Sie sind auf Seite 1von 36

DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,

POLÍTICAS PÚBLICAS E PESSOAS PRIVADAS


(PASSADO, PRESENTE E FUTURO DE UMA PERENE TRANSFORMAÇÃO)*

Egon Bockmann Moreira**

RESUMO: O Direito Administrativo brasileiro ABSTRACT: The Brazilian Administrative


e sua relação com a economia estão passando Law and its relation with the economy
por transformações radicais. Esse novo cenário are suffering dramatic changes. This new
exige a formulação de novas perguntas, que scenario demands new questions, wich can
revelem a compreensão do que hoje de fato reveal an understanding of what actually is
se passa no Direito brasileiro – sobretudo na happening today in Brazilian Law - especially
integração público-privada. in the public-private integration.

Introdução introdução de um de seus livros uma série de


dúvidas que se tornaram célebres: “Pourquoi
Logo ao início do século passado, em étudier spécialement les transformations
1913 propriamente, L. Duguit lançou na du droit public? Le droit, comme toutes
les choses sociales, n’est-il pas en un
état perpétuel de transformation? Toute
* O presente texto foi a base da exposição do autor
no “VII Encontro Cainã: o Direito e o futuro, o futuro étude scientifique du droit n’a-t-elle pas
do Direito”, realizado no Bussaco Palace Hotel, em nécessairement pour objet l’évolution
Portugal, de 21 a 23 de janeiro de 2008. Agradeço em
muito a honra do convite que me foi formulado pelo
des instituitions juridiques? Étudier les
Professor Doutor António José Avelãs Nunes. O texto transformations du droit public, n’est-ce pas
é o resultado da consolidação das notas referentes a étudier tout simplement le droit public?”1
algumas palestras feitas pelo autor no segundo semestre
de 2007. A decisão pela forma escrita deve-se sobretudo Esse desafio acenava para a inutilidade
ao incentivo recebido do Professor Doutor Almiro do de se investigar de forma autônoma algo que,
Couto e Silva, a quem agradeço pela gentil (e firme)
recomendação de que eu transformasse algumas das
notas em um artigo. Meu muito obrigado também às
revisões feitas pelos amigos Andreia Cristina Bagatin, ** Professor da Faculdade de Direito da Universidade
Bernardo Strobel Guimarães e Lauro Antonio Nogueira Federal do Paraná.
Soares Junior. Os erros, desvios e as omissões são de 1
Les transformations du droit public. Paris: La
exclusiva responsabilidade do subscritor. Mémoire du Droit, 1999 (reprod. da ed. de 1913), p. ix.

75
por si, só já era a principal característica dessa utilidade do estudo apurado da especificidade
disciplina, quem sabe a sua própria razão de de tais transformações radicais, quase
existir. Tão entranhado que é com o político equivalentes à própria Revolução. Havia
(basta a lembrança às palavras de Gomes mudanças em certos temas que instalavam
Canotilho, da Constituição como o estatuto esse “período crítico”, as quais somente
jurídico do político), o Direito Público seria um observador atento detectaria, e fazia-se
algo em constante transformação. Ora, se necessário cravar um ponto estático, um
pesquisar as alterações significa simplesmente alfinete no mapa cronológico, estabelecendo
estudar a principal característica do Direito o antes e o depois do Direito Público.
Público, para que se perder tempo e escrever Mal sabia ele o que ainda estava por vir.
um livro a respeito de algo que não possui Quase um século depois, não só em França,
dignidade científica? Não haveria aqui um mas também nos demais países influenciados
problema de foco, de abordagem autônoma pelo sistema francês de Direito Público,
de algo por demais elementar? Talvez fosse todos estão a passar por transformações
mais fácil e prático deixar as mutações para os ainda mais céleres e revolucionárias do que
cientistas políticos ou sociólogos do Direito e aquelas vivenciadas por Duguit. Alterações
reter o Direito Público como ele desde sempre que não são periódicas nem sistemáticas
se apresentou (nunca a mesma coisa). nem circunscritas a um ou outro aspecto
Como se sabe, Duguit não ficou só na da disciplina e muito menos se submetem
instigação. Segundo a sua tese, o Direito a juízos de probabilidade. As fronteiras
Público exigia essa investigação porque então estão a ser transpostas – importando, p.
passava por “transformações particularmente ex., a coabitação entre institutos típicos
profundas e ativas”, reveladoras “de um da common law em países cujos sistemas
período crítico”. Vivia-se um momento de outrora lhes eram antagônicos (e vice-
alterações extraordinárias, que atingiam as versa). Melhor dizendo: hoje, todo o Direito,
raízes da disciplina. O sistema de Direito Público e Privado, é objeto de sérias e
Público das nações ocidentais, estruturado constantes mutações – algumas simpáticas,
em torno da soberania do Estado e do outras nem tanto; algumas explícitas, outras
direito natural dos indivíduos (subjetivo imperceptíveis – muitas das quais incutem
e inalienável), era aquele construído pela perplexidade nos aplicadores. Sem exagero,
Declaração dos Direitos de 1789. Essa passa-se por um continuum de transformações
concepção, “metafísica e individualista”, esparsas e fragmentadas.
estava a ser trocada por um sistema jurídico Como vivemos no olho desse furacão, é
“realista e socialista”, o qual suprimia a difícil compreender o que efetivamente nele
hierarquia entre os sujeitos e fazia com que se passa – o porquê e o para quê disso tudo,
o conceito de serviço público substituísse o seu começo e o seu fim (se é que este um
mesmo o de soberania. O serviço público, dia existirá). O incontornável subjetivismo
com caráter desenvolvimentista de integração existencial, ao mesmo tempo em que torna
nacional e bem-estar social, tornava-se a parcial a interpretação, exige um esforço
quintessência do Direito Público. Daí a superlativo para tentar entender para onde

76
se vai. Isso num cenário que revela a pressa instalará um obstáculo desnecessário. De
histórica; a mundialização dos temas culturais nada adianta falar em “crise” do Direito
e econômicos; o forum shopping (e também o Público e de sua contingência, se em verdade
legal shopping); a aridez a que foi submetida esta é a sua estrutura atual. Não se trata de
a soberania dos Estados e, last but not least, gostar desse novo paradigma, mas de tentar
a retirada do Poder Público de alguns setores compreendê-lo (e quiçá transformá-lo). Aliás,
relevantes e a sua ocupação por pessoas e como o próprio Duguit esclareceu há quase
privadas (com tudo o que isso pressupõe e cem anos atrás, a evolução não merece ser
acarreta para o Direito Público). compreendida como algo que um dia chegará
Este acanhado ensaio colocará foco e tornar-se-á estanque e exaurida, como
especial em algumas das transformações ora se algo pudesse interromper um processo
cotidianas e pretenderá alinhavar o início histórico-dialético. Mas por ora não vale a
de novas perguntas a ser feitas, sobretudo pena adiantar algumas das considerações
no cenário brasileiro. Guardadas as devidas finais deste ensaio.
proporções e contextualizações, parece que Em assim sendo, este texto não aspira
não só persistem os desafios instalados ao a explicar esse fenômeno complexo, mas
início do século passado, mas que a resposta apenas a modestamente lançar luzes sobre
para este século XXI é justamente a primeira um aspecto relevante – que aqui é tido como
das incitações postas por Duguit: hoje em revelador de várias facetas do que hoje se
dia, estudar o Direito Público é meramente vive. O eixo central da exposição está na
estudar as transformações dele (num plano habitualidade do estabelecimento e satisfação
bastante mais amplo). O transcorrer de quase de políticas públicas por meio de pessoas
um século o consolidou com um núcleo duro privadas – as quais ocuparam o espaço vazio
dinâmico cuja metamorfose é constante. deixado pelo Poder Público – e em algumas
Há uma alteração de foco no objeto de das repercussões dessa constatação para o
investigação, pois se há algo de estável no Direito Público. Ou melhor: uma vez que não
Direito Público contemporâneo é a certeza há vácuo no poder (ou se o ocupa ou alguém
da incontinência de suas mudanças. já o ocupou), o que “era do”/”era o” Estado
Estamos portanto diante da necessária já foi preenchido. Isso exposto na condição
redefinição das perguntas a ser postas. Não de uma novidade estrutural no Direito
porque as respostas tenham sido encontradas Público (mais propriamente no Direito
(ou sejam mais facilmente detectáveis com Administrativo) e nos limites da atribuição
novas perguntas), mas sim porque o problema de tarefas públicas a particulares como uma
mudou, as dúvidas estão num outro plano e o das matrizes do desenvolvimento nacional.
objeto da investigação deve ser outro. Quem Ao que tudo indica, está em curso uma nem
hoje se perguntar a respeito de se vale a pena tão sutil mas muito profunda transformação
estudar as transformações do Direito Público nas relações público-privadas (sem que ela
(ou, o que é pior, tentar impedi-las) perderá se apresente como consumativa).
o seu tempo. Estará num momento lógico Para além desta introdução, o texto
anterior ao exigido pelo tempo presente e é dividido em três partes: a primeira

77
trata da inconsistência lato sensu das hodierna do que vem a ser política brasileira
políticas públicas brasileiras; a segunda, de desenvolvimento acaba por se tornar
da configuração tradicional do Direito circunscrita a “subsídios tributários” e
Público brasileiro (em face da economia e “guerras fiscais” entre os Estados-Membros
políticas públicas) e a terceira diz respeito às (muitas delas postas por terra pelos governos
mutações do Direito Público e à participação subseqüentes ou mesmo pelo controle de
das pessoas privadas nas políticas públicas constitucionalidade do STF2).
desenvolvimentistas (o que isso significa São escassos os exemplos históricos
e como se apresenta em termos de Direito quanto a políticas de desenvolvimento em
Administrativo material, com um par de sentido próprio, sobretudo se examinados
exemplos). Será proposta uma correlação em termos de consistência para o longo
dessas perspectivas, com dois objetivos: prazo e seus balanços finais. Até a década
detectar uma explicação quanto ao passado e de 1980, o País sobreviveu às custas de um
propor a respectiva dinâmica da transposição programa de substituição de importações,
para o presente e futuro. Ao encerramento, depois sucedido por nada que se estendesse
serão apresentadas as considerações finais no tempo (e que houvesse sido implementado
(rectius: algumas provocações). com esse desiderato). Nesse percurso, nem
mesmo o “Plano de Metas” do Governo
1 A inconsistência das políticas Kubitschek alcançou homogeneidade: por
públicas brasileiras um lado, limitou-se a implementar indústrias
que aplicavam técnicas desenvolvidas no
1. Chega a ser um lugar-comum a estrangeiro (sem capacidade de inovação3) e
afirmação de que o Brasil não dispõe de
tradição em políticas públicas estáveis,
compreendidas como o planejamento em 2
Há várias decisões que suspendem programas
longo prazo das ações estatais de estrutura. desencadeadores da “guerra fiscal” na federação (v.g.,
ADI-MC 3936-PR, Min. Gilmar Mendes, DJ
Embora seja maçante essa repetição, fato é que 9.11.2007; ADI 3246-PA, Min. Carlos Britto, DJ
não se deu a consolidação funcional na ação 1º.9.2006; ADI 1308-RS, Min. Ellen Gracie, DJ
do Estado para o desenvolvimento do País. 4.6.2004).

O que desde sempre ocorreu foram medidas 3


Como pontifica A. J. Avelãs Nunes: “Quanto
à penetração de tecnologia através de empresas
ad hoc, premidas pelos prazos das eleições.
multinacionais, é importante salientar que os empresários
Situação hoje agravada pelos conflitos de brasileiros sempre preferiram associar-se ao capital
personalidade entre os poderes constituídos estrangeiro para obter a tecnologia de que careciam.
O estado, por seu turno, nunca definiu uma política
(o Executivo a legislar “provisoriamente”; o
científica e tecnológica, nas universidades ou fora delas,
Judiciário a estabelecer políticas públicas e a tendo em vista as necessidades decorrentes da acumulação
legislar; o Legislativo a julgar e a implementar do capital e do desenvolvimento económico num país
como o Brasil e nunca pautou a sua presença e actuação
as leis criadas pelo executivo). Uma visão
no processo de acumulação capitalista no sentido de
otimista poderia descrever que isso vem aos intervir como intermediário, na aquisição de tecnologia,
poucos se alterando, com a preservação e o entre o ‘capitalismo nacional’ e as multinacionais.”
(Industrialização e desenvolvimento: a economia política
prestígio a diretrizes públicas ao longo do
do ‘modelo brasileiro de desenvolvimento’.” São Paulo:
tempo. Mas infelizmente a compreensão Quartier Latin, 2005, pp. 238-239).

78
se prestou a projetar a escalada da inflação; longo prazo) com negócios administrativos
por outro, há quem afirme que nem sequer do Estado (plano microeconômico de
um planejamento stricto sensu ele chegou médio ou curto prazo). Não há nitidez
a configurar.4 que permita dissociar os planos. O que
2. A situação se agrava nos dias de se agrava em decorrência da combinação
hoje, sobremodo porque já se passou o de projetos heterogêneos com a falta de
tempo da cogitação a propósito de uma coordenação entre os executores (basta o
política industrial de “grandes projetos”, das exemplo das autoridades ambientais vs. as
“grandes empresas nacionais”. Mesmo no de política energética). A título de anunciar
que respeita às subvenções, o que existe é um planejamento arrojado, o governo leva à
uma ampla heterogeneidade dos objetivos e imprensa os contratos administrativos que
programas, conjugada com a especificidade pretende celebrar e os subsídios fiscais para
das pesquisas científicas e respectivos o próximo exercício fiscal. Logo, não existe a
mercados. Por exemplo, o Estado já não política pública concebida como um plano de
estimula a construção de uma ferrovia norte- longo prazo com foco num determinado setor
sul, ligando toda a Nação, mas sim projetos da economia vital ao país e em toda a rede a
de nanotecnologia, íntimos a certo setor de ele circundante. O que se dá é a divulgação
de determinado contrato público ou certo
determinada indústria. A finalidade orienta-se
ato de regulação pública da economia ou de
a empreendimentos que podem desencadear
medidas esparsas de desoneração tributária.
grandes inovações tecnológico-industriais.
Se há alguma articulação entre tais atos, é
Também por isso há uma preocupante
contingente e não um pressuposto formal/
ausência de homogeneidade nos programas
substancial para a sua implementação.5
de desenvolvimento.
Esse desvirtuamento de foco vem
A rigor, existe uma certa confusão no
fazendo com que micro torne-se macro e o
setor: misturam-se políticas públicas de
circunstancial, estrutural. Em decorrência,
desenvolvimento (plano macroeconômico de
a visão macro e a concepção estruturalista
de projetos perdem a sua razão de ser.
4
Quanto à inflação, M. H. Simonsen, 30 anos Dá-se uma seqüência interminável de eventos
de indexação. Rio de Janeiro: FGV, 1995, pp. 16-19; desconectados entre si: onde está escrito
quanto à inexistência de planejamento, E. R. Grau,
Planejamento econômico e regra jurídica. São Paulo:
“política pública” lê-se “empreitada de obra
RT, 1978, p. 138 ss. A teorização jurídica a propósito pública”, “concessão de serviços públicos”
de políticas públicas no Brasil pode ser vista em: F. K. ou “empréstimo bancário”. O Ministério do
Comparato, “Juízo de constitucionalidade de políticas
públicas” (in C. A. Bandeira de Mello (org.).
Planejamento, Orçamento e Gestão tornou-
Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, vol. 2. São se apenas um “Ministério do Orçamento”.6
Paulo: Malheiros, 1997, pp. 343-359); M. P. Dallari
Bucci, Direito administrativo e políticas públicas. São
Paulo: Saraiva, 2002; T. L. Breus, Políticas públicas 5
A leitura do Plano de Aceleração de Crescimento
no Estado constitucional. Belo Horizonte: Fórum,
do Governo federal confirma a tese. V. http://www.brasil.
2007; E. Bockmann Moreira, “Anotações sobre a
gov.br/pac/. Acesso em 10 de janeiro de 2008.
História do direito econômico brasileiro (Parte II:
1956-1964)”, RDPE 11/121-143. Belo Horizonte: 6
Em tese, ao nível federal o órgão central é o
Fórum, jul./set. 2005. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

