lisboa no
ano de 1887;
c) Ânsia eterna, lançada pela carioca Editora H. Garnier no ano de 1903; (a
última versão, revista pela autora, traz modificações no conteúdo e foi
publicada no Rio de Janeiro: A Noite, 1938).
d) Histórias da nossa terra, editada pela Editora Francisco Alves do Rio de
Janeiro em 1907 (contos infantis; teve vinte e uma edições, sendo a última
de 1930); E também,
22

e) Era uma vez…., publicada pela Editora Jacintho Ribeiro dos Santos do Rio
de Janeiro em 1917 (conto infantil).
A referida autora também escreveu peças teatrais como:
a) A herança, lançada pela Tipografia do Jornal do Comércio do Rio de
Janeiro no ano de 1909 (peça em um ato representada em 4 de
setembro de 1908 no Teatro da Exposição Nacional comemorativa do
Centenário da Abertura dos Portos no Rio de Janeiro); e,
b) Teatro, lançada pela Renascença Portuguesa da cidade do Porto em
1917 (três peças: Quem não perdoa, Doidos de amor e Nos jardins de
Saul).

Em suas produções podem ainda ser citadas crônicas como:


a) Livro das noivas, publicado Rio de Janeiro, no ano 1896;
b) Livro das donas e donzelas, publicado pela Editora Francisco Alves do
Rio de Janeiro em 1906 (coletânea de crônicas, com desenhos de
Jeanne Mahieu); e,
c) Eles e elas, lançado também pela Editora Francisco Alves do Rio de
Janeiro em 1910 (coletânea de crônicas publicadas em O País nas
colunas “Reflexões de um marido”, “Reflexões de uma esposa”, e
“Reflexões de uma viúva” de 1907 a 1909).

Segundo Sharpe (2004), ela produziu outros escritos como:


a) A árvore, pela Editora Francisco Alves do Rio de Janeiro em 1916
(coletânea de crônicas e poemas, com Afonso Lopes de Almeida);
b) Jornadas no meu país, pela Editora Francisco Alves do Rio de Janeiro
em 1920 (relato de uma viagem feita ao sul do Brasil em 1918, com
desenhos de Albano Lopes de Almeida); e,
c) Jardim florido, jardinagem, pela Editora Leite Ribeiro do Rio de Janeiro
em 1922 (livro de jardinagem).

Júlia Lopes de Almeida, também produziu ensaios e conferências, como:


a) Cenas e paisagens do Espírito Santo na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (Tomo 75, 2ª Parte, p. 177-217 – monografia
descritiva de uma viagem feita ao Espírito Santo em 1911);
23

b) “Brasil — Conferência pronunciada por la autora en la Biblioteca del


Consejo Nacional de Mujeres de la Argentina” em Buenos Aires, 1922;
c) “Oração a Santa Doroteia”, editada pela Editora Francisco Alves do Rio
de Janeiro em 1923 (conferência pronunciada como parte da segunda
série de preleções literárias patrocinadas pela Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, no auditório do Instituto Nacional de Música, no início
do século XX);
d) “Maternidade”, publicada pela Editora Olivia Herdy de Cabral Peixoto do
Rio de Janeiro em 1925 (obra pacifista, publicada primeiramente no
Jornal do Comércio do Rio de Janeiro no período de 19 de agosto de
1924 a 24 de agosto de 1925);
e) “Oração à bandeira”, lançada pela Editora Olivia Herdy de Cabral
Peixoto do Rio de Janeiro em 1925 (publicada no final do ensaio
“Maternidade”1.

Sua produção ultrapassou fronteiras, escreveu traduções para o francês


como, “Les Porcs” pela Revue de l’Amerique Latine, tome XVII, n° 87, Paris, Mars
1929. E, “Les Roses” presente na coletânea Deux Nouvelles Brésiliennes (tradução
de Jean Duriau). Dunkerque: Imprimerie du Commerce (G. Guilbert), 1928.
Outro aspecto relevante sobre Júlia Lopes de Almeida é sua colaboração na
imprensa brasileira. Escreveu para jornais como: o Almanaque Gazeta de Notícias
(1897-1898), Almanaque Literário de São Paulo para 1884, A Bruxa (1897), Correio
de Campinas, Diário de Campinas, A Estação (1888-1981), Estado de São Paulo,
Gazeta de Campinas, Gazeta de Notícias (1888-1894), Ilustração Brasileira, Jornal
do Comércio, Kosmos, O Mundo Literário, O País (1907-1912), A Revista do Brasil,
a Revista dos Novos, São Paulo (1885-1886), A Semana (1885-1887, 1894).
Colaboração em revistas femininas, como: A Família, São Paulo e Rio de Janeiro
(1888-1889), A Mensageira, São Paulo (1898-1900), Nosso Jornal, Rio de Janeiro
(1919-1920), com Casilda Martins, e a Revista Feminina, São Paulo (1915-1917).
De acordo com Salomoni (2005), é interessante apontar que até mesmo
pesquisadoras estrangeiras têm se ocupado da obra de Júlia Lopes de Almeida e
publicado vários artigos, que foram apresentadas como comunicações em diversos

1
A oração foi proferida pela autora no Campo de São Cristóvão ao entregar aos alunos da Escola
Militar a bandeira que lhes foi oferecida pelas senhoras brasileiras em 7 de setembro de 1922.
24

Congressos, destacando-se os Seminários “Mulher e Literatura”, em cujos Grupos


de Trabalho algumas estão filiadas.
A referida autora ainda destaca dois nomes que têm se projetado nas
pesquisas sobre Júlia Lopes de Almeida, a saber: Darlene Sadlier que escreveu
Modernidade e feminino em Eles e Elas de Júlia Lopes de Almeida (presente na
Revista Travessia, n. 25, UFSC, 1992) e Peggy Sharpe que produziu o texto
intitulado Construindo o caminho da nação através da obra de Júlia Lopes de
Almeida e de Adalzira Bitencourt (na Revista Letras de Hoje. Porto Alegre: Edipuc, n.
113, 1998). Ambas têm afirmado a “modernidade” das ideias desta escritora e
enfatizado o destaque que essa deu à figura da mulher dentro do universo
construído por sua ficção.
No dizer de Batista (2012), duas palavras-chave para entender o caráter da
escritora, teatróloga, contista, cronista, conferencista, são singularidade e harmonia.
Nas poucas entrevistas dadas em vida e em algumas crônicas de sua autoria, ela
sempre ressaltou que escrever de forma simples era o seu desejo, criticando
aqueles que dificultavam o trabalho do leitor.
Nesse sentido, essa postura de compromisso estético e de posicionamento
particular diante do seu ofício fizeram-na declarar: "A arte, para mim, é a
simplicidade. Ser simples e sóbrio é um ideal. Eles (referindo-se aos “nefelibatas”),
ao contrário, confundem, torturam, torcem"2. Nas cadernetas3 particulares, diversas
notas reproduzem a preocupação da prosadora com o estilo:
Segundo C. Wagner no seu belo livro: Vida Simples, o centro do
progresso humano está na cultura moral. O espírito de simplicidade
não é um bem que se herda, mas sim o resultado de uma conquista
laboriosa. (Das anotações de Júlia Lopes na caderneta número 3.)

De acordo com Moreira (2003), suas palavras confirmam que escrever não é
algo inato, que precisa ser elaborado com muito exercício. Vale ressaltar que, para
alguns críticos e historiadores literários, esse ideal de simplicidade, de escrever para
que suas semelhantes a entendessem sugeria inabilidade para o ofício, ideia que
Moreira rechaça ao assinalar que esta atitude, tendo sido vista como uma postura
simplicista diante da criação literária, não significa descuido com o texto ficcional,

2
RIO, João do. Momento Literário, s/d. (Brito Broca assinala 1905 como o ano de publicação).
3
No acervo de Cláudio Lopes de Almeida, neto de Júlia Lopes de Almeida, estão guardadas três
pequenas cadernetas em que ela fez variadas anotações (SALOMONI, 2005).
25

não implicou em um fazer literário menos acurado, menos cuidadoso. É antes fluidez
e clareza.
Para a escritora lusitana Guiomar Torresão4, a escrita de Júlia Lopes de
Almeida, tanto nos contos como nos seus demais escritos, possuía "um estilo
naturalmente elegante e sempre despretensioso, sem o excesso da retórica de que
sofrem quase todos os debutantes literários" (TORRESÃO, 1987, p. 99).
Salomoni (2005), acentua também o caráter didático da obra de Almeida,
visando à educação da mulher, como o faz Constância Lima Duarte com: Educação
e ideologia: construindo gêneros (1999).
Duarte resgata para o estudo da escrita feita por mulheres a importância
delas "nas letras nacionais", como formadoras de consciências e por suas
capacidades de "alterar a práxis social da época, no que diz respeito às relações
homem/mulher" (DUARTE, 1999, p. 439).
A referida autora afirma que com a chegada da Corte ao Brasil, educadoras
portuguesas, inglesas e francesas vieram para cuidar da educação das meninas de
famílias ricas. Foi nesse mesmo período que se instaurou uma significativa mudança
no contexto social do país, uma vez que junto aos estrangeiros vieram os ideais
revolucionários que acabaram com a escravidão e resultaram na proclamação da
República e conquista de muitos direitos aos cidadãos brasileiros. Esse quadro
social também influenciou na mudança da consciência e reflexão feminina diante da
sua verdadeira posição e resultou na luta por seu lugar na sociedade.
Na visão de Batista (2012), quando se esperava que nos livros de Júlia Lopes
de Almeida pudesse se identificar apenas o seu conformismo com um modelo de
dominação cultural masculino, também se constataram outros elementos, e dentro
das possibilidades da autora estava a defesa de alguns interesses da mulher
brasileira, como uma melhor formação educacional.
Elementos estes que fazem de Júlia Lopes de Almeida uma intelectual que
apresenta ao seu público leitor uma visibilidade histórico-social da mulher brasileira.
Seus manuais são considerados instrumentos capazes de capturar aspectos acerca
da história da mulher e do seu significado, bem como a contribuição para a literatura
brasileira e a sua importância intelectual na defesa dos interesses femininos.

4
TORREZÃO, Guiomar. Júlia Lopes de Almeida. In: A Mensageira - revista literária dedicada à
mulher brasileira. São Paulo: edição Fac-Similar, Imprensa Oficial do Estado S.A. IMESP, v. I, 1987
26

Na opinião de Mendonça (2003), Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida


desde cedo mostrava sua inclinação para a escrita, embora não fosse de bom tom a
mulher dedicar-se a esses afazeres. Por isso fazia versos escondidos, como revelou
a João do Rio, em entrevista reproduzida n’ O Momento Literário:
A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos,
viria o mundo abaixo. Um dia porém, eu estava muito entretida na
composição de uma história, uma história em verso, com
descrições e diálogos, quando ouvi por trás de mim uma voz alegre:
– Peguei-te, menina! Estremeci, pus as duas mãos em cima do
papel, num arranco de defesa, mas não me foi possível. Minha
irmã, adejando triunfalmente a folha e rindo a perder, bradava:–
Então a menina faz versos? Vou mostrá-los ao papá!
Não mostres! – É que mostro! (1994, p. 28)

Mendonça (2003) corrobora afirmando que o medo de que descobrissem


suas atividades literárias se justifica em função da forma como as escritoras eram
vistas e tratadas na época. No século XIX, a imagem da mulher maternal e delicada
foi ligada à força do bem, a partir de formulações feitas sobre a natureza feminina no
século XVIII. No entanto, negaram-lhe a autonomia e a subjetividade necessária à
criação literária. Nesse contexto era interessante que Júlia Lopes de Almeida
estreasse na imprensa por incentivo do próprio pai, que ela temera que pudesse
castigá-la pelo “crime” de escrever versos.
Segundo Bourdieu (2009), a dominação do masculino sobre o feminino
demonstra que o fato está presente no processo evolutivo histórico do ser humano.
Para o autor, a dominação do homem sobre a mulher é exercida por meio de uma
violência simbólica, compartilhada inconscientemente entre dominador e dominado,
determinado pelos esquemas práticos do habitus, conforme explicitado no trecho
transcrito a seguir:
O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de
cultura, de língua etc) se exerce não na lógica pura das consciências
cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de
avaliação e de ação que são constitutivos dos ‘habitus’ e que
fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos controles
da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a
ela mesma. Assim a lógica paradoxal da dominação masculina e da
submissão feminina, que se pode dizer ser, ao mesmo tempo e sem
contradição, espontânea e extorquida, só pode ser compreendida se
nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros que a ordem social
exerce sobre as mulheres (e os homens), ou seja, às disposições
espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõem
(BOURDIEU, 2009, p. 49-50).
27

A citação acima pontua que as mulheres nasciam com o destino traçado, as


jovens eram educadas para corresponder aos respectivos papéis de esposas
zelosas e mães dedicadas em tempo integral. De acordo com Stevens (2005), o
ingresso da mulher na cena literária foi considerado por muitos como um verdadeiro
“apocalipse literário”, pois provocou, entre outras consequências de ordem social,
econômica, política e cultural, uma mudança radical nas formas de produção
literária. As mulheres, grandes consumidoras de romances, passaram também a
produzi-los e esse processo de comercialização da literatura foi visto por muitos
como “feminização” da literatura.
Historicamente, a literatura feminina começa a aparecer nos salões literários
voltada para o espaço dos pequenos grupos sociais, onde as mulheres declamavam
poesias. Sobre isso, Telles (1997) pontua que a inserção feminina dá seus primeiros
passos para ultrapassar o espaço privado através de uma escrita de cunho intimista
e confessional.
A autora afirma ainda que, além de destacar a condição feminina, os escritos
dessas mulheres do século XIX demonstram os valores sociais vigentes e
buscavam, ao mesmo tempo, o reconhecimento da importância da mulher educada,
preparada para as funções da maternidade. Para corroborar com as ideias expostas,
os textos de Júlia Lopes de Almeida aparentemente trazem marcas dessa
consciência que caracteriza a mulher escritora.
Almeida leva ao espaço público sua angústia criativa e dá visibilidade à
condição da escrita no final do século XIX. Neste sentido, expõe a autora:
Por isto: o que não quero é escrever meramente; não penso em
deliciar o leitor escorrendo-lhe n’alma o mel do sentimento, nem em
dar-lhe comoções de espanto e de imprevisto. Pouco me importo
de florir a frase, fazê-la cantante ou rude, recortá-la a buril ou
golpeá-la a machado; o que quero é achar um engaste novo onde
encrave as minhas ideias, seguras e claras como diamante: o que
quero é criar todo meu livro, pensamento e forma, fazê-lo fora desta
arte de escrever já tão banalizada, onde me embaraço com raiva de
não saber nada de melhor (...). Quero escrever um livro novo,
arrancado do meu sangue e do meu sonho, vivo palpitante, com
todos os retalhos de céu e de inferno que sinto dentro de mim; livro
rebelde sem adulações, digno de um homem (ALMEIDA, 1903, p.
1-2).

Segundo Xavier (2007), a narrativa de Júlia Lopes de Almeida parece


conservar os valores dominantes. Apesar de possuir certa consciência feminista
28

latente, ainda não havia chegado o momento em que a narrativa de autoria feminina
questionaria o papel da mulher.
Oliveira (2008), entretanto, analisa que é possível encontrar na escrita de
Julia Lopes de Almeida uma marca de resistência comum a outros textos de autoria
feminina, que se materializa na construção das protagonistas femininas à medida
que elas se constroem como sujeitos do feminino. Entende-se que, ao se
constituírem enquanto sujeitos, as personagens desconsideram o discurso social
imposto ao seu sexo e o transgridem, apresentando desejos próprios e os
vivenciando.
Medeiros (2011) argumenta que, o fato de Júlia Lopes de Almeida,
aparentemente, não ter promovido o rompimento com tais modelos não quer dizer
que ela tenha, necessariamente, comungado com eles. No caso da autora, a
estrutura das obras pode ter seguido um modelo bem-comportado, não
apresentando, em sua fatura, nenhum elemento que viesse opor-se ao que já vinha,
em termos literários, sendo feito e tomado como modelo aceito.
Estruturalmente, as fábulas dos corpora parecem não apresentar nenhuma
ruptura e, por isso, podem ser vistos como textos a partir de um modelo bem-
comportado de escritura. Se a estrutura é bem-comportada, o tratamento dado aos
temas não o é.
Afinal, pode-se perceber, que mesmo inconscientemente, a autora, ao
representar em suas obras as desigualdades entre os sexos, a subordinação do
feminino ao masculino, estava criticando valores e construções sociais contra os
quais o feminismo levantou suas bandeiras de luta. A postura política empreendida
por Júlia Lopes de Almeida não foi alicerçada no embate direto contra os valores e
as imposições da sociedade patriarcal em que ela viveu, mas esteve calcada na
negociação com esses valores e imposições (MEDEIROS, 2011).
Embora concebida neste espaço de tensão entre dizer e não dizer, a literatura
de autoria feminina resistiu através de escritoras que romperam barreiras, caso em
que se enquadra Júlia Lopes de Almeida, através de suas lutas e reinvindicações
por acesso à educação e representatividade social para as mulheres.
As obras almeidianas serviram também como espaço de resistência a partir
do qual as mulheres escritoras aprenderam a ouvir a si mesmas, a perceberem-se
como grupo oprimido e, paulatinamente, desenvolveram estratégias de auto
superação contra os discursos misóginos fomentados por uma sociedade de base
29

falocêntrica. Falando de um lugar que lhes era culturalmente outorgado, as


mulheres-escritoras puderam usar o espaço privado como forma de resistência,
desconstruindo os significados que visavam manter a opressão feminina e evitar a
suplantação da dominação masculina (MEDEIROS, 2011).
O referido autor declara ainda que, percebendo tal manobra ideológica e
valendo-se dela, Júlia Lopes de Almeida seguiu a trilha dos temas amenos:
casamento, educação, trabalhos domésticos, maternidade, entre outros. Acrescenta-
se também que, considerando o fato de que a maioria dos romances do século XIX
e início do século XX tinham na mulher a sua maior parcela de público leitor, pode-
se afirmar que estes mesmos romances não estavam interessados em contar uma
história, mas principalmente em mimetizar modos de ser e de existir que eram tidos
como socialmente esperados.
Telles (1997) afirma que essa cultura literária tende a subordinar e aprisionar
os textos de autoria feminina a um lugar pré-estabelecido pelo cânone patriarcal.
Isso se deve também porque a cultura falocêntrica coloca a mulher em segundo
plano, consequentemente, quase tudo o que vem dela é também tido como
secundário.
A trajetória de Júlia Lopes de Almeida, pontua Telles (1997), esteve muito
próxima às questões que mobilizaram a sociedade brasileira na transição dos
séculos XIX e XX, como: o acesso das mulheres à escola e à profissionalização,
assuntos explorados no seu romance Memórias de Marta, de 1889.
Na referida obra, é possível perceber uma narrativa de memórias que para
Bosi (1994) as lembranças do grupo doméstico persistem matizadas em cada um de
seus membros e constituem também uma memória ao mesmo tempo una e
diferenciada. Trocando opiniões, dialogando sobre tudo, suas lembranças guardam
vínculos difíceis de separar. Os liames podem persistir mesmo quando se
desagregou o núcleo onde sua história teve origem. Esse enraizamento em um solo
comum transcende o sentimento individual.
Para Amed (2010), Memórias de Marta é um romance que, incorporando
características do realismo-naturalista, a romancista já apontava para a importância
que atribuía à educação escolar como meio de transformação individual e social. A
autora parecia entender que através do trabalho e educação se combateria a
degeneração moral da sociedade, recuperando, assim, alguma dignidade.
30

Na visão de Alves (2008), na construção de um texto oriundo de suas próprias


experiências e contextualização do seu universo, a mulher passa a ser sujeito de
seu próprio querer, de sua existência, de sua palavra. A autoria feminina se dá,
sutilmente, pelo sujeito que se reconhece através da palavra, na qual apresenta sua
consciência, se realiza e se mostra. A autoria feminina resulta, então, de uma
conquista, da afirmação do ser em meio a uma sociedade que insistia em tornar a
escrita feminina invisível, marginalizando a escrita e a criatividade da mulher.
Telles (1997), por sua vez, apresenta uma visão sobre a escrita de autoria
feminina que envolve características culturais e a condição feminina brasileira,
perceptíveis no fragmento abaixo:
A literatura feminina tem (...) uma fisionomia própria (...) decorrente
da situação da mulher, das suas raízes históricas... a mulher vem
tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a
mulher brasileira mais do que as mulheres do mundo (TELLES,
1997, p. 57).

No dizer de Salomoni (2005), na obra A Família Medeiros (1892) a prosadora


levará seus personagens para o interior de São Paulo, região de Campinas. Este
fator marca estreitas relações entre o espaço do romance e o da vida real da
escritora, como declarou ela mesma a João do Rio em uma entrevista concedida no
início do século XX. O tempo histórico é o da véspera da abolição da escravatura,
quando já se iniciara a troca do trabalho braçal dos negros por imigrantes europeus
livres.
Júlia Lopes de Almeida afirma também que além de fazer uma campanha
libertária e mostrar a injustiça da escravidão, coloca novamente em ação
personagens femininas que expressam sua desconformidade com a situação de
opressão vivenciada tanto por elas quanto pelos escravos. É uma inconformidade
aparentemente tímida, muitas vezes beirando à ironia ou escondida nas entrelinhas,
mas que mostra a existência de pensamentos conflitantes em relação ao papel da
mulher dentro dessa estrutura agrária e às posturas da sociedade oligárquica e
patriarcal a qual pertencem.
Na obra A Silveirinha (1997), Rodella (2010), apresenta uma figura feminina
que se assemelha ao estereótipo da mulher submissa, pelos menos aparentemente,
pois é fiel ao casamento e ao esposo. Durante toda narrativa, a luta desenfreada da
personagem é de converter o marido ao catolicismo. De personalidade forte e
determinada, ela se diferencia das mulheres reais da sua época, principalmente,
31

pelo fato de não ser conhecida pelo sobrenome do esposo, como era comum e
regular, mas, pelo seu sobrenome de solteira: Silveira.
Advoga Salomoni (2005) que a prosadora carioca pode ter influenciado a
sociedade de sua época, principalmente ao transformar a mulher em seu objeto
literário. Sua escrita possui elementos que incluíam intimismo, cotidianidade,
minúcias do universo feminino, abundância de personagens e protagonistas
femininas, linguagem afetiva, abuso dos diminutivos, sentimentalismo na relação
mãe-filha, dentre outros aspectos que podem ser definidores de uma marca de
gênero. Não se incluía aqui aquela denominação “viril” com que os críticos rotulavam
as obras consideradas de “valor”.

2.2 Ressonâncias da crítica literária sobre a obra de Júlia Lopes de Almeida

O longo período de invisibilidade feminina e as formas mais atuais assumidas


pela história das mulheres informam muito sobre o seu lugar na história. No interior
deste amplo movimento sobre o qual poucas reflexões foram desenvolvidas, a
história das mulheres oscilou entre sistemas muito variados de exclusão, de
intolerância e de banalização. Colocá-los em evidência responde a um duplo
objetivo: o de permanecer crítico com respeito às formulações próprias à história das
mulheres e o de questionar, por outro lado, a necessária relação entre este campo
de estudos e o conjunto da pesquisa histórica.

Fanini (2012) afirma que, no que diz respeito ao acervo de Júlia Lopes de
Almeida ter se convertido em acicate às pesquisas sobre sua atuação literária e
percurso artístico, é possível considerar o final da década de 1980 como um
importante ponto de inflexão a partir do qual o interesse pela obra da escritora
começou a se fazer notar. Júlia Lopes de Almeida adquiriu maior expressividade nas
décadas seguintes, a ponto de inspirar análises que, gradualmente, têm concorrido
para a reavaliação de sua relevância para o campo literário e artístico brasileiro.
Seja a partir de abordagens interessadas em reconstruir sua experiência artística e
social, ou em iluminar as aproximações entre “forma literária” e “contexto social”, ou
então por meio daquelas análises voltadas para a identificação não somente dos
32

trunfos sociais que, ladeados pelos predicados individuais, contribuíram para que
conquistasse projeção e prestígio literários.

Em que pese o fato de a dramaturgia não haver se destacado como “o


território literário de eleição”5 de Júlia Lopes de Almeida, ou ao menos como aquele
que a consagrou, há bons motivos que nos conduzem a indagar a respeito do “lugar”
por ela ocupado em sua trajetória literária, a começar pelo sugestivo fato de que,
muito antes da premiação obtida com A Herança, a estreia formal de Júlia Lopes de
Almeida no mundo literário, em 1881, já a vinculava às artes dramáticas. Além disso,
sua lavra dramatúrgica é composta não somente por peças publicadas e encenadas,
mas por um repertório expressivo, como mencionado anteriormente, que ultrapassa
uma dezena de textos inéditos, três dos quais estariam prestes a adquirir a forma de
livro, tal como anuncia a própria escritora na edição francesa do romance Memórias
de Marta6.

Ainda que consagrada como romancista, a ponto de vir a ser considerada por
críticos do período uma das mais expoentes prosadoras da belle époque tropical, o
ingresso de Almeida no mundo literário dá mostras da precoce ligação que
estabeleceu com o teatro e de seu interesse por esta arte que, ao longo de sua
trajetória, iria transcender, e muito, a mera fruição desinteressada. Júlia Lopes de
Almeida mostrou-se especialmente inclinada a atuar como dramaturga, tendo suas
incursões nos legado um repertório significativo, composto por dezesseis peças,
quatro delas publicadas e as demais ainda inéditas e, diga-se de passagem,
inexploradas (FANINI, 2012).

Sobre isso, De Luca (1999) acrescenta inclusive que Júlia Lopes de Almeida,
na medida em que se fazia apreciar e respeitar pela intelectualidade de seu tempo,
abria para as brasileiras um novo espaço, antes vedado a elas, realizando assim a
façanha de tornar-se uma verdadeira profissional das letras em um terreno
monopolizado pelos homens.

Nesse sentido, cabe ressaltar sua opção pela produção de textos escritos em
prosa: apesar de naquela época já possuir um número significativo de mulheres

5
Valhe-se, aqui, da expressão utilizada por Décio de Almeida Prado (2003, p. 10) para definir o
talento dramatúrgico de Jorge Andrade.
6
Muito embora sem datação precisa, Rosane Salomoni estima que a edição do romance em questão
tenha sido publicada entre 1925 e 1932 pela editora Truchy-Leroy (SALOMONI, 2005, p. 59). As
peças indicadas são A Senhora Marquesa, Vai Raiar o Sol e O Dinheiro dos Outros.
33

escritoras, como Delfina Benigna da Cunha, Beatriz Francisca de Assis Brandão,


entre outras. Essas na grande maioria pelo ramo da poesia, mas sem a mesma
constância revelada pela autora em estudo. Eram geralmente escritoras ocasionais,
restritas ao amadorismo ou ao diletantismo. Observa-se, portanto, que Júlia Lopes
de Almeida não se resignou a adaptar-se à situação que lhe era dada pelo contexto
histórico-social em que vivia, atuando tenazmente no sentido de modificar esta
situação (DE LUCA,1999).

Martins (1977) assinala que no panorama político-social-econômico que se


descortinava, com a rejeição ao elemento negro e a aceitação dos estrangeiros
brancos e amarelos para substituí-los, o romance de Júlia Lopes de Almeida "sendo
um romance abolicionista publicado em 1892, tinha mais atualidade do que seu
aparente anacronismo deixaria supor" (MARTINS, 1996, p. 399).

Na mesma linha, registra-se a obra Correio da Roça (1913), em que a


escritora faz a apologia ao trabalho no campo, através de uma narrativa composta
por cartas trocadas entre vários missivistas. Não deixa de ser uma proposição
semelhante a que se encontra na obra Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), de
Lima Barreto, embora na primeira a visão predominante seja a da ótica feminina
(SALOMONI, 2005).

De acordo com Costruba (2010), Júlia Lopes de Almeida deixou uma obra
vasta e extensa que analisou a vida cultural, social e política de sua época.
Enfrentou críticas que possibilitaram a ela uma melhor formação intelectual. Alguns
desses críticos formavam uma tríade: José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio
Romero. O primeiro sempre elogiava os trabalhos de Júlia:

Depois da morte de Taunay, de Machado de Assis e de Aluísio de


Azevedo, o romance no Brasil conta apenas dois autores de obra
considerável e de nomeada – D. Júlia Lopes de Almeida e o Sr.
Coelho Neto, eu, como romancista, lhe (sic) prefiro de muito D.
Júlia Lopes (VERÍSSIMO, 1919, p. 217-220).

Os dois últimos a ignoravam completamente como atestavam seus


respectivos estudos críticos literários sobre a literatura brasileira. Agripino Grieco,
crítico literário posterior, considerou a escritora como de menor porte, ao ressaltar
34

que suas obras eram “(...) epopeias domésticas que foram nossa Bibliothèque
Rosé”. (GRIECO, 1947, pp. 129-146).
Júlia Lopes de Almeida foi reconhecida pelo seu valor intelectual a ponto de
ser citada no Diccionário Bibliographico Brasileiro pelo Doutor Augusto Vitorino Alves
Sacramento Blacke (1899, p. 241):

D. Julia Lopes de Almeida- Filha do Visconde de S. Valentin, dr.


Valentim José da Silveira Lopes e de dona Adelina Pereira Lopes, e
casada com o poeta português, Filinto de Almeida, nasceu no Rio de
janeiro a 24 de setembro de 1862, e é irmã da poetisa dona Adelina
Amélia Lopes Viera, de quem ocupei-me no primeiro volume deste
livro. Dedicando-se às letras, começou a publicar na Gazeta de
campinas vários folhetins e contos, e depois escreveu:
- Contos infantis. Lisbôa, 1886, 171 pags. in- 80 – Contém este livro
60 contos ou narrativas destinadas à instrução da infância, sendo 33
em verso e 27 em prosa, de colaboração com sua irmã dona Adelina
a quem pertencem os primeiros. Adoptados para uso das escolas
primárias, tiveram esses contos segunda edição no Rio de Janeiro
em 1892.
- Traços e Luminarias. Lisbôa, 1888, 264 in - 80– São também
contos e de mais folego.
-A Família Medeiros. Campinas (?) 1882, 362 pags. In- 40 – Nunca vi
este livro, e creio que teve segunda edição em 1865, porque vi em
abril deste ano a oferta dele a uma folha da imprensa diária do Rio
de Janeiro, e neste anno egual oferta ao D. Quixote. Foi também
publicado em folhetim na Gazeta de Noticias.
- A ViúvaSimões: romance. Lisbôa, 1897, in- 80 – Este romance foi
publicado na Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro, em 1895.
- Livro das noivas. Rio de Janeiro, 1896, in- 80 – Depois de ocupar-se
com as incertezas, as dúvidas acerca do casamento, trata a autora
da economia doméstica e de outros assumptos de que deve ser
instruída a esposa e mãe.
- O caso Ruth: (romancete) no Almanak da Gazeta de Noticias para
1897, pags. 33 a 46.
- A cara dela. As rosas (Dous artigos)- Idem de 1898, pags. 227 e
293.

Marly Jean de Araújo Pereira Vieira (2002) assinala também que Júlia Lopes
de Almeida procurou fazer da moderação um traço significativo em sua produção
literária, intenção expressa no seguinte comentário que fez em 1897, na revista
literária feminina A Mensageira:

Esta revista, (...) parece-me dever dirigir-se especialmente às


mulheres, incitando-as ao progresso, ao estudo, à reflexão, ao
trabalho e a um ideal puro que as nobilite e as enriqueça (...).
Ensinará que, sendo o nosso, um povo pobre, as nossas aptidões
podem e devem ser aproveitadas em variadas profissões
35

remuneradas e que auxiliem a família, sem detrimento do trabalho


do homem7.

Almeida associa a construção da identidade feminina ao desempenho dos


papéis de mãe, esposa, administradora do lar; assim, a emancipação feminina
nunca será pensada de forma dissociada do exercício da maternidade e desses
papéis. Segundo a autora, “uma mulher ignorante, ou fútil, não pode ser uma mãe
perfeita” (ALMEIDA, 1987: 4). A maternidade será, na verdade, a grande ponte de
ligação entre a ordem estabelecida e os avanços em relação à condição feminina,
sobretudo no que se refere à educação das mulheres. Percebe-se ainda, no
comentário de Júlia Lopes de Almeida que, apesar do tom moderado, ela já defende
algumas ideias inovadoras como a profissionalização da mulher. Ela já antevia no
trabalho uma possibilidade desta se libertar da sua condição submissa.
Verifica-se que a segunda metade do século XIX foi rica em importantes
acontecimentos histórico-sociais, que vão desde a transição do regime monárquico
para o republicano, passando pela abolição da escravidão, a reurbanização da
cidade do Rio de Janeiro, a grave crise financeira conhecida com “encilhamento”, o
movimento sufragista, até a Primeira Guerra Mundial. Com o seu olhar observador,
Júlia Lopes de Almeida trará para a intimidade do ambiente familiar a discussão de
temas que transcendem o espaço doméstico e fazem com que sua literatura não se
encaixe de forma genérica no conjunto de produções estereotipadas como aquelas
denominadas de “sorriso da sociedade”, isto é, a escritora funciona na Belle Èpoque
como um jogral da sociedade, destacando-se pelo pitoresco e, por vezes, pelo
anedótico. Fruto desse ambiente, a literatura é concebida como “o sorriso da
sociedade” (VIEIRA, 2009).
Júlia Lopes de Almeida desempenhou importante papel na evolução das
ideias feministas no Brasil. Algumas de suas personagens apresentaram e
discutiram essas ideias, outras evidenciaram em suas falas posições
preconceituosas sobre a condição das mulheres. Isso tudo se torna importante
dentro da abordagem de gênero para que se possa caracterizar Almeida como uma
mulher que está, em muitas questões, à frente de seu tempo, pelas suas ideias e
atitudes inovadoras.

7
ALMEIDA, Júlia L. In: A MENSAGEIRA: revista literária dedicada à mulher brasileira (1897- 1900).
São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1987. Edição fac-similar, v. 1. P. 53.
36

Para Viera (2009), um dos romances importante Júlia Lopes de Almeida em


que se problematiza questões ligadas à educação e ao trabalho femininos é
Memórias de Marta (1889). Nele a autora dá prova de sua versatilidade, retratando
não só o cotidiano de mulheres das camadas mais pobres, mas também chamando
a atenção para um aspecto importante do desenvolvimento do país: a
profissionalização feminina.
Rodella (2010), por sua vez, destaca em A Silveirinha, outra produção
romanesca que foi publicada em 1914, que o modelo teórico é igualmente justificável
para aplicação porque se trata de uma narrativa discursivizada mediante o querer, o
saber, mais o poder e o crer. O plano discursivo é também o da manipulação por
sedução.
A Família Medeiros (1892), segundo Oliveira (2011), mesmo alinhada aos
princípios democráticos e republicanos, não comunga com todos eles. Júlia Lopes
de Almeida encena, sobretudo no romance em questão, a paulatina queda da ordem
escravocrata. A produção romanesca enterra o patriarcado escravocrata, a o que
significa modernizar o Brasil, ou seja, abrir as portas para a instalação da República,
para a implantação da mão de obra assalariada e para um país calcado nos
princípios da razão, da justiça e do direito.
Nesses termos, nota-se no livro a passagem do autoritário Comendador
Medeiros, cuja vontade dirige todo o destino da família, a Otávio, um trapalhão, sem
o menor traquejo para o mando senhorial. Vale ressaltar que a autora se coloca bem
à frente de seu tempo ao defender também uma espécie de “reforma agrária” avant
la lettre.
Zanchet diz (2006) que Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida é um
exemplo de intelectual preterido pela crítica. Entretanto, no contexto de sua
produção literária, nas primeiras décadas do século XX, a escritora era conhecida e
respeitada como uma das romancistas mais populares, representante e porta-voz
das questões femininas. Neste sentido, a referida autora afirma ainda que, talvez, a
forma equilibrada e pouco agressiva de discutir temas polêmicos tenha contribuído
para granjear-lhe posição de destaque nos círculos literários oficiais da época,
indiscutivelmente sob o forte monopólio masculino.
Afirma ainda Zanchet (2006) que Júlia Lopes de Almeida teve papel
importante por destacar a relevância da defesa de questões ligadas às
oportunidades educacionais e profissionais da mulher fora do circuito doméstico,
37

quer em seus romances, quer em seus artigos jornalísticos ou em suas


conferências. Causa estranheza, contudo, que os manuais de crítica literária tenham
praticamente omitido o seu nome na galeria dos autores dignos de estudo. Somente
com as recentes abordagens referentes ao estudo do gênero as obras da autora
foram resgatadas e devolvidas ao público leitor.
Manuais tidos como consagrados na história literária, notadamente,
Introdução à literatura no Brasil (1970), dirigida por Afrânio Coutinho; História
concisa da literatura brasileira (1970), de Alfredo Bosi e História da literatura
brasileira: romantismo e realismo (1984), de Massaud Moisés passam ao largo sobre
a obra da autora. Em rápidas pinceladas, Nelson Werneck Sodré (1964, p. 513) faz
menção à “gratuidade da ficção” de Júlia Lopes de Almeida, elucidando, em
pequena nota de capítulo, que a romancista “teve destaque nos primeiros decênios
do século XX, escrevendo particularmente para o público feminino” (ZANCHET,
2006).
Embora seja bastante conhecido o elogio que, ainda em vida, lhe fez o crítico
José Veríssimo (apud MIGUEL-PEREIRA, 1988), dizendo preferir seus romances
aos de Coelho Neto, foi somente com a obra de Miguel-Pereira (1988) que o nome
de Júlia Lopes de Almeida foi retirado do anonimato em que há muito estava
submerso. No capítulo intitulado “Sorriso da Sociedade”, a crítica reúne escritores
que, não se congregando em torno de uma escola, não chegaram, por outro lado, a
formar um grupo. Inteligentes e sensíveis, a literatura foi-lhes um complemento
prazeroso, desprovido dos tormentos e angústias advindos da criação, enfim, o
próprio “sorriso da sociedade”, conforme a feliz expressão cunhada por Afrânio
Peixoto e da qual se apropriou Lúcia Miguel-Pereira ao intitular o capítulo de sua
obra:

Formados antes da guerra de 1914, numa época de paz, eles


próprios em regra contentes da sua sorte, pertencentes à classe
dominante, escreveram para distrair-se, e distrair os leitores. Uma
palavra os explica: diletantismo. Mesmo os que, como Coelho Neto,
Júlia Lopes de Almeida, Artur Azevedo, Afrânio Peixoto, Xavier
Marques e João do Rio foram sobretudo escritores, possuíram a
mentalidade do diletante, de quem não se deixa empolgar nem
possuir pelas ideias e prefere brincar com elas, borboletear entre
todas, não se fixando em nenhuma (MIGUEL-PEREIRA, 1988, p.
256).
38

Ao referir-se, especificamente, à Júlia Lopes de Almeida, a questão acentua


seus inegáveis dotes literários, enaltecendo a simplicidade como qualidade
dominante. Destacando os romances A Família Medeiros e A falência como aqueles
em que houve maior apuro na organização de ambientes e personagens, Miguel-
Pereira (1988, p. 271) aponta, entretanto, o volume de contos Ânsia eterna como
sua melhor obra: “aquela em que, sem nada perder da sua singeleza, ela aproveitou
com mais arte os seus recursos de escritora e deixou mais patente a sua
sensibilidade”.
No quinto volume de sua instigante coleção, o crítico Martins (1977-8, p. 384)
é bastante contundente em relação à necessidade de novos estudos sobre a autora:
“Júlia Lopes de Almeida (...) representa, talvez, o ponto mais alto do nosso romance
realista e, apesar da língua algo lusitanizante, não perderia no confronto com Aluísio
Azevedo (vítima do mesmo mal). É ela um dos nossos romancistas do passado a
exigir urgente releitura e reavaliação”.
A escritora é citada por Temístocles Linhares (1987) sobre o romance brasileiro,
no capítulo intitulado “Sob o Signo de Vênus”, da obra História critica do romance
brasileiro: 1728-1981. Linhares destaca a influência do jornalismo em sua carreira
literária, responsável por sua melhor qualidade de estilo: a simplicidade e a
sobriedade. Acentua que, mesmo iniciando sua atividade literária por volta de 1880,
em pleno vigor do naturalismo, Júlia Lopes de Almeida não se filiou a esta escola. A
sua formação portuguesa possibilitou a leitura de autores como Camilo, Júlio Diniz e
Herculano, dentre outros.
Para Linhares (1987), os romances da autora seriam realistas, com um outro
laivo de romantismo e é a partir desse enfoque que o crítico se debruça pelas
páginas dos três romances que considera os mais representativos da carreira
literária de Júlia Lopes de Almeida: A família Medeiros; A viúva Simões e A falência.
Há, ainda, outro viés na literatura de Júlia Lopes de Almeida que merece
maior aprofundamento: sua trajetória pela literatura infantojuvenil, destacando-se,
nesse aspecto, a possibilidade de inseri-la como representante de seu contexto de
época.
Nos últimos anos do século XIX, Zanchet (2006) afirma que a literatura
brasileira conviveu com uma diversidade de tons. A prosa ora percorreu o submundo
das moradias coletivas (O cortiço, de Aluísio Azevedo); ora trouxe à luz a imagem
dessacralizada das instituições sociais (O Ateneu, de Raul Pompéia); ora enveredou
39

pela vida suburbana, analisando problemas vitais da sociedade brasileira pós-


escravista com as obras de Lima Barreto; ora – entre a literatura e a sociologia –
denunciou as contradições da cultura brasileira (Os sertões, de Euclides da Cunha);
ora registrou diversos brasis no regionalismo de Monteiro Lobato, Simões Lopes
Neto ou Afonso Arinos. Apesar da diferença, em termos literários, entre os vários
autores desse período, os decênios que vão de 1890 a 1920 assinalam um projeto
de engajamento cultural, por parte dos escritores, comprometidos com a tarefa
missionária de nacionalização da literatura infantil.

