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ABORTO

CADERNO DE TEXTOS
2016
Joana, com 17
namorando a mais de um mês
já pagou até boquete
mas sexo ela não fez
“não quero putaria”
mas o namoradinho ria
“não quero nem saber
você vai fazer, se me ama
só quero saber de papai
falava o papai
haha
a Joana também! por baixo do namorado!
com mamãe
na minha cama”
no outro dia
o pai tava por baixo
ela sendo despida
ele pelado
e apesar de tudo que diziam
ela sabia que não era um pecado
“coloca a camisinha”
“sem é mais gostoso,
ele benze o meu gozo”
Joana não queria, mas acabaram fazendo
“Deus, eu fico te devendo”
mas Deus não perdoou…
chazinho não funcionou!
será que engravidou???
(será, amor? amor?)
é só reza pra deus:
fizeram na fé
a pílula falhou!
Joana enjoou!
namorado fugiu
puta que me pariu!
“o que eu vou fazer?
pra quem eu vou contar?
não quero esse filho, eu vou é me matar!
não… vou falar pra Maria, do salão
ela vai entender a minha situação”
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Joana contou todos os lances
“não conta pra ninguém”
“não conta pra ninguém”
“não conta pra ninguém”
“não conta pra ninguém”
“não conta pra ninguém!”
todo mundo já sabe do teu neném!
“vagabunda, engravidou na adolescência!
vadia sem consciência!
olha lá? ela falou em abortar!
será que ela pensou em se matar?
Joana…
na hora tava bom?
abortar?
assume (assume!)
assume (assume!)
assume (assume!)
assume (assume!)
e lava esse teu perfume de vagabunda
esconde essa buceta
cobre a essa tua bunda!
cala essa boca e ANDA DE BURCA!”
não tem mais ninguém
tá pior que prostituta
sem família, e com neném
papai vai me espancar
Joana chorava,
e agora? e agora?
mas ah, tem jeito

mamãe me ensinou a tricotar.
sangue e choro… no chão do banheiro
morreu mais uma vagabunda
aos olhos do Brasil inteiro
aborto sem sucesso
país sem progresso

me trás mais um chá de canela
que a próxima vai ser a Gabriela.
(Autoria: Vini Giordani)
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Ap r e s e nt a ç ã o
A redução da maioridade penal. Criminalização da “heterofobia”. Eduardo Cunha. A exclusão
do debate sobre gênero no Plano Nacional de Educação (PNE) e o projeto de lei “Escola Sem
Partido”. O ajuste fiscal incidindo sobre os que menos têm condições de pagar por ele. Em meio a
tantos ataques aos nossos direitos conquistados e aos direitos humanos, é impossível que não
nos questionemos: o que serão das políticas públicas para os grupos oprimidos? E o que serão
desses grupos em si? Como resistir em meio a uma crise que evidencia, para além da falência
político-econômica de um projeto falacioso de conciliação de classes, um retrocesso em
termos de conquistas e manutenção de nossos direitos fundamentais? Nesse contexto, urge
que olhemos para nós mesmos e avancemos no sentido de construir políticas públicas que
pensem as populações mais vulneráveis. E, sendo assim, não podemos deixar de analisar qual
a situação da mulher na sociedade em que vivemos, o que já conquistamos e no que ainda pre-
cisamos avançar.
2015 foi um ano em que o movimento de mulheres floresceu. Vivemos o que foi chamado de
“Primavera Feminista”. Vimos as ruas sendo tomadas por mulheres, que passaram a atuar
como vanguarda nas lutas de esquerda por direitos e contra os cortes que estavam sendo
feitos a passos largos pelo governo federal. Vimos as mulheres formulando política, formando
lideranças e ocupando mais e mais espaços. Diante disso, vimos algumas reivindicações
históricas do movimento feminista reaparecerem com força, como a garantia de
representatividade na política, o aumento das creches nas universidades, a luta contra a
cultura de estupro. E, à luz da retomada da discussão sobre o Estatuto do Nascituro e da
tramitação do PL 5069 de Cunha, vimos reacender a luta pela descriminalização do aborto.
Diante disso tudo e entendendo que a discussão sobre o abortamento e as condições
colocadas para que as mulheres o façam perpassa pelos acúmulos em saúde da mulher,
direitos humanos, educação, opressões e tanto outros assuntos que nos movem na luta por
uma sociedade sem violência de gênero, apresentamos esse caderno que apresenta uma série
de textos sobre o aborto no Brasil e suas especificidades. Esperamos que ele seja útil no
fomento do debate nas escolas médicas por todo país e que se constitua como mais uma base
teórica para a luta pelos direitos das mulheres.

Saudações estudantis e feministas,


Coordenação de Cultura 2015/2016
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Posicionamento da DENEM

“A favor da descriminalização do aborto e da regulamentação do direito ao aborto a todas as

mulheres, instituindo serviços seguros e livres e com a devida assistência e acompanhamento,

por considerar que o aborto é uma questão de saúde pública que afeta, principalmente,

mulheres negras e pobres.”

(Posicionamento aprovado na plenária final do 46º Encontro Científico dos Estudantes de


Medicia, ocorrido em Fortaleza, em junho/2016)

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Sumário

Por que precisamos pensar a descriminalização do aborto? ___________________ pg 7


Maria Renata Mencacci Costa

Enquanto houver racismo para as mulheres negras, o aborto sempre será inseguro,
desumano e criminalizado _________________________________________pg 13
Emanuelle Goes

Só engravida quem quer?__________________________________________pg 17


Coletivo das Blogueiras Feministas

Regulação do aborto no Brasil: como é hoje e o que mudaria com o PL 5069__pg 21


Flora Sartorelli V. de Souza e Jéssica da Mata

O aborto das escravas: um ato de resistência____________________________pg 27


Jéssica Ipólito

Uso de métodos medicamentosos no aborto clandestino__________________pg 30


Flora Passini

Falando de Aborto com a Sociedade sob a Perspectiva da Educação Popular__pg 34


Yvana Hafizza Snege de Carvalho

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Por que precisamos pensar a descriminalização do aborto?
Maria Renata Mencacci Costa
Estudante da Faculdade de Medicina da USP
Coordenação de Cultura 2015/2016
Coordenação Regional Sul-2 2015

A descriminalização do abortamento é uma vos passaram não apenas a serem reconhecidos