79
O que o Estado brasileiro tem proposto como (setores) antagônicos em boa parte da
política pública é uma seqüência de momentos academia brasileira, numa constante
desenvolvimentistas independentes, em síndrome de tensão e disputa, com escassez
velocidade e falta de conexão incompatíveis de estudos abrangentes.7 Os temas pertinentes
com o que se pode conceber como planejamento à economia, dentre eles o desenvolvimento,
estatal da economia. eram tratados como secundários e (ou)
3. No entanto, isso não é novo (nem irrelevantes. Sem dúvida, havia e há exceções,
tampouco se poderia imputar responsabilidade mas os motivos para essa dissociação são
a este ou a aquele Governo). Inclusive, muito difíceis de estabelecer. Cinco apostas
é possível a cogitação a propósito de ser merecem ser colocadas em debate, todas
(ou não) esse o modelo próprio ao sistema simbióticas entre si.
capitalista contemporâneo, fragmentado e 4.1 A primeira diz respeito à super-
dinâmico, que não sobrevive sem o Estado, afetada influência kelseniana-normativista
mas que dele se vale com outras técnicas. de boa parte dos juristas brasileiros, somada
O ritmo imposto pela nova realidade mundial à formação francesa de significativa parcela
exige essa dúvida (não o conformismo, mas de nossos publicistas. Ora, Kelsen publicou
a consciência a respeito dela). Por isso que alguns de seus textos mais afamados ao
a tentativa de explicação (parcial) demanda início do século XX, praticamente no mesmo
a diminuição da abrangência da pesquisa e período em que se consolidou a primeira
encaixa-se melhor na segunda parte desta grande fase da escola francesa do Direito
exposição, que diz respeito ao modelo Administrativo. Contexto que trazia as
tradicional de Direito Público brasileiro e repercussões do fim do século XIX. Essa
à antiga configuração (assim se espera) da combinação gerou uma estrutura normativa
economia brasileira. fechada e auto-suficiente para a compreensão
do Direito Público, com lastro em modelos
2 O desenvolvimento nacional, paradigmáticos que se pretendiam mundiais
as intempéries econômicas e e atemporais. Ambos persistiram fortes
o Direito Público quando menos até a década de 1980, com
importantes reflexos na formação dos juristas
4. Até pouco tempo, Direito Público e
brasileiros.8
desenvolvimento econômico eram temas

7
Salvo a memória falha, até o início da década
Digo em tese porque quem estabelece e implementa as
de 1980 havia no Brasil só dois livros dedicados aos
políticas públicas é sobremodo o Banco Nacional de
aspectos jurídicos do planejamento: E. R. Grau,
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com
Planejamento econômico e regra jurídica. São Paulo:
sucessivos presidentes de escolas e escopos diferenciados,
RT, 1978, e W. P. Albino de Souza (org.), Direito
além do Banco Central do Brasil (BACEN), com seu
econômico do planejamento. Belo Horizonte: Curso de
garrote rentista. Quem sabe um dia haverá participação
Doutorado da Faculdade de Direito da UFMG, 1980.
da enigmática Agência Brasileira de Desenvolvimento
Industrial – ABDI (Lei 11.080/2004 e Decreto 5.352/2005). 8 Ressalve-se que não existe um levantamento
Não sem uma pitada de ironia, permito-me chamar a estatístico, o que põe em xeque a assertiva, mas o estudo
atenção para o fato de que, também na esfera pública, são do Direito Público no Brasil é apto a gerar esse sentir
os bancos que definem a política brasileira. (aliás, até pouco tempo era comum a assertiva jocosa

80
Assim, relevante parcela do Direito XIX”) e as distâncias eram muito maiores,
brasileiro foi concebida como um sistema essas perspectivas foram-se consolidando
fechado, imune e incomunicável com outras mais e mais, demorando a chegar e a passar,
ciências sociais. As normas jurídicas eram tal como camadas geodésicas que com o
o único tema sobre o qual o jurista deveria transcorrer dos anos se acomodam e firmam
se debruçar; a economia era assunto dos a base para as próximas gerações (de juristas
economistas. As repercussões econômicas e de disciplinas jurídicas).
das normas e de sua aplicação eram assuntos 4.2 Pois a segunda proposta está
impertinentes e irrelevantes para os juristas. exatamente na juventude do Direito
Por outro lado, o Direito Público era aquele Econômico. Como descendente do Direito
oriundo do longínquo Pacto de Westfalia, Administrativo, nasceu há pouco tempo na
que firmou o Estado como o titular único dos História e ainda não definiu com precisão
assuntos públicos e o soberano representante os seus limites e o seu conteúdo. Não
da Nação (ao seu interno e para fora dela). A existem lindes perfeitos, mas sim a constante
soberania estatal então concebida (consolidada seqüência de expansões dilatadoras de seu
nas revoluções burguesas do século XVIII) espectro e respectivas retrações definidoras
instalava esferas excludentes: ou o assunto era de uma disciplina em evolução. O Direito
público ou era privado. Ao Estado cumpria Público da Economia é um jovem pouco
exercer e fazer respeitar de forma coativa mais de meio século de existência – que
a ordem pública, em nome do interesse gera intensos debates, inclusive quanto à sua
público por ele exclusivamente detido – que denominação, autonomia e relações com as
o transformava também em monolítica fonte demais disciplinas jurídicas.
normativa. Às pessoas privadas supostamente Refletindo tese de ampla aceitação,
se garantia a liberdade, a individualidade Comparato sintetizou a compreensão acerca
e a autonomia para gerir os seus interesses da origem histórica do Direito Econômico
pessoais – e só eles (patrimônio, contrato e como uma disciplina que nasceu depois da
família – esses eram os assuntos privados). Primeira Guerra Mundial.9 Situação acentuada
Como até meados do século passado o pela Grande Depressão da década de 1930, em
tempo demorava a transcorrer (não é devido razão da qual: “A posição estatal de simples
a um descuido que se fala no “longo século árbitro do respeito às regras do jogo econômico
não tinha razão de ser, desde o momento em

de que havia juristas brasileiros “mais kelsenianos


que o próprio Kelsen”). Afinal, não foi por acaso que 9
“O indispensável direito econômico.” RT 353/15.
surgiram e assumiram a dimensão que hoje têm as teorias São Paulo: RT, 1965. No mesmo sentido: W. P. Albino de
do “Direito Alternativo” e do “Neoconstitucionalismo”. Sousa, Primeiras linhas de direito econômico. 4.ed. São
Igualmente, não se tem a ousadia de imputar nada de Paulo: LTr, 1999, p. 48 ss.; F. F. Scaff, Responsabilidade
mal a isso (ou de “errado”), mas se está apenas a tentar civil do Estado intervencionista. 2ª ed. Rio de Janeiro:
descrever um momento histórico com firmes reflexos Renovar, 2001, p. 81 ss.; V. Moreira, Economia e
na compreensão do papel do Estado e do Direito na Constituição. Coimbra: FDUC, 1970, p. 135 ss. Acerca
economia. De mais a mais, o subscritor também bebeu e do período anterior, v. A. de Laubadère, Direito público
bebe naquelas fontes (o primeiro parágrafo deste ensaio económico. Trad. M. T. Costa. Coimbra: Almedina,
prova demais). 1985, p. 36 ss.

81
que os diferentes protagonistas deixavam de equivocadas estavam algumas das premissas
jogar. A se porfiar no otimista ‘laissez faire’, neoclássicas, pois a inflação deixou de ser um
ter-se-ia na prática um ‘laissez ne pas faire’. desvio circunstancial e passou a fazer parte da
Incumbia a alguém reimpulsionar a máquina lógica interna ao sistema, no qual ela convivia
econômica paralisada, e êste alguém só com o desemprego crescente num mercado
poderia ser o Estado.”10 oligopolista, onde quanto menor o poder
Com variações de Estado para Estado aquisitivo da população, maiores os custos
(regimes totalitários, regimes democráticos, automaticamente imputados aos produtos.
fascismo, capitalismo liberal, socialismo O quadro era genuinamente caótico.11
etc.), só há pouco tempo a integralidade da Para se ter uma idéia da balbúrdia em que
economia tornou-se uma questão da política se vivia no auge dessa incompreensibilidade,
pública superior brasileira, instaurando-se de 1986 a 1992 o Produto Interno Bruto (PIB)
também a planificação e o planejamento teve a média de 0,6% ao ano (com 4,40%
econômico. A intervenção estatal passou negativos em 1990). No período mais crítico,
a envolver não só os sistemas tributário, a inflação foi de: 65,00% (1986); 416,00%
financeiro e monetário, mas igualmente (1987); 1.038,00% (1988); 1.783,00%
a participação direta, o planejamento, os (1989); 1.476,71% (1990); 480,23% (1991);
incentivos, a fiscalização e o controle de 1.157,84% (1992) e 2.708,17% (1993).
toda (ou quase toda) a economia. De um O salário mínimo sofreu variação negativa
mero espectador, alheio à dramaturgia de 18,50% em 1987 e 1993. A fatura dos
econômica, o Estado tornou-se seu principal
produtor, roteirista, diretor e ator. (Mas
11
Sobre a evolução e complexidade da economia
isso não persistiu, como será mais bem
brasileira, consulte-se: 1) para uma compreensão
examinado abaixo.) panorâmica, desde os albores da República até os dias de
4.3. Neste ponto se pode passar ao hoje: W. Baer, A economia brasileira. 2.ed. São Paulo:
Nobel, 2002; M. de Paiva Abreu (org.), A ordem do
terceiro palpite para a mútua exclusão progresso: cem anos de política econômica republicana,
acadêmica entre Direito e economia, que se 1889-1989. 16ª tir. Rio de Janeiro: Campus, 1990; 2) para
refere à ilegibilidade da economia brasileira. o período de 1930 até o “milagre” e seus percalços: R.
Bielschowsky, Pensamento econômico brasileiro:
Desde a década de 1930, com clímax nas de o ciclo ideológico do desenvolvimentismo, 1930-1964.
1980 e 1990, o Brasil viveu os fenômenos 4.ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000; A. J. Avelãs
Nunes, Industrialização e desenvolvimento: a economia
da inflação (depreciação do poder aquisitivo
política do ‘modelo brasileiro de desenvolvimento’.” São
da moeda combinada com alta contínua Paulo: Quartier Latin, 2005; 3) a respeito da inflação e
e substancial dos preços), estagflação seus remédios amargos: M. H. Simonsen, 30 anos
de indexação. Rio de Janeiro: FGV, 1995; F. Lopes,
(inflação simultânea ao aumento da taxa
Choque heterodoxo: combate à inflação e reforma
de desemprego) e hiperinflação (índices de monetária. 2.ed. Rio de Janeiro: Campus, 1986; L.
inflação muito elevados e fora de controle). C. Bresser-Pereira e Y. Nakano, Inflação e
recessão: a teoria da inércia inflacionária. 3.ed. São
A rigor, a economia brasileira demonstrou que Paulo: Brasiliense, 1991; 4) sobre o passado e o futuro do
“plano real”: L. G. Belluzzo e J. G. de Almeida,
Depois da queda: a economia brasileira da crise da
10
F. K. C omparato , “O indispensável direito dívida aos impasses do real. Rio de Janeiro: Civilização
econômico.” RT 353/16. São Paulo: RT, 1965. Brasileira, 2002.

82
excessos – públicos e privados – já não Deu-se um notório alargamento do espaço
mais esperava o passar dos anos; os abusos jurídico-econômico do Estado, que se
do presente passaram a ser cobrados à vista espraia até hoje tanto nos serviços públicos
(somados aos custos do passado). (que abrangem desde as ferrovias até a
Tome-se como exemplo os anos de 1992 e TV a cabo, passando pelas loterias) como
1993. Respectivamente, o PIB foi de (-)0,90% e nos monopólios legais (petróleo, energia
4,92%; a inflação de 1.157,84% e 2.708,17%; o radioativa) e nas atividades econômicas
salário mínimo variou de 20,00% a (-)18,50%. privadas (bancos, informática etc.).
Constata-se com facilidade quão inacessível Logo, há décadas o modelo jurídico-
era a economia brasileira, tornando proibitivo econômico é o de uma economia
um planejamento econômico consistente eminentemente pública, com os bens e fatores
(público ou privado). Nem mesmo as de produção de propriedade direta ou indireta
projeções mais conservadoras poderiam do Estado (não obstante as Constituições
estimar os riscos numa economia cuja celebrarem o sistema capitalista). O Poder
inflação ultrapassava os dois mil por cento Público domina a economia nacional de forma
ao ano. Vivia-se no reino das aplicações assistemática, mediante gestão e por meio de
overnight. Assim, como pensar no longo incentivos ou regulação (esta mais prestigiada
prazo em termos jurídicos? De que maneira a partir da década de 1990). Em economias
seria possível dedicar-se à compreensão como esta, pode-se dizer que algumas das
jurídica dos fenômenos econômicos? Ora, principais questões são estatais interna
se nem mesmo os economistas conseguiam corporis, máxime nos períodos de repressão.
interpretar esses hieróglifos estatísticos, o que
se poderia exigir dos juristas?
quase 30% em 1976/77. Em 1974, mais de 39% dos
4.4 Pois a quarta aposta é uma ativos líquidos das maiores companhias pertenciam
derivação das três anteriores: ela reside no a empresas públicas. Percentual que aumentou para
48% em 1985 (com 43% de empresas privadas – os
relacionamento jurídico do Estado brasileiro
investimentos deveram-se aos empréstimos do BNDES
com a economia. O modelo da intervenção no setor de bens de capital, com juros subsidiados – e
direta (a gestão empresarial pública) foi 9% de multinacionais). Em 1985, os bancos estatais
respondiam por 40% dos depósitos e 44% dos
instalado e consolidado a partir da década
empréstimos comerciais (entre os 50 maiores bancos);
de 1930 e teve seu apogeu na de 1970. Boa os bancos de desenvolvimento respondiam por 70% dos
parte dos principais setores da economia, empréstimos destinados a investimentos. Em 1990, as
tanto em volume de investimentos como estatais representavam o seguinte faturamento entre as
maiores companhias dos respectivos setores: serviços
em importância socioeconômica, eram públicos, 100%; aço, 67%; químicos e petroquímicos,
de titularidade e administração públicas 67%; mineração, 60%; transporte, 35%; distribuição
(petróleo, energia, telecomunicações, aço, de gasolina, 32%; fertilizantes, 26%; equipamentos de
transportes, 21%. Tudo isso sintetizado nesta frase: “Essa
portos, ferrovias, aeroportos, bancos etc.).12
intervenção multifacetada do ‘Estado’ na economia não
é monolítica, mas, na verdade, tem sido freqüentemente
caracterizada por uma ausência de coordenação e
12
Alguns poucos dados comprovam a tese: os comunicação entre as várias entidades envolvidas.” (W.
investimentos de empresas públicas na formação total Baer, A economia brasileira. 2.ed. São Paulo: Nobel,
de capital eram de 10,3% em 1973 e aumentaram para 2002, p. 297 – fonte dos dados acima transcritos).