Além de o modelo econômico deste Brasil republicano favorecer o


aparecimento de um contingente urbano virtualmente consumidor
de bens culturais, é preciso não esquecer a grande importância –
para a literatura infantil – que o saber passa a deter no novo
modelo social que começa a se impor. (...) fica patente a
concepção, bastante comum na época, da importância do hábito de
ler para a formação do cidadão (...). Intelectuais, jornalistas e
professores arregaçaram as mangas e puseram mãos à obra;
começaram a produzir livros infantis que tinham um endereço certo:
o corpo discente das escolas igualmente reivindicadas como
necessárias à consolidação do projeto de um Brasil moderno
(LAJOLO; ZILBERMAN, 1984, p. 28).

É aparentemente dentro desse contexto que se deve entender o trabalho e a


produção literária de Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida destinada à
infância. Em 1886, juntamente com Adelina Lopes Vieira, a autora publica Contos
infantis; em 1907 Júlia Lopes de Almeida lança Histórias da nossa terra e, em 1917
Era uma vez. Novamente em parceria com Adelina Lopes Vieira publica A árvore em
1916. Os livros destinados à infância e os manuais de Língua Portuguesa de grande
parte das escolas brasileiras, do começo do século XX, até por volta de 1960,
incluem textos de Júlia Lopes de Almeida. Tais narrativas de que se ocupa a autora
tematizam exortações moralistas e o comprometimento com valores como a
caridade, a obediência, a honestidade, o patriotismo, a solidariedade e a abnegação.
Zanchet (2006), afirma que os romances e contos da autora são coesos, na
época, com sua atuação de escritora e jornalista. Constituem um exemplo de
inserção da mulher e de seu tímido papel desbravador durante as últimas décadas
40

do século XIX e começos do XX. Sob esta ótica, Telles (1997, p. 436) afirma que a
autora

discutiu com prefeitos e urbanistas, opinou sobre questões


contemporâneas, tentou conciliar, na vida e na obra, o modelo da
Nova Mulher: companheirismo e organização, rebeldia e luta, com o
papel ‘sagrado’ de mãe e esposa. Ambiguidade e compromissos,
avanços e acomodações transparecem em seus escritos.

Coelho (2002, p. 331) de igual modo afirma: Júlia Lopes de Almeida é “a


primeira escritora brasileira da atualidade (...) que desde muito nova se dedicou com
reconhecido talento às letras. (...) A sua reputação de fina intelectual tem ecoado
fora do Brasil”.
O papel cultural de Júlia Lopes de Almeida merece investigação, tanto no
campo político quanto literário, uma vez que a necessidade de se reavaliar os papéis
desempenhados por mulheres escritoras carece de novos enfoques. Para Buarque
de Holanda (1994), na passagem do século XIX para o XX, a literatura de autoria
feminina é marcada por um sentimento de alienação e solidão, consequência da sua
exclusão em relação ao projeto de construção da nacionalidade. Posição divergente,
contudo, é levantada por Paixão:

No momento em que a mulher procura recuperar, no passado e na


tradição, elementos necessários à construção de uma nação
imaginada, ela está de certa forma rompendo com a ideia de que ser
moderno significa ter os olhos e a atenção voltados apenas para o
futuro: está construindo um espaço para si mesma como formadora
de uma identidade nacional (PAIXÃO, 1994, p. 431).

As narrativas de Almeida se concentram basicamente na sociedade carioca


que passou também por transformações físicas que reconfiguraram toda a capital do
país. Essas inúmeras mudanças foram acompanhadas por diversas narrativas
literárias que tentavam apreender esse contexto tão complexo. A tradição literária do
século XIX, principalmente o que chamam de geração de 1870, foi marcada pelo
desenvolvimento de uma escrita ficcional que apreendeu, de forma particular, as
tendências europeias, por exemplo, o realismo representado na figura de Flaubert e
o naturalismo muito característico de Zola (SOUZA, 2011).
De acordo com Souza (2011), Júlia Lopes de Almeida nesta narrativa
Memórias de Marta busca demonstrar através da figura de Marta que o indivíduo
41

pode superar sua condição social pelo estudo e pelo trabalho, principalmente no
caso feminino. A condição feminina do final do século XIX está confinada aos
afazeres domésticos: a mulher é criada para casar, criar filhos e cuidar de seu lar, e
a autora busca mostrar que a mulher é a educadora ideal e que pode sim congregar
seus afazeres domésticos com o estudo e o trabalho.
Sob essa ótica, as narrativas almeidianas falam, sobretudo, de mulheres que
apresentam suas vontades, desejos e imposições. Júlia Lopes de Almeida começa a
ocupar um espaço significativo na cena literária brasileira, como também começa a
produzir uma obra que se peculiariza por apresentar configurações femininas que
aparentemente rompem os padrões sociais da mulher de meados do século XIX e
século XX (SOUZA, 2011).
Mendonça (2003) afirma que reconhecida hoje pela revisão do cânone que
vem sendo feita pela crítica feminista, como um dos grandes nomes da literatura
feminina do final do século XIX e início do XX, Júlia Lopes de Almeida, também em
sua época, foi bastante celebrada, embora não o suficiente para que seu nome
fosse destacado na história da literatura brasileira.
Na revista A Mensageira, para qual contribuiu em seu primeiro número e em
mais alguns outros, seu nome já era citado como romancista. No número sete dessa
revista, de 15 de janeiro de 1898, Pelayo Serrano publicou um artigo intitulado
Intelectualidade feminina brasileira, no qual ao citar os nomes de brasileiras que se
destacavam no cenário literário, assim se refere à escritora: “Como romancista, d.
Júlia Lopes de Almeida, a mais conspícua de todas, autora da Família Medeiros, da
Viúva Simões, seus romances melhores e de mais fôlego, não falando dos Traços e
Iluminuras, do Livro das Noivas, dos Contos Infantis...”
No início do século XX, tem-se uma citação feita por Mariana Coelho (2002, p.
331) que, em seu livro A Evolução do feminismo, assim se refere a nossa escritora:

MENDONÇA, C. T. Júlia Lopes de Almeida:...


Considerada a primeira escritora brasileira da atualidade, é Júlia
Lopes de Almeida, que desde muito nova se dedicou com
reconhecido talento às letras. As suas publicações, quase todas em
prosa, são muitas e nelas se tem notabilizado principalmente como
romancista. É também distinta e brilhante conferencista. A sua
reputação de fina intelectual tem ecoado fora do Brasil.
42

Além de reforçar a importância da mulher de letras, Mariana Coelho nos


mostra outra faceta de Júlia Lopes de Almeida, que, já naquela época, levava suas
ideias para serem apresentadas em conferências, como as que fizera em 1910
sobre A mulher e a arte e A moda e a mulher.
Também significativa é a declaração de Filinto de Almeida que, em entrevista
concedida a João do Rio, segreda:

(João do Rio) – Há muita gente que considera D. Júlia o primeiro


romancista brasileiro. Filinto tem um movimento de alegria. Pois
não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso.
Não era eu quem deveria estar na Academia, era ela.

Em seus textos, seja no formato em que for, percebe-se a luta por mudanças
na situação da mulher na sociedade. Os direitos da mulher, principalmente à
instrução, são tematizados, como acontece na revista A mensageira, em seu
primeiro número:

Não é sem algum espanto que eu escrevo este artigo, para um


jornal novo, e, de mulheres! (...)
A mulher brasileira conhece que pode querer mais, do que até aqui
tem querido; que pode fazer mais, do que até aqui tem feito.
Precisamos compreender antes de tudo e afirmar aos outros,
atados por preconceitos e que julgam toda a liberdade de ação
prejudicial à mulher na família, principalmente dela, que
necessitamos de desenvolvimento intelectual e do apoio seguro de
uma educação bem feita.
Os povos mais fortes, mais práticos, mais ativos, e mais felizes são
aqueles onde a mulher não figura como mero objeto de ornamento;
em que são guiadas para as vicissitudes da vida com uma profissão
que as ampare num dia de luta, e uma boa dose de noções e
conhecimentos sólidos que lhe aperfeiçoem as qualidades morais.
Uma mãe instruída, disciplinada, bem conhecedora dos seus
deveres, marcará, funda, indestrutivelmente, no espírito do seu
filho, o sentimento da ordem, do estudo e do trabalho, de que tanto
carecemos. 8 (ALMEIDA, 1987, p. 3).

Segundo Mendonça (2003) aparentemente as ideias apresentadas por Júlia


Lopes de Almeida, em 1897, se parecem antiquadas para os dias de hoje, mas, para
a época eram revolucionárias. Sem negar o papel de mãe, a autora chama atenção
para a mulher como indivíduo, passível de momentos difíceis, para os quais sem

8
ALMEIDA, J. L. de. A Mensageira. São Paulo: Imesp/Daesp, 1987. v. 1. p. 3.
43

instrução não estará preparada. Além disso, é sob a perspectiva da mãe, tão
valorizada pela sociedade burguesa do século XIX, que ela reivindica a instrução
para a mulher: a mãe instruída pode melhor orientar os filhos e, portanto, melhor
cumprir sua missão. Aproveita a existência, na época, de grupos de homens que,
influenciados pelas ideias positivistas, justificavam o ensino para a mulher ligado à
função materna, como uma forma de afastar as superstições e incorporar as
novidades das ciências.
Júlia Lopes de Almeida não propõe à mulher que negue o papel que a
sociedade espera que desempenhe, de um esposa dedicada ao marido, às crianças
e desobrigada de qualquer trabalho produtivo, mas prevê a melhora do desempenho
deste papel. Ela não vai de encontro às regras estabelecidas pela sociedade para a
mulher, ao contrário, usa essas regras como argumento para reivindicar condições
que, sabidamente, dariam à mulher a independência em relação ao homem
(MENDONÇA, 2003).
É interessante notar que o discurso na produção romanesca de Júlia Lopes
de Almeida, quando entrevistada, deixa nas entrelinhas que não é feminista, suas
personagens são questionadoras, colocam em xeque o destino reservado à mulher
– o domínio da casa – e reproduzem o discurso de jornais libertários que apontavam
a instrução como uma “arma privilegiada de libertação” para a mulher,9 assim como
também existiam escolas libertárias que se preocupavam com a instrução das
meninas.
Embora na entrevista concedida a João do Rio, anteriormente citada, Júlia
Lopes de Almeida tenha respondido de forma evasiva a propósito do feminismo
(“Acabo de receber um convite de Júlia Cortines para colaborar numa revista
dedicada às mulheres. Descanse! Há uma seção de modas, é uma revista no
gênero Femina...”),10 essas narrativas são marcadas por questões amplamente
discutidas pelo feminismo da época.
Em nota manuscrita referente ao romance Memórias de Marta, a própria
autora relacionava cenas e personagens com a realidade vivida por ela:

A adjunta Marta não será por ventura a mesma pobre D. Marta que
ajudou minha irmã Adelina a ensinar-me as primeiras letras? Creio

9
LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE; BASSANEZI, op. cit., p. 446.
10
Esta entrevista está reproduzida em O Momento Literário, obra organizada por João do Rio a partir
de entrevistas concedidas por autores representantes da época.
44

bem que sim. As cenas brutas do livro, o pequeno alcoólico, foram


pressentidas através do muro que dividia o meu colégio de um
movimentado cortiço de São Cristóvão. Aquele ambiente inspirou
minha sensibilidade de menina [...]” (ALMEIDA, 2007, p. 14).

Grande parte de sua obra se alimentava de sua própria experiência passada


ou eram inspiradas pelo momento que vivia, por exemplo, Memórias de Marta, A
Família Medeiros (1892, data de publicação em jornal) ou A Falência (1901), escritos
em períodos distintos: no período da Abolição e do Encilhamento respectivamente,
abordando tais questões. Júlia Lopes de Almeida ajustava seu trabalho como
escritora ao seu cotidiano nos cuidados da casa e educação dos filhos, marcando
com estas características a lembrança de seus amigos mais próximos.
De acordo com Silva (2011), no plano da ficção, Júlia Lopes de Almeida
escreveu uma obra marcada pela valorização do cotidiano das prendas domésticas.
Isso faz com que, dentro de uma trajetória da narrativa brasileira de autoria feminina,
essa autora seja enquadrada no que Xavier (1998), a partir de Showalter (1985),
chamou de a primeira fase: a feminina. Ao contrário da segunda fase que,
denominada de feminista, é marcada pelo protesto e ruptura com os modelos
hegemônicos e ao contrário da terceira fase, chamada de fêmea (ou mulher) e
caracterizada pela autodescoberta e pela busca da identidade, a fase feminina é
marcada pela reduplicação dos valores tradicionais e pela imitação dos modelos da
cultura dominante.
Nesse caso, Júlia Lopes de Almeida é expoente dessa primeira fase não por
ter produzido uma extensa obra, mas, justamente, por ter sedimentado sua
produção sob os alicerces dos valores patriarcais, eis por que em seus romances,
contos e peças de teatro pululam as rainhas do lar e os finais felizes são quase
inevitáveis.
O próximo capítulo exporá aspectos voltados para o discurso das minorias,
presente no texto literário, visto que a literatura tem o poder de captar aspectos da
realidade e de representar comportamentos sociais. Por meio da imaginação e com
o poder das palavras, a escrita ficcional feminina de Júlia Lopes de Almeida
apresenta elementos que passam a vigorar na realidade e produz obras que
remetem a comportamentos possíveis de se atribuir a um todo social.
45

3 A ESCRITA FICCIONAL DE JULIA LOPES DE ALMEIDA

A escrita feminina ganhou corpo e forma na literatura nos últimos séculos.


Mulheres escritoras têm voz própria, estilo próprio, linguagem própria, temática
própria, longe de simplesmente reproduzirem modelos falocêntricos. A contrapartida
é uma subjetividade feminina marcada por uma escrita mais sensorial e sensível,
mais poética, lírica mesmo, uma escritura com o corpo e a alma e maior liberdade de
escrita. A narrativa de Júlia Lopes de Almeida pode ser inserida no contexto histórico
oitocentista. A obra dessa autora vai além do papel designado ao feminino, pois ela
consegue, através de suas personagens, mostrar que as mulheres possuem
aspirações que extrapolam aquelas valorizadas pelo modelo patriarcal. Ou seja, as
personagens almeidianas aspiram por educação e trabalho.

3.1 Ecos de uma escrita: submissa ou transgressora?

A economia colonial gerou a formação de uma sociedade, na qual a mulher


ocupava uma posição peculiar, afetando grandemente sua imagem durante anos.
Mantendo-se em segundo plano em relação ao homem tanto econômica como
socialmente, a mulher permaneceu à margem da sociedade e da historiografia
brasileira por muito tempo.
Segundo Saint-Hilaire11, a condição da mulher brasileira era tão inferior que
sua posição na escala social podia ser comparada à de um cão. As relações entre
os homens e as mulheres e a consequente posição dessa na família e na sociedade
constituíam parte de um sistema de dominação mais amplo. Por essa razão, a
análise da posição social da mulher na ordem escravocrata senhorial exigia que se
caracterizasse a forma pela qual se organizava e distribuía o poder na sociedade
escravocrata brasileira, época em que se formaram certos complexos sociais
justificados hoje em nome da tradição. O período colonial brasileiro apresenta uma
configuração exótica, na qual podem ser identificados traços das estruturas feudais

11
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil,
província cisplatina e missões do Paraguai. Tradução de Rubens Borba de Moraes. São Paulo:
Martins, 1940
46

europeias, da estrutura patrimonialista que se desenvolvia na época, e a exploração


da mão-de-obra escrava.

(...) Cercado de escravos, o brasileiro habitua-se a não ver senão


escravos entre os seres sôbre (sic) os quais tem superioridade, seja
pela fôrça (sic), seja pela inteligência. A mulher é, muitas vêzes
(sic), a primeira escrava da casa, o cão é o último (SAINT-HILAIRE,
1940, p. 48).

Em analogia a citação supramencionada, Cerdeira (2000) analisa que


historicamente no regime patriarcal o homem tendia a transformar a mulher num ser
diferente dele, criando jargões do tipo “sexo forte” e “sexo frágil”. No Brasil colonial,
a diferenciação parecia estar em todas as esferas, desde o modo de se trajarem até
nos tipos que se estabeleciam. A sociedade patriarcal agrária extremava essa
diferenciação, criando um padrão duplo de moralidade, no qual o homem era livre e
a mulher, um instrumento de satisfação sexual. Esse padrão duplo de moralidade
permitia também ao homem desfrutar do convívio social, dava-lhe oportunidades de
iniciativa, enquanto a mulher cuidava da casa, dedicava-se aos filhos e dava ordens
às escravas.
De acordo com Saffioti (2013), com o processo de urbanização a vida da
mulher pertencente à elite dominante começa a se modificar. Ela não mais
permanece reclusa à casa-grande, frequentando festas, teatros e indo à igreja, o
que possibilita um aumento em seus contatos sociais. Sua instrução geral, porém,
permanece desvalorizada, uma vez que a sociedade esperava que ela fosse
educada e não instruída. À sua educação doméstica acrescenta-se o cuidado com a
conversação, para torná-la mais agradável nos eventos sociais.
Freyre (1977) afirma que, expressões femininas como Narcisa Amália e,
posteriormente, Júlia Lopes de Almeida começam a ser notadas na literatura no final
do século XIX. Aos poucos, a mulher sai do privado e integra-se aos poucos na
sociedade, a princípio como escritora ou professora.
Em fins do século XIX, o Brasil já possui mulheres que sabem ler e escrever,
limitando-se, no entanto, à esfera do romance francês. Uma grande mudança ocorre
com o surgimento de Nísia Floresta e a sua obra Direitos das mulheres e injustiça
dos homens (1832), obra que provocou a reflexão sobre o status social das
mulheres, já que defendia a participação feminina em postos de comando. Nísia
47

Floresta foi uma feminista que escandalizou muitas das jovens senhoras brasileiras
acostumadas ao simples afrancesamento de sua cultura. O Padre Lopes Gama
muitas vezes levantou a voz contra as feministas, acusando-as de serem terríveis
pecadoras. Para ele, a mulher deveria somente se preocupar com a administração
de sua casa. O referido padre não se conformava em ver a mulher servil, embora
medíocre, sendo lentamente substituída por outro tipo de mulher, uma mais
“mundana” que frequentava teatros e salões de festas. (SAFFIOTI, 2013).
No entanto, apesar da opinião predominante de que as mulheres brasileiras
do século XIX viviam sob um regime patriarcal e limitadas a uma vida doméstica,
Bernardes12 põe em questão tais afirmações, buscando novos dados. Ao contrário
do que se pode imaginar, após a análise de todos os depoimentos, romances e
artigos selecionados em sua obra, sua prefaciadora Queiroz confirma que:

(...) Não parecia haver, assim, nem na maneira de pensar dos


homens, nem na das mulheres, e nem no modo de agir destas, um
único modelo preferencial que padronizasse as imagens e que
tornasse sempre semelhantes comportamentos e atividades. Pelo
contrário, entre os extremos detectados, opiniões e
comportamentos revelavam uma gama de pontos intermediários, de
nuances, separando a submissão total da total autonomia.
Inferiorização e marginalização da mulher, dentro e fora do lar, não
pareciam marcar irremediavelmente sua posição, nas famílias
urbanas abastadas, no Rio de Janeiro da segunda metade do
século XIX. (...) O que reinava era a variedade (QUEIROZ, 1989, p.
15)

Queiroz (1989) constata que uma das mais relevantes reivindicações dessas
mulheres foi o acesso à instrução, além do fato de elas estarem cientes de seu
estado de subordinação. A nova conjuntura econômica e social revela a
necessidade de dar à mulher algum nível de instrução, não se abandonando, porém,
a educação doméstica. Não há nessa época, contudo, o desejo de instruir
igualmente homens e mulheres, tampouco promover uma equiparação dos papéis
sociais dos elementos dos dois sexos.
A urbanização, que se acelerou na segunda metade do XIX e a
industrialização grandemente impulsionada nos anos 30 do século XX afetaram a
organização da família brasileira. Esses dois processos alteraram as dimensões da
vida da mulher, uma vez que ela teve seus papéis no mundo econômico
modificados. As mulheres saíram progressivamente da reclusão no lar para trabalhar
12
Maria Thereza Caiuby Crescenti BERNARDES, Mulheres de ontem?: Rio de Janeiro – século XIX.
48

em fábricas, lojas e escritórios. Essa mudança de comportamento alterou a sua


postura no mundo exterior.

(...) Minando o sistema de segregação sexual e o de reclusão da


mulher no lar, decrescem as diferenças de participação cultural dos
elementos femininos e masculinos. Deste maior ajustamento da
estrutura da família às novas condições de vida urbano-industrial
adviriam profundas alterações na educação feminina (SAFFIOTI,
2013, pag. 189-190).

Ramos (2009), afirma que foi dentro de um conjunto sociocultural opressor,


no século XIX, que a pena feminina afirmou-se no espaço das narrativas de si, mais
do que se pensou. Imersas em uma cultura que estratificou a criação literária como
um exercício masculino, as mulheres escritoras oitocentistas deixaram escritas
muitas narrativas e poemas, embora a tradição literária as fadasse durante muito
tempo à invisibilidade. Veja-se o que nos disse no século XIX uma de nossas mais
importantes escritoras Júlia Lopes de Almeida: “Sou uma boneca de carne e osso;
não sou mais nada. A minha dependência é o motivo de felicidade que todos
celebram em redor de mim. A minha pena é pensar estas coisas e saber dizê-las.”
13
.
De acordo com Castello Branco (1991), os temas eram, em geral, diferentes:
as autoras falavam muito da maternidade, do próprio corpo, da casa e da infância e
quase nada dos negócios, da vida urbana, das guerras, do mundo exterior ao eu.
Mas essas preferências são facilmente explicáveis por uma leitura de cunho
sociológico: com um olhar histórico, não é difícil afirmar que as mulheres não
escreviam textos épicos porque não iam as guerras, que sua preferência pelo
gênero memorialístico ou autobiográfico se deve a seu profundo conhecimento dos
universos do lar e do eu, próprios da criação de uma escrita intimista.
Neste sentido, embora registrando a posição de exclusão da mulher dentro de
uma sociedade feita de homens e para homens, Júlia Lopes de Almeida
aparentemente não consegue romper, conforme aponta Xavier (1998), com as
tradições em que fora forjada. Instruída na mais fina educação de recato e
obediência aos princípios morais, da qual muitas mulheres da época não puderam
ter acesso, esta autora parece inserir-se num rol de escritoras bem-comportadas, ou

13
Nadilza Moreira. A condição feminina revisitada. João Pessoa: Editora da UFPB, 2003.
49

seja, mulheres que, sem alterar a posição dos homens, desejavam ser incluídas em
novos espaços sociais sem que isso alterasse as relações de gênero. Júlia Lopes de
Almeida estava inserida, portanto, na dialética entre resistir e identificar-se à ordem
do discurso patriarcal que determinava os espaços e as relações de gênero.
Silva (2011) afirma ainda que ao contrário de pensar que a presença dessas
imagens estereotipadas sobre o feminino seja uma adesão inconteste à ideologia do
patriarcalismo, crê-se que a não abordagem de temas contrários à ordem patriarcal
tenha sido uma estratégia, “inconsciente”, utilizada por essa escritora para obter
acesso e, depois, reconhecimento e trânsito livre em espaços restritos apenas aos
homens.
Dessa forma, falando de mulheres cuja maior preocupação era as bagatelas
da vida doméstica, Júlia Lopes de Almeida estava dando os primeiros passos na
constituição de uma tradição literária feminina ao passo que, entre a aparente
banalidade do cotidiano, apontava, em suas obras, as fissuras do então sistema
ideológico vigente, evidenciando a submissão feminina em uma sociedade que
valorizava o patriarcalismo.
Júlia Lopes de Almeida é uma escritora cujas trajetórias no campo literário se
confundem, fazendo parte de um rol de escritoras pioneiras no campo das letras,
principalmente porque elas nasceram em uma sociedade que passava por
mudanças socioculturais bastante acentuadas, especialmente no que tange à
condição feminina. Neste caso, pode-se aplicar a essa autora o que disse Schmidt
(1995, p. 187) da escritora dos oitocentos:

Desafiando o processo de socialização e transgredindo ospadrões


culturais, tais escritoras nos legaram uma tradição de cultura
feminina que, muito embora desenvolvida dentro da cultura
dominante, força a abertura de um espaço dialógico detensões e
contrastes que desequilibra as representações simbólicas
congeladas pelo ponto de vista masculino. O feminino como
passividade e conformidade dramatizado na “estética da renúncia”,
na “temática da invisibilidade e do silêncio” ou na “poética do
abandono” se desdobra na prática representacional de resistência do
sujeito consciente que estilhaça o discurso das exclusões, para
lançar a pergunta impensada: o que acontece quando o objeto
começa a falar?
50

Segundo a citação acima, mesmo tendo sido admitida e aceita como


escritora, sobretudo por um público leitor predominantemente feminino, Júlia Lopes
de Almeida sofreu discriminação e o preconceito advindo do masculino, como todas
do seu sexo:
Quando Júlia Lopes de Almeida entrou a escrever nos jornais por
volta de 1885, encontrou ainda forte barreira de preconceitos contra
as mulheres escritoras que tinham tido como pioneira, no século
passado, Corina Coaraci” (...) (BRITO BROCA, 2004, p. 326).

Para Xavier (1992), a narrativa romanesca de Júlia Lopes de Almeida conserva


os valores dominantes, apesar de certa consciência feminista latente. Ainda não
havia chegado o momento em que a narrativa de autoria feminina se põe a
questionar o papel da mulher. Almeida é autora de uma obra rica e variada, onde a
mulher ocupa sempre o primeiro plano; onde a condição feminina é tematizada,
respeitando os valores dominantes.
Nessa ótica, a percepção da identidade feminina em Júlia Lopes de Almeida
está sempre articulada com a identidade de esposa/mãe/administradora da família.
A emancipação feminina, segundo ela, estava comprometida com a maternidade e
com os papéis delegados à mulher na sociedade brasileira, consequentemente,
pensar a mulher como uma instância singular, única, que merece seu lugar na
sociedade, sempre esteve muito ocupado, muito misturado em sua obra.
Sua escrita está marcada pela criatividade e pelo espírito crítico. Segundo
Stevens (2009), a autora também retratou a condição feminina em meio à discussão
de importantes temas sociais como a abolição da escravidão, a agricultura como
meio de desenvolvimento do país, o difícil acesso da mulher à educação. A partir de
meados do século XX a autora e sua obra caíram em profundo esquecimento do
qual começaram a sair graças ao esforço de estudiosas ligadas à linha de resgate
da Teoria/Crítica Literária Feminista que vêm promovendo o estudo e a reedição de
suas obras.
Ao se tomar conhecimento da sua trajetória pessoal e da aceitação que sua
obra obteve em seu tempo, torna-se mais fácil compreender o seu engajamento nas
mais diferentes questões sociais, sendo a principal delas a da educação da mulher
sobre a qual defendeu opiniões marcadamente feministas. Algumas de suas
51

personagens14 apresentarão e discutirão essas ideias, outras evidenciarão em suas


falas posições preconceituosas sobre a condição das mulheres. Isso tudo se torna
importante, dentro da abordagem de gênero, para que se possa caracterizar Júlia
Lopes como uma mulher que está, em muitas questões, à frente de seu tempo,
pelas suas ideias e atitudes inovadoras.
Stevens (2009), afirma que a postura diferenciada dessa autora permitiu que
ela abrisse para as brasileiras um espaço ao qual não haviam tido acesso até então.
Júlia Lopes realizou a proeza de tornar-se uma profissional das letras, terreno
monopolizado pelos homens. Conforme atesta Teles, “talvez [ela] tenha sido a única
escritora do período a conseguir dinheiro com sua pena” (TELES, 1997, p. 441).
Segundo Stevens (2009), o caminho percorrido por Júlia Lopes de Almeida
não é só individual, mas parece sinalizar um novo percurso a ser trilhado também
por outras mulheres na busca de um lugar onde, juntamente com os homens,
poderão usufruir de uma verdadeira igualdade entre os dois sexos.
Para Sharpe (1999), Júlia Lopes de Almeida, assim como seus
contemporâneos, sempre esteve preocupada com duas instituições sociais
proeminentes: a família e a República. A educação adequada da mulher estaria,
assim, “ligada ao bem-estar social da família e, por extensão, à bem sucedida
consolidação dos ideais republicanos” (SHARPE apud ALMEIDA, 1999, p. 23-24).
Na virada do século o processo de urbanização modela o Rio de Janeiro que
se expande para abrigar uma sociedade nova e retrata os conflitos provocados pelas
transformações em andamento. Neste sentido, Júlia Lopes de Almeida soube ser
uma observadora arguta dessas transformações e colocou, como tema principal de
sua obra, a família burguesa do segundo Império e da primeira República. Deu a
narrativa o tom familiar e intimista que caracterizam a produção de autoria feminina
(MOREIRA, 2003).
Focalizando o ambiente social da época, a autora traça um bem elaborado
panorama das classes que o formam, incluindo a nobreza decadente, o escravo
recém-libertado, o representante do poder econômico, o clero e a classe política. A
discussão central recai sobre o papel da mulher na sociedade.
Pelo que já foi verificado da postura política e literária de Júlia Lopes de
Almeida, aparentemente, ela aproveita-se de vários momentos dentro da sua

14
O termo personagem refere-se tanto às personagens masculinas quanto às femininas
52

produção romanesca para evidenciar sua visão crítica acerca dos pensamentos
retrógrados e preconceituosos sobre a mulher. Seu discurso destaca a importância
da educação e, concordando com os positivistas, a nobreza do trabalho digno e
honesto para a mulher. Para tanto, ela faz com que seus personagens falem
ironicamente sobre os preconceitos e hipocrisias da sociedade. Em outros
momentos, permite, com sua habilidade de narradora, que se depreenda uma
mensagem crítica na fala deles e na maneira como os representa. A invisibilidade da
protagonista funciona, como uma metáfora da invisibilidade da própria mulher no
espaço público, social e profissional (MOREIRA, 2003).
Paralelamente à questão da condição feminina, Júlia Lopes de Almeida expõe
as hipocrisias sociais e, sutilmente, critica o mecanismo do favor, do oportunismo, no
caso, entre os funcionários e políticos, e as relações baseadas apenas no interesse,
que imperavam na sociedade carioca. Não é de se espantar que essas relações
influenciassem o comportamento feminino; assim, a prosadora, em vários
momentos, vai se posicionar, em relação à condição feminina, aceitando e, ao
mesmo tempo, recusando os valores vigentes. Essa acaba sendo uma estratégia
para se questionar o sistema patriarcal sem, no entanto, desautorizá-lo.
Convém ressaltar que, a partir da segunda metade do século XIX, o culto da
domesticidade será reforçado no meio literário em consequência da valorização dos
ideais burgueses. Essa tendência também se reproduzirá nos textos de Júlia Lopes
de Almeida, o que acaba sendo visto como redutor e limitador para as mulheres
empenhadas em expandir seus direitos.
No entanto, a autora pretende apresentar ao público leitor que é preciso
valorizar a educação feminina e promover o abandono dos preconceitos lançados à
mulher que trabalha. Interessa-lhe divulgar uma imagem de mulher que está
preparada para enfrentar os obstáculos, não importando a sua classe social. Com
isso, reduz-se o estereótipo da mulher absolutamente dependente e sem nenhuma
iniciativa, e projeta-se um novo perfil feminino, mas adequado às mudanças sociais
(MOREIRA, 2003).
De acordo com Medeiros (2011), acrescenta-se também que, considerando o
fato de que a maioria dos romances do século XIX e início do século XX tinham na
mulher a sua maior parcela de público leitor, pode-se dizer que estes mesmos
romances não estavam interessados em apenas contar uma história, mas
53

principalmente em mimetizar modos de ser e de existir que eram tidos como


socialmente esperados.
Segundo Ribeiro (2011), as escritoras oitocentistas, dentre as mulheres que
produziram uma arte literária no Brasil Colônia, apesar de todas as dificuldades,
encontra-se, a título de exemplo, Ângela do Amaral Rangel (a Ceguinha/1725-?),
Maria Josefa Barreto (1775-1837), Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1868),
entre outras, foram bastante hábeis em construírem uma obra que, embora não
visasse romper com as estruturas e os papéis socialmente aceitos, almejava
mudanças sociais porque não referendava o status quo feminino vigente. Portanto,
entre a aparente amenidade dos temas tratados, nos interstícios entre linguagem e
representação, elas foram apresentando as fissuras na sociedade burguesa
oitocentista e, em alguns casos, como os de Júlia Lopes de Almeida conseguiram
subverter os padrões literários patriarcais, obtendo reconhecimento quando a regra
era receber o esquecimento.
Ainda segundo a visão de Medeiros (2011), uma das formas de subversão foi
engendrar um discurso dissimulado que veio referendar a importância da
experiência feminina para o exercício literário. Todavia, considerando-se o fato de
que a experiência sempre foi determinante nas transformações de realidades no
campo sociocultural, é preciso, no estudo de autoras como Júlia Lopes de Almeida
que essa categoria seja adotada a partir de uma perspectiva não reducionista ou
empirista.
Para o referido autor, no lugar de uma perspectiva que pressuponha “as
experiências femininas de subjugação, consideradas aprioristicamente e evidentes
em si mesmas, como posições epistemologicamente privilegiadas para a produção
de conhecimento autorizado” (MEDEIROS, 2011, p. 5), é possível, como sugere
Schmidt (1998, p.30), apoiando-se em De Lauretis (1984), “reconfigurar o conceito
de experiência a partir da noção de efeito da interação entre a subjetividade e a
prática social”. Neste sentido, o conceito de experiência é reformulado, sendo
definido como “um complexo de hábitos que resulta do engajamento entre ‘mundo
exterior’ e ‘mundo interior’” (SCHMIDT, 1998, p. 31).
Nessa perspectiva, a experiência torna-se uma categoria imprescindível no
processo de dar “significância (efeitos de significados)” ao sujeito e ao mundo social,
podendo ser, portanto, definida como “o resultado do processo através do qual o
54

sujeito assimila, na subjetividade, as relações materiais da prática social que são,


em última análise, históricas” (DE LAURETIS, 1984 apud SCHMIDT, 1998, p. 31).
Moreira (2003) afirma que, possuidora de grande perspicácia, de uma argúcia
que conseguiu ler e traduzir o gosto e a estética dominante da sociedade burguesa,
Júlia Lopes de Almeida agradou, particularmente, às mulheres e, foi além, segundo
Amado “D. Júlia Lopes não é só uma escritora feminina; não agrada só as mulheres”
(AMADO, 1914, p. 260). Mas a ambos os sexos, sem lhes discriminar em nada. Em
sua longa vida literária, Almeida escreveu para um público eclético, assim como
desenvolveu vários gêneros literários, excetuando-se o humorismo e a poesia,
experimentou todos os outros (RIBEIRO, 1965, p.14).
No dizer de Medeiros (2011), o fato de Júlia Lopes de Almeida não ter
promovido o rompimento com modelos políticos sócias vigentes à sua época não
quer dizer que ela tenha, necessariamente, comungado com eles. A postura política
empreendida por ela não foi alicerçada no embate direto contra os valores e as
imposições da sociedade patriarcal em que ela viveu, mas esteve calcada na
negociação com esses valores e imposições.
Pode-se dizer que, se o discurso político subjacente à produção literária
dessa escritora não visava à alteração nas relações de gênero, ele almejava que a
mulher pudesse circular nas esferas sociais sem que fosse preciso fazer-lhes
concessões. Júlia Lopes de Almeida fez do exercício literário uma bandeira de luta
pela igualdade entre os sexos, de forma que as diferenças entre masculino e
feminino fossem marcadas não pela segregação, mas pela valoração positiva, isto é,
ansiava pelo reconhecimento da diferença em meio à igualdade de direitos e de
deveres.
Medeiros (2011) afirma que nesse sentido, a escritora exerceu uma escrita
literária marcada pela mescla entre a comunhão com os valores patriarcais e a
crítica a tais valores. Uma escrita que se pode chamar de feminina/feminista. Uma
escrita que somente em sua superfície pode ser vista como bem-comportada, mas
que, em profundidade, denunciava a ausência das mulheres nas tomadas de
decisão tanto no âmbito da esfera privada quanto no do espaço público, e apontava
a impossibilidade feminina de decidir sobre o seu próprio destino ou de expressar
seus desejos mais recônditos.
Enfim, uma escrita em que valores conservadores e inovadores encontram-se
amalgamados e estabelecem negociações entre si, como se a referida escritora
55

estivesse a sinalizar a possibilidade de convivência, na esfera social, de polaridades


aparentemente antípodas: masculino e feminino (MEDEIROS, 2011). O olhar voltado
à obra de Júlia Lopes de Almeida não deve procurar cobrar dela aquilo que,
sociocultural e historicamente, não podia ser ofertado. Exigir uma ruptura com uma
ordem dentro da qual e para a qual ela havia sido educada é um tanto quanto
descabido.
O fato de Júlia Lopes de Almeida ter sido aparentemente bem-comportada,
isto é, de ter ansiado por mudanças sociais sem que as estruturas da sociedade e
as relações de sexo/gênero sofressem profundas alterações, não faz dela uma
escritora que comungou, resignadamente, dos valores patriarcais. De acordo com
Medeiros (2011), rotulá-la como reduplicadora dos valores e do discurso patriarcal,
só é possível se a nossa leitura da sua produção literária deixar guiar-se pela pressa
e pela ausência de reflexão sobre a própria condição feminina nos oitocentos e
sobre o contexto histórico, social e cultural que marcou a vida e a produção da
escritora.
Para o referido estudioso, mais do que em consonância com as estruturas
hegemônicas de poder, Júlia Lopes de Almeida, em suas obras, refletira tais
estruturas sociais de poder. Se, no enredo de suas obras, construiu um universo
marcado pela presença de donas de casa, mocinhas casadoiras, se falaram do lar,
das relações familiares, ela o fez assim porque estava falando de assuntos e de
lugares, socialmente, permitidos, trazendo para o centro de suas narrativas
mulheres que, no plano da realidade social, eram coadjuvantes em enredos
marcados pelo protagonismo masculino.
Enfim, por ter escrito conforme permitido pelo quadro ideológico da época,
Júlia Lopes de Almeida não pode ter o seu valor diminuído. A obra dela reflete um
rico período de transição finissecular da nossa sociedade, principalmente no que
tange à condição feminina e às transformações na esfera política, social e
econômica do país. Medeiros (2011) pontua que é uma obra que pode ser
considerada um produto direto dessa sociedade, a qual não ofereceu à escritora as
condições para outro tipo de escrita tampouco para outros temas. Ela, portanto,
sofreu, em seu trabalho nas Letras, do mal da época que incluía a falta de instrução,
de direitos legais, o não reconhecimento das mulheres como cidadãs. Entretanto, é
preciso reconhecer, dentro da moldura do tempo, o esforço de Júlia Lopes de
56

Almeida, que, herdeira de uma tradição de séculos de silenciamento, procurou fazer


da escrita um meio de obter vista e voz quando a palavra de ordem era calar-se.

3.1.1 Memórias de Marta: ecos da submissão?

A participação feminina é quase inexistente no que diz respeito à inclusão


desta no contexto sócio histórico. É sabido que as mulheres são excluídas e que
somente o homem aparece como sujeito da Cultura e da História. Porém, no século
XVIII foi importante sua participação nos movimentos revolucionários franceses, no
qual, reivindicavam o trabalho e exigiam a diminuição dos preços dos gêneros de
primeira necessidade. Politicamente, agruparam-se em clubes, com a intenção de
fazer ouvir mais forte sua voz, e quando estes eram dissolvidos, passaram a fazer
parte de organizações populares.
Assim, as primeiras vozes de contestação feminina que a história moderna
registrou se dirigiam contra a desigualdade sexual, no acesso a educação e ao
trabalho. No século XVIII, que foi o século das Revoluções, algumas manifestações
femininas começaram a reivindicar os direitos de cidadania. A partir da Revolução
Francesa, as mulheres começaram a intensificar sua atividade política e reivindicar
direitos políticos legais (BAUER, 2001).
O século XIX constitui-se pela continuidade temporal de um discurso
misógino, que tende a privilegiar o ponto de vista masculino como forma
representativa do geral, determinando papéis sociais a serem ocupados por homens
e mulheres. Definições generalizantes tais como “homem, branco e burguês”
aspiravam à demarcação dos espaços por meio de discursos que se pretendiam
hegemônicos de um ponto de vista interessado, excluindo, dessa forma, mulheres,
negros e pobres das participações no campo público e cultural, notadamente
exclusivo ao universo masculino.
Às mulheres era legado essencialmente o espaço privado do lar. Deveriam
ser responsáveis pela casa, o marido e os filhos. A educação, quase que
exclusivamente restrita às burguesas, se resumia em aulas de piano e francês.
Assim, se se considerar os Oitocentos como o século do romance, a escritura e a
educação estiveram sempre andando de mãos dadas com a legitimação de
condutas e determinando “modos de socialização, papéis sociais e até sentimentos
esperados em determinadas situações” (TELLES, 2007, p. 402).
57

De acordo com esta autora, aparentemente, os estereótipos femininos eram


construídos e repetidos por meio do imaginário dos romances escritos por homens,
provavelmente, para determinar e controlar espaços e papéis esperados das
mulheres. Consequentemente, a linguagem torna-se objeto em que se instaura e se
manifesta o poder, uma vez que, repetida exaustivamente, é usada para solidificar
estereótipos discursivos em um determinado tempo, configurando-os como uma
construção histórico-cultural.
No ver de Siqueira (2008), as questões relacionadas à educação no Brasil se
incluem na pauta de discussões de vários setores sociais. O debate histórico mostra
que a problemática da educação brasileira sempre aparece na trajetória do processo
de desenvolvimento nacional sob vários ângulos e perspectivas, de acordo com a
realidade socioeconômica e política do país e com o ideário político-social
estabelecido. Nesse contexto, a educação feminina e o papel da mulher na
sociedade brasileira percorrem um leque de abordagens a partir de noções apoiadas
nas desigualdades entre os gêneros, nas questões sociais, culturais e religiosas.
A história da mulher brasileira não tem sido diferente. Nota-se que também foi
marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal que, legitimada pela religião
cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em todas as esferas sociais.
A mulher do Brasil oitocentista, formada e constituída socialmente nesta ordem, era
subordinada e dependente do pai ou do marido, sendo feita propriedade do homem
e silenciada por ele.
As construções socioculturais de gênero masculino e feminino são categorias
fundadas da nossa produção e reprodução cultural. Na noção histórico–cultural, a
ideologia de gênero ressalta que cada cultura produz as suas próprias normas de
conduta e modela um tipo de mulher distinto, mantendo formas de desigualdade.
Navarro (1995, p. 82) evidencia que:

manter a desigualdade, configura-se como a instância primária de


produção e reprodução da ideologia patriarcal, pois, operando na
qualidade de tecnologia de controle em termos de limite, modelos e
significados socialmente desejáveis, gerou um processo
disseminado de repressão feminina.

