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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

SOCIOLOGIA E DIREITO – PPGSD

POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA E


ADMINISTRAÇÃO INSTITUCIONAL DE CONFLITOS

VERA RIBEIRO DE ALMEIDA DOS SANTOS


FARIA

“TROCANDO PNEU COM O CARRO ANDANDO!”


Uma pesquisa empírica sobre as representações acerca do
instituto da Colaboração Premiada dentre os atores do sistema
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

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VERA RIBEIRO DE ALMEIDA DOS SANTOS FARIA

“TROCANDO PNEU COM O CARRO ANDANDO!”

Uma pesquisa empírica sobre as representações acerca do instituto da Colaboração Premiada


dentre os atores do sistema de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia e Direito, da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para a
obtenção do titulo de doutora em Sociologia e Direito.

Linha de Pesquisa: Políticas de Segurança Pública e


Administração Institucional de Conflitos
Orientador: Dr. Prof. Lenin Pires
Co-orientador: Dr. Prof. Roberto Kant de Lima

NITERÓI

2019

2
3
TESE DE DOUTORADO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SOCIOLOGIA E DIREITO, DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, EM NITERÓI E
APROVADA PELA COMISSÃO EXAMINADORA FORMADA PELOS SEGUINTES
PROFESSORES:

PROF. DR. LENIN PIRES


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF
(ORIENTADOR)

PROF. DR. ROBERTO KANT DE LIMA


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF
(CO-ORIENTADOR)

PROFª. DRª. JOANA DOMINGUES VARGAS


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

PROF. DR. LUIZ EDUARDO DE VASCONCELLOS FIGUEIRA


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ

PROF. DR. MARCO AURÉLIO GONÇALVES FERREIRA


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE - UFF

PROFª. DRª. MARIA STELLA FARIA DE AMORIM


UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA

PROFª. DRª. REGINA LÚCIA TEIXEIRA MENDES


INSTITUTO DE ESTUDOS COMPARADOS EM ADMINISTRAÇÃO
DE CONFLITOS - INEAC/ UFF

Niterói, 29 de março de 2019.


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DEDICATÓRIA

Para minha mãe, Jucira, exemplo de força, coragem e dedicação.

Às minhas filhas, Luísa e Júlia;

à minha irmã, Ana Maria e ao meu sobrinho, Fernando,

entrego este trabalho como recompensa pelo apoio

incondicional em todas as minhas expedições

(acadêmicas e pessoais).

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AGRADECIMENTOS

Assim como aconteceu na dissertação de mestrado, esta tese é resultado de uma construção
intelectual e da contribuição de várias pessoas. Assim, inicialmente, agradeço, especialmente, aos
professores Drs. Lenin Pires e Roberto Kant de Lima, por acolherem minha orientação nesta pesquisa
de doutorado.
Ao Professor Dr. Lenin Pires, agradeço por acolher minha orientação nesta tese e por ter me
proporcionado a autonomia fundamental para que eu percorresse esse caminho, tanto na escolha do
objeto, quanto durante a pesquisa e na elaboração deste texto.
Ao Professor Roberto Kant de Lima, meu co-orientador, sou especialmente grata pela leitura
cuidadosa, cujos comentários enriqueceram este texto; pelas indicações bibliográficas; pelas
cuidadosas revisões durante a elaboração do texto final desta tese e pela “santa paciência” com o meu
normativismo e com minhas crises de indignação.
Ao professor Dr. Marco Aurélio Gonçalves Ferreira, pelos conselhos acerca da difícil tarefa
de traduzir os institutos de direito processual penal brasileiro, sob a ótica da comparação por
distinção, entre os sistemas jurídicos diversos, além de sua participação, juntamente com os
professores Regina Lúcia Teixeira Mendes, Joana Domingues Vargas, Luiz Eduardo de Vasconcellos
Figueira e Maria Stella Faria de Amorim, na banca de defesa da tese de doutorado, também muito
obrigada.
À professora Draª Regina Lúcia Teixeira Mendes por sua dedicação e amizade e por sua
crença e entusiasmo inabaláveis em minhas pesquisas, desde o mestrado, além das infindáveis horas
de discussões e revisões pontuais deste e de tantos outros textos. Aproveitando também para
agradecer à Ana Lúcia e à Ana Helena, suas filhas, pela generosidade, mais uma vez, ao
compartilharem comigo tantas de suas “horas maternas”.
À professora Drª Maria Stella Amorim, por seu entusiasmo, incentivo e sua valiosa
colaboração em minhas discussões sobre os institutos penais consensuais, que desde a pesquisa sobre
os Juizados Especiais Estaduais Criminais já demonstravam sua fragilidade diante da permanência do
nosso sistema criminal inquisitorial tradicional.
Ao professor Dr. Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira, por suas observações quanto ao
objeto da pesquisa e sua participação, juntamente com o professor Marco Aurélio Gonçalves Ferreira,
na banca de qualificação. Ambos me incentivaram a continuar, apesar das dificuldades.
À professora Dra. Joana Domingues Vargas, pelo pronto acolhimento do convite e por sua
participação na banca de defesa da tese.

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À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior _ CAPES pela bolsa de
estudos, sem a qual não teria conseguido dedicar-me ao trabalho de campo.
Também sou grata ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de
Conflitos _ INEAC, órgão integrante do Ministério da Ciência e Tecnologia, coordenado pelo
professor Roberto Kant de Lima, do qual sou pesquisadora, por franquear minha participação em
diversos congressos nacionais e internacionais, onde pude discutir os temas retirados dessa
investigação. Também agradeço aos professores e colegas de pesquisa que integram o Instituto e que
me auxiliaram com suas observações, comentários e trabalhos de campo, dentre eles, os professores,
doutores e doutorandos Fabio Reis Mota, Pedro Heitor Geraldo de Barros, Ana Paula Mendes de
Miranda, Michel Lobo, Glaucia Mouzinho, Bárbara Lupetti Baptista, Paula Chagas Lessa Vidal,
Cristina Gomes Campos De Seta, Vitor Rangel e Yolanda Gaffrée.
Agradeço também às discussões e sugestões dos colegas do LAESP/InEAC, coordenado pelo
professor Lenin Pires, dentre eles, Luís Heitor Coelho Gomes, Solano Santos, Leonardo dos Santos,
Gabriel Borges, Elizabeth Albernaz, Fábio Medina e Marilha Gabriela Garau.
Ao professor Napoleão Miranda, coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia
e Direito- PPGSD/UFF, pelo apoio e torcida, desde os primeiros dias do meu ingresso no Programa,
bem como a ajuda com as questões burocráticas acadêmica e institucional. Também sou grata a todos
os professores do PPGSD/UFF, que compartilharam seus conhecimentos, especialmente, aos
professores Doutores Gislene Nader, Gisálio Cerqueira e Ana Maria Motta Ribeiro, além das equipes
do apoio administrativo e da secretaria deste Programa.
Agradeço, ainda, a todas as pessoas que transformaram a vida acadêmica em experiência de
vida e exemplos de amizade, principalmente às amigas Carolina Genovez e Fabiane Machado
Barbosa, sempre tolerantes, solidárias e dedicadas, pela participação e incentivo efetivos nesta
pesquisa e também por compartilhar momentos de alegria e desconcentração, tão necessários à
produção acadêmica.
Aos alunos do curso de graduação em Segurança Pública e Social, do Instituto de Segurança
Pública da Universidade Federal Fluminense, Evelyn Rayssa Higino Cosme, Aldaci Morais de
Souza, Alberto Gomes dos Santos, Edvaldo Alves do Nascimento, Rodson William Barroso Juarez,
Manoel Mendonça, Leonardo dos Santos e Ramon Bucci Figueiredo, pelo interesse neste trabalho
durante todo o seu percurso, bem como por suas generosas observações.
Agradeço também aos Procuradores Regionais da República do Tribunal Regional da 2ª
Região, do Rio de Janeiro, que participaram, direta ou indiretamente desta pesquisa.

7
À Virgínia Taveira, por seu apoio e orientações sobre os procedimentos administrativos
relativos às minhas participações nos eventos acadêmicos já referidos e à bibliotecária Sônia Castro,
ambas do InEAC, que permitiram a continuidade dos meus projetos acadêmicos.
Aos demais amigos e profissionais que de alguma forma e em algum momento do meu
percurso acadêmico, contribuíram para a realização deste trabalho.

8
EPÍGRAFE

“Empolgados pela perspectiva de colher nas malhas da justiça os ‘grandes’


criminosos, revertendo dessa maneira o quadro cansativamente repetido de só
contemplar os cardumes de sardinhas que aparecem como resultado da aparatosa
manipulação do arrastão oficial, os penalistas se excitam. Escrevem, pesquisam,
estudam e até pretendem agir, com vistas a tal propósito. Compreende-se o desafogo,
de certa forma uma penitência reequilibradora da consciência que encontram, ao
perseguir altos figurões, ainda que pouco frequentemente – quebrando a rotina de
assestar as porretadas da sanção criminal contra uma massa despersonalizada de
pobres-diabos.
O sistema, prazerosamente, estimula a ingênua empreitada. E ri dela e dos honestos
desígnios de seus cruzados. (...)” (THOMPSON, 2007, pp. 55-56).

“Nós temos ouvido, todos nós recebemos em nossos Gabinetes advogados


conhecidos que, pela fé do grau, dizem que delatores foram
estimulados, inclusive com lista de nomes que deveriam ser delatados,
sob pena de não colherem o benefício. Certamente, essas histórias aparecerão e
gerarão uma série de questões. Isso já ouvi dos maiores advogados que estão
participando dessas causas. Seguramente, ninguém negará o que se tem praticado e,
como se sabe, não é uma prática escorreita, condizente com o Estado de direito.
Quem faz isso não age de maneira correta. É preciso dizê-lo.
Estou convicto de que esse sistema expõe, de forma excessiva, a honra dos
delatados, os quais são apresentados à sociedade como culpados, mesmo antes de
saberem do quê. Faz tempo que venho chamando a atenção para esse ponto, e
pretendo continuar, Presidente.
Creio que temos que evoluir em soluções jurisprudenciais e legislativas, reforçando a
presunção de inocência, sem impedir as investigações. Mas o caso concreto não é
ideal para tanto”.
(GILMAR MENDES - Petição nº 7074 QO/DF)

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objeto, a partir de dados levantados em trabalho de campo,
explicitar a forma pela qual os operadores do campo jurídico brasileiro - especificamente aqueles
ligados à persecução criminal no âmbito federal, atuantes no Estado do Rio de Janeiro -, representam
e atualizam a Colaboração Premiada. Este instituto foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, a
partir da Lei nº 12.850, de 2013 - editada com a finalidade de definir o crime de organização
criminosa e regular o instituto, dentre outras providências. A Colaboração Premiada é considerada
como técnica de investigação, meio de obtenção de prova processual, entre outras definições que o
campo jurídico brasileiro estabelece.
Foram utilizados nesta pesquisa empírica métodos qualitativos de inspiração etnográfica.
Além disso, foram acrescentados os dados obtidos em entrevistas abertas realizadas com os
operadores do direito que atuaram nos acordos de Colaboração Premiada levantados e que integram
as Operações Lava-Jato no Rio de Janeiro, cidade onde resido. Busquei descrever, a partir de dados
colhidos em observação de campo e nas mais de duzentas audiências que assisti o caminho
percorrido por esse instituto e analisar os discursos e as representações dos operadores sobre a
Colaboração Premiada. Paralelamente, busquei também as representações sobre o mesmo instituto,
tanto na doutrina jurídica quanto na legislação brasileiras, que o colocam no contexto do modelo de
Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição da República de 1988.
Para o objetivo aqui proposto, além do saber produzido pelo campo do Direito, dialogo com
outras áreas do conhecimento, que têm como objeto o estudo do campo jurídico no Brasil, tais como,
a Antropologia, a Sociologia e a História.
Esta pesquisa se justifica, além da inexistência de outra congênere, pela importância que o
instituto da Colaboração Premiada ganhou, desde seu aperfeiçoamento pela lei de 2013, em face do
seu amplo emprego nas investigações criminais que antecederam o ajuizamento dos processos
criminais e que ficaram conhecidas como Operação Lava-Jato e suas correlatas. Destaquei o exame
de duas delas, a Operação Ponto Final e a Operação Cadeia Velha, uma vez que chegaram a
concretizar condenações de autoridades do alto escalão do governo estadual e outras instituições
cariocas renomadas, bem como grandes empresários dos ramos da construção civil e dos transportes
públicos.
A problemática levantada visa descrever, refletir e explicitar a forma pela qual, na visão dos
operadores, esta técnica investigativa tem sido aplicada na produção da verdade jurídica, bem como
os valores que representam e sua consequência para o processo penal brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE: Colaboração Premiada; delação premiada; pesquisa empírica; produção da


verdade jurídica.

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ABSTRACT

The present research has as an object, as of data collected from field work, to explicit the form by
which the operators of the brasilian juridical field - specifically those connected to the criminal
prosecution at the federal level., operating in the state of Rio de Janeiro. - , represents and updates the
"Colaboração Premiada". This institute was inserted in the brazilian juridical order, from the Law nº
12.850, from 2013 - edited with the purpose of defining the crime of criminal organisation and
regularising the institute, among other arrangements. The "Colaboração Premiada" is considered as
an investigation technique, a way of obtaining procedural proof, among other definitions established
by the brasilian juridical field.
Qualitative methods with ethnographic inspiration were applied on this empirical research.
Furthermore, data obtained from open interviews with the legal practitioners who acted on the raised
"Colaboração Premiada" agreements and who are part of the "Operações Lava-Jato" in Rio de
Janeiro, city where I live, was added. I aimed at describing, based on collected data from field
observation and on over two hundred audiences where I watched the path taken by this institute, and
analise the discourse and representations of the practitioners upon the "Colaboração Premiada". In
parallel, I also sought the representations about the same institute, both in legal doctrine and brasilian
legislation, which contextualise the model of the Democratic State of Law adopted by the
Constitution of the Republic, from 1988.
According to the proposed objective, besides the expertise produced by the Law field, I interact with
other fields of knowledge, which have as an objects of study the legal field in Brazil, such as
Anthropology, Sociology and History.
This research is justified, beyond the inexsistence of any other akin, by the importance that the
institute of the "Colaboração Premiada" has gained, since its refinement by the law from 2013, given
its vast usage in criminal investigations, preceding the filling of criminal lawsuits which became
known as "Operação Lava-Jato" and its correlates. I highlighted the analysis os two fo them, the
"Operação Ponto Final" and the "Operação Cadeia Velha", since they convicted high ranking
authorities from the State government and other renowed institutions from Rio de Janeiro, as well as
important businessmen from the construction industry and the public transportaion sector.
The raised issue aims at describing, reflecting and expliciting the way by which, from the perspective
of the legal practitioners, this investigative technique has been applied on producing the juridical
thruth, as well as the values it represents and its consequence to brazilian criminal procedures.

KEYWORDS: Colaboração Premiada; delação premiada; empirical research; production of


juridical truth.

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ASTRATTE

La presente ricerca ha come oggetto, dai dati raccolti nel lavoro sul campo,
per spiegare il modo in cui gli operatori del campo legale brasiliano - in particolare quelli relativi al
perseguimento penale a livello federale, operanti nello Stato di Rio de Janeiro - rappresentare e
aggiornare la Colaboração Premiada. Questo istituto è stato inserito nell'ordinamento giuridico
brasiliano, a partire dalla legge n. 12.850 del 2013 - edito allo scopo di definire il reato di
organizzazione criminale e di regolare l'istituto, tra le altre misure. La Colaboração Premiada è
considerata una tecnica di ricerca, un mezzo per ottenere prove procedurali, tra le altre definizioni
che il campo legale brasiliano stabilisce.
Abbiamo usato in questa ricerca empirica i metodi qualitativi di ispirazione etnográfica. Inoltre, i dati
ottenuti da interviste aperte con operatori della legge che hanno agito negli Accordi di Colaboração
Premiada sollevati e che integrano il “Lava-Jato” delle Operazioni a Rio de Janeiro, città dove vivo.
Ho cercato di descrivere, dai dati raccolti sull'osservazione sul campo e dagli oltre duecento udienze
a cui ho partecipato la via di questo istituto e analizzare i discorsi e le rappresentazioni degli operatori
sulla Colaboração Premiada. allo stesso tempo, ho anche cercato rappresentazioni dello stesso
istituto, sia in dottrina legale che in diritto brasiliano, che colloca l'istituto nel contesto del modello
dello Stato di diritto democratico adottato dalla Costituzione della Repubblica del 1988.
Per lo scopo qui proposto, oltre alle conoscenze prodotte dal campo del diritto, il dialogo con altre
aree di conoscenza, il cui oggetto è lo studio del campo giuridico in Brasile, come Antropologia,
Sociologia e Storia.
Questa ricerca è giustificata, oltre all'inesistenza di un altro congenere, dall'importanza che l'istituto
della Colaboração Premiada ha vinto sin dalla sua perfezione dalla legge del 2013, di fronte al suo
ampio impiego in indagini penali che hanno preceduto il deposito di cause penali e che divenne noto
come “Lava-Jato” Operation e le sue correlazioni. Ho enfatizzato l'esame di due di loro, Operazione
Ponto Finale e Operazione Cadeia Velha, una volta giunti a giustiziare condanne delle autorità
dell'alto livello del governo statale e di altre rinomate istituzioni di questo stato, , così come i grandi
imprenditori delle filiali della costruzione civile e dei trasporti pubblici.
Il problema sollevato è descrivere, riflettere e spiegare il modo in cui, secondo gli operatori, questa
tecnica investigativa è stata applicata nella produzione di verità legale, così come i valori che
rappresentano e le loro conseguenze per i procedimenti penali brasiliani.

PAROLE CHIAVE: Colaboração premiada; premiare il regalo; ricerca empirica; produzione di


verità legale.

12
SUMARIO

INTRODUÇÃO 17

CAPITULO I  A COLABORAÇÃO PREMIADA NO BOJO DAS OPERAÇÕES LAVA- 34


JATO E CONGÊNERES
I.1 – O surgimento das Operações Lava-Jato 35

I. 2 – As duas Operações escolhidas dentre as diversas fases da Lava Jato carioca 52

I. 3 – Entrelaçamentos entre acordos de Colaboração Premiada e as Operações Lava- 64


Jato no Rio de Janeiro
CAPÍTULO II  AS INSTITUIÇÕES OBSERVADAS E O INGRESSO NO CAMPO 78

II.1. O ingresso nas instalações do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro 84

II.2. O ingresso na 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro 87

II.3. O Cartório Judicial e o registro dos acordos de Colaboração Premiada 104

CAPÍTULO III  O ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA 107

III. 1 - O que é o acordo de Colaboração Premiada? 115

III. 2 – Quais crimes podem ser objeto da Colaboração Premiada? 126

III. 3 – Em que momento o acordo de Colaboração Premiada é celebrado e quem são os 132
atores que participam de sua celebração?

III. 4 – O que acontece na fase da homologação judicial? 145

III.5 – Quais são as características do acordo de Colaboração Premiada? 156

III.6 – Quais são os documentos que instruem o acordo de Colaboração Premiada e qual 172
a finalidade de cada um?

13
III. 7 – Quais cláusulas são inseridas no acordo de Colaboração Premiada? 189

III. 8 – Quais critérios são utilizados para a celebração do acordo de Colaboração 238
Premiada?

CAPÍTULO IV  “VAMOS AO ATO!” - A LÓGICA DO CONTRADITÓRIO EM UMA 242


DAS AUDIÊNCIAS OBSERVADAS

IV. 1 – Descrevendo uma audiência 243

IV. 2 – Cross Examination e Contraditório 266

CAPÍTULO V  PRINCIPAIS CATEGORIAS PRESENTES NOS DISCURSOS DOS 280


ENTREVISTADOS
V.1 – Segurança Jurídica 280

V. 2 – Justiça Negocial 300

CONCLUSÃO 354

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 365

APÊNDICE 463

ANEXOS 385

14
LISTAS

TABELAS, QUADROS E GRÁFICOS

GRÁFICO I Quantidade de feitos extrajudiciais instaurados por ano 86


GRAFICO II Investigações policiais e do Ministério Público enviadas às 86
Varas Criminais Federais em 2016

TABELA I Cálculo da pena proposta pelo Ministério Público 242


TABELA II Comparação entre penas previstas em lei e penas indicadas em 243
acordos de Colaboração Premiada

QUADRO I Mapa Estratégico 2011/2020 91


QUADRO II Questões importantes sobre os benefícios penais previstos em 236
acordos de Colaboração Premiada
QUADRO III Natureza jurídica da Colaboração Premiada 264
QUADRO IV Compartilhamento de provas 275
QUADRO V Riscos à Colaboração Premiada 347

15
LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SIMBOLOS
ABREVIATURAS
Art. – Artigo
Cód. – Código
Inc. – Inciso
Parág. – Parágrafo

SIGLAS
ABIN – Agência Brasileira de Inteligência
ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
CCR - Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
COAF - Conselho de Controle de Atividades Financeiras
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CPMI - Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CSMPF - Conselho Superior do Ministério Público Federal
CVM - Comissão de Valores Mobiliários
ENASP - Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública
ENCCLA – Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro
GAFI - Financial Action Task Force on Money Laudering
LEP – Lei de Execuções Penais
MP – Ministério Público
MPE – Ministério Público Estadual
MPF – Ministério Público Federal
MPU – Ministério Público da União
OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OEA – Organização dos Estados Americanos
ONU – Organização das Nações Unidas
PFDC - Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
PGR – Procuradoria-Geral da República
PRE - Procuradoria Regional Eleitoral
PRE/RJ - Procuradoria Regional Eleitoral do Rio de Janeiro
PRR - Procuradoria Regional da República
PRR2 - Procuradoria Regional da República da 2ª Região
RFB – Receita Federal do Brasil
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TRE - Tribunal Regional Eleitoral
TRE/RJ - Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro
TCRJ – Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro
TCU – Tribunal de Contas da União
TRF - Tribunal Regional Federal
TRF2 - Tribunal Regional Federal da 2ª Região
TRF4 - Tribunal Regional Federal da 4ª Região
TSE - Tribunal Superior Eleitoral

16
INTRODUÇÃO

O exame dos discursos e práticas que atualizam os acordos de Colaboração Premiada1 no


âmbito da Justiça Federal carioca me pareceu oportuno, não apenas pela notoriedade que este
instituto ganhou a partir da edição das investigações criminais que ficaram conhecidas como
Operações Lava-Jato e congêneres, como também porque, entre outras inovações que o instituto
acarretava, sinalizava, aparentemente, a consagração da inquisitoriedade nessas novas práticas de
investigação. Significava, portanto, que os operadores jurídicos brasileiros haviam assumido, de uma
vez por todas, uma mudança de perspectiva em relação à categoria “prova”, que até aqui era
representada pelo campo jurídico (BOURDIEU, 2007a) como um conjunto de elementos que
determinam a justa causa para a instauração da ação penal e para a condenação do criminoso.
Isso aconteceu porque algumas Operações Lava-Jato – modalidade de investigação criminal
que se tornou conhecida no cenário criminal brasileiro nos últimos anos -, apontavam a
possibilidade de existir condenação apenas baseada nesses acordos de Colaboração Premiada2, que
especialmente no Rio de Janeiro - como pude observar mais tarde -, são confeccionados,
exclusivamente, pelo Ministério Público Federal e pelo colaborador, na presença de seu advogado.
Vale dizer, como este acordo é celebrado na fase preliminar da persecução (ou fase de investigação
criminal), geralmente inaugurando estas Operações, se constituía em um procedimento
administrativo, cartorário e inquisitorial realizado nas dependências do Ministério Público -
portanto, nos mesmos moldes que o Inquérito Policial, realizado nas Delegacias -, e nele era
imputado ao colaborador uma penalidade antes mesmo de existir um processo judicial instaurado.
Assim, esta dinâmica aparentava, também, que princípios constitucionais como os da presunção de
inocência3, da ampla defesa, do contraditório, entre outros, estavam sendo atualizados por estes
atores sociais.

1
Este instituto foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro, com este nome, a partir da Lei nº 12.850, de 2013 – que
define o crime de organização criminosa e regula os institutos considerados meios de prova para a investigação sobre
tais crimes, dentre eles, a Colaboração Premiada – e passou a ser considerada como técnica especial de investigação,
entre outras definições adotadas pelo campo jurídico.
2
Exemplo considerado emblemático foi o da condenação do ex-presidente Lula da Silva, por suposto recebimento de
suborno do empresário José Adelmário Pinheiro Filho (apelidado de Léo Pinheiro), da empresa OAS, do ramo da
construção civil, relacionado à aquisição de um tríplex em Guarujá, São Paulo. Neste caso, como divulgado pela mídia
brasileira e internacional, a única “prova” que fundamentou a acusação e depois, a condenação, foi a declaração
(contida nesta Colaboração Premiada) deste empresário que acusou o político de ter recebido o imóvel em troca do
favorecimento de sua empresa em contratos de obras públicas. Mais tarde, até o Procurador-Geral da República,
Rodrigo Janot, representante do Ministério Público, emitiu parecer afirmando que “Não há nenhum elemento de prova
obtido a partir dessas tratativas preliminares já documentados em qualquer procedimento investigativo que seja”,
conforme divulgado em https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/318056/Moro-condenou-Lula-sem-que-Leo-Pinheiro-
mostrasse-provas-diz-defesa.htm.
3
Alguns estudos, como o de Ferreira (2013), já indicaram que a presunção de inocência no Brasil, ao contrário do que
acontece em outras tradições jurídicas, se efetiva de maneira bastante ambígua quando para sua aplicação o interesse

17
Esta mudança de perspectiva, portanto, destoava dos discursos que apregoam a noção
segundo a qual os elementos probatórios colhidos na fase das investigações preliminares somente
atingiriam o status de prova depois de serem submetidos ao “crivo do contraditório” (TOURINHO
FILHO, 2010)4. O exame do contraditório para o campo jurídico significa o conjunto de atos
realizados na fase judicial da persecução criminal, no qual as partes (acusação e defesa) apresentam
suas teses (requerimentos), documentos, testemunhas, argumentos e justificativas e contestam ou
questionam os atos da parte contrária, com vistas a convencer o magistrado, a quem cabe - além de
também produzir provas -, decidir a tese que sairá vencedora. De acordo com este campo, quando o
juiz aceita os argumentos e provas da acusação, profere a sentença condenatória, impondo a pena
correspondente ao crime imputado ao réu. Quando, ao contrário, aceita a tese e elementos
probatórios da defesa, profere sentença absolutória, excluindo, dessa forma, a responsabilidade
penal do acusado.
Ainda que tais discursos estejam distantes da empiria, continuam sendo mantidos pelo
campo jurídico, em razão do sincretismo cultural que domina não só esse campo, como outras áreas
da vida social brasileira. Esses discursos defendem até a ideia de que para formar sua convicção, o
juiz pode e deve produzir provas – a chamada verdade real -, mesmo contra a vontade das partes e
até quando os fatos forem incontroversos (GRINOVER, 1999, p. 79).
O que orienta a providência probatória judicial determinada em lei é a busca da verdade
real, instituto jurídico que justifica a manutenção de práticas inquisitoriais no processo e por mais
paradoxal que possa parecer, está vinculada à noção de Justiça. Isto porque para a doutrina jurídica
brasileira, a Justiça significa a efetivação da verdade real, já que é proferida pela autoridade que
representa o Estado (conforme MENDES, 2011 e 2012).
Denomino de inquisitorial o procedimento que inaugura a forma como o conflito é
administrado pelo sistema criminal brasileiro. Trata-se de um procedimento sigiloso, escrito e
dotado de fé pública que antecede o processo judicial - ou fase do contraditório - e representado
tanto pelo inquérito policial, elaborado na delegacia de polícia, quanto pelo procedimento de
investigação criminal, realizado pelo Ministério Público. Trata-se de procedimentos constituídos

individual, que é a marca do instituto, cede passo ao interesse público. Afinal, como o autor afirma, no modelo norte-
americano, por exemplo, a presunção de inocência constitui um elemento central da limitação ao poder Executório do
Estado. Ao mesmo tempo, não existe no Brasil -como acontece naquela tradição estrangeira -, padrões de prova que a
acusação deva produzir para conseguir a condenação e tal circunstância impõe às partes o ônus de provar sua inocência
(Ferreira, idem, p. 226).
4
De acordo com Tourinho Filho (idem, p. 553, sic), “Provar é, antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade; e
as provas são os meios pelos quais se procura estabelece-la. É demonstrar a veracidade do que se afirma, do que se
alega. Entendem-se, também, por prova, de ordinário, os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio Juiz
visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos. É o instrumento de verificação do thema
probandum”.

18
na fase de formação da culpa, como Misse (2008) já afirmou, o que confere a este modelo a
denominação de processo misto (ou sistema misto), conforme Almeida Júnior (1920) -
processualista penal consagrado, cuja doutrina escrita no início da República brasileira é
reproduzida até os dias atuais -, e na qual a inquisitorialidade é justificada para proteger os menos
favorecidos social e economicamente, significando que nesse sistema prevalece a tutela do Estado.
Ao mesmo tempo em que essas práticas inquisitoriais aconteciam, encontrei discursos que
defendiam que a Colaboração Premiada teria se originado do modelo anglo-saxão, sendo semelhante
à (ou se inspirando na) plea bargaining, do direito processual criminal dos Estados Unidos, já que
nesse modelo o órgão de acusação também negocia com o investigado. Ressalto que entre os
operadores jurídicos brasileiros também há quem defenda a semelhança da Operação Lava-Jato e
seus institutos com a Operação Mani Pulite italiana (MORO, 2004; CHEMIN, 2017, entre outros)5.
Contudo, como a pesquisa levantou os discursos dos operadores cariocas, a análise se concentrou na
comparação entre as duas tradições jurídicas a que estes se referem: a brasileira e, dentre a anglo-
saxônica, especialmente, a norte-americana. Além dos discursos dos operadores entrevistados, a
comparação por semelhanças entre as duas tradições também pode ser encontrada na doutrina
jurídica brasileira (conforme ISMAEL et all, 2017, p. 432, entre outros).
Acontece, no entanto, que ao contrário destes discursos, pesquisas de campo realizadas sobre
o sistema jurídico anglo-saxão, de que é exemplo o estadunidense, como as de Kant de Lima (1995;
2004; 2008, entre outras), Bisharat (2014 e 2015) e de Garapon e Papadopoulus (2008), entre outros,
afirmavam que na plea bargaining a acusação e a defesa negociam o fato criminoso, ou seja, a
verdade processual. Ferreira (2004 e 2013), por sua vez, viu o mesmo acontecendo no Canadá.
De acordo com estas pesquisas, na plea bargaining existe um negócio entre eles porque, de
um lado, é interessante para a acusação que não haja a instauração de um processo (por razões
econômicas e até de risco institucional) e, de outro, o acusado, apesar de ter direito ao processo, tem
interesse na imputação de um fato menos grave. Como neste sistema jurídico o direito ao processo
pertence ao acusado, ele pode aceitar esta negociação com a acusação, abrindo mão do processo. Ali,
não há uma busca da “verdade real” (beyond any doubt), mas sim, uma verdade construída pelas
partes, através do consenso mútuo sobre o que será objeto de dissenso e o processo se instaura sob a
presunção de não culpabilidade (presumption of innocence) do investigado/acusado, conforme Kant
de Lima (2008, pp.161-198).

5
Em outro lugar já comentamos a distância entre estas instituições e institutos (PIRES, 2018 e FARIA, 2018), valendo
também mencionar outras análises em idêntico sentido e que ampliam este debate, como as de Fontainha e Lima (2018),
entre outros.

19
Diante destas informações resolvi, então, analisar - por meio de observação direta e o
emprego de algumas entrevistas abertas, entre outros métodos de pesquisa que são próprios das
ciências sociais -, como atuavam os operadores dos acordos de Colaboração Premiadas que integram
as Operações Lava-Jato no Rio de Janeiro, onde resido. Meu interesse era verificar quais as
representações que estes operadores construíam para orientar suas práticas. Assim, o objetivo da
pesquisa consistiu em investigar, explicitar e sistematizar como são operacionalizados estes acordos,
destacando as categorias predominantes nos discursos justificadores dos atores sociais focalizados.
Busquei descrever, a partir de dados colhidos em observação de campo, o caminho percorrido
por esse instituto e analisar os discursos e as representações dos operadores sobre a Colaboração
Premiada. Paralelamente, busquei também as representações sobre o mesmo instituto, tanto na
doutrina jurídica quanto na legislação brasileiras, que o colocam no contexto do modelo de Estado
Democrático de Direito adotado pela Constituição da República de 1988.
A observação das práticas dos atores envolvidos na operacionalização das Colaborações
Premiadas consistiu, inicialmente, na assistência das audiências judiciais que se referiram a estes
acordos, no período de outubro de 2017 a janeiro de 2019. Neste sentido, uma das varas criminais da
Justiça Federal do Rio de Janeiro constituiu o campo privilegiado de observação dessa pesquisa, em
razão de sua competência para julgar ações e recursos de interesse da União Federal, de suas
autarquias e empresas públicas federais, dentre outras causas especificadas nos artigos 108 e
seguintes, da Constituição da República de 1988. Este juízo se tornaria competente para o processo e
julgamento das causas relacionadas às Operações Lava-Jato e dos acordos de Colaboração
Premiada confeccionados em razão dessas investigações. Empreguei esta atividade porque, como
Miranda (1993) já alertou, a burocracia judiciária é descrita de uma forma, mas na verdade, funciona
de outra.
Devido a uma regra de direito processual, um dos critérios de fixação da competência do juízo
resulta da distribuição dos processos judiciais pelo sistema informatizado de distribuição automática
e aleatória6. Assim, em outubro de 2015, o juiz da 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro passou
a ser competente para processar e julgar todos os processos relativos às Colaborações Premiadas
inseridas no âmbito das Operações Lava-Jato e congêneres. Isso ocorreu quando foi distribuída a
esse juízo a denúncia que resultou da Operação Radiotividade, instaurada pelo Ministério Público
Federal de Curitiba e que apurava fraudes em licitações de obras públicas, merecendo destaque a
relativa à construção da Usina Nuclear Angra 3, localizada no Município de Angra dos Reis, no Rio
de Janeiro.

6
Código de Processo Penal – Artigo 75: A precedência da distribuição fixará a competência quando, na mesma
circunscrição judiciária, houver mais de um juiz igualmente competente (BRASIL, 2017).

20
O Supremo Tribunal Federal, neste caso, atuava como juízo para o qual a denúncia referida
foi distribuída e esta indicava, entre os envolvidos nos crimes relatados, alguns cidadãos brasileiros
que possuíam à época - em razão do cargo que desempenhavam -, foro privilegiado (ou foro por
prerrogativa de função) 7. Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, além de órgão
jurisdicional, é também competente para dirimir controvérsias que versem sobre o controle da
constitucionalidade das leis, mas a partir de 2014, especialmente, em vista dos inúmeros processos
que se originaram das Operações Lava-Jato e suas correlatas, o órgão enfatizou sua atuação enquanto
tribunal criminal, devido aos casos de atores sociais que possuíam este foro privilegiado.
O desmembramento da denúncia da Operação Radioatividade foi determinado pelo Supremo
Tribunal Federal porque as irregularidades apontadas pelo órgão de acusação envolviam, entre outros
investigados, o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, além do próprio presidente da
Eletronuclear8, empresa responsável pela licitação dos contratos da usina nuclear citada, como
informou o site MPF Combate à Corrupção, criado pelo próprio Ministério Público Federal9 e outras
mídias10. Como os acordos de Colaboração Premiada são celebrados no âmbito dessas Operações,
esse juízo também se tornou competente para homologá-los.
Neste ambiente realizei conversas informais com alguns advogados que representavam os
atores envolvidos nessas investigações e logo percebi que o acesso às informações relativas ao modus
operandi dos acordos seria uma tarefa complicada já que a Lei nº 12.850, de 2013 - que disciplina o
crime de organização criminosa e regula o instituto da Colaboração Premiada, entre outros meios de
7
Como afirmam Kant de Lima e Mouzinho (2016), trata-se de uma categoria prevista nos textos constitucional e
processual penal que acentua a desigualdade dos brasileiros diante da lei. Conhecido também como foro privilegiado, o
foro por prerrogativa de função confere a ocupantes de determinados cargos públicos a “prerrogativa” de serem
processados e julgados por órgãos jurisdicionais de instância superior, cujas decisões são colegiadas, significando,
portanto, julgamentos mais qualificados, enquanto quem não possui tal “prerrogativa” é julgado por órgãos
jurisdicionais de instância inferior, que promovem decisões singulares, monocráticas. Como lembram os autores, isto
acontece porque no Brasil, a distribuição de direitos constitucionais não é realizada de forma universal entre os
cidadãos, porque entre nós a ideia de igualdade jurídica é ambígua: de um lado, o texto constitucional (artigo 5º) afirma
que todos são iguais perante a lei - noção difundida pelas Revoluções burguesas do século XVIII, significando que os
cidadãos de diferentes status têm um mínimo de direitos em comum - e, de outro – seguindo uma máxima reproduzida
pelo jurista Rui Barbosa, do século passado -, que afirma que “a regra da igualdade é tratar desigualmente os desiguais
na medida em que se desigualam”, isto é, os diferentes cidadãos devem ser tratados desigualmente e apenas os cidadãos
semelhantes entre si teriam tratamento igualitário (BARBOSA, 1999; TEIXEIRA MENDES, 2005). Assim, entre nós,
os direitos assumem a forma de privilégios.
8
A Eletrobras Eletronuclear foi criada em 1997 com a finalidade de operar e construir usinas termonucleares no Brasil e
responde pela geração de, aproximadamente, 3% da energia elétrica consumida no Brasil, conforme divulgado em
http://www.eletronuclear.gov.br/Paginas/default.aspx.
9
O site foi lançado pelo Ministério Público Federal em setembro de 2017. Conforme divulgado pelo órgão, “No
endereço www.lavajato.mpf.mp.br , é possível entender o caso e conhecer o histórico das investigações na primeira
instância, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), esses dois últimos responsáveis
por julgar as acusações contra pessoas com prerrogativa de foro. A página reúne informações detalhadas sobre a
operação, como estatísticas, denúncias e decisões da Justiça. Nela, é possível ter acesso a dados relativos a atuação do
grupo de trabalho na PGR e das forças-tarefa do Paraná, Rio de Janeiro e Brasília.” Disponível em
http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-lanca-novo-site-com-dados-da-operacao-lava-jato.
10
Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/rio-de-janeiro e
https://www.conjur.com.br/2015-out-30/inquerito-eletronuclear-correr-rio-janeiro-define-stf.

21
obtenção de prova empregados nos procedimentos que investigam tais crimes - impõe o sigilo a esses
procedimentos em seu artigo 7º, principalmente11.
Além dessa lei, as agências estatais responsáveis por sua confecção (Polícia e Ministério
Público), também editaram normas para garantir a manutenção e a reprodução desse sigilo que, além
de impedir o acesso a estes dados, atribuiu um caráter excessivamente inquisitorial ao ato, tornando-o
imune a qualquer modalidade de controle ou fiscalização externa12, sendo este exame mais detalhado
à frente. Segundo com estas normas, o sigilo dos acordos somente se encerra após o recebimento da
denúncia pelo juiz competente, o que a princípio poderia significar a limitação da pesquisa à
observação desses documentos após essa fase. Por este motivo, alguns documentos que utilizo como
exemplo de Colaboração Premiada ou que guardam algum vínculo com ela foram reproduzidos dos
modelos divulgados pela mídia ou pelos sites oficiais do Ministério Público Federal. Ainda que
alguns deles não se refiram diretamente aos documentos produzidos pela Justiça Federal do Rio de
Janeiro, são aqui reproduzidos como exemplos.
O sigilo imposto a estes atos dificultou, inclusive, o acesso aos atores que dele fazem parte.
Exemplo dessa dificuldade aconteceu quando um aluno do Curso de graduação em Segurança
Pública da UFF - com quem tive contato ao ministrar a disciplina Instituições e Práticas do Direito
Penal, na modalidade de estágio docência do doutorado -, ao saber do meu interesse em realizar
entrevistas com os atores que celebram os acordos, ofereceu-me o contato do seu próprio pai, por via
do aplicativo de telefone celular, Whatsapp, que teria sido envolvido em uma dessas investigações.
Apesar de tentar contatá-lo e de deixar registrado, por escrito, o compromisso não revelar a
identidade do meu interlocutor, não obtive qualquer resposta deste pretenso entrevistado e o aluno,
apesar de eu jamais ter insistido, passou a evitar falar sobre a oferta frustrada, o que obviamente
percebi e respeitei.
Outro exemplo, mais emblemático, foram as diversas tentativas - igualmente frustradas -, para
entrevistar o juiz da Vara Criminal Federal que visitei em meu trabalho de campo. Neste caso, nem
mesmo minha apresentação, via e-mail, por um professor da época em que este juiz cursou o
mestrado, foi eficaz. Após tal apresentação, realizei, pessoalmente, o pedido de entrevista às
secretárias desse juízo, ao longo de quase um ano, sem que jamais houvesse sequer uma resposta
negativa. Estas profissionais, sempre educadas, informavam nessas ocasiões que levariam meu
pedido à apreciação do magistrado. Após a terceira tentativa percebi que não adiantava insistir.

11
O artigo 7º, da Lei nº 12.850, de 2013 afirma que o pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído,
contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto. (...) § 3º O acordo de
colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5º desta lei.
12
São exemplos a Orientação Conjunta nº 01/2018, do Ministério Público Federal e o Manual de Colaboração Premiada,
principalmente.

22
Mesmo entendendo as esquivas deste operador como recusa ao meu pedido, tal fato despertou minha
curiosidade, já que ele sempre recebia em seu gabinete os profissionais da imprensa que
frequentavam as audiências relativas aos acordos de Colaboração Premiada, como vi acontecer
inúmeras vezes. Além disso, como mais tarde me informou um funcionário daquela corte, este
magistrado “adorava receber os jornalistas e repórteres”.
Percebi com essa experiência que em relação à forma e ao conteúdo desses acordos, a
pesquisa ficaria também limitada ao exame de alguns desses termos disponibilizados pela própria
Justiça Federal para toda a população brasileira, através dos meios de comunicação de massa e,
principalmente, pela mídia tradicional. Em alguns casos (mais simbólicos para a opinião publica,
talvez), houve divulgação, inclusive, dos audiovisuais que registraram esses acordos. Assim, a análise
inicial desses documentos se baseou nesse conjunto de materiais divulgados pela mídia brasileira e
que, também nesses casos, ficou limitada à dinâmica de alguns dos atos praticados por estes atores.
A expectativa de realizar entrevistas com estes atores – juízes e Procuradores da República
envolvidos nos acordos - parecia inviável, pois o término do prazo para concluir a pesquisa se
aproximava. Inicialmente, tentei o contato pessoal e direto, comparecendo a um dos endereços onde
está localizada uma das sedes do Ministério Público Federal, no Centro do Rio de Janeiro13. Contudo,
logo na entrada do prédio, ao me apresentar como estudante do doutorado do Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF e que
desejava entrevistar um dos Procuradores Regionais da República ali lotados, percebi que não seria
assim tão fácil meu ingresso nesse campo. Com o olhar um tanto blasé, uma das três funcionárias que
fazia o atendimento dos visitantes - todas sentadas atrás de um balcão de madeira escura que dividia
o ambiente com as catracas de acesso e um detector de metais -, perguntou se minha entrevista estava
agendada e quem seria o entrevistado. Assim, como eu já suspeitava, o acesso a esses atores dependia
de prévio agendamento e autorização.
Por fim, já sem muita expectativa de sucesso nessa empreitada, decidi enviar e-mail a dois
Procuradores Regionais da República que atuam nas Operações da Lava-Jato no Rio de Janeiro e
que apareciam, frequentemente, nos noticiários das principais emissoras de televisão e nas mídias
sociais, prestando informações sobre as investigações realizadas, cujos endereços eletrônicos foram
divulgados pelo site oficial do órgão que representam14.

13
Mais tarde tomei conhecimento de que o órgão possui outros imóveis onde os Procuradores Regionais da República
estão lotados. São eles: Avenida Nilo Peçanha, 31; Rua México, 158 e Avenida Almirante Barroso, 54. No primeiro,
atuam os Procuradores de 1ª instância que atuam na Lava-Jato, enquanto nos demais, principalmente, os da 2ª instância,
possuem gabinetes no endereço acima citado.
14
O site oficial do órgão disponibiliza na página relativa à transparência, todos os e-mails dos membros do Ministério
Público Federal que se encontram ativos. Conforme divulgado em

23
Durante este período, revi a bibliografia que poderia ser utilizada na pesquisa, assim como
separei as principais notícias veiculadas na mídia sobre as Operações Cadeia Velha e Ponto Final,
que privilegiei neste exame e que totalizaram, ao todo, 240 (duzentas e quarenta) audiências, nelas
incluídas aquelas que o juízo da 7ª Vara Criminal Federal refez, após determinação do Supremo
Tribunal Federal, como será visto em seguida. Durante estas observações, a rotina, as falas e os
gestos praticados pelos atores sociais envolvidos nessas dinâmicas foram apontados em um caderno
de campo, que serviu de apoio complementar à técnica da gravação das vozes em meu aparelho de
telefone celular. Retirei destes recursos as observações que considerei importantes para ilustrar os
discursos e representações dos atores participantes, o caminho da Colaboração Premiada e a forma
como ela é operacionalizada, entre outras análises.
A escolha destas duas Operações, dentre as quase três dezenas de investigações instauradas no
Rio de Janeiro desde 2015, resultou do fato de que tocam em atividades praticadas por atores que
desempenham (ou desemprenharam) importantes papéis político e social, já que são (ou foram)
responsáveis pela gerência e pelo desenvolvimento do Estado, entre eles agentes públicos dos
Poderes Legislativo e Executivo estaduais, bem como dirigentes e grandes empresários de
importantes setores da vida carioca. Estas investigações explicitam também alguns fatos que podem
justificar as circunstâncias que levaram o Estado do Rio de Janeiro a viver uma das piores crises
financeiras dos últimos anos, chegando ao ponto de decretar estado de calamidade pública no âmbito
da administração financeira do Estado15.
Outro modelo de premiação que igualmente se insere nos procedimentos investigatórios das
Operações Lava-Jato e congêneres é o Acordo de Leniência, firmado entre os representantes de
pessoas jurídicas (empresas, em geral) e agentes dos órgãos administrativos do Poder Executivo. No
entanto, também devido à limitação temporal, esta pesquisa se restringiu apenas ao exame dos
acordos entabulados pelos agentes policiais ou representantes do Ministério Público com os
colaboradores (pessoas físicas), ou seja, os acordos de Colaboração Premiada.
Pouco menos de seis meses antes do prazo em que eu deveria concluir a pesquisa, recebi a
primeira resposta de um dos Procuradores, atendendo ao meu pedido. Aliás, este operador não apenas
aceitou realizar a entrevista, como, ao final dela, encaminhou para o meu e-mail uma relação com os
nomes e os respectivos endereços eletrônicos dos 15 (quinze) Procuradores que no Rio de Janeiro
atuam nessas investigações. Desse total, 11 (onze) atuam na 1ª instância e 4 (quatro) na 2ª instância

http://www.transparencia.mpf.mp.br/conteudo/contato/e-mail-funcional-dos-membros/e-mail-funcional-dos-
membros.pdf
15
A Lei nº 7483/2016 reconheceu o estado de calamidade pública no âmbito da administração financeira declarado pelo
Decreto nº 45.692/16. Este status foi prorrogado até dezembro de 2018, pela lei estadual 7.627/17.

24
da Justiça Criminal Federal carioca. Assim, repeti para estes a mesma correspondência enviada para
os dois primeiros.
Nestes e-mails informei que o instituto da Colaboração Premiada constituía o objeto de
análise da minha tese, deixando à escolha do entrevistado, conforme sua conveniência e
disponibilidade, a data e o local onde a entrevista poderia ser realizada. Também esclareci que por se
tratar de entrevista aberta, o entrevistado ficaria à vontade para falar os aspectos e assuntos
relacionados ao instituto que julgasse oportuno ou conveniente mencionar. Ainda salientei que
garantiria a preservação da identidade dos entrevistados e que não tocaria em casos de Colaboração
Premiada em curso ou já realizada, pois meu objetivo era identificar e analisar as rotinas e os atos de
sua realização, desde a fase das tratativas até a homologação do acordo. No entanto, apesar dessa
limitação, no curso das entrevistas muitos destes entrevistados utilizaram esses casos para
exemplificarem seus argumentos.
Além deste e-mail, também solicitei ao Coordenador do Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Direito, ao qual a pesquisa estava vinculada, que elaborasse uma carta de apresentação,
visando comprovar tal vínculo institucional, sendo prontamente atendida e em seguida, encaminhei
este documento a todos os destinatários indicados na lista entregue pelo primeiro Procurador
entrevistado.
Vale dizer, sem a ajuda desses profissionais, não teria conseguido atingir o objetivo proposto
pela pesquisa. Assim, até fevereiro de 2019 havia entrevistado 08 (oito) Procuradores da República,
sendo que 05 (cinco) deles atuavam em primeira instância e os 03(três) restantes em segunda
instância. Desse total, 07 (sete) foram entrevistados em seus respectivos gabinetes de trabalho,
localizados em prédios do Ministério Público Federal, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Apenas
01 (um) deles solicitou o envio das perguntas por meio do aplicativo Whatsapp e as respondeu,
gravando um total de 07 (sete) áudios, com duração, em média, de 10 minutos, cada. Neste caso, o
entrevistado solicitou que as perguntas fossem previamente enviadas para que, em seguida, suas
respostas seguissem a mesma ordem.
Com exceção dessa última, todas as demais entrevistas realizadas foram abertas e com o
emprego do gravador de voz do meu próprio celular, recurso este que também contou com a
autorização e anuência prévia dos entrevistados. Minha intervenção nesses atos apenas ocorreu
quando os interlocutores perguntavam se havia mais alguma coisa a esclarecer ou quando algum
ponto da entrevista não era explicitado. Em média, cada uma dessas entrevistas durou mais de 01
(uma) hora. Após ouvi-las, transcrevi cada uma delas, identificando os entrevistados pela sigla MPF
(Ministério Público Federal), seguida de numeração, conforme a ordem em que foram realizadas suas
participações (MPF1, MPF2, etc.), mantendo, assim, o anonimato desses operadores.

25
Procurei elaborar as perguntas para a entrevista realizada via Whatsaap, seguindo o mesmo
caminho dos assuntos indicados nas respostas dos demais entrevistados, visando aplicar idêntico
tratamento a todos. Estas perguntas estão relacionadas no Apêndice deste texto.
Em cada transcrição das entrevistas destaquei as categorias mais recorrentes nesses
discursos para saber quais são as representações que orientam suas práticas.
Logo nas primeiras entrevistas, fui informada que no Rio de Janeiro apenas os
representantes do Ministério Público Federal, que integram a força-tarefa da Lava-Jato, realizam,
diretamente, as investigações que podem ou não contar com a participação de outras instituições de
controle como a Polícia Federal ou a Receita Federal, mas tais participações são acessórias ou
complementares.
Além disso, o grupo dos 15 (quinze) Procuradores que integram essa força-tarefa dividem
suas atribuições conforme a instância judicial em que atuam. Assim, desse total, apenas 11 (onze) são
responsáveis pelas tratativas iniciais com os colaboradores e seus advogados; pela confecção dos
acordos de Colaboração Premiada, assim como a definição dos “benefícios penais” aplicados aos
colaboradores, que consistem na redução dos efeitos penais (redução das penas, regime de
cumprimento mais favorável, perdão judicial)16 e, em alguns casos, o não oferecimento da denúncia.
São estes operadores que elaboram e oferecem as denúncias; participam das audiências de
homologação dos acordos de Colaboração Premiada e acompanham os processos judiciais
instaurados a partir dessas peças de acusação, até a sentença judicial de 1º grau. Já os 4 (quatro)
restantes, acompanham em 2ª instância os desdobramentos das Operações mencionadas e seus
respectivos acordos, discutidos em grau de recurso, ou objeto de Habeas-Corpus, ou ainda quando se
trata de investigação apurada contra pessoa que tem foro privilegiado.
Mesmo sabendo da atuação complementar ou acessória das demais instituições de controle,
ainda tentei contatar um Delegado da Polícia Federal, por indicação de uma colega do mestrado, que
gentilmente me cedeu o número do seu célular de um deles. Todavia, também essa tentativa foi

16
O Perdão Judicial é considerado pela doutrina jurídica como um instituto do direito penal brasileiro, por meio do qual
o juiz, embora reconhecendo a prática do crime, deixa de aplicar a pena, em face de as consequências do próprio crime
atingir tão gravemente o infrator que se tornam inconvenientes ou desnecessários os seus efeitos. Previsto nos artigos
107, inciso IX; 120 e 121, §5º, do Código Penal, consiste em medida que visa excluir a aplicação da pena quando o
resultado do crime atingir tão gravemente o próprio criminoso, que a pena prevista em lei se mostre inadequada ou
ineficaz. Trata-se de uma renúncia ao direito punitivo (jus puniendi, conforme denominação atribuída pelo campo
jurídico) pelo próprio Estado. Dentre outros doutrinadores, Tourinho Filho (1985, p. 474) afirma que há varias razões
que fazem surgir uma renúncia, uma abdicação do direito de punir do Estado (...). “Extingue-se a punibilidade, em face
de certas contingências ou motivos de conveniência ou oportunidade. Tais contingências ou motivos de conveniência ou
oportunidade fazem desaparecer os próprios fundamentos da punibilidade, tornando, assim, impossível a concretização
do jus puniendi. E quais esses fundamentos? A necessidade e a utilidade da punição. Não falou o legislador em extinção
do crime ou da pena, mas em extinção da punibilidade, correspondendo à exata significação dos efeitos jurídicos dela
resultantes”.

26
frustrada, já que todas as mensagens enviadas diretamente a este profissional, não foram respondidas
até o término dessa pesquisa.
A ausência de outros atores que também participam dessas investigações poderia
complementar os dados. Por esta razão, a observação das audiências relativas às ações penais que se
originaram das Operações Lava-Jato, assim como aos acordos de Colaboração Premiada celebrados
me pareceu um exercício importante neste sentido. Além disso, como apenas os membros do
Ministério Público Federal do Rio de Janeiro efetivamente, são as únicas autoridades estatais que
realizam os acordos de Colaboração Premiada, considerei que o exame dos seus discursos e de suas
representações seria indispensável a este estudo.
A problemática levantada visa descrever, refletir e explicitar a forma pela qual, na visão dos
operadores, esta técnica investigativa tem sido aplicada na produção da verdade jurídica, bem como
os valores que representam e sua consequência para o processo penal brasileiro.
Para tanto, além do saber produzido pelo campo do Direito, dialogo com outras áreas do
conhecimento, que têm como objeto o estudo do campo jurídico no Brasil, tais como, a Antropologia,
a Sociologia e a História. Isto porque, para examinar o contexto social onde o direito é
operacionalizado, adotei a noção sociológica que considera o campo do direito como um campo de
disputa de poder sobre quem pode “dizer o direito”, enquanto segmento da vida social, enquanto
segmento da vida social, diretamente ligado às decisões que vão definir as normas jurídicas a serem
adotadas, assim como a forma mais adequada de sua interpretação, constituindo campo privilegiado
de contenda de visões acerca do mundo, de interpretações sobre os problemas nacionais e sua
formulação jurídica, conforme Bourdieu (2006, pp. 209-255)17.
Esta análise permite entender que as relações de forças específicas do direito, além de
orientarem sua estrutura, determinam as lutas de concorrência que acarretam o reconhecimento de
certos autores jurídicos, os quais são consagrados como seus “porta-vozes”, na medida em que vão
orientar a formação profissional dos operadores; serão citados nas salas de aula dos cursos de
graduação, nas petições e nos discursos dos advogados e até mesmo nas decisões dos tribunais. Neste
sentido, vale lembrar também que Geertz (2008a, p. 26) declarou que os doutrinadores jurídicos
constroem um saber denominado dogmática jurídica, enquanto saber próprio do campo jurídico,
“que consiste em reunir e organizar, de forma sistemática e racional, comentários a respeito da
legislação em vigor e da melhor forma de interpretá-la; é através dela que o direito se reproduz nesse
campo”.

17
Bourdieu (idem) se refere a uma questão do campo jurídico, mas do campo jurídico francês, embora se aplique
também, neste aspecto, ao modelo brasileiro.

27
Como o foco deste estudo consistiu em indagar e verificar como se dá a atualização de um
instituto que é visto como originário de um sistema jurídico de uma tradição que tende à formação de
consensos sucessivos (como o de common law, do qual é exemplo o sistema estadunidense e sua plea
bargaining), em uma cultura jurídica marcada por traços e práticas inquisitoriais como a brasileira,
ou, em outras palavras, como a Colaboração Premiada é atualizada no nosso sistema que privilegia o
dissenso, entendi que uma análise baseada exclusivamente no conjunto de documentos legais
(Constituição Federal, Código Penal, Código de Processo Penal, entre outros) daria somente uma
visão parcial acerca da introdução e da manutenção do instituto no nosso sistema. Entendi também
que seria insuficiente a revisão isolada da extensa quantidade de obras dogmáticas relativas ao tema,
já que elas são opiniões a respeito da melhor interpretação legal, mas não explicam como o instituto é
atualizado nas práticas cotidianas.
Seguindo, ainda, Radcliffe-Brown (1973), adotei a lei como parte da maquinaria pela qual se
mantém certa estrutura social, entendendo que o sistema de leis de determinada sociedade só pode ser
plenamente compreendido se estudado em relação com a estrutura social, e, reciprocamente, a
compreensão da estrutura social exige, entre outras coisas, um estudo sistemático das instituições
legais. Desta forma, a lei foi adotada como um dado do meu campo. Mas não o único. Somaram-se a
este dado os discursos da doutrina e dos operadores, bem como a análise dos discursos dos
operadores e a observação das práticas que atualizam a Colaboração Premiada nos juízo criminal
que visitei.
Observar os efeitos que tramitam nos tribunais pode parecer uma tarefa extremamente simples
para alguém familiarizada com as rotinas e discursos forenses. Todavia, o que pretendia analisar e
traduzir foram os simbolismos presentes nas imagens, nos ritos, nos discursos e nos gestos que os
operadores jurídicos reproduziam durante o seu atuar. Neste sentido, lembrei-me da análise que
Garapon (2008, p. 221) fez acerca do processo francês, quando afirmou que o ritual judiciário e toda
a simbologia que este carrega consigo, além se ser um método de organização de um debate para se
chegar à verdade é também uma forma de constituir e conservar a manipulação do poder.
Tais simbolismos, apesar de serem sentidos pelos atores, dificilmente são traduzidos ou
compreendidos por quem não “pertence” a esse ambiente e, o mais curioso, é que há nessa
“incompreensão” uma finalidade específica. A linguagem, os rituais e os espaços jurídicos,
principalmente, são dominados por aqueles que conseguem compreendê-los e compartimentalizá-los
neste espaço: os operadores. As categorias de percepção e de apreciação deste conjunto de
informações não são destinadas a quem não é especialista, pois como lembra Bourdieu (2006, pp.

28
212-232), em sua análise do campo jurídico18 francês, há uma crença na competência técnica e o
ingresso neste campo implica a capacidade reconhecida (e atribuída pelo próprio campo) de
interpretar os textos jurídicos, os quais consagram uma visão pretensamente “justa” do mundo social.
É neste “campo” que se debatem os profissionais investidos de competência técnica e social na “luta”
pelo “monopólio do direito de dizer o direito”. Assim, reproduzindo uma lógica totalmente
hermenêutica e inacessível aos profanos19, o direito se torna um instrumento autoritário e de
dominação, “na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que
está na origem do seu funcionamento”. Como este embate entre os técnicos somente é admitido neste
campo, há a ilusão de que ele é autônomo em relação às pressões sociais e políticas externas ao
campo jurídico (BOURDIEU, idem, pp. 211 e 243). Esta análise permite compreender, por exemplo,
por que a jurisdição brasileira se distancia cada vez mais da concepção comum de equidade 20, como
diversos pesquisadores sobre o campo jurídico brasileiro já afirmaram.
Também optei por uma metodologia própria das ciências sociais, mas pouco comum para uma
estudante de direito habituada exclusivamente às pesquisas bibliográficas: a pesquisa empírica, o
trabalho de campo, a observação participante e as entrevistas abertas.
Quanto aos métodos empregados, vale lembrar que a entrevista é uma ocasião na qual o
diálogo etnográfico pode se estabelecer, em razão da relação de confiança que se estabelece entre os
participantes. Com um detalhe: entrevistas realizadas durante o horário e no local de trabalho dos
interlocutores permite também a observação da rotina da instituição, o que nem sempre é revelado
apenas por meio de sua descrição (SILVA, 2001). No entanto, é preciso estar atento para o fato de
que falar sobre a própria instituição onde o entrevistado está inserido pode colocar em risco a
qualidade de sua declaração, diante da possibilidade da presença de outros funcionários que atuariam
como testemunhas de tais declarações. Por isso, foi preciso construir, ainda que em curto espaço de
tempo, uma relação de confiança com meus interlocutores, para que suas declarações fossem
realizadas espontânea e voluntariamente. Afinal, não se tratava de um interrogatório ou de uma
entrevista jornalística. Assim, minha identificação enquanto aluna do curso de doutorado; a descrição
pormenorizada do meu objeto de pesquisa e sua finalidade, e a garantia de anonimato dos
entrevistados, foram informações que contribuíram para este fim.

18
Para Bourdieu (idem, p. 212), o campo jurídico é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito,
quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao
mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais
ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.
19
A expressão “profanos” é utilizada pelo autor para se referir justamente àqueles que não possuem esta competência
técnica (BOURDIEU, idem, pp. 232-233).
20
Equidade é uma categoria que o campo jurídico brasileiro associa às ideias de justiça e isonomia, conforme Amaral
Neto (2004, pp. 17-18).

29
Por outro lado, a intenção foi enfatizar o método etnográfico, seguindo a orientação de
Malinowski (1978)21, ou seja, empregando um olhar disciplinado, um olhar que apreende a realidade
dentro do esquema conceitual fornecido pela teoria antropológica para levantar os dados etnográficos
necessários à compreensão do outro. Assim, seria necessário uma descrição analítica que
ultrapassasse a mera linguagem dos atores observados e suas práticas, a fim de se poder detectar a
eficácia social dessas atitudes, bem como a complexidade da comunicação empregada no contexto de
suas ações. A principal tarefa consistiu, portanto, em estranhar ambientes e discursos com os quais já
estava familiarizada, há décadas, ou seja, tentei examinar estes locais e as declarações dos atores
empregando um olhar de um não nativo22.
Resolvi repetir, assim, a experiência utilizada na pesquisa do mestrado, o que não significou o
emprego de menor esforço, pois como Kant de Lima e Baptista (2013) já afirmaram, o diálogo entre
a Antropologia e o Direito constitui um exercício incomum dentre os pesquisadores jurídicos, na
medida em que, enquanto o primeiro saber pressupõe a relativização de verdades consagradas, o
segundo se reproduz por meio delas. Como os autores destacam, os estudos antropológicos se
diferem das pesquisas jurídicas, já que estas visam consagrar formas tradicionais do saber jurídico
dogmático. Já na Antropologia, o diálogo com outras perspectivas teóricas podem ser
significativamente proveitosas, uma vez que o pesquisador tende a assumir como proposição
fundamental a proeminência do estudo empírico para a análise e construção do conhecimento, de
forma a ampliar e renovar a teoria que lhe embasa, como esclarece Pires (2013, p. 152).
Assim, de antemão, eu sabia que esta pesquisa, além de inovadora, se reuniria a outros parcos
exemplos de estudos familiarizados com o nosso processo judicial, com a nossa lei processual e com
as práticas dos operadores brasileiros, que se situam na liminaridade23 dos dois campos do

21
A fundação do método etnográfico é atribuída a Malinowski (1978). Seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand,
nordeste da Nova Guiné, realizado em duas expedições, cada qual com duração de um ano (1915-1916 e 1917-1918),
constitui o marco de origem da etnografia científica, na medida em que o autor redefiniu as crenças, os compromissos
básicos dos membros da comunidade científica a respeito da natureza do conhecimento antropológico.
22
Expressão empregada nas ciências sociais, principalmente na Sociologia e na Antropologia, para identificar o
pesquisador, já que “nativos” refere-se aos integrantes do grupo social observado.
23
A ideia de liminaridade está presente no livro de Arnold Van Gennep, Les Rites de Passage, publicado em 1909, onde
analisa sociologicamente, pela primeira vez, os ritos enquanto expressões da dinâmica social. Van Gennep examina os
ritos de passagem no seu plano de estudo individual e descobre que "dentro de uma multiplicidade de formas
conscientemente expressas ou meramente implícitas, há um padrão típico sempre recorrente: o padrão dos ritos de
passagem". Este padrão implicava três fases nitidamente distintas: a da separação, a da incorporação e a fase liminar,
localizada entre as duas primeiras, de forma fronteiriça, marginal, paradoxal e ambígua (cf. VAN GENNEP, 1978,
p.191). A partir dos anos 60, especialmente nos estudos de Victor Turner, os ritos de passagem voltam a ser
interpretados e constituem duas tendências interpretativas: aquela que discute os ritos de passagem como um resultado
de uma adaptação obrigatória, verificada quando os indivíduos são obrigados a mudar de posição dentro de um sistema.
Sob esta ótica, os ritos seriam elaborações sociais secundárias e teriam a função de modular os conflitos gerados pela
transição da adolescência à maturidade, representando uma ênfase sobre os jovens e mais, especialmente, naquilo que
constitui a marginalidade, a criminalidade, aquilo que é percebido como uma passagem conflituosa, problemática
presente em qualquer sociedade humana. Já a segunda tendência interpretativa sai do plano individual e vai para o
coletivo, salientando a liminaridade como situação que não constitui processos ou papéis meramente patológicos,

30
conhecimento (como são as pesquisas de FERREIRA, 2013, BAPTISTA, 2013 e MENDES, 2011,
especialmente). Não se situam nem no grupo de pesquisadores do Direito e nem dos da Antropologia.
Esta circunstância nos coloca naquele lugar que o antropólogo francês, Victor Turner, denominou de
liminaridade, considerando que o ambíguo é toda instituição, coisa ou indivíduo que se situa,
simultaneamente, em dois campos semânticos, mutuamente excludentes. É tudo aquilo que tem
propriedades multivocais e contraditórias, tal como os neófitos (TURNER, 1964), os noviços que
contradisseram o dilema de Hamlet, porque "são e não são ao mesmo tempo". O interessante desse
movimento de deslocamento para a margem é o fato de permitir uma nova relação com aquilo que é
examinado: eu troco minha relação com este objeto de estudo quando troco meu ponto de observação
ou altero a distância que nos une e separa.
Neste exercício, tentei explorar ao máximo a tradução dos dados, apesar da preocupação com
uma descrição enfadonha – para os leitores de ambos os campos -, apreensão esta que permaneceu
mesmo depois de terminada a pesquisa. Tentei distinguir, de um lado, os resultados da observação
direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as minhas inferências.
Como também foi necessário realizar um exercício comparativo entre modelos de tradições
jurídicas diferentes dos nossos, tal perspectiva comparada, por contraste, originária da antropologia
social, embora seja crítica, não tem a finalidade de indicar, a priori, qual sistema é melhor ou o ideal.
Afinal, como Merryman e Pérdomo (2009) já indagaram, “sistema melhor ou ideal para quem? Em
qual contexto?”.
A proposta aqui examinada, ao contrário, visa explicitar as diferenças entre esses sistemas
para melhor compreender os contextos e com isso poder atingir uma perspectiva mais abrangente,
para enxergar a problemática enfocada, estranhando aspectos naturalizados e até mesmo ocultos das
formas processuais estudadas para poder descobri-las e conhece-las. Desta forma, a diferença, possui
um papel investigativo e heurístico, não se reduzindo a mero reconhecimento. Em outras palavras, a
barganha é uma categoria que remete a comportamentos que contêm significados específicos e
diferentemente constituídos, de acordo com as tradições de produção da verdade que resultam na
resolução de conflitos sociais a que estamos expostos em uma determinada sociedade.
O pano de fundo desta pesquisa reside na representação acerca da produção da verdade
jurídica (ou certeza jurídica) no processo penal brasileiro, que, por sua vez, está associada à fórmulas
tradicionais explicitadas nos sistemas jurídicos processuais, que significam o conjunto de princípios e
regras que esclarecem como se chega a esta verdade, capaz de apoiar uma decisão legítima que

criminosos ou pecaminosos. A importância da liminaridade gira em torno de como ela representa um elemento essencial
da constituição da própria sociabilidade, colocando em cheque as discussões tradicionais sobre a marginalidade como
um estado potencialmente criminoso, ou de desvio patológico ou perverso.

31
administrará o conflito. Assim, a forma como se chega à verdade - a forma de provar as coisas –
revela muito sobre nosso sistema jurídico e também sobre nós mesmos, já que se trata de uma
fórmula que se relaciona com as representações que nós, em nosso cotidiano, fazemos de um espaço
social público ordenado, assim entendido um lugar onde são possíveis as relações sociais em ordem,
embora não necessariamente sem conflito ou sem disputa (KANT DE LIMA, 1991).
Esta pesquisa se justifica - além da inexistência de outra congênere -, pela importância que o
instituto da Colaboração Premiada ganhou, desde seu aperfeiçoamento pela lei de 2013, em face do
seu amplo emprego nas investigações criminais que antecederam o ajuizamento dos processos
criminais e que ficaram conhecidas como Operação Lava-Jato e suas correlatas. Destaquei o exame
de duas delas, a Operação Ponto Final e a Operação Cadeia Velha, uma vez que chegaram a
concretizar condenações de autoridades do alto escalão do governo estadual e outras instituições
cariocas renomadas, bem como grandes empresários dos ramos da construção civil e dos transportes
públicos.
Os dados inicialmente levantados indicavam que apesar de representar novidade instaurada no
processo penal brasileiro, com vistas a incidir sobre uma clientela até então não atingida pelo sistema
de justiça criminal, o instituto perpetuava a inquisitoriedade e a tradição que confere tratamentos
desiguais aos cidadãos, na medida em que as autoridades responsáveis por sua operacionalização
tinham liberdade de interpretar a lei, cada qual a sua maneira.
Resolvi dividir este texto da seguinte forma: no capítulo I, descrevo o surgimento do
instituto da Colaboração Premiada, no sistema jurídico brasileiro, tomada como técnica de
investigação, especialmente empregada nas operações que ficaram conhecidas como Operação Lava-
Jato e suas congêneres.
No capítulo II indico os principais aspectos relacionados à estrutura e funcionamento das
instituições observadas, bem como descrevo como ocorreram o meu ingresso no campo e as
entrevistas com os membros do Ministério Público Federal.
No capítulo III elenco os principais aspectos dos acordos de Colaboração Premiada, sob a
ótica dos discursos dos representantes do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro e em algumas
oportunidades conjugo-os com os discursos doutrinário, jurisprudencial ou legal para indicar a
concorrência ou a aproximação entre eles, enfatizando a disputa interna deste campo, pela hegemonia
da aplicação do direito.
No capítulo IV realizo a descrição etnográfica de uma audiência que assisti durante minhas
visitas à 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro. Dentre as inúmeras audiências levantadas ao
longo da pesquisa, entendo que esta pode servir de exemplo de como a lógica do contraditório

32
permeia as ações e as representações dos operadores deste campo e a forma como influencia a
construção da verdade jurídica entre nós e os dissensos judiciais.
No capítulo V examino duas categorias retiradas dos discursos dos entrevistados. O destaque
dado a estas categorias, apesar de outras também integrarem os discursos dos operadores, justifica-se
por serem consideradas como as principais características dos acordos de Colaboração Premiada,
com base nas representações dos entrevistados.
Por fim, concluo a análise procurando demonstrar, a partir dos resultados obtidos nesta
pesquisa, as representações dos entrevistados acerca do instituto da Colaboração Premiada, bem
como algumas consequências dessas representações para o processo penal brasileiro atual.

33
CAPITULO I

A COLABORAÇÃO PREMIADA NO BOJO DAS OPERAÇÕES


LAVA-JATO E CONGÊNERES

Neste capítulo, descrevo o surgimento do instituto da Colaboração Premiada, no sistema


jurídico brasileiro, tomada como técnica de investigação e especialmente empregada nas operações
que ficaram conhecidas como Operação Lava-Jato e suas congêneres, a partir da ótica dos
operadores jurídicos entrevistados24. Descrevo também como este instituto incidiu nessas
modalidades de investigações realizadas no Rio de Janeiro.
Colaboração premiada, em primeira análise e segundo a doutrina jurídica brasileira
contemporânea, é um instituto previsto na legislação, por meio do qual um investigado ou acusado da
prática de infração penal, ao confessar sua participação no delito, elabora junto com as autoridades
estatais um acordo de cooperação no qual declara aceitar colaborar, voluntariamente, com a
investigação preliminar ou com o processo judicial, fornecendo informações que auxiliarão na
obtenção de provas contra os demais autores dos delitos e contra a organização criminosa; na
prevenção de novos crimes; na recuperação do produto ou proveito dos crimes ou para a localização
da vítima com integridade física preservada, recebendo o colaborador, em contrapartida,
determinados “benefícios penais” (exemplos: redução de sua pena, não oferecimento da denúncia
etc.).
Vulgarmente denominada pela mídia brasileira de delação premiada - ainda que tal instituto
tenha previsão legal específica -, a Colaboração Premiada ganhou relevância no país especialmente
nos últimos anos. Dentre outros fatos a ela relacionados, vale destacar que a partir de 2009, vem
sendo considerada como elemento probatório de investigação preliminar, especialmente utilizada
pelas investigações criminais conhecidas como Operação Lava-Jato (DELLE, 2015).
De acordo com os discursos levantados, a importância que este instituto assumiu nas
Operações Lava-Jato e correlatas deveu-se, especialmente, à complexidade dos esquemas criminosos
que tais Operações pretenderam apurar. Assim, segundo tal orientação, a elucidação do modus
operandi de tais organizações criminosas seria praticamente impossível sem o auxílio de quem
conhecesse seu funcionamento “por dentro”. Os próprios operadores jurídicos defenderam a ideia de

24
Há quem atribua a origem do instituto à instrumentalização do direito penal e processual penal brasileiros para atender
a projetos econômicos mundiais, relativos a disputas geopolíticas, conforme divulgado em
https://jornalggn.com.br/justica/como-o-doj-preparou-a-lava-jato-e-cooptou-a-justica-brasileira-por-luis-nassif/. Dentre
os pesquisadores, Lima (2018) denomina a Colaboração Premiada, entre outros instrumentos, de incidente político-
jurídico. Segundo a autora, os incidentes da Lava-Jato recebem esta denominação porque apesar de as ações de seus
operadores serem eminentemente jurídicas e técnicas, o resultado delas ultrapassa esses significados.

34
que a complexidade dessa criminalidade foi de tal ordem que ensejou a articulação de diversas
instituições do Estado: polícia, Ministério Público25; Judiciário; Receita Federal, entre outros. Tal
articulação passou a ser chamada por estes operadores de força-tarefa.
Outro fato igualmente relevante foi que estas Operações tornaram público práticas rotineiras
da Justiça Criminal brasileira, especialmente divulgadas nos canais de comunicação de massa e em
meios tecnológicos, tais como os sites oficiais dos órgãos públicos responsáveis pela investigação,
bem como páginas pessoais de redes sociais da internet de alguns representantes desses órgãos, como
será descrito a seguir26.
Este destaque dado à Colaboração Premiada no sistema processual penal brasileiro tem em
vista seu papel central na construção de provas que serviram como justa causa para a propositura das
ações penais, que, desde 2003, vêm se somando no âmbito da Operação Lava- Jato e outras
correlatas, uma vez que essas investigações criminais tratam da maior apuração de crimes de
corrupção e lavagem de dinheiro, que se tem notícia na história da sociedade brasileira,
especialmente27.

25
No Brasil, os operadores que atuam no processo penal pertencem a diferentes instituições como será visto em seguida.
26
A ênfase da Operação Lava-Jato saiu do cenário forense e encontra-se retratada em livros, séries de televisão e filmes
de cinema confeccionados nesses últimos anos. Dentre outros, cito o livro publicado em 2016, “Lava Jato – O juiz
Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, do jornalista Vladimir Netto, repórter da Rede de
Televisão Globo e que acompanhou as investigações desde março de 2014; o livro “A luta contra a corrupção – A Lava
Jato e o futuro de um país marcado pela impunidade”, publicado em 2017 e que relata as atividades da Operação a partir
da perspectiva do procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da Lava Jato no Paraná; o livro “Mãos
Limpas e Lava Jato – A corrupção se olha no espelho”, também publicado em 2017 e escrito pelo procurador do
Ministério Público e doutor em Direito, Rodrigo Chemim, onde tece semelhanças entre as experiências italiana e
brasileira a partir da comparação entre as Operações Mani Pulite e a Lava Jato; o livro “Comentários a uma Sentença
Anunciada: o Processo Lula”, igualmente publicado em 2017 e organizado por Carol Proner, Gisele Cittadino, Gisele
Ricobom, João Ricardo Dornelles, onde são reunidos 103 artigos de juristas brasileiros apontando equívocos na
sentença proferida pelo juiz Sergio Moro contra o ex-presidente Lula, no caso do tríplex de Guarujá. Outros exemplos
são a série “O Mecanismo”, do diretor José Padilha, que retrata a fase inicial da Operação Lava Jato, desde sua
deflagração até a prisão do principal executivo da empresa Odebrecht e divulgada pela Netflix – uma provedora norte-
americana de filmes e séries de televisão via streaming, ou transmissão contínua de dados pela Internet - e o filme
“Polícia Federal – A Lei é Para Todos”, de 2017, uma espécie de “thriller policial”, dirigido por Marcelo Antunez e
inspirado no livro homônimo, escrito por Carlos Graieb e Ana Maria Santos.
27
No Brasil, a corrupção é tipificada como crime quando envolve a participação dos agentes estatais (conforme previsto
nos artigos 317 e 333, respectivamente, do Código Penal). Significa afirmar que a corrupção praticada nas relações
privadas, entre pessoas que não ocupam cargos públicos, ou praticam condutas que não atinjam instituições públicas,
não responda pelo crime de corrupção, havendo na legislação penal brasileira, quando muito, outros dispositivos mais
genéricos, como o crime de estelionato. Já a categoria lavagem de dinheiro, por sua vez, se refere a práticas econômico-
financeiras que têm por finalidade dissimular ou esconder a origem ilícita de determinados valores financeiros ou bens
patrimoniais, de forma a receberem a aparência contrária, ou seja, lícita, ou ainda, que não seja possível demonstrar sua
origem lícita. Assim, lavar dinheiro significa simular uma operação financeira, seja para esconder o lucro proveniente
das infrações penais, seja para reintegrar o dinheiro, como forma de justificar valores obtidos por meios ilícitos ou não
declarados ao fisco, dando-lhe aparência lícita (PITOMBO, 2003, p. 30). A lavagem de dinheiro está prevista em
legislação especial (Lei nº 9.613, de 1998, alterada pela Lei nº 12.683, de 2012), constituindo uma das principais
atividades praticadas pelas organizações criminosas, conforme previsto na Convenção de Viena (também
denominada ‘Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas’, realizada em 20 de
dezembro de 1988 e ratificada por nosso país pelo Decreto nº154, de 26 de junho de 1991).

35
I.1 – O SURGIMENTO DAS OPERAÇÕES LAVA-JATO

Segundo um dos operadores que integra a Operação Lava-Jato carioca, diversos fatores
justificaram o surgimento dessa modalidade de investigação, cujos antecedentes históricos começam
em 2003 e culminam com a criação dos acordos de Colaboração Premiada, em 2013. Em sua
entrevista ele afirmou que:
- “Acho que a marca ‘Lava-Jato’, hoje, na verdade, traduz uma metodologia de
investigação. Essa metodologia tem a ver com duas mudanças legislativas, que são
contemporâneas à lei atual de 2013, de organização criminosa e que disciplina a
Colaboração Premiada, que são: a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 2013) e a
Lei do CADE (Lei n º 12.529, de 2011)28.
A Lei Anticorrupção, que trouxe o acordo de leniência, era uma “ponta solta” da
legislação sobre a colaboração do investigado. Por quê? Porque você tinha a
possibilidade de o negócio jurídico processual da colaboração e premiação penal
para o agente acusado de crime, mas, quando o crime envolvia uma atividade
empresarial e a empresa era veículo do crime, ficava “solta a ponta” da pessoa
jurídica.
Antes da lei anticorrupção, e da regulamentação na lei do CADE e na lei
anticorrupção dos acordos de leniência, você tinha um estímulo menor para se obter
uma colaboração mais qualificada, porque quando o crime era ‘criminalidade
empresarial’, o empresário não tinha o estímulo de colaborar, porque, em geral, o
empresário é pragmático e resolver só a situação dele pessoal não era o bastante,
porque o que ele queria era salvar seu negócio.
Com a lei anticorrupção e com a mudança nas formas de acordo de leniência na lei
do CADE, foi costurada uma ‘ponta solta’.
Então, a primeira ponta que foi costurada foi ter uma disciplina legal mais clara
sobre a colaboração. Isso, a lei das organizações criminosas de 2013, trouxe.
A outra ‘ponta solta’ é que a colaboração penal, sem a leniência - no caso de
improbidade para a criminalidade organizada, como instrumento de combate à
corrupção -, se mostra insatisfatória. Tanto que, qual foi o exemplo que eu acabei de
dar de colaboração do passado? A que era feita para o crime de tráfico.
Então onde é que você conseguia colaboração? Muitas vezes nessa criminalidade
tradicional. Mas, no combate à corrupção, a gente não usava. E não usava por quê?
Porque era uma criminalidade no Estado, que muito frequentemente envolvia
empresas.
Aí, a lei anticorrupção foi o segundo fator.
A terceira coisa que eu acho que foi fundamental, do ponto de vista de mudança
legislativa, e as três coisas acontecem em 2013 e acontecem, não por acaso, pois
havia uma pressão sobre algumas dessas mudanças de legislações.
Havia um acúmulo de discussões sobre isso desde os anos 90.
O Brasil integrava o GAFI – GRUPO DE AÇÃO FINANCEIRA CONTRA A
LAVAGEM DE DINHEIRO, que é um órgão internacional, que nasce do
compromisso internacional de combate à criminalidade organizada, à corrupção e à
lavagem de dinheiro.
Isso fez gerar a criação do COAF, que está famoso nesses últimos dias.
Então, criou-se uma legislação sobre a lavagem de dinheiro no Brasil.

28
A lei citada dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica. Já o CADE – Conselho
Administrativo de Defesa Econômica é uma entidade judicante, com jurisdição em todo o território nacional e se
constitui em autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal. A lei também
descreve as competências deste órgão.

36
Logo em seguida, foi criada a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e
Lavagem de Dinheiro, que é a ENCCLA.
A ENCCLA começa a discutir como lidar com isso e já vinha sugerindo mudanças
na lei, no acordo de leniência, entre outras.
Na verdade, uma série dessas mudanças legislativas já vinha sendo proposta desde
fins dos anos 90, e encontravam-se nas metas da Estratégia Nacional, mas, sem
muito sucesso.
No meio de 2013, essa discussão ganha às ruas, porque tem aquela série de
manifestações e no clamor que aquelas manifestações geram, entre as muitas pautas
que se cruzam - porque aquilo foi um emaranhado de reivindicações -, estava uma
pauta de combate à corrupção e a parte da resposta do governo brasileiro e do
Congresso Nacional que foi - essa é a minha leitura, como membro do Ministério
Público assistindo a tudo isso, quase de camarote -, é que o Estado brasileiro foi
pego meio de surpresa com a dimensão daquelas manifestações.
Aí, o governo reagiu do jeito que dava. Fazia parte do pacote de medidas contra a
corrupção que a presidente Dilma Rousseff apresentou - meio que para aplacar a
pressão daquelas manifestações -, a mudança da lei de lavagem de dinheiro, que
vinha sendo proposta pela ENCCLA havia anos e “não passava”, a lei anticorrupção
e a lei de organização criminosa.
É por isso que as três foram aprovadas na mesma época. As três estavam dentro do
pacote de 10 medidas que o Congresso aprovou. E o Congresso pressionado pelas
ruas, votou.
Talvez o Congresso não tenha pensado muito sobre o que estava votando, porque
boa parte desses congressistas veio a serem clientes da persecução penal, quando
antes eles não eram (risos). Acho que eles não entenderam muito o que é que
estavam votando, mas a terceira lei que eles aprovaram nesse mesmo pacote, foi a
mudança da Lei de Lavagem de dinheiro, que era outro nó no combate à corrupção.
A primeira Lei de lavagem de dinheiro... Na verdade, é a mesma Lei de 1998, mas
com a redação alterada, profundamente, depois. Porque ela só incriminava, só
considerava como crime de lavagem de dinheiro, quando o dinheiro ilícito era
produto de um rol de crimes descritos taxativamente na lei. E aí, em 2013 a Lei de
Lavagem de Dinheiro (que altera a redação anterior) também é modificada para sair
desse modelo de rol taxativo e fechado, passando a ter um rol aberto. E amplia os
crimes em que você tem o combate à Lavagem de Dinheiro e que têm penas altas.
Então você tem uma combinação de fatores: a mudança da Lei de Lavagem de
Dinheiro, a mudança da Lei Anticorrupção, que traz o acordo de leniência e a
aprovação da Lei de Organização Criminosa, que disciplina a Colaboração
Premiada de forma mais satisfatória.
Junta esses três fatores que vem do Congresso, com uma mudança de estrutura que
vem de dentro do próprio Ministério Público, com a restruturação da cooperação
internacional e a chegada do Rodrigo Janot Monteiro de Barros à Procuradoria-Geral
da República e que resulta, em 2014, na Operação Lava-Jato.
Então, assim, essas mudanças todas, que resultaram na reestruturação, de forma mais
profissional, da cooperação internacional29; a combinação de cooperação
internacional, a leniência e um risco maior decorrente da possibilidade de você poder
incluir também condenações por crimes de lavagem de dinheiro, agora com penas
altas...
Então, assim, o risco de ‘pegar cadeia’ porque as penas são mais altas, a cooperação
internacional, a leniência e a Colaboração Premiada, juntas, permitem que você
tenha um combate mais eficiente da corrupção”.

29
A última reestruturação da Procuradoria Geral do Ministério Público aconteceu em 2018, quando foram criados três
núcleos: o de Assessoria de Relações Internacionais, o de Assessoria Administrativa e o de Assessoria Jurídica,
conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/sci/noticias/noticias-1-1/sci-conta-com-nova-estrutura-
organizacional.

37
(MPF4)

Segundo este entrevistado, as atividades da Operação Lava-Jato de Curitiba tornou-se uma


metodologia, na medida em que passou a ser repetida pelos atores responsáveis por outras
investigações deflagradas nos demais Estados brasileiros. Também de acordo com este entrevistado,
os fatos que justificaram o surgimento dessas operações e a criação dos acordos de Colaboração
Premiada conjugam reivindicações populares com pautas políticas realizadas pelas diversas
instituições brasileiras. Em outras palavras, para este entrevistado as manifestações populares
incentivaram o surgimento tanto da Colaboração Premiada - regulada que foi pela Lei nº 12.850, de
2013 -, quanto das Operações Lava-Jato e congêneres, institucionalizadas a partir de 2014.
A categoria “ponta solta” é empregada pelo entrevistado, representando a ideia de que,
embora houvesse alguma norma relativa ao combate à criminalidade econômica – também conhecida
como macrocriminalidade e sobre a qual voltarei a mencionar mais adiante -, havia algumas
providências necessárias a serem implantadas neste sentido.
Assim, de acordo com esta declaração, as manifestações populares que aconteceram em de
junho de 2013 no país e fora dele, foram o estopim para a criação das legislações relativas ao
combate dos crimes praticados por organizações criminosas (OCRIM), de lavagem de dinheiro e de
corrupção. Essas manifestações ficaram conhecidas como Manifestações dos 20
centavos, Manifestações de Junho, ou Jornadas de Junho30, inicialmente realizadas para contestar os
aumentos nas tarifas de transporte público aplicados31, principalmente, nas principais capitais do
país32. Inicialmente restrito a pouco milhares de participantes, os atos pela redução das passagens nos
transportes públicos ganharam grande apoio popular em meados de junho, especialmente, após a
forte repressão policial contra os manifestantes, cujo ápice se deu no protesto do dia 13 de junho,
em São Paulo33.