83
Foram mais de 30 anos de ditadura militar, recheado com aumento dos salários no setor
antecedida pelas caricaturas governamentais público; prorrogação de medidas visando
de Jango e Jânio, as quais repercutiram na a resultados políticos (a composição da
prática os excessos de Vargas e Kubitschek. Assembléia Nacional Constituinte é devedora
A assimetria de informações era brutal: o do congelamento de preços); subsídios e
Estado possuía dados que as pessoas privadas isenções; manipulação das taxas de overnight
(economistas ou juristas, tanto faz) não pelo Banco Central; transferência de renda
tinham acesso ou não conseguiam desvendar. para as empresas estatais; empréstimos
Isso num cenário em que a aversão estatal ao compulsórios sobre combustíveis, compra
planejamento de longo prazo era tratada com de moeda estrangeira e passagens para o
indiferença pelos juristas. exterior; reajuste de preços públicos; aumento
4.5. Por fim, e como quinto indício dos impostos indiretos etc.
revelador da distância entre o estudo da O “plano” experimentou variações:
economia e o do Direito, é de se mencionar
ascensão com o “Cruzado” (queda da
o trauma causado pelos assim denominados
inflação até junho de 1986), declínio com o
“planos econômicos” (nenhum deles um
“Cruzadinho” (imobilidade do governo ante
plano em sentido estrito). Os principais foram
batizados de “Cruzado”, “Bresser” e “Collor”. a escassez de produtos e agravamento das
Em todos houve um entrechoque do jurídico contas externas, até outubro de 1986) e morte
com o econômico. Mal saído da ditadura, com o “Cruzado II” (até junho de 1987, com
o País foi submetido a uma série de ações retorno das taxas altas de inflação).14
econômicas violentas por parte do Estado. 4.5.2. Em junho de 1987, surgiu o
4.5.1. Em fevereiro de 1986, o “Plano “Plano Bresser”, que se apresentava como
Cruzado” instituiu o “cruzado” como moeda um algo híbrido (ortodoxo e heterodoxo)
nacional. Deu-se o congelamento de preços, e também teve duas fases: a primeira, com
além da proibição de cláusulas contratuais o congelamento seguido da flexibilização
de indexação. Não houve compensação (julho a dezembro de 1987), e a segunda
pela perda da inflação (passada ou futura). (janeiro a dezembro de 1988), voltando à
Foi estabelecido um “fator de conversão” ortodoxia. Ao final de 1988, a economia
para a nova moeda e uma “deflação” dos matava a saudade da hiperinflação. Apesar
pagamentos futuros, dando margem a de os preços terem sido congelados, antes
uma série de litígios judiciais.13 Tudo isso disso houve aumentos para aqueles públicos
e administrados (eletricidade, leite, telefone,
13
Uma rápida pesquisa é reveladora: só a expressão aço, pão e combustíveis). O plano pôs foco
“plano cruzado” revelou 15 acórdãos no STF (http://
www.stf.gov.br); 326 acórdãos no STJ (http://www.
stj.gov.br); 689 acórdãos na jurisprudência unificada 14
E. Mondiano, “A ópera dos três cruzados:
dos tribunais regionais federais (http://www.jf.gov.br/ 1985-1989”, in M. de Paiva Abreu (org.). A
juris/); 403 acórdãos no TJSP (www.tj.sp.gov.br) e 219 ordem do progresso: cem anos de política econômica
acórdãos no TJPR (www.tjpr.gov.br). Acessos no dia republicana, 1889-1989. 16ª tir. Rio de Janeiro: Campus,
7 de janeiro de 2008. 1990, p. 360.

84
primário na preocupação com o déficit público a mais uma enxurrada de ações judiciais.17-18
(o que contribuiu para seu o malogro, pois os Em 1991, deu-se o “Plano Collor II”,
gastos do governo só aumentaram).15 felizmente sem maior peso na História.
4.5.3. Logo ao seu início, em 1990 4.5.4. Foram mais de cinco anos de intenso
o governo C ollor promoveu o “Plano descontrole da economia unido a reiteradas
Collor” (ou “Brasil Novo”), que teve como medidas de choque – que produziam por
notas principais: a) conversão da moeda pouquíssimo tempo os efeitos esperados e,
nacional; b) congelamento de preços e devido à ausência de um planejamento de
salários; c) retenção de ativos depositados maior consistência, desmoralizavam-se e
em instituições financeiras (80% de todos pioravam ainda mais a economia nacional.
os que ultrapassassem os cinqüenta mil Todas essas providências geraram forte
cruzados novos); d) indexação de impostos reação no mundo do Direito. Além de
(para afastar o efeito Tanzi) e cobrança do a economia estar em convulsão, houve
IOF sobre ativos financeiros; e) aumento dos uma série de normas jurídicas baixadas
preços dos serviços públicos; f) eliminação unilateralmente pelo Governo federal (sob
de incentivos fiscais, liberação do câmbio a forma de Decretos-lei ao tempo da EC
e extinção de órgãos públicos. Elevando à
máxima potência as concepções monetaristas,
17
A análise jurídica do “plano Collor” pode ser
deu-se a supressão da moeda circulante. vista em: F. K. Comparato, “Recolhimento forçado,
Sem liquidez, as taxas de inflação baixaram ao Banco Central, de saldos de contas bancárias”, in
_______. Direito público. São Paulo: Saraiva, 1996,
– mas o mesmo se deu com a atividade
p. 179-193; G. F. Mendes, “A reforma monetária
industrial, o comércio, os salários ... Ou seja, de 1990 – problemática jurídica da chamada ‘retenção
se nos planos anteriores o congelamento dos ativos financeiros’ (Lei nº 8.024, de 12.04.1990)”,
RDA 186/26-92. Rio de Janeiro: Renovar, out./dez.
foi parte substantiva, no “Plano Collor I, o 1991; D. F. Moreira Neto, “A reforma monetária
congelamento foi adjetivo. O que derrubou a e a retenção dos ativos líquidos no Plano Brasil
Novo”, Revista de Informação Legislativa 108/49-
inflação, num primeiro momento, foi a brutal 66. Brasília: Senado Federal, out./dez. 1990; L. C.
redução de liquidez resultante do confisco e Sturzenegger, “Expurgo da correção monetária
no Plano Collor e situação dos mutuários”, RDB 1/85-
seqüestro de 75% dos ativos financeiros em 93. São Paulo: RT, jan./abr. 1998. Para um exame
poder do público.”16 quanto à constitucionalidade das variações dos índices
de correção monetária, direito adquirido e respectiva
Além disso, houve uma alteração do jurisprudência temática, v. C. A. Bandeira de
índice para cálculo da correção monetária Mello, “Contrato administrativo – direito ao equilíbrio
econômico-financeiro – reajustes contratuais e os planos
(conhecida como “expurgo”), que deu início Cruzado e Bresser”, RDP 90/98-110. São Paulo: RT,
abr./jun. 1989; T. A. Zavascki, “Planos econômicos,
direito adquirido e FGTS” RTDP 22/64-76. São Paulo:
15
Também aqui se faz menção a uma rápida Malheiros, 1998, e L. R. Barroso, “Crise econômica
pesquisa: o “plano Bresser” revelou 157 acórdãos no e direito constitucional”, RTDP 6/32-63. São Paulo:
STF (http://www.stf.gov.br); 633 acórdãos no STJ Malheiros, 1994.
(http://www.stj.gov.br); 1.057 acórdãos na jurisprudência 18
Em breve pesquisa, o “plano Collor” revelou 225
unificada dos tribunais regionais federais (http://www.
acórdãos no STF (http://www.stf.gov.br); 1.472 acórdãos
jf.gov.br/juris/); 1.505 acórdãos no TJSP (www.tj.sp.gov.
no STJ (http://www.stj.gov.br); 4.413 acórdãos na
br) e 208 acórdãos no TJPR (www.tjpr.gov.br). Acessos
jurisprudência unificada dos tribunais regionais federais
no dia 7 de janeiro de 2008.
(http://www.jf.gov.br/juris/); 1.849 acórdãos no TJSP
16
M. H. Simonsen, 30 anos de indexação. Rio (www.tj.sp.gov.br) e 295 acórdãos no TJPR (www.tjpr.
de Janeiro: FGV, 1995, p. 107. gov.br). Acessos no dia 7 de janeiro de 2008.

85
n.º 1/1969 e, a partir de outubro de 1988, consolidação ao longo do tempo das cinco
na condição de Medidas Provisórias – sem constatações acima descritas e seus efeitos.
se falar nos decretos, portarias e instruções Deu-se a implementação de algo assemelhado
normativas), muitas das quais modificando ao “racional ignorante” de Downs: a escolha
contratos e vínculos estatutários. As técnicas consciente de não adquirir informação, já que
e os modelos jurídicos de que se valiam o custo para a obter é muito maior do que o
os choques econômicos prestavam-se a possível benefício que porventura decorreria
instalar conflitos com os temas mais caros ao de a possuir.19 A informação econômica era
constitucionalismo (estabilidade e segurança; muito cara e trabalhosa de ser digerida pelos
separação dos poderes; limites ao exercício juristas, sem assegurar quaisquer benefícios
do poder público; devido processo legal; ato aos investigadores.
jurídico perfeito e direito adquirido; liberdade 6. Como consideração secundária,
de empresa; direito de propriedade; vedação pois isto não é um privilégio do sistema
ao confisco etc.). Não era de se admirar que brasileiro, não é de se descartar o fato de
o estudo dos fenômenos econômicos criasse que o planejamento econômico estanca as
repulsa aos juristas. escolhas dos governantes, ao passo em que
5. Em suma, o que se pretende com a a atuação das pessoas privadas diretamente
conjugação das cinco apostas acima é um nas políticas públicas e nas alternativas de
esboço da compreensão em torno da qual desenvolvimento suprime boa parte daquela
o tradicional Direito Público brasileiro foi esfera de poder. O enjaulamento não interessa
vivenciado a partir de meados do século XX, ao animal político – em não existindo pautas
em específico na sua difícil convivência com fixas, as políticas de governo conduzem as
a economia. Caso exista alguma concordância de Estado (e não vice-versa). Além de não
com tais prognósticos, poder-se-á avançar na haver quaisquer incentivos, esvaziando os
redefinição das perguntas a ser feitas. interesses e a pauta de tais temas, até pouco
Por ora são relevantes as seguintes tempo não existia um controle efetivo dos
constatações: (1ª) vivia-se num Estado
gastos públicos (o que se deu ao início
titular único do interesse público (esferas
deste século XXI). Se essa exclusão ao
substitutivas: ou Estado ou particulares), no
planejamento e à participação da sociedade
qual o Poder Público era o dono das tarefas
civil é própria dos regimes ditatoriais, ao que
econômicas relevantes; (2ª) a economia era
tudo indica alguns de seus vícios persistiram.
incompreensível (presente e futuro); (3ª) não
Não causa perplexidade que fossem poucas
havia planejamento econômico; (4ª) boa
as preocupações jurídicas quanto ao
parcela da academia jurídica era naturalmente
desenvolvimento econômico e escassa a
fechada à economia; (5ª) deu-se uma série de
“planos” que, valendo-se do Direito como integração imediata das pessoas privadas em
instrumento de ação, instalaram o debate tais projetos. O desenvolvimento brasileiro
jurídico contrário às “soluções econômicas”
então implementadas. 19
Uma teoria econômica da democracia. São
Não é de se admirar o significativo Paulo: EDUSP, 1999. V. também S. Peltzman, “How
afastamento entre o pensamento jurídico efficient is the voting market?”, in _____. Political
participation and government regulation. Chicago: Univ.
e o econômico. Igualmente é natural a Chicago, 1998, pp. 78-115.

86
deu-se antes aos trancos e barrancos do que Tampouco é de se desprezar o impacto –
propriamente mediante uma perspectiva ainda que relativo – causado pelo Programa
integradora de longo prazo. Nacional de Desestatização (PND), que desde
1990 é um instrumento oficial de política
3 A econo m ia brasileira pública (Lei 8.031, de 12 de abril de 1990,
torna-se legível sucedida pela Lei 9.491, de 10 de setembro
de 1997). O PND é um dos principais
7. Ao menos em parte, esse cenário mecanismos do processo de reforma do
começou a assumir outra configuração a Estado, pois tem como objetivo fundamental
partir de meados da década de 1990. Ao “reordenar a posição estratégica do Estado na
mesmo tempo em que uma série de ações economia, transferindo à iniciativa privada
estatais foram suprimidas (planos agressivos; atividades indevidamente exploradas pelo
gastos excessivos e descontrolados, p. ex.), setor público” (Lei 9.491/1997, artigo 1º,
abriram-se as portas para a participação dos inciso I). Esta lei, que vige e é aplicada
particulares. Ora, o País já havia passado nos dias de hoje, começou a reordenar a
pela “transição democrática”, que se tornou convivência entre os espaços público e
firme com a promulgação da Constituição privado. O mesmo se diga quanto às Leis
brasileira em 1988. As eleições diretas; a 8.987/1995 e 9.074/1995 (concessões e
estabilidade política decorrente do processo permissões de serviços públicos).
de impeachment do Presidente; os esforços A mais recente Reforma Administrativa
pela estabilização sócio-econômica em do Estado brasileiro, cujo referencial pode ser
tomado na EC 19/1998 (e leis esparsas que
patamares democráticos – a conjugação de
a antecederam e a ela se seguiram), merece
todos esses fatores permitiu a instalação de
ser destacada como algo que atenuou alguns
um novo patamar histórico de transformações
dos encargos do Estado (para o bem ou para
(isso consciente e influenciado pelo que se
o mal) e visou a instalar uma gama de novas
passava no mundo circundante: Mercosul,
diretrizes ao exercício das tarefas públicas.
União Européia; globalização; liberalizações;
Para que essa mutação estatal pudesse ser
queda do Muro etc.).
implementada foi necessária a alteração da
Sem que se pretenda fixar uma relação
concepção da gestão pública, aproximando-a
causal absoluta, fato é que a partir de 1994 de modelos de gestão privada. A reforma
foi implementada uma série de medidas pretendeu instalar alguns novos ângulos de
de estabilização econômica (o “Plano abordagem da administração estatal, com
Real”), a qual conferiu certa legibilidade temas extravagantes ao modelo anterior – que
à economia brasileira, que melhorou com o envolvem palavras algo heréticas (eficiência,
passar do tempo. A inflação foi contida por usuário, administração gerencial, metas,
meio de um plano econômico gradual, sem incentivos, controle de resultados etc.). Aqui
choques ou agressões a direitos. A partir o modo de funcionamento da máquina estatal
de 1994, o Estado e sua economia foram visou a se aproximar do estilo privado de
se tornando menos irracionais, atenuando gerência de atividades econômicas, tornando
os riscos e as incertezas. mais interligados os modelos.