reivindicação histórica do movimento femi- como direitos, mas a serem entendidos da per-
nista. Desde de a década de 1970, as mulheres spectiva dos direitos humanos. Assim, passa-
já se marcavam fortemente sua posição a favor mos a entender que é dever do Estado garantir
da legalização do procedimento nos casos não esses direitos em respeito à liberdade e autode-
previstos em lei. Naquela época, o posiciona- terminação de cada mulher, sem violência ou
mento baseava-se, como aponta Scavone, no coerção. Com base nisso, uma vez que a crim-
princípio do direito individual. Apropriar-se inalização do aborto viola o direito de autode-
do próprio corpo significava, para as mulheres, terminação reprodutiva das mulheres, devemos
também poder escolher sobre a maternidade ou entendê-la, como ponto de partida, como uma
a não-maternidade. Atualmente, é necessário violação de direitos humanos.
que compreendamos o abortamento como uma
questão que ultrapassa o campo das liberdades A violação do direito da mulher ao próprio
individuais, entendendo que a libertação real só corpo que simboliza a criminalização do aborto
existe quando há avanço da liberdade no cam- passa por dois pontos fundamentais: (1) o abor-
po coletivo. Portanto, discutir o aborto da per- tamento significa uma mulher que vivenciou
spectiva feminista, hoje, deve necessariamente sua sexualidade de maneira desviante, ou seja,
significar entender a quem a penalização pelo fora do casamento e (2) o abortamento significa
aborto atinge, quais as motivações para a luta a negação da maternidade.
pela descriminalização e como embasá-las na
interseccionalidade das opressões. Além dis- Para compreendermos o primeiro ponto de
so, significa caminhar no sentido da laicidade início, precisamos entender quais os símbo-
do Estado e da superação de preceitos morais e los do aborto para as mulheres de ontem e de
culturais que limitam às mulheres ao papel so- hoje. Marilena Chauí coloca que o aborto é um
cial da maternidade. procedimento punitivo, um castigo imposto às
mulheres com o intuito de “normalizar uma
“Meu corpo, minhas regras”: o que isso quer conduta desviante”. Chauí retoma e explica a
dizer? figura do açougueiro: “não usam anestésicos,
não há antissepsia, o local de ‘trabalho’ é or-
Em 1995, foi realizada a IV Conferência Mundi- ganizado de forma a marcar sua ilegalidade e
al da Mulher. A grande inovação das discussões nele prevalece o estilo ‘linha de montagem’ ou
que ocorreram naquele momento está ligada ‘supermercado’. Usam linguagem agressiva, cul-
ao fato de que os direitos sexuais e reproduti- pabilizadora. Fazem propostas obscenas para as
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mulheres ainda estendidas nas mesas de cirurg- A maternidade não pode ser entendida como
ia. Em suma: transformam o aborto num ato de uma escolha individual, mas sim como uma
castigo e punição. ” imposição social que é tomada como “natural”.
Ser mãe cumpre, para as mulheres, um papel
É fundamental que coloquemos, então, que disciplinador dos corpos e modulador da repre-
essa punição está inexoravelmente ligada à con- sentação do feminino, havendo então um con-
strução da sexualidade da mulher. Uma mulher trole social do comportamento e da psique das
que aborta desliga sua vida sexual de sua vida mulheres.
reprodutiva de forma definitiva. Nesse ponto, A figura da mãe é construída há séculos na so-
precisamos lembrar que a sexualidade da mul- ciedade ocidental e cumpre papel fundamental
her não passa por um processo de construção dentro do sistema político-econômico vigente.
ao longo da história, mas sim de destruição. Em primeiro lugar, temos a mãe como pedra
Sempre colocada em oposição ao homem, a central da família como instituição social. Em
sexualidade da mulher é anulada e minada con- segundo lugar, temos a mãe como produtora de
stantemente, de modo a criar-se o entendimen- novos trabalhadores saudáveis que irão integrar
to de o que o sexo, para a mulher, serve única e o sistema produtivo. Portanto, abortar não se
exclusivamente para a procriação, ignorando-se constituiria apenas como um atentado à vida,
completamente a plena capacidade da mulher mas como um atentado à sociedade como um
de sentir prazer e de criar laços afetivos com todo. O entendimento da subversão do abor-
base no envolvimento físico-sexual. Sendo as- tamento é construído, então, histórica, cultur-
sim, a mulher que aborta escancara o primeiro al, política e economicamente. Os aspectos que
pecado cometido pela mulher: o reconheci- competem à moral religiosa foram incorpora-
mento de sua própria sexualidade. dos a um sistema político que já predetermina-
va a visão que a sociedade teria do aborto, com
O segundo ponto, aqui colocado como funda- aval da Igreja Católica, inicialmente.
mentador do aborto como castigo, nos leva
a contestar a maternidade compulsória como Logo, dizer “meu corpo, minhas regras” no con-
um destino ao qual as mulheres estão fadadas. texto da luta pela descriminalização do aborto
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é dizer que as mulheres lutam por sua real lib- que chamamos de “família tradicional”) guiado
ertação sexual, insubordinada aos interesses por escolha consciente com apoio da equipe da
hegemônicos masculinos e produtivistas, en- saúde que o acompanha é urgente no sentido de
tendendo que a maternidade não vem como suprirmos as falhas que vulnerabilizam as mul-
consequência natural de uma sociedade débil, heres.
mas como escolha consciente baseada na eman-
cipação coletiva de todas as mulheres. Por isso, é imprescindível, para além da estru-
turação da rede básica voltando-se também
Por que as mulheres ainda engravidam sem para o atendimento focado em planejamento
vontade? familiar, que saúde reprodutiva seja também
discutida nas escolas e massivamente divulgada
O abortamento no Brasil resulta de um projeto em todas as esferas do convívio social. Também
falho de planejamento familiar enquanto políti- é fundamental que a informação divulgada não
ca pública, uma vez que este é calcado em in- se paute na heteronormatividade compulsória
formações deficitárias, em acesso limitado ao vigente ou que adote a maternidade e a paterni-
sistema de saúde e a educação e em ausência dade como caminhos a serem necessariamente
de acompanhamento por parte dos serviços. seguidos pela juventude no futuro. A quebra
Essas falhas vão de encontro à Lei 9.263/1996, desses paradigmas é absolutamente necessária
que regulamenta o Planejamento Familiar, e ao para que todos possam dialogar verdadeira-
Programa Especial de Planejamento Familiar mente com a informação que é transmitida.
de 2007. A inserção do planejamento reprodu-
tivo no âmbito da atenção primária, com o en- Além disso, devemos ter em mente o que os
tendimento de que a responsabilidade não é ex- métodos contraceptivos representam hoje para
clusivamente da mulher, mas sim dividida pelo as mulheres e qual a repercussão psicossocial de
núcleo familiar (que ultrapassa os limites do suas falhas no contexto de uma gravidez indese-
jada. Atualmente, temos como métodos contra-
ceptivos os hormonais, de uso exclusivamente
Legalização do aborto no Uruguai feminino, e os métodos de barreira, como des-
• De 2012 a 2014, uma única mulher morreu taque para a camisinha, que dependem da ne-
gociação entre homens e mulheres. Nesse pon-
por causa do procedimento. Mas ele foi to, é necessário que discutirmos o acesso a esses
realizado de forma clandestina, mesmo após a métodos e a real aplicabilidade deles.
legalização. No serviço regulamentado,
Quanto ao acesso, devemos sempre colocar
nenhuma morte foi registrada. que a rede de atenção à saúde não é distribuída
de forma homogênea pelo território nacional.
• Houve um aumento de 30% no número de
Além do acesso ao serviço em si, devemos levar
mulheres que optaram por seguir a gravidez. em consideração a descontinuidade do supri-
• Atingiu a meta de redução da mortalidade mento e a quantidade restrita de métodos dis-
poníveis no sistema do público. Devem ser tam-
materna total prevista nos Objetivos e Metas bém apontadas as dificuldades que as mulheres
do Milênio. enfrentam em usar os anticoncepcionais orais:
os efeitos colaterais são diversos, passando por
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depressão e perda do desejo sexual. Todas es- pacta diretamente a saúde mental e sexual fem-
sas barreiras, somadas às falhas já inerentes aos ininas. É urgente que avaliemos os fatores que
métodos disponíveis, representam um grande realmente levam a uma gravidez indesejada,
potencial de ocorrência de gravidezes não dese- entendendo que ela não é fruto da irrespons-
jadas. abilidade ou da lascívia da mulher, mas sim
de políticas públicas débeis que esbarram nos
Outro ponto que deve ser abordado em se fa- limites de uma sociedade patriarcal e misógina.
lando de contracepção é a negociação da cam- O abortamento, nesse contexto, surge como o
isinha. A camisinha é o método contraceptivo último recurso dessas mulheres no sentido de
mais barato e mais divulgado dentre todos os poderem escolher sobre seus próprios corpos
que estão disponíveis. No entanto, seu uso de- e destinos. Assim sendo, deveria ser dever do
pende invariavelmente de como se dá a relação Estado garantir que ele fosse feito de maneira
a dois. No caso de relações heterossexuais, a segura – ainda mais quando partimos do enten-
posição de subordinação da mulher na socie- dimento de que as mulheres sempre abortaram,
dade reflete uma capacidade de diálogo real abortam ainda hoje e continuarão abortando.
limitada, colocando a mulher numa posição de
vulnerabilidade diante do poder delegado ao Aborto é questão de saúde pública!
homem na relação sexual. Assim, muitasvez-
es a relação desprotegida é algo imposto para Então, se sabemos que as mulheres já abortam
a mulher de forma violenta e coercitiva, o quee que não vão parar de fazê-lo enquanto não
representa uma gigantesca limitação para o usohouver condições para isso, o próximo passo é
da camisinha como forma de evitar a gravidez. no sentido de garantir que elas tenham acesso
a procedimentos seguros, que não configurem
Ainda assim, adota-se uma postura de respons- práticas de tortura ou de ataque aos seus direit-
abilização da mulher pela gravidez, o que im- os reprodutivos. É importante colocarmos aqui

mos-falar-sobre-aborto/
https://queroquedesenhe.wordpress.com/portfolio/precisa-

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que a defesa da legalização do aborto é uma def- po demonizado dessas mulheres. No entanto,
esa da vida das mulheres, que, isso não foi suficiente para que avançássemos
nesse caso, têm raça e classe. Os limites da vida em termos de legislação.
– seu começo e seu fim – não cabem nessa dis-
cussão. O que se levanta aqui é a luta por direit- Precisamos, daí, avançar ainda mais na análise
os e dignidade humanos. das brasileiras que abortam. Foi atestado que as
mulheres universitárias abortam mais do que as
Partindo desse pressuposto, devemos olhar para mulheres que estão fora da universidade. Porém,
o Brasil e entender quem aborta e quem morre essas mulheres abortam em clínicas, onde o pro-
abortando. Cerca de 30% das gravidezes termi- cedimento é feito de forma segura e controlada.
nam em aborto e, atualmente, as mortes rela- Tratam-se, portanto, de mulheres com alta es-
cionadas ao abortamento constituem a quinta colaridade e grande poder aquisitivo. No outro
causa de morte materna no país. Os números polo, vemos que as mulheres jovens, de menor
são assustadoramente altos. Para tornar mais escolaridade e que vivem na periferia dos cen-
palpável: um levantamento de 2005 aponta que tros urbanos abortam em menor quantidade,
para cada 100 nascidos vivos, 30 abortamen- mas correspondem ao maior número de mortes
tos foram realizados de forma insegura e em por abortamentos inseguros. Quando olhamos
condições precárias. De todo esse contingente para a cor da pele dessas mulheres, vemos tam-
de mulheres que abortam, cerca de 50% precis- bém que as mulheres negras têm um risco três
am ser internadas por conta das complicações. vezes maior de morrer por complicações do
Em 1991, no Rio de Janeiro, o gasto com essas abortamento do que mulheres brancas, inclu-
internações teria sido suficiente para a real- sive quando a atenção hospitalar é prestada.
ização de 62 mil abortamentos seguros, o que
representava 91% dos procedimentos necessári- Falar sobre a legalização do aborto, portanto,
os estimados para aquele ano. Em outras pala- não é simplesmente falar sobre a falta de von-
vras: a criminalização do aborto é responsável tade política de um Estado machista, mas tam-
por morte de milhares de mulheres e representa bém falar sobre a falta de vontade política de
um gasto injustificável para o sistema de saúde um Estado racista e classista. É falar sobre a vi-
público. olência institucional perpetrada por bancadas
conservadoras e pelos serviços em saúde e ed-
Diante desses dados, fica o questionamento: por ucação que estão deixando as mulheres jovens
que, então, ainda não avançamos no sentido desassistidas e que estão matando as mulheres
da legalização? A resposta para isso está, sem negras. Olhar para o aborto como uma questão
dúvidas, no perfil de quem realmente é afetada de saúde pública é significa-lo como uma
pela criminalização do procedimento. Em 2009, questão de necessidade de cuidados em saúde
uma pesquisa foi financiada pelo Ministério da e não como um capricho ou desvio de condu-
Saúde e conduzida por Débora Diniz e Marile- ta de mulheres destituídas de moral. Trata-se,
na Corrêa. Tratava-se de um estudo que avalia- portanto, de uma redefinição política que passa
va o aborto no Brasil num período de 20 anos. pela superação de valores religiosos, culturais
Com esse estudo, foi possível traçar o perfil da e sociais que aprisionam as mulheres a uma
mulher brasileira que aborta: entre 20 e 29 anos, condição subumana de subordinação. É pela
em união estável, com até 8 anos de estudo, tra- vida das mulheres!
balhadoras e católicas. Isso destruiu o estereóti-
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REFERÊNCIAS: O aborto dos outros, de Carla Gallo
h t t p s : / / w w w. y o u t u b e . c o m / w a t c h ? v = -
RAMEIRO, Ana Patrícia Ferreira. Notas sobre de1H-q1nN98
aborto numa perspectiva feminista. Revista
Diálogo, abril/2014
Passando pelo estágio da Obstetrícia do inter-
RAMOS, Gilmara Salviano. Maternidade com-
nato, ocorreu de uma mulher com cerca de 26
pulsória & maternidades subversivas:
anos procurar nosso hospital universitário, que
práticas de infanticídio na imprensa e nos pro-
cessos de habeas-corpus. Texto integrante dos é referência em atendimento de vítimas de vi-
anais do XIX Encontro Regional de História: olência sexual. Ela relatava ter sofrido estupro
Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP – USP. há dois meses, que tinha recém descoberto que
Setembro/2008 estava grávida e que queria abortar. O exame
físico e de imagem eram compatíveis com a cro-
MENEZES, Greice; AQUINO, Estela M L. nologia relatada. Primeiro que nem a chefe do
Pesquisa sobre aborto no Brasil: avanços e desa- plantão nem nenhum residente sabiam da leg-
fios para o campo da saúde coletiva. Cad. Saúde islação sobre o aborto legal - de que não se ex-
Pública, Rio de Janeiro, 25 Sup 2:S193-S204, ige exame pericial nem B.O. para atendimento
2009 médico à vítima de violência sexual. Segundo
que quando mostrei a eles documentos oficiais
ANJOS, Karla Ferraz dos; SANTOS, Vanessa do MS, eles me ignoraram. Terceiro que faziam
Cruz; SOUZAS, Raquel; EUGÊNIO, Benedito
todo tipo de julgamento moral da paciente,
Gonçalves. Aborto e saúde pública no Brasil: re-
como: duvidando que ela tenha sido estuprada,
flexões sob a perspectiva dos direitos humanos.
se perguntando o porquê de não ter feito B.O.
Saúde em Debate – Rio de Janeiro, v. 37, n. 98, à época do estupro, e dizendo que ela devia es-
p. 504-515, jul/set 2013 tar num lugar propício ao estupro, por isso que
deve ter ocorrido. Pelo menos não expuseram
MANSOUR, Veridiana. Aborto e saúde pública: seus pensamentos horríveis à paciente, essa dis-
as consequências após dois anos da legalização cussão foi “só” entre a equipe médica. Parabéns
no Uruguai. Publicado em: blog da PLAN Brasil.
(Avaliação, Monitoramento e Pesquisa Social) Junto com duas amigas, fomos ao setor de as-
sistência social pra demonstrar nosso medo de
FREIRE, Nilcéa. Aborto seguro: um direito das que a legislação não fosse cumprida no caso
mulheres? CienCult, 2012 dessa paciente. A assistente disse que o protoco-
lo do hospital é formar uma junta com diversos
OUTRAS MÍDIAS:
profissionais para decidir sobre o caso da paci-
ente. Depois de alguns dias fiquei sabendo que a
Uma história Severina, de Débora Diniz e Eliane
Brum equipe médica não seria criminosa, que fariam
https://www.youtube.com/watch?v=65Ab38k- o procedimento no final das contas.
WFhE