30
Conforme divulgado em https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,passeata-dos-cem-mil-caras-pintadas-e-
movimento-passe-livre-debatem-jornadas-de-junho,1107798; https://www.brasildefato.com.br/node/27279/;
https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/o-que-restou-das-jornadas-de-junho-3taxtogmq212tube76k7o7wb2/ e
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/201cforam-as-manifestacoes-de-junho-que-nos-deram-coragem201d-
7601.html.
31
Conforme divulgado em e https://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-82/e-o-gigante-segue-em-frente/
http://g1.globo.com/brasil/linha-tempo-manifestacoes-2013/platb/.
32
Devido à extensão da participação popular, essas manifestações foram consideradas como as maiores mobilizações no
país, desde as manifestações pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, conforme
divulgado em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1296834-protesto-em-sao-paulo-e-o-maior-desde-
manifestacao-contra-collor.shtml;
https://web.archive.org/web/20131109224637/http://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2013/06/18/interna_inte
rnacional,407543/brasil-acorda-com-protestos-em-todo-o-pais.shtml# e
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/06/130617_manifestacao_sp_lk.shtml..
33
De acordo com os noticiários, a Polícia Militar de São Paulo reagiu à manifestação popular, deixando mais de 150
feridos, conforme divulgado em https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2013/06/pm-de-sao-paulo-realiza-
prisoes-em-massa-e-se-recusa-a-dar-informacoes-2575.html. Para alguns analistas, essa reação despertou a

38
Quatro dias depois dessa repressão, os meios de comunicação informavam que um grande
número de pessoas se engajou nessa manifestação, que, segundo a mídia, seguia o mesmo processo
de "propagação viral" por meio das redes sociais via Internet, empregada em protestos em outros
países, como a Primavera Árabe, no mundo árabe, a Occupy Wall St, nos Estados Unidos, e Los
Indignados, na Espanha34, que se estendeu a diversas cidades brasileiras e até do exterior35. Em seu
auge, as manifestações reuniram milhões de brasileiros protestando não apenas pela redução das
tarifas e a violência policial, mas também por uma grande variedade de temas, como os gastos
públicos em grandes eventos esportivos internacionais, a má qualidade dos serviços públicos e a
indignação com a corrupção política em geral36.
Também de acordo com o entrevistado, em resposta a este movimento, o governo
brasileiro anunciou várias medidas para tentar atender às reivindicações dos manifestantes e
o Congresso Nacional votou uma série de legislações (a chamada "agenda positiva"), como também
divulgado pela mídia brasileira37.
Além das medidas indicadas pelo entrevistado, a corrupção passou a ser considerada como
um crime hediondo (aumentando assim a pena e o regime de seu cumprimento); a proposta de
emenda à Constituição nº 37 (PEC Nº 37), que proibia as investigações realizadas pelo Ministério
Público foi arquivada, assim como foi proibido o voto secreto em votações para cassar o mandato de
legisladores acusados de irregularidades. Por fim, os preços das tarifas nos transportes públicos
retornaram ao que eram praticados pelas empresas, antes dessas manifestações38.
Kant de Lima e Pires (2014) analisaram essas manifestações no contexto de um país que
aparentava, na época, prosperidade econômica e social, pois era considerado uma potencialidade que

solidariedade de pessoas que, até então, não tinham se envolvido com o movimento, ampliando a convocatória das
manifestações seguintes e, ao mesmo tempo, tornando-as mais diversificadas, sob o ponto de vista ideológico, conforme
divulgado em https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/06/17/O-que-foram-afinal-as-Jornadas-de-Junho-de-2013.-
E-no-que-elas-deram.
34
Conforme divulgado em https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/06/130623_protestos_pressreview_bg.shtml.
35
Conforme divulgado em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1294919-maioria-da-populacao-e-a-favor-
dos-protestos-mostra-datafolha.shtml; https://www.estadao.com.br/infograficos/cidades,em-uma-semana-quatro-
protestos-contra-aumento-da-tarifa-em-sao-paulo,196224 e https://operamundi.uol.com.br/noticia/29445/franca-
alemanha-portugal-e-canada-terao-protestos-em-solidariedade-aos-manifestantes-de-sp.
36
Conforme divulgado em http://noticias.terra.com.br/brasil/governo-brasileiro-e-pressionado-por-historicos-
protestos,f614e49fccf5f310VgnCLD2000000ec6eb0aRCRD.html.
37
Conforme divulgado em http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/08/como-ficou-agenda-positiva.html;
https://www1.folha.uol.com.br/paywall/signup.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/142365-presidente-da-
camara-sugere-agenda-positiva-para-fechar-ano.shtml e https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,dilma-prepara-
vetos-a-agenda-positiva-dos-parlamentares-imp-,1053793.
38
Conforme divulgado em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/19/apos-protestos-e-confrontos-
prefeito-do-rio-suspende-aumento-na-tarifa-de-onibus.htm; https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2013/06/19/sao-paulo-reduz-tarifa-apos-pressao-popular.htm; http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/mg-
anuncia-reducao-da-tarifa-do-transporte-metropolitano-na-grande-
bh,36524201aea5f310VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html e https://oglobo.globo.com/brasil/rio-sp-anunciam-
reducao-nas-tarifas-dos-transportes-8745978.

39
atraía investimentos significativos de capital estrangeiro e nacional, além de ter conseguido combinar
programas de distribuição de renda para as camadas populares e políticas macroeconômicas de
incentivo ao consumo interno, que ampliaram e diversificaram as chamadas classes médias e de
inclusão social. As perguntas que os autores fazem é, justamente, como compreender, então, diante
deste contexto, “a emergência de manifestações multitudinárias e radicalizadas, como as que
puderam ser vistas desde junho de 2013? Por outro lado, como entender as reações institucionais,
sobretudo das forças policiais, fazendo recrudescer o fenômeno da violência estatal?”.
Segundo estes autores, não houve por parte das instituições coercitivas (polícia, justiça etc.),
responsáveis pelos mecanismos tradicionais de administração de conflitos sociais e tão habituadas a
naturalizar e explicitar a desigualdade jurídica -, representaram as manifestações sociais de
descontentamento generalizado com a quantidade e qualidade dos direitos civis, políticos e sociais
que lhes atingiam, como “desordens públicas, ameaçadoras, portanto, da estabilidade do regime de
governo em suas diferentes dimensões: federal, estadual e municipal: Resultado? Repressão nelas!”
(KANT DE LIMA e PIRES, 2014, p. 38).
O papel da grande mídia nestes eventos, assim como em diversas atividades das Operações
Lava-Jato - que vem demonstrando a força das empresas tradicionais de comunicação brasileiras na
proliferação de representações que acentuam, ao invés de denunciarem, as mazelas da cidadania
brasileira -, durante as manifestações de 2013, ainda que as reivindicações da população versassem
sobre reclamações absolutamente legítimas em um regime republicano e democrático, foram
desfocadas para o que tais empresas divulgavam como sendo atos de “vandalismos”.
Afinal, como os autores citados lembram, a mídia tradicional, pressionada pela concorrência
do mercado, em tempos de globalização, cria um novo ator a ser rotulado: o chamado “vândalo”,
afirmando, assim, a harmonia hierárquica e complementar dos desigualados juridicamente como o
princípio classificatório dos protestos, retirando-se a legitimidade de seus eventuais excessos e
múltiplas apropriações políticas, bastante previsíveis, aliás, na conjuntura de espontaneidade em que
ocorriam. O resultado é conhecido. Diante da dificuldade de se separar o vândalo do manifestante,
ambos são reprimidos de maneira análoga” (KANT DE LIMA e PIRES, idem).
O papel dessas agências de comunicação nas Operações Lava-Jato, por sua vez, vem
acentuando a característica inquisitorial do processo penal brasileiro, quando divulgam atividades das
instituições judiciais praticadas nestas investigações, como busca e apreensões, prisões e delações,
sem o menor cuidado com a imagem e a dignidade das pessoas expostas, principalmente quando a
culpa do investigado ainda não está formada, como será visto.
Consultando os sites oficiais das instituições citadas pelo entrevistado, foi possível levantar
que o GAFI - Financial Action Task Force on Money Laudering, foi criado em 1989, durante uma

40
reunião, em Paris, dos países que integram o Grupo dos 7 (G-7), realizada no âmbito da Organização
39
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) . O GAFI constitui um foro de
discussões internacionais relativas ao combate à lavagem de dinheiro40 e o financiamento do
terrorismo.
Além dessas reuniões, periodicamente, o GAFI realiza avaliações dos países membros,
acerca da implantação das medidas de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e o financiamento
do terrorismo. Suas ações são desenvolvidas com a colaboração de diversos organismos e
organizações internacionais. Em 2000, o Brasil foi convidado a participar como membro do GAFI.
Contudo, antes disso, o país já frequentava as reuniões do grupo de técnicos que lidavam com esses
temas, desde 1996.
Ainda de acordo com o autor, entre nós, a criação da legislação relativa ao combate aos
crimes de lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, em 1998, não resultou de uma
avaliação adequada acerca da ameaça que esta modalidade de crime representava para o país e nem
quanto à eficácia do próprio sistema jurídico para o enfrentamento do crime organizado.
Corrêa (2013, p. 176) afirma que havia uma pressão internacional, por intermédio da
Organização dos Estados Americanos - OEA, para que os países membros daquela organização
criassem legislação contra a lavagem de dinheiro. Tal pressão era exercida por parte dessa
organização internacional, por meio da qual o GAFI procurava avançar seus interesses41. Como este
grupo não era mencionado pela organização internacional, dava a impressão de que havia respeito às
soberanias dos países latino-americanos, ou seja, criava-se a ilusão de que esses países tinham
autonomia e liberdade sobre a legislação a ser adotada, conforme as experiências locais de cada um.
No entanto, o objetivo do GAFI era exatamente o de obter o compromisso político dos países latino-
americanos com a aplicação de medidas preconizadas nas Recomendações que este grupo promovia,
o que foi, de certo modo, alcançado na Cúpula de Miami, encontro realizado em 1995.

39
O GAFI conta com 31 países, incluindo os do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino
Unido) alguns territórios da Europa, assim como duas organizações regionais (a Comissão Europeia e o Conselho de
Cooperação do Golfo). Em 1990, esse Grupo elaborou 40 recomendações para os Estados-membros implementarem, no
âmbito do combate à lavagem de dinheiro, e em 2001, após o atentado de 11 de setembro nos EUA, elaborou ainda
outras 9 recomendações especiais contra o financiamento ao terrorismo. Conforme divulgado em www.fazenda.gov.br.
e http://funag.gov.br/loja/download/1042-Grupo_de_Acao_Financeira_Internacional_GAFI_O.pdf.
40
Lavar dinheiro significa simular uma operação financeira, seja para esconder o lucro proveniente das infrações penais,
seja para reintegrar o dinheiro, como forma de justificar valores obtidos por meios ilícitos ou não declarados ao fisco,
dando-lhe aparência lícita (PITOMBO, 2003, p. 30). A lavagem de dinheiro está prevista na Lei nº 12.683, de 2012.
41
O autor enfatiza que não havia indícios de pressão política sobre o Brasil para adotar a Lei nº 9.613, de 1998, nem
registro de gestão diplomática nessa linha. Tal pressão, segundo ele, era sutil (“peer pressure”) e se originava do
contato entre as autoridades e técnicos brasileiros com outras autoridades e especialistas, nos foros e seminários da
OEA e da ONU, que gerava certo constrangimento pessoal “pelo fato de o país ainda não ter dado os passos necessários
à adoção do que se prefigurava como nova e eficaz arma jurídica, tanto no sentido da prevenção quanto no da repressão,
para enfrentar realidade cada dia mais desafiante: o crime organizado transnacional” (CORRÊA, idem, p. 181).

41
Entre os países latino-americanos, o Brasil destacava-se por participar ativamente dos foros
regionais que tratavam da questão, mostrando-se decidido a pôr em prática os compromissos
assumidos internacionalmente, tanto no âmbito da ONU, com a assinatura da Convenção de Viena42,
quanto da OEA.
Ainda de acordo com o referido autor, a adoção de leis e instituições voltadas ao combate à
lavagem de dinheiro por parte do Brasil foi motivada pela economia e pela política criminal, pois,
“No contexto do Plano Real, essa iniciativa somou-se ao conjunto de medidas destinadas a fortalecer
o mercado financeiro, em razão do objetivo maior de integração da economia ao mercado
globalizado”. Vale dizer, tratava-se, obviamente, no interesse do país em enfatizar a reputação e a
integridade do setor financeiro, em razão da adoção de normas, bem como a criação ou
fortalecimento de instituições voltadas à regulação e à supervisão dos mercados. Além disso, como
lembra o autor consultado, “no âmbito do Ministério da Justiça, reconhecia-se que o arcabouço
jurídico nacional voltado ao enfrentamento do crime organizado estava defasado. A adoção de
medidas antilavagem era considerada parte de política modernizadora da capacidade do Estado de
combater as novas modalidades de crime, inclusive em seus aspectos transnacionais” (CORRÊA,
ibidem)43.
Esses encontros internacionais que tratavam de temas criminais e, mais especificamente,
sobre a lavagem de dinheiro, salientavam o quão atrasado estava o país em relação aos que já
dispunham de legislação em vigor. Também serviram para socializar os agentes públicos brasileiros
às modernas políticas públicas nessa área. A criminalização da lavagem de dinheiro integrava o rol
de políticas que faziam parte do suposto “standard of civilisation” e ao adotar a legislação, o Brasil
tornou-se, juntamente com outros países em desenvolvimento, “parte do mecanismo central que
gerenciava o regime global antilavagem” (CORRÊA, idem, p. 221).
Assim, a legislação editada pelo país, em 1998, adquiriu seu efeito simbólico no
enfrentamento do crime, pois, como a lavagem de ativos é considerada um “meta-crime” (CARLI,
2008, p. 168) por se conectar à realização de outros crimes antecedentes, a criação de um mecanismo

42
Também denominada ‘Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas’, a
Convenção de Viena foi realizada em 20 de dezembro de 1988 e ratificada por nosso país pelo Decreto nº154, de 26 de
junho de 1991. Segundo essa Convenção, a lavagem de dinheiro constitui uma das principais atividades praticadas pelas
organizações criminosas (BRASIL, 1988).
43
Corrêa (idem, p. 223), denomina de realismo e senso de oportunidade, a posição que o Brasil adotou em relação ao
regime global antilavagem, já que os critérios que orientaram as ações do governo brasileiro se basearam em
proposições econômicas e na necessidade de modernizar o aparato estatal de combate ao crime organizado. Esses dois
aspectos reforçaram as credenciais do país para participar do mercado globalizado, regulado por certas regras comuns.
Além disso, o GAFI era reconhecido enquanto órgão central do regime global antilavagem, que ditava suas regras e
monitorava seu cumprimento. Por fim, havia consenso entre os agentes públicos brasileiros de que as vantagens
auferidas pela implantação de sistema antilavagem ultrapassavam os custos, que, inclusive, não eram excessivos.

42
legal para o seu enfrentamento constituiu, para o entrevistado e parte dos juristas brasileiros, um
modo de combater uma grande variedade de crimes.
Em 2012, a legislação criada em 1998 é reformada pela Lei nº 12.683, cujas novas regras
estenderam os poderes de investigação e persecução criminais das autoridades (incluindo o
Ministério Público). Para a doutrina jurídica, isso facilitaria, inclusive, a cooperação internacional
(CORRÊA, idem, pp, 230-231). Crimes de natureza tributária, entre os quais o de contrabando, foram
incluídos no rol de crimes antecedentes ao de lavagem de dinheiro, contribuindo para a integração
entre polícias, aduanas e autoridades de fazenda. Assim, a Lei nº 12.683, de 2012 passou a incidir
sobre todas as infrações penais, além de ampliar o rol de profissionais e agentes econômicos
obrigados a tomar medidas preventivas. Ainda segundo o autor citado, no campo administrativo, a lei
reforçou o poder das autoridades de regulação e supervisão, tornando mais rigorosa a fiscalização,
além de fixar sanções mais rigorosas também. Por fim, a nova lei conferiu ao Judiciário o poder de
decretar a alienação antecipada de bens de origem criminosa e de autorizar a delação premiada,
mesmo após condenação (Corrêa, ibidem).
Ainda de acordo com Corrêa (ibidem) as críticas enfrentadas pelo país quanto à falta de
dispositivos legais para o combate ao terrorismo e seu financiamento, apesar de o repúdio ao
terrorismo estar consagrado na Constituição Federal de 1988, aconteceu porque a Lei nº 12.683, de
2012, o aboliu do o rol de crimes antecedentes ao delito de lavagem de dinheiro, reduzindo, assim,
dispositivos legislativos referentes a esses delitos. Por outro lado, a Lei de Segurança Nacional (Lei
nº 7.170, de 1883) menciona atos terroristas, porém não há a tipificação de terrorismo e de
financiamento do terrorismo. Segundo o autor, há ainda iniciativas legislativas em curso e que
poderiam preencher essa lacuna, como o anteprojeto de lei sobre a “Proteção ao Estado Democrático
de Direito”44, ainda em discussão, e o projeto de revisão do Código Penal brasileiro 45, a cargo de
comissão de juristas, em fase de apreciação pelo Legislativo.
O autor citado também lembra que o GAFI surgiu num contexto pós-Guerra Fria, de
hegemonia norte-americana e de combate ao tráfico internacional de drogas, até tornar-se o
organismo gestor do regime global de enfrentamento da lavagem de dinheiro, constituindo-se

44
Trata-se do Projeto de Lei nº 2.462, de 1991, de autoria do Deputado Federal Hélio Bicudo, cuja proposta é incluir no
Código Penal a previsão de diversos crimes contra o Estado Democrático de Direito, entre eles, o de terrorismo e
financiamento do terrorismo (artigo 371) e que se encontra, desde julho de 2008, naquela casa legislativa aguardando a
criação de uma Comissão Especial de Direitos Humanos e Minorias, conforme divulgado em
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=18156.
45
O Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012, de autoria do Senador José Sarney, que versa sobre a reforma do Código
Penal, prevê nos artigos 239 a 241, a definição dos crimes de terrorismo, financiamento ao terrorismo e favorecimento
pessoal no terrorismo, respectivamente. Atualmente, o projeto encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania daquela casa legislativa, conforme divulgado em https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-
/materia/106404.

43
exemplo de organização internacional que é, ao mesmo tempo, produto desse período de acelerada
globalização e componente de sua governança. No contexto pós-11 de Setembro, adicionou às suas
atribuições a dimensão do combate ao financiamento do terrorismo. Para analisar o GAFI e entender
esse regime global é preciso ter como ponto de partida o Direito, por meio da análise da evolução do
arcabouço jurídico internacional relacionado com lavagem de dinheiro e financiamento do
terrorismo. Em seguida, é preciso entender as origens, características e evolução do GAFI,
organização responsável, de maneira sistemática e eficiente, pela aplicação das normas
internacionais. O Brasil inseriu-se no regime global, ao adotar essas normas e tornar-se membro do
GAFI.
Outra instituição citada pelo entrevistado, o COAF- Conselho de Controle de Atividades
Financeiras é um órgão vinculado ao Ministério da Fazenda e tem como missão produzir inteligência
financeira e promover a proteção dos setores econômicos contra a lavagem de dinheiro e o
financiamento do terrorismo. De acordo com o site oficial do órgão, o COAF recebe, examina e
identifica ocorrências suspeitas de atividade ilícita e comunica às autoridades competentes para
instauração de procedimentos de investigação. Além disso, coordena a troca de informações para
viabilizar ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e
valores. E mais, o Conselho aplica penas administrativas nos setores econômicos para os quais não
exista órgão regulador ou fiscalizador próprio46.
Além do COAF, a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro –
ENCCLA, também citada pelo entrevistado, foi criada em 2003, pelo Ministério da Justiça, como
uma rede de articulação entre diversas instituições e órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário das esferas federal e estadual e, em alguns casos, municipal, bem como do Ministério
Público de diferentes esferas, cujo objetivo é formular políticas públicas voltadas, inicialmente, ao
combate aos crimes de lavagem de dinheiro e mais tarde teve ampliada sua atuação também para o
enfrentamento do crime organizado no país47. Em outra parte deste texto descrevo o papel
desenvolvido por esta rede nas ações que se referem tanto às Operações Lava-Jato quanto à
implantação e operacionalização dos acordos de Colaboração Premiada.
O entrevistado também afirmou que o combate à corrupção se tornou mais eficiente a partir
de um conjunto de medidas, dentre elas, o risco de ‘pegar cadeia’ – ou seja, ser preso - porque as
penas são mais altas; a cooperação internacional, a leniência e a Colaboração Premiada. Neste rol, o
entrevistado esqueceu-se de mencionar a ampliação do poder do Ministério Público que, tem seu
marco fixado a partir de 1988, com a Constituição da República e, especialmente nas últimas

46
Ver em http://www.fazenda.gov.br/orgaos/coaf.
47
Conforme disponível em http://enccla.camara.leg.br/quem-somos/historico e http://enccla.camara.leg.br/quem-somos.

44
décadas, a partir do conjunto de normativas emitidas pela própria instituição, autorizando e
disciplinando as orientações para o órgão realizar a investigação criminal, inclusive, sem a
participação da polícia, que até então era quem detinha, exclusivamente, tal atribuição, assim como a
elaboração dos acordos de Colaboração Premiada, como será visto em seguida.
Denominada, inclusive por historiadores, como Pedro Henrique Campos (2014), como
sendo a maior investigação policial vista no país, a Operação Lava-Jato, inicialmente, foi instaurada
pela polícia federal48 para investigar os esquemas de corrupção49, de desvio e lavagem de dinheiro50
praticados contra a PETROBRAS - Petróleo Brasileiro S.A.51, empresa estatal de economia mista
(sociedade anônima de capital aberto), cujo maior acionista é o governo brasileiro52.
O envolvimento de empresas e políticos em delitos contra os cofres públicos é assunto
antigo no país53 e a pesquisa do historiador acima citado - realizada durante seu doutorado na

48
De acordo com o texto constitucional (artigo 144), a polícia federal é considerada órgão permanente, organizado e
mantido pela União, com o fim de apurar as infrações penais contra a ordem política e social; as praticadas em
detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, ou cuja prática
tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme. Também possui competência para prevenir
e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins; o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação
fazendária e de outros órgãos públicos; exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras e exercer,
com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União (BRASIL, 2017, p. 83).
49
O crime de corrupção acima referido está previsto na lei penal, no título relativo aos crimes contra a administração
pública, da seguinte forma: CÓDIGO PENAL (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940) – Corrupção
passiva. Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou
antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena - reclusão, de 2
(dois) a 12 (doze) anos, e multa. § 1º - A pena é aumentada de um terço, se, em consequência da vantagem ou promessa,
o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional. […]
(BRASIL, 2017, p. 303).
50
Lei Nº 9.613, de 3 de março de 1998 – Artigo 1º: Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição,
movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.
Pena: reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, e multa. § 1 o Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a
utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal: I - os converte em ativos lícitos; II - os adquire,
recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere; III - importa ou
exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros. § 2o Incorre, ainda, na mesma pena quem: I - utiliza, na
atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal; II - participa de grupo,
associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes
previstos nesta Lei. A lei referida prevê a Colaboração Premiada no § 5o desse artigo, ao estabelecer que “A pena
poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de
aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar
espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à
identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”
(BRASIL, 1998a).
51
A denúncia acima referida foi oferecida pelo Ministério Público Federal do Paraná contra ex-presidente da República e
está vinculada aos processos n.ºs 500661729.2016.4.04.700 e 5035204-61.2016.4.04.700, ambos ajuizados
junto à 13ª Vara Federal de Curitiba e que ainda estão em curso. Sua íntegra está disponível em
https://pt.scribd.com/document/324025649/Denuncia-contra-Lula#from_embed, acesso em 23 de dezembro de 2016.
52
Criada pela Lei nº 2.004, de 1953, a PETROBRÁS atua de forma integrada e especializada na exploração, produção,
refino, comercialização, transporte, e distribuição de petróleo e seus derivados, gás natural, energia elétrica, gás-
química e biocombustíveis. A Lei de 1953 foi revogada pela de n° 9.478/1997 e, posteriormente, modificada pela Lei n°
12.351, de dezembro de 2010.
53
Alguns historiadores afirmam que na ditadura a corrupção teve a função de garantir a dissipação da vida pública,
enquanto na democracia – e diante da República – seu efeito é outro: o de servir para dissolver os princípios políticos
que sustentam as condições para o exercício da cidadania (STARLING, 2014).

45
Universidade Federal Fluminense/UFF e que deu origem ao livro Estranhas Catedrais (CAMPOS,
2014) - revela os laços dessas empresas com a ditadura militar (examinando o período de 1964 a
1988). Seu foco é o crescimento e consolidação das principais empresas do setor de construção
pesada no Brasil, numa articulação que, segundo o autor, propiciou o desenvolvimento expressivo, a
modernização capitalista e a internacionalização das "gigantes do setor". Todavia, naquele período,
tratava-se de um sistema menos complexo, uma vez que não existia funcionando no país o conjunto
de instituições públicas inauguradas e articuladas pela Constituição de 1988. Por essa razão, a
atenção dos donos e dirigentes dessas empresas estava quase completamente voltada para o Poder
Executivo, conforme informou o historiador, em entrevista concedida a uma mídia nacional
(SCHREIBER, 2016).
Neste sentido, Campos (2014), afirma que a Operação Lava-Jato se destaca em razão da
escala elevada, dos altos valores relacionados a desvios praticados contra a PETROBRAS. Como
lembra o referido historiador, embora a corrupção seja vista como exceção, na história do capitalismo
brasileiro, “a apropriação do público pelo privado tem sido uma regra”. Nessa entrevista, o
historiador informou que a corrupção constitui uma prática bastante disseminada no âmbito da
construção civil no país. Segundo ele:
“As empresas calculam a corrupção para obterem o lucro. Assim, se eu tenho que
lucrar com uma obra, vou usar todos os métodos disponíveis. Um bom empreiteiro é
o que faz a obra e a faz lucrativa. A lei de licitações, regida pelo menor preço, acaba
criando esse tipo de artifício. A empresa chega com um preço muito baixo, então não
cumpre o contrato, ou acaba indo por meios ilícitos para tornar a obra mais lucrativa.
As empresas que mais cresceram são as que mais souberam se corromper.”
(PRADO, 2014).

Vale dizer, a corrupção que sempre existiu entre nós, mas agora ganha visibilidade, talvez
porque a mídia e a opinião pública tenham tomado parte na divulgação do que o campo jurídico
brasileiro passou a denominar de corrupção sistêmica e estatal. Neste contexto, surge o instituto da
Colaboração Premiada, cuja importância no sistema processual penal brasileiro é associada -
inclusive, por diversos atores do campo jurídico nacional -, à possibilidade de tal técnica de
investigação revelar atividades criminosas praticadas com certa regularidade e temporalidade por
integrantes de grupos criminosos cuja característica principal é o alto grau de envolvimento com as
burocracias e a estrutura do Estado brasileiro. Esses atores, em geral, representam uma parcela da
sociedade brasileira que detém grande poder financeiro e político, sendo tais atividades criminosas
denominadas de “crimes corporativos”, macrocriminalidade, ou “crimes de colarinho branco”54, uma

54
Dentro da criminologia, a definição desse termo é atribuída ao sociólogo Edwin Sutherland, que o cunhou em 1939,
durante um discurso na American Sociological Association, como "um crime cometido por uma pessoa respeitável e de
alta posição (status) social, no curso de sua ocupação", conforme Shapiro (1990, p. 346).

46
alusão à parte das vestimentas que os distinguem da criminalidade em geral e se refere ao uso de
terno e gravata como hábito desses atores.
Em outras palavras, a engrenagem que envolve a prática desses ilícitos é considerada tão
sofisticada, que não seria desvendada sem a colaboração de alguém que dela participasse: um
“insider”. Esta técnica se tornou o principal instrumento de investigação das atividades estatais que
se incluem na denominada Operação Lava-Jato, considerada, na atualidade, como a principal
investigação criminal relacionada a estas infrações.
Da mesma forma que os escândalos de corrupção envolvendo atores sociais e políticos com
alto poder aquisitivo (financeiro) ou grande influência política no país, as investigações criminais de
grande vulto, tornadas públicas pelos principais meios de comunicação, também não são recentes.
Antes da Operação Lava-Jato outras investigações criminais ganharam a atenção da opinião pública,
como aconteceu, por exemplo, com a Operação Santhiaghara, desencadeada no início de 2004 e que
apurou o envolvimento de diversos representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em
crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa, além da participação também de
outras personalidades do cenário empresarial brasileiro55, com grande repercussão, inclusive fora do
país56.
O certo é que a modalidade de corrupção que atinge o funcionamento do Estado brasileiro e
passou a ser denominada como corrupção sistêmica, tornou-se especial foco de atenção das agências
do sistema criminal brasileiro especialmente nas últimas décadas, ao ponto de ser criado pelo
Ministério Público Federal, inclusive, o site denominado Operação Lava Jato (BRASIL, 201757),
bem como o site da Polícia Federal (BRASIL, 2016), com a mesma denominação Operação Lava
Jato58. Ambos contêm informações robustas sobre as investigações levadas a cabo por essas
instituições.

55
Em 7 de junho de 2011, a Operação Santiagraha foi anulada pelo Superior Tribunal de Justiça, acatando parecer
do Ministério Público Federal, que apontou ilegalidades nesta investigação, conforme divulgado em
https://www.conjur.com.br/2011-jun-07/stj-anula-operacao-satiagraha-condenacao-daniel-dantas.
56
Ver em DUFFY,Gary. Brazil's judges in corruption row A major row has broken out among Brazil's judiciary over a
corruption probe that has seen a businessman arrested and freed twice in two days.. 12 de julho de 2008 16:59 UK.
Disponível em http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7503600.stm
57
O site foi lançado pelo Ministério Público Federal em setembro de 2017. Conforme divulgado pelo órgão, “No
endereço www.lavajato.mpf.mp.br , é possível entender o caso e conhecer o histórico das investigações na primeira
instância, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), esses dois últimos responsáveis
por julgar as acusações contra pessoas com prerrogativa de foro. A página reúne informações detalhadas sobre a
operação, como estatísticas, denúncias e decisões da Justiça. Nela, é possível ter acesso a dados relativos a atuação do
grupo de trabalho na PGR e das forças-tarefa do Paraná, Rio de Janeiro e Brasília.” Disponível em
http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-lanca-novo-site-com-dados-da-operacao-lava-jato.
58
Disponível em http://www.pf.gov.br/imprensa/lava-jato/fases-da-operacao-lava-jato-1.

47
Segundo o Ministério Público Federal, o início da Operação Lava-Jato está relacionado à
delação premiada que o doleiro59 Alberto Youssef realizou em 200360, no âmbito da Operação
Banestado. Isso ocorreu onze anos antes de ser instaurada a primeira investigação criminal com a
denominação Lava-Jato e dez anos antes da criação da lei que aperfeiçoou as regras sobre os crimes
de organização criminosa e disciplinou os procedimentos de investigação, dentre eles, a Colaboração
Premiada, a Lei nº 12.850, de 2013. O acordo de delação premiada deste doleiro deu origem a essa
Operação e também fixou a competência da 13ª Vara Criminal de Curitiba, na época em que sua
titularidade era exercida pelo então juiz Sérgio Moro. Essa investigação tornou aquele juízo
“prevento” para os demais crimes que ensejaram a instauração de novas etapas dessa operação, ou
seja, aquelas referentes ao material de prova que foi sendo levantado nas diversas fases dessa
investigação. A prevenção de competência do juízo é um instituto processual que define a
competência para o processo e julgamento de crimes pelo juízo que primeiro tem conhecimento
deles, ainda que outras normas também regulem essa divisão de tarefas entre os integrantes do Poder
Judiciário61.
De acordo com o site consultado, o doleiro é indicado como “braço direito” - uma alusão à
importância de seu papel -, do ex-deputado de Londrina, José Janene62 (do Partido Progressista - PP),
morto em 2010 e também envolvido na Operação Mensalão63. Alberto Youssef seria então
responsável pela negociação entre os agentes públicos e as empreiteiras contratadas para as obras e
serviços em todo o país. Era também quem realizava o transporte ou a entrega do dinheiro
correspondente às atividades ilícitas dos diversos atores com os quais estava envolvido. A prática da

59
Doleiro é considerado o indivíduo que compra e vende dólares no mercado não oficial.
60
Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-
instancia/investigacao/historico/por-onde-comecou.
61
A prevenção é um dos critérios que fixa a competência judicial e é regulada pelo Código de Processo Penal brasileiro,
cujo artigo 83 estabelece que toda vez que dois ou mais juízes forem igualmente competentes ou tiverem jurisdição
cumulativa, aquele que anteceder aos outros na prática de algum ato do processo ou de medida a este relativa, se tornará
prevento em relação aos demais (BRASIL, 2018). A competência, por sua vez, é definida como o poder de o órgão
jurisdicional (juiz ou tribunal) realizar a jurisdição e decorre de uma delimitação prévia, estabelecida na lei, segundo
critérios de especialização da justiça, distribuição territorial e divisão de serviço. Esta distribuição de tarefas resulta “da
evidente impossibilidade de um juiz único decidir toda a massa de lides existente no universo e, também, da
necessidade de que as lides sejam decididas pelo órgão jurisdicional adequado, mais apto a melhor resolvê-las”
(GRECO FILHO, 2009, p. 133).
62
Em sua sentença, o juiz da 13 ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba afirmou que José Janene, apesar de não ter
sido condenado, juntamente com outros representantes do Partido Progressista, em vista de seu falecimento no curso da
ação penal, foi autor dos crimes investigados neste processo, conforme informado em https://www.jota.info/wp-
content/uploads/2018/06/959a4e1d9cd6936cf6462d11ecbeeea5.pdf?x48657.
63
A Operação Mensalão deu origem à Ação Penal nº 470 e esta foi considerada o maior julgamento realizado pelo
Supremo Tribunal Federal (WERNECK, 2012), resultando no envolvimento de cerca de quarenta pessoas, entre
políticos, banqueiros e empresários. A investigação foi instaurada em 2005, quando a imprensa divulgou que alguns
parlamentares recebiam uma espécie de “mesada” mensal – daí o nome da investigação – para apoiar os projetos do
governo federal na época. Esta mesada era paga por diversas empresas, mas ao longo das investigações outros crimes
surgiram, inclusive, o financiamento ilegal de campanhas, conforme divulgado em
https://www.cartacapital.com.br/politica/personagens-do-mensalao-roberto-jefferson-o-acusador. Ver também em Kant
de Lima e Mouzinho (2016).

48
evasão fiscal e de dinheiro se concretizava, dentre outras atividades, pela criação de empresas
fictícias de importação e exportação (denominadas “empresas de fachada”, ou ofshores) para
movimentar esse dinheiro. As atividades deste doleiro datam da década de 90 e alcançam até algumas
obras realizadas para sediar a Copa do Mundo de 2014, no Rio de Janeiro.
Assim, a Colaboração Premiada de Youssef com a Justiça tem sido apontada também como a
responsável por gerar o que se tornou conhecido como “efeito dominó”, caracterizado por inúmeras e
subsequentes investigações instauradas contra importantes figuras do cenário empresarial e político
brasileiro, como também pela concretização dos acordos de Colaboração Premiada que se seguiram
ao seu, realizados em outras oportunidades, além daquele que celebrou em 2003 e também os
produzidos pelos seus próprios delatados.
O que se percebe pelo levantamento dos casos de corrupção que tiveram a mesma magnitude
dos casos apurados pela Operação Lava-Jato - em termos de repercussão e envolvimento de
personalidades importantes do cenário político, econômico, jurídico e social do Brasil – é que esse
efeito não se dá apenas no sentido cronológico crescente, como também, decrescente. A imagem de
um fio de novelo de linha a se desenrolar sem fim é apropriada para descrever ou representar que,
antes mesmo das investigações que se inseriram na denominada Operação Lava-Jato, outros casos de
corrupção estão diretamente ligados a elas, o que revela a perpetuidade da corrupção entre nós e a
ausência de políticas públicas para o seu enfrentamento envolvendo outras agências e instituições que
não sejam somente as de controle e segurança pública.
O portal MPF Combate à Corrupção64, outra fonte que utilizei como consulta, informa que
a colaboração do doleiro permitiu a investigação de centenas de crimes, tendo sido colhidos
documentos e dezenas de depoimentos, “o que pode ser considerado uma das mais frutíferas
colaborações da história”. As investigações foram conduzidas por uma equipe conhecida como
“força-tarefa do caso Banestado” ou “força-tarefa CC5”, formada por procuradores da República e
delegados da Polícia Federal no Paraná, vários dos quais integram hoje a equipe do caso Lava-Jato
(BRASIL, 2015) 65.
Ainda de acordo com essa fonte, no Caso Banestado foram realizados mais de 20 acordos de
Colaboração Premiada, recuperando-se, aproximadamente, R$ 30 milhões de reais, só em função
desses acordos. E mais, centenas de pessoas foram acusadas por crimes contra o sistema financeiro
nacional de lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e corrupção, resultando em 97 sentenças

64
Este portal foi criado pela Procuradoria-Geral da Republica em dezembro de 2014, durante a Conferência
Internacional de Combate à Corrupção, realizada na sede deste órgão, em Brasília, com o objetivo de tornar-se “uma
ferramenta a mais para que o cidadão identifique e possa atuar ativamente no enfrentamento da corrupção”.
Conforme divulgado em https://mpf.jusbrasil.com.br/noticias/156322210/mpf-lanca-portal-de-combate-a-corrupcao.
65
Conforme disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-
instancia/investigacao/relacao-com-o-caso-banestado

49
condenatórias. Mais de uma centena de pedidos de cooperação internacional foram efetuados,
“intensificando a cooperação entre o Brasil e outros países de modo nunca antes visto na história”.
Este portal também informa que depois de ter cumprido pena relativa ao processo criminal
que resultou da Operação Banestado, Youssef foi solto após fechar o primeiro acordo de delação
premiada dentre os realizados por representantes do Ministério Público Federal que integravam a
Lava Jato, em dezembro de 2003, quando ainda não existia a Lei de Organizações Criminosas, que
regulamentaria a Colaboração Premiada.
Dentre os noticiários selecionados para a pesquisa, há a informação de que o primeiro
acordo de delação premiada homologado pelo juiz da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal de
Curitiba66, no bojo das Operações Lava-Jato, foi o celebrado por este mesmo doleiro, Alberto
Youssef, que era subordinado à doleira Nelma Mitsue Penasso Kodama e que veio a se tornar seu
amante. Nelma era conhecida como a “Dama do Mercado” e considerada como importante líder
dessa organização67. Ela foi também uma dos quatro doleiros investigadas pela Operação Lava-Jato,
deflagrada em março de 2014 e foi presa tentando fugir do país com cerca de 200 mil euros
escondidos em peças intimas de seu vestuário. Os demais doleiros envolvidos nessa investigação e
que juntamente com Nelma Kodama e Lucas Pace responderam a ação penal nº 5026243-
05.2014.404.7000, foram: Alberto Youssef, Carlos Habib Chater e Raul Henrique Srour68.
Assim, em 2014, quando a Operação Lava-Jato tem início, o doleiro Alberto Youssef é
novamente envolvido na investigação que apurou os crimes perpetrados contra a PETROBRÁS.
Como em seu primeiro acordo Youssef havia se comprometido a não voltar a operar câmbio –
configurando esta promessa, uma das cláusulas do seu acordo inicial -, uma vez descumprida, deu
causa à rescisão do acordo e a sua nova prisão, além de busca e apreensão de novos documentos. Ou
seja, as investigações voltaram-se novamente contra o doleiro e continuaram sob a competência do
juízo da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba.
De acordo com o site MPF Combate à Corrupção, o nome “Lava-Jato”, foi atribuído,
inicialmente em 2004, à investigação instaurada para apurar o uso de uma rede de postos de
combustíveis e “lava a jato” de automóveis para movimentar recursos ilícitos pertencentes a uma das
organizações criminosas inicialmente investigadas. Embora esta investigação tenha avançado para
outras organizações criminosas, o nome da operação foi mantido.

66
Ver também integra da sentença do juiz da 13ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba. Disponível em
https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/06/959a4e1d9cd6936cf6462d11ecbeeea5.pdf?x48657
67
Conforme disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/juiz-homologa-primeiro-acordo-de-
delacao-premiada-da-lava-jato/.
68
Como também foi noticiado em https://jornalggn.com.br/noticia/quem-e-alberto-youssef-e-como-comecou-a-lava-jato

50
Não demorou muito a se perceber que a ampla utilização do instituto da Colaboração
Premiada passou a ser considerado o instrumento que permitiu o detalhamento destas práticas
criminosas, justificando-se seu emprego com base na sofisticação das operações ilícitas realizadas -
como será descrito a seguir -, tornando possível descobrir sua mecânica, por meio do depoimento dos
próprios colaboradores.
Além disso, a competência da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba para o processo e
julgamentos dos feitos resultantes dessas investigações é justificada pelo site referido com base nos
seguintes motivos: os primeiros fatos investigados envolviam lavagem de dinheiro praticada em
Londrina, município localizado no Estado do Paraná. E mais, o “doleiro” acima referido praticou o
crime de lavagem de dinheiro por meio de atividades e imóveis localizados em Londrina e em
Curitiba, gerenciando suas atividades ilícitas também a partir daí e, por essa razão, foi indiciado em
inquéritos policiais e respondeu a processos judiciais, em razão do descumprimento do acordo de
Colaboração do Caso Banestado, homologado pelo daquela Vara Criminal, o que tornou prevento
este juízo, ou seja, responsável pelos demais casos69.
Embora com o desdobramento das investigações tenham sido descobertos diversos crimes
praticados em outros Estados brasileiros, como no Paraná, São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro e
Pernambuco, a competência da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba foi também determinada
porque os crimes mais graves teriam sido cometidos no Paraná. Por fim, o site também afirma que
existia uma grande inter-relação entre as investigações, de modo que a prova dos fatos ocorridos em
diferentes estados era reciprocamente útil – isso que no processo penal se denomina conexão. A
justificativa, segundo esse sítio da internet, é de que “as evidências apreendidas na residência de
determinados agentes, serviam para provar a conduta de outros” (BRASIL, 2017).
Apesar de as primeiras Operações da Lava-Jato terem se submetido à 13ª vara criminal
federal de Curitiba, órgão especializado em crimes financeiros e de lavagem de ativos e devido às
regras processuais que fixam a competência dos diversos órgãos que compõe o Poder Judiciário
brasileiro, em outubro de 2015, o Supremo Tribunal Federal determinou a remessa para a Justiça
Federal do Rio de Janeiro, de uma denúncia que apontou irregularidades em contratos para a
construção da Usina Nuclear “Angra 3”, localizada no Município de Angra dos Reis, como já afirmei
acima.
Paralelamente ao curso desta ação penal, que ficou a cargo de uma das varas criminais
federais do Rio de Janeiro, o Ministério Público Federal carioca aprofundou estas investigações,

69
Conforme divulgado em https://jornalggn.com.br/noticia/quem-e-alberto-youssef-e-como-comecou-a-lava-jato

51
justificando que o esquema criminoso era mais amplo que o núcleo de infratores denunciado
inicialmente, informação esta que também pode ser verificada no site já referido (BRASIL, 2015).
Assim, segundo os discursos dos operadores entrevistados, começaram as Operações Lava
Jato no Rio de Janeiro.

I. 2 – AS DUAS OPERAÇÕES ESCOLHIDAS DENTRE AS DIVERSAS FASES DA LAVA


JATO CARIOCA
As Operações Lava Jato que se desenvolveram no Rio de Janeiro possuem algumas
peculiaridades em relação às demais que se instalaram no país, especialmente a partir de 2014, já que,
segundo as informações dos entrevistados, todas foram realizadas, diretamente, por membros do
Ministério Público Federal e quando aconteceu a participação de outras instituições de controle, isso
se deu de forma acessória ou complementar. Este grupo carioca era formado, por ocasião da
pesquisa, por 11 Procuradores Regionais da República que atuavam em 1ª instância e 4 deles, em 2ª
instância, totalizando 15 Procuradores. Até o final dessa pesquisa foram entrevistados oito
Procuradores sendo cinco de 1ª e três de 2ª instância.
Como acima afirmado, tais investigações tiveram início no cenário carioca, a partir da
remessa pelo Supremo Tribunal Federal da denúncia da Lava-Jato de Curitiba, que apontou
irregularidades em contratos para a construção da usina nuclear Angra 3, investigadas que foram pela
Operação Radiotividade, que deu origem ao Processo Penal nº 0510926-86.2015.4.02.5101,
distribuído à 7ª Vara Criminal da Justiça Federal do Rio de Janeiro. De acordo com o órgão de
acusação, houve formação de cartel, principalmente nas licitações de serviços de montagem da usina
Angra 3. Segundo o que consta na denúncia, as construtoras Andrade Gutierrez e Engevix,
contratadas pela Eletronuclear, teriam utilizado empresas de fachada para repassar propinas ao vice-
almirante reformado Othon Luiz Pinheiro da Silva, presidente licenciado da Eletronuclear 70. Em 03
de agosto de 2016, o juiz da 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro condenou o referido
presidente da Eletronuclear e outros 12 denunciados, absolvendo apenas um deles, ante a falta de
provas para sua condenação71.

70
Esta denúncia pode ser vista em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/denuncia-lava-jato-
eletronuclear/view.
71
Esta sentença pode ser vista em http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/rio-de-
janeiro/documentos/sentenca-radioatividade.

52
Assim, a Operação Lava-Jato teve início no Rio de Janeiro a partir do entendimento do
ministro relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, naquela ocasião, Teori Zavascki72, que
não viu qualquer relação entre os crimes cometidos na Eletronuclear e na Petrobras, o que
determinaria a competência do mesmo juízo para o julgamento de todos os processos. Por este
motivo, estabeleceu o desmembramento dessas investigações, com o envio para a Justiça Federal
carioca apenas dos crimes que atingiram a primeira estatal. Ao chegar no Rio de Janeiro, esta
denúncia foi encaminhada ao setor de distribuição, sendo fixada a competência do juiz da 7ª Vara
Criminal Federal, que passou a ser o juízo competente para o processo e julgamento daquela e de
todas as demais ações penais relativas às Operações Lava Jato, assim como suas investigações
preliminares e todos os trâmites delas advindos, inclusive, a homologação dos acordos de
Colaboração Premiada realizadas no âmbito dessas investigações e ações penais correlatas.
Paralelamente ao curso desta ação penal, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro
deu início ao aprofundamento das investigações, pois constatou que o esquema era mais amplo que o
núcleo denunciado inicialmente por Curitiba, o que gerou a instauração de outras investigações, todas
a cargo do mesmo órgão de persecução criminal carioca.
Assim, logo em seguida, o Ministério Público Federal carioca instaurou a Operação Pripyat
para apurar, além da fraude em licitação, os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, também em
virtude de contratos entre a Eletronuclear e as construtoras Andrade Gutierrez e Engevix, relativos às
obras da usina Angra 3. Em 27 de julho de 2016, o Ministério Público Federal no Rio de Janeiro
denunciou 15 envolvidos nesses crimes, originando o Processo nº 0100511-75.2016.4.02.5101, junto
à 7ª Vara Criminal da Justiça Federal carioca. Em 27 de junho de 2017, foi proferida a sentença que
condenou apenas 5 denunciados73.
Em sua sentença, o juiz afirmou que esta Operação evidenciou que o esquema de corrupção
da Eletronuclear foi estruturado antes, durante e depois das licitações para a construção da Usina
Nuclear de Angra 3, e consistiu, em síntese, no pagamento de propina a servidores e agentes públicos
a fim de que praticassem, omitissem e retardassem ato de ofício em razão do cargo que exerciam, o
que caracterizava o crime de prevaricação. O aprofundamento da Operação Radioatividade, portanto,
identificou que a organização criminosa envolveu também ex-diretores da Eletronuclear, os quais
foram denunciados nessa Operação Prypiat.
Em 10 de agosto de 2016, com base na Operação Irmandade, o Ministério Público Federal
denunciou outras 11 pessoas que integravam o núcleo financeiro operacional do esquema investigado

72
O Ministro Teori Zavascki foi relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal entre os anos de 2015 a 2017,
quando faleceu em um acidente aéreo, assumindo tal função o Ministro Edson Fachin.
73
A sentença promovida neste processo pode ser vista em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-
rj/sentenca%20pripyat.pdf.

53
na Operação Pripyat, pela prática de crimes de lavagem de dinheiro, organização criminosa e
falsidade ideológica. Os denunciados foram apontados como responsáveis pelas empresas de fachada
que intermediavam o repasse de vantagens indevidas e geravam caixa 274 para pagamentos de
propina em espécie pela construtora Andrade Gutierrez a diretores da Eletronuclear na construção de
Angra 375.
Assim, a Operação Irmandade constituiu mais um desdobramento das investigações da
Operação Radioatividade, por meio do qual se identificou que o dinheiro utilizado para pagamento
de propina aos agentes públicos foi obtido pela construtora Andrade Gutierrez, mediante celebração
de contratos fraudulentos com diversas empresas que pertenciam aos operadores financeiros e eram
por eles utilizadas para produzir o “Caixa 2” da Andrade Gutierrez. Além dos dirigentes dessa
construtora, outros executivos ocultaram e dissimularam a origem de parte de valor destinado ao
pagamento de propina a Diretores da Eletronuclear. Esses pagamentos de propina, foram viabilizados
por meio desse esquema de “Caixa 2” e se sustentavam na celebração de contratos fictícios e
expedição de notas fiscais falsas com diversas empresas, dentre elas algumas controladas pelos
irmãos Adir e Samir Assad, especializadas em lavagem do dinheiro. Esta denúncia foi vinculada, por
dependência, ao Processo Nº 0502834-85.2016.4.02.5101, acima citado.
O site MPF Combate à Corrupção, não informa a existência de sentença condenatória
relativa a este processo judicial. Contudo, consultando a mídia brasileira, foi possível encontra-la76 e
verificar que foram absolvidos Raul Figueroa, Sandra Maria Branco e Sonia Mariza Branco, em face
da ausência de provas contra os mesmos.
É preciso salientar que enquanto as Operações Lava-Jato se desdobram no Rio de Janeiro, o
mesmo acontece com as de Curitiba. Neste contexto, foram celebrados pelo Procurador-Geral da
República acordos de Colaboração Premiada com diversos executivos da empreiteira Andrade
Gutierrez. Além do reconhecimento das práticas ilícitas que já vinham sendo investigadas no âmbito
da Petrobras e da Eletronuclear, estes acordos trouxeram temas e envolveram outras pessoas que
ainda não tinham sido objeto de investigação criminal, dentre eles, a cartelização das empreiteiras
para a construção ou reforma dos estádios que sediariam as partidas da Copa do Mundo de 2014 e o
envolvimento do ex-governador, Sérgio Cabral.

74
Em geral, a categoria “Caixa 2” se refere à prática de não contabilização omissão da declaração aos órgãos de
fiscalização competentes do Poder Executivo de recursos financeiros. O crime de “Caixa 2”, aludido pelo campo
jurídico, tanto pode configurar o de lavagem de dinheiro – quando a intenção do agente é ocultar o origem ilícita do seu
recebimento -, quanto o de organização criminosa, quando tal recurso é obtido, gerenciado ou empregado pela
associação criminosa.
75
Esta denúncia pode ser vista em http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/rio-de-
janeiro/documentos/denunciairmandade.pdf.
76
Ver esta sentença em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-
content/uploads/sites/41/2017/12/75424578-534-1-pp.pdf.

54
Assim, em razão, dos acordos de Colaboração Premiada dos executivos Rogério Nora e
Clóvis Primo, foi instaurada a Operação Calicute (expandida depois para a Operação
Descobridor)77, em 17 de novembro de 2016, que representou a 37ª fase da Operação Lava Jato de
Curitiba. Esta e outras investigações têm como principal envolvido o ex-governador do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral.
Segundo a denúncia formalizada no processo judicial que a Operação Calicute gerou -
especialmente no que se relaciona à fraude na reforma dos estádios que sediariam as partidas da Copa
do Mundo de 2014 -, é informado que esta obra foi executada pelo governo do Estado do Rio de
Janeiro, mas financiada com recursos de, ao menos R$ 400.000,00 disponibilizados pelo Banco
Nacional de Desenvolvimento Social - BNDES, sendo a União Federal fiadora do empréstimo. Tais
obras foram contratadas com consórcio formado pelas empresas Odebrecht, Delta e Andrade
Gutierrez, cujo custo final - após a assinatura de diversos aditivos contratuais -, superou o patamar
de R$ 1.000.000.000,00 (um bilhão de reais), apesar de a estimativa inicial do governo do Estado ter
girado em torno de R$ 700.000.000,00.
A denúncia também afirma que no Portal da Transparência do Governo Federal78 é
declarado que o Estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, foi reformado para se adequar à recomendação
da Federação Internacional de Futebol – FIFA, com vistas à realização da Copa das Confederações
2013 e Copa do Mundo de 2014. Segundo esta fonte, o governo do Estado do Rio de Janeiro,
executor das obras, o estádio recebeu modificações em seus acessos, aumentou o número de
sanitários e de lanchonetes, sendo que a previsão de investimento para esta ação foi de R$
1.050.000.000,00 (um bilhão e cinquenta milhões de reais). Portanto, os valores previstos e
informados pelo governo não estavam em concordância.
Ainda de acordo com a denúncia citada, houve formação de cartel entre as empresas
construtoras, mediante o pagamento de propinas para o ex-governador do Rio de Janeiro. Segundo o
órgão de acusação, estas atividades ilícitas se iniciaram a partir do momento em que Sérgio Cabral
assumiu em 2007 o cargo de governador do Estado do Rio de Janeiro. E não é só isso. Nesses
esquemas, contrários à licitação pública, havia evidências de que foram englobadas praticamente
todas as grandes obras públicas realizadas governo estadual, algumas delas custeadas com recursos
federais, inclusive provenientes do Programa de Aceleração do Crescimento - PAC. Dentre elas,

77
Conforme divulgado no site oficial da Polícia Federal, ver em http://www.pf.gov.br/agencia/noticias/2016/11/pf-
deflagra-37a-fase-da-operacao-lava-jato-operacao-descobridor.
78
Divulgado em http://www.transparencia.gov.br/copa2014/cidades/execucao.seam?empreendimento=50.

55
destacam-se a construção do Arco Metropolitano79 e a urbanização de grandes comunidades carentes
na cidade do Rio de Janeiro, ação vulgarmente denominada por “PAC FAVELAS” 80.
Entendeu a Procuradoria Regional da República do Rio de Janeiro que, nos mesmos moldes
existentes em relação às demais organizações criminosas investigadas pela Operação Lava-Jato de
Curitiba, a estruturação e a divisão de tarefas no caso do ex-governador carioca apresentou cinco
núcleos básicos: a) o núcleo econômico, formado por executivos das empreiteiras cartelizadas,
contratadas para execução de obras pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, dentre elas a Andrade
Gutierrez e a Carioca Engenharia, empresas brasileiras; b) o núcleo administrativo, composto por
gestores públicos do Governo do Estado do Rio de Janeiro, os quais solicitaram e administraram o
recebimento das vantagens indevidas pagas pelas empreiteiras; c) o núcleo financeiro operacional,
formado por responsáveis pelo recebimento e repasse das vantagens indevidas e pela ocultação da
origem do dinheiro ilícito, inclusive através da utilização de empresas e escritórios de advocacia,
algumas delas constituídas exclusivamente com tal finalidade; d) o núcleo político, formado pelo
líder da organização criminosa, o ex-governador Sérgio Cabral.
De acordo com a acusação, esta estrutura e divisão de tarefas foram apontadas pelas
Colaborações Premiadas de Rogério Nora de Sá e Clóvis Primo – ex-executivos da empresa
Andrade Gutierrez -, bem como as declarações de outros empresários do ramo de construção civil,
que também aderiram a acordos de leniência celebrados pelo Ministério Público Federal. Nestes
acordos era prevista a obrigação das empresas colaboradoras, seus prepostos e acionistas
“apresentarem documentos, informações e outros materiais com relação aos quais detinham a posse,
custódia ou controle, que constatassem os fatos narrados nos anexos aos respectivos termos”. Além
do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, foram denunciados outros 12 investigados, em 6

79
A denúncia também informa - com base no conteúdo divulgado na revista eletrônica “Manutenção e Tecnologia”
publicada em dezembro de 2010 -, que: “O Arco Metropolitano do Rio de Janeiro – BR 493/RJ109 – tem um histórico
que remonta a 1974, mas começou realmente a sair do papel a partir de 2008, com a iniciativa do atual governo
fluminense e a entrada da obra na lista do PAC”. Como o nome diz, a nova rodovia forma um arco de acesso rodoviário
a oeste do estado, cortando oito municípios, Manilha, Magé, Saracuruna, Caxias, Nova Iguaçú, Japeri, Seropédica e
Itaguaí. Os consórcios vencedores foram: 1) o lote 1 que ficou com o Consórcio Arco Metropolitano do Rio - formado
pela Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez; 2) o lote 2 foi recebido pelo Consórcio Carioca/Queiroz - formado pela
Carioca Christiani-Nielsen e Queiroz Galvão; 3) o lote 3 foi ganho pelo Consórcio Arco do Rio - formado pela OAS e
Camargo Corrêa, e 4) o lote 4 ficou com o Consórcio Arco Metropolitano Rio - pertencente à Delta Construções e à
Oriente Construções. Conforme divulgado em http://www.revistamt.com.br/index.php?
option=com_conteudo&task=viewMateria&id=528.
80
Ainda de acordo com a denúncia, “as obras do PAC Favelas foram divididas em três lotes, um para cada uma das
comunidades contempladas: 1) o Consórcio Rio Melhor - liderado pela Odebrecht, em parceria com a OAS e a Delta -,
venceu o contrato de valor estipulado inicialmente em R$ 493 milhões para realizar obras no Complexo do Alemão; 2)
o Consórcio Manguinhos - liderado pela Andrade Gutierrez, em parceria com a EIT e CAMTER -, venceu o contrato de
R$ 232 milhões para executar os serviços no Complexo de Manguinhos, e 3) o Consórcio Novos Tempos - encabeçado
pela Queiroz Galvão, em sociedade com a CAENGE e Carioca Engenharia -, o contrato de R$ 175,6 milhões para as
obras da Comunidade da Rocinha. A título de ilustração, vide o teor da reportagem publicada no site “Carta Maior”, em
fevereiro de 2008 http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Comecam-obras-do-PAC-em-tres-favelas-do-Rio-
deJaneiro/4/13767”.

56
de dezembro de 2016, pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa,
relativos às fraudes nas obras públicas acima referidas.
A partir da Operação Calicute e dos acordos de Colaboração Premiada que foram firmados
em seguida, diversas outras Operações foram inauguradas no Rio de Janeiro, gerando inúmeros
acordos de Colaboração e de processos criminais contra os acusados neles indicados.
No que se refere ao recorte escolhido, o Processo penal nº 0505915-08.2017.4.02.5101, que
se refere à Operação Ponto Final, tem início em 7 de agosto de 2017, quando o Ministério Público
Federal denuncia a existência de um “Caixa 2” na Fetranspor – Federação das Empresas de
Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro81, abastecido regularmente com repasses das
empresas de ônibus para custear o pagamento de propina para diversos agentes públicos, os quais
tinham competência para a edição de atos administrativos que regulavam o setor de transporte
público municipal e intermunicipal e, consequentemente, poder para afetar os interesses das empresas
de ônibus.
Segundo esta denúncia, em depoimento prestado no acordo de Colaboração Premiada
firmado por Alvaro José Galliez Novis - operador financeiro, dono da Corretora HOYA e
considerado como operador financeiro do ex-governador, Sérgio Cabral -, foi informado que o
presidente da Fetranspor e sócio da Viação Flores, José Carlos Lavouras, o contratou, nos anos 90,
para recolher, regularmente, dinheiro de algumas empresas de ônibus integrantes dessa Federação e
administrar a sua guarda, bem como distribuir tais valores a diversos políticos do Rio de Janeiro.
Além disso, Novis também era responsável pelo controle dos aportes e das despesas da Federação,
por meio de uma contabilidade “paralela”, não regular. Este dinheiro era recolhido nas garagens de
algumas empresas de ônibus vinculadas à Federação, pela empresa Transegur (hoje Prosegur) e era
utilizado para o pagamento destes políticos, que em troca favoreciam estas empresas em processos de
licitação para a prestação de serviços de transportes para a população carioca; concediam a isenção
de IPVA – Imposto sobre Propriedade de Veículo Automotivo - dos veículos das empresas
vinculadas à Federação e o aumento das tarifas desses serviços, dentre outros benefícios.
Em seu acordo de Colaboração Premiada, Álvaro Novis também afirmou que contratou
Edmar Dantas, para, no caso do seu impedimento, executar a mesma tarefa, sendo que a este

81
De acordo com o site oficial da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro, a
FETRANSPOR é integrada por 10 sindicatos de empresas de ônibus responsáveis por transporte urbano, interurbano e
de turismo e fretamento. Esses sindicatos, por sua vez, reúnem cerca de duzentas empresas de transporte por ônibus,
que respondem por 81% do transporte público regular no Estado do Rio de Janeiro. O sistema rodoviário de transporte
coletivo de passageiros neste Estado tem frota de 22,5 mil ônibus, com média de idade de 4,04 anos, transportando
estimativamente 8,1 milhões de passageiros/dia, – 6,6 milhões pagantes e 1,5 milhão com acesso livre (idosos,
estudantes, portadores de deficiência) – em 3.260 linhas, entre o transporte municipal e o intermunicipal. Conforme
divulgado em http://www.fetranspor.com.br/a-fetranspor-sobre-a-fetranspor.

57
funcionário também competia manter atualizadas planilhas com os valores recebidos pela Fetranspor
e os pagamentos aos políticos. A contabilidade expressa nessas planilhas revelou que, entre os anos
de 2010 e 2016, alguns dos principais donos de empresas de ônibus ligados à Federação, quais sejam,
José Carlos Lavouras, Lélis Marcos Teixeira, Jacob Barata Filho e João Augusto Monteiro,
movimentaram a quantia de R$ 260.168.069,00, mais de duzentos e sessenta milhões de reais.
Também de acordo com a denúncia, o ex-governador, Sérgio Cabral recebia repasses
mensais do “Caixa 2” da Fetranspor, sendo beneficiado com a quantia de R$ 144,7 milhões de reais
neste esquema. Em troca, em janeiro de 2014, o ex-governador teria concedido desconto de 50% no
IPVA das empresas de ônibus ligadas à Federação. Naquele mês e em fevereiro, as planilhas
apresentadas pelos colaboradores indicaram que um bônus de R$ 13 milhões reais saiu do “Caixa 2”
da Federação para o ex-governador, que ainda recebia os tais repasses mensais desta Federação.
Além do ex-governador, dos representantes da Federação citada e dos empresários do ramo
de transporte público, foi denunciado também o Presidente do Departamento de Transporte -
DETRO/RJ, Rogério Onofre, envolvido neste esquema. De acordo com a denúncia, somente no ano
de 2009, o presidente do DETRO/RJ autorizou o aumento de tarifa das passagens de ônibus no
patamar de 7% (sete por cento), sem considerar os benefícios fiscais concedidos e outras benesses
que justificavam o aumento no percentual de apenas 2% (dois por cento). Estes atores foram
condenados as penas dos crimes de corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, crime
contra o sistema financeiro e organização criminosa.
Dentre os políticos que recebiam propina desta Federação de Transportes, a denúncia
também apontou o envolvimento de alguns conselheiros do Tribunal de Contas do Estado do Rio de
Janeiro. Esta acusação se baseou no acordo de Colaboração Premiada, realizado pelo ex-presidente
deste Tribunal, o Conselheiro Jonas Lopes. De acordo com o depoimento deste Conselheiro, apenas
em 2015, a Fetranspor destinou cerca de R$ 60mil reais, por mês, para cada um dos cinco
conselheiros do Tribunal de Contas que participaram deste esquema. Tal verba era paga para que os
processos relacionados aos serviços públicos de transporte tivessem análise mais favorável às
empresas associadas à Federação, já que competia a este tribunal a análise das contas do governo
estadual, dentre elas, a do setor de transporte público. Este dinheiro era entregue por um dos
representantes da Federação ao filho do ex-presidente do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Jonas
Lopes Neto, em seu escritório, que em seguida os entregava ao seu pai, depois de retirar sua
percentagem desse valor, relativa à função de recebimento e repasse da propina. O ex-presidente do
Tribunal de Contas recebia o dinheiro e o distribuía aos demais Conselheiros do Tribunal. A

58
Federação também foi responsabilizada por fraude na gestão do “Bilhete Único”82, por sua
concessionária, Riocard.
Quando o ex-presidente do Tribunal de Contas foi preso, tanto ele quanto seu próprio filho
celebraram acordos de Colaboração Premiada com o Ministério Público Federal, nos quais
apontaram a participação dos representantes da Assembleia Legislativa - ALERJ e do Poder
Executivo do Estado e outros membros do Tribunal de Contas. Estes fatos foram objeto de outra
investigação, denominada Operação Cadeia Velha.
Vale ressaltar que, além do Ministério Público Federal, o referido ex-Conselheiro foi ouvido
também pelo Ministério Público Estadual, depois que este órgão aderiu ao seu acordo de
Colaboração Premiada. Ao aderir a este acordo, o Ministério Público Estadual pode ter acesso às
informações e provas fornecidas pelo ex-Conselheiro e, a partir delas, também instaurou sua
investigação, que originou uma ação civil pública. Nesta ação foi requerido - com base nos artigos 9º
e 12º, da Lei Federal nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa) -, a condenação dos réus à
perda dos bens adquiridos com os recursos provenientes dos crimes praticados; o pagamento de
multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e a suspensão dos direitos políticos
pelo período de oito a dez anos do ex-Conselheiro e do representante da ALERJ.
Acontece que, mesmo tendo o Ministério Público Estadual denunciado os servidores
públicos citados pelo crime de improbidade administrativa, significando, portanto, a instauração de
outro processo judicial - o que corresponderia à imposição de outras penalidades contra os
colaboradores -, isso não ocorreu. Isto porque, em relação ao ex-presidente do Tribunal de Contas, a
penalidade atribuída pelo órgão estadual extrapolava o que fora anteriormente pactuado pelo
Ministério Público Federal em seu acordo de Colaboração Premiada83, de tal forma que este acusado
apenas cumpriria a penalidade prevista naquele acordo. Voltarei a tratar desse assunto quando
examinar os “benefícios penais” contidos nestes acordos.
Para um dos entrevistados, este acordo de Colaboração Premiada foi importante para a
atividade investigatória produzida. Segundo ele:
- “Houve um acordo de Colaboração Premiada muito interessante e que foi o do
Jonas Lopes, ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado.
Seria impossível a gente chegar aos demais Conselheiros, se não fosse o testemunho
de algum dos Conselheiros envolvidos, porque as tratativas eram feitas diretamente
entre eles. O Presidente deste tribunal era quem controlava e fazia a distribuição da
propina.
82
O Bilhete único é um cartão de passagem que garante ao passageiro a utilização de dois ou três ônibus, num período de
tempo específico, mediante o pagamento de uma única tarifa. Os custos desse benefício são subsidiados pelo Estado do
Rio de Janeiro, conforme informado em https://www.cartaoriocard.com.br/rcc/bilheteUnico.
83
Conforme divulgado em https://www.mprj.mp.br/home/-/detalhe-noticia/visualizar/54609 e
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/documentos/594002673/andamento-do-processo-n-19-20-21-23-26-06-2018-do-
trf-2.

59
Quer dizer, se não fosse um deles, a gente jamais saberia.
E tem também as técnicas de lavagem de dinheiro, que estes empregavam e eram
bem sofisticadas. Elas acabavam dificultando muito aquele “follow the Money”
(técnica de investigação que prioriza seguir o caminho percorrido pelo dinheiro
ilícito, obtido pela atividade criminosa).
A distribuição da propina era feita em transações em espécie, ou quando não era feita
através de dinheiro em espécie era por meio de contas no exterior, por uma conta de
uma das empreiteiras no exterior, que levava para a conta da “offshore”84 do político
no exterior. Quer dizer, a gente jamais conseguiria isso, sem ao menos uma
indicação de que houve essa transação, para, aí sim, a gente pedir a cooperação
internacional e conseguir rastrear essas contas.
A Colaboração Premiada, então, tem essa função sem a qual a gente não
conseguiria avançar, sem dúvida nenhuma”.
(MPF2)

Ao apontar a importância do insider que colabora com as investigações, fornecendo


informações relacionadas ao seu próprio crime e os de seus comparsas, o entrevistado ressalta o papel
da Colaboração Premiada enquanto instrumento que propicia a continuidade investigativa, sem
considerar que no bojo dessas “informações” há provas sendo construídas. Neste sentido, a palavra
do colaborador vale muitas outras investigações e outra infinidade de acordos de Colaboração
Premiada.
Tanto isso é certo, que três meses após a instauração da Operação Ponto Final, foi
deflagrada a Operação Cadeia Velha, como desdobramento daquela. Nesta investigação, os membros
do Ministério Público Federal apontaram o Deputado Estadual, Jorge Picciani, presidente da
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ, e dois outros parlamentares, assim
como o ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado, o Conselheiro Jonas Lopes, como suspeitos
de também receberem propina da Caixa 2 da referida Federação, entre outros investigados. Em troca,
os parlamentares editavam atos legislativos que favoreciam as empresas de transporte, como os
relativos à redução de tributos.
De acordo com o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, os ex-presidentes da
ALERJ, os Deputados Estaduais Jorge Picciani e Paulo Melo, além do ex-líder do governo, Deputado
Edson Albertassi, cometeram crimes de corrupção passiva, organização criminosa e lavagem de
dinheiro por décadas, e de forma reiterada, e em razão dos mandatos políticos assumidos. Estes
políticos agiam sob o comando do ex-governador, Sérgio Cabral, sendo considerado, portanto, como
o líder da organização criminosa. Assim, tanto os representantes da ALERJ, quanto os do Tribunal de
Contas do Estado, blindavam os interesses dos grupos que os financiavam, especialmente, as

84
Offshore é um termo da língua inglesa e que significa “afastado da costa”, na tradução para o português. Em termos
financeiros, é designada por offshore uma empresa que tem a sua contabilidade num país distinto daquele onde exerce a
sua atividade principal. Suas contas bancárias são abertas em territórios onde há menor tributação para fins lícitos.

60
empresas construtoras responsáveis por obras públicas no Estado e as empresas do ramo de
transporte85. De acordo com a acusação, desde janeiro de 2007, quando tomou posse como chefe do
executivo estadual do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral instituiu percentual de propina de 5% de todos os
contratos administrativos celebrados com o Estado, conforme denúncias relativas aos processos nº
0509503-57.2016.4.02.5101 e 0510282- 12.2016.4.02.5101, instaurados na 7ª Vara Criminal Federal
do Rio de Janeiro.
Para configurarem a organização criminosa, os membros do Ministério Público indicaram os
deputados estaduais e o conselheiro do Tribunal de Contas como integrantes do núcleo político,
enquanto os dirigentes das empresas (construtoras e de transporte público) e os operadores
financeiros - que se responsabilizavam pelo envio do dinheiro para fora do país -, como integrantes
dos núcleos econômico e financeiro operacional desta organização. Isto porque, segundo a acusação,
parte das verbas provinha do erário federal, como nos casos dos contratos realizados com as
empreiteiras (Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carioca Engenharia, dentre outras), e parte era oriunda
do próprio orçamento do Estado do Rio de Janeiro, como no caso dos pagamentos feitos pela
Fetranspor.
Mais uma vez, a acusação se baseou nas informações obtidas a partir de acordos de
Colaboração Premiada firmados pelos ex-executivos dessas empresas e nos acordos de leniência das
respectivas empresas, homologados em diversas instâncias, o que contribuiu para revelar o contexto
criminoso, inclusive com a descoberta de novos personagens e suas respectivas funções.
O curioso é que em sua peça de acusação o Ministério Público afirma que desde abril de
1999, quando o ex-governador e o presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro exerciam
seus respectivos cargos de deputados estaduais, já circulavam notícias sobre a existência de esquema
criminoso envolvendo o pagamento de propina pela Fetranspor para beneficiar ambos os políticos. O
curioso neste caso foi que para fundamentar seu argumento, o órgão de acusação juntou à denúncia a
notícia veiculada pela mídia da época, onde era informada a dificuldade na apuração desses crimes,
assim como a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito naquela casa legislativa para apurar
esta denúncia86. A denúncia também afirma que daquela data até esta acusação, houve um
“aprimoramento dos sistemas empregados nas práticas criminosas, tornando-os quase intransponíveis

85
Conforme alegações finais do Ministério Público, disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-
jato/atuacao-no-stj-e-no-stf/peticoes/no-stf/peticoes-em-marco-de-2017/declinios-de-competenia/pet-6640-sergio-
cabral-ma-auxiliadora-carneiro.pdf e https://static.poder360.com.br/2018/11/alegacoesfinais-cadeia-velha.pdf.
86
Conforme divulgado em https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/com-cabral-frente-da-alerj-picciani-cpi-dos-
onibus-abortada-em-1999-22068611.

61
e dificultando ainda mais as tentativas para debelá-lo”, embora não tenha citado o dado ou
informação que fundamentam tal argumento87.
A denúncia afirma que os representantes do Tribunal de Contas do Estado e da Assembleia
Legislativa, “valendo-se de suas respectivas atribuições, passaram a receber vantagem patrimonial de
forma sistemática das empresas contratadas pelo ente público para a realização de obras ou prestação
de serviços” e que, para tanto, cada um desses segmentos instituiu núcleos próprios para viabilizar o
recebimento da propina, a ocultação e a dissimulação da origem do dinheiro proveniente da
corrupção, assim como a realização dos atos de ofício de interesse dos corruptores.
Além da edição de isenções fiscais, aprovação de editais para a realização de contratos
públicos e ocupação de cargos ou empregos públicos, a acusação cita também a fraude na tomada de
contas do governo, dentre as práticas criminosas exercidas por este grupo, que incluiu também alguns
familiares dos políticos envolvidos.
Ora, de acordo com a norma constitucional estadual, compete à Assembleia Legislativa do
Rio de Janeiro julgar as contas prestadas anualmente pelo governador do Estado, cabendo ao
Tribunal de Contas do Estado, por sua vez, apreciá-las mediante parecer prévio, elaborado em até
sessenta dias a contar de seu recebimento, produzindo elementos técnicos e informativos
imprescindíveis para o julgamento definitivo, que é proferido pela casa legislativa, conforme
determina o artigo 99, inciso VIII, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. Este parecer pode
ser: favorável, favorável com ressalvas ou contrário à aprovação das contas de governo, incluindo
determinações e recomendações.
Segundo a acusação, com exceção do último exercício (2016), em que o parecer do Tribunal
de Contas do Estado rejeitou as contas do ex-governador do Rio de Janeiro, todos os demais foram
favoráveis. Também de acordo com a acusação, o colegiado que deliberou pela rejeição das contas
em 2016 foi integrado por conselheiros suplentes, tendo em vista o afastamento dos titulares por
ordem judicial. Isto porque, 05 (cinco), dos 07 (sete) Conselheiros deste tribunal já estavam sendo
investigados em outra investigação - Operação Quinto do Ouro (IPL 1133/DF), um desdobramento
da Operação Cadeia Velha, que determinou este afastamento.
A acusação também afirmou que entre os anos de 2007 a 2015, o número de inconsistências
nestes pareceres foi até maior, mas, mesmo assim, as contas foram sistematicamente aprovadas com
parecer favorável do Tribunal, o que consistia “numa evidente demonstração de que o controle era
meramente formal e que existia uma estratégia de proteção mútua entre os órgãos”. Acontece que
mesmo quando o parecer do órgão técnico recomendava a rejeição das contas, a Comissão de

87
Conforme disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-
content/uploads/sites/41/2017/12/CadeiaVelha_denuncia.pdf.

62
Orçamento, Finanças, Fiscalização Financeira e Controle da Assembleia Legislativa do Estado _
COFFF88, presidida pelo Deputado Edson Albertassi, por maioria, opinava em sentido contrário ao
decidido pelo Tribunal de Contas e aprovava as contas do ex-governador.
Com o desenvolvimento da Operação Cadeia Velha apurou-se também a compra e venda de
gado a preços subfaturados, em 2014 e 2015, pelo ex-presidente do Tribunal de Contas, junto às
empresas de propriedade do presidente da Assembleia Legislativa do Estado e do filho deste. Tal
estratégia destinava-se a camuflar a evolução patrimonial do ex-presidente do Tribunal de Contas que
se apresentaram desproporcional às receitas obtidas legalmente. Estes fatos também foram objeto de
uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual, além da ação penal correspondente
aos crimes investigados pela Operação citada.
Em uma das sentenças, emitidas em função das condenações que se inseriram nessas
Operações, o juiz da 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro afirmou que “a responsabilidade
pela crise orçamentária verificada, principalmente, no último ano, no Estado do Rio de Janeiro, ainda
que não possa ser atribuída a estes atores, os fatos levantados nesses procedimentos revelam a
ausência de legitimidade dessas autoridades estaduais em buscar soluções para reduzi-la, ao
menos”89.
Até o final da elaboração da pesquisa, ambas as Operações ainda se desdobravam em outras.
Este desdobramento também é representado pelo fato de que desde dezembro de 2015 – quando se
iniciaram as Operações cariocas - até janeiro de 2019, limite temporal da pesquisa, foram instauradas
mais de duas dezenas dessas investigações, vinculadas todas à Justiça Federal criminal carioca e que
resultaram em mais de quatro dezenas de ações penais, de acordo com o site MPF Combate à
Corrupção90.

88
De acordo com o artigo 26, §2º, da Constituição Estadual, compete à Comissão de Orçamento, Finanças, Tributação,
Fiscalização Financeira e Controle: a) efetuar a tomada de contas do Governador; b) examinar e emitir parecer sobre as
contas anualmente apresentadas pelo Governador. Disponível em
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/constest.nsf/PageConsEst?OpenPage.
89
A íntegra desta sentença pode ser visto em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/sentenca-calicute. Já o
decreto de calamidade pública do Estado foi divulgado em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/06/governo-
do-rj-decreta-estado-de-calamidade-publica-devido-crise.html
90
De acordo com o site oficial do Ministério Público combate à Corrução, até setembro de 2018 foram deflagradas as
seguintes operações a cargo da justiça federal carioca: 1- Operação Radioatividade, realizada para apurar os crimes
formação de cartel e prévio ajustamento de licitações, além do pagamento de propina a empregados de outra empresa
estatal, na Eletronuclear; 2 - Operação Pripyat tem como foco os contratos celebrados com uma grande construtora de
obras públicas, responsável por obras da usina nuclear de Angra 3 e também alcançou os contratos com outras
empresas; 3 - Operação Irmandade, evidenciou o núcleo financeiro operacional do esquema de corrupção envolvendo
grande empresa construtora e diretores da Eletronuclear na construção de Angra 3; 4 - Operação Calicute, que apurou
irregularidades nas obras de reforma do Maracanã para receber a Copa do Mundo de 2014; no Projeto do PAC Favelas
e do Arco Metropolitano, financiadas ou custeadas com recursos federais; 5 - Operação Eficiência, que apura um
esquema criminoso envolvendo o ex-governador do Rio e grandes empresários cariocas, em atividades de desvio de
dinheiro e corrupção; 6 - Operação Mascate, responsável pela prisão de um agente financeiro do ex-governador
carioca; 7 - Operação Hic et Hubique, responsável pela prisão de doleiros que atuavam para o ex-governador; 8 -
Operação Tolypeutes, deflagrada para apurar lavagem de dinheiro e pagamento de propina nas obras da linha 4 do

63
Ainda de acordo com esse site, neste período foram homologados 35 acordos de
Colaborações Premiadas, merecendo destacar que nesses números não estão computados os acordos
que se encontram ainda em curso ou os que foram rescindidos pelas partes, o que poderia elevar a sua
quantidade.
Mesmo tendo escolhido o recorte que privilegia apenas o exame dessas duas investigações -
Operação Cadeia Velha e a Operação Ponto Final -, a imbricação entre os acordos de Colaboração
Premiada, gerando novas investigações realizadas pelas agências de persecução criminal carioca,
também me obrigou a visitar outras Operações que, de alguma forma, guardaram relação com
aquelas selecionadas.

I. 3 - ENTRELAÇAMENTOS ENTRE ACORDOS DE COLABORAÇAO PREMIADA E AS


OPERAÇÕES LAVA-JATO NO RIO DE JANEIRO

metrô do Rio de Janeiro; 9 - Operação Lavagem Angra 3, responsável por desvendar o esquema que dissimulava a
origem de recursos destinados às obras da usina nuclear de Angra 3; 10 - Operação Fatura Exposta, responsável pela
apuração dos crimes de corrução em contratos da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro para o fornecimento
de próteses e equipamentos médico; 11 - Operação Saqueador, responsável por apurar o crime de lavagem de dinheiro
por grandes empresários e envolvendo o ex-governador citado; 12 - Operação Ratatouille, apurou fraudes nos
contratos de alimentação e outros serviços especializados em escolas, presídios e hospitais, em troca de benefícios em
contratos com o governo do Estado do Rio de Janeiro; 13 - Operação Ponto Final, instalada para desbaratar
organização criminosa, atuante no setor de transportes, responsável pelo pagamento de propinas a políticos e agentes
públicos; 14 - Operação Rio 40 graus, investiga o esquema de cobrança de propinas comandado por integrantes do
Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB, no estado do Rio de Janeiro e funcionários públicos da
Secretaria Municipal de Obras da cidade, identificando o pagamento de propina nas obras da etapa 2 do BRT
Transcarioca e nas obras de recuperação ambiental da Lagoa de Jacarepaguá; 15 - Operação Gotham City, deflagrada
para apurar o envolvimento de empresários do ramo da construção civil (apelidados de Batman e Robin), suspeitos de
ocultar o patrimônio do ex-presidente do Departamento de Transporte Rodoviário (Detro) do Rio de Janeiro e sua
esposa; 16 - Operação Unfair Play; apura a compra de votos, junto à Federação Internacional de Atletismo para a
candidatura da cidade do Rio de Janeiro para as Olimpíadas de 2016, envolvendo o ex-governador da cidade e outras
pessoas; 17 - Operação C´est Fini, instalada para apurar o recebimento de propinas pelo Chefe da Casa Civil do
Governo do Rio de Janeiro e crimes que atingiram a Fundação Departamento de Estradas de Rodagem do Rio de
Janeiro (Funderj); 18 - Operação Mãos à Obra, deflagrada para apurar um esquema de cobrança de propina na
Secretaria Municipal de Obras, envolvendo, além de grandes empreiteiras, outras prestadoras de serviços e empresas
fornecedoras de materiais para as contratadas. Além disso, apurou um esquema de evasão de divisas por parte do ex-
secretário de Obras; 19 - Operação Jabuti investigou uma ramificação da organização criminosa liderada pelo ex-
govenador do no Sistema Fecomércio do Estado do Rio de Janeiro. Além da lavagem de dinheiro praticada por meio de
uma empresa de consultoria, esta operação investigou a contratação de funcionários ‘”fantasmas” pelo Sesc e Senac; 20
- Operação Pão Nosso, apurou um esquema de corrupção, evasão de divisas e lavagem de dinheiro envolvendo
contratos da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP). As investigações
apontaram desvios em contratos para o fornecimento de desjejum e lanches a detentos no sistema penitenciário do
Estado; 21 - Operação Rizoma, apura o desvio de verbas dos fundos de pensão dos Correios – o Postalis – e do
Serpros, além de a crimes de evasão de divisas, de lavagem de dinheiro, inclusive no âmbito transnacional, de
corrupção e contra o sistema financeiro nacional; 22 - Operação Câmbio – Desligo, instalada com o objetivo
desarticular um esquema de movimentação de recursos ilícitos no Brasil e no exterior por meio de operações dólar-
cabo, entregas de dinheiro em espécie, pagamentos de boletos e compra e venda de cheques de comércio; 23 –
Operação Cadeia Velha, apura o envolvimento de representantes do Poder Legislativo carioca nos crimes de
corrupção passiva e ativa, lavagem de dinheiro e associação criminosa, em razão do recebimento de propina pagas por
uma grande empresa do ramo da construção civil e da Federação das Empresas de Transportes do Estado do Rio de
Janeiro (BRASIL, 2017).

64
Como foi dito anteriormente, com o aprofundamento das primeiras investigações instauradas
no Rio de Janeiro, apurou-se o envolvimento do ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Sergio
Cabral, em diversos crimes, praticados no período de seu governo (2007 a 2014). Além do ex-
governador, outras figuras que ocupavam altos cargos na administração pública carioca, como
políticos e grandes empresários brasileiros também foram envolvidos nesses crimes, resultando – até
meados de 2018 –, em mais de duas dezenas de Operações correlatas à Lava-Jato de Curitiba e mais
de quatro dezenas de processos criminais instaurados sob a competência da Justiça Federal carioca,
conforme informado pelo site oficial do Ministério Público Federal (BRASIL, 2017).
Estes desdobramentos foram assim esclarecidos pelos operadores que atuaram diretamente
nelas:
- “Aqui, para a gente do Rio de Janeiro, a Operação começou com a Colaboração
Premiada de ex-executivos da Andrade Gutierrez e depois da Carioca Engenharia e
aí veio a Operação Calicute, a prisão do ex-governador Sergio Cabral, do ex-
secretário de Obras, Hudson Braga; do ex-secretário de governo, Wilson Carlos e de
Carlos Miranda, operador financeiro deste esquema criminoso. A colaboração de
Carlos Miranda é riquíssima, inclusive, foi homologada pelo Supremo Tribunal
Federal e apresentou inúmeros anexos, boa parte dos quais ainda estão sob sigilo, ou
seja, ainda não foram deflagradas investigações em relação a esses fatos. Mas, várias
operações que vieram após a Calicute começaram a partir destas colaborações,
sobretudo a do operador Carlos Miranda e de outras pessoas que a gente conseguiu
alcançar”.
(MPF2)

- “Em junho de 2016, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Lava Jato de
Curitiba só poderia ter competência para os fatos envolvendo a Petrobrás. Havia
uma operação, entre as diversas efetuadas por Curitiba e chamada de Radioatividade,
que investigava fraudes envolvendo a ELETRONUCLEAR91 e a construção da
Usina Nuclear de ANGRA 3. O Supremo Tribunal disse que esse processo teria que
vir ao Rio de Janeiro. Então, foi desmembrada a Lava-Jato de Curitiba e esse
processo chegou ao Rio de Janeiro e foi distribuído, aleatoriamente, para um colega
(do Ministério Público), que anteviu ali a necessidade de criação de um grupo, em
razão da quantidade de informações que esse processo trazia e decorrentes de
Colaborações Premiadas, principalmente dos executivos da Andrade Gutierrez e
depois da Carioca Engenharia, empresas de construção, que prestaram diversas obras
públicas no Rio de Janeiro. Então, se formou, em junho de 2016, um grupo de 3
Procuradores. Hoje somos 11. Eu fiz parte também desse grupo inicial de 3
Procuradores. Esses 3 Procuradores conduziram não só as investigações decorrentes
das fraudes na Eletronuclear e na construção da Usina Nuclear de ANGRA 3
(Operação Radioatividade), como também promoveram novas investigações. Essas
novas Operações foram a Pripyat92, que acabou prendendo os diretores da
Eletronuclear, por corrupção. Também houve uma terceira Operação, dentro desse

91
A Eletrobras Eletronuclear é uma empresa brasileira, criada em 1997 com a finalidade de operar e construir usinas
termonucleares no Brasil, sendo a responsável pela geração de, aproximadamente, 3% da energia elétrica consumida no
país. Conforme divulgado em http://www.eletronuclear.gov.br.
92
O nome desta Operação refere-se à cidade ucraniana que se tornou uma espécie de “cidade-fantasma” após o acidente
nuclear em Chernobyl. Ao todo, foram denunciadas 15 pessoas, entre elas, o ex-presidente da Eletronuclear, o almirante
Othon Luiz Pinheiro da Silva.

65
âmbito de ANGRA, que foi chamada Operação Pripyat 2, que processou essas
pessoas por lavagem de dinheiro. Só que nesses elementos de prova que vieram de
Curitiba também vieram anexos de Colaborações Premiadas referentes a outros
fatos ocorridos no Rio de Janeiro. Entre eles, como citei, alguns executivos da
Andrade Gutierrez diziam que o ex-governador, Sérgio Cabral, durante o seu
mandato, de 2007 a 2014, solicitava propina referente a 5% (cinco por cento) de
todos os pagamentos que eram feitos nos contratos de obras públicas”.
(MPF3)93

As informações acima não apenas demonstram que as Colaborações Premiadas promovidas


no âmbito da Operação Lava-Jato de Curitiba foram determinantes para inaugurar a Operação Lava-
Jato no Rio, assim como os acordos de Colaboração Premiada firmados no Rio de Janeiro
fundamentaram todas as demais fases instauradas, em seguida, neste Estado.
O número elevado de investigações – considerando-se a quantidade de tempo decorrido
desde que foi deflagrada a primeira operação carioca - pode ser justificado pelo fato de que muitas
dessas Operações possuem correlação entre si, ou porque configuram um desdobramento da cadeia
de atividades criminosas praticadas pelo mesmo grupo de pessoas, ou ainda, porque constituem
investigações geradas a partir do mesmo núcleo de colaboradores.
As ideias de desdobramento e vinculação entre as Operações Lava-Jato estão também
presentes na seguinte afirmação:
- “Na minha leitura a Lava-Jato é mais uma metodologia. É uma metodologia e, isso
sim, se tem em comum. O método de investigar, de lidar com o tema, de atuar, é
comum em todos esses grupos. O que esses grupos têm em comum é o jurídico.
Todos são desdobramentos daquela investigação criminal que se originou em
Curitiba... Nesse ponto, todas as fases são desdobramentos dessa operação inicial,
por isso o nome. Mas, de fato, o legado, um dos mais importantes – além do
resultado jurídico obtido nos processos respectivos - É essa metodologia”.
(MPF4)

Segundo este entrevistado, o elo entre as diversas Operações Lava-Jato, realizadas no país e
que tiveram em Curitiba sua fonte inicial, decorre da metodologia empregada nessas investigações.
Por metodologia, leia-se o instituto da Colaboração Premiada, como fonte primeira para todas as
informações que provocaram essas investigações. Assim, o que ele chama de legado, portanto, é o
emprego da Colaboração Premiada, enquanto procedimento adotado em todas essas investigações.
A característica inerente a essas Operações, que é o emprego reiterado dos acordos de
Colaboração Premiada, gerou uma intensa conexão entre as diversas investigações instauradas nas
últimas décadas. Esta conexão entre as investigações está representada nos discursos abaixo:

93
Ainda que não tenha feito menção, este Procurador também assinou as denúncias e outras peças das ações penais que
decorreram da Operação Cadeia Velha e da Operação Ponto final.

66
- “Hoje, talvez, estejamos com quase 30 Operações. Ingressamos na Secretaria de
Obras, ingressamos na Secretaria de Transportes e aí entrou a Fetransport; na
Secretaria de Saúde, com o Sergio Cortes, tudo com base acordos de Colaborações
Premiadas94, que passaram a ser feitos em série, gerando o efeito dominó, revelando
esse sistema de corrupção arraigado, até mesmo antes do governo de Sérgio Cabral,
como é o caso do setor de transporte urbano.
E assim, resumidamente é isso”.
(MPF3)

- “Hoje mesmo foi preso o atual governador do Rio de Janeiro, Pezão, a partir de
uma delação de um Deputado Estadual, o Paulo Melo, que está preso. E o
interessante é que o próprio Pezão também está delatando e outras investigações
estão sendo realizadas. Então, na minha visão, é um caminho sem volta. Quando
outras pessoas são presas, tem outras coisas para falar, é como se tivéssemos
puxando um novelo de lã. Uma expressão que o juiz de Curitiba, Sergio Moro utiliza
95
é ‘efeito dominó’ , porque um vai delatando o outro e assim por diante. Não tem
fim”.
(MPF6)

Inicialmente, as declarações acima reproduzidas demonstram a extensão das Operações no


Rio de Janeiro, que atingiram as principais figuras políticas responsáveis pela gestão do Estado nos
últimos mandatos. Também se refere à quantidade de Operações instaladas do final de 2015 (quase 3
dezenas) até o final de 2018, taxa essa considerada elevada, quando comparada aos resultados de
investigações tradicionalmente efetuadas pelas agencias de controle e responsáveis pelos casos
denominados de criminalidade comum, ou que não empregam a Colaboração Premiada, como
afirmou um dos entrevistados, já citado neste texto. Poderia se dizer que a rapidez com que se
deflagram essas investigações é do tipo “lava à jato”.
Os acordos de Colaboração Premiada - considerados por alguns entrevistados como técnica
de investigação, ou meio de obtenção de prova (expressão que também é utilizada pela Lei nº 12.850,
de 2013) -, são celebrados, geralmente, por pessoas já envolvidas em investigações criminais e estas,
por sua vez, também podem produzir novos acordos de Colaboração de outras pessoas que foram
delatadas pelo colaborador inicial. Esta conexão também poderia ser representada metaforicamente
por um novelo de lã sem fim, cujo fio puxado vai se espalhando e embaralhando, formando uma
intrincada teia de suspeições e o surgimento de novos atores, que guardam alguma relação

94
Referência às Operações Calicute, já mencionada; Ponto Final, que apurou o esquema de propinas entre a Fetranspor e
o ex-governador, em troca de favorecimento em licitações de linhas de transporte de passageiros e a concessão de
bilhetes e cartões de passagem, e Fratura Exposta, que apurou fraudes praticadas por empresas que formavam cartel
para direcionar as compras de medicamentos e equipamentos médicos, pelo secretário de saúde do governo de Cabral,
Sérgio Cortes. A denúncia assinada pelo entrevistado e outros nove representantes do Ministério Público Federal pode
ser vista em http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-imprensa/docs/pr-rj/denuncia-fatura-exposta.
95
Trata-se de expressão empregada pelo então juiz Sérgio Moro (2010) – nomeado para o cargo de Ministro da Justiça,
em 2019 -, em artigo escrito quando ainda atuava à frente da “força-tarefa” de Curitiba. O efeito dominó é representado
pela imagem das peças do jogo alinhadas a pouca distância uma da outra e que vão sendo derrubadas sequencialmente,
apenas a partir do toque da primeira peça.