87
Da mesma forma foi significativa a 4 A compreensão do Direito
edição da Lei de Responsabilidade Fiscal numa economia estável
(Lei Complementar 101/2000), que pretendeu
8. Claro que há outros tantos dados a ser
impedir o desequilíbrio orçamentário dos
considerados, ao mesmo tempo em que não
entes públicos – fazendo com que a receita
se pode apresentar tais mudanças como se
seja vinculada à expectativa de arrecadação possuíssem apenas aspectos positivos. Mas
(medida levando em conta a conjuntura fato é que a economia brasileira começou a
econômica, o recebimento da dívida e a se tornar legível a partir da segunda metade da
renúncia fiscal), ao lado de despesas limitadas década de 1990 – tanto em termos econômicos
e ainda mais restritas no último ano do como jurídicos, permitindo que o Direito
mandato eletivo. Desde então, há o dever de encontrasse uma nova função, sobretudo
composição do orçamento com base no tripé em razão e em cumprimento aos termos da
equilíbrio fiscal, planejamento tributário e Constituição da República brasileira.
limites dos gastos públicos. O Estado viu-se Desde então, o Direito Público não é mais
impedido de emitir moeda irresponsavelmente visto apenas como o tradicional apaziguador
das relações sociais e o obstáculo às agressões
e de gastar sem lastro orçamentário.
do Estado, tal qual o Direito Privado dos
Se fosse possível resumir os temas a quatro
séculos XVIII e XIX (estabilidade nas
frases que representam as tendências acima
relações e paz social, por meio da defesa
descritas, teríamos: estabilidade política e
do Estado, da propriedade e da família),
econômica; lógica da coordenação econômica
mas também como condição essencial à
(em sucessão às lógicas da substituição e da estabilidade e segurança dos futuros projetos
subsidiariedade); racionalidade das contas econômicos (públicos e privados) essenciais
e administração públicas; atenuação das ao desenvolvimento nacional. Abdicando de
assimetrias de informação. Esses aspectos uma função reativa e retrospectiva (solução
geraram incentivos à aproximação entre dos conflitos já postos), o Direito é aplicado
os juristas e a economia; entre o mundo do como instrumento ativo, formal e material, do
dever-ser e o desenvolvimento econômico. desenvolvimento econômico. Abrem-se novos
Mas a estabilidade jurídico-econômica horizontes prospectivos aos juristas, que
passam a agir mais intensamente na disciplina
decorrente dessa síntese história e respectivas
do planejamento e do desenvolvimento
mutações no mundo do Direito não envolveu
econômico (além das intervenções normativa
nem resultou, como seria de se esperar pela
e de gestão na ordem econômica). A visão está
experiência pretérita, num “momento critico” posta em outros ângulos e visa à aproximação
seguido de um “período pós-crítico”. Ao a outras fronteiras.
contrário, o que se deu foi o incremento dos Além disso, muitas das distinções entre o
ânimos e dos ritmos de mudança – não há fases Direito Público e o Direito Privado tornaram-
estanques, mas um processo intermitente. se frágeis, permitindo uma convivência franca

88
de alguns institutos marcantes das disciplinas construída uma ponte segura, uma teoria
(com o que se instalaram os dilemas da jurídica consistente que permita a interligação
“constitucionalização do Direito Civil” ou entre os planos (o que derrogou parte da
“civilização do Direito Constitucional”, nos arrogância dos juristas, que imaginam poder
dizeres de Gomes Canotilho20). transformar o pobre em rico e a água em vinho
9. Mas, infelizmente e não obstante toda por meio de leis). A esperança está numa das
essa evolução, o Direito é ainda um tanto principais preocupações dos dias de hoje, que
quanto rude no trato com temas de economia. é a vivência e a integração entre o jurídico
O mundo dos fatos persiste implacável, por e o econômico. Dois exemplos confirmam a
mais bem redigida e mais minuciosa que seja a tese: tanto os estudos de Análise Econômica
norma. O Direito muitas vezes pretende, mas do Direito como as atuais concepções a
jamais vergará a qualidade férrea do mundo
respeito da função social do contrato e
do ser – e isso incomoda à compreensão
da propriedade.22
fundada na estabilidade clássica das normas
Mas, afinal de contas, neste instante
jurídicas e na caduca voluntas legis (afinal, integrativo do Direito Público e da Economia,
se há vontades legais, boa parte delas não como pode colaborar o Direito? Ou sob
chega a ser satisfeita21). Até agora não foi outro ângulo: qual a transformação que tais
fatos promoveram e vêm promovendo na
configuração tradicional do Direito Público?
20
“Civilização do direito constitucional ou
Quais os novos ângulos desenvolvimentistas,
constitucionalização do direito civil? A eficácia dos
direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no
conceito do direito pós-moderno”, in E. R. Grau e W.
S. Guerra Filho, Direito constitucional: estudos em 22
No primeiro caso, v. P. A. Forgioni, “Análise
homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros,
econômica do Direito: paranóia ou mistificação?”, in
2001, pp. 108-115.
J. N. de Miranda Coutinho e M. M. B. Lima
21
Basta o exemplo do artigo 192, § 3º, da (orgs.), Diálogos constitucionais: direito, neoliberalismo
Constituição brasileira, que de 1988 a 2003 vigiu com e desenvolvimento em países periféricos. Rio de
a seguinte redação: “§ 3º – As taxas de juros reais, nelas Janeiro: Renovar, 2006, pp. 419-422; A. D. Faraco
incluídas comissões e quaisquer outras remunerações e F. M. Santos, “Análise econômica do Direito e
direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, possibilidades aplicativas no Brasil”, RDPE 9/27-61,
não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; Belo Horizonte: Fórum, jan./mar. 2005. No segundo,
a cobrança acima deste limite será conceituada como C. Salomão Filho, “Função social dos contratos:
crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, primeiras anotações”. RDM 132/7-24. São Paulo:
nos termos que a lei determinar.” Já na ADI 4-DF, o STF Malheiros, out./dez. 2003; “Direito como instrumento
consignou: “Não é de se admitir a eficácia imediata e de transformação social e econômica”, RDPE 1/15-44.
isolada do disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de Belo Horizonte: Fórum, jan./mar. 2003; “Breves acenos
juros reais (12 por cento ao ano), até porque estes não para uma análise estruturalista dos contratos”, RDPE
foram conceituados. Só o tratamento global do sistema 17/41-74. Belo Horizonte: Fórum, jan./mar 2007; L. E.
financeiro nacional, na futura lei complementar, com a Fachin, Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro:
observância de todas as normas do ‘caput’, dos incisos Renovar, 2000; E. Cortiano Junior, O discurso
e parágrafos do art. 192, e que permitira a incidência jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:
da referida norma sobre juros reais e desde que estes Renovar, 2002; P. Nalin, Do contrato: conceito pós-
também sejam conceituados em tal diploma.” (Min. moderno. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2007; E. Bockmann
Sydney Sanches, DJ 25.6.1993). O limite nunca Moreira, “Reflexões a propósito dos princípios da
foi aplicado (a não ser em decisões judiciais) e foi posto livre iniciativa e da função social”, RDPE 16/27-42.
por terra na EC 40/2003. Belo Horizonte: Fórum, out./dez. 2006.

89
para além daqueles exclusivos do Estado? 5 A quebra da desigualdade
Onde são colocadas as pessoas privadas e a participação dos
e que papéis elas desempenham? E numa particulares nas políticas
perspectiva integrada, posta com lastro no públicas
que foi acima consignado a propósito da
11. Conforme acima demonstrado,
lógica da coordenação: qual a racionalidade
até a década de 1990 o Estado brasileiro
inerente a algumas das mudanças que
era o agente produtor e prestador de não
contribui para uma transposição do modelo
só dos serviços públicos, mas também de
tradicional?
algumas das principais atividades econômicas
10. Chegou-se ao momento que exige
nacionais. Ele se arrogava a condição de
um esboço do que se passa na essência do monopolista do interesse público. Como nos
Direito Público contemporâneo, naquilo monopólios privados, em que o monopolista
que acima foi consignado como lógica é um price maker, não um price taker, no
da cooperação, a suprimir a dissociação monopólio do interesse público o Estado
absoluta entre o Estado, os particulares e é um public interest maker, não um public
o desenvolvimento econômico. Trata-se da interest taker.
constatação de que as mutações do Direito Considerações à parte o modelo de
Público permitem flexibilizar o modelo representação democrática das fábulas
clássico de desigualdade, hierarquia e políticas de Rousseau e Montesquieu (e
exclusão recíproca do relacionamento das seus núcleos duros de abstração para a
criação das respectivas teses), fato é que,
pessoas privadas com o Estado.
uma vez firmado o titular da “vontade”
Antes, o Direito Público vivia sob o
pública, cabia a ele dizer o que era o interesse
primado de três máximas: desigualdade
público. E a expressão “interesse público”
(um Estado detentor de prerrogativas
passou a ser uma espécie daquilo que Jèze
extraordinárias, unilateral e com presunção argutamente qualificou de “fórmulas-gazua”:
de legitimidade iuris tantum); hierarquia uma fórmula de estilo, sem significações
(superioridade inquestionável do Estado, exatas, que permite ao administrador público
formal e substancial) e exclusão recíproca abrir as portas que lhe convier.23 Bastava
(ou Estado ou sociedade civil). Agora, quase a personificação de seu titular para que se
tudo mudou: de produtor, roteirista, diretor pudesse dizer o que era o interesse público
e protagonista das mais importantes ações (tanto em termos de ação estatal pontual
de desenvolvimento econômico, o Estado como nas escassas políticas públicas).
passa a coadjuvante e, quando muito, a O conceito antes era subjetivo-formal (e não
produtor executivo. O cenário talvez seja o objetivo-material). Por mais que se insistisse
em remetê-lo à lei (instalando novamente
mesmo, mas quem elabora os argumentos,
o ciclo vicioso do princípio da legalidade,
produz, dirige e protagoniza o espetáculo
são as pessoas privadas. É o que se pretende
tratar com o exemplo da última parcela desta
23
Principios generales del derecho administrativo,
vol. III. Trad. J. N. San Millán Almagro. Buenos Aires:
exposição, antes das considerações finais. Depalma, 1949, p. 235.

90
suas aberturas e fechamentos), o “interesse confundia autoridade com autoritarismo,
público” era a marca maior da Administração passa a ser parcialmente sucedida por uma
personalista (resta saber se, nos dias de hoje, Administração plurilateral, cooperadora
resta-lhe alguma utilidade digna). e interativa (quiçá democrática). As
Igualmente devido a essa razão, a transformações no relacionamento da
Administração sentia-se confortável no economia pública com os agentes privados
exercício de seus atos unilaterais e na (e vice-versa) foram igualmente marcantes,
posição de superior hierárquico (tanto nas derivadas da atenuação da presença estatal e
relações interna corporis como na vivência dos novos instrumentos normativos que então
com as pessoas privadas). Um só fato surgiram (além da legibilidade conferida à
confirma a tese: a edição da lei de processo economia nacional). Com isso procurou-se
administrativo, que no Brasil só ocorreu em introduzir na Administração Pública modelos
1999 (Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999). de gestão empresarial, com a definição prévia
Até então, as cogitações a respeito de um de objetivos, a racionalização eficiente de
processo administrativo davam-se em sede recursos (públicos e privados), o alcance de
de defesa contra atos unilaterais agressivos metas e diretrizes e as formas contratuais
do Estado (autuações fiscais; desapropriação; de gerenciamento. Tudo isso em sucessão
sanções disciplinares de servidores etc.). aos mecanismos de comando e hierarquia,
Na medida em que havia duas esferas auto- muitos dos quais vítimas da degeneração do
excludentes, o processo era uma mera técnica funcionamento da burocracia.
de defesa, não o direito-garantia à formação Constatação que se acentuou com o
democrática da decisão administrativa.24 ritmo mais intenso do final século XX e
12. Ocorre que, contemporaneamente início do XXI. O Estado-Administração
às mudanças na economia brasileira, essa abdicou de muitos monopólios públicos
antiga concepção jurídica também começou (deixou de os executar – mas não lhes virou
a se alterar e a flexibilizar o modelo clássico as costas) e passou a regulá-los visando a
da Administração Pública desigual. O que fins que transcendem o clássico modelo
se desdobrou no relacionamento das pessoas unilateral: foram estabelecidos deveres de
privadas com o Poder Público e também no serviço público e metas de universalização
que respeita à definição e implementação a serem atendidas, pena de supressão do
de políticas públicas (ou ao menos em direito à exploração dos serviços. O Estado
determinadas ações desenvolvimentistas). outrora titular exclusivo do interesse público
A Administração Pública unilateral, vê-se sucedido por um Estado que se vale da
impositiva e excludente, detentora única iniciativa privada para atingir fins públicos,
da “supremacia” do interesse público, que numa lógica cooperativa, horizontal e
integradora (o Poder Público ao lado
24
Sobre o processo administrativo como uma
da iniciativa privada). O Estado outrora
mudança estrutural no Direito Público, v. E. Bockmann monocêntrico, que prestava os serviços
Moreira, “O processo administrativo no rol dos direitos públicos e definia quem os poderia prestar,
e garantias individuais”, RTDP 43/126-135. São Paulo:
Malheiros, 2003. vê-se envolvido num processo de sucessão