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Enquanto houver racismo para as mulheres negras, o
aborto sempre será inseguro, desumano e criminalizado
Emanuelle Goes
Blogueira, enfermeira, militante do Movimento de Mulheres Negras, Pesquisadora em Saúde
das Mulheres Negras, Doutoranda em Saúde Pública ISC/UFBA
Texto originalmente publicado em: População Negra e Saúde

Abortei a escravidão
Sem te tocar
Lhe entreguei ao mar
Lhe dei liberdade 
Lhe entreguei ao mar
Para ser livre no ventre
Lhe entreguei ao mar
Serei sua ancestral
No seu retorno já Rei
Ventre negro
Ventre livre
Práticas racistas estão na vida das mulheres ne- flexão sobre os aspectos jurídicos, tendo como
gras e em qualquer situação na saúde, mesmo princípios norteadores a igualdade, a liberdade
quando estamos diante de um cenário que por e a dignidade da pessoa humana, não se ad-
si só é desfavorável ainda consegue ser pior para mitindo qualquer discriminação ou restrição ao
as mulheres negras, neste caso estou falando do acesso à assistência à saúde. Esses princípios in-
aborto, que quando inseguro e clandestino são corporam o direito à assistência ao abortamen-
as mulheres negras as mais atingidas. to no marco ético e jurídico dos direitos sexuais
e reprodutivos afirmados nos planos interna-
Por outro lado, mesmo em um atendimen- cional e nacional de direitos humanos.
to com mulheres em situação de abortamento
onde supostamente nada se sabe sobre o tipo de
As mulheres com abortamento sofrem diver-
aborto, se provocado ou espontâneo, são tam-sos problemas no acesso aos serviços de saúde,
bém as mulheres negras as mais punidas no como dificuldade de vagas hospitalares com
atendimento desumanizado no serviço. peregrinações na procura de um leito obstétri-
co e, chegando às unidades, estão expostas a
De acordo com a Norma Técnica para Atenção situações de violência institucional e discrim-
Humanizada ao Abortamento, (BRASIL, 2011, inações, conforme denúncias constantes dos
p.15): A atenção humanizada às mulheres em movimentos de mulheres, em diversos lugares
abortamento merece abordagem ética e re- do país (AQUINO et al., 2012).
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Um estudo realizado no Nordeste do Brasil racismo como estruturante e transversal na vida
(GRAVSUS.NE) apresentou em seu resultado das mulheres negras faz com que o percurso
como as mulheres em situação de abortamento seja outro, mesmo que estejamos em lutas com
tem dificuldade de acessar o serviço de saúde, bandeiras comuns.
no entanto ser de cor preta foi o único fator que,
explicou a maior dificuldade, revelando dessa Com base no Feminismo Negro, usamos a Te-
forma o racismo institucional. oria do Feminismo Interseccional para explicar
as vivencias singulares com os cruzamentos das
Racismo institucional é qualquer sistema de opressões de raça e gênero e outras opressões
desigualdade que se baseia em raça que pode correlatas. Pois, a  interseccionalidade é uma
ocorrer em instituições como órgãos públi- associação de sistemas múltiplos de subordi-
cos governamentais, corporações empresariais nação, sendo descrita de várias formas como
privadas e universidades (públicas e privadas) discriminação composta, cargas múltiplas,
(SANTOS, 2001), “tra- Meu relato é de um caso que ficamos sa- ou como dupla ou tri-
ta-se da falha coletiva bendo que aconteceu com estudantes de pla discriminação, que
de uma organização em outra turma: eles foram fazer anamnese e concentra problemas e
prover um serviço apro- exame físico de uma paciente que estava busca capturar as conse-
priado e profissional às internada no hospital e tinham acesso ao quências estruturais de
pessoas por causa de sua prontuário das pacientes antes de colher a dinâmicas da interação
cor, cultura ou origem ét- história. No prontuário estava anotado que entre dois ou mais eixos
nica” ela tinha sofrido um aborto, mas não tinha da subordinação (Cren-
De acordo com a Pesqui- anotado o fato de que a paciente não sabia shaw, 2002).
sa Nacional sobre Aborto disso. Dai ao colherem a história pergun-
(2010), são as negras as taram quando é que o aborto tinha aconte- Para Bairros (1995), a
que mais realizam aborto cido e a paciente não sabia que tinha per- experiência da opressão
em locais com pouca ou dido a criança. sexista é dada pela
nenhuma higiene, insalu- posição que as mulheres
bre e sem conhecimento médico, onde se utili- ocupam numa matriz de dominação, na qual a
zam sondas inapropriadas e outros apetrechos raça, gênero e classe social interceptam-se em
para provocar o abortamento. Alem disso são diferentes pontos, pois se configuram mutua-
também mente, formando um mosaico, que só pode ser
as negras, de baixa escolaridade e com menos entendido em sua multidimensionalidade, uma
de 21 anos as que mais passam pelo processo vez que, do ponto de vista feminista, não ex-
sozinhas, sem o auxílio ou apoio de uma amiga, iste uma identidade única; a experiência de ser
familiar ou profissional da saúde. mulher se constitui como tal de forma social e
historicamente determinada.
As experiências vividas para as mulheres negras
no exercício do direito reprodutivo sempre ti- Alguns pontos podem ser demarcados aqui,
veram a cor da pele como um diferencial, um para explicitar essa trajetória das mulheres ne-
olhar sobre a superfície parece que nós, mul- gras em relação ao aborto.
heres negras, temos trajetórias similares com as
mulheres brancas, mas não é verdade, tendo o Na escravidão as mulheres negras realizavam
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aborto para não ver os seus filhos na escravidão, da gestação, mas as condições precárias que as
em outro momento elas eram obrigadas a abor- demoviam de trazer novas vidas ao mundo.
tar, que como amas-de- leite tinham que dá ex-
clusividade em amamentar o filho do seu opres- Para assegurar o trabalho por muitas vezes
sor. Muitas mulheres escravas recusavam-se a como empregada doméstica ou dentro do tra-
trazer crianças ao mundo do trabalho forçado balho informal sem nenhum direito as mul-
interminável, onde as correntes, os chicotes heres também recorrem ao aborto inseguro
e o abuso sexual das mulheres eram as únicas para a manutenção do seu trabalho, neste caso
condições de vida a ser ofertada (Davis, 1981).são as negras que representam o maior con-
tingente neste tipo de trabalho, relembro aqui
Posteriormente, outras situações adversas por os casos de Jandira Magdalena dos Santos e
conta das desigualdades raciais, as mulheres Elizângela Barbosa temiam em perder em seus
negras continuavam a abortar por não ter empregos, com isso a realização do aborto tinha
condições de ofertar uma vida digna aos seus como garantia a permanência do trabalho e elas
filhos. Segundo Angela Davis (1981) quando ao realizarem o aborto inseguro e clandestino
as mulheres negras e latinas realizavam abor- tiveram suas vidas  ceifadas  precocemente, ve-
to grande parte das histórias que contavam jam o artigo “Aborto e machismo no mercado
não eram sobre o seu desejo de se verem livre de trabalho” de Jarid Arraes.
15
A pesquisa recente realizada pelo IBGE (2013) este brasileiro: o que dizem as mulheres?. Ciênc.
demonstrou que o aborto tem cor e renda, no saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 17, n. 7, jul. 
Nordeste, por exemplo, o percentual de mul- 2012. Disponível em  http://www.scielo.br/sci-
heres sem instrução que fizeram aborto provo- elo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
cado (37% do total de abortos) é sete vezes 81232012000700015&lng=pt&n-
maior que o de mulheres com superior com- rm=iso
pleto (5%). Entre as  mulheres pretas, o índice
de aborto provocado (3,5% das mulheres) é o BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos revisita-
dobro daquele verificado entre as brancas (1,7% dos.  Estudos Feministas. vol.3, n.2, p.458-463.
das mulheres). 1995. BRASIL. Ministério da Saúde.  Atenção
Humanizada ao Abortamento:  norma técnica.
Os processos singulares vivenciados pelas mul- Brasília, 2011.
heres negras vão delinear caminhos distintos
e neste sentido o campo da saúde reprodutiva Carmichael, S. e Hamilton, C. Black power: the
evidencia nitidamente essas diferenças expe- politics of liberation in America. New York,
rienciadas pelas mulheres segundo a sua per- Vintage, 1967, p. 4
tença racial como direitos, autonomia, tomadas
de decisões e escolhas reprodutivas, e para as CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o en-
mulheres negras segue um conjunto de fatores contro de especialistas em aspectos da discrimi-
estruturado pelo racismo, daí a necessidade de nação racial relativos ao gênero.Revista Estudos
assegurarmos as singularidades que confor- Feministas, vol.10, n.1, p.171-188. 2002.
mam as mulheres dentro do processo coletivo
no reconhecimento do sujeito e de sua história. Davis, Angela. (1981), Women, race and class.
Nova York, Vintage Books.
REFERÊNCIAS:
Helio Santos (2001). A busca de um caminho
AQUINO, Estela M. L. et al . Qualidade da atenção para o Brasil: a trilha do círculo vicioso. Senac.
ao aborto no Sistema Único de Saúde do Nord- p. 109 - 110.