67
(profissional, de amizade ou de parentesco) com os atores anteriores, nesta cadeia sucessória de
investigações.
Todavia, o que poderia parecer surpreendente extrair da fala de um agente público que tem a
finalidade de fiscalizar o cumprimento da lei é a naturalização do emprego da “prisão” como
estratégia para obter a colaboração. A representação de que “a pessoa quando está presa tem coisas a
falar” - significando que para se libertar da prisão acaba denunciando seu envolvimento ou dos seus
companheiros no crime -, remete às técnicas inquisitoriais do século XVIII, especialmente
empregadas pelo Tribunal do Santo Ofício (SILVA, 1999 e Bethencourt, 2009).
Em uma sociedade que passou pela experiência da tortura institucionalizada (JESUS, 2009;
VARGAS, 2012), não é difícil entender a mitigação dos seus efeitos e a sua permanência de longa
duração. É bastante peculiar, portanto, que tais prisões estejam dentro da lógica do Código de
Processo Penal, que as justificam96. A novidade agora é que se oferece uma alternativa, que é a
Colaboração Premiada. Afinal, como afirmou um entrevistado: “se você me ajudar, a gente pode
fazer um acordo”97.
A Colaboração Premiada é um instituto que protagoniza todos os processos judiciais
instaurados a partir das Operações Lava-Jato e correlatas porque as informações obtidas a partir
delas permitiram revelar os inúmeros e complexos esquemas criminosos ali investigados. Tal aspecto
sempre foi enfatizado pelos entrevistados, como pode ser visto na seguinte declaração:
- “Houve um acordo de Colaboração Premiada muito interessante que foi o do
Jonas Lopes, ex-presidente do Tribunal de Contas do Estado. Seria impossível a
gente chegar aos demais Conselheiros, se não fosse o testemunho de algum dos
Conselheiros envolvidos, porque as tratativas eram feitas diretamente entre eles. O
Presidente deste tribunal era quem controlava e fazia a distribuição da propina. Quer
dizer, se não fosse um deles, a gente jamais saberia. E também as técnicas de
lavagem de dinheiro eram bem sofisticadas. Elas acabam dificultando muito aquele

96
A lei processual penal brasileira prevê as seguintes modalidades de prisão: a) Prisão-pena e b) a prisão sem pena
(processual ou cautelar). A prisão pena é imposta em virtude de uma sentença penal condenatória. Até recentemente,
para início de cumprimento, deveria ter seu trânsito em julgado ocorrido, ou seja, somente poderia ser executada
quando não houvesse mais recursos contra tal decisão, equivalendo ao esgotamento dos recursos nas três instâncias
judiciais. Contudo, por ocasião do julgamento dos processos da Operação Mensalão, o Supremo Tribunal Federal
passou a entender que a partir da sentença penal condenatória confirmada pelo 2º grau de jurisdição, já seria possível ao
juiz da execução determinar seu cumprimento. A Prisão sem pena (processual): tem natureza processual cautelar, com
o objetivo de garantir o bom andamento da investigação e do processo penal e evitar, inclusive, que o réu volte a
cometer crimes, se solto. Sua decretação se fundamenta no que a doutrina jurídica denomina de "fumus bonis juris"
(fumaça do bom direito) e "periculum in mora" (perigo da demora), considerados como requisitos necessários para a
prisão cautelar (previstos no artigo 312 da lei processual penal). Enquanto o primeiro se refere à existência de indícios
de autoria de uma infração penal e comprovada existência de um crime, o segundo refere-se a uma análise que
determina a urgência da prisão, em face do perigo de sua demora acarretar prejuízo irreparável ao interesse processual
ou para acautelar o meio social do perigo da reincidência delitiva. As espécies são a prisão preventiva e a prisão
temporária (TOURINHO FILHO, 2010), descritas em outra parte deste texto.
97
Na doutrina jurídica brasileira alguns autores criticam esta estratégia. Dentre outros, Aury Lopes Júnior associou tal
prática com a tortura. Segundo este autor, esta estratégia seria uma “releitura do modelo medieval, em que se prendia
para torturar, com a tortura se obtinha a confissão, e, posteriormente usava-se a confissão como a rainha das provas”
(CANÁRIO, 2016).

68
“follow the Money”98. Isso porque, a distribuição da propina era feita em transações
em espécie, ou quando não era feita através de dinheiro em espécie, era por meio de
contas no exterior: há uma conta da empreiteira no exterior, que leva para a conta da
“offshore”99 no exterior.
Quer dizer, a gente jamais conseguiria isso sem ao menos uma indicação de que
houve essa transação, para aí, sim, a gente pedir a cooperação internacional e
conseguir rastrear essas contas.
A Colaboração Premiada, então, tem essa função sem a qual a gente não
conseguiria avançar, sem dúvida nenhuma”.
(MPF2)

Também se percebe, nesta entrevista, a ideia de que sem as Colaborações Premiadas, as


investigações não atingiriam outras práticas criminosas (leia-se também, outras Operações). O
exemplo citado pelo entrevistado se refere à Operação Quinto do Ouro e enfatiza o fato de que sem a
“colaboração” dos conselheiros e do então presidente do Tribunal de Contas do Estado, considerado
como o responsável pela gestão da propina que recebia e repassava para outros cinco Conselheiros
que integravam este Tribunal e, inclusive, por meio da compra superfaturada de cabeça de gado,
como se soube posteriormente100.
Nesse trecho da entrevista é também afirmado que a dificuldade de acesso às provas – caso a
investigação fosse realizada com o emprego das técnicas tradicionais (tais como, escuta telefônica,
quebra de sigilo bancário etc.) -, é afastado em razão da Colaboração Premida do integrante da
organização criminosa, o que ressalta ainda mais o papel do instituto na persecução criminal. Assim,
especialmente para crimes onde há desvio de dinheiro, recebido ilicitamente e sua ocultação, nos
quais a investigação depende, inclusive, de cooperação de outras agências até mesmo internacionais,
a Colaboração Premiada é vista pelos operadores entrevistados como uma técnica imprescindível,
“sem a qual a gente não conseguiria avançar, sem dúvida nenhuma”. Por isso mesmo, o papel deste
insider, é incentivado e, muitas vezes, até “protegido” por estes agentes estatais, como será visto em
seguida101.

98
Uma referência à técnica de investigação que consiste em seguir o “caminho” percorrido pelo dinheiro obtido
ilicitamente pelas organizações criminosas.
99
Offshore é um termo da língua inglesa e que significa “afastado da costa”, na tradução para o português. Em termos
financeiros, é designada por offshore uma empresa que tem a sua contabilidade num país distinto daquele onde exerce a
sua atividade principal. Suas contas bancárias são abertas em territórios onde há menor tributação para fins lícitos.
100
Em sua delação, este colaborador apontou outros cinco conselheiros do Tribunal de Constas do Estado do Rio de
Janeiro e ensejou a instauração da Operação Quinto do Ouro, conforme divulgado em https://g1.globo.com/rio-de-
janeiro/noticia/operacao-quinto-do-ouro-nasceu-de-delacao-de-ex-diretor-da-odebrecht.ghtml.
101
Vale ressaltar que esta pode ser uma compreensão limitada à atualidade do exame e à realidade dos entrevistados.
Pois, como Kant de Lima e Mouzinho (2016, p. 521) - ao examinarem como esses procedimentos da Lava-Jato, em
especial, a Operação Mensalão, deixaram à mostra as rotinas da Justiça criminal brasileira -, afirmaram que o
Ministério Público “mudou o tom de seu discurso, emprestando um caráter moral diverso ao delator, ao ressaltar o
termo utilizado no texto legal, colaborador, ainda que a colaboração seja uma das poucas saídas oferecidas aos
acusados quando presos e contra os quais já se produziam novas acusações”.

69
O caráter imprescindível e utilitário das Colaborações Premiadas para as Operações Lava-
Jato no Rio de Janeiro foi exaustivamente ressaltado pelos entrevistados, como são exemplos os
seguintes trechos de suas entrevistas:
- “Eu acho que a Colaboração Premiada é uma ferramenta que hoje se transformou
em uma das principais fontes de informação, principalmente nessas investigações
mais complexas. Ela não pode ser, obviamente - pelas peculiaridades; pelos efeitos
que ela gera; pelo grau de sensibilidade que ela impõe -, um instrumento a ser
banalizado, né? Você não pode utilizá-la em qualquer ambiente, em qualquer tipo de
investigação. Ela “cai bem” para esses formatos em que você investiga a
macrocriminalidade. Ela inverte aquela lógica da lei do silêncio, que é típico das
organizações criminosas”.
(MPF1)

- “A gente encara a Colaboração Premiada como uma técnica de investigação, uma


nova técnica de investigação e como o Supremo Tribunal Federal já definiu, é um
meio de obtenção de prova. Então, aqui na Lava-Jato, sobretudo, a gente tem as
Colaborações Premiadas como um “start” de uma nova investigação. Não obstante
outras fontes de investigação que a gente tem, como as denúncias anônimas, ou
indícios a partir de outras investigações; indícios de práticas de outros crimes, a
Colaboração Premiada é um grande “start”, é uma grande fagulha para o início da
investigação. Em se tratando de crimes de corrupção, que são crimes, geralmente,
travados entre quatro paredes, sem registros, sem provas documentais, a
Colaboração Premiada passa a ser uma das grandes fontes de início das
investigações e dá um bom norte para a gente buscar outras provas, enfim, outros
elementos que corroborem ou não a versão daquele colaborador”.
(MPF2)

Na mesma linha foram as seguintes declarações:

- “Por exemplo, na organização criminosa, normalmente, antes da Colaboração


Premiada, o que determinava a descoberta dela eram as interceptações telefônicas.
As receptações telefônicas, às vezes, duravam mais de um ano, às vezes, dois anos e
você não tinha completamente delineado uma organização criminosa, porque as
pessoas falam de forma codificada. Havia um gasto enorme com material humano
para efetivação das escutas, porque há milhares e milhares de conversas, já que estas
escutas são feitas 24 horas por dia e todos os dias da semana e aquilo tem que ser
analisado, tem que ser interpretado. Isso gerava, muitas vezes, nulidade nos tribunais
porque não se admitia que o analista fizesse interpretações. Então, volumes e
volumes de documentos eram produzidos, decorrentes da necessidade da degravação
de áudio. Era uma prova muito contundente, que até então, conseguiu abalar algumas
estruturas de organizações criminosas, mas nunca conseguiu debelar de forma
definitiva.
Já na Colaboração Premiada, aparecem todos os fatos de cima para baixo. Alguém
que está inserido ali dentro e que fala quem fazia o que, como e quando. Então, a
partir dali o trabalho de investigação fica muito mais fácil. Passa a ter um atalho e
tem que investigar, simplesmente, provar que houve um almoço em determinado
lugar, que houve um encontro, que houve uma ligação... Isso, quando alguém aponta
como foi e quando foi, fica muito mais fácil, do que quebrar o sigilo e ficar
procurando sem uma indicação prévia. Então, essa que fez, e que tem feito toda a
diferença. A investigação fica muito mais célere e muito mais eficiente, quando se
aponta onde a gente tem que ir buscar os elementos. E o colaborador está ali para
isso. Ele tem todo o interesse que a investigação seja eficaz porque se não for, ele

70
não terá os benefícios da Colaboração. Se ele omitir algum fato, ele perde os
benefícios da Colaboração. Se ele mentir, ele perde os benefícios da colaboração. E
ninguém quer correr esse risco”.
(MPF3)

-“Eu estou integrando a “Força-Tarefa” da Lava Jato no Rio de Janeiro há um pouco


mais de um ano, e posso dizer, sem errar, que sem as Colaborações Premiadas nós
não chegaríamos aonde chegamos. A qualidade das informações trazidas nas
Colaborações Premiadas fez com que as investigações tivessem um êxito muito
maior e, na verdade, nós tivéssemos um ganho de escala muito, muito grande.
Então, com as Colaborações Premiadas, com as informações dadas por pessoas que
integram as organizações criminosas ou grupos criminosos, essas informações são
precisas e isso nos permite um grau de detalhamento nas nossas investigações e,
depois, nas denúncias que oferecemos, assim, muito, muito grande. A gente, agora,
consegue oferecer denúncias trazendo detalhes que antes a gente não conseguia e eu
posso dizer que muito em razão das Colaborações Premiadas”.
(MPF5)

As declarações acima indicam, portanto, o caráter prático e imperativo das Colaborações


Premiadas para a persecução penal, especialmente quando um dos entrevistados afirma que por meio
dela o colaborador indica quais são as provas que as investigações precisam recolher, descreve os
fatos e revela onde serão encontradas as informações que confirmarão o que ele alega. Estas
informações não só apontam a importância da Colaboração Premiada para a deflagração, produção e
reprodução das Operações Lava-Jato, mas também indicam a utilidade desse instituto e dos agentes
que colaboram com essas investigações para as agências da persecução criminal.
Também ingressa nessa observação a declaração de que tais práticas foram responsáveis
pela redução dos custos (financeiro e pessoal) que seriam necessários para o desenvolvimento de
investigações relacionadas a essa modalidade de crime102; serviram de atalho para a obtenção das
provas ou aceleraram sua descoberta; permitiram o alto grau de detalhamento das atividades
criminosas, que resultaram na eficácia da investigação.
Mesmo sendo considerado útil, eficiente, ou “um grande start” para a persecução criminal, o
instituto da Colaboração Premiada é empregado de forma seletiva pelos operadores, pois como
afirmou um dos entrevistados acima, somente se destina à macrocriminalidade, assim considerados
os crimes econômicos que atingem o Estado. Quando o entrevistado afirma que o instituto não pode
ser “banalizado”, significa que não se destina a todos os criminosos. Esta lógica afeta, portanto, o
instituto da igualdade jurídica, na medida em defende que somente os criminosos considerados “de
colarinho branco” receberão este tratamento. Neste sentido, vale lembrar que Kant de Lima e
Mouzinho (2016) já argumentam que nem mesmo quando o processo criminal brasileiro muda seu

102
Não encontrei, durante a pesquisa, nenhuma fonte oficial das instituições de controle que indicasse a quantidade de
recursos financeiros e pessoal empregados nessas investigações, além do trabalho de campo de Vidal (2013) e alguns
noticiários, como mencionarei mais adiante.

71
alvo para atingir a parcela da população brasileira mais favorecida economicamente, a desigualdade
jurídica não é alterada, apenas o “ethos inquisitorial da sujeição criminal” é mantido.
Sob os aspectos da celeridade e do detalhamento das informações, segundo as declarações
dos entrevistados, a Colaboração Premiada promoveu um aporte gigantesco para as agências de
persecução criminal e que pode ser representado pela quantidade de investigações deflagradas e o
número de pessoas investigadas nos últimos anos, números estes divulgados com detalhes nos sites
oficiais dessas agências.
Contudo, as análises sobre os resultados das investigações para a manutenção das garantias
mais elementares do processo penal indicam outra direção. Isso porque as técnicas (ou estratégias)
empregadas para a obtenção dessas “colaborações”, inclusive com o cerceamento de liberdade ou sua
ameaça - desde os primeiros acordos firmados no bojo dessas Operações -, assim como a divulgação
de investigações sob o aparato da mídia, precipitando sua culpabilidade perante a opinião pública,
têm sido alvo de inúmeras e severas críticas por parte de processualistas penais renomados no campo
jurídico nacional e internacional103, face à violação dos direitos à privacidade, ao nome e à imagem
dos envolvidos. Como justificativa, entende-se que se trata de um acordo pré-processual, não existem
as garantias do processo penal (direito ao silêncio etc.), pois ainda não há processo judicial104.
Ainda em relação à operacionalização, foi possível verificar também que as diferentes
instâncias, agências e atores que integram o mutirão105 organizado no interior dessas Operações
podem desempenhar papéis muito distintos, de acordo com o local onde elas estão sediadas e o
desenho institucional criado para elas106. Então, quando se emprega o termo Lava-Jato, o primeiro

103
Na doutrina jurídica brasileira essas críticas podem ser vistas em Streck (2016 e 2019); Silva (2017), entre outros. Na
doutrina estrangeira, em parecer elaborado em resposta à consulta do governo português sobre pedido de cooperação
jurídica com o Brasil, Canotilho e Brandão (2016, p. 17) consideraram que acordos de Colaboração Premiada dotados
de cláusulas de cumprimento imediato de pena privativa de liberdade são “clamorosamente ilegais e inconstitucionais”.
Soma-se a esta crítica a de uma representante do próprio Ministério Público português, que após examinar a sentença
condenatória do ex-presidente Lula da Silva afirmou que “o mais notável é que não estão claramente identificados os
factos provados. Toda a decisão é uma redonda motivação” e que "o conceito de prova indiciária demasiado longe.
Nenhuma das provas é suficientemente consistente e conclusiva" (SOUZA, 2018).
104
Fontainha e Lima (2018) analisaram a combinação de elementos técnico-processuais de três momentos desta
Operação: a adoção da “teoria do domínio do fato”, importada do Direito alemão pelo ex-ministro do Superior Tribunal
Federal, Joaquim Barbosa, para julgar o chamado Mensalão; a estratégica do emprego da prisão preventiva, da delação
premiada e da divulgação para a imprensa realizada por Sérgio Moro e, finalmente, a anulação da nomeação de Lula
como ministro de Dilma Rousseff, feita monocraticamente pelo ministro Gilmar Mendes. Chamo a atenção para o fato
de que o próprio jurista alemão, que criou a teoria do domínio do fato, acentuou alguns equívocos quanto ao seu
emprego, como pode ser visto em https://www.conjur.com.br/2014-set-01/claus-roxin-critica-aplicacao-atual-teoria-
dominio-fato.
105
É, ao menos, curioso que o termo empregado para designar esses mutirões seja a categoria “força-tarefa”, em inglês,
“task force”, empregada no meio militar para designar uma determinada unidade, criada para realizar uma missão
específica, em determinado tempo.
106
Em seus estudos, Vidal (2013) afirmou que esse desenho operacional não atinge (ou se dirige para) a maioria dos
crimes que ocupam as agendas das instituições de controle e investigação criminal no Brasil. Além disso, dentre outras
críticas acerca dessa modalidade de trabalho, a autora chama atenção para o fato de que grande parte do trabalho
policial se faz ao largo das grandes operações, com poucos recursos.

72
cuidado que se deve ter é o de perguntar sobre qual Operação Lava-Jato se está falando? Isto porque,
a investigação de Curitiba difere da carioca e da mineira. A Operação Lava-Jato do Rio não tem
nenhuma semelhança com a de São Paulo ou a do Distrito Federal e por aí vai107. Talvez a única
semelhança entre todas elas seja mesmo o fato de as Colaborações Premiadas inaugurá-las, dá-lhes
suporte, sobrevivência e gerar um vínculo permanente entre elas, especialmente em razão do
compartilhamento das provas produzidas em seu bojo, assunto que abordarei em outra parte deste
texto.
A experiência de Curitiba, por exemplo, reuniu investigações realizadas de forma
complementar ou simultaneamente pela Polícia Federal e Ministério Público Federal. Já no caso do
Rio de Janeiro – até o final da redação deste texto108-, todas as Operações foram deflagradas pelo
Ministério Público Federal carioca, com exceção da Operação Furna da Onça, instaurada pela
Polícia Federal. A participação de outros órgãos de controle e fiscalização, conforme o caso, se deu
de forma secundária, ou acessória, como demonstram as seguintes declarações:
- “A Polícia Federal não celebra acordos porque não tem tido ‘pernas’ para
acompanhar o nosso ritmo aqui.
Como as investigações aqui no Rio, desde o início, foram conduzidas pelo
Ministério Público, eu acho que a Polícia está...
Aqui no Rio, especificamente.
Em Curitiba, a gente sabe que é um pouco diferente... Mas aqui no Rio a Polícia não
tem tido pernas para acompanhar a gente. Eles têm pouca gente na força-tarefa aqui.
Nós aqui não, né? Nós somos 11 (onze) Procuradores e os 11 (onze) trabalhando de
oito da manhã às nove da noite, todos os dias, finais de semana, enfim...
É um ritmo que, se não tiver muita dedicação pessoal, o ‘negócio’ não anda!”
(MPF2)

- “Tem a investigação direta do Ministério Público, a gente poder examinar


diretamente, mas o Supremo Tribunal Federal entendeu que a Polícia também pode.
O mesmo grupo pode examinar pelo ângulo da improbidade do crime. Tem uma
atribuição comum entre as instituições para olhar para o fato e não a competência.
A gente trabalha em um Núcleo de Combate à corrupção, nos ofícios de combate à
corrupção na primeira instância com competência de improbidade e de crime. O
mesmo órgão, o Ministério Público, olha pelos dois fatos. A Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público, que é a 5ª Câmara, cuida tanto da parte de
improbidade, quanto da parte de crimes contra a administração”.
(MPF4)

107
Até o término dessa pesquisa, a Operação Lava-Jato em São Paulo, que recebeu do Supremo Tribunal Federal mais de
40 petições requerendo a instauração de investigações. Até o final de 2018, o órgão de acusação paulista havia
elaborado apenas uma denúncia, conforme divulgado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43971475.
108
Pouco antes do término desse texto foi noticiada pela mídia brasileira a instalação da Operação Furna da Onça, que
constituiu um desdobramento da Operação Cadeia Velha. O nome da investigação era uma referência ao que ocorria
em uma sala localizada ao lado do plenário da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), utilizada pelos
parlamentares investigados como local onde promoviam acordos entre si sobre a forma como votariam os projetos de
leis colocados em pauta, em troca do recebimento de propinas. Este ato era denominado pelos próprios legisladores
como "a hora da onça beber água". A Polícia Federal foi a responsável pela investigação. Conforme divulgado em
https://extra.globo.com/noticias/brasil/furna-da-onca-operacao-contra-deputados-da-alerj-a-hora-da-onca-beber-agua-
23219677.html.

73
Como assinalado pelos entrevistados acima indicados, a Polícia Federal do Rio de Janeiro
não realiza, diretamente, as investigações, como acontece, por exemplo, em Curitiba, sendo tal poder
investigatório pela Polícia assunto já apreciado pelo Supremo Tribunal Federal. Isto porque, em
relação às causas e temas que abrangem as Colaborações Premiadas e, consequentemente, as
Operações Lava-Jato e congêneres, a corte suprema do país funciona tanto como tribunal criminal
quanto órgão responsável pelo julgamento de pedidos sobre a (in)constitucionalidade de dispositivos
da Lei nº 12.850, de 2013 e do próprio instituto da Colaboração Premiada. O fato de suas decisões
regularem apenas pontualmente os casos que examina, já constituiria, por si só, um entrave ao
tratamento isonômico das demandas relacionadas ao instituto, já que nem todas chegam a ser
apreciadas pelo órgão. Além disso, como as decisões dessa corte não são consensualizadas (DE
SETA, 2015), significa que mesmo aquelas ali apreciadas não receberão idênticos julgamentos, como
será visto neste texto.
Enquanto isso, o Ministério Público Federal vem emitindo diversas normas que regulam a
atividade investigatória dos seus membros. A Resolução N.º 183, de 2018, do Conselho Nacional do
Ministério Público, por exemplo, afirma que a investigação criminal iniciada e presidida pelo
Ministério Público será formalizada em um procedimento sumário (administrativo e
desburocratizado), que pode servir ou não como instrumento para a propositura da respectiva ação
penal. De acordo com essa norma,
Art. 1º O procedimento investigatório criminal é instrumento sumário e
desburocratizado de natureza administrativa e investigatória, instaurado e presidido
pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, e terá como finalidade
apurar a ocorrência de infrações penais de iniciativa pública, servindo como
preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação
penal.
§ 1º O procedimento investigatório criminal não é condição de procedibilidade ou
pressuposto processual para o ajuizamento de ação penal e não exclui a possibilidade
de formalização de investigação por outros órgãos legitimados da Administração
Pública.
§ 2º A regulamentação do procedimento investigatório criminal prevista nesta
Resolução não se aplica às autoridades abrangidas pela previsão do art. 33, parágrafo
único, da Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979 (BRASIL, 2018).

Desta forma, no cenário atual brasileiro, concorrem dois procedimentos de investigação


criminal: o Inquérito Policial (IP) presidido pela autoridade policial e o Procedimento Investigatório
Criminal (PIC), sob a responsabilidade do Ministério Público. Em ambos, o sigilo impede a
participação da defesa.
A representatividade da atuação do Ministério Público nesta tarefa pode ser observada a
partir dos dados divulgados pelo site MPF Combate à Corrupção, relativos à quantidade de “feitos

74
extrajudiciais” – assim considerados os procedimentos investigatórios criminais e administrativos; os
pedidos de cooperação internacional; os procedimentos preparatórios; os inquéritos civis e notícias de
fatos -, realizados, anualmente, por essas Operações e que constituem procedimentos que não
chegaram a se transformar, ainda, em processo judicial, mas que servirão como “justa causa” para o
oferecimento de denúncia e o eventual início de uma ação penal. Estes dados revelam que houve um
aumento considerável nos últimos três anos - no período de 2015 até 2017, como demonstra o gráfico
abaixo:

GRÁFICO I QUANTIDADE DE FEITOS EXTRAJUDICIAIS


INSTAURADOS POR ANO

Quantidade de feitos extrajudiciais instaurados


30.000
19.945 19.209
20.000 17.392
14.650 14.282
11.801
10.000 7.483

0
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

Fonte: Site MPF Combate a Corrupção. Disponível em


http://combateacorrupcao.mpf.mp.br/estatistica, acesso em 15 de agosto de 2018.

Assim, de acordo com esse gráfico, o período de maior instauração destes feitos aconteceu
entre os anos de 2015 a 2017. Ao mesmo tempo, dados divulgados em 2017 pelo Conselho Nacional
de Justiça (Relatório Justiça em Números ano base 2016), apenas relativos à quantidade de
investigações realizadas por ambas as instituições (Ministério Público e Polícia), indicam que
somente estas atividades ultrapassaram a 80 (oitenta) mil demandas apresentadas às varas federais do
país, conforme gráfico (Gráfico II) abaixo:

GRAFICO II – INVESTIGAÇÕES POLICIAIS E DO MINISTÉRIO PÚBLICO ENVIADAS


ÀS VARAS CRIMINAIS FEDERAIS EM 2016

75
Fonte: Conselho Nacional de Justiça – Relatório Justiça em Números (disponível em
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/10/b8f46be3dbbff344931a933579915488.pdf), grifei.

De acordo com este gráfico, somente em 2016, foram instaurados nas varas criminais 64.865
Inquéritos Policiais e 22.694 Procedimentos Investigatórios Criminais do país, correspondendo,
respectivamente, 5,2% e 1,85% das demandas que passaram por esses juízos. Mesmo somando-se
estes atos aos Procedimentos Investigatórios que versam sobre representação criminal (6.545) –
classe 13 - e auto de prisão em flagrante (3.071) – classe 19 -, que também podem se inserir nas
atividades desenvolvidas pelo Ministério Público no curso das Operações Lava-Jato, a quantidade de
atos investigatórios promovidos por este órgão equivale à metade dos que foram realizados pela
Polícia, revelando a prevalência dessa última instituição em tais atividades.
Estes números podem ser interpretados, considerando a competência funcional do Ministério
Público Federal determinada pela Constituição de 1988. Como lembra Mouzinho (no prelo), as
investigações realizadas pelo Ministério Público são seletivas, não apenas porque se destinam,
exclusivamente, às ações e recursos de interesse da União Federal, de suas autarquias e empresas
públicas federais, dentre outras causas especificadas nos artigos 108 e seguintes, do texto
constitucional109, mas também porque os casos que devem ser objeto de investigação são
selecionados com base em critérios discricionários destes atores.

109
Compete à Justiça Federal processar e julgar as causas em que a União, suas entidades autárquicas e empresas públicas
federais figurem, como interessadas, na condição de autoras ou rés, além de outras questões de interesse da Federação.
São comuns na Justiça Federal os conflitos que atingem um grande número de pessoas, como: correção monetária do
FGTS, as ações previdenciárias, os processos tributários e os que tratam dos financiamentos da casa própria. A Justiça
Federal da 2ª Região – JF2 está estruturada da seguinte forma: o Tribunal Regional Federal da 2ª Região - TRF2,
sediado no Rio de Janeiro – RJ, e duas Seções Judiciárias: Seção Judiciária do Rio de Janeiro – SJRJ e Seção Judiciária
do Espírito Santo – SJES. A primeira instância da JF2 compõe-se de Juízes Federais, em exercício nas seções
judiciárias – sediadas nas capitais dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo – e nas subseções judiciárias –
situadas nas principais cidades do interior. Cabe à primeira instância, em regra, o julgamento originário das questões
apresentadas à Justiça Federal. Quanto à segunda instância de julgamento, o TRF2 julga, em grau de recurso, as ações
provenientes da primeira instância (seções judiciárias), desfrutando, ainda, de competência originária para o exame de
algumas matérias previstas no art. 108 da Constituição da República de 1988.

76
Não podemos esquecer, também, que em relação às atividades dessas duas instituições,
apenas uma delas possui responsabilidade para ajuizar a ação penal pública. Esta exclusividade deixa
evidente a relevância do papel desta instituição no processo penal brasileiro.
No cenário onde prevalecem as Colaborações Premiadas como técnica das investigações
criminais - que ficaram conhecidas como Operação Lava-Jato e suas correlatas -, é possível afirmar
que nos dias atuais esse poder de investigação do Ministério Público se ampliou, sensivelmente. Os
próprios operadores entrevistados enfatizam essa ampliação, como pode ser visto na seguinte
afirmação:
- “O Ministério Público, no cenário das Colaborações Premiadas ganha uma atuação
muito mais abrangente. Com a Constituição de 88, junto com as prerrogativas do
Ministério Público, vieram também as responsabilidades. De positivo, o que eu
percebo, é que desde então, a instituição veio evoluindo, ocupando cada vez mais os
seus espaços, exatamente no exercício dessas funções que foram constitucionalmente
deferidas”.
(MPF1)

Destaco também a representação dos operadores em relação a sua própria atividade, como
pode ser visto na seguinte declaração:
- “O sucesso da Colaboração no Rio se deve à forma organizada do nosso trabalho.
Seja na primeira instância, seja na segunda, com o Superior Tribunal de Justiça e até
com o Supremo Tribunal Federal”.
(MPF6)

A organização do grupo – uma referência à força-tarefa -, segundo este entrevistado, foi o


que garantiu o sucesso da Colaboração Premiada no Rio de Janeiro. É interessante perceber que,
neste caso, a referência ao resultado exitoso dessas investigações foi atribuído à Operação em si, e
não ao instituto que premia a colaboração do investigado.
A adesão de diversas instituições de controle e fiscalização ao acordo de Colaboração
Premiada me fez recordar os estudos do filósofo político John Hagan et all (1979) e sua teoria sobre
o Sistema de Justiça Criminal, em especial à sua crítica sobre os diferentes subsistemas de Justiça,
que em sua visão atuariam frouxamente desconectados, mas quando pretendessem atingir propósitos
políticos, eles se conectariam.
A noção segundo a qual as organizações formais não atuam de forma coordenada e a partir
de certo controle (interno e externo), mas, quase sempre, frouxamente interligadas umas às outras, foi
inicialmente proposta por Meyer & Rowan (1977), cujas pesquisas empíricas apontaram que nestas
organizações as regras são constantemente violadas ou, quando são implementadas, têm
consequências incertas. A fiscalização e o controle de suas atividades são acontecimentos

77
esporádicos, possibilitando uma vaga coordenação entre elas110. Segundo os autores, tal
característica, presente na maioria das organizações das sociedades modernas, decorre do fato de sua
estrutura formal ser uma consequência da ideia de mitos do ambiente, reproduzida socialmente, tanto
pela opinião pública quanto pela lei. Tais mitos são incorporados à estrutura da organização como
regras cerimoniais, conferindo-lhe legitimidade, mesmo se inconsistentes ou conflitantes com o seu
funcionamento efetivo. Para solucionar tais inconsistências e conflitos entre regras cerimoniais e
efetividade, estas organizações se valem de duas estratégias articuladas. Uma delas é a disjunção, de
maneira a possibilitar a minimização dos conflitos. A outra é a manifestação de confiança e de boa fé
interna e externamente. Significa que a confiança nos mitos justifica a existência da organização, ao
mesmo tempo em que há pressuposição de que todos os participantes da organização agem de boa fé.
Essa ideia de confiança está fundada na previsibilidade (absorção de incertezas) e na boa vontade
(premissa de que todo mundo age de boa fé) e nas expectativas mútuas sobre comportamentos futuros
que permitem o controle e coordenação das atividades e dos subsistemas, em um contexto de
disjunção. Ambas as estratégias permitem evitar uma inspeção ou avaliação efetiva. Assim, a
disjunção tem o efeito de minimizar os conflitos e as disputas gerados a partir da relação entre as
regras formalizadas e as práticas dos seus atores, bem como os que surgem entre as unidades dessas
organizações dirigidas à atividade fim. Esta quebra da integração possibilita à organização legitimar
sua estrutura formal, ao mesmo tempo em que suas atividades continuam respondendo às
necessidades práticas que lhe são colocadas. Ao invés do controle e avaliação, prevalece a lógica da
confiança (MEYER & ROWAN, 1977).
Esta orientação foi incorporada por Hagan e outros (1979) em sua análise sobre o Sistema de
Justiça Criminal americano. Examinando a influência da atuação dos probation officers111 nos
processos de decisão, os autores perceberam que a criação do subsistema de probation se referia
muito mais à fabricação de mitos legais do que com a reestruturação dos processos de decisão
daquele sistema. Os autores descrevem as prescrições da justiça individualizada como regras
institucionalizadas incorporadas pelos tribunais criminais de forma a atender às suas necessidades de

110
De acordo com estes autores: “organizações formais são quase sempre frouxamente ajustadas: elementos estruturais
são apenas frouxamente ligados uns aos outros, regras são frequentemente violadas, decisões são constantemente não
implementadas e, se implementadas, têm consequências incertas, tecnologias têm eficiência problemática e sistemas de
avaliação e inspeção são subvertidos ou tornam-se tão vagos que permitem pouca coordenação” (MEYER & ROWAN,
1977, p. 343).
111
Segundo Hagan et all (1979), foi nos departamentos de cortes judiciais americanas responsáveis pela apuração e
julgamento de causas relativas às infrações praticadas por jovens que surgiram os probation officers, ou seja, agentes
estatais que desenvolvem a função de investigar a personalidade e as circunstâncias legal e social do acusado para, em
seguida, elaborar uma recomendação individualizada para a sentença. Mais tarde estes atores seriam incorporados em
outras cortes. Ainda segundo o autor, a finalidade da criação desses departamentos seria uma consequência do
postulado do direito positivista que relaciona o castigo ao criminoso e não ao crime.

78
legitimação. Para estes, o sistema funciona, em relação à justiça individualizada, ora de forma
integrada ora desintegrada. Quando as recomendações feitas pelos agentes de probation não
conflitam com as demandas de eficiência do tribunal, prevalece a junção. Quando há conflitos, a
disjunção é a forma encontrada para preservar o mito de individualização. A disjunção nos tribunais
americanos realiza-se por meio da ampliação das cadeias de decisão. Assim, o papel do probation
officer seria cerimonial, pois preserva o mito da individualização e confere legitimidade aos tribunais.
A referência ao grau de articulação ou afrouxamento das instituições que compõem o
Sistema de Justiça Criminal brasileiro já foi descrita por Coelho (1986), que baseado em dados
retirados de inquéritos policiais e processos judiciais relativos a crimes e contravenções, bem como
na reconstituição do fluxo decisório verificado no Rio de Janeiro, no período 1942-1967,
desenvolveu a hipótese da administração da Justiça Criminal ser constituída de “subsistemas
frouxamente integrados”112. Vargas (1999) também identificou o Sistema de Justiça Criminal
brasileiro funcionando de forma relativamente articulada para certos tipos de estupradores e segundo
a relação destes com a vítima. Em produção mais recente, Vargas e Rodrigues (2011), aprofundaram
os estudos de Coelho (1986) sobre “os papéis” dos atores deste sistema, desenvolvendo a ideia de que
o inquérito policial, em particular, permite algum grau de integração neste sistema. Acompanhando
estudos mais recentes da literatura internacional, as autoras percebem que a disjunção do Sistema de
Justiça Criminal não é uma característica exclusiva do nosso sistema, já que até os anos 1980,
delimitou a maioria dos Sistemas de Justiça Criminal no mundo, constituindo sua expressão mais
visível, o efeito funil, ou seja, a seleção dos clientes e fatos que serão apreciados por este sistema.
Citando Garland (2008), as autoras seguem afirmando que, na modernidade, uma das razões da
disjunção destes sistemas decorre do fato de terem que atender às demandas de pretensão do Estado
Moderno no exercício do monopólio do controle do crime. Assim, o “mito do estado soberano”113 foi
incorporado a estes Sistemas de Justiça Criminal modernos como regras institucionalizadas, sendo
sua disjunção a forma encontrada para garantir a sua legitimidade, na medida em que atendessem, de
um lado, à meta de controle do crime, perseguida de forma cerimonial (visto ser uma meta
impossível de ser realizada) e, de outro, às necessidades práticas do sistema. No entanto, como
advertem as autoras, particularmente o que destoa desta teoria proposta para as organizações é que no

112
Coelho (idem) verificou a disjunção entre as instituições que integravam este sistema devido à lógica diferenciada que
prevalecia em cada uma delas. Assim, de um lado, enquanto a polícia atuava repressivamente, prendendo e indiciando
indivíduos, de outro, promotores e juízes atuavam segundo outra lógica, na medida em que consideravam não apenas a
eficácia dos elementos probatórios levantados, mas também os recursos e custos financeiros dispendidos com a
repressão. No que se referia à junção destas mesmas instituições, o autor percebeu que a análise incidiria sobre os
papéis dos seus integrantes, as práticas profissionais ou a construção social de tipos (COELHO, 1986).
113
De acordo com Adorno (2005), tal mito ainda vigora no Brasil, ainda que a pretensão do Estado ao monopólio do
combate à violência se dê de forma bastante incompleta.

79
Brasil a disjunção não é acompanhada de manifestações de confiança e boa fé, já que, ao contrário,
prevalece em nosso sistema a desconfiança entre os operadores responsáveis por administrar a
justiça. Assim, este estudo retoma esta discussão, diluída ao longo deste texto.
A análise incide sobre os discursos dos operadores entrevistados e como estes percebem
seus papéis no interior do Sistema de Justiça Criminal, bem como a atuação do grupo intitulado
força-tarefa da Lava-Jato. Consequentemente, insere-se neste exame também a forma como são
celebrados os acordos de Colaboração Premiada e quais são as representações dos operadores acerca
desses acordos.
Analiso cada um desses pontos nos próximos capítulos.

80
CAPITULO II

AS INSTITUIÇÕES OBSERVADAS E O INGRESSO NO CAMPO

Neste capítulo descrevo os principais aspectos relacionados à estrutura e ao funcionamento


das instituições observadas, bem como descrevo como ocorreu o meu ingresso no campo onde foram
realizadas as entrevistas com os membros do Ministério Público Federal e as audiências relacionadas
aos acordos de Colaboração Premiada selecionados. Descrevo também alguns aspectos relativos ao
cartório do juízo responsável pelo recebimento dos acordos.
Inicialmente, vale destacar que os membros do Ministério Público adquiriram relevante
papel no processo penal brasileiro, desde a Constituição Federal de 1988, que lhes atribuiu a função
essencial à Justiça, nela compreendidas: a defesa dos direitos sociais e individuais indisponíveis; a
defesa da ordem jurídica e a defesa do regime democrático.
A estrutura e o funcionamento do órgão que eles representam também ampliou seu
tamanho114. Na atualidade, o Ministério Público Brasileiro abrange os Ministérios Públicos dos
Estados e o Ministério Público da União. Cada um dos 26 Estados da Federação possui um
Ministério Público que atua através de suas Promotorias de Justiça em todos os seus municípios. Os
representantes do Ministério Público Estadual atuam perante a Justiça estadual115.
O Ministério Público da União, por sua vez, subdivide-se em quatro ramos: Ministério
Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios. Cada uma dessas Instituições é autônoma em relação às demais,
conforme a Lei Complementar nº 75, de 20 de maio de 1993.
A atuação de cada Ministério Público, em relação à matéria de sua competência, está
vinculada à divisão do próprio Poder Judiciário. Assim, na Justiça Federal atua o Ministério Público
Federal; na Justiça Militar Federal atua o Ministério Público Militar; na Justiça do Trabalho, o
Ministério Público do Trabalho e na Justiça do Distrito Federal e dos Territórios o Ministério Público
correspondente.

114
Dentre os marcos obtidos com a Constituição de 88, cito a desvinculação do Ministério Público do Poder Judiciário e
do Poder Executivo, com o fim da atividade de representação do Estado. Sobre a mobilização dos representantes do
órgão e suas propostas junto às casas legislativas no período que antecedeu à aprovação do texto constitucional, ver
Mazzilli (2014).
115
A estrutura, assim como as atribuições do Ministério Público brasileiro estão previstas na Constituição Federal de
1988 e regulamentadas pela Lei Complementar nº 75, de 20 de março de 1993, que dispõe sobre o Estatuto do
Ministério Público da União; pela Lei nº 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 que se refere à organização dos Ministérios
Públicos dos Estados e por algumas outras legislações correlatas (Códigos de Processo Penal e Civil; Lei nº 9.099, de
1995, que regula o funcionamento e a competência dos Juizados Especiais Civis e Criminais; Lei 8.069, de 13 de julho
de 1990, relacionada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outras). Neste sentido, ver Mouzinho (no prelo).

81
Conforme o site oficial do órgão, o Ministério Público Federal tem atuação também nas
áreas cível, criminal e eleitoral. Na área eleitoral, a instituição pode intervir em todas as fases do
processo e age em parceria com os ministérios públicos estaduais. Na Justiça Federal o órgão do
Ministério Público atua em causas nas quais a Constituição considera haver interesse federal. O
Ministério Público Federal atua ainda perante o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de
Justiça, o Tribunal Superior Eleitoral, os tribunais regionais federais. A instituição também age
preventivamente, extrajudicialmente, quando realiza recomendações, audiências públicas e promove
acordos por meio dos Termos de Ajuste de Conduta (especialmente relativos às empresas ou pessoas
jurídicas que cometem ilícitos).
Ao Ministério Público do Trabalho compete proteger os direitos fundamentais e sociais do
cidadão diante de ilegalidades praticadas na seara trabalhista116. Já o Ministério Público Militar atua
na apuração dos crimes militares, no controle externo da atividade policial judiciária militar e na
instauração do inquérito civil também para a proteção dos direitos constitucionais no âmbito da
administração militar. Por fim, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios é responsável
pela fiscalização das leis e a defesa dos interesses da sociedade do Distrito Federal e dos Territórios.
Reproduzo abaixo o organograma (Figura I) que descreve a estruturação desta instituição:

FIGURA I – ESTRUTURA DO MINISTÉRIO PÚBLICO BRASILEIRO

Fonte: Ministério Público Federal. Disponível em http://www.mpf.mp.br/o-mpf

Ainda que não esteja vinculado a nenhum dos Poderes que compõem a estrutura
organizacional do Estado brasileiro, o Ministério Público é considerado como órgão essencial à
Justiça, ao lado da Defensoria Pública e da Advocacia Pública117.
Em relação a sua atividade, o site oficial do órgão118 apresenta o seguinte Mapa Estratégico
para o período 2011/2020, abaixo reproduzido:

116
Conforme disponível em http://www.mpf.mp.br/o-mpf
117
Como informa Mouzinho (no prelo), “após as mudanças constitucionais de 1988, a representação judicial e
extrajudicial do Estado ficou a cargo da Advocacia Pública, que se separa formalmente do Ministério Público. Quanto à
Defensoria Pública, ela foi criada no ano de 1994 com o objetivo de prestar assistência jurídica gratuita para aqueles
que necessitem de atendimento para ações judiciais ou extrajudiciais. A estrutura dos órgãos guarda semelhança com o
Ministério Público, com a presença de conselhos específicos e representantes nos territórios e estados brasileiros”.
118
Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/o-mpf/sobre-o-mpf/mapa-estrategico/docs/mapa_estrategico.pdf.

82
QUADRO I – MAPA ESTRATÉGICO 2011/2020

Fonte: Ministério Público Federal. Disponível em http://www.mpf.mp.br/o-mpf/sobre-o-mpf/mapa-estrategico.

Este Mapa Estratégico despertou minha atenção, entre outros aspectos, em face do que é
proposto como objetivo da instituição: “até 2020, ser reconhecido, nacional e internacionalmente,
pela excelência na promoção da justiça, da cidadania e no combate ao crime e à corrupção”. Também
por afirmar que constitui sua missão “Promover a realização da justiça, a bem da sociedade e em
defesa do Estado Democrático de Direito”, enquanto seus valores são “Autonomia institucional,
compromisso, transparência, ética, independência funcional, unidade, iniciativa e efetividade.” Já em
relação à sociedade, a expectativa da instituição é ser vista como uma instituição que atua
efetivamente na defesa da sociedade por meio do combate à criminalidade e à corrupção; da proteção
do regime democrático e promoção dos Direitos Fundamentais; da atuação preventiva; aproximação
com o cidadão e do trabalho em grupo e parcerias.

83
Destaco, ainda, que para o fortalecimento do órgão, são estabelecidas as seguintes metas:
fomentar e acompanhar a produção de proposições legislativas no interesse da realização da missão;
buscar maior protagonismo da Instituição perante a sociedade civil em temas relevantes para o
Ministério Público Federal. Por fim, dentre os tópicos relativos ao modelo de sua atuação, ressalto o
que se refere à garantia do pleno exercício do poder investigatório deste órgão, atividade que também
é objeto de exame desta pesquisa.
Outro aspecto que considero importante mencionar, diz respeito ao reconhecimento desses
profissionais pelo próprio campo. Muitos deles são reverenciados além da esfera de atuação e do
limite geográfico dos seus gabinetes e salas de audiência, já que também desempenham atividade
acadêmica, atuando como professores nos cursos de graduação em Direito das universidades públicas
e privadas e na própria Escola Superior do Ministério Público, além de serem autores de doutrinas
recomendadas por estes cursos. Este reconhecimento também acontece, em parte, devido à própria
forma de seleção desses profissionais, já que o ingresso na carreira, que se dá por meio de concurso
público de provas e títulos, para o qual se exige a graduação em Direito e o exercício de atividade
jurídica por 3 (três) anos, entre outros aspectos. O valor dos salários, a manutenção das garantias de
independência e inamovibilidade (tal como os juízes), além do status que o cargo possui dentro do
campo jurídico, são fatores que contribuem para a expressiva concorrência desses concursos e que
pode ser revelada em números. Contudo, a extensão do tempo em que são desenvolvidas as etapas
desses certames e as especificidades das provas que exigem habilidade e dedicação dos candidatos
restringe o número daqueles que conseguem sucesso nessa empreitada. Cito como exemplo o último
processo seletivo do Ministério Público Federal, cujo edital foi divulgado em 2016 e no qual houve
7.718 inscritos inicialmente. Desse total, apenas 54 foram aprovados na primeira etapa, dos quais
apenas 20 foram nomeados no início de 2019, número este que não completou o total das 69 vagas
oferecidas, conforme divulgado pelo site oficial do próprio órgão119.
Em sua pesquisa relativa aos concursos públicos para ingresso nas carreiras de fiscal do
Estado, Silva (2019) ressaltou que o concurso é representado como um mecanismo meritocrático, na
medida em que a aprovação do candidato vem acompanhada de estabilidade no cargo e da falta de
um sistema efetivo de avaliação do desempenho. O aprendizado de concurso está marcado por um
viés de classe, já que demanda recursos econômicos consideráveis, não só em relação ao próprio
curso preparatório, quanto à aquisição de materiais didáticos, pagamento das taxas de inscrição, entre
outros gastos. Por outro lado, as provas demandam um conhecimento que só é reproduzido nestes

119
Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/concursos/concursos/procuradores/29-concurso?b_start:int=60.

84
cursos e voltado exclusivamente para tais exames. Saber realizar as provas já é, em si, um
conhecimento. Não se trata, portanto, de uma profissionalização da administração pública do país.
Outro autor que também analisa os concursos públicos adotados no país e com o qual Silva
dialoga é Fontainha (2011; 2011a; 2014, entre outros), que chama a atenção para o fato de que,
tradicionalmente, há a prevalência da ideia de um amontoado de provas sucessivas, ao invés de uma
proposta de seleção de pessoas. Segundo este autor, neste modelo, os candidatos “são aquinhoados
com direitos em relação ao objeto do certame (provimento em vagas), bem como no tocante aos
procedimentos dos certames (objetividade nas avaliações e direito aos recursos)”, existindo uma
“ideologia concurseira que explica a organização social dos concursos, que se orienta para si, mas
não para o projeto institucional”, que será provido com o ingresso dos candidatos em seus quadros.
Ainda segundo o autor, esta ideologia ajuda a alimentar uma "indústria milionária de cursos
preparatórios e um sistema de arrecadação que desvirtuou os processos seletivos" (FONTAINHA,
2014, p. 126)120.
Vale ainda destacar que, em relação aos membros do Ministério Público, os concursos
públicos que realizaram não se distinguiram das características assinaladas pelos autores acima
citados. A passagem por cursos preparatórios é necessária para a maioria desses servidores, como
afirmaram os entrevistados, exatamente porque, segundo eles, “a faculdade de direito não prepara
para concurso” (MPF2). Assim, na representação destes atores, há um significativo mérito em passar
em concurso público, cujo grau de dificuldade imposto confirma a capacidade técnica e cognitiva,
ainda que tal atividade esteja longe de avaliar sua competência funcional.
Estes aspectos se transformam em empecilho para a mobilidade entre as carreiras jurídicas,
acarretando uma linha divisória entre elas (compartimentalização e imobilidade); os profissionais se
veem diferentes dos demais e tal isolamento contribui para a especialidade e também para
rivalidades; há problemas de comunicação e jurisdicionais; estreiteza de atitudes e balcanização das
profissões jurídicas como já alertaram Merryman e Perdomo (2009, pp. 143-154).
Outro dado também relevante são as campanhas promovidas pela instituição nos últimos
anos, tendo como aporte o tema da corrupção no país. Neste sentido, vale destacar, dentre outros
estudos, a pesquisa de Ramos (2019), especialmente no que se refere à campanha “O que você tem a
ver com a corrupção?” e sua respectiva cartilha - que conta com um personagem denominado “Zé
120
Em entrevista concedida a mídia brasileira, o autor destaca que os concursos públicos são autocentrados. Segundo ele,
“sequer temos um concurso público que avalie os profissionais ao longo de uma formação ou em função das atribuições
que o cargo vai requerer. Hoje são aprovados nos concursos mais difíceis quem é bom de ‘concurso público’, para
resumir a história. Não é só que estamos dando poder demais a indivíduos sem o menor controle democrático, o
problema é que estamos montando uma corporação de pessoas absolutamente desconectadas do sentido de vocação e
excelência profissional, porque as práticas profissionais reais são completamente alheias ao meio de investidura,
conforme disponível em http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/560692-a-razoabilidade-das-instituicoes-
publicas-na-mira-do-racional-entrevista-especial-com-fernando-fontainha.

85
Moral” – onde consta o que a população deve ou não fazer para “combater a corrupção”. Ali se
percebe como tais campanhas, curiosamente, se divorciam do combate à corrupção, propriamente
dito, na medida em que estão mais vinculadas a um projeto político de visibilidade e ampliação do
Ministério Público brasileiro.
Este fato é bastante expressivo se levarmos em conta que estes servidores públicos integram
uma instituição que é considerada como essencial à Justiça e a quem incumbe “a defesa da ordem
jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (conforme
artigo 127, da Constituição Federal), possuindo no processo penal, entre outras atribuições, a de
promover a ação penal pública (artigo 129 da Carta)121.
Para concluir o argumento relativo à ampliação das atribuições (e do poder) do Ministério
Público nas últimas décadas, não poderia deixar de mencionar a inclusão da atividade investigatória,
acentuada especialmente na última década, em razão do surgimento de institutos como o da
Colaboração Premiada. Como esta instituição tem sido responsável, exclusivamente, pelas
investigações que ocorreram no âmbito das Operações Lava-Jato no Rio de Janeiro, tal circunstância
pode revelar a preponderância deste órgão no sistema criminal local.
Ainda que o limite desta atribuição tenha sido levado à discussão no Supremo Tribunal
Federal quando apreciou recursos com repercussão geral 122 e ações de arguição de
inconstitucionalidade (ADIs)123, o conjunto normativo editado pelo Ministério Público (a exemplo
das Resoluções editadas e, especialmente, a de nº 183/2018, pelo Conselho Nacional do Ministério
124
Público Federal) demonstra a luta concorrencial presente no campo jurídico brasileiro pela

121
As leis brasileiras atribuem diversas funções ao Ministério Público. Na esfera penal, além da titularidade da ação
penal pública, também exerce o papel de fiscal da execução da lei (artigo 257 do Código de Processo Penal) e curador
de menores (artigo 9º do Código de Processo Civil), entre outros.
122
Para o campo jurídico, Recurso de repercussão geral é um instituto processual que reserva ao Supremo Tribunal
Federal o julgamento exclusivo de temas – apresentados em Recursos Extraordinários -, que apresentam questões
relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa,
podendo atingir a todos os cidadãos. Exemplo dessa discussão é este Recurso Especial nº 593.727/Minas Gerais, no
qual o Ministro Cezar Peluzo negou tal atividade ao Ministério Público (BRASIL, 2015). Não são todos os temas que
ingressam nesta categoria. Para um exame sobre as racionalidades e as moralidades empregadas pelos agentes estatais
brasileiros para classificar e selecionar os fatos sociais que são assim considerados, ver Kant de Lima, Eilbaum e
Medeiros (2017). De acordo com estes autores, a classificação moral dos atores envolvidos nos casos analisados é
determinante nesta escolha, mas ela não é única, já que é complementada também pela natureza do conflito, pelo status
social das pessoas envolvidas nos conflitos, pelas moralidades dos agentes, ou pelas racionalidades e éticas que operam
para legitimar ou justificar tais escolhas (KANT DE LIMA, EILBAUM e MEDEIROS, 2017, p. 12).
123
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.790 (ADI 5790), a Associação dos Magistrados Brasileiros entendeu
que na Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público - que dispõe sobre a instauração e tramitação
de procedimento investigatório criminal conduzido internamente pelo MP – há usurpação da competência do Poder
Judiciário, já que o parágrafo 1º, do artigo 7º desta Resolução permite ao Ministério Público promover a quebra de
qualquer sigilo dos investigados sem ordem judicial. Além da Associação dos Magistrados, o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil - OAB também ajuizou a ADI nº 5.793, questionando outros dispositivos desta
Resolução, conforme informa o site oficial do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2017).
124
De acordo com o artigo 1º desta Resolução, “O procedimento investigatório criminal é instrumento sumário e
desburocratizado de natureza administrativa e investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público

86
aplicação do direito (BOURDEU, 2006). Como este órgão tem sido o responsável exclusivo pelas
investigações que se inseriram no âmbito das Operações Lava-Jato no Rio de Janeiro, como será
visto, tal circunstância revela a preponderância deste órgão no sistema criminal brasileiro atual.
A seguir, passo a descrever como ocorreu meu ingresso nas sedes do Ministério Público
visitadas.

II.1. O INGRESSO NAS INSTALAÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL DO RIO


DE JANEIRO.
Como inicialmente afirmei, as datas e horários das entrevistas realizadas com os membros
do Ministério Público Federal foram escolhidos pelos próprios entrevistados. Todas elas - com
exceção daquela feita por Whatsaap -, foram realizadas de forma aberta.
Já nas respostas aos meus e-mails verifiquei que os gabinetes desses profissionais se
localizavam em três endereços distintos, embora todos estivessem situados na região mais
movimentada do Centro do Rio de Janeiro, cujo acesso pode ser feito por transporte público (ônibus e
Metrô).
Em todos os locais visitados, o acesso foi realizado pela portaria principal, onde havia
sempre um balcão de informações de madeira, logo na entrada. Neles, funcionários de empresas
terceirizadas atendiam e faziam a triagem dos visitantes. Apenas no prédio localizado na Rua
Uruguaiana não encontrei rampa de acesso as suas instalações.
Percebi também que em todos esses locais era adotado um ritual padronizado para o
ingresso dos visitantes. Sendo assim, quando informava a estas atendentes dos balcões que havia
marcado entrevista com o Procurador “X”, elas imediatamente utilizavam um dos telefones apoiados
sobre suas mesas e faziam contato com a secretária ou o assessor deste operador, que, em seguida,
autorizava meu acesso.
Após essa autorização, estas atendentes me entregavam um crachá, ostentando minha
qualidade de visitante àquele local para ser pendurado no pescoço ou fixado em parte do meu
vestuário que ficasse visível. Elas também me orientavam sobre a necessidade de passar por catracas
e detectores de metais, situados sempre à frente dos elevadores que me conduziriam aos respectivos
andares onde esses gabinetes estavam localizados. À porta desses elevadores, havia sempre
seguranças (em número superior a três) devidamente posicionados e ostentando na lapela dos seus
ternos ou uniformes a função que ali desempenhavam.

com atribuição criminal, e terá como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais de iniciativa pública, servindo
como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal” (BRASIL, 2018).

87
O curioso é que mesmo quando minha visita se tornou mais frequente, devido ao número de
vezes que ali estive esse ritual não sofreu alteração. Todavia, percebi que os funcionários que
trabalhavam nesses locais prédios transitavam livremente por esses espaços, sugerindo, assim, certa
suspeição imposta a quem era “de fora” desse ambiente.
Este ritual me fez lembrar o que Garapon (1999, p. 327) já afirmou acerca dos rituais
jurídicos que reproduzem um efeito inibidor e induz o visitante a uma espécie de submissão à
instituição visitada. Embora o autor esteja se referindo ao exame dos rituais jurídicos no modelo
francês, entendi que esta análise também pode se adequar a esta experiência, tanto no que se refere às
instalações do Ministério Público Federal, quanto às da Justiça Federal do Rio de Janeiro, onde a
pesquisa também foi desenvolvida.
Outro autor estrangeiro com quem também dialogo e igualmente retrata o cenário jurídico
francês, Bourdieu (2007a), veio à mente durante tais rituais. Afinal, a inspeção que identifica esses
locais e impõe uma espécie de ritual para todos os que são “da rua” e que ali desejam entrar, marcam
também o momento da passagem de um estágio de separação, no qual o visitante sai do espaço
profano (rua) e entra em um lugar sagrado (o Ministério Público, o Tribunal etc.). Assim, de acordo
com o papel e o status de quem ingressa nesses ambientes, este ritual separa e confirma quem é
sacralizado (os imersos na cultura judiciária) e fortalece a identidade dos profanos (que estão fora de
tal cultura).
É claro que essas simbologias de poder, próprias desses ambientes, não são percebidas pelos
que estão embebidos dessa cultura. Eu mesma, como nativa desse campo, só consegui estranhar esse
ambiente e suas rotinas já tão familiarizadas, quando senti a necessidade de ampliar a
interdisciplinaridade dos meus estudos e a dialogar com referenciais teóricos, especialmente, da
Antropologia e da Sociologia, a partir de minhas pesquisas de mestrado. Isso se deveu,
principalmente, pelo contato e orientação direta de alguns dos profissionais dessas áreas do
conhecimento, desde então.
E foi com este olhar que visitei as instalações das instituições selecionadas. Em razão dele,
pude ainda observar que não havia nos prédios do Ministério Público, visitados, nenhum aviso
quanto à vestimenta necessária para o acesso a tais ambientes, nem elevadores privativos para
determinados funcionários em razão dos seus cargos, como é comum acontecer nos tribunais, ainda
que algumas peculiaridades sejam comuns a ambos, como esses rituais “de passagem”, da rua para a
instituição.
Além do sistema de triagem e controle localizado na entrada desses prédios, também
encontrei nos andares onde se situavam os gabinetes dos Procuradores, outro balcão de atendimento,
igualmente localizado à frente dos elevadores. Nesses balcões, uma atendente ou um segurança,

88
novamente me identificavam e telefonavam para os assessores ou secretárias dos entrevistados
confirmando minha chegada ao andar. Estes assessores ou secretárias vinham até a minha presença e
me levavam até a sala onde as entrevistas aconteceriam. Apenas um Procurador me recebeu
pessoalmente no saguão do andar onde estava localizado seu gabinete. Neste caso, esta recepção e a
maneira mais coloquial desse operador se expressar, imprimiram à entrevista um tom menos informal
do que as outras.
Os corredores por onde passávamos eram ladeados por portas que davam acesso às salas dos
Procuradores. Em todos os prédios visitados essas instalações eram divididas por paredes em MDF,
que sustentavam quadros de avisos (de alumínio e madeira) onde pude ver alguns cartazes
divulgando eventos ou notícias sobre as atividades desenvolvidas por aquela instituição. Os gabinetes
dos Procuradores foram acessados por uma sala onde ficavam seus secretários e assessores.
Os dois últimos prédios do Ministério Público Federal que visitei eram construções
modernas, enquanto o primeiro possuía arquitetura mais antiga. No entanto, em todos, os
equipamentos de triagem, fiscalização e acesso eram bem contemporâneos, o que sugeria a
preocupação com a segurança desses locais. No hall de entrada de todos eles um quadro envidraçado
pendurado no alto da parede indicava os andares e os serviços correspondentes.
Durante as entrevistas, uma funcionária de empresa terceirizada e devidamente
uniformizada, servia café ou água, quando o entrevistado solicitava. Isso geralmente ocorria, logo
após nos cumprimentarmos, seguido a minha apresentação. Entendi esse ato como uma cortesia.
Os gabinetes desses operadores eram ambientes refrigerados, bem iluminados e asseados.
Apenas em uma ocasião, o ar condicionado da sala onde foi realizada a entrevista produzia tanto
barulho que o entrevistado decidiu desligá-lo, a fim de não atrapalhar a gravação de nossa conversa.
O tamanho dessas salas variou um pouco de uma para outra, sendo todas confortáveis e equipadas
com objetos geralmente utilizados em escritórios: mesas, cadeiras, equipamentos de informática
tradicionais (computador, teclado, mouse e impressora) e de telefonia convencional, do tipo PABX.
Algumas possuíam espaço para um armário ou estante. Não havia, portanto, uma padronização
rígida. Não percebi nenhum objeto que indicasse a religiosidade desses operadores, como é comum
acontecer nas salas de audiência dos fóruns brasileiros. Também ali imperava a impessoalidade, tão
comum nos prédios públicos. Nem mesmo sobre a mesa desses operadores havia porta-retratos que
identificassem pessoas de suas relações e afinidades, como foi comum acontecer em espaços menos
formais como escritórios de empresas privadas, que já visitei.
Nestas salas, à frente da mesa dos entrevistados havia duas cadeiras que eram oferecidas
quando me apresentava a eles. Apenas nos gabinetes dos Procuradores de 2ª instancia havia também
outra mesa redonda, rodeada por 6 (seis) cadeiras.

89
Todos os entrevistados foram extremamente gentis e a entrevista assumiu sempre um tom
cordial e informal. Alguns deles me ofereceram outros elementos para a pesquisa, além de suas
próprias entrevistas, tais como uma apresentação em power point, utilizada como material de aula
ministrada pelo seu doador, junto à Escola Superior do Ministério Público; alguns Manuais de
orientação sobre a Colaboração Premiada, editados pelo próprio Ministério Público Federal, entre
outros exemplos, citados no decorrer desse texto.
Os entrevistados possuíam, e média, trinta anos. Dois deles tinham vindo de outro Estado da
Federação para atuar nas Operações Lava-Jato do Rio, ou seja, foram cedidos por sua unidade de
lotação. Dois relataram que estavam nessa atividade há pouco tempo e, portanto, ainda estavam se
familiarizando com as rotinas diárias dessas investigações. Um deles, inclusive, foi o autor da frase
“Estamos trocando pneu com o carro andando”, utilizada como título desta pesquisa e que representa
essa circunstância. Três deles já estavam no Ministério Público Federal há mais de 20 anos. Um deles
foi Defensor Público antes de ingressar no Ministério Público Federal, enquanto os demais não
passaram por nenhuma outra carreira jurídica antes de ingressar nesta instituição. Um deles estava
atuando nessas investigações, desde seu início, ou seja, final de 2015. Três também atuavam no
magistério superior, sendo um deles professor da própria Escola Superior do Ministério Público.
Deixei de indicar o gênero e a etnia dos entrevistados com o objetivo de não identifica-los.
Do total de 51 (cinquenta e um) Procuradores Regionais da República que integram a Justiça
Federal do Rio de Janeiro, apenas 15 (quinze) atuam nessas investigações. Desses 15 (quinze), 11
(onze) realizam diretamente essas investigações, enquanto os 4 (quatro) restantes, acompanham na 2ª
instância seus desdobramentos ou as discussões (i)legalidade sobre os acordos de Colaboração
Premiada.
Quando as entrevistas terminavam, esses operadores me levavam até a porta de saída dos
seus gabinetes. Depois de nos despedirmos, era preciso percorrer todo o caminho de volta até o andar
térreo, onde após a saída dos elevadores e a passagem, novamente, pelas catracas, devolvia o crachá
para as recepcionistas.
A seguir, descrevo como foi meu ingresso na 7ª Vara Criminal Federal.

II.2. O INGRESSO NA 7ª VARA CRIMINAL FEDERAL

Como lembra Seta (2015, pp. 4; 42 e 43), a Justiça brasileira, apesar de ser uma, é dividida
em diversas “justiças”, conforme a área de atuação (conforme artigos 106 a 126 da Constituição da

90
República Federativa do Brasil de 1988). Assim, tem-se a Justiça do Trabalho; a Justiça Eleitoral; a
Justiça Militar, a Justiça Federal e a Justiça Comum, que é residual das demais.
Cada uma delas possui estrutura judicial de diversas instâncias (ou graus), sendo a primeira
instância representada pelos juízes e a segunda, pelos tribunais (regionais e superiores). Nos Estados
há também a justiça estadual, considerada como residual das demais, porque julga todos os casos que
não forem atribuídos às especializadas. Esta justiça também é formada por juízes de primeiro grau e
pelos Tribunais Estaduais.
A Constituição Federal de 1988 também prevê na estrutura do Poder Judiciário brasileiro o
Superior Tribunal de Justiça (artigos 104 e 105) e o Supremo Tribunal Federal. O primeiro teria a
competência de manter a interpretação das legislações federais, enquanto o Supremo teria a
competência de zelar pela Constituição Federal de 1988. Assim, ambos podem receber recursos de
todas as demais justiças, sobre causas de suas respectivas atribuições, embora o Supremo Tribunal
Federal seja também considerado o órgão de última instância. Por força de dispositivo constitucional
(artigos 102 e 105) e processual penal (artigos 84 e seguintes, do Código de Processo Penal) essas
duas Cortes possuem competência para o processo e o julgamento de pessoas que possuem foro de
prerrogativa de função, ou foro privilegiado. Este instituto acaba conferindo aos cidadãos brasileiros
tratamento diferenciado em relação aos órgãos que julgam suas causas, como já afirmado125.
A Justiça Federal é constituída pelos Tribunais Regionais Federais e pelos juízes federais e,
juntamente com a Justiça Estadual, compõe a chamada Justiça Comum (diferenciando-se, assim, das
Justiças Especiais: militar, do trabalho, eleitoral). À Justiça Federal compete processar e julgar as
causas em que a União, suas entidades autárquicas e empresas públicas federais figurem, como
interessadas, na condição de autoras ou rés, assim como seus servidores, além de outras questões de
interesse da Federação e prevista no texto constitucional. São demandas comuns na Justiça Federal,
as execuções fiscais de tributos recolhidas pela União; pedidos de correção monetária do FGTS;
ações previdenciárias, ou tributárias e, na área penal, os crimes que ofendem bens ou interesses da
União.
Sua estrutura e organização divide o país em regiões. A organização do primeiro grau de
jurisdição da Justiça Federal está disciplinada pela Lei nº 5.010, de 30 de maio de 1966, que
determina que em cada um dos Estados, assim como o Distrito Federal, se constituirá uma seção
judiciária. Localizada nas capitais das unidades da federação, as seções judiciárias são formadas por
um conjunto de varas federais, onde atuam os juízes federais. Cabe a eles o julgamento originário da
maior parte das ações submetidas à Justiça Federal.

125
Ver nota de rodapé nº 7.

91
O segundo grau de jurisdição da Justiça Federal é composto por cinco Tribunais Regionais
Federais, com sedes em Brasília (TRF 1ª Região), Rio de Janeiro (TRF 2ª Região), São Paulo (TRF
3ª Região), Porto Alegre (TRF 4ª Região) e Recife (TRF 5ª Região). Os Tribunais Regionais Federais
reúnem duas ou mais seções judiciárias, da seguinte forma: TRF 1ª Região - Acre, Amapá,
Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí,
Rondônia, Roraima e Tocantins; TRF 2ª Região - Espírito Santo e Rio de Janeiro; TRF 3ª Região -
Mato Grosso do Sul e São Paulo; TRF 4ª Região - Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina; TRF
5ª Região - Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe.
A Justiça Federal do Rio de Janeiro integra, juntamente com a do Espirito Santo, o Tribunal
Regional da 2ª Região, que ocupa a segunda instância (ou segundo grau de jurisdição), enquanto as
varas criminais, a primeira. Assim como acontece com a Justiça Estadual, estas cortes também
possuem uma composição mista de órgãos, instituições e agentes.
A primeira instância da Justiça Federal da 2ª Região é composta por juízes federais, em
exercício nas seções judiciárias – sediadas nas capitais dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito
Santo – e nas subseções judiciárias – situadas nas principais cidades do interior. Cabe à primeira
instância, em regra, o julgamento originário das questões apresentadas à Justiça Federal. Quanto à
segunda instância de julgamento, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região julga, em grau de
recurso, as ações provenientes da primeira instância (seções judiciárias), possuindo, ainda,
competência originária para o exame de algumas matérias previstas no art. 108 da Constituição da
República de 1988.
As competências funcionais das varas criminais da Justiça Federal carioca estão assim
divididas (conforme Resolução nº 21, de 8 de julho de 2016, do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região): as 1ª, 4ª, 6ª, 8ª e 10ª varas criminais são responsáveis pelo processo e julgamento dos crimes
praticados por organizações criminosas, qualquer que seja o meio, modo ou local de execução. Essas
varas possuem competência sobre toda a área territorial compreendida na Seção Judiciária do Rio de
Janeiro, salvo no caso da 2ª Vara Federal de Niterói/RJ, que detém competência para o
processamento e julgamento desses crimes quando ocorridos nos municípios vinculados à sua
competência territorial.
Já as 2ª, 3ª, 5ª e 7ª varas criminais detêm competência para processar e julgar crimes contra
o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Na hipótese de
tais crimes serem praticados por organização criminosa, a competência será dessas varas
especializadas. Por sua vez, à 9ª vara criminal compete a fiscalização das medidas impostas em sede
de suspensão condicional do processo (sursis processual); o processamento de cartas precatórias,
cartas de ordens e cartas rogatórias, inclusive as resultantes de processos sobre lavagem de dinheiro,

92
sistema financeiro e crime organizado, bem como coordenar, na esfera criminal, o sistema nacional
de videoconferência do Conselho de Justiça Federal - CJF; o processamento e a apreciação dos
pedidos de cooperação jurídica internacional e a execução penal. Por fim, cabem a todas as varas
criminais o processamento e o julgamento de crimes de menor potencial ofensivo, no âmbito do
Juizado Especial Federal (art. 2º da Lei nº 10.259/2001).
A sede da subseção da Justiça criminal federal do Rio de Janeiro, onde está sediada a 7ª
Vara Criminal Federal que visitei, está localizada no Centro da cidade e se destaca pelo tamanho e a
grandeza que marcam os prédios públicos distribuídos por esse bairro. Esta região foi recentemente
beneficiada por um projeto de revitalização portuária, mas apenas acessível por uma única
modalidade de transporte público: ônibus.
Já a sede administrativa e a diretoria do foro estão localizadas em prédio distinto do que
abriga as varas cíveis desse juízo. Ambos os prédios estão situados no Centro da cidade, em pontos
de maior movimento e privilegiado por ser acessível por uma variedade maior dos meios de
transportes públicos, como o metrô, ônibus e, inclusive, o de veículos leves sobre trilhos –VLT.
Os dois prédios da subseção da Justiça criminal federal do Rio de Janeiro, são circundados
por uma cerca de metal. Entre eles, um jardim e uma pista de acesso de veículos os separam. Para
acessá-los é preciso passar pelo portão de ferro da entrada que também dá acesso ao prédio principal.
Logo na entrada, há dois degraus de escada que é ladeada por uma rampa. Ambos os equipamentos
dão acesso ao balcão de informações, de madeira, onde, atrás dele, têm assentos dois ou mais
seguranças uniformizados, que se juntam às recepcionistas. Atrás desse balcão, quase da largura
desse móvel, uma parede de tijolos vazados de louça branca (cobogó), divide o ambiente em duas
áreas de acesso.
Próximo ao balcão de madeira, um separador-organizador de fila é instalado todo início de
expediente, às 9 horas – ainda que o atendimento ao público comece às 12 horas - e recolhido para
perto do balcão, quando o expediente ao público termina (às 17 horas), embora o horário de trabalho
para a maioria dos funcionários vá até às 19 horas.
Do lado direito próximo ao balcão, e à frente da parede de vidro que dá para os jardins -
onde há uma pista para entrada e saída de carros -, uma placa de metal, fixada em uma espécie de
pedestal em aço escovado (como um totem), contém a fotografia e uma menção honrosa à
desembargadora federal Marilena Franco126, que dá nome ao fórum.

126
O prédio da Justiça Federal, localizado na Avenida Venezuela, onde estão situadas as varas criminais possui
arquitetura distinta do outro, mais antigo, localizado no final da Avenida Rio Branco, próximo à Biblioteca Nacional e
onde funcionam, principalmente, as varas cíveis dessa justiça. O primeiro foi inaugurado em 05 de março de 1.999,
quando recebeu o nome da referida desembargadora. Ela se tornou conhecida quando condenou o jovem de classe
média alta carioca, João Guilherme Estrella, um traficante de drogas internacional, cuja história foi retratada no filme

93
Enquanto do lado direito do balcão acontece a passagem dos visitantes, advogados e
prestadores de serviços, que são inspecionados por um aparelho detector de metais e seus pertences
de mão (bolsas, sacolas e outros) passam por uma esteira do equipamento de scanner (ou Raio-x), do
lado esquerdo, ao contrário, o espaço é livre de qualquer máquina de inspeção e é por onde transitam,
principalmente, os funcionários que trabalham nessa Corte. Estes funcionários e os prestadores de
serviços utilizam crachás de identificação, pendurados em seus pescoços.
Ainda nesse espaço, e à frente das máquinas de inspeção, uma fileira de catracas, com
roletas giratórias separa essa entrada principal de um pequeno jardim, que dá acesso ao prédio anexo
(Bloco B), logo em frente e ao prédio principal, à esquerda. Aqui, portanto, vale a mesma análise que
fiz em relação à separação que esses mecanismos produzem para os sacralizados e os profanos,
quando descrevi o acesso às instalações do Ministério Público Federal. Existe uma diferença de
tratamento entre os que são considerados de dentro e os de fora deste espaço. Assim, além dos
servidores que não passavam pelos equipamentos de fiscalização, também os magistrados e os
membros do Ministério Público ingressavam com seus respectivos veículos pela área pavimentada
nos jardins, que leva direto ao estacionamento desses veículos. Ou seja, logo na entrada se percebe a
diferença de tratamento que é dada aos frequentadores desses ambientes, marcados pela seleção dos
que precisam ser fiscalizados e os que têm “passe direto”. Esta fiscalização também foi vista em
relação às viaturas oficiais que transportavam presos e suas escoltas, que eram revistadas por dois
vigilantes, em uma área do jardim, identificada por placas de metais como “área de identificação e
revista”.
Esta prática está, inclusive, regulamentada pelo artigo 325, da Consolidação acima citada, na
seção relativa aos procedimentos de revista, a qual informa que: “Ficam dispensados dos
procedimentos previstos nesta seção os magistrados e os membros do MP”. Os veículos (particulares
ou da instituição) utilizados por magistrados e demais servidores que trabalham em suas instalações,
possuem autorização para estacionar no local, sendo identificados por cartões de estacionamento
apresentados por seus respectivos proprietários.
No entanto, não é só isso. Para acessar os espaços dessa Justiça é preciso trajar vestimentas
adequadas. Trata-se de uma orientação tão importante para os operadores desse campo que consta em
norma editada pela própria instituição, estampada em um aviso fixado logo na entrada que dá acesso
às instalações desses prédios, no balcão de madeira onde ficam as atendentes responsáveis pela
triagem dos visitantes.

"Meu Nome não é Johnny". Antes de ser desembargadora, Marilena Franco foi advogada, procuradora e juíza e faleceu
em 1998, como informa o site oficial deste órgão.

94
Neste sentido, o artigo 322, da Consolidação das normas da Diretoria desse foro127
estabelece que os visitantes não podem ingressar em suas dependências trajando roupas
transparentes, jeans estilizados (rasgados, desfiados ou com cintura excessivamente baixa), calças de
moletom e de ginástica, shorts ou bermudas, mini blusas, microssaias e chinelos.
Somente, excepcionalmente, o uso de bermudas, calças de moletom ou de ginástica e
chinelos podem ser autorizados pelo chefe do serviço e, assim mesmo, o usuário apenas pode
transitar pela área de acesso ao foro, sendo autorizado este acesso quando há limitação física,
patologia ou quando verificado, visualmente, a extrema carência financeira do usuário, como
estabelece o parágrafo único desta norma. Este regulamento é, no mínimo, peculiar, já que restringe o
acesso da população aos serviços dessa Justiça em razão dos trajes que são usados.
Boa parte das vestimentas acima relacionadas compõe, inclusive, o habitus (BOURDIEU,
2007a) do carioca se vestir, especialmente durante o verão. Tal circunstância climática levou o
presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em janeiro de 2019 a dispensar o uso de terno e
gravata para os advogados, somente nesta época do ano, após um pedido da Ordem dos Advogados
local128.
A restrição à determinada vestimenta está associada à moralidades que desrespeitam,
inclusive, a identidade e à liberdade dos cidadãos. Em outro momento e local, assisti um juiz se
recusar a realizar uma audiência porque uma das advogadas das partes vestia calças compridas.
Embora não tenha visto durante a pesquisa nenhum episódio semelhante, o fato é que normas
relativas às vestimentas dos cidadãos que frequentam estes ambientes continuam em vigor.
Vale dizer, a norma editada pelo presidente do Tribunal carioca não se destinou a
desconstruir os símbolos que representam o poder jurídico. Ao contrário, constituiu uma forma de
manter a mesma lógica simbólica existente, prescrevendo apenas um novo modelo de traje em
virtude da época do ano, o que manteve a corporalidade e as representações sociais reconhecidas
como sendo da identidade da profissão advocatícia.
Estas representações remetem à pesquisa de campo de Paloma (2015) sobre o corpo em
torno dos símbolos e rituais jurídicos, em que a autora descreve o caso do estudante que foi expulso
de um fórum na Bahia porque usava um adereço de sua religião, o candomblé, para compreender não
apenas as relações de força existentes no direito, “mas a possibilidade de reconhecê-las em nossas
sociedades, levando um olhar sobre o direto como sendo um dos domínios das nossas culturas e
dessas culturas em si”.

127
Esta consolidação foi publicada em face da Portaria nº JFRJ-PGD-2012/00033, de 13/11/2012 e que teve uma versão
atualizada em abril de 2017. Disponível em https://www.jfrj.jus.br/cndirfo/conteudo/cndirfo/consolidacao-de-normas-
da-diretoria-do-foro.
128
Conforme divulgado em http://amaerj.org.br/noticias/tj-do-rio-dispensa-terno-e-gravata-para-advogados/.

95
Situações como esta lembram o que Kant de Lima (1999) já afirmou: o sistema jurídico
brasileiro não reconhece o cidadão ou a população brasileira como pressuposto de sua origem e
funcionamento. Pelo contrário, resultado de uma reflexão iluminada, o direito brasileiro, que
representa este sistema, se idealiza como uma “ciência normativa”, enquanto seus operadores
justificam suas práticas com vistas a controlar esse público, bagunçado, mal vestido, incivilizado129.
Vale dizer, o capital simbólico (BOURDIEU, 2013) do direito, que consiste no “direito de
dizer o Direito”, não cede espaço para outros “dizeres”, ainda que estes sejam legitimamente
produzidos, como a religião.
Voltando à descrição do espaço físico visitado, os dois prédios que abrigam os serviços
dessa subseção criminal possuem destinações diferentes: enquanto o prédio principal abriga os
Juizados Especiais Criminais, a Defensoria Pública e uma lanchonete, o outro prédio anexo (ou
Bloco B) hospeda nos quatro primeiros andares, as dez varas criminais existentes.
A preocupação com o acesso de pessoas com dificuldades motoras ou visuais àquele espaço
é marcada pela existência da rampa na entrada, pela faixa de piso emborrachado e antiderrapante,
instalado sobre um piso de cerâmica marmorizada e a oferta de cadeiras de rodas, colocadas próximo
à rampa de acesso aos prédios. Outro equipamento que também permite a mobilidade é o corredor
aberto e ladeado por grades que sustentam os corrimãos, localizado logo após a passagem pelo
sistema de fiscalização, o acesso aos prédios e demais dependências que compõem essa subseção.
Logo na entrada do Bloco B há um enorme balcão de informações, em madeira escura, que,
igualmente, divide o ambiente e onde outros seguranças uniformizados e recepcionistas prestam
atendimento aos visitantes. Ali, não há equipamentos de revista ao público. Do lado direito deste
balcão há uma sala separada por uma parede de vidro, onde ficam os terminais eletrônicos para as
consultas relativas ao andamento dos processos pelos advogados, estagiários e as próprias partes.
Atrás do balcão há uma escada que dá acesso aos andares superiores (somente até o quarto)
e, ao lado direito dela, dois elevadores, sendo um deles privativo dos juízes, enquanto o outro é
destinado aos funcionários do fórum, conforme indicam as placas de informação localizadas acima
destes equipamentos, o que reforça, ainda mais, a seletividade e os diferentes status dos atores que

129
Ao comparar com a tradição jurídica norte-americana, Kant de Lima (idem) afirma que o sistema jurídico brasileiro
“não reivindica uma origem ‘popular’ ou ‘democrática’. Ao contrário, alega ser o produto de uma reflexão iluminada,
uma ‘ciência normativa’, que tem por objetivo o controle de uma população sem educação, desorganizada e primitiva.
Os modelos jurídicos de controle social, portanto, não tem nem poderiam ter como origem ‘a vontade do povo’,
enquanto reflexo de seu estilo de vida, mas são resultado destas formulações legais especializadas, legislativa ou
judicialmente. Nessas circunstâncias não é difícil compreender que, ao não ser considerada como fórmula ideal a
‘aplicação da lei pelo povo’, valores legais, quando se aplicam, tendem a ser vistos como constrangimentos externos ao
comportamento dos indivíduos. Em consequência, o ‘capital simbólico’ do campo do Direito (BOURDIEU, 1982;
1987), não reproduz ampliadamente seu valor porque expressa a ‘vontade do povo’, ou um conjunto de prescrições
morais partilhadas e internalizadas pelo cidadão comum, mas como uma imposição das ‘autoridades’, não importa quão
legal e legitimadamente produzidas e postas em vigor (KANT, 1999b, p.24).

96
transitam nesses ambientes. Mesmo já habituada a esses mecanismos, na minha primeira visita a este
prédio, quando ingressei em um desses elevadores, fui advertida por um segurança de que deveria me
dirigir ao que se destinava às “demais pessoas”.
Seguindo ao lado esquerdo do balcão se tem acesso a um hall onde há três elevadores
destinados aos advogados e ao público em geral. Ao lado direito deles, outro corredor que dá acesso a
outras salas. Do lado esquerdo dos elevadores há uma parede de vidros com uma porta que é mantida
fechada (contendo um aviso de que a passagem por ali está interditada), de tal forma que o acesso à
área interna do prédio somente acontece pela entrada onde há o balcão de informações.
Este prédio anexo, assim como o principal, aparenta uma construção moderna, e ambos
seguem o mesmo layout estrutural, com a diferença de seus corredores não serem tão amplos e
escuros como os do prédio do Fórum da Justiça Estadual, também localizados no Centro da cidade130.
Outro fator que chamou minha atenção foi o silêncio e a reduzida tramitação de pessoas
pelos seus espaços, com exceção do 4º andar, onde está situada a 7ª Vara Federal que aprecia as
causas decorrentes das Operações Lava-Jato no Rio. Estas características aparentavam haver pouca
atividade nesses ambientes, o que se contrastava com o 4º andar deste prédio.
Os espaços físicos desses ambientes são todos sinalizados por placas que indicam o que se
encontra em cada andar. Desta forma, pude saber que todos os juízos lotados neste prédio pertencem
ao primeiro grau de jurisdição. No andar térreo estão instaladas as salas onde tramitam documentos
administrativos e judiciais, além da sala da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. No segundo
andar encontram-se as 1ª, 2ª e 3ª varas criminais (e suas respectivas salas de audiência, cartórios e
gabinetes dos magistrados), além da Seção de Controle de Mandados Criminais e a Seção de
Serviços Operacionais. As 4ª, 5ª e 6ª varas criminais (e os mesmos espaços e serviços das varas
anteriores) ocupam o terceiro andar. No quarto andar, estão localizadas as 7ª, 8ª e 9ª varas criminais,
com suas respectivas salas de audiência, cartórios, gabinetes dos magistrados, além da Seção de
Penas e Medidas Alternativas e uma sala para a equipe técnica da 9ª vara criminal. No quinto andar
estão localizadas a 10ª vara criminal e as 10ª e 11ª varas de execução fiscal. No sexto andar
encontram-se as 1ª, 2ª, 3ª 4ª e 5ª varas de execução fiscal. As 6ª, 7ª, 8ª e 9ª varas de execução fiscal,
ficam no 7º andar, onde há também o gabinete da 6ª Turma Recursal e os gabinetes da 3ª, da 7ª
Turmas Recursais, todos integrantes do Juizado Especial Criminal Federal. No oitavo andar estão a
secretaria única e a sessão de distribuição das Turmas Recursais, bem como a sessão de estatística e
jurisprudência e a sessão de recursos extraordinários. Nesse mesmo andar localizam-se também os

130
Em outro momento já afirmei que essa arquitetura e seus simbolismos, ao mesmo tempo em que transmitem a ideia de
seriedade e imparcialidade, reproduzem um ambiente intimidador, como se a Justiça se motivasse ou se baseasse em si
mesma. Afinal, sobre este aspecto, Garapon (1999, p. 31) já afirmou que “ela só pode contar com a sua própria
grandeza, que se impõe pelo temor”.

97
gabinetes das 1ª; 2ª; 3ª; 4ª; 5ª e 7ª Turmas Recursais do Juizado Especial Criminal Federal, além da
sala de sessões dessas Turmas. No nono andar há também outros gabinetes dessas Turmas. No
décimo e último andar está localizado o auditório (denominado auditório Ministro Evandro Lins e
Silva), com capacidade para mais de 200 pessoas; o Tribunal do Júri e o gabinete da 8ª Turma
Recursal do Juizado Especial Criminal Federal.
Além dessa sinalização, cada andar possui uma placa com a indicação dos órgãos ali
sediados. Nestes andares também há placas de indicação dos banheiros e elevadores e outras fixadas
nas portas das salas indicando o serviço que ali é prestado. Ao lado de cada porta de entrada das
salas de audiências, há quadros de aviso (de acrílico, alumínio ou madeira), onde são fixadas as
pautas de audiência. Em cada andar encontrei um policial militar que fazia a segurança do ambiente.
Estes profissionais ficavam em pé próximos à escada que dava acesso aos andares.
As varas que integram essa Justiça possuem estrutura física semelhante à de outros órgãos
judiciais do país, mas seu tamanho e a paleta de cores diferem das demais. Aqui, tons de salmão,
vermelho e bege são distribuídos pelas paredes, portas, tetos e placas sinalizadoras. Apenas o piso
dos corredores é de cerâmica escura. Além disso, os corredores são bem iluminados e de pequena
extensão, diferindo dos do fórum da cidade que abriga a Justiça Estadual.
Além das salas de audiência e dos gabinetes dos juízes de cada vara criminal havia um
cartório correspondente àquele juízo, onde os documentos eram protocolados, visitados, instruídos e
expedidos. Os corredores eram guarnecidos com cadeiras instaladas próximo às salas de audiência e
estas eram ocupadas pelos advogados e pelas partes enquanto aguardavam ao pregão. O piso próximo
às áreas onde eram instalados os extintores de incêndio era demarcado, como um aviso de que aquele
local não deveria ser obstruído.
Meu ingresso nesse campo ocorreu sem grandes complicações devido a minha socialização
no Direito e a prática forense há várias décadas, bem como a publicidade que revestia as audiências
que assisti. Contudo, nos primeiros dias de minha visitação, meu ingresso na sala de audiência da 7ª
Vara Criminal Federal dependeu de prévia autorização verbal do oficial de justiça, responsável pelas
chamadas das partes (pregão) que participariam desses atos. Isso aconteceu talvez porque nessas
ocasiões, eu sempre me apresentava como estudante de Direito. Com o passar dos dias e minha
permanência naquele ambiente, esta obstrução foi sendo mitigada pelo profissional, com quem eu
passei a conversar enquanto aguardava a chegada do juiz ou o inicio daquelas audiências.
Foi em uma dessas conversas que fiquei sabendo que o juiz da 7ª Vara Criminal - ao
contrário do que acontecia com o magistrado que anteriormente atuava naquele juízo -, “adorava
receber os repórteres”, frase que ganhou um tom jocoso, já que tais visitas atrasavam o trabalho do
funcionário queixoso, como ele próprio me informou.