No contexto desse ideário, criaram-se as bases da imagem da mulher como


um ser inferior e a imagem do homem como sujeito racional, consciente e universal.
É sob a ótica de conceitos apoiados nessa noção que se traduziu o feminino durante
58

muito tempo, ao silêncio. No Brasil, desde os tempos do período colonial a


predominância da família e da religião na vida cotidiana estabelecia e reforçava os
mecanismos de subordinação e opressão feminina, que se mantiveram inalterados
ao longo dos séculos. As funções sociais femininas recaiam sobre o tripé: filha,
esposa e mãe.
Na sociedade colonial cristã, o sentimento de superioridade do masculino em
relação ao feminino reflete o ideário do primeiro, em função do qual era delimitado o
papel das mulheres. No entendimento de Cardoso (1980), a família amparada na
sociedade e naturalmente abençoada pela igreja representou o agente maior para o
exercício e o reforço da discriminação da mulher.
Na sociedade brasileira a tradição familiar pautada na relação familiar
patriarcal, legitimada pela igreja desde o início da fase colonial, aliada à
estratificação social favoreceu uma estrutura de poder fundada na autoridade dos
homens. Referindo-se a essa questão, Nader (1997, p. 41) assinala que:

A estrutura da família patriarcal brasileira e a mentalidade formada


em torno dela constituíram a base de apoio na qual se assentaram
os pontos básicos da organização de nossa sociedade [...] Os
preceitos da família patriarcal brasileira intervinham quase que
totalmente na vida de seus membros e determinavam os padrões
morais de cada sexo.

A educação monopolizada pela igreja Católica reforçava os padrões


familiares, contribuindo para o fortalecimento da predominância masculina e a
divisão tradicional de papéis distintos entre homens e mulheres. Nesse sentido,
família-igreja-educação aliadas aos mesmos padrões socioculturais criaram-se em
um importante espaço de construção de gênero, onde os direcionamentos
educativos determinavam as diferentes funções sociais e as diferentes
competências para meninos e meninas (RIBEIRO, 2000).
Considerando o dever de mãe e a missão civilizadora, as mulheres deveriam
procurar sempre o caminho da honra e do dever. Na interpretação de Hahner (1981,
p.46) “[...] a tônica permanecia na agulha, não na caneta” [destaques do autor]. A
força dos valores morais e religiosos no controle da conduta feminina e no seu
desenvolvimento social se expressa em todas as instâncias da sociedade, que
defendiam o ideal da mulher mãe e esposa dedicada, guardadas em seus lares, com
instrução suficiente para compreender os gostos de seu marido e primar pela boa
conduta dos filhos.
59

O modelo de mulher-esposa-mãe, e ainda, “rainha do lar”, semeado desde o


século XVIII, ganha força no século XIX, quando o conceito de feminilidade
comportava a ideia de que a mulher deveria ser capaz de suportar sofrimentos,
injustiças e subjugação. Perrot (1988, p. 180-186) descreve esse condicionamento
pela visão que perpassa pelo mundo ocidental:

a ação das mulheres no século XIX constituía, sobretudo, em


ordenar o poder privado, familiar e materno, a que eram destinadas,
edificando uma moral doméstica que dá sentido às suas ações [...]
a fé com razão, a caridade contra o capitalismo e a reprodução
como justificativa fundamental constituem os eixos principais dessa
moral [...] O século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação
sexual dos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo
procurou definir estritamente o lugar de cada um. Lugar das
mulheres: a maternidade e a casa cercam-na por inteiro.

Nesse contexto, por um longo período histórico dedicando-se a um espaço


privado, as mulheres por consequente ficavam afastadas da educação formal.
Segundo Ariès (1981, p. 190):

a ausência da educação feminina pode ser explicada pela exclusão


da mulher do processo educativo pelo menos até o século XVIII,
quase dois séculos de diferença em relação aos homens. [...] Além
da aprendizagem doméstica, as meninas não recebiam por assim
dizer nenhuma educação. Nas famílias em que os meninos iam ao
colégio, elas pouco aprendiam.

Apesar desta exclusão, a partir do final do século XVIII e início do XIX as


modificações que estavam ocorrendo na sociedade começam a promover também
uma nova caracterização nas escolas e nos padrões de comportamento. O ingresso
da mulher no espaço público passa a ser gradativamente visto como uma nova
forma de sociabilidade feminina, principalmente para a mulher popular que se faz
presente nas ruas.

para ela, a rua não é apenas um corredor de circulação, mas


também um meio de vida que, por exemplo, deve fornecer matéria
para o aquecimento [...] a presença da mulher burguesa se
intensifica principalmente em espaços públicos mais selecionados
(PERROT, 1988, p. 221).

A expansão do processo industrial e urbano e de uma camada média


detentora de uma cultura mais escolarizada ampliaram as fronteiras para os níveis
da educação e da profissionalização das mulheres, impulsionando mudanças acerca
do que a sociedade pensava sobre o papel destinado a elas. As múltiplas
60

transformações socioeconômicas que marcaram o final do século XIX e a primeira


metade do século XX, aliadas à ideia de civilização e educação que se expandia por
todo mundo ocidental sob forma de progresso técnico e cientifico, alargou de forma
notável a visibilidade da mulher (SIQUEIRA, 2008).
No Brasil, no final século XIX e início do século XX, diante do contexto
nacional de construção de um novo estado republicano, o novo ideário da República
proporcionou discussões acerca de modernidade e tais discussões permitiram a
abertura de espaço para inovações materiais e sociais. As novas configurações
sociais e urbanas contribuíram para o processo de conquista feminina no âmbito da
educação, do espaço público e da sociabilidade além dos limites do lar e da igreja,
ambientes em que a ação feminina marcava presença (HAHNER, 2003).
Dessa forma a literatura tendia a refletir sobre a mentalidade que exaltava a
supremacia do homem e a noção predominante no imaginário masculino que era a
de manter a mulher com pouca ou nenhuma instrução, sem saber ler e escrever, e
restrita ao mundo doméstico.
Para Siqueira (2008), tal mentalidade assegurava a permanência da mulher
no espaço fechado do lar e, quando estivesse em espaço público, seu
comportamento deveria ser de recato, cuidado e humildade. No período colonial é
essa a mentalidade que se impõe às mulheres brasileiras, nada além das doutrinas
cristãs e das atividades domésticas.
A ausência da escolaridade feminina na sociedade da época expressa à
relação de poder à qual as mulheres estavam submetidas e que direcionava sua
educação para a passividade, para o silêncio e para a submissão, prática que
marcou a vida e a postura da mulher brasileira atrelada à aceitação de sua
permanência no âmbito doméstico.
Nessa sociedade as mulheres foram simplesmente excluídas da precária
educação formal que existia no país. A República iniciou alguns avanços
educacionais, mas foi após 1930 que esses avanços e as mudanças mais
significativas começaram a acontecer, quando os níveis de escolaridade feminina
iniciaram uma marcha ascendente em direção aos mais elevados graus de
educação, revertendo o quadro de invisibilidade e superando as dificuldades
educacionais de gênero, conquista que marcou o século XX.
Segundo Siqueira (2008), pensar gênero, mulher e educação como eixo
temático de pesquisa obriga discutir o tema em um contexto histórico mais
61

abrangente, e apreendê-lo em sua complexidade, buscando os nexos existentes


entre as diferentes instâncias da realidade social. A complexidade inscrita nessa
perspectiva de estudo se prende, principalmente, ao fato de que visualizar as
mulheres além dos espaços tradicionalmente consagrados como espaços femininos
representa o desafio de alargar os conhecimentos históricos, considerando não
apenas a presença feminina nas escolas, mas também a apreensão dos
enlaçamentos dessa ação, com a família e a igreja, “[...] instituições que se
congregaram em torno da função precípua de disciplinar corpos e normalizar a
conduta social, segundo o modelo de disciplina cristã” (MUNIZ, 2003, p. 17).
A compreensão dessas questões iniciais implica particularmente no
entendimento das representações sociais no âmbito das relações de gênero.
Visualizar a presença feminina nas escolas, no âmbito das relações de gênero,
implica entender também o cotidiano do processo educacional da mulher, o que em
síntese pressupõe uma reflexão sobre a diferença nas práticas cotidianas, na
construção do discurso predominante e no processo de socialização das mulheres
(SAMARA, 1997).
O debate sobre a mulher, a família e a educação nos remete a um ponto
fundamental das relações entre os sexos, ou seja, o da construção social de gênero
(SAMARA, 1997). A desigualdade social entre gêneros percorre um longo caminho
na história das sociedades. Nessa trajetória a mulher foi tradicionalmente colocada
no interior do lar, no espaço privado, enquanto o espaço público representava o
lugar do homem e do trabalho masculino.
Júlia Lopes de Almeida era uma mulher que se dividia entre os afazeres do lar
e a arte, “segundo os artigos, publicados após sua morte, e entrevistas dadas em
vida, foi mãe extremada, esposa solidária, dona de casa atenciosa e ciente de seus
deveres, valorizando a figura da mulher dentro da estrutura familiar” (SALOMONI,
2005, p. 31).
Um dos pontos fundamentais da sua escrita é a valorização do estudo
feminino, que este não deveria ser visto como um desperdício, já que o final de
todas as mulheres era se casar e cuidar da casa e criar os filhos. Júlia Lopes de
Almeida preocupou-se com a formação da sociedade, ela percebeu que se as
mulheres fossem mais esclarecidas, cultas, como formadoras de sua família,
conseguiriam formar cidadãos melhores para esta sociedade.
62

O livro Memórias de Marta é um romance que relata uma autobiografia


ficcional de uma jovem chamada Marta de meados do século XIX. Foram
encontrados até hoje três edições desta obra que foi publicada pela primeira vez na
seção Folhetim na extinta Tribuna Liberal do Rio de Janeiro entre 03 de dezembro
de 1888 até 18 de janeiro de 1889, a segunda vez em 1899 em uma edição da Casa
Durski de Sorocaba e a terceira publicada entre 1925 e 1932 pela Livraria Francesa
e Estrangeira Truchy-Leroy – Paris.
A professora Salomoni que fez o levantamento de seu acervo observa que as
três edições desta publicação se diferem entre si, há diferenças consistentes entre
elas, até mesmo supressão de alguns parágrafos em sua última edição encontrada.
Nos três exemplares há diferentes inícios. Para a pesquisadora, além de alguns
parágrafos finais omitidos nas duas últimas reedições, que operam na obra
alterações de significado, dando a elas novo sabor, mas que de forma alguma
desmerecem o texto original (SALOMONI, 2005).
Na narrativa Memórias de Marta a escritora estabelece relações de oposição
entre os espaços em que a jovem Marta convive, como por exemplo, o do cortiço
que é um lugar degradado, úmido e escuro enquanto a escola é um ambiente
ensolarado, luminoso que se assemelha com o paraíso para ela. A oposição aqui
entre claro e escuro parece demonstrar toda a importância da educação na vida
dessa menina, já que, somente a luminosidade da razão pode afastá-la daquele
ambiente escuro e degradado que estavam às margens da sociedade:

O sol não entrava arrojado e luminoso pela janela do ensombrado


quarto do cortiço, como pelas molduras envernizada da aula e,
sobretudo, não teria companheiras risonhas e turbulentas: havia de
suportar as brutalidades dos vizinhos imundos, e para entreter-me,
brincaria de vez m quando com a desgraçada bruxa que fora outrora
adorada por mim, mas que votei ao desprezo desde que vi Mlle.
Rosá. (ALMEIDA, 2007, p. 59)

Diante do excerto, Memórias de Marta já apontava à educação escolar como


meio de transformação individual e social. E no entendimento de Jane Soares de
Almeida:
63

O modelo normativo de mulher [...] inspirado nos arquétipos do


cristianismo, espelhava a cultura vigente instituindo formas de
comportamento em que se exaltavam virtudes femininas como
castidade, submissão e abnegação, forjando uma representação
simbólica de mulher por meio de uma ideologia imposta pela
religião e pela sociedade, na qual o perigo era principalmente
representado pela sexualidade. Essa ideologia vai desqualificar a
mulher socialmente, do ponto de vista profissional, político e
intelectual (ALMEIDA, 2004, p. 68)

A compreensão dessas questões iniciais implica particularmente no


entendimento das representações sociais no âmbito das relações de gênero.
Visualizar a presença feminina nas escolas, no âmbito das relações de gênero,
implica entender também o cotidiano do processo educacional da mulher, o que em
síntese pressupõe uma reflexão sobre a diferença nas práticas cotidianas, na
construção do discurso predominante e no processo de socialização das mulheres
(SAMARA, 1997).
Amed (2010) afirma que, Júlia Lopes de Almeida estimulou a leitura e a
escrita para mulheres, envolveu-se com as ideias e reflexões junto à educação
infantil, ela também promoveu salões literários em sua residência junto a artistas e
escritores. Jornalista, romancista, contista e autora de peças de teatro junto ao seu
marido Filinto. Júlia Lopes de Almeida também produziu intensamente no início do
século XX ao lado de escritores consagrados como: Graça Aranha, Euclides da
Cunha, Silvio Romero, Olavo Bilac, João do Rio, Coelho Neto entre outros.
A sociedade brasileira do final do século XIX passava por um período de
grandes mudanças, políticas e sociais. Este é um período sob o qual as ideias de
progresso e civilização estão muito presentes, e por conta disto é possível observar
a constituição de novas concepções a respeito da vida familiar e o universo feminino
de acordo com o momento que vivia.
A cada dia novos modelos eram criados, novas ideias que indicavam uma
mudança no comportamento, principalmente calçadas nas ideias cientificistas que
ocupara lugar de grande destaque nas rodas intelectuais. Em seu romance
Memórias de Marta, a autora retrata algumas destas mudanças, principalmente com
relação ao papel da mulher dentro do ambiente familiar e também na sociedade
(MAGALDI, 2007).
Para a referida autora, esta obra pode ser vista como a demonstração da
mudança na crítica feminina sobre a sociedade patriarcal brasileira deste final de
64

século e que se desenrolaria por todo século XX. Um dos pontos interessantes que
chama a atenção para este livro é o fato de que essas memórias são narradas por
uma mulher, é a própria Marta, personagem protagonista desta obra. Percebe-se
através desta personagem que uma das preocupações da autora foi a de dar voz à
mulher e demonstrar a sua importância para a sociedade.
O livro nos apresenta duas Martas: a mãe e a filha. A que nos apresenta a
narrativa é a segunda, que resolve por contar suas memórias já em idade adulta
deixando “claro que o mundo de cada um é limitado pelo que abrangem os raios de
sua capacidade visual ou pelo que lhe sugere a imaginação e que seu relato será
expressão fugidia de certas passagens e de certos seres” (ALMEIDA, 2007, p. 17). É
através dos frangalhos de sua memória que a Marta adulta tenta reconstituir seus
dias de menina, ou as impressões deixadas em sua memória daqueles dias.
Afirma Salomoni (2005), para que as duas pudessem sobreviver neste novo
ambiente Marta mãe passa roupas a ferro da manhã até a noite para sustentá-las,
enquanto a filha tenta se alocar a sua nova realidade, pois saíra de um lar feliz e
saudável para viver em condições quase que insalubres em um cortiço. Através da
dedicação de sua mãe Marta consegue sobreviver a este ambiente e através de
uma das freguesas de sua mãe vem a ser matriculada em uma escola pública. É
através deste gesto que a vida da pequena Marta é levada para outro rumo, é pelo
estudo que vai ser salva. Aqui neste ponto a centralidade do romance, uma vida que
estava fadada ao fracasso, à menina que teria o mesmo destino da mãe de engomar
noite e dia para se sustentar, foi direcionada para um destino mais confortável e
promissor com a sua inserção em uma escola.

Tendo-me matriculado na escola pública da freguesia, minha mãe


mandou-me participar o caso às vizinhas. Para festejar o
acontecimento, Carolina tirou do seu baú de folha um embrulhinho de
papel de seda e ofereceu-mo. Que lindeza! – era uma caneta de
celuloide verde e que ela guardava como uma relíquia.... (ALMEIDA,
2007, p. 55)

Para Souza (2011), Marta foi salva pelo estudo e pelo trabalho, é através dele
que a personagem narradora encontra respeito e aceitação na sociedade ao tornar-
se professora. Seu destino seria o mesmo que o de sua mãe se não tivesse se
enveredado pelo caminho educacional, várias vezes sua mãe a aconselhava para
que a filha se interessasse mais pelos afazeres domésticos, pois devia pensar em
65

como se sustentaria caso morresse. Através dessa preocupação da personagem


com o destino da filha, Júlia Lopes de Almeida deixa entrever a transformação por
que passava o universo feminino no que diz respeito ao mundo do trabalho, em
muitas famílias as mulheres começavam a sair de casa para buscar o sustento. Mas
não só por este caminho a personagem estaria inclusa na sociedade e com o futuro
garantido, faltava-lhe algo: o casamento. De acordo com Souza (2011), apesar de
não querer contrair um casamento sem amor, a personagem descobre que este será
seu melhor caminho e se conforma mostrando uma atitude submissa:

Assim, embora a autora desconstrua o esquema romântico do


casamento por amor e reafirme, na nossa visão, um posicionamento
pessoal de crença na capacidade da profissionalização das
mulheres, estes sucumbem diante de certo conformismo em relação
às regras de convivência da sociedade (ALMEIDA, 2007, p. 19).

Para a referida autora, são ideias contraditórias apresentadas pela escritora,


mas que condizem com tempo cronológico a que foi escrito o romance. A própria
autora apesar de ser uma grande escritora era mãe de família e dava extremo valor
a essas duas qualidades. Júlia Lopes de Almeida deixava claro que suas
responsabilidades de esposa e mãe eram indissociáveis a sua prática de escritora,
ela conseguia administrar suas duas atividades de forma exemplar sem se descuidar
nem de uma ou outra. Certa vez confessou a João do Rio:

que escrevia seus romances devagar, “hoje algumas linhas,


amanhã outras (...) Há certa hora do dia em que as coisas ficam
mais tranquilas. É a essa hora que escrevo, em geral depois do
almoço. Digo as meninas: - Fiquem a brincar com os bonecos que
eu vou brincar um pouco com os meus.” Apesar de ser interrompida
a todo momento pelas crianças ou pela empregada, conseguia
produzir seus textos e se aventurar pelo mundo da leitura (RIO,
2006, p. 31-32).

Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida, apresenta ao público leitor a


importância e a concepção de educação feminina, apesar de a obra mostrar,
aparentemente, reproduções de modelos sociais estabelecidos, como a submissão
feminina em relação à masculina, porém, o presente estudo trouxe a tona elementos
que apresentam a defesa que a escritora faz sobre a necessidade da mudança de
atitudes femininas diante de uma recém República brasileira, exigindo maior esforço
das mulheres, iniciando então um movimento de valorização das funções exercidas
66

pelas mulheres e denunciando a necessidade de ampliar a educação para as


moças.
Portanto, quando se esperava que Memórias de Marta pudesse se identificar
apenas o seu conformismo com um modelo de dominação cultural masculino,
constatou-se outros elementos, que dentro das possibilidades da autora, estava à
defesa dos interesses da mulher brasileira, como uma melhor formação educacional.
Seguindo os padrões de conduta estabelecidos na sociedade brasileira do
século XIX e início do século XX, deduz-se que para ser cidadã, a mulher precisaria
ser mãe e, para exercer plenamente esse papel, deveria receber boa educação e
instrução adequada.
Na concepção de Júlia Lopes de Almeida, a tarefa ou missão da maternidade
implicava o exercício de múltiplas funções, assumidas como verdadeiras obrigações
pelas mulheres. Tais funções como ser uma mãe instruída, disciplinada, marcaria,
no espírito do seu filho, o sentimento da ordem, do estudo e do trabalho, que
segundo a autora, parecia que ser esses os elementos do progresso e de paz para
as nações.
Para Zanche (2006), é possível perceber que Júlia Lopes de Almeida, na obra
Memórias de Marta, declara ser incontestável a necessidade de aprimoramento
intelectual da mulher, pois somente assim, poderá corresponder às demandas
familiares de forma mais inteligente. Certamente, as escritoras, como a referida
autora, e críticos em geral e as intelectuais brasileiras, em particular, contribuíram,
decisivamente, para a inserção da temática feminina nas discussões de outras
temáticas nacionais, no período do entres éculos.
Atuando em diferentes periódicos de expressão nacional, essas autoras,
favoreceram a atualização do debate sobre as questões femininas, contestando,
mesmo que, ainda, de uma forma discreta, as imposições ideológicas que impediam
a liberdade de ação das mulheres e, consequentemente, a sua participação efetiva
na vida da sociedade brasileira.
Em resumo, adotando uma possível postura conciliadora, negociando o
tempo todo com a sociedade em que vivia, Almeida conseguiu divulgar a
importância da educação como construtora da cidadania e sua aposta no trabalho
como fonte de desenvolvimento individual e social. Conclui-se que na obra existe um
desejo por uma libertação da mulher e não somente uma aceitação dos ditames
impostos na sociedade patriarcal de então.
67

3.1.2. A Família Medeiros e a escrita militante de Júlia Lopes?

As relações das mulheres com o poder inscreveram-se primeiramente no jogo


das palavras. “Poder”, como muitos outros, é um termo polissêmico. No singular ele
tem uma conotação política e designa basicamente a figura central, que comumente
se supõe masculina. No plural, ele se estilhaça em fragmentos múltiplos, equivalente
a “influências” difusas e periféricas, onde as mulheres tem sua grande parcela
(PERROT, 1988).
Para a autora, se elas não têm o poder, as mulheres têm, dizem-se, poderes.
No Ocidente contemporâneo, elas investem no privado, no familiar e mesmo no
social, na sociedade civil. Reinam no imaginário dos homens, preenchem suas
noites e ocupam seus sonhos. “Somos mais do que sua metade; somos a vida que
vocês passaram para seu sono; e pretendem vocês dispor o plano dos seus
sonhos”, declara uma heroína de romance do século XIX que, mais do que qualquer
outro, celebrou a Musa e a Madonna15.
Segundo Bourdieu (2010), o poder simbólico é, com efeito, esse poder
invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem
saber que lhe estão sujeitos ou mesmo o exercem. O poder simbólico como poder
de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto, poder
quase mágico que permite o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.

O reconhecimento do poder simbólico só se dá “na condição de se


descreverem as leis de transformação que regem a transmutação
das diferentes espécies de capital em capital simbólico e, em
especial, o trabalho de dissimulação e de transfiguração (numa
palavra, de eufemização) que garante uma verdadeira
transubstanciação das relações de força fazendo ignorar-reconhecer
a violência que elas encerram objetivamente e transformando-as
assim em poder simbólico, capaz de produzir efeitos reais sem
dispêndio aparente de energia.” (BOURDIEU, 2010, p. 15)

15
Lassailly, Les roueries de Trialph, 1833, citado por Stéphane Michaud, La Muse et la Madonne.
Visages de la femme Rédemptrice en France et Allemagne de Novallis à Baudelaire , tese de
doutorado de Estado, Paris III, 19883, tomo II, p. 559, a sair or Seuil.
68

De acordo com o trecho acima mencionado é possível fazer uma analogia ao


poder androcêntrico. A mulher nada mais era do que uma mulher-objeto. Em
algumas civilizações o marido podia escolher o próximo marido de sua esposa em
caso de morte; em outras, com a morte do marido, matavam-na e enterravam-na a
fim de continuar servindo-o no outro mundo. O próprio Direito Romano, berço da
nossa cultura jurídica, já desprovia a mulher de capacidade jurídica. A religião era
prerrogativa masculina da qual a mulher somente participaria com a autorização do
pai ou do marido. Também o parentesco só se transmitia pelos homens, apenas por
razões genéticas o impedimento matrimonial relativo à mulher era evocado (BAUER,
2001).
Não é preciso necessariamente crer que sua participação na História tenha
sido menor ou até mesmo nula, tendo como comparação os homens, aqueles que
sempre tiveram o poder de fabricar tais documentos. A mulher, assim como o
homem, tem a sua história e, consequentemente, seu papel como agente histórico.
Entretanto, a compreensão da mulher envolve o entendimento das representações
sociais aos quais esteve historicamente relacionada. São muitas as facetas que
recobriram a mulher ao longo dos tempos: aparentemente, excluída da cidadania na
Atenas dos tempos de Aristóteles, Platão e Sócrates, satanizada durante a Idade
Média, tratada como feiticeira e bruxa por mais alguns séculos, tida na sociedade
burguesa do século XIX como mãe (simbolizando a Virgem Maria, pura e ideal,
dona-de-casa, a subordinada e fiel) e/ou como louca, sanguínea, rebelde, infiel,
mentirosa, mulher-fogo, entre outras (MELLO, 2004, p.12).
No entendimento de Mello, ao longo da História, inúmeras foram às mulheres
que se mantiveram distantes dos padrões de comportamento considerados
"normais" ou "comuns" por parte de uma elite social normativa e conservadora
representada pelos homens. E entende-se, também, como fora desta sociedade às
mulheres que lutavam por reivindicações de sua inclusão política.
Com o surgimento da revolução industrial, inicia-se um processo
reivindicatório por melhores condições sociais. O século XIX se caracterizou por
duas frentes de luta do operariado: a luta por melhores condições de trabalho
(salário, redução da jornada, repouso semanal, condições de higiene), e a luta pelos
direitos de cidadania. Neste primeiro momento, mesmo que houvesse a busca pelo
direito ao voto e a ampliação dos direitos da democracia, a mulher, entretanto, não
estava incluída neste movimento. A conquista do direito ao voto feminino necessitou
69

de lutas especificas, abrangendo mulheres de todas as classes sociais (ALVES,


1991, p.42)
Os dois centros principais de sua vida eram o lar e a igreja. A Igreja exercia
forte pressão sobre o adestramento da sexualidade feminina. O fundamento
escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o homem era superior,
e, portanto cabia a ele exercer a autoridade. A justificativa estava baseada na
Epístola aos Efésios, de São Paulo: as mulheres deveriam se sujeitar aos seus
maridos como ao Senhor, pois este seria a cabeça da mulher, assim, como Cristo
era a cabeça da Igreja (ARAÚJO, 2004. p.46). À mulher não era permitido estudar e
aprender a ler. Nas escolas somente eram ensinadas técnicas manuais e
domésticas. Esta ignorância era imposta como forma de mantê-la subjugada
desprovendo-a de conhecimentos que lhe permitissem pensar em igualdade de
direitos. Era educada para sentir-se feliz como: "mero objeto", porquanto, só
conhecia obrigações.
Com a Constituição de 1824, na sociedade brasileira, surgiram escolas
destinadas à educação da mulher, mas, ainda, voltada aos trabalhos manuais
domésticos e cânticos. No Brasil colonial era vedado às mulheres frequentarem
escolas masculinas. Nos versos abaixo, do poeta barroco Gregório de Matos pode-
se perceber isto:

Irá mui poucas vezes à janela,


Mas as mais que puder irá à panela;
Ponha-se na almofada até o jantar,
E tanto há de coser como há de assar 16

Como vê a mulher devia respeito ao pai, depois ao marido, e sobre tudo tinha
uma educação dirigida para os afazeres domésticos que eram ministrados pelas
próprias mães e madrinhas. O caráter urbano passa a ter tonalidade própria, criada
a partir de uma problemática que advém das novas funções que passa a se
concentrar nas cidades. Progressivamente a indústria, e as classes sociais que lhes
são caudatárias, orientavam as ações e os conflitos que ocorrem no meio urbano
(GOHN, 2001).

16
Obra Poética de Gregório de Matos. Rio de Janeiro, Record, 2ª edição, 1990, 2 volumes, tomo 2º,
edição de James Amado. p. 826.
70

As mulheres ganharam destaque nas atividades culturais e sócio beneficentes


na elite brasileira. De educadoras e mães passaram, também, a serem
transmissoras de cultura, a figurarem como empreendedoras de movimentos de
conquistas femininas. Leite, diz que o voto feminino havia sido discutido na
Assembleia Constituinte de 1891, sendo considerado o caminho da dissolução da
família brasileira, pois, para a maioria dos deputados dessa assembleia, era
indiscutível e inapelável o papel da mulher no lar, família. E o sufrágio feminino
parecia-lhes uma ousadia antissocial. (LEITE, 1984, p.63):
Sobre o sufrágio feminino, movimento social, político e econômico de reforma,
com o objetivo de estender o sufrágio, ou seja, o direito de votar às mulheres.
Almeida diz que o voto feminino havia sido discutido na Assembleia de 1891,
composta essencialmente por homens, fica evidente a participação masculina na
vontade de colocar a mulher no processo eleitoral. Somente um deles poderia ter
proposto tal discussão. Pelo menos um homem era favorável à conquista política
feminina.

No Brasil, o movimento reivindicatório feminista tem inicio com um


artigo publicado na seção intitulada "Entre Amigas", do primeiro
número de A Mensageira, Revista Literária dedicada à Mulher
Brasileira, datado de 15/10/1897, onde a escritora Julia Lopes de
Almeida declara que o movimento feminista começava a conquistar
grandes avanços, no Brasil, fato que provava, segundo sua
argumentação, que a mulher estava mais consciente de suas
necessidades e ambições, demonstrando, dessa forma, disposição
para participar mais ativamente da vida em sociedade. A autora
considera, ainda, que deveria haver, por parte das mulheres, uma
real conscientização de que uma mudança de comportamento
reverteria em benefício não meramente pessoal, mas da própria
família e, consequentemente, da sociedade a qual pertencessem. A
necessidade de aprimoramento intelectual estaria, em tese,
diretamente vinculada ao aperfeiçoamento moral das mulheres e a
necessidades de ordem prática voltadas "para as vicissitudes da
vida", como, por exemplo, a habilitação para uma profissão que as
amparasse em situações emergenciais. Para ilustrar esse
argumento, a escritora refere-se a outros povos "mais fortes, mais
practicos, mais activos e mais felizes" dos quais as mulheres,
consideradas a partir de seu importante valor social, já não figuram
como "mero objecto de ornamento". (ALMEIDA, 1997, p. 3-5).

É interessante como Júlia Lopes de Almeida chama a atenção das mulheres


sobre a importância da cultura intelectual destas para a entronização na sociedade.
A valorização social da mulher deveria passar antes pela sua própria vontade de
reivindicar e, posteriormente, sua disposição de informar-se, de tornar-se culta, aí
71

sim poderia participar do processo político. Depreende-se, pelo texto, que Almeida já
sentia a ambição por parte das mulheres em participar das decisões políticas.
Júlia Lopes de Almeida publica A família Medeiros em 1892. Os debates
acerca dos percursos e dos destinos do Brasil nutriam aquele momento. Grosso
modo, de um lado, estavam os saudosistas do Império e, de outro, os partidários da
República.
Segundo Oliveira (2011), o texto faz questão de desnudar o ambiente de
paulatina queda da autoridade senhorial, apontando os diversos movimentos
contestatórios à época. Esse contexto é refletido na fala do Comendador, que se
mostra irritado e, ao mesmo tempo, assustado diante da indefinição quanto ao
futuro. Na verdade, Medeiros já percebe que a “vontade do pai” por si só já não é
capaz de garantir o status quo como fora anos antes, quando ele decidia toda a sua
sorte e de sua família:

–– A vida agora no Brasil é um inferno. Em São Paulo, um tal Luiz


Gama e outro tal Antônio Bento especulam com os pobres dos
lavradores, tirando-lhes os escravos. Os jornalistas do Rio são a
mesma corja. Eles acoitam os pretos fugidos para os alugarem por
sua conta e irem fazer conferências públicas nos teatros, pregando
a emancipação! É por isso que a gente os chama de “pescadores
de águas turvas”. José do Patrocínio é o chefe dessa bandalheira,
que, se o país tivesse governo, já teria acabado. É por isso mesmo
que muitos liberais e muitos conservadores estão se passando para
o partido republicano... (ALMEIDA, 1919, p. 17).

A citação revela que o Comendador Medeiros é contra a Abolição da


Escravatura. Segundo Oliveira (2011), filho do Comendador Medeiros, Otávio
desempenha um papel no texto à moda de Brás Cubas. A narrativa não detalha sua
infância e adolescência, pois já se inicia com sua chegada ao Brasil, logo após se
formar em engenharia na Europa. Ao desembarcar, Otávio parece querer aportar de
surpresa à casa de sua família e procura notícia dos seus com o Dr. Morton, norte-
americano radicado no Brasil e velho amigo dos Medeiros. Na cena que
praticamente abre o romance, é possível perceber as severas críticas travadas por
Morton contra o “eterno balanço de ideia para ideia, sem se fixar em nenhuma”,
característica típica de Otávio, ao mesmo tempo em que também tece críticas aos
direcionamentos políticos do país. A fala de Otávio soa como prólogo a sua
72

autocrítica desenvolvida ao longo de toda a narrativa romanesca e à sua trajetória


de distanciamento diante dos acontecimentos.

- Engana-se, meu amigo. E creia que em poucas terras do mundo


se estuda tão bem como em França, embora o meu amigo Edward,
um sábio, velho viajante e ávido observador, costumasse dizer: “Na
Inglaterra trabalham, na Itália sonham, em França riem, na Rússia
conspiram, na Espanha falam e na Alemanha estudam...”
- E, deveria acrescentar, no Brasil dormem (ALMEIDA, 1919, p. 4)

Em verdade, Morton já adianta nessa cena, segundo Oliveira (2011), o vazio


que significaram os estudos de Otávio na Europa. Por outro lado, a fala do jovem
deixa entrever que o país dorme tanto no sentido de não acompanhar as tendências
libertadoras do mundo ocidental “civilizado”, quanto por não perceber que, muitas
das vezes, enviar os filhos do patriarcado para as escolas no Velho Mundo não é
garantia do tão esperado fruto, qual seja a continuidade da “vontade do pai”. Não
menos importante, é possível entender aqui a primeira autocrítica de Otávio e o
primeiro sinal do patriarcado escravocrata.

Percebe-se, por exemplo, a volatilidade de caráter de Otávio ao chegar ao


Brasil. Nesse momento, o texto adianta um traço da personalidade do moço, o qual
será determinante para os rumos do enredo: a passividade. Esta, por sua vez, é
responsável por colocar Otávio em um lugar de total imobilidade diante dos
acontecimentos e também por fazê-lo aceitar a submissão às regras estabelecidas
pela vontade paterna. Mesmo quando esboça rebeldia, geralmente não leva o ato ao
fim e ao cabo. Veja-se um exemplo que ilustra o vazio de posicionamento político de
Otávio, mesmo após os dez anos passados em Europa e em contato com as teorias
Iluministas e Abolicionistas (OLIVEIRA, 2011):

–– Mas, diga-me antes, com que ideias veio?


–– Se quer que lhe fale com franqueza, ainda não sei...
O Dr. Morton arregalou os olhos, mas logo disfarçou o espanto na
placidez de um bom sorriso.
–– Seu pai deve ter pensado nisso.
–– Não. Meu pai não pensou. Eu venho resolvido a trabalhar,
somente não sei ainda como nem onde. Está claro que não poderei
ficar na fazenda, nem talvez mesmo aqui. Por enquanto, confesso,
não tenho grande confiança em mim...
–– Ora essa, por quê?
73

–– Porque vivo num eterno balanço de ideia para ideia, sem me fixar
em nenhuma. Chego mesmo a recear ter perdido tempo na Europa,
há de crer? (ALMEIDA, 1919, p. 6)

Essa passividade de Otávio com relação aos problemas que o cercavam


também pode ser vista na cena em que ele chega à fazenda de seu pai e recebe
notícias dos pretos que dele cuidaram na infância. A expressão “de tão longe”, aqui
parece se referir tanto ao afastamento geográfico da personagem quanto ao à sua
passividade diante dos problemas que a cercam, característica de Otávio e que a
narrativa faz questão de encenar de maneira que, como dita, anteriormente, delineia
uma trajetória decrescente para o moço.

- Que diabo! – exclamou o contendo a sua alegria, então vindes


assim, sem avisar a gente?
E abraçaram-se.
- Supuz que isso não o contrariasse...
- De certo que não. Já estais formado, agora é tratar da vida. Isto
aqui póde não ser que não seja tão bonito, mas sempre melhor que a
Europa....Viestes por Santos? (ALMEIDA, 1919, p. 15)

Nesse ponto, é possível perceber que Otávio simboliza a melancólica


derrocada da lógica patriarcal, uma vez que ele não consegue sustentar “com pulso
firme” os ideologemas, ou seja, ele não induz a nenhuma determinada ideologia das
antigas famílias. Nem assumidamente escravocrata, nem assumidamente
abolicionista é Otávio, cada vez mais se aproximando do herói trágico. Este,
conforme aponta Flávio Kothe,

aos poucos vai descobrindo o quanto ele está no charco. Ele


descobre a mão de ferro do poder, do destino, da história: descobre
que o seu agir foi errado; descobre que não devia ter feito tudo o que
fez; descobre que é o mais fraco na correlação de forças, embora
aparentemente ser o mais forte, ou ainda que ele redescobre a sua
grandeza, não significando isto, porém, que ele necessariamente
deixe de morrer ou que venha recuperar o seu perdido (KOTHE,
1987, p. 26).
74

No trecho acima é possível notar que Otávio não possui uma ideologia e por
isso se acha fraco e perdido. Segundo Gouveia Engel (2009), Júlia Lopes de
Almeida engajou-se nas lutas políticas de seu tempo, integrando a famosa geração
dos anos 1870 composta por intelectuais obcecados em pensar a realidade e o
futuro do Brasil, a partir de referenciais positivistas, cientificistas e realistas, enfim,
de “um bando de ideias novas”, conforme registrou Romero (1851-1914), um dos
maiores e mais controvertidos pensadores da época. Assim, a escritora defendeu a
abolição da escravidão e a república – alinhando-se com as posições assumidas
pelo pai – que entre 1874 e 1878 foi professor de um curso noturno para instruir
pobres e escravos em Campinas – e do marido – este último republicano radical.

A obra A Família Medeiros, de Júlia Lopes de Almeida parece representar de


forma ficcional tal contextualização histórica de um Brasil republicano e abolicionista.
Este universo intelectual ao qual pertenciam homens e mulheres não era, contudo,
homogêneo. Nem todos os abolicionistas eram republicanos, por exemplo. E havia
diferentes e às vezes divergentes propostas de extinção da escravidão e de
organização política da república. De acordo com Engel (2009), o projeto
republicano defendido por Júlia Lopes de Almeida certamente não era favorável às
concepções socialistas e anarquistas que circulavam intensamente no campo
intelectual e político da época.

Esse enterro paulatino do patriarcado escravocrata, necessário para a


modernização, na visão do romance, é suplementado pelas propostas inovadoras
implantadas por Eva, prima de Otávio, na “fazenda modelo” Mangueiral. Lá, repudia-
se o autoritarismo, a espoliação do ser humano, defende-se a dignidade, repartem-
se as terras, as sementes e os lucros (reforma agrária avant la lettre), defende-se a
qualidade de vida, da alimentação, a paz, tudo isso amparado pelo sistema de
trabalho assalariado, no qual, na visão do romance, promove a equidade social
(OLIVEIRA, 2011). No trecho que segue pode-se perceber tal postura:

Contou depois a Octavio que o finado Gabriel Medeiros tinha sido um


homem de vistas largas e grande coração. Ele acreditava que a
redenção e a felicidade do Brasil estava na aplicação de métodos
modernos na sua lavoura; e a sua prosperidade dependente da
ambição do colono livre, bem escolhido. Não era um utopista; era um
patriota humanitário. Se tivesse seguido a rotina, concluía Paulo,
teria deixado maior fortuna; infelizmente os primeiros a revolucionar
um sistema inveterado há anos não tiram grande beneficio do seu
75

trabalho. E’ isso faz com que se diga que os mais avançados na


teoria são os mais atrasados na pratica. Mas, se ele não deixou
grande fortuna, deixou um belo exemplo moral e um testamento em
que a fé no futuro pátria transparece de um modo eloquente e
admirável. Era um espirito justo e não compreendia que se pudesse
enriquecer com alegria sem a colaboração livre do trabalho com o
capital. Entre outros legados interessantes, deixou trinta contos para
alforria de escravos perseguidos. Era esse legado que o Dr. Azevedo
aludia ha pouco (ALMEIDA, 1919, p. 72).

É possível perceber na citação supramencionada um desejo incondicional


pela modernização no país. O narrador explicita que a melhoria e a modernização
do Brasil se encontram por um viés que não é o socialismo e tão pouco a
manutenção do período escravocrata. Ou seja, a nação precisa aceitar a República,
o capitalismo e ainda a abolição da escravatura como meios e sinônimos de
progresso nacional.