91
por um Poder Público que privatiza (material enfim, áreas nas quais “não basta declarar
e formalmente), concede, autoriza e regula a concorrência, é preciso construí-la.” 26
os serviços públicos (e interage em outras O capitalismo sabe bem forjar as suas armas,
das demais atividades econômicas), muitos para utilizar a célebre expressão de Ripert.
deles com características concorrenciais. Igualmente de forma paradoxal ao
O antigo Estado definidor das tarefas de liberalismo e ao monopólio estatal do
interesse público convive com a instalação “interesse público”, a iniciativa privada
de atividades públicas por iniciativa e gestão passa a desenvolver atividades de interesse
de pessoas privadas. O espaço público público em favor de terceiros e por iniciativa
passa a ser espontaneamente ocupado pelos própria – concretizando aquilo que até pouco
particulares. O Estado passa a ver o interesse tempo apenas o Estado poderia fazer (ou teria
público ser definido e implementado extra a legitimidade para).27 Algumas delas têm fim
muros, deixando de ser apenas ele o public lucrativo, mas o que interessa a este ensaio
interest maker. Assim, responsabilidade de são aquelas que não possuem esse atributo,
garantia atribuída ao Estado contemporâneo é pois avessas ao que se convencionou chamar
muitíssimo mais complexa do que as outrora de “mercado”.
por ele detidas.
À evidência, não é um evento que teve 6 O s atos ad m inistrativos
começo, meio e fim – mas sim de uma consensuais e o
contínua transformação. Na síntese de P. desenvolvimento econômico
Gonçalves, ao menos em alguns setores
trata-se de um processo de “acomodação 13. Assim, e a propósito de descrever
do papel do Estado às novas coordenadas essas metamorfoses, a exposição poderia

jurídicas e económicas, por via da conversão


de sua antiga responsabilidade operativa ou
de execução (Estado de serviço público) numa
26
As expressões entre aspas são, respectivamente,
de M. M. Leitão Marques, J. P. S. de Almeida
nova responsabilidade pública de garantia e e A. M. Forte, “Regulação sectorial e concorrência”,
de regulação (Estado regulador).”25 RDPE 9/130. Belo Horizonte: Fórum, jan./mar. 2005;
P. Dutra, “Concorrência em mercado regulado”, in
Como que em um paradoxo aos conceitos
_____. Livre concorrência e regulação de mercados.
do liberalismo, a regulação pública da Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 283; e M.-A. Frison-
economia presta-se a criar mercados. Quem Roche, “Os novos campos da regulação”, RDPE
10/199; Trad. T. Morais da Costa. Belo Horizonte:
desfaz o monopólio, instala e mantém o Fórum, abr./jun. 2005.
mercado é o Estado. Isso sobrecarregado 27
O artigo trata do universo da licitude das ações
pela visão de que essa concorrência é gerada privadas em setores públicos, mas não é de se olvidar
a “golpes de regulação” e se dá em setores daquela zona cinzenta, com fortes tons de ilicitude,
que envolve a segurança pública prestada por pessoas
“cuja estrutura é hostil à livre concorrência” –
privadas armadas (tanto em termos individuais – as
empresas regulares de segurança empresarial, domiciliar,
bancária etc. – como em termos coletivos, nos “grupos
25
“Regulação das comunicações electrónicas em paramilitares” e “milícias civis”, cujos exemplos mais
Portugal”, RDPE 15/162. Belo Horizonte: Fórum, jul./ notórios são os que existem em municípios do Estado
set. 2006. do Rio de Janeiro).

92
agora tratar das parcerias público-privadas pesquisa científica etc.). A percepção deste
(que no contexto brasileiro são uma espécie de aspecto é o que mais interessa a esta parcela
concessão de serviço público cuja instalação da exposição.
e execução são em tudo adversas ao modelo O que aqui se descreve é uma reforma
antigo dos contratos administrativos de administrativa do Estado exógena à própria
concessão) ou mesmo da emanação de Administração Pública, uma projeção e
normas jurídicas por parte das agências transfiguração do Direito Público para
reguladoras (e o seu processo de elaboração, além de seu principal personagem. Sem
que conta com a participação ativa não só expropriar o espaço público, as pessoas
dos agentes econômicos interessados, mas privadas avançam no trato da coisa pública.
é aberta à comunidade, devendo o regulador Sem abdicar de seu múnus, o Estado
apreciar fundamentadamente todas as transfere tarefas públicas aos particulares.
propostas ao modelo normativo posto à A política e o desenvolvimento coletivos são
consulta pública) ou quem sabe o processo tarefas lançadas para o exterior do Estado-
administrativo instalado por quem dispõe Administração, mediante a “publicização”
não de um direito subjetivo, mas de um (ao menos parcial) de atividades das pessoas
interesse (questões urbanísticas, ambientais, privadas; a “privatização” (informal) de
regulatórias). Porém, há um assunto que fragmentos do espaço público e a criação de
autoriza um exame específico em vista a sua um “setor público não-estatal”, cuja principal
contrariedade a alguns dos paradigmas mais diretriz é a realização de tarefas públicas
tradicionais do setor público e mesmo dos (de interesse público) por entidades alheias
mercados privados. à estrutura do Poder Público. Por ação ou
Isso porque esse Estado em incessante omissão, o Estado retirou-se de parte do
processo de transformação também aceita, setor público (ou ao menos deixou de nele
convive e admite, senão promove e estimula ampliar o seu raio de ação), instalando os
(rectius: fomenta) a instalação por pessoas respectivos prolongamentos internos ao setor
privadas de atividades públicas avessas aos privado (contratuais e (ou) estatutários), com
“mercados”. Atividades prestacionais que autonomia de ação e de regime jurídico para
não têm a pedra de toque do capitalismo,
as pessoas privadas.28
pois não geram lucro (ou ao menos não o têm
Isso se dá tanto em serviços públicos cuja
como escopo primário – pois, se resultado
prestação é avessa à “lógica de mercado” quanto
positivo houver, deverá ser reinvestido
em atividades que não o são, mas têm por objeto
e não distribuído). Empreendimentos os
o bem-estar social (direta ou indiretamente
quais os particulares – indivíduos e pessoas
atingido). São empreendimentos de interesse
jurídicas – realizam visando a beneficiar
público que a sociedade civil instala, organiza
terceiros, usualmente aqueles mais carentes
porque excluídos da cidadania. Tudo isso a
incidir em setores cujo bom trato é essencial 28
Isso sem se falar no complexo problema da
atribuição de poder público às pessoas privadas – objeto da
ao desenvolvimento econômico (educação,
monumental tese de P. Gonçalves (Entidades privadas
saúde, redução das desigualdades sociais, com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005).

93
e presta sem quaisquer fins lucrativos. Tais a todos os contratos de gestão criados pelo
atividades desenvolvem-se de forma autônoma legislador brasileiro é que nenhum deles tem a
(mas não independente) à estrutura estatal e, natureza jurídica de um contrato. Constatação
em sua maioria, são estabelecidas em setores que autoriza uma abordagem com tons
essenciais ao desenvolvimento (pesquisa jurídicos ainda mais fortes, vez que teve
científica, educação, saúde, meio ambiente reflexos num dos pontos cardeais do Direito
etc.). Isto é, a conduta (omissiva ou comissiva) Público clássico: o ato administrativo.
do Estado faz com que o interesse público seja 14. Como se denota com facilidade, a
cogitado, definido, titularizado e administrado figura da Administração Pública unilateral,
por pessoas privadas, num modelo normativo superior e mandamental remete de imediato
diverso daquele das concessões, permissões e à idéia de ato administrativo. Não foi devido
autorizações de serviços públicos (e antitético a um acaso que esse era o conceito central, o
ao de mercado empresarial). eixo de sustentação do Direito Administrativo.
Para a implementação dessa metamorfose Nada mais clássico em Direito Público
foram criadas novas figuras jurídicas, de do que o ato administrativo – e nada mais
difícil adaptação aos modelos antigos, que desigual em Direito do que esse mesmo ato,
implementaram um outro tipo de convivência concebido secamente como a “decisão que
entre o público e o privado em setores executa a lei”, numa manifestação unilateral
essenciais às políticas públicas. Os exemplos que permite à Administração impor os seus
mais próximos são os “contratos de gestão” e próprios desígnios, sem qualquer participação
os “termos de parceria”, nenhum dos quais se das pessoas privadas. Era o Direito Privado
encaixa no conceito tradicional dos contratos do século XVIII impondo a sua racionalidade
administrativos.29 Aliás, se há algo de comum personalista ao Direito Público (sem que este
se atentasse para a essencial desarmonia entre
ambos). O ato é a quintessência do modelo
29
O legislador federal brasileiro utilizou-se da
expressão “contrato de gestão” sem qualquer critério.
clássico de desigualdade, estampando a
O início deu-se no Decreto 137/1991 (“Programa de imposição do interesse público por meio da
gestão das empresas estatais”), executado frente ao vontade de seu titular monopolista.
Serviço Social Autônomo “Associação das Pioneiras
Sociais” (Lei 8.246/1991 e Decreto 371/1991); à Pois também o ato administrativo mudou
Companhia Vale do Rio Doce (Decreto de 10/6/1992) (nem tudo ao seu interior, tampouco todos os
e à Petrobras (Decreto 1.050/1994). Depois vieram
atos praticados pela Administração). Foi algo
a Lei 9.649/1998 e Decreto 1.487/1998 (“Agências
executivas”), executadas frente ao INMETRO (agência que se deu ao menos numa parcela deles, os
executiva qualificada pelo Decreto Presidencial de chamados “atos administrativos consensuais”
29/6/1998) e, finalmente, a Lei 9.637/1998 (Organizações
e “atos administrativos contratuais”. 30
Sociais). Objeto da ADI 1923-DF, o modelo da Lei
9.637/1998 foi prestigiado pelo STF, que manteve a
eficácia dos artigos da lei (Min. Carlos Britto,
decisão liminar publicada no DJ de 21.9.2007). Os
público e seus ‘vínculos contratuais’ com o Estado”, in
temas já foram objeto de estudos do subscritor (algo
L. Cuéllar e E. Bockmann Moreira, Estudos
precários, com muitas idéias hoje já vencidas) – v. E.
de direito econômico. Belo Horizonte, Fórum, 2004.
Bockmann Moreira, “As agências executivas
brasileiras e os ‘contratos de gestão’” e “Organizações 30
O tema extrapola em muito este ensaio. Ampliar
sociais, organizações da sociedade civil de interesse em M. Reale, “Atos administrativos negociais”,

94
Em mais um dos paradoxos das mutações uma espécie de “autorização convencional”
contemporâneas do Direito Público, aquilo (distinta da tradicional autorização-licença),
que outrora era somente unilateral, imperativo, cujo conteúdo foi previamente submetido
exigível, auto-executável e ornamentado por a debates e consulta pública – sem que
presunção de legitimidade, vem carregado se descarte a efetiva negociação entre
de notas da consensualidade. A rigor, essa os interessados e a Administração. Essa
figura jurídica existe de há muito, mas agora autorização condiciona o exercício da
ela assume um papel decisivo e um conteúdo atividade econômica a determinados objetivos
mais rico, que põem em xeque boa parte do e à fiscalização estatal, bem como submete o
Direito Público tradicional. Está-se diante autorizado a modificações futuras (sobremodo
de uma nova estruturação normativa das nos deveres estatutários que orientam o
atividades público-privadas e da respectiva exercício da atividade autorizada).
nova responsabilização delas (quiçá de uma Outro exemplo está nos termos de ajuste
nova e difusa fronteira (?) entre o público e de conduta (TAC), cotidianos ao Direito
o privado). Ambiental, à defesa de direitos difusos por
15. Aliás, os atos administrativos consensuais parte do Ministério Público e ao Conselho
fazem parte do cotidiano do Direito Público Administrativo de Defesa Econômica
brasileiro. São figuras estampadas nas novas (CADE) . Por meio do TAC a autoridade
autorizações administrativas (máxime nas pública celebra um acordo com a pessoa
telecomunicações); nos termos de ajuste de privada que figura como interessada (ou
conduta e nos contratos de gestão. parte) num processo administrativo, pelo
Por exemplo, uma autorização para qual esta se compromete a alterar o seu
a prestação de certos serviços públicos comportamento (ambiental, econômico,
de telefonia. A Administração outorga, social) e a se submeter a uma fiscalização
sem licitação, a prestação desse serviço pública mais intensa a fim de não enfrentar
público (não na condição de serviço público, um processo que pode, em tese, resultar numa
mas na de atividade econômica com forte sanção (penal, civil e/ou administrativa).
regulação intrusiva) a determinado agente Aqui se está diante de um ato que põe
econômico que cumpra os requisitos legais fim a um processo (ou que pelo menos o
e regulamentares. A pessoa privada recebe condiciona ao cumprimento de determinadas
diretrizes estabelecidas de comum acordo).
A racionalidade dessa solução é típica dos
in ______. Aplicações da Constituição de 1988, pp. foros econômicos e da avaliação de riscos
133-161; R. E. de Oliveira, “O acto administrativo
vinculados a direitos disponíveis: ao mesmo
contratual.” Cadernos de Justiça Administrativa 63/3-17.
Braga: Cejur, maio/jun. 2007; D. F. Moreira Neto, tempo em que o Estado abdica de punir
“Novos institutos consensuais da ação administrativa”, (despindo a sanção administrativa de sua
in _____., Mutações do direito público. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 315-349; L. Parejo Alfonso, A.
natureza vinculada), o particular livremente
Jiménez-Blanco e L. Ortega Álvarez, Manual anui em alterar a sua conduta e submeter a
de derecho administrativo, vol. 1. 5.ed. Barcelona: sua atividade a uma supervisão estatal (nos
Ariel, 1998, p. 750-771; P. Virga, Il provvedimento
amministrativo. 4.ed. Milão: Giuffrè, 1972, pp. 41-75. tópicos exaustivamente definidos no ajuste).