98
Assim que se ingressa na sala de audiência desta Vara Criminal, a primeira coisa que chama
a atenção é o seu tamanho, visivelmente superior ao de outras salas de audiência localizadas na
Justiça Estadual, ainda que o layout deste espaço seja muito semelhante às demais salas de audiência
visitadas131, embora isso não signifique a ausência de algumas peculiaridades, que passarei a
descrever. Abaixo segue uma fotografia que parcialmente reproduz este ambiente.

FIGURA – Sala de audiência


da 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro

Fonte: reproduzida pela autora

A porta de entrada desta sala está posicionada de frente para a lateral da mesa ocupada pelo
juiz e pelo membro do Ministério Público, de tal forma, que estes são os primeiros a serem vistos por
quem ingressa neste ambiente.

131
Verifiquei que a 9ª Vara Criminal Federal, localizada em frente à 7ª Vara, também no quarto andar possuía a mesma
disposição dos móveis e equipamentos, com exceção do crucifixo de metal dourado fixado na parede e logo acima do
lugar ocupado pelo juiz, bem como a porta de entrada da sala, próximo às cadeiras da plateia. Ali pude assistir a uma
audiência, transmitida por videoconferência, realizada em um Juízo da região Nordeste do país. Percebi que naquele
juízo todas as mesas ocupavam o mesmo nível do piso, tinham a mesma altura e estavam dispostas lado a lado,
formando a figura de um “U”, invertido de ponta a cabeça. Na curva desse desenho, sentava-se o juiz, mantendo os
assentos do Ministério Público ao seu lado direito e, do lado esquerdo, a escrevente. O Defensor sentava-se ao lado
esquerdo desta servidora, seguido do seu cliente. No centro deste desenho havia uma mesa e uma cadeira, que era
ocupada pela testemunha ou pelo acusado, quando o juiz os ouvia. Este desenho é muito comum em órgãos colegiados,
ou seja, onde há vários julgadores reunidos, como são exemplos os Tribunais.

99
Significa que a disposição cênica dos atores não varia, já que a mesa onde têm assento o juiz
também é ocupada pelo representante do Ministério Público, que tem acento ao seu lado direito 132. A
defesa, no entanto, não ocupa o mesmo nível que estes atores, já que para ela é destinada a mesa onde
tomam acento os colaboradores e delatados ou testemunhas. Esta diferença dos locais ocupados pela
defesa tem alimentado o debate sobre o princípio da paridade de armas, há alguns anos.
A mesa ocupada pelo juiz e pelo Ministério Público é de madeira e está instalada sob um
tablado também de madeira, medindo cerca de 20 centímetros de altura. Embora as cadeiras do juiz e
do representante do Ministério Público seguissem o mesmo padrão (de cor e material, tipo escritório),
a mais alta se destinava ao magistrado. Durante as audiências, todas as vezes que a secretária do juiz
precisava se deslocar, podiam-se ouvir os saltos de seus sapatos sobre esse estrado e ruídos da
madeira cedendo sobre seu peso, o que conferia à cena certa desconcentração.
Sobre a mesa do juiz, e a sua frente, encontrava-se instalado um monitor e um teclado, além
de um mouse e um microfone. Ainda sobre essa mesa eram depositados os autos dos processos que
iam sendo examinados durante as audiências. À frente do representante do Ministério Público
também havia um microfone, somente. Em raras ocasiões, quando necessária a participação de mais
de um representante desse órgão, houve o deslocamento de outra cadeira que foi colocada entre o juiz
e o outro colega de acusação (geralmente retirada da própria sala, ou seja, igualmente, de altura
inferior à do magistrado).
A mesa ocupada pelos colaboradores/delatados e seus respectivos advogados ficava apoiada
no piso da sala, fora do tablado. E como se juntava à mesa do juiz, formando a imagem da letra “T”,
a diferença de níveis de altura entre elas era bem visível, destacando, assim, os atores que a
ocupavam. Na mesa mais baixa, os lugares ocupados pelas partes e seus advogados estavam
previamente estabelecidos pelas práticas desses atores, embora não houvesse qualquer demarcação
visível: os colaboradores e seus advogados ocupavam sempre o lado direito, à frente do juiz,
enquanto os delatados e seus defensores, o lado esquerdo.
A capacidade de assentos próximos a essa mesa se limitava a seis cadeiras. Sobre esta mesa
também havia microfones utilizados pelos participantes, uma caixa de som que reproduzia suas falas

132
Essa permanência, em local destacado e ao lado do julgador, está prevista também no artigo 18, I, “a”, da Lei
Complementar 75/93, conhecida como Lei Orgânica do Ministério Público da União, que afirma que “São prerrogativas
dos membros do Ministério Público da União: I  institucionais: a) sentar-se no mesmo plano e imediatamente à direita
dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem.” Embora a Defensoria Pública
também tenha editado normas (Leis Complementares nº 80/94 e 132/09) prevendo idêntico tratamento, na prática, os
defensores somente ocupam as mesas onde as partes tomam seus assentos. Assim, chama a atenção o fato do destaque
do lugar ocupado pelo órgão que nesses locais é responsável pela acusação e ainda, que tais lugares precisem ser
definidos em lei. Em 2012, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressou junto ao Supremo
Tribunal Federal com a Ação Direta de Inconstitucionalide (ADINº 4768), arguindo a isonomia de tratamento entre a
defesa e a acusação (BRASIL, 2012).

100
quando nessas audiências contava-se com o recurso da videoconferência. Por fim, ainda sobre essa
mesa havia uma câmera digital (para gravar as performances dos atores) e uma bandeja com duas
garrafas térmicas (uma com água e a outra com face), um recipiente de plástico com adoçante e outro
com açúcar, além de copos descartáveis. Antes de iniciadas as audiências, a secretária do juiz fazia a
reposição desses recursos.
Ao lado esquerdo da mesa do juiz e fora do tablado, uma mesa de madeira de tamanho
consideravelmente menor do que as demais era destinada a sua secretária (analista de sistema ou
escrevente, servidora concursada como o juiz e o membro do Ministério Público). Entre as duas
mesas, um gabinete de computador ficava apoiado diretamente sobre o piso da sala. Atrás da mesa
desta servidora havia uma mesa também pequena e, ao lado desta, um mastro com a bandeira do
Brasil. Esta mesa, apesar de visivelmente menor do que as demais amparava uma infinidade de
equipamentos: um telefone convencional; um controle remoto; dois monitores, um teclado; um
mouse e um computador, onde eram registrados (em Ata) os atos e as falas ali promovidas, digitados
pela servidora, enquanto o juiz os ditava.
Ao final de cada audiência, a servidora imprimia as cópias dessas atas, as quais eram
retiradas da impressora pelo oficial de justiça (o mesmo que fazia os pregões das partes) que se
aproximava desse equipamento todas as vezes que o juiz informava a finalização daquele ato.
Este funcionário repassava, então, tais documentos às partes, aos advogados, aos
representantes do Ministério Público e ao juiz, necessariamente nesta ordem, que depois de
assinados, eram recolhidos e entregues, de volta, à servidora. O oficial de justiça também orientava
os colaboradores e delatados sobre qual seria o seu “devido lugar”. Em seguida, este mesmo oficial
de justiça solicitava-lhe um documento de identidade, o qual era imediatamente repassado à
escrevente, que digitava as informações nesses documentos na assentada da audiência (Ata). Quando
acontecia a participação de vários advogados e colaboradores/delatados, os próprios atores trocavam
entre si esses documentos que depois de assinados eram entregues diretamente ao membro do
Ministério Publico, que os repassava, por sua vez, ao juiz, e este os entregava à referida escrevente.
Atrás da mesa da secretária havia uma mesa também pequena e, ao lado desta, um mastro
com a bandeira do Brasil.
Na parede lateral do lado direito e um pouco afastadas da mesa do juiz, estavam fixadas lado
a lado, duas televisões de telas planas grandes, que retransmitiam todos os atos praticados pelos
atores desse cenário e de tal forma que todos os presentes nesta sala conseguiam visualizá-los em
tempo real. Estes equipamentos também foram utilizados para videoconferências, quando o juiz
precisou ouvir algum depoimento de um ou mais atores que se encontravam em outras comarcas. Por
fim, em cima de cada um dos televisores havia uma câmera digital, que era movimentada por

101
controle remoto acionado pelo próprio juiz ou pela escrevente. Acima desses aparelhos, uma caixa
preta de metal, igualmente fixada na parede, apoiava um modem de Internet. No chão, localizado
entre uma televisão e outra havia uma mesa pequena de madeira e sobre ela uma impressora.
Ao final das audiências verifiquei que os advogados que participavam desses atos
entregavam à escrevente um disco laser (CD) para a gravação dos atos praticados naquela audiência.
Ao perguntar a um desses profissionais a finalidade dessas gravações, este me informou que elas
serviam de prova acerca das declarações dos seus clientes e também de material de consulta para
futura análise das garantias processuais, como a ampla defesa e o direito ao contraditório.
Comparando esta afirmação com as declarações dos operadores (acima registradas), percebi que este
registro audiovisual cumpria distintas finalidades, conforme os atores. Para a defesa, a possibilidade
de prova em favor do investigado e das garantias constitucionais do processo penal, enquanto para os
agentes do Estado, a garantia da eficiência e validade dos atos por eles firmados com os
colaboradores.
Ainda em relação à disposição dos atores neste cenário, resta indicar que mais da metade da
área dessa sala é destinada à assistência desses atos. Cerca de quarenta cadeiras, localizadas no fundo
da sala e de frente para a mesa do juiz e outras encostadas nas paredes laterais, constituem assentos
destinados aos advogados que necessariamente não participam do ato – alguns dos quais aguardavam
o término desses atos para despacharem com o juiz133. Elas também eram ocupadas por estudantes
dos cursos de Direito - já que essa assistência constitui atividade complementar acadêmica -, ou
qualquer outra pessoa que quisesse assistir tais atos. Em uma das audiências ali realizada, dada a
quantidade de advogados que representavam os colaboradores que seriam ouvidos (cerca de 30),
muitos deles tiveram que se juntar à plateia, ocupando algumas dessas cadeiras. Conforme informou
mais tarde um entrevistado, em razão do número desses atores, houve a necessidade de transferir a
audiência para o auditório desse prédio.
Por fim, além da porta de entrada, que dá acesso ao corredor, esta sala possui também outra
porta que faz a conexão com o gabinete do juiz e está localizada próximo à mesa onde ele tem
assento durante as audiências. Com exceção da parede lateral externa - que é de alvenaria com
grandes janelas de vidro, cobertas por cortinas de persianas -, todas as demais paredes são de madeira
(do tipo compensado). No teto, revestido por placas de gesso, além das lâmpadas fluorescentes,
saídas de ar condicionado central, há uma câmera de segurança e mecanismos de combate a incêndio.

133
“Despachar com o juiz” ou “despacho auricular” consiste na consulta que o advogado faz ao juiz sobre o caso
concreto, em momento distinto da audiência que examina este caso e geralmente sobre aspectos do processo. No Brasil,
trata-se de uma prática comum, vista como um direito do advogado, uma prerrogativa da profissão, a ponto de serem
instauradas representações contra os magistrados que não acolhem tal direito, junto ao órgão competente. Contudo, em
países como a Argentina, por exemplo, ela não é admitida, pois compreende-se que o contato particularizado dos juízes
com os advogados das partes compromete a imparcialidade do juiz, como Baptista (2008) observou em sua pesquisa.

102
Logo em minhas primeiras incursões nas audiências que foram realizadas nesse ambiente,
não percebi nenhuma ostentação de objetos de cunho religioso, como é comum acontecer em espaços
equivalentes na Justiça Estadual, o que, aliás, acontecia na outra vara criminal federal que também
visitei e onde um crucifixo de metal dourado, fixado ao alto da parede, logo atrás da mesa ocupada
pelo juiz, indicava a opção religiosa por ele seguida.
Apesar de não existir nenhum símbolo ostensivo nas paredes da 7ª Vara Criminal Federal,
com o passar dos dias, percebi que sobre sua mesa havia sempre uma bíblia. Além disso, um fato
ocorrido e, inclusive, noticiado pela grande mídia, comprovou que meu exame inicial estava
incorreto. Isto aconteceu quando este magistrado ao proferir a sentença que decretou a prisão
preventiva do ex-governador do Estado - em um dos processos instaurados contra o político -,
reproduziu, logo nas primeiras páginas deste documento uma citação bíblica, declarando o seguinte:
“Por que será que as pessoas cometem crimes com tanta facilidade? É porque os
criminosos não são castigados logo”, diz o trecho do Velho Testamento (Eclesiastes,
cap. 8, ver. 11 (BRASIL, 2016, p. 15).

Ora, práticas como esta, que confirmam a opção religiosa seguida pelos magistrados são
comuns nesses ambientes e sugerem o posicionamento institucional do órgão judicial em relação à
produção da verdade que ali é realizada, afastando, desta forma, o caráter laico do Estado brasileiro,
garantido constitucionalmente. Por outro lado, a ausência de símbolos de outras matrizes religiosas,
igualmente praticadas no país, remete à ideia de que se trata de mais uma estratégia do sistema
classificatório e seletivo presente nos espaços públicos.
A carência de uma representação universal e de tratamento igual e uniforme, abraçando os
diferentes sistemas religiosos existentes no país, impede o reconhecimento amplo a todas as
orientações religiosas. Como lembra Miranda (2009, p. 130) esta seleção reflete o acesso
particularizado e desigual de determinadas religiões ao espaço público, o que transmite a ideia de que
apenas um sistema religioso é legítimo, daí porque seus símbolos estão ali expostos. Além da
contribuição dessa pesquisadora, a pesquisa etnográfica sobre a administração judicial dos conflitos
religiosos no Rio de Janeiro realizada por Rangel (2017, p. 153 e seguintes) chama a atenção para a
dificuldade de os membros do Judiciário brasileiro dissociarem suas crenças de seu trabalho.
Conversando com o professor Marco Aurélio Gonçalves Ferreira sobre este episódio, ele me
informou que em outras tradições jurídicas, como a canadense, por exemplo, é fácil encontrar sobre
as mesas dos juízes uma bíblia, um alcorão e um bhagavad gita. Ou seja, os livros sagrados do
cristão, do mulçumano e do hindu, respectivamente. Isso porque o Canadá é um país multicultural.
Ali, quando uma testemunha presta juramento, é conduzida pelo funcionário do tribunal até o balcão
próximo ao juiz onde tomará assento e o funcionário lhe faz a pergunta: “Jura solenemente dizer a

103
verdade?” Ao que ela responde que sim e o faz, colocando sua mão direita sobre um desses livros. E
mais, quando a testemunha é ateia, seu juramento é feito em nome da pátria. Em todas as hipóteses, é
a testemunha quem faz o juramento, com sua própria fala, o que confere importância a sua
participação. É interessante também pensar que quando se compromete a dizer a verdade, com base
na própria honra, a mentira que porventura possa ser descoberta nessa manifestação atinge,
exclusivamente, a testemunha (desonrada com tal ato). Já no juramento, seja em nome da religião
professada, seja em nome da pátria a qual pertence, a mentira macula não atinge apenas a fé ou a
nacionalidade do mentiroso, pois coloca em dúvida o fundamento da religião ou da nacionalidade
juradas.
Em outros lugares já informei que além dos simbolismos presentes e organizados nesse
espaço físico, a posição do ator na sala é inerente ao papel que cada um desempenha no ritual
judiciário, de tal forma que trocar de posição significa trocar de papel (ALMEIDA, 2014). Demonstra
a importância que o campo atribui à determinação específica dos lugares das partes, havendo,
inclusive, previsão em lei quanto à prerrogativa do representante do Ministério Público ocupar o
assento ao lado direito do juiz, diferentemente ao que acontece com a defesa, como acima afirmado.
Olhando esse cenário, onde a disposição dos móveis e o lugar ocupado pelos atores são
significativos, sempre me recordo da análise que Garapon (1999, p. 221) fez acerca do judiciário
francês, quando afirmou que o ritual judiciário e toda a simbologia que este carrega consigo, além ser
um método de organização de um debate para se chegar à verdade, é também uma forma de constituir
e conservar a manipulação do poder. O autor lembra que além do aspecto do capital simbólico, o
espaço judiciário apresenta outros elementos: é um espaço separado, um “mundo temporário no
centro do mundo habitual”; é um espaço fechado, com portas fechadas [...]; é um espaço dividido, em
que as salas são cheias de barreiras e espaços delimitados para os advogados, as pessoas da justiça, o
juiz, as testemunhas, o acusado (GARAPON, idem, pp. 34 - 37).
Também como já afirmei em texto mais antigo (ALMEIDA 2011), os simbolismos presentes
nas salas de audiências, apesar de serem sentidos pelos atores, dificilmente são traduzidos ou
compreendidos por quem não “pertence” a esse ambiente e, o mais curioso, é que há nessa
“incompreensão” uma finalidade específica. A linguagem, os rituais e os espaços jurídicos,
principalmente, são dominados por aqueles que conseguem compreendê-los e compartimentalizá-los
neste espaço: os operadores jurídicos. Vale dizer, as categorias de percepção e de apreciação deste
conjunto de informações não são destinadas a quem não é especialista, pois como lembra Bourdieu
(2007a, pp. 212-232), há uma crença na competência técnica jurídica134 e o ingresso neste campo

134
O autor afirma que a competência jurídica “é um poder específico que permite que se controle o acesso ao campo
jurídico, determinando os conflitos que merecem entrar nele e a forma específica de que se devem revestir para se

104
implica a capacidade reconhecida (e atribuída pelo próprio campo) de interpretar os textos jurídicos,
os quais consagram uma visão pretensamente “justa” do mundo social. É neste “campo” que se
debatem os profissionais investidos de competência técnica e social na “luta” pelo “monopólio do
direito de dizer o direito”.
Assim, reproduzindo uma lógica totalmente hermenêutica e inacessível aos “profanos”135, o
direito se torna um instrumento autoritário e de dominação, “na medida em que permanece
desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento”. Como
este embate entre os técnicos somente é admitido neste campo, há a ilusão de que ele é autônomo em
relação às pressões sociais e políticas externas ao campo jurídico (BOURDIEU, idem, pp. 211 e 243).
Ainda que este autor também se refira ao campo jurídico francês, entendo que ele oferece
alguma ajuda para compreender esses dados de pesquisa, especialmente quando afirma que a
“posição de um determinado agente no espaço social pode assim ser definida pela posição que ele
ocupa nos diferentes campos, quer dizer, na distribuição dos poderes que atuam em cada um deles,
seja sobretudo o capital econômico, o capital cultural e o social e também o capital simbólico,
geralmente chamado de prestígio, reputação, fama, etc. [..]. Os agentes distribuem-se assim nele
[campo social] na primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem e, na segunda
dimensão na composição de seu capital (BOURDIEU, idem, pp. 134-135). Neste exame o sociólogo
francês afirma que em toda sociedade há uma luta constante entre classes sociais para ocupar o lugar
de poder e que para garanti-lo, os que detêm esse poder vão apresentar seus interesses particulares
como se fossem o interesse de toda comunidade. É aí que reside a violência simbólica, que o autor
considera como um poder que se encontra oculto, dissimulado, visando garantir a dominação.
Ora, no caso brasileiro, a organização dos móveis e objetos, assim como a disposição dos
lugares ocupados pelos atores sociais que comparecem nesses ambientes tem uma finalidade
específica, pois, a posição ocupada por esses atores é inerente ao papel que cada um desempenha no
ritual judiciário, de tal forma que trocar de posição significa trocar de papel. Demonstra a
importância que o campo jurídico brasileiro atribui à determinação específica dos lugares das partes,
chegando ao ponto de o assento do promotor de justiça, localizado ao lado direito do juiz, constituir
previsão legal por ser considerada prerrogativa da função do Ministério Público (artigos 18, I e 41,
IX, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, já referidos).

constituírem em debates propriamente jurídicos: só ela pode fornecer os recursos necessários para fazer o trabalho de
construção que, mediante uma seleção das propriedades pertinentes, permite reduzir a realidade à sua definição jurídica,
essa ficção eficaz.” (BOURDIEU, idem, p. 233). Para o autor, o processo de internalização das estruturas sociais
imanentes/profundas não passa pelo discurso, como ele próprio afirma: “o que faz o poder das palavras (...), poder de
manter a ordem e de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja
produção não é da competência das palavras” (BOURDIEU, idem, p. 15, grifo meu).
135
A expressão “profanos” é utilizada pelo autor para se referir justamente àqueles que não possuem esta competência
técnica (BOURDIEU, idem, pp. 232-233).

105
Para os atores desses ambientes, a disposição cênica diz respeito à categoria jurídica
denominada “paridade de armas”, relativa à igualdade de tratamento entre a defesa e a acusação pelo
Judiciário brasileiro e tem sido tema recorrente não apenas nos discursos legais e doutrinários, como
também já foi examinado pela Suprema Corte do país136. Estes discursos representam a forma como
o campo jurídico brasileiro enxerga a isonomia jurídica e a disputa interna do campo pelo poder de
dizer o direito. Por isso, na Justiça brasileira, com raríssimas exceções, juiz e Ministério Público
estão sempre lado a lado e em posição espacial mais elevada do que os advogados de defesa e as
partes, o que significa a maneira como a categoria é representada.
Vale também ressaltar que em sua pesquisa de campo, Geraldo (2013) percebeu que na
justiça francesa, as salas de audiência são maiores do que as da justiça brasileira, já que podem
comportar um grande número de ouvintes que têm livre acesso para entrar e ali permanecerem, não
precisando solicitar autorização aos funcionários para assisti-las. Como nesses locais as partes e seus
advogados aguardam suas audiências dentro da própria sala onde estes atos serão realizados, há a
oportunidade de o jurisdicionado observar e aprender os ritos da audiência, tendo parâmetros de
como deve falar e se comportar na sua vez, além de detectar um padrão, uma previsibilidade do seu
julgamento, quando há naquele dia outros casos semelhantes ao seu.
Ora, as salas de audiência da Justiça brasileira, ao contrário, não foram planejadas para
promover o acesso à população em geral - apesar de a edificação e a manutenção dessas instalações
serem custeadas pelos impostos dos cidadãos brasileiros, bem como os salários dos agentes públicos
que ali atuam. O tamanho desses ambientes ratifica que eles são destinados a poucas pessoas, e que
elas também permaneçam nestes espaços por pouco tempo. A consequência disso é a baixa
fiscalização das questões essenciais dentro de um processo judicial, tais como a previsibilidade do
julgamento e isonomia de tratamento, o que abre margem, em algumas vezes, à arbitrariedade do
julgamento.
Aqui, mesmo quando as salas de audiência possuem tamanho considerado superior a das
demais – como são exemplos as das 7ª e 9ª Varas Criminais Federais, que observei durante o trabalho
de campo -, isso não significa preocupação com a participação popular ou com a transparência dos
atos ali realizados e, muito menos, há nestes espaços qualquer orientação pedagógica.
Afinal, como um Procurador entrevistado informou, o tamanho desses ambientes visa também
abrigar jornalistas e repórteres que acompanham os casos que ganham repercussão na mídia, além
das partes, seus advogados, entre outros atores do campo. Vale dizer, a preocupação é com a

136
Conforme notícia na página eletrônica da Defensoria Pública da União, sob o título: Igualdade entre acusação e defesa
em audiência é tema de ação no Supremo Tribunal Federal  STF. Disponível em
http://www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5184:igualdade-entre-acusacao-e-defesa-em-
audiencia-e-tema-de-acao-no-stf&catid=34:noticias&Itemid=223

106
teatralidade da cena ali reproduzida e a repercussão que ela garantirá na mídia e no imaginário da
população. Houve ocasiões em que o número de delatados e de seus respectivos advogados foi de tal
ordem que estas audiências precisaram ser realizadas no auditório daquele tribunal.
As práticas dos operadores jurídicos poderiam constituir uma forma pedagógica de orientação
aos cidadãos que demandam da Justiça uma resposta para seus conflitos cotidianos, mas o que tenho
visto no trabalho de campo é a utilização reiterada da linguagem técnica e hermética do direito pelos
operadores jurídicos e judiciais, o que causa nos destinatários da lei a incompreensão do seu sentido
e/ou de sua finalidade. Consequentemente, cada vez mais os leigos ou “profanos” (BOURDIEU,
2007a) vão constituindo uma parcela considerável da população sem acesso a este conhecimento.
No Brasil, este distanciamento entre os que “sabem” o Direito e aqueles que não conseguem
compreendê-lo, ainda que sejam seus principais destinatários, tem sido responsável pelo fosso
existente e apontado nas pesquisas realizadas nas últimas décadas sobre a eficácia e a eficiência das
instituições jurídicas e judiciais do país e que reforça as desigualdades brasileiras. Mas, não se pode
deixar de mencionar que é justamente esse distanciamento que garante a manutenção dos argumentos
de autoridade (e de poder) que provém destes discursos.
A seguir, descrevo o caminho percorrido pelo acordo de Colaboração Premiada quando
chegam ao juízo da 7ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro.

II.3. O CARTÓRIO JUDICIAL E O REGISTRO DOS ACORDOS DE COLABORAÇÃO


PREMIADA.
Devido ao rito conferido pela Lei nº 12.850, de 2013 (entre outras normativas) à distribuição e
ao registro do acordo de Colaboração Premiada, percebi que eles diferem do que Brito (2013, pp.
104- 120) verificou em seus estudos, pois estes atos não são protocolados como os demais
documentos e petições que geralmente são levados aos cartórios judiciais criminais. Este pesquisador
observou que os cartórios ou serventias judiciais são presididas pelo juiz e neles cabe ao escrivão ou
responsável pelo expediente a chefia sobre os demais serventuários da justiça, organizando o
funcionamento desse local e a distribuição das tarefas entre eles. Estes serventuários são responsáveis
pelo processamento das petições e demais documentos que instruem os processos. Por fim, há os
auxiliares e estagiários que se incumbem em “levar e trazer” os documentos, além de prestar
atendimento no balcão às partes e advogados, entre outras tarefas (BRITO, idem, p. 104).
Ora, os acordos de Colaboração Premiada alteram essa dinâmica e a estrutura de
funcionamento desses cartórios, na medida em que, tanto a função de protocolo e de movimentação,
quanto a de atendimento das autoridades responsáveis pela celebração do acordo (Ministério Público

107
ou Delegado), são sigilosas. Tais atividades cabem, com exclusividade, ao diretor de secretaria, cuja
função é equivalente ao escrivão chefe da Justiça Estadual. Esse diretor de secretaria é indicado pelo
juiz, e na ausência deste serventuário (por motivo de férias ou de saúde), por outro igualmente
indicado pelo magistrado.
Em minhas conversas com os serventuários que trabalham na Justiça Federal, fui informada
que, na maior parte das vezes, esses diretores de secretaria são escolhidos dentre os servidores
concursados. No entanto, são também muito comuns os casos em que o próprio juiz escolhe pessoas
que não são concursadas para ocupar tal cargo. Acontece que, por se tratar de cargo de confiança, a
demissão destes diretores é “ad nutum137”, significa que a qualquer momento podem ser demitidos
pelo juiz. A consequência dessa demissão acarreta não apenas a perda de status, como também a
redução sensível do salário, já que a remuneração do diretor de secretaria seria equivalente ao
vencimento do serventuário multiplicado por dez vezes, valor este que também contribui para a
representação acerca do status deste profissional.
O caminho percorrido pela Colaboração Premiada revelou, também, o estabelecimento de
certa hierarquia entre os funcionários do cartório criminal observado. Percebi este dado durante uma
conversa informal com um deles, enquanto aguardava o início da audiência que iria assistir. Segundo
este informante, os acordos de Colaboração Premiada são protocolados, distribuídos e despachados
assim que chegam aquele local e são logo encaminhados ao juiz pelas mãos do serventuário
destacado para essa função, o que assegura este status em relação aos demais funcionários.
Ainda de acordo com este servidor, nenhum dado do colaborador ou dos delatados são
registrados nesses expedientes ou nos sistemas de controle e andamento dos processos judiciais. O
acordo de Colaboração Premiada é encaminhado por uma petição elaborada pela autoridade que
realizou o acordo e que no Rio de Janeiro, em geral, é o Ministério Público Federal. Essa petição
recebe apenas uma numeração para identifica-la. Desta forma, somente o juiz, a autoridade que
celebrou o acordo e o funcionário do cartório indicado pelo juiz têm acesso ao conteúdo e ao
andamento desses procedimentos.
Já quando a Colaboração Premiada é distribuída, após a existência de uma Operação Lava-
Jato ou congêneres já registrada no cartório, em razão de algum pedido preliminar - busca e
apreensão, prisão preventiva etc. -, o magistrado determina a sua autuação, registro e distribuição por
dependência ao inquérito policial ou ao procedimento de investigação criminal que eventualmente se

137
Termo em latim, que no jargão jurídico corresponde ao ato revogável pela vontade de uma só das partes ou aquele ato
que é resolvido pelo juízo exclusivo da autoridade administrativa competente (diz-se de demissibilidade de funcionário
público não estável). Cargos ad nutum são aqueles de livre nomeação e exoneração, como os cargos em comissão,
conforme divulgado em https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/891/Ad-nutum..

108
originaram a partir daquela Operação e já distribuídos138, os quais também são mantidos sob o
mesmo sigilo.
Para ilustrar o que afirmo, reproduzi uma cópia da capa de um procedimento de
investigação, divulgado pela mídia nacional e encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (ANEXO
III), no qual os únicos dados informados e registrados neste procedimento foram: o número da
petição (Petição nº 6138)139; a matéria observada: Direito Processual Penal; a data de sua
distribuição: 16/05/2016; a origem do Procedimento (ou unidade federativa): Distrito Federal; o
nome do Ministro do Supremo Tribunal Federal encarregado de atuar como relator do processo:
Ministro Teori Zavascki e o órgão requerente: Ministério Público Federal. Não há nenhum registro
identificando os dados do(s) colaborador(es), ou outros envolvidos. A razão dessa omissão será
abaixo explicada.
O acordo de Colaboração Premiada é autuado no cartório pelo sistema de numeração
específico, juntamente com a petição do Ministério Público que o encaminha, além do depoimento do
colaborador (registrado por escrito e/ou por gravação audiovisual) e os anexos por ele produzidos e
sobre os quais voltarei a comentar. Importa ressaltar que nesse registro não há qualquer menção às
partes ou aos crimes objetos desse feito. Até a audiência de homologação do acordo, apenas o juiz e o
Ministério Público Federal (ou Delegado, nas hipóteses em que esta autoridade celebra o acordo) têm
acesso às peças que informam esse procedimento, o que vem gerando inúmeras críticas,
especialmente, dos advogados que representam os delatados, como também será visto.
De acordo com o texto da Lei nº 12.850, de 2013 (artigo 7º)140, mesmo após a homologação
do acordo pelo juiz, a Colaboração Premiada continuará sob sigilo, somente se tornando pública ao

138
Esta dinâmica refere-se aos acordos de colaboração premiada distribuídos às varas criminais federais. Vale lembrar
que os acordos celebrados por pessoas comuns são homologados pelo juiz de primeira instância (juiz federal), enquanto
os realizados por pessoas com prerrogativa de foro, esta atividade acontece perante o Supremo Tribunal Federal ou o
Superior Tribunal de Justiça. Nesses casos, tais acordos ficam sujeitos à ratificação do Procurador-Geral da República,
que tomará as medidas cabíveis junto à respectiva Corte para sua homologação. Significa que os cidadãos brasileiros
recebem tratamentos jurídicos distintos, conforme o cargo que desempenham em suas funções laborativas e, por essa
razão, Kant de Lima e Mouzinho (2016, p. 508) já afirmaram que este é, efetivamente, um dos principais instrumentos
processuais penais que atinge o instituto da isonomia prometida constitucionalmente aos cidadãos brasileiros.
139
Trata-se de petição que encaminhou a Colaboração Premiada de José Sergio de Oliveira Machado, ex-Senador da
República, envolvido nas investigações que apuram crimes contra a PETROBRÁS, além de treze termos de
depoimentos de outros envolvidos, entre eles, os três filhos do ex-senador. A esses termos de depoimento se somam
documentos e registros de áudio de conversas gravadas pelo colaborador com os também Senadores Renan Calheiros e
Romero Jucá e com o ex-Presidente da República, José Sarney, aparentemente, também envolvidos nestas infrações
criminosas.
140
Lei Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 7o O pedido de homologação do acordo será sigilosamente
distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto. § 1 o As informações
pormenorizadas da colaboração serão dirigidas diretamente ao juiz a que recair a distribuição, que decidirá no prazo de
48 (quarenta e oito) horas. § 2 o O acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia,
como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo
acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de
autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento (BRASIL, 2013).

109
final das investigações, quando o juiz aceitar as denúncias contra os delatados e colaboradores (nos
casos em que para este último não for ajustado no acordo o perdão judicial ou a imunidade penal pelo
não oferecimento de denúncia). Vale dizer, este acordo somente se tornará público depois de
instaurada a ação penal e tal característica sigilosa imposta ao acordo de Colaboração Premiada será
objeto de análise mais detalhada quando descrevo, em seguida, as principais características desse
acordo.
Distribuída a petição que encaminha o acordo para ser homologado pelo juiz, é marcada
uma audiência para este fim. Nessa audiência comparecem o colaborador e seu advogado (ou
defensor público); o representante do Ministério Público, os delatados e seus respectivos advogados,
bem como as testemunhas de ambas as partes, quando assim é requerido por estas. Devido à extensão
do conteúdo das informações contidas nesses acordos, em algumas vezes essas audiências foram
desmembradas para outras datas, quando estas testemunhas seriam ouvidas.
A seguir, descrevo e analiso alguns aspectos relativos à operacionalização desses acordos, a
partir dos discursos dos entrevistados na pesquisa.

§ 3o O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia, observado o disposto no art.
5o.

110
CAPITULO III
O ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

A seguir, descrevo os principais aspectos dos Acordos de Colaboração Premiada sob a ótica
dos discursos dos representantes do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro. Em algumas
oportunidades conjugo-os com os discursos doutrinário, jurisprudencial ou legal para indicar a
concorrência ou a aproximação entre eles. Tal exercício não visa analisar qual discurso é mais
adequado ao sistema legal ou qual se opõe a ele, mas tão-somente explicitar a multiplicidade de
argumentos que convivem, ao mesmo tempo, no interior deste sistema, promovendo não apenas a
luta concorrencial pela hegemonia de dizer o Direito (BOURDIEU, 2007a), como também a
prevalência do discurso de autoridade (PERELMAN e TYTECA, 1996a, p. 256)141.
Em relação às declarações dos entrevistados, ressalto que elas constituem, como Figueira
(2007, p. 30) denominou, discursos institucionais, ou seja, a legitimidade dos discursos proferidos
pelos entrevistados resulta do fato de representarem a instituição que estes integram. Quando estes
operadores produzem seus discursos não estão falando em seu próprio nome. Aliás, como lembra o
autor, geralmente, nenhum dos atores do campo jurídico (juiz, advogado ou defensor público,
membro do Ministério Público) produz discursos de ordem pessoal. Eles falam por meio de um
mandato institucional, são porta-vozes autorizados pelas respectivas instituições das quais fazem
parte e que os investiram – simbolicamente – nas posições sociais que estes ocupam no campo
jurídico. Figueira (ibidem) também lembra que “O ato de ‘investidura’ – num sentido de direito
administrativo – numa função pública, confere, a partir daí, poderes simbólicos ao instituído. Sua fala
passa a incorporar todo o capital social acumulado pelo grupo a que ele pertence. Quando um
indivíduo fala da posição enunciativa de promotor de justiça, ele está evocando em seu discurso toda
a carga simbólica da instituição que ele representa. E isso também é válido para os demais atores
(juízes, advogados, defensores públicos)”. Esta representação é ainda mais manifesta quando os
representantes do Ministério Público afirmam que eles são a própria instituição.
Esta afirmação remete à distinção que a doutrina do direito administrativo brasileiro
(MEIRELLES, 2007, entre outros) faz acerca dos servidores públicos e dos agentes políticos do
Estado. Os agentes políticos do Estado são diferentes dos servidores porque fazem parte de carreiras
que têm como prerrogativa do exercício funcional não estarem submetidos a qualquer superior
141
De acordo com os autores, a expressão “argumento de autoridade” se opõe à “autoridade do argumento”. Na primeira,
o argumento é reconhecido em razão da pessoa que o profere, por seu prestígio social, político, financeiro etc.
Enquanto, ao contrário, a expressão “autoridade do argumento” significa que o reconhecimento recai sobre o argumento
e sua validade em si mesmo.

111
hierárquico. Esses agentes atuam com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições
com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais. No
exercício da função somente estão submetidos à própria consciência e à lei. Suas funções não são
passíveis de avocação por superiores hierárquicos. No entanto, é bom esclarecer, que do ponto de
vista administrativo – gozo de férias, licenças etc. – estão submetidos à hierarquia funcional própria
do serviço público. Assim, são agentes políticos do Estado no sistema jurídico criminal: os juízes, os
órgãos do Ministério Público e os da Defensoria Pública.
Já no que se refere aos discursos dos operadores, como Foucault (2007) já afirmou, o
discurso é proferido dentro de um locus específico e que dá posição (status) aos atores. Como afirma
o filósofo, “os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte também, políticos não podem
ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo,
propriedades singulares e papéis preestabelecidos” (FOUCAULT, idem, p. 39). Assim, os rituais, as
normas e as regras, presentes nestes locais, definem a posição que o ator ocupa em determinado
diálogo, e consequentemente, os enunciados que deve produzir, bem como o comportamento
adequado a ser seguido. Esta afirmação se evidencia, sobremaneira, quando os discursos jurídicos são
analisados, por exemplo, a partir dos pontos de vista dos atores que representam este campo e das
regras que orientam suas práticas.
Por isso, quando os entrevistados indicam os principais aspectos dos acordos de
Colaboração Premiada, o fazem ressaltando - enquanto responsáveis pela investigação criminal
deflagrada a partir deste procedimento – o que entendem ser adequado para esta atividade e para o
desempenho do seu papel.
Para apresentar as principais características do acordo de Colaboração Premiada, segui a
estrutura que Bisharat (2015) utilizou em seu recente artigo no qual descreve a plea bargaining norte-
americana, embora o estudo do sistema jurídico brasileiro seja neste momento descrito muito
parcialmente, já que será objeto de análise ao longo de toda a pesquisa.
Bisharat (idem) indica em seu estudo que apesar de o sistema jurídico criminal norte-
americano ser caracterizado como um sistema adversarial é, ao mesmo tempo, um sistema de
julgamento pelo júri (o trial by jury), sendo o custo que demanda este julgamento essencial para se
poder entender o instituto da plea bargaining, uma vez que transforma esse sistema na plea
bargaining machine.
Sistema adversarial, como lembra o autor, é aquele onde há um combate entre as partes –
defesa e acusação – que são responsáveis por apresentar evidências perante o tribunal. Nesse sistema,
o juiz é relativamente neutro, assegurando que as regras relativas ao processo não sejam violadas,
durante a produção de tais evidências. Logo, não existe um juiz que tenha a atribuição de investigar

112
ou de trazer fatos ao processo. Já o sistema pelo julgamento pelo júri, em linhas gerais, é aquele
realizado por doze membros da sociedade. As evidências são apresentadas a eles e são estes
representantes da sociedade que determinam se o réu é culpado ou não (BISHARAT, idem).
A categoria “bargain” significa, na tradição norte-americana, troca, permuta, pacto,
combinação ou negócio entre duas pessoas. Consiste em uma atividade que tem raízes profundas na
formação da sociedade em que está inserida e de onde se originou. Esta tradição contratual é bem
acentuada por Garapon e Papadopoulos (2008, pp.102-103), quando afirmam que – seguindo a tese
do filósofo do direito americano, Roscoe Pound (1999, p. 36) – as origens religiosas do direito142
constituem “um fator determinante” do desenvolvimento da Common Law143. Por este motivo, a
reforma protestante com seu liberalismo individual religioso, ao reiterar a autonomia do indivíduo em
relação à autoridade eclesiástica e às instituições religiosas, tem como forma jurídica preponderante o
contrato, na medida em que valoriza o indivíduo (dotado de liberdade de consciência), enquanto
sujeito capaz de escolher livremente as relações sociais que deseja entabular, o que lhe faz respeitá-
las.
De acordo com os autores, se o protestantismo fez despontar tal característica, o calvinismo
– dos primeiros colonos vindos da Inglaterra para os EUA -, por sua vez, exasperou, ainda mais, o
individualismo protestante, destacando os covenants – contratos firmados pelos comerciantes144 -,
inclusive o acordo em geral entre duas partes, que se obrigam a respeitá-lo. Os autores alertam que
dessa experiência resultou uma atitude bastante particular em relação à lei e isso é muito importante
para a cultura judiciária americana145, pois como a lei é entendida pelos calvinistas como um ato de
vontade unilateral que provém de cima e de alguém que detém autoridade, ela representa uma
ameaça, uma intrusão, no que seria considerado o “corpo do verdadeiro direito vivo”, que é o direito

142
Outra análise sobre a influência e inter-relação do direito ocidental com a religião e os costumes é feita por Berman
(2006), que examina o processo de transformação histórica do direito, a partir das mudanças ocorridas no interior da
Igreja Católica e decorrente da Reforma Gregoriana, destacando o que denomina de “revoluções”. Segundo ele, a
Reforma Gregoriana teria sido a primeira das revoluções ocidentais, seguida da Reforma Protestante, a Revolução
Inglesa do século XVII, a Revolução Americana, Revolução Francesa e a Revolução Russa (BERMAN, idem, p. 148).
Ainda segundo o autor, estamos vivendo um momento de criseda tradição jurídica ocidental, que é traduzida por um
cinismo em relação ao direito e que se confundiria com uma perdade confiança da civilização ocidental em si mesma,
daí a importância de se buscar no passado elementos que permitaminquirir a crise do presente (BERMAN, idem, p. 10).
143
Os autores afirmam que Tocqueville foi o primeiro a afirmar que a religião deu surgimento às sociedades anglo-
americanas (GARAPON e PAPADOPOULOS, idem, p. 101).
144
O covenant, segundo os autores, significa “o contrato típico firmado entre comerciantes e, mais geralmente, o acordo
de duas partes que se empenham em respeitá-lo, tem um lugar central no pensamento teológico dos puritanos”
(GARAPON e PAPADOPOULOS, idem, p. 103).
145
De acordo com os autores, a cultura jurídica possui duas representações: a interna e a externa. Enquanto a interna “é
constituída pelas atitudes, crenças, raciocínios, percepções, valores mais ou menos explícitos, comuns a um grupo de
profissionais do direito”, a externa significa a ideia que o povo tem sobre o direito e que, segundo os autores, é
representada em filmes, romances e outras dimensões culturais. Em seguida, afirmam que uma cultura jurídica pode ser
a resultante de processos de produção de verdades e de configurações políticas(GARAPON e PAPADOPOULOS, idem,
pp. 13; 18).

113
contratual. Por tal motivo, a lei só deve fornecer regras detalhadas para os casos expressamente
previstos. Isso não significa, no entanto, o total desapego ao legalismo, como assinalam os autores.
Os calvinistas ou puritanistas possuíam uma cultura legalista e o que eles criticavam era a lei
demasiadamente distante da realidade das comunidades locais. A partir do momento em que as
regras (mais exatamente, os protocolos) fossem amoldadas a esta realidade - onde a liberdade
associativa e comunal tinha primado -, seria “preciso ser implacável em sua aplicação”, punindo,
inclusive, o menor desvio cometido contra ela (GARAPON e PAPADOPOULOS, idem, p. 103).
Além de influir na forma como a lei é vista, o protestantismo também acarretará formas
bastante peculiares de representação da confissão e da formalização processual da investigação da
verdade (gestão da prova). Como afirmam os autores, tanto um lado do Atlântico quanto o outro -
referência à cultura jurídica francesa e à norte-americana, que os autores representam - conhecem a
confissão, mas a questão crucial é que, com o tempo, cada um lhe atribuiu significado diferente, em
relação ao direito da prova. Para um, sua encenação era privada, enquanto para o outro, pública.
Trata-se, assim, de dois processos distintos para se chegar à verdade do passado.
Para os puritanos, a verdade passava por uma confissão publicamente organizada,
regularizada, normalizada, bem diferente da encenação católica. Após uma análise íntima e reflexiva
dos seus atos, o puritano se voltava para sua comunidade para dar seu testemunho desta experiência.
Era essa confissão pública, diante dos seus pares que, ao aceitá-la, lhe permitia o retorno à vida
comunal e reconciliada. Mesmo ocorrendo em um contexto onde as comunidades exerciam um
controle social grande sobre os indivíduos, a verdade não era extirpada e nem gerenciada por um
aparelho oficial, como ocorre na confissão católica. Para os católicos, a prova é representada como
um recurso do Estado sobre a verdade, já que o Estado é a “fonte única e última de verdade, à
imagem da Igreja, da qual ele é o prolongamento simbólico” (GARAPON e PAPADOPOULOS,
idem, pp. 102; 104).
Os autores citam Marx Weber (2001, pp. 158-251) que afirma que para os puritanos, a
santidade só se manifestaria “no cumprimento metódico e perseverante dos deveres públicos e
privados, em uma espécie de heroísmo bibliográfico”, para reforçarem a noção segundo a qual a
doutrina calvinista da predestinação produzirá o domínio de regras de procedimento, diante da
necessidade de observação de protocolos que interferem em todas as ações dos puritanos.
Segundo os autores, as regras relativas à maneira como se chega à verdade é a principal
característica da common law: “essa talvez seja uma das razões pelas quais a common law sempre
teve regras de prova (rules of evidence) muito estritas”. A necessidade de se inventar regras de
prova extremamente rigorosas decorria do fato de os magistrados serem vistos com desconfiança
pelos puritanos, por serem pessoas comuns (privados do estado de graça) e, por isso, para evitar que

114
cometessem abuso de poder, precisavam atuar como autômatos146. Ainda de acordo com os autores, o
sistema jurídico americano possui uma verdadeira fixação em relação às regras processuais, às quais
se recorre para encontrar a “verdade dos fatos”; “A common law se interessa menos pela verdade do
que pelo método certo de se chegar a ela” (GARAPON e PAPADOPOULOS, idem, p. 105).
Além disso, essa cultura valoriza uma acepção ética acerca do que é considerado
“conveniente” (proper thing to do) e “homem honesto” (honest man), que corresponde a uma
moralidade interna do direito. Desta forma, a ideia central do direito processual penal anglo-
americano é o due processo of law, na medida em que exprime a noção de honestidade, bem como o
valor às regras e às formas comuns de agir, consideradas como garantias de verdade. Subsiste a
noção de que para atingir seus objetivos o sistema jurídico precisa obedecer aos preceitos da
moralidade processual. Neste processo, inúmeras e detalhadas regras são destinadas à interação entre
os participantes (inclusive acusado e testemunhas de acusação)147 para que estes possam se
confrontar por interrogatórios e contra-interrogatórios (examinations e cross-examinations)148,
realizados por suas próprias iniciativas. Nele, a verdade é manifestada por uma forma de disputa de
argumentos, no qual o mais convincente é o vencedor.
Enquanto no procedimento de inquirição católica o objetivo é fazer “eclodir” a verdade, na
cultura da common law é mais o de fazer com que os depoimentos se fundam, sejam postos em
concorrência para que triunfe o mais convincente. Essa encenação da busca da verdade apela muito
mais para o verossímil do que para o verdadeiro. Nela, tudo é reproduzido para que as partes sejam
capazes de oferecer a sua própria versão mais verossímil, mas tudo é igualmente feito para que o júri
testemunhe o afrontamento e a demonstração dos depoimentos antagônicos das duas partes. Como
afirmam os autores, “No quadro fortemente teatralizado de uma audiência inglesa ou americana, o
teste de verdade é certificado pelo respeito escrupuloso das regras processuais e seu resultado é lido
na impressão produzida pelos depoimentos sobre o júri” (GARAPON e PAPADOPOULOS, idem, p.
105).
Composto por pessoas comuns - que julgam a partir de suas próprias experiências e segundo
a razão prática do homem comum -, o júri nesta cultura se limita a indicar qual o depoimento é
vencedor e qual é o depoimento perdedor. Assim, neste contexto, a verdade judiciária não é infligida
por um magistrado ungido por Deus e “ministro da verdade”, como acontece na tradição jurídica
romanista. Ao contrário, será edificada na consciência dos jurados a partir dos depoimentos

146
De acordo com os autores, tal ideia está presente no texto de Pound (1999, pp. 57-59).
147
Prática esta assegurada pela 6ª Emenda quando afirma que “Em todas as investigações criminais, o acusado terá o
direito (...) de ser confrontado com as testemunhas de acusação” (GARAPON e PAPADOPOULOS, ibidem).
148
Retornarei à tais técnicas de inquirição de testemunha, em seguida.

115
antagônicos ouvidos e em função da maior ou menor distância destes depoimentos em relação à
experiência prática do homem comum. O ideal da verdade continua sendo, evidentemente, o mesmo
nas duas culturas, mas os modos de produção da verdade são muito diferentes em cada uma delas. O
juiz da common law faz com que o acesso à verdade se dê de modo processual.
Os autores ilustram a narrativa com alguns exemplos de julgamentos realizados pela
Suprema Corte para analisarem os “padrões de prova” (standards of proof), nos quais descrevem a
variação dos diferentes regimes de prova no direito americano, em contraste com a ideia de unidade
da verdade romano-germânica e, por outro lado, das presunções (presumptions) que dão testemunho
de flexibilidade, também desconhecida daquele modelo.
Como no sistema jurídico norte-americano existem diferenças entre os padrões de prova, é
possível que alguém seja absolvido em razão da persistência de uma “dúvida razoável” concernente
a sua responsabilidade penal e, ao mesmo tempo, condenado a pagar as indenizações porque sua
responsabilidade civil foi estabelecida em virtude da “preponderância da prova”. Isto ocorre porque
neste sistema a verdade conta menos do que o contexto processual no qual ela é buscada, ou seja, a
modelagem da verdade varia em função do contexto e das funções asseguradas pela justiça.
Retornarei a este assunto quando comparar este sistema com a gestão da prova no modelo brasileiro e
no contexto das Colaborações Premiadas.
Na tradição norte-americana a a categoria “bargain” consiste em uma atividade (negócio)
em que os dois lados ganham e, ao mesmo tempo, perdem alguma coisa. Significa uma relação
equilibrada entre as partes que pactuam. Já a categoria “barganha”, entre nós, embora assuma esta
noção de troca, permuta ou negócio, também se refere à ideia de “um bom negócio” para uma das
partes, ou o ato de regatear, o que pressupõem que uma das partes “levou vantagem sobre a outra” e
que, consequentemente, uma parte nesse negócio saiu perdendo149.
Diante de tal distinção, resolvi analisar como é que esta “barganha” é colocada em prática no
sistema norte-americano quando a Plea Bargaining é produzida e, por outro lado, como é que ela é
constituída nos nossos acordos de Colaboração Premiada? Afinal, o que é que está sendo objeto
dessas negociações e quais são os aspectos mais relevantes que as diferenciam? Para tanto, faço uma
breve revisão de bibliografias específicas sobre as práticas do sistema jurídico estrangeiro para, em
seguida, examinar o nosso modelo de “barganha”.

149
De acordo com o dicionário Michaelis On line, “barganha”, em sentido coloquial, significa permutação de coisa de
pouco valor; troca: “[…] em face do aumento do desemprego, seriam provavelmente as primeiras a serem dispensadas,
tendo baixo poder de barganha” (MS); pechincha; transação fraudulenta, trapaça. Em sentido pejorativo, troca de
favores, vantagens ou privilégios. Conforme divulgado em
http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=barganha.

116
O primeiro aspecto diz respeito aos interesses ou direitos das partes. No modelo
estadunidense, enquanto o acusado tem direito ao processo, o órgão de acusação quer promover a
acusação. Trata-se de um negócio porque o processo judicial, nesse modelo, consiste em um direito
do acusado. Significa afirmar que o acusado tem o direito de ser julgado perante o júri e, por isso,
pode desistir dele ou trocar e negociar este direito. Como afirma Bisharat (2015, p. 14), “Direitos
constitucionais, de modo geral, naquele sistema, podem ser dispostos, o que significa que se pode de-
sistir deles e se recusar a reivindicá-los”.
Por isso, quando o acusado diz que não aceita a oferta da acusação, significa que o Estado
lhe deve um processo. Além disso, o ônus de provar a culpa do acusado é do Estado. O processo é
representado de forma diferente pelas partes. Enquanto para o acusado o processo importa em um
direito, para o Estado é um dever e há toda uma carga valorativa em razão da necessidade de sua
realização, já que é custoso (financeira, institucional e socialmente), estressante, demorado e,
portanto, não é interessante para o Estado (BISHARAT, idem, p. 126)150.
Devido à quantidade de processos examinados pelo júri, quando a plea bargaining não é
aceita pelo acusado, porque este deseja ver o Estado provando a sua culpa, ou seja, quer a instauração
do processo - isso resultará em mais um caso a ser examinado pelo Júri -, o que, na maioria das
vezes, acarreta a obstrução da pauta de julgamento e das agendas do juiz, do órgão de acusação e do
defensor. Além disso, há sempre o risco de o órgão de acusação não conseguir demonstrar durante o
júri a culpa do acusado, ou seja, não conseguir convencer os jurados quanto à acusação.
Por tais razões, para conseguir realizar este “negócio”, o órgão de acusação vai negociar o
tipo penal no qual a conduta do possível autor do fato vai ser enquadrada e barganha com ele a
verdade que prevalecerá. Para usar um termo aplicado apenas pelo campo jurídico brasileiro, negocia
“a verdade dos fatos”. Geralmente, nesses casos, o consenso se faz sobre a figura típica mais benéfica
para o acusado, porque se escolhe um tipo penal cuja cominação de pena é menor do que a que ele
responderia. Vale dizer, o district attorney – acusação -, não negocia, exclusivamente, a pena, mas a
imputação de um tipo penal menos grave. A redução da pena, portanto, é uma consequência da
alteração do tipo penal contido na plea bargaining.
Trata-se de uma negociação porque os dois lados abrem mão de interesses e direitos: o autor
do crime abre mão do processo que lhe é devido pelo Estado e o district attorney, abre mão de
imputar um tipo penal mais grave e ter que provar a culpa do infrator em relação a este tipo. Ao

150
Bisharat (ibidem) afirma que o julgamento pelo júri requer “uma grande habilidade organizacional e logística para ser
realizado, além de possuir um alto custo, em termos de recursos institucionais e sociais. Devemos notar também um
custo não econômico embora significativo do julgamento, que é a carga emocional que recai sobre os advogados, acu-
sados e até testemunhas”, daí porque o autor afirma que “Esses custos são essenciais para que se entenda a plea
bargaining”.

117
mesmo tempo, os dois lados ganham: o acusado, assumindo a culpa por crime menos grave, cumprirá
pena menos branda, sem precisar responder a processo; o district attorney, evita o alto custo
(econômico, institucional e social) que o processo representa, além do risco de ter sua reputação
abalada, por não conseguir, efetivamente, obter a condenação do acusado.
Enquanto o papel do district attorney gera reputação, por representar a autoridade do Estado,
o exercício da acusação contra um cidadão individualmente, gera, por sua vez, no júri, a
responsabilidade pela defesa da liberdade individual contra os eventuais e possíveis abusos do
Estado. Como lembra Bisharat (idem, p. 127), “o júri se coloca entre o indivíduo e o acusador para
desafiar o poder deste último e proteger o indivíduo de perseguições. Este é um dos principais
motivos pelo qual possuímos o julgamento pelo júri. É especificamente pensado nos Estados Unidos
como uma manifestação da identidade nacional, representada como um conjunto de indivíduos
preocupados com a sua liberdade, ameaçada pela autoridade central”. Perder o julgamento, ou seja,
não conseguir a condenação do acusado, pode representar para o órgão de acusação um abalo em sua
reputação.
Várias são as diferenças entre o órgão de acusação do sistema norte-americano e os nossos
membros do Ministério Público. Lá os advogados de acusação fazem parte de uma equipe de um
district attorney eleito para exercer essa função por um determinado tempo. Perder julgamentos
significa colocar em risco o próprio emprego. Assim, o acordo pre-processual consubstanciado na
plea bargaining interessa muito à acusação.
No sistema estadunidense, quando o acusado abre mão do direito ao processo e aceita a
“barganha” oferecida pelo órgão de acusação, isso não significa que esteja confessando, mas, tão-
somente, que admite a culpa em relação ao fato indicado pelo district attorney. A plea bargaining
gera uma admissão de culpa em relação ao tipo de crime que corresponde à oferta realizada pelo
órgão de acusação, não sendo apropriado denominar este ato de confissão, porque esta consiste em
confirmar uma suspeita que a acusação já tinha, antes de realizar a oferta e se refere a uma verdade
anteriormente descoberta. Além disso, a categoria confissão, como já foi dito, carrega consigo a ideia
de que ao confessar o autor revela seu arrependimento por ter praticado o ato criminoso, o que não
está sendo esperado e nem desejado no procedimento da plea bargaining, daí porque é mais
apropriado o emprego da categoria “admissão de culpa”, ao invés de “confissão” (BISHARAT, idem,
p. 139).
Outro aspecto desse modelo norte-americano, diz respeito à presunção de inocência. Como
o processo é um dever do Estado, o acusado não tem nenhuma obrigação de produzir evidências.
Aliás, não é sequer permitido à acusação discutir a decisão do acusado de não apresenta-las. Como
Bisharat (idem, p. 134) adverte: “Isto seria entendido como inversão do ônus da prova, visando criar

118
uma pressão para que a defesa produza provas. Mas não há qualquer ônus da prova para a defesa”.
Além de o acusado ter o direito de permanecer em silêncio (de não se incriminar), a acusação não
pode questionar sua decisão de não apresentar evidências, não havendo qualquer ônus da prova para
a defesa. O acusado não pode ser questionado, a não ser que decida se apresentar como testemunha
(conforme nota de rodapé nº 16, do tradutor). Como explica o autor, a obrigação de produzir provas
pesa, exclusivamente, sobre a acusação.
Como afirmei acima, fiz esta descrição porque alguns discursos dos entrevistados
aproximam e pretendem estabelecer semelhanças entre a Plea Bargaining e a Colaboração
Premiada, o que parece ser um grande equívoco quando se estabelece a comparação entre a descrição
dos dois procedimentos. A comparação, estabelecida por contraste, exige a descrição, ainda que
resumida de tais características do instituto estrangeiro.
A seguir, passo a descrever algumas características e peculiaridades do acordo de
Colaboração Premiada e sua operacionalização, a partir da ótica dos próprios operadores
entrevistados.

III. 1 - O QUE É O ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA?


Assim como acontece com os discursos doutrinários151, os entrevistados atribuem ao acordo
de Colaboração Premiada diferentes significados. Dentre eles, há quem o assemelhe à Delação
Premiada, ainda que ambos os institutos possuam normas específicas regulando-as152. Ainda que a
confissão do colaborador tenha um papel importante nestes institutos, houve entrevistado que
diferenciou a delação premiada da seguinte forma:

- “A delação é quando o sujeito está confessando, ou admitindo os crimes dos outros,


mas quando ele confessa o crime que ele próprio cometeu, aí é confissão”.

151
Também na doutrina não há unanimidade quanto à definição do instituto. Badaró (2015), por exemplo, afirma que a
Colaboração Premiada constitui gênero, enquanto a Delação constitui espécie de modalidade de premiação dos
colaboradores. As definições são: técnica especial de investigação (GOMES e SILVA, 2015; LIMA, 2016); acordo
entre Ministério Público e investigado/acusado (LIMA e CARVALHO, 2009; MENDRONI, 2009; GRECO FILHO,
2014); forma especial de confissão (ARAS, 2015); instituto misto de meio e/ou instrumento de obtenção de provas para
as autoridades estatais e meio de defesa do infrator (BORGES, 2016), ou prova anômala (PRIETRO, 2014), entre
outras definições. Além da doutrina, o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Habeas-Corpus nº
127.483/PR, em que foi relator o Ministro Dias Toffoli, conceituou a Colaboração Premiada como negócio jurídico
processual personalíssimo.
152
O termo Colaboração Premiada está expressamente previsto na Lei nº 12.850, de 2013, já a Delação Premiada,
apesar de não receber o mesmo tratamento, a doutrina e alguns dos entrevistados apontaram sua previsão nas
seguintes leis: Lei dos Crimes Hediondos (artigo 8º, parágrafo único, Lei 8.072/1990); Código Penal, no crime de
extorsão mediante sequestro (art. 159, § 4º, Código Penal); na Lei que regulou os crimes contra o Sistema Financeiro
Nacional e contra a ordem tributária (artigo 16, parágrafo único, da Lei nº 8.137/1990, incluído pela Lei 9.080/1995);
na Lei que combate a lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998); na que trata da proteção de testemunhas
(artigos 13 e 14, Lei 9.807/1999); na que versa sobre tráfico de drogas (artigo 41, Lei 11.343/2006), e na que
estabelece os acordos de leniência para infrações contra a ordem econômica (artigos 86 e 87, da Lei 12.529/2011).

119
(MPF1)

De acordo com o entrevistado acima citado, a diferença entre delação premiada e confissão
estaria vinculada a quem o colaborador imputa a prática criminosa: a si mesmo ou a outrem.
No entanto, esta distinção atinge outras perspectivas, afinal como Kant de Lima e Mouzinho
(2016, p. 515) já afirmaram, enquanto a confissão tem a finalidade de confirmar as informações já
conhecidas da autoridade que conduz a investigação, seja ela a policial ou a do Ministério Público e
constitui uma atenuante da pena (artigo 65, II, do Código Penal), tão somente. Já na delação
premiada, o prêmio (prevista em leis extravagantes que tanto conferem a redução de pena, quanto o
seu cumprimento em regime mais favorável etc.) é devido apenas quando o delator apresenta
informações ainda desconhecidas das autoridades e que possam levar à descoberta de provas
materiais e de autoria de outros crimes cometidos e que sejam interessantes para as investigações. A
confissão processual penal, segundo os autores, manteve o mesmo nome do instituto religioso, o que
significa não só a submissão do investigado/acusado à acusação do Estado, como também o
arrependimento daquele que confessa e obtém, em consequência, a sua salvação espiritual (KANT
DE LIMA e MOUZINHO, idem).
Aliás, Kant de Lima (1990, pp. 3-5) lembra que o Direito brasileiro integrou em suas práticas
a herança de uma tradição eclesiástica153 que procede a uma investigação sigilosa, que deve ser
reduzida a termo, escrito, numa repartição pública, o que lhe confere fé publica. Tudo isso é feito sem
conhecimento do acusado, com a finalidade de apurar seja o que for contra ele. Quando há indícios
de sua culpa, o encarregado da inquisitio (como se denomina esta investigação no direito canônico)
chama o suspeito e o interroga. Ao confessar, o crime não é considerado grave, o interrogado é
repreendido e liberado, sendo-lhe aplicadas penas inferiores as que seriam praticadas se ele fosse
julgado pela Justiça. Contudo, se não confessa, ou se o crime é mais grave, aí não tem jeito, só lhe
resta o tribunal. Assim, a confissão é um elemento importante porque “ela assegura que o acusado
não só está convencido de sua culpa, como reconhece o acerto das investigações preliminares,
proporcionando ao julgador o coroamento de sua certeza moral, que orientou seu juízo, equiparando-
a à verdade dos fatos. E mais, assim como acontece no sacramento da penitência, a confissão
demonstra que o acusado está arrependido, que ele se submete às regras que ele mesmo transgrediu,
das quais, em última análise, ele reconhece a legitimidade. Assim, a confissão une julgador e acusado
sob o mesmo sistema de valores. Por outro lado, se o suspeito ou o acusado não confessa, expondo

153
Esta noção está presente em Foucault (1996) quando afirma que o Direito se apropria de categorias religiosas (culpa,
confissão, arrependimento), além de associar a noção de pecado ao crime e reproduzir o inquérito nos moldes desta
tradição.

120
assim, sua rebeldia, esta deve ser sujeitada, reprimida, calada, pela Justiça, que não pode negociar a
culpa e, portanto, a pena” (KANT DE LIMA, idem, pp. 6-7).
Nos acordos de Colaboração Premiada, quando o colaborador confessa seus crimes e
desvenda as práticas criminosas dos coautores, ele também é agraciado com penas mais brandas
oferecidas pelo Ministério Público. Na prática, essas penas são excessivamente mais brandas do que
aquelas previstas na lei e, inclusive, das que poderiam ser aplicadas pelo juiz. Afinal, como afirmou
um entrevistado, ao justificar essa dosimetria,
- “O juiz não poderia, por exemplo - e nem que ele quisesse muito -, conseguiria
colocar uma pena para um crime de corrupção praticado 80 vezes, ele não
conseguiria colocar naquele patamar tão baixo”.
(MPF2)

Além disso, a confissão do colaborador também é considerada como um elemento


importante e que assegura não só a sua culpa, como legitima as investigações realizadas, seja para
confirmar suas informações, seja para ampliar a suspeita sobre um número maior de investigados.
Como afirmou outro entrevistado:
- “Existe a Colaboração Premiada e existe a confissão. O sujeito confessa o crime
que praticou e, eventualmente, ele pode trazer outros personagens porque estão
inseridos na confissão dele. Mas isso diz respeito a uma questão pontual. Agora, a
colaboração é mais abrangente. Envolve esse compromisso de trazer fatos, ou
elementos de corroboração. A confissão, não necessariamente, envolve isso. A
confissão é posta já na instrução processual. A Colaboração Premiada pode se dar
em qualquer momento, inclusive depois de concluída a ação penal. Essa é a distinção
que eu prefiro dar”.
(MPF1)

Assim, de acordo com esta declaração, a confissão integra a Colaboração Premiada e esta é
considerada mais abrangente porque, além de confessar a própria prática criminosa, o colaborador
delata os coautores do crime e tem o compromisso de apresentar fatos ou elementos que comprovem
(corroborem) sua confissão. Logo, para a Colaboração Premiada ser considerada válida, além da
confissão, é preciso que o colaborador prove o que disse (prova de corroboração). A distinção entre
estas duas categorias já foi indicada acima, contudo, vale ressaltar que a lógica que anima a
inquisição, ao considerar a culpa do investigado como um dado obtido a priori, também se concretiza
nessas práticas, assemelhadas à confissão diminuta e à confissão plena do Regimento do Santo Ofício
(KANT DE LIMMA e MOUZINHO, 2016; LIMA, 1999).
A confissão revela os mecanismos que produzem o saber, explicitando seu funcionamento e
as formas que definem as estratégias de poder inerentes à vontade de saber. Como lembra Foucault

121
(2014), o saber tem origem nas relações de poder e que sua relação com a verdade (a descoberta da
verdade), sendo a confissão inicialmente percebida nas práticas religiosas e depois estendida a outros
âmbitos como o literário, o jurídico, o pedagógico, o médico e o psiquiátrico, o que nos torna “uma
sociedade confessionária” (FOUCAULT, idem, p. 230).
O filósofo referido também já afirmou que lhe causava estranheza que para a maior parte
dos sistemas jurídicos, com exceção do direito britânico, admitia-se como prova o que alguém dizia
contra si próprio. Para Foucault, ainda que nestes sistemas a confissão constitua um postulado no
sentido de considera-la como verdade, seria perfeitamente possível imaginar alguém que admitisse
algo contra si para eximir outrem, ou para se eximir de outra falta. Além disso, o emprego da tortura
e outras técnicas afins de confissão permitem obter testemunhos contra si mesmo, que, segundo o
autor, não poderiam possuir valor de verdade, sendo este valor de tal ordem que fica difícil retificá-la
ou negá-la posteriormente. E conclui: “Se é verdade que a extorsão ‘selvagem’ da confissão é prática
policial habitual que a Justiça em princípio ignora — fingindo fechar os olhos sobre ela — é também
verdade que, atribuindo tal privilégio à confissão, o sistema judiciário é um pouco cúmplice dessa
prática policial que consiste em arrancá-la a qualquer preço” (apud BOJUNGA e LOBO, 2014).
Além da delação e da confissão, outros significados foram atribuídos pelos entrevistados à
Colaboração Premiada, como indicam as seguintes declarações:

- “A Colaboração Premiada agora está sendo denominada como acordo de não


persecução penal (a “jabuticaba”154 que deu certo), embora haja várias
denominações para o instituto. Eu estou tomando de empréstimo uma expressão que
colocaram ali (apontando para a tela do computador ao seu lado)155. Normalmente se

154
A categoria “jabuticaba” passou a ser associada ao instituto da Colaboração Premiada quando, diante das críticas à
forma como esses vinham sendo firmados no Brasil, em maio de 2017, o Procurador-Geral da República, Rodrigo
Janot, defendeu o instituto, considerando-o um instrumento útil para a solução de crimes, principalmente, os ligados à
corrupção e desvios de recursos. Nessa ocasião este Procurador declarou que este instituto era adotado no mundo
inteiro, afirmando que “Esse tipo de colaboração não é jabuticaba. Ela não foi inventada no Brasil. Ela não nasceu de
alguém que acordou e foi fazer a barba e teve essa grande ideia”. Conforme divulgado em
https://www.brasil247.com/pt/247/minas247/295242/Janot-dela%C3%A7%C3%A3o-E2%80%98n%C3%A3o-
%C3%A9-jabuticaba-e-n%C3%A3o-foi-inventada-no- rasil%E2%80%99.htm. No site oficial da Procuradoria Geral da
República - PGR, uma notícia veiculada em 12 de maio de 2017, afirma que durante um seminário para estudantes da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), este representante da Procuradoria Geral da
República teria destacado, mais uma vez, que a Colaboração Premiada não é “jabuticaba” ou “invenção tupiniquim”, já
que teve origem no Direito anglo-saxão e é utilizada em outros países, como Itália e França. Para ele, a prática é
instrumento poderoso de apuração, sem a qual as investigações de casos de corrupção no Brasil não teriam evoluído, e
sua utilização deve ser ampliada. Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-rebate-criticas-a-
realizacao-de-acordos-de-colaboracao-com-reus-presos. Rodrigo Janot foi Procurador-Geral da República entre
17/09/2013 e 17/09/2017, e, por isso, atuou como representante do Ministério Público Federal no Supremo durante o
julgamento da PET nº 7074 QO/DF e durante as demais ações originárias das Operações Lava- Jato. Foi substituído por
Raquel Dodge, que assumiu a PGR em 18/09/2017 e exercia tal função até o momento de encerramento dessa pesquisa.
155
Assim que a entrevista começou, este operador apontou para a tela do seu computador que exibia o artigo com o
mesmo título, de autoria de Victor Hugo Azevedo, presidente da Associação dos Membros do Ministério Público
(CONAMP) e Promotor de Justiça, divulgado no site do Conselho Federal do Ministério Público, no qual o autor
defende a ideia de que o Ministério Público à moda brasileira, forte, independente, com múltiplas funções, é modelo
genuíno no âmbito do direito comparado. No campo da informalidade linguística, poderia ser tratado como a jabuticaba,

122
usa essa terminologia para sugerir algo que foi inserido em um ambiente do qual ele
não fazia parte. Nem sei se é muito apropriado. Na verdade, a Colaboração
Premiada está em um contexto de meios de obtenção de prova156. Essa é a grande
novidade na lei dos crimes organizados, que ela trouxe e, de certa forma, instituiu os
procedimentos para alguns meios de obtenção de prova, que não possuíam esse
tratamento. A Colaboração Premiada é um meio de obtenção de prova. É mais um.
Só que ela hoje tem um viés que, apesar de a lei considera-la como um meio de
obtenção de prova, ela também é um meio de defesa. Essa é a grande peculiaridade
dela, a meu ver. Porque ao contrário das outras... dos outros meios de obtenção de
prova (interceptação telefônica, ação controlada etc.), a Colaboração Premiada é um
benefício para as duas partes: para o colaborador e para a sociedade, através do
Ministério Público. Essa é a grande peculiaridade”.
(MPF1)

- “A Colaboração Premiada a gente encara como uma técnica de investigação, uma


nova técnica de investigação e como o Supremo Tribunal Federal já definiu, um
meio de obtenção de prova. Então, aqui na Lava Jato, sobretudo, a gente tem as
Colaborações Premiadas como um “start” de uma nova investigação. Não obstante
outras fontes de investigação que a gente tem, como as denúncias anônimas, ou
indícios a partir de outras investigações, indícios de práticas de outros crimes, mas a
Colaboração Premiada é um grande “start”, é uma grande fagulha para o início da
investigação. E em se tratando de crimes de corrupção, que são crimes, geralmente,
tratados entre quatro paredes, sem registros, sem provas documentais, a colaboração
passa a ser uma das grandes fontes de início das investigações e dá um bom norte
para a gente buscar outras provas, enfim, outros elementos que corroborem ou não a
versão ou não daquele colaborador. Por outro lado, a gente vê também como a
possibilidade de a gente fazer uma Justiça Restaurativa157 para o colaborador”.

que se transforma em metáfora para ressaltar fenômenos que só acontecem no Brasil. (disponível em
https://www.conamp.org.br/pt/biblioteca/artigos/item/2320-ministerio-publico-a-jabuticaba-que-deu-certo.html). Este
artigo foi inicialmente publicado - em. 14 de dezembro de 2018, no site Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-
e-analise/artigos/ministerio-publico-a-jabuticaba-que-deu-certo-14122018.
156
Encontrei na doutrina jurídica brasileira autores que tentam diferenciar as categorias, meios de prova, meios de
obtenção de prova e fontes de prova, da seguinte forma: “Enquanto os meios de prova são aptos a servir, diretamente,
ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (p. ex., o depoimento de uma testemunha,
ou o teor de uma escritura pública), os meios de obtenção de provas (p. ex.: uma busca e apreensão) são instrumentos
para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes sim, aptos a convencer o julgador (p. ex.: um extrato bancário
[documento] encontrado em uma busca e apreensão domiciliar). Ou seja, enquanto o meio de prova se presta ao
convencimento direto do julgador, os meios de obtenção de provas somente indiretamente, e dependendo do resultado
de sua realização, poderão servir à reconstrução da história dos fatos” (BADARÓ, 2012, p. 270). Já Teixeira (2017, p.
75) afirma que por fontes de prova entende-se “todos os objetos e pessoas dos quais se consegue extrair a prova, uma
vez identificadas estas ‘fontes de prova’, as mesmas são introduzidas no processo através dos ‘meios de prova’ que se
desenvolvem na fase judicial, sob o crivo dos princípios do contraditório e da ampla defesa. No que se refere aos ‘meios
de obtenção de prova’, também denominados de ‘meios de investigação’ ou ‘procedimentos investigatórios’, o mesmo
apresenta como características o fato de desenvolver-se, em regra, fora do processo e possuírem o atributo da surpresa e
da não comunicação ao investigado. Servem para identificar ‘fontes de prova’ até então desconhecidas”. Os
entrevistados não distinguiram as categorias, embora seus discursos reproduzissem a ideia de que são formas de se obter
o convencimento do juiz, confirmando o que Figueira (2007) já afirmou: para o campo jurídico a categoria prova não
possui estabilidade semântica.
157
De acordo com o site do Conselho Nacional de Justiça – CNJ (http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62272-justica-
restaurativa-o-que-e-e-como-funciona), a Justiça Restaurativa é uma modalidade de Justiça que tem como finalidade a
administração do conflito pelo consenso entre as partes. Neste modelo de Justiça o crime é visto como violação à pessoa
e às relações interpessoais, cabendo ao Estado buscar a reparação dos danos causados à vítima e à sociedade, como
forma de restaurar a situação que existia antes dessas violações, ou, ao menos, minimizar seus efeitos. Difere da Justiça
punitiva-retributiva que entende o crime como um ato violador da norma Estatal, cabendo a este, como retribuição, a
aplicação da pena. Ainda segundo esta fonte “Em muitos casos, essas iniciativas alcançam a pacificação das relações

123
(MPF2)

- “A Colaboração Premiada vem sendo usada desde 1998, de modo menos


sistemático. No Banestado se utilizou... Parte das experiências do que deu certo e do
que deu errado foram diretamente aproveitadas na definição disso que hoje eu hoje
diria que é mais um método, do que propriamente um caso, que é a Lava-Jato. Acho
que a marca Lava-Jato, hoje, ela, na verdade, traduz uma metodologia de
investigação. E é essa metodologia inovadora de investigação que tem dado muito
certo no combate à corrupção e que tem entre os seus ingredientes importantes, um
uso mais cuidadoso da Colaboração Premiada”.
(MPF4)

- “Na Colaboração Premiada você vai entabular um acordo. Na minha visão, tem a
natureza jurídica de um negócio jurídico processual, em que você vai ajustar
diversas cláusulas. Uma das cláusulas que a gente ajusta são as causas de rescisão do
acordo de Colaboração Premiada”.
(MPF5)

- “A Delação é uma via de mão dupla. Para o delator ela realmente pode ter
benefícios. É uma linha de defesa para os advogados dos colaboradores. A Delação
em si, sempre favorece a investigação porque nós queremos saber a origem do
esquema criminoso, as principais pessoas envolvidas. Isso interessa a você pegar. No
caso do crime de tráfico, por exemplo, não interessa a você pegar a “mula”. Interessa
pegar quem mandou a droga. Então, é mais ou menos nessa linha, né?”
(MPF6)

_ “Então, como negócio jurídico processual, a Colaboração Premiada é um meio


de obtenção de prova para o Ministério Público, que é o titular da ação penal. E
aplica-se em crimes em que é muito difícil conseguir qualquer tipo de prova que não
seja por um fio da meada, que venha de alguém de dentro da organização. Essa é a
grande vantagem que eu vejo, da Colaboração Premiada”.
(MPF7)

- “Entendo a Colaboração Premiada como um instituto que assume múltiplas


funções, dependendo de qual perspectiva você o examina: tanto é meio de prova
para o Ministério Público, como é instrumento de defesa para o advogado do
colaborador. Mas também pode ser considerado como negócio jurídico que entre si
realizam o Ministério Público e o colaborador”.
(MPF8)

Essa concorrência de entendimentos e significados sobre a Colaboração Premiada indica


que nem mesmo os seus operadores conseguem chegar a um consenso sobre sua definição. Neste
conjunto de acepções (meio de obtenção de prova, instrumento de defesa, negócio jurídico, técnica
de investigação, instrumento da Justiça Negocial etc.), é curioso que o instituto possa assumir, ao
mesmo tempo, a índole de instrumento de defesa e de prova da acusação de um lado e técnica de

sociais de forma mais efetiva do que uma decisão judicial”. Aqui, mais uma vez, ressalto a análise já apontada por Kant
de Lima (1995), Amorim (2013), Mendes (2011), Ferreira (2013) e tantos outros pesquisadores sobre a representação da
jurisdição como pacificadora da sociedade. Contudo, em ambos os conceitos não há, portanto, a ideia de favorecer o
infrator com alguma resposta penal, como parece sugerir o entrevistado acima.

124
investigação e instrumento de realização da Justiça Consensual, de outro. Tais representações, como
já mencionado, e por mais óbvio que possa parecer, referem-se, exclusivamente, às partes que
elaboram o acordo (colaborador e Ministério Público) e, portanto, não incluem o delatado, ainda que
nesse negócio jurídico ele também seja envolvido.
Merece destaque também o fato de que dentre as declarações acima reproduzidas – que
demonstram a multiplicidade e ambiguidade de sentidos atribuídos ao acordo de Colaboração
Premiada –, há quem justifique o instituto como uma estratégia do advogado de defesa do
colaborador para conseguir obter uma resposta penal do Estado mais branda para o seu cliente,
assunto que voltarei a comentar. Também encontrei discursos que defendem a ideia de que a simples
participação deste profissional nas tratativas e demais atos que envolvem o instituto, consagraria a
atividade negocial. Também foi dito que quando o colaborador entabulava com os representantes do
Ministério Público as cláusulas do acordo, a Justiça Negocial era concretizada.
Devido à ênfase atribuída a esta característica negocial dos acordos de Colaboração
Premiada, reservei um capítulo á parte para explicitar e analisar esta categoria. Mas, antes é preciso
ressaltar sobre qual Justiça Negocial estes operadores estão se referindo: aquela em que as partes
consensualizam entre si o que pode representar a administração do conflito, ou aquela em que apenas
uma das partes impõe sua vontade, esperando que a outra parte aceite tal imposição? Além disso,
também é preciso lembrar que esta “Justiça Negocial”, no modelo criado para a Colaboração
Premiada, não se dirige a todos os participantes do procedimento. Os delatados e os investigados que
não aceitam realizar a colaboração – os que ficam de fora dela - são diretamente atingidos por seus
resultados punitivos, o que poderia acentuar a característica de mais um instrumento da acusação.
Neste caso, a Justiça Negocial está para os acordos de Colaboração Premiada, no mesmo
sentido em que ela está para os acordos realizados nos Juizados Especiais Criminais, como já afirmei
anteriormente e pode ser visto nas pesquisas que atualizam o assunto (AMORIM et all, 2002;
ALMEIDA, 2014; LOBO, 2017; RANGEL, 2017, entre outros). Nestes estudos, o significado dos
“acordos” resultou, na maioria das vezes, em renúncias à defesa, asseguradas sob a ameaça de que o
processo judicial condenaria o acusado de forma mais grave, caso não aceitasse o acordo.
Na doutrina jurídica pesquisada também encontrei autores afirmando que a lei de 2013 criou
a hipótese de o acordo de Colaboração Premiada, elaborado na fase investigativa, constituir um
negócio jurídico extraprocessual entabulado entre as partes que têm a possibilidade de negociar a
verdade do fato típico, objeto deste negócio. Segundo esta orientação, as partes negociam a
aceitabilidade jurídica de determinada premissa relacionada ao crime sem que seja produzida
judicialmente nenhuma prova (RODRIGUES, 2017, p.123). Ainda que esta doutrina esteja criticando
tal possibilidade, assinala que ocorre a antecipação da produção da prova, sem a participação da

125
defesa. Assim, segundo este entendimento, haveria nesta fase investigatória a negociação entre o
Ministério Público e o colaborador e seu advogado sobre o fato típico (o crime). Neste aspecto, tal
afirmação contraria os discursos dos entrevistados levantados na pesquisa, pois o que geralmente é
objeto de negociação entre as partes é, tão-somente, a pena. A própria lei nº 12.850, de 2013 apenas
elenca, a possibilidade de o juiz reduzi-la; alterar o regime do seu cumprimento; acolher o pedido de
perdão judicial.
Vale dizer, a única hipótese que se refere ao tipo penal ocorre quando o Ministério Público
não oferece a denúncia, hipótese esta somente aventada para o colaborador que não for o líder da
organização criminosa e tiver sido o primeiro a realizar a Colaboração Premiada e se as informações
ou provas do colaborador foram significativas para a investigação ou para o processo (§ 4º do artigo
4º, da Lei nº 12.850). Tal possibilidade está muito mais vinculada à discricionariedade – ou melhor,
arbitrariedade - do Ministério Público do que à negociação entre esta parte e o colaborador e seu
advogado. Em outras palavras, a lei não determinou o não oferecimento da denúncia quando as partes
assim convencionarem entre si.
Dentre a variedade de significados atribuídos ao instituto, pelos discursos dos entrevistados,
merece ênfase o que compreende a Colaboração Premiada como um negócio jurídico realizado entre
as partes que entabulam o acordo. Tal noção pressupõe que este acordo enseja para os contratantes a
igualdade de oportunidades na escolha, dentre as infinitas possibilidades relativas ao objeto do que é
acordado entre elas, já que, como negócio jurídico, o acordo representaria alguma troca ou permuta
de interesses ou direitos entre as partes. Todavia, entre aquilo que é suposto e o que é de fato
realizado há uma grande distancia e isso será também analisado ao longo deste texto.
O curioso é que esta variedade de significados não acontece em relação à “barganha” norte-
americana. Naquele sistema jurídico, o significado atribuído à plea bargaining é o de uma
negociação entre as partes - acusador e defesa -, que têm como objetivo encerrar o caso sem um
julgamento (pelo júri), mediante uma declaração de culpa aceita por todas as partes, como já afirmou
Bisharat (2015, p. 138).
Já a ausência de unidade de sentido e representação da Colaboração Premiada entre nós
sequer causa inquietação ao campo jurídico, mesmo que constitua uma justificativa para permitir aos
representantes do Ministério Público uma gama de opções quanto a sua aplicação, o que,
efetivamente resultará em distintos tratamentos oferecidos aos colaboradores e delatados.
A instabilidade semântica do acordo de Colaboração Premiada remete à análise de
Bourdieu (2007a), que, neste sentido, se aproxima do contexto brasileiro, na medida em que enxerga
o campo jurídico possuindo estruturas que se relacionam e se complementam, de forma
hierarquizada, onde os operadores estão investidos de competência técnica e social de dizer o direito.

126
Eles escolhem, dentre as diversas orientações existentes, aquela que melhor justifica sua decisão,
como também acontece em outros ambientes, tais como, nas universidades, nos cartórios, nas casas
legislativas, nas jurisprudências etc.
Também percebi que os discursos acima destacados foram proferidos com a finalidade de
convencer sobre esta distribuição do direito e, para tanto, são dotados de uma série de proposições e
argumentos que lhes conferem substância, no sentido de expressar uma ideia que se afirma existente
e válida neste contexto, com vistas a convencer alguém (conforme FOUCAULT, 2004). Assim,
entendi que tais argumentos se destinaram a validar as práticas destes operadores.
Estes discursos podem ser ampliados se considerarmos, como tal, as normativas expedidas
pela própria instituição, visando orientar as práticas dos membros do Ministério Público Federal.
Neste caso, a Orientação nº 01/2018, editada pelas 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão do
Ministério Público Federal, em seu capítulo denominado “DA DEFINIÇÃO E FINALIDADE DO
ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA”, afirma que:
1. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual, meio de
obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos, os quais são
atendidos desde que advenha um ou mais dos resultados previstos no art. 4º da Lei
12.850/2013 e pode ser celebrado em relação aos crimes previstos no Código Penal e
na legislação extravagante.
2. A exclusividade para celebração de acordo de Colaboração Premiada pelo
Ministério Público Federal não impede o auxílio ou a cooperação da Polícia Federal.
(BRASIL 2018, grifei).

Assim, segundo esta norma, além de negócio jurídico processual, o acordo de Colaboração
Premiada também é meio de obtenção de prova, que implica na utilidade e interesse públicos, que
serão atingidos quando e se forem alcançados um ou mais resultados previstos na Lei de 2013, ou
seja, a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações
penais por eles praticadas; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização
criminosa; a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; a
recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela
organização criminosa e a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.
Significa afirmar que também esta norma reúne na mesma definição, negócio jurídico e
meio de obtenção de prova, além de incluir neste mesmo conceito, a utilidade pública e os interesses
públicos, extrapolando, assim, a definição dada pelo próprio legislador brasileiro, quando imputa tais
atributos ao acordo. Ora, utilidade pública e interesse público são categorias cujas definições
prescindem de clareza e objetividade. Para o campo jurídico brasileiro, ambas estão associadas ao
direito administrativo como requisitos que justificam a desapropriação de imóveis pelo Estado
(artigos 5º, inciso XXIV e 184, da Constituição Federal de 1988). Em geral, a doutrina define

127
utilidade pública como a atividade do Estado que visa dar a determinado imóvel uma destinação mais
oportuna e vantajosa para o interesse público, enquanto este significa a atividade que visa melhorar a
vida em sociedade, na busca da redução das desigualdades (MEIRELLES, 2007). Consiste em
atividade estatal praticada em benefício comum ou para o proveito geral da sociedade, sendo tal
atividade imposta em razão de uma necessidade de ordem coletiva.
No que se refere à matéria penal esses conceitos servem para justificar a intervenção do
Estado por meio de políticas públicas de controle social por seus agentes, que é traduzida por seus
operadores como defesa ou proteção da sociedade, como pode ser visto na seguinte declaração:
_ “Quem quer o melhor para a sociedade são os órgãos de persecução, são os órgãos
de controle. O colaborador quer o benefício penal. Afinal de contas, por que as
pessoas vão fazer a colaboração? Porque querem o melhor para a sociedade? É claro
que não! Essa não é a motivação de uma colaboração premiada! A gente precisa
entender que o colaborador quer os benefícios penais e nós precisamos saber se
estamos dispostos a conceder isso para podermos aprofundar as investigações. Isso é
do jogo!”
(MPF5)

Ao mencionar, genericamente, a “sociedade”, ou a “população”, sem ser especificada qual


“sociedade” ou qual “população” este operador está efetivamente se referindo, tal argumento
aparenta a crença na existência de uma “sociedade humana” única, independente dos contextos
sociocultural, jurídico, histórico, político e territorial que identificam as diversas sociedades no
mundo. E ainda, transmite a ideia de que sendo todas as sociedades iguais, elas se comportam (e têm
expectativas) idênticas em relação aos conflitos, possuem os mesmos conflitos e, portanto, estes
podem ser administrados da mesma forma.
Ao afirmar que quem defende a sociedade é o órgão de persecução, o entrevistado reproduz
uma noção que está prevista no texto constitucional que considera o Ministério Público como órgão
essencial à justiça e a quem incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis” (conforme artigo 127, da Constituição Federal),
possuindo no processo penal, entre outras atribuições, a de promover a ação penal pública (artigo 129
da Carta)158. Vale lembrar que o texto constitucional também atribui à Advocacia Geral da União e à
Defensoria Pública, o papel de órgãos essenciais à Justiça, mas somente isso.
Além disso, o campo jurídico brasileiro reconhece a especialização desses funcionários
públicos e muitos são reverenciados além da esfera de atuação e do limite geográfico dos seus
gabinetes ou dos tribunais onde atuam, já que também desempenham atividades acadêmicas,

158
As leis brasileiras atribuem diversas funções ao Ministério Público. Na esfera penal, além da titularidade da ação penal
pública, também exerce o papel de fiscal da execução da lei (artigo 257 do Código de Processo Penal) e curador de
menores (artigo 9º do Código de Processo Civil), entre outros.