16
Só engravida quem quer?
Coletivo das Blogueiras Feministas
Texto originalmente publicado em: Blogueiras Feministas

Essa é talvez a frase que mais ouvimos em gravida quem quer, que tal pensar nos inúmer-
qualquer debate sobre a legalização do abor- os fatores envolvidos na contracepção?
to:  “Não precisa legalizar o aborto, hoje em
dia só engravida quem quer”. Com suas Desinformação e vergonha de falar abertamente
variações: “Com tanta informação e tantos mét- sobre sexo
odos anticoncepcionais é um absurdo que al-
guém engravide sem querer hoje em dia”. Até Existe MUITA desinformação sobre contra-
chegar no extremo:  “se não quer engravidar, cepção, doenças sexualmente transmissíveis e
não faça sexo!”. qualquer assunto ligado a sexualidade. Por mais
que “sexo” seja uma palavra gritada diariamente
Aí está o grande problema em relação a legal- na mídia, as mensagens não são informativas.
ização do aborto: o sexo por prazer. Na legis- A maioria das escolas não tem educação sexual
lação atual, o aborto é permitido em casos de no currículo. Em grande parte, porque grupos
violência sexual, risco de vida para a gestante e conservadores barram esse tipo de conteúdo,
diagnóstico de feto anencéfalo. A maioria das com medo de que as crianças sejam “estimula-
pessoas é favorável ao aborto nesses três casos das” a fazer sexo antes da hora. Mal sabem que
justamente porque não envolve discutir a liber- as crianças desde muito cedo expressam sua
dade sexual. Falamos sobre isso anteriormente, sexualidade, sentem prazer com seus corpos e
no texto: Aborto e o controle social dos corpos. seria ótimo que não fossem reprimidas. Nas au-
Então, se é tão difícil assim engravidar sem las de biologia, quando o assunto é abordado,
querer, por que tantas mulheres ainda se veem geralmente é tratado como algo terrível que só
nessa situação? Por que até médicas ginecolo- dissemina doenças sexualmente transmissíveis.
gistas engravidam sem querer? A realidade é
sempre bem mais complexa do que os rápidos Quanto mais se falar abertamente sobre um
julgamentos sociais. assunto menos tabus haverão. Consequente-
mente, menos pessoas terão vergonha, temor
No Brasil, 46% dos nascimentos no País não ou receio de falar sobre o assunto. A única visão
são desejados ou são planejados para mais tar- que a maioria das pessoas tem do que seja sexo
de, segundo dados da última Pesquisa Nacional é a imagem da penetração. Há inúmeras possi-
de Demografia e Saúde da Criança e da Mul- bilidades do que seja uma relação sexual, mas
her  (PNDS), feita em 2006.  No levantamento acredita-se que o prazer sexual passa obrigator-
anterior, feito em 1996, o percentual era de 48%. iamente por essa imagem.
O avanço muito pequeno, segundo os próprios
pesquisadores, mostra problemas no acesso aos A disseminação de informação, que é respons-
métodos contraceptivos, mau uso ou falhas na abilidade do Estado, muitas vezes é negligencia-
tecnologia de disponível. da. Por mais que exista distribuição de métodos
contraceptivos como camisinha masculina, an-
Antes de encher a boca para falar que só en- ticoncepcionais hormonais e pílula do dia se-
17
ticoncepcionais, sem exceção, possuem algum
nível de possibilidade de ineficiência mesmo
com o uso correto. Nem mesmo alaqueadu-
ra garante 100% de proteção.

Recentemente, o jornal  The New York


Times, publicou gráficos mostrando que “quan-
to maior o tempo de utilização de um método
contraceptivo, maior a probabilidade de uma
gravidez indesejada — da mesma maneira que
qualquer pequeno risco, ocorrendo repetida-
mente, cresce em probabilidade. Isto é verdade
guinte em unidades de saúde públicas, isso não para todos os métodos contraceptivos, mesmo
quer dizer que não existam problemas na dis- no caso altamente improvável que eles sejam
tribuição e até mesmo escassez, especialmente usados ​​perfeitamente, todas as vezes”.
em regiões mais afastadas dos principais cen-
tros urbanos. Portanto, não é incomum conhecermos in-
úmeros casos de mulheres que usavam anti-
O acesso a esses recursos é intermediado por concepcionais hormonais ou dispositivos como
profissionais e instituições que algumas vezes o DIU (Dispositivo intrauterino) e engravida-
ram. Cada pessoa tem um corpo e processos
podem ter crenças ou seguir dogmas contrári- biológicos diferentes. Nem todos os medica-
os ao seu uso, especialmente no caso da pilula mentos reagem da mesma forma com todas as
do dia seguinte, o que afeta o acesso a alternati- pessoas. Além disso, se há falta de informação, é
vas de contracepção em diversas comunidades. provável que uma grande parcela não saiba usar
Consultas com ginecologistas na rede pública o método corretamente, já que essa informação
e até mesmo nos planos de saúde privados de- não é de conhecimento geral.
moram para serem marcadas e muitas vezes as
pessoas não tiram todas as dúvidas que tem por Outros medicamentos como antibióticos, an-
vergonha de perguntar. ticonvulsivantes e antidepressivos  podem agir
cortando o efeito da pílula. Essas informações
Além disso, há uma cultura na sociedade em muitas vezes não são repassadas pelo profis-
que as pessoas preferem ignorar o fato de que sional de saúde e nem constam na bula, pois há
adolescentes fazem sexo. Esse tipo de situação poucas pesquisas em relação a isso quando se
desestimula uma conversa franca sobre méto- lança um medicamento. Consumo excessivo de
dos contraceptivos e gera cada vez mais desin- bebidas alcoólicas, vômitos e diarreias também
formação. podem afetar a absorção do contraceptivo hor-
monal.
Nenhum método anticoncepcional é infalível e
seu uso sempre depende do acesso A pílula do dia seguinte é um contraceptivo de
emergência. Não deve ser usada como método
De cada cem mulheres que tomam a pílula em contraceptivo regular e não é abortiva.  O ide-
um ano, três engravidam. Todos os métodos an- al é que o tempo para tomá-la não ultrapasse
18
72 horas (3 dias) após a relação sexual. Nas a esterilização cirúrgica durante os períodos de
primeiras 24 horas a eficácia pode ser de 88%, parto ou aborto, exceto nos casos de comprova-
mas a medida que o tempo passa, essa eficácia da necessidade, por cesarianas sucessivas ante-
diminui. Também não é recomendado usá-la riores. No caso da vasectomia, a pessoa não fica
mais de uma vez por mês, porque perde a eficá- estéril de imediato leva em média 3 meses ou
cia, aumentando o risco de gravidez. cerca de 20 ejaculações.

Métodos baseados nos ciclos menstruais da Além disso, para ter acesso a uma ampla gama
mulher, como a Tabelinha e o Método do Muco de contraceptivos é preciso ter dinheiro. As
Cervical (método de Billings), exigem ciclos pílulas anticoncepcionais mais modernas e com
menstruais regulares e tem pouca eficácia. Mét- menos efeitos colaterais custam caro, em média
odos de barreira como a camisinha (masculina de R$35 a R$70 e não são distribuídas na rede
ou feminina) e o diafragma exigem a colocação pública de saúde. O DIU é fornecido na rede
correta. Porém, no caso da camisinha masculi- pública, mas pouco divulgado e com poucos
na, nem todos os modelos se adaptam aos dif- profissionais que realizam a colocação. Na rede
erentes tamanhos de pênis o que aumenta as privada sua colocação pode custar em média de
chances de rasgos ou furos. R$400 a R$600.

Para realizar uma laqueadura ou uma vasecto- Nem todo mundo se adapta aos métodos con-
mia no SUS é preciso ter 25 anos ou no minimo traceptivos mais comuns
2 filhos, segundo a lei n° 9.263/1996. Se a pessoa
for casada, a esterilização depende do consenti- Há pessoas que tem alergia a látex e só podem
mento expresso de ambos os cônjuges. É vedada usar camisinhas de poliuretano, que são mais

19
caras e mais difíceis de serem encontradas. conhecida. A forma mais segura de se prevenir
Além de não terem tantas opções de tamanhos, uma gravidez é utilizar métodos combinados,
formatos e sabores.  mas além de nada ser garantido, a prevenção
plena não é acessível a todas as pessoas.
Os métodos anticoncepcionais hormonais estão
ficando cada vez mais populares, mas grande Além disso, muita gente ainda tem vergonha de
parte das mulheres que os utilizam sentem di- adquirir métodos contraceptivos. Nas grandes
versos efeitos colaterais como: dores de cabeça, cidades isso não é tão comum. Porém, nas ci-
dores nas mamas, inchaço, varizes, náuseas, re- dades do interior, em que só tem uma farmá-
dução do desejo sexual, etc. cia eo dono conhece sua família, como comprar
uma pílula do dia seguinte, por exemplo?
Anticoncepcionais hormonais também aumen-
tam os riscos de doenças circulatórias e car- Na maioria das pesquisas, a religião, a idade e
diovasculares como:  trombose venosa e AVC. a classe socioeconômica estão relacionadas ao
Hábitos de vida, condições de saúde e histórico maior ou mais  adequado conhecimento dos
familiar de doenças são determinantes e mui- métodos contraceptivos. Geralmente não há
tas vezes há contraindicação para fumantes, desconhecimento da existência, mas falta de
obesas, pessoas com  histórico de trombose, acesso e desinformação sobre como deve ser
embolia pulmonar, infarto, hipertensão arterial utilizado.
grave, diabetes, histórico de acidente vascular
cerebral, enxaqueca, doenças do fígado ou pân- A proposta da legalização do aborto não visa
creas, tumores e sangramento vaginal não diag- apresentar o aborto como uma solução mági-
nosticado. Durante a amamentação alguns dos ca para esses problemas, mas sim garantir o di-
anticoncepcionais também não são indicados, reito das pessoas decidirem sobre seus corpos o
pois podem afetar a produção de leite. fim do tema como um tabu. Qualquer proposta
séria de legalização do aborto, como a Platafor-
O machismo ainda permeia grande parte dos ma Para Legalização do Aborto no Brasil, tem
relacionamentos como uma de suas principais metas garantir e
expandir o acesso ao planejamento familiar e a
Primeiro, temos o problema que a responsab- métodos contraceptivos, porque isso faz parte
ilidade da contracepção fica em grande parte dos direitos reprodutivos e sexuais.
nas mãos da mulher. Assim como a culpa pela
gravidez indesejada. As mulheres engravidam por diversas razões e
o que não queremos é condená-las a uma gravi-
A camisinha masculina é o método contra- dez compulsória. Da mesma maneira que deve
ceptivo mais barato e prático, mas vemos ain- mos garantir todos os direitos a quem decide
da inúmeros homens que resistem a usá-la ou ser mãe ou pai como: pré-natal, atendimento
que propõe as parceiras um método anticon- humanizado no parto, creches e benefícios tra-
cepcional feminino para pararem de usá-la, es- balhistas. Também devemos respeitar e garantir
pecialmente em relacionamentos longos. Já ex- atendimento a quem  decide interromper uma
iste a camisinha feminina a venda no mercado. gravidez porque não se sente preparada no mo-
Porém, ela custa bem mais caro que a masculina mento para assumir essa responsabilidade.
e não há muitas campanhas para que se torne
20
Regulação do aborto no Brasil: como é hoje e o que mu-
daria com o PL 5069
Flora Sartorelli V. de Souza
Mestranda em Direito Penal na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante do
Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da Universidade de São Paulo

Jéssica da Mata
Mestranda em Direito Penal na Universidade de São Paulo e integrante do Centro de Pesquisa
e Extensão em Ciências Criminais da Universidade de São Paulo

Regulação da interrupção seletiva da gravidez tante tiver 14 anos ou menos, tiver algum tipo
no Brasil: como é hoje? de deficiência mental ou se o consentimento
é obtido mediante fraude, violência ou grave
No Brasil, a interrupção seletiva da gravidez, ameaça, a pena prevista passa a ser de três a dez
comumente chamada de aborto, é proibida e anos de reclusão.
criminalizada. Se a gestante o provocar ou con-
sentir que outra pessoa o provoque, há pena de Há, contudo, em nosso ordenamento, algu-
detenção prevista de um a três anos (art. 124, mas hipóteses em que a prática de aborto não
Código Penal). Quem provoca o aborto com o é punível, ou seja, hipóteses de aborto legal. O
consentimento da gestante também é criminal- Código Penal prevê duas delas (art. 128): (i) o
izado, com pena de reclusão prevista de um a aborto necessário, caracterizado quando a vida
quatro anos (art. 126, CP). Neste caso, se a ges- da gestante está em grave risco em razão da

21
com a disposição do oferecimento desse serviço
por meio do Sistema Único de Saúde (SUS),
atendimento esse que, ainda, é bastante escasso.
O responsável pela edição de normas técnicas
que tratam de regulamentação do aborto legal
no Brasil é o Ministério da Saúde, desde o que
diz respeito ao atendimento médico até o ofere-
cimento do serviço pelo SUS e por instituições
particulares. As restrições legislativas e ob-
stáculos encontrados pelas mulheres, inclusive
para a realização do aborto legal, fazem com
que muitas realizem abortos inseguros, levando
às preocupantes estatísticas de que a cada dois
dias uma brasileira morre por aborto inseguro
(segundo dados da do Ministério da Saúde).