95
O TAC deriva justamente da consensualidade cultura e saúde – art. 1º); (2) presta-se
entre a pessoa privada interessada e o à “formação de uma parceria” (art. 6º);
Poder Público. (3) é elaborado “de comum acordo”, mas
Nos dois casos, não se trata de um contrato submetido a um controle discricionário da
administrativo em sentido estrito nem de uma autoridade administrativa competente – que
decisão unilateral da Administração Pública. pode “definir as demais cláusulas” (arts. 4º,
Está-se diante de um ato administrativo inc. II, 6º, caput, e par. ún., e 7º); (4) é firmado
consensual (ou, a depender de sua configuração, entre o “Poder Público” (leia-se “órgão
de um ato administrativo contratual), que ata público”) e a entidade qualificada como OS
ambas as partes signatárias ao cumprimento (arts. 5º e 7º, par. ún.); (5) visa a objetivos
de seus termos. Mas o exemplo que mais públicos predeterminados, estranhos à esfera
interessa ao presente ensaio é o do contrato individual dos contratantes – os serviços são
de gestão firmado com uma organização prestados pela OS diretamente ao público
social, a seguir examinado à luz da Lei (não ao “Poder Público”); (6) não envolvem
9.637/1998. prestações equivalentes nem recíprocas
16. O contrato de gestão dá forma entre os “parceiros”; (7) não podem visar
jurídica a uma “parceria” estabelecida ao lucro nem à distribuição de riqueza entre
entre um órgão estatal e uma pessoa os “parceiros”.
privada sem fins lucrativos, elaborada de Ora, à evidência não se trata de um
comum acordo entre os “contratantes” e contrato em sentido estrito nem de uma
submetida a metas. Veja-se bem: na esfera decisão unilateral da Administração: trata-se
pública não é celebrado pela pessoa jurídica de um ato administrativo consensual (ou
estatal (a entidade), mas por um círculo de de um ato administrativo contratual, a
competências normativamente definido, sem depender de seu exame concreto). Por meio
personalidade jurídica (o órgão). Através desse ato consensual a Administração e a
dele estabelece-se a prestação de atividades pessoa privada envolvida dão aplicação,
de interesse público a terceiros (não ao órgão ponderada caso a caso, à Lei que estabelece
que o firma). Esse ato consensual é fiscalizado os requisitos para que o particular exerça certa
e sujeito a incentivos e modulações futuras. atividade econômica de interesse público e
Os fatos e as vicissitudes interagem no receba determinados benefícios públicos
objeto do contrato de gestão, permitindo (servidores, bens, receita etc.). Se o conteúdo
adaptações destinadas a permitir a sua boa e dessa relação jurídica é secundum legem, a
eficiente execução. definição do seu objeto não o é: há uma
Lendo-se o texto da Lei n.º 9.637/1998 abertura normativa a determinados assuntos
(Lei das Organizações Sociais), constata-se (ensino, pesquisa, desenvolvimento etc.), os
que ela autoriza a celebração de “contratos de quais, conjugados com a política pública
gestão” cujos pontos nodais são: (1) número estabelecida pelo Poder Público ou proposta
limitado de atividades (ensino, pesquisa pelo parceiro privado, dão nascimento a
científica, desenvolvimento tecnológico, atos negociais sui generis, cada qual com a
proteção e preservação do meio ambiente, respectiva especificidade.

96
Em suma, a Administração Pública: (1º) Mas essa estranha mutação, embora
estabelece determinados requisitos abertos mínima num cenário macroeconômico, exige
para a execução de uma ampla gama de também algumas reflexões prospectivas
específicas atividades por particulares; a respeito dos desafios que estão por vir,
(2º) constata que uma pessoa jurídica de sobretudo em termos do cruzamento de tais
direito privado os preenche (o que se dá perspectivas: a integração público-privada;
normalmente mediante iniciativa desta); (3º) o planejamento estatal com a participação
negocia uma “sintonia fina” dos requisitos das pessoas privadas e o Direito como um
legais e o caso concreto; (4º) emana um ato- instrumento de desenvolvimento. Estes
condição com características negociais (que sintomas relevam algo mais sério e autorizam
não emana interna corporis, mas advém da a conclusão de que nada adianta a pesquisa
participação inclusiva da pessoa privada e/ou desconectada destes três planos. Muito
de terceiros). Ao seu tempo, a pessoa privada menos tem algum préstimo a investigação
adere ao ato-condição de cuja elaboração ela ou, o que é pior, a refutação a tais novidades
participou ativamente, comprometendo-se a com lastro em modelos pretéritos. Este é
cumprir as obrigações de meio (conduta); o desafio que a constatação da dinâmica e
as obrigações de resultado (metas) e os característicos das mutações atuais coloca aos
deveres estatutários (oriundos da lei ou do juristas: como tornar o Direito algo menos
regulamento administrativo). E assim ambos rude no trato com temas de desenvolvimento
o fazem em benefício de terceiros. econômico? É possível essa integração
Logo, é um ato administrativo que se vale público-privada sem os preconceitos de
da técnica contratual para tornar concretas outrora, despida da concepção autoritarista
determinadas políticas públicas definidas de um Direito Administrativo? Como
ao abstrato em lei e dar cumprimento a conviver com a perda de consistência de
diretrizes de desenvolvimento econômico. alguns dos institutos nodais do Direito
A sua construção não se dá exclusivamente Público clássico e de que maneira construir
interna corporis e a “vontade” estampada no algo perene em tempos instantâneos? Essas
instrumento é aquela comum ao Poder Público são algumas das provocações que este ensaio
e pessoa privada. A concretização dessas pretende formular.
políticas desenvolvimentistas é dependente da 18. Antes de apresentar as considerações
iniciativa privada e da definição do interesse finais, serão trazidas duas notícias de cunho
público a ser atendido justamente por meio pragmático. Com isso se pretende consolidar
dos particulares que o executarão. a necessidade da investigação acima proposta,
17. Essa nova forma de ato administrativo pois as informações dizem respeito à real
produz uma migração de institutos do Direito existência de mudanças, simultaneamente à
Privado contemporâneo para a sede do ausência de diretrizes desenvolvimentistas
Direito Público e permite que cogitemos com firmes no tempo e no espaço.
mais firmeza a propósito do Direito Privado 18.1. No dia 7 de dezembro de 2007, o
Administrativo e de suas alterações (com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
mais firmeza e sem preconceitos). (IBGE) divulgou a primeira pesquisa nacional

97
sobre “Entidades de Assistência Social sem fomenta, mas de uma forma assistemática:
Fins Lucrativos”.31 São 16.089 entidades de em termos relativos, quem mais precisa é
assistência social no Brasil, cujo público- quem menos recebe. Porém, o levantamento
alvo são pessoas vulnerabilizadas ou em dos dados faz crer que há a intenção de uma
situação de risco social; com deficiência; política pública desenvolvimentista a ser
em situação de rua; gestantes, crianças e implementada por meio da ação, espontânea
adolescentes em situações precárias etc. – e despojada, das pessoas privadas.
enfim, alguns dentre os muitos excluídos 18.2. Já a análise das Organizações Sociais
pela sociedade brasileira. (OS), criadas na Reforma Administrativa
Dessa pesquisa merecem ser mencionados federal pela Lei n.º 9.637/1998, tampouco
apenas dois dados para reflexão: (1º) a traz um quadro muito acalentador. A página
distribuição geográfica das entidades do Ministério do Planejamento na Internet
acompanha a do PIB: 51,8% estão na Região indica que existem apenas seis contratos de
Sudeste (4.761 delas só no Estado de São gestão celebrados com OS.32 Esses projetos
Paulo), 22,6% no Sul, 14,8% no Nordeste,
envolvem setores como a comunicação,
7,4% no Centro-Oeste e 3,4% no Norte
ciência e tecnologia, meio ambiente e
do País; (2º) o financiamento público e
desenvolvimento sustentável.
supervisão das verbas públicas alocadas: Dentre estas, a ABTLuS chama a atenção:
55,7% recebem verba pública (federal, é uma OS que, com o apoio do Ministério
estadual ou municipal). Não obstante a Lei da Ciência e Tecnologia, administra um
Orgânica da Assistência Social estabelecer laboratório detentor de “uma infra-estrutura
que o funcionamento das entidades depende que inclui as linhas de luz com estações
de prévia inscrição no Conselho Municipal experimentais instaladas na fonte de luz
de Assistência Social, apenas 72% estão síncrotron, microscópios eletrônicos de
inscritas (tais conselhos devem supervisionar alta resolução, microscópios de varredura
o funcionamento das entidades, mas 35,8% de ponta e espectrômetros de ressonância
não realizam qualquer supervisão). magnética nuclear. Nessas instalações, são
Ora, essa dispersão geográfico-econômica realizados experimentos que contribuem
e a ausência de controle, unida à inexistência para ampliar os conhecimentos nas áreas de
de quaisquer dados (até dezembro de 2007), Física, Química, Engenharia dos Materiais,
faz crer que não há uma política pública no Meio Ambiente e Ciências da Vida, entre
setor. Por mais que haja iniciativa das pessoas outras áreas.”33 Faz pesquisas de altíssima
privadas, ela é fragmentada e dissociada das
mais íntimas necessidades brasileiras. Algo 32
Disponível em: http://pgpe.planejamento.gov.
que permite a inferência de que o Estado br/. Já as Organizações (OSCIP) são 4.436. Disponível
em: http://www.mj.gov.br/main.asp?View={59319A86-
4583-4D9A-9A91-B6062A1E7CA6}. Acessos em 12
de janeiro de 2008.
31
Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/
presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_ 33
Texto informativo constante do sítio da OS: http://
noticia=1047&id_pagina=1. Acesso em 12 de janeiro www.lnls.br/lnls/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home.
de 2008. Acesso em 12 de janeiro de 2008.

98
tecnologia com luz síncroton, essenciais ao existir uma perspectiva de confiabilidade,
desenvolvimento, com um laboratório único certeza e segurança futuras. A velocidade
na América Latina. Como se trata de uma OS, das mudanças não é tamanha a ponto de
existe um contrato de gestão que certamente fazer com que o seu objeto transforme-se
define as metas a ser atingidas e os recursos em energia indetectável. O que mais uma
públicos que deverão lá ser alocados (por vez remete a algumas das funções básicas
óbvio, recursos previstos no orçamento da do Direito e aos novos desafios que se põem
OS e da União, em cumprimento à Lei de aos juristas.
Responsabilidade Fiscal).
Pois bem. Em dezembro de 2007 a Considerações finais
página da OS consignava que, por razões de
contenção de gastos, estava temporariamente Na medida em que a nota de abertura
suspendendo as atividades em determinados deste ensaio foram as instigações de Duguit,
laboratórios e os programas de auxílio aos nada mais adequado que o trabalho se
usuários. Não obstante existir um contrato de encerre com mais uma citação dele. Isso
gestão a tornar previsíveis os custos e receitas, porque Duguit não foi ingênuo a ponto
os relativos projetos de pesquisa foram postos de reputar que as transformações ali se
em compasso de espera. Recentemente, foi encerravam. No fechamento de seu livro,
comunicada a retomada das atividades.34 consignou: “L’évolution est-elle achevée?
19. Também tais dados permitem a Évidemment non. En réalité elle ne sera
mesma conclusão acima descrita: por mais jamais. L’évolution sociale est une chose
que os modelos normativos incentivem (ou infiniment complexe et qui dure indéfiniment;
ao menos possibilitem) a implementação or le droit n’est en réalité que la sorte
de projetos públicos pela mão das pessoas d’armature que revêt cette évolution. Nos
privadas, ainda há sérios e incompreensíveis pères avaient cru que le système juridique
acidentes de percurso. Ora, justamente para métaphysique, individualiste et subjectiviste
que não existam tais contratempos é que se était définitif et immuable. Ne commettons
faz necessário o planejamento, a fixação pas une erreur pareille. Le système juridique,
de metas e o controle público-privado réaliste, socialiste et objectiviste est l’œuvre
de tais atividades. Neste ponto o Direito d’un jour dans l’historie. Avant même que
precisa assumir uma especial função para son édification soit achevée, l’observateur
a implementação de políticas públicas attentif apercevra les premiers signes d’un
desenvolvimentistas. De nada adiantam as nouveau système. Heureux nos fils s’ils savent
boas intenções (normativas, econômicas e mieux que nous s’affranchir des dogmes et
administrativas; estatais ou privadas) se não des préjulgés!”35

34
Informações disponíveis em: http://www.lnls.br/ 35
Les transformations du droit public. Paris: La
lnls/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home. Acessos em Mémoire du Droit, 1999 (reprod. da ed. de 1913),
7 de dezembro de 2007 e em 12 de janeiro de 2008. p. 281.

99
Ao que se infere da persistente precariedade pode-se transcender os desafios. Cabe ao
do trato do Direito com os temas de jurista conscientizar-se e realizar que o
desenvolvimento econômico e nada obstante trabalho felizmente é árduo e começa pela
os percalços acima narrados, o vaticínio de redefinição das perguntas. É uma tarefa a
Duguit foi apenas parcialmente alcançado. ser desenvolvida pelo Direito do futuro, para
A premissa da constante evolução permanece consolidar o futuro do Direito.
firme – e se ela existe tão intensamente, é Como fechamento, é irresistível o apelo
porque não foi alcançada. Mas se contudo a uma paráfrase de Zizek, pois do que se
é bem verdade que as transformações não precisa é uma construção dialética: nem a
param jamais, é também real que os juristas imersão espontânea nas velhas tradições,
persistem firmes em alguns de seus dogmas nem a necessidade de adaptar-se às novas
e prejulgamentos. A constatação, ao invés condições e fazer concessões. O que é
de trazer tristezas (pois, afinal de contas, imperativo é a necessidade de reinventar a
a profecia foi confirmada apenas quanto própria noção de Direito Público (e políticas
ao mundo do ser, não no mundo do dever públicas desenvolvimentistas) sob as novas
ser e em seu desenvolvimento acadêmico), condições e exigências históricas.36 Assim
é o mais firme incentivo. Somente com a estar-se-á reinventando a própria eternidade
consciência de que a empreitada é muito do Direito.
mais custosa do que inicialmente vislumbrada Curitiba e Lisboa, janeiro de 2008.

36
O texto original, escrito a propósito do movimento
islâmico Wahhabi, cujo princípio básico é “exercício
do ijihad (o direito de reinterpretar o Islã com base na
mudança de condições)”, é este: “Ijihad é uma noção
dialética: nem a imersão espontânea nas velhas tradições,
nem a necessidade de ‘adaptar-se às novas condições’
e fazer concessões, mas a necessidade de reinventar a
própria eternidade sob as novas condições históricas.”
(Bem-vindo ao deserto do real! Trad. P. C. Castanheira.
São Paulo: Boitempo, 2003, p. 69).

100
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO
PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

João Gualberto Garcez Ramos*

RESUMO: O princípio do devido processo ABSTRACT: The Due Process of Law was
legal nasceu na Inglaterra, no ano 1215. born in England, in the year 1215. It had a
Teve um desenvolvimento diferente na different development in England and in the
Inglaterra e nos Estados Unidos da América, United States of America, especially because
the role of the American Supreme Court.
especialmente por causa do papel da Suprema
Also, the Due Process of Law is in the core
Corte norte-americana. O devido processo
of the Law in Brasil since the very beginning.
legal também está no coração do Direito
In the second half of the eighth century, many
brasileiro desde o seu início. A Constituição classics of the Brasilian Law wrote about it.
do Império, de 1824, em seu art. 179, inciso The 1824 Brasilian Imperial Constitution, in
II, trazia um aspecto substancial do princípio. its art. 179, inc. II, had a substantial vision of
A Constituição brasileira de 1988 apenas o the standard. The 1988 Brasilian Constitution
enfatizou em nosso ordenamento jurídico. just stressed it.