128
trabalhando como professores nos cursos de graduação em Direito das universidades públicas e
privadas, ou em cursos preparatórios para ingresso em carreiras jurídicas, além de serem autores de
doutrinas recomendadas por estes cursos.
Enquanto o entrevistado representa o Ministério Público como o protetor da sociedade, por
outro lado, faz incidir sobre o colaborador a pecha moral de pessoa interesseira, alguém que somente
almeja os “benefícios penais” que poderá obter com o acordo, sendo também alguém nocivo à
sociedade, já que seu crime atingiu toda a sociedade. Esta representação influenciará no tratamento
que será dado ao colaborador, no momento da formalização do acordo, como será visto em seguida.
No que se refere à persecução criminal, o papel de defensor da sociedade atribuído ao
Ministério Público pode ser destacado em face de sua titularidade da ação penal pública. Contudo,
especialmente nas duas últimas décadas este protagonismo se acentuou, a partir de sua ampla - e, em
alguns casos, quase exclusiva – participação nas Operações da Lava-Jato, no combate aos crimes de
corrupção e lavagem de dinheiro, praticados por organizações criminosas, como afirmam os
seguintes discursos:

- “Hoje se fala muito em combate à corrupção e eu acho que o Ministério Público,


nesse aspecto, ganhou sim, um protagonismo importante. Talvez isso fique como
legado. Porque a população está enxergando no Ministério Público uma instituição
que tem o dever de atuar no enfrentamento da corrupção. Mas isso também traz um
problema que a gente ainda precisa resolver, porque o Ministério Público não é só
atuação criminal. Ele tem uma atuação muito maior, na questão ambiental; na tutela
do direito do consumidor; no combate à desigualdade de gênero... A instituição é
muito maior do que simplesmente a atuação criminal. A instituição do Ministério
Público é muito mais rica em termos de potencialidades a entregar à sociedade. É
preciso exercitar isso o quanto antes. Eu percebo que há uma preocupação nesse
aspecto. É muito difícil quando você fala nisso no momento de hoje, porque as
pessoas só querem saber de combate à corrupção. É natural, isso. É importante. A
gente tem um legado aí muito grande a recuperar. A corrupção é histórica,
cultural.159 Eu acho que nós não tínhamos a ideia de quão aprofundada ela estava. E
agora estamos tentando “passar um pouco a limpo” isso. E eu não sei se a Operação
Lava-Jato pode ser tida como uma regra. Na verdade ela parece ser uma situação
excepcional. Então, o nosso desafio é fazer disso – o combate à corrupção, o
enfrentamento de outras mazelas que afligem a sociedade -, a gente precisa fazer
disso uma regra. Isso precisa ser cada vez mais exercitado. O cidadão precisa saber
que o Ministério Público é um aliado nessas outras questões. De certa forma, aos
poucos as pessoas vão aprendendo. Aumentou bastante o número de cobranças. E
isso é fundamental. A sociedade precisa cobrar do Ministério Público”.
(MPF1)

Segundo este entrevistado, a instituição do Ministério Público é muito maior do que o


combate à criminalidade e que mesmo a corrupção sendo um dado histórico e cultural, está sendo
“passada um pouco a limpo” com as Operações Lava-Jato. Ao lado da ênfase institucional o
159
www.jota.info/stf/do-supremo/gilmar-corrupção-mpf-lava-jato-11042018. Ministro Gilmar Mendes diz que há
corrupção na Lava Jato e no MPF.

129
entrevistado também associa o crime à ideia de algo “sujo” e que precisa ser limpo, lavado,
aproximando-o à noção de pecado, daí porque precisa ser expurgado. Esta noção é um traço da
tradição jurídica brasileira que não se afasta da herança eclesiástica que, assim, se mantém atualizada
pelas práticas e discursos dos operadores jurídicos (LIMA, 1999; KANT DE LIMA, 1992; 1995).
Da forma como o entrevistado fala, dá a impressão de que a corrupção poderá ser extirpada
do contexto brasileiro apenas pelo emprego do processo penal. E mais, também transmite a ideia de
que somente as Operações Lava-Jato serão capazes de fazê-lo! Além da estranheza que esta
declaração causa, ela também reforça a importância da atuação do Ministério Público e seu papel de
defensor da sociedade. Estes discursos que fazem referência constante aos esforços promovidos por
seus representantes em defesa da sociedade brasileira, punindo os poderosos e, às vezes, divulgando
suas ações com o apoio da imprensa, se inserem e se destinam ao debate político, confiando no
reforço institucional de vitórias alcançadas na elaboração da Constituição de 1988. Mouzinho (no
prelo) já havia percebido este discurso bastante comum entre estes atores em sua pesquisa.
Contudo, como ressalta a autora, não há neste discurso “em defesa da sociedade” qualquer
referência à redução de crimes violentos, muito embora tal medida também represente esta defesa
(MOUZINHO, ibidem). Ao contrário, esta não tem sido a “bandeira” do Ministério Público
brasileiro, de tal sorte que declarações como a do entrevistado acima - quando indica outras questões
que também atingem a sociedade como a ambiental; o direito do consumidor e o combate à
desigualdade de gênero –, constitui exceção a esta regra. Isso porque, em geral, estes atores entendem
que estão defendendo a sociedade, visto que não seriam somente os pobres os únicos a serem
punidos, como pode ser visto em alguns trechos desta pesquisa.

III. 2 – QUAIS CRIMES PODEM SER OBJETO DA COLABORAÇÃO PREMIADA?


De acordo com um dos entrevistados, a Colaboração Premiada pode ser aplicada a todos os
crimes, excetuando-se os de menor potencial ofensivo, para os quais o instituto aplicado seria a
transação penal, conforme o seguinte trecho de sua entrevista:
- “Assim como existe a transação penal na legislação há algum tempo e que seria
para crimes de menor potencial ofensivo, existe também a Colaboração Premiada.
Só que não seriam apenas para crimes de menor potencial ofensivo. Pelo contrário,
ela é empregada em crimes de alta complexidade, para que sejam investigados esses
crimes, normalmente praticados por uma organização criminosa”.
(MPF8)

Como informado inicialmente, a transação penal foi inserida pela Lei nº 9.099, de 1995,
como instituto empregado pelo Ministério Público para os crimes de menor potencial ofensivo, assim

130
considerados aqueles em que a lei penal prevê penas de até dois anos, atribuídos à competência dos
Juizados Especiais Estaduais Criminais.
A lei nº 12.850, de 2013, ao criar, dentre os meios de obtenção de prova, a Colaboração
Premiada, regulando sua aplicação, definiu os crimes praticados por organização criminosa, como:
1 - aqueles praticados pela associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e
caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas
máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional;
2 - as infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução
no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente e,
3- os praticados por organizações terroristas, entendidas como aquelas voltadas para a prática dos
atos de terrorismo legalmente definidos (artigo 1º, incisos I e II da lei).
Já na primeira definição, ao empregar o critério quantitativo da pena (superior a 4 anos), o
legislador abriu um leque de opções acerca das infrações penais incluídas nessa classificação. Não é
demais afirmar que a participação de 4 (quatro) ou mais agentes em qualquer crime, já constituiu a
possibilidade de aumento de pena, como o próprio Código Penal prevê nestes casos160.
Quanto às infrações previstas em documentos internacionais que o Brasil assinou e se
obrigou a reprimir, chama a atenção o fato de que não é somente o combate à corrupção (Convenção
de Mérida161), à lavagem de dinheiro (Convenção de Viena162) e ao próprio crime organizado

160
Também chamado de codelinquência, o concurso de agentes está previsto no Código Penal, com a seguinte redação:
Artigo 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua
culpabilidade (BRASIL, 2017).
161
Convenção aprovada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidades – ONU, em 31 de outubro de
2.003. De acordo com o artigo 37, dessa Convenção: “1. Cada Estado Parte adotará as medidas apropriadas para
estabelecer as pessoas que participem ou que tenham participado na prática dos delitos qualificados de acordo com a
presente Convenção que proporcionem às autoridades competentes informação útil com fins investigativos e
probatórios e as que lhes prestem ajuda efetiva e concreta que possa contribuir a privas os criminosos do produto do
delito, assim como recuperar esse produto. 2. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de prever, em casos
apropriados, a mitigação de pena de toda pessoa acusada que preste cooperação substancial à investigação ou ao
indiciamento dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção. 3. Cada Estado Parte considerará a
possibilidade de prever, em conformidade com os princípios fundamentais de sua legislação interna, a concessão de
imunidade judicial a toda pessoa que preste cooperação substancial à investigação ou ao indiciamento dos delitos
qualificados de acordo com a presente Convenção.” (BRASIL, 2003).
162
Convenção aprovada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, realizada em 1988, também
denominada Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, é considerada como o
primeiro instrumento jurídico internacional que estabelece aos países signatários a obrigação de se comprometem a
adotar medidas que incriminem o delito da lavagem de dinheiro procedente do narcotráfico, previsto nos artigos 3.1.b "a
conversão ou a transferência de bens oriundos da atividade criminosa conexa como tráfico de substância estupefaciente
ou psicotrópica, com finalidade de esconder ou encobrir a proveniência ilícita”. O acordo também estabelece o confisco
dos produtos do crime ou dos bens e propõe que o sigilo bancário não seja tão rigoroso (BRASIL, 1988).

131
(Convenção de Palermo163) - principais crimes verificados pelas Operações Lava-Jato e que
justificam suas investigações – que se incluem neste rol.
Há vários outros documentos internacionais assinados e ratificados pelo país e que
igualmente preveem o combate a crimes que, em termos de grandeza do prejuízo à vida de milhares
de cidadãos brasileiros - a exemplo dos os crimes ambientais164 e os que vitimizam as mulheres165 -
igualmente reivindicam a atenção do Estado brasileiro e de suas agências de controle e fiscalização.
Durante a elaboração desta pesquisa dois grandes desastres ambientais chamaram a atenção
do país e do mundo. O rompimento da barragem da empresa Samarco Mineração S.A., em Mariana,
Minas Gerais, ocorrido em 2015 e, três anos depois, o rompimento de uma barragem com rejeitos de
minério de ferro da Empresa Vale S.A., em Brumadinho, também em Minas Gerais, que além de
contabilizarem centenas de mortos e de famílias desabrigadas, contaminaram rios e terras que
constituem as principais fontes de vida e de trabalho dessas regiões, cidades e alguns Estados
vizinhos a elas166. Poderia somar a estes eventos o desmatamento e a extração ilegal de madeira ou
minério de ferro praticados no interior de áreas legalmente protegidas na Amazônia que, segundo
Barreto et all (2009), ficam impune na quase totalidade dos casos e atingem comunidades indígenas e
quilombolas, principalmente. Integra esse rol de impunidade os inúmeros homicídios praticados
contra ambientalistas, denunciados continuamente no país167.

163
Convenção aprovada pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidades – ONU, em 15 de novembro de
2.000. De acordo com o artigo 26, dessa Convenção: “1. Cada Estado Parte tomará as medidas adequadas para
encorajar as pessoas que participem ou tenham participado em grupos criminosos organizados: a) A fornecerem
informações úteis às autoridades competentes para efeitos de investigação e produção de provas, nomeadamente: (i) A
identidade, natureza, composição, estrutura, localização ou atividades dos grupos criminosos organizados; (ii) As
conexões, inclusive conexões internacionais, com outros grupos criminosos organizados; (iii) As infrações que os
grupos criminosos organizados praticaram ou poderão vir a praticar; b) A prestarem ajuda efetiva e concreta às
autoridades competentes, suscetível de contribuir para privar os grupos criminosos organizados dos seus recursos ou do
produto do crime. 2. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, nos casos pertinentes, de reduzir a pena de
que é passível um arguido que coopere de forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma
infração prevista na presente convenção. 3. Cada Estado Parte poderá considerar a possibilidade, em conformidade com
os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico interno, de conceder imunidade a uma pessoa que coopere de
forma substancial na investigação ou no julgamento dos autores de uma infração prevista na presente convenção.”
(BRASIL, 2000).
164
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) constitui um tratado elaborado pela Organização das Nações Unidas
e foi estabelecida durante a ECO-92, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992 quando o país a assinou e foi
ratificada pelo Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998. Conforme informa o Ministério do Meio Ambiente, em
http://www.mma.gov.br/biodiversidade/conven%C3%A7%C3%A3o-da-diversidade-biol%C3%B3gica.html.
165
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres ou Convenção da Mulher
(CEDAW - Convention on the Elimination of all Forms of Discrimination against Women), realizada em 1979, foi
assinada pelo Brasil, com reservas, em 31 de março de 1981 e ratificada, também com reservas, em 1° de fevereiro de
1984. Tais reservas estavam relacionadas ao artigo 15, parágrafo 4° e artigo 16, parágrafo 1°, alíneas “a”, “c”, “g” e “h”,
que tratavam sobre a igualdade entre homens e mulheres na esfera familiar, denotando a interferência do Estado nas
relações interpessoais, que assim chancelava e reforçava a desigualdade de gênero. Estas reservas somente foram
retiradas pelo Decreto nº. 89.460, de 20 de março de 1984 (SOUZA, 2012, p. 5).
166
Conforme divulgado em https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/01/25/bombeiros-e-defesa-civil-sao-
mobilizados-para-chamada-de-rompimento-de-barragem-em-brumadinho-na-grande-bh.ghtml.
167
Dentre outros documentos, o Relatório da organização internacional Global WTness informou que apenas em 2017,
foram mortos 207 ambientalistas e que o país lidera o ranking mundial de crimes desta espécie. Conforme disponível

132
Já no que se refere aos crimes praticados contra as mulheres, no final de 2017, o Relatório
contido no 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública informou que somente neste ano, 606
(seiscentos e seis) crimes de violência doméstica e 164 (cento e sessenta e quatro) de estupros foram
registrados por dia. O relatório ainda informa que como a taxa de subnotificação desse crime é alta
(chegando até 10%), esses números podem ser ainda mais elevados168.
Além desses exemplos, também merece destaque - dentre os crimes considerados como “de
organização criminosa” -, as práticas das milícias169 que atuam no Rio de Janeiro e em outras regiões
do país, na medida em que, não obstante a ampliação de suas atividades nas últimas décadas, não
recebeu a ampla projeção dada às investigações inseridas nas Operações Lava-Jato. Diante destes
contextos, estas Operações aparentam passar por certa seleção, inclusive, em relação aos crimes e
criminosos econômicos cujas atividades atingem o Estado brasileiro.
Por outro lado, assim como acontece em relação às duas primeiras modalidades de crimes
acima relacionados, a categoria terrorismo possui conteúdo extremamente vago, o que resulta em
uma proposta de ação que tanto pode alcançar qualquer conduta, como pode ter fins meramente
retóricos, dependendo dos interesses pontuais das agências de controle. Vale dizer, a vantagem de se
manter em aberto o significado desse e de outros tipos penais é a de se poder permitir aos operadores
dessas agências a produção de múltiplas definições, o que parece bastante oportuno para uma política
pública que visa à repressão e à punição, exclusivamente, assim como a seleção da parcela da
população que deve se tornar cliente preferencial dessa política.
Por fim, vale ressaltar que na atualidade, as instituições de controle e repressão
desempenham também atividades articuladas e estratégicas para ampliar seu alcance, apresentando,
inclusive, propostas de legislações relacionadas à matéria penal e processual penal; participam de
comissões legislativas e orientam alguns projetos de lei nas casas legislativas do país. Significa
afirmar que outros crimes e outras formas de persecução criminal podem ser criados por estes meios.
Exemplo do que digo é a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de
Dinheiro – ENCCLA, citada anteriormente e cujo objetivo é formular políticas públicas voltadas,

em https://sustentabilidade.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-lidera-ranking-mundial-de-morte-de-
ambientalistas,70002412403.
168
Conforme divulgado em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/08/brasil-registra-606-casos-de-violencia-
domestica-e-164-estupros-por-dia.shtm.
169
A categoria milícia designa o modo como organizações criminosas se estruturam e atuam. Geralmente formada por
agentes do Estado que integram ou integraram o setor da segurança pública, sua atuação incide sobre comunidades
urbanas de baixa renda, controlando e explorando atividades econômicas, como o fornecimento de serviços de consumo
(gás, internet etc.) e de segurança não exercido oficialmente pelo Estado. As milícias se originaram no Rio de Janeiro, a
partir da década de 70, sendo formadas por policiais que disseminavam a ideia de proteger a comunidade das ações dos
traficantes ou outros criminosos, conforme Cano e Duarte (2012) e Lopes (2017).

133
inicialmente, ao combate aos crimes de lavagem de dinheiro, embora mais tarde, sua atuação tenha
sido expandida também para o enfrentamento do crime organizado no país170.
Durante as entrevistas, esta rede foi mencionada por alguns entrevistados. Um deles afirmou
que:

- “Muitas das ações da ENCCLA resultam de sugestões dos membros das forças-
tarefa. A própria alteração da Lei dos Crimes Organizados e a regulamentação da
colaboração premiada. Eu mesmo ainda não participei de nenhum encontro da
ENCCLA, mas nosso Coordenador, todo ano vai. Além da própria ENCCLA, as
Câmaras de Coordenação e Revisão do Ministério Público emitem convites para os
membros do Ministério Público e pessoas que estão engajadas no combate à
corrupção e lavagem de ativos, que participarão dos seus encontros anuais e que por
causa de sua expertise, acabam tendo uma participação maior. Da nossa parte, aqui, é
nosso coordenador que todo ano vai. Nosso Coordenador é ‘super antenado’ com
tipologias de investigação, métodos e técnicas de investigação e ele contribui lá na
ENCCLA com as nossas indicações, colhendo antes dessas reuniões as nossas
opiniões. Por exemplo, o projeto de Lei que criou a Lei nº 12.850, de 2013, entre
seus considerandos, tem uma menção... Eu não me lembro do nome do legislador
que comentou que esse Projeto visa atender às sugestões da ENCCLA. A ENCCLA
é interessante porque ela acolhe impressões e sugestões de colegas de vários
Ministérios Públicos e outros órgãos de controle, como a Receita Federal, por
exemplo, que estão engajados no combate à corrupção e lavagem de dinheiro e aí
consolida tudo isso em Planos de Ações para depois divulgar entre as instituições
participantes. Ela estabelece também prioridades para o combate à lavagem de
ativos. Isso é bem interessante, realmente!”
(MPF2)

De acordo com este entrevistado, as ações praticadas por esta rede se originam das sugestões
apresentadas pelos membros das forças-tarefa que integram as Operações Lava-Jato. Tais ações são
escolhidas a partir de reuniões anuais que contam com a participação de diversos representantes de
instituições de controle e fiscalização, sendo a Lava-Jato carioca representada por seu coordenador.
Dentre as atuações desta rede, merece destaque sua competência na elaboração de leis, como é
exemplo a própria Lei nº 12.850, de 2013171.
O site oficial desta rede informa que, atualmente, mais de 95 instituições se reúnem,
anualmente, em grupos de trabalho onde são discutidos temas relativos à prevenção, detecção e
punição dos crimes citados, bem como o planejamento das ações a serem realizadas no ano seguinte.
Dentre outros órgãos, integram esta rede a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN); o Banco
Central; o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF); a Comissão de Valores
170
Conforme disponível em http://enccla.camara.leg.br/quem-somos/historico e http://enccla.camara.leg.br/quem-somos.
171
Destaco a menção a esta atividade contida no parecer emitido pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao
Crime Organizado, da Câmara dos Deputados, relativo ao Projeto de Lei Nº 6.578, de 2009 - originário do Projeto de
Lei do Senado nº 150, de 2006, de autoria da Senadora Serys Slhessarenko -, mais tarde transformado na Lei nº 12.850,
de 2013. Neste parecer é informado que o legislador brasileiro “acolheu as teses mais modernas esposadas pela
Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA” (BRASIL, 2010).

134
Mobiliários (CVM); o Ministério Público Federal e os Ministérios Públicos Estaduais e, ainda,
associações de profissionais jurídicos, como a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do
Brasil e a Associação Nacional dos Procuradores de Estado172.
A rede não atua apenas enviando propostas legislativas ao Congresso. Ela já foi apontada
pela mídia como responsável pelo sucesso da Operação Lava-Jato e à repressão ao crime organizado
de uma das maiores facções criminosas do país, o Primeiro Comando da Capital - PCC173.
Ainda de acordo com o site da referida rede, a Plenária da reunião de 2018 aprovou para o
ano de 2019, um conjunto de 14 ações, dentre as quais destaco a Ação 01/2019: “Desenvolver projeto
de plataforma digital e outras medidas voltadas à transparência pública, aos dados abertos e à
participação social”174.
Como informado anteriormente, tanto o Ministério Público Federal, quanto a Polícia Federal
instituíram sites onde divulgam informações sobre suas respectivas atividades nas Operações Lava-
Jato. Contudo, estes canais carecem de um mecanismo que efetivamente informe a transparência
destes atos, inclusive demonstrando os valores retirados dos cofres públicos em razão dos crimes
apurados e aqueles que efetivamente foram recuperados e sua destinação. Não menos importante, é a
informação relativa ao custo econômico destas investigações para os cofres públicos.
Afinal, como lembra Cardoso de Oliveira (2018, pp. 52-59), a distinção entre transparência e
falta de clareza nas ações do Estado são demandas sociais relacionadas à nitidez na definição das
políticas públicas brasileiras. De acordo com o autor, as demandas por reconhecimento - a exemplo
do que foram as manifestações populares que aconteceram no país, em junho de 2013175 -, expuseram
uma dimensão dos direitos relacionada às interações sociais, no âmbito do que denomina como
mundo cívico176 e que, até então, encontrava-se oculta. Tais demandas seriam produto da nossa

172
Dentre outras atividades, em 2014 a rede elaborou o Manual de Colaboração Premiada (BRASIL, 2014), material que
integra o conjunto de orientações dirigidas aos membros do Ministério Público Federal, aqui citadas. As funções
administrativas desta rede são exercidas pela Coordenação-Geral de Articulação Institucional do Departamento de
Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional, da Secretaria Nacional de Justiça (DRCI/SNJ), do
Ministério da Justiça, que funciona também como Secretaria Executiva da rede. Além disso, a Plenária, que se reúne
anualmente para aprovar os resultados das ações do ano em curso, também é responsável pelo desenho das que serão
efetuadas no ano seguinte. O Gabinete de Gestão Integrada (GGI) acompanha o desenvolvimento dessas ações, decide
sobre sua composição e toma outras decisões sobre a governança da rede de colaboradores. Por fim, os Grupos de
Trabalhos das Ações, que promovem tais ações (BRASIL, 2003).
173
Conforme divulgado em https://epocanegocios.globo.com/Informacao/Acao/noticia/2015/02/rede-que-possibilita-o-
sucesso-de-operacoes-como-lava-jato-e-o-cerco-ao-pcc.html. Sobre a trajetória dessa facção criminosa no país, ver
Feltran (2018).
174
Conforme divulgado em http://enccla.camara.leg.br/noticias/enccla-tera-14-acoes-em-2019.
175
Tais manifestações, como Kant de Lima e Pires (2014, p. 38) afirmaram, desnaturalizaram a desigualdade na esfera
pública. Sobre as manifestações, ver, entre outras, a notícia divulgada em https://jornalggn.com.br/brasil/as-
manifestacoes-de-junho-de-2013-em-sp-por-marilena-chaui/.
176
De acordo com o autor, o “mundo cívico é constituído pelo universo de relações fora do espaço doméstico ou da
intimidade onde o status ou condição de cidadão deve ter precedência e o tratamento igualitário, geralmente uniforme,
deve ser a regra” (CARDOSO DE OLIVEIRA, idem, p. 35).

135
sensibilidade cívica. Ainda de acordo com o autor, a falta de transparência das ações do Estado, a
elucidação dos escândalos de corrupção e o tratamento desigual, produto da tensão entre as duas
concepções de igualdade (a que resulta do tratamento uniforme e a que resulta do direito ao
tratamento diferenciado), que ressaltaram a falta de clareza na alocação de direitos, privilégios e
recursos públicos, passaram a ferir a dignidade do cidadão, teriam estimulado as manifestações
populares de 2013.
A cobrança por mais transparência e o acesso à informação são considerados instrumentos
de fortalecimento da democracia, como afirma o site do Ministério da Transparência e Controladoria-
Geral da União, que lançou em 2004, o Portal da Transparência do Governo Federal, que é um site
de acesso livre, “no qual o cidadão pode encontrar informações sobre como o dinheiro público é
utilizado, além de se informar sobre assuntos relacionados à gestão pública do Brasil” 177. Contudo,
nem este canal, nem mesmo os sites oficiais do Ministério Público ou de quaisquer outras instituições
envolvidas nas Operações Lava-Jato disponibilizam à população tais informações, o que tem ficado
a cargo, quando muito, das mídias brasileiras178.

III. 3 – EM QUE MOMENTO O ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA É


CELEBRADO E QUEM SÃO OS ATORES QUE PARTICIPAM DE SUA CELEBRAÇÃO?
De acordo com um entrevistado,

- “A colaboração pode se dar em qualquer momento, inclusive depois de concluída a


ação penal”.
(MPF1)

A Lei nº 12.850, de 2013 não estabeleceu um limite temporal para a realização do acordo de
Colaboração Premiada e seus intérpretes e operadores afirmam que pode ser celebrado em qualquer
momento da persecução criminal e até mesmo depois dela179, sendo empregadas categorias distintas
para representarem o momento de sua efetivação. São elas: “Colaboração inicial”; “Colaboração
intercorrente” e “Colaboração tardia”180.

177
Conforme divulgado em http://www.cgu.gov.br/assuntos/transparencia-publica/acesso-a-informacao.
178
Apenas em 2018, o orçamento da instituição, que inicialmente era de R$501 mil, passou para R$1,65 milhão de reais,
aprovados pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal. Este valor referia-se apenas à dotação orçamentária
da força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba. Neste valor estaria incluído o reajuste salarial dos Procuradores,
que teve o custo estimado de R$ 116 milhões de reais. Conforme divulgado em
https://www.valor.com.br/politica/5053222/orcamento-da-operacao-lava-jato-e-triplicado-para-2018.
179
Na doutrina, Bittencourt e Busato (2014, p.129) questionam a inconstitucionalidade deste dispositivo, afirmando que
ele ofende à coisa julgada, categoria que significa o efeito obtido após uma decisão judicial final sobre a qual não cabe
mais recurso.
180
A lei de 2013 afirma que em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos os meios de obtenção da prova, que
indica, estando, dentre eles, a Colaboração Premiada (inciso I, do artigo 3º). Além disso, se a colaboração for posterior à

136
Esta distinção também pode se referir às fases do rito seguido pela Colaboração Premiada.
São elas:
. a fase da negociação (da investigação preliminar);
. a fase da homologação, ou da sentença (ambas na etapa judicial), e
. a fase da execução da pena (durante o cumprimento da pena), conforme prevê o artigo 4º, da
Lei 12.850, de 2013.
Examinando a Orientação Conjunta nº 01/2018 que orienta as práticas dos operadores – que
emprego nesta pesquisa como dado de campo ao lado dos discursos dos entrevistados –, é informado
que o procedimento para formalização do acordo de Colaboração Premiada deverá ser autuado no
Ministério Público como “Procedimento Administrativo”, assumindo caráter confidencial e
registrado no Sistema Único informatizado do órgão, ainda que relacionado a outro procedimento
judicial ou extrajudicial, observando-se, especialmente e no que couber, o disposto no art. 4º, §§ 7º e
13, da Lei 12.850/2013, ou seja, o aspecto sigiloso desse procedimento. Significa afirmar que ele será
registrado apenas com uma numeração, sem nenhuma identificação das partes. Além disso, serão
distribuídos ao Procurador que for responsável pelo procedimento judicial ou extrajudicial já em
curso e ao qual o acordo ficará vinculado.
Quando não existe prévia investigação ou procedimento administrativo instaurado
anteriormente - ou não é de conhecimento do investigado sua existência -, as unidades do Ministério
Público Federal providenciam para que o advogado ou defensor do proponente a colaborador, ou o
respectivo pedido escrito apresentado por eles, sejam encaminhados ao Procurador-distribuidor ou
coordenador da área.
No Rio de Janeiro, conforme informou um entrevistado, é encaminhado a este último, para
distribuição antecipada do caso, visando identificar o Procurador natural do feito, resguardando-se
sempre o caráter confidencial da matéria. Na prática dos operadores do Rio de Janeiro, o Procurador
que atende ao advogado ou ao colaborador que o procura, torna-se responsável pelo possível acordo
daí resultante.
A instauração e o arquivamento do procedimento administrativo, assim como a celebração
de acordo de Colaboração Premiada, deverão ser comunicadas à Câmara de Coordenação e Revisão
respectiva, apenas com a indicação de numeração no sistema informatizado de tramitação do
Ministério Público Federal, para acompanhamento e registros estatísticos, e sem a informação das
partes e do objeto, para garantia do devido sigilo. Ainda de acordo com a norma citada, no momento

sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os
requisitos objetivos (§ 5º, do artigo 4°).

137
em que é recebida a proposta para formalização de acordo de colaboração é demarcado o início das
negociações.
A fase inicial, também denominada de fase das tratativas entre as partes do acordo, foi
referida pelos entrevistados da seguinte forma:
- “Depois que o advogado do pretenso colaborador nos procura, nós iniciamos as
tratativas e vamos vendo o que ele tem para entregar e o que podemos negociar com
ele em termos dos ‘benefícios penais’”.
(MPF8)

_ “Então, muitas vezes a gente recebe aqui um advogado ou um colaborador que


vem acompanhado de advogado. O acordo de Colaboração Premiada é um processo
longo, né? E a gente recebe essas informações preliminares, verifica se precisa
complementar com outras informações, se tem provas de corroboração suficientes,
se é possível o “cara” trazer mais provas de corroboração. Isso tudo demanda várias
reuniões. O tempo de conclusão das tratativas varia muito. Tem acordo que a gente
firma em uma, duas semanas, mas tem acordo que a gente fica um ano negociando.
Isso varia muito. Às vezes o acordo não sai por coisas pequenas, mas que para o
colaborador faz diferença. Quer dizer, a gente que não está preso, não vê a diferença
do que representa um mês de prisão. Para gente não é algo importante, mas para o
colaborador é. Então, essa negociação é uma negociação bastante extenuante,
cansativa, até, mas é interessante!”
(MPF2)

_ “Durante as tratativas, há reunião com todos os representantes do Ministério


Público Federal que integram a “força-tarefa” do Rio para definirem se aceitam ou
não o acordo que está sendo proposto por um advogado ou um pretenso colaborador.
Isso é votado. Terminadas as tratativas e verificado que as provas são suficientes
para o oferecimento da denúncia contra os delatados, celebra-se o acordo e submete-
se este à Justiça, pedindo sua homologação. A Justiça vai verificar a questão da
legalidade e se a pessoa falou espontaneamente, porque a pessoa é chamada perante
o juiz para dizer isso. Vai confirmar o acordo de Colaboração Premiada”.
(MPF6)

- “Essas tratativas são feitas entre o Ministério Público Federal, o advogado do


pretenso colaborador e ele próprio, quando é possível estar presente. Não é aberto ao
público. Nem os servidores daqui sabem. Ou os estagiários. Ninguém sabe!”.
(MPF8)

De acordo com estas informações, as tratativas dos acordos de Colaboração Premiada se


iniciam depois que os pretensos colaboradores e seus advogados procuram os representantes do
Ministério Público Federal para proporem o acordo. Vale dizer, a iniciativa seria, exclusivamente, do
colaborador ou de seu respectivo mandatário.
Entendi que essa afirmação tinha como objetivo de excluir qualquer dúvida quanto à isenção
do órgão de acusação nesta tarefa. Significava que o colaborador e seu representante legal,
espontaneamente, o procuravam, o que conferia a essa atividade a legitimidade que a Lei nº 12.850,
de 2013 requer, quando afirma que a Colaboração Premiada será considerada válida, quando o

138
colaborador, efetiva e voluntariamente181 colabora com a investigação e/ou com o processo criminal
(conforme caput do artigo 4º, da lei).
Desta forma, poderiam ser afastadas quaisquer suspeitas quanto ao emprego de estratégias
que coagissem ou obrigassem o colaborador a contribuir com a acusação. Caso tenha sido essa a
intenção, ela se justifica, principalmente, pelas inúmeras críticas que o instituto vem recebendo desde
sua criação182.
Ainda que os entrevistados tenham afirmado que são sempre procurados pelos colaboradores
ou seus advogados, o Manual de Colaboração Premiada elaborado pela ENCCLA e também
utilizado como fonte da pesquisa, afirma que:
1) O Procedimento na Colaboração Premiada
A Fase Preliminar de Admissibilidade da Colaboração
Recomenda-se que os órgãos responsáveis pela investigação, presentes os requisitos
de admissibilidade, busquem a cooperação de pessoas suspeitas de envolvimento nos
fatos investigados e proponham a colaboração, expondo as vantagens,
independentemente da iniciativa do agente (BRASIL, 2014, grifos conforme o
original).

Portanto, o texto desta normativa indica a possibilidade de os próprios investigadores


“buscarem” a cooperação dos colaboradores. Vale dizer, ainda que a prática dos membros do
Ministério Público no Rio de Janeiro não se enquadre neste dispositivo, é possível que em outros
locais a norma acima citada seja aplicada.
Em relação à fase de celebração do acordo, a doutrina jurídica diferencia a fase da proposta
de acordo e a do acordo propriamente dito (TEIXEIRA, 2017, entre outros). A consequência prática
desta distinção refere-se à possibilidade de na fase da proposta, que os entrevistados denominam de
tratativas, as partes poderem desfazer o “negócio” sem que as informações e provas apresentadas
pelo colaborador sejam usadas contra ele.
Esta possibilidade está prevista na lei quando afirma que “as partes podem retratar-se da
proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser
utilizadas em seu desfavor” (artigo 4º, § 10, da Lei 12.850, de 2013). Vale dizer, enquanto o acordo
não se concretiza, com a sua assinatura pelas partes, pode ser desfeito sem prejuízo para o
colaborador. A doutrina emprega a categoria retratação para designar o ato de desistência do acordo.
Isto porque, quando o acordo é assinado, passa a possuir existência e validade, gerando obrigações
para ambas as partes pactuantes. A homologação judicial, realizada após sua assinatura, é ato

181
Em outra parte deste texto examino as categorias voluntariedade e espontaneidade.
182
Dentre outros exemplos, destaco a crítica que o doutrinador Nucci (2017) fez durante palestra proferida na XX
Conferência Estadual da Advocacia e XX Semana Jurídica, acerca da divulgação à imprensa de informações obtidas em
Colaborações Premiadas pelos operadores da Lava-Jato de Curitiba. Conforme divulgado em
http://www.oabmt.org.br/noticia/13944/nucci-critica-abusos-em-delacao-premiada-e-alerta-sobre-nulidade-da-lava-jato.

139
confirmatório de sua validade. Assim, após esta fase, caso o colaborador resolva rescindi-lo, o
Ministério Público poderá utilizar as provas produzidas contra ele. Vale dizer, retratação e rescisão
são duas categorias que estabelecem distintas consequências para o colaborador.
Quanto aos atores que participam deste acordo, a lei de 2013 vedou a participação do
magistrado nas negociações e, consequentemente, na fase de celebração. Afirmam os doutrinadores
que esta vedação legal é uma decorrência do sistema acusatório e da preservação da imparcialidade
do juiz, já que para este ator caberia apenas a avaliação quanto aos requisitos legais para a celebração
do acordo e, em caso afirmativo, homologá-lo (§ 6º, do artigo 4º). Neste mesmo dispositivo, o texto
legal afirma que o acordo ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a
manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado
ou acusado e seu defensor.
Não obstante o texto legal, a participação destes atores, inclusive do magistrado, já foram
suscitadas em alguns Habeas-Corpus e em recursos, impetrados tanto pelos advogados de defesa
quanto pelo órgão de acusação, junto ao Supremo Tribunal Federal que, desde as primeiras
Operações Lava-Jato, se tornou o órgão judicial modulador do alcance e dos limites destes acordos,
entre outras atividades por ele desenvolvidas.
Ainda no que se refere aos atores que participam dos acordos de Colaboração Premiada,
também merece destaque a categoria força-tarefa, mencionada nos relatos acima. Esta categoria é
utilizada para indicar o grupo de instituições que participam de investigações que, devido à
complexidade dos crimes e de sua apuração, demandam esta integração institucional. Este grupo atua
de forma coordenada e é composto por representantes de diversas instituições de controle, conforme
a natureza dos casos em apuração, entre elas, Polícias (civil, militar, federal), Ministério Público,
Poder Judiciário, Receita Federal, Banco Central. A participação desse grupo nos acordos também
acontece quando as instituições que o integram compartilham entre si as provas obtidas.
Em sua pesquisa, Vidal (2013) declarou que a categoria força-tarefa também empregada em
operações policiais denominadas “especiais”, reúnem policiais de diferentes locais, com o
acompanhamento direto e constante do Ministério Público e contato frequente com juízes e estes
órgãos possuem um objetivo comum e atuam colaborando, reciprocamente, uns com os outros. Ainda
segundo a autora, essas operações são formadas por policiais que respeitam o sigilo da investigação,
permitindo a efetiva produção dos documentos necessários à formação do Inquérito Policial183.

183
Vidal (op. cit.), comentando a composição de forças-tarefa, atribui essa articulação a diferentes prioridades que esses
diferentes órgãos estabelecem para suas ações no Rio de Janeiro, onde a Polícia Federal estaria mais voltada para o
tráfico de drogas e o Ministério Público Federal para os crimes financeiros.

140
Outra pesquisa que também tomo como referência é a de Mouzinho (no prelo) que já
afirmou que nem todos os casos apurados pelas forças-tarefa policiais e que chegaram ao
conhecimento do Ministério Público realmente se transformaram em denúncias. De acordo com essa
pesquisadora, estas investigações, iniciadas de diferentes formas e em variadas origens - desde
denúncias encaminhadas diretamente ao órgão (identificadas ou não), resultados de comunicações
e/ou investigações realizadas por outros órgãos, até as divulgadas na imprensa –, passavam pelo crivo
dos princípios da obrigatoriedade e da oportunidade da interposição da ação penal184, o que resultava
na atenção especial dos casos de maior repercussão na mídia e na opinião pública e que coincidiam
com os casos de repercussão examinados pelo Supremo Tribunal Federal185.
Acontece que segundo os entrevistados, a Operação Lava-Jato do Rio de Janeiro se difere
da Operação de Curitiba, porque lá as investigações e os próprios acordos de Colaboração Premiada
são produzidos de forma concomitante e simultânea tanto pela Polícia Federal quanto pelo Ministério
Público Federal. Já, no caso carioca, apenas o Ministério Público Federal é responsável por tais
tarefas e quando acontece a participação de outra instituição, esta se dá de forma acessória ou
complementar, como esclareceu um dos entrevistados:

- “Nessas reuniões semanais - que fazemos às segundas-feiras -, só participam os


representantes do Ministério Público Federal. Os acordos de Colaboração Premiada
são firmados por nós. Aqui no Rio, a gente ainda não teve a experiência de fazer
acordos com a participação da Polícia, embora a gente já tenha convidado, em
diversas ocasiões, mas a gente não conseguiu ir à frente nesse sentido. Como todos
os acordos são firmados no âmbito do Ministério Público Federal, a gente faz essa
discussão interna, apenas. A Polícia Federal não celebra acordos porque não tem tido
“pernas” para acompanhar o nosso ritmo aqui. Como as investigações aqui no Rio,
desde o início, foram conduzidas pelo Ministério Público, eu acho que a Polícia
está... Aqui no Rio, especificamente. Em Curitiba, a gente sabe que é um pouco
diferente... Mas aqui no Rio a Polícia não tem tido pernas para acompanhar a gente.
Eles têm pouca gente na força-tarefa aqui. Nós aqui somos 11 (onze) Procuradores e
os 11 (onze) trabalhando de oito da manhã às nove da noite, todos os dias, finais de
semana, enfim... É um ritmo que, se não tiver muita dedicação pessoal, o “negócio”
não anda!”
(MPF5)

184
Como afirma a autora, o princípio da obrigatoriedade impõe ao Ministério Público o dever de promover a ação penal
pública, quando presentes a prova da materialidade e indícios suficientes de autoria, sem a intervenção de critérios
políticos ou de utilidade social (artigo 24, do Código de Processo Penal). Trata-se de um dever, uma obrigação, que
se não for realizada, será passível de punição (a exemplo do artigo 342, da Lei n.º 4.737/1965). Trata-se, como já
advertiram Kant de Lima e Mouzinho (2016), de um controle repressivo das ações desses agentes. Já o princípio da
oportunidade, resulta de uma escolha do agente, e vincula-se à ideia de que o Estado pode deixar de promover o direito
de punir, quando verificar que dele possam advir mais inconveniências do que vantagens. Mais uma vez, os gastos
econômicos dessas operações ou o tempo despendido até chegar ao autor do crime, entre outros fatores, são análises que
acabam criando um critério seletivo entre os casos levados aos tribunais brasileiros.
185
Ver nota de rodapé nº 119.

141
Com base nessa declaração, as Operações Lava-Jato diferem-se quanto aos atores principais
responsáveis pelas investigações e pela celebração do acordo de Colaboração Premiada. Como em
cada Estado os atores que realizam tais tarefas variam, quando se emprega a categoria Lava-Jato, é
preciso esclarecer sobre qual delas está se falando.
Esta afirmação também foi corroborada por outro entrevistado, quando afirmou que:
- “O grupo da Polícia Federal de Curitiba, já está bem estruturado para a Lava-Jato.
No Rio não. A equipe é muito pequena, ainda está muito insipiente. A gente é que
faz as investigações. Tanto que nas coletivas (de imprensa)... Com exceção da
Operação Furna da Onça, que realmente foi a Polícia Federal que investigou. Todas
as nossas Operações de primeira instância, até os nomes somos nós que temos dado.
Tanto que a Polícia Federal passou a não fazer mais entrevista coletiva, porque eles
ficavam muito perdidos. Mas quando eles participam mais das investigações,
também estão presente nas coletivas. A gente tem ido a todas as buscas e prisões,
tem ajudado a selecionar os documentos apreendidos; participa do briefing (conjunto
de informações a serem divulgadas para a imprensa) de madrugada, para poder
explicar o caso... E essa participação nossa nas buscas e apreensões tem sido
essencial, porque a gente fotografa o que é preciso e essa fotografia já é utilizada
para a renovação de uma (prisão) preventiva, ou de uma temporária ou para convolar
uma temporária em preventiva186. São documentos que anteriormente iam para a
Polícia Federal, ficavam meses ou anos lá para serem analisados e quando voltavam
o processo já estava em andamento, ou às vezes até terminado. Hoje, a gente tira a
fotografia e a usa nesses pedidos e até na denúncia. Então, é uma atividade bem
dinâmica. É um trabalho enorme, mas há uma solidariedade muito grande. Por
exemplo, nessa Operação Furna da Onça foram 30 (trinta) colegas. Não só os
colegas da força-tarefa da “Furna da Onça”, mas outros colegas que entraram para
participar. Eles receberam uma papeleta dizendo qual era o “alvo”, o que é que ele
fez e o que a gente estava indo buscar. É assim que a gente faz nessas investigações.
Isso tudo a gente faz pelo grupo que é criado no Telegram187 para aquele dia. As
pessoas já vão arrecadando as informações e fotos e jogam naquele grupo. Então,
assim, é a tecnologia né? E usada ao nosso favor”.
(MPF3)

186
Prisão temporária e prisão preventiva são duas modalidades de prisão cautelar (prisão sem sentença condenatória
efetivamente decretada). A doutrina jurídica distingue ambas as prisões da seguinte forma: A prisão preventiva -
prevista no artigo 311 e seguintes, da lei processual penal - pode ser decretada em qualquer fase da investigação ou
do processo judicial, quando os crimes praticados forem dolosos e a pena prevista em lei for superior a 4 anos;
quando o acusado for reincidente em crime doloso; quando o crime versar sobre violência doméstica ou familiar,
para garantir cumprimento de medida protetiva de urgência, como, por exemplo, a medida de afastamento do lar ou
da pessoa; quando houver dúvidas sobre a identidade ou quando esta não fornecer elementos suficientes para
esclarecê-la; quando houver descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de medidas cautelares.
Já a prisão temporária - prevista na Lei nº 7.960, de 1989 - somente tem cabimento durante a fase investigativa e
quando for imprescindível para a investigação; quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer
elementos necessários ao esclarecimento da sua identidade; quando houver fundadas razões (com base em provas) da
autoria ou participação em: homicídio; sequestro, cárcere privado; roubo; extorsão; extorsão mediante sequestro;
estupro; epidemia com resultado morte; envenenamento de água, alimentos ou medicamentos qualificado pela morte;
associação criminosa; genocídio em qualquer forma; tráfico de drogas; crimes contra o sistema financeiro
(TOURINHO, 2010).
187
Aplicativo de telefone celular que permite a troca de mensagens, fotos e vídeos, semelhante e considerado concorrente
ao WhatsApp.

142
Segundo este entrevistado, a única operação realizada pela Polícia Federal do Rio de Janeiro
foi a Operação Furna da Onça188, que também contou com a participação de membros do Ministério
Público. Nesta declaração, o entrevistado informa a estrutura, as rotinas e os equipamentos - inclusive
de tecnologia informática e telemática -, empregados nessas investigações, como forma de enfatizar a
competência técnica desses investigadores, em detrimento da que representa a que é realizada pelos
policiais federais, porque estes “não têm pernas”, no sentido de não possuírem estrutura pessoal e
institucional para acompanhar tais investigações. Entendi que esse discurso tentava legitimar a
hegemonia das investigações realizadas por esses agentes estatais que no Rio de Janeiro são também
responsáveis pela celebração dos acordos de Colaboração Premiada.
O argumento segundo o qual a Polícia Federal do Rio de Janeiro “não tem pernas”, como
forma de justificar a reduzida iniciativa deste órgão nessas Operações e na elaboração dos acordos de
Colaboração Premiada, remete ao debate sobre a disputa que existe há algum tempo entre as duas
instituições acerca do monopólio da produção das investigações criminais, fonte de poder e prestígio
político, principalmente189.
Esta discussão foi reavivada em junho de 2018, quando o Supremo Tribunal Federal julgou
a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.508, impetrada pela Procuradoria-Geral da República,
decidindo pela constitucionalidade da possibilidade de serem celebrados os acordos de Colaboração
Premiada pelos delegados de polícia, na fase do inquérito policial190. Esta iniciativa da Procuradoria-
Geral da República em provocar a resposta do tribunal superior jogou luz sobre o inconformismo do
órgão quanto a esta divisão de tarefas (ou divisão capital). Esta parece ser uma postura recorrente
entre os representantes do Ministério Público, já que um dos entrevistados afirmou que:
- “Para que que eu preciso do Delegado de Polícia, como carreira jurídica?
Então, o nosso Inquérito ainda produziu isso. Uma carreira jurídica que é supérflua.
O Delegado de Polícia não tem capacidade postulatória. E sabe o que esse
bacharelismo nos legou? Uma Polícia que acaba descuidando da sua função
exclusiva que é a da investigação. Eu preciso de Polícia que seja investigativa. Eu

188
Esta Operação foi um desdobramento da Operação Cadeia Velha e apurou o envolvimento de inúmeros parlamentares
do Rio de Janeiro em crimes de corrupção traduzida no recebimento de propinas ou o poder de indicação de cargos em
instituições públicas, em troca de seu voto nos projetos de leis e demais atos a favor do ex-governador Sérgio Cabral.
Conforme divulgado em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/furna-da-onca-investiga-mensalinho-a-
deputados-estaduais-do-rio/.
189
Neste sentido, destaco o estudo de Azevedo e Pilau (2018) sobre os impactos da Operação Lava-Jato na Polícia
Federal Brasileira. Examinando a Operação Lava-Jato de Curitiba, os autores afirmam que esta modalidade de
investigação aprofundou os traços inquisitoriais da atuação da Polícia Federal, que já operava como um modelo
burocrático e sigiloso em suas investigações e na própria construção dos inquéritos policiais e atuando como integrante
do sistema de justiça criminal, em que as violações de direitos de investigados e réus são comuns. Com o advento da
Operação Lava-Jato, a instituição parece ter se tornado a protagonista na sujeição criminal seletiva de indivíduos
privilegiados. Além de integrar o processo penal do espetáculo, a Polícia Federal, juntamente com o Ministério Público
e o Judiciário reforçam a lógica inquisitorial, “deixando de lado a agenda de reformas do sistema em sentido
democratizante, que permitiria combinar eficiência e garantias”.
190
Conforme divulgado em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=382031.

143
não preciso de polícia que seja jurista. Eu não preciso de um jurista na investigação
policial. Eu preciso de um investigador! Eu não preciso de um bacharel em Direito
para esclarecer o crime. A parte jurídica vai ser feita pelo MP, pelo advogado, pelo
juiz. Temos três carreiras para cuidar disso, não preciso de uma quarta, que é o
Delegado de Polícia, para fazer isso. Para que é preciso do Delegado de Polícia,
bacharel em Direito?”.
(MPF4)

Assim, de acordo com este entrevistado, a carreira de Delegado de Polícia é supérflua,


exagerada, já que lhe falta capacidade de postular em juízo e a atividade investigatória pode ser
realizada por qualquer outro policial.
As declarações acima reproduzidas revelam que o que está em jogo entre as instituições de
controle e fiscalização que integram o Sistema de Justiça Criminal brasileiro é a disputa de poder,
que também em relação aos crimes de “colarinho branco” significa o poder de classificar e selecionar
quais, dentre os criminosos considerados autores desta modalidade de crime, poderão celebrar o
acordo de Colaboração Premiada e quais serão excluídos dessa oportunidade.
O poder de classificação dos cidadãos, ou como Misse (2008), o poder de criminação dos
cidadãos, pode ser exemplificado pelo discurso do Ministério Público, que em nome da justiça social,
ou da defesa da sociedade, justifica a punição dos ricos e dos privilegiados, considerada uma
demanda de criminação que carrega o peso de uma determinada moralidade social, pois associada à
reparação necessária dos prejuízos sociais causados aos mais pobres, visto que tais condutas seriam
lesivas aos cofres públicos, dificultando a implantação de políticas públicas. Contudo, na galáxia de
criminosos com tais perfis, a incriminação desses atores passa por um conjunto de estratégias de que
se servem os Membros do Ministério Público, como Mouzinho (no prelo) também já demonstrou em
sua análise.
Outro aspecto também curioso em relação ao momento em que ocorrem as tratativas para a
celebração do acordo, se refere à hipótese em que o pretenso colaborador encontra-se preso. Neste
caso, segundo um dos entrevistados,
- “Quando a gente está fazendo acordo com réu preso, a gente pede para a custódia
do Presídio trazer o “cara” para cá. Só que isso poderia gerar a sensação de que o
“cara” saiu de lá para ir ao Ministério Público para firmar o acordo. Então, o que é
que a gente faz? A gente chama o pretenso colaborador, mas chama, junto com ele,
outros dois “caras” que não são. E aí, ninguém sabe se o “cara” está vindo para cá é
para colaborar ou não; se é para ser ouvido de alguma outra forma; prestar
esclarecimentos. Porque senão, quem estiver ligado a ele na associação criminosa,
poderá suspeitar. Sempre que vem alguém de dentro do Presidio, isso já gera lá
dentro um burburinho; já gera essa dúvida. Mas ninguém, jamais, pode ter certeza de
que o “cara” está vindo para colaboração, por conta desses métodos que a gente
utiliza”.
(MPF2)

144
De acordo com o entrevistado, quando o possível colaborador já se encontra preso, emprega-
se a estratégia de retirá-lo, juntamente com outros internos da unidade prisional para ser ouvido, a
fim de que este contato com o Ministério Público não gere suspeita entre os demais integrantes da
organização criminosa, quanto à possibilidade de celebração do acordo, porque este constituirá,
inclusive, na delação do grupo, o que pode colocar em risco sua integridade física, principalmente,
enquanto estiver preso.
A celebração do acordo de Colaboração Premiada em momento posterior à prisão (seja ela
cautelar ou não) talvez constitua, senão a principal discussão, a que mais ênfase vem recebendo
acerca da natureza desse acordo.
Como, em geral, o campo jurídico defende a orientação de que para ser considerado negócio
jurídico, ou acordo, não pode haver coação ou qualquer evento que altere a vontade de quem o está
celebrando, a ameaça da prisão ou sua manutenção são consideradas como circunstâncias que
influenciam a vontade do colaborador. No entanto, por outro lado, há quem defenda a possibilidade
de o acordo ser celebrado mesmo quando o colaborador está preso ou sendo ameaçado de prisão.
Entre os entrevistados houve quem considerasse sem fundamento a crítica feita ao emprego
da prisão como estratégia para a obtenção da colaboração do investigado. Neste sentido, foi a
seguinte declaração:
- “O argumento que afirma que os colaboradores só aceitam colaborar com o
Ministério Público porque são coagidos, seja pela iminência de uma prisão
preventiva, por exemplo, ou porque ele não quer permanecer preso. Esse argumento
também não se sustenta. Ele é afastado com base nas estatísticas. Eu não tenho aqui
as estatísticas para lhe dar, mas eu me lembro que a força-tarefa do Paraná fez esse
levantamento de quantos acordos de colaboração foram feitos com colaboradores
presos e quantos foram com réus soltos. A quantidade de acordos com réus soltos foi
infinitamente superior aos acordos firmados com réus presos. Então, de fato, eu não
vejo isso como uma crítica fundamentada”191.
(MPF2)

Vale dizer, segundo o entrevistado, a avaliação do elemento anímico do colaborador


prescinde da análise sobre o motivo que o levou a celebrar o acordo, já que o que “prova” a liberdade
e a consciência de sua vontade é outro fator: os dados estatísticos que indicam ser a quantidade de
colaboradores presos menor do que os acordos de Colaborações Premiadas firmados por criminosos
que se encontram em liberdade.

191
Na mídia, algumas notícias relacionadas à Operação Cadeia Velha e Operação Ponto Final, destacavam a intenção do
ex-Conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Jonas Lopes, em celebrar o acordo de Colaboração Premiada
como estratégia para conseguir a liberdade do seu filho, também envolvido nos crimes investigados nessas operações.
No mesmo sentido, foi a Colaboração do Deputado Estadual, Jorge Picciani, para liberar da prisão seu filho, Filipe
Picciani, da prisão. Conforme divulgado em https://veja.abril.com.br/blog/radar/picciani-deve-fechar-delacao-para-
liberar-filho-preso/?utm_source=whatsapp e https://www.metropoles.com/brasil/jorge-picciani-deve-fechar-delacao-
para-ajudar-filho-preso, respectivamente.

145
Quando perguntei se o entrevistado possuía essa estatística, a resposta foi:
- “Eu posso ver. Não tenho agora de cabeça. Eu vou procurar fazer esse
levantamento e aí te mando. Talvez, até, algum colega já tenha feito isso. Mas, “de
cabeça”, eu posso dar uma “canelada”, eu posso dizer que fizemos mais acordos com
colaboradores soltos do que com colaboradores presos. Não sei em números. Mas,
vou correr atrás desse número. E outra coisa, quando o colaborador já está preso, a
chance dele não ter informações para fundamentar o acordo são maiores. Porque
quando a gente o prendeu, “de cara”, a gente já tem muitas informações.
Para ele poder agregar algo às nossas informações é muito mais difícil. Então, por
isso, eu acho que até os pretensos colaboradores imaginam que eles dificilmente
conseguiriam fazer um acordo depois de presos. Agora, é possível. É possível!”.
(MPF2)

Apesar de o entrevistado afirmar que enviaria a estatística acerca da quantidade de


colaboradores que efetivaram o acordo enquanto se achavam presos, até o final da elaboração deste
texto esta remessa não se concretizou192.
De acordo com este entrevistado, o investigado preso tem menor chance de obter ou ter
acesso às informações e provas que fundamentariam o acordo de Colaboração Premiada com o
Ministério Público, ou seja, suas chances de concretização deste acordo seriam menores do que as
dos pretensos colaboradores que se encontram em liberdade. Dito de outra forma, para este
entrevistado, os investigados que se encontram em liberdade possuem mais condições de celebrarem
o acordo, daí porque não concorda com a crítica mencionada193.
Como estes acordos são realizados de forma secreta, sem a participação de quaisquer outros
atores ou instituições além dos próprios interessados em sua confecção - ou seja, Ministério Público
Federal e colaborador (com o seu advogado) -, percebi que esse instituto não guardava nenhuma
semelhança com a plea bargaining estadunidense. Esta análise me pareceu oportuna já que, além dos
entrevistados, há algum tempo tem sido reproduzido no Brasil o discurso que aproxima estes
institutos originários de tradições distintas (Civil Law e Common Law), defendendo a ideia de que as
Colaborações Premiadas constituem um espaço de consenso entre as partes que pactuam o acordo,

192
Pesquisando na Internet, encontrei uma notícia que informava que no final de 2015, ao ser sabatinado por integrantes
do Congresso Nacional, para assumir o cargo de Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, um membro do
Ministério Público Federal afirmou que 70% das delações premiadas foram realizadas por acusados soltos. Ver a notícia
em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/12/10/indicado-para-o-cnj-diz-que-70-das-delacoes-premiadas-
sao-feitas-por-acusados-soltos. Além dessa afirmação, não encontrei estatísticas oficiais a esse respeito.
193
Lopes Júnior (BRASIL, 2017, pp. 161-162) declarou - quando participou de audiência pública na Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito relativa à delação dos empresários da JBS -, que “É uma falácia essa ideia de que a
imensa maioria das delações foi feita em liberdade” e referindo-se à ausência de dados que confirmam o argumento do
Ministério Público, declarou que seria necessário investigar a quantidade de pessoas que fizeram a delação e foram
soltas, bem como as que foram soltas para delatar e as que delataram para não serem presas. Ainda segundo o autor, “O
Ministério Público pode muito, mas não pode tudo. O problema é que ele está avocando para si um poder soberano e
para além dos seus limites de atuação, e nós precisamos ter muito cuidado, porque isso não é democrático. Essa é a
questão. Punir é necessário e punir é civilizatório, mas é preciso respeitar a regra clara do jogo, porque, se virar vale-
tudo, nós vamos ter um modelo aqui de que realmente todos vamos nos arrepender – e já estamos começando a nos dar
conta disso”.

146
nos mesmos moldes da plea bargaining, norte-americana (GOMES, 2014, LIMA, 2016, dentre
outros)194. Apenas em razão da organização deste texto, descrevo esta análise comparativa no
capítulo IV.
Ainda em relação às atividades dos membros do Ministério Público nos acordos de
Colaboração Premiada, ressalto que muitos operadores envolvidos nessas atividades sequer estavam
familiarizados com estes procedimentos quando ingressaram nessas investigações. Esta é a afirmação
contida no seguinte trecho de uma entrevista:
_ “Eu posso garantir, sei lá, que 80% dos Procuradores da República nunca tiveram e
irão se aposentar sem ter tido contato com a Colaboração Premiada. Então, é um
instituto novo. Aí, a gente costuma falar que a gente está ‘trocando pneu com o carro
andando’. A gente vai aprendendo na prática a lidar, né? Inclusive com grandes
questões que, ainda que sejam dúvidas - tanto pra gente, quanto para o Judiciário,
para a população em geral, os colaboradores, escritórios de advogados -, tem coisas
que ainda não estão muito claras. Enfim, a gente está trabalhando acompanhando o
movimento, né? Uma hora a gente vai ter uma resposta.
(...)
Tudo isso que estou lhe falando, eu vim aprender agora. A gente, até então, não
tinha... Isso tudo é uma novidade... E eu estou lhe falando como funciona aqui, né?
Na 7ª Vara. Não sei como funciona em outros lugares, como lá em Curitiba, por
exemplo. Eu acredito que sim, que seja um padrão, né? O que eu estou lhe passando
é como funciona aqui”.
(MPF2)

A expressão “trocando pneu com o carro andando”, utilizada por este entrevistado,
significa o desenvolvimento de uma prática que é inerente a um procedimento ainda não concluído
completamente e que não pode ser interrompido, o que leva essa prática a ser considerada necessária,
inovadora e inventiva, ao mesmo tempo. Em outras palavras, o pneu está furado, mas o carro
continua em movimento (porque não pode parar), daí a necessidade de trocá-lo.
É curioso notar que nesta declaração o entrevistado sugere que a operacionalização dos
acordos de Colaboração Premiada obedece a um padrão que não foi negociado entre os operadores e
que ele não conhece, como se a uniformização de procedimentos tivesse “caído do céu”, ou tivesse
vindo de algum lugar e que não resultou do consenso entre os operadores de como as práticas devem
ser atualizadas.
Esta ausência de consenso pode ser responsável pelas dúvidas e controvérsias levantadas em
torno das atividades das Operações Lava-Jato e suas congêneres - no que tange à aplicação dos
acordos de Colaboração Premiada e seus efeitos - e levadas ao Supremo Tribunal Federal, que tem

194
Ainda que o autor esteja criticando a aplicação do instituto, afirma que a colaboração premiada “É a ‘plea bargaining’
norte-americana, introduzida agora de forma mais sistematizada no ordenamento jurídico brasileiro sob o nome de
colaboração premiada (que é a ‘plea bargaining’ brasileira). Dos EUA estamos copiando esse instituto. Do Brasil os
EUA estão copiando a desigualdade (de renda e de capital). Norteamericanização e brasilianização do mundo”
(GOMES, idem).

147
atuado como modulador das controvérsias a ele encaminhadas, embora isso não signifique que
mesmo as examinadas por esta Corte tenham chegado a uma solução definitiva. Como afirmado pelo
entrevistado acima, “ainda tem coisas que não estão muito claras”, ou seja, mesmo depois de
aprenderem com os colegas de Curitiba e mesmo depois de passado mais de dois anos, desde a
primeira operação deflagrada no Rio de Janeiro, ainda restam dúvidas sobre sua operacionalização. E
essa dúvida, segundo o operador, não é somente dele, mas também da própria sociedade e do
Judiciário. Este também é um assunto que voltarei a mencionar.
A expressão “trocando pneu com o carro em movimento”, empregada pelo entrevistado,
também se refere à habilidade do operador para lidar com uma situação imprevista, ou não definida,
significando uma pró-atividade, mesmo diante das incertezas e indefinições sobre a aplicação da
Colaboração Premiada. Esta pró-atividade tem alterado a representação tradicional sobre alguns
institutos processuais, a exemplo da prova e, inclusive, a própria expansão das atribuições do
Ministério Público, como será visto.
Durante as tratativas realizadas pelo membro do Ministério Público e o acusado
(acompanhado do seu advogado), o que é examinado é se as provas apresentadas pelo colaborador
podem servir ou não para instruir uma investigação (com o fim de confirmar suas informações e
apontar outros envolvidos) e/ou para fundamentar a denúncia do órgão de acusação.
Assim, com base nos discursos dos entrevistados e na observação das audiências judiciais
assistidas, na aplicação das Colaborações Premiadas as partes não negociam a verdade processual.
Se nesse momento há alguma negociação entre as partes o objeto dessa negociação é,
exclusivamente, sobre a pena. Mesmo que haja uma audiência de homologação judicial depois que o
acordo de Colaboração Premiada é celebrado entre as partes – momento que seria, ao menos em
tese, o indicado para o exame das informações colhidas, além da possibilidade de as partes refutá-las
ou confirma-las -, na prática, a discussão sobre a admissão ou não dessas provas não acontece nem
mesmo nessa fase, como pude perceber.
Vale dizer, as partes não constroem uma verdade baseada no conhecimento comum sobre as
provas acerca da responsabilidade penal do autor do fato, porque, primeiramente, as provas já foram
colhidas na fase inicial da investigação (e frise-se: indicadas pelo próprio infrator-colaborador) e essa
audiência judicial, quando muito, se destina a confirmar a culpa do colaborador e, principalmente, a
responsabilização penal de outros envolvidos.
O fato de o colaborador realizar o acordo de Colaboração Premiada nem sempre o isenta de
ser denunciado, como acima aduzi. Mas, o fato de não aceitar o acordo já é motivo para ser
denunciado pelo órgão de acusação, sumariamente. Sendo tal denúncia acolhida pelo juiz, somente
então inicia-se o que seria a segunda fase do “processo” e denominada de instrutória, ou fase de

148
instrução, onde as partes poderão apresentar suas provas admitidas em direito. Para quem figura
como colaborador, essa fase consiste em mera confirmação do que já foi anteriormente produzido,
salvo quando há novas provas a apresentar.
O mesmo acontece quando o colaborador deixa de cumprir alguma das condições
(cláusulas) impostas no acordo, ocasião em que o órgão de acusação o considerará rescindido,
denunciando o colaborador em seguida. Vale dizer, em nenhuma dessas circunstâncias o Ministério
Público negocia a verdade como ocorre na plea bargaining, embora aplique, antecipadamente (e sem
o processo), a pena. Esta característica punitiva aproxima a Colaboração Premiada da Transação
Penal aplicada nos Juizados Especiais Estaduais Criminais, como vi acontecer em minha pesquisa do
mestrado e sobre a qual já comentei aqui. Desta forma, independentemente de o colaborador aceitar
ou não o acordo de Colaboração Premiada, o processo será instaurado.
No entanto, alheios a estes aspectos, alguns juristas e operadores brasileiros seguem
aproximando, por semelhança, institutos completamente distintos, como são a Colaboração
Premiada e a Plea Bargaining.

III. 4 – O QUE ACONTECE NA FASE DA HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL?

Outro aspecto que também merece ser ressaltado, diz respeito à atuação do juiz e a
finalidade da audiência de homologação do acordo de Colaboração Premiada.
Após a realização do acordo, o termo que registra este ato, assim como as declarações do
colaborador (escrita e gravada) - ou seja, seu depoimento -, e a cópia da investigação devem ser
remetidos ao juiz para sua homologação, sendo tais documentos registrados no cartório antes deste
ato. Nesta audiência, o juiz pode ouvir, sigilosamente, o colaborador, na presença de seu defensor
(conforme §7º, do artigo 4º)195.
Como a lei nº 12.850, de 2013 proibiu a participação do magistrado no momento de
celebração do acordo de Colaboração Premiada, resta-lhe apenas a possibilidade de, neste ato de
homologação, avaliar a regularidade, a voluntariedade e a legalidade do acordo, podendo
desconstitui-lo se observar alguma ofensa a tais requisitos. De acordo com os entrevistados, quando
decide neste sentido, o juiz deve devolver o acordo à autoridade que o celebrou (Ministério Público
ou Delegado de Polícia) para sanar a irregularidade ou ilegalidade verificada.

195
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º: (...) § 7o Realizado o acordo na forma do § 6 o, o respectivo
termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para
homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim,
sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor (BRASIL, 2013).

149
Ainda de acordo com a lei, o juiz pode adequar o acordo ao caso concreto (§ 8º, do artigo 4º,
da Lei nº 12.850, de 2013)196. Contudo, os operadores entrevistados afirmaram que esta providência
não foi e nem deveria ser adotada em nenhum dos acordos. Esta limitação da atividade judicial
constitui mais uma das principais discussões travadas no campo jurídico em relação ao acordo de
Colaboração Premiada.
Entendem os entrevistados e alguns juristas, que o juiz não pode alterar as cláusulas do
acordo, porque se o fizesse, na prática, estaria ele próprio celebrando o pacto com o colaborador, o
que a lei de 2013 proíbe197. Outros, no entanto, afirmam que a norma contida no § 8º, do artigo 4º da
lei deve ser interpretada como a possibilidade do juiz ampliar, mas nunca reduzir, a proposta dos
“benefícios penais” concedidos pelo Ministério Público (BEDÊ JÚNIOR, 2016).
Ainda segundo a lei nº 12.850, de 2013, o juiz pode afirmar os termos do acordo homologado
e sua eficácia (§ 11, do art. 4º)198 quando elaborar a sentença judicial, o que corresponde à última
fase do caminho percorrido pelo acordo. Contudo, o texto legal também determina que a
condenação não pode se basear, exclusivamente, nas declarações do colaborador (§ 16, do art.
4º)199.
Acontece que o que verifiquei durante as audiências foi a quase exclusiva prevalência
daquilo que o órgão acusador já havia estabelecido nos acordos que formulara. A única pergunta
recorrente, que não fazia parte do acordo, era se o colaborador havia sofrido alguma espécie de
coação ou constrangimento para celebrar o acordo, o que era sempre negado por ele. Em relação às
demais perguntas, na maioria das vezes, o juiz repetia, com as mesmas palavras (“ao pé da letra”), o
que o representante do Ministério Público Federal afirmava e mesmo quando dirigia uma pergunta ao
colaborador, buscava a confirmação se o que havia indagado era pertinente ao que constava no
acordo, segundo a ótica do representante do Ministério Público Federal. Durante o período em que
assisti estes atos não houve nenhum caso em que o juiz determinou a anulação do acordo, o que
contrariava, assim, a informação acima.
Para garantir ao colaborador que as cláusulas relativas aos “benefícios penais” não seriam
alteradas pelo juiz - no momento de sua homologação -, os operadores passaram a justificar tal

196
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º: (...) § 8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não
atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto (BRASIL, 2013).
197
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º: (...) § 6o O juiz não participará das negociações realizadas entre
as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o
defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou
acusado e seu defensor (BRASIL, 2013).
198
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º: (...) § 11. A sentença apreciará os termos do acordo
homologado e sua eficácia (BRASIL, 2013).
199
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º: (...) § § 16. Nenhuma sentença condenatória será proferida com
fundamento apenas nas declarações de agente colaborador (BRASIL, 2013).

150
medida diretamente ao magistrado, no momento em que apresentavam suas petições encaminhando
os acordos e demais peças de informação. Segundo um dos entrevistados,
- “É necessário esclarecer ao juiz a importância da Colaboração Premiada em
questão para o desvelamento do delito e seus coautores ou membros da organização
criminosa; a relevância das provas de corroboração apresentadas e as formas de
reparação do dano causado para que o juiz possa avaliar a correção dos benefícios
pactuados”.
(MPF8)

Como explica o entrevistado acima, os representantes do Ministério Público esclarecem ao


magistrado a importância (ou necessidade) da Colaboração Premiada para a descoberta do delito e
dos demais membros da organização criminosa apontados pelo colaborador, assim como as provas
por ele apresentadas e que confirmam suas alegações e as possíveis formas de reparar os danos
causados pelos crimes cometidos. Entendi tais “esclarecimentos”, como argumentos empregados para
convencer o juiz acerca da adequação dos “benefícios penais” oferecidos pelo Ministério Público
naquele caso.
Desta forma, segundo este entrevistado, a homologação seria apenas uma formalidade para
ratificar o acordo e que consagraria a imutabilidade das cláusulas ali estabelecidas, confirmando a
prévia escolha do Ministério Público. Assim, para este operador, qualquer atividade judicial em
sentido contrário, não atingiria apenas o acordo em exame, mas colocaria em risco a manutenção do
próprio instituto da Colaboração Premiada, no interior do sistema jurídico brasileiro.
Esta representação acerca da atuação do magistrado foi comum entre os entrevistados, ao
entenderem que a interferência do juiz produziria insegurança jurídica quanto à efetividade das
cláusulas pactuadas, o que levaria os advogados criminalistas a não mais sugerirem aos seus clientes
a celebração do acordo. Tanto que, na perspectiva dos entrevistados, nenhum advogado aceitaria
pactuar, caso previamente viesse a ter ciência do risco de não se confirmarem tais medidas, porque
estes não tolerariam desempenhar um “papel de trouxa”, significando o profissional que é facilmente
enganado, o que também acarretaria a desconfiança (Luhmann; 2005) na proposta do Ministério
Público.
Esta noção também pode ser vista na seguinte declaração:
- “O Judiciário, na nossa visão, tem o papel de verificar a legalidade e a
voluntariedade do acordo. Mas ele não pode ingressar muito no mérito, nas cláusulas
e nos benefícios, muito embora o Supremo Tribunal Federal tenha dado algumas
decisões modulando alguns benefícios. No nosso modo de ver, isso enfraquece o
instituto, porque aquela segurança jurídica que o colaborador busca quando firma o
acordo de colaboração com o Ministério Público é... Ele acaba tendo isso reduzido
quando se vê diante da possibilidade de o Judiciário modular ou restringir aqueles
benefícios que foram conferidos pelo Ministério Público, que é o titular da ação
penal pública. Então, na nossa visão, o Ministério Público, como titular da ação
penal pública, que por disposição legal tem a possibilidade de oferecer, por exemplo,

151
o perdão ou a imunidade, por mais razão ele pode oferecer o regime de cumprimento
mais benéfico, ou uma redução quantitativa da pena que o colaborador vai cumprir.
Isso é uma faculdade dada ao Ministério Público pela lei e só fortalece o instituto. É
um grande “chamarisco” para a colaboração, justamente por ser a maior expressão
da segurança jurídica que o pretenso colaborador almeja”.
(MPF2, sic)

Segundo este entrevistado, para garantir a manutenção do acordo e os “benefícios penais”


prometidos pelos membros do Ministério Público (que os entrevistados traduzem por segurança
jurídica do colaborador), o Judiciário apenas deve avaliar questões ligadas à formalidade (e não ao
mérito ou ao conteúdo do acordo). Vale dizer, restaria ao juiz avaliar somente: se o colaborador
aceitou o acordo voluntariamente (ou seja, se não foi coagido, constrangido, ameaçado, iludido); se
as cláusulas preveem os “benefícios penais” em contrapartida à colaboração; se o colaborador e
Ministério Público cumpriram o que se obrigaram a fazer. As questões de mérito, tais como, a
participação do colaborador no crime e a respectiva quantidade de pena ou do regimento do seu
cumprimento adequadas a tal participação; a possibilidade de indicação de perdão judicial ou o
acolhimento do pedido de não oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, diante da indicação
de imunidade penal para o colaborador. Tais circunstâncias, no entendimento do entrevistado, não
deveriam ser questionadas pelos juízes e tribunais, o que vai contra a tradição do processo penal
brasileiro voltado para a descoberta da “verdade real” pela sentença do juiz.
As declarações dos entrevistados aparentaram que as “questões de mérito” incluíam também
questões relativas aos princípios constitucionais como o da legalidade em matéria penal; da prestação
jurisdicional e da obrigatoriedade da ação penal pelo Ministério Público, por esse motivo, entendi
que, mais uma vez, estas categorias também estavam sendo atualizadas pela interpretação que estes
atores lhes atribuíam, conforme seu “livre convencimento”..
A lei nº 12.850, de 2013 afirma que “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o
perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por
restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e
com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos resultados” que
indica (artigo 4º, caput).
Esta também é a interpretação dada pelo “Manual de Colaboração Premiada”, elaborado
pela ENCCLA (BRASIL, 2014) e que orienta as práticas dos membros do Ministério Público. De
acordo com esta norma.
O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização
do acordo de colaboração, tendo em vista o seu dever de imparcialidade (§ 6.º do art.
4.º).
Todavia, deve obrigatoriamente ter conhecimento da sua existência e exercer
fiscalização sobre a validade, constitucionalidade e legalidade das suas cláusulas.

152
Para isso, o termo de acordo, sempre acompanhado das declarações do colaborador e
de uma cópia das investigações (§ 7.º do art. 4.º), deve ser remetido ao juiz para a
homologação. Além de se tratar de um dever de lealdade trazer o termo do acordo ao
conhecimento do magistrado, é medida de resguardo dos direitos dos próprios
envolvidos, tendo em vista que o juiz, antes mesmo de aferir a eficácia da
colaboração (o que fará nos momentos acima indicados), pode recusar validade e
deixar de homologar a proposta, quando lhe faltarem requisitos formais ou materiais,
conforme abaixo se verá (§ 8.º do art. 4.º).
É possível também que o acordo traga outras espécies de vantagens ao colaborador,
além daquelas previstas no “caput” do artigo 4.º da Lei 12.850/13, desde que
respeitem a Constituição, a lei, os princípios gerais de Direito e desde que não
atentem contra a moral, os bons costumes e a ordem pública.
Note-se que essa atividade homologatória inicial do juiz, tal qual ocorre no exame da
prisão em flagrante, resume-se à verificação do preenchimento dos pressupostos
materiais (cláusulas válidas, legais e que respeitem os princípios gerais de Direito, a
moral, a ordem pública e os bons costumes) e formais (relato da colaboração e seus
possíveis resultados, legitimidade daqueles que participaram do acordo, vontade
livre e informada, declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor, as
assinaturas, a presença de defensor e a especificação das medidas de proteção,
quando for o caso. Este último requisito não é um pressuposto de validade).
Nenhum juízo de valor fará neste momento sobre a extensão e eficácia da
colaboração.
Não atendendo a esses requisitos, caberá ao juiz recusar homologação à proposta.
Entretanto, quando a gravidade do defeito permitir que parte do acordo seja
aproveitada, poderá o juiz homologá-lo parcialmente, extirpando as cláusulas que
não reputar aceitáveis.
Também lhe é permitido adequar a proposta ao caso concreto, observando os
parâmetros do § 1.º do artigo 4.º da Lei 12.850/13, reduzindo o excesso de
onerosidade ou agregando condições que melhor se adéquem à questão.
A decisão de negativa de homologação sempre desafiará recurso tanto pelo
Ministério Público quanto pela defesa do colaborador.
Importante ressaltar que não deve o magistrado homologar propostas que traga
preestabelecido o quanto de redução de pena. De um lado, porque não incumbindo
ao Ministério Público ou ao delegado de polícia proferir sentença, não podem
prometer algo que não podem cumprir; de outro porque, acaso tal cláusula fosse
homologada nesse momento, tal proceder implicaria duplo julgamento antecipado do
mérito da ação penal: a) o juízo de condenação e b) o juízo acerca da presença dos
requisitos legais para a aplicação da causa de diminuição da pena.
O instituto da colaboração não afasta o princípio do devido processo legal na ação
penal. Ainda que possam advir reflexos favoráveis à situação do colaborador,
conforme sua disposição em colaborar, a aplicação do instituto, que decorre de
sentença condenatória, impõe obediência ao devido processo legal, de cognição
exauriente, própria das sentenças de mérito proferidas ao final da instrução. Isso
porque o colaborador pode, como em qualquer outra demanda criminal, ser
absolvido (CPP, artigo 386), ter a pena reduzida em quantum inferior àquele
constante no acordo, seja esse pré-processual ou não.
Ademais, a eficácia da colaboração é que ditará o quanto poderá se reduzir de pena,
eficácia essa que não pode ser desde logo constatada. As informações fornecidas
podem até mesmo ser consideradas insuficientes para as finalidades dos incisos do
“caput” do art. 4.º da Lei 12.850/13, o que impediria o reconhecimento do instituto.
Além disso, devido ao valor relativo da confissão (e conforme § 16 do art. 4.º da Lei
12.850/13, que impede condenação com fundamento apenas nas declarações do
agente colaborador, tanto em relação a terceiros quanto em relação a ele próprio), o
colaborador pode vir a ser absolvido, do que decorre a necessidade de que entre a

153
confissão/colaboração e a aplicação da causa de diminuição da pena ou do perdão
judicial, na sentença condenatória, desenvolva-se o devido processo legal.
Por essas razões não devem ser homologados acordos que traga predefinido o quanto
de redução de pena a ser aplicado.
Também não devem ser homologadas propostas que tragam, por exemplo, local de
prisão preventiva ou de cumprimento de pena, promessas de celas especiais
(ressalvado o que consta do art. 5.º, inciso VI, da Lei 12.850/13) ou outras benesses
cujo atendimento dependa de outro órgão ou autoridade, em momento presente ou
futuro. Ninguém pode prometer e o juiz não pode homologar aquilo que não se
saberá se poderá ser efetivado.
Recomenda-se que os termos do acordo fiquem limitados às possibilidades
mencionadas no “caput” do art. 1.º da Lei 12.850/13 (BRASIL, 2014).

Portanto, de acordo com esta normativa, no caso de estabelecimento prévio da quantidade de


pena reduzida ou a definição do local da prisão preventiva ou de cumprimento de pena em celas
especiais ou outras benesses, cujo atendimento dependa de outro órgão ou atividade, registrados no
acordo de Colaboração Premiada, o juiz está autorizado a deixar de homologá-lo. Esta norma
justifica que, por não terem competência para proferir a sentença, nem o Ministério Público, nem o
delegado de polícia “podem prometer algo que não podem cumprir”. Além disso, uma cláusula com
tal previsão, quando é homologada na fase que antecede a instauração do processo judicial, implica
em duplo julgamento antecipado do mérito da ação penal: a) o juízo de condenação e b) o juízo
acerca da presença dos requisitos legais para a aplicação da causa de diminuição da pena. Somente
depois de observada a eficácia da colaboração, já na fase da promoção da sentença, é que pode
determinar o quando de redução de pena o juiz deverá aplicar.
O que também vale ressaltar, neste caso, é que em relação à oferta de penas ou regimes de
cumprimento de penas não previstos em lei, tal atividade é considerada estranha à competência do
Ministério Público até mesmo pela normativa que orienta as práticas dos operadores, o qual
expressamente declara que “Ninguém pode prometer e o juiz não pode homologar aquilo que não se
saberá se poderá ser efetivado”, como é visto no item relativo aos “benefícios penais”.
Esta orientação poderia ser interpretada como um limite imposto pelo acordo aos efeitos do
julgamento judicial, mas o que se percebe é que, mais uma vez, aqui se pretende preservar o livre
convencimento do juiz, ainda que não explícito. Diante de tais recomendações, percebi que havia
uma tensão no campo jurídico (BOURDIEU, 2007a), já que não obstante esta orientação – que
pretendia manter a lógica existente no sistema e representada pela hegemonia do juiz em dizer o
direito -, os entrevistados estavam atuando conforme suas próprias convicções, evidenciando a tensão
entre as duas instituições pela disputa de poder. Assim, quando ouvi pela primeira vez a afirmação
sobre a possibilidade/necessidade de limitação do poder judicial quanto à apreciação das cláusulas do
acordo de Colaboração Premiada, lembrei-me das metas contidas no Mapa Estratégico elaborado

154
pelo Ministério Público, e já mencionado neste texto, onde, dentre elas, há a proposta de se buscar
maior protagonismo da instituição.
A prática antecipatória do juízo de reprovação do crime, representada pela precocidade da
punição - já que realizada antes mesmo de instaurado o processo judicial -, tem sido bastante comum
entre os operadores jurídicos. Apesar de orientados pelo princípio do contraditório, que estabelece a
possibilidade de as provas e as teses das partes litigantes serem apresentadas e refutadas na fase
judicial200 – fase que o campo jurídico considera como efetivamente adequada para a produção das
provas -, alguns operadores vêm atualizando este princípio, antecipando a aplicação da pena, antes do
processo e, portanto, antes de serem apreciadas as provas sobre a autoria e a culpa do criminoso.
Assim foi visto no exame da aplicação da transação penal, já referido (ALMEIDA, 2014).
Outros exemplos dessa prática são também as pesquisas de campo de Abreu (2019) e
Coelho Gomes (2019), versando sobre as audiências de custódia no Rio de Janeiro. Inicialmente,
Abreu (2019), deixa claro que os operadores confundem o “mérito da prisão” – que é verificado no
arraingment dos EUA -, com o “mérito das provas”, a ser avaliado na sentença. Isto porque o
Delegado, que assina o Auto de prisão em flagrante (a que se quer assemelhar esse acordo de
Colaboração Premiada), já examinou a legalidade desse ato, elaborado no cartório policial e dotado
de fé pública. Como afirma o autor, a audiência de custódia funciona, na prática, como um
dispositivo para que os operadores façam um juízo sobre as pessoas custodiadas e não sobre a prisão
e o crime que elas supostamente tenham cometido. Este ato, que poderia se constituir na
oportunidade para uma revisão das condições da prisão e uma supervisão do trabalho policial, tal
como foi idealizado, transforma-se em atividade que reforça os preconceitos contra determinados
segmentos da população na mesma proporção, possibilitando a ocultação de eventuais abusos
cometidos por estes agentes do Estado. Assim como os colaboradores e delatados, os custodiados
estão sob constante suspeição. Ali também a verdade jurídica é construída sem a participação do
custodiado, cujo direito de se manifestar é visto como uma “reclamação” ou um “desabafo”. Vale
dizer, a oralidade é vista como algo que atrapalha a audiência, reforçando a conotação negativa dada
pelos operadores a esta participação, tal como Baptista (2007) chamou a atenção em sua pesquisa
sobre o princípio da oralidade no processo civil brasileiro.

200
Esta orientação, contida em doutrina jurídica que compõe os cursos de graduação em direito e os cursos preparatórios
para ingresso nas carreiras jurídicas, é assim apresentada por Badaró (2016, p. 222): “Dentre as atividades necessárias à
tutela dos interesses postulados pelas partes, sobressai a probatória, pois a prova é indiscutivelmente o momento central
do processo, no qual são reconstituídos os fatos que dão suporte às pretensões deduzidas. Assim, o direito à prova
constitui aspecto fundamental do contraditório, pois sua inobservância representa negação da própria ação e da defesa.
Para se dar cumprimento à garantia constitucional é necessário que se estabeleça um procedimento probatório que se
desenvolva em contraditório de partes, perante o juiz. Num processo de partes, o contraditório probatório deve
constituir a única fonte de cognição para a jurisdição, não podendo haver outra fonte de conhecimento para a decisão”.
No mesmo sentido, Grinover (1996, p. 54).

155
Coelho Gomes (2019), por sua vez, complementa estas análises, afirmando que o princípio
do contraditório, visto como um procedimento que, ao menos em tese, permitiria uma aferição mais
aprimorada acerca da legalidade das prisões preventivas, não passa de mera formalidade. Vale dizer,
espera-se que com o contraditório sejam realizados critérios de melhor averiguação da prisão, mas,
na prática, a decisão final não se fundamenta nas argumentações orais das partes. A apresentação das
teses das partes litigantes serve, tão-somente, para cumprir uma etapa do procedimento, já que a
decisão final acerca da legalidade/ilegalidade daquela pena se baseia, exclusivamente, no livre
convencimento do julgador, o que também reforça o que Mendes (2011) afirmou. Voltarei a examinar
esta categoria em seguida.
O clamor público pela prisão após a condenação na segunda instância de julgamento para os
que ocupam o “andar de cima” da sociedade brasileira – expressão empregada por um dos
entrevistados para se referir à macrocriminalidade - e a naturalização da prisão preventiva maciça em
relação aos que estão no “andar de baixo” na audiência de custódia antes da sentença, também são
exemplos de que não é só o Ministério Público, mas todo o aparato judicial que age explicitamente
entortado.
No entanto, para justificar seu livre convencimento e a arbitrariedade de sua prática, no
trecho da entrevista acima transcrito, o entrevistado aciona uma ideia reproduzida pelo campo,
segundo a qual o Ministério Público, por força de determinação constitucional, possui competência
exclusiva para promover a ação penal pública, ou como afirma o campo jurídico, é dominus litis da
ação penal pública. Significa que somente ele tem inciativa da ação penal pública e isto lhe daria
autorização para, inclusive, reduzir a quantidade da pena prevista em lei para o colaborador cumprir,
ou oferecer um regime de cumprimento mais benéfico, mesmo que não previstos em lei.
Assim, segundo este entendimento, se a lei nº 12.850, de 2013 concedeu ao órgão o poder de
oferecer, por exemplo, o perdão judicial ou a imunidade (em decorrência do não oferecimento da
denúncia), que constituem efeitos penais muito mais amplos do que a simples redução da pena ou a
mudança de regime de cumprimento de pena. O que o entrevistado está defendendo é a aplicação de
uma construção hermenêutica, denominada pela doutrina de teoria dos poderes implícitos. Em linhas
gerais, trata-se de uma noção empregada no sistema jurídico norte-americano, “implied powers”,
criada a partir de 1819, estabelecendo que toda atribuição de competência jurisdicional contém
implícitos os poderes inerentes e necessários para realizá-la. Em linhas gerais, trata-se de orientação
consagrada pelo campo jurídico brasileiro (RANGEL, 2003, pp. 177-183; PADILHA, 2014, p. 169-
170), que também acolhe a ideia segundo a qual na interpretação das regras jurídicas gerais contidas
na Constituição Federal, o intérprete deve procurar saber, de antemão, qual o interesse que seu texto

156
destina-se a proteger (BRASIL, 1995)201. Esta teoria será acionada pelos operadores ainda em outras
oportunidades, quando voltarei a analisa-la.
O que o entrevistado está afirmando é que a competência funcional do juiz - que no processo
penal é quem tem legitimidade para aplicar a pena e definir o regime do seu cumprimento, como a
própria normativa do órgão (Manual de Colaboração Premiada) acima reproduzida informa -, pode
ser flexibilizada. Assim, ao negociar com o colaborador, o Ministério Público assume o
protagonismo dessa negociação, o que significa completa distinção com a plea bargaining, na qual a
relação entre o órgão de acusação e o investigado é simétrica, o acordo resulta do consenso entre eles
sobre o tipo penal, e este acordo é realizado diante de um juiz que é o guardião da observância da
igualdade jurídica entre os cidadãos.
É claro que em um sistema inquisitorial como o nosso, a incorporação de um instituto
negocial tenderia a causar conflitos entre as instituições jurídicas. Nas entrevistas referidas, o que
os entrevistados defendem é que o juiz tem competência para homologar o acordo, confirmando as
cláusulas que estejam de acordo com os preceitos legais tão somente. Sendo o acordo de
Colaboração Premiada um negócio jurídico entre as partes, o magistrado teria que se submeter ao
que foi pactuado entre elas, o que significaria que este ator jurídico desempenharia papel
secundário neste cenário. Esta situação tem gerado muita discussão no campo, como o próprio
entrevistado afirmou.
Aliás, esse tema foi especialmente debatido pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião
da análise do acordo de Colaboração Premiada realizado entre o Ministério Público e os donos da
empresa JBS Friboi 202, os irmãos Joesley e Wesley Batista. Neste caso, o órgão de acusação
ofereceu imunidade penal aos colaboradores, isto é, se comprometeu a não processá-los
criminalmente, desde que confessassem suas participações em diversos crimes investigados pela
Operação Carne Fraca, que apontou a prática de corrupção por fiscais do Ministério da Agricultura
Pecuária e Abastecimento (MAPA), que se associaram para receberem propinas destes empresários.
Em troca, estes funcionários públicos emitiam certificados sanitários, liberando de qualquer tipo de
fiscalização as mercadorias produzidas pelos empresários. Entre as práticas criminosas destes atores

201
Este autor ressalta que, apesar de na origem da aplicação desse instituto no Brasil, seu sentido era o relativo ao
reconhecimento de poderes não expressamente especificados do ente federal em relação às demais unidades federativas,
mas aos poucos foi também utilizada “para admitir que qualquer norma constitucional que atribui a um órgão a
realização de um dado fim, implicitamente lhe permite o uso dos meios necessários e hábeis a atingir tal desiderato,
salvo proibição expressa da própria Lei Magna” (BRASIL, idem, p. 77).
202
A JBS S.A. é uma empresa brasileira, fundada em 1953 e com sede em Goiás. É uma das maiores indústrias de
alimentos do mundo, operando no processamento de carnes bovina, suína, ovina e de frango e no processamento de
couros. Atua, ainda, em setores relacionados com biodiesel, colágeno, sabonetes, glicerina e envoltórios para
embutidos, bem como possui negócios de gestão de resíduos, embalagens metálicas e transportes, que apoiam a sua
operação, conforme informado em https://jbs.com.br/sobre/.