O PL 5069/13: o que mudaria?

Recentemente, foi aprovado pela Comissão de


Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara
dos Deputados o Projeto de Lei 5069/13, que
propõe alterações no Código Penal e na Lei de
Contravenções Penais, no que se refere à regu-
lamentação do aborto, e na Lei 12.845/13, que
dispõe sobre o atendimento de pessoas em situ-
ação de violência sexual. Entre as principais al-
gestação e não há outro meio para salvá-la senão terações, estão:
pelo aborto; e (ii) o aborto no caso de gravidez
resultante de estupro, quando há consentimen- • Definição de regras mais rígidas para a autor-
to da gestante. Em 2012, uma nova hipótese foi ização de aborto nos casos de estupro
estabelecida a partir de um julgamento do Su-
premo Tribunal Federal: por maioria de votos, Atualmente, o entendimento é de que não há ne-
os ministros acordaram que nos casos de fetos cessidade de registro de boletim de ocorrência
anencéfalos, a criminalização do aborto é in- para a realização de aborto em casos de estupro.
constitucional e tal prática é, portanto, impuni- Em 2000, o Ministério da Saúde estabeleceu,
vel. Há, ainda, discussões em nossos tribunais a mediante a Norma Técnica de Atenção Hu-
respeito da possibilidade de aborto em outros manizado ao Abortamento que regulou o aten-
casos de anomalias. Contudo, não se pode dizer dimento multidisciplinar nos casos de aborto
que há um entendimento consolidado. legal pelo SUS, a dispensa da apresentação de
de boletim de ocorrência policial (B.O.)Com
A despeito das disposições do Código Penal de a promulgação da Lei 12.845/13, que trata do
1940, os serviços de aborto legal no Brasil só atendimento das vítimas de violência sexual, a
foram regulamentados a nível nacional em 1998 dispensa do B.O. foi reafirmada, já que o dis-
22
positivo determina atendimento imediato às mulheres de denunciar a violência que sof-
vítimas que inclui a profilaxia da gravidez (art. reram perante a justiça penal, elas também se-
3, inciso IV) sem qualquer menção ao B.O.. riam impedidas de acessar seu direito à inter-
rupção da gravidez decorrente dessa violência.
Com a modificação proposta no PL, a apre-
sentação do B.O. passaria a ser obrigatória. De • Criação de novos tipos penais incriminadores
acordo com o texto legal proposto, nos casos de
gravidez resultante de estupro, este deverá ser Este Projeto de Lei prevê a criação de dois no-
necessariamente averiguado mediante exame vos crimes, que penalizam condutas relaciona-
de corpo de delito e comunicado à autoridade das indiretamente à prática de aborto com o
policial. claro objetivo de dificultar tal prática. São eles:

Isso representaria mais um obstáculo ao aces-1. Induzimento, instigação ou auxílio ao abor-


so ao serviço de abortamento legal uma vez di-
to
versas pesquisas apontam o constrangimento O projeto prevê pena de detenção de seis meses
sofrido nas delegacias de polícia como um dosa dois anos para quem a) induzir ou instigar a
motivos principais da desistência em se regis-
gestante a praticar aborto, b) prestar qualquer
trar a ocorrência policial de vitimização sexual.
auxílio para a prática, c) vender ou entregar,
Ademais, tal medida desconsidera o fato de que,
mesmo que gratuitamente, substância ou obje-
especialmente nos casos de violência sexual, tivo abortivo, d) orientar ou instruir a gestante
muitas mulheres não têm condições de denun- sobre como praticar aborto. Nos casos em que
ciar seus agressores, seja por razões emocionais,
a conduta é cometida por agente de serviço pú-
financeiras ou mesmo de segurança. blico de saúde ou por quem exerce a função de
médico, farmacêutico ou enfermeiro, a pena
Assim, além do constrangimento impedir essas aumentaria para um a três anos de detenção.

23
Se a gestante for menor de 18 anos, as penas stitui exemplo de uma tendência crescente de
ainda aumentariam de um terço. nosso sistema de justiça penal: uma expansão
punitiva com criação de inúmeros tipos penais
2. Anúncio de meio abortivo para atos preparatórios de outros delitos, que
A segunda conduta criminalizada é anunciar não necessariamente protegem bens jurídicos
processo, substância ou objeto destinado a (no caso, a vida). Ou seja, utiliza-se do direito
provocar aborto. Essa conduta está atualmente penal, considerado como ultima ratio, para
prevista no nosso ordenamento como uma criminalizar condutas de nenhuma ou pouca
contravenção penal, em que só pode ser penal- reprovabilidade.
izada com pena de multa (art. 20, Decreto Lei
3688/41). A proposta do PL é revogar tal dis- Na prática, o que essas novas criminalizações
posição e elevar a conduta à categoria de crime, fazem é expandir o rol das pessoas que podem
estabelecendo pena de seis a dois anos de de- ser punidas em razão de práticas relativas ao
tenção e, no caso de profissionais de saúde, um aborto que não necessariamente geram efeitos
a três anos de detenção. na realidade. Se hoje a punição se restringe à
gestante ou a quem pratica nela o aborto, com
É necessário ressaltar que a punibilidade nest- a provação do projeto, qualquer pessoa poderá
es casos ocorre mesmo se não for praticado o ser penalizada apenas por orientar e falar sobre
aborto. A criminalização destas condutas con- as possibilidades de aborto com a gestante.

• Alteração do conceito legal de violência sexual


Um que me lembro muito foi durante um
plantão na maior maternidade da minha ci- Uma das maiores mudanças trazidas com o
dade... Eu, acadêmica da disciplina de obstetrí- PL5069 é uma definição mais restritiva do con-
cia e o estagiário estávamos atendendo uma pa- ceito de violência sexual. Atualmente, violência
ciente que teve sangramento espontâneo... Ela e sexual é considerada como qualquer forma de
o esposo estavam tensos, era o primeiro trime- atividade sexual não consentida. A proposta
stre da sua primeira gravidez, que foi extrema- é que violência sexual passe a ser considerada
mente desejada, elas estava no trabalho quan- como as práticas descritas como crimes contra a
do ocorreu o sangramento. Pedimos uma us e liberdade sexual no Código Penal que resultem
lá estava o laudo... Feto morto...Não sabíamos em danos físicos e psicológicos a serem com-
se teríamos coragem de dar a notícia, chama- provados com exame de corpo de delito.
mos então o médico plantonista pra que ele
nos desse uma orientação de como falar isso A restrição do conceito de violência sexual re-
aos pais... Ele chegou, não olhou nem na cara stringe também o público que pode ser aten-
do casal, pegou o laudo do exame e disse “é, teu dido pela lei 12845/13, tornando mais restrito
feto tá morto viu? Amanhã você vem fazer uma acesso aos serviços de atendimento (tais como
curetagem porque esse horário tá muito cheio “. o abortamento legal).
Sem tempo pra processar a ideia, sem o direito
de uma comunicação humana e empática. Um Com efeito, há uma declarada naturalização de
dos piores momentos da minha graduação abusos cometidos contra a mulher. Há inúmeras
violações que não deixam marcas, que não po-
dem ser atestadas por meio de exame de corpo
24
de delito ou exame psicológico, que deixariam legal. Assim, se por algum motivo a vítima de
de ser combatidas por meio de instrumentos le- violência sexual não tenha realizado o registro
gais. da ocorrência policial, ela não terá direito a ser
atendida para a realização da interrupção de
• Novas regras para atendimento de vítimas de sua gravidez resultante de estupro.
violência sexual
3. Restrição do atendimento pela substituição
O Projeto intenta realizar alterações na lei do termo “profilaxia da gravidez”
12.845/13, que foi alvo de inúmeras críticas A lei em vigor traz a “profilaxia da gravidez”
conservadoras desde a sua promulgação. Ago- como um dos serviços a serem oferecidos às
ra, no PL 5069/13, essas discordâncias veem em vítimas de violência sexual. Trata-se de um ter-
bloco com outras alterações no que diz respeito mo amplo utilizado para englobar diversos
a restrição de acesso ao abortamento legal e o meios de impedir a gravidez de estupro.
aumento da repressão contra o aborto como um
todo. No que diz respeito ao atendimento das Houve muita polêmica em relação ao termo pois,
vítimas de violência sexual, as mudanças mais muito embora, o Ministério da Saúde afirme que
significativas são: a sua utilização foi feita para englobar remédios
de efeito preventivo como o Levonorgestrel
1. Exclusão do termo “integral” no artigo pri- (a "pílula do dia seguinte"), inte-
meiro do texto original da lei: grantes da bancada evangélica defendem que
O PL estabelece que os hospitais devem ofere- não se possa utilizar esse remédio por se tratar
cer às vítimas de violência sexual atendimento de um abortivo e que a lei deveria se restringir a
emergencial e multidisciplinar, e não mais in- métodos preventivos.
tegral, como é hoje. O intuito aqui é restringir
os meios pelos quais pode ser prestado o aten- É nesse sentido que vem a proposta de modifi-
dimento às vítimas de violência sexual. Ao re- cação do inciso IV, artigo 3º da Lei 12845, tra-
tirar a integralidade do atendimento, retira-se zida pelo PL, onde se restringe os serviços aos
também um dos fundamentos jurídicos utiliza- que não sejam considerados “abortivos”. Com
dos para realizar tudo que está ao alcance para essa redação, ficaria a critério do médico de-
garantir o oferecimento efetivo dos serviços el- cidir se a pílula do dia seguinte é contraceptivo
encados no artigo 3º da Lei 12845/13. ou abortivo. Se o médico considerar que se tra-
ta de abortivo, a pílula do dia seguinte não se-
2. Encaminhamento obrigatório da vítima para ria oferecida à mulher vítima de violência pelo
registro de boletim de ocorrência após o aten- SUS.
dimento
O PL, ao alterar o art. 3º da Lei 12845/13, tam- Contudo, é fato que o abortamento em caso de
bém estabelece que a vítima deverá obrigatori- estupro não é punível pela legislação brasileira.
amente ser encaminhada para registrar boletim Assim, não há qualquer incongruência em se
de ocorrência em delegacia. Como já discuti- aplicar todo e qualquer método preventivo ou
do acima, o intuito aqui é retomar a exigibili- de interrupção da gravidez nos casos em que
dade do boletim de ocorrência policial para re- esta seja resultante de estupro. Nesse sentido, a
stringir o acesso ao atendimento de saúde pela articulação de substituição do termo “profilax-
mulher que procura o serviço de abortamento ia da gravidez” por disposição mais restritiva
25
propõe uma restrição absolutamente nova ao to. Assim, o Código de Ética Médica, culmi-
direito das vítimas de violência sexual de inter-nado com demais diplomas normativos como
romperem sua gravidez resultante da violência, as normas técnicas e o Código Penal brasileiro
aumentando suas chances de prosseguir com (que trata do crime de omissão em seu  artigo
uma gravidez indesejada. 13, § 2º) só liberam o médico da obrigação  de
realizar o procedimento se ele informar a mul-
4. Adição de um parágrafo que expressamente her sobre seus direitos e garantir o atendimento
determina a possibilidade de “objeção de con- desta mulher por outro profissional da institu-
sciência” ição ou de outro serviço.
A objeção de consciência é um direito do médi-
co se recusar a prestar determinado serviço de Além disso, não pode ser alegada a objeção de
saúde que vá contra os ditames de sua consciên- consciência em casos de aborto (i) há risco de
cia, como previsto no artigo 28 do Código de morte da mulher, (ii) quando não houver outro
Ética Médica. A autonomia dos médicos é asse- profissional disponível para realizar o atendi-
gurada também pelos artigos 7 e 21 do mesmo mento do aborto legal,  (iii) quando a omissão
código. do profissional puder causar danos ou agravos à
saúde da mulher e (iv) no atendimento de com-
Assim, diversos profissionais da saúde, sobretu- plicações derivadas de aborto inseguro, uma
do médicos, alegam a objeção de consciência vez que se tratam de casos de urgência.
para não atender mulheres que necessitam do
serviço de abortamento legal. Desta forma, o PL 5069, com a adição do dis-
positivo da objeção de consciência sem quais-
Contudo, a norma técnica do Ministério da quer restrições, alarga a possibilidade de ale-
Saúde, Atenção Humanizada ao Abortamento gação do mesmo. Portanto, seria possível que
aponta que o Código de Ética Médica também os profissionais da saúde se negassem a prestar
conta com outro dispositivo, trazido no artigo o atendimento a despeito de se tratar de uma
43, que obriga os médicos a seguir as determi- hipótese legal de abortamento e/ou se tratar de
nações legais no que diz respeito ao abortamen- uma situação emergencial.