Delimitação do tema que conspurcam esse equilíbrio, essa justeza


intrínseca, violam o princípio do devido
Pode-se dizer sem medo que já faz muito
processo legal. E, “puxando a sardinha”
tempo que o princípio do devido processo
para o nosso lado, posso afirmar que essas
legal se encontra no centro do nosso sistema
irregularidades são muito mais graves quando
processual. Ele é a verdadeira e própria
atingem o processo penal.
essência do processo, em todas as suas
Essa visão corresponde ao que já escreviam
manifestações. O processo legítimo, justo,
processualistas antigos.
equilibrado, é o devido processo legal. Daí
que todas as irregularidades do processo Na obra clássica de José Antonio Pimenta
Bueno, por exemplo, está escrito:
* Professor Adjunto da UFPR. Procurador da As formalidades dos atos e termos do processo
República. são frutos da prudência e razão calma da lei.

101
É de muita importância que a luta que se a sociedade que acusa, como para o acusado
estabelece entre o acusado e o Poder Público que se defende”.4
não sofra outra influência ou direção que não
seja dela. Todas essas passagens se referem, com
Os termos e condições que a lei prescreve, maior ou menor grau de penetração, ao
são meios protetores que garantem a plenitude Devido Processo Legal, enquanto garantidor
da acusação e da defesa: são faróis que
das formas processuais.
assinalam a linha e norte que os magistrados
e as partes devem seguir, precauções salutares Essa visão, portanto, não se constitui em
que encadeiam o arbítrio e os abusos , que novidade alguma no Brasil.
esclarecem a verdade, e dão autenticidade ou
Ocorre que, sobretudo a partir da Constituição
valor legal aos atos. O seu fim é conciliar o
interesse da justiça repressiva com a proteção de 1988, surgiram novas interpretações desse
devida à inocência que pode existir.1 secular princípio. De uma hora para outra,
vieram à baila expressões extravagantes
Até na “Praxe Brasileira” do conselheiro
como “razoabilidade das leis” para, com base
Joaquim Ignácio Ramalho, insuspeito
nelas, impugnar-se a constitucionalidade de
praxista, encontram-se, aqui e ali, exortações
normas jurídicas substanciais.
ao respeito às formas processuais e ao direito
Meu objetivo neste estudo é demonstrar
de defesa.2
que essa virada não é a-histórica, isto é, que
O senador do Império Vicente Alves
há uma evolução lenta e cheia de avanços e
de Paula Pessoa, também ele um praxista
retornos por detrás dela. E, ao final, discutir se
tardio, escreveu ser fundamental a sabedoria
e até que ponto essa evolução, de fato, atinge
e o equilíbrio dos juízes, a fim de garantir
o ordenamento jurídico brasileiro.
que suas “decisões, conscienciosamente
A primeira pista para revelar essa linha
inspiradas e ditadas pelo único respeito
evolutiva encontramo-la na Inglaterra, perto
das leis, sejam acatadas pelos cidadãos e
do ano 1.066.
invioláveis para o poder: Tribunais acessíveis
a todos, permitindo a acusação e a defesa
1 Breve histórico do princípio
com completa liberdade, e garantias da
do devido processo legal na
publicidade”.3
Inglaterra
Para Antônio Luiz da Câmara Leal, outro
antigo processualista, “a forma processual Após ter derrotado o rei Haroldo II na
representa uma garantia de direitos, tanto para batalha de Hastings, em 1066, e conquistado
a ilha da Inglaterra, o conquistador Guilherme
deveria ser coroado rei. Percebeu que a
1
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos população inglesa tinha verdadeira adoração
sobre o Processo Criminal brasileiro, ed. anot., atual. e
compl. por José Frederico Marques, facsimilar à ed. de por um antigo monarca saxão, Eduardo, dito
1857. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1959, p. 228.
2
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Praxe brasileira,
São Paulo: 1869, pp. 5, 8, 51, 52 etc. 4
LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Comentários ao
3
PESSOA, Vicente Alves de Paula. Código do Código de Processo Penal brasileiro, Rio de Janeiro-São
Processo Criminal, 1880, p. 20. Paulo: Freitas Bastos, 1942, v. 1, p. 20.

102
“o Confessor”, misto de rei e pastor, que foi, É por isso que, em 1215, os barões
afinal, canonizado pela Igreja Católica menos ingleses exigem do rei João I o respeito às leis
de cem anos depois de sua morte. da terra. Fazem com que ele se comprometa
O conquistador talvez estivesse cansado que “nenhum homem livre será molestado,
de tantas guerras e pretendeu construir um ou aprisionado, ou despojado, ou colocado
período de estabilidade administrativa. Além fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo
disso, não podia esquecer de que era um rei aniquilado, nem nós iremos contra ele, nem
invasor. Teve de ter muito cuidado e tirocínio. permitiremos que alguém o faça, exceto
Tomou diversas providências políticas que pelo julgamento legal de seus pares ou pelo
garantiram essa estabilidade por muitos e Direito da terra”.
O uso da expressão “devido processo
muitos anos.
legal” (due process of the law), ocorre pela
Uma das providências foi de ordem
primeira vez em 1354, quando o rei Eduardo
litúrgica.
III, seguindo a velha tradição, confirma as
O conquistador foi sagrado Guilherme I
leis da terra e, entre elas, a Magna Carta das
em uma cerimônia solene em que confirmou
Liberdades. O texto de Eduardo III dispõe
as leis de Eduardo, o Confessor. É mesmo
que “que nenhum homem de qualquer estado
significativo que não tenha se preocupado
ou condição que ele seja, possa ser posto
em confirmar as leis de Haroldo II, que era
fora da terra ou da posse, ou molestado, ou
um rei derrotado, mas as de Eduardo, um rei
aprisionado, ou deserdado, ou condenado à
amado pelo povo.
morte, sem ser antes levado a responder a um
Ao jurar as leis de Eduardo, o rei devido processo legal”.
normando Guilherme I obteve diversos Com o tempo, o poder de fazer leis do
efeitos, alguns dos quais ele próprio talvez país passou do soberano ao Parlamento. E o
não tenha percebido. O primeiro efeito foi dever de respeitá-las – que já atingia o povo –
declarar-se a si próprio um continuador do passou cada vez mais a afetar o soberano.
rei saxão. Com isso, não salientou tanto sua Assim, a evolução do devido processo
imagem de conquistador, mas construiu uma legal, na Inglaterra, está ligada ao poder
imagem de revente continuador da tradição do povo de fazer leis e ao dever de todos
jurídica posta. de respeitá-las. O Parlamento inglês –
Outro efeito foi o de, pela primeira representante dos comuns – é o único Poder
vez, construir um conceito que se tornaria na Inglaterra.
essencial para o Direito. Hoje, o sistema jurídico inglês vive uma
Trata-se do dever do governante de não crise – no sentido construtivo da palavra,
respeitar apenas as suas leis, mas também a isto é, como ocasião de renascimento e
dos seus antecessores. As leis editadas pelos reconstrução. Trata-se de sua integração
monarcas anteriores se tornam, com sua à União Européia, fato que interferirá na
morte, leis da terra (Legem Terræ). concepção de que o Parlamento é o único
Essa tradição se transferiu aos monarcas poder político a que os ingleses devem, de
que se seguiram a Guilherme I. fato, reverência.

103
Essa integração redundará em uma para resolver problemas entre as colônias e a
modificação – muitas vezes radical – no Inglaterra. Ouviu de Glenville o seguinte:
ordenamento jurídico inglês, a fim de Vocês, americanos, têm idéias erradas sobre
adaptá-lo aos contornos do Direito a nossa Constituição. Pretendem que as
instruções que o rei dá a seus governadores
Comunitário europeu.
não têm força de lei, e consideram-se livres
para aceitar ou recusar essas instruções,
2 Breve histórico do princípio conforme lhes parece. Mas essas instruções
não são como recomendações pessoais dadas
do devido processo legal a um embaixador para ajudá-lo a conduzir-se
nos EUA num cerimonial pouco complicado. Em
primeiro lugar, são elaboradas por juízes
A história dos EUA , por sua vez, versados em direitos; são em seguida
estudadas, discutidas, por vezes emendadas
conecta-se de maneira muito peculiar à
pelo Conselho; finalmente, assinadas pelo
história da Inglaterra. rei. Então, tornam-se a lei do país para
Como primeiro ponto de ligação os americanos, porque o rei é o legislador
das colônias.
encontra-se a mesma tradição lingüística.
Falar a mesma língua é, evidentemente, um E segue Franklin:
formidável traço de união. Apenas por essa Respondi a Sua Senhoria que era semelhante
razão, aparentemente trivial, entre os EUA e a teoria inteiramente nova para mim. Sempre
pensei que, de acordo com nossas cartas
Inglaterra haverão sempre mais semelhanças
constitucionais, as nossas leis deveriam
que diferenças. ser elaboradas por nossas assembléias e
Outrossim, as tradições cultural e apresentadas em seguida ao rei para serem
aprovadas; uma vez aprovadas, o rei não
educacional estão fortemente conectadas.
poderia mais aboli-las, nem alterá-las. E, do
As universidades americanas, especialmente mesmo jeito que as assembléias não podiam
as mais tradicionais, são claramente fazer leis permanentes sem sua aprovação,
assim também o rei não podia fazer leis sem
influenciadas pelas universidades inglesas,
a aprovação das assembléias. Assegurou-me
especialmente Oxford e Cambridge. Para que eu estava inteiramente errado. Mas não
ficar com um exemplo bastante trivial concordei”.5
dessa influência, a sede da Universidade Tal como hoje ocorre entre os EUA e seus
Harvard, a mais antiga dos EUA, fica em satélites, a democracia é, mais do que tudo,
uma cidade do estado de Massachusets um produto de consumo interno.
chamada justamente Cambridge. Por tal razão, as relações entre a Inglaterra e
Por outro lado, os EUA viram a Inglaterra, os EUA têm componentes de amor e de ódio.
por muitos anos, como a potência dominadora No caso da tradição jurídica, a Constituição
e repressora. Neste passo, é interessante dos EUA reflete a preocupação de rompimento
sublinhar que a tradição democrática da com certas práticas jurídicas da Inglaterra.
Inglaterra não se aplicava nas relações com
São exemplos disso o art. 1º, seção 9ª,
suas colônias.
O founding father Benjamin Franklin, por
exemplo, relata um diálogo que teve com o 5
FRANKLIN, Benjamin. “Autobiografia”, apud
BRUCKBERGER, R. L. A república americana, trad. de
primeiro-ministro inglês George Grenville Mercedes Zilda Cobas Felgueras, Rio de Janeiro: Fundo
em 1757, quando foi enviado a Londres de Cultura, 1960, p. 51-52.

104
cláusula 3ª, primeira parte, que proíbem as A solução que se obteve foi a adoção
leis condenatórias (acts of attainder) e o de uma federação. Ponto, portanto, para os
art. 1º, seções 9, cláusula 8ª, primeira parte federalistas. Contudo, a Constituição adotada
e 10, cláusula 1ª, última parte, que proíbe a foi escrita por Jefferson e deixou de enfrentar,
concessão de títulos de nobreza tanto pela por exemplo, questões cruciais como a da
União quanto por qualquer estado-membro. escravidão. Ponto para os antifederalistas.
No entanto, uma tradição permaneceu e Com isso, a União foi formada sobre a
conectou para sempre os sistemas jurídicos idéia de que os homens – todos os homens –
da Inglaterra e dos EUA. nasceram iguais e devem como tais ser
A 5ª emenda da Carta de Direitos, que tratados. Alguns estados-membros dessa
entrou em vigor em dezembro de 1791, dispôs União, especialmente os do sul, seguiram
que “ninguém (…) poderá ser privado da com a idéia de que alguns homens nasceram
vida, liberdade, ou propriedade, sem devido para servir os demais na condição de escravos.
processo legal”. Assim, embora aceitassem que a União
Essa evolução é, porém, muito diversa da dos estados-membros tivesse um estatuto
que se deu na Inglaterra. Foi radicalmente de direitos humanos mais completo, não
moldada por componentes políticos e étnicos aceitavam praticá-lo em seus territórios.
que, na época da formação do princípio O tempo passou e verificou-se um
do devido processo legal, inexistiam na desenvolvimento econômico desigual, se
Inglaterra. comparados os estados-membros do sul e
O componente político foi a existência do norte. O norte desenvolveu sua economia
de duas correntes durante a Convenção da com inúmeras indústrias. O sul, por sua vez,
Filadélfia, os federalistas e os antifederalistas. formado por estados-membros fortemente
Os federalistas, representados especialmente escravistas, seguiu com a economia agrícola.
por James Madison, Alexander Hamilton e Estava explicada essa opção tendo em conta
John Jay, advogavam a adoção de um modelo a utilização de mão-de-obra escrava.
federativo, em que os estados-membros Contudo, a economia do norte já exibia
abriam mão de uma parcela significativa a vocação do expansionismo. Queria instalar
de suas competências – especialmente a indústrias também no sul, a fim de dar
liberdade para adotar a forma de Estado e de conta da demanda crescente. Queria vender
governo, a soberania e o poder de negociar seus produtos industrializados aos estados-
diretamente com nações estrangeiras. membros do sul. Contudo, os negros do
Os antifederalistas, representados por sul não eram bons operários, porque não
George Mason, Thomas Jefferson, Patrick treinados. E os aristocráticos brancos do sul,
Henry e Richard Henry Lee, sustentavam que naturalmente, não se sujeitariam a trabalhar
a nova ordem constitucional deveria assumir como operários. Daí a dificuldade de instalar
a forma de uma confederação de Estados indústrias. Além disso, o potencial de compras
independentes. Essa seria a melhor forma de do sul estava reduzido pelo menos à metade,
preservar as tradições culturais de cada uma pois os escravos negros estavam à margem do
das antigas colônias. mercado, impossibilitados de consumir.