157
foram indicadas a venda de carne bovina moída misturada com papelão, além da comercialização de
seus produtos com prazo de consumo ultrapassado. Assim que foi firmado o acordo de Colaboração
Premiada com estes empresários, houve muitas críticas da opinião pública quanto aos benefícios
concedidos pelo membro do Ministério Público, neste caso, o Procurador-Geral da República
(D’AGOSTINO, 2017).
Surgiram, então, de um lado, argumentos que defendiam a possibilidade de o juiz rever
ou se envolver nos termos do acordo celebrado entre as partes e, de outro, os que entendiam q ue a
intervenção dos juízes, nesses casos, acarretaria a insegurança jurídica do acordo celebrado entre
as partes, já que mesmo depois de firmado, poderia ser modificado pelos magistrados 203.
Assim, em meados de 2017, ao julgar a questão de ordem suscitada pelo Ministro Edson
Fachin (Petição nº 7.074/DF)204, o Plenário do Supremo fixou o entendimento segundo o qual não
caberia ao juízo (singular ou colegiado) interferir nos termos do acordo, mas, tão somente,
verificar a sua voluntariedade, legalidade, regularidade e seu cumprimento por parte do
colaborador. Interpretando o disposto no art. 4º, § 6º, da lei 12.850/13, este tribunal estabeleceu o
impedimento do magistrado em tomar parte das negociações do acordo de Colaboração
Premiada, tanto no tocante aos deveres do colaborador, quanto no que se referia aos “benefícios
penais” oferecidos pelas autoridades celebrantes (Ministério Público ou Delegado de Polícia). Sua
atuação, portanto, ficaria limitada à análise da voluntariedade do ato, consubstanciada na
verificação de ausência de constrangimento sobre o colaborador para a celebração do acordo; da
regularidade do acordo, no que se refere à observância dos aspectos formais e procedimentais da
Colaboração Premiada, previstos na Lei nº 12.850, de 2013; na legalidade, no que tange à
observância do ordenamento jurídico, ou seja, se a celebração do acordo não ofendera nenhum
dispositivo legal, supralegal ou constitucional205.
De acordo com essa decisão, no ato de homologação do acordo, o magistrado não pode
emitir nenhum juízo de valor a respeito das declarações eventualmente prestadas pelo colaborador,
tampouco atribuir idoneidade a seus depoimentos. Por não ser parte no processo, seria igualmente

203
Nesse sentido, BOTTINI (2012) afirma que “Outra questão controversa é a participação ativa do juiz na celebração do
acordo. Há magistrados que intermediam as negociações entre Ministério Público e réu para a delação premiada, e
outros que preferem o distanciamento, reservando-se a função de avaliar a extensão da colaboração, sua utilidade e
eficácia, para decidir a amplitude do benefício. Também as leis silenciam sobre esse tema. Nos parece que, no sistema
acusatório (ou acusatório misto), que se pretende aos poucos implementar no ordenamento pátrio, a participação do
magistrado na colheita da prova afeta sua imparcialidade, de forma que seu envolvimento no acordo de delação é
desaconselhável.”
204
Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Pet7074VotoAMQO1.pdf.
205
De acordo com essa decisão o juiz não poderia “invadir a legítima escolha feita consensualmente, entre as opções legal
e moralmente reservadas para a realização do acordo de colaboração, de maneira a, simplesmente, alterar a opção
licitamente realizada, sob pena de atentar contra a ratio legal e o sistema penal acusatório consagrado
constitucionalmente” (BRASIL, 2017).

158
inadmissível que o juiz pudesse celebrar acordo com o colaborador. Tal limitação teria como
finalidade preservar a imparcialidade do magistrado, já que ele não se vincularia às tratativas e,
assim, poderia exercer um melhor controle quando da homologação do ato. Neste caso, a atuação do
juiz estaria circunscrita a: no momento da homologação ou rejeição do acordo, à analise da
legalidade, regularidade e voluntariedade desse pacto e, no segundo momento (da sentença judicial),
verificar, a partir das informações e provas apresentadas pelo colaborador, se foram alcançados os
resultados constantes do acordo, bem como aqueles elencados no artigo 4º, da Lei n. 12.850/2013.
Contudo, como as decisões da corte suprema brasileira, no que tange aos seus fundamentos,
não são consensuais nos limites da maioria ou unanimidade, como De Seta (2015, p. 163) já afirmou,
a questão suscitada pode ser novamente levantada e, inclusive, julgada de forma diametralmente
oposta ao que foi decidido neste acordo dos irmãos Joesley e Wesley Batista.
Para concluir este item, retorno à questão relativa à prova, já que a partir das declarações dos
entrevistados, na fase das tratativas com o colaborador e seu advogado, estes operadores verificam o
que os colaboradores efetivamente têm para lhes oferecer (para a investigação que realizam), em
termos de provas e quais serão os “benefícios penais” que poderão/deverão ser oferecidos, em
contrapartida, por estes atores. Ora, não é demais ressaltar que os entrevistados empregam a categoria
prova quando se referem aos dados, documentos ou informações que o colaborador está
apresentando. Portanto, estão afirmando que há produção de provas durante a fase preliminar do
procedimento, momento pré-processual que apenas conta com a participação do colaborador e seu
advogado, de um lado e, do outro, do Ministério Público. Logo, além da ausência do juiz, tais provas
são produzidas sem a participação do delatado ou de seu defensor. A participação deste ator nestas
tratativas é vista como prejudicial à investigação, já que o campo jurídico entende que o
conhecimento dessas informações levaria o delatado a frustrar (ou tentar frustrar) a investigação.
Vale lembrar que os elementos probatórios levantados e produzidos nessa fase, serão
utilizados na denúncia do Ministério Público e ajudarão a formar a convicção do juiz. Ao receberem
a confirmação de sua validade pelo Ministério Público, que inclusive os emprega em sua peça de
acusação, esses elementos dificilmente serão desconstituídos quando chegarem à fase judicial. Esta
circunstância remete às críticas que Kant de Lima (1995, 1999, 2004, 2009/2-2010) já fez acerca do
inquérito policial. Os elementos probatórios colhidos nesta fase preliminar por agentes do Estado -
cujos atos são dotados de fé pública, isto é, possuem credibilidade porque praticados por quem
representa o Estado -, contaminam todo o processo judicial.

159
III. 5. QUAIS SÃO AS CARACTERÍSTICAS DO ACORDO DE COLABORAÇÃO
PREMIADA?
III. 5.1. Forma escrita
A forma e o conteúdo dos acordos de Colaboração Premiada, segundo os entrevistados,
apresentavam semelhanças com os contratos de prestação de serviço, onde são fixadas cláusulas
relativas ao que cada parte se obriga a executar, bem como as causas de rescisão, entre outros
aspectos206.
Todavia, vale destacar que o “negócio” ajustado no bojo do acordo de Colaboração Premiada
versa sempre sobre questões relacionadas à lei penal e à lei processual penal, que diferem das
relativas às leis trabalhista ou civil, cujas cláusulas, estipulam a prestação de serviço, em troca de
uma remuneração ou uma retribuição. A forma escrita da Colaboração Premiada está prevista no
artigo 6º, da Lei 12.850, de 2013.
Além da formalidade do acordo, o seu processamento pelos operadores também merece
destaque, como pode ser verificado na seguinte declaração:

- “O processo é todo eletrônico, a não ser que você queira imprimi-lo. Somente o
Termo de Colaboração Premiada é escrito. A única coisa que a gente assina é isso.
Assina mesmo! O resto é assinatura digital. Com a Colaboração Premiada, os
colegas de Curitiba – muitos com formação nos EUA e o instituto da plea
bargaining – passaram a formalizar um contrato e nesse contrato já ficavam ali
previstas as penas ou os benefícios que o colaborador faria jus. Os processos da
Operação Lava-Jato são todos eletrônicos. As investigações são todas eletrônicas. A
gente não produz papel. Todos os documentos são digitalizados. Obtidos diretamente
nas fontes. Então, hoje os órgãos têm uma interlocução muito forte. Os convênios
são feitos, então (apontando para uma pilha de processos sobre sua mesa), na época
em que esses aqui foram denunciados, para saber se ele era sócio de alguém, a gente
expedia um ofício para a JUCERJ (Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro),
que demorava semanas para responder. Hoje, você entra no cadastro da JUCERJ,
diretamente, e já pega o CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) pelo CPF
(Cadastro de Pessoa Física) da pessoa e você descobre todos os vínculos societários
dela, assim, em minutos207. Assim como a quebra do sigilo telefônico ou fiscal.
Antes se recebia volumes e volumes de ligações telefônicas e era impossível
processar aquilo logo. Mandava para a Polícia Federal, que ficava anos e anos
fazendo perícia para gerar um laudo que dissesse com quem a pessoa conversou.
Hoje se tem o Sinttel208, pelo qual só é necessário jogar-se o número e ele faz o

206
Vale lembrar que os acordos de Colaboração Premiada observados nesta pesquisa foram colhidos dentre os que a
mídia nacional amplamente divulgou, especialmente os realizados no bojo das Operações Ponto Final e Cadeia Velha,
devido ao recorte desta pesquisa.
207
A lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613, de 1998, com as alterações introduzidas pela Lei nº 12.683, de 2012)
estabelece em seu artigo 17-B que tanto a Autoridade Policial quanto o membro do Ministério Público podem dirigir-se
diretamente às instituições (p. ex. companhia telefônica), requisitando dados cadastrais do investigado (p. ex.,
endereço). Antes dessa lei, estes órgãos exigiam a apresentação da respectiva ordem judicial nesse sentido.
208
De acordo com o site oficial do Ministério Público Federal, o “Sittel - Sistema de Investigação de Registros
Telefônicos e Telemáticos – desenvolvido pela Secretaria de Pesquisa e Análise da Procuradoria Geral da República -
SPEA/PGR, “é um programa computacional usado para coletar, processar e analisar registros de cadastros e chamadas
telefônicas e telemáticas pretéritas, mediante ordem judicial, que permite, dentre outras atividades, receber, pela

160
cruzamento e já te dá todas as ligações que a pessoa fez. No Simba209, que é um
banco de dados bancários, a mesma coisa. Muito mais rápido e eficaz. Realmente, a
tecnologia... Ela veio... Embora tenha vindo muitas vezes para auxiliar o crime,
também veio para reprimir, né? Ajuda muito. Os colegas da força-tarefa mais novos
do que eu dominam esses sistemas... Esses garotos novos aí... Eu sou considerado da
velha guarda. Sou um dos mais antigos. Eu peguei a época da máquina de escrever...
Máquina de escrever, manual mesmo. Eu peguei na Defensoria Pública em algumas
comarcas do interior que tinham. Mas isso foi só no inicio, em 1994. O processo
hoje é todo eletrônico. A não ser que haja necessidade de imprimi-lo. Somente o
termo de Colaboração Premiada é escrito. Esse termo é digitalizado e o processo é
inicializado por ele, através do e-Proc ou do sistema Apolo210. Com esse termo
digitalizado no processo eletrônico. Esse documento fica guardado durante alguns
anos, somente os originais. Mas ele não gera um calhamaço de papeis e arquivos,
não. Nós temos poucos documentos que são guardados. As provas que os
colaboradores fazem já são entregues digitalizadas também. Existem terabytes211 e
terabytes de informações”.
(MPF3)

Como afirma este entrevistado, o acordo de Colaboração Premiada foi traçado a partir da
experiência dos operadores de Curitiba, que tiveram contato com o modelo da plea bargaining
estadunidense, sugerindo que a construção do instituto brasileiro, com cláusulas para os pactuantes,
teria como ponto de origem a prática estrangeira, ou que por ela teria sido influenciado. Contudo,
como afirmado ao longo deste texto, a identidade entre os institutos constitui ilusão de ótica ou de
interpretação dos operadores brasileiros.
O entrevistado também emprega a categoria processo, para se referir ao conjunto de
documentos produzidos na fase inicial da investigação. Ainda que a doutrina jurídica estabeleça
distinção entre procedimento e processo, destinando esta última categoria à representação dos atos

internet, os cadastros e os extratos telefônicos dos terminais-alvos, mediante autorização judicial de afastamento de
sigilos telefônicos e telemáticos de pessoas físicas e jurídicas Investigadas. A adoção desta ferramenta é crescente no
Ministério Público Federal e já conta com 528 casos cadastrados, totalizando 1,7 bilhões de registros, conforme
disponível em http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/projetos-do-mpf-sao-reconhecidos-em-tres-categorias-do-premio-
cnmp.
209
O Simba - Sistema de Investigações Bancárias - é um software gratuito (livre) desenvolvido pela Secretaria de
Pesquisa e Análise da Procuradoria Geral da República - SPEA/PGR que permite o tráfego, pela Internet, de dados
bancários entre instituições financeiras e os órgãos públicos, mediante prévia autorização judicial. Este sistema surgiu a
partir da experiência da Operação Mensalão, em 2005, onde foram analisadas mais de 800 contas bancárias, conforme
divulgado em http://www.tst.jus.br/documents/23101476/e7e7dd40-c0db-46b7-91b9-9bc0c13d647f.
210
O e-Proc substituiu o sistema processual anterior, denominado “Apolo” e foi desenvolvido pelo Tribunal Regional
Federal da 4ª Região e apresenta, dentre outras, as seguintes vantagens: economia para a gestão pública e
sustentabilidade, pois dispensa o uso de papel e insumos para a impressão; disponibilidade do sistema online, 24 horas
por dia, a partir de qualquer local com acesso à Internet; sistema mais leve para carregar nas estações de trabalho, em
função de ter sido desenvolvido numa plataforma da Internet; Sistema adaptável às novas tecnologias e demandas.
Conforme divulgado em http://portaleproc.trf2.jus.br/.
211
A unidade de medida denominada byte e seus múltiplos, opera como contadores de um volume de dados em
um computador ou sistema computacional. Um terabyte (TB) equivale a 1.024 gigabytes (GB). Um gigabyte equivale,
segundo o Sistema Internacional de Unidades - S.I., a um bilhão de bytes, ou seja, 1.000.000.000 bytes, ou ainda
109 bytes, como informado em https://www.infowester.com/bit.php.

161
produzidos e reunidos na fase judicial, geralmente os operadores empregam a expressão processo
também para se referirem a esta fase inicial ou investigatória.
Conforme a declaração do entrevistado acima, apenas o Termo (ou Acordo) de Colaboração
Premiada é produzido por escrito e registrado em papel212. Todos os demais documentos são
digitalizados e arquivados em meio digital, que são registrados no sistema de processo eletrônico.
O entrevistado ainda afirma que, em virtude da prática dos operadores da Lava-Jato de
Curitiba, que serviu de modelo para os operadores cariocas, os acordos passaram a ser elaborados sob
a forma de um contrato, o que sugeria a previsão de cláusulas contendo as obrigações (ou
contraprestações) que as partes assumiriam realizar213 e a correspondente sanção, em caso do seu
descumprimento.
Mais uma vez, a valorização da prática escrita indica a tendência de valorização da forma
cartorial pela nossa tradição, representada pelo inquérito policial, documento público produzido por
um cartório estatal, o cartório da polícia. O que causa desconforto na fala deste entrevistado é que o
Ministério Público não tem em sua estrutura um cartório que confira fé pública às investigações por
eles produzidas. Ressalto que a polícia federal de Curitiba, que integra a Operação Lava-Jato, conta
com uma estrutura cartorial, o que, em certa medida, ameniza este desconforto.
Esta circunstância lembra o que Miranda (2000, p. 60) afirmou quando pesquisou os
cartórios brasileiros. Segundo a autora, ainda que o cartório seja visto como uma instituição voltada
ao atendimento público - o que poderia supor que seria garantido a todos o direito ao acesso amplo às
informações armazenadas -, este acesso é limitado e se modifica conforme critérios implícitos às
práticas de funcionamento da instituição. Assim, tais práticas alteram o caráter impessoal das regras
públicas, introduzindo elementos “personalistas e particularizantes” ao funcionamento do serviço. O
saber cartorial desenvolvido nestes ambientes está vinculado à própria circulação da informação que
não depende, apenas, da técnica de armazenamento ou do modo como se organizam os dados, mas
sim, das tradições culturais envolvidas. Significa afirmar que nem mesmo a informatização dos dados
alteraria esta lógica, já que para isso seria necessário que tais práticas, personalistas e
particularizantes, fossem explicitadas e discutidas. De acordo com a autora, a lógica do sistema
possibilita, assim, que o conhecimento fique detido nas mãos das pessoas, de tal forma que sua
circulação dependa sempre da “boa vontade” de quem o detém. De modo que a informação só entra
212
A lei nº 12.850, de 2013 estabelece em seu artigo 6º a forma escrita da Colaboração Premiada, quando afirma que:
“Art. 6º O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter: I - o relato da colaboração e
seus possíveis resultados; II - as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia; III - a
declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; IV - as assinaturas do representante do Ministério Público ou
do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor; V - a especificação das medidas de proteção ao colaborador e
à sua família, quando necessário” (BRASIL, 2013).
213
Um exemplo desse Termo de Colaboração Premiada pode ser visto em
https://static.poder360.com.br/2017/10/Termo-de-Acordo-Lu%CC%81cio-Funaro.pdf

162
no arquivo do computador se o funcionário quiser, já que, como lhe disse um entrevistado: “nem tudo
pode ser digitado senão todo mundo vai ter acesso” (MIRANDA, idem, p. 71).
Também como Miranda (2001, pp. 99-101) vai afirmar em outro momento, o documento
escrito é, por essência, oposto a tudo que é secreto, porém conforme o modo pelo qual as sociedades
controlam o acesso à escrita, esta também pode fortalecer a existência do segredo. É isso que se
verifica na sociedade brasileira onde o domínio da palavra escrita atua como um patrimônio privado,
e quem a possui assegura uma gama de conhecimentos, que lhe conferem autoridade. Assim, o
segredo possui um duplo caráter: é uma forma de controle social, pois dá poder a quem o possui, e,
ao mesmo tempo, representa a possibilidade de mudança, já que, ao ser revelado, cria novas relações
de poder e conhecimento.
Miranda (2001, pp. 99-101) também lembra que o segredo é uma forma legítima de
produção de poder, que na sociedade brasileira tem como referência as instituições públicas que
atuam com informações (cartórios, arquivos, universidades, repartições burocráticas). Trata-se de
atributo que gera exclusão e desigualdade, na medida em que enquanto algumas pessoas têm acesso a
todas as informações, outras não o têm e buscam meios de obtê-lo, o que nem sempre é conseguido.
A autora lembra que a existência do segredo serve para mostrar o modo pelo qual a informação é
compartilhada em um contexto e é restrita a outros, explicitando, assim, as diferenças nos tipos de
relações sociais e expondo quem são “os que sabem” e quem são “os outros”. Significa afirmar que,
em termos sociológicos, a existência do segredo reside na capacidade ou inclinação do sujeito para
guardá-lo, ou na sua resistência frente à tentação de traí-lo. A revelação do segredo torna vulnerável
o conhecimento do sujeito, que pode, por este motivo, ser passível de manipulação. A estratificação
dos que podem, ou não, ter acesso à informação (o segredo) expõe a mentira como o mecanismo
utilizado para preservação de uma possível revelação. Assim, a mentira seria uma forma mais
sofisticada do segredo, pois envolve a sua sonegação e a substituição por uma outra informação
(Schepelle, 1988). A autora também ressalta que o dilema do segredo é que ele para ter sentido deve
ser revelado, e a sua legitimidade (e por extensão de uma mentira) deve ser medida pela reação que o
seu desvendamento pode provocar214.

214
Ao realizar pesquisa de campo em arquivos públicos do Rio de Janeiro, a autora revelou que apesar de ser considerada
uma instituição pública e que deveria garantir plenamente o direito de acesso ao seu acervo, o arquivo público, no
entanto, tinha acesso limitado e era modificado por critérios implícitos às práticas de funcionamento da instituição, que
alteravam o caráter impessoal das regras públicas, introduzindo elementos personalistas e particularizantes ao seu
funcionamento. De acordo com a autora, “Consequentemente, a convivência desses códigos paralelos, ambos
socialmente legítimos, modificava o papel do Arquivo, transformando-o no local da cristalização do segredo, e não da
divulgação da informação” (MIRANDA, 2004, p. 124).

163
III. 5.2. O Sigilo
Durante a revisão bibliográfica verifiquei que a imposição do sigilo ao procedimento dos
acordos de Colaboração Premiada constitui sua principal característica, o que o assemelha aos
procedimentos de investigação criminal, que datam das práticas do Tribunal do Santo Ofício, na
Idade Média.
Significa que nem mesmo o projeto de redemocratização do país, instalado a partir do fim da
ditadura civil-militar, conseguiu produzir alterações relevantes nas tradições processuais, nas
estruturas institucionais e nos sistemas de pensamento que orientam a nossa Justiça Criminal. Resulta
dessa circunstância a permanência de uma tradição inquisitorial que tem fundamento legal e orienta
todos os atos administrativos e processuais, em todas as instâncias do Judiciário.
O sigilo, principal aspecto dos procedimentos inquisitoriais (FOUCAULT, 2004215), é
legalmente imposto às investigações preliminares realizadas pelo Estado (Inquérito Policial das
Delegacias Policiais ou procedimento investigativo criminal do Ministério Público), justificando-se
sua aplicação como forma de proteger tanto “a integridade moral do investigado”216, quanto o
sucesso da investigação.
Apesar de considerar como regra geral a publicidade dos atos processuais, o campo jurídico
brasileiro não estranha a permanência de institutos e práticas da tradição inquisitorial e apenas
distingue o sigilo do segredo, afirmando que no sigilo de justiça apenas o Ministério Público, o
magistrado e algum servidor autorizado poderão ter acesso enquanto perdurar o sigilo. Já no segredo
de justiça, além daqueles atores, as partes e seus advogados também podem ter acesso aos dados
processuais.
O sigilo é extremamente valorizado pelos operadores jurídicos brasileiros. Este atributo é
considerado primordial para proteger e assegurar o sucesso das investigações, o que significa também
sua naturalização. Sendo assim, ele nos remete à forte tradição inquisitorial ainda vivamente presente
no processo judicial brasileiro, uma vez que o sigilo é a principal característica que distingue o
processo inquisitorial do processo acusatorial (LIMA, 1999).
No entanto, de acordo com os entrevistados,

215
Foucault (2004, p. 36), ao versar sobre a relação entre o saber e o poder, afirma que no ‘saber inquisitorial’
“estabelecer a verdade para os juízes era um direito absoluto e um poder divino”. Segundo ele, o Santo Ofício atuou
ancorado principalmente no sigilo dos procedimentos e nas confissões em público.
216
Kant de Lima (2013, p. 556) esclarece que o segredo do processo institucional de administração de conflitos associado
à proteção do “bom nome”, ou seja, da honra de membros da sociedade consiste em regra do direito canônico (Código
Canônico, cânone 1.717, § 2), portanto, perpetuada entre nós. Além disso, o autor adverte que “o conceito de honra se
refere a uma concepção estamental da estrutura social, na qual a desigualdade jurídica é explícita, uma vez que a honra
distribui-se desigualmente sobre seus membros, diferentemente do conceito de dignidade, que se aplica a todos os
cidadãos de maneira uniforme” (KANT DE LIMA, ibidem).

164
- “O sigilo do acordo de Colaboração Premiada segue até o oferecimento da
denúncia. No cartório judicial ele recebe um número, mas sem a indicação do nome
das partes envolvidas. Sem acesso às partes. Sem acesso às partes217. Depois de
oferecida a denúncia é que esse sigilo é levantado e mesmo assim, só em relação ao
anexo correspondente ao crime que envolve o colaborador e que tenha relação com a
denúncia”.
(MPF3)

- “Uma das características da Colaboração Premiada é o sigilo. E o sucesso da


Colaboração Premiada está associado a esse sigilo. Apesar de o Inquérito ter
idêntica característica, já há súmula do Supremo Tribunal Federal no sentido de que
se deve garantir ao advogado, a qualquer tempo, o acesso a toda diligência já
realizada.
O sigilo só permanece em relação às diligências que ainda estão em curso ou que
podem ser frustradas com a sua revelação. Na Colaboração Premiada o sigilo é mais
amplo. Ele só é levantado com o oferecimento da denúncia. Ainda que já tenha sido
documentado, se ainda estiver em curso diligências em relação aquele acordo de
Colaboração Premiada, permanece aquele sigilo. Até aqui não tem a necessidade de
garantir o acesso a ninguém até o oferecimento da denúncia. O objetivo do sigilo é
garantir o interesse da investigação. A rigor, todo processo é público. A regra é que
deve ser público. O sigilo é que deve ser justificado. A colaboração não foge a essa
regra e a justificativa é a de que pela necessidade de se garantir a investigação. É
como a interceptação. Revelar para a pessoa que ela vai ser interceptada, você frustra
a interceptação”.
(MPF5)

Segundo as informações acima, o sigilo dos acordos de Colaboração Premiada é imposto


pela lei, de tal forma que os procedimentos, ao serem registrados, não podem informar a identificação
dos envolvidos, nem a menção a qualquer outra informação. O único registro que o identifica é a
numeração que este procedimento recebe nos cartórios judiciais, uma vez que tais acordos só
produzem efeito a partir da homologação judicial. Sendo assim, todos os elementos de prova colhidos
pelo Ministério Público a partir do depoimento do colaborador, assim como o termo do Acordo, serão
autuados num cartório judicial para homologação. A este conjunto ainda não pode ser denominado
processo, uma vez que ainda não houve acusação e nem pedido de condenação. Essa numeração é o
único elemento de identificação existente nos documentos ali autuados. O sigilo é justificado pela
necessidade de se garantir o sucesso da investigação.
Esta prática é recomendada, inclusive, pelo Manual de Colaboração Premiada elaborado
pela ENCCLA (BRASIL, 2014), quando afirma que “Reduzidos a termo, as declarações e o acordo
serão autuados em apartado, sob sigilo, e não devem ser apensados ao inquérito policial, nem nele
mencionados”. Este material também informa que quando o acordo de Colaboração Premiada for

217
“As partes” nesse caso são os advogados e os próprios colaboradores. Porque a lei garante o acesso ao juiz e ao
Ministério Público. O que se percebe por esta fala é que o Ministério Público, neste caso, não é visto como parte no
processo judicial.

165
celebrado pela autoridade policial, depois de colhida a manifestação do Ministério Público -
afirmando sua ciência e anuência -, a autoridade policial deve encaminhar, “pessoalmente e em
caráter sigiloso, em invólucro lacrado e indevassável”, os autos do acordo de Colaboração à vara para
a qual foi distribuído o inquérito (cuja distribuição deve ser sempre prévia, a exemplo do que ocorre
com os pedidos de quebra de sigilos e de interceptações telefônicas e telemáticas), a fim de que o
magistrado determine a sua autuação, registro e distribuição, por dependência, ao inquérito policial
(BRASIL, 2014).
Como visto anteriormente, também a lei nº 12.850, de 2013218 determina que mesmo após a
homologação do acordo pelo juiz, a Colaboração Premiada continuará sob sigilo, somente se
tornando pública ao final das investigações, quando o juiz aceitar as denúncias contra os delatados e
colaboradores (nos casos em que para este último não for ajustado no acordo a imunidade penal pelo
não oferecimento de denúncia). Vale dizer, este acordo somente se tornará público depois de
instaurada a ação penal (artigos 7º e 13, da Lei nº 12.850, de 2013). Curioso aqui anotar que com essa
inovação aparece no sistema brasileiro um “inquérito judicial”, dotado das mesmas características do
nosso inquérito policial. Esta novidade também merece relevo.
Ainda de acordo com a Lei nº 12.850, de 2013 (artigo 5º, incisos II e V)219, constitui direito
do colaborador “ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados” e não
ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua
prévia autorização por escrito.
Conjugando os dois dispositivos legais, o campo jurídico brasileiro afirma que constituem
garantias para a defesa dos investigados, como forma de preservar sua imagem, seu nome e sua

218
De acordo com a Lei nº 12.850, de 2013, o sigilo das informações está previsto no artigo 7º, que diz: “Art. 7 o O
pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam
identificar o colaborador e o seu objeto. § 1 o As informações pormenorizadas da colaboração serão dirigidas
diretamente ao juiz a que recair a distribuição, que decidirá no prazo de 48 (quarenta e oito) horas. § 2 o O acesso aos
autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das
investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que
digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os
referentes às diligências em andamento. § 3o O acordo de colaboração premiada deixa de ser sigiloso assim que
recebida a denúncia, observado o disposto no art. 5 o”. E mais, “Artigo 13 - O sigilo da investigação poderá ser decretado
pela autoridade judicial competente, para garantia da celeridade e da eficácia das diligências investigatórias,
assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao
exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências
em andamento. Parágrafo único. Determinado o depoimento do investigado, seu defensor terá assegurada a prévia vista
dos autos, ainda que classificados como sigilosos, no prazo mínimo de 3 (três) dias que antecedem ao ato, podendo ser
ampliado, a critério da autoridade responsável pela investigação.” (BRASIL, 2013).
219
Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 5o São direitos do colaborador: I - usufruir das medidas de proteção
previstas na legislação específica; II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; III -
ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; IV - participar das audiências sem contato
visual com os outros acusados; V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou
filmado, sem sua prévia autorização por escrito; VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais
corréus ou condenados (BRASIL, 2013).

166
honra, muito embora entre alguns operadores, prevaleça a ideia de que o sigilo constitui apenas “um
dos elementos fundamentais que podem garantir a efetividade ou não de um acordo de colaboração
premiada, visando, sobretudo, que possam ser alcançados os objetivos previstos em lei”
(ANSELMO, 2016, sic).
O Supremo Tribunal Federal já entendeu que a Constituição Federal de 1988 proíbe
restringir a publicidade dos atos processuais, salvo quando a defesa da intimidade ou o interesse
social o exigirem (artigo 5º, inciso LX). Estabelece ainda, com as mesmas ressalvas, que a
publicidade dos julgamentos do Poder Judiciário é pressuposto de validade que não pode ser afastado
(artigo 93, inciso IX). Não há, aqui, interesse social a justificar a reserva de publicidade. Entendeu
esta Corte que “a Lei 12.850/2013, quando trata da Colaboração Premiada, impõe regime de sigilo
ao acordo e aos procedimentos correspondentes (artigo 7º), sigilo que, em princípio, perdura até a
decisão de recebimento da denúncia, se for o caso (artigo 7º, § 3º). Essa restrição, todavia, tem como
finalidades precípuas (a) proteger a pessoa do colaborador e de seus próximos (artigo 5º, II) e (b)
garantir o êxito das investigações (artigo 7°, § 2º)”. Contudo, este sigilo pode ser levantado “quando
o colaborador já teve sua identidade exposta publicamente e o desinteresse manifestado pelo órgão
acusador revela não mais subsistir razões a impor o regime restritivo de publicidade” (Petição nº
5.952/DF, julgamento pelo Ministro Teori Zavascki, em 16 de março de 2016).
Assim, de acordo com esta decisão, há dois aspectos determinantes do sigilo: a defesa da
intimidade do colaborador e o interesse público. Quanto ao primeiro, a divulgação das negociações
do acordo de Colaboração Premiada - inclusive antes do recebimento da denúncia -, junto aos meios
de comunicação de massa e mídias brasileiras e internacionais (os chamados vazamentos de
informações), desde as primeiras Operações Lava-Jato, levou alguns autores a denominarem o
processo penal brasileiro de “Processo Penal do Espetáculo”. Dentre outros, David e Terra (2016, pp.
212-213), chegam a argumentar que a facilidade com que os profissionais da imprensa obtinham o
acesso a essas informações, criava a ideia de que a prerrogativa de acesso às investigações criminais
dos defensores dos delatados não existia ou era inferior a dos profissionais da comunicação220.
Já quanto ao segundo aspecto, a categoria interesse social, ou interesse público possui
significado demasiadamente elástico e nela pode ser incluído qualquer fato que as autoridades
constituídas entendam como tal. Não obstante, no que se refere à investigação penal, o interesse
público se consubstancia, na maioria das vezes, na garantia da investigação e na aplicação da lei
penal.

220
Ver também Machado (2016).

167
Apesar de existir a Súmula Vinculante nº 14221, do Supremo Tribunal Federal, que garante
ao advogado o acesso aos documentos formalizados nos autos dos inquéritos policiais, este assunto
foi recentemente “ajustado” por esta mesma Corte que decidiu que “enquanto não instaurado
formalmente o inquérito propriamente dito acerca dos fatos declarados, o acordo de Colaboração
Premiada e os correspondentes depoimentos estão sujeitos a estrito regime de sigilo. Instaurado o
inquérito, ‘o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia,
como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do
representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de
defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em
andamento’ (artigo 7º, § 2º). Assegurado, como assegura, o acesso do investigado aos elementos de
prova carreados na fase de inquérito, o regime de sigilo consagrado na Lei 12.850/2013 guarda
perfeita compatibilidade com a Súmula Vinculante 14” (Rcl nº 22009 AgR, Relator Ministro Teori
Zavascki, Segunda Turma, julgamento em 16.2.2016, DJe de 12.5.2016). Fica evidente, assim, que
nem a Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal vincula o próprio órgão que a elaborou!
Assim, a partir desse “ajuste” da Súmula Vinculante nº 14 realizado pela Corte Suprema, o
advogado de defesa precisa de uma autorização judicial prévia para conseguir obter o acesso às
“provas” produzidas nesse procedimento, sendo também tal acesso restrito às provas que digam
respeito somente ao seu cliente. Significa dizer que este profissional não tem acesso a todos os atos
do inquérito policial ou do procedimento de investigação criminal222.
Em relação ao acordo de Colaboração Premiada e demais peças que o instruem, quando este
procedimento passou a ser considerado como negócio jurídico processual personalíssimo, significou
que apenas as partes nele envolvidas (Ministério Público e colaborador) poderiam requerer sua
impugnação, afastando, dessa forma, tal possibilidade para os delatados, ainda que venham a ser

221
De acordo com esta súmula, “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de
prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária,
digam respeito ao exercício do direito de defesa.”. Conforme divulgado em
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menusumario.asp?sumula=1230.
222
Neste sentido também é a orientação da Corte Suprema, quando afirma que “Há, é verdade, diligências que devem ser
sigilosas, sob risco de comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade
instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque,
é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo. (...) Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos retóricos
colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da Constituição da República,
que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o indiciado e o investigado mesmo, o direito de
defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe, por conseguinte, o exercício. (...) 5. Por outro lado, o instrumento
disponível para assegurar a intimidade dos investigados (...) não figura título jurídico para limitar a defesa nem a
publicidade, enquanto direitos do acusado. E invocar a intimidade dos demais investigados, para impedir o acesso aos
autos, importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a todos de
conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário. Por isso, a autoridade que investiga deve, mediante expedientes
adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito a
seu constituinte.” [Habeas-Corpus nº 88.190, voto do relator, Ministro Cezar Peluso, 2ª Turma, julgado em 29-8-2006,
publicado no DJ, de 6-10-2006].

168
expressamente nominados no respectivo instrumento quando do “relato da colaboração e seus
possíveis resultados” (art. 6º, I, da Lei nº 12.850/13). Para estes atores, portanto, o sigilo é ainda mais
rigoroso223.
Como é afirmado na decisão acima, o sigilo serve para garantir o sucesso da investigação.
Portanto, não tem nada a ver com a preservação da dignidade do investigado. Em inúmeras ocasiões -
desde as primeiras atividades das Operações Lava-Jato curitibanas - assistimos ao vazamento de
informações para os meios de comunicação em massa e as mídias sociais, que reproduziram
conversas telefônicas; prisões e conduções coercitivas realizadas ao vivo, bem como depoimentos de
colaboradores no momento em que estes celebravam acordo com os representantes do Ministério
Público224.
Kant de Lima (1992; 1995; 1999 etc.) tem reiteradamente afirmado que o sigilo é uma
característica própria, ordinária e privilegiada, dos procedimentos inquisitoriais eclesiásticos
característicos do Tribunal do Santo Ofício. De acordo com este autor, a nossa tradição jurídica tem
o hábito de unificar a estratégia de provar as coisas ao sistema eclesiástico. Acontece que durante
muito tempo tal prática vem sendo justificada como estratégia para evitar que importantes reputações
sejam atingidas ou que pessoas com poder, quando acusados pelos “desprotegidos da sorte”
pratiquem sérias represálias contra eles. Assim, o sistema inquisitorial assume a desigualdade das
partes na sociedade e, portanto, em juízo e para compensá-la, institui uma investigação sigilosa, que
constituirá, mais tarde, o fundamento das acusações que eventualmente venham a ser formuladas
contra o réu, na fase judicial, aí já tornadas públicas (KANT DE LIMA, 1990, pp.3-5).

III. 5.3. A gravação audiovisual

223
Neste sentido foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas-Corpus nº 127.483/PR, quando afirmou
que “O acordo de colaboração, como negócio jurídico personalíssimo, não vincula o delatado e não atinge diretamente
sua esfera jurídica: res inter alios acta. A delação premiada, como já tive oportunidade de assentar, é um benefício de
natureza personalíssima, cujos efeitos não são extensíveis a corréus (RHC nº 124.192/PR, Primeira Turma, de minha
relatoria, DJe de 8/4/15). Esse negócio jurídico processual tem por finalidade precípua a aplicação da sanção premial ao
colaborador, com base nos resultados concretos que trouxer para a investigação e o processo criminal. Assim, a
homologação do acordo de colaboração, por si só, não produz nenhum efeito na esfera jurídica do delatado, uma vez
que não é o acordo propriamente dito que poderá atingi-la, mas sim as imputações constantes dos depoimentos do
colaborador ou as medidas restritivas de direitos fundamentais que vierem a ser adotadas com base nesses depoimentos
e nas provas por ele indicadas ou apresentadas - o que, aliás, poderia ocorrer antes, ou mesmo independentemente, de
um acordo de colaboração” [Habeas-Corpus nº 127.483/PR, voto do relator, Ministro Dias Toffoli, Plenário, julgado
em 27-08-2015, grifos conforme o original].
224
Tais práticas, cuja finalidade consistiu, em muitas vezes, em buscar adesão da população, como forma de legitimá-las,
demonstram a ampla liberdade dos membros do Ministério Público, mesmo quando a Lei nº 12.850, de 2013 afirma que
constituem direitos dos colaboradores, ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados e
não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia
autorização por escrito (conforme artigo 5º, incisos II e V).

169
A gravação audiovisual do ato de celebração do acordo de Colaboração Premiada, segundo
os discursos jurídicos, visa, dentre outras finalidades, comprovar que este ato foi realizado sem o
emprego de coação ou qualquer outro meio que limite a liberdade da manifestação da vontade do
colaborador. Esta noção está afirmada nas seguintes declarações dos entrevistados:
_” O áudio e o vídeo são para mostrar que houve a voluntariedade do colaborador,
que ele está assistido por advogado. Para que não haja nenhuma dúvida sobre a lisura
do depoimento. Talvez seja até uma forma de mostrar que não houve nenhuma
coação.”
(MPF3)

- “A Justiça vai verificar a questão da legalidade e se a pessoa falou


espontaneamente, porque a pessoa é chamada perante o juiz para dizer isso. Vai
confirmar o acordo de colaboração. A Justiça, portanto, não examina o mérito em
relação aquilo que o colaborador disse, mas sim, sobre a formalidade desse ato. Por
isso, a gente sempre grava essas reuniões, as tratativas e a formalização do acordo.
Justamente para depois não haver nenhuma alegação de coação ou suspeita de que a
pessoa foi induzida, enfim, de qualquer ilegalidade”.
(MPF6)

A gravação dos atos que consubstanciam o acordo de Colaboração Premiada é medida que
está prevista, inclusive, na Lei nº 12.850, de 2013 (§ 13, do artigo 4º225) e na Orientação Conjunta nº
01/2018 (itens 7; 13.5 e 13.6226). Todavia, entre os operadores entrevistados houve quem afirmasse se
tratar de uma medida cuja aplicação é flexível. Segundo este operador,
- “Agora tem a instrução normativa... A nossa Câmara de Coordenação e Revisão...
Tem duas: a segunda e a quinta, que cuidam de crimes relacionados ao combate à
corrupção. Essas duas Câmaras firmaram uma orientação para os membros do
Ministério Público sobre os procedimentos para serem utilizados nas colaborações.
Mas só são orientações. São orientações, assim, por exemplo: assim que os
Procuradores são procurados pelos advogados, precisam formalizar um
procedimento. Sempre que acontecerem reuniões, tem que registrar essas reuniões. O
procedimento precisa ser sigiloso. As provas apresentadas pelos colaboradores
precisam ser juntadas nesse procedimento. Também trata da adesão dos órgãos
envolvidos na força-tarefa. Quando há mais de uma jurisdição contemplada pela
ação penal, porque os envolvidos têm foro privilegiado, precisa falar com o colega
Procurador da 2ª instância, se tem interesse nesse acordo. Essa orientação é de
janeiro desse ano (2018). Essa Orientação Conjunta é para os Procuradores, mas visa
preservar o advogado, porque muitas vezes, o advogado que trabalha em Curitiba
tem um procedimento que é adotado lá, diferente do que é adotado no Rio, que por
sua vez, é diferente do que é adotado em Brasília. Então, na verdade, essa Orientação
Conjunta é adotada para padronizar os procedimentos e também dar um segurança
para os advogados”.

225
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º (...) § 13. Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração
será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual,
destinados a obter maior fidelidade das informações (BRASIL, 2013).
226
ORIENTAÇÃO CONJUNTA Nº 01/2018 - item 13.5 - a colheita dos depoimentos deve ser feita, sempre que possível,
com gravação audiovisual e redução a termo dos depoimentos prestados pelo colaborador. Item 13.6 - a gravação
audiovisual deve ser realizada separadamente, em relação a cada termo de depoimento do colaborador, visando
preservar o sigilo das demais investigações (BRASIL, 2018).

170
(MPF2)

Mesmo afirmando que a norma citada foi editada pela própria instituição para padronizar os
procedimentos dos operadores e “dar segurança para os advogados”, o entrevistado afirma que “só se
trata de orientações”, sugerindo que tal norma não tenha caráter obrigatório. Esta representação
decorre, inclusive, da liberdade de interpretação do texto legal, já que a lei de 2013 utiliza a
expressão “sempre que possível”, quando se refere ao registro audiovisual deste ato.
Encontrei dentre os doutrinadores jurídicos consultados, discursos defendendo a ideia de que
a gravação audiovisual tem por objetivo dar ao juiz melhor oportunidade de verificar a regularidade,
a legalidade e a voluntariedade - considerados requisitos obrigatórios – do acordo de Colaboração
Premiada. Dentre outros, Nucci (2013, p. 62) afirma que “a avalição do juiz acerca da voluntariedade
(liberdade de ação) do delator ficará muito mais evidente por meio de gravação audiovisual”. Lopes
Junior (2015, p. 953), por sua vez, afirma que esta formalidade consiste em limitar o poder do agente
estatal, de um lado e, de outro, promover a garantia do “réu”. Esta formalidade possibilitaria aos
delatados, inclusive, a comparação entre eventuais adulterações entre o conteúdo dos acordos e
depoimentos disponibilizados e o conteúdo das respectivas gravações. Dipp (2015, p. 44), considera
que a lei não contém palavras inúteis e mesmo que o legislador de 2013 tenha empregado a expressão
“sempre que possível”, devido à seriedade do meio de obtenção de prova que é a Colaboração
Premiada, onde o colaborador delata eventuais coautores, deve ser interpretada no sentido da
obrigatoriedade desse registro. Por fim, Mendonça (2016, pp. 515 – 535) afirma que “deve-se
analisar se desde a investigação e em juízo o colaborador apresentou a mesma versão, no tocante aos
aspectos essenciais, ou se, ao contrário, declarou versões cambiantes e inseguras”, consistindo tal
medida em instrumento útil à defesa por ocasião do posterior exercício do contraditório, na fase
judicial a fim de evitar informações falsas.
Como já afirmei aqui, a liberdade de interpretação da lei permite que os membros do
Ministério Público não se vejam obrigados a cumpri-la, nem mesmo quando o legislador não deixa
espaço para dúvidas em seu texto, o que dirá quando emprega termos dúbios ou vagos.
O emprego da estratégia de gravar as tratativas dos acordos poderia constituir uma forma de
imunizar as práticas do Ministério Público durante estes atos e, por isso, a perspectiva do entrevistado
ao não se ver obrigado a adotá-la é, no mínimo, intrigante. Afinal, haveria alguma coisa a não ser
revelada ao juiz, quando do exame da regularidade, da legalidade ou da voluntariedade deste ato?

III. 5.4. Obrigação de resultado

171
Outra característica atribuída pelos operadores entrevistados ao acordo de Colaboração
Premiada é a necessidade de que dele advenha resultados necessários à investigação, legitimando-a,
assim como base da acusação. Assim, de acordo com os entrevistados:
- “Para ser Colaboração Premiada, tem que ser eficaz. É o que exige a lei: a
obrigação é de resultado”.
(MPF1)

A eficácia da Colaboração Premiada, segundo este discurso, está vinculada à efetividade do


resultado da investigação. Significa que para ser eficaz é preciso que a Colaboração Premiada atinja o
seu objetivo: que traga elementos de convicção capazes de convencer o juiz sobre a materialidade do
crime e de sua autoria. Esta representação pode ser vista na seguinte declaração:
- “Uma vez homologado esse acordo de Colaboração Premiada, se os fatos que o
colaborador trouxe para os anexos - que são produzidos nesses acordos e as provas
de corroboração que eventualmente ele produziu -, se tiverem sido, de fato, eficazes
para apuração da verdade real dentro dos processos que são gerados ali, ele saberia
ou teria certeza de que aquele benefício previsto no acordo inicial seria cumprido
pela Justiça. É assim que tem sido feito”.
(MPF3)

A declaração acima afirma que são as informações e as provas apresentadas pelo


colaborador que atribuem eficácia ao acordo de Colaboração Premiada quando úteis para a apuração
e à descoberta da verdade real.
A verdade real, categoria jurídica relacionada à produção de prova pelo juiz, é
extremamente naturalizada pelos atores entrevistados nesta pesquisa e resulta da ideia bastante
propagada neste campo, segundo a qual a Justiça somente é obtida se for descoberta a “verdade dos
fatos”. Esta concepção gera a estranha tradução de que os fatos podem mentir, muito embora
confirme que as categorias Justiça e Verdade estejam intimamente relacionadas.
A verdade processual – construída no bojo do processo e que procede de uma decisão
judicial – é, como todas as demais, uma verdade construída socialmente, precária e local, por
definição (FOUCAULT, 1998). Todavia, a representação da verdade jurídica produzida pelos
operadores e parte da doutrina processual brasileira, é no sentido de defender a possibilidade de se
descobrir a verdade real por meio do processo judicial, esteja ela onde estiver.
Ocorre que nessa busca pela verdade, o juiz tem papel relevante, já que é quem ocupa o topo
da hierarquia do campo jurídico na luta pela dicção do direito (BOURDIEU, 2007a) e seu poder
probatório é tão amplo que, para descobrir a “verdade dos fatos”, ele pode até mesmo mandar
produzir provas, inclusive sobre fatos incontroversos. Vale dizer, o juiz pode produzir provas até
mesmo sobre fatos já consensualizados entre as partes ou distantes daqueles que as partes produziram
(MENDES, 2011; 2012).

172
Todavia, é bastante peculiar que a iniciativa probatória do juiz apareça justificada pela busca
da verdade real, tão naturalizada pelos operadores, que não fazem qualquer alusão ao antagonismo
dessa iniciativa com o sistema acusatório, que parte da doutrina jurídica brasileira afirma ter sido
adotado pela Constituição de 1988 (conforme GRINOVER, 1999, entre outros)227. Vale dizer, as
representações a respeito da iniciativa probatória do juiz no sistema processual brasileiro não
aparecem relacionadas ao caráter inquisitorial do processo, nem tampouco como possível ofensa a
princípios constitucionais relacionados ao processo penal democrático, como se pode constatar nos
trechos da entrevista acima reproduzida.
Mais uma vez, ressalto também que o sistema processual brasileiro (civil ou penal) é
operacionalizado segundo a crença de que é orientado pela Constituição da República de 1988 e nela
está previsto que todos os cidadãos gozam dos mesmos direitos fundamentais que estão ali elencados.
Assim, essas garantias são também garantias processuais. Em geral, o processo civil é apontado pelo
campo jurídico brasileiro como tendo índole “acusatória”, ou seja, prioriza a participação ampla das
partes envolvidas no conflito em exame, com o objetivo de obterem sua solução. Também existe a
crença de que o nosso sistema criminal é considerado “misto”, na medida em que congrega aspectos
do modelo “acusatório” e do “inquisitório”, ao mesmo tempo (GRINOVER, 1999; TOURINHO
FILHO, 2010, entre outros).
Todavia, tanto no processo civil quanto no do processo penal, o juiz tem a atribuição
concedida por lei - e assim interpretada pela doutrina -, de decidir livremente sobre os conflitos de
interesses levados a sua apreciação. Como já afirmou Mendes (2011; 2012), além do livre
convencimento do juiz, a doutrina e a lei lhe concedem a iniciativa probatória, o que reforça ainda
mais sua autonomia decisória sobre o processo. De acordo com esta autora, tais prerrogativas
judiciais “trazem à tona aspectos inquisitoriais identificáveis em todos os ramos do processo judicial
brasileiro”. Contrariando esta visão naturalizada dos operadores, acerca dessa classificação que
concebe o processo civil como “acusatório” e o processo penal como “misto”, a autora afirma que os
operadores não estranham o fato de que o desfecho do processo, em qualquer das suas modalidades,
“ocorre em circunstâncias nitidamente inquisitoriais, ancoradas no livre convencimento do juiz e em
sua iniciativa probatória” (MENDES, 2012, p. 448).
É importante ressaltar também a observação de Kant de Lima (2004, p. 8) acerca da
construção da verdade jurídica no sistema processual penal brasileiro, já que é tratada, inclusive, pela
227
Dentre os autores que chamam a atenção para a incompatibilidade entre essa iniciativa probatória do juiz e o sistema
acusatório, quando examina as características do princípio acusatório, Prado (2006, p. 104) afirma que: “O princípio
acusatório se distingue por um tipo característico de processo que está alicerçado entre três diferentes sujeitos das
tarefas de acusar, defender e julgar. (...) No modo inquisitorial de processo, o que prevalece é o objetivo de realização
do direito penal material, enquanto no processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a
possibilidade do arbítrio do poder de punir que define o horizonte do mencionado processo”.

173
própria Exposição de Motivos do Código de Processo Penal - texto que apresenta as principais ideias
desse Código -, onde é informado que constitui objetivo do processo judicial criminal a descoberta da
verdade real.
A iniciativa probatória do juiz é um atributo geralmente considerado pelo campo jurídico
brasileiro como indispensável à função de julgar, sendo definidor e enfatizante do caráter
inquisitorial do processo brasileiro. Tanto a busca da verdade real, como a iniciativa probatória do
juiz, são características necessárias uma à outra, devido à valorização da verdade real, como
princípio orientador do processo brasileiro em qualquer âmbito (civil, penal ou trabalhista). Assim,
independente do ramo do processo, o juiz assume papel central, já que, além das partes precisarem
convencê-lo sobre a legitimidade de suas pretensões, ele próprio possui, ineditamente, iniciativa
probatória, enquanto instrumento fundamental do julgamento (MENDES, 2011; 2012).
A consequência prática para o modelo processual penal brasileiro é a busca, a todo custo, de
uma verdade absoluta sobre os fatos ocorridos, para, a partir de então, alcançar um indivíduo a quem
possa ser-lhe imputada a culpa (KANT DE LIMA, 2008. pp. 261-289).
A descoberta da verdade é uma questão importante para o campo jurídico brasileiro, já que
está associada à noção de Justiça. Estamos inseridos numa sensibilidade jurídica (Geertz, 2002, p.
249) denominada sistema de inquérito, traduzido em uma forma de saber – e, consequentemente, de
exercício de poder –, e que consiste em “descobrir a verdade dos fatos”, decifrados como crime. Esta
verdade é descoberta por meio do processo penal. O sistema de inquérito pressupõe que aquele que
interroga sabe mais do que quem responde, isto é, pergunta-se não para uma ampliação de consenso,
mas para saber se quem está respondendo está mentindo ou não, e para confirmar aquilo que o
inquisidor já sabe. No sistema de exame, por outro lado, pergunta-se para construir um conhecimento
a partir de consensos sucessivos, sedimentados na legitimação das versões, corroboradas pelas provas
admitidas na sessão em que são colocadas sob exame, a partir das regras de admissibilidade das
provas.
Ferreira (2013, p.59) adverte que isso não significa que no Direito brasileiro não haja uma
verdade construída, mas sim, que esta verdade não pode ser admitida nos padrões metodológicos da
ciência, porque não há possibilidade de sua verificação (GADAMER, 2002, p. 32).
Ainda de acordo com Ferreira (ibidem), o princípio da verdade real, é uma herança do
processo inquisitorial e, portanto, possui uma forte índole religiosa. A busca da verdade real –
proposição, inclusive, positivada na norma jurídica, como é exemplo o artigo 156, parte final do
Código de Processo Penal, quando afirma que o juiz tem o poder de atuar de ofício para realizar
diligências com o fim de dirimir suas dúvidas - possibilita ao magistrado uma ampla investigação que
ultrapassa e pode se contrapor às demandas das partes. As doutrinas jurídicas repetem essa fórmula

174
exaustivamente, havendo orientações que classificam a verdade real como a que se realiza no
processo penal, enquanto o princípio da verdade formal vige no processo civil (TOURINHO FILHO,
2007). Para justificar tal classificação, afirma-se que no processo civil estão presentes interesses
disponíveis, onde as partes podem transacionar os direitos, ao contrário da regra geral do processo
penal, onde para as partes os direitos são indisponíveis (TOURINHO FILHO, idem, p. 16).
As orientações doutrinárias acima citadas estão distantes da empiria. Como a iniciativa
probatória é consagrada ao juiz, tanto pela doutrina quanto pela lei, estas previsões reforçam sua
autonomia decisória sobre o processo. Em outras palavras, as prerrogativas dos julgadores (iniciativa
probatória e livre convencimento) reforçam os aspectos inquisitoriais identificáveis em todos os
ramos do processo judicial brasileiro, o que contraria a ideia naturalizada dos operadores e já
mencionada, acerca da classificação do processo judicial brasileiro, que concebe o processo civil
como “acusatório” e o processo penal como “inquisitório” ou “misto” (MENDES, 2012, p. 448).
Assim, os operadores não estranham o fato de que o resultado do processo, em qualquer das suas
modalidades, ocorre em circunstâncias nitidamente inquisitoriais, uma vez que fundadas no livre
convencimento do juiz e em sua iniciativa probatória. A parte interessada na prestação jurisdicional
– prestação esta considerada direito de cidadania, desenvolve um papel acessório, coadjuvante, frente
à ênfase que o campo jurídico dá ao papel desempenhado pelo juiz e que é justificado pela missão
que lhe é atribuída de descobridor da verdade real.
Posteriormente, Baptista (2013) confirmou e ampliou o levantamento de dados e a
demonstração da arbitrariedade do poder dos juízes em decidir conflitos as partir de critérios
casuísticos e diante da ausência de consenso entre o significado das leis – derivada da lógica do
contraditório -, que desloca para o juiz o poder soberano de interpretar e de decidir a melhor solução
para os conflitos.
Além disso, o sistema judicial criminal brasileiro se organiza de maneira a sobrepor
diferentes sistemas de produção da verdade jurídica, que obedecem a princípios distintos e, portanto,
desqualificam mutuamente aquilo que produzem (suas verdades judiciárias). Como afirma Kant de
Lima (2004c, p. 15), “a prova do inquérito policial deve ser refeita no processo judicial, assim como
a da instrução judicial deve ser repetida no Tribunal do Júri, por exemplo. Assim sendo, em cada
etapa do processo judicial pode ser conhecida uma verdade diferente da anterior”.
Assim, o Direito brasileiro, ao contrário de outros ramos de construção de saber, não
constrói sua verdade a partir da observação de fatos empíricos. De acordo com sua lógica de
construção do saber jurídico o fato será sempre uma representação da realidade, visto que o ocorrido
passa ser um fato histórico, portanto, sua reprodução será sempre uma representação desse fato.

175
Trata-se, como afirma Geertz (1998, p. 259) de uma maneira específica de imaginar a realidade, não
do que aconteceu, mas sim, do que aconteceu “aos olhos do direito”.
O direito seria então, uma forma específica de representar a realidade fática, aplicada através
do processo judicial, que consiste, segundo Geertz (idem, p. 259), “Na descrição de um fato de tal
forma que seja possível aos advogados defendê-lo, ao juiz ouvi-lo e aos jurados solucioná-lo, nada
mais é do que uma representação (...) o argumento aqui (...) é que a parte ‘jurídica’ do mundo (...) é
parte de uma maneira específica de imaginar a realidade. Trata-se, basicamente, não do que
aconteceu, e sim do que aconteceu aos olhos do direito.”
Assim, para Geertz (idem, pp. 261-262), o processo judicial é um componente cultural de
determinado grupo social e, para entendê-lo como tal, significa pressupor que todo processo jurídico
envolve um comportamento que tem a finalidade de simplificar os fatos vividos, amoldando-os às
normas; e que a própria operação que transforma o processo judicial em um sistema de descrição do
mundo, ou seja, a descrição jurídica do fato, já é, por si mesma, normativa.
A eficácia da Colaboração Premiada (traduzida pelo resultado que ela produz) está
relacionada à possibilidade de as provas e as informações ali produzidas alcançarem a verdade real,
ou seja, a verdade que convence e motiva o magistrado, a partir das investigações criminais que ela
institui e dos respectivos processos judiciais que daí se originam.
A Colaboração Premiada, portanto, tem como resultado a produção de variados e
infindáveis procedimentos criminais, uma verdadeira máquina produtora desses procedimentos.
Neste sentido, Kant de Lima (2009-2/2010, pp. 28-29) esclarece quando afirma que a verdade
jurídica é uma construção de múltiplos resultados, de tal forma que cada processo constrói a verdade
a sua maneira e, assim, serão construídos tantos processos quanto forem as verdades. Vale dizer, a
forma como a verdade jurídica é construída pelas práticas e saberes jurídicos difere das lógicas
adversárias de produção da verdade dominantes nas áreas acadêmicas (de outras áreas do
conhecimento) e científicas, já que estas são fundadas na busca de consensos provisórios sobre os
fatos, os quais são construídos pela reflexão e pela explicitação das diferentes perspectivas dos
envolvidos, por meio de um processo de argumentação demonstrativa, cuja finalidade é o
convencimento de todas as partes legítimas envolvidas neste processo: “aqui, atingir o consenso entre
os pares é fundamental para validar o conhecimento” (KANT DE LIMA, 2009-2/2010, p. 29).

III. 6. QUAIS SÃO OS DOCUMENTOS QUE INSTRUEM O ACORDO DE COLABORAÇÃO


PREMIADA E QUAL A FINALIDADE DE CADA UM DELES?

176
III. 6.1. O Pré-Acordo de Colaboração Premiada e o Termo de Confidencialidade.
O Termo de Colaboração Premiada, como já foi visto, é formalizado como um contrato,
contendo cláusulas que o Ministério Público e o colaborador se obrigam a realizar, entre outras
medidas.
Já o Pré-Acordo é formalizado quando as informações oferecidas pelo colaborador não
forem suficientes para provar o que ele alega e que precisam ser apurados, antes de ser elaborado o
Acordo, propriamente dito. Conforme o item 12.1, da Orientação Conjunta nº 01/2018, nestes casos,
por cautela, o Ministério Público pode promover o Pré-Acordo de Colaboração Premiada.
Confirmando-se as informações do colaborador, realiza-se, então o Acordo.
Segundo um dos entrevistados, os Pré-Acordos são raramente elaborados, como pode ser
visto na seguinte declaração:
- “A gente tem alguns casos de Pré-acordo de Colaboração Premiada. Por exemplo,
os doleiros Juca e Tony, que estavam presos no Uruguai228. A gente firmou um Pré-
acordo com eles para que abrissem mão da defesa na extradição, viessem para o
Brasil e aqui firmassem um acordo de Colaboração Premiada. Então houve um Pré-
Acordo, mas são raros esses casos. Em regra, não tem Pré-Acordo, é só o Termo de
Confidencialidade para que seja uma garantia, para que durante as tratativas a gente
possa trocar informações, sem a possibilidade de a gente usar aquelas informações -
quando o acordo não vai à frente -, para garantir o direito a não incriminação daquele
‘cara’ que ainda não é o colaborador. E aí as reuniões são realizadas, os pretensos
colaboradores trazem os anexos, complementam, a gente faz entrevistas, enfim...
Todas as nossas decisões aqui na força-tarefa são conjuntas. Então, a gente leva para
nossas reuniões... Todas as segundas-feiras, os 11 (onze) Procuradores da força-
tarefa se reúnem. Então a gente leva estes casos... ‘Olha eu tenho aqui esse pretenso
colaborador...’ Geralmente, o Procurador que está tratando com os advogados do
pretenso colaborador é o relator daquele caso. E ele vai defender a possibilidade de
fazer o acordo, por exemplo, por que ele está trazendo esses, esses e esses fatos; está
disposto a restituir aos cofres públicos tanto (valores), ou ele não tem nada a
restituir, mas com esse acordo a gente vai conseguir alcançar outro tanto de valor.
Esse Procurador pergunta ao grupo: ‘posso prosseguir com o acordo?’ Aí os demais
Procuradores votam. Com esse aval em favor do acordo, a gente começa a negociar
com os advogados do pretenso colaborador os benefícios que poderão ser oferecidos.
Ás vezes, a gente já tem essa sinalização de que podemos prosseguir com o acordo,
mas a gente não consegue chegar a um consenso com o advogado ou com o pretenso
colaborador, sobre a pena a ser aplicada, ou os valores a serem restituídos e aí, o
acordo não vai adiante. Isso é bastante comum, também. É um processo muito
longo. Assim, às vezes, o advogado que não está acostumado ou o colaborador que
não sabe como funciona fica até desapontado. Acha que vai chegar aqui em um dia e
no dia seguinte já vai assinar o acordo de Colaboração Premiada. Isso não é assim,
né?”
(MPF2)

228
O entrevistado se refere aos doleiros Vinícius Claret (conhecido como Juca Bala) e Cláudio Fernando Barbosa
(apelidado de Tony) acusados do crime de lavagem de dinheiro e que supostamente seriam liderados pelo ex-
governador, Sérgio Cabral, citados na Colaboração Premiada que dois outros doleiros - os irmãos, Marcelo e Renato
Chebar realizaram com o Ministério Público. Conforme divulgado em https://extra.globo.com/noticias/brasil/doleiro-
de-esquema-de-cabral-juca-bala-preso-no-uruguai-21010128.html e https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/doleiros-suspeitos-de-lavar-dinheiro-em-esquema-de-sergio-cabral-chegam-ao-rio.ghtml

177
Assim, conforme esta afirmação, a elaboração do Pré-Acordo de Colaboração Premiada
não constitui uma prática comum e a decisão acerca da realização do acordo, propriamente dito, é
sempre tomada em grupo, por votos. Desta forma, há sempre aqueles que ganham e os que perdem.
No trecho transcrito acima o entrevistado também se refere ao Termo de Confidencialidade.
Trata-se de prática comum em relações empregatícias, onde o segredo de um produto/equipamento, a
fórmula de sua composição ou informações relacionadas às atividades do negócio não podem ser
divulgadas, geralmente com o fim de evitar a concorrência do mercado. Nestes casos, ao assinar o
termo, o empregado assume a obrigação de manter o sigilo e o risco de sofrer uma punição em caso
de seu descumprimento. Como esse termo é assinado pelo representante do Ministério Público,
levanta-se a questão relativa à necessidade de tal instrumento. Afinal, o Ministério Público não é
confiável, ao ponto de ser confeccionado um documento para assegurar esse atributo?
Além disso, esta declaração sugere que o “consenso” entre os membros do Ministério
Público, os colaboradores e seus advogados se limita à discussão sobre a penalidade ou à quantidade
de valores eventualmente repatriados, e que consistirão em obrigações impostas ao colaborador, caso
o acordo seja efetivado. Vale dizer, primeiro: o Pré-Acordo constitui uma grande vantagem para o
Ministério Público, no sentido de poder ter acesso às informações oferecidas pelos colaboradores,
sem que fique obrigado a formular o acordo se, eventualmente, as informações apresentadas pelo
colaborador não forem consideradas suficientemente interessantes para a investigação. Por outro
lado, em caso de renúncia ou desistência do colaborador, o membro do Ministério Público já teve
acesso a essas informações e o colaborador sai desse negócio sem receber nenhuma vantagem.
Segundo, e não menos importante, o entrevistado afirma que nesse momento só se discute com o
advogado e o colaborador sobre a pena a ser aplicada, ou os valores a serem restituídos, silenciando
sobre outras circunstâncias que interessam ao colaborador e a sua defesa, tais como: se o fato
imputado ao colaborador é verdadeiro; se as provas, de fato o incriminam; se tais provas foram
obtidas licitamente; qual o grau de sua culpabilidade; qual o tipo penal que será indicado no acordo;
se tal tipo penal corresponde ao fato praticado pelo colaborador, entre tantas outras. Vale dizer, nada
disso é questionado. Somente se negocia a pena.
Esta declaração me fez lembrar a entrevista de outro membro do Ministério Público, quando
afirmou que a Colaboração Premiada se inspirou na plea bargaining norte-americana, também
reafirmada em outros discursos de alguns juristas brasileiros. Foi possível remeter também dos textos
de Bisharat (2014; 2015); Kant de Lima (2009/2-2010); Ferreira (2013), entre outros, quando
distinguem os sistemas jurídicos e seus respectivos institutos. Ora, como já mencionado, no modelo

178
estadunidense o que o órgão de acusação negocia com o acusado é a verdade. Assim, ainda que o
acusado tenha cometido o crime de homicídio, por exemplo, para que o órgão de acusação possa
obter as informações do acusado e, principalmente, excluir a possibilidade de o acusado fazer valer o
seu direito ao processo, será negociado um tipo penal mais leve, como a lesão corporal seguida de
morte. Ou seja, acusação e defesa consensualizam sobre o fato, sobre o tipo penal, ou seja, sobre a
verdade. Como será indicado um crime mais leve, consequentemente, a pena também será mais leve.
O que motivou algumas críticas à operacionalização da Colaboração Premiada foi
justamente, o fato de o Ministério Público, sem alterar o tipo penal, reduzir drasticamente a pena,
abaixo do patamar previsto em lei; oferecer espécie de pena mais benéfica do que a lei estabelece;
determinar a aplicação de regime de cumprimento de pena mais favorável do que a lei prevê ou criar
regime especial não previsto em lei, ou, ainda, isentar o crime, mantendo alguma penalidade
subsequente. Vale dizer, chega-se ao ponto de afirmar-se que o fato não é incriminado (imunidade),
com o não oferecimento da denúncia, mas permanece a responsabilização do colaborador, tendo em
vista a aplicação de respostas penais como a multa civil ou a indenização que, curiosamente decorre
de um fato criminoso que foi isentado. Estes tratamentos vêm acarretando uma incongruência ao
sistema229. Assim, o colaborador pode ser isentado do crime, mas responsabilizado para cumprir
determinada pena pecuniária.
O entrevistado também destaca a possibilidade de os operadores terem acesso às
informações prestadas pelo colaborador e, mesmo assim, não realizarem com ele o acordo de
Colaboração Premiada, o que também sugere a inexistência de parâmetros claros sobre as hipóteses
em que estes pactos serão celebrados ou que obriguem os membros do Ministério Público a
pactuarem com os colaboradores, ou, ainda, limitem sua liberdade de ação nestes casos. Diante dessa
possibilidade, indaguei como atuava o entrevistado em situações como essas e a resposta deste
entrevistado foi:
- “É difícil, porque quando entra na nossa cabeça uma informação, você não tira.
Mas, de fato, como a gente tem essa necessidade de demonstrar de onde a gente tira
as informações, essa é uma garantia de que a gente não vai usar as informações a
título de inteligência, de investigação. A gente precisa demonstrar de onde saiu
aquelas informações para pedir, por exemplo, uma quebra de sigilo telemático ou
bancário e para isso, precisa ter um Termo de Colaboração Premiada firmado. Mas
é difícil, realmente, você extrair de uma pessoa que nunca teve contato nenhum com
o Ministério Público ou com o instituto da Colaboração Premiada... O colaborador
não me conhece, não confia em mim e tem que acreditar que eu não vou usar as
informações que ele apresentou. Portanto, que garantia ele tem de que eu não vou
usar as informações que ele trouxe, sem lhe oferecer a contrapartida? Para isso, tem
229
Exemplos dessas aplicações podem ser verificados nos acordos de Colaboração Premiada firmados por ex-executivos
da construtora Odebrecht, ou os dos irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da empresa JBS. Conforme divulgado em
https://www.politize.com.br/delacoes-da-odebrecht-e-jbs-barato/.

179
o Termo de Confidencialidade. Ainda assim, muitos ainda se sentem
desconfortáveis. Falam: ‘Pô! está tudo bem, tem esse Termo de Confidencialidade,
mas as informações que eu te falar já vão ficar em sua cabeça’. E aí a gente tem que
explicar isso: ‘Olha! A informação vai estar na nossa cabeça, mas a gente não pode
transportar da nossa cabeça para o papel sem explicar de onde ela vem’. Então, essa
é uma garantia de que o processo penal dá para o pretenso colaborador, o ‘cara’ que
ainda não firmou o acordo com a gente. Caso no futuro haja uma denúncia com base
em alguma dessas informações, é preciso que sua origem seja de outro acordo de
Colaboração Premiada, porque, do contrário, essas provas são absolutamente nulas.
Então a gente tem esse cuidado. Isso nunca foi feito. A gente nunca usou nenhuma
informação, nem a título de inteligência, que não tenha sido obtida com o acordo
firmado. A gente tem inúmeros acordos que não foram adiante e que a gente devolve
os anexos aos pretensos colaboradores. A gente não pode, de forma nenhuma,
utilizar aquilo. E a garantia que tem o advogado daquele pretenso colaborador, cujo
acordo não foi adiante, é, justamente, a publicidade que a gente dá aos nossos atos. E
isso é importante!”
(MPF2)

Segundo o entrevistado, depois que a informação é conhecida “entra em sua cabeça”, é


difícil de esquecê-la, mas como se obrigou a não revelá-la, ao assinar o Termo de Confidencialidade,
mesmo quando não for pactuado o acordo de Colaboração Premiada entre eles. Esse termo, segundo
o entrevistado, tem a função de garantir ao colaborador que as informações por ele oferecidas não
serão utilizadas nestes casos.
Esta declaração indica, portanto, que o Termo de Confidencialidade obriga o Ministério
Público a não atuar, mesmo quando tem conhecimento da prática de crimes. Tal prática sugere,
portanto, a mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal, prevista no texto constitucional
e que determina a iniciativa dos membros do Ministério Público a promoverem a ação penal, ou,
como Mouzinho (no prelo), já afirmou, a lei impõe a obrigatoriedade destes operadores agirem
sempre, sem exceção. Contudo, também em sua pesquisa a autora verificou que essa obrigatoriedade
cede passo à discricionariedade desses atores, que selecionam quais investigações efetivamente irão
promover.
Por outro lado, a confidencialidade contida nestes termos, se traduz no compartilhamento de
um segredo entre os pactuantes e que deve ser mantido assim. Acontece que enquanto o Ministério
Público é visto como alguém que representa o Estado, portanto, alguém em quem se pode confiar,
alguém que possui reputação, o colaborador, ao contrário, é considerado como alguém que não
merece a menor confiança, um mentiroso contumaz, podendo a ser representado como alguém por
quem se sente desprezo ou certo asco, como pode ser visto na seguinte declaração de um dos
entrevistados:
_ “O primeiro acordo de Colaboração Premiada que eu fiz, não foi na Lava-Jato,
foi em outro caso, eu diria que, assim, ‘é de embrulhar o estômago’, você sentar com
uma pessoa – nós, agentes públicos, membros do Ministério Público e que estamos

180
acostumados a realizar uma persecução penal, cobrar e estar na parte adversa da
pessoa que cometeu um crime -, de repente ter que ouvi-la narrar todos os crimes
que cometeu, com detalhes, e, mesmo assim, ter que pactuar um benefício com ela.
No entanto, a gente precisa ‘virar a chave’. O acordo de Colaboração Premiada tem
um quê de pragmatismo. Eu faço um acordo com aquela pessoa, pactuo um
benefício, que será concedido pelo Judiciário, mas, com uma finalidade que é
aprofundar a investigação. Eu estou abrindo mão de parte da punição daquela
pessoa, em troca de ter uma investigação muito mais detalhada em relação às
pessoas que estão mais acima do que aquela com quem estou pactuando”.
(MPF5)

Assim, a condição fundamental para um colaborador/delator é que suas informações


contribuam para enriquecer a investigação criminal. Ainda que seja um criminoso, alguém com quem
o Ministério Público não poderia se imiscuir, elaborando com ele um negócio, ele próprio deve se
fazer confiar, ser alguém “digno de confiança”.
A desconfiança na palavra do colaborador/delator é de tal ordem que o Supremo Tribunal
Federal decidiu (no julgamento do Habeas-Corpus nº 127483/PR, já mencionado) que “a
homologação judicial do acordo não pressupõe e não contém, nem pode conter, juízo algum sobre a
verdade dos fatos confessados ou delatados, ou mesmo sobre o grau de confiabilidade atribuível às
declarações do colaborador, declarações essas às quais, isoladamente consideradas, a própria lei
atribuiu escassa confiança e limitado valor probatório (‘Nenhuma sentença condenatória será
proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador’, diz o § 16 do art. 4º da Lei
12.850/2013)”.
Dentre outras orientações dirigidas aos operadores - no que tange à confiança na palavra do
colaborador -, cito a declaração abaixo, reproduzida por um membro do Ministério Público, descrita
em uma de suas publicações. Segundo ele,
Não se pode esquecer que se está lidando com uma pessoa que já praticou um ou
mais delitos e está interessada em obter benefícios legais. Como já se afirmou, nesse
tema “estar precavido é estar preparado”. Assim, é imprescindível agir com cuidado
e cautela. Porém, ao mesmo tempo em que deve estar precavido, não se deve
desconsiderar sistematicamente suas afirmações. Como afirmava Giovane Falconni,
juiz responsável pela Operação “Mãos Limpas” na Itália: “Por experiência, estou
convencido de que o único comportamento eficaz e justo em relação aos
arrependidos é, sem dúvida, verificar atentamente seus propósitos, mas sem
depreciar sistematicamente suas afirmações” (MENDONÇA, idem, pp. 12-13).

Além de referir-se ao modelo estrangeiro - como é comum acontecer entre esses operadores,
que assemelham a Lava Jato à investigação italiana -, a suspeição sobre o colaborador fica evidente
nesta declaração. Esta desconfiança está expressa, inclusive, na declaração de um conhecido ex-juiz
que atuou em algumas dessas Operações Lava-Jato, cujo trecho transcrevo abaixo:
“Concordar com a necessidade de utilização deste método não significa que não
devam ser observadas as regras em seu emprego. Destacam-se duas regras

181
fundamentais. Diante da reduzida confiabilidade da palavra de um criminoso, a regra
número um é assim denominada ‘regra da corroboração’. O depoimento do delator
deve encontrar apoio em provas independentes. Não havendo estas, não se justifica a
condenação e, rigorosamente, nem sequer a acusação. A regra número dois é a de
que o método deve ser empregado para permitir a escalada da investigação e da
persecução na hierarquia da atividade criminosa. Faz-se um acordo com um
criminoso pequeno para obter prova contra o grande criminoso ou com um grande
criminoso para lograr prova contra vários outros criminosos, obtendo uma espécie de
efeito ‘dominó’” (MORO, 2010, p. 103).

De acordo com esta declaração, além de desconfiar do colaborador, espera-se que a oferta das
Colaborações Premiadas acarrete o “efeito dominó”, ou seja, alcance todos os integrantes da cadeia
criminosa, começando pelo que integra a posição menos importante da organização criminosa,
referido por este autor em outro texto, como “peixe pequeno” 230. Assim, o acordo com o “peixe
pequeno” visa atingir o “peixe grande”. Acontece que no cenário atual das Operações Lavajatenses,
onde se vê uma sucessão de delatados e colaboradores-delatores em todos os níveis, envolvidos em
uma infinidade de acordos de Colaboração Premiada, o mais certo seria afirmar que tanto os
“bagrinhos” quanto os “tubarões” entram nessa premiação, valendo o dito popular “o que cai nessa
rede é peixe”, já que se refere a aproveitar tudo o que é conseguido alcançar.
Ora, diferente de outros lugares onde a premiação do colaborador também é utilizada, como
no sistema estadunidense, esta estratégia somente é aplicada para os “peixes intermediários”. Ou seja,
são celebrados acordos que resultam do consenso sobre o tipo penal mais benéfico, o que acarreta a
redução de pena ou outro “benefício” penal apenas para os integrantes da organização que se
encontram no centro de sua estrutura. Trata-se, portanto, do informante que sabe como, quando e
quem entrega a propina, da mesma forma como sabe quem é o “peixe grande” que comanda essa
estrutura. Nesse sistema, os “peixes grandes” não são beneficiados com acordos de colaboração. Ao
contrário, são condenados às penas rigorosamente majoradas, devido, exatamente, a sua posição
dominante na organização, conforme Ferreira (2013).
Esta representação acerca da utilidade do delator/colaborador também revela o caráter
funcional e pragmático dessas “colaborações” para as agências brasileiras responsáveis pela
persecução criminal. Tanto que a cautela em relação à veracidade das informações do colaborador
também é recomendada pela Orientação Conjunta nº 1/2018, editada pelas 2ª e 5ª Câmaras de

230
Esta categoria é reproduzida pelo ex-juiz em suas decisões. Trata-se de uma expressão criada pelo juiz norte-
americano, Stephen S. Trot (2007), cujo livro intitulado “O uso de um criminoso como testemunha”, não apenas foi
traduzido pelo ex-magistrado brasileiro, como também reproduziu vários dos seus trechos nas decisões que proferiu em
processos das Operações Lava-Jato e congêneres, das quais participou. Um desses exemplos é a afirmação: "... Para pegar
os chefes e arruinar suas organizações, é necessário fazer com que os subordinados virem-se contra os do topo. Sem isso, o
grande peixe permanece livre e só o que você consegue são bagrinhos. Há bagrinhos criminosos com certeza, mas uma de suas
funções é assistir os grandes tubarões para evitar processos...", conforme divulgado em https://www.conjur.com.br/dl/decisao-
prisoes-lava-jato-operacao.pdf .

182
Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal 231, norma que consolida as orientações para a
celebração de acordos de Colaboração Premiada realizadas por seus agentes. Segundo esta
orientação, devem ser realizadas diligências investigatórias antes da celebração do acordo, visando
corroborar as provas e informações apresentadas pelo colaborador, antes da fixação de benefícios.
Enquanto isso se pode, por cautela, promover o Pré-Acordo de Colaboração Premiada, contendo o
registro dos termos negociados (BRASIL, 2018, p. 4).
Desta forma, o pré-acordo é justificado nas hipóteses em que os agentes estatais verificam a
necessidade de produzir diligências para confirmar as afirmações do colaborador. Vale dizer, não se
trata de expediente firmado para salvaguardar o interesse ou a vontade do colaborador.
Esta representação acerca da confiança/desconfiança dos atores da Colaboração Premiada
remete ao que o sociólogo alemão, Niklas Luhman (2005), afirma sobre esta categoria em seus
estudos sobre a complexidade das relações sociais232. Para ele, a confiança é um elemento básico da
vida social e inerente à natureza humana, sendo essencial para que as pessoas lidem com a grande
complexidade da sociedade, mas que também podem aumentá-la com suas próprias decisões.
Segundo o autor, a confiança emerge gradualmente, isto é, ela é aprendida e vai sendo desenvolvida
por generalizações, como forma de lidar com novos problemas acarretados pela confiança (ou a falta
dela) ao longo da vida.
Assim, a confiança é cultivada ou, mais precisamente, se investe nela como em uma espécie
de capital. Como afirma Dario Mansilla, professor da Escola de Sociologia, da Universidade Diego
Portales, no Chile, quando elabora a introdução do livro na versão espanhola, a confiança, para
Luhman, é uma espécie de conta corrente, da qual se pode gastar até um certo montante, mas que é

231
Esta orientação conjunta é denominada “Manual de Boas Práticas”, conforme divulgado em
https://portaldomagistrado.com.br/2018/05/28/mp-conclui-manual-de-boas-praticas-para-delacao-premiada-jota/.
232
Como em outra parte do texto cito também Jürgen Habermas, conhecido também por sua crítica ao conceito sistêmico
de legitimação proposto por Niklas Luhmann, esclareço que, ainda que ambos estejam se referindo à sociedade
especificamente por eles analisada e a discussão que estes autores elaboram tenha como fundamento o problema da
incorporação de suas teorias e das respectivas possibilidades de renovação ideal da sociedade contemporânea - seja com
a irremediável sujeição dos meios de comunicação simbolicamente generalizados (Luhmann e sua teoria dos sistemas),
seja com a pretensão emancipatória do discurso sob certas condições ideais (Habermas e sua teoria da ação
comunicativa) -, entendo que o exercício comparativo (das aproximações e dos paradoxos) entre essas diferentes
perspectivas de abordagem social, pode ressaltar a importância da contribuição destes dois autores para o debate acerca
de uma sociedade onde a democracia ainda não se estabeleceu e as desigualdades econômica e jurídica, principalmente,
constituem um dos maiores obstáculos para a concretização da cidadania, como a brasileira. Lembrando que a discussão
entre eles, iniciada a partir de um Congresso de Sociologia na Alemanha, em 1968, parte da premissa que para
Luhmann, a teoria da ação comunicativa e discursiva de Habermas só se mantém como um ideal bem-intencionado,
enquanto para Habermas, a teoria dos sistemas de Luhmann (1996) justifica a legitimação do poder. Enquanto
Habermas considera que a modernidade deve ampliar seu modelo de racionalidade para acolher o mundo vital,
Luhmann sustenta que isso exigiria um nível diferente de racionalidade em relação ao da modernidade. Assim,
Habermas deseja reivindicar as exigências da vida contra o sistema, enquanto Luhmann apenas procura descrever um
fenômeno que ocorre dentro do sistema social "iluminado", característico de hoje, sem elaborar qualquer nenhum
questionamento normativo.

183
necessário depositar para não se ficar sem fundos (LUHMANN, 2005, pp. XII-XIII). Existe, por
conseguinte, neste caso, certo limiar que, se é ultrapassado, conduz à perda de confiança, não
havendo, portanto, uma garantia absoluta de confiança e esta pode, com maior facilidade,
transformar-se em desconfiança. No entanto, a confiança só é possível onde é possível a verdade.
A confiança consiste, segundo Luhmann (idem), em um mecanismo de redução da
complexidade social, que aumenta a capacidade do sistema de atuar coerentemente em torno de algo
ainda mais complexo. Porém, esta redução da complexidade não deve ser entendida como eliminação
dos eventuais perigos, pois quem confia sempre se arrisca a ser enganado. A confiança é uma aposta
feita no presente em direção ao futuro e que se fundamenta no passado. Em outras palavras, uma
pessoa, por exemplo, pode confiar em que outra cumprirá no futuro uma promessa feita no presente,
baseando-se nas experiências que tenha tido no passado com essa mesma pessoa. Não existe, no
entanto, certeza. A outra pessoa poderia – e muitas vezes assim ocorre – trair a confiança depositada
nela e não satisfazer as expectativas. Quem confia nunca tem certeza absoluta: a possibilidade de
desapontamento é sempre antecipada. Apesar disso, e dependendo da gravidade da violação praticada
- vale dizer, da importância das expectativas frustradas -, até pode ser que a confiança se mantenha.
Neste caso, são realizadas considerações das seguintes ordens: a outra pessoa só falhou desta vez;
suas razões são justificadas; também não implicou nada muito significativo etc.
Luhmann continua interessado em desenvolver uma teoria suficientemente complexa para
entender como a sociedade e os distintos tipos de sistemas que ocorrem em seu interior funcionam.
Assim, ocupa-se com esquemas binários: verdade/mentira; legal/ilegal; confiança/desconfiança.
Para Luhmann, a confiança é um mecanismo de redução da complexidade social que tem
uma relação específica com a os meios de comunicação simbolicamente difundidos e que adquire
características particulares, segundo se trate de um sistema interacional de uma organização, ou da
sociedade, no âmbito do qual se implante. Do ponto de vista organizacional, a confiança se
despersonaliza: quem confia já não o faz por risco próprio, mas sim pelo risco do sistema. A
confiança reduz a complexidade social, quando a informação é ampla e está disponível de forma
homogênea e geral, ou seja, substitui a informação precária ou insuficiente por uma segurança
internamente garantida.
De acordo com Luhmann (ibidem), o sujeito não procura saber se a confiança em alguém é
justificada, mas, sim, se há símbolos de confiança que podem sustentá-la (confiabilidade). Nesse
caso, não há diferença entre aparência e realidade, porque a aparência é real quando usada como
gerador de cada experiência e ação de confiança. Luhmann indica também que é a confiança na
confiança, com sua capacidade de estabelecer e reproduzir símbolos e ações construtivas, que
permite a existência de processos civilizadores. Por outro lado, o aumento da confiança é feito

184
através de símbolos que permitem que as pessoas façam tais generalizações. Assim, por exemplo, o
símbolo "dinheiro" gera naqueles que o possuem, a confiança de que pode fazer escolhas ilimitadas
de bens transferíveis de acordo com seus desejos.
Luhman também enfatiza o fato de que a confiança busca reduzir o risco das decisões, mas
não eliminá-las e que, portanto, a confiança é colocada em perigo quando aquele que procura gerá-la
oferece um excesso de dados ou acentua as possíveis sanções que resultariam de sua perda, gerando
justamente o oposto do que foi procurado, isto é, provocando desconfiança, em vez de confiança.
Embora confiança e desconfiança sejam categorias com sentidos opostos, segundo Luhman, elas
também são equivalentes funcionais, isto é, consistem em duas estruturas opostas que buscam
estabelecer a mesma função social, a saber: a redução da complexidade social. Tanto as pessoas que
confiam quanto as que desconfiam buscam a mesma segurança social, só que pessoas desconfiadas
sempre consideram a trapaça como uma possibilidade. Para evitar isso, elas geram estratégias muito
complicadas para reduzir a complexidade, que exigem mais energia. Portanto, assim como a
confiança multiplica a confiança, a desconfiança promove desconfiança e, com isso, a chamada
profecia do auto-cumprimento: quem desconfia cria condições que tornam mais provável que as
razões de sua desconfiança sejam cumpridas, ou satisfeitas. Em contrapartida, quando diferentes
sistemas conseguem reduzir os riscos, a desconfiança deixa de ser uma atitude plausível, o limiar da
confiança aumenta e os sistemas sociais têm mais tempo para resistir, caso incida em situações
críticas.
A confiança não é o único fundamento do mundo, mas não se poderia constituir uma
concepção de mundo estruturado e complexo sem uma sociedade também complexa e esta, por sua
parte, não poderia ser constituída sem confiança. A confiança não é a única madeira de reduzir a
complexidade social. A lei, a organização e a linguagem são outros mecanismos que operam no
mesmo sentido. No entanto, a sociedade não poderia se estabelecer sem a confiança, segundo
Luhmann.
A teoria dos sistemas de Luhmann afirma, assim, que em uma sociedade o sistema está
ameaçado pela falta de confiança, que constitui um bem ou um valor que atua no sentido de permitir
a organização do sistema. A confiança é concebida pelo sociólogo como uma “cola”, que mantém as
sociedades unidas.
No Brasil, especialmente em tempos de Operações Lava-Jato e no que se refere à análise
sobre a operacionalização dos acordos de Colaboração Premiada, pode-se afirmar que temos um
processo de desconfiança generalizado instalado, tanto nos procedimentos que elaboram, quanto nos
que autorizam e multiplicam esses acordos. A desconfiança é estabelecida a priori; é diversa e tanto
incide sobre a capacidade (moral/ética) do colaborador, quanto sobre o resultado de sua colaboração.

185
Assim, está mais do que claro que neste sistema a confiança não existe e, mais do que isso, existe
uma ação continuada, persistente e complexa, para evitar que não exista um sistema confiável.
Afinal, a ideia de sistema pressupõe uma continuidade e uma integração institucional. O
sistema jurídico brasileiro, ao contrário - reunindo em seu interior os subsistemas de Justiça e de
Segurança Pública -, é seccionado por suas agências (Polícia, Ministério Público, Defensoria e
Judiciário) que não se comunicam de forma articulada e competem entre si no exercício das suas
funções (KANT DE LIMA, 1995; NUÑES, 2016).
A confiança, nestes casos, não cumpre plenamente a função reivindicada por Luhmann: não
consegue confrontar e reduzir a complexidade social. Aparentemente, a redução da complexidade
está dependendo mais de fatores morais do que das articulações sistêmicas: depende de quão
confiantes e confiáveis estejamos no sentido da virtude da confiança; quão abertos fiquemos para o
“dom” da confiança e, finalmente, o quanto permanecemos comprometidos em criar uma “cultura”
de confiança em nossa sociedade.
Não podemos aplicar as ideias de Luhman à realidade brasileira sem fazer algumas
ressalvas, uma vez que a tradição brasileira (inquisitorial) é muito diferente das tradições alienígenas,
uma vez que define uma suspeição sistemática em todo o mundo jurídico. Sendo assim, as
instituições jurídica e policial no Brasil, desconfiam de tudo e de todos, o tempo todo. No sistema a
que Luhman se refere, a confiança é pressuposto, pois se trata de uma noção baseada em uma
sociedade normalizada, de mercado, e esta confiança está relacionada com os riscos, próprios da
sociedade de mercado. Nos EUA, por exemplo, temos o significado econômico do trust jurídico, que
está associado à transparência necessária para o funcionamento do mercado. No Brasil, no entanto, é
completamente diferente e o exemplo que também pode ser usado para representar essa ideia são os
cargos de confiança, que não estão ligados a essa noção de transparência, uma vez que podem ser
íntimos e sigilosos. Os exemplos demonstram que no modelo americano, o instituto trust, ligado à
confiança está ligado à ideia de transparência e acesso à informação. Já no Brasil, ao contrário, o
atributo da confiança relacionado ao cargo público tem atributos que apontam para o sigilo e para a
intimidade.