26
O aborto das escravas: um ato de resistência
Jéssica Ipólito
Militante feminista e do movimento negro
Criadora do blog Gorda e Sapatão
Texto originalmente publicado em: Blogueiras Negras

“Enquanto o couro do chicote cortava a carne/ desde seu sequestro em terras africanas, eram
A dor metabolizada fortificava o caráter/ A encarregadas dos mais diversos serviços. Eram
colônia produziu muito mais que cativos/ Fez o alvo principal de estupros e abusos sexuais
heroínas que pra não gerar escravos matavam constante. Sem terem chance de elevar sua voz
os filhos/ Não fomos vencidas pela anulação contra essa violência, um ato de resistência bro-
social/ Sobrevivemos à ausência na novela, no tava: o aborto.
comercial/ O sistema pode até me transformar
em empregada/ Mas não pode me fazer racioc- O aborto das mulheres negras escravizadas não
inar como criada.” era somente para livrar seus filhos do cativeiro
(trecho da letra Mulheres Negras – Eduardo – e violência. Era também uma renúncia em não
Facção Central) repor a mão-de- obra escravizada: O jesuíta
Antonil¹, alertava os senhores que era preciso
No início do Brasil colônia (século XVI) em di- tratá-las bem para que ficassem felizes e repro-
ante, sequestraram a população negra oriunda duzissem pequenas escravas e escravos, que se-
de várias partes do continente africano para im- riam criados desde a tenra idade, nos moldes da
pulsionar a economia. O povo negro foi a opção servidão violenta.
“viável” escolhida pelos colonos para serem uti-
lizados como mão-de- obra escravizada para As ações de recusa das escravizadas em parir
não terem de arcar com trabalhadores assala- filhos frutos de violência sexual; a percepção de
riados. Além de que, os portugueses já haviam que com a maternidade sua carga de trabalho
montado uma rede de comércio negreiro para aumentaria haja vista que eram encarregadas de
serem usados nas plantações de cana-de- açu- muitas tarefas; a recusa em dar o seio para filho
car lá nas ilhas da Madeira e Açores. do senhor; a recusa em parir uma criança cuja
vida seria relegada ao mesmo destino que elas,
Executaram essa mesma estratégia no Brasil, foram medidas de resistência ao sistema es-
usurpando vidas e estraçalhando corpos. “Es- cravista, onde a mulher negra – embora cercea-
tima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos da – fazia das poucas brechas que lhe restavam
portos brasileiros 4 milhões de escravos” segun- um escudo de proteção a si mesma e aos demais.
do Boris Fausto em “História do Brasil”. Outros
historiadores falam em quantias variando em 8 O aborto de ontem é o mesmo de hoje
a 13 milhões. Independente do número exato, a
presença massiva do povo negro é inegável. Sem mecanismos oficiais que façam um levan-
tamento certeiro do número de abortos provo-
Dito isto, quero lembrar as mulheres negras es- cados anualmente, o Brasil segue com estatísti-
cravizadas que aqui viveram. Estas, avaliadas cas levantadas por pesquisadores, médicas/os e
27
demais especialistas no assunto. Estima-se que
cerca de 1 milhão de abortos aconteçam todo A equipe médica de um hospital
ano no país. Uma pesquisa mais detalhada que de referência “enrolou” o proced-
pode dar características precisa da mulher que imento da paciente vítima de es-
aborta, foi iniciada em 2010, pela antropólo- tupro até uma idade gestacional
ga Débora Diniz, professora do Departamen- em que já não era mais possível a
to de Serviço Social da UnB (Universidade de realização do aborto legal.
Brasília) e do Instituto de Bioética, Direitos Hu-
manos e Gênero, e pelo sociólogo Marcelo Me- todas as formas de manifestação. O aborto é
deiros (UNB) e do Ipea (Instituto de Pesquisa uma delas: resistência ao controle dos corpos,
Econômica Aplicada). da vida; resistência à maternidade obrigatória;
resistência à obediência patriarcal e racista; re-
A mulher que aborta é casada, tem filhos, tem sistência à ideia de subserviência à sociedade;
religião e carrega sozinha o fardo da culpada resistência à tentativa de silenciar gritos de dor
gerada pelo estigma que a criminalização do e violência. O perfil da mulher que aborta é o
aborto proporcionou desde os primórdios da perfil da resistência, da resiliência -acima de
proibição tudo.

As mulheres negras morrem 3-4 vezes mais que A criminalização do aborto não passa de uma
as brancas. “A diferença é basicamente por con- medida pura e simplesmente moral: a religio-
ta do racismo institucional, ou seja, a população sa, a mais cruel. É descabida tal qual fora a
negra não tem acesso aos serviços e quando tem proibição do divórcio no passado. Essa crimi-
são de má qualidade, lá onde vivem é que estão nalização atinge as mulheres negras com uma
os piores serviços ou mesmo inexistem”, afirma meticulosa crueldade que só o racismo pro-
Alaerte Leandro Martins, enfermeira obstétrica porciona, que podem ser vista a olho nu se for-
negra que se debruçou sobre o assunto diante mos acompanhar o atendimento de uma mul-
da negação por parte dos setores públicos em her negra no SUS. O racismo institucional a
reconhecer o racismo institucional agindo e se faz criminosa no momento em que ela pisa no
refletindo nas estatísticas. pronto atendimento. Da entrada à saída, todos
os procedimentos, a longa espera e o tratamen-
As estimativas de que ano após ano o aborto to desumano escancaram os tentáculos racistas
clandestino e inseguro fará mais vítimas não impregnados na sociedade brasileira, embora o
precisam de números: as mulheres continuarão Estado queira tapar o sol com a peneira.
abortando. Assim como séculos atrás, as mul-
heres negras escravizadas o faziam como parte Não raro penso no aborto como uma medida
de sua sobrevivência e resistência, as mulheres genocida contra todas as mulheres: o controle
negras e não-negras de hoje também. Um lega- é ineficaz, as mulheres não deixam de fazer um
do que deixa explícito que suas vidas vem em aborto por ele ser proibido. O que elas fazem
primeiro lugar. Seus corpos em primeiro lugar. é adiar a busca por auxílio da saúde pública
depois de abortar; significa que as mulheres
Mulheres diversas seguem escupindo sólidos procuram assistência médica quando estão com
caminhos com demarcações de que são sim hemorragia grave ou infecções alastradas. Man-
sujeitas de direito e que sua resistência virá em ter essa medida criminalizadora só atesta o fato
28
de que o Estado quer as mulheres (todas, sem REFERÊNCIAS:
exceção) pagando com sangue seus atos. Até a
MULHERES NEGRAS: SUA PARTICIPAÇÃO
última gota.
HISTÓRICA NA SOCIEDADE ESCRAVISTA de Ma-
ria da Penha Silva Mortalidade materna de mulheres
Em memória de todas as mulheres negras bru- negras no Brasil de Alaerte Leandro Martins
talmente escravizadas e mortas desde que aqui
A MULHER ESCRAVA NO MARANHÃO OITO-
foram obrigadas a viver, dedico esta poesia de CENTISTA: cotidiano e resistência de Elizabeth Sousa
Abrantes e Francinete Poncadilha Pereira
Castro Alves, que fala justamente do aborto
Os quilombolas de Ronaldo de Souza Castro
praticado pelas escravas como um ato de amor:
Aborto é feito por quase 1 milhão de brasileiras que
Mater Dolorosa vivem as consequências da ilegalidade do ato

Meu Filho, dorme, dorme o sono eterno Vamos falar sobre aborto?
No berço imenso, que se chama - o céu.
Pede às estrelas um olhar materno, Brasil tem um milhão de abortos induzidos por ano
Um seio quente, como o seio meu.
O IMPACTO DA ILEGALIDADE DO ABORTO NA
  Ai! borboleta, na gentil crisálida, SAÚDE DAS MULHERES EM SALVADOR E FEIRA
As asas de ouro vais além abrir. DE SANTANA
Ai! rosa branca no matiz tão pálida,
Longe, tão longe vais de mim florir. Crianças escravas no Brasil Colonial de Silvani dos
Santos Valentim
  Meu filho, dorme como ruge o norte
Nas folhas secas do sombrio chão! O corpo feminino como espaço público: O aborto e o
Folha dest'alma como dar-te à sorte? estigma social no Brasil
É tredo, horrível o feral tufão!
Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica
  Não me maldigas... Num amor sem termo de urna de Debora Diniz e Marcelo Medeiros
Bebi a força de matar-te a mim
Viva eu cativa a soluçar num ermo
Filho, sê livre... Sou feliz assim...
- Ave - te espera da lufada o açoite, 
- Estrela - guia-te uma luz falaz.
- Aurora minha - só te aguarda a noite,
Eu ainda tô no meu terceiro ano. Nun-
- Pobre inocente - já maldito estás. ca passei por uma situação de atender
uma paciente que tinha acabado de
Perdão, meu filho... se matar-te é crime realizar um aborto nem nada do tipo,
Deus me perdoa... me perdoa já. mas eu tive um professor de farmaco
A fera enchente quebraria o vime... que disse “as mulheres estragaram o ci-
Velem-te os anjos e te cuidem lá.
totec, era um ótimo remédio pra gas-
  Meu filho dorme... dorme o sono eterno trite. Agora não pode mais usar”.
No berço imenso, que se chama o céu.
Pede às estrelas um olhar materno,
Um seio quente, como o seio meu.