105
Daí porque os estados-membros do norte do Compromisso do Missouri” (Missouri
começaram a pressionar os estados-membros Compromise Act), de 1820, que proibia a
do sul para acabar com a escravidão. Essa escravidão em territórios federais acima de
pressão se deu por meio dos órgãos de uma linha por ela estabelecida. Com a morte
imprensa do norte, que começaram a mostrar de John Emerson, sua viúva transferiu a
os aspectos injustos e bizarros da escravidão. “propriedade” de Scott para o seu irmão,
A pressão também se deu por meio John Sanford, que levou-o de volta para St.
do Congresso, instalado no Distrito de Louis. Scott iniciou, então, uma luta judicial
Columbia, no norte do país. Os políticos para ver-se declarado livre; argumentou
e industriais do norte influenciaram o que com o período que viveu em território
Congresso a, por exemplo, votar uma lei federal adquiriu a condição de “cidadão dos
que proibia a importação de negros cativos Estados Unidos” e, portanto, não poderia ser
da África (1808); ou a considerar pirataria, escravizado. Tentou, em juízo, caracterizar
punida com a morte, essa atividade (1820). seu aprisionamento como um seqüestro, a
Os conflitos – que no fundo eram conflitos privação ilícita da liberdade de um homem
sobre duas concepções do capitalismo – se livre, um cidadão e portador de direitos
acentuaram. na ordem civil. Essa ação foi inicialmente
Atingiram um primeiro clímax em 1856, julgada procedente por um tribunal do
com o caso Dred Scott v. Sandford.6 Missouri e, depois, por um tribunal federal,
O caso Dred Scott, como ficou conhecido, não conhecida. Tornou a propor a ação e
é importante por inúmeras razões. perdeu na Suprema Corte do Missouri – corte
Foi a segunda vez que a Suprema Corte que catorze anos antes havia reconhecido a
estadunidense anulou um ato do congresso libertação de diversos escravos na mesma
por inconstitucionalidade. A primeira havia situação de Scott – e, posteriormente, na
sido em 1803, com Marbury v. Madison.7 Justiça Federal. Conseguiu levar o caso à
Foi a primeira vez, porém, que a Suprema
Suprema Corte.
Corte julgou inconstitucional uma lei com
O juiz-presidente Taney apresentou
base em uma visão substancial do princípio
a decisão da Suprema Corte, com os
do devido processo legal.
seguintes itens: a) os fundadores dos EUA
E, por último, foi um dos fatores que
não tencionaram tratar o negro como ser
desencadeou a Guerra de Secessão, tamanha
humano; b) conforme a tradição do direito
foi a revolta que causou nos abolicionistas.
estadunidense, portanto, negro não é ser
Dred Scott nasceu escravo no Estado
humano, é coisa; c) viola o princípio do devido
da Virginia. Um de seus proprietários, o
processo legal uma lei que considerasse o
cirurgião do Exército John Emerson, levou-o
negro um ser humano e, com isso, privasse
consigo para o Forte Snelling, no território
alguém de sua propriedade; d) o Congresso não
do Wisconsin. Estava em vigor, então, a “Lei
poderia ter editado lei que contraria a tradição
jurídica dos EUA; e) a Lei do Compromisso do
6
60 U.S. (19 How.) 393 (1856). Missouri (Missouri Compromise Act, 1820) é
7
5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803). inconstitucional, por violação da 5ª emenda;

106
f) sendo coisa, o negro não tem capacidade Eis aí o primeiro momento – infeliz
de ser parte; correta, portanto, a decisão que primeiro momento – do princípio do devido
o considerou uma coisa, e não um “cidadão processo legal.
dos Estados Unidos”. A tensão racial cresceu e, com a eleição
Em sua opinão, de triste memória, o juiz- de Abraham Lincoln para a presidência dos
presidente Taney escreveu: EUA, os estados-membros do sul declararam
A questão é simples assim: pode um negro, a secessão e o país mergulhou em uma
cujos ancestrais foram importados para este guerra fraticida.
país, e vendidos como escravos, tornar-se
Ao final da guerra, foram editadas duas
membro da comunidade política formada
e instituída pela Constituição dos Estados emendas à Constituição dos EUA. A 13ª
Unidos, e assim tornar-se titular de todos os e a 14ª. A 13ª acaba, definitivamente, com
direitos, privilégios, e imunidades, garantidas a escravidão.
por esse instrumento ao cidadão? Um desses
direitos é o privilégio de propor uma ação A 14ª é ainda mais importante, pois
em uma corte dos Estados Unidos nos casos afirma:
especificados na Constituição. (…) Pensamos
Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas
que não, e que eles não estão incluídos, e que
nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição,
não se intentou que fossem incluídos, sob
são cidadãs dos Estados Unidos e do estado-
a palavra ‘cidadãos’ na Constituição, e que
membro onde residam. Nenhum estado-
não podem reclamar nenhum dos direitos e
membro poderá fazer ou aplicar nenhuma
privilégios por ela criados e garantidos aos
lei tendente a abolir os privilégios ou as
cidadãos dos Estados Unidos. Ao contrário,
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos;
eles foram naquele tempo considerados como
nem poderá retirar-lhes a vida, a liberdade, ou
uma subordinada e inferior classe de coisas,
a propriedade, sem o devido processo legal;
que foram subjugados pela raça dominante,
nem poderá denegar a nenhuma pessoa sob sua
e, ainda que emancipados ou não, continuam
jurisdição igual proteção das leis.
sujeitos à sua autoridade, e não têm direitos ou
privilégios, mas apenas aqueles que o poder Essa emenda foi editada com o
e o governo eventualmente lhes conferir. (…)
objetivo imediato de revogar uma antiga
Ninguém dessa raça jamais imigrou para
os Estados Unidos voluntariamente; todos jurisprudência da Suprema Corte dos EUA,
foram trazidos para cá como mercadorias. Barron v. Baltimore,9 para a qual a Carta
O número dos que estavam emancipados, de Direitos da União não se aplicava aos
ao tempo da elaboração da Constituição, era
estados-membros. Outro objetivo, mais
muito menor do que os que eram mantidos
escravos; e estavam identificados, na opinião amplo, foi assegurar um desenvolvimento
pública, com a raça à qual pertenciam, em não uniforme dos estados-membros.
com a população livre. É óbvio que eles não Contudo, para que se tenha uma idéia
estavam na mente dos autores da Constituição da resistência que sofre esse conceito de
quando eles conferiram direitos e privilégios
submissão dos ordenamentos jurídicos
aos cidadãos de um Estado em qualquer parte
do território pertencente à União.8
estaduais ao ordenamento da União, diga-se
que a Suprema Corte levou aproximadamente
cem anos para começar a dar-lhe aplicação
8
TANEY, Roger B. “Opinião”, em Dred Scott no âmbito do processo penal.
v. John F. A. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393, 403-
405, 411-412 (1856), em www.findlaw.com/casecode/
supreme.html (acesso em maio de 2005). 9
32 U.S. (7 Pet.) 243 (1833).

107
Quanto ao devido processo legal 3 Breve histórico do princípio
substancial, na década de trinta do século do devido processo legal
vinte ele serviu primacialmente como no Brasil e uma tentativa de
ferramenta de proteção da propriedade e conclusão
da liberdade, vista primacialmente como
liberdade de iniciativa. A primeira Constituição brasileira a fazer
Um exemplo dessa visão privatista do expressa menção ao princípio foi a de 1988,
devido processo legal se deu quando do no inciso LIV do art. 5º.
período do “Novo Acordo” (New Deal), Até então, conforme vimos no início
proposto e colocado em prática pelo desta exposição, prevaleceu, na doutrina e
presidente Franklin D. Roosevelt. A Suprema jurisprudência, a visão formalística do
Corte impugnou essa política através de princípio.
diversas decisões que consideraram que A primeira notícia, no Brasil, do princípio
a intervenção do Estado na economia do devido processo legal substancial vem
uma forma desarrazoada de retirada da com o livro “A Corte Suprema e o Direito
propriedade “sem o devido processo legal”. Constitucional americano”, da Professora
O enfrentamento entre a Corte e o presidente Lêda Boechat Rodrigues, publicada em
Franklin D. Roosevelt foi tamanho que, no
1958.10 Nessa notável obra, ao comentar o
início de 1937, ele elaborou e enviou ao
caso Chicago Milwaukee and St. Paul R. Co
Congresso um pacote de leis, conhecido
v. Minnesota,11 a querida professora carioca
como “Pacote da Suprema Corte” (Court
escreveu que, nesse julgamento, “iria a
Packing Plan). Esse pacote visava aposentar
Corte converter a cláusula de due process
diversos juízes antipáticos às medidas e
numa restrição positiva, sustentando dever
aumentar o números de magistrados da
o Judiciário dar-lhe, obrigatoriamente, força
Suprema Corte. Assustados com essa
possibilidade, os juízes da Suprema Corte executiva, sempre que os departamentos dos
passaram a, paulatinamente, diminuir a Estados procurassem, a seu ver, impor tarifas
oposição ao “Novo Acordo”. arbitrárias e irrazoáveis”.12
Hoje, a Suprema Corte dos EUA evoluiu E segue a grande pesquisadora, a respeito
na sua compreensão do princípio do devido da cláusula do devido processo legal:
processo legal. Pode-se dizer que não o utiliza Ela passaria, agora, a ser instrumento ilimitado
mais como um instrumento de manutenção de avaliação da constitucionalidade não só das
leis estaduais como das leis do Congresso,
do statu quo, como já o utilizou outrora.
através do exame do seu acordo com a
Concentra-se na solução de questões
relacionadas com a igualdade substancial das
pessoas – o que a Constituição estadunidense 10
RODRIGUES, Lêda. A Corte Suprema e o
Direito Constitucional americano. Rio de Janeiro:
denomina de “igual proteção das leis”
Forense, 1958.
(equal protection of the laws). A questão 11
134 U.S. 418 (1890).
das políticas de ação afirmativa, as questões
12
RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema
relacionadas com a família e outras, estão na e o Direito Constitucional americano, Rio de Janeiro:
pauta de discussões da Suprema Corte. Forense, 1958, p. 96.

108
razão (reasonableness). Determinar o que É discutível que devêssemos lançar mão de
constituía o due process transformou-se (…) um único princípio, posto que amplo, para
na consideração mais importante do direito
constitucional americano. E, uma vez que, pela
resolver todos os problemas.
aplicação da ‘regra da razão’ (rule of reason), E é da tradição constitucional brasileira
a decisão judicial envolvia, na realidade, que as leis devam obediência a toda a
o julgamento baseado em considerações
Constituição, tanto aos princípios quanto
de ordem social e econômica, a cláusula
do processo legal regular, entendida como às regras. A diferença é que as leis podem
proteção substantiva, atribuiu aos tribunais violar as regras constitucionais e, quanto aos
poder quase legislativo.13 princípios, a violação é sempre tendencial:
Em 1989, pouco menos de um ano após uma lei tende a violar um princípio.
a promulgação da Constituição cidadã, veio Quanto à razoabilidade minhas dúvidas
a lume o livro “O devido processo legal e a são ainda maiores. É óbvio que as leis devem
razoabilidade das leis na nova Constituição ser razoáveis, como qualquer ato jurídico.
do Brasil”, do Professor Carlos Roberto de A regra da razão, no sistema constitucional
Siqueira Castro.14 Nessa obra, que já nasceu brasileiro, não existe senão como instrumento
um clássico do Direito Constitucional, hermenêutico e não de construção de regras
defende o autor que a Constituição brasileira abstratas fora do Congresso.
albergou o princípio do devido processo legal Como o Juiz Associado da Suprema Corte
e da razoabilidade das leis.
dos EUA, Hugo Lafayette Black, temo que a
Tenho cá minhas dúvidas de que se
regra da razão sirva como uma farmacopéia
precisasse chegar a tanto. Com efeito, a
para que um tribunal qualquer – que, afinal,
Constituição brasileira de 1988 é em tudo
é formado por profissionais que não foram
diferente da Constituição estadunidense. As
eleitos para suas funções – anule todo e
diferenças partem do próprio título. Enquanto
qualquer ato emanado dos demais poderes
é sempre necessário designar a Constituição
que não se adapte à sua visão particular de
brasileira a partir do ano de sua promulgação,
tantas foram nossas aventuras constitucionais, uma questão qualquer. Não todas, mas muitas
a equivalente norte-americana foi somente vezes, para citar o testemunho insuspeito do
uma. Seu corpo é rigorosamente o mesmo, Juiz Hugo Black, o argumento de falta de
desde 1787. Embora seja correto dizer razoabilidade das leis carece de seriedade.15
que foi alterada inúmeras vezes desde sua Afinal de contas, não foi com base na
promulgação, as 27 emendas ratificadas razoabilidade da lei que a Suprema Corte
por três quartos dos estados-membros não dos EUA afirmou que um negro não é gente
a mutilaram. e que qualquer lei que tenhar atribuir-lhe essa
Além disso, a Constituição brasileira é qualidade é inconstitucional?
analítica e está plena de princípios e de regras. Eu sequer penso em negar a importância
de estudar e compreender a tradição
13
RODRIGUES, Lêda Boechat. Idem, p. 139-140.
14
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O devido 15
BLACK, Hugo Lafayette. Crença na Constituição,
processo legal e a razoabilidade das leis na nova trad. de Luiz Carlos F. de Paula Xavier e Paulino Jacques,
Constituição do Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1989. Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 44.

109
constitucional norte-americana. Essa REFERÊNCIAS
compreensão somente se justica, porém, na
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos
medida em que servir para que possamos sobre o Processo Criminal brasileiro, ed. anot.,
compreender a nossa própria. atual. e compl. por José Frederico Marques,
E a primeira lição que os americanos facsimilar à ed. de 1857. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1959. p. 228.
nos passam é a importância de compreender
nossas próprias origens e usá-las como baliza CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O devido
processo legal e a razoabilidade das leis na
para os futuros caminhares. E a nossa tradição
nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro:
constitucional, coitadinha, é tão esquecida. Forense, 1989.
A propósito e sem o desejo de chegar a
FRANKLIN, Benjamin. “Autobiografia”,
uma firme e inapelável conclusão, deixem-me apud BRUCKBERGER, R. L. A república
fazer ao menos uma tentativa de conclusão. americana, trad. de Mercedes Zilda Cobas
Ao analisar as leis e os atos normativos Felgueras. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1960. p. 51-52.
públicos em face da Constituição, poderíamos –
à maneira dos “originalistas” ianques – LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Comentários
ao Código de Processo Penal brasileiro. Rio de
resgatar um belo dispositivo da nossa
Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos, 1942, v. 1, p. 20.
Constituição do Império e transformá-lo em
PESSOA, Vicente Alves de Paula. Código do
um norte para a interpretação constitucional Processo Criminal, 1880, p. 20.
das leis.
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Praxe brasileira,
Trata-se do art. 179, inciso II, que dispôs: São Paulo: 1869, pp. 5, 8, 51, 52 etc.
A inviolabilidade dos direitos civis e políticos RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema
dos cidadãos brasileiros, que tem por base e o Direito Constitucional americano, Rio de
a liberdade, a segurança individual, e a Janeiro: Forense, 1958.
propriedade, é garantida pela Constituição do
TANEY, Roger B. “Opinião”, em Dred Scott
Império, pela maneira seguinte (…) Nenhuma
v. John F. A. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393,
lei será estabelecida sem utilidade pública. 403-405, 411-412 (1856), em www.findlaw.com/
casecode/supreme.html (acesso em maio de 2005).
De fato. Desde que dado o devido
peso a cada uma das palavras, a questão
da legitimidade da lei face à Constituição
principia e se esgota nessa singela realidade.
As leis são írritas se não corresponderem aos
valores constitucionais. São inválidas se não
atenderem à utilidade pública substancial.
Nesta época, em que inúmeros e
inconfessáveis interesses privados muitas
vezes se contrapõem e negam o interesse
público, quando a legislação é feita aos
empurrões, o respeito a esse dístico seria
um notável avanço para o todo de nosso
ordenamento jurídico.

110

Das könnte Ihnen auch gefallen