É sabido que as representações sociais da passagem da Monarquia à


República no Brasil na visão historiográfica são muito frequentes nas quais diversos
autores trabalham, buscando de várias formas entenderem o processo histórico de
transição da Monarquia a Republica no Brasil.

Acompanhando as reflexões clássicas sobre representação social de Roger


Chartier (1990), pode-se afirmar que representação social é o conjunto de
explicações, crenças e ideias que nos permitem evocar um dado acontecimento,
pessoas ou objetos. Essas representações são resultantes da interação social de
um determinado grupo de indivíduos e converteu-se nos últimos anos em uma
categoria central da História Cultural.

Para este teórico, na sua obra A história cultural entre práticas e


representações (1990), a história cultural se divide entre práticas e representações
onde a história cultural, tal como entende-se, tem como principal objeto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída e dada a ler. Surgem, então, nessa realidade social as lutas de
representações para organizar o mundo social como categorias fundamentais da
percepção e de apreciação do real. Essas lutas de representações para organizar o
mundo social como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real
têm uma grande importância quanto às outras lutas como a econômica, por
exemplo, como demonstra o referido autor:
76

As lutas de representações têm tanta importância como às lutas


econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores
que são os seus, e o seu domínio. (CHARTIER, 1990, p.17)

As representações são também portadoras do simbólico, ou seja, dizem mais


do que aquilo que mostram ou enunciam, carregam sentidos ocultos, que,
construído social e historicamente se internalizam no inconsciente coletivo e se
apresentam como naturais, dispensando reflexão. Esses símbolos possuem suas
identificações como demonstra Chartier (1990, p. 19):

Será necessário identificar como símbolos e considerar como


“simbólicos” todos os signos, actos ou objectos, todas as figuras
intelectuais ou representações colectivas graças aos quais os grupos
fornecem uma organização conceptual ao mundo social ou natural,
construindo assim a sua realidade apreendida e comunicada.

Portanto a função simbólica se define como uma lição mediadora que informa
as diferentes modalidades de apreensão do real. Este real, opera por meio dos
signos linguísticos, das figuras mitológicas e da religião, ou dos conceitos do
conhecimento científico.

O objetivo da teoria das representações sociais é explicar os fenômenos do


homem a partir de uma perspectiva coletiva, sem perder de vista a individualidade.
Essa perspectiva coletiva é o homem no meio do social, abrangendo toda
sociedade. Chartier traz uma melhor definição de representação coletiva:

A noção de representação coletiva, entendida no sentido que lhe


atribuíram, permite conciliar as imagens mentais claras - aquilo que
Lucien Febvre designava por os “materiais de ideias”, com os
esquemas interiorizadas as categorias incorporadas, que as gerem e
estruturam (CHARTIER, 1990, p.19).

Os fenômenos coletivos não podem ser explicados em termos de indivíduo,


pois ele não pode inventar uma língua ou uma religião. Esses fenômenos são
produtos de uma comunidade, ou de um povo. A representação coletiva nessa
77

concepção é o indivíduo em uma determinada sociedade misturando-se com a


cultura local, cultura que se relaciona e compreende tudo em volta desse indivíduo.

As representações só podem ser construídas a partir das acepções antigas,


onde para se compreender o mundo real é necessário voltar ao passado e
compreender os fatos passados, para então prever o futuro, como demonstra
Chartier:

Deste modo, a noção de representação pode ser construída a partir


das acepções antigas. Ela é um dos conceitos mais importantes
utilizados pelos homens do Antigo regime, quanto pretendem
compreender o funcionamento da sua sociedade ou definir as
gerações intelectuais que lhe permitem apreender o mundo.
(CHARTIER, 1990, p. 23)

Ao analisar a citação supracitada, é possível compreender que o historiador


não deverá pautar somente no presente, ou somente no passado, mas sim buscar
compreender o presente, pois para ter uma análise compreensiva do mundo real, ele
deverá compreender o processo histórico que desencadeou esse mundo. A história
deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói um
sentido.

E, é partindo desse conceito de representações que é possível abordar a


“passagem” da Monarquia a República no Brasil, através da história e da literatura.
Utilizando a literatura como fonte histórica, para trabalhar as representações que
Júlia Lopes de Almeida elaborou sobre a sociedade brasileira, destacando a maneira
que ela escrevia através de sua obra A Família Medeiros, transformando a vida
social em arte.

Na concepção de Bento (2009), por representação, pode-se entender,


apresentar para a sociedade ou para determinado grupo social algo que para a
maioria é desconhecido. Nota-se que a Literatura é uma representação, pois, é
produto de uma construção simbólica da sociedade, ou seja, o literato observa a
sociedade na qual está inserido e a partir disso inicia uma representação de forma
direta ou indireta, que são utilizados romances ou personagens fictícios, onde
expressam as relações sociais e culturais de uma determinada sociedade.
78

Não há dúvida que uma literatura nascente, deve principalmente


alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que empobreçam. O que se
deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que
o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de
assuntos remotos no espaço e no tempo (CHALHOUB; PEREIRA,
1998, p.17).

Segundo Bento (2009) é possível perceber que o livro do escritor é fruto de


seu tempo, sendo preciso respeitar os interesses e vontades do autor, para não
basear-se somente no que ele escreve tornando-o como verdade absoluta, afinal,
como ele estava inserido nos fatos, pode incorrer de não perceber a amplitude dos
mesmos por causa da dificuldade de pensar sobre os fatos vividos.

Uma primeira modalidade é aquela que faz da história um cenário para o


exercício da ficção. Neste caso, que alguns ficariam tentados a denominar de
romance histórico tradicional ou clássico, a relação entre literatura e história tem
uma fronteira bem delimitada que não deve ser ultrapassada. O romancista não se
considera um historiador e o historiador compreende o romance como uma fantasia
criada a partir de fatos históricos. Isso porque os historiadores, conforme explicita
Peter Burke, tinham como objetivo elaborar “narrativas de grandes eventos e os
feitos dos grandes homens”, já os romancistas aceitavam as interpretações dos
historiadores como verdadeiras, ganhando licença “para inventar personagens
menores, ilustrando os efeitos de grandes mudanças históricas num nível local ou
pessoal” (BURKE, 1997, p. 112).

Em outras palavras, o arranjo determinava que o romancista ficaria com a


vida privada e o historiador com a vida política. Mesmo quando personagens
históricas invadiam a cena romanesca, destes interessava ao romancista apenas os
atos íntimos governados pela paixão, ficando o historiador responsável pelos atos
realmente históricos. Daí a relação de complementaridade entre história e romance,
pois este subscrevia aquela confirmando o seu valor e a sua verdade para o grande
público.
79

Quando a mão patrícia da princesa Izabel decretou no Rio a abolição


dos escravos, davam-se na província scenas do mais grotesco e
irresistível comico.
Octavio, para quem tudo parecia agora risonho e belo, envolto na
doce esperança de desposar a prima, fazia passeios longos, tendo
ocasião de verificar ate que ponto o egoísmo dos velhos lavradores
consumia e estragava tudo. (ALMEIDA, 1919, p. 319).

Ao analisar o trecho da obra é possível observar um dado histórico presente


em um texto literário. E ainda lê-lo como uma informação dada ao leitor informando
que a abolição da escravatura estava consolidada, especificamente, no estado do
Rio de Janeiro. Nesse sentido, buscaram-se interpretar de uma forma minuciosa as
questões sociais que influenciaram, nesse caso, Júlia Lopes de Almeida de tal forma
que consequentemente embutiu nas obras literárias, no caso, A Família Medeiros,
os fatos vividos por ela no dia a dia. Segundo Moreira (2002), Júlia Lopes de
Almeida, na sua incansável luta em prol da emancipação feminina no Brasil, estava
convencida de que a humilhante condição social, econômica e cultural das
brasileiras entre os séculos XIX e XX devia-se, sobremaneira, à precariedade de
oportunidades educacionais, culturais e sociais que nossa sociedade patriarcal
oferecia ao sexo feminino.

Sua denúncia acerca da pobreza existencial e intelectual do universo


feminino, às vezes soa dissimulada, outras vezes é afirmativa como neste
fragmento: “Decididamente, minhas amigas, nós não temos educação! (...) José de
Alencar observa, em um dos seus romances, que o piano é para a mulher o mesmo
que o fumo é para os homens, uma distração” (ALMEIDA, 1896, p. 47-48).

Pode-se notar que o romance A Família Medeiros, de 1892, passou por


discussões da política e rumos republicanos. Júlia Lopes de Almeida produziu uma
obra literária da segunda metade do século XIX, devido à efervescência das
discussões filosóficas e científicas, que estava voltada para a reflexão de problemas
cotidianos. O realismo da literatura almeidiana no seu esforço de retratar a
sociedade da forma como ela se apresentava imprime a suas obras um caráter
menos ficcional, onde as memórias das relações sociais estão presentes de uma
forma quase que neutralizada. Esta característica da obra da autora possibilitou uma
leitura de cunho político do período da abolição da escravatura que enriquece a
compreensão histórica.
80

Em linhas gerais, Júlia Lopes de Almeida, através da literatura que cerca este
período, aborda aparentemente que a instituição política da Monarquia desapareceu
em 1889, mas as suas práticas sociais permaneceram por um longo período no seio
da sociedade republicana, até serem incorporadas tanto pela política quanto pela
simbologia da República. Tendo esta percepção como ponto de sua análise, ela
tentou apresentar ao público leitor, não apenas a crise do modelo monárquico, mas
também a disputa de representação que ocorreu dentro da sociedade brasileira a
partir das últimas décadas da Monarquia e bem como nos primeiros anos da
República.

A escrita de Júlia Lopes de Almeida em A Família Medeiros, por conseguinte,


se não se fez revestida de uma militância política explícita e segue no contexto
enunciativo que o eu-enunciador estava em sintonia com os modelos políticos
existentes no seu século. Apontou neles o autoritarismo dos senhores do Império e
as nuances de mudança com o sistema que se construía o recém País Republicano.

3.1.3. A Silveirinha e a escrita transgressiva?

O Brasil do século XIX regia as regras sociais para a mulher através da


diferenciação dos sexos. Diferenciação dos sexos onde o padrão duplo de
moralidade privilegiava o homem no que se referia absolutamente a tudo.

Um país basicamente rural começava a ingressar em nova fase durante o


século XIX, convivência entre a estrutura escravista e as primeiras práticas
capitalistas, alguns lugares incorporaram com maior rapidez as inovações que
chegavam: iluminação a gás, bondes puxados a burro, os primeiros protótipos das
lojas comercias, modernidade convivendo com escravos perambulando nas ruas dos
centros urbanos e rurais.

O cotidiano dessas mulheres durante o século XIX baseava-se nos afazeres


domésticos, muitas delas não tinham interesse para a instrução, a consciência de
mudança através do conhecimento era quase inexistente. Mal entravam na
adolescência já estavam se preparando para casar, com vinte e poucos anos já
eram cercadas de filhos. Tudo poderia ou acontecia durante a missa dominical,
ponto de encontros de muitos namoros, olhares, desejos. A proximidade entre os
81

opostos era permitida em nome de “Deus”, a missa servia como desculpa para
muitos cochichos e piscadelas (LOURO, 1993).

As moças das áreas rurais também faziam da missa um evento social, um


momento de liberdade para conquistar e deixarem-se ser conquistadas, iam
atraentes para impressionar. Um verdadeiro jogo de sedução mútua, o momento era
único e somente semanal, pois fora do contexto da missa, era raro o momento em
que homens e mulheres podiam falar-se.

Nesse ínterim também os romances literários rondavam os pensamentos das


moças, romances que instigava o desejo de escolha do amor verdadeiro, que
ficavam nas entrelinhas, afinal, escolha do pretendente nesse momento ainda
pertencia ao patriarca.

Para as filhas dos grupos sociais privilegiados, o ensino da leitura, da escrita


e das noções básicas de matemática vinha acompanhado das aulas de piano,
francês, aulas que eram ministradas em suas próprias casas ou em escolas
religiosas. Eram incentivadas para desenvolverem habilidades domésticas que
incluía domínio com a agulha, culinária, bordados, rendas, mando das criadas,
domínio da casa. Para muitos grupos dessa sociedade do século XIX, as mulheres
deveriam ser mais educadas do que instruídas, não havia a necessidade dela obter
conhecimentos além daqueles que ajudasse a consolidar a sua moral e os bons
princípios, o que contava não eram seus desejos ou necessidades, mas sim, sua
função social, o pilar de sustentação do lar (LOURO, 1993).

As últimas décadas do século XIX apontam para a necessidade de educação


para a mulher, vinculando-a a modernização da sociedade, a higienização da
família, a construção da cidadania dos jovens, a educação feminina deveria
permanecer sobre a égide e influência cristã.

A economia colonial gerou a formação de uma sociedade, na qual a mulher


ocupava uma posição peculiar, afetando grandemente sua imagem durante anos.
Mantendo-se em segundo plano em relação ao homem tanto econômica como
socialmente, a mulher permaneceu à margem da sociedade e da historiografia
brasileira.

A Silveirinha, publicado em 1914 com o subtítulo “Crônica de um verão”. A


história se passa em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, para onde se
82

dirigiam as famílias abastadas da sociedade carioca com o intuito de fugir ao calor


do verão abrasador dos meses de janeiro e fevereiro.
Para Paixão (1994), o titulo se refere à personagem principal, uma jovem
recém-casada que, “de aparência delicada, guardaria, embora depois de casada
vinte anos, o nome por que fora sempre conhecida em solteira: - Silveirinha-, tanto
era nela acentuada uma expressão de inconfundível individualidade” (ALMEIDA,
1997, p.74). A força dessa jovem mulher estava, sobretudo, na sua inabalável fé e
no desejo incorruptível de converter o marido, ateu, ao catolicismo.
Nesse sentido, não mede esforços, que se resumem a constantes idas à
Igreja em busca do conselho de Padre Pierre, um jovem francês sedutor e vaidoso,
embora representante de Cristo.

Um dia de maior desespero, a Silveirinha confessou ao padre:


-Meu marido é mais forte do que eu supunha. Se eu adivinhasse que
a luta teria de ser tamanha, preferiria ter ficado solteira...
-Ma petite brebis! Du courage! Se Deus a chamou para o lado
rebelde, foi porque a viu com o poder de o redimir. A sua missão é
superior às forças banais das almas comuns. Continue na sua
campanha de redenção. Seu marido é como uma criança perdida
num caminho errado, precisa de quem lhe dê a mão; mas, como os
homens são vaidosos, não lhe deixe perceber seu esforço; traga-o
ao bom destino por meio do seu amor e da sua boa inspiração.
(ALMEIDA, 1997, p. 64).

Para Paixão (1994) a crônica relata os falatórios e intrigas que sustentavam a


vida mundana e fútil de famílias da alta sociedade carioca, através de personagens
cujo único objetivo parece ser o de poder usufruir das amizades a fim de alcançarem
uma posição melhor no meio em que vivem. Evidentemente, a hipocrisia está
presente em vários, como é o caso do jovem Ludgero, advogado que aspira a uma
ascensão social através de conquistas amorosas que ignoram a existência de
barreiras, facilmente contornadas por meio de ações ilícitas. Como par nas suas
investidas pouco confiáveis, está a Xaviera, bem casada, com duas filhas de quem
soube se livrar internando-as no tradicional Colégio Sion de Petrópolis, a fim de
poder transitar mais livremente nas suas investidas sedutoras.
Inicialmente, publicado sob a forma de folhetim no Jornal do Comércio, do Rio
de Janeiro, no período de abril e maio de 1913, o romance de Júlia Lopes de
Almeida guarda características da ficção breve, cuja popularidade incentivou a
83

leitura ao mesmo tempo em que possibilitou o contato da literatura com um público


maior, instigando os seus leitores a escreverem, dentre os quais a mulher, o leitor
em potencial a quem serão destinadas as histórias sentimentais, constituindo a
forma de lazer própria à dona de casa ou à moça de família que, dessa maneira,
encontrava um espaço de evasão dentro do espaço a ela reservado, nos domínios
do lar (PAIXÃO, 1994).
Os personagens de A Silveirinha transitam, sobretudo, pelos salões da região
serrana, e as aventuras por eles vividas nada apresentam de extraordinário,
mostrando uma ausência de imprevistos o que torna a leitura amena, exigindo pouco
do leitor. As relações de amor, de intimidade entre duas pessoas se transformam em
fonte de conflito e escondem problemas ligados à preservação da ordem social,
como é o caso de Silveirinha e sua luta pela conversão do marido ateu. Paixão
(1994), afirma que as lágrimas, os sofrimentos da personagem são como cenários
elaborados no sentido de ocultar um controle social cada vez mais concentrado na
organização familiar, que deveria ser preservada de qualquer maneira.
Nesse sentido, o romance de Júlia Lopes de Almeida, aponta as hipocrisias
geradas pelo fanatismo religioso, mostrando as máscaras que ocultam o poder da
Igreja que era o aparelho repressor ideológico, ou seja, a Igreja era patriarcalista,
nesse sentido, engendrado de forma sutil no padre sedutor que se aproveita da
adoração de suas fieis seguidoras.
A reprodução de diálogos em francês, para Paixão (1994), mostra a
importância da cultura europeia, então dominante, trazendo ao ambiente dos salões
o ar sofisticado desejado, sem que a autora reprima uma certa ironia crítica,
facilmente perceptível pelo leitor nem sempre desatento.

-Oh! Murmurou ela, j’aurais eu peur si je les avais rencontrés pendant


la nuit, toute seule!
-Ils ne sont pas méchants, soyez sûre. Toute de même, qu’ils sont
drôles les Brésiliens, hein? (ALMEIDA, 1997, p. 36)17

Para Rodella (2010), Guiomar Silveira poderia se encaixar no papel


tradicional da esposa ideal do século XIX, não fosse o marco inicial do desenrolar da

17
Tradução livre: - Oh! Murmurou ela, eu teria tido medo se os tivesse encontrado durante a noite,
sozinha!
- Eles não são malvados, fique tranquila. Apesar de tudo, como são engraçados os Brasileiros, hein?
84

narrativa, que assinala a sua forte personalidade no momento em que ela tem o
primeiro encontro com o futuro marido, sabidamente ateu. Nesse encontro ela surge
em sua presença toda coberta de santinhos e acessórios de referência religiosa,
procurando mostrar com a linguagem visual da vestimenta o tipo de mulher dedicada
que era à religião, de certa forma perpetuando alguns aspectos patriarcais.
De acordo com Oliveira (2011), a história da mulher brasileira, como a história
de tantas mulheres, é marcada pelo estabelecimento da ordem patriarcal que,
legitimada pela religião cristã ocidental, transmitiu o silenciamento do feminino em
todas as esferas sociais.
Desde menina era ensinada a ser mãe e esposa, sua educação limitava-se a
aprender a cozinhar, bordar, costurar, tarefas estritamente domésticas. Carregava o
estigma da fragilidade, da pouca inteligência, entre outros que fundamentava a
lógica patriarcal de mantê-la afastada dos espaços públicos. A negação de outros
espaços além da casa/quintal as afastava também da educação formal, não sendo
permitido o acesso à escola.
A cena do primeiro encontro de Silveirinha e o Dr. Jordão, segundo Rodella
(2010), marca bem a oposição que se instaura durante todo desenrolar da trama
entre ela e o marido, pois, ao contrário de sua devoção, fé e esperança de convertê-
lo ao catolicismo está ele, um homem ateu, médico e que apenas compreende e
tolera o comportamento da esposa.
De acordo com a referida autora, como base elementar para geração do
sentido que constrói a personagem Silveirinha estão os polos do Sagrado versus
Profano, os valores relacionados a estas polaridades são evidenciados, no início da
narrativa, ancorados no /sagrado/, representados pela fé católica da moça em
oposição aos valores do /profano/, que se associam ao ateísmo do esposo.
Agnosticismo reforçado pela dedicação à medicina e à ciência e que não condiz com
o comportamento religioso extremado da esposa.
Na obra o diálogo entre a Condessa e Roberto Flores, que introduz o
romance, esta polaridade entra em evidencia e continua assim durante o desenrolar
da narrativa.

- A Guiomar foi pedida em casamento por um médico velhote, um


tal Jordão...
85

- Bem vê que ao menos essa já não precisa procurar marido....


Mas, o Jordão não é tão velhote. È um rapaz de trinta e poucos
anos, e bonitão. Sabe se foi aceito?
- Foi. De onde você o conhece?
- Nem sei...de toda parte.
- É de boa família? Será da casa Jordão, do Rio Negro?
- Talvez...Sei que é um médico estudioso, livre-pensador...
- Já me disseram. Contaram-me até que, por saber disso, a
Silveirinha, ao ser chamada pelo pai à sala para responder ao
pedido do noivo, se apresentou com todas as insígnias religiosas
que pôde arranjar na ocasião: fita ao pescoço, Filha de Maria; no
peito todas as medalhas de santos e santas da corte celeste; e,
pendente das mãos, um grande rosário de contas grossas como
araçás. (ALMEIDA, 1997, p. 22-23).

A citação acima apresenta a descrição de uma figura feminina que se


apresenta para o seu pretendente, porém, vestida de forma não tão convencional,
como de costume, ou seja, ela não se apresentou para o Dr. Jordão, no aparente
contexto histórico habitual, para seduzi-lo, e ainda, supostamente, interessada em
um casamento, pelo contrário, suas roupas e seus acessórios mostraram que essa
personagem era uma mulher extremamente religiosa.
O que aparentemente acontece com Silveirinha que durante o desenrolar da
narrativa tenta converter o marido ateu a religião católica. E ainda tenta impor suas
vontades religiosas inclusive no que diz respeito ao futuro dos filhos.

-Se é por isso quem registra a criança é o pai. Vê como fica bem
soante: Guiomar Jordão.
- Sim, Silveira, tinha-me esquecido; mas não Maria...
- Não penses que hei de criar minha filha fora do grêmio da Igreja.
Ela fará a sua primeira comunhão aos dez anos e...
- Pobre mártir. (ALMEIDA, 1997, p. 62)

Segundo a citação supramencionada é possível perceber o fanatismo


religioso discutido na obra, bem como uma mulher que, aparentemente, perpetua os
padrões tradicionais impostos na sociedade do século XIX. É possível observar uma
figura feminina que passa toda a narrativa tentando impor suas vontades, seus
desejos, e ainda, luta pela imposição da religião católica na sua família, ou seja, a
uma provável manutenção do discurso patriarcalista.
Para Figueiredo (2007), desta forma, a conduta humana passa a ser moldada
pela discussão entre os membros que dela pertencem, mas principalmente pelas leis
sociais, pela religião, pela família, etc... Sem perceber, acaba-se fazendo parte de
86

um esquema social invisível, capaz de inculcar padrões e determinar formas de


comportamento que se encaixem dentro das regras sancionadas pela sociedade.
Segundo Bourdieu em A dominação masculina, esta divisão sociocultural
instalada entre os sexos é baseada em uma ótica que “adquire todo um
reconhecimento de legitimação” (BOURDIEU, 2009, p. 17). A máquina simbólica
encontra nas próprias atitudes dos sujeitos um terreno fértil para plantar seus
modelos de conduta; assim, quando se repetem os padrões sociais desejados pelo
meio, acaba-se concordando com as afirmações usadas com o fim único de
segregar os sexos.
É desta forma que o gênero é construído, tornando-se comum, através de
costumes, conferido em nossas atitudes, tornando-se então nada mais, que um
“produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo
das gerações” (HOLANDA, 1994, p. 15).
Pode-se, assim, dizer que o gênero também é aprendido através de um
processo de educação destinado ao ensino de diferentes valores a meninos e
meninas. Vale lembrar que o processo educativo aliado à construção do gênero não
se refere meramente à instrução aprendida nas escolas, mas principalmente, a todo
um procedimento no qual as crianças são orientadas a seguirem um tipo de
comportamento condizente com o sexo ao qual pertencem. Segundo Louro (In:
PRIORE, 2000, p. 456):

Gênero não pretende significar o mesmo que sexo, enquanto sexo se


refere à identidade biológica de uma pessoa, gênero está ligado a
sua construção social (...) os sujeitos se produzem em relação e na
relação, enfatizando assim os processos de formação de feminilidade
e da masculinidade.

Para Arena (2006), ao longo da história foi percebido que os valores


relacionados à fraqueza feminina foram generalizados através de uma série de
pensamentos que determinavam papéis distintos a serem vivenciados pelos sexos
masculino e feminino e que, consequentemente, subordinava, a mulher ao homem.
Ao punir Eva, Deus promove o homem a uma posição de crescente superioridade
sobre as mulheres: “Seus desejos serão os de seu marido e ele te comandará”
87

Condicionada por tais pensamentos, a humanidade vai interiorizando uma


forma de socialização, na qual a mulher deverá assumir uma identidade servil,
enquanto ao homem caberá a divulgação de todos os feitos heroicos, que venham a
contribuir para a formação e evolução da sociedade.

A mulher é A Bela Adormecida, Cinderela, Branca de Neve. Nas


canções, nos contos, vê-se o jovem partir aventurosamente em
busca da mulher; ele mata dragões, luta contra gigantes, ela se acha
encerrada em uma torre, um palácio, um jardim, uma caverna,
acorrentada a um rochedo, cativa, adormecida, ela espera
(BEAUVOIR, 1980, p. 33).

A mulher fica relegada à posição de permanecer nos bastidores, escondida


em sua natureza, determinada pela fragilidade de seus órgãos sexuais. Muitas
vezes, parece que o verdadeiro destino de mulher, enquanto ser vivo, não se
inscreve no que os livros de biologia ensinam; ao invés, de “nascer, crescer,
reproduzir e morrer”, como qualquer ser humano, a mulher deve “nascer, crescer,
casar, reproduzir, ser mãe e morrer”. Assim, a finalidade impressa no papel do
casamento e da maternidade é inserida dentro do esquema biológico feminino, de
modo a determinar às mulheres atitudes moldadas pelas convenções sociais
(ARENA, 2006).

Pouco a pouco, a mulher vai aprendendo que a sociedade espera que ela
considere o casamento como sua meta mais importante. Ao contrair casamento,
espera-se que ela dê sua parcela de contribuição à sociedade, gerando filhos. Com
o nascimento da prole é preciso que a mulher cumpra mais um importante papel, o
de educadora.

Na verdade, desde a infância, assim como ocorre com as meninas, os


rapazes são também influenciados por uma ideologia dominante que os conduz a
exercer certos papéis na sociedade. Ao menino são associadas imagens de força e
de poder que podem ser observadas principalmente através das brincadeiras,
muitas vezes baseadas em atos agressivos necessários para se conquistar honra e
glória.

Segundo Beauvoir (1980), a ideologia corrente relegada ao papel masculino é


a de inibição de sentimentos. O ditado popular “Comporte-se como um homem!”
explicita a ideia de que o homem não pode demonstrar fraqueza ante as
dificuldades.
88

Ao menino proíbe-se até o coquetismo: ‘um homem não pede beijos


[...] um homem não se olha no espelho, homem não chora, dizem-
lhe. Querem que ele seja um homenzinho, e é libertando-se dos
adultos que ele conquista o sufrágio deles (BEAUVOIR, 1980, p. 12).

As desigualdades entre o sexo masculino e feminino são socialmente


legitimadas. Basta consultar alguns dicionários e enciclopédias para perceber o teor
de tais distinções; assim, são encontradas definições do vocábulo mulher como “a
fêmea do homem” (La Gran Enciclopédia) e como “ser humano do sexo feminino
que concebe e dá luz a filhos” (Dictionaire Petit Robert); enquanto homem é definido
como “ser humano do sexo masculino, varão, dotado de qualidades viris, macho”
(Dicionário de Língua Portuguesa Aurélio Buarque de Holanda).
É notável, portanto, que a mulher é mais uma vez definida em função de seu
papel e de sua subordinação ao sexo masculino, sendo considerada a “eterna
costela” do homem (ARENA, 2006).
A discussão sobre a disparidade existente no meio familiar, com sua arbitrária
distinção social entre os sexos, pode ser notada na obra de Júlia Lopes de Almeida.
A maior parte de seus romances é construída dentro de um ambiente familiar, onde
podem ser ouvidas as múltiplas vozes do discurso em relação à problemática do
gênero.
É claro que devido à época em que escreve – final do século XIX e início do
século XX – não é possível esperar grandes discussões dispostas a derrubar os
parâmetros difundidos pelo esquema do gênero. Porém, é possível sentir certas
críticas sutis através de trechos que denunciam a submissão feminina. São nítidas
às vezes em que durante a leitura de seus romances ou crônicas, podem ser
percebidas as distinções dos papéis sociais a serem seguidos pela sociedade
burguesa, espaço central de suas tramas.
Em resumo, A Silveirinha apresenta ao público leitor uma crítica à
característica marcante da mulher tradicional do século XIX, a submissão ao marido,
à sociedade patriarcal. No que diz respeito à obra de Júlia Lopes de Almeida, é
possível notar marcas de um aparente domínio do patriarcado, pois a figura feminina
se revela quando na cena inicial do romance aparece para seu futuro marido com as
vestimentas de uma pessoa que é uma católica fervorosa e durante toda a narrativa
busca incessantemente a conversão do marido, ateu, ao catolicismo.
89

No que diz respeito à narrativa almeidiana é possível analisar no quarto


capitulo algumas estratagemas desse discurso, pois, se se entende a escrita
ficcional feminina como produzidas por mulheres, pelo menos em sua maioria
avassaladora, são espaços discursivos fundamentais para o exercício do poder
pelas próprias mulheres. As marcas de um aparente feminismo presente na obra
pode ser analisado pela não aceitação do nome do marido, ou seja, a manutenção
do nome de solteira como imposição para se casar, pode ser observada como
transgressão.
Nesse sentido, escrever, ler, refletir a partir das tecnologias da escrita deve
integrar uma política de publicações de discursos aparentemente feministas porque
é preciso que as mulheres escrevam, leiam e reflitam, se querem que elas sejam
capazes de se mover nas redes de poder da sociedade ocidental.
Segundo Spivak (2010) no que tange à reflexão sobre o lugar de onde o
intelectual teoriza articulada a questão da fala do subalterno, é importante
transcrever o seguinte trecho:

[...] os oprimidos podem saber e falar por si mesmos. Isso


reintroduz o sujeito constitutivo em pelo menos dois níveis: o
Sujeito de desejo e poder como um pressuposto metodológico
irredutível; e o sujeito do oprimido, próximo de, senão idêntico, a si
mesmo. Além disso, os intelectuais, os quais não são nenhum
desses S/sujeitos tornam-se transparentes nessa “corrida de
revezamento”, pois eles simplesmente fazem uma declaração sobre
o sujeito não representado e analisam (sem analisar) o
funcionamento do (Sujeito inominado irredutivelmente pressuposto
pelo) poder e desejo. (SPIVAK, 2010, p. 44)

De acordo com a citação acima, por conseguinte, segundo Foucault (1997), a


escrita como exercício pessoal praticado por si e para si é uma arte da verdade
contrastiva; ou, mais precisamente, uma maneira refletida de combinar a autoridade
tradicional da coisa já dita com a singularidade da verdade que nela se afirma e a
particularidade das circunstâncias que determinam o seu uso. Assim é possível
notar que a escrita, como a leitura, pode permitir, em circunstância de
democratização dos saberes, que o contraste entre discursos favoreça o
deslocamento de uma autoridade tradicional na singularidade de uma apropriação
única, que, por efetuar o ato da escrita ou da leitura, já produz efeitos de sentido
novos, inesperados, e, quem sabe, subversivos.
90

4 ESTRATAGEMAS DO DISCURSO NARRATIVO EM MEMÓRIAS DE MARTA, A


FAMILIA MEDEIROS E A SILVEIRINHA DE JÚLIA LOPES DE ALMEIDA

A mulher oprimida pelas forças coercivas do patriarcado começa a contestar


esta ordem tão fortemente estabelecida. Ela passa de criatura a criadora e procura
mostrar que literatura é, por vezes, uma provocação ao conhecimento das coisas e
do mundo. A literatura parece carregar marcas do particular cultural de cada autora,
no caso específico, de Júlia Lopes de Almeida, e das posições de sujeito com as
quais ela se identifica e se relaciona. O presente capítulo pretende apresentar os
estratagemas do discurso narrativo em Memórias de Marta, A Família Medeiros e A
Silveirinha.

4.1. Os múltiplos perfis femininos em Memórias de Marta, A Família Medeiros e


A Silveirinha

O papel desempenhado pelo homem na sociedade patriarcal sempre foi


agraciado com uma variedade de prêmios, tais como dinheiro, status,
reconhecimento público e posses. Por outro lado, as mulheres, que tanto fizeram,
praticamente não foram reconhecidas e tão pouco mencionadas na história.
Hanner (2003) informa que as primeiras defensoras dos direitos da mulher no
Brasil viam a educação como chave para a emancipação feminina e a melhoria de
status. Em torno de 1870, algumas viam a educação superior uma maneira de as
mulheres assumirem ocupações de prestígio. Como muitos homens da classe alta
urbana, que buscavam reais manifestações de progresso, essas mulheres
respondiam com vigor às novas ideias vindas do exterior e colocavam suas
esperanças nas conquistas futuras.
No final do século XIX, algumas mulheres almejavam mais do que mero
respeito e tratamento favorável dentro da família, desejavam, sobretudo, e o direito à
educação, inclusive educação superior, que se tornara possível com a lei da reforma
educacional de 1879: elas queriam o desenvolvimento integral de todas as
potencialidades femininas, dentro e fora de casa (HANNER, 2003).
Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida apresenta ao público essa
mulher, Marta, que não se deixa oprimir pelo sistema patriarcal e tão pouco pela
91

imposição do patriarcado que determinava que mulheres fossem inferiores e,


portanto, deveriam ser submissas aos homens, estes, superiores, dominadores. A
figura feminina representada no corpus traz à tona uma mulher que vai lutar pelo
desejo de ter educação, trabalho e independência.

Sonhando agora em ser mestra, eu não imaginava o descanso, o


repouso ameno que eu lhe daria como recompensa dos grandes
sacrifícios feitos por ela para meu bem-estar; eu não pensava em ser
útil, em torna-me necessária, imprescindível: eu queria ser mestra
para não morar em um cortiço mal alumiado, infecto, úmido, nesta
terra onde há tantas flores, tanta luz e tantas alegrias! (ALMEIDA,
2007, p. 72-73).

É possível notar, segundo o trecho supracitado, os avanços e acomodações


no discurso almeidiano, na medida em que a autora advoga pela emancipação
feminina através da educação e do trabalho.
Júlia Lopes de Almeida convida a (re)pensar a condição feminina nos
Oitocentos para além da expectativa modelar e normativa da época. Transgredindo
o espaço privado do lar e lançando mão do ofício das letras, o seu primeiro romance
se constitui peça fundamental para se entender toda a sua obra, uma vez que os
seus silêncios e vazios internos permitem conjecturar sobre algo mais, preenchendo
interstícios no exercício de desenhar sobre a própria tessitura desvelada.
Ao pensar o passado como uma renda, permanentemente retrabalhada,
deve-se lembrar que não são apenas as linhas, laços e nós, por mais coloridos que
sejam, que dão forma ao desenho projetado; são, justamente, os buracos, os vazios,
as ausências, que são responsáveis por fazer aparecer com nitidez o que se
pretendia fazer (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 153). Como se pode perceber
na citação que segue:

Supunha eu que o meu ordenado bastasse só por si para uma


completa modificação na nossa vida. Alegrava-me por poder assumir
a responsabilidade de tudo. A sala da aula com o seu relógio de
parede colocado sobre o crucifixo de marfim, em frente ao retrato
litografado do imperador, parecia-me a visão do paraíso. Era dentro
daquelas paredes que eu tiraria o sustento e a independência para
minha mãe. (ALMEIDA, 2007, p. 91)
92

A citação expressa o desejo de Marta que teve a possibilidade de seguir uma


educação, e ainda, a vontade de ser uma mulher emancipada capaz de sustentar a
casa e a mãe. Assim, a aparente felicidade demonstra que a única saída para a
melhoria de vida é o estudo e o trabalho.
A historiadora Michelle Perrot (1988) chama a atenção para o fato de o
feminismo ser difundido historicamente como um movimento social e não político, o
que reproduziu a ideologia de que política não é assunto para mulheres. Outra ideia
enraizada é de que a mulher foi excluída do trabalho. A mulher não foi excluída do
campo de trabalho, sua ação foi regulamentada pela ideologia dominante e seus
lugares de atuação definidos.
Além da luta por direito a educação e igualdade com o outro sexo, as
mulheres do primeiro quartel do século XIX, se engajaram na luta pelos direitos dos
menos favorecidos, assim, o movimento feminista se ligou à luta pelos direitos das
minorias étnicas e pela paz (PERROT, 1988). As mulheres do século XIX
constituíram uma importante vanguarda dos movimentos sociais participando das
doutrinas e movimentos revolucionários.
Na Família Medeiros, Júlia Lopes de Almeida, apresenta ao público leitor uma
temática diferenciada à época do século XIX, pois na sua obra são refletidos os
debates acerca dos percursos e dos destinos do Brasil que nutriam aquele
momento.
Oliveira (2011), afirma que mais alinhada com os princípios democráticos e
republicanos, porém não em acordo com todos eles, Júlia Lopes de Almeida encena,
sobretudo no romance em questão, a paulatina queda da ordem escravocrata. No
romance, enterrar o patriarcado escravocrata significa modernizar o Brasil, ou seja,
abrir as portas para a instalação da República, para a implantação da mão de obra
assalariada e para um país calcado nos princípios da razão, da justiça e do direito.
A Família Medeiros, de Júlia Lopes de Almeida apresenta um enredo que
trata da vida cotidiana, no interior de São Paulo, no final do século XIX, de escravos
e da transição para o trabalho assalariado.

- Ora, ainda bem! Pois, como ia dizendo, apareceu-me o negro


queixando-se de maus tratos e expondo à minha compaixão o corpo
emagrecido e retalhado. Mandei tirar-lhe os ferros, curá-lo; dei-lhe
cama, jantar, e, como do legado do Sr. Gabriel restassem ainda
setecentos mil réis, escrevi ao Antunes propondo por esse preço a
liberdade do escravo. Respondeu-me com uma tremenda
93

descompostura, exigindo-me a entrega do negro. Nem por um conto


o vendo, dizia ele na carta; eu cá o ensinarei (ALMEIDA, 1919, p. 69-
70).

Segundo Oliveira (2001), neste romance Júlia Lopes de Almeida traz, para o
aconchego do lar, informações sobre o enfraquecimento do regime monárquico
diante dos movimentos pré-republicano e abolicionista, a realidade da escravidão e
as tensões provocadas com a proximidade da abolição, promovendo uma profunda
reflexão em torno dessas questões, além de expressar-se politicamente em relação
à tragédia da escravidão. Ao criar a personagem Eva, ela mostrou outro perfil de
mulher e levantou uma grande bandeira em prol das mudanças que a sociedade
exigia, entre elas, às relacionadas à educação feminina.

Como passaria agora as noites? A mestra era o seu refugio; na sua


companhia corriam rapidamente as horas, aprendia deleitosamente
nesses seroes íntimos a entreter conversações uteis e
despretensiosas; os seus bordados, os seus livros, os seus
desenhos parecer-lhe-iam monótonos e dificultosos desde que lhe
faltassem o conselho, a influência da amiga e o apoio da sua
inteligência superior. Respeitava-a, e nas horas de desalento,
enfadada daquela casa sombria, onde estava condenada a viver,
naquela convivência da família que em vão procurava achar
agradável, fora sempre o braço salvador da estrangeria que a
impelira para o trabalho, como único consolo verdadeiro e a única
distração. (ALMEIDA, 1919, p. 80)

O trecho mencionado apresenta ao público leitor uma figura feminina com


sentimentos de bovarismo, ou seja, comportamento psicológico designado aos que
tendem a aspirar por uma vida diferente da sua, idealizada e compensatória, mas
também, uma mulher culta, que gosta de livros e de arte. Ela passa a representar
uma ameaça ao modo de vida defendido pelo tio, escravocrata conservador. Ele
enxerga nas atitudes “subversivas” da sobrinha não só a antecipação do que viria a
acontecer com as manifestações abolicionistas, como também uma péssima
influência para as suas filhas (OLIVEIRA, 2011).

- Venho pedir-lhe que perdoe ao Manuel Sabino; ele promete ser


obediente daqui por diante. Mande tirar-lhe os ferros, sim?
- Asneira! Deixe-se disso, que não é da competência das moças. Se
não quiser ver o negro com os ferros, não olhe para ele. Era o que
faltava!
-Não olho, mas nem assim deixo de saber que os traz. (ALMEIDA,
1919, p. 19).
94

É possível observar uma mulher que argumenta contra uma injustiça, no


caso, a um escravo preso aos ferros. A personagem discute com um senhor
escravocrata, pois este não aceita o pedido dela para retirar as amarras do negro.
Isto fica visível no diálogo, cujos argumentos do escravocrata querem mantê-lo
preso.
As ideias de Eva, na visão de Oliveira (2011), revelam na verdade valores que
farão parte, por exemplo, a instrução feminina, o tratamento igualitário entre homens
e mulheres e revelam, na verdade, valores que farão parte de uma nova ordem
social que está para emergir em oposição aos antigos valores defendidos pela
tradicional aristocracia rural. Ela simboliza, em seu próprio nome, a renovação, a
mudança, o nascimento de uma nova mulher que, instruída, avalia sua realidade e
sabe fazer suas próprias escolhas. É isso o que demonstra o inesperado, porém
coerente, desfecho da obra quando, contrariando o final que se encaminhava para o
enlace com Otávio, ela opta por casar-se com Paulo, com quem se identifica
intelectualmente.