III. 6.2. Os anexos


Outra prática não regulada pela Lei nº 12.850, de 2013, mas criada e reproduzida pelos
membros do Ministério Público nos acordos de Colaboração Premiada, é a confecção de anexos,
assim considerados os termos que o colaborador firma e onde indica as práticas criminosas
desenvolvidas pelos coautores e das quais ele tem conhecimento. Segundo os entrevistados,

186
_ “Quando a gente faz o acordo de Colaboração Premiada, a gente faz a divisão dos
temas por anexos. O colaborador traz diversos fatos criminosos dos quais ele
participou ou teve conhecimento e nem sempre a gente usa todos os anexos de uma
vez só. Por exemplo, no caso do Carlos Miranda, foram mais de 80 anexos que ele
produziu e a gente já usou boa parte desses anexos, mas vários a gente ainda não
usou. Ainda estamos aprofundando as investigações. Alguns anexos foram para a
Justiça Eleitoral, outros vieram para cá... Então, assim, a celebração do acordo vem a
publico, mas não o conteúdo desse acordo. A gente tem essa preocupação, preservar
o sigilo para não ‘queimar’ aquela investigação e preservar o colaborador também”
(MPF3)

- “Isso foi também uma criação de Curitiba. A partir da experiência que eles tiveram
lá. Em vez de se colocar todos os fatos em um depoimento só, um anexo só. Aquilo
gera uma confusão enorme, porque alguns ali podem ser publicizados e outros não,
tem gente com foro privilegiado e gente que não tem. Então, eles criaram... O anexo
não está na lei, mas eles criaram. Eles criaram para cada fato vai ter um anexo da
Colaboração Premiada. Depois o colaborador vai prestar um depoimento. E cada
depoimento, que é gravado em áudio. Isto está na lei. A lei diz que quando puder, (o
depoimento) deve ser feito em áudio e vídeo. Para cada anexo a pessoa grava um
depoimento, explicando aqueles fatos. Entendeu? Isso tudo entra naquele processo.
O termo de colaboração em si, o acordo, formalizado, o termo de colaboração, os
anexos e o depoimento, com as declarações do colaborador e o áudio e o vídeo ficam
lá”.
(MPF3)

- “Normalmente, tem-se 10 anexos e faz-se a denúncia em relação a um fato que está


em um anexo. Esse anexo é tirado desse processo sigiloso e ele vai gerar uma nova
ação penal, com um número novo e, a partir daí, as partes têm acesso a esse anexo.
Os outros nove, não, porque tem fatos ali que são sigilosos e estão sob investigação
ainda. Então, o sigilo é dado de acordo com a... com o momento da ... é levantado no
momento do oferecimento da denúncia, para cada fato isoladamente. Porque senão
prejudica-se totalmente toda a investigação. Isso também foi uma criação de
Curitiba. A partir da experiência que eles tiveram lá”.
(MPF3)

- “Por exemplo, em matéria de delação premiada, a lei não fala como é que você
resolve o problema da confidencialidade na fase da negociação, antes da
homologação e de deflagrar a persecução criminal. Por outro lado, você tem
necessidade de confidencialidade no momento inicial e se tem necessidade de
possibilitar a ampla defesa e o contraditório no momento seguinte. Como é que essa
metodologia resolveu isso com algo que não está na lei e que hoje é realizada na
prática de maneira generalizada?
Através da divisão do acordo de Colaboração Premiada em tantos termos de
declarações quanto forem o objeto (a quantidade de fatos delatados), com anexos. Os
anexos não estão em lugar nenhum e foi uma invenção da Lava-Jato. Para conseguir
conciliar, elabora-se para cada objeto (delatado), um termo de declaração. Cria-se
um anexo. A lei não diz isso. Mas também não proíbe. Foi uma forma prática de se
conseguir extrair de uma colaboração um proveito maior. Porque parte daquilo vai
ter prova de corroboração imediata, mas outra parte daquilo não vai ter prova de
corroboração imediata. A delação única e exclusivamente com as declarações do
colaborador, não têm valor de prova. Isoladamente, a delação não sustenta uma
acusação. E como você tem graus diferentes de acesso à prova de corroboração em

187
relação aos diferentes fatos relatados pelo colaborador, quando se usa essa
metodologia de separar essa diferença de tempo de investigação de cada uma, não
atrapalha a efetividade. Porque eu já posso deflagrar e dar publicidade, o
contraditório, estabelecer a persecução em relação aquilo que já há prova de
corroboração (anexos 1, 2, 3...). E prosseguir com confidencialidade na reunião em
relação a outros, para que eles gerem uma solução depois. Seja uma promoção de
arquivamento, se dali não surgiu elementos suficientes, seja uma persecução no
tempo em que se obtiver a justa causa. Porque a gente tem essa responsabilidade
institucional de só perseguir com justa causa. Isso é uma invenção da Lava-Jato. E
está consolidada. E o Judiciário entendeu, aceitou, homologa. Ficou claro o que está
sendo feito. E hoje tem uma regulamentação do Conselho do Ministério Público
(Orientação nº 01), como proceder em termos práticos e que incorpora isso. Não está
na lei de 2013, mas está nessa regulamentação. De 2014 até agora isso já vinha
sendo feito sem ter regra nenhuma. Não estava na lei. Não estava escrito em lugar
nenhum. Isso foi sendo incorporado à pratica e que levou a que se criasse isso. Então
esse é um exemplo do que é esta metodologia diretamente relacionada ao seu tema”.
(MPF4)

Como afirmado pelos entrevistados acima indicados, o anexo constitui um termo de


declaração do colaborador onde este descreve, exclusivamente, um fato criminoso ou um conjunto de
fatos criminosos inter-relacionados entre si. Trata-se de expediente que não está regulado pela Lei nº
12.850, de 2013, mas foi criado pelos operadores de Curitiba e está em prática desde 2014, como os
próprios entrevistados afirmaram. Ou seja, foi criado desde o momento em que estes atores entendem
que as Operações Lava-Jato se iniciaram.
Ainda segundo os entrevistados, são produzidos tantos anexos (ou termos de depoimento)
quantos forem os números de crimes (ou conjunto de crimes que guardam conexão ou relação entre
si) delatados pelo colaborador e estes documentos integram, juntamente com o Termo de
Confidencialidade assinado pelo membro do Ministério Público, os autos do procedimento de
Colaboração Premiada.
Por fim, também é informado que em 2018, o Ministério Público editou a norma interna que
regulamenta os atos praticados por seus membros em relação à Colaboração Premiada (Orientação
Conjunta nº 01/2018), já referida, e onde esta prática de elaboração de anexos está prevista. Segundo
esta norma,
13. Incumbe à defesa instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos
adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando as provas e os
elementos de corroboração.
13.1. Cada fato típico descrito ou conjunto de fatos típicos intrinsecamente ligados
deverá ser apresentado em termo próprio e apartado (anexo) a fim de manter o
necessário sigilo sobre cada um deles e possibilitar sua investigação individualizada;
13.2. Os anexos devem conter, no mínimo, os seguintes elementos:
a) descrição dos fatos delitivos;
b) duração dos fatos e locais de ocorrência;
c) identificação de todas as pessoas envolvidas;
d) meios de execução do crime;

188
e) eventual produto ou proveito do crime;
f) potenciais testemunhas dos fatos e outras provas de corroboração existentes em
relação a cada fato e a cada pessoa;
g) estimativa dos danos causados;
13.3. Os anexos poderão consistir em termos de autodeclaração assinados pelo
colaborador e seu advogado ou Defensor Público;
13.4. No momento de tomada dos depoimentos, cada anexo originará um termo de
declaração.
(BRASIL, 2018)

Assim, de acordo com esta orientação, incumbe à defesa instruir, tanto o pedido de
Colaboração Premiada quanto os anexos, com a descrição, pormenorizada dos fatos criminosos: sua
duração temporal; local de ocorrência; identificação dos delatados; meios empregados para a
execução do crime; eventual proveito ou produto obtido com o crime; testemunhas ou outras provas
que comprovem cada fato ou o envolvimento de cada pessoa delatada. Além disso, cada anexo gera
um termo de declaração do colaborador.
Dentre outras consequências, esta divisão do acordo de Colaboração Premiada, em tantos
anexos quanto forem os crimes delatados, resulta em: a) cada fato típico descrito ou o conjunto de
fatos típicos intrinsecamente ligados a um delatado deve ser registrado em um anexo em separado, a
fim de manter o necessário sigilo sobre cada um dos delatados e possibilitar sua investigação
individualizada; b) cada anexo (termo de declaração) poderá originar uma denúncia, também em
separado dos demais fatos criminosos apontados pelo colaborador e, consequentemente, o processo
judicial correspondente, ainda que o colaborador funcione em todos eles como testemunha; c) cada
anexo pode resultar procedimentos judiciais em instâncias e instituições distintas, conforme a
natureza da infração (penal, tributária, administrativa) ou o status do delatado (com ou sem foro de
prerrogativa).
A finalidade dessa separação atinge também o delatado, já que este apenas terá acesso aos
documentos e provas relacionados a(s) sua(s) infração(ões), exclusivamente. Todo o resto informado
pelo colaborador - na medida em que toca em delações relacionadas a outros infratores -, não será do
seu conhecimento.
Em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal foi estabelecido que o investigado
teria assegurado o acesso aos elementos de prova carreados na fase de inquérito e que o regime de
sigilo consagrado na Lei 12.850/2013 guarda perfeita compatibilidade com a Súmula Vinculante 14,
que garante ao defensor legalmente constituído o direito de pleno acesso ao inquérito (parlamentar,
policial ou administrativo), mesmo que sujeito a regime de sigilo (sempre excepcional), desde que se
trate de provas já produzidas e formalmente incorporadas ao procedimento investigatório, excluídas,
consequentemente, as informações e providências investigatórias ainda em curso de execução e, por

189
isso mesmo, não documentados no próprio inquérito ou processo judicial (HC 93.767, Relator(a):
Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 1 de abril de 2014).
Os entrevistados, por sua vez, justificam esta separação afirmando que ela se destina
justamente a observar a Súmula Vinculante nº 14, do Supremo Tribunal Federal, já comentada,
assegurando ao investigado/acusado o direito de acessar as declarações do colaborador e demais
informações produzidas contra ele (somente contra ele), sem que tenha conhecimento da existência
de outras medidas investigativas que poderiam ser frustradas em caso de levantamento do sigilo de
todas as declarações produzidas pelo colaborador. Desta forma, os delatados somente têm uma visão
parcial do que a acusação sabe.
Esta orientação também decorre do fato de que o campo jurídico entende que um elemento
probatório só será considerado como prova, depois de passar pelo crivo do contraditório, ou seja,
após chegar à fase judicial, onde cada parte que compõe a relação processual apresentará suas teses
acerca da verdade que pretendem demonstrar para o juiz e rebaterão a tese da parte contrária.
Afirmam esses discursos que a prova só adquire esse status quando já existe uma acusação
formalmente promovida, em razão da denúncia acolhida pelo juiz (CAPEZ, 2017). E que a atuação
do juiz no processo é sempre imparcial233. Dessas orientações decorrem três ideias: primeiro, que os
elementos de informação colhidos na fase investigativa somente serão considerados como provas
depois que passarem pela etapa judicial; segundo, que o juiz julgará com base nas provas colhidas
pelas partes e terceira, que quando o magistrado produz prova, não se deixa contaminar pelos seus
resultados.
Também conforme a ficção legal, os procedimentos investigatórios iniciais de um
procedimento judicial dele não se constituem, necessariamente, parte definitiva e substancial, porque
ainda não há, formalmente, um processo judicial. Segundo esse entendimento, os atos promovidos na
investigação preliminar - que antecedem a instauração da ação penal – resultariam, em tese, em
indícios ou evidências.
Na prática, no entanto, estes atos possuem força probatória, já que são considerados como
pré-requisito, tanto para a condenação, quanto para a absolvição do acusado. Além disso, os autos do
inquérito policial e do procedimento de investigação criminal são anexados ao processo judicial,
inaugurando, por assim dizer, sua autuação. Desta forma, os dados, informações e elementos

233
Dentre outros, Streck (idem) afirma que mesmo estando autorizado a agir de ofício, o juiz “não pode se colocar de um
lado do processo, olvidando a necessária imparcialidade, que deve ser entendida, no plano do Constitucionalismo
Contemporâneo, como o princípio que obriga o juiz a uma fairness (Dworkin), isto é, a um jogo limpo, em que as
provas são apreciadas com equanimidade. Isso também quer dizer que, mesmo que possa agir de ofício, o juiz não o
faça agindo por políticas ou circunstâncias de moralidade, e sim por intermédio dos princípios constitucionais”.

190
probatórios ali reproduzidos, constituem parte do processo e podem ser consultados pelo juiz e pelas
partes.
Como afirmado acima, em 2018 o Ministério Público criou norma que nem mesmo o
legislador havia previsto na Lei nº 12.850, de 2013, ao estabelecer a confecção dos anexos, impondo,
inclusive, à defesa a obrigação de instruí-los. E mais, segundo ainda os entrevistados, esta prática já
vinha sendo adotada antes mesmo da edição desta norma. De acordo com tais declarações as provas
são produzidas nessa fase preliminar, significando que em relação ao delatado sua culpa já está
formada.
Outro fato relevante é que quando a defesa instrui a Colaboração Premiada, apontando não
apenas os fatos criminosos praticados pelo próprio colaborador, mas também aqueles que os
coautores praticaram, realiza uma atividade que, até então, cabia ao Estado: a incriminação dos
agentes, já que apontar o crime com todas as suas circunstâncias; os meios de execução; o
estabelecimento dos danos etc., são atividades que justificam a acusação, constituem a justa causa
para o Estado acusar e condenar alguém. Assim, o instituto estaria alterando completamente o papel
da defesa no processo penal brasileiro, podendo-se afirmar que a inquisitorialidade penal é de tal
ordem que até a defesa é mitigada nesses acordos.
Kant e Mouzinho (2016) já alertaram para a alteração dos comportamentos dos atores
envolvidos na delação premiada, logo nas primeiras Operações Lava-Jato, quando este instituto
começou a ser empregado, os advogados, inicialmente eram combativos, chegando até mesmo a
rejeitarem realizar a defesa de clientes que desejassem delatar. No entanto, como as delações
continuavam a acontecer - mesmo contrários ao caráter arbitrário das prisões e a produção de provas
a partir dessas práticas -, os advogados passaram a utilizar a delação como técnica de defesa.
Ainda que se mantenham alguns discursos como os dos entrevistados - que afirmam que a
Colaboração Premiada consiste em valiosa ferramenta defensiva, manifestação de autodefesa e, por
conseguinte, mecanismo que privilegia a ampla defesa -, recentemente, algumas vozes na doutrina
jurídica do país, criticaram com mais veemência o quanto este modelo de justiça penal negocial “à
brasileira” tem deteriorado a relação advogado-cliente, já que nem mesmo a competência técnica e a
boa intenção destes profissionais têm sido suficiente para evitar a escolha de opções não
necessariamente ideais para a defesa do acusado, o que tem afastado estes profissionais “de sua
característica posição de resistência à pretensão punitiva estatal” (VASCONCELLOS, 2015, p. 185).
Os casos de crimes macroeconômicos que se tornaram alvo das Operações Lava-Jato e
correlatas mobilizam também os profissionais de defesa com condições físicas e econômicas de
suportá-las, afinal são causas que exigem (quase sempre) dedicação exclusiva. Estas causas, portanto,
não se inserem na realidade de todos os advogados brasileiros e, menos ainda, das Defensorias

191
Públicas do país, cujos profissionais, geralmente, são vinculados a determinado(s) Juízo(s), oficiando
nos processos em curso neste(s) órgão(s). Esta circunstância gera um mercado específico e
especializado desses profissionais.
Além da competência técnica e da disponibilidade de recursos financeiros para fazer frente a
estas atuações, alguns advogados que atuam nestes casos também acabaram sendo alvo de
investigações. Escutas telefônicas, quebras de sigilos bancários, entre outras medidas investigativas,
já atingiram alguns desses profissionais234. Antes de terminar esse texto, a notícia de tal prática contra
um conhecido escritório de advocacia, que, inclusive, é responsável pela defesa do ex-presidente
Michel Temer – investigado pela prática de corrupção e lavagem de dinheiro para beneficiar
indevidamente empresas do setor portuário, entre outros crimes235 -, mobilizou centenas de
advogados e o próprio Instituto de Advogados do Brasil, que repudiaram o que consideraram ser uma
forma de criminalizar a advocacia236.
Como a pesquisa não conseguiu ouvir estes atores, os dados aqui reproduzidos foram
retirados das principais mídias do país. O exemplo que considero mais emblemático, neste sentido,
foi a quebra de sigilo telefônico e telemático dos advogados que cuidam dos processos criminais em
que é acusado o ex-presidente Lula da Silva, onde houve decisões mantendo e retirando tais escutas
telefônicas, proferidas pelo mesmo tribunal. Neste caso, tais escutas apenas foram autorizadas pelo
Tribunal porque os Procuradores da Lava-Jato de Curitiba praticaram uma dissimulação, indicando o
número do telefone dos advogados, como se fosse uma empresa particular. O tribunal levou mais de
quatro meses para decretar a ilegalidade desta medida e a determinar a destruição de todas as
informações levantadas. O próprio juiz responsável pelo caso e que autorizou a interceptação
telefônica, alegou não ter tido tempo de ler todos os documentos que instruíram o processo criminal.
Um ano antes, este mesmo juiz havia se desculpado perante o Supremo Tribunal Federal por outro

234
Desde 2007, ao menos, já havia notícias desta prática. Neste sentido, a divulgada em
https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI38931,51045-
OAB+decide+enfrentar+grampos+e+escutas+que+atingem+advocacia. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal foi
acionado para apreciar essa discussão quando julgou a Medida Cautelar interposta no Habeas-Corpus nº 129.569,
impetrado contra o próprio Supremo Tribunal, em razão do Ministro Teori Zavaski ter autorizado o pedido da
Procuradoria-Geral da República sobre a quebra de sigilos fiscal e bancário de dois escritórios de advocacia, visando
apurar a origem dos honorários recebidos pela defesa de um deputado federal, investigado pela Operação Lava-Jato.
Em seu julgamento, em 30 de julho de 2015, o Ministro Ricardo Lewandowski se manifestou no sentido de defender a
preservação da confidencialidade que rege a relação entre cliente e advogado, inclusive no que toca à origem dos
honorários advocatícios percebidos, notadamente para resguardar o sigilo profissional dos advogados e o direito de
defesa, conforme divulgado em https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/202886/STF-quebra-sigilo-de-advogados-
para-investigar-origem-de-honor%C3%A1rios.htm e https://www.jusbrasil.com.br/topicos/56108231/processo-n-
129569-do-supremo-tribunal-federal.
235
Conforme divulgado em https://oglobo.globo.com/brasil/stf-manda-os-quatro-inqueritos-contra-temer-para-primeira-
instancia-23427433.
236
Conforme divulgado em https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/384119/Advogados-e-juristas-reagem-a-quebra-de-
sigilo-de-advogado-de-Temer.htm e https://www.iabnacional.org.br/iab-na-imprensa/para-advogados-quebrar-sigilo-de-
mariz-e-tentativa-de-criminalizar-a-advocacia.

192
“grampo”, também autorizado por ele e contra os mesmos advogados, ocasião em que se
comprometeu a destruir todos estes procedimentos realizados o que, segundo matéria jornalística,
nunca o fez237.
Dentre as decisões emitidas pelo Supremo Tribunal Federal, o Ministro Celso de Mello se
manifestou no sentido de não autorizar esta prática, quando afirmou que “A lei antilavagem – frise-se
bastante esse ponto – não alcança a advocacia vinculada à administração da justiça, porque, do
contrário, se estaria atingindo o núcleo essencial dos princípios do contraditório e da ampla defesa”
(ADI 4.841/DF, Rel. Min. Celso de Mello).
Todavia, como adverte De Seta (2015), há possibilidade de esta corte suprema decidir de
forma diferente em outra oportunidade, já que suas decisões não decorrem da formação de consensos
sobre o mérito deste e de todos os assuntos que examina. De acordo com a autora, nas decisões dos
órgãos colegiados (o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal do Júri), a lógica que impera não é a do
consenso, mas a do contraditório. Os votos elaborados pelos ministros partem de verdades
individuais, iluminadas e como os julgamentos dessa Corte acabam não demonstrando a posição do
órgão sobre os temas propostos, estes podem ser reapresentados a qualquer momento em novas ações
e, se for o caso, serem decididos diferentemente a cada caso, sem que esta “desconformidade” seja
explicitada. De acordo com a autora, tal desconformidade “fica oculta em votos literários,
demonstradores de cultura religiosa, histórica, filosófica, mas que deixam no vazio o mérito sobre o
qual tem que se manifestar” (DE SETA, idem, p. 159-160).
A autora citada também demonstra que os Ministros do Supremo Tribunal Federal se
consideram livres para avaliar ou não os processos que lhes são encaminhados. Vale dizer, o órgão
julga não o que é apresentado nas ações, mas o que os Ministros quiserem julgar. Isso significa,
segundo a autora, que com essa atuação o princípio do “ne procedat judex ex officio” (não pode atuar
ex oficio, ou fora dos limites contidos nos pedidos das partes) é violado frontalmente. Assim, a corte
suprema brasileira funciona à revelia da própria legislação processual e constitucional – quase como
um tribunal de exceção – e somente eventualmente suas decisões são efetivamente plenárias, o que
contribui, de forma sistemática, para seu déficit de legitimidade (DE SETA, idem, 158).

III. 7. QUAIS CLÁUSULAS SÃO INSERIDAS NO ACORDO DE COLABORAÇÃO


PREMIADA?

237
Conforme divulgado em https://www.conjur.com.br/2017-nov-08/trf-mantem-grampos-advogados-processos-lula e
https://www.conjur.com.br/2018-mar-14/trf-ordena-destruicao-grampos-ramal-advogados-lula.

193
III. 7.1. A cláusula que obriga o colaborador a contar tudo o que sabe
De acordo com um dos entrevistados, também se originou das práticas de Curitiba a criação
de cláusula que exige que o colaborador revele não apenas o fato criminoso do qual participou, mas
também todos os fatos de que tem conhecimento, ainda que estes últimos não tenham relação com a
organização criminosa a que pertence o colaborador/delator. Assim, a omissão de fatos conhecidos
pelos colaboradores equivale à mentira, para fins de rescisão do acordo.
Segundo este entrevistado,
- “A grande diferença do trabalho feito na Lava-Jato lá em Curitiba e que aí depois
passou a ser padrão dentro da Lava-Jato tanto aqui no Rio de Janeiro, quanto na
PGR em São Paulo, enfim... O padrão mesmo, que vem sendo utilizado, mas a
“sacada” foi lá de Curitiba, é exigir que o colaborador revele, não só os fatos do qual
ele tenha participado, relacionados à organização criminosa, identificada, como
também todos os fatos que ele tenha conhecimento. Enfim, todos os fatos mesmo,
independentemente de ter ou não relação com aquela organização criminosa
investigada”.
(...)
Nós tivemos a compreensão que era mais interessante saber todos os fatos
criminosos que ele praticou. E como é que a gente consegue isso? Se a lei só exige
que ele revele os fatos relacionados à organização criminosa, como é que se pode
exigir mais do que isso? Aí, entra o modelo negocial.
Na Colaboração Premiada você vai entabular um acordo. Na minha visão, tem a
natureza jurídica de um negócio jurídico processual, em que se vai ajustar diversas
cláusulas, inclusive esta.
(MPF5)

Assim, de acordo com este entrevistado, como o Ministério Público tem o poder de
investigar, é preciso, não apenas, saber todos os fatos criminosos que o colaborador praticou, mas
também todos os fatos que ele tenha conhecimento. Ainda segundo o entrevistado, como a Lei nº
12.850, de 2013 apenas exige a primeira condição, a maneira encontrada por estes operadores para
obterem tais informações dos colaboradores foi criando uma cláusula que os obrigasse a realizarem
tal comportamento. Uma vez descumprida esta cláusula, os colaboradores perdem os “benefícios
penais” pactuados ou pode ocorrer a rescisão do acordo, segundo a vontade do representante do
Ministério Público, neste sentido.
Em geral, esta cláusula pode conter a seguinte redação:
CLÁUSULA 3ª - Estão abrangidos no presente acordo os crimes que tenham sido
praticados pelo COLABORADOR até a data de sua assinatura, assim como todos os
fatos ilícitos que sejam de seu conhecimento, que estão tratados nos anexos e
depoimentos colhidos, que compõem e integram o presente acordo238.

238
Trecho retirado de exemplos de acordos de Colaboração Premiada que contém esta cláusula e que foram divulgados
pela mídia. Ver em https://www.conjur.com.br/dl/lewandowski-devolve-acordo-delacao.pdf. Outros exemplos podem
ser vistos em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2017/02/Acordo-de-
colabora%C3%A7%C3%A3o-premiada.pdf e https://estaticog1.globo.com/2016/06/15/PET-6138-Delacao-
SergioMachado-VOLUME001.pdf.

194
Esta também é mais uma cláusula que apenas interessa à parte acusadora e cuja finalidade é
ampliar o foco da investigação criminal para todos os lados, ou, parafraseando um personagem de
ficção infantil, “ao infinito e além”.
Trata-se, portanto, de obrigação não imposta pela lei, mas criada pelos operadores, o que,
mais uma vez revela a liberdade destes atores na aplicação dos acordos de Colaboração Premiada.
Vale dizer, mesmo quando há tratamento legal, as lógicas apregoadas pelos discursos jurídicos sobre
a limitação da atividade estatal não são suficientes para impedir a atuação extra legem destes
operadores. Sendo assim, cânones tradicionais acerca da legalidade ou da reserva legal penal – que
afirmam o limite da atuação do Estado baseado no que impõe a lei239 - também são afastados para
viabilizarem as práticas destes acordos (da forma como os entrevistados os descrevem e que a mídia
divulga), sem que seus atores percebam (ou afirmem) que estão atualizando, de maneira muito
peculiar, o princípio da legalidade e, em sua decorrência, os discursos sobre o Estado Democrático de
Direito brasileiro. Confirma-se, assim, a tradição inquisitorial do processo penal brasileiro em busca
da verdade absoluta, da verdade real.

III. 7.2 A cláusula que estabelece os “benefícios penais”


Os “benefícios penais”, categoria utilizada pelo campo para se referir às respostas penais
aplicadas aos colaboradores pelo Estado, representado nessa atividade, pelo Ministério Público
Federal. Em geral se referem à espécie de pena; à quantidade de tempo de sua duração (geralmente
estabelecida em anos); ao local ou ao regime de cumprimento dessa pena; à possibilidade de isenção
de pena (perdão judicial), ou à imunidade penal decorrente do não oferecimento da denúncia, como
afirma o entrevistado abaixo:
- “Pode haver redução de pena; cumprimento de pena em regime mais benéfico;
imunidade penal. Na verdade, a Colaboração Premiada remete mais a um momento
muito pontual, que é excepcionalíssimo: que é o de não se promover a ação penal ou
oferecer uma imunidade, porque isso a lei permite, dependendo do acordo. Mas ela
também alcança um contexto maior. Porque, normalmente, quando o colaborador se
dispõe a fazer um acordo, ele traz fatos que não repercutem só na atuação dele. E
nem sempre ele está sujeito apenas a uma ação penal. Mesmo quando envolve
apenas uma ação penal ou uma pena específica, inevitavelmente, haverá uma

239
Refiro-me aos autores jurídicos consagrados pelo campo, como Meirelles (2005), que afirmam que a legalidade se
refere à limitação dos atos dos agentes do Estado, que só podem atuar com base na lei, o que acarreta, como
consequência, uma garantia para o administrado: de que só está obrigado a fazer o que a lei determina e se as exigências
dos agentes estatais não estiverem de acordo com a lei serão invalidadas pelo controle do Poder Judiciário. Por outro
lado, em matéria penal, Toledo (1994) defende que a Constituição obriga a sua regulamentação através de lei em
sentido formal (em seus artigos 22, inciso I e 59 e seguintes), ou seja, obediente ao procedimento legislativo realizado
pelo Congresso Nacional. Adotada essa perspectiva, o entrevistado estaria atuando como legislador quando estabelece
cláusula não prevista em lei.

195
consequência processual para ele. Então, ele vai ter uma pena reduzida, ou ele
deixará de ser processado, se aquela pena alcançar um determinado patamar. Enfim,
são construções que eu diria que são doutrinárias, que levam em consideração esses
aspectos. Deixa-se de atuar (ingressar com a ação) em face daquele determinado
indivíduo, por conta desses outros episódios pelos quais ele responderia se não
houvesse o acordo”.
(MPF1)

O entrevistado afirma que além da redução da pena, os acordos de Colaboração Premiada


podem conter a opção de não promoção da ação penal, ou seja, o não oferecimento da denúncia pelo
órgão de acusação. Inicialmente, vale lembrar, como já afirmado no item III.4 deste capítulo, que o
Manual de Colaboração Premiada da ENCCLA, afirma que não deve ser homologada proposta de
acordo contendo prévia definição de pena e de regime de cumprimento, uma vez que, realizada em
fase que antecede a instauração do processo judicial, caso houvesse homologação, implicaria duplo
julgamento antecipado do mérito da ação penal, tanto em relação ao juízo de condenação, quanto ao
juízo acerca da presença dos requisitos legais para a aplicação da causa de diminuição da pena.
Assim, segundo esta orientação, somente depois de observada a eficácia da colaboração pelo juiz, é
que se poderia, na fase de elaboração da sentença, determinar o quanto de redução de pena deveria
ser aplicado e também o regime do seu cumprimento. Por isso, a recomendação desta normativa:
“Ninguém pode prometer e o juiz não pode homologar aquilo que não se saberá se poderá ser
efetivado. Recomenda-se que os termos do acordo fiquem limitados às possibilidades mencionadas
no “caput” do art. 1.º da Lei 12.850/13” (BRASIL, 2014).
Ainda segundo este manual, a atividade homologatória inicial do juiz, corresponderia ao
exame que este operador realiza quando se trata do pedido de prisão em flagrante, isto é, sua
avaliação consistiria na verificação do preenchimento dos pressupostos materiais - cláusulas válidas,
legais e que respeitam os princípios gerais de Direito, a moral, a ordem pública e os bons costumes -
e formais - relato da colaboração e seus possíveis resultados; legitimidade daqueles que participaram
do acordo; vontade livre e informada; declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; as
assinaturas; a presença de defensor e a especificação das medidas de proteção, quando fosse o caso.
Conforme esta orientação, dependendo do atendimento destes requisitos, caberia ao juiz homologar,
recusar integralmente ou parcialmente a proposta.
Por fim, esta normativa também ressalta que o instituto da Colaboração Premiada não
afasta o princípio do devido processo legal na ação penal, de tal forma que a previsão de “benefícios
penais” fora dos limites legais poderia evidenciar um abuso ou erro por parte dos agentes do Estado,
se ao final do processo o colaborador viesse a ser absolvido. Assim, segundo esta orientação, entre a
confissão/colaboração e a aplicação da causa de diminuição da pena ou do perdão judicial - que

196
somente deveria acontecer na sentença condenatória -, seria desenvolvido o devido processo legal e,
por tais razões não deveriam ser homologados acordos que trouxessem predefinidos o quanto de
redução de pena a ser aplicado ou o regime de seu cumprimento.
Comparando o texto desta normativa com a afirmação do entrevistado, percebi que este
operador estava atualizando tal orientação. Além disso, o entrevistado afirmou também que o
colaborador deixará de ser processado, mesmo respondendo a outras ações penais, quando as penas
atingirem o “patamar” daquela estabelecida no acordo. Esta prática foi apontada por outro
entrevistado, já referido, quando afirmou que a pena estabelecida no acordo vincula as demais
instituições que aderem a este pacto, de tal forma que mesmo que venham a promover outros
procedimentos punitivos, o “teto” ou o “patamar” deverá ser respeitado, quer dizer, a quantidade
máxima de pena estabelecida no acordo vinculante deverá ser obedecida por todas as demais.
O não oferecimento da denúncia está previsto no § 4º, do artigo 4º, da Lei nº 12.850, de 2013,
quando o legislador expressamente declara que o Ministério Público poderá deixar de oferecer
denúncia se o colaborador não for o líder da organização criminosa e/ou se for o primeiro a prestar
efetiva colaboração nos termos deste artigo, desde que da colaboração advenha os resultados
previstos no artigo 4º desta Lei240. Neste caso, a investigação é arquivada, a pedido do Ministério
Público, podendo ser novamente suscitada se surgirem provas novas, ou seja, nos mesmos moldes em
que acontece o arquivamento do inquérito policial que versam sobre crimes comuns (artigo 28, do
Código de Processo Penal).
O caput do artigo 4º, da Lei nº 2.850, de 2013, afirma que o perdão judicial; a redução em até
2/3 (dois terços) da pena privativa de liberdade ou sua substituição por penas restritivas de direitos
são atos da competência do magistrado. Esta norma apenas reserva ao Ministério Público (ou o
Delegado de Polícia) - considerando a relevância da Colaboração Premiada prestada pelo
colaborador -, a possibilidade de representarem ao juiz, no sentido de aplicar o perdão judicial ao
colaborador tal como previsto no § 2º, do artigo 4º, da Lei de 2013. Vale dizer, o Ministério Público -
a qualquer tempo -, e o delegado de polícia (nos autos do inquérito policial, com a manifestação do
Ministério Público) podem requerê-lo, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta
inicial do acordo de Colaboração Premiada. Desta forma, também a Lei nº 12.850, de 2013 estava
sendo atualizada pelo entrevistado.
240
LEI Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013 – Artigo 4º: O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão
judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele
que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa
colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da
organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de
tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização
criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela
organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada (BRASIL, 2013).

197
Quando o entrevistado defende que além de não oferecer a denúncia, também possui
competência para reduzir a pena, não está sozinho. A mesma informação foi prestada por outro
entrevistado, quando afirmou que:
- “Então, na nossa visão, o Ministério Público, como titular da ação penal pública,
que por disposição legal tem a possibilidade de oferecer, por exemplo, o perdão ou a
imunidade, por mais razão ele pode oferecer o regime de cumprimento mais
benéfico, ou um redução quantitativa da pena que o colaborador vai cumprir.
Isso é uma faculdade dada ao Ministério Público pela lei e só fortalece o instituto. É
um grande ‘chamarisco’ para a colaboração, justamente por ser a maior expressão da
segurança jurídica que o pretenso colaborador almeja”.
(MPF2, sic)

De acordo com a afirmação acima, o Ministério Público pode não só reduzir a pena como
também oferecer o regime de cumprimento de pena mais benéfico ao colaborador241. Para justificar
“seu ponto de vista” o entrevistado afirma que se “por disposição legal” o Ministério Público pode
oferecer o perdão judicial ou a imunidade penal (traduzida pelo não oferecimento da denúncia), por
mais razão pode oferecer estas medidas relativas à redução da quantidade de pena e do regime do seu
cumprimento242.
Estas declarações sugerem que, na prática, estes atores atuam contra legem e para justificar
tal liberdade de interpretação do texto legal, os entrevistados empregam a máxima que prevalece no
Direito, reproduzida na fórmula latina “in eo quod plus est semper inest et minus” (quem pode o

241
Em sentido contrário ao que entende o entrevistado, parte da doutrina jurídica brasileira critica esta liberdade de
criação das respostas penais pelo Ministério Público, já que vem possibilitando a estipulação, inclusive, de “regime
aberto diferenciado”, em diversos acordos. Segundo alguns autores, este regime existe apenas na imaginação daqueles
que o propõem, pois não há tal regime no ordenamento jurídico brasileiro (Código Penal e Lei de Execuções Penais).
Neste sentido, Aury Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa, já afirmaram que “quanto ao regime de cumprimento da
pena: de onde saíram esses regimes semiaberto diferenciado, aberto diferenciado, que constam em tantos acordos
feitos em Curitiba? São diferenciados do que está na lei! São ilegais, mais uma invencionice sem base legal” (LOPES
JÚNIOR e ROSA, 2017).
242
Os regimes de cumprimento de pena estão previstos nos artigos 110 e seguintes da Lei de Execuções Penais – LEP
(Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984) e nos artigos 33 e seguintes do Código Penal. De acordo com este último texto,
“Art. 33 - A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime
semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado. § 1º - Considera-se: a) regime fechado a
execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em
colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou
estabelecimento adequado. § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva,
segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime
mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o
condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio,
cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos,
poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. § 3º - A determinação do regime inicial de cumprimento da pena
far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código. § 4 o O condenado por crime contra a
administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que
causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais (BRASIL, 2017).

198
mais, pode o menos), regra hermenêutica que se traduz na ideia segundo a qual se a lei não proíbe
alguma conduta mais importante, também não o faz em relação a de menor importância243, já citada.
Curioso observar que a declaração acima preconiza uma peculiar aplicação do principio da
legalidade, cuja sede constitucional reside na máxima “ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de
fazer algo, senão em virtude da lei”, o que constitui fundamento primordial do Estado Democrático
de Direito. No entanto, o princípio da legalidade produz efeitos diferentes quando aplicado em
âmbito de direito público, ou de direito privado. Segundo Bandeira de Melo (2010), o princípio toma
um aspecto estrito quando aplicado no âmbito público e um sentido amplo, quando se refere ao
domínio privado. Em sentido estrito, o princípio de legalidade impõe que só e dado ao Estado fazer
aquilo que está previsto em lei. Portanto, no âmbito do direito público, o silêncio da lei significa uma
proibição. Por outro lado, quando aplicado ao direito privado, tudo é permitido, desde que a lei não
proíba, Neste caso, o silêncio da lei constitui uma permissão.
Assim, se houvesse o silêncio da lei, o Ministério Público, por ser órgão do Estado, estaria
proibido de fazê-lo. No entanto, a lei é expressa ao dizer que “O juiz poderá, a requerimento das
partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou
substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a
investigação e com o processo criminal” (caput, do artigo 4º). Vale dizer, a lei não é omissa. Não há
lacuna da lei. A lei expressamente declara que é competência do juiz aplicar a redução da pena ou sua
substituição, assim como aplicar o perdão judicial.
Em muitas oportunidades, para legitimar a interpretação legal realizada pelos agentes
estatais, seus discursos se apropriam do viés deste brocardo originário do latim, do direito romano,
que é a Teoria dos Poderes Implícitos, criada pela Suprema Corte norte-americana, quando julgou
o caso MacCulloch vs. Marland 244 e passou a considera-la como regra de hermenêutica
constitucional. Esta orientação, também presente na doutrina jurídica brasileira, entende que
243
Na doutrina, Maximiliano (1981, pp. 245-246) afirma que “Non debet cui plus licet, quod minus est no licere. In eo
quod plus est semper inest et minus: ‘Quem pode o mais, pode o menos’ (Literalmente: ‘Àquele a quem se permite o
mais, não deve-se negar o menos. No âmbito do mais sempre se compreende também o menos’).” De acordo com este
autor, “quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos
particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as
circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar
nenhuma das expressas.” Trata-se de argumento a fortiori, presente na retórica jurídica.
244
Este caso tem início em 1816, quando o Congresso norte-americano cria o Segundo Banco dos Estados Unidos. Em
1818, o estado de Maryland aprovou uma lei que obrigou o banco ao pagamento de diversas taxas. MacCulloch era
funcionário do banco de Baltimore e se recusou a pagar as taxas estaduais, ingressando com a referida ação. Neste
processo foram discutidas duas questões: se o Congresso dos Estados Unidos tinha a autoridade para criar um banco e
se a Lei do estado de Maryland poderia estabelecer o pagamento de tributos para um banco de propriedade da União. A
Suprema Corte estabeleceu que se tratava da aplicação da cláusula da supremacia (supremacy clause) da Constituição e
das leis federais, prevista no artigo 6º, da Constituição dos Estados Unidos, e entendeu que o Congresso Nacional
daquele país possuía inúmeros poderes não explícitos na Constituição Federal e que, apesar de os Estados poderem
instituir tributos, a Constituição e as leis federais eram supremas e não podiam ser limitadas ou submetidas à vontade do
legislador estadual (RANGEL, ibidem).

199
quando o constituinte concede a determinado órgão ou instituição uma função (atividade-fim),
implicitamente lhe estará concedendo também os meios necessários para tal propósito, sob o risco
de este órgão ou instituição não conseguir desempenhar a atividade constitucional que lhe foi
determinada245 (RANGEL, 2003, pp. 177-183).
Assim, para os entrevistados, se é possível ao Ministério Público no acordo de Colaboração
Premiada estabelecer como “benefício” o perdão judicial ou a imunidade do colaborador, tais
atividades são consideradas, então, como “o mais”, logo, também seria possível “o menos”, que seria
a redução da pena acima da fração máxima de 2/3 prevista na Lei 12.850/2013, a substituição de pena
e, até mesmo, a invenção de um regime de cumprimento de pena não previsto no Código Penal ou na
Lei de Execuções Penais.
Esta forma de apropriação de institutos estrangeiros pelo campo jurídico brasileiro já foi
objeto de crítica em outro local (ALMEIDA, 2014), quando afirmei que sem examinar as
condições históricas, culturais, econômicas, sociais e jurídicas de onde o instituto se originou, os
operadores jurídicos brasileiros esperam que o instituto importado consiga produzir aqui os
mesmos resultados e com a mesma eficácia onde tem origem.
O que chama a atenção é que tanto o enunciado em latim quanto a fórmula estadunidense
aplicam-se às hipóteses decorrentes do silêncio da norma, mas a atividade referida pelo
entrevistado encontra-se expressamente regulada pela lei e se dirige à competência do magistrado.
A categoria competência constitui, para o campo jurídico, uma modalidade de poder do qual se
servem os órgãos, agentes ou entidades estatais para realizarem suas funções e está adstrita aos
princípios constitucionais da indisponibilidade de competência, segundo o qual a competência
constitucionalmente fixada não pode ser transferida para órgãos diferentes daqueles a quem a
Constituição as atribui; o da tipicidade da competência, que determina que as competências dos
órgãos constitucionais sejam, em regra, apenas as expressamente enumeradas na Constituição e o
da conformidade funcional, por meio do qual a norma constitucional regula de determinada forma
a competência e a função dos órgãos, os quais devem se manter limitados a elas, não podendo ser
modificadas por via interpretativa (MEIRELLES, idem).
A afirmação do entrevistado também remete à distinção que Kant de Lima (2013) fez entre
a discretion/accountability e a discricionariedade: a primeira é um atributo das instituições do
EUA, que permite que os representantes das instituições jurídicas atuem contra a lei, embora
possam ser criminalizados por isso. Já a discricionariedade - equivocadamente interpretada pelos

245
Neste sentido, SILVA et all (1998, pp. 251-252).

200
operadores jurídicos brasileiros -, sempre estaria dependendo de uma avaliação posterior quanto à
legalidade da atuação ou da omissão dos agentes públicos.
Como lembra o autor, na tradição jurídica norte-americana a responsabilização dos agentes
públicos implica a liberdade de a autoridade optar pela conveniência de atuar ou não no caso
concreto, conforme a letra da lei – princípio da oportunidade, ou discretion, em inglês – o que gera a
possibilidade de controle dos agentes públicos por meio do acompanhamento, avaliação e
responsabilização – accountability, em inglês – do resultado de suas opções. Na nossa tradição, ao
contrário e especialmente no que se refere à atuação da polícia e do Ministério Público brasileiros, a
discricionariedade é retórica, não existe, uma vez que ambos - ao menos no que tange aos crimes de
ação pública246 -, estão obrigados a agir, instaurando o inquérito policial ou propondo a ação penal,
em razão do princípio da obrigatoriedade a que estão submetidos. Como afirma o autor, discretion e
discricionariedade constituem estratégias distintas de controle social, já que enquanto a primeira é
comum em sociedades “dotadas de sistemas jurídico-político de promoção de igualdade voltados
para a normalização de seus membros e agentes públicos”, a segunda é própria de “sociedades
fundadas em princípios que visam compensar as desigualdades e promover formas de controle social
que se propõem a exercer um controle externo da sociedade, em especial por intermédio de seu corpo
de agentes estatais” (KANT DE LIMA, 2013, pp. 564-571).
Além disso, o entrevistado acima citado não percebeu que esta operação acarretaria um
desequilíbrio entre os jurisdicionados, na medida em que somente aqueles que colaboram podem
receber do Estado este tratamento mais benéfico em relação à punição imposta, que não atinge às
demais causas criminais onde esta modalidade de prestação (acordo) não é admitida (crimes
comuns, por exemplo) 247, o que corresponde à maioria dos casos, portanto.
Ao afirmar que esta prática constitui um “chamariz” – categoria que remete à noção de
chamar a atenção de alguém para algum fato, ou a prática de engodo, engano, ardil -, o
entrevistado está dizendo que se trata de uma estratégia para atrair o colaborador, sugerindo,

246
Como lembra o autor, as ações criminais no Brasil se classificam em privadas, públicas condicionadas à representação
da vítima e públicas. Os dois primeiros tipos são opcionais, e o último, obrigatório para os agentes envolvidos, o que
parece associar a categoria público à obrigatoriedade e a categoria privado à oportunidade (KANT DE LIMA, ibidem).
247
Na doutrina, Bittencourt e Busato (2014, p. 115) afirmam que “A colaboração premiada, ou colaboração processual
ou, ainda, delação premiada (os primeiros termos eufemísticos, vieram disfarçar certa conotação antiética que a conduta
em questão possui) consiste na redução da pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmo à total isenção de
pena), para o delinquente que delatar seus comparsas, concedida pelo juiz na sentença, desde que sejam satisfeitos os
requisitos que a lei estabelece”. Por sua vez, Nucci (203, p. 56) afirma que embora o Ministério Público possa requerer
o perdão judicial em qualquer fase da persecução criminal – já que também atua como custos legis, isto é, fiscal da lei -,
a lei de 2013 limitou essa atividade até a sentença judicial, restando após essa fase, apenas a possibilidade de redução da
pena ou progressão de regime (NUCCI, 2013, p. 56). Não há, portanto, nenhuma análise acerca das consequências dos
tratamentos diferenciados aplicados nestes casos.

201
portanto, que a Colaboração Premiada pode não se concretizar. Esta orientação sugere que o
colaborador poderia ser enganado com uma promessa do Ministério Público que não se cumpriria
ao final, o que parece ser uma conduta bastante peculiar para um representante do Estado, que tem
como atribuição a fiscalização da lei, mas tal circunstância não foi comentada pelo entrevistado.
Afinal, até mesmo a normativa criada pelo próprio Ministério Público salienta que não
existe nenhuma regra ou determinação que vincule o juiz às promessas realizadas pelos membros
do Ministério Público, consubstanciadas nos tais “benefícios penais”.
Ainda sobre esta prática, outro entrevistado afirmou que o Supremo Tribunal Federal tem
sido provocado a se manifestar quanto a estes “benefícios”. Segundo ele,

- “Há algum questionamento no Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade


dessa negociação de benefícios e penas entre o Ministério Público e o réu-
colaborador, mas o fato é que o desenho institucional que hoje está traçado para essa
técnica especial de investigação, que é a Colaboração Premiada, é que torna ela
mais eficaz e é o que gerou essa série de Operações que a gente viu em Curitiba, tem
visto Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e em outros estados”.
(MPF5)

Assim, segundo este entrevistado, a corte suprema do país está sendo questionada sobre esta
prática, o que revela certa incerteza sobre sua legitimidade. No entanto, para o entrevistado, nem
mesmo uma possível decisão emitida por este órgão judicial e contrária a tal prática seria capaz de
alterá-la, já que o “desenho institucional” traçado pelas Colaborações Premiadas - permitindo
desvendar os crimes e os infratores pelas diversas Operações Lava-Jato e correlatas instauradas -, as
legitimariam. Em outras palavras, nem mesmo a decisão do órgão que é considerado a última
instância jurisdicional do país poderia modificar esta prática, porque o que vale é a eficácia da
apuração (e correspondente punição), que é atingida com os acordos de Colaboração Premiada.
Assim, entre validade e legitimidade do ato, o que prevalece é a primeira. E por validade do ato
deve-se entender aquilo que o Ministério Público diz que é válido.
Em um dos materiais disponibilizados por um dos entrevistados, este assunto é considerado
como questão importante e está esquematizado da seguinte forma:

QUADRO II – QUESTÕES IMPORTANTES SOBRE OS BENEFÍCIOS PENAIS


PREVISTOS EM ACORDOS DE COLABORAÇÃO PREMIADA HOMOLOGADOS

202
Fonte: slide produzido pelo MPF1

Trata-se de informação que remete à discussão travada pelo campo jurídico acerca da
possibilidade de modificação dos “benefícios penais” e demais penalidades previstas no acordo de
Colaboração Premiada, após sua homologação. De acordo com esse material, o Supremo Tribunal
Federal já decidiu negativamente, quando julgou o Habeas-Corpus nº 127.483/PR248, justificando tal
decisão com base na segurança jurídica e na proteção à confiança249. No entanto, tal orientação é
combatida por alguns renomados processualistas, a exemplo de Afrânio Silva Jardim, que também é
Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro aposentado, que defende a possibilidade de
alteração apenas pelo magistrado, com base no princípio do livre convencimento do juiz250. Por sua
vez, Aury Lopes Júnior, outro processualista penal também citado neste material, assume uma
posição intermediária, defendendo que o juiz fica adstrito ao acordo até o máximo da pena nele
previsto, ou seja, possui alguma liberdade, desde que a alteração incida sobre esse limite de pena

248
Trata-se de decisão proferida pelo Ministro Dias Toffoli, em 2015, já mencionada neste texto, quando foi decidido que
“Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o
compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao
adimplemento da obrigação por parte do colaborador. (...) Na fase inicial de homologação do acordo de colaboração
premiada, o Poder Judiciário se restringe à análise de sua formalidade e legalidade, ressaltando que eventuais
inconsistências poderão ensejar, no momento da sentença, até mesmo na sua ineficácia (art. 4º, § 11, da Lei n.
12.850/2013)”. Conforme divulgado em
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10199666.
249
Estas categorias serão examinadas no Capítulo IV deste texto.
250
Em artigo publicado em um site jurídico, este doutrinador jurídico afirma que a lei deve ser interpretada de modo a não
impedir que o juiz possa aplicar a pena que mais se aproxime de sua convicção, já que está vinculado pelo acordo das
partes, podendo até conceder o perdão judicial. Segundo ele, “um membro do Ministério Público não pode ter o poder
de obrigar o órgão jurisdicional a conceder um perdão a quem, dentro de uma organização criminosa, praticou crimes
gravíssimos... Note-se que, não podendo o juiz deixar de homologar o acordo em razão de avaliação de seu mérito, tal
absurda benesse fica sem qualquer controle. Em nenhum país do mundo, encontramos tal aberração. Qualquer que seja
a gravidade dos crimes, as partes contratantes estão obrigando o juiz a aplicar tal sanção ou a não aplicá-la (perdão
judicial)” (JARDIM, 2015).

203
(BRASIL, 2017, p. 165)251. De certo que o assunto está sendo discutido pela Corte Suprema do país
há algum tempo, mas, sem uma decisão final estabelecida.
A crítica acerca da sindicabilidade252 das penas pelo Ministério Público, ou seja, a
legitimidade do Ministério Público para indicar penas ou o regime do seu cumprimento que não
obedecem a previsão legal (penas abaixo do permitido pela lei; penas de espécies diferentes das que a
lei penal atribui a determinados crimes; modalidade de regime de cumprimento não previsto em lei
etc.). Tal categoria foi proferida pelo Ministro Gilmar Mendes quando manifestou seu voto na
Petição nº 7074 QO/DF253, quando ressaltou a necessidade de aquela Corte enfrentar, de uma vez por
todas, essa discussão, que deveria ser levada ao Plenário. Nesta manifestação, o referido Ministro
defendeu que a aplicação da pena compete ao juiz e a Lei nº 12.850, de 2013 não deixou espaço para
convenção, a priori, de penas, pelo Ministério Público. Segundo ele,
A injustiça do crime delatado deve superar a proporção da injustiça cometida pelo
próprio delator, essa seria a principal forma de garantir-se a proporcionalidade na
aplicação da pena. Isso porque a possibilidade de o delator ter sua pena reduzida e
até mesmo extinta pode conduzir a um déficit de justiça caso não sejam observados
limites à aplicação do instituto, especialmente a proporcionalidade entre o ato
delatado e a ação do delator.
Não apenas um delito tem o potencial de ofender o ordenamento jurídico, mas
também uma reação penal desproporcional contra o malfeito, e isso inclui a
confiança da população (BUZARI, André. Kronzeugenregelungen in Straf- und
Kartellrecht unter besonderer Berücksichtigung des §46b StGB. Hamburgo: Verlag
Dr. Kovac GmBH.,2015, p. 72).
No Brasil, é histórica a valorização do controle jurisdicional da acusação e da
investigação. Para ações invasivas, a regra é a necessidade de ordem judicial. Nas
hipóteses em que se dá a possibilidade de agir ao Ministério Público e à Polícia,
sempre cabe o controle jurisdicional. No curso do julgamento, mencionou-se que o
sistema acusatório confere a iniciativa privativa para a ação penal pública ao
Ministério Público. No entanto, o sistema acusatório não impede que a lei confira
ao Juiz o poder de fiscalizar a legalidade dos atos do MP. O controle do MP pelo
Juiz é tradicional em nosso direito. Um promotor não tem nem sequer o poder de
arquivar um inquérito. O Juiz pode controlar mesmo essa corriqueira providência,
na forma do art. 28 do CPP. Também a lei deu ao Juiz o poder-dever de controlar a

251
Em audiência pública na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito relativa à delação dos empresários da JBS, o
doutrinador Lopes Júnior declarou que “Quem decide sobre pena é o juiz. Quem fixa a pena é o juiz. O que a lei permite
é que você tenha uma redução de até dois terços, mas o MP não pode dizer que a pena vai ser de X anos e nem que a
pena vai ser no máximo de dois anos. Isso é completamente ilegal! O limite que a lei determina é o de dar redução de
até dois terços, mas quem fixa a pena é o juiz. Não pode criar regime semiaberto diferenciado, aberto diferenciado. O
MP não pode fazer acordo, como eu tenho aqui na mão, fixando uma pena de 15 anos. Quem fixa a pena é o juiz.”
(BRASIL, idem).
252
A categoria sindicabilidade, do direito administrativo, significa a possibilidade de qualquer lesão de direito e, por
extensão, qualquer ameaça de lesão, ser submetida, efetivamente, a algum tipo de controle. Como o Ministério Público
é considerado fiscal da lei, a discussão levantada refere-se à possibilidade de o órgão poder oferecer a pena em medida e
espécie bem inferior ao previsto em lei, assim como escolher o regime do seu cumprimento mais favorável do que o
determinado pelo texto legal.
253
Refere-se ao julgamento conjunto de questão de ordem e agravo regimental na Petição (PET) 7074, em que se discutiu
os limites da atuação do relator na homologação de acordos de colaboração premiada e a relatoria da delação feita pelos
sócios do grupo empresarial J&F. Disponível em http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5204385.

204
legalidade dos acordos de colaboração, inclusive recusando ou adaptando o acordo
ilegal art. 4º, § 8º.
Não fosse assim, o acordo que dispensa a denúncia poderia ser jogado em uma
gaveta na Procuradoria. A homologação judicial seria desnecessária. Se o controle
tem que ser apenas simbólico, então deveríamos ser mais sinceros e declarar a
inconstitucionalidade da própria exigência de homologação. E aí, sim, faríamos valer
aquele discurso aqui feito de que o Ministério Público passa a ser a primazia, passa a
julgar, supera o próprio Supremo Tribunal Federal. É isso que sequer? É isso que
está na Constituição?
Foi o legislador quem não confiou no Ministério Público o suficiente para dispensar
a atuação do juiz. E nem poderia fazê-lo, tendo em vista a premissa básica do Texto
Constitucional, que garante que nenhuma lesão ou ameaça de lesão poderá ser
subtraída à apreciação do Poder Judiciário.
Como já demonstrado, mesmo com o controle, abusos por parte da acusação não são
infrequentes. Estamos cultivando nossa própria versão do chamado "Direito Penal do
inimigo". Delatados são investigados e presos até a própria delação, quando deixam
de ser tratados como párias. O uso da prisão preventiva de maneira a subverter toda a
noção que tínhamos de prisão preventiva, Ministro Edson Fachin. Só se solta depois
de assinar o termo de delação. Isto é uma subversão de tudo aquilo que esta Corte
desenvolveu até hoje. Abre-se um novo ciclo de prisões na expectativa da colheita de
uma nova safra de delações. Delatados que não são presos são expostos e aguardam
indefinidamente a oportunidade de limpar seu nome. Todos estão expostos a esse
ciclo. Não há reputação fora do alcance do rolo compressor (grifei).

Os destaques em negrito e itálico referem-se a expressões que confirmam a necessidade de


avaliação judicial posterior acerca da “discricionariedade” dos membros do Ministério Público. A
questão da confiança aqui se traduz no controle dos atos e não em previsibilidade. A fiscalização da
legalidade dos atos destes agentes, segundo o Ministro, compete ao Judiciário, que é quem faz o
controle dessa atividade. Tal como Kant de Lima (2013) já alertou, o campo jurídico confunde a
categoria estrangeira discretion com discricionariedade, que em relação à atribuição do Ministério
Público também é discutível. Mais uma vez, vem também à tona a confiança (Luhman) nos agentes e
instituições que integram o sistema jurídico.
No julgamento acima referido pelo Ministro, como a sindicabilidade da pena não foi
apresentado pelo Relator deste caso, tal assunto não poderia ser colocado em discussão no colegiado
deste órgão, em razão da orientação contida no Regimento interno neste sentido, apesar de
mencionado por este Ministro. Mesmo assim, adiantou que cabe ao Judiciário o controle da acusação
e da investigação, tanto que para ações invasivas, a regra é a necessidade de ordem judicial. Ainda
que o sistema acusatório confira a iniciativa privativa para a ação penal pública ao Ministério
Público, não impede que a lei confira ao juiz o poder de fiscalizar a legalidade dos atos do Ministério
Público, controle este considerado pelo Ministro como tradicional em nosso direito. Alegou ainda o
referido Ministro que um promotor não tem nem sequer o poder de arquivar um inquérito e que a lei
de 2013 deu ao Juiz o poder-dever de controlar a legalidade dos acordos de Colaboração Premiada,

205
inclusive recusando ou adaptando o acordo ilegal art. 4º, § 8º. Justificou ainda que este norma se
coaduna com a premissa básica do Texto Constitucional, que garante que nenhuma lesão ou ameaça
de lesão poderá ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário. Este controle judicial, segundo o
Ministro citado, seria importante, inclusive, para combater “os abusos por parte da acusação”, que
não são raros, citando, dentre os exemplos, os casos de delatados investigados e presos até a própria
delação, “quando deixam de ser tratados como párias”.
O assunto foi também discutido em novembro de 2017, na Petição nº 7.265/DF, quando seu
relator, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que não era lícito às partes contratantes fixar, “em
substituição ao Poder Judiciário, e de forma antecipada, a pena privativa de liberdade e o perdão de
crimes ao colaborador”. Ainda de acordo com este Ministro, era do conhecimento geral que “o Poder
Judiciário detém, por força de disposição constitucional, o monopólio da jurisdição, sendo certo que
somente por meio de sentença penal condenatória, proferida por magistrado competente, afigura-se
possível fixar ou perdoar penas privativas de liberdade relativamente a qualquer jurisdicionado”. E
indicando o texto da Lei 12.850/2013, ressaltou que ali também é conferida ao juiz a faculdade de, a
requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 a pena privativa de liberdade
ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com
a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos
resultados descritos nos incisos do art. 4º do diploma legal em questão. De acordo com o Ministro,
validar tal aspecto do acordo, corresponderia a permitir ao Ministério Público atuar como legislador.
“Em outras palavras, seria permitir que o órgão acusador pudesse estabelecer, antecipadamente, ao
acusado, sanções criminais não previstas em nosso ordenamento jurídico, ademais de caráter
híbrido”.
Já em setembro de 2018, os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal
voltaram a examinar a questão relativa ao estabelecimento de pena não prevista em lei nos acordos
de Colaboração Premiada. Desta vez, - sob a presidência do Ministro Alexandre de Moraes, em que
o Ministro Luís Roberto Barroso foi relator do Agravo Regimental no Inquérito nº 4.405, do Distrito
Federal, interposto a favor do Deputado Estadual da Bahia e advogado Arthur de Oliveira Maia da
Silva, no qual combatia a decisão anterior do Ministro Relator que negou a impugnação de acordo de
Colaboração Premiada que continha provas contra ele. Embora este assunto seja tratado em outra
parte desse trecho, vale destacar que neste caso, a Suprema Corte decidiu que
(...)
4. A fixação de sanções premiais não estão expressamente previstas na Lei nº
12.850/2013, mas se forem aceitas de modo livre e consciente pelo investigado não
geram invalidade do acordo. O princípio da legalidade veda a imposição de penas
mais graves do que as previstas em lei, por ser garantia instituída em favor do
jurisdicionado em face do Estado. Deste modo, não viola o princípio da legalidade a

206
fixação de pena mais favorável, não havendo falar-se em observância da garantia
contra o garantido.
Ademais, e isto já foi ressaltado na decisão agravada, não é plausível a tese segundo
a qual a fixação de sanções premiais não previstas em lei violaria o princípio da
legalidade e tornaria inválido o acordo. Isso porque o referido princípio é uma
garantia instituída em favor do jurisdicionado contra o arbítrio do Estado, para evitar
que o indivíduo seja punido por conduta que não era considerada criminosa no
momento da sua prática, nem seja punido com penas superiores às previstas no
ordenamento à época dos fatos, de modo que não faz sentido que a garantia seja
observada contra o garantido. Assim, a fixação de penas mais favoráveis ao
colaborador, e aceitas por ele, de forma livre e consciente, o que foi atestado pelo
fato de o acordo ter sido devidamente homologado, não ofendem o princípio da
legalidade.254

Esta última decisão, portanto, autorizou o Ministério Público a promover a fixação de


“benefícios penais” não previstos em lei, entendendo que esta atividade não fere o princípio da
legalidade, o que só aconteceria quando as penas oferecidas no acordo de Colaboração Premiada
fossem superiores às previstas em lei.
O curioso neste caso é que esta decisão versou sobre matéria considerada constitucional, já
que se trata do alcance e limitação do princípio da legalidade em matéria penal. E, como lembra De
Seta (2015, pp. 55-67), de acordo com o Regimento Interno da Corte Suprema, as Turmas não
possuem competência para julgar tal matéria, que caberia somente ao Plenário.
O fato de o tribunal que representa a jurisdição máxima do país, oscilar suas decisões reflete
o que a autora citada já afirmou em relação às decisões que ali são proferidas. Segundo De Seta,
(idem, pp. 137-138) tais decisões refletem posições isoladas de cada Ministro e que “não podem ser
contaminadas pela influência da visão do outro, a fim de não perderem em brilhantismo, daí por que
realizadas individualmente”. A autora também salienta que esta forma individual de julgamento se
opõe à concepção de órgão colegiado, pois a própria forma de divulgação do resultado “os julgadores
acordam”255 representaria a ideia de adesão a argumentos, fruto de debates entre os membros do
corpo de julgadores, que, após discutirem, apresentam a decisão acordada para o caso em julgamento,
manifestando a sensibilidade jurídica daquela sociedade e naquele momento histórico. Contudo, ali
também não prevalece o consenso ou a autoridade do argumento como se depreende da teoria
comunicativa de Habermas, mas sim, a lógica do contraditório, na qual as divergentes decisões dos
julgadores jamais se encontrarão, não haverá a formação de consensos, portanto. Resumindo: esta
oscilação decisória da suprema corte do país também vai confirmando as diferenças de tratamento

254
Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=14595597
255
Como esclarece De Seta (2015, pp. 137-138), especialmente em relação ao Supremo Tribunal Federal, geralmente
acontece a formulação de onze teses individualmente construídas (por cada um dos Ministros) e estas são apresentadas
“a fim de se alcançar o resultado do julgamento que deverá manifestar, miraculosamente, a tese vencedora, a tese
acordada”. O acordo, neste caso, “longe de demonstrar a força do melhor argumento, como se depreende na teoria
comunicativa de Habermas, retrata uma lógica que permeia todo o sistema, qual seja, a lógica do contraditório”.

207
dado aos jurisdicionados, perpetuando a prática jurídica brasileira de julgar conforme a “cara do
freguês”.
Mesmo sem informarem como elaboram o cálculo para a quantificação da pena, encontrei na
Internet, no site oficial do Ministério Público Federal, a tabela abaixo, inclusa em uma apresentação
em power point sobre a Colaboração Premiada e confeccionada pelos próprios operadores desse
órgão:

TABELA I – Cálculo da pena proposta pelo Ministério Público

Fonte: Disponível em http://ouvidorias.gov.br/arquivos/apresentacoes-ouvidoria-3-0-construindo-o-


futuro/colaboracaopremiada_nova_versao-final2-ppt.pdf

Ainda que esta tabela não tenha sido divulgada ou mencionada pelos entrevistados, o certo é
que ela integra uma apresentação da Procuradoria Regional da República da 2ª Região do Rio de
Janeiro, onde são indicadas também outras informações, tais como o histórico das Operações Lava-
Jato neste Estado e os exemplos de provas de corroboração obtidas na investigação que ficou
conhecida como Operação Calicute, que envolveu o ex-governador do Estado, diretores de empresas
de construção e operadores financeiros. Mesmo sem saber qual é a porcentagem necessária para que
alguém tenha a pena reduzida ou quaisquer dos “benefícios penais” comentados, dentre os quesitos
relacionados neste documento, a probabilidade de voltar a delinquir merece destaque porque sugere a
possibilidade de o órgão de acusação antever o comportamento do infrator, o que equivaleria a um
poder divino, mágico, de prever o futuro256 e a confiança neste prognóstico.

256
Trata-se de uma prática que é comum no campo jurídico. Consultando os sites oficiais dos tribunais, encontrei como
exemplos de adoção deste critério de avaliação, a decisão que baseou-se no fato de o investigado chefiar organização
criminosa (Habeas-Corpus nº 238.338/GO), ou seu constante envolvimento em condutas delitivas aptas a indicar que

208
A fim de exemplificar os diferentes “benefícios penais” propostos em alguns acordos de
Colaboração Premiada, aplicados no âmbito das Operações Cadeia Velha e Ponto Final, elaborei a
tabela abaixo (a partir de dados divulgados pela Justiça Federal do Rio de Janeiro e pela mídia, a
partir de 2016), no qual busco indicar a diferença entre a quantidade da pena atribuída pela lei e a
medida efetivamente imposta nestes acordos. Aleatoriamente, escolhi dois acordos de Colaboração
Premiada: o do operador financeiro, Alvaro José Galliez Novis, dono da Corretora Hoya e apontado
pelo Ministério Público Federal como membro da organização criminosa liderada pelo ex-
governador, Sérgio Cabral e Jonas Lopes, ex-Conselheiro e ex-presidente do Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro, também imputado como participante dessa mesma organização.

TABELA II - COMPARAÇÃO ENTRE AS PENAS PREVISTAS EM LEI E AS INDICADAS


EM ACORDOS DE COLABORAÇÃO PREMIADA

COLABORADOR CRIMES IMPUTADOS257 PENA PREVISTA EM LEI PENA APLICADA EM RAZÃO DA


QUALIFICAÇÃO COLABORAÇÃO
Álvaro Jose Galliez Novis Corrupção ativa (artigo 333, caput, do Reclusão de 2 a 12 anos e multa. Reclusão de 5 anos e 6 meses
Operador do Mercado Código Penal). de reclusão, sendo seis meses em
Financeiro e dono da regime fechado, que já foram
empresa HOYA Corretora cumpridos no período de prisão

Associação Criminosa (artigo 288 do Código Reclusão de 1 a 3 anos + Reclusão de preventiva. Um ano e seis meses

Penal e artigo 2º, § 4º, II, da Lei 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem de prisão domiciliar e prestação de

12.850/2013). prejuízo das penas correspondentes às serviços à comunidade por 40

demais infrações penais praticadas, horas semanais durante mais três anos

aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 e seis meses258.

(dois terços).
Lavagem de dinheiro incurso nas penas do Reclusão de 3 a 10 anos, e multa + Obs. Também foi condenado a devolver

artigo 1º, §4º, da Lei 9.613/98 (29 crimes em aumento de um a dois terços (29 R$ 17 milhões aos cofres públicos, em

continuidade). vezes). dez parcelas de R$ 1,7 milhão259.

Jonas Lopes Corrupção passiva (artigo 317, caput, do De 2 a 12 anos (duas vezes). Reclusão de sete anos260, sendo que,
Conselheiro e Ex-presidente Código Penal), duas vezes. deste total, um ano e meio seria em
do Tribunal de Contas do prisão domiciliar em um imóvel rural
Rio de Janeiro que o acusado possui em Além Paraíba

solto, voltaria a delinquir, independente da existência de condenação transitada em julgado (Habeas-Corpus nº


439.791/RJ).
257
Conforme indicado nas alegações finais do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, relativas ao Processo nº
0100523-32.2017.4.02.0000 (2017.7402.00008-7, pp. 127; 186). Disponível em
https://static.poder360.com.br/2018/11/alegacoesfinais-cadeia-velha.pdf. e http://www.mpf.mp.br/rj/sala-de-
imprensa/docs/pr-rj/Denuncia_Eficiencia_Lavagem.pdf.
258
Conforme divulgado em http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2018-06/ex-presidente-do-tce-rj-e-filho-terao-
de-devolver-r-133-milhoes.
259
Conforme disponível em https://www.valor.com.br/politica/5614901/ex-presidente-do-tce-rj-e-filho-terao-de-
devolver-r-133-milhoes.
260
Conforme divulgado em https://diariodotransporte.com.br/2018/06/23/ex-presidente-do-tce-rio-e-condenado-na-
operacao-lava-jato/.

209
Corrupção passiva (artigo 317, caput, c/c De 2 a 12 anos + aumento de 1/3 + (Minas Gerais), em monitoramento
artigo 327, § 2º, do Código Penal), em aumento de pena em razão da eletrônico (tornozeleira eletrônica).
continuidade delitiva (artigo 71, do Código continuidade delitiva Em seguida, deveria prestar dois anos
Penal). e seis meses de serviços comunitários
na mesma cidade, durante 15
Lavagem de dinheiro (artigo 1º, caput, da Lei De 3 a 10 anos e multa
horas semanais, passando os fins de
nº 9.613, de 1998), uma vez.
semana e feriados em casa.
Ao final deste período, cumprirá
três anos de regime aberto, com
Lavagem de dinheiro (artigo 1º, § 1º, da Lei De 3 a 10 anos e multa x 3 + aumento comprovação mensal de atividades 261.
nº 9.613, de 1998), três vezes, em de pena em razão da continuidade
continuidade delitiva (artigo 71, do Código delitiva Obs.: O ex-presidente do Tribunal de
Penal). Contas do Rio e seu filho foram
condenados a devolverem R$ 13,3
Crime de “colarinho branco” ou crime contra De 2 a 6 anos e multa
milhões aos cofres públicos262.
o sistema financeiro (artigo 22, parágrafo
único, da Lei nº 7.492, de 1986).

Associação criminosa (artigo 288, caput, do Reclusão de 1 a 3 anos


Código Penal).

Lavagem de dinheiro (artigo 1º, § 1º, da Lei Reclusão de 3 a 10 anos e multa x 3 +


nº 9.613, de 1998), três vezes, em aumento de pena em razão da
continuidade delitiva (artigo 71, do Código continuidade delitiva
Penal).
Corrupção passiva qualificada (art. 317, § 1º, Reclusão de 2 a 12 anos + aumento de
do Código Penal). 1/3 da pena

Corrupção ativa (artigo 333, parágrafo único Reclusão de 2 a 12 anos e multa


do Código Penal).

Organização criminosa (§ 3º, do artigo 2º, da Causa de aumento de pena


Lei nº 12.850, de 2013).

Organização criminosa (§ 3º, do artigo 2º, da Aumento de pena de 1/6 (um sexto) a
Lei nº 12.850, de 2013). 2/3 (dois terços)

Corrupção (art. 317, § 1º, do Código Penal). Aumento de 1/3 da pena

A tabela acima reproduzida demonstra a sensível distância entre a quantidade e a espécie de


pena previstas em lei, de um lado, e, de outro, aquelas que efetivamente foram impostas aos
colaboradores pelo Ministério Público, nos respectivos acordos de Colaboração Premiada, valendo
notar a diversidade de respostas que geraram.
O pano de fundo que perpassa a discussão acerca da resposta estatal contida nos acordos de
Colaboração Premiada - quando o membro do Ministério Público estabelece, dentre as cláusulas do
acordo, os “benefícios penais” (penas abaixo do previsto na lei; regime de cumprimento da pena mais
benéfico do que a lei estabelece; imunidade penal consistente no não oferecimento da denúncia etc.) -

261
Conforme divulgado em http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2018-06/ex-presidente-do-tce-rj-e-filho-terao-
de-devolver-r-133-milhoes.
262
Conforme disponível em https://www.valor.com.br/politica/5614901/ex-presidente-do-tce-rj-e-filho-terao-de-
devolver-r-133-milhoes.

210
, se refere à autonomia e à liberdade na dicção do direito concedidos a esses agentes, através das
quais se abre espaço para ampliar, reduzir, inserir e retirar conteúdos da lei, esvaziando a utilidade
protetora da legalidade, como limite à competência dos operadores jurídicos para legislar em matéria
penal. Ora, é justamente esta liberdade que vem autorizando a aplicação das mais variadas respostas,
inclusive de penas ou regimes de cumprimento de penas não previstos no ordenamento jurídico e
acarretando, consequentemente, heterogêneas formas de tratamento dos conflitos sociais e dos
jurisdicionados.
O curioso neste caso é que em 1999, o Tribunal Superior de Justiça editou a Súmula 231,
afirmando que a pena não pode ficar abaixo do patamar mínimo previsto pela lei, diante de qualquer
circunstância atenuante, dentre elas, a confissão. O que as práticas dos operadores dos acordos de
Colaboração Premiada estão revelando é a atualização também desta orientação, já que para a sua
celebração, necessariamente, o colaborador confessa o crime cometido, podendo também delatar os
coautores da organização criminosa.
Como já foi mencionado neste texto, a comparação com o sistema jurídico estadunidense e
sua Plea Bargaining ajuda a perceber o grande distanciamento entre este instituto e a Colaboração
Premiada brasileira. No que se refere à responsabilidade da acusação também não há semelhanças.
Além do fato de o órgão de acusação estadunidense pactuar com o investigado o crime (ou tipo
penal), sua liberdade em escolher qual o crime será imputado ao investigado implica em
responsabilidade e na obrigação de prestar contas dos seus atos, que devem ser praticados dentro dos
limites impostos pela lei, por força da accountability. No Brasil, ao contrário, a liberdade de escolha
das penalidades impostas nos acordos de Colaboração Premiada implica em ausência de
responsabilização do órgão de acusação. Vale dizer, a prestação de contas dos agentes do Estado, que
em uma verdadeira e legítima democracia é considerada como pressuposto básico da transparência
dos serviços públicos (conforme CARDOSO DE OLIVEIRA, 2018), não tem aplicação nestes casos.
Ainda em relação aos “benefícios penais” impostos nos acordos de Colaboração Premiada,
outro enfoque que também revela esta liberdade de escolha diz respeito à reparação do dano. O
curioso é que esta modalidade de contraprestação imposta ao colaborador é considerada pelos
discursos jurídicos como uma forma especial de induzir o comportamento colaborativo dos
investigados, acusados ou condenados, consistindo no aumento da chance de recuperação de recursos
públicos desviados e, assim, “a sociedade recupera, ao menos parcialmente, os recursos desviados, e
os denunciantes, que propiciaram essa recuperação, recebem uma recompensa pelo esforço”
(AGUIAR et al, 2015).
Para justificar a liberdade dos operadores das investigações Lava-Jato também no que se
refere à escolha do quantum e da maneira de reparar o dano (que se traduz na obrigação de o

211
colaborador pagar a multa civil compensatória ou na repatriação de valores), os discursos jurídicos -
copiando a noção do jurista alemão Claus Roxin -, identificam nesta prática o que o autor estrangeiro
denomina de direito penal de terceira via, na medida em que “a reparação substituiria ou atenuaria
complementarmente a pena, naqueles casos nos quais convenha tão bem, ou melhor, aos fins da pena
e às necessidades da vítima, que uma pena sem diminuição alguma” (ROXIN, 1992, p. 155, tradução
livre). De acordo com essa orientação, a reparação do dano corresponderia a uma sanção penal
autônoma em substituição ou redução da pena privativa de liberdade, desde que continuasse
atingindo as finalidades tradicionais das penas (prevenção geral e prevenção especial263). Seria,
assim, um modelo penal de três vias, já que a reparação do dano se situaria ao lado da retribuição e
da prevenção. Uma vez atingida tais finalidades, a renúncia à pena (privativa de liberdade) pelo
Estado estaria justificada (SILVA, p. 60).
Ainda que a reparação de danos possa ser considerada uma resposta penal adequada,
especialmente nos casos em que o desvio de dinheiro público contribui para a falência do Estado, a
crítica às práticas dos acordos de Colaboração Premiada segue em outra direção. Isso porque os
“benefícios penais” conferidos pelos agentes do Estado que pactuam estes acordos atingem outros
aspectos do direito penal, como a legalidade, a proporcionalidade e a isonomia. Como afirmei em
outro texto (ALMEIDA, 2014), a legalidade é vista pelo campo jurídico como um princípio que
impõe critérios objetivos de fixação da pena, não somente para reduzir arbitrariedades, mas,
inclusive, evitar tratamentos não isonômicos.
Ao contrário desta ideia, os acordos de Colaboração Premiada divulgados pela mídia
ajudam a demonstrar que não há uma racionalidade equivalente ao que é estipulado. Vale dizer, há
ausência de critérios concretamente definidos para a concessão de tais prêmios e a ampliação do rol
de benefícios contidos na Lei nº 12.850, de 2013 é sempre justificada com base na liberdade de
interpretação legal264 dos operadores.

263
As teorias preventivas da pena atribuem à punição a finalidade de evitar que no futuro se cometam novos delitos. Tais
teorias subdividem-se em Teoria Preventiva Geral e Teoria Preventiva Especial. A prevenção geral, na sua corrente
positiva, afirma que a função do direito penal é afirmar o valor do sistema penal, a partir do qual os sujeitos se abstêm
da prática de delitos. Já na sua versão negativa, a teoria pretende obter com a pena a dissuasão (pela intimidação) dos
que não delinquiram e podem sentir-se tentados a fazê-lo. Em outras palavras, para essa teoria, o castigo do delinquente
é um meio de induzir os demais cidadãos a não delinquirem. A Teoria da Prevenção Especial visa apenas o próprio
delinquente, objetivando que este não volte a praticar novos delitos. Essa teoria não busca retribuir o fato passado e
também não se dirige a coletividade. Dentre os doutrinadores consultados, Gomes (2000, p. 40) afirma que “A pena ou
qualquer outra resposta estatal ao delito, destarte, acaba assumindo um determinado papel. No modelo clássico, a pena
(ou castigo) ou é vista com finalidade preventiva puramente dissuasória (que está presente, em maior ou menor
intensidade, na teoria preventiva geral negativa ou positiva, assim como na teoria preventiva especial negativa). Já no
modelo oposto (Criminologia Moderna), à pena se assinala um papel muito mais dinâmico, que é o ressocializador,
visando a não reincidência, seja pela via da intervenção excepcional no criminoso (tratamento com respeito aos direitos
humanos), seja pelas vias alternativas à direta intervenção penal”.
264
São exemplos, dentre outros, a Petição nº 6138 – Acordo de Colaboração Premiada de Sérgio Machado, disponível
em http://estaticog1.globo.com/2016/06/15/PET-6138-Delacao-SergioMachado-VOLUME001.pdf; o Termo de

212
Na doutrina jurídica, há quem afirme que a estipulação de pena pelo Ministério Público
constitui usurpação do poder decisório do Judiciário (entre outros, VASCONCELLOS, 2015).
Entendem esses discursos que quando o juiz profere sua sentença é obrigado a fundamentar os
motivos que determinaram sua escolha em relação ao tipo penal e às penas aplicadas, ou outros
efeitos penais. A fundamentação das sentenças judiciais é considerada princípio constitucional que
garante ao jurisdicionado a publicidade dos atos (artigo 93) e os operadores dos acordos de
Colaboração Premiada nem a isso estariam obrigados.
A ausência de publicidade dos atos do Ministério Público tem sido criticada, especialmente,
no que se refere à transparência dos recursos empregados e recebidos nestas investigações. Ao
comparar os diversos acordos de Colaboração Premiada pactuados nas Operações Lava-Jato de
Curitiba, Silva (2017, p. 310) enfatiza as vultuosas quantias que envolvem esses acordos, citando
como exemplo o acordo firmado por Pedro José Barusco Filho, ex-gerente de serviços da
PETROBRÁS, que se comprometeu a depositar, aproximadamente, US$ 67.500.000,00 em conta
judicial aberta por ordem do juízo de homologação (13ª Vara Federal Criminal de Curitiba), o qual
seria destinado para o ressarcimento de eventuais danos praticados pela empresa Petróleo Brasileiro
S/A – Petrobrás265. O autor chama a atenção para o fato de que “a racionalidade utilitária-
economicista das agências de persecução podem implicar em uma mercantilização do processo penal
lesiva ao princípio da legalidade penal, da proporcionalidade e da isonomia na aplicação da pena”
(SILVA, ibidem).
No mesmo sentido, Mandarino (2016, p. 215), afirma que a liberdade contida neste
“negócio” se torna uma moeda de troca do acusado e transforma “o sistema de justiça criminal num
verdadeiro ‘business’, isto é, num mercado que se propõe a efetivar acordos ‘rentáveis ao Estado’”. A
seletividade do direito penal nesses casos cria o risco de se criar uma justiça penal de classes
econômicas, na medida em que se torna um grande negócio’ para rico, já que os acordos de
Colaboração Premiada não são aplicados aos crimes comuns, praticados pela parcela da população
carente financeiramente (ROSA, 206, p. 295).
No que se refere à destinação dos bens e valores arrecadados pelo Ministério Público e
relativos à reparação ou multa civil compensatória estabelecidas nos acordos de Colaboração
Premiada, um dos entrevistados afirmou que:

Colaboração de Ricardo Ribeiro, disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-


macedo/wpcontent/uploads/sites/41/2015/09/397_ACORDO1.pdf; o Termo de Colaboração de Alberto Youssef,
disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wpcontent/
uploads/sites/41/2015/01/acordodela%C3%A7%C3%A3oyoussef.pdf.
265
Conforme disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wpcontent/
uploads/sites/41/2015/02/858_ANEXO2.pdf.

213
- “Os acordos de Colaboração Premiada têm possibilitado não só desvendar essas
organizações de forma certa, rápida e abrangente, mas também reparar a sociedade
porque esses acordos, para a senhora ter uma ideia, já está passando de um milhão de
reais do que foi ... que está sendo entregue pelos colaboradores. Estão voltando para
os cofres públicos. Fora o que está bloqueado em bens, acima de 2 bilhões, como
também está informado no site. Bloqueados em bens, em ativos financeiros daqueles
que são acusados, mas não são colaboradores. Uma vez condenados, com trânsito em
julgado essa condenação, esses valores também serão revertidos para o Estado.
Só que essa reversão daquilo que é aplicado em multas dentro do acordo de
Colaboração Premiada já é imediato. O colaborador entrega, não tem dúvida sobre a
titularidade daquilo. Ele entregou espontaneamente, esse dinheiro já é utilizado.
Tanto que nós concordamos e o juízo da 7ª Vara Federal, o juiz Marcelo Bretas,
acabou destinando uma parte destes valores, por exemplo, para o pagamento dos
pensionistas que estavam sem o 13º salário266; já destinamos 19 milhões de reais para
reformas de escolas, em convênio com a Secretaria de Educação, com o Ministério
Público Estadual para fiscalizar. Uma série de benefícios...
Nós temos acordos em que, por exemplo, um empresário – dono de um curso de
inglês – e que lavou dinheiro de uma forma pontual, como operador do ex-
governador, Sérgio Cabral, não só pagou uma multa equivalente a três vezes o valor
desse dinheiro, como também se obrigou a prestar curso de inglês para 200 crianças
de Escolas públicas estaduais de comunidades carentes e depois, para as 10
melhores, o curso completo. Ele se entusiasmou tanto pelo projeto que estendeu esse
número para 14, por liberalidade própria, ou seja, quis dar a chance a mais 4 alunos,
além destes 10 iniciais.
Temos também o caso da H. Stern e da própria joalheria Antonio Bernardo, cujos
representantes também foram acusados de lavagem de dinheiro e pagaram multas
altíssimas267. H. Stern, 19 milhões de reais, Antonio Bernardo268, 10 milhões de
reais. Isso tudo foi revertido para os cofres públicos de uma maneira imediata e com
essas pessoas prestando serviços à comunidade. Aula de empreendedorismo, de
ética... Estes colaboradores se entusiasmaram também por este projeto... Os da H.
Stern querem, inclusive, continuar269. Já teve uma solenidade de encerramento do
curso e querem continuar”.
(MPF3)

Em seguida, este mesmo entrevistado afirmou que:

- “Outra vantagem da Colaboração Premiada é que a gente também consegue por


ela, que o colaborador compre - com base em atas que registram preços de outras
licitações -, e doe para o Estado, no caso Polícia Federal ou Ministério Público,
ferramentas de investigação.

266
De acordo com notícia veiculada na página eletrônica da Procuradoria Geral do Estado (PGE) do Rio de Janeiro,
houve a devolução de R$ 250 milhões aos cofres públicos do Estado do Rio de Janeiro, valor este, integralmente
utilizado para o pagamento do 13º salário relativo ao ano de 2016, de 146 mil servidores aposentados e pensionistas
com vencimento bruto de até R$ 3.200,00. Ver em http://www.rj.gov.br/web/pge/exibeconteudo?article-id=3086338.
267
O envolvimento de empresários da joalheria H. Stern com o crime de lavagem de dinheiro foi noticiado em
https://www.jornalnh.com.br/_conteudo/2017/04/noticias/pais/2093991-h-stern-fecha-acordo-de-delacao-premiada-
com-mpf.html, entre outras fontes.
268
Referência ao proprietário da joalheria com o mesmo nome, que também teria participado do esquema de corrupção e
lavagem de dinheiro envolvendo o ex-governador, conforme noticiado em https://oglobo.globo.com/brasil/mpf-
denuncia-dono-de-joalheria-usada-para-lavar-dinheiro-do-esquema-cabral-21963705
269
Uma crítica da mídia relativa à baixa penalidade aplicada à joalheria citada pode ser visto em
https://www.istoedinheiro.com.br/saiu-barato-para-h-stern/.

214
A lei da Lavagem de Crimes prevê isso270. E aí a gente tem... É...
Já compramos servidores para poder armazenar a quantidade enorme de
informações, porque o da Procuradoria não comporta. Ferramentas de dtsearch, que
indexam todos os documentos. Seja áudio gravado, seja documento em word ou pdf.
Ele indexa tudo em um sistema só e qualquer palavra que você joga ali, ele diz onde
aquela palavra é citada.
A gente também já conseguiu comprar uma ferramenta que é chamada de
cellebrite271, que é um software, que quando você apreende um Smartphone, ele suga
tudo o que está ali e joga no computador para você, com todas as informações que a
pessoa tem. O seu iPhone272 sabe mais de você do que você mesma, né? Então diz
onde você passou, as mensagens que você abriu e recebeu. Fica tudo em uma tela no
computador e você consegue pesquisar de uma forma muito tranquila.
A gente comprou esse kit cellebrite. Compramos vários para a Polícia Federal... Para
algumas unidades do Ministério Público Federal. Para a Procuradoria Geral do
Estado... Então temos feito assim, com os acordos de Colaboração Premiada”.
(MPF3)

A primeira afirmação acima reproduzida ressalta a importância dos acordos de Colaboração


Premiada, na medida em que, segundo o entrevistado referido, contribuem para a elucidação, de
forma certeira, célere e abrangente, dos crimes praticados pelas organizações criminosas e, ao mesmo
tempo, têm permitido reparar a sociedade com a recuperação do dinheiro evadido dos cofres
públicos em razão dessas infrações.
Este dinheiro, segundo o entrevistado, tem sido estornado para o Estado, porque entregue
diretamente pelos próprios colaboradores, de forma que não passa pela burocracia que seria
decorrente de um processo regular de repatriação de valores, pois quando enviado ao exterior
dependeria da cooperação internacional com alguma autoridade jurídica do outro país. Esta
celeridade com que o dinheiro é estornado ao Estado, decorre, ainda segundo o entrevistado, do fato
de também não precisar passar pelo trâmite judicial relativo ao bloqueio de bens e valores do

270
De acordo com o inciso I, do artigo 7º, da Lei nº Lei nº 9.613, de 1998, com as alterações introduzidas pela Lei nº
12.683, de 2012, “I - a perda, em favor da União - e dos Estados, nos casos de competência da Justiça Estadual -, de
todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei,
inclusive aqueles utilizados para prestar a fiança, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé; § 1º A
União e os Estados, no âmbito de suas competências, regulamentarão a forma de destinação dos bens, direitos e
valores cuja perda houver sido declarada, assegurada, quanto aos processos de competência da Justiça Federal, a sua
utilização pelos órgãos federais encarregados da prevenção, do combate, da ação penal e do julgamento dos crimes
previstos nesta Lei, e, quanto aos processos de competência da Justiça Estadual, a preferência dos órgãos locais com
idêntica função. § 2º - Os instrumentos do crime sem valor econômico cuja perda em favor da União ou do Estado
for decretada serão inutilizados ou doados a museu criminal ou a entidade pública, se houver interesse na sua
conservação” (BRASIL, 1998).
271
Ver informação sobre este software em https://www.cellebrite.com/pt/inicio/.
272
O iPhone é uma linha de smartphones comercializados pela empresa Apple Inc. Um smartphone é um aparelho de
telefonia celular que reúne e combina os mesmos recursos utilizados por computadores pessoais, com aplicação e
funções avançadas, que são ampliadas por meio de programas aplicativos executados pelo seu sistema operacional.
Conforme divulgado em https://www.apple.com/br/iphone/?afid=p238%7CsWhGWTqJT-
dc_mtid_209258i342853_pcrid_310749188832_&cid=wwa-br-kwgo-iphone-slid-

215
colaborador, já que é ele próprio quem o entrega, como parte das obrigações que assume no acordo
de Colaboração Premiada.
Na primeira parte desta declaração, são elencadas as atividades realizadas pelo Ministério
Público, com o aval do Judiciário, com vistas à distribuição deste dinheiro, sendo exemplificado o
pagamento de parcela do 13º salário dos servidores do Estado, ou o repasse para a reforma de escolas
em razão de Convênio firmado com a Secretaria de Educação273, sendo tal atividade fiscalizada pelo
Ministério Público Estadual. Além da entrega desses valores, segundo o entrevistado, os
colaboradores também prestam serviços à comunidade, que atendem à população menos favorecida
economicamente.
Outra vantagem que o entrevistado vê nos acordos de Colaboração Premiada é a aquisição,
pelo colaborador, de ferramentas e equipamentos de investigação, doadas para as instituições de
controle e fiscalização (Polícia Federal e Ministério Público), já que, segundo ele, a lei de lavagem de
dinheiro (Lei nº 12.683, de 2012) autoriza tal “negócio”. Vale dizer, no seu entendimento, a lei
autoriza o colaborador a comprar tais softwares, hardwares e demais ferramentas de informática que
auxiliam a investigação - com base em atas que registram preços de outras licitações -, para serem
doadas ao Estado.
A Ata do Registro de Preço274 é um instituto do direito administrativo e consiste em um
documento que une, de forma obrigacional, as instituições do governo que desejam adquirir produtos,
sem que seja preciso passar pelo processo de licitação, estabelecido pela Lei nº 8.666, de 1993.
Possui, assim, uma característica de compromisso para futura contratação, onde são registrados os
preços, os fornecedores, os órgãos participantes e as condições a serem praticadas, conforme as
disposições contidas no edital de licitação lançado para este fim e as propostas que foram
apresentadas para este concurso (BRASIL, 2017).
O Decreto nº 3.931, de 2001 autoriza o órgão que não tenha promovido ou participado da
licitação para o registro de preços a se favorecer da Ata de Registro de Preços de outro órgão,
mediante prévia consulta, desde que o fornecedor aceite lhe abastecer. Este procedimento recebe a
denominação de “carona” está previsto no artigo 8º do referido Decreto 275. A matéria também se

273
Prática esta noticiada pela mídia, conforme divulgado em https://www.conjur.com.br/2018-mai-22/justica-autoriza-
uso-dinheiro-lava-jato-escolas-rj
274
No portal da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro há um modelo de Ata de Registro de Preço, disponível
em http://www.unirio.br/gecon/ata-de-registro-de-preco/modelo-de-
ata/MODELO%20Ata%20de%20Registro%20de%20Precos.doc/view.
275
Decreto nº 3.931, de 2001 - Artigo 8º: A Ata de Registro de Preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por
qualquer órgão ou entidade da Administração que não tenha participado do certame licitatório, mediante prévia consulta
ao órgão gerenciador, desde que devidamente comprovada a vantagem. § 1º Os órgãos e entidades que não participaram
do registro de preços, quando desejarem fazer uso da Ata de Registro de Preços, deverão manifestar seu interesse junto ao
órgão gerenciador da Ata, para que este indique os possíveis fornecedores e respectivos preços a serem praticados,

216
encontra regulada no inciso V, do artigo 88, do Decreto nº 7.581, de 2011, que regulamenta o Regime
Diferenciado de Contratações Públicas – RDC, quando afirma que “considera-se órgão aderente o
órgão ou entidade da Administração Pública que, não tendo participado dos procedimentos iniciais da
licitação, adere a uma ata de registro de preços”. Assim, o órgão aderente ou “carona”, é aquele que
se aproveita de uma licitação já promovida para realizar a aquisição dos bens, dentro dos
quantitativos e limites estabelecidos naquela Ata de Registo de Preços. A vantagem desse sistema de
“carona” consiste na dispensabilidade da realização de nova licitação - considerada como um
processo oneroso, lento e desgastante -, já que o objetivo esperado pelo certame já foi alcançado, ou
seja, a proposta de preço mais vantajosa (BRASIL, 2017).
A compra de equipamentos de informática e outros subsídios à atividade investigatória por
este sistema, portanto, acarreta a agilidade em sua aquisição. O que é relevante destacar da
informação prestada pelo entrevistado é que também há uma liberdade destes operadores em
selecionar quem serão as instituições beneficiadas com tais compras, que resultam dos recursos
obtidos nos acordos de Colaboração Premiada. Além disso, a demarcação da autoridade destes
atores também pode ser exemplificada pelo poder de fiscalização (não previsto nas leis) que se
atribuem.
Estas demonstrações de poder – seja porque é o Procurador quem estabelece no acordo de
Colaboração Premiada a obrigação a ser cumprida pelo colaborador, seja porque ele realiza (ou
manda realizar) a fiscalização do seu cumprimento –, estende a finalidade da prestação imposta
nesses acordos, sugerindo que tal atividade tem também um cunho de controle social.
Quando este entrevistado escolhe a instituição que será atendida/beneficiada com os recursos
devolvidos pelo colaborador e estabelece a fiscalização da destinação dada à prestação oferecida,
acredita que está incumbido deste dever-poder (enquanto protetor da sociedade). Desta forma, a
“resposta penal” consubstanciada na restituição dos cofres públicos, que poderia conter a finalidade
específica de dar ao acusado a noção de responsabilização pelo fato praticado, se estende para além
dessa destinação. Ou seja, não basta que o infrator estorne o dinheiro ilicitamente retirado do Estado.
É preciso que esta penalidade seja “bem utilizada”. Assim, as instituições “beneficiadas” acabam
também sendo fiscalizadas por estes operadores que estendem o alcance da acusação e da penalidade,
não obstante existir na estrutura do Estado, órgãos administrativos que especificamente desenvolvem
esta atribuição fiscalizatória.

obedecida a ordem de classificação. § 2º Caberá ao fornecedor beneficiário da Ata de Registro de Preços, observadas as
condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento, independentemente dos quantitativos
registrados em Ata, desde que este fornecimento não prejudique as obrigações anteriormente assumidas.