29
Uso de métodos medicamentosos no aborto clandestino
Flora Passini
Estudante de Medicina da UEL
Coordenação Regional Sul-2 2016
O misoprostol, medicamento conhecido pelo debates sobre o misoprostol no meio científico
nome comercial Cytotec®, começou a ser ven- e em torno dos movimentos sociais, principal-
dido nas farmácias brasileiras em 1986, para mente o movimento feminista.
o tratamento e prevenção de úlcera gástrica e
duodenal. Mas, sendo um análogo sintético da O surgimento do misoprostol mudou o pan-
prostaglandina E1, logo o seu potencial aborti- orama da morbimortalidade entre as mulheres.
vo foi descoberto... Houve crescimento do número de abortos com-
pletos e a menores índices de infecção e hemor-
Os balconistas de farmácia sempre oferece- ragias, bem como a drástica redução de mortes
ram às mulheres medicamentos que ajudassem maternas associadas ao aborto inseguro. As
a “descer a menstruação” em casos de atraso mulheres encontraram nas pílulas um método
menstrual. Com o aparecimento do Cytotec®, abortivo mais barato, mais prático, mais seguro,
passou-se a vender um produto muito mais efi- menos traumático e que possibilitava passar
caz e, confirmada a sua eficiência pela experiên- pelo processo na privacidade de suas casas e
cia das mulheres, este conhecimento popular com apoio de pessoas próximas.
difundiu-se: metade dos abortos induzidos já
estava sendo feito por uso de medicamentos Porém, percebendo a ampliação da venda e do
em 1989. Não só o uso popular se intensificou, uso do misoprostol para a realização de abor-
mas também o uso médico em obstetrícia e os tos clandestinos, o Ministério da Saúde impôs

30
restrições à venda do Cytotec®, o qual passou a ,no ano seguinte, o Prostokos® 100.
ser comprado mediante apresentação de receita
médica. O Ministério também acordou com a in- Restrito a serviços de saúde, seu uso na obstetrí-
dústria farmacêutica uma diminuição do aporte cia, de acordo com protocolo do Ministério da
do medicamento para o Brasil, além de proibir Saúde, tem indicação para: indução de aborto
a divulgação de informação, por qualquer meio, legal, esvaziamento uterino por morte embri-
sobre o misoprostol para o público em geral. onária ou fetal, amolecimento cervical antes
Somada às medidas burocráticas, houve uma de aborto cirúrgico (AMIU ou curetagem) e
pesada campanha degrupos conservadores re- indução de trabalho de parto (maturação de
ligiosos, juntamente com a mídia, que colocou colo uterino). Ainda segundo o protocolo, em
rapidamente a opinião pública contra a droga, casos de indução de aborto legal no 1º trime-
causando um abrupto declínio da comercial- stre, recomenda-se a administração de 4 com-
ização por vias legais no segundo semestre de primidos de 200mcg (800mcg) via vaginal a
1991. cada 12 horas (3 doses). Já no 2º trimestre, de 13
a 17 semanas, recomenda-se 1 comprimido de
Em contrapartida, o final da década de 80 repre- 200mcg, via vaginal, a cada 6 horas (4 doses) e,
sentou um período de abertura política, marca- de 18 a 26 semanas, 1 comprimido de 100mcg,
do pela elaboração da Constituição de 88 e am- via vaginal, a cada 6 horas (4 doses). (Existem
pliação de diversas discussões, como o debate diferentes recomendações em outros materiais
sobre direitos humanos. Em 1991 surge, assim, oficiais, como o manual feito pela Federación
o primeiro projeto de lei, o PL nº1.135/91, a Latinoamericana de Sociedades de Obstetricia
tramitar na Câmara dos Deputados com o in- y Ginecología – FLASOG, mas foi tido como
tuito de descriminalizar o aborto. De um lado, o base o protocolo brasileiro).
movimento feminista atuava fortemente na def-
esa dos direitos das mulheres, de outro, grupos O aborto permanece ilegal no Brasil (salvo em
religiosos conservadores estabeleciam alianças casos de risco de morte à mulher, estupro ou
para participar do processo político na defesa feto anencéfalo) e o misoprostol, proibido. Mas
de seus interesses. as mulheres continuam a realizar abortos clan-
destinos. Dessa forma, com a proibição da ven-
As vozes dos movimentos sociais não foram da do Cytotec® nas farmácias, o comércio ilegal
ouvidas e o decréscimo das vendas no merca- da droga se expandiu, possibilitando o acesso
do legal seguiu. Em 1998, a Agência Nacional ao produto, mas sem a devida segurança.
de Vigilância Sanitária (Anvisa) proibiu total-
mente a venda e a livre circulação do Cytotec® e O tráfico do misoprostol favorece a adulteração
de outros medicamentos com potencial aborti- da droga e o risco de venda de apresentações
vo. Essa decisão foi na contramão inclusive com subdoses ou até mesmo sem o princípio
do que diziam as resoluções do Ministério da ativo. Além disso, a venda ilegal acaba por
Saúde, que adicionou o misoprostol à sua “Lista deixa-lo mais caro: há relatos de comprimidos
Modelo de Medicamentos Essenciais para uso vendidos por 200 reais cada! A clandestinidade
no SUS”. Dessa forma, buscou-se a produção de também expõe as mulheres a contatos inseguros
um equivalente ao misoprostol de fabricação com vendedores, os quais, em sua maioria, são
brasileira: a Anvisa aprovou, em 2001, o registro homens. Muitos trabalham em farmácias e são
do Prostokos® 25; em 2005, o Prostokos® 200; e eles quem instruem as mulheres sobre o uso dos
31
comprimidos. Mas como é essa instrução? Não ali.
há garantias de que seja feita da forma correta... Te dou um trato legal, depois eu aplico ele.”

As mulheres, forçadas a circular em um terreno Esse não é um diálogo fictício. Foi retirado de
de clandestinidade, podem ser alvos de múltip- uma conversa telefônica entre uma mulher e
las opressões, como o assédio sexual: um vendedor, a qual foi documentada durante
uma pesquisa no Distrito Federal.
“Vendedor – Você tem que ficar de preferên-
cia o período da tarde todinho em jejum. Aí é Por ser crime, as mulheres passam pelo proces-
quatro comprimidos de três em três horas, você so do aborto em silêncio e, por vezes, sozinhas,
toma quatro, depois de três horas, quatro […]. com medo de serem descobertas, repreendidas
Aplica lá dentrão mesmo! e julgadas. Quando adquirem o Cytotec®, este é
Mulher – É, mas como eu vou aplicar isso? Que obtido de forma insegura e sem garantias de sua
eu lá sei como é? eficácia. Abortam quase sempre sem instruções
Vendedor – Tem que ser com o dedo, empur- corretas sobre a dose, a via de administração,
rando lá debaixo do útero o negócio, jovem! o intervalo entre doses, as contraindicações, os
Mulher – [Riso] Mas eu quero saber como? efeitos secundários e as precauções. Muitas vez-
Vendedor – Quer que eu aplico para você? es, ainda realizam o aborto em condições de má
Mulher – Quem? Você? higiene. Se ocorrem complicações, como hem-
Vendedor – É […]. Aplico com meu... você sabe, orragia e infecções, a maioria das mulheres não
com o dedo ou com meu negócio. [...] procura atendimento em serviços de saúde por
Mulher – Ah! Do jeito que funcionar. medo de serem oprimidas, expostas ou até mes-
Vendedor – Posso aplicar com o meu pau, não mo denunciadas pelos profissionais.
posso? […] Aí eu te levo para um motelzinho
O debate sobre a legalização do aborto é urgen-
te, bem como a necessidade de rever a políti-
ca pública de uso do misoprostol no Brasil e de
ampliar o acesso à informação sobre o medica-
mento tanto entre profissionais de saúde quanto
para a população em geral.

Até quando as mulheres que abortam vão ser


condenadas a sofrerem em silêncio? Até quan-
do a única opção das mulheres será a obtenção
de remédios abortivos pela clandestinidade?
Até quando as mulheres vão ser submetidas a
realizarem abortos correndo risco de vida? Até
quando o Estado brasileiro vai continuar neg-
ligenciando o tema do aborto? Até quando o
aborto será tratado pela ótica do moralismo
conservador e não da saúde pública e dos dire-
itos das mulheres?