Transportando de jubilo, Paulo tomou a cabeça de Eva entre as


mãos, e beijo-a nas pálpebras, repetidas vezes.
E, assim, sem pronunciar uma palavra definitiva, eles declaram-se
apaixonadamente o seu amor (ALMEIDA, 1919, p. 317-318).

Para Biroli e Miguel (2012), o pensamento feminista tornou-se um


componente crucial da teoria política. As primeiras reivindicações de direitos
políticos pelas mulheres, embora relevante e evidentemente justas, eram pouco
interessantes do ponto de vista teórico.
Os referidos autores afirmam que a análise crítica da posição da mulher na
sociedade e, sobretudo, dos papéis sociais distintos reservados a mulheres e
homens, então apresentados, abriria caminho a muitas críticas posteriores, mas não
colocava em discussão as relações entre as formas de constrangimento à
autonomia das mulheres e as instituições politicas que colaboraram para reproduzir
sua posição subalterna.
95

Eva se mostrou interessada no acesso aos espaços de decisão politica


quando expressou sua opinião com relação ao negro preso aos ferros. Pode-se
pensar que Júlia Lopes de Almeida estaria contribuindo para o avanço posterior de
uma teoria politica feminista. Pelo simples fato de Eva discutir contrariamente sobre
uma forma rotineira de opressão, no caso, a escravidão, bem como pensar em uma
igualdade racial.
Em A Silveirinha a personagem central vive os dilemas da religiosidade o que
poderia demonstrar também uma forma de submissão à igreja. Perrot (2012),
falando sobre esse tema diz que entre as religiões e as mulheres, as relações têm
sido, sempre e em toda parte, ambivalentes e paradoxais. Isso porque as religiões
são, ao mesmo tempo, poder sobre as mulheres e poder das mulheres.
Poder sobre as mulheres: as grandes religiões monoteístas fizeram da
diferença dos sexos e da desigualdade de valor entre eles um de seus fundamentos.
A hierarquia do masculino e do feminino lhes parece da ordem de uma Natureza
criada por Deus. Isso é verdade para os grandes livros fundadores - a Bíblia, o
Corão - e, mais ainda, para as interpretações que são trazidas a esse respeito,
sujeitas a controvérsias e a revisões. Assim se dá com o relato de Adão e Eva no
Gênesis, debatido atualmente pelas teólogas feministas. Segundo a versão original,
o homem e a mulher teriam sido criados ao mesmo tempo. Segundo uma versão
anterior, eles tinham sido criados um depois do outro, sendo a mulher segunda ou
derivada, “vinda de um osso sobressaltante”, como lembra Bossuet para incitá-las à
humildade, tendo a Igreja Católica adotado essa segunda versão (PERROT, 2012).
No trecho de A Silverinha pode se perceber o que Perrot postula.

-Como assim?
- Pois não acabei de lhe contar que ela se apresentou ao noivo
coberta de santinhos? Certamente que não fez aquilo, senão para o
avisar: veja bem como eu sou e quais as minhas ideias. (ALMEIDA,
1997, p. 23)

A citação acima fala sobre a representação de uma mulher que possui um


fanatismo religioso. Nota-se também a firmeza nas suas palavras, isto é, o noivo já
sabe quais são os seus ideais. A religião, ao que tudo indica, acima de tudo.
Para Perrot (2012), a religião tem poder sobre as mulheres e esse fato
acentua-se nos organizadores dessas religiões, as quais, todas elas, estabelecem a
dominação dos clérigos e subordinam as mulheres, geralmente excluídas do
96

exercício do culto, ou mesmo de seu espaço: o que acontece nas mesquitas do islã,
embora o profeta Maomé fosse cercado de mulheres, como relata Assia Djebar
(1985).
O catolicismo é, em princípio, clerical e masculino, à imagem da sociedade de
seu tempo. Somente os homens podem ter acesso ao sacerdócio e ao latim. Eles
detêm o poder, o saber e o sagrado. Entretanto, deixam escapatórias para as
mulheres pecadoras: a prece, o convento das virgens consagradas, a santidade. E o
prestigio crescente de Virgem Maria, antídoto de Eva. A rainha da cristandade
medieval.
- Que barbaridade! Nem você deve desprestigiar os padres. E isso
que está dizendo acaba com a reputação de um homem; tanto mais
que padre Gil é mais que um homem – é um santo!
- Eu não desacredito. Comparo-o apenas o monsenhor Pierre,
sempre bem escovado, tanto nas batinas, como você notou, como
nas ideias, que são de uma limpidez admirável (ALMEIDA, 1997, p.
41).

A citação apresenta o prestígio que o padre Gil possui: ele é considerado um


santo, ou seja, os padres eram vistos como representantes de Deus na terra, logo
comparados a santos terrenos. De tudo isso, segundo Perrot (2012), as mulheres
fizeram a base de um contrapoder e de uma sociabilidade. A piedade, a devoção,
era, para elas, um dever, mas também compensação e prazer. Elas podiam ser
encontradas nas igrejas paroquiais, na suavidade dos reposteiros e do canto coral,
sentir até mesmo o perfume floral presente no altar. O que não significava que os
maridos ficavam alegres de suas esposas residirem mais na casa paroquial que nas
suas próprias residências,

-Quatro! Cinco horas, filha! Prefiro tudo a este inferno de nunca


estar contigo. Por que não esperaste pela noite, para irmos juntos?
Também eu gosto de música, mas gosto, sobretudo da tua
companhia, que me falta cada vez mais (ALMEIDA, 1997, p. 60)

As mulheres transmitiam fé, nas cidades do interior, elas limpavam as igrejas


e defendiam o soar dos sinos. De tal forma que elas se tornaram, na sociedade um
objeto de disputa entre os republicanos e a Igreja, estando, em parte, na origem das
lutas pela laicidade, no caso, na França (PERROT, 2012).
97

A história tem um grande peso no que diz respeito à situação em que se vê a


mulher ainda hoje. Correa (1992), diz que o sistema patriarcado, por ser dualista,
hierárquico, autoritário e sexista cerceia as mulheres. Assim sendo, segundo a
autora, o Cristianismo foi influenciado tanto pelo judaísmo quanto pelo helenismo, ou
seja, desenvolveu-se sobre um pano de fundo patriarcal inclusive em sua concepção
de mulher. Desse modo, a mulher é, conforme a exegese bíblica, subordinada e
equivalente ao homem.
Falar da mulher na sociedade também é falar da influência religiosa. A
sociedade é formada por leis e por preceitos morais profundamente ligados a
religião, por isso, fica difícil separar o fenômeno religioso que subjaz a origem de
quase toda sociedade humana. A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida mostra ao
público o aparente lado do fanatismo religioso, de uma esposa que prefere passar
mais tempo na Igreja que na sua casa junto ao marido.
Oliveira (2011), afirma que no século XIX, em meio às transformações
legadas deste tempo histórico, decorrentes, sobretudo, da industrialização e
urbanização presentes na Europa e Estados Unidos, ideias civilizadoras são
fomentadas por grupos sociais que idealizavam a educação e a religião como
estratégias na relação de poder, para estabelecer um comportamento social
individual e coletivamente aceitável.
Para Oliveira (2011) embora a lógica patriarcal pareça tão sólida e
sedimentada e, em muitos momentos, um muro instransponível, representada por
grupos com poder estabelecidos, nota-se que existiram e existem grupos que
fomentam mudanças ao longo da história. Tais mudanças podem ser observadas na
sociedade atual, ainda que, marcadamente patriarcal, através da oscilação de poder
nas relações de gênero, onde a mulher conquistou mais espaços de ação na sua
constelação histórica.
O lugar da mulher no espaço social brasileiro no século XIX, como já aludido
anteriormente, era determinado pelo patriarcalismo, deixando sua margem de
decisão com pouca acessibilidade. Mantendo esse padrão patriarcal tem-se a figura
feminina Silveirinha que usa todos os artifícios para conversão do marido ao
catolicismo,

-Tomara ver-te forte...


- Para irmos para o Rio. Afinal essa doença veio atrasar-nos em um
mês....
98

- E para assistir à missa em ação de graças pela tua saúde! Fica


sabendo que as minhas amigas estão so à espera disso para
levantarem acampamento...Algumas até fazem sacrifício de estar
aqui (ALMEIDA, 1997, p. 298)

Bourdieu (2010) se concentra nas situações em que esse poder é


normalmente ignorado, fato que permite intuir que esse poder é plenamente
reconhecido pelos agentes envolvidos. "O Poder Simbólico" está dividido em quatro
subtítulos. No primeiro deles, Bourdieu considera a arte, a religião, a língua, etc.,
como estruturas estruturantes, citadas algumas vezes por ele como modus operandi,
uma expressão do latim que significa modo de operação. Utilizada para designar
uma maneira de agir, operar ou executar uma determinada atividade seguindo
sempre os mesmos procedimentos, seguindo sempre os mesmos padrões nos
processos.
Nesse sentido, o poder simbólico, imperceptível e invisível, é uma forma
transfigurada e legitimada das outras formas de poder. O que torna possível tal
poder, conclui o autor, é a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe
estão sujeitos ou mesmo que o exercem. É possível analisar que a Silveirinha é
influenciada pela Igreja Católica e que juntamente com essa Instituição ela espera
converter seu marido ao catolicismo.
O referido autor afirma que o responsável pela produção dos sistemas
simbólicos é o corpo de especialistas circunscrito ao seu campo específico. Tais
especialistas estão a serviço da classe dominante e são, por excelência, os
produtores da doxa, ou seja, àquilo que é aceito como opinião geral que, por seu
turno, sustenta o poder estabelecido no âmbito de cada campo.
Nesse sentido, o campo é o espaço onde as relações são objetivamente
definidas através do modo como são distribuídas as diversas formas de capital. Os
agentes, específicos de cada campo, são capacitados para as funções e os embates
próprios deste campo. Intimamente relacionado ao conceito de campo, está o
conceito de habitus que Bourdieu (2010) define como um conjunto de disposições,
decorrente de um processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da
interioridade, que leva os agentes a procederem de acordo com as possibilidades
existentes dentro da estrutura do campo.
Para entender como Bourdieu problematiza a religião, é necessário
compreender, primeiramente, como ele estrutura o campo de análise. A terminologia
99

usada por ele para definir o campo religioso pertence ao mundo judaico-cristão e,
portanto, é muito familiar para a teologia, a saber, sacerdotes, profetas,
magos/feiticeiros e leigos. Essa terminologia foi utilizada por Max Weber que, por
sua vez, influenciou a análise de Bourdieu. O sacerdote seria aquele que, por
excelência, representa a instituição estabelecida. É aquele que vai produzir a partir
de dentro e vai defender a instituição. Ele não produz o novo. “O profeta, ao
contrário, é o agente religioso que, em situações extraordinárias, de crise, ou a partir
de grupos marginais, produz por seu discurso ou sua prática uma nova concepção
religiosa”. Já o feiticeiro é um autônomo que utiliza o imaginário religioso para
“atender interesses imediatos e utilitários de sua clientela”18.
O campo religioso, propriamente dito, tem como princípio a existência de um
grupo especializado na produção dos bens religiosos (o clero) e de um grupo que
produz excedente econômico (os leigos) para sustentar esse grupo especializado
que, em troca, produz o sustento espiritual. Bourdieu chama essa transação que se
instaura entre igreja e fiéis de “economia da oferenda”19. Essa objetivação do
sistema religioso desvenda que a igreja é também uma empresa. Só que essa
objetivação parece ser reducionista e pode levar ao esquecimento de que faz parte
da sua existência a necessidade de negar esse fato. Assim, Bourdieu (2010) afirma
que “a verdade da empresa religiosa é a de ter duas verdades: a verdade econômica
e a verdade religiosa, que a recusa”20:

Como se aproximasse o dia do aniversário do Padre Pierre, as


devotas do seu altar e as suas confessadas organizaram uma
comissão a fim de angariar donativos para um mimo que lhe
deveria ser então oferecido.
A ideia partira da Magdalena, que andava pelas casas das amigas,
alvoraçando almas e combinando cousas. (ALMEIDA, 1997, p.
101).

Júlia Lopes de Almeida através da voz narrativa dos seus romances evidencia
certo conhecimento sobre o papel do lócus de enunciação nos processos de
produção de sentido no discurso literário. Em uma leitura atenta, é possível

18
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro. A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA,
Faustino (org.). Sociologia da Religião: Enfoques teóricos. Petrópolis: Vozes, 2003, (p. 177-197.) p.
186s., 188.
19
Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 158.
20
BOURDIEU, 2010, p. 184s.
100

descobrir muito mais do que mero relativismo nas palavras que a autora coloca na
boca de suas figuras femininas. A referida autora faz parte do seleto grupo de
mulheres produtoras de capital cultural nos processos de imaginação e simbolização
da identidade nacional brasileira, no final do século XIX e limiar do século XX.

4.2 O espaço como lugar da memória em Memórias de Marta, A Família


Medeiros e A Silveirinha

Historicamente, a maior parte das sociedades agrícolas tinha desenvolvido


novas formas de desigualdades entre homens e mulheres, em um sistema
geralmente chamado de patriarcal. Os maridos e pais eram os dominadores desse
sistema. As civilizações aprofundaram o patriarcado e, ao mesmo tempo, definiram
seus detalhes de formas distintas que combinavam com crenças e instituições mais
amplas de cada civilização particular.
Para Stearns (2012) pondo um selo próprio no patriarcado, cada civilização
uniu as questões de gênero com aspectos de sua estrutura cultural e institucional.
Assim, o estabelecimento da civilização faz avançar uma tendência a enfatizar as
diferenças das instituições e formas culturais, destinadas a promover alguma
unidade dentro do grupo e diferenciá-los do mundo exterior.
Nesse sentido, todas as civilizações passam a desenvolver um pronunciado
no sentido de quão diferente eram dos “outros”. Nas sociedades patriarcais, os
homens eram considerados criaturas superiores e tinham direitos legais que as
mulheres não possuíam. O crescimento do poder de governos dominados por
homens levaram à redução do papel político informal exercido pelas mulheres dentro
das famílias. Segundo Stearns (2012), o fator-chave, no entanto, foi uma
prosperidade, em particular para a classe alta, que permitiu enfatizar o papel
ornamental das mulheres em detrimento de papéis práticos. Afirma Bourdieu (2009,
p. 41):

As divisões constitutivas da ordem social e, mais precisamente, as


relações sociais de dominação e de exploração que estão instituídas
entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas
classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos
e complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a
101

classificar todas as coisas dos mundo e todas as práticas segundo


distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino.

Para Bourdieu (2009), cabe aos homens, situados do lado exterior, do oficial,
do público, do direito, do seco, do alto, do descontínuo, realizar todos os atos ao
mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como matar o boi, a lavoura ou
colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que marcaram rupturas no curso
ordinário da vida. No que diz respeito, às mulheres, pelo contrário, estando situadas
do lado úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, vem serem-lhes atribuídos todos os
trabalhos domésticos, ou seja, privados e escondidos, ou até mesmo visíveis e
vergonhosos, como o cuidado das crianças e dos animais, bem como todos os
trabalhos exteriores que lhes são destinados pela mítica, isto é, os que levam a lidar
com a água, a erva, o verde, com o leite, com a madeira e, sobretudo, os mais sujos,
os mais monótonos e mais humildes.

Lembro-me de que vivíamos nós duas sós: minha mãe engomando


parta fora, desde manha até à noite, sem resignação, arrancando
suspiros do peito magro, mostrando continuamente as queimaduras
das mãos e a aspereza da pele dos braços, estragado pelo sabão.
Custou-lhe a fazer-se aos maus tratos da miséria. Mas que
resignação depois! (ALMEIDA, 2007, p. 45).

Na citação anterior é possível analisar o mundo limitado em que elas estão


confinadas, o espaço da casa, a linguagem, os utensílios, parece guardar os
mesmos apelos à ordem silenciosa, as mulheres, para Bourdieu (2009), não podem
senão torna-se o que elas são segundo a razão mítica, confirmando assim, e antes
de mais nada a seus próprios olhos, que elas estão naturalmente destinadas ao
baixo, ao torto, ao pequeno, ao mesquinho, ao fútil etc.
Elas estão, aparentemente, destinadas e condenadas a dar, a todo instante,
aparência de fundamento natural à identidade minoritária que lhes é socialmente
designada: é a elas que cabe a tarefa longa das preocupações vulgares da gestão
quotidiana da economia doméstica, parecem comprazer-se com as mesquinharias
do cálculo, das contas dos ganhos dos homens de honra que devem ignorar
(BOURDIEU, 2009).
Para Damatta (1997), ao universalizar uma "razão teórica" ou moral e uma
outra razão, prática e contraditória por essência, razão que seria sempre mais
verdadeira ou mais palpável que a outra, simplesmente por ter uma "visibilidade"
102

atribuída. A "casa" e a "rua" são categorias sociológicas para os brasileiros, pois


estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou coisas físicas
comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social,
províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados e,
por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e
imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.
Esclarece ainda Damatta (1997) que dentro da tradição de estudos históricos
e sociais brasileiros a ideia de casa parece surgir como um local privilegiado. É
preciso, porém, acentuar que nestes estudos a casa surge muito mais como um
palco, um local físico, do que como um ator. De fato, na perspectiva da grande
maioria dos estudos, são as famílias dotadas de poderio "feudal" - com seu séquito
de criados, funcionários, sacerdotes, escravos e seguidores em geral - que
comandam pedaços da sociedade e são os verdadeiros atores da história social
brasileira.
Nesse sentido, são essas "famílias patriarcas", percebidas como unidades
heterodoxas posto que tinham múltiplas funções e somavam hierarquicamente graus
variados e extremos da condição humana: dos senhores aos escravos, que são o
sujeito da dinâmica social destes trabalhos. Não se percebia, ou muito pouco se
discerniu, que, se a família era um ator tão aparentemente dividido ou corroído
internamente pela desigualdade, ela se integrava plenamente no espaço da casa,
espaço que somente se define e deixa apanhar ideologicamente com precisão
quando em contraste ou em oposição a outros espaços e domínios.
Dessa forma pode-se observar a importância da casa, na obra A família
Medeiros, de Júlia Lopes de Almeida:

Na grande sala, a mesa, coberta de cristais, oferecia um aspecto


brilhante. Ao fundo, as senhoras conversavam. Octavio foi
apresentado á mestra de Noémia, Mme. Gruber. Os servos e mesmo
a dona da casa simplificavam-lhe o nome, chamando-a Madama,
simplesmente (ALMEIDA, 1919, p. 24).

De acordo com a citação supramencionada, a casa, nesse sentido, está


provavelmente relacionada à definição tanto de um espaço íntimo e privativo de uma
pessoa quanto um espaço máximo e absolutamente público, como ocorre quando
nos referimos ao Brasil como nossa casa. É o fato de que essas possibilidades e
esses espaços permitem leituras ou construções diferenciadas (mas cúmplices e
103

complementares) da sociedade brasileira por ela mesma. No caso, do trecho citado,


um espaço da casa que foi ornamentando com cristais para receber um convidado
que é digno de uma decoração nobre.
Consoante às autoras Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral (2005), a
dicotomia público/privado constitui-se em uma questão central para o feminismo e tal
questão pode ser relacionada também a outras dicotomias fundamentais, como por
exemplo: masculino/feminino; racional/irracional; razão/emoção; cultura/natureza;
corpo/mente; sujeito/objeto, entre outras. Esses pares tomados em conjunto
permitem uma determinada concepção dos papéis sociais atribuídos a homens e
mulheres. Além disso, compreendida como a separação entre o trabalho e a casa, a
dicotomia público/privado interessa para a teoria feminista contemporânea “na forma
como conceitualiza a subordinação e a opressão das mulheres, relegando-as ao
espaço doméstico” (MACEDO; AMARAL, 2005, p. 159).

O casamento da Silveirinha tinha-se feito à capucha, por luto recente


na família do noivo.
Desde esse dia, o casal fora habitar à parte, numa casa de aluguel já
mobiliada e de aspecto elegante, embora simples. Esse
acontecimento tomara assim em Petrópolis a aparência de um
acidente vulgar, sem importância. O marido continuou a ir
normalmente às suas visitas no hospital, e a mulher à casa das
pessoas das suas relações (ALMEIDA, 1997, p. 59).

No trecho supracitado percebe-se que a casa fica aos cuidados, ou deveria


ficar aos cuidados da esposa, enquanto a rua, no caso, o hospital, é o local de
responsabilidade e trabalho do marido, ou seja, de sua profissão como médico, que
sustenta a família e a casa.
Confinar a mulher no espaço doméstico consiste na “defesa da ordem rústica,
patriarcal” (PIRES, 1973, p. 101). A consagração da “esposa do lar”, à qual se
limitam os horizontes em um círculo determinado de relações e se fornece uma
interpretação da complexa imagem do mundo filtrada através da experiência
(exclusiva) do marido”, torna-se “o sustentáculo dos prestígios familiares do
marialva” (PIRES, 1973, p. 101). Esse confinamento, que gera a desigualdade social
e cultural que marca as relações entre homens e mulheres, justifica-se pela
alegação de que a mulher é naturalmente inferior ao homem: “Fica registrada nas
ordenações marialvas a consabida regra da inferioridade natural da mulher, o ser
fraco por natureza” (PIRES, 1973, p. 96), que precisa ser protegido e vigiado pelo
104

homem. Assim, considerada “inferior ao marido, a mulher deve-lhe submissão. É


capaz de governar a casa, mas incapaz de se governar a si própria”, como sintetiza
Leal (1986, p. 354).

Temia as longas horas soturnas na alcova úmida e escura, onde,


desde madrugada até a noite, minha mãe trabalhava sem
interrupção. Que distrações, que alegria podia prometer-me aquele
quadro constante: uma mulher magra, pálida, curvada sobre a tábua,
engomando, engomando, continuamente? (ALMEIDA, 2007, p. 59).

De acordo com a citação anterior pode-se notar a casa como lugar de


trabalhos domésticos que perduram noite e dia. Assim, a leitura de textos de autoria
feminina vai apresentar ao público leitor, exatamente, entre outras coisas, a relação
dinâmica entre a casa e a rua, ou seja, que a oposição entre esses espaços se dá
de forma variada, dependendo de diversos fatores (XAVIER, 2012).
Ao analisar a representação da casa, especificamente em romances de
autoria feminina, no caso, de Júlia Lopes de Almeida, é possível obedecer a um
critério que prioriza obras onde a casa é um elemento significativo.
Para Xavier (2012), um estudo dessa natureza pressupõe um conhecimento
teórico da categoria espaço, o que pode acrescentar certa dificuldade, pois, como
categoria narrativa, só recentemente o espaço tem atraído atenção dos estudiosos.
O leitor crítico, diferentemente, percebe a importância do papel do espaço e o
que esse exerce na narrativa, interagindo muitas vezes com os demais elementos
da estrutura do texto. Atendendo a essa carência, o Dicionário da Teoria da
Narrativa lhe dá destaque, enfatizando sua função: “O espaço constitui uma das
mais importantes categorias da narrativa, não só pelas articulações funcionais que
estabelece com categorias restantes, mas também pelas incidências semânticas
que o caracterizam.” (XAVIER, 2012, p.17).
Bachelard, na sua obra A poética do espaço, de 1989, apresenta os estreitos
vínculos entre o ser humano e sua morada, mostrando a imagem da casa como um
valioso instrumento de análise da alma humana. Como as imagens são variacionais,
o autor delimita sua investigação ao exame das imagens simples, as imagens do
espaço feliz (topofilia), determinando os valores humanos dos espaços de proteção
(casa).
Nesse sentido, a imagem poética do espaço segue uma linha que começa
com a poética da casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana,
105

partindo para os valores da casa dos homens (cabanas) e das coisas (gavetas,
armários e cofres), dos ninhos e conchas, dos cantos, até chegar aos espaços da
imensidão e da miniatura, do aberto e fechado, e, por fim, ao valor ontológico das
imagens e da fenomenologia do redondo.
Bachelard (1989, p.358) mostra-nos os valores da intimidade do espaço, ou
seja, “a casa é nosso canto no mundo”, evidenciando a casa como nosso ponto de
referência no mundo, como signo de habitação e proteção. Essa imagem da casa
constitui-se um devaneio imemorial; promove a comunhão entre memória e
imaginação, lembrança e imagem. É como se a memória da primeira moradia
acompanhasse-nos durante toda a vida, todo sonho e devaneio, como se ela fosse
indelével na nossa imaginação.

O mundo de cada um é limitado pelo que abrangem os raios da sua


capacidade visual ou pelo que lhe sugere a sua imaginação. Essa
em mim sempre foi de fôlego curto, assim como o meu circulo social
muito restrito. Uma outra coisa tornaram-me como que medrosa de
mim mesma. Não tendo sabido viver: em levantar os meus mortos,
pôr-me a olhar para eles, e colher aqui e além, nos frangalhos da
memória, a expressão fugidia de certas paisagens e de certos seres.
Monotonia, pobreza- Muito ao longe, um gato cinzento – o “
Chimarrão” - , porque nos tinha sido dado por um rio-grandense; um
ângulo de quintal onde eu permanecia a brincar à sombra de uma
casuarina a cuja vigilância minha mãe parecia confiar-me. Lembro-
me ainda de a ouvir dizer quando me queria afastar de si:
- Vai para a casuarina. (ALMEIDA, 2007, p. 41-42).

Segundo o trecho acima, a narradora apresenta o espaço que ela viveu


aparentemente como criança, um lugar melancólico, mas indelével. É possível
perceber, com isso, que a casa é um dos maiores poderes que permitem interligar
os pensamentos, lembranças, os sonhos de uma mulher e os devaneios. A casa é
vista, segundo Bachelard (1989), como o grande berço, o aconchego e proteção,
desde o nascimento do homem; é o paraíso material. As lembranças da casa estão
guardadas na memória, no inconsciente e acompanha a narradora durante toda a
vida e, parece sempre voltar a ela nos seus devaneios.
Os romances de Júlia Lopes de Almeida funcionam, para Xavier (2012), como
uma abertura dessa série de estudos, porque aponta em duas direções: o passado
tradicional e conservador e o futuro anunciado pela Abolição da escravatura e a
República, recém-declarada. A coexistência de modos provincianos e a abertura
para a europeização e modernização fazem desse fim de século um momento
106

especial, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, capital cultural do Brasil na Belle


Époque.
A casa representada nos romances era considerada como extensão da
família, o famoso lar. Nela residiam marido, mulher e filhos, sempre chefiados pela
figura paterna, que quando ausente, se fazia representar pelo tradicional retrato em
cima do sofá da sala. No caso, fala-se de uma família burguesa, espaço dominante
no romance de Júlia Lopes de Almeida.
Zygmunt Bauman, em A Sociedade Individualizada (2008), mostra como os
laços familiares ligavam os indivíduos aos valores permanentes:

A família serviu por muito tempo como um dos principais vínculos


conectando os seres mortais à imortalidade, das buscas da vida individual
aos valores duradouros. Fotografias amareladas em álbuns de família e,
antes disso, as longas listas de datas de nascimentos, casamentos e
funerais anotadas nas bíblias atestavam a longevidade da família, à qual os
membros individuais não deveriam fazer nada para ameaçar e tudo para
assegurar. (BAUMAN, 2008, p. 200).

De acordo com a citação acima, a família era, aparentemente, o elo dos seres
mortais à imortalidade. As fotografias guardadas nos álbuns de família juntamente
com as grandes listas de datas de casamentos, nascimentos e funerais
comprovavam a longa duração da genealogia. Os membros individuais deveriam
assegurar que a mortalidade do individuo deveria ser transcendida, ou seja, o traço
que era deixado pela vida não deveria ser apagado por completo, mas imortalizado.
Para Bachelard (1989), nossa imaginação trabalha a imagem dos espaços,
processando os valores de abrigo e aposento à casa da infância. Nos textos
literários, essas imagens são relembradas a partir da leitura, retornando-se a uma
antiga morada. É como reviver a casa natal, fisicamente inscrita em nós, ou seja,
como se a infância permanecesse viva. Será a topo-análise a encarregada de
estudar a manifestação dos lugares físicos de nossa vida íntima na consciência e
nas lembranças.

Octavio olhava carinhosamente para tudo, ao passar. Revia com


ternura aquelas casas baixas com porta ao centro e igual numero de
janelas de cada lado; a matriz, a botica do Cunha, a loja do Vidigão
com peças de baêta e de algodão grosso mineiro apinhadas na
porta. Reconheceu com alegria o teatro, o Hotel do Comércio com a
sua grande taboleta, o casarão fechado do fazendeiro Bastos e logo
adeante a marcenaria do Tiburcio, mulato, ex-escravo do avo e
casado com a Sinhana das taipas, caboclinha dengosa com quem
107

ele brincara em pequeno, no sitio dos avos á margem do Atibaia


(ALMEIDA, 1919, p. 9).

No trecho acima é possível perceber que Octavio esteve longe de sua cidade,
e ainda, da casa onde passou toda sua infância. O público leitor percebe que
durante sua chegada e o passeio até reencontrar sua casa que viveu na infância, ele
recorda e traz à tona as memórias de um passado que aparentemente continua o
mesmo, no que diz respeito, a arquitetura da cidade.
Gomes (2011) destaca que na ficção brasileira, a casa não é sempre um
espaço de tranquilidade e paz para a mulher, pois, em muitos casos, é descrita
como um local de embates e disputas para a personagem contrária às regras do
patriarcado. Buscando interpretar as dimensões subjetivas da fronteira da casa,
apresenta-se uma leitura sobre os sentidos estéticos e culturais do deslocamento da
mulher pelo espaço da casa no romance de autoria feminina brasileira. Tal
movimento da protagonista traz importantes reflexões culturais sobre as conquistas
sociais da mulher visto que aparentemente desmascara a opressão patriarcal com
suas posições adestradas.

- O Miranda é homem de quarenta e tantos anos, muito sério e


bondoso....
- Mas, respondi-lhe, eu nunca lhe falei: via-o à janela de manha,
quando eu atravessava para o colégio, unicamente, e....
- Ele apaixonou-se por ti na leitura das cartas que me escrevestes de
Palmeiras.
-Não desejo casar-me....
- Estas palavras disse-as secamente... (ALMEIDA, 2007, p. 148-149).

É possível perceber na citação o aparente conflito de não aceitar um


casamento por conveniência. A resposta negativa que ocorre no espaço da casa
parece reforçar o desconforto da mulher diante de papéis femininos submisso, no
caso, o casamento por imposição da mãe. Com esse desempenho a busca de um
espaço mais confortável, a personagem Marta se mostra insatisfeita e parte para
procurar um “outro lugar” que atenda às suas necessidades interiores. No caso, uma
profissão:

O solicitador Miranda, nosso vizinho, fora assistir ao concurso e


antecipara-se em ir dar-lhe a noticia de eu me haver saído bem.
Recebi a nomeação de professora no dia do casamento de Luis.
Minha mãe abraçou-me jubilosa, e atônita de me ver triste....
(ALMEIDA, 2007, p. 147).
108

A protagonista Marta parece buscar outro lugar que, muitas vezes, só é


possível ser localizado no seu imaginário psicológico, pois a casa se mostra árida e
a rua um espaço de estranhos. Por ser uma fuga para um local desejável, esse
movimento pode ser visto como heterotopia, isto é, uma busca por espaços
“representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis”21.
Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida, apresenta ao público leitor a
protagonista Marta que vive, somente, com a mãe (uma engomadeira) em um cortiço
da cidade do Rio de Janeiro. A habitação coletiva que pode ser considerada, de
certo modo, uma espécie de favela do século XIX, mostra todo sofrimento tão-
somente de Marta e sua mãe, mas também de outros moradores.
Ao analisar a trajetória dessas figuras femininas, é possível identificar
espaços reais e heterotópicos como movimentos e mudanças que ocorrem em seu
trajeto22. Segundo Michel Foucault (2009), no texto Outros Espaços, elabora o
conceito de heterotopia para mostrar que o espaço do outro foi esquecido pela
cultura ocidental. A palavra heterotopia é composta do prefixo heteros que tem
origem do grego e significa o diferente e está ligada a palavra alter (o outro). Já a
palavra topia significa lugar, espaço. Então, heterotopia significa o espaço do outro.
Em busca do uno, do universal e do mesmo, a razão ocidental afastou o outro, a
diferença, a multiplicidade. Deste modo, o empreendimento filosófico de Foucault foi
resgatar os espaços do outro, onde o exercício do poder pela racionalidade ocidental
buscou suprimir pela busca do espaço do mesmo. Assim sendo, constantes
contradições e ambiguidades dão contornos ao processo de deslocamento dessas
mulheres.
No que diz respeito à personagem Marta, em suas memórias, demonstra ser
uma pessoa insatisfeita com sua aparência. A jovem se acha feia, desajeitada e,
sendo assim, pensa que o seu corpo não corresponde ao seu espírito (ela é
bastante estudiosa e consegue tornar-se independente). Entretanto, mesmo
firmando-se como professora, depois de passar em um concurso, ela é convencida,
pela mãe, a se casar com um homem mais velho, Miranda.
No que diz respeito ao conceito de casa na obra A Silveirinha, Bachelard
afirma que, a casa é o abrigo primordial do homem, ela o acolhe e o faz sonhar; na

21
FOUCAULT, Michel. Outros espaços. Rio de Janeiro: Fonte Universitária, 2009, p. 415.
22
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 13.
109

casa ele pode desfrutar a solidão. Segundo o autor “a casa é uma das maiores
forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”
(BACHELARD, 1989, p. 26). Mesmo quando ela é humilde e cheia de defeitos, no
devaneio torna-se reconfortante, dá estabilidade. É possível analisar em A
Silveirinha, o que afirma Bachelard sobre a casa como um abrigo para o homem e
mesmo seus amigos:

Enquanto alguém na sala afirmava, a respeito da conversão do


médico, que só o medo da morte e o poder do amor são capazes de
tamanhos prodígios, ele conversava no seu escritório com o sogro e
o amigo Joao Zacarias.
- E, agora, meu querido genro, é chegar ao Rio, fazer de novo as
malas e partir para o velho mundo.... ( ALMEIDA, 1997, p. 303)

A partir dessa definição, segundo Bachelard, a morada é para eles


certamente o universo. Mais do que isso, na casa estão todas as lembranças da
família, a casa é uma metáfora da família, e no momento em que ela é tomada se
acaba a vida e a estirpe. Em um toque rápido, a obra Memórias de Marta, a narrativa
traz-nos duas Martas, mãe e filha, sendo que a segunda detém o foco narrativo ao
longo do romance. Marta, a protagonista, irá conduzir o relato, intercalando presente
e passado, em uma retrospectiva dolorosa, narrando a convivência promíscua e
difícil dentro do cortiço que passa a habitar após o falecimento do pai.
A casa também pode ser imaginada, através da centralidade, que levará para
o sentido da cabana. A casa é vista com toda a simplicidade, a primitividade, o
aconchego de uma cabana. Ali se dá o encontro com a solidão, às lembranças viram
lendas. A cabana representa a intimidade do refúgio. No caso, Marta não podia sair
de casa porque era aparentemente perigoso, assim estava e vivia na sua maioria na
sua casa situada em cortiço no Rio de Janeiro.
A realidade brasileira das classes menos favorecidas, as discrepâncias entre
a classe pobre e a burguesa, a dedicação das mães para com suas proles, da
professora para com sua discípula, a visão estereotipada do Brasil, como um "país
tropical" de riqueza e fartura, mas, na verdade, miserável, são algumas das
temáticas apresentadas por uma escrita de autoria feminina. O espaço romanesco
era um cortiço situado na cidade carioca.
Bachelard continua tratando a casa como um “centro de proteção” que se
torna o “centro de um devaneio” (1989, p. 56). E a casa pode assumir dois papéis de
110

proteção: um em que ela não luta e outro em que ela luta com o universo. No caso,
da personagem Marta que viveu em uma casa onde predominava a insegurança e o
medo até que a situação se modifica e ela passa a ter desejos e sonhos e luta por
estes. Educação, trabalho e independência são os lemas para conquistar sua
autonomia.
O que caracteriza o canto é o silêncio, a imobilidade, a segurança. Nessa
situação de quietude e aconchego, a alma fica aberta ao devaneio, e o canto se
torna um armário de lembrança. (Bachelard, 1989). Para justificar a afirmativa segue
o trecho abaixo:

Que desejava eu até ai?


Um caminho independente e asseado. Tinha-o; que ambicionara
mais?
A ventura, que anda sempre arredia dos que nasceram sob uma
estrela como a que me iluminou desde os primeiros passos
(ALMEIDA, 2007, p. 97-98).

Bachelard compara as palavras às casas para explicar o ofício da arte de


escrever poesia. Os andares da habitação correspondem aos níveis de interpretação
das palavras. Lê-se:

As palavras [...] são casinhas com porão e sótão. O sentido comum


reside no rés do chão, sempre pronto para o “comércio exterior”, no
mesmo nível de outrem, desse transeunte que nunca é um sonhador.
Subir a escada na casa da palavra é, de degrau em degrau, abstrair.
Descer ao porão é sonhar, é perder-se nos distantes corredores de
uma etimologia incerta, é procurar nas palavras tesouros
inencontráveis. Subir e descer nas próprias palavras é a vida do
poeta (BACHELARD, 1989, p. 155).

Bachelard (1989) afirma que, o exterior somente é entendido quando


transformado em interior, e não pensar dessa forma leva a generalizações
descabidas. Tudo é valor humano; o espaço não pode ser unicamente exterior, pois
é vivido, imaginado, recordado interiormente. O autor discute a existência de um
possível local onde o Ser reside. Analisa o interior e o exterior dessa possível
“morada” introduzindo a forma dicotômica e geométrica empregada pelos filósofos
(ser ou não-ser), mais intensamente pelos metafísicos que metaforicamente
espacializam o pensamento (espaço aberto ou fechado) e pela psicologia que
analisa detalhadamente as possibilidades ontológicas.
111

Para o referido autor tanto os filósofos quanto os metafísicos têm a


necessidade de fixar um Ser, de concretizá-lo, de igualar o ser do homem com o ser
do mundo determinando através dos advérbios de lugar: estar e aí. Ao refletir sobre
estas denominações adverbiais Bachelard deduz que fechado no Ser a uma
necessidade de sair dele e fora dele é preciso voltar. Como em um circuito, em um
retorno, ou melhor, como em uma espiral o Ser do homem nunca atingirá seu centro,
sempre será desfixado, sem espaço definido.
Na obra A Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida é possível analisar o Ser
que nunca atingirá seu centro porque sempre será desfixado e sem espaço definido.
Pois, o médico almeja continuar sua profissão em prol de ajudar o próximo sem fixar
no catolicismo, mas aceita tal submissão porque também almeja felicidade junto a
sua esposa. No decorrer da narrativa, o público leitor descobre que depois de grave
doença, o marido aceita levar uma corrente com a efígie de Nossa Senhora, ao
pescoço e a Silveirinha julga-o convertido, o que não é verdade, como ficamos
sabendo pelas palavras do marido que apenas quer paz no lar e as atenções da
mulher.
O exterior e o interior são ambos íntimos; estão sempre prontos a inverter-se,
a trocar sua hostilidade. Como nos apresenta a obra Memórias de Marta, a narrativa
mostra o relato de Marta, já adulta, sobre as lembranças de sua vida, seguindo uma
linha cronológica do tempo de sua existência e que podem ser resumidas assim: a
morte do pai; o empobrecimento; a mudança para um cortiço no Rio de Janeiro
Imperial; o intermitente labor de sua mãe, engomadeira, para conseguir sobreviver;
os estudos na escola pública e sua participação como adjunta de D. Aninha; sua
formatura como professora e uma sensível melhoria de vida para sair do cortiço
juntamente com sua mãe; a decepção do primeiro amor; o seu casamento
desprovido de afeto; e, por fim, a morte de sua mãe dias depois do seu matrimônio.
Bachelard apresenta A fenomenologia do redondo23, que na verdade está
diluída em todo o livro. As imagens circulares concentram, centralizam a vida, dão
unidade, em oposição às pontiagudas que ferem, afastam. Assim as imagens que

23
Como as imagens são variacionais, Bachelard delimita sua investigação ao exame das imagens
simples, as imagens do espaço feliz (topofilia), determinando os valores humanos dos espaços de
proteção (casa). Assim, a imagem poética do espaço segue uma linha que começa com a poética da
casa, enquanto instrumento de proteção para a alma humana, partindo para os valores da casa dos
homens (cabanas) e das coisas (gavetas, armários e cofres), dos ninhos e conchas, dos cantos, até
chegar aos espaços da imensidão e da miniatura, do aberto e fechado, e , por fim, ao valor ontológico
das imagens e da fenomenologia do redondo.
112

trazem segurança, aconchego, são todas redondas. Como é possível perceber na


obra A Família Medeiros, intrigas e questões politicas que no final culmina com o fim
da escravidão e a transição de um Brasil monarca para um Brasil Republicano,
como segue o trecho abaixo:

Tudo ali era risonho e prometedor; em tudo um ar de modernismo e


de asseio, uma brancura lavada nas casas, abundancia de frutas no
pomar, de flores no jardim, conforto na habitação, e os cafezais
lindamente tratados (ALMEIDA, 1919, p. 328).

Memórias de Marta (2007), A Família Medeiros (1919) e A Silveirinha (1997),


de Júlia Lopes de Almeida apresentam ao público leitor uma casa ficcional com suas
imaginações e devaneios mostrados pelas figuras femininas que no seu aconchego
do lar pretendem conseguir uma casa melhor, planejar e contribuir para instauração
do catolicismo como fonte máxima da fé, e ainda, almejar por um país de igualdade
racial e modernismo. Todos esses eventos apresentados na narrativa ficcional de
cada obra pode ser relacionado ao que Bachelard denominou de Fenomenologia do
redondo.
De acordo com Miranda (2013), em um contexto de deslocamentos e
mobilidades diversas, a ligação entre identidades fluídas e relacionais e espaços
igualmente dinâmicos sinaliza uma tensão entre elementos individuais e subjetivos e
aspectos coletivos.
Esse espaço, simultaneamente geográfico e discursivo, só pode ser
compreendido como campo instável de lutas, tanto políticas quanto conceituais.
Assim, importa saber como as representações literárias de mulheres nas cidades
rompem ou fundamentam a opressão patriarcal, com a ressalva que essas
tendências não se excluem mutuamente e pode coexistir na mesma obra.
Diante disso, algumas narrativas que participam da constituição do espaço
podem ser buscadas na literatura. Assim, a narrativa de autoria feminina, em obras
que significativamente problematizam a relação de suas protagonistas com os
espaços urbanos e rurais, contribui para a desconstrução da opressão patriarcal e
para uma reconceituação mais atualizada e política de espaço.
113

Júlia Lopes de Almeida através de suas obras, aparentemente mostra ao


público leitor a relação entre gênero e espaço e suscita o questionamento do espaço
em suas particularidades sociais, literárias e discursivas em diversas áreas do saber.

4.3. Consonâncias e dissonâncias nos perfis femininos em Memórias de Marta,


A Família Medeiros e A Silveirinha

Uma das mais produtivas linhas de pesquisa desde sua implementação nos
anos de 1980 é a linha que se ocupa da recuperação da produção literária de autoria
de mulheres no século XIX. O descobrimento de um acervo significativo de obras
esquecidas em bibliotecas públicas e particulares tem levantado uma série de
questões pertinentes sobre os mecanismos de controle da instituição literária e,
particularmente, sobre a violência simbólica do sistema de representações
processada pela narrativa das histórias da literatura que manteve e mantêm a
invisibilidade dessa produção, como se a autoria feminina não tivesse existido antes
de Rachel de Queiroz e Cecília Meireles. Quando muito, depara-se com um ou outro
nome24.
A reconstrução da autoria feminina como objeto de pesquisa e de
especulação teórica tem levantado hipóteses sobre as razões de sua exclusão, entre
elas a força do discurso crítico, responsável, em última análise, pelo
estabelecimento de quadros de referência – critérios de valor e pressupostos
interpretativos – que regulam, até mesmo de forma subliminar, as condições de
recepção e de circulação de obras e, assim, definem quais são as obras que
merecem ser distinguidas como representativas da singularidade discursiva e
simbólica da cultura nacional. (SCHMIDT, 2008)
No ensaio Um romance de vida fluminense, da obra Estudos de literatura
brasileira, publicado em 1910, o crítico José Veríssimo assim se pronuncia com
relação à escritora Júlia Lopes de Almeida:
Não podemos afirmar se têm razão os que declaram que Júlia
Lopes de Almeida foi nossa George Sand. Parece-nos mesmo, que
não há motivos para, nesse terreno, se fazer comparações e traçar
paralelos. Júlia Lopes de Almeida dispunha de personalidade
própria, virtude que se evidencia principalmente em seus contos e
novelas curtas. Sua obra reflete com brilho e colorido uma época da
vida da burguesia rica do Brasil, sem preocupação de crítica social,

24
Veríssimo, “Um romance de vida fluminense”, p. 149.
114

é verdade, mas com profundo sentimento e compreensão de


nossos costumes, preconceitos e falhas. Por vários motivos, pois,
Júlia Lopes de Almeida é uma das principais figuras femininas da
literatura brasileira (VERÍSSIMO, 1977. p, 149).

Nesse sentido, muito embora essa afirmação traduza certa ambivalência quanto
ao sentido de “crítica social”, o juízo de valor emitido registra claramente uma
avaliação positiva quanto à inscrição da referida escritora no cânone da literatura
brasileira. Por essa razão, tanto mais incompreensível quanto menos justificável é a
omissão de qualquer referência à Júlia Lopes de Almeida na História da literatura
brasileira, de 1916, uma das obras fundadoras da historiografia literária e da
moderna tradição crítica brasileira. Tal omissão não passaria de mero lapso de
esquecimento se não se revestisse de um caráter paradigmático no que diz respeito
ao silêncio em torno da produção de autoria feminina do século XIX nas mais
importantes obras de cunho historiográfico e crítico da literatura nacional, obras que
tiveram um papel fundamental na constituição de um cânone prestigiado com o
estatuto de “literatura brasileira” que fixou as fronteiras de um campo de identidade e
valor concebido como parte substancial da memória cultural da nação. (SCHMIDT,
2008).
Para a referida autora, os estudos sobre obras de autoria feminina alteram
percepções do passado e desestabilizam a configuração dessa identidade,
integrando-se a um movimento que Hugo Achugar caracteriza como “fundacional” no
sentido de que, através da pesquisa, o passado é reconstruído post-facto por
gerações do presente através da localização no passado, do “momento que talvez
não tivesse o significado que o presente lhe atribui, inventando desse modo o
25
começo da memória” . Esse movimento, que nada tem a ver com a retomada da
razão historicista no sentido de estabelecer uma narrativa de origens e finalidade,
impulsiona as reflexões sobre processos de constituição dos cânones nacionais
como lugares autorizados e privilegiados de projeções imaginárias da identidade que
sustentam as representações simbólicas da nacionalidade, reflexões que
inevitavelmente levam a considerar a história literária enquanto um dos marcos
referenciais da memória nacional já que constitui uma narrativa que pretende
descrever o passado literário.

25
Achugar, “A escritura da história ou a propósito das fundações da nação”, p. 47.
115

De acordo com Schmidt (2008), do ponto de vista histórico, a construção da


nação moderna, pressuposta nos ideais burgueses do progresso e civilização a
partir da integração nacional das diferenças sociais e culturais sob o signo do
pluribus unum, metáfora do sujeito unitário e universal da nacionalidade, articula-se
via um repertório de significados convenientes e desejáveis, formalizados em um
pacto narrativo de consenso, por meio do qual a história normaliza e regulariza os
acontecimentos, fazendo com que a memória coletiva se configure tanto como
lembrança quanto como esquecimento26.
Nela, certos significados são lembrados e reafirmados e outros são silenciados e
necessariamente excluídos. É nesse sentido que a história literária passa a constituir
uma referência dos nexos da nacionalidade, pois seu modelo cristaliza o que se
poderia chamar de narrativização da memória nos moldes de uma formação
discursiva homogênea e uniformizadora que funciona como um elemento de
interpelação através da qual a identidade horizontal do sujeito nacional é construída
e protegida dos embates suscitados pela diferença e pela alteridade, ou seja, pelas
forças do excluído e do subtraído. (SCHMIDT, 2008).
Segundo Antônia Pereira Bezerra (2010), a memória é construção do passado,
naturalmente, mas ela é, ainda construção do presente. Ela é o que permite melhor
habitar o presente, estar no presente do passado. Júlia Lopes de Almeida através de
suas narrativas apresenta ao público leitor a força da palavra e mostra as suas
leitoras que é preciso mudar, a mulher do século XIX precisava deixar de ser objeto
para tornar-se sujeito ativo de um país em construção.
Para a referida autora, na medida em que se entende que os sentidos das
representações geradas por essa memória, em forma de arquivo-escritura, revelam
uma relação de cumplicidade entre aquilo que pode ser dito e lembrado e posições
de autoridade investidas de alto poder regulatório na gestão social e simbólica das
diferenças, a história literária e as formações canônicas emergem como lugares

26
Evoca-se aqui para explicar a concepção clássica de Ernest Renan quando esse afirma que o
esquecimento é fator crucial na concepção da nação e que a unidade é sempre conseguida pela
violência. Em seu What is a nation? [O que é uma nação?], afirma: “the essence of a nation is that all
individuals have many things in common, and also that they have forgotten many things” [a essência
de uma nação é que todos os indivíduos têm muitas coisas em comum, e também que eles
esqueceram muitas coisas]. Apud: Bhabha, Homi K. Nation and narration, p. 11. Ver também o texto
de Halbwachs, Maurice. La mémoire collective. A proposição de que a história literária cristaliza uma
modalidade de memória coletiva, em sintonia com a história oficial, se distancia do conceito de
memória coletiva apresentada por Halbwachs, cujas características básicas seriam a instabilidade e a
impermanência. (SCHMIDT, 2008).
116

histórico-político-discursivos, por excelência, do privilégio de um sujeito enunciador


e, consequentemente, da produção textual de subjetividades hegemônicas.
É no contexto da manutenção desses lugares que se compreende a força do
argumento de que a invasão bárbara dos excluídos está deformando ou debilitando
o campo literário em seus valores. Pois, sabe-se o quanto a memória é operadora
de identidade. SCHMIDT (2008).
De acordo com a autora, no momento em que a reflexão histórica remexe os
dados estáticos e cumulativos da sua narrativa, abrindo-a para a diferença, a
memória deixa de ser retrospectiva para ser prospectiva, em movimento para o
futuro e, por isso mesmo, uma projeção de antigas esperanças. A questão da autoria
feminina do século XIX é, sem dúvida, uma questão de memória social/cultural
pertinente para a discussão sobre pertença ou nacionalidade, por isso constitui
pedra de toque para a revisão e reinterpretação do passado nacional.
Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti (2001) tentar perceber, neste sentido, que a
bandeira levantada por Júlia Lopes de Almeida é a urdidura de um tempo, os
umbrais de um local de memória onde a mulher se insere como autora de um elenco
de obras destinadas ao público mais eclético, apesar de restrito somente às classes
mais privilegiadas da sociedade brasileira. Júlia Lopes de Almeida parece
descortinar através da palavra, os atos, a inserção feminina nas experiências
cotidianas da passagem do século XIX para o XX, em toda sua complexidade nas
obras Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha.
Segundo a referida autora, nesse contexto, a ação feminina não passa por
uma práxis com referencial a meios ou a fins. Ela se legitima na tradição, na
perpetuação de valores e de crenças firmemente estatuídos via Igreja católica e
referendados por um Estado que ainda não se configurava totalmente independente
dos dogmas cristãos. Dentre os papéis femininos cabia à mulher ser provedora do
núcleo fundamental da vida feminina: a família, tornando-se a formadora de
cidadãos e de cristãos, a guardiã dos princípios e das regras estabelecidas. Essa
visão modelar da mulher é, nas últimas décadas, objeto de investigações e críticas
por parte de diversos historiadores.
No que diz respeito à literatura, permitida para as moças, ao invés de
proporcionar um alargamento dos horizontes das enfants de Sion, era utilizada como
elemento normatizador e disciplinador, na medida em que reforçava os padrões e
virtudes tidas como ideais para os padrões da Igreja Católica. A postura do Vaticano
117

quanto à mulher era bastante pragmática: ela deveria ser. Esse “dever ser” erguia-se
como um muro em relação ao resto do mundo do qual a mulher deveria ser
protegida, guardada. Seus papéis seriam definidos a partir do ideal de maternidade,
a Virgem Maria como paradigma do ser esposa e mãe, sustentáculo da ordem
doméstica e familiar; núcleo central da sociedade civilizada e católica.
(CAVALCANTI, 2001)
-Já me disseram. Contaram-me até que, por saber disso, a
Silveirinha, ao ser chamada pelo pai à sala para responder ao
pedido do noivo, se apresentou com todas as insígnias religiosas
que pôde arranjar na ocasião: fita ao pescoço, de Filha de Maria; no
peito todas as medalhas de santos e santas da corte celeste; e,
pendente das mãos, um grande rosário de contas grossas como
arçás (ALMEIDA, 1997, p. 23).

No trecho citado é possível perceber uma figura feminina que aparentemente


tem um fanatismo religioso presente inclusive no seu modo de se vestir e de se
apresentar a sociedade. Assim, para Cavalcanti (2001), qualquer incursão da mulher
por outros terrenos que não os permitidos era vista como quebra dos padrões
morais e normativos, punida muitas vezes com a execração moral e religiosa. Por
isso, os diversos manuais de boa conduta, os Índex de obras proibidas, uma vez que
“no século XIX, dizia-se que as mulheres poderiam ser mal influenciadas por um
livro... Livros que atacavam ou pareciam atacar o lugar da mulher na sociedade,
eram vistos como perigosos” 27.
Segundo Cavalcanti (2001) Júlia Lopes de Almeida assumiu em sua vida
particular e em toda a sua obra, a premissa de que a mulher deve ser instruída para
poder desempenhar sua função social, em especial, no que se refere à educação
primeira dos filhos. Sua luta constante foi contra a ideia de uma mulher reclusa e
ociosa, voltada só para as tarefas domésticas, sombra do sujeito que poderia e
deveria ser.
Juntamente com outras mulheres, com destaque a diretora Presciliana Duarte
de Almeida, colaborou em, A Mensageira28, elaborando artigos combatendo a
postura veiculada à época da mulher “ornamento”, “rainha do lar”. Propôs, em
contrapartida, uma atitude combativa, prestativa que ela se apresentasse para
ajudar na construção de um país desenvolvido e civilizado. (CAVALCANTI, 2001).

27
WELTER, Bárbara. The Cult of True womenhood: 1820/1860. In: GORDON, Michael. American
family in social-historical perspective. New York, Saint Martin Press, 1973, p. 16.
28
A Mensageira: Revista Literária dedicada à mulher brazileira. 1897 a 1900.
118

Em um de seus artigos exaltava os ideais feministas, utilizando-se até de


certo ar jocoso para traçar a imagem imposta à mulher:

Dizem que somos débeis (e chegam a convencer-nos) porque


somos franzinas, ou porque somos pállidas, ou porque somos
tristes! Não se lembram de que tudo isso é effeito de uma educação
mal feita, - contra a qual devemos reagir a bem de nossos filhos -,
passada no interior da casa, sem exercício, sem convivência, sem
jogos, sem despreoccupações de preconceitos, sem estudo bem
ordenado, sem viagens, sem variedade, sem alegria enfim!(
ALMEIDA, A Mensageira, 1899. p. 213).

Para Cavalcanti (2001) a luta pela instrução estava ligada ao conhecimento


prático, e ainda, o engajamento da mulher em um universo produtivo e formador da
nacionalidade brasileira, em alguns casos, descartando alguns comportamentos de
caráter tradicionais que revelavam a ociosidade, a inferioridade e, principalmente, o
despreparo para a vida. Na obra Memórias de Marta é possível perceber esse ideal
contradizendo a ociosidade presente nas mulheres da época.
Assim cheguei a idade de dezoito anos, passando o melhor tempo
a estudar para ensinar, ou curvada sobre a costura, ao lado de
minha mãe, que enfraquecia muito e trabalhava sempre, a
engomar, a engomar...Envelhecia depressa mas não se queixava
nunca; nem mesmo quando lhe repudiavam o trabalho obrigando-a
fazê-lo de novo. Desculpava as impertinências dos outros
compreendendo que a culpa fora sua, não por menos caso, mas já
por má vista e cansaço.... (ALMEIDA, 2007, p. 99).

O trecho acima apresenta confluências e dissonâncias na narrativa


almeidiana porque de um lado mostra ao público leitor uma figura feminina que tem
como prazer estudar para futuramente ser uma docente. E do outro lado, há sua
mãe, que representa a mulher vista como um ser menosprezível e que tinha como
ocupação um trabalho árduo de engomadeira, esse não era sempre reconhecido
pelo seu público, principalmente, quando não era bem exercido porque a realidade
social a via como um objeto que deveria exercer sua função, no caso, doméstica,
sempre com perfeição.
Outro traço que perpassa a obra de Júlia é um nacionalismo crescente e
acentuado que a levava a pensar em um Brasil como sendo nação, independente
culturalmente dos padrões europeus, postura que a impulsionava a criticar, e a
defender a República como nos apresenta na obra A Família Medeiros:
119

Como o partido republicano tivesse feito uma bonita entrada nas


urnas, o passageiro liberal escondia o seu despeito num desespero
ativo e afectada condescendência, que mais fazia exasperar o
outro. Cada vez que o republicano exclamava jubiloso (MEDEIROS,
1919, p. 230).

O trecho citado acima apresenta ao leitor, de um lado o favoritismo pela


introjeção da República, bem como a negação do fim da monarquia. Assim, é
possível analisar um discurso narrativo com presença de consonâncias e
dissonâncias, no caso, tão somente, e não apenas, nesse trecho do romance.
Embora vivendo em um período de rupturas e de transformações sociais,
explicitando seu nacionalismo em relação a certos temas, ao cotejar a Monarquia
com a República, e optar por esta última, Júlia Lopes de Almeida aparentemente
transplantou para a República brasileira uma provável solução necessária para um
país que se formava, em um sincretismo de ideologias. (CAVALCANTI, 2001)
Para Cavalcanti, não se deve perder de vista as raízes do discurso de Júlia
Lopes de Almeida, sua inserção na estrutura sociocultural, o que possibilita decifrar
as tensões existentes no âmago de sua vasta produção literária, explicitadas na
relação dialógica existente entre ela (autora) e ela (personagem do seu próprio
momento histórico).

“Eva é um anjo!”, dissera ela e ele compreendia-a depois de ter


presenciado aquela scena. Só os anjos arrostam com a má vontade
dos poderosos a favor dos fracos e dos oprimidos; só os anjos
suportam injurias com humildade quando a causa que advogam é a
dos desgraçados (ALMEIDA, 1919, p. 20).

O trecho supracitado apresenta Eva, figura feminina considerada anjo porque


advogava pelos fracos e oprimidos. É possível notar neste perfil feminino do século
XIX um rompimento dos padrões sociais, como por exemplo, os “de boa moça” e de
ornamento, ou seja, Eva não se encaixa na descrição de uma mulher objeto, mas de
uma mulher com ideologias e convicções pelas quais lutava, no caso, a favor dos
fracos e que são vítimas de opressão.
Nesse sentido, segundo Cavalcanti (2001), de acordo com o pensamento de
Mikhail Bakhtin, para quem a escrita literária é um campo de energia determinado
pela luta constante entre as forças centrípetas que esquecendo-se da história
resistem em mover-se, buscam a morte para manter a junção dos fatos, sempre
idênticos e unidos; e as forças centrífugas que anseiam pelo movimento, pelo futuro,
120

pelo fazer-se histórico, pela mudança e que asseguram a constante mutação dos
fatos.
Esta tensão entre o estável e o em movimento, entre o passado modelar e o
futuro como incógnita está presente na obra de Júlia Lopes de Almeida. Ao mesmo
tempo em que reforça alguns padrões adstritos à mulher como: bondade honra e
delicadeza, firmemente vinculados às construções católicas sobre o feminino,
propõe outros qualificativos, como por exemplo: inteligente, forte, combativa, entre
outros, vislumbrando já, no final do século XIX e início do XX, os novos papéis
sociais que a mulher chamaria para si. (CAVALCANTI, 2001).

- Escuta Jordão; eu fiz uma promessa a Nossa Senhora...mas é


preciso que me ajudes a cumpri-la... não me digas que não, pelo
amor de Deus!
- Oh, filha, e isso não será cousa muito difícil?....perguntou ele
sorrindo.
- Não...bastará consentires em andar com uma medalhinha benta
ao pescoço...muito pequena.
- E sentirás, só com isso, algum prazer?
- Oh! Um prazer infinito (ALMEIDA, 1997, p. 298-299).

A citação acima apresenta uma figura feminina com um aparente fanatismo


religioso. Ela é casada com um ateu e faz de tudo para convertê-lo. Eva fica
conformada se o marido usar apenas uma medalhinha de Nossa Senhora, pois
assim, é como se o homem tivesse aceitado o catolicismo representado naquela
medalhinha pendurada na sua roupa.
Segundo Cavalcanti (2001), descobrir a presença da voz feminina na literatura
brasileira, significa registrar a historicidade de um modo de ser que emerge no final
do século XIX e nas primeiras décadas do XX, inserida no contexto da urbanização
e no complexo emaranhado de suas contradições. Significa também à tentativa de
articular formas desordenadas, reanimar algumas de suas expressões mais
relevantes.
Para a referida autora, Júlia Lopes de Almeida foi uma mulher de elite, ela
desempenhou um papel na educação e na instrução informal de diversas gerações
de brasileiras, abrindo espaços de debates sobre as práticas e os fazeres femininos
na passagem do século XIX para o XX. Significou, acima de tudo, um ouvir dos
121

diferentes tons que a voz dessa autora assume ao se elevar ou ao se calar, às


vezes desproporcionalmente alta, às vezes tão secreta e em surdina que mal se
pode ouvi-la; na ardilosa e íntima tomada de posição em um espaço até então
interdito e ignorado. Espaço esse dominado pelo homem, que se dizia e diz sujeito
onipotente da história.

4.3.1 As vozes dissonantes na obra Memórias de Marta

Segundo Júlia Lopes de Almeida, Morrer não é acabar para os que deixam
na terra um pensamento29. A afirmação contida na epígrafe, retirada de uma
caderneta de anotações pessoais da publicista concretizou-se nos diversos gêneros
que praticou durante os cinquenta e três anos em que fez da pena literária
instrumento de realização e fonte de renda. Norma Telles (2007), em um dos
trabalhos pioneiros na área do resgate das obras de autoria feminina de nosso
passado, assim se expressou sobre aquelas que foram precursoras nessa área: À
mulher é negada a autonomia, a subjetividade necessária à criação. O que lhe cabe
é a encarnação mítica dos extremos da alteridade, do misterioso e intransigente
outro. É musa ou criatura, nunca criadora (1987). Ter subvertido a situação exposta
na sentença final da epígrafe, ou seja, tornar-se criadora, foi um projeto levado a
termo, plenamente, por Júlia Lopes de Almeida justamente em uma época em que
ser “das letras” era prerrogativa exclusiva dos homens SALOMONI (2007).
Salomoni (2007) mostra que a produção romanesca desta publicista carioca é
apontada pela crítica como portadora de características que a colocam no rol
Real/naturalista embora, em algumas obras, com acentuado subjetivismo romântico.
O Realismo e o Naturalismo foram as duas escolas literárias de domínio narrativo no
fim do século XIX e início do século XX. Sua contrapartida na poesia é chamada de
Parnasianismo. Apesar de se parecerem, o Realismo e o Naturalismo têm
diferenças, o Naturalismo é marcado principalmente pelo determinismo, a ideia de
que a natureza define o destino dos personagens. Essa parece ser a tônica geral, no
entanto, no mesmo período de vigência dessas escolas literárias que proclamavam
o domínio do objetivo sobre o subjetivo, a introspecção domina o mundo ficcional e

29
Estas cadernetas pertencem ao espólio da família e se encontram com o neto da escritora, Cláudio
Lopes de Almeida.
122

cada vez mais a forma romanesca é solicitada a acompanhar esta aventura de um


discurso interior30.
É nessa linha introspectiva, para Salomoni (2007), que privilegia a forma
autobiográfica ou de memórias na qual se insere a primeira “narrativa” (classificação
da própria autora) - Memórias de Marta, escrita por ela entre os anos de 1885-1886,
obra ignorada ou não registrada pelos poucos críticos ou historiadores que
assinalaram sua produção nos manuais literários de seu tempo e por muitos que
sobre ela fizeram pesquisas ou escreveram artigos e trabalhos nas últimas décadas.
A omissão, em alguns casos, talvez tenha ocorrido em razão da dificuldade de se
localizarem exemplares desse romance. Somente após muitas pesquisas, um pouco
de sorte e o empenho daquelas estudiosas preocupadas com o resgate da produção
de autoria feminina referente ao século XIX e às décadas iniciais do XX, foi que
algumas edições passaram a ser encontradas, lidas, analisadas.
O esclarecimento sobre o número de edições, no entanto, é facilitado por três
índices: o primeiro, uma nota manuscrita deixada pela ficcionista e anexada a um
exemplar em poder de seus herdeiros; o segundo, a localização de um volume com
data de 1899 e o terceiro, outra edição, sem data, mas publicada pela Truchy-Leroy,
na qual a autora anexou um depoimento de próprio punho em que afirma: Este foi o
meu primeiro ensaio de romance. Feito em solteira, sob a impressão de certas
aberrações infantis, ele só foi publicado depois de um ano de casada.
Para Salomoni (2007) ao se reportar para a biografia resumida que acompanha
esta reedição, Memórias de Marta (2007), é possível observar que a data do
casamento é 28 de novembro de 1887, o que permite fixar a primeira aparição do
texto em 1888.
Nesse sentido, confirmando esta nota tem-se a publicação do romance, em
capítulos, na seção “Folhetim”, da Tribuna Liberal do Rio de Janeiro, a partir de 03
de dezembro de 1888 até 18 de janeiro de 1889. Nessa data, o articulista anunciava:
Com este título, que é dos que dão mais do que prometem, escreveu a Exma. Sra.
D. Júlia Lopes de Almeida uma extensa novela, em que uma mulher infeliz conta as
suas memórias (...). Por alguns dados encontrados na correspondência pessoal da
romancista, é possível saber que ela a enviou diretamente para o jornal, assim, a
primeira edição seria o volume de 1899, editado pela Casa Durski de Sorocaba que,

30
BRAYNER, Sonia. Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira - INL,
1979.
123

além deste romance, contém mais três títulos tipo de pequenos contos, intitulados
Nhá Tudinha, Prólogo de um romance e L’embarras du Chois. Ele foi saudado em
um artigo de jornal, Chrônica literária, assinado por J. dos Santos, publicado no
jornal A notícia, do Rio de Janeiro, com data de 11 de julho de 1899, que assim
começa: As Memórias de Martha, que acaba de publicar, a autora não chamou de
romance; chamou apenas de narrativa.
De acordo com Salomoni (2007), a história nos é referida como se a
protagonista tivesse a palavra. Em relação à terceira edição, da Livraria Francesa e
Estrangeira Truchy-Leroy - Paris, sem data e erroneamente considerada, algumas
vezes, como sendo de 1899, certifica-se do equívoco através de dois índices.
Primeiramente, olhando a lista de obras publicadas pela autora, constante na
segunda folha. Lá está assinalada a edição da conferência Brasil, apresentada pela
prosadora em 1922, em Buenos Aires, o que nos permite datar essa publicação
pelos idos da segunda década do século XX.
Em segundo lugar, as declarações da própria escritora e da filha Margarida em
cartas trocadas quando Júlia retorna ao Brasil após o intervalo de tempo vivido em
Paris, 1925-1931, nas quais a escritora aproveitou para reescrever algumas de suas
produções. Nessas missivas, em poder do neto da prosadora, Margarida afirma
estar embarcando e trazendo 1000 exemplares das “Memórias”. Assim há, pelo
menos até o estágio atual das pesquisas, três edições das Memórias de Marta
materializadas em papel, incluindo-se a de jornal, e que ao serem cotejadas entre si
acabam por revelar diferenças, uma reescrita feita de pequenos detalhes, episódios
modificados, sequências interrompidas que, no entanto, não alteram a história
original (SALOMONI, 2007).
Para a referida autora são três inícios diferentes, além de alguns parágrafos
finais omitidos nas duas últimas reedições, que operam na obra alterações de
significado, dão-lhe novo sabor, mas que de forma alguma desmerecem o texto
original. As mudanças representam, talvez, um amadurecimento. Júlia Lopes de
Almeida tinha somente vinte e quatro anos quando publicou esta obra pela primeira
vez. É aceitável, portanto, que após dez anos e muitas experiências de vida sua
visão de mundo tenha se alterado, levando-a a modificar alguns aspectos do texto
original. Afinal, ela não seria a única nem a primeira.
Memórias de Marta traz o passado sob a ótica subjetiva de quem o viveu e
retoma-o no presente através da escrita. Ela é sucessora das Memórias Póstumas
124

de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908) e contemporânea de O


Ateneu (1888), de Raul Pompéia (1863-1895). Não tem o sarcasmo da primeira,
mas aproxima-se da melancolia da segunda sendo, entretanto, narrada por uma voz
feminina em oposição às duas primeiras. (SALOMONI, 2007).
Para Salomoni, assim como o livro de Pompéia, o da ficcionista também
apresenta um objetivismo bem característico do realismo-naturalismo, tal como é
observável na ficção brasileira na década de 80/90; tanto quanto uma acentuada
notação subjetiva, marcando com a presença insistente de um EU lírico ou crítico as
construções de seu imaginário (BRYNER,1979), com a predominância deste último.
Nesse sentido, como outras obras do período, Salomoni (2007) afirma que
esse romance também sofrera influência das teorias deterministas do meio, da raça
e do momento com uma tendência à morbidez de cenas de morte não se
configurando, no entanto, como um romance de tese ao estilo Zola, pois a fatalidade
naturalista será vencida pela ideologia almeidiana de recuperação da vida através
do trabalho. Assim, esse relato subjetivo, calcado nas lembranças de Marta-adulta
que relembra sua sofrida trajetória e a busca de melhores condições de vida para
ela e para sua mãe, configura-se uma busca, não do tempo perdido, mas da
felicidade, do carinho, dos sonhos que nunca se realizarão e da aceitação de uma
vida sem amor, riqueza ou luxo.

O Maneco definhava. A mãe levara-o ao médico a queixar-se: o


pequeno não comia...não dormia, e entrava a emagrecer de uma
maneira espantosa. O médico depois de um rápido exame declarou
o doente incurável. Aquilo era o efeito do vicio, já não valia a pena
dar-lhe remédios; que o deixasse beber à vontade: a morte não
tardaria....(ALMEIDA, 2007, p. 74)

A citação acima apresenta a realidade do cortiço onde viviam as Martas, bem


como a luta de uma mãe contra o alcoolismo do seu filho pequeno. Tal criança já
considerada alcoólatra, e ainda, condenada a morte. Assim, é possível perceber a
realidade ficcionalizada da época, crianças vitimas de um vicio, no caso, a bebida, e
de uma mãe, que nada podia fazer a não ser deixar o filho ainda criança beber até
definhar.
A maior parte da trama desenvolve-se dentro de um cortiço, na Rua de São
Cristóvão, tendo como cenário principal o Rio de Janeiro, capital do Império, espaço
muito específico de um determinado período da história e do registro de nossos
125

romancistas. Dentre eles, José de Alencar, Machado de Assis, Carmem Dolores e


Raul Pompéia. Se em O Ateneu o colégio-internato retratado por este último
guardava estreita relação com o Colégio Abílio, onde o escritor estudara, em
Memórias de Marta também se podem estabelecer relações entre o ambiente
ficcionalizado e a experiência de vida da escritora carioca, nascida e criada no
ambiente do Colégio de Humanidades, também no Rio de Janeiro, pertencente ao
seu pai e onde tivera a irmã Adelina como mestra. Havendo inclusive uma harmonia
entre o nome da personagem e o da adjunta que trabalhava no colégio dirigido pelo
Dr.Valentim. É reminiscência do espaço real na recriação do ficcional, do qual a
escrita de Júlia Lopes de Almeida não se exime e cujo traço se fortifica através das
palavras da própria ficcionista na nota manuscrita:

A adjunta Marta não será por ventura a mesma pobre D. Marta que
ajudou minha irmã Adelina a ensinar-me as primeiras letras? Creio
bem que sim. As cenas brutas do livro, o pequeno alcoólico, foram
pressentidas através do muro que dividia o meu colégio de um
movimentado cortiço de S. Cristóvão. Aquele ambiente inspirou à
minha sensibilidade de menina muita melancolia [...]

Dada a ótica diferenciada apresentada neste romance, resultante da visão de


uma escritora sobre um cortiço do Rio de Janeiro dos finais do século XIX, onde,
como assinala Norma Telles, os pobres não são chamados de “gentalha” e não são
resultado de hereditariedade, mas vítimas de um mundo desigual, a data da primeira
publicação deste romance, 1888, confere-lhe uma posição pioneira e decisiva dentro
da historiografia literária brasileira, pois ele é cronologicamente anterior ao romance
O cortiço, de Aluísio Azevedo, publicado em 1890 e considerado como o primeiro
romance brasileiro a centrar seu enredo em um cortiço. (SALOMONI, 2007).

A atrevida familiaridade destas aves trazia-as a enfileirarem-se


sobre o muro baixo do Cortiço e a se servirem para seu poleiro
habitual de uma árvore seca e esgalhada que havia ao fundo no
pátio das tinas, onde se juntavam as lavadeiras. Aquela árvore sem
ramagem, coberta de asas negras, fazia-me pensar nas histórias de
bruxedo da preta velha da rua Sta. Ana (ALMEIDA, 2007, p. 47)

O trecho acima mencionado apresenta a descrição de um lugar feio, Marta faz


uma narração do seu passado apresentando um Cortiço como um lugar sombrio e
de lembranças ruins. Assim, pode-se analisar que a sua infância, aparentemente,
126

não foi uma infância feliz, tão pouco o lugar onde habitava quando criança era bonito
e alegre.
Para sobreviver, Marta-mãe passava roupa a ferro para fora desde a
manhã até a noite e a filha relata o reflexo da mudança na criança retirada de um lar
saudável para o espaço degradado: Enfraqueci, mirrei, encheu-me o pescoço de
caroços linfáticos (ALMEIDA, 2007, p.47). No cortiço, onde um matadouro nas
vizinhanças infeccionava o bairro enchendo-o ao mesmo tempo de mau cheiro,
insetos e urubus, a protagonista irá conviver com lavadeiras, mulatas e bêbadas,
com pretos quitandeiros, com o senhorio português, com operários galegos, com um
casal de rapazes tiroleses e com a família da ilhoa, portuguesa bruta, cujo filho
Maneco irá morrer de cirrose em razão das bebidas que lhe dá o vendeiro, só pelo
gosto de vê-lo cambalear bêbado. Nesse sentido, a preocupação e a denúncia
sobre a condição de vida das crianças, depois presentes na grande maioria de seus
livros, já marcam presença nessa obra de estreia. São páginas comovedoras,
testemunhas de que a ficcionista tinha uma consciência atilada das diferenças
sociais existentes na capital do Império no final do século XIX e da qual ela, junto à
temática do universo feminino, não poderia se eximir de retratar sob pena de falsear
a verdade. (SALOMONI, 2007).
Assim, Júlia Lopes de Almeida, mostra ao leitor que apesar das limitações e
graças à dedicação e aos cuidados da mãe, Marta cresce e, por insistência da mãe
de Lucinda, freguesa de Dona Marta, é matriculada na escola pública. A influência
do estudo na formação da pobre menina e a alteração que esse fator provocou no
destino da protagonista vêm assim ressaltadas: “Não esperavam nada de mim,
estudante medíocre e criança tímida, e foi com surpresa que as professoras me
viram responder a todas as perguntas com desembaraço e firmeza. Acordava em
meu peito outra alma, até então ignorada” (ALMEIDA, 2007, p. 30).
A escritora faz no texto uma campanha didática de valorização do estudo
atribuindo a este a capacidade de promover um crescimento interior, ao mesmo
tempo em que mostra ser este o caminho para que uma moça pobre, mas honesta,
possa sustentar a si e a algum familiar.
O apoio decisivo para a mudança virá através de uma representante da
comunidade de mulheres, a mestra D. Aninha: Eu era uma coisa. Foi ao seu impulso
que me tornei gente (ALMEIDA, 2007, p. 17). Com este suporte, apesar das
dificuldades financeiras e da descrença em si e em suas potencialidades, Marta
127

construirá um caminho diferente daquele trilhado por sua mãe, encontrando no


estudo, além de um meio de sobrevivência, o respeito da sociedade e certa posição
de destaque ao formar-se professora. No entanto, preocupada com sua morte, a
mãe insistirá com a filha para que através do casamento obtenha um respaldo
financeiro e moral e proteja-se das maledicências da sociedade. Marta-mãe repete
um refrão bem conhecido do discurso androcêntrico “– Ouve-me, filha: a reputação
da mulher é essencialmente melindrosa. Como o cristal puro, o mínimo sopro a
enturva” (ALMEIDA, 2007, p.143).
Contrariando as expectativas da mãe, da sociedade e de seus leitores, a
protagonista resiste à ideia de um casamento sem amor, ainda mais com um velho
freguês dessa, descrito como um homem de quarenta e tantos anos, muito sério e
bondoso. Nos pensamentos da jovem professora cruzam-se a vontade férrea de
defender sua autonomia - Não desejo casar-me [...] - Alcancei uma posição
independente: não precisarei do apoio de ninguém. (ALMEIDA, 2007, p.142) - e a
descrença de que pudesse “despertar o amor” em alguém: bem cedo neste país
ardente as mulheres ouvem dizer que as amam, e eu só aos vinte e quatro anos
despertava num coração cansado uma paixão sossegada e mansa (ALMEIDA,
2007, p.143).
Nesse sentido, assim, a ideologia burguesa que consagra a mulher ao
casamento e à procriação tem, neste momento do livro, um revés. Marta recusa-se,
num primeiro momento, ao casamento sem amor e, envolta pela comunidade de
mulheres, valoriza sua posição independente. Neste ponto, o romance atinge seu
ápice. Triunfa a apologia que a escritora faz ao trabalho feminino e à capacidade das
mulheres de superarem desafios. A rebeldia da protagonista chega a entusiasmar os
leitores. Todavia, ou por estar presa ao contexto patriarcal em que vivia ou em
virtude de precisar preservar uma imagem de escritora e senhora “bem comportada”,
ou ainda por acreditar na instituição do matrimônio, a ficcionista acomoda a situação
(SALOMONI, 2007).
A personagem, convencida da falta de atrativos físicos e desiludida por uma
experiência amorosa frustrada, finalmente concorda em se casar, embora a
narradora deixe bem claro que não se trata de uma decisão romântica, mas de uma
vingança pessoal.
Para Salomoni (2005), ela está ciente da importância que os do sexo masculino
dão à aparência física que, para ela, reduz-lhe as possibilidades de “viver” um
128

grande amor. Assim, embora a autora desconstrua o esquema romântico do


casamento por amor e reafirme uma visão, um posicionamento pessoal de crença
na capacidade de profissionalização das mulheres, estes sucumbem diante de certo
conformismo em relação às regras de convivência da sociedade. Parecem ser
contradições resultantes, talvez, como já fora enfatizada antes, da falta de
maturidade decorrente da pouca idade da escritora no momento em que escreve
seu romance de estreia (SALOMONI, 2007).

Foi o meu primeiro brado de desespero. Minha mãe estremeceu.


Só muitas horas depois pude ter calma para refletir, e refleti que o
meu casamento seria uma vingança para os ultrajes que a minha
imaginação de moça recebera sempre (ALMEIDA, 2007, p. 151).

O trecho acima apresenta uma figura feminina que decide casar e o casamento
não é por amor, mas por vingança. Tal vingança sucede por causa de sua
imaginação que desde moça pensava que poderia obter autonomia e independência
com seu trabalho como docente. São ideias contraditórias apresentadas pela autora,
mas que condizem com tempo cronológico a que foi escrito o romance, a própria
autora apesar de ser uma grande escritora era mãe de família e dava extremo valor
a essas duas qualidades. Júlia Lopes de Almeida deixava claro que suas
responsabilidades de esposa e mãe eram indissociáveis a sua prática de escritora,
ela conseguia administrar suas duas atividades de forma exemplar sem se descuidar
nem de uma ou outra (SAMANTHA SOUZA, 2011).
De acordo com a referida autora, a sociedade brasileira do final do século XIX
transcendia por um período de grandes mudanças, políticas e sociais. Nesse
período surgiam às ideias de progresso e civilização, e por conta disto é possível
observar a constituição de novos modelos a respeito da vida familiar e o universo
feminino de acordo com o momento que vivia. Diariamente novos modelos eram
criados, novas ideologias que indicavam uma mudança no comportamento,
principalmente calcadas nas ideias cientificistas que ocupara lugar de grande
destaque nas rodas intelectuais. Em seu romance Memórias de Marta, a autora
retrata algumas destas mudanças, principalmente com relação ao papel da mulher
dentro do ambiente familiar e também na sociedade.
129

Uma adjunta conversava intimamente com a mestra, em um tom


que me permitira ouvi-las sem indiscrição.
Falava de si, de sua vida passada, dando graças a Deus por ter um
emprego, cujo ordenado lhe consentia um certo conforto, evitando
que o irmão, única pessoa da família, a protegesse oferecendo-lhe
coisas, olhadas supérfluas pela cunhada, rapariga invejosa
(ALMEIDA, 2007, p. 72).

Na citação acima é possível observar essas mudanças no ambiente social.


São mulheres representadas na obra Memórias de Marta que trabalhavam e que
tinham orgulho de sua independência, e que ainda despertavam determinados
sentimentos, no caso, a inveja, por parte de outras mulheres. Ou seja, a mudança na
ordem patriarcal causa de certa forma um estranhamento porque já nasciam
mulheres que almejavam o rompimento com tal a ordem, de um lado. Do outro lado,
mulheres que ainda não haviam percebido a mudança e o progresso que se
inicializava nas relações de gênero.
A figura feminina Marta, de certa forma, rompeu com a ordem patriarcal, com a
qual as mulheres já haviam se conformado, e aparentemente estabeleceu o caos.
Pois, esta mulher representada na obra de Júlia Lopes de Almeida negligenciou a
importância da formalização do casamento, em prol, de autonomia e independência.
Ela resistira a ser uma mulher objeto para transcender para uma mulher sujeito. Ela
começava aparentemente em um novo espaço, tal espaço para outra forma de ser,
sentir e pensar a vida. Educação e trabalho eram suas prioridades.