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REFERÊNCIAS:
BRASIL. Ministério da Saúde. Protocolo miso-
ARILHA M, LAPA TS, PISANESCHI TC. prostol. Brasília, DF. 2012.
Aborto Medicamentoso no Brasil. São Paulo, DINIZ D, MADEIRO A. Cytotec e Aborto: a
Oficina Editorial, 2010. polícia, os vendedores e as mulheres. Ciência
BARBOSA RM, ARRILHA M. The Brazilian & Saúde Coletiva, vol. 17, n. 7, pp 1795-
experience with Cytotec. Stud Fam Plann, vol. 1804, 2012.
24, n. 4, pp 236-240, 1993. FLASOG. Uso de misoprostol en obstetricia y
BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sani- ginecologia. 2013.
tária (Anvisa). Portaria 344, de 12 de maio de MACHADO GS. Projetos de lei sobre aborto em
1998 [página na Internet]. Brasília: Anvisa; 1998 tramitação na câmara dos deputados. Câmara
[acessado 2011 jan 20]. Disponível em: http:// dos Deputados. Biblioteca Digital. Brasília, DF.
anvisa.gov.br/legis/ portarias/344_98.html. 2007.
O aborto e uma estudante de Medicina feminista
Boa parte da minha vida adulta foi vivida com um medo, uma fobia, uma paranoia destrutiva
ao ponto de eu preferir morrer à viver aquela situação naquele momento: ficar grávida. Digo
isso sem exagero, ainda mais tendo acompanhado de tão perto a trajetória de minha irmã, sendo
mãe adolescente, que enfrentou tantos medos, problemas e preconceito, pelo motivo de nossa
sociedade ser tão despreparada para aceitar as necessidades das mulheres.
Nossa sociedade não aceita que mulheres sejam mães e estudantes, mães e profissionais – por
não dar condição de que isso aconteça a todas, pois muitas vezes os modos de fazê-lo não ex-
istem ou são desrespeitados. Principalmente se for uma trabalhadora pobre. A mulher grande
parte das vezes não consegue fazer os dois. Parece que as pessoas vivem num mundo encantado,
com o discurso de que se o casal quiser vai conseguir sempre planejar antes de ter um filho; se a
mulher não quiser, não vai ficar grávida pois existem métodos anticoncepcionais, e que os mét-
odos são 100% seguros. Esse universo paralelo não existe, estamos falando de seres humanos –
falhos, reais, incertos, imprevisíveis – dos mais instruídos aos mais marginalizados.
Nossa sociedade não aceita que mulheres abortem, independente da cor, da classe social, sendo
que só um grupo (que não é pequeno) morre e/ou é preso, devido à falta de vergonha na cara
do Estado brasileiro que finge que o problema de saúde não existe, e pior: trata como criminosa
uma situação que já é extremamente difícil e dolorosa pra mulher.
E isso cai nas costas de quem? Se o Estado não está fazendo seu papel de cuidar integralmente da
saúde das pessoas, e ainda criminaliza quem não ignora essas pessoas em situação vulnerável ao
léu, que precisam ser cuidadas e acolhidas?
Entre outros, cai também nas costas da estudante de medicina assumidamente feminista – que
provavelmente não vai julgá-la moralmente por isso, não vai denunciá-la, não vai fazê-la passar
por uma agressão maior ainda. Que aprende nada sobre aborto na faculdade. Que não tem as
mínimas condições de instruir adequadamente alguém que precisa. Que não possui local para
atender, com recursos materiais e humanos para dar a essa pessoa um pouco de dignidade nesse
momento difícil.
Eu odeio nosso Estado construído majoritariamente por homens brancos ricos sem senso da
realidade, sem empatia, sem respeito à saúde das mulheres.
33
Falando de Aborto com a Sociedade sob a Perspectiva da
Educação Popular
Yvana Hafizza Snege de Carvalho
Estudante da Faculdade de Medicina de Marília
Coordenação de Extensão Universitária 2015
Coordenação de Cultura 2016
Enquanto estudantes que queremos, através ou criminalização do aborto possa parecer
da Extensão Universitária, atuar nas comuni- meramente uma questão jurídica, se olharmos
dades sob a perspectiva da educação popular, para além dessa questão pontual, iremos es-
devemos sempre olhar para além do fenôme- barrar em diversas outras contradições que en-
no apresentado, entendendo que ações pontu- volvem a forma como nossa sociedade se estru-
ais e assistenciais são sim muito importantes tura e os mecanismos ideológicos pelos quais
e necessárias para uma comunidade, mas se sustentam essa sociedade, como igreja, mídia,
não rompermos com aquilo que está por trás educação etc.
daquelas condições opressoras, apenas estare-
mos acobertando um problema que logo irá se A criminalização do aborto é apenas uma das
apresentar novamente (às vezes se apresentando formas de controle sobre o corpo e a vida das
de outra forma). Ter clareza do processo históri- mulheres na nossa sociedade que nos acorren-
co, das determinações que geram as condições ta a uma vivência opressora. As violências con-
que oprimem os trabalhadores, da forma como tra a mulher na nossa sociedade são gritantes,
nossa sociedade capitalista funciona e superá-la são estatísticas, embora o senso comum ainda
é que trará empoderamento e força para que es- afirme que hoje a mulher possui os mesmos di-
ses trabalhadores lutem não só por seus direitos reito que os homens. Somos não só obrigadas a
mas por sua plena emancipação ao romper com conviver com esse sistema patriarcal mas tam-
esse sistema opressor. bém a acreditar como sendo algo “natural” da
evolução humana.
Quando falamos em Educação Popular, sob a
perspectiva marxista, estamos falando justa- A forma como agimos, pensamos e nos com-
mente disso: evidenciar as contradições da portamos está intimamente ligada ao modelo
nossa sociedade, rompendo com o senso co- de sociedade que vivemos. Em “A Origem da
mum, a fim de contribuir para um avanço de Família, da Propriedade Privada e do Estado”,
consciência na classe trabalhadora. Para isto, é
o autor, Friedrich Engels, não apenas mostra
necessário teoria, para que aquela comunidade como o sistema patriarcal não é unanime, atem-
entenda porque esse modelo de sociedade pro- poral e universal, como constata que o patriar-
duz essas condições e esteja ciente do seu su-cado tem origem concomitante e consequente
jeito histórico, mobilizada e instrumentalizada
à origem da propriedade privada. Antes do
para lutar contra esse sistema. patriarcado, as pessoas viviam em relação não
monogâmicas, ocorriam casamentos por gru-
Assim, trabalhar a temática do aborto junto à pos, fazendo com que os filhos fossem comuns
sociedade não é simples. Embora a legalização ao grupo, não sendo possível estabelecer a pa-
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ternidade dos filhos. Nesse período a mulher mero instrumento de reprodução. Esse rebaixa-
pertencia igualmente a todos os homens e cada mento da condição da mulher, tal como aparece
homem igualmente a todas as mulheres. Não abertamente sobretudo entre os gregos dos tem-
existia a prática da mulher como escrava do pos heroicos e mais ainda dos tempos clássicos,
homem. A partir do momento em que surge a tem sido gradualmente retocado, dissimulado e,
propriedade privada e, assim, a necessidade de em alguns lugares, até revestido de formas mais
herdeiros para suas posses, era necessário que suaves, mas de modo algum eliminado”. [A Ori-
o homem tivesse certeza de quem era seus her- gem da Família, da Propriedade Privada e do
deiros. Com a necessidade de assegurar a fidel- Estado. Friedrich Engels]
idade da mulher a fim de assegurar a paterni-
dade, a mulher passa a ser entregue ao poder do
Para assegurar essa estrutura social é necessário
homem, transformada em servidora, confinada instrumentos ideológicos que naturalizem essas
no ambiente doméstico e excluída do convívio relações. A igreja, a mídia, a escola, a política...
social. Parece atual, não é mesmo? a LEGISLAÇÃO! As leis, que nos parecem tão
neutras e universais, são instrumentos ideológi-
“A mulher foi degradada, convertida em ser- cos. São essas leis que criminalizam movimen-
vidora, em escrava do prazer do homem e em tos sociais, que matam negros e pobres e que
35
dão a liberdade de escolha às mulheres pobres: há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o
maternidade indesejada (que pode trazer re- nome do pai na certidão de nascimento. O que
percussões drásticas na vida dessa mulher) ou a podemos chamar de “aborto” masculino. Cla-
morte através do aborto clandestino. ro que tecnicamente não é um aborto, mas en-
quanto os homens facilmente se livram da re-
Outro recorte importante para evidenciar sobre sponsabilidade de criar um filho (eles nem se
a questão do aborto quando temos o objetivo de quer são obrigados a fazerem exame de DNA
ir além do senso comum é mostrar para quem para comprovar a paternidade), a mulher é
serve essa legislação. Hoje, realizar o aborto obrigada a manter a gestação e sofrer todas as
clandestino de forma segura é muito simples, repercurssões que ela pode trazer.
basta pagar por isso. Na nossa sociedade do cap-
ital, são as mulheres pobres que querem abortar Como saída muitos falam que a mulher pode
que morrem, ora em casa, ora negligenciadas colocar a criança para adoção, como se fosse
no sistema de saúde. uma decisão tranquila e não mais um proble-
ma (principalmente para a criança). Como está
Mesmo quando o aborto deveria ser legal, como o sistema de adoção de crianças hoje? Quantas
em casos de vítimas de estupro, a mulher po- crianças esperam na fila para adoção? Vale res-
bre não conseguirá facilmente e sem danos psi- saltar que cerca de 1/3 dos pretendentes para
cológicos realizar tal aborto. Muitas instituições adoção só aceitam crianças brancas. É óbvio
públicas se negam a realizar o aborto legal, as que não é solução para uma determinada prob-
que realizam ainda acreditam ser preciso o BO lemática apenas transferi-la de cenário.
ou autorização judicial para executar o aborto,
apesar de não haver mais essa obrigatoriedade Por fim, é importante salientar que a questão do
desde 2005. Quando a mulher vítima de estu- aborto não será resolvida através da metafísica.
pro quer realizar o aborto legal, ela é submetida Tentar argumentar com a população sobre per-
a verdadeiros inquéritos, que “investiga a ver- guntas como “o que é uma pessoa?”, “quando a
dade do acontecimento da violência e produz vida humama começa”, “quando o feto pode ser
os sentidos para a definição da subjetividade da considerado uma pessoa”, ou com argumentos
mulher como vítima” (A verdade do estupro nos religiosos é criar novos problemas e nenhuma
serviços de aborto legal no Brasil http://www. resolução. É bem comum as discussões girarem
scielo.br/pdf/bioet/v22n2/11.pdf ). Como nor- em torno desses aspectos, pois é interessante
malmente não há o flagrante da cena de estupro para aqueles que desejam criminalizar o abor-
é necessário acreditar no que a mulher vítima to não evidenciar os aspectos jurídicos, políti-
diz. Porém, durante todo o processo e princi- cos, econômicos e sociais da questão, uma vez
palmente nessas entrevistas hà um regime de que debruçar sobres essas questões nos trazem
suspeição sempre presente, onde a mulher sem- a uma conclusão lógica e inevitável: a criminal-
pre é suspeita de estar mentindo sobre a violên-
cia a que foi submetida. Um chefe do HC denunciou à
polícia uma paciente que suposta-
Além disso tudo, é interessante quando com- mente havia provocado aborto.
paramos a falta de responsabilização jurídica (não sei a veracidade dos fatos)
do homem na gestação e criação de um filho.
Segundo dado do Conselho Nacional de Justiça
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ização do aborto é instrumento ideológico que Por que estamos aqui decidindo se a mulher
cerceia as escolhas da mulher, é instrumento de pode ou não escolher a maternidade? Como
extermínio das mulheres pobres, é instrumento nossa sociedade patriarcal surgiu e a quem ela
que gera iniquidades e resulta em violência, é serve? O que a criminalização do aborto traz
instrumento de opressão de gênero e, sobretu- de repercussões sociais, econômicas e políti-
do, de classe. Deve-se deixar claro que questões cas? Como estamos vendo a questão da saúde
morais e religiosas competem à escolha e de- da mulher? É possível plena emancipação das
cisão individual. O Estado é laico e a legislação mulheres na nossa sociedade atual? Lutar pela
sobre o aborto é algo que afeta toda a sociedade legalização do aborto é uma vitória, mas é a
e então não deve ser debatida majoritariamente solução para a opressão da mulher? Quais de-
em cima de discussões morais e religiosas. vem ser nossas bandeiras de luta?

Você é contra ou a favor do aborto? Isso é uma Assim, trabalhar com educação popular revolu-
questão falsa que nos é colocada para con- cionária junto a uma comunidade é identificar
struirmos um falso consenso sobre a resposta. as problemáticas que sofrem, trazer os elemen-
Portanto, devemos fugir dessa questão. O que tos teóricos e os instrumentos que possibilitarão
devemos construir com a sociedade, como es- a compreensão dos determinantes daquela
tudantes que têm acesso à universidade, é o opressão, para que a luta não fique na superfície
debate de quais são as determinações que nos do problema, nem seja restritra a um determi-
trazem a essa questão? Por que abortamos? nado grupo, mas que busque a superação de um
sistema desigual e opressor.

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