4.3.2. A transfiguração do estereótipo feminino na obra A Família Medeiros

Júlia Lopes de Almeida tinha vinte e nove anos quando publicou esta
segunda narrativa longa. Na biografia escrita por Margarida há uma notação que diz
ter a prosadora redigido este romance ao mesmo tempo em que escrevia o anterior,
Memórias de Marta, entre 1885 e 1886. Certamente que a viagem empreendida com
os pais para Portugal, em princípios de 1887 e o seu casamento com Filinto,
ocorrido em novembro, em Lisboa, retardaram a publicação e obrigaram a uma
mudança no enredo, visto que quando o revela ao público, já é 1891 e a Abolição foi
decretada em 1888. Esse fator talvez tenha diminuído um pouco a ressonância do
130

tema31, não lhe prejudicando, no entanto, o valor histórico ou sua destinação como
texto de denúncia contra as atrocidades cometidas contra os negros. (SALOMONI,
2005).
Para a referida autora, tendo esse momento histórico como pano de fundo,
neste romance a escritora procurou fazer mais uma campanha silenciosa pela
“abolição” das diferenças de tratamento e de educação ministradas ao sexo
feminino. É no seio de uma típica família pertencente à aristocracia rural paulista que
a escritora vai focalizar o comportamento de seus componentes, permitindo que
valores antigos e modernos sejam confrontados.
Moreira (2002), afirma que no século XIX, o movimento de emancipação
feminina no Brasil foi muito perspicaz ao apropriar-se do discurso ideológico
dominante, que colocou a mulher em um pedestal, comparando-a a virgem Maria,
para que encarnasse o papel de mãe e de esposa perfeita, conforme determinava a
teoria positivista.
O positivismo defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma
de conhecimento verdadeiro. De acordo com os positivistas somente pode-se
afirmar que uma teoria é correta se ela foi comprovada através de métodos
científicos válidos. Os positivistas não consideram os conhecimentos ligados às
crenças, superstição ou qualquer outro que não possa ser comprovado
cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade depende exclusivamente dos
avanços científicos. A teoria positivista tornar-se-ia o poder espiritual da sociedade
moderna. Este tinha, agora, por função, governar e manter os princípios que deviam
presidir as diferentes relações sociais. Além disso, a ordem espiritual regulava e
transfigurava a hierarquia temporal do poder e da riqueza, devendo ser exercido
pelos filósofos e cientistas, substituindo os sacerdotes que o detinham no estado
teológico (COMTE, 1972).
Usando o discurso das elites para convencer e receber aprovação social, as
mulheres escritoras e combativas invadiram o espaço público e fizeram a revolução
dissimulada em favor próprio. Elas fundaram jornais, editaram numerosos artigos
literários e jornalísticos, insurgiram-se nos espaços públicos privilegiados do
masculino, e atraíram a atenção para as vozes femininas discordantes que

31
Segundo afirmou Lúcia Miguel Pereira (1950, p. 266), a primeira edição deste romance “se
consumiu em três meses”. Nadilza Moreira (2003, p. 76) registra uma segunda edição – pela Horácio
Belfort Sabino, 1894.
131

denunciavam o estado de submissão e pobreza intelectual e existencial a que


estavam destinadas as mulheres. (MOREIRA, 2002).
De acordo com a autora aludida, uma das mais significativas porta vozes desse
discurso feminino conciliatório e transvestido entre os segmentos do centro e da
margem, foi a carioca Júlia Lopes de Almeida: “Como pode uma mulher, criada entre
o piano e a valsa, ou quando muito entre o pudim e a agulha, agasalhar um
pensamento curioso de um filho, elucidá-lo...Banida do convívio espiritual do
homem, como pode a mulher bem educar o homem?”32 (Ano I, n0 1, p.4).
A Família Medeiros, de Júlia Lopes de Almeida, possui uma trama romanesca
que se passa no interior de São Paulo, na região da cidade de Campinas onde a
escritora e sua família habitaram por mais de quinze anos e onde o irmão possuía
uma grande fazenda. (SALOMONI, 2005).
De acordo com a referida autora, mesmo que se afirme ser a literatura
somente uma representação do real, ou o real possível, também é válido considerar
que espaços e personagens "imaginários” podem ser construídos sobre experiências
vividas na trama das relações sociais. Assim, não só o espaço, mas, também, a
atmosfera do período pré-abolicionista parecem ter motivado a jovem ficcionista.
Constitui-se essa ordenação do real em fato ficcional uma das recorrências da
escrita de autoria feminina, ou seja, o real vivenciado.
Com relação à forma, este romance vem distribuído em capítulos (quarenta e
dois) em números romanos. Não apresenta – palavras ao leitor – prólogo,
dedicatória, nenhum paratexto de autoria de Júlia Lopes, fator que se estende aos
demais romances da autora. Há, no entanto, nessa reedição (1919) uma Introdução
em que Alfredo de Souza33 explica o propósito da Empresa Nacional de Publicidade
e justifica a escolha do nome da prosadora para dar início à coleção Biblioteca
Brasília por tratar-se "de um nome aureolado nas belas letras [...] um patrimônio
nacional" (SALOMONI, 2005).
De acordo com a autora, o texto é construído pela voz de uma narradora, em
terceira pessoa, heterodiegética, que não participa da trama como personagem.
Embora predominem os trechos de narração, intercalada com longas descrições
sobre a região, sobre os domínios das fazendas, a narradora dissimula sua

32
A MENSAGEIRA:Revista Literária Dedicada à Mulher Brasileira, 1897-1900. São Paulo: Secretaria
de Estado e Cultura, v.1, 1987. 384p. (Edição fac-similar).
33
SOUZA, Alfredo. Introdução à reedição de A família Medeiros. Rio de Janeiro: Empreza Nacional
de Publicidade, 1919.
132

presença deixando que as próprias personagens intervenham, falem por si, através
da introdução de estruturas dialogadas.

O comboio estremecia ainda nas ultimas trepidações e já Octávio


Medeiros, sacudindo-se do pó, atirava pela janela para as mãos de
um carregador a sua maleta de viagem. Chegava enfim, á sua
cidade natal.
Mal desceu do vagão, olhou a roda á procura de uma cara amiga;
não reconhecendo nenhuma, recomendou ao carregador que lhe
guardasse a mala e saiu para a praça batida de sol (ALMEIDA,
1919, p. 1).

O trecho acima mencionado apresenta e comprova a narração em terceira


pessoa, a cena mostra a chegada de Octavio Medeiros à sua cidade natal. É
possível notar o narrador heterodiegético porque esse se mostra como uma entidade
exterior à história e tem uma função meramente narrativa, ou seja, relata os
acontecimentos.
Há certa frequência do discurso indireto livre, técnica recorrente nos textos de
Júlia Lopes de Almeida que deixa entrever um comprometimento das ideias da
autora postas na relação narradora-personagem, dando origem a um efeito de
sentido que se localiza entre a subjetividade da segunda e a objetividade da primeira
(SALOMONI, 2005).

Octavio não fora notado e observava com atenção a recém-


chegada.
Era uma mulher nova, esbelta, morena, de fartos cabelos negros,
rosto oval, olhos franjados por longas pestanas, feições regulares
sem serem belas, andar firme, cabeça erguida sem afectação.
Tinha a voz grave, a atitude serena. Vestía com simplicidade o seu
vestido de percale, escrupulosamente ajustado.
- Que temos? – indagou o tio.
- Venho pedir-lhe que perdôe ao Manuel Sabino; ele promete ser
obediente daqui por diante. Mande tirar-lhe os ferros, sim?
(ALMEIDA, 1919, p. 18-19).

A citação acima apresenta uma narradora que objetivamente mostra ao público


leitor a atenção que Octávio deu a figura feminina que entrou em cena. Enquanto,
que a mulher apresentada pela narradora tem uma descrição detalhada de suas
afeições. Quando a voz dessa se pronuncia no trecho retirado do texto romanesco, é
possível perceber uma mulher direta e objetiva nos seus propósitos, bem como uma
133

representação feminina que luta por seus ideais, no caso, a soltura de um escravo
que estava preso aos ferros. Assim sendo, uma possível percepção da presença do
discurso indireto livre.
O núcleo da narrativa, concentrado no clã Medeiros, colocará em relevo a
oposição discurso conservador X discurso moderno na medida em que as situações
serão forjadas a partir dessa dicotomia e se acentuarão ao destacar uma mulher
dentro da trama: Eva. (SALOMONI, 2005).
De acordo com a referida autora, o destaque que a narradora dá a essa
personagem acabará por transformá-la em protagonista e porta-voz das ideias
libertárias da própria autora em relação ao horror que representava a escravidão e a
consciência que tinha da sujeição da mulher ao poder patriarcal.
Segundo Zolin (2005), no âmbito da arte literária, até meados do século XX, os
discursos dominantes vinham circunscrevendo espaços privilegiados de expressão
e, consequentemente, silenciando as produções ditas "menores", provenientes de
segmentos sociais "desautorizados", como as das minorias e dos/as
marginalizados/as. O quadro comportava, de um lado, a visibilidade das obras
canônicas, a chamada "alta cultura", de outro, o apagamento da diversidade
proveniente das perspectivas sociais marginais, que incluem mulheres, negros,
homossexuais, não católicos, operários, desempregados, entre outros.
No contexto histórico e social, profícuo às manifestações da heterogeneidade
e da multiplicidade e inóspito aos discursos totalizantes, a crítica literária feminista,
bem como o feminismo entendido como pensamento social e político da diferença,
surge com o intuito de desestabilizar a legitimidade da representação, ideológica e
tradicional, da mulher na literatura canônica. Após um momento inicial de denúncia e
problematização da misoginia que permeia as representações femininas tradicionais,
ora prezas à nobreza de sentimentos e ao caráter elevado, ora relacionadas com a
Eva pecadora e sensual, o feminismo crítico volta-se para as formas de expressão
oriundas dos próprios sujeitos femininos. (ZOLIN, 2005).
Para a autora, a considerável produção literária de autoria feminina publicada à
medida que o feminismo foi conferindo à mulher o direito de falar, surge imbuída da
missão de "contaminar" os esquemas representacionais ocidentais, construídos a
partir da centralidade de um único sujeito (homem, branco, bem situado
socialmente), com outros olhares, posicionados a partir de outras perspectivas. O
resultado aponta para a reescritura de trajetórias, imagens e desejos femininos. A
134

noção de representação, nesse sentido, se afasta de sua concepção hegemônica,


para significar o ato de conferir representatividade à diversidade de percepções
sociais, mais especificamente, de identidades femininas antipatriarcais.
Nesse sentido, para entender o relevo dado à personagem Eva é preciso
delinear sua posição dentro da trama. Filha do irmão de Medeiros fora criada por
este de forma mais livre em relação às de seu sexo. Ela estudara francês, inglês,
piano, aprendera as lides da fazenda; tornara-se, como o pai, caridosa para com os
pobres e os negros, altruísta e destemida. Após o falecimento desse e não tendo
mãe, foi viver com a família do tio, respeitando o pedido do pai moribundo. Este lhe
votava um grande desprezo, em razão de antigas demandas e por esta atrever-se a
defender escravos. As palavras que o tio lhe dirige são sempre rancorosas,
acentuando o desdém por suas convicções e ações.

- Asneira! Deixe-se disso, que não é da competência das moças.


Se não quiser vêr o negro com os ferros, não olhe para ele. Era o
que faltava!
- Não olho, mas nem assim deixo de saber que os traz!
O comendador deu uma gargalhada. Pelos olhos de Eva passou
um relâmpago de indignação, mas conteve-se e um sorriso de
desdém arqueou-lhe os lábios (ALMEIDA, 1919, p. 19)

O trecho retirado da obra apresenta uma mulher, aparentemente, fora dos


padrões sociais da época, pois Eva se constitui no símbolo da mulher sujeito situada
em épocas em que os germens do movimento feminista ainda não se faziam tão
audíveis. Perceptíveis, apenas, eram os indícios da insustentabilidade do estado de
coisas, que então vigorava, em relação aos "desmandos" relacionados ao sexo
feminino. (ZOLIN, 2005).
Nesse sentido, opõem-se neste trecho tanto o discurso masculino x o
feminino, quanto razão x sentimento, além de ficar caracterizado na fala de Medeiros
o desprezo pela atitude de Eva (não é da competência das moças!), incluindo, nesse
caso, uma postura machista e prepotente, a “sombra” que procura eclipsar a
presença feminina e suas manifestações (SALOMONI, 2005).
Primeiramente, segundo Júlia Lopes de Almeida, Eva é apresentada ao leitor
através do “olhar” do primo Otávio. O perfil que ele traça, advém de um contato
visual, influenciado, no entanto, pelas definições que lhe deram o pai – "um diabo
135

levado de seiscentos!" (p. 16) – e a irmã mais nova, Noêmia: "Um anjo!" (idem).
Assim, de acordo com Zolin (2005), o exame cuidadoso das relações de gênero na
representação de personagens femininas, tarefa da primeira vertente da crítica
feminista, aponta claramente para as construções sociais padrão, edificadas, não
necessariamente por seus autores, mas pela cultura a que eles pertencem, para
servir ao proposito da dominação social e cultural masculina.
Nesse sentido, o feminismo mostra a natureza construída das relações de
gênero, além de mostrar, também, que muito frequentemente as referências sexuais
aparentemente neutras são, na verdade, engendradas em consonância com a
ideologia dominante: o engendramento masculino possui conotações positivas; o
feminino, negativas. (ZOLIN, 2005).

Tio Noêmia
Mulher-demônio Mulher-anjo
EVA
Negativa Positiva

Júlia Lopes de Almeida apresenta na sua obra A Família Medeiros, uma figura
feminina que representada pelo esquema acima, é pertencente a um aparente
quadro do modo tradicional de representação da mulher na literatura, mas com um
diferencial, a representação da mulher pela própria mulher como criadora e como
criatura, ou seja, a figura feminina Noêmia também apresenta a sua visão acerca da
prima Eva, no caso, de maneira positiva porque a considera um “anjo”.
No que se refere ao tema, o possível feminismo presente na obra de Júlia
Lopes de Almeida, feminismo entendido como movimento social e político, pôs a nu
as circunstâncias sócio históricas que envolvem a mulher, as quais foram tomadas
pela Crítica Literária Feminista como elementos determinantes em relação ao seu
modo de representação na produção literária. Do mesmo modo, fez perceber que o
estereótipo feminino negativo, largamente difundido na literatura, constitui-se em um
considerável obstáculo na luta pelos direitos da mulher (ZOLIN, 2005).
136

Para Zolin, se as relações entre os sexos se desenvolvem segundo uma


orientação política e de poder, também a Crítica Literária Feminista é profundamente
política, na medida em que trabalha no sentido de interferir na ordem social.
Nesse sentido, trata-se de um modo de ler a literatura confessadamente
empenhado, voltado para a desconstrução do caráter discriminatório das ideologias
de gênero, construídas, ao longo do tempo, pela cultura. Ler, portanto, um texto
literário tomando como instrumentos os conceitos operatórios fornecidos pela Crítica
Feminista (feminino/feminista; mulher-sujeito/objeto, gênero, logocentrismo,
falocentrismo, patriarcalismo, desconstrução, alteridade, entre outros) implica
investigar o modo pelo qual tal texto está marcado por tais ideologias, em um
processo de desnudamento que visa despertar o senso-crítico e promover
mudanças de mentalidades, ou, por outro lado, divulgar posturas críticas por parte
das escritoras, especificamente, Júlia Lopes de Almeida, em relação às convenções
sociais que, historicamente, têm aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos.
Voltando à Eva, Júlia Lopes de Almeida representa-a como uma verdadeira
heroína. Todos os componentes para que sua figura se sobressaia na trama são
postos em relevo. Ela é órfã, mas rica. Fala vários idiomas, estuda, desenvolveu as
prendas domésticas, é bondosa para com os escravos, companheira das primas,
econômica e ainda por cima, bonita (SALOMONI, 2005).
Como observa Salomoni, a mulher é ainda acusada injustamente de fomentar a
revolta dos escravos na fazenda Santa Genoveva, pertencente ao tio, e será
defendida pelo primo Otávio, por ela apaixonado. Provada sua inocência, Eva casar-
se-á com Paulo, jovem órfão criado pela família dela. Será a concretização do
casamento por amor, unindo dois seres de uma nova geração, formada pelo estudo,
pelo trabalho, que dá a ambos os sexos uma aparente igualdade.

Transportado de jubilo, Paulo tomou a cabeça de Eva entre as


mãos, e beijou-a, repetidas vezes.
E assim, sem pronunciar a palavra definitiva, eles declararam-se
apaixonadamente o amor (ALMEIDA, 1919, p. 318).

A citação acima apresenta o subjetivismo romântico também presente na obra


de Júlia Lopes de Almeida, nesse trecho do romance é possível presenciar a
aparente existência de um amor puro e verdadeiro. O casamento parece não
137

constituir um contrato entre duas pessoas tradicionalmente com o objetivo de


constituir família. Isto é, o casamento, aparentemente, deixa de ser visto nas
sociedades ocidentais meramente como um acordo comercial entre duas famílias
sem que os dois intervenientes tivessem muito "voto na matéria".
Para Salomoni (2005), dessa forma, embora seja o discurso empregado por
Júlia Lopes de Almeida revolucionário para o momento em que foi escrito, a posição
da mulher ainda dependerá por muito tempo do suporte moral, econômico e
intelectual que o homem lhe der. Mesmo que tenha conseguido escolher este
companheiro por amor, como ressalta Rocha-Coutinho (1994), ainda será no espaço
do lar que buscará sua realização. O novo casamento, baseado no amor e na
liberdade de escolha, será o lugar privilegiado da felicidade, da alegria e da ternura e
seu ponto culminante será a procriação.
Ainda sobre a questão do casamento e o poder masculino, Salomoni (2005)
ressalta que o discurso da narradora no início do capítulo X: "A família do
comendador Medeiros aceitava, sem discussão e sem abalo, todas as resolução de
seu chefe" (p. 88). No entanto, esta autoridade incontestável começa a ser rebatida.

O comendador apossou-se dos papeis do irmão, a titulo de tutor da


filha.
A isso Eva se opôs energicamente. No seu desespero, a infeliz
menina queria conservar tudo o que o pai tinha deixado. O tio,
porém, interpretara mal esse movimento; supôs querer a sobrinha
guardar consigo, para futura vingança, a carta ameaçadora, escrita
por ele ao jornalista assassinado (ALMEIDA, 1919, p. 100).

O trecho supracitado revela a aparente queda da incontestável força


patriarcal. Pois, Eva se manifesta contrária a uma decisão do tio, o que pode
significar uma representação de traços feministas presente na obra. No caso, a
figura feminina começa a romper os padrões da ordem masculina, ou seja, o não a
todas as ordens e ditos dos homens passa a ser contestada. A citação acima ainda
apresenta que a mulher também era mal interpretada nas suas decisões e vontades,
no caso, guardar documentos que foram do pai como forma de tê-lo sempre
presente, na visão do tio era tentar alguma vingança contra ele.
De acordo com Zolin (2005), o objetivo dos debates, empreendidos pela
Crítica Feminista, acerca do espaço relegado à mulher na sociedade, bem como das
138

consequências, ou dos reflexos daí advindos, para o âmbito literário, se os


contemplar de modo amplo, é a transformação da condição de subjugada da mulher.
Para a referida autora, trata-se de tentar romper com os discursos
sacralizados pela tradição, nos quais a mulher ocupa, à sua revelia, um lugar
secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela marginalidade,
pela submissão e pela resignação. Tais discursos não só interferem no cotidiano
feminino, mas também acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos
tradicionais e masculinos que regem o saber sobre a literatura. Assim, a crítica
feminista trabalha no sentido de desconstruir a oposição homem/mulher e as demais
oposições associadas a esta, em uma espécie de versão do pós-estruturalismo. No
Dicionário Houaiss vê: “conjunto de investigações filosóficas contemporâneas que,
negando ou transformando os princípios teóricos do estruturalismo, além da forte
influência de Nietzsche, propõem um pensamento de recusa aos fundamentos
tradicionais da filosofia...” 34.
Como Júlia Lopes de Almeida tinha plena consciência das mudanças que se
operavam nas esferas pública e política e que essas se estendiam para as relações
sociais, ela apresenta, através do discurso indireto livre com que a narradora
“traduz” o pensamento do comendador, a aflição desse, convencido da precariedade
de sua situação diante das novas demandas:

Ah, os chefes de família de ha vinte anos ainda, quanto mais felizes


eram! Dirigiam à sua vontade o barco para a direita, para a
esquerda para frente ou para retaguarda, sem que partisse de
dentro uma observação, um dito, um queixume ou uma súplica! Um
pai casava a sua escolha as filhas e os filhos, encaixava-os na
própria família entre os primos mais ricos, aos treze anos as
meninas seguiam para as suas novas casas, julgando-se muito
felizes, condescendentes e passivas; o mesmo, pouco mais ou
menos, acontecia com os rapazes, que enfim esses sempre
gozavam de um pouco mais de liberdade! Amor! Essa palavra só,
arripiava os velhos paulistas, como se ela fosse um sinônimo de
degradação e torpeza (ALMEIDA, 1919, p. 232).

O trecho mencionado mostra, aparentemente, a queda do patriarcado, o que já


ocasionava o desespero dos chefes de família que não poderiam mais comandar o

34
HOUAISS, Antonio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001, verbete pós-estruturalismo.
139

seu legado como bem entendessem. O direito a escolher com quem seus filhos iria
casar já não mais faz parte de suas alçadas.
Para Zolin (2005), tais enfoques emergem da ênfase dada a certos aspectos,
em detrimento de outros. Mas todos são constituídos a partir da ideia básica do
pensamento feminista: desnudar os fundamentos culturais das construções de
gênero, neste caso, opondo-se às perspectivas essencialistas e ontológicas dos
estudos que abordam a questão da mulher, e ainda, promover a derrocada das
bases da dominação de um gênero sobre outro.
Júlia Lopes de Almeida em A Família Medeiros traz à tona uma figura feminina
que está à frente de seu tempo A posição social das mulheres daquele século era a
de figuras secundárias, privadas nas condições de acesso à educação, restritas à
figura masculina, sendo a mulher daquele período ainda submetida ao paradigma da
sociedade patriarcal na qual a figura masculina era representada pela figura do pai,
sogro, avô, amigo ou conselheiro, que estabeleciam e monopolizavam o
conhecimento como um bem titular. (BOSI, 2007).
Eva, aparentemente, vem representada como a transição deste conceito
estereotipado de sociedade e rompe com este tipo de conduta a partir de sua
personalidade aparentemente impulsiva e convicta de que não existem limites que a
separem de seus ideais.
Para Salomoni (2005), o texto não deixa dúvidas quanto à relação de igualdade
estabelecida pelo missivista que afirmara que as mulheres e porcos são colocados
no mesmo patamar e sofrem o mesmo processo de escolha, pela “pureza da raça”.
Fica subentendido que no critério “raça”, a inclusão da classe social dos futuros
noivos, sua origem e até mesmo a “virtude” da moça em disputa.

“Meu bom amigo comendador Medeiros.


As mulheres devem ser escolhidas como os porcos, pela raça, por
isso peço-vos para meu filho Julio, que v, bem conhece, a mão de
uma de suas filhas. Responda com brevidade; sabe quais as
nossas circunstancias e gênio trabalhador e sério de meu filho. Se
quiser avise logo, para nós irmos.
Seu amigo atento obrigada – Anastacio de Siqueira Franco”
(ALMEIDA, 1919, p. 159)

A citação acima mostra que o pai do pretendente deixa claro que não importa
qual será a escolhida, ele frisa, nesse caso, uma delas. A autora afirma que este
discurso, estrategicamente colocado por Júlia Lopes de Almeida, é um
140

posicionamento ideológico que traduz uma denúncia: a desigualdade entre os sexos.


Trata-se, portanto, no mínimo, de uma imputação em nível de enunciado que se
mostra revolucionário se se pensar na data em que foi escrito (1885-88) e que a
autora pertencia a uma família influente e burguesa. (SALOMONI, 2005).
Em suma, ao abordar este tema, Júlia Lopes de Almeida demonstra o quanto
estava preocupada com a situação da mulher e que mostrar os diferentes discursos
veiculados na prática social era uma forma de crítica. Para Salomoni (2005), é a
forma “silenciosa” estabelecida pela prosadora, absolutamente eficaz, pois, ao
colocar em seus enredos os fatos negativos relacionados às mulheres, ela instaura a
dúvida, a perplexidade diante do leitor mais liberal. É uma forma de fazê-los refletir
sem, no entanto, usar de um discurso agressivo não condizente com seu status de
mãe-escritora-esposa pertencente à burguesia e avesso ao seu caráter.

4.3.3. A imagem do feminino em A Silveirinha

No ano de 1914 veio a público A Silveirinha: Crônicas de um Verão pela


editora Francisco Alves & CIA, que um ano antes fora divulgado em folhetins. É o
oitavo romance da escritora. O título refere-se à protagonista, uma jovem-casada,
presa de um desejo incorruptível de converter o marido, ateu, ao catolicismo. Para
tal feito, não mede esforços, que se evidenciam nas constantes idas à Igreja em
busca de conselho do padre Pierre, um moço francês e muito vaidoso. Aconselhada
pelo clérigo, tece uma rede de seduções e armadilhas para o marido, muito
apaixonado, para que se desespere e se converta rapidamente. No transcorrer da
narrativa, o leitor percebe que a paixão de Silveirinha floresce pelo padre. Depois de
uma doença muito grave, o marido aceita levar ao pescoço uma corrente com a
efígie de Nossa Senhora, e a mulher julga o marido convertido. Uma inverdade, pois,
este aceita a situação apenas para a paz no lar. (COSTRUBA, 2011).
Para Telles (1987), é um romance acidamente critico em relação ao clero às
damas da alta sociedade. O subtítulo é: crônicas de um verão, se passa em
Petrópolis, durante o período de férias, de fuga do calor da cidade. O enredo
apresenta, aparentemente, uma comunidade de mulheres intrigantes, ociosas, de
141

damas que se espezinham mutuamente. Das mulheres e seus amantes, das damas
que falam francês e futricam. Mas, especialmente, de uma intriga clerical.
De acordo com Costruba (2011), paralelamente à história de Silveirinha, merece
destaque a personagem Xaviera, bem casada e com duas filhas, que se livra destas
e as interna no tradicional colégio Sion de Petrópolis, a fim de realizar as suas
investidas amorosas e sedutoras.
Nesse sentido, por conseguinte, a sociedade fútil e elegante do Rio de Janeiro
está cheia de arrivistas, de jovens que chegam do interior como aquele que já viera
de seu Estado bem instruídos pelos romances modernos, para saber como abrir
caminho na multidão compacta dos indiferentes da Capital. O segredo estaria em
saber fazer-se querido e protegido de uma das mulheres de prestigio de uma ou
duas mulheres de prestigio na sociedade. Fazer-se amado pelas mulheres é triunfar
dos homens. (TELLES, 1987).
Para a referida autora, os homens, nos romances de Júlia Lopes de
Almeida, são o mais das vezes interesseiros e inescrupulosos, casam-se por
dinheiro, tomam amantes pelos mesmos motivos. O dinheiro é central em muitos
momentos do enredo, aparece também quando alguém diz:

- O Zacarias é quase tão religioso como o Dr. Jordão


- E a mulher não é das nossas.
- Quando se trata de dar dinheiro, toda a gente é nossa...sublinhou
a condessa sorrindo (ALMEIDA, 1997, p. 103).

A citação acima apresenta um diálogo entre mulheres sobre religião e


dinheiro. Fica exposto que a religiosidade está aparentemente atrelada aos que
possuem bens e principalmente a mulheres que gastam esses bens com as ações
religiosas. O diálogo mostra também a exclusão de uma dama da alta sociedade
porque esta parece não ser uma contribuinte assídua no quesito doações.
O livro faz um notável painel da sociedade burguesa do Rio de janeiro, ao
mostrar pessoas à procura de dinheiro sob qualquer condição. De modo irônico, a
narrativa configura-se como uma critica mordaz as hipocrisias sociais e religiosas.
(COSTRUBA, 2011).
A mulher, representada no romance, provoca reflexões. Silveirinha afina-se
com a típica mulher religiosa, a qual luta pela conversão do marido, mas que se vê
em uma situação contrária às leis da Igreja, devido a um aparente interesse com o
142

padre Pierre. Xaviera, em busca da liberdade amorosa, destina as suas filhas a um


colégio para viver sua vida livremente. Religião e perdição são os motes do
romance. Essa obra granjeou a Júlia Lopes de Almeida reputação nacional, mas a
história sentimental, que visava entretenimento à dona de casa ou à moça de
família, não ficou isenta de críticas do frei Pedro Sinzig (1876-1952):

Homens que procuram dinheiro a todo transe e mulheres que se


divertem igualmente a todo transe, é este o conteúdo do romance
(...) o livro é uma ofensa à sociedade e à Igreja Católica; parece
incrível ser ele escrito por uma senhora! Chega a repugnar35

O trecho acima mencionado relata a indignação de um padre contrário ao


enredo da obra porque esta faz criticas ferrenhas a Igreja. Nesse sentido, o romance
ainda apresenta as rivalidades femininas que se manifestam em torno de dois
padres, o francês, padre Pierre, moço e bonito, adorado pelas moças e o padre Gil,
brasileiro, bonachão, velho e gordo, ingênuo e simples. Os dois ignoram-se, nunca
se aproximam, tão diferentes que são. Em torno deles as senhoras elegantes se
dividem, as mais velhas são fieis ao brasileiro enquanto as mais novas disputam o
padre francês. (TELLES, 1987).

Como se aproximasse o dia do aniversario do padre Pierre, as


devotas do seu altar e as suas confessadas organizaram uma
comissão a fim de angariar donativos para um mimo que lhe
deveria ser então oferecido.
A ideia partiu da Magdalena, que andava pelas casas das amigas,
alvoroçando almas e combinando cousas.
Algumas partidárias do Padre Gil, como a condessa, D. Clara, tinha
hesitado, ao principio, em ceder o seu concurso para essa
manifestação; mas por delicadeza e por pensarem que assim
agradariam indiretamente à Igreja, por cujo prestigio fariam tudo,
acabaram por assinar na lista da Magdalena uma quantia vistosa
(ALMEIDA, 1997, p. 101-102).

O trecho retirado do romance deixa claro a separação e divisão de grupos.


De um lado as seguidoras do padre Pierre, e do outro lado, as seguidoras do padre
Gil. Segundo helena de Fátima Gonçalves de Castro (2000), a religião é, no seio das
diversas culturas, o modo pelo qual se definem mitológica e metafisicamente as

35
SINZIG, Pedro (org.). Através dos romances: guia para as consciências. 2ª ed., Petrópolis: Vozes,
1923. p. (52-53)
143

relações das pessoas entre si, das pessoas com o mundo que as rodeia e das
pessoas com tudo aquilo que as transcende. Como a própria palavra indica, a
função fundamental da religião é operar e consolidar, pela sacralização (ritos e
mitos), os laços estabelecidos na complexa rede de relações que estruturam e
mantêm as dinâmicas socioculturais.
A fábula se desenrola quando padre Pierre aconselha a Silveirinha a casar-
se com o Dr. Jordão que a pedira para salvar sua alma herege. Ele é ateu, mas
cuida dos ricos e dos pobres com a mesma atenção. Padre Pierre esboça táticas de
conversão que na verdade parecem táticas de sedução: todos os dias encontra com
a moça que lhe conta tudo que se passa entre ela e o marido e lhe dá conselhos,
como por exemplo, que há dias que ela deverá evita-lo e outros que ela deverá ser
terna e meiga com seu marido (TELLES, 1987).
Nesse sentido é possível observar o poder que a Igreja exerce
principalmente sobre as mulheres. A Igreja representa-se partidariamente no
sistema político liberal, ao lado de outras forças ideológicas e políticas, disputando
com elas o controle e a posse do poder político e, através dele, o controle ideológico
das massas. Porém, para conseguir chegar ao controle das massas, ela precisa
primeiramente conquistar as mulheres (GRAMSCI, 1975) 36.
Afirma Norma Telles (1987) que o romance apresenta na fábula que todas as
mulheres sabendo do empenho na conversão do marido se prestam a serem álibis
da esposa para seus encontros diários. Mas, Magdalena, sua rival desde os bancos
escolares, rouba-lhes favores do padre, seus olhares languidos e mãos acariciantes.
Ele se torna frio com ela, que se desespera; manda-a cuidar de sua vida.

Ele olhou-a com frieza. Depois disse, com serenidade e altivez:


- Volte para sua casa. Peça perdão a seu marido. O seu lugar é
junto dele e para sempre. Não creia que o demônio se tenha
imiscuído na sua vida: quem a inspirou foi Deus (ALMEIDA, 1997,
p. 159-160).

A citação acima apresenta a mudança do padre Pierre com a Silveirinha e o


seu desespero com essa perda. A partir desse momento, uma fase de transição na

36
António Gramsci, Cuardemi del cárcere, Turim, Einaudi, 1975,vol. I, pp. 116-117, e vol. III, pp.
2079-2103.
144

vida dessa figura feminina que passa a cuidar do seu marido, apesar da tristeza de
não ter mais os conselhos de padre Pierre.
Telles (1997), afirma que a Silveirinha é uma figura à feminina que apresenta
uma personalidade forte. Todos comentam sua força de vontade, seu empenho
quando se propõe alguma coisa. O ridículo e o cômico que Júlia Lopes de Almeida
parece pintar nesse romance propondo ao seu público leitor uma mudança brusca
nos padrões patriarcais.

- Consinta que lhe diga, minha me, que não vale a pena sacrificar a
vida da criança à vida da mulher; antes que uma acabe, pode vir a
morte e não consentir que a outra principie...Se eu pudesse
escrever livros, diria: - deixai brincar as crianças e trabalhar os
adultos (ALMEIDA, 1997. P. 271).

O trecho retirado do romance apresenta um diálogo entre Xaviera e sua filha


que desde criança foi colocada em um colégio interno para que sua mãe pudesse
aproveitar as coisas da vida mundana. Nessa citação é possível observar uma critica
a maternidade que no século XIX dito como um dos preceitos da mulher. Casar e
procriar. Júlia Lopes de Almeida parece criticar esse fato, pois a referida autora era a
favor da construção de uma família, desde que a educação fizesse parte da criação
dos filhos.
Nesse sentido, é preciso resgatar a escritora Júlia Lopes da “vala-comum”
dos escritores “pré-modernistas” e por meio desta tentativa de revisão do período,
dar-lhe a devida importância como mulher letrada, da classe dominante, que, além
de estabelecer um padrão de “civilidade” nos seus romances, acabou por corroborar
com os projetos higiênicos da sociedade carioca (COSTRUBA, 2011).
Muzart (2004), afirma em sua leitura, que percorreu-se toda a variedade de
pensamentos que povoam o passado, desde a adesão mais entusiasmada à
ideologia colonial até o ímpeto revolucionário; da obediência estreita aos ditames da
convenção literária da época até sua aberta paródia; do conformismo (a sério ou
não) às rígidas hierarquias sociais, como nos Conselhos de Bárbara Heliodora a
seus filhos — "Com Deus, e o rei não brincar,/ É servir e obedecer,/ Amar por muito
temer,/ Mas temer por muito amar,/ Santo temor de ofender/ A quem se deve
adorar!" — até o desabafo indignado da escritora anônima — "Triste sorte a nossa.
Para alguma cousa melhor nascemos!".
145

Júlia Lopes de Almeida parece apresentar uma figura feminina que é rigorosa
com esses preceitos religiosos. Casa-se com a intenção de converter mais uma
alma ao catolicismo. Incentivada pelo padre Pierre, ou seja, pelo patriarcado e pela
Igreja. Porém, a Silveirinha é descartada quando não mais interessa a esse padre.
Um enredo com um jogo de intrigas e principalmente uma critica a Igreja que
dominava e detinha o poder sobre as mulheres. A fábula parece mostrar uma
transição e um rompimento com esses padrões. Apesar de a protagonista ficar
desnorteada com a quebra da amizade que ela tinha com o padre Pierre. O
surgimento de uma nova mulher, agora mais caseira, agora mais amável com o
marido, mesmo com suas crenças religiosas.

Contemplaram-se sorrindo. Achavam-se ambos mais bonitos. Ele


adoçado pelo repouso de espirito, embora pálido; ela com uma
expressão imaterial, uma expressão amorosa, nunca antes
revelada.
- Escuta Jordão; eu fiz uma promessa a Nossa Senhora...mas é
preciso que me ajudes a cumpri-la..não me digas que não, pelo
amor de Deus(ALMEIDA, 1997, p. 298).

A citação acima apresenta a personagem Silveirinha, aparentemente, uma


nova mulher, pois agora ela se tornou mais caseira, mais amável com seu cônjuge e
até as suas idas a igreja ficaram mais raras. O que não a fez rejeitar a religião por
completa, ou seja, tornando-se uma agnóstica.
Júlia Lopes de Almeida, segundo Telles (1987), não suporta os preconceitos
estreitos, ridiculariza as carolas em todos os seus livros assim como as crendices
das mulheres em cartomantes e coisas do espirito. Suas obras dão ênfase ao
estudo e ao trabalho para edificar o ser humano. Cabe frisar a temática de
praticamente todas as publicações da escritora: a importância da instrução feminina.
Esta seria se não a única, a principal forma pela qual a mulher conseguiria tornar-se
igual aos homens e melhor educar a família desenvolvendo suas habilidades
domésticas.
Segundo Lauretis (1994), o gênero é a representação de uma relação, a
relação de pertencer a uma classe. A noção de gênero constrói uma relação entre
uma pessoa e outras pessoas previamente constituídas como classe, não se
referindo a um indivíduo isolado e sim a uma relação social. E as representações do
gênero, na visão da autora, são construções que se dão nas mais diversas
146

instâncias sociais por meio da literatura, do cinema e das artes em geral.


(LAURETIS, 1994, p. 209-211). Além dessas instâncias convém apontar outras: a
mídia, a religião, os currículos escolares, as relações familiares, a língua do
cotidiano, diferentes ideologias, enfim, todo um aparato cultural e semiótico que
ajuda a forjar identidades sexuais, sociais e raciais.
Para a referida autora, as concepções culturais de masculino e feminino como
duas categorias complementares formam, dentro de cada cultura, um sistema de
gênero, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o sexo a
conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. Dessa forma os
sujeitos não se constituem apenas pela diferença sexual, mas por variadas
representações culturais que dizem algo sobre como a sociedade os percebe. Tais
representações constituem os sistemas de gênero que a autora se refere, de forma
que ser representado (ou se representar) como “homem” ou “mulher” já subentende
a “totalidade dos atributos sociais associados a homens e mulheres” (LAURETIS,
1994, p. 212).
Nesse sentido, em uma sociedade patriarcal, por exemplo, ser representado
como homem pressupõe os atributos de força, de virilidade e de insensibilidade,
uma vez que, desde a mais tenra infância, a grande maioria dos homens é advertida
de que “homem não chora”, e de que qualquer demonstração de sentimentos pode
gerar dúvidas em relação à masculinidade. Por outro lado, ser representada como
mulher pode pressupor a existência de valores tradicionalmente considerados
“femininos”, tais como a maternidade, a empatia, a sensibilidade, a solidariedade e o
sentimentalismo. Tais características são socialmente construídas, inculcadas
através da educação e do aprendizado de atitudes e valores ao longo da vida do
indivíduo, o que mostra que não se pode perceber as diferenças entre homens e
mulheres como uma mera diferença sexual.
A Zuleika tem quinhentos contos de dote e não é bonita nem
inteligente, mas também não é feia de todo...e creio que pelo
menos saber ler e escrever...Não é mulher que faça sombra à
memoria radiante que outra tivera deixado no coração e na vida de
um homem...mas terá pelo menos, no período do noivado, poder
bastante para distrair o marido de outros enleios
amorosos....(ALMEIDA, 1997, p.256).

A citação acima apresenta o discurso de como deveria ser caracterizada a


função de gênero no século XIX, a mulher tinha como principal objetivo de vida, o
147

casamento, também visto como ascensão social. Segundo Lauretis (1994), o gênero
é também a representação de uma relação, a relação de pertencer a uma classe.
Nesse sentido, a noção de gênero constrói uma relação entre uma pessoa e
outras pessoas previamente constituídas como classe, não se referindo a um
indivíduo isolado e sim a uma relação social. E as representações do gênero, na
visão da autora, são construções que se dão nas mais diversas instâncias sociais
por meio da literatura e das artes em geral. (LAURETIS, 1994). Além dessas
instâncias infere-se outras: a mídia, a religião, os currículos escolares, as relações
familiares, a língua do cotidiano, diferentes ideologias, enfim, todo um aparato
cultural e semiótico que ajuda a forjar identidades sexuais, sociais e raciais.
De acordo com Toril Moi (1988), a leitura feminista, não é considerada uma
leitura neutra nem imparcial (nenhuma leitura é), é sempre política, partindo do
pressuposto de que “todos falam a partir de uma posição conformada por fatores
culturais, políticos, sociais e pessoais” (MOI, 1988, p. 55). Nessa visão, todos falam
a partir das perspectivas de gênero, raça e classe, que se tornam aspectos de
profunda relevância a serem levados em conta na análise de uma obra literária.
Desta maneira, a crítica feminista oferece novas possibilidades de interpretação de
textos ficcionais ao postular que grande parte da produção e da recepção de obras
literárias se organiza em torno de certas configurações de gênero, e que o gênero
organiza o enredo e a construção dos personagens.

Estereótipos femininos Principais figuras femininas Conotação


em A Silveirinha
Mulher-anjo e/ou indefesa Silveirinha Positiva

Mulher sedutora e/perigosa Xaviera Negativa

Mulher como megera Magdalena Negativa

A representação do modo tradicional da figura feminina presente na obra A


Silveirinha, mostra ao público leitor a visão que a sociedade tinha da mulher. A
Silveirinha pode ser vista como uma mulher anjo porque era bem educada e casou-
se como ditava as regras sociais. Xaviera era uma mulher que tinha como objetivo
viver uma vida, aparentemente mundana, a ponto de internar os filhos em uma
escola de sistema integrado. E Magdalena, pode ser representada como a
148

representação da figura feminina de tinha conotação segundo os preceitos


feministas de megera porque ela tem inveja de Silveirinha e faz com que o padre
que Pierre, que antes dava atenção quase que exclusiva para Silveirinha, passe a
lhe dá atenção pessoal.
Para Zolin (2005), A primeira geração (ou primeira onda do feminismo)
representa o surgimento do movimento feminista, que nasceu como movimento
liberal de luta das mulheres pela igualdade de direitos civis, políticos e educativos,
direitos que eram reservados apenas aos homens. O movimento sufragista (que se
estruturou na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos e na Espanha) teve
fundamental importância nessa fase de surgimento do feminismo. O objetivo do
movimento feminista, nessa época, era a luta contra a discriminação das mulheres e
pela garantia de direitos, inclusive do direito ao voto. Inscreve-se nesta primeira fase
a denúncia da opressão à mulher imposta pelo patriarcado.
A segunda fase do feminismo (segunda geração ou segunda onda) ressurge
nas décadas de 1960 e 1970, em especial nos Estados Unidos e na França. As
feministas americanas enfatizavam a denúncia da opressão masculina e a busca da
igualdade, enquanto as francesas postulavam a necessidade de serem valorizadas
as diferenças entre homens e mulheres, dando visibilidade, principalmente, à
especificidade da experiência feminina, geralmente negligenciada. As propostas
feministas que caracterizam determinadas posições, por enfatizarem a igualdade,
são conhecida como “o feminismo da igualdade”, enquanto as que destacam as
diferenças e a alteridade são conhecidas como “o feminismo da diferença”. Para
Scott (2005), a questão da igualdade e da diferença deve ser concebida em termos
de paradoxo, ou seja, em termos de uma proposição que não pode ser resolvida,
mas apenas negociada, pois é verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
Na terceira fase do movimento feminista, segundo Zolin (2005) observa-se
intensamente a intersecção entre o movimento político de luta das mulheres e a
academia, quando começam a ser criados nas universidades, inclusive em algumas
universidades brasileiras, centros de estudos sobre a mulher, estudos de gênero e
feminismos.
Em um aspecto mais amplo, Júlia Lopes de Almeida possuía uma
linguagem familiar e simples abordando temas como: dúvidas quanto ao
comportamento político e social para com os costumes e tradições que
compulsoriamente mudavam velozmente nos grandes centros urbanos; de postura
149

reformista, acreditava nos projetos de modernização protagonizados pela ciência em


seu estreito vínculo com a ordem social urbana e rural; em suas obras dirigidas para
o público infantil, preocupou-se em apresentar as diferentes regiões e expressões
culturais, pontuava valores cívicos e morais como forma de debater e conhecer os
diferentes aspectos da nação (AMED, 2010).
A protagonista parece mostrar ao público leitor algumas marcas da teoria
feminista, como por exemplo, a manutenção do nome de solteira, a imposição para
que o marido deixasse o ateísmo. As vontades e desejos de uma figura feminina que
no contexto histórico do século XIX eram contrários aos ditames patriarcalista, pois
as mulheres deveriam seguir as leis ditas pelos homens. Sua função social se
resumia a cuidar do lar e dos filhos.
Combatendo esse discurso do patriarcado, Júlia Lopes de Almeida na sua
obra romanesca A Silveirinha, traz à tona diversos estereótipos femininos. Tais
figuras femininas são representadas pela autora que mostra a sociedade do século
XIX que as mulheres não eram apenas ornamentos, ou seja, objetos.
No início da narrativa, nota-se que há a aceitação da opressão, o que torna
a mulher cúmplice de sua escravização (BEAUVOIR, 1980) e objeto em um
relacionamento. Esta atitude, para Zolin (2005), está relacionada à “naturalização”
de papéis sociais do homem e da mulher, que ocorreu hierarquicamente, como se
fosse senso comum, sendo que por trás há o ato de dominação.
Silveirinha participava dos bailes como todas as outras moças e o objetivo era
encontrar um marido. O primeiro baile. Em finais do século. A donzela tem
dezessete anos e apresenta-se à sociedade pela primeira vez. Encontra-se vestida
de branco. Usa como joia um colar de pérolas. As luvas, longas, condizem em
branco. Em baile de etiqueta as raparigas deveriam apresentar-se decotadas e de
braço nu, vestido branco de faille ou outro tecido precioso, sapato de cetim branco.
O primeiro baile consagra a entrada de uma jovem no "bazar das raparigas para
casar", na expressão significativa do barão de Frénilly. O que interessa é arranjar um
pretendente à altura, do ponto de vista social e económico, que despose a jovem
iniciada. (CECÍLIA BARREIRA, 2004)

- As duas Silveirinhas parece que estão procurando alguma


cousa...
- Maridos! A mais nova está cada vez mais esganiçada...Será de
tanto cantar soprano. Ontem na capela do Colégio fiquei arrepiada
150

ao ouví-la. A Guiomar foi pedida em casamento por um médico


velhote, um tal Jordão (ALMEIDA, 1997, p. 22)

O trecho acima mencionado apresenta as irmãs Silveirinhas presentes em um


baile, onde aparentemente, procuravam maridos. Silveirinha, inclusive, já tinha sido
pedida em casamento. É possível perceber também no discurso narrativo que as
mulheres do século XIX faziam fofocas e intrigas nos bailes. Ou seja, os bailes
tinham como função social, encontros românticos para o matrimonio, bem como os
momentos de entretenimento das mulheres com fofocas e intrigas.
A tendência de implantação de novos moldes de vida urbana, os quais
foram associados à imagem da moderna sociedade europeia (leia-se inglesa e
francesa), percebe-se uma mudança na dinâmica da sociabilidade dos segmentos
de elite, o que afetou diretamente a família, sobretudo, a mulher. Anteriormente
presa ao círculo doméstico, a partir de então esta ocuparia um lugar de destaque na
nova sociabilidade. Seja como partícipe dos clubes sociais que a Belle Époque lhe
proporcionou, seja como consumidora do crescente mercado, que se ampliava, de
produtos endereçados a ela. (COSTRUBA, 2011).
De acordo com o referido autor, desse modo, como se dariam as mudanças
operadas na sociabilidade urbana que, até então, restringia a mulher ao círculo
familiar? Se a mulher ainda era considerada vital e sinônimo de excelência no
universo da casa, qual seria a sua missão nesta nova reordenação de valores?
A argumentação científica, bem condizente com a modernidade, e mais
particularmente, com o discurso dos médicos, via na figura feminina, um instrumento
para uma extensa teorização da ciência médica e um veículo de transmissão e
normatização de suas regras.
Segundo Costruba (2011), foi à escritora Júlia Lopes de Almeida, inserida
neste contexto, que ambicionou escrever manuais de “ciências domésticas”, os
quais pretendia reger e reordenar o recinto privado, e, por certas vezes, o espaço
público das famílias.
A Silverinha, de Júlia Lopes de Almeida apresenta ao leitor e, principalmente,
a leitora, que os padrões patriarcais estavam saturados e que era preciso romper
com as convenções sociais que ditavam com quem as mulheres deveriam casar,
bem como deveriam se vestir, e ainda, sobre o que deveriam pensar.
151

Com o surgimento da sociedade burguesa, que ampliou a escolarização das


camadas altas e médias da sociedade, e também com o início do romance
sentimental no século XVIII, há uma ampliação no universo de leitores, sendo que as
mulheres passam a ser as principais leitoras desses romances sentimentais, que
tratavam de assuntos considerados tipicamente “femininos”, tais como o casamento
por interesse, a conquista de um grande amor, as decepções amorosas, o ciúme e a
infidelidade. (GREICY PINTO BELLIN, 2011).
Dessa forma, as leitoras femininas, agora com mais oportunidades de
escolarização e consequentemente, de desenvolvimento de hábitos de leitura, se
identificavam com esses temas, o que para Rita Felski era perfeitamente
compreensível, pois “os romances sentimentais preocupavam-se em tematizar as
nuances da psicologia e do sentimento humanos, o que os tornava apropriados para
as mulheres, vistas como experts em emoções e como guardiãs da vida privada”
(FELSKI, 2003, p. 29).
Conforme dito no início, tal vertente se refere ao papel da mulher como leitora,
que foi, ao longo dos séculos, predominantemente masculino, uma vez que as
mulheres tinham pouco ou nenhum acesso à educação. Com o surgimento da
sociedade burguesa, que ampliou a escolarização das camadas altas e médias da
sociedade, e também com o início do romance sentimental no século XVIII, há uma
ampliação no universo de leitores, sendo que as mulheres passam a ser as
principais leitoras desses romances sentimentais, que tratavam de assuntos
considerados tipicamente “femininos”, tais como o casamento por interesse, a
conquista de um grande amor, as decepções amorosas, o ciúme e a infidelidade
As leitoras femininas, agora com mais oportunidades de escolarização e
consequentemente, de desenvolvimento de hábitos de leitura, se identificavam com
esses temas, o que para Rita Felski era perfeitamente compreensível, pois “os
romances sentimentais preocupavam-se em tematizar as nuances da psicologia e
do sentimento humanos, o que os tornava apropriados para as mulheres, vistas
como experts em emoções e como guardiãs da vida privada” (FELSKI, 2003, p. 29).
A leitura de romances sentimentais acabou por gerar uma série de estereótipos
em relação à leitura feminina, que concebiam a mulher leitora como um ser isolado
do mundo exterior, que se deixava levar pelos enredos dos romances e que via na
literatura uma forma de fugir da realidade. Por isso, a leitura feminina, assim como
os romances direcionados para mulheres, não eram considerados “sérios” por uma
152

longa tradição literária de autoria masculina, que os marginalizava pelo fato de


tratarem de temas domésticos e amorosos.
Por conseguinte a primeira fase do feminismo questiona tais posturas ao
preconizar que esses romances também deveriam ser levados a sério, assim como
o papel da mulher leitora. Desta maneira, o movimento feminista inaugura uma
leitura de resistência, que procura desconstruir os estereótipos relacionados à leitura
feminina, pois a leitora feminista, ao contrário da mulher que lê uma obra de ficção
sem criticar e analisar, nunca se perde nas páginas de um romance, sempre
questionando a herança cultural e literária da qual é tributária.

À sua imaginação, mal nutrida por uma literatura superficial,


acudia a ideia de tentação de Margarida. Ela era a Margarida. O
desgraçado do marido era o Fausto, e o Mefistófeles andava
invisivelmente mas poderosamente esparso no ar e diluído nas
águas que ela tinha respirado e bebido, desde o seu primeiro
encontro com o médico, em casa de uma amiga comum
(ALMEIDA, 1997, 155-156).

A citação acima faz menção à literatura que as mulheres do século XIX


costumavam ler, que segundo a narradora era uma literatura superficial, o que
acabava por fazer as mulheres não refletirem sobre assuntos realmente importante e
contextualizados na sua época, como por exemplo, a dominação masculina.
Zolin (2005) afirma que “ler o cânone do que é considerado literatura
clássica americana é identificar-se com o masculino. A leitora feminina é forçada a
identificar-se contra si mesma” (FETTERLEY apud FELSKI, 2003, p. 33). Para
Fetterley, o fato de a literatura ser predominantemente de autoria masculina, e de
abordar temas considerados masculinos, tais como as guerras, as grandes
navegações e o heroísmo, teria originado um problema de identidade para a mulher
leitora, que não conseguia se identificar com esses temas pelo fato de eles não
fazerem parte da experiência feminina.
Ao afirmar isso, a autora propõe que a linguagem “masculina” é a linguagem da
exclusão e da opressão, uma vez que as mulheres seriam levadas a ler como
homens, adotando um ponto de vista próprio deles. Apesar de ser uma contribuição
valiosa para a primeira fase do feminismo, no sentido de que impulsionou uma
reflexão a respeito do gênero do leitor, acredita-se que o posicionamento de
Fetterley deve ser problematizado por duas razões.
153

A primeira diz respeito à existência das marcas de gênero na literatura. É fato


que a grande maioria dos escritores era homem, mas é um reducionismo interpretar
qualquer obra literária levando em conta apenas o gênero de autoria, pois se corre o
risco de cair em uma biologização da literatura, e essa não é a finalidade de uma
leitura feminista ou de gênero. Desta forma, não se deve reduzir a literatura a uma
mera representação de atitudes, crenças e valores patriarcais, e sim interpretá-la
como o espaço no qual se articulam e se materializam as posições sociais de
homens e mulheres ao longo dos séculos.
A segunda razão para problematiza o posicionamento de Fetterley se refere
à criação de uma leitura feminista de resistência, que para Felski acaba sendo algo
que “confina o leitor a uma instância negativa, forçando-o sempre a reagir ao que lê.
Ao recusar baixar sua guarda, a leitora feminista se priva de ser inspirada, afetada
ou transformada pela leitura de uma obra” (FELSKI, 2003, p. 36).
Desta maneira, a autora advoga o prazer da leitura de qualquer tendência, o
que leva a relativizar as ideias de Fetterley, pois, ao mesmo tempo em que a leitura
crítica faz os leitores mais atentos às nuances de forma e de conteúdo de um
romance, ela os pode transformar em leitores muito rígidos, que nunca são afetados
pelo prazer da leitura. Além disso, ao adotar uma postura muito crítica em relação à
literatura considerada “masculina”, encarando-a simplesmente como uma
reprodução de valores patriarcais, corre-se o risco de limitar nossa análise a uma
leitura dogmática da questão de gênero, esquecendo-nos de considerar as
convenções estéticas e formais que estão presentes no texto ficcional. Entretanto, o
gênero do leitor influencia a forma como uma obra é recebida, uma vez que homens
e mulheres trazem perspectivas e experiências muito diferentes para a leitura e a
interpretação de um texto literário.
Elaine Showalter (1994), reconhecendo que as leituras da primeira fase do
feminismo não tinham um objeto próprio, pois se concentravam predominantemente
na análise dos estereótipos sexuais presentes nas obras de autores masculinos,
preocupava-se com a sistematização dos estudos feministas, propondo que, ao
invés de se debruçar sobre toda a literatura, era mais proveitoso se debruçar sobre a
literatura escrita por mulheres. Showalter apresenta uma preocupação acadêmica de
estabelecer uma forma de leitura que tivesse rigor crítico.
Tal vertente da crítica feminista foi denominada ginocrítica, devido a sua
preocupação em analisar e interpretar obras escritas por mulheres. Para a
154

pensadora, a ginocrítica oferece muitas oportunidades teóricas, pois “ver os escritos


femininos como assunto principal força-nos a fazer a transição súbita para um novo
ponto de vantagem conceptual e a redefinir a natureza do problema teórico com o
qual nos deparamos” (SHOWALTER, 1994, p. 29).
Dentro de tal raciocínio, a autora se pergunta como é possível considerar as
mulheres como grupo literário distinto, e quais são as diferenças nos escritos de
mulheres. Neste ponto, advém dois impasses, que se constituem em verdadeiras
angústias para a maioria dos teóricos feministas e de gênero: a (não) existência de
marcas textuais que caracterizem um texto escrito por uma mulher, bem como a
questão da representação da experiência. Showalter, por exemplo, não acredita que
necessariamente exista uma linguagem diferente nos escritos femininos. Para ela, o
que existe é uma cultura da mulher, isto é: “uma teoria que incorpora ideias a
respeito do corpo, da linguagem e da psique da mulher, mas as interpreta em
relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem” (SHOWALTER, 1994, p. 44).
Concretamente, não existem marcas específicas do feminino ou do
masculino na escrita, de forma que nos parece complicado considerar as escritoras
mulheres como um grupo à parte. Além disso, tal separatismo, assim como a teoria
cultural de Showalter (1994), pode reforçar a ideologia patriarcal, aumentando ainda
mais as diferenças entre escritores homens e escritoras mulheres. É por isso que
Showalter vê a crítica literária feminista como um “território selvagem”, uma vez que
as orientações teóricas são variadas e marcadas por impasses que vão desde a
preocupação com o gênero de autoria até o uso do gênero como categoria de
análise, que marcará o debate acadêmico a partir da década de 1990.
No século XIX, preponderavam modelos filosóficos com base cientificista, tais
como evolucionismo, determinismo, positivismo, os quais exerceram significativa
influência nas ciências de um modo geral e, em especial, na história. Elevada a uma
posição dominante, a história estendeu a outras áreas sua metodologia o que, no
caso da literatura, oportunizou a organização da história da literatura.
A história da literatura, para estudar autores e obras, incorporou conhecimentos
de ciências que se estavam organizando, tais como a sociologia, a psicologia e a
filologia. Françoise Perus (1997) aponta como aspecto relevante para essa
modalidade de conhecimento, o conceito de literatura como disciplina autônoma com
caraterísticas próprias. Acízelo de Souza (2003) define a história da literatura
oitocentista como uma narrativa épica, centrada no projeto nacionalista, cuja
155

motivação consistia na construção da nacionalidade através do processo cultural,


lembrando que essa era a missão dos escritores românticos.
Um dos aspectos relevantes dos estudos de história da literatura diz respeito
ao cânone, conjunto de autores e obras reconhecidos pela academia, a partir de
critérios nacionalistas e religiosos, tornando-se marco referencial para os estudos
literários. Maria Eunice Moreira (2004) chama a atenção para o interesse dessa
disciplina no estudo do espírito do país, constituído por costumes, religião, leis da
pátria, portanto, a organização da história da literatura e do cânone não levava em
consideração o valor estético das obras.
Nesse sentido, Jonathan Culler, na obra Sobre a desconstrução (1997),
discute experiências de leitura, mostrando a diferença de atitude do leitor homem
para a leitora mulher diante do mesmo texto, apontando como uma cena significativa
para a fantasia masculina, que desperte a cumplicidade dos pares pode constituir,
para as mulheres, um retrato degradado da situação feminina.
Também considera o autor:

Nesse primeiro momento da crítica feminista, o conceito de uma


mulher leitora leva a asserção de uma continuidade entre a
experiência das mulheres nas estruturas sociais e familiares e suas
experiências como leitoras. A crítica formulada sobre esse
postulado de continuidade interessa-se notavelmente pelas
situações e pela psicologia das personagens femininas
investigando as atitudes em relação às mulheres ou investigando
as “imagens de mulher”, nas obras de um autor, um gênero ou um
período (CULLER, 1997, p. 6)

Nesse sentido, a análise de personagens femininas em autores consagrados,


a partir da experiência da mulher, pode analisar a complexidade, ou não, de sua
construção, bem como sua relevância na hierarquia dos acontecimentos. Bonnici
(2007), a esse propósito, exemplifica com a leitura de um trecho do Paraíso perdido,
de Milton, em que Eva se ausenta quando o conhecimento é transmitido a Adão
pelos anjos, pois prefere ouvir a versão do homem, em vez de priorizar a fonte
original, o que demonstra cabalmente a subordinação da mulher.
O autor aponta alguns aspectos que devem ser observados na leitura
feminina, tais como, a não neutralidade nas representações masculinas e femininas,
muito embora o ponto de vista do autor não possa ser atribuído a qualquer voz
narrativa, ou seja, o leitor (ou leitora) constrói o significado das representações;
156

desvela os estereótipos masculinos e femininos presentes na obra; desentranha a


ideologia patriarcal inclusa no texto; analisa a representação das personagens
femininas através do ponto de vista masculino; promove o questionamento sobre
como o texto constrói a sua leitora.
O autor explora perfis humanos complexos e interessantes, inclusive fugindo
aos padrões sociais pré-estabelecidos. Pode, portanto, ao utilizar a imaginação
criadora, transformar o plebeu em herói destemido e honrado, mostrar a face nada
lisonjeira do príncipe covarde e ainda fazer da escrava uma dama ou uma princesa.
Assim, de acordo com as ideologias que embasam seu modo de encarar a
realidade, pode, por meio da ficção, inverter papéis sociais, produzir personagens
capazes de provocar polêmica, trazer à tona discussões de ordem moral, ética,
política, etc. (BURKE, 1992).
Quando se fala em minoria no Brasil, deve-se fazer referência à questão dos
direitos humanos e das lutas populares. Não se trata de minoria numérica, mas que
é minoritária em relação ao acesso ao poder político, econômico, social, cultural, ou
seja, no suprimento das suas necessidades básicas, no plano dos direitos humanos
e da cidadania que, mesmo sendo a maioria numérica, não têm o acesso a um
patamar de igualdade.
A condição social feminina sempre esteve associada à dependência do
masculino, que representava uma espécie de protetor, incumbido de preservar a
mulher dos perigos e “armadilhas” do mundo. Desde crianças, as mulheres eram
preparadas para as funções de esposa, mãe e dona-de-casa, enquanto os meninos,
para ser o chefe da casa e da família (BURKE, 1992).
De acordo com estudos de Elizabeth Badinter (1985) na sociedade patriarcal
a mulher era uma figura relativamente sem importância social: “Complemento do
homem, a mulher é uma criatura essencialmente relativa. Ela é o que o homem não
é, para formar com ele, e sob suas ordens o todo da humanidade.” (1985, p. 142).
Essa visão de mundo masculinizada e patriarcal que retrata a submissão, mas
também a resistência feminina está presente no discurso em que atuam algumas
personagens femininas, nas diferentes épocas e períodos da literatura brasileira.
Nesse sentido, a submissão feminina era aparentemente algo sempre
presente, uma vez que para sobreviver, garantir seu sustento e ser aceita na
sociedade, dependia do homem. Tal dependência se nota inclusive, no próprio
sobrenome adotado após o casamento que, tradicionalmente, era o da família do
157

marido. Há pouco tempo, mais especificamente, no final do século XX, essa


concepção começou a ruir, as mulheres estão cada vez mais assumindo funções de
destaque em diversos setores sociais.
Na tendência da literatura do século XlX, é possível encontrar personagens
que se destacam pela ruptura com o estereótipo da mulher que se submete ao
homem. A propósito do tema, a obra Memórias de Marta, A Família Medeiros e A
Silveirinha, de Júlia Lopes de Almeida, apresenta um retrospecto da mulher na
história do Brasil descrevendo aparentemente as vidas de mulheres no Brasil, do
século XIX. Relacionando mulheres fortes, determinadas, frágeis, covardes, como
Marta, bem como lutadoras e aparentemente alienadas, como Eva e finalizando,
com a protagonista Silveirinha, situada no Brasil do século XIX. Por meio da obra
tem-se uma possível representação da trajetória feminina neste país, possibilitando
perceber as mudanças de perfil das mulheres em cada época, que pouco a pouco
vai conquistando sua autonomia.
Em suma, Júlia Lopes de Almeida na sua obra romanesca A Silveirinha
aponta para as convergências e divergências culturais nos perfis femininos
representados na obra. A autora apresenta figuras femininas que tinham em comum
os mesmo desejo de frequentar as badaladas festas, ou seja, os bailes com o
propósito de arrumar marido. Divergente a essa situação, mostra ao público leitor
figuras femininas que não eram santas como antes aclamadas por autores de outros
séculos, bem como a representação de mulher de personalidade forte, com suas
convicções que, no caso era a manutenção do nome de solteira mesmo depois do
casamento.
Nesse caso, a obra Memórias de Martas apresenta consonâncias e
dissonâncias na sua narrativa, pois é consonante quando a protagonista Marta
almeja sua independência financeira e cultural e dissonante quando o discurso
patriarcalista domina no final do texto impondo a Marta o casamento como status
social.
No que diz respeito à obra A Família Medeiros, o discurso consonante parece
estar presente na luta a favor da abolição da escravatura, principalmente porque
tem-se uma protagonista lutando por esse devir. A dissonância apresentada na
narrativa está, no caso, provavelmente, cercada pelo aparente preconceito racial,
pois os lideres escravocratas eram contra a libertação dos negros escravos e ainda
desfavoráveis ao surgimento da República.
158

5 CONCLUSÃO

Em linhas gerais, este estudo teve por objetivo analisar a condição


feminina nas obras de Júlia Lopes de Almeida: de 1889 a 1914. Em particular as
narrativas de Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha.
Na presente análise foi possível fazer um levantamento sobre a trajetória
bibliográfica de Júlia Lopes de Almeida , assim como, a redescoberta dessa autora e
quais as ressonâncias da critica literária sobre a obra de Júlia Lopes de Almeida .

Com base no levantamento bibliográfico foi possível analisar a escrita


ficcional de Júlia Lopes de Almeida. Assim como levanta questões como: As
narrativas almeidianas possuíram ecos de uma escrita submissa ou transgressora?
A obra Memórias de Marta possuiu ecos da submissão? E A Família Medeiros teve
uma escrita militante? No que diz respeito a obra A Silveirinha seria essa uma
escrita transgressiva?

Com o estudo das narrativas almeidianas também permitiu uma análise


sobre os estratagemas do discurso narrativo em Memórias de Marta, a Família
Medeiros e A Silveirinha de Júlia Lopes de Almeida. Foram analisados os múltiplos
perfis femininos em Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha, bem
como o espaço como lugar da memória em Memórias de Marta, A Silveirinha e A
Família Medeiros. No estudo também se verificou as consonâncias e dissonâncias
nos perfis femininos de Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha. Ele
apresentou as vozes dissonantes na obra Memórias de Marta. Teve como temática
uma análise sobre a transfiguração do estereótipo feminino na obra A Família
Medeiros, e por fim, fez um estudo sobre a imagem do feminino em A Silveirinha.
Nas palavras de Constância Lima Duarte (2003), diferente do que ocorre em
outros países, existe entre os brasileiros uma forte resistência em torno da palavra
"feminismo". Fazendo uma recapitulação sobre o feminismo que foi um movimento
legítimo que atravessou várias décadas, e que transformou as relações entre
homens e mulheres, torna-se quase inexplicável o porquê de sua desconsideração
pelos formadores de opinião pública.
Pode-se dizer ainda que a vitória do movimento feminista é inquestionável
quando se constata que suas bandeiras mais radicais tornaram-se parte integrante
da sociedade, como, por exemplo, a mulher frequentar universidade, escolher
159

profissão, receber salários iguais, candidatar-se ao que quiser. Tudo isso, que já foi
um absurdo sonho utópico, faz parte da atualidade e ninguém não imagina mais um
mundo diferente.
Ao analisar essa somatória de fatores é possível concluir que se esta foi à
vitória do movimento feminista, um aparente ponto negativo foi ter permitido que um
forte preconceito, nesse sentido, gerado por causa de um inconsciente coletivo,
isolasse a palavra, assim não podendo se impor como motivo de orgulho para a
maioria das mulheres.
A reação desencadeada pelo antifeminismo, segundo Duarte (2003) foi tão
forte e competente, que não só promoveu um desgaste semântico da palavra, como
transformou a imagem da feminista em sinônimo de mulher mal amada, machona,
feia e, a gota d'água, o oposto de "feminina". Provavelmente, por receio de serem
rejeitadas ou de ficarem "mal vistas", muitas de nossas escritoras, intelectuais, e a
brasileira de modo geral, passaram enfaticamente a recusar tal título.
Ao adicionar outro fato, também é um ponto negativo do feminismo permitir
que as novas gerações, aparentemente, desconheçam a história das conquistas
femininas, os nomes das pioneiras, a luta das mulheres de antigamente que
denunciaram a discriminação, por acreditarem que, apesar de tudo, era possível um
relacionamento justo entre os sexos.
O problema de uma provável desinformação histórica acerca do feminismo
é, talvez, porque a história do feminismo não é muito conhecida, e tudo isso,
aparentemente, deve-se também ao fato de ser pouco contada. A bibliografia é
vasta e ampla, porém, o poder falocêntrico faz dessa, além de limitada, costuma
abordar fragmentariamente os anos de 1930 e a luta pelo voto, ou os anos de 1970
e as conquistas mais recentes. Na maior parte das vezes, entende-se como
feminismo apenas o movimento articulado de mulheres em torno de determinadas
bandeiras; e tudo o mais fica relegado a notas de rodapé.
Para Duarte (2003), deve-se pensar que o "feminismo" poderia ser
compreendido em um sentido amplo, como todo gesto ou ação que resulte em
protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de
seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de grupo. Somente
então será possível valorizar os momentos iniciais desta luta, no caso, contra os
preconceitos mais primários e arraigados, e considerar aquelas mulheres, que se
160

expuseram à incompreensão e à crítica, como sendo as primeiras e as legítimas


feministas.
Considerando que essa história teve início antes do século XIX, segundo
Mariana Coelho (2002), é possível sugerir a existência de pelo menos quatro
momentos áureos na história do feminismo brasileiro. Longe de serem estanques,
tais momentos conservam uma movimentação natural em seu interior, de fluxo e
refluxo, e costumam, por isso, ser comparados a ondas, que começam difusas e
imperceptíveis e, aos poucos, ou ainda, de repente, se avolumam em direção ao
clímax que pode ser considerado como o instante de maior envergadura, para então
refluir em uma fase de aparente calmaria, e novamente recomeçar.
Historicamente, as décadas em que esses momentos conceituados como
onda teriam obtido maior visibilidade, ou seja, em que estiveram mais próximos da
concretização de suas bandeiras, seriam em torno de 1830, 1870, 1920 e 1970.
Foram necessários, portanto, cerca de cinquenta anos entre uma e outra, com
certeza ocupados por um sem número de pequenas movimentações de mulheres,
para permitir que as forças se somassem e mais uma vez fossem capazes de
romper as barreiras da intolerância, e abrir novos espaços. (DUARTE, 2003).
No século XIX começam a emergir as mulheres que não se limitavam a
serem objetos ornamentais da casa e passam a querer fazer parte da sociedade
intelectual e dominada pelos homens. Século que o patriarcado fez e moldou a
historia com seus feitos e ao mesmo tempo tentou excluir desse meio as mulheres.
Mulheres que se opuseram a dominação patriarcal e que passaram a
apresentar ao mundo e, especificamente, no Brasil sua intelectualidade e sua
produção romanesca. Júlia Lopes de Almeida é uma das precursoras do movimento
feminista no Brasil, apesar de propagá-lo com uma aparente timidez. Seu legado
cultural apresenta fortes indícios de uma mulher à frente de seu tempo. Pois, ela nos
textos literários já embebe seu público leitor que o Brasil necessita de uma
revolução.
Nas obras estudadas nessa dissertação apresentou-se diversas figuras
femininas que, aparentemente, mostraram ao público leitor as diversas
representações de mulheres do século XIX. Figuras femininas que almejavam por
educação, no caso de Marta da obra Memórias de Marta. Assim como, a tradicional
Marta, no caso, a mãe que defendia o casamento como forma de status social, ou
161

seja, a dominação do patriarcado presente na ideologia feminina. Marta-mãe,


poderia ser considerada como uma representação da ideologia masculina.
Na obra A Família Medeiros, a figura feminina Eva luta pela abolição da
escravatura, bem como pela instauração da República. Assim, é possível perceber
uma mulher à frente do seu tempo e que já despertava pensamentos políticos. O
que para a sociedade do século XIX era algo inexequível. As mulheres deveriam
participar apenas dos círculos sociais como objetos ornamentais, pois não tinham o
direito de expor suas opiniões e tão pouco suas ideologemas.
A Silveirinha traz à tona uma figura feminina que tem o aparente discurso
dominante, no caso, as mulheres deveriam defender o discurso religioso, ou seja,
participar das missas e das reuniões do clero que envolvia as mulheres com o
objetivo de arrecadar doações para a Igreja. Silveirinha tem presente no seu
discurso um obcecado amor pelo catolicismo, o que poderia torná-la uma mulher
comum à sua época, porém seu diferencial é a não aceitação do nome do marido
depois de casada. Ou seja, ela mantem o nome de solteira. Ela faz imposições para
se casar e não deixa de lado suas ideologias religiosas, inclusive, apresenta em
algumas situações que o amor clerical está, aparentemente, acima de tudo e de
todos.
Júlia Lopes de Almeida apresenta figuras femininas diferentes e divergentes
das mulheres do século XIX, pois se a mulher não desfrutava de prestigio social, se
ela sempre fora apresentada como submissa ao homem, não se poderia esperar
que a produção feminina obtivesse a atenção e o valor que de fato mereciam, uma
vez que o objeto e o sujeito estão amalgamados.
Ao analisar o problema é possível concluir que esse não se encontra no fato
de que os componentes ideológicos são utilizados como elementos de valorização e
desprestigio literário, mas são manipulados de forma tão ardilosa, que
aparentemente passam a impressão de que não existem, de que não interferem na
canonização e no esquecimento de uma autora, de uma ou outra obra.
Júlia Lopes de Almeida apresentou ao público leitor diversos temas sem sair
da esfera doméstica. Na consecução de tal objetivo, a produção literária feminina
oitocentista pode ser uma seara para pesquisas que se voltem para o estudo do
doméstico como tema literário. Nas obras almeidianas, o doméstico é representado
em uma estética que o valoriza como um espaço de possíveis realizações femininas
162

e valorização da mulher. Juntamente a essa temática a escritora não deixou de


apontar os dramas e os receios presentes na esfera privada do lar.
A autora, aparentemente, ao falar do doméstico pode ter sido uma estratégia
não só para a mulher como escritora, bem como lutar contra todo discurso que dizia
o que deveria ser a mulher, sem nunca mulher alguma ter tido a real oportunidade
de dizê-lo.
O espaço privado pareceu ser um lugar de aprisionamento para muitas
mulheres, mas também serviu como espaço de resistência a partir do qual as
mulheres escritoras puderam falar e ouvir a si mesmas, puderam também se
perceber como grupo oprimido e a desenvolverem estratégias de autossuperação
contra os discursos falocêntricos.
Nas obras almeidianas é possível perceber figuras femininas usando esse
espaço privado como forma de resistência contra o discurso patriarcal. Na obra
Memórias de Marta, a protagonista criada em um cortiço carioca luta por melhorias
educacionais e pela independência financeira. Em A Família Medeiros, Eva que
circunda pela fazenda está em busca da liberdade dos negros e da instauração da
República. Em A Silveirinha, a figura feminina rompe com o discurso patriarcalista
quando mantém seu nome de solteira depois do casamento.
Ao perceber tal manobra ideológica e também se valendo dela, as mulheres
escritoras, como Júlia Lopes de Almeida seguiram as trilhas dos temas amenos,
como por exemplo, casamento, educação doméstica, maternidade, entre outros.
Importante salientar que nos séculos XIX e XX, a maioria dos romances tinha como
público leitor as mulheres, assim é possível imaginar que esses romances estavam
interessados somente em contar histórias, mas principalmente em mimetizar os
modos de ser e de existir que eram tidos como socialmente esperados.
Dentro dessa lógica de raciocínio, aparentemente, personagens como Marta,
Eva e Silveirinha não vão apenas atuar pedagogicamente no interior da trama
romanesca, mas elas vão extrapolar a esfera do mundo narrativo, instruindo
mulheres. Esse aspecto aponta para a relevância dos escritos almeidianos que, aos
poucos, vão atuando na construção de uma cultura feminina que vai criticar o
discurso do patriarcado.
As narrativas almeidianas que pareciam comungar com o discurso do
patriarcado, na verdade, aparentemente, desempenhava papeis significativos no
desenvolvimento da família e do país. Temáticas como a educação, a abolição da
163

escravatura e a critica ao fanatismo religioso foram de suma importância para a


construção cultural feminina.
Júlia Lopes de Almeida foi muito hábil em construir suas narrativas, embora
não visasse romper com as estruturas e os papeis socialmente aceitos, almejava
mudanças sociais porque não referendava o status quo feminino vigente. Assim
sendo, o que parecia serem temáticas amenas, eram na verdade, temáticas que
subvertiam os padrões literários patriarcais, obtendo um aparente reconhecimento
quando a regra geral deveria ser o esquecimento.
É sabido que no século XIX a mulher encontrava-se restringida à casa e
interditada para a vida pública, confinada à arquitetura patriarcal. Inúmeras
dificuldades foram vencidas para ocorrer o desprender dos padrões que apontavam
a mulher como louca, quando a mesma se dedicava ao ato de escrever. Mas, em
uma perspectiva de voo livre, muitas mulheres escreveram e investiram para
publicar seus sonhos, seus impulsos subversivos e melodramas. No caso, Júlia
Lopes de Almeida que tinha nas suas obras temáticas domésticas e que por isso
comungava do aparente, discurso patriarcalista, através de suas obras também
instruiu as mulheres acerca da educação, da politica e do fanatismo religioso.
Júlia Lopes de Almeida como uma mulher produtora de discursos e de
saberes reivindicava, desde então, um espaço de discussão que a possibilitasse
instaurar um recorte diferencial na escrita e leitura de textos literários. A presença da
mulher, no tecer da composição como escritora, como leitora, ou como personagem
protótipo da libertação feminina, aparentemente, já fazia parte do interesse e da
preferência dessa mulher que buscava tratamento igual perante a sociedade.
No Brasil, quando a leitura foi vista com caráter institucional juntamente com
a literatura estiveram intimamente ligadas, e ainda, relacionadas às questões de
poder e de ideologia. Ao lançar um olhar para a tentativa de organização de uma
literatura brasileira, percebe-se que a distribuição do saber e da cultura no território
nacional foi desigual e que as mulheres foram prejudicadas em todo o seu
progresso.
A abertura de escolas femininas nas principais províncias lançava o olhar de
valorização na literatura e na escrita, mas trazia oculto em sua grade curricular a
aspectos determinantes veiculados a inferioridade intelectual das mulheres. Ensiná-
las a ver que eram incapazes de pensar ou escrever, como os meninos,
contemplavam os interesses dos poderosos que viam na educação o objetivo maior
164

de preparar as mulheres para sua vocação de mulher. Júlia Lopes de Almeida


visava, aparentemente, a desconstrução desse pensamento falocêntrico, e na sua
obra Memórias de Marta, já apresentava uma figura feminina que almejava por uma
educação.
O obstáculo maior que as autoras enfrentaram ao descobrir-se escritoras se
prendia a “autodefinir-se em virtude da socialização”, segundo mostra Norma Telles
(1992). A função da mulher era particularmente habilitar-se na condução do lar o que
priorizava a presença masculina autoritária, em todos os sentidos. Então, as
escritoras para serem reconhecidas, teriam de preservar uma conduta amorosa
limitada e engrandecida sob essas orientações.
Em um mundo à parte, a mulher parecia viver restrita a um espaço,
rigidamente estabelecido, padecendo limitações e oprimida pela “natureza feminina”
que a apontava como “anjo do lar”, “maternal” e “delicada”, e seus escritos teriam
que passar por estes temas o que a diferenciaria dos homens. Júlia Lopes de
Almeida, aparentemente, comungava do discurso masculino, mas em suas obras
como Memórias de Marta, A Família Medeiros e A Silveirinha traz à tona temáticas
que desconstruía o patriarcalismo.
O discurso presente nas narrativas almeidianas não visava à alteração nas
relações de gênero, pelo contrário, ele almejava que a mulher pudesse circular nas
esferas sociais sem que fosse preciso fazer-lhes concessões. Júlia Lopes de
Almeida fez do exercício literário uma bandeira de luta pela igualdade entre os
sexos, de forma que as diferenças entre o masculino e feminino fossem marcadas
não pela segregação, mas pela valorização positiva, ou seja, pelo reconhecimento
da diferença em meio à igualdade de direitos e deveres.
O interesse por uma história das mulheres surgiu aos poucos. Isso é devido a
um lento processo que põe em destaque no final do século XIX, principalmente para
a antropologia histórica, o papel da família como célula fundamental da sociedade.
Ao longo da história, a imagem do feminino esteve ligada a ambiguidades. Os
homens, aqueles a quem cabiam os relatos à posteridade, expressavam seus
sentimentos e opiniões de forma dupla, ora demonstrando amor e admiração às
mulheres, ora demonstrando ódio e repulsa. O olhar masculino reservava às
mulheres imagens diferentes, sendo em determinados momentos um ser frágil,
vitimizado e santo, e, em outros, uma mulher forte, perigosa e pecadora.
(BURKE,1997).
165

Nas palavras de Burke, levando em consideração que o Brasil foi colonizado


por ocidentais, pode-se concluir que os homens no Brasil possuíam os mesmos
conceitos, em relação à mulher, que os moradores do velho continente. Assim,
desde o período colonial a exigência de submissão, recato e docilidade foi imposta
às mulheres. Essas exigências levavam à formação de um estereótipo que relegava
o sexo feminino ao âmbito do lar, onde sua tarefa seria a de cuidar da casa, dos
filhos e do marido, e, sendo sempre totalmente submissa a ele.
Uma mulher escritora no século XIX era algo inimaginável, pois para o
sistema patriarcal a mulher deveria exercer sua função primordial de “rainha do lar”.
Quando esta passa a produzir textos literários, a classe dominante as
desconsiderava e as deixavam fora da História. Porém, de acordo com Michelle
Perrot (2012), se há uma representação espontânea da imagem do século XIX como
um século sombrio e opressivo para as mulheres, é um pensamento,
aparentemente, equivocado, pois seria errado pensar essa época como a de
dominação e submissão das mulheres a uma codificação coletiva e precisa e
socialmente elaborada. Assim sendo, a mulher passa a ser atriz do movimento
social e luta pela igualdade de direitos.
Por fim pode-se inferir que Júlia Lopes de Almeida, aparentemente,
comunga desses preceitos patriarcais, pois suas obras possuem temáticas que
abordam os afazeres domésticos e a maternidade. Porém, como estrategista, seus
escritos literários apresentam para o seu público leitor, na maioria, mulheres, pitadas
de uma revolução no meio social, pois apresenta a essa sociedade feminina a
possiblidade de educação como forma de melhoria intelectual.
Júlia Lopes de Almeida mostra, também, as mulheres leitoras que a política é
para todos e não somente para os homens, que é preciso pensar na instauração de
uma República. E ainda, na sua narrativa faz uma crítica ao fanatismo religioso.
Assim sendo, a condição feminina nas obras de Júlia Lopes de Almeida traz à tona
representações femininas que aspiram por mudanças nas ideologemas do discurso
patriarcalista, pois a esfera do privado almeja também o direito pela igualdade
cultural, bem como o seu reconhecimento pela até então aparente cultura
dominante, ou seja, o patriarcado.
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