217
Quanto à aquisição de equipamentos e ferramentas de informática que visam qualificar a
atividade investigativa dos órgãos de persecução criminal, vale lembrar que se trata de dinheiro que
não consiste em doação, mas, sim, de restituição do que foi retirado dos cofres públicos. Ora, o
orçamento do Estado é pensado e gerido conforme dotação relativa à arrecadação obtida e esta se
presta a atender a todos os setores que compõe sua estrutura. Especialmente no caso do Rio de
Janeiro, que viveu os últimos anos uma das piores crises financeiras, se não foi a pior de todas -
inclusive reconhecida pelo próprio juiz que integra essa força-tarefa da Operação Lava-Jato – e
276
resultou no decreto que reconheceu o estado de calamidade pública -, não seria justificável e
razoável, por estas razões, que os valores arrecadados em acordos de Colaboração Premiada
retornassem, integralmente, para seus cofres?
A justificativa se prende ao fato de a Lei de lavagem de dinheiro (Lei nº 12.683, de 2012)
autorizar a utilização dos bens, direitos e valores - cuja perda for decretada pelo Judiciário -, pelos
órgãos federais encarregados da persecução criminal, como afirmou o entrevistado. Todavia, a
devolução dos recursos decorrentes dos acordos aos cofres do Estado poderia representar uma
forma efetiva de reparação da sociedade e atitude coerente com o papel de seu defensor, ainda mais
quando representa um órgão que possui orçamento próprio e que no último ano recebeu aporte
financeiro considerável277.
Por ocasião do término desta pesquisa, outra notícia divulgada pela mídia dava conta de
mais uma demonstração do poder do Ministério Público 278, desta vez relacionada ao acordo
firmado entre dirigentes da PETROBRÁS e as autoridades norte-americanas (Departamento de
Justiça dos Estados Unidos 279) para evitar a instauração de processos criminais naquele país, em
razão dos prejuízos causados às pessoas e também às instituições daquele país, a partir dos crimes
apurados pela Operação Lava-Jato.
Neste caso, as autoridades norte-americanas celebraram com a PETROBRÁS, acordos
(Non-Prosecution Agreement e Cease-And-Desist), nos quais ficou estabelecido que 80% (oitenta por
cento) do valor previsto nesses acordos seriam satisfeitos com base no que fosse pago no Brasil pela
empresa às autoridades brasileiras. Assim, a PETROBRÁS, assumiu a obrigação de depositar a

276
Divulgado em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/06/governo-do-rj-decreta-estado-de-calamidade-
publica-devido-crise.html
277
Como informado anteriormente, apenas em 2018, o orçamento da instituição, que inicialmente era de R$501 mil,
passou para R$1,65 milhão de reais, aprovados pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal. Este valor
referia-se apenas à dotação orçamentária da força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba. Neste valor estaria
incluído o reajuste salarial dos Procuradores, que teve o custo estimado de R$ 116 milhões de reais. Conforme
divulgado em https://www.valor.com.br/politica/5053222/orcamento-da-operacao-lava-jato-e-triplicado-para-2018
278
Conforme divulgado em https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI297491,71043-
Nova+PGR+Acordo+da+Petrobras+revela+poder+supremo+da+forcatarefa+da.
279
Conforme ofício da Divisão Criminal do Departamento de Justiça, assinado em de 26 de setembro de 2018 e
disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/3/art20190307-02.pdf.

218
quantia de US$ 682.560.000.00 (que, portanto, representavam os 80% do valor de US$
853.200.000.00, estabelecido nestes acordos)280.
De acordo com esta notícia, a empresa assinou este acordo para evitar ainda mais
prejuízos do que já vem sofrendo 281. Deste valor, 50% (cinquenta por cento), cerca de R$ 1,25
bilhões de reais, seriam destinados à “satisfação de eventuais condenações ou acordos com
acionistas que investiram no mercado acionário brasileiro” 282. Vale dizer, com este pagamento,
em contrapartida, seriam extintas as investigações criminais existentes no solo estadunidense .
Até aqui, nenhum motivo de surpresa ou estranhamento, já que o pagamento de multa
reparatória ou compensatória tem sido uma prática comum em acordos envolvendo empresas.
Contudo, em janeiro de 2019, a PETROBRÁS assinou um acordo com membros do Ministério

280
De acordo com o site do Ministério Público Federal, o acordo entre a Lava-Jato e Petrobras se destinava a fazer com
que 80% do valor da punição norte-americana permanecessem no Brasil e não nos Estados Unidos. Segundo esta fonte,
em geral, apenas 3% do valor das punições em acordos com autoridades estrangeiras retornam para o país de origem.
Neste caso, em razão da intervenção da Lava-Jato e da cooperação mantida para investigar e punir inúmeras outras
empresas e criminosos envolvidos na Lava-Jato, os Estados Unidos permitiram que 80% do valor favorecessem a
sociedade brasileira. Além do mais, parte do acordo poderia ser utilizada para eventualmente pagar acionistas
minoritários que se sentissem prejudicados e tivessem suas ações julgadas procedentes ou, ainda, firmassem acordo com
a Petrobras. As autoridades norte-americanas não permitiam que os recursos ficassem com a própria Petrobras nem que
o pagamento no Brasil fosse uma mera liberalidade ou transferência de valores para os cofres públicos. Justificando a
criação do fundo, o órgão afirma que o pagamento da multa norte-americana fosse creditado ao Brasil, era necessária a
ação de um órgão com poder de cobrar valores devidos, ou a título de punição, ou a título de indenização, porque tal
pagamento não poderia distorcer a natureza sancionatória da multa aplicada nos Estados Unidos. Conforme divulgado
em http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/lava-jato-procuradores-esclarecem-duvidas-sobre-acordo-
com-a-petrobras.
281
Um desses processos, conforme noticiado por esta mesma fonte, refere-se à empresa norte-americana Vantage Drilling
International, conhecida no mercado de petróleo por possuir navios-sonda com know-how em águas profundas e que no
auge do pré-sal, em 2009, foi contratada pela Petrobras. Em 2015, em meio aos resultados da Operação Lava-Jato, que
levaram o preço do barril a índices baixíssimos, a Petrobras alegou ilicitude na contratação desta empresa e rompeu
unilateralmente o contrato com ela. Como é comum naquele país, a questão foi resolvida por meio de arbitragem.
Contudo, diante da notícia de irregularidade nos contratos da Petrobrás, paralelamente à arbitragem, o Departamento de
Justiça dos Estados Unidos e a Comissão de Valores Mobiliários - SEC norte-americana iniciaram uma investigação.
Em 16 de agosto de 2017, depois de um ano de investigações, o Departamento de Justiça estadunidense reconheceu a
colaboração da empresa, e encerrou as investigações sem constatar nenhuma irregularidade. Em 1º de julho de 2018, o
tribunal arbitral considerou que a Petrobras America (PAI) e Petrobras Venezuela Investments and Services (PVIS),
subsidiárias da Petrobras, violaram o contrato de perfuração com a Vantage Drilling International e condenou a
Petrobras ao pagamento de US$ 622 milhões. Dez dias depois desta condenação, o Ministério Público Federal brasileiro
denunciou um dos grandes executivos da empresa norte-americana, acusando-o de corrupção ativa e lavagem de
dinheiro. A Petrobras informou aos seus acionistas que empregaria todos os recursos para contestar esta decisão arbitral.
A questão é que, se a Petrobrás perder esse processo, o Ministério Público também perderá a parte que lhe seria
destinada, em função do acordo assinado pela empresa.
282
Conforme divulgado em https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI297544,31047-
Acordo+entre+MPF+de+Curitiba+e+Petrobras+coloca+o+parquet+em+suspeicao. O site do Ministério Público afirma
que a Petrobras se obrigou perante autoridades norte-americanas a pagar multa em razão de ofensa à lei daquele país,
aplicável por conta da negociação de ações da companhia na bolsa de Nova Iorque e do reconhecimento de falhas em
controles internos, registros contábeis e demonstrações financeiras durante o período de 2003 a 2012, quando ocorreram
os crimes identificados pela Operação Lava-Jato. De acordo com esta fonte, tal punição, em última análise, seria
resultado da atuação criminosa de políticos, partidos, empresários e lavadores de dinheiro em desfavor da
companhia. Desde 2015, a Petrobras voluntariamente colaborou com as investigações norte-americanas, fornecendo
todas as informações solicitadas pelas autoridades estrangeiras. Tal colaboração voluntária lhe proporcionou um
desconto relevante no montante da multa aplicada. Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-
imprensa/noticias-pr/lava-jato-procuradores-esclarecem-duvidas-sobre-acordo-com-a-petrobras.

219
Público Federal que constituíam a força-tarefa de Curitiba onde, assumiu também a obrigação de
destinar parte desta penalização (50%) ao Ministério Público Federal (cláusula 2.3.1, deste
acordo) 283. Segundo esta cláusula, tal quantia seria aplicada em “projetos sociais e educacionais
visando à promoção da transparência, e cidadania e conformidade no setor público", por meio de
um fundo criado pelo próprio Ministério Público para gerir tais recursos.
Ainda segundo a cláusula 2.4.2, deste acordo, o Ministério Público Federal ficaria
responsável por buscar meios para a constituição de fundação privada (inclusive pela redação de sua
documentação estatutária), que deveria ter sede em Curitiba/PR, e poderia contar com o auxílio de
entidade(s) respeitada(s) da sociedade civil, do poder público, ou do Ministério Público para conferir
o máximo de efetividade às finalidades do acordo. Já a cláusula 2.4.4 estabelecia que os Ministérios
Públicos Federal e Estadual do Paraná teriam a prerrogativa, em assim desejando, de ocupar um
assento cada no órgão de deliberação superior da fundação mantenedora, que seriam preenchidos por
indicação, respectivamente, do Chefe da Procuradoria-Geral da República e do Procurador-Geral de
Justiça. Por fim, a cláusula 2.4.9 afirmava que o estatuto da entidade seria submetido pelo Ministério
Público Federal à aprovação do Juízo que homologou o acordo (ou seja, a 13ª Vara Criminal Federal
de Curitiba), o qual poderia determinar adequações e, em seguida à sua formal constituição,
destinando os recursos para a fundação.
Além da criação deste fundo - que extrapola as atribuições estabelecidas pela
Constituição Federal de 1988 ao Ministério Público Federal e inverte a destinação que as
autoridades norte-americanas haviam estabelecido para a pecúnia -, este acordo revelou outras
curiosidades. Muito embora a empresa brasileira tenha sido registrada neste documento como
vítima das atitudes criminosas dos seus ex-diretores e demais envolvidos nos crimes até aqui
apurados, ao pagar esta quantia a Petrobrás assumia que era – enquanto pessoa jurídica –
responsável por tais fatos. E mais, a condição de vítima nessa relação processual se justificava,
inclusive, porque neste acordo a Petrobras figurava como assistente de acusação do Ministério
Público Federal em todos os processos criminais originados a partir da Operação Lava-Jato.
Além disso, o acordo obrigou a empresa a manter o Ministério Público informado sobre
os andamentos dos processos judiciais e arbitrais que eventualmente viesse a responder. A
Petrobrás também ficou impedida de se opor ao pedido de ingresso do Ministério Público Federal
em tais processos. Com isso, tais operadores afirmavam que iriam atuar em processos privados,
mesmo quando estes não versassem sobre interesses de incapazes, sendo esta a única justificativa

283
Este acordo pode ser visto em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2019/3/art20190306-04.pdf.

220
legal que autorizava tal participação. Também afirmavam que ingressariam nas arbitragens,
conduta que afastava os princípios que balizam esta modalidade de solução de conflitos.
Em virtude de tais atos, a mídia brasileira divulgou várias críticas que levantaram a
suspeição do Ministério Público, cujos membros da força-tarefa acabaram recuando na decisão de
criar a referida fundação e seu respectivo fundo284. A própria Procuradoria-Geral da República
ingressou com uma Ação por Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) junto ao
Supremo Tribunal Federal contra a decisão judicial que homologou o acordo, por entender que, ainda
que a aplicação dos recursos públicos tivesse uma finalidade lícita, o acordo extrajudicial firmado
entre a Petrobras e a força-tarefa da Lava-Jato no Paraná violava a Constituição285. Dentre os
argumentos apresentados nesta ação, a Procuradoria-Geral destacou que o acordo firmado entre a
Petrobras e o Departamento de Justiça norte-americano não previa que o Ministério Público Federal
fosse o gestor dos recursos e que – de um lado, os integrantes da força-tarefa não tinham poderes
legais e constitucionais para assinar um pacto de natureza administrativa e, do outro, que a 13ª Vara
Federal Criminal de Curitiba, responsável pela homologação, não possuía competência jurisdicional
para atuar na matéria. O que tais fatos também revelaram foi, mais uma vez, a ausência de
mecanismos de controle e fiscalização dos atos destes agentes.
Como já afirmado, as campanhas, cartilhas e outras atividades realizadas pela instituição
não se destinaram à prestar informações à população brasileira sobre os valores arrecadados pelas
Operações Lava-Jato e suas correlatas, ou qual a destinação dos valores e bens arrecadados nos
acordos de Colaboração Premiada. Por outro lado, até o final da pesquisa, o Tribunal de Contas
da União também se manteve silente sobre informações. Enquanto isso, o Ministério Público
Federal continua ampliando suas atribuições, além do texto constitucional. Equipa-se
financeiramente e com ferramentas tecnológicas de última geração, em grande parte à custa dos
acordos de Colaboração Premiada.

284
Em seu site oficial o Ministério Público Federal justificou a criação do fundo e da fundação, afirmando que por se
tratar de uma questão nova, foi necessário buscar uma solução nova e que “existiam algumas opções que foram
examinadas e a Lava Jato buscou selecionar a melhor para a sociedade brasileira”. Já no que se refere aos motivos pelos
quais o Ministério Público Federal voltou atrás na decisão de constituir tal fundação, é informado que diante “do debate
social existente sobre o destino dos recursos, a força-tarefa entendeu por bem manter diálogo com outros órgãos na
busca de soluções ou alternativas que eventualmente se mostrem mais favoráveis para assegurar que os valores sejam
usufruídos pela sociedade brasileira, assim como para dar maior segurança jurídica ao que for decidido por esses órgãos
acerca da forma de destinação dos recursos”. Vale dizer, na perspectiva destes operadores a criação do fundo e da
fundação se justificaria enquanto estratégia que beneficiaria a sociedade brasileira. O curioso, neste caso, é estes
operadores não entenderam as críticas contra tal atividade como uma manifestação da própria sociedade. Conforme
divulgado em http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/lava-jato-procuradores-esclarecem-duvidas-sobre-
acordo-com-a-petrobras.
285
Conforme divulgado em http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/adpf-questiona-decisao-que-homologou-acordo-entre-
petrobras-e-mpf-no-parana.

221
O exame das representações que os entrevistados desenvolvem sobre seu próprio papel me fez
lembrar da discussão de Max Weber (1999, p. 43) sobre poder e autoridade. Como afirma o autor,
por poder se entende a “probabilidade de alguém, dentro de uma relação social, estar em uma posição
de facultar a outrem a realizar sua própria vontade, apesar de encontrar resistência, e qualquer que
seja o fundamento dessa probabilidade”. Já a autoridade seria uma modalidade legítima de poder, ou
seja, a habilidade de levar as pessoas a realizarem, de boa vontade, sua própria vontade por sua
influência pessoal. A autoridade seria um gênero ou uma simples fonte de poder.
De acordo com Weber (idem, p. 131) a legitimidade da autoridade se basearia no que ele
denominou “três tipos puros de dominação legítima”, que seriam o de caráter racional, o de caráter
tradicional e o de caráter carismático. Como esta análise se refere ao papel dos operadores dos
juizados, restrinjo-a à dominação de caráter racional, na medida em que – empregando os conceitos
do autor – o judiciário é considerado uma organização burocrática.286
Assim, segundo Weber (idem, pp. 134- 141), o poder seria a capacidade de provocar a
aceitação de ordens, enquanto a legitimidade seria a possibilidade de aceitação do exercício do poder;
a autoridade, por sua vez, seria o poder considerado legítimo. Para o autor, a autoridade na
organização burocrática provém das regras estabelecidas e dos cargos hierarquicamente organizados.
Dessa forma, a legitimidade da autoridade não seria emanada do indivíduo ou entre indivíduos em si,
mas de cargos e normas preestabelecidos, pois como afirma o autor, a legitimação de caráter racional
"se firma na crença da legitimidade das ordens estabelecidas e dos direitos de mando dos chamados
pela organização para exercer a autoridade (autoridade legal)". Nesta modalidade de dominação,
quem manda é o superior, cujo direito de mando está legitimado pelas regras estatuídas no âmbito de
uma competência concreta, legitimada e especializada. O dever da obediência está graduado numa
hierarquia de cargos: os inferiores obedecem à vontade dos superiores. Por fim, Weber (idem, p. 147)
também afirma que a administração burocrática significa, ainda, dominação em virtude de
conhecimento: este é o caráter fundamental especificamente racional. 287
Tomando estas orientações como base de reflexão, foi observado que a legitimidade das
decisões dos membros do Ministério Público Federal decorre justamente do reconhecimento que
gozam no interior do sistema jurídico e na sociedade brasileira, traduzido, especialmente, na
autorização para classificar quem, dentre os jurisdicionados, deverá se submeter à pena e em qual

286
Os princípios fundamentais da burocracia, segundo o autor (ibidem), seriam: a hierarquia funcional, a administração
baseada em documentos, entre outros. Max Weber também afirma que o poder legal (ou racional) cria em suas
manifestações de legitimidade a noção de competência.
287
Para Weber (ibidem) a administração burocrática significava dominação em virtude de conhecimento, o qual se
caracterizava em face da “posição de formidável poder devido ao conhecimento profissional, a burocracia (ou o senhor
que dela se serve) tem a tendência de fortalecê-la ainda mais pelo saber prático de serviço: o conhecimento de fatos
adquiridos na execução das tarefas ou obtido via documentação.”

222
circunstância. Como esta classificação é realizada de forma secreta e com base em diversas
subjetividades, a Colaboração Premiada que reproduz esta classificação, acaba adquirindo feição
extremamente inquisitorial.
Por fim, concluo esse item enfatizando que em uma época em que as investigações
criminais e os processos judiciais empregam como provas as informações obtidas a partir de
aplicativos de comunicação de aparelhos celulares; audiências são realizadas por meio da Internet,
por videoconferência; milhares de documentos e provas são arquivados em procedimentos e
provedores eletrônicos, não é difícil imaginar a dimensão do poder de quem controla e tem acesso
a essas tecnologias.

III. 7.3. Cláusulas que obrigam o colaborador a abrir mão de direitos e garantias processuais
constitucionais
A inclusão de tais cláusulas nos acordos de Colaboração Premiada foi assim definida por
um dos entrevistados:
- “A gente também acaba afastando institutos que, em tese, o réu faria jus para poder
oferecer a ele outros benefícios. Por exemplo, ele abre mão da possibilidade de
recurso. Assim, no acordo, a gente estipula que o réu não vai recorrer, exceto no que
extrapolar o acordo. Isso é alvo de críticas, porque a gente estaria obrigando o réu a
abrir mão do seu direito de defesa. Quando na verdade, não é isso. O réu é sempre
assistido por um advogado e ele sempre pondera sobre o que vale mais a pena?
Litigar e, aí, fazer jus ao seu amplo direito de defesa, ou fazer um acordo com o
Ministério Público? Com isso, esses são os valores que são colocados na mesa pelo
colaborador e seu advogado. Ele também abre mão da não autoincriminação288. São
vários princípios basilares do direito que ele abra mão quando resolve colaborar com
o Ministério Público. Mas ele abre mão consciente. E em 100% dos casos vale a
pena. O acordo de Colaboração é, inevitavelmente, benéfico para o colaborador.
Então, a gente vê isso com bons olhos e hoje já está consolidada a
constitucionalidade da Colaboração Premiada. Embora algumas vozes ainda
sustentem a inconstitucionalidade. Mas, acho que já demos um passo grande na sua
consolidação”.
(MPF2)

Esta afirmação poderia representar, de forma bastante sintética, como o acordo de


Colaboração Premiada é percebido pelos operadores: um negócio unilateral, onde a vontade que

288
De acordo com o artigo, 4º, § 14, da Lei nº 12.850, de 2013, “Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará,
na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade.” No artigo
5º, desta mesma lei, são estabelecidos os seguintes direitos dos colaboradores: “I - usufruir das medidas de proteção
previstas na legislação específica; II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; III -
ser conduzido, em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes; IV - participar das audiências sem contato
visual com os outros acusados; V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou
filmado, sem sua prévia autorização por escrito; VI - cumprir pena em estabelecimento penal diverso dos demais
corréus ou condenados.”

223
prevalece é a do órgão de acusação, já que a defesa abre mão de todos os seus direitos, inclusive o de
litigar.
Cláusulas que estipulam a obrigação do colaborador de desistir de direitos e garantias
assegurados pela Constituição ou pela lei penal, constituem os exemplos mais irrefutáveis da
inquisitoriedade do procedimento da Colaboração Premiada. O Supremo Tribunal Federal tem
discutido a inconstitucionalidade de acordos de Colaboração Premiada que incluem tais cláusulas.
Assim, em novembro de 2017, quando negou o pedido de homologação do acordo feito pela
Procuradoria-Geral da República (Petição nª 7.265/DF), o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou
que “não opera nenhum efeito perante o Poder Judiciário a renúncia geral e irrestrita à garantia contra
a autoincriminação e ao direito ao silêncio. O mesmo se diga quanto à desistência antecipada de
apresentação de recursos, uma vez que tais renúncias, à toda evidência, vulneram direitos e garantias
fundamentais do colaborador”. Idêntica decisão foi proferida pelo Ministro Teori Zavascki, na
(Petição nº 5.245/DF), também relativa ao pedido de homologação de acordo daquela instituição,
quando afirmou que: “as cláusulas do acordo não podem servir como renúncia, prévia e definitiva, ao
pleno exercício de direitos fundamentais”.

III. 7.4. Cláusula de Rescisão do acordo


Conforme os entrevistados, as hipóteses em que o acordo de Colaboração Premiada pode
ser rescindido são descritas em cláusulas e referem-se ao descumprimento das obrigações impostas
ao colaborador, tais como: produzir e entregar as provas que confirmam suas declarações,
comparecer perante as autoridades sempre que chamado, ou deixar de praticar a atividade que deu
causa à infração criminosa.
No entanto, este rol vem sendo criado e ajustado pelos operadores. Assim, segundo um dos
entrevistados,
_ “Uma das cláusulas que a gente ajusta são as causas de rescisão do acordo de
Colaboração Premiada.
Então, eu posso colocar na minha causa de rescisão do acordo a seguinte forma: é
causa para rescisão da Colaboração Premiada não revelar todos os fatos criminosos
que tenha praticado no bojo dessa organização criminosa. Ou eu posso entabular,
não ter revelado todos os fatos criminosos de que tenha praticado ou conhecido. E aí,
portanto, a pessoa fica vinculada. É um grande guarda-chuva para a investigação,
porque o colaborador tem que revelar todos os fatos criminosos que tem
conhecimento e tenha praticado. Com isso, se ele omitir ou mentir, isso dará causa à
rescisão do acordo. E aí a gente vai receber essas informações todas”.
(MPF5)

224
Como afirmado pelo entrevistado acima, o colaborador é obrigado a informar todos os fatos
de que tem conhecimento e não apenas aqueles dos quais tenha participado.
Tal prática remete às técnicas inquisitoriais do Tribunal do Santo Ofício, quando o preso
precisava contar tudo o que sabia, ou melhor, tudo aquilo que os inquisidores quisessem saber. Este
procedimento reproduz judiciariamente - semelhante ao que Kant de Lima e Mouzinho (2016)
apontaram na delação premiada -, as práticas registradas no título VII, do Livro II, do Regimento do
Santo Ofício de 1640, no qual consta que, os inquisidores faziam o preso saber que estava obrigado a
contar sobre “vivos, mortos, ausentes, presos, soltos, ou reconciliados” e tudo o mais que tivesse com
ele falado contra a religião.
Com base em estudos de outros pesquisadores, os autores afirmam que para salvar suas
vidas, os “cristãos-novos” deveriam denunciar todos que conheciam e confessar tudo o que os
inquisidores quisessem. Neste procedimento inquisitorial, a confissão e a delação constituíam peças
essenciais: sem confessar suas culpas, admitir a heresia e denunciar todos que o haviam denunciado,
o réu era considerado negativo, ou diminuto, caso se esquecesse de denunciar alguém. Como os réus
conheciam bem o Tribunal, sabiam o que tinham que dizer (SILVA, 1995, p. 106).
Por outro lado, a confissão completa, retirava do réu a condição de diminuto, podendo ser
obtida, inclusive, após sua condenação (tormento in caput alienum). Assim, quando o réu condenado,
tivesse sido indiciado com muitos cúmplices, poderia ser sentenciado à tortura para que confessasse
os nomes de seus cúmplices, ainda que o Regimento afirmasse que tal expediente somente deveria
ser aplicado em casos muito graves (LIMA, 1996, p. 66).
Reproduzo abaixo alguns trechos do Regimento do Santo Ofício (Título VII, nos & 3, 5 e
6)289, referidos pelos autores:
& 3 - Tratarão os Inquisidores com grande cuidado, de examinar, e inquirir o ânimo
do confidente, se é verdadeiro, ou fingido, se faz sua confissão com intento de
escapar da pena, que merecia por suas culpas, ou com zelo de livrar delas sua
consciência, e de se converter na Fé de Cristo (...). Em primeiro lugar mandarão ao
preso, que declare a pessoa, ou pessoas, que lhe ensinaram os erros, de que se acusa,
o tempo, e o lugar, em que foi, as pessoas, que se acharam presentes, com toda a
miudeza, e o mais que ali passou (...).

& 5 - Quando o preso em sua confissão disser de pessoas, com que comunicou seus
erros se lhe tomarão as comunicações com muita miudeza (...) E quando na mesma
comunicação disser de muitos cúmplices depois de se haverem tomado com suas
confrontações, e que se passou na comunicação, serão segunda vez repetidos por
seus nomes, e após isso se continuará a declaração que com ele teve.

289
Havia um ritual codificado sobre a confissão do acusado na Idade Média. O carrasco não tinha liberdade para praticá-
la. Havia regras e determinados limites que ele deveria respeitar. “Os séculos XIX e XX inventaram a tortura
‘selvagem’. A tortura que, empregando quaisquer métodos e durante o tempo que julga necessário, deve arrancar a
confissão. É uma tortura policial, extrajudicial, extremamente diferente da célebre tortura utilizada pela Inquisição”
conforme Foucault (apud BOJUNGA e LOBO, 2014).

225
& 6 - Se o preso depois de confessar suas culpas, no discurso de sua confissão
acrescentar mais cúmplices em alguma das comunicações, que tem declarado, ou
depuser de outras diferentes em substância, e no lugar, a respeito de pessoas de que
tem dito, os Inquisidores se não contentaram em remeterem umas comunicações a
outras, antes farão, que o preso declare particularmente e, cada uma os nomes de
todas as pessoas, que se assinaram presentes (...) com todas as circunstâncias, que
parecerem necessárias para os testemunhos ficarem claros, e contundentes, e as
publicações, que deles houverem de sair, se puderem fazer com certeza (KANT DE
LIMA e MOUZINHO, idem, p. 525, nota de rodapé 17).

A imposição desta obrigação - como causa de rescisão do acordo o seu descumprimento -,


gera para o colaborador um prejuízo considerável. Isto porque, nestes casos, o representante do
Ministério Público poderá utilizar - diferentemente da situação em que o acordo não chega a ser
realizado -, todas as informações e provas até ali apresentadas pelo colaborador, mesmo contra sua
vontade. Vale dizer, além do colaborador não poder receber os “benefícios penais”, tudo o que tenha
dito ou demonstrado poderá e será utilizado contra ele.
A doutrina jurídica apenas minimiza a característica eminentemente inquisitorial deste ato,
afirmando que enquanto o acordo não for homologado pelo juiz, é considerado como negócio de
caráter extraprocessual (LOPES JÚNIOR, et al, 2018). Assim, nesta perspectiva, o acordo pode ser
alterado ou rescindido pelas partes nesta fase, sem a necessidade de passar pela aprovação do
Judiciário.
Em razão dessa possibilidade, alguns discursos sugerem que os Termos do Acordo
contenham cláusulas de proteção, nos casos de rescisão do acordo. A expressão paraquedas de ouro
ou paraquedas dourado (golden parachute )290 - originária do direito empresarial e ligada à área de
recursos humanos - vem sendo utilizada para indicar a possibilidade de se evitar resultados mais
danosos para as partes que pactuaram o acordo, especialmente o colaborador, diante dos excessos do
poder punitivo. Segundo esses discursos, a própria lei de organização criminosa já estabelece uma
cláusula de golden parachute quando determina que, no caso de retratação da proposta, as provas
autoincriminatórias não poderão ser utilizadas, exclusivamente, contra o colaborador (LOPES
JUNIOR, et al, idem).

290
Expressão utilizada para designar “os benefícios oferecidos aos altos executivos de uma empresa para assegurar um
‘pouso confortável’, no caso da empresa ser adquirida por outra e pretender demitir esses executivos. A ideia é evitar
que o empregado seja demitido e, ao mesmo tempo, fornecer um incentivo para que o executivo permaneça na empresa
que foi adquirida e lutar contra uma possível aquisição hostil” (LOPES JUNIOR et al, 2018).

226
Os efeitos ou consequências tanto da celebração quanto da rescisão do acordo para o
colaborador lembra um ditado popular que afirma estar “entre a cruz e a caldeirinha” 291, significando
que em qualquer uma dessas situações, o acordo de Colaboração Premiada não o beneficiará.

III. 7.5. Prova e Prova de Corroboração

Como já afirmado, a prova constitui categoria relevante para o campo jurídico brasileiro,
uma vez que está associada à busca da verdade que se faz reconstituindo-se os fatos passados, e por
meio da qual se atinge a Justiça.
Dentre os doutrinadores jurídicos consultados, há quem afirme que a atividade probatória é
necessária à tutela dos interesses postulados pelas partes, já que a prova é, indiscutivelmente, o
momento central do processo, no qual são reconstituídos os fatos que dão suporte às pretensões
deduzidas. “Assim, o direito à prova constitui aspecto fundamental do sistema contraditório, pois sua
inobservância representa negação da própria ação e da defesa. Para dar cumprimento à garantia
constitucional é necessário que se estabeleça um procedimento probatório que se desenvolva em
contraditório de partes, perante o juiz” (GRINOVER, 1996, p. 54).
Outros entendem que o direito à prova “caracteriza um verdadeiro direito subjetivo à
introdução do material probatório no processo, bem como de participação em todas as fases do
procedimento respectivo; direito subjetivo que possui a mesma natureza constitucional e o mesmo
fundamento dos direitos de ação e de defesa: o direito de ser ouvido em juízo não significa apenas
poder apresentar ao órgão jurisdicional as próprias pretensões, mas também inclui a garantia do
exercício de todos os poderes para influir positivamente sobre o convencimento do juiz. O conteúdo
desse direito envolve cinco momentos distintos: (1) investigação; (2) propositura; (3) admissão; (4)
produção; (5) valoração” (GOMES FILHO, 1997, pp.84-88).
Por fim, entende-se também que em um processo judicial, “o contraditório probatório deve
constituir a única fonte de cognição para a jurisdição, não podendo haver outra fonte de
conhecimento para a decisão. (...) No Brasil, como não poderia deixar de ser, prevalece o mesmo

291
A expressão significa “estar em grande risco ou indecisão”. De acordo com NEVES (2000, p. 53), seu significado
original se referia “àquele que estava para morrer ou mesmo morto, isto é, sem saída, sem regresso. A expressão foi-se
atenuando e hoje é empregada para se referir a uma situação angustiosa, dilemática, uma dificuldade que, depois de
vencida, nada resolve porque outra lhe sucede. Mas está ligada a sua acepção inicial, quando em Portugal os
moribundos tinham sobre a cabeça um crucifixo e a seus pés uma pequena caldeira com água benta”.

227
entendimento. Os argumentos em favor do reconhecimento do direito à prova, como aspecto
insuprimível das garantias da defesa e do contraditório, encontram confirmação e reforço no texto
constitucional que, além de consagrar tais garantias, também assegura que ‘ninguém será privado de
sua liberdade ... sem o devido processo legal’ (art. 5º, LIV). No processo penal, o direito à prova
encontra expressa positivação, no ordenamento jurídico brasileiro, ao menos em nível supralegal, por
força da incorporação do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana
de Direitos Humanos. Diante disso, o direito à prova de defesa, em processo penal, configura não
somente decorrência dos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, mas,
também, regra de direito positivo, integrada ao nosso ordenamento, com a adesão do Brasil aos
citados tratados de direitos humanos (BADARÓ, 2013, pp.3-4).
Já para os operadores entrevistados, a categoria “prova” é empregada como contraprestação
devida pelo colaborador, em face dos “benefícios penais” que lhes são concedidos pelo Estado. Em
outras palavras, o colaborador deve entregar ao Ministério Público, ainda na fase investigatória e
preliminar, as provas de que tenha conhecimento ou acesso, para receber, em razão dessa entrega, os
“benefícios penais”.
Essa representação fica evidenciada no slide que integra o material didático utilizado por um
dos entrevistados durante sua prática docente, abaixo reproduzido:

QUADRO III – NATUREZA JURÍDICA DA COLABORAÇÃO PREMIADA

Fonte: produzida pelo MPF5

Esta orientação atualiza a categoria, já que os discursos doutrinários continuam afirmando


que a prova é elemento integrante do processo (judicial) e por meio da qual se é possível comprovar
a existência da “verdade de um fato”, que influencia, diretamente, o convencimento do julgador,
conforme Lopes Júnior (2015, p. 344). Desta forma, segundo esta concepção, a categoria prova

228
constituiria as informações, documentos e demais atos realizados pelas partes (acusação e defesa) na
fase judicial, com a finalidade de convencer o juiz.
Quanto à categoria prova de corroboração, prevista no artigo 4º, § 16, da Lei nº 12.850, de
2013292, a doutrina a conceitua como a necessidade de o colaborador confirmar, comprovando, o que
foi informado anteriormente, o que ressalta a representação negativa que o campo jurídico elabora em
relação a sua palavra.
Como na fase das tratativas e celebração do acordo de Colaboração Premiada as
informações prestadas pelo colaborador inauguram ou complementam uma investigação criminal e,
inclusive, servem também como base para a acusação e a condenação do delatado, significa que,
mesmo não sendo confiável a palavra do colaborador, como já afirmado, o campo jurídico reconhece
valor probatório para estes procedimentos. Em outras palavras, as provas são realizadas em momento
anterior à fase judicial e tanto servem para iniciar uma investigação, quanto fundamentar uma
denúncia do Ministério Público ou a sentença condenatória do juiz.
Por fim, há doutrina jurídica brasileira que, apoiada em jurisprudência italiana293, defenda
que em relação à corroboração da prova produzida pelo colaborador, o controle sobre a valoração de
sua declaração deve se desenvolver sob um tríplice aspecto: a credibilidade do delator; a coerência e
verossimilhança de sua declaração; seja encontrada confirmação em outros elementos de prova. Os
dois primeiros consistiriam requisitos intrínsecos desta análise (tanto em relação ao declarante –
subjetivos – quanto em relação ao conteúdo da declaração – objetivos), enquanto o terceiro seria
um requisito extrínseco (BADARÓ, 2018).
Segundo este autor, o elemento intrínseco subjetivo seria relacionado à pessoa do delator,
sua personalidade, seu passado, as razões que o levaram a confessar etc... Referindo-se à delação
premiada, o autor ainda afirma que “Evidente que não será obstáculo o propósito ‘utilitarista’ que
leva o delator a confessar para obter um benefício legal, pois este é o componente essencial do
chamado sinalagma da delação premiada. Logo, será fator de credibilidade o ‘desinteresse’ do
delator, isto é, a inexistência de um lucro pessoal, que pode ser resumido na ausência de
animosidade, inimizade ou ódio do delatado”. Já os elementos intrínsecos objetivos seriam, ainda
segundo este autor, a firmeza, a constância e a especificidade lógica da declaração e por “logicidade”
seria entendido “a sua coerência interna e uma racional colocação no mosaico dos fatos narrados no
processo. O conteúdo da declaração também deve ser articulado, isto é, exige-se uma narrativa rica

292
O texto deste dispositivo afirma que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas
declarações de agente colaborador” (BRASIL, 2013).
293
A referência às orientações estrangeiras refletem o que Oliveira (2004) denominou de europeucentrismo, comum nos
discursos jurídicos brasileiros como forma de legitimá-lo pelo argumento de autoridade.

229
em particularidades e especificidades, que permitam o controle de seu conteúdo através de fatos
objetivamente verificáveis. Além da articulação, exige-se, ainda, a univocidade: a declaração
consistir em palavras e locuções que não sejam ambíguas ou suscetíveis de significados
diversos”. Por último, o requisito extrínseco da corroboração, o objeto da confirmação exigida pela
Lei, não podem ser as declarações provenientes do delator “consideradas em seu complexo”, mas,
sim, “os fatos a que elas se referem, na parte em que se pretende ter em conta para fins de decisão,
devendo se ter em conta cada um dos sujeitos delatados e cada um dos fatos a eles atribuídos”
(BADARÓ, ibidem).
Tais discursos se distanciam da prática, na medida em que alguns exemplos de acordos de
Colaboração Premiada já celebrados e rescindidos demonstram a possibilidade de ocorrer atividade
lucrativa por parte do colaborador, inclusive visando a manipulação do mercado, como foi aventado
pela mídia no caso dos empresários da JBS294. Outro exemplo que também foi divulgado pela mídia,
refere-se à prática de delação com vistas a atingir um opositor político, como noticiado em relação ao
falecido reitor da Universidade Federal de Santa Catarina295.
A ausência do contraditório na fase investigativa, diante da impossibilidade de participação
da defesa do delatado, não é considerada pelos operadores como prejudicial ao processo penal,
conforme o trecho da entrevista abaixo reproduzido:
-“A Colaboração Premiada faz parte desse contexto de evolução da prova. Ela faz
parte desse contexto e é muito maior. E claro, isso faz com que a qualidade da prova
também seja melhor”.
(MPF1)

De acordo com este entrevistado, a Colaboração Premiada integra um contexto onde,


segundo ele, a prova produzida na fase investigativa representa uma “evolução” e adquire melhor
qualidade, em razão do instituto.
Quanto ao que os entrevistados entendem ser a prova de corroboração, cito, como exemplo,
a seguinte declaração de um deles:
- “A gente é procurado aqui pelo advogado do ‘cara’ que quer colaborar e, às vezes,
o próprio pretenso colaborador não tem ideia do que pode apresentar como prova de
corroboração. E é interessante esse contato pessoal com os Procuradores porque a
gente explica: olha, você certamente não vai ter um recibo da propina que você
pagou para o ‘cara’, mas você pode nos dizer, nesse dia eu liguei para ele. A gente,
294
Os diretores desta empresa foram investigados pela suposta prática de “insider trading” — uso de informação
privilegiada visando lucro em bolsa de valores — e manipulação de mercado, em razão da venda de ações pela holding
da JBS (J&F) e por ela própria. Estas atividades ocorreram dias antes da mídia divulgar áudios entregues em sigilo à
Procuradoria-Geral da República com conversas entre o executivo Joesley Batista e o então presidente da República,
Michel Temer, negociando troca de vantagens com o referido empresário. Antes do vazamento dessas informações, as
ações da J&F estavam em alta. Conforme divulgado em https://www.conjur.com.br/2019-jan-14/jbs-historico-negocios-
desmonta-versao-insider-trading.
295
Conforme divulgado em https://jornalistaslivres.org/exonerado-pivo-da-tragedia-de-cancellier/

230
através dessa sua ligação, pelo registro da companhia telefônica vê se você realmente
ligou”.
(MPF2)

Como é possível verificar a partir desta declaração, os operadores indicam exemplos


retirados de suas práticas para definirem a categoria prova de corroboração. Assim, conforme esta
declaração, a prova de corroboração seria a informação ou documento que confirmasse aquilo que o
colaborador disse quando manifestou seu interesse em auxiliar a investigação. O exemplo citado pelo
entrevistado é o do colaborador que delata o pagamento de propina para um terceiro e que, não tendo,
obviamente, o recibo desse pagamento poderia comprová-lo por outras fontes, como uma conversa
telefônica travada com o beneficiário da propina. Embora o entrevistado não tenha esclarecido como
uma ligação telefônica entre os envolvidos poderia conferir a este ato a força probatória acerca da
materialidade do crime de corrupção e de sua autoria, os exemplos práticos não têm sido muito
diferentes disso. Equivale dizer que, tal como acontece com a prova, a corroboração desta é tudo
aquilo que o agente estatal – ou autoridade enunciativa do direito - diz que é.
Dentre as práticas observadas neste sentido, foi verificada a formulação de denúncias
arrolando várias testemunhas para corroborar a delação do colaborador, muitas das quais também
eram delatores na mesma ou em outras investigações. Tal fato foi também observado nas audiências,
inclusive, na descrita neste trabalho. Trata-se, portanto, de uma prática que representa um círculo
hermenêutico apoiado sobre um mesmo núcleo produtor da verdade. Vale dizer, o argumento é
circular e gira em torno da delação do colaborador. Assim, uma delação corrobora outra delação, e o
que merece relevo é o fato de que a declaração do delator-testemunha tem sido considerada prova
suficiente para a condenação judicial.
Há algum tempo Kant de Lima (1995) entre outros pesquisadores, vinha alertando para a
forma de produção da verdade jurídica a partir de elementos probatórios colhidos no inquérito
policial, enquanto procedimento administrativo, inquisitorial, escrito e realizado por agentes do
Estado, portanto, com fé pública. Como já afirmou este autor, neste procedimento, presume-se a
culpa do investigado a partir de indícios produzidos pela polícia, de forma exclusivamente sigilosa
para o investigado. Estes indícios constituem um conjunto de informações que baseiam o
convencimento da acusação, para formalizar a sua denúncia. Ao serem juntadas ao processo judicial,
estas informações precisam ser desconstruídas pela defesa, para evitar que possam ser adotadas como
verdadeiras pelo juiz e utilizadas para formar o seu convencimento a respeito da culpabilidade do
investigado, agora acusado. Assim, na prática, a culpa é sempre presumida, já que o processo judicial
é instaurado a partir da denúncia que a pressupõe. Tratamento diferente acontece em tradições
jurídicas onde o processo é um direito disponível do acusado e cabe à acusação demonstrar sua

231
culpabilidade para além de uma dúvida razoável (FERREIRA, 2013; BISHARAT, 2015), como já
mencionei.
A partir das entrevistas reproduzidas, verifica-se que a Colaboração Premiada inaugura
uma nova forma de produção da verdade jurídica, já que não mais se presume a culpa. Ao contrário,
agora a culpa do investigado é confirmada a priori, já que a prova produzida pelo colaborador tem
sido considerada como suficiente para a produção da denúncia e da sentença condenatória. Ainda que
a corroboração da prova - mais uma categoria hiperbólica do campo jurídico -, signifique afirmar
que a palavra ou as provas produzidas pelo colaborador precisam ser confirmadas por outras provas,
isso não afasta a possibilidade de se considerar como tal a palavra de outro delator.
O curioso é que a suspeição do colaborador - ou desconfiança em sua palavra -, constitui
regra, como já afirmei em outro momento deste texto. Suspeitar, como Miranda (2002, p. 231) já
afirmou, “significa uma forma de julgamento prévio a respeito de algo ou de alguém, ou seja, é uma
conjetura, uma opinião geralmente desfavorável a respeito de alguém”. Tanto que no caso de ser
descoberta a mentira do colaborador, este perderá os “benefícios” do acordo, respondendo
integralmente pela sanção penal cabível a sua participação na organização criminosa, além de lhe ser
imputada a prática do crime de denunciação caluniosa, hipótese essa, inclusive, prevista no artigo 19,
da Lei n.º 12.850, de 2013296. Essa suspeita se estende a todos aqueles que confessam e delatam e não
apenas ao colaborador, contudo, a palavra do delator-testemunha serve como prova de corroboração
à Colaboração Premiada.
Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal atualizaram o assunto, reforçando a
interpretação do artigo 4º, § 16, da Lei nº 12.850, de 2013, relativo à prova de corroboração. O
primeiro exemplo aconteceu quando foi proferida a decisão nos autos do Inquérito nº 3.994, cujo
relator foi o Ministro Edson Fachin.
Nesta ocasião, o Supremo Tribunal entendeu que além de a delação do colaborador, sozinha,
não poder fundamentar a sentença judicial condenatória, também a denúncia do Ministério Público
precisaria de “outras provas minimamente consistentes de corroboração, de forma equiparada à que
se exige para a sentença”. Segundo esta decisão, as palavras do colaborador padecem de “presunção

296
A mídia brasileira indicou alguns casos de acordos de Colaboração Premiada rescindidos, ao se descobrir a mentira
dos colaboradores. O doleiro Alberto Yousef mentiu ao afirmar que deixaria de praticar a atividade criminosa,
acarretando a rescisão do seu acordo de Colaboração Premiada. O auditor fiscal, Luiz Antônio de Souza, que delatou a
prática de “Caixa 2” pelo governador do Estado do Paraná, Beto Richa, foi outro exemplo. Em 2016, o Superior
Tribunal de Justiça instaurou o Inquérito nº 1.093 (2016/0016799-9), com base neste acordo e os advogados de defesa
do governador impugnaram a utilização das informações do colaborador, argumentando que o auditor mentira. Em
seguida, ingressaram com Habeas-Corpus perante o Supremo Tribunal Federal, que deferiu o pedido e suspendeu o
aludido inquérito, conforme divulgado em
http://www.stf.jus.br/Portal/diarioJustica/verDecisao.asp?numDj=18&dataPublicacao=01/02/2018&incidente=5332139
&capitulo=6&codigoMateria=2&numeroMateria=1&texto=7348069.

232
relativa de falta de fidedignidade”, funcionando isoladamente apenas para “autorizar a deflagração
da investigação preliminar”.
O segundo exemplo aconteceu quando o tribunal rejeitou a denúncia contra o Senador Ciro
Nogueira, já referido. Esta decisão, assim todas as emitidas por esta Corte, não foi consensualizada
(DE SETA, 2015) e, portanto, não impede outras interpretações, em sentido contrário, produzidas
pelo mesmo tribunal.
Pouco antes desta decisão, o valor probatório atribuído à Colaboração Premiada vinha
sendo defendido pelo então juiz Sérgio Moro, quando estava à frente da Operação Lava-Jato em
Curitiba (fls. 22, do pedido de Busca e Apreensão Criminal Nº 5073475-13.2014.404.7000/PR,
realizado pela Polícia Federal daquela localidade). De acordo com este julgador, “... mesmo vista
com reservas, não se pode descartar o valor probatório da colaboração premiada. É instrumento de
investigação e de prova válido e eficaz, especialmente para crimes complexos, como crimes de
colarinho branco ou praticados por grupos criminosos, devendo apenas serem observadas regras para
a sua utilização, como a exigência de prova de corroboração. Sem o recurso à colaboração premiada,
vários crimes complexos permaneceriam sem elucidação e prova possível”297.
Interpretação idêntica pode ser encontrada nas declarações dos membros do Ministério
Público Federal do Rio de Janeiro e aqui indicadas.

III. 7.6 – Cláusula de adesão das demais agências e instituições de controle e fiscalização
Em relação às obrigações pactuadas nos acordos de Colaboração Premiada, além das
cláusulas relativas às partes que o celebram (colaborador e Ministério Público), há também as que
vinculam as instituições que aderem ao acordo, a fim de também obterem as provas produzidas pelo
colaborador.
Vale dizer, estas agências ou instituições não participam da celebração do acordo, mas
apenas são convidadas pelo Ministério Público Federal a aderirem a este contrato. Este convite,
geralmente ocorre quando os operadores visualizam a ocorrência de outras infrações praticadas pela
organização criminosa e delatadas pelo colaborador, cuja investigação e/ou punição não se inserem
nas atribuições do órgão.
Quando as instituições aderem ao acordo, as provas apresentadas pelo colaborador podem
ser compartilhadas entre elas e, consequentemente, podem gerar outros procedimentos investigatórios

297
Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/decisao-prisoes-lava-jato-operacao.pdf.

233
e sancionadores além daquele elaborado pelo Ministério Público Federal. Esta circunstância foi
explicada por um dos entrevistados da seguinte forma:
_ “Quando há outros fatos que tenham conexão, as autoridades que tem atribuição
são chamadas a aderirem ao acordo. Se aderirem ao acordo, elas recebem estes fatos
para serem investigados. Veja o exemplo do que aconteceu com o Ministério Público
Estadual em relação à investigação do procurador Cláudio Lopes298. O Ministério
Público Estadual também aderiu ao acordo do Carlos Miranda, que gerou essa
atuação”.
(MPF3)

Segundo a declaração acima, quando os fatos criminosos praticados pelo colaborador se


inserem na área de atuação de outros órgãos (Receita Federal, Banco Central etc.), estes são
chamados a aderirem ao acordo de Colaboração Premiada. Quando aceitam aderir, tais órgãos têm
acesso às provas apresentadas pelo colaborador. No exemplo citado pelo entrevistado, o Ministério
Público Estadual aderiu ao acordo de Colaboração Premiada firmado pelo operador financeiro
Carlos Miranda e em razão dessa adesão, teve acesso às provas por ele apresentada, inclusive a que
apontava o envolvimento do ex-Procurador-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no
recebimento de propina pelo ex-governador do Estado, Sérgio Cabral299. Diante dessas provas o
Ministério Público Estadual ingressou com ação criminal contra o ex-servidor300.
Esta atividade não está descrita na Lei nº 12.850, de 2013, mas examinando a redação
contida na Orientação Conjunta nº 01/2018, que regula as práticas destes operadores, verifiquei que
no item 39 dessa norma é informado que:
As provas decorrentes do acordo de Colaboração Premiada poderão ser
compartilhadas com outros órgãos e autoridades públicas nacionais, para fins cíveis,
fiscais e administrativos, e com autoridades públicas estrangeiras, inclusive para fins
criminais, com a ressalva de que tais provas não poderão ser utilizadas contra os
próprios colaboradores para produzir punições além daquelas pactuadas no acordo.
Esta ressalva deve ser expressamente comunicada ao destinatário da prova, com a
informação de que se trata de uma limitação intrínseca e subjetiva de validade do uso
da prova, nos termos da Nota Técnica nº 01/2017, da 5ª Câmara de Coordenação e
Revisão (BRASIL, 2018).

De acordo com esta informação, quando as provas oferecidas pelo colaborador são
compartilhadas pelo Ministério Público Federal com outras instituições de controle, estas não podem

298
Representante do Ministério Público também envolvido em corrupção. Conforme notícia veiculada em
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/11/13/ex-procurador-de-justica-do-rj-claudio-lopes-recebeu-r-72-
milhoes-em-propinas-segundo-o-mp.ghtml
299
Conforme noticiado em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/08/20/delator-diz-que-ex-procurador-geral-
de-justica-do-rj-claudio-lopes-recebia-mesada-de-cabral.ghtml.
300
Conforme divulgado em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/11/08/ex-procurador-geral-de-justica-do-
rj-claudio-lopes-e-preso.ghtml.

234
ser utilizadas para prejudicar os colaboradores. Tal orientação também foi afirmada por um dos
entrevistados, quando afirmou que
_ “A partir do momento em que é realizado o acordo, a gente tem todo o interesse
em proteger os nossos colaboradores. E aí, a gente tem colocado em nossos acordos
a clausula de compartilhar as provas produzidas no acordo com os outros órgãos,
desde que os órgãos não usem essas informações contra os colaboradores - e o
Judiciário tem aceitado isso, o juiz aqui da 7ª Vara vem acatando essa nossa
indicação”.
(MPF2)

Esta afirmação confirma que na perspectiva dos operadores entrevistados, deveria também
ocorrer a limitação da atividade punitiva das demais instituições de controle e persecução penal que
aderissem aos acordos de Colaboração Premiada para terem acesso às provas produzidas pelo
colaborador. Esta noção também está presente na seguinte declaração de outro entrevistado:
- “E eu acho que os órgãos de persecução penal e os de controle, de maneira geral,
eles devem - a partir de um acordo de Colaboração Premiada válido -, concentrar
sua atuação em relação àquelas pessoas delatadas e não em relação ao colaborador.
Porque em relação ao colaborador, ele já teve a pena pactuada e a punição definida.
Agora, querer aprofundar as punições porque se entente injusto ou menos justo o que
foi pactuado, depois do jogo jogado? Agora?”
(MPF6)

Assim, para este outro entrevistado, as condições e os “benefícios” dos acordos de


Colaboração Premiada se limitariam à gerência exclusiva dos membros do Ministério Público
Federal. Acontece que as provas apresentadas pelo colaborador poderiam também versar sobre fatos
criminosos relacionados às atribuições investigativas e punitivas dessas demais agências de controle
(civil, tributária, administrativa, financeira etc.)301, nacionais ou internacionais, e não apenas do
Ministério Público Federal brasileiro, cuja competência se refere às ações penais e recursos de
interesse da União Federal, de suas autarquias e empresas públicas federais, dentre outras causas
especificadas nos artigos 108 e seguintes, da Constituição da República de 1988302.

301
Conforme Acosta (2005, pp. 65-98), os conflitos podem ser percebidos e geridos de formas distintas pelo sistema
normativo (civil, administrativo, penal), acarretando classificações polissêmicas (polissemia jurídica). O autor
denomina de ilegalismos privilegiados, pois esta multiplicidade de previsões legais e classificações possibilitam
variados resultados - no âmbito das práticas de administração dos conflitos -, tais como: a elaboração de acordos, a
aplicação de multas, advertências, sanções penais simbólicas, entre outros, dependendo do contexto onde o conflito
ocorre. De acordo com o autor, no plano jurídico, tais ilegalismos podem se inserir em mais de um registro jurídico ao
mesmo tempo, sendo assim passíveis de mais de um tipo de qualificação, conforme o direito positivo; no plano do
eventos, guardam semelhanças com a qualificação e administração jurídica que pertence, exclusivamente, ao direito
penal e, no plano das práticas de resolução de conflitos, a utilização efetiva de um modo de resolução de conflito e não
de outro também existente, depende de diversos fatores que variam consideravelmente em função “do tipo de situação
em jogo e do contexto no qual elas se produzem”. É em razão dessa variada disponibilidade de modos de resolução de
conflitos, bem como a complexidade que aparenta sua operação que o autor denomina de privilegiados tais ilegalismos
(ACOSTA, idem, p. 71).
302
Compete à Justiça Federal processar e julgar as causas em que a União, suas entidades autárquicas e empresas públicas
federais figurem, como interessadas, na condição de autoras ou rés, além de outras questões de interesse da Federação.

235
O que este entrevistado está afirmando é que Ministério Público Estadual, Receita Federal,
Banco Central ou qualquer outra instituição (brasileira ou estrangeira) que aderisse ao acordo de
Colaboração Premiada não poderia modificar as cláusulas já pactuadas pelo Ministério Público
Federal, mesmo quando apurassem a responsabilidade do colaborador nas infrações que se inserissem
em suas respectivas competências. Estas agências, segundo a representação do entrevistado, estariam
autorizadas a punir apenas os delatados, ou aqueles que não fossem colaboradores.
A limitação das instituições que aderem ao acordo de Colaboração Premiada foi justificada
por outro entrevistado da seguinte forma:
-“ Ninguém é obrigado a aderir ao acordo de Colaboração Premiada. Mas, se a
instituição precisa daquela prova para poder iniciar ou desenvolver sua investigação,
tem que aderir ao benefício pactuado. Porque o colaborador só apresentou prova
contra ele próprio para poder receber aquele benefício.
(...)
Antes da Lava-Jato, estas instituições não puniam. Por que não puniam? Porque não
tinham provas. E elas só têm provas agora, depois que foram feitos os acordos.
Então, ainda que se diga, “ah! Mas eu já tinha instaurado um procedimento!”. Sim,
mas procedimentos que demoravam 15 anos para serem concluídos e quando se
chegava alguma prova, já não dava para processar ninguém porque prescreveu.
Agora que recebe “um monte” de provas de acordos de colaboração ou de leniência,
quer fazer a punição mais severa?
Isso não pode ser possível em relação às pessoas que colaboraram!”.
(MPF5)

Segundo este entrevistado, a instituição vinculada ao acordo de Colaboração Premiada teria


sua atuação limitada ou restrita ao que o Ministério Público Federal pactuou em relação aos
“benefícios penais”. Justificando seu argumento, o entrevistado afirma que as instituições aderentes
só conseguiram as provas porque o próprio colaborador se autoincriminou, produzindo-as e, como
está colaborando com estas instituições para o descobrimento de crimes, cuja apuração poderia
despender muitos anos e recursos de investigações, ele não pode receber uma punição mais severa do
que aquela já indicada no acordo de Colaboração Premiada.
A preocupação com a observação desta cláusula chegou ao ponto de um dos entrevistados
denominar de “detratores” da Colaboração Premiada os representantes das instituições de controle e

São comuns na Justiça Federal os conflitos que atingem um grande número de pessoas, como: correção monetária do
FGTS, as ações previdenciárias, os processos tributários e os que tratam dos financiamentos da casa própria. A Justiça
Federal da 2ª Região – JF2 está estruturada da seguinte forma: o Tribunal Regional Federal da 2ª Região - TRF2,
sediado no Rio de Janeiro – RJ, e duas Seções Judiciárias: Seção Judiciária do Rio de Janeiro – SJRJ e Seção Judiciária
do Espírito Santo – SJES. A primeira instância da JF2 compõe-se de Juízes Federais, em exercício nas seções
judiciárias – sediadas nas capitais dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo – e nas subseções judiciárias –
situadas nas principais cidades do interior. Cabe à primeira instância, em regra, o julgamento originário das questões
apresentadas à Justiça Federal. Quanto à segunda instância de julgamento, o TRF2 julga, em grau de recurso, as ações
provenientes da primeira instância (seções judiciárias), desfrutando, ainda, de competência originária para o exame de
algumas matérias previstas no art. 108 da Constituição da República de 1988.

236
fiscalização que não aderissem ao acordo ou não garantissem o que nele havia sido pactuado, como
pode ser verificado neste trecho de sua declaração:
“Os detratores do instituto da Colaboração Premiada, o que eles mais querem é
retirar a segurança jurídica do instituto.
Olha! Não se submeter ao acordo de Colaboração Premiada é uma violação ao
instituto. Eu estou muito menos preocupado com um acordo que eu tenha realizado e
muito mais preocupado com o próprio instituto da Colaboração Premiada”.
(MPF5)

Este assunto é de tamanha relevância para estes operadores. Tanto que no site da Ouvidoria
do Ministério Público Federal é reportado em slide, abaixo reproduzido:

QUADRO IV- COMPARTILHAMENTO DE PROVAS

Fonte: http://ouvidorias.gov.br/arquivos/apresentacoes-ouvidoria-3-0-construindo-o-
futuro/colaboracaopremiada_nova_versao-final2-ppt.pdf.

Dentre as limitações funcionais propostas pelo Ministério Público Federal, vale destacar a
que se refere aos órgãos e entidades estrangeiras, o que poderia suscitar a discussão acerca da invasão
da soberania dos países aderentes. Nestes casos, tais aderências decorreriam do instituto da
cooperação internacional, que pressupõe a existência de algum acordo prévio entre os Estados
internacionais envolvidos, no que se refere ao interesse mútuo em determinado sentido.
Por oportuno, vale lembrar um recente pedido de cooperação formulado pelo juiz da 13ª
Vara Criminal Federal de Curitiba, cuja carta rogatória solicitou às autoridades judiciárias
portuguesas a coleta de informações bancárias naquele país, relativo a ex-executivos da Construtora
Norberto Odebrecht, investigados em processo judicial oriundo da Operação Lava-Jato daquela
cidade. O pedido se baseou no Decreto português nº 64, de 12 de novembro de 2008, que ratificou a

237
Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade de
Língua Portuguesa.
O que merece destaque neste episódio é que mesmo existindo o Decreto que autorizava a
cooperação com o nosso país, o governo português indeferiu o pedido do juiz. Em parecer emitido
pelos juristas portugueses José Canotilho e Nuno Brandão (2016), foi afirmado, entre outras causas,
que os acordos de Colaboração Premiada dotados de cláusulas estipuladoras do cumprimento de
pena privativa de liberdade iniciado a partir da sua assinatura, a partir da qual o colaborador cumpre
imediatamente a pena privativa de liberdade em regime fechado, são “clamorosamente ilegais e
inconstitucionais e ofendem a ordem pública portuguesa” (CANOTILHO, BRANDAO, 2016, p. 17).
Assim, o governo português entendeu que os pedidos de notificação de atos e entrega de documentos,
obtenção de meios de prova, perícias, notificação e audição de suspeitos, arguidos ou indiciados,
testemunhas ou peritos recebidos em Portugal ao abrigo da referida Convenção seriam cumpridos
quando estivessem em conformidade com o direito interno português, respeitando os pressupostos
prescritos na ordem jurídica nacional. O deferimento da pretensão brasileira se condicionava, assim,
ao reconhecimento de que tal pedido não contrariasse princípios fundamentais da República
Portuguesa, nem causasse graves prejuízos aos intervenientes no processo (em atenção ao disposto no
artigo 4.º, n.º 2, da referida Convenção), o que não aconteceu.
Apesar desta negativa do governo português, este assunto ainda não foi sedimentado pelo
campo jurídico brasileiro e nem as declarações dos entrevistados demonstraram preocupação com os
efeitos invasivos nas competências de outros órgãos e instituições produzidos por esta cláusula de
adesão, como pode ser verificado nas seguintes entrevistas:

- “Um dos temas que também nos aflige diz respeito à adesão dos outros órgãos
envolvidos nos acordos de Colaboração Premiada. A partir do momento em que é
realizado o acordo, a gente tem todo o interesse em proteger os nossos
colaboradores. E aí, a gente tem colocado em nossos acordos a clausula de
compartilhar as provas produzidas no acordo com os outros órgãos, desde que os
órgãos não usem essas informações contra os colaboradores - e o Judiciário tem
aceitado isso, o juiz aqui da 7ª Vara vem acatando essa nossa indicação.
Isso é uma forma de também dar segurança jurídica ao colaborador, que - no
momento em que está narrando os crimes dos quais participou, ou dos quais teve
conhecimento -, está ali de coração aberto e despido de qualquer juízo moral ou de
valor e a gente não pode permitir que, diante de uma notícia de jornal, o Ministério
Público do Estado, a Receita Federal ou a Polícia Federal ou outro órgão de controle,
usem as informações que o colaborador ofereceu para poder prejudicar o próprio
colaborador.
Então a gente tem colocado isso nos acordos, tem tido respaldo do Poder Judiciário,
aqui da 7ª Vara e temos tido boas experiências.
O Ministério Público Estadual, por exemplo, já ajuizou diversas ações de
improbidades contra diversas pessoas e até mesmo diversos colaboradores, mas com
a observação de que as penas dos colaboradores devem ficar adstritas aos acordos de

238
colaboração. Anteontem saiu uma notícia de uma ação de improbidade que o
Ministério Público Estadual moveu contra o Sérgio Cortes e o César Romero e
outros tantos da Saúde303.
Embora o Ministério Público Estadual os tenha colocado como réus, o órgão fez a
ressalva de que estavam sendo colocados no polo passivo da ação para fins de
retórica e que pediam a condenação, respeitando aquilo que foi previsto no acordo
firmado pelo Ministério Público Federal.
Isso é um belo exemplo de que nesse sistema de cooperação e controle, os órgãos
também estão preocupados com a preservação do instituto. Isso é um reflexo do
respeito ao instituto.
(MPF2)

Como afirmam os entrevistados, a cláusula de adesão é considerada como garantia de


manutenção do instituto, um atributo que lhe confere segurança jurídica, categoria esta que será
examinada no Capítulo V deste texto.
Este entrevistado também esclareceu que no caso por ele citado, o Ministério Público
Estadual incluiu todos os servidores da Secretaria de Estado de Saúde no “polo passivo da ação” – o
que significou que eles se tornaram réus naquela ação -, mas, em relação ao colaborador, fez a
ressalva quanto a sua inclusão no polo passivo da ação para fins meramente retóricos. Tanto que o
pedido de condenação, registrou o respeito àquilo que foi previsto no acordo firmado pelo Ministério
Público Federal304.
Ainda em relação à forma como as instituições aderentes agiam em relação à punição do
colaborador, em relação aos crimes por elas apurados, o mesmo entrevistado me informou que:
- “Quando a gente estabelece no acordo de Colaboração Premiada para o
colaborador, por exemplo, uma pena máxima de 18 anos - como foi a do Carlos
Miranda -, substituída por 2 anos, em regime fechado; 1 ano em domiciliar; mais 3
anos de prestação de serviço. Mas a pena máxima é de 18 anos. Na hora em que o
juiz profere a sentença, ele faz a sentença, normalmente, condena o colaborador. Na
hora de fixar a pena, ele segue a nossa orientação... E mais, a gente se compromete a
não mais denunciar ou, se for o caso, pedir a suspensão dos processos que estão em
curso. Mas, porventura, é possível que haja mais de uma condenação (ou processo)
daquele colaborador para que se atinja aquela pena máxima estipulada. Então, ele vai
ter o nome lançado no rol dos culpados, vai ter condenação criminal, só não vai ter
uma pena acima daquele limite. No acordo, a gente coloca a quantidade e espécie de
pena a que ele será condenado. A pena máxima. Nesse exemplo, 18 anos. Essa pena
será substituída por 2 anos, em regime fechado; 1 ano em domiciliar; mais 3 anos de
prestação de serviço. Mas esse “cara” está respondendo a 3 ações penais. Se em um
dos processos ele já for condenado ao teto máximo (18 anos), nas outras ações
penais ou a gente não vai denunciar ou pediremos a suspensão das ações penais que

303
Sérgio Cortes foi Secretário de Estado de Saúde do Rio de Janeiro e investigado na Operação Fratura Exposta, que
apurou a prática de corrupção deste servidor, durante o período em que foi diretor do Instituto de Traumatologia
(INTO), entre 2002 e 2006.Conforme divulgado em http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-11/ex-
secretario-de-saude-do-rio-assume-ter-recebido-vantagens-indevidas.
304
Em outra parte do texto, quando examino a categoria legalidade, estabeleço a comparação entre as penas previstas em
lei para os crime praticados e aquelas que efetivamente foram indicadas pelo Ministério Público nesse acordo.

239
estiverem em trâmite. Porque ele já atingiu o máximo da pena que previmos no
acordo de colaboração. Carlos Miranda é um exemplo. Ele já “bateu” o teto da
condenação que a gente estipulou no acordo. Todas as ações penais que ele está
respondendo serão suspensas. Somente para ele. Os processos poderão ser
desmembrados para correrem para os demais colaboradores (com penas que ainda
não tenham atingido o teto máximo) e delatados. Essa pena máxima serve, inclusive,
para cálculo dos demais benefícios: progressão de regime, indulto, prescrição. A
gente vai calcular, com base na pena máxima que a gente acordou. A pena máxima
que ele vai ser condenado não é a mesma que ele vai cumprir. Mas para todos os
fins, existe aquela pena máxima para a qual foi condenado”.
(MPF2)

Assim, de acordo com este entrevistado, a pena máxima “sugerida” para o fato criminoso
apresentado pelo colaborador Carlos Miranda foi de 18 anos de reclusão. Todavia, esse total foi
reduzido para 6 anos, devendo ser cumprido da seguinte forma: 2 anos de reclusão em regime
fechado, 1 ano de prisão domiciliar e mais 3 anos de prestação de serviço. Caso esse colaborador
viesse a ser envolvido em outro fato criminoso (desde que relacionado ao desmembramento dessa
mesma investigação), a pena relativa a esse novo evento não poderia ultrapassar aos 12 anos
restantes, independente da gravidade do crime. E mais, se, além desse crime, ainda restasse um ou
mais fatos criminosos contra o mesmo colaborador, como as condenações anteriores já atingiram o
máximo de sua pena (12 + 6 = 18), em relação a tais eventos futuros, somente haveria duas
possibilidades: ou não seria denunciado ou teria os demais processos suspensos, dependendo da
discricionariedade do membro do Ministério Público.
Ainda segundo os entrevistados, a cláusula de aderência é registrada no acordo logo após a
indicação dos “benefícios penais”, como pode ser visto no ANEXO II, reproduzido a partir de um
dos acordos de Colaboração divulgados pela mídia.
A afirmação acima também é bastante peculiar no que se refere à suspensão do processo e
ao não oferecimento da denúncia. A suspensão do processo corresponde ao instituto denominado
sursis processual, resultando para o colaborador ter a aplicação da pena e demais consequências
penais suspensas por período determinado pelo juiz, que também estabeleceria as condições a serem
cumpridas para a realização de tal suspensão. Esta prática, por outro lado, não impede que o nome do
colaborador seja registrado no rol dos culpados. Caso não cumpra as condições impostas pelo juiz, o
pedido de suspensão do processo é revogado e o colaborador responderá ao processo. Situação
diversa é o não oferecimento de denúncia. Neste caso, não será instaurado um processo buscando a
condenação do comportamento criminoso praticado e, portanto, não será promovido o registro na
folha de antecedentes criminais do colaborador, apesar da existência de provas acerca da autoria e da
materialidade do fato criminoso.

240
Quando o entrevistado afirma que o juiz “segue a nossa orientação”, reproduz a ideia de que
o acordo pactuado com o colaborador não é levado em conta. Afinal, o juiz estaria seguindo a
orientação do Ministério Público e este funcionaria, assim, como um guia para o juiz. Vale dizer, se
os “benefícios penais” previstos no acordo são efetivamente pactuados entre as partes, a afirmação do
entrevistado sugere o contrário: que tais “benefícios” partem, exclusivamente, daquele agente do
Estado. Esta afirmação também produz a noção segundo a qual a ideia de justiça contratual ainda não
estaria sedimentada entre estes operadores.
Ao limitar o máximo da pena a um determinado patamar - que o entrevistado denomina
“teto máximo” e que corresponderia aos fatos descritos em um único acordo de Colaboração
Premiada -, o entrevistado também está afirmando uma inovação em matéria penal no Brasil. O
Código Penal, até então, em sua parte especial, atribui para cada crime uma pena específica, cujo
pedido de condenação deve ser julgado a partir de um processo judicial. Ora, quando este operador
afirma que mesmo havendo outros crimes praticados pelo mesmo colaborador, todas as condenações
obedecerão ao tal “teto máximo” da pena, significa que o acordo de Colaboração Premiada não
atingirá crimes não incluídos nessa negociação.
O entrevistado afirma também a possibilidade de o Ministério Público poder modular a pena
para crimes ainda não processados a partir deste acordo ou outros que venham a ser investigados,
sendo tal atividade, até aqui, realizada somente pelo juiz, pois a lei penal atribui as atividades de
dosimetria e de aplicação da pena ao juiz. O Ministério Público é parte no processo penal clássico e
num modelo não consensual seu papel seria somente formular o pedido de condenação ao juiz, bem
como o aumento ou diminuição de pena para tais crimes. Assim, a afirmação do entrevistado
demonstra que com as recentes modificações legais e a introdução de um modelo de justiça
consensual, os papéis ainda não estão claramente definidos para os atores.
Segundo este entrevistado, os efeitos limitadores do acordo relativos ao “teto máximo” da
pena podem atingir eventuais sanções punitivas de natureza não penal, isto é, administrativa ou
tributária, por exemplo. Assim, quando o entrevistado emprega a expressão “bater o teto”, significa o
respeito ao limite máximo das penas atribuídas ao colaborador, independente de sua natureza. Neste
caso, a inclusão dos nomes dos colaboradores na peça acusatória tem finalidade meramente
“retórica”, ou seja, eles terão seus nomes lançados no rol dos culpados, haverá uma condenação
criminal, mas a pena a ser aplicada não poderá ultrapassar ao limite imposto pelo Ministério Público
Federal. O fato de as instituições aderentes ao acordo respeitarem essa convenção é visto pelo
entrevistado como uma forma de se preservar o instituto da Colaboração Premiada, assunto que
retornarei mais adiante quando examino a categoria Segurança Jurídica.

241
Há, portanto, por parte desses operadores, uma “licença interpretativa”, tanto das normas
penais relativas à aplicação da pena - já que a Lei nº 12.850, de 2013 afirma que quem aplica a pena,
nos acordos de Colaboração Premiada é o juiz (artigo 4º) e o Código Penal que estabelece, em
relação à dosimetria da pena, que o juiz deve obedecer aos limites previstos nesta lei (artigo 59) 305 -,
quanto da orientação formulada pela ENCCLA, acima indicada, quando afirma que somente a
eficácia da Colaboração Premiada poderá ditar o quanto o juiz poderá reduzir a pena, eficácia essa
que não pode ser desde logo constatada pelo Ministério Público quando formula o acordo.
Esta liberdade de interpretação permite a adoção de uma infinidade de soluções para os
conflitos inseridos nesses acordos, significando a distinção de tratamentos oferecidos por estes
operadores aos diversos colaboradores. Tal liberdade está conectada à crença na legitimidade de
poder que estes operadores possuem como já afirmei anteriormente (ALMEIDA, 2014). Como os
operadores não revelam os motivos ou circunstâncias que os levam a fazer a opção por determinada
espécie de pena, ou qual foi a análise empreendida para chegar ao quantum desta pena e sua forma de
execução – embora tais atividades sejam impostas pela lei ao magistrado -, o “segredo” desta
informação também transmite uma feição inquisitorial a estes procedimentos.

III. 8. QUAIS SÃO OS CRITÉRIOS PARA A CELEBRAÇÃO DO ACORDO DE


COLABORAÇÃO PREMIADA?
Em meio a tantos acordos de Colaboração Premiada divulgados pelas mídias, entendi
oportuno também descrever como os operadores escolhiam ou selecionavam os colaboradores com
os quais pactuariam. Assim, os entrevistados afirmaram que:
-“Se eu puder te dizer em uma palavra quais são esses critérios, eu diria:
pragmatismo. Por exemplo, agora acabamos de deflagrar uma operação. É possível
que haja algum acordo? É possível!
Com quem faríamos? Com quem vier primeiro. Trouxer elementos; tiver dados
concretos, esse será o preferido. É claro que a gente tem sempre que levar em
consideração fatores como credibilidade, quem é o personagem (que deseja
colaborar) no contexto que ele está hoje?
De modo que não seria com qualquer um. Os líderes das organizações não haveria
espaço para fazer acordo com eles.
Até por uma questão de preservação dos próprios interesses da sociedade. Se eu faço
um acordo com a liderança de uma organização criminosa, de certa forma eu estou
premiando aquele que foi o grande responsável daquela organização criminosa. E

305
Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1941). “Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos
antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem
como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do
crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade
aplicada, por outra espécie de pena, se cabível” (BRASIL, 2017).

242
muitas das vezes – levando o nosso contexto de corrupção, de crimes de “colarinho
branco” -, foi o que mais causou malefícios para a sociedade.
Então, eu não poderia levar adiante um acordo com um personagem, com esse nível
de impacto social. A não ser que ele traga personagens que estejam acima dele e que
eu não tenha dados contra essa pessoa.
É o pragmatismo. Ou seja, não existe uma impossibilidade prévia.
Existe uma impossibilidade contextualizada.
Via de regra, os acordos são feitos com aqueles de menor nível hierárquico dentro da
organização criminosa. Inclusive, a própria lei fala, por exemplo, oferecer uma
imunidade para alguém que figurou como líder naquele crime. Mas nada impede que
eu faça um acordo com alguém que exerça uma função de liderança.
Levando em conta esses critérios, ou seja, pragmatismo.
Se o colaborador está me trazendo informações que ou eu não tenho, ou tenho mas
são muito tímidas. Está me trazendo provas de que outros personagens, em outros
contextos causaram mal maior em um contexto social maior. Vale a pena então fazer
um acordo com ele. Aí a gente pode levar isso em consideração.
Eu diria isso: pragmatismo. A gente tem que aferir o caso em concreto para ver se
vale a pena ou não fazer o acordo”.
(MPF1)

- “Então, o que determina é isso: são os fatos.


Muitas vezes os fatos podem não ser tão interessantes, mas há a possibilidade de
uma reparação, com a aplicação de uma pena de multa alta. Outro fator importante a
ser considerado é aquilo que o delator tem a oferecer. Às vezes ele não tem nada
sobre a pessoa, ou tem muito pouco sobre ela. Outras vezes, tem demais. Se a
pessoa é um expoente, não vale a pena se fazer uma colaboração com ela, porque o
peso para a gente vai ser muito maior.
Então, não há um critério objetivo definido, sobre quem o Ministério Público pode
aceitar para negociar ou não.
Nesse ponto há uma discricionariedade quase que absoluta do Ministério Público.
Tem que tentar sempre identificar essas características: o delator vai trazer fatos
relevantes? Vai trazer a possibilidade de reparação de danos ou a recuperação do
produto do crime, como alguma coisa que foi desviada? Qual é a implicação dessa
pessoa? Se ela já está processada ou se não está; se ela se antecipou em procurar o
Ministério Público para realizar o acordo, ou não. É mais ou menos por aí.
Eu não tenho como te dizer quantos pretensos colaboradores se tornaram
colaboradores de fato. Mas, a gente tem vários que não vão à frente. Não vai à frente
porque, ou a gente não tem interesse, ou porque a gente quer uma pena muito alta e o
colaborador não aceita.
Quando a gente formula o acordo e assina é porque já está decidido e está sujeito à
homologação judicial”.
(MPF3)

Já outro procurador entrevistado a respeito dos critérios sobre quem deve ser considerado
colaborador, disse o seguinte:
- “Todos nós nos reunimos e analisamos os materiais trazidos pelo colaborador e
todos se manifestam se as provas apresentadas são suficientes ou não para
determinar a celebração do acordo. Ou se o colaborador apresenta um caminho para
se chegar às provas e este é viável. Ou ainda, qual o impacto que as provas trazidas
pelo colaborador poderão gerar. Se vai gerar outra investigação, ou uma denúncia.
Se não vai, então não se aceita”.
(MPF6)

243
Com base nas afirmações acima, os critérios seriam: pragmatismo; quem chega primeiro; se
os fatos apresentados são relevantes; se estes fatos vão gerar novas investigações ou a instauração de
denúncia; não há critério objetivo definido. Vale dizer, não há mesmo um critério único para
determinar quando as propostas de acordo serão aceitas e quando este será celebrado. Esta
multiplicidade de critérios (praticidade, temporalidade; relevância; oportunidade) empregados na
escolha sobre qual colaborador será aceito, consiste - como um dos entrevistados afirmou -, em uma
discricionariedade muito ampla do Ministério Público Federal e que pode acarretar distintas soluções
e tratamentos, ainda que todas estejam voltadas para uma única finalidade: punir e manter em
movimento a máquina da Colaboração Premiada, parafraseando Bisharat (2015).
Ora a lei nº 12.850, de 2013, afirma que o juiz aplicará os “benefícios penais” ao
colaborador, quando a Colaboração Premiada for eficaz, significando aquela que atingir os
resultados que a própria lei elenca: a identificação dos demais coautores e partícipes da organização
criminosa e das infrações penais por eles praticadas; a revelação da estrutura hierárquica e da divisão
de tarefas da organização criminosa; a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da
organização criminosa; a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais
praticadas pela organização criminosa; ou a localização de eventual vítima com a sua integridade
física preservada, nos exatos termos do artigo 4º, desta lei.
O que se pode aferir a partir das declarações dos entrevistados acima descritas é que os
membros do Ministério Público Federal empregam esse rol de resultados da Colaboração Premiada
também como critérios que justificam ou não sua celebração. Além destes, também ingressam nesta
lista os requisitos legais: relativos ao status inferior do pretenso colaborador na estrutura da
organização criminosa, bem como sua antecipação efetiva em colaborar (nos termos do § 4º deste
mesmo artigo e que se referem à possibilidade de o Ministério Público Federal não oferecer a
denúncia). Vale destacar que a lei não elenca tais critérios como definidores da celebração do acordo,
mas tão somente os relaciona às hipóteses de não oferecimento de denúncia contra o colaborador.
A questão que se apresenta, portanto, gira em torno da autonomia e liberdade do órgão de
acusação quanto ao exercício hermenêutico e sua autoridade na disputa hierárquica pela dicção do
direito (BOURDIEU, 2007a), através das quais se abre espaço para ampliar, reduzir, inserir e retirar
conteúdos da lei, conforme a conveniência e o interesse da persecução penal.
Esta atuação tem consequências na esfera das atribuições públicas e na conformação social.
Ainda que os representantes do Ministério Público brasileiros possuam uma gama de escolhas em
suas mãos, no momento de celebrar o acordo, tal como acontece com os operadores da plea
bargaining norte-americana. No entanto, como já assinalado, no modelo estrangeiro tal liberdade de

244
escolha (discretion) implica em responsabilidade e na obrigação de prestar contas dos seus atos, que
devem ser praticados dentro dos limites impostos pela lei, por força da accountability. Já no Brasil, a
liberdade de escolha (discricionariedade) implica em irresponsabilidade, em desobrigação com a lei e
com o múnus público.
Por fim, a ausência de critérios, como afirmado por um dos entrevistados, ou a
multiplicidade de critérios empregados pelo conjunto desses atores, acaba gerando como resultado
variados destinos para os colaboradores. Aqui também se observa a liberdade de seleção destes
operadores sobre os casos que chegarão ao Judiciário, tal como Mouzinho (no prelo) verificou em
sua pesquisa de campo.
Como tais escolhas são estabelecidas com base na interpretação que os membros do
Ministério Público realizam e refletem a ética do nosso sistema jurídico, baseado em lógicas que
dizem muito de nossas sensibilidades jurídicas (GEERTZ, 1998): de um lado, as doutrinas e normas
constitucionais que explicitam éticas igualitárias e democráticas; de outro, a prática jurídica pautada
na hierarquia e na inquisição, que naturaliza as desigualdades.
Tais práticas estão intimamente relacionadas à forma como a verdade jurídica é construída
nestes procedimentos e, para enfatizar o que digo, descrevo, no próximo capítulo, uma das audiências
que assisti em meu trabalho de campo, na qual a lógica do contraditório, enquanto característica dos
atos praticados pelos atores deste campo, pode ser melhor compreendida.

245
CAPITULO IV

“VAMOS AO ATO!”

A LÓGICA DO CONTRADITÓRIO EM UMA DAS AUDIÊNCIAS


OBSERVADAS

Neste capítulo descrevo uma das audiências que assisti durante minhas visitas à 7ª Vara
Criminal Federal do Rio de Janeiro. Em seguida, indico as principais características de um instituto
do processo penal estrangeiro, suscitado por um dos atores deste ato.
Como informado na introdução deste texto, minha participação como ouvinte possibilitou a
coleta de informações relativas a inúmeros processos judiciais inseridos no âmbito das investigações
da Lava-Jato carioca, dos quais retirei apenas as relacionadas às Operações Cadeia Velha e Ponto
Final. Para a coleta destas informações empreguei anotações no caderno de campo e complementei
este registro com o uso de um aparelho celular, com o qual produzi fotografias dos ambientes que
visitei - algumas delas aqui anexadas – e gravei as falas dos atores durante tais atos. Após a
transcrição dessas gravações – recurso que também empreguei para todas as entrevistas dos
operadores -, organizei estes atos em arquivos distintos e os separei conforme as investigações a que
se referiam, criando pastas correspondentes, em meu computador pessoal e em um volume físico,
onde também juntei meu caderno de campo e o cartão de memória do aparelho celular utilizado para
este fim.
Antes de ingressar na sala de audiência reproduzi um hábito adquirido com a prática forense
e que consistia em conferir a pauta de audiência fixada no quadro de aviso próximo à porta de
entrada, cujas informações foram anotadas no caderno de campo. Estas informações consistiam no
número do processo judicial que ali seria examinado, os nomes das partes, testemunhas e advogados
que participariam deste ato processual, bem como sua natureza ou finalidade (interrogatório, oitiva de
testemunha etc.). Estas informações seriam depois juntadas às observações levantadas ao longo da
realização destes atos e mais tarde, complementadas com a transcrição das falas dos atores.
Dentre as audiências realizadas neste juízo, centralizei a observação sobre as que
produziram a oitiva de testemunhas (de acusação e defesa), fossem elas representadas pelos próprios
colaboradores ou não. Estes atos visavam instruir as ações penais já instauradas, mas também
fomentaram a possibilidade de alguns atores se oferecerem como colaboradores, quando esta
estratégia apresentava-se interessante para a defesa. Nestes casos, o advogado que patrocinava esta
parte informava ao juiz, logo no início da audiência, o interesse do seu cliente em formalizar um
acordo de Colaboração Premiada com o Ministério Público. Esta afirmação significava que, a partir

246
deste acordo, novas investigações seriam realizadas e originariam outras ações penais, que poderiam
ou não ter relação com a que ali estava sendo instruída. Significava também, como mais tarde me
informou um advogado de defesa, que tanto o juiz quanto o Ministério Público “olhariam para o
depoente como um colaborador e, não somente, como um criminoso delatado”, o que sugeria que
estes atores tratariam o depoente com reduzida suspeição, muito embora não tenha conseguido
confirmar esta circunstância pela simples assistência nessas audiências.
A quantidade de atores participantes determinou a variação da quantidade de tempo de sua
realização. Outro fator que influenciou a duração das audiências foi o debate eventualmente
produzido pelas partes. Assim, a audiência mais curta durou cerca de três horas, enquanto a mais
longa foi realizada durante, aproximadamente, cinco horas. Em geral, as audiências se iniciavam (ou
estavam marcadas nas pautas de audiência para terem início) a partir das 13 horas, muito embora
estes atos só começassem quando o juiz ingressava na sala e tomava assento em seu lugar. O lugar de
sua realização também foi alterado em razão da quantidade de atores participantes, já que o auditório
situado no último andar do prédio onde a vara criminal estava instalada também foi utilizado para
este fim.

IV. 1 – DESCREVENDO UMA AUDIÊNCIA

A audiência a seguir descrita, segundo meu entendimento, é a que melhor exemplifica e


expõe a lógica do contraditório que permeia as interações e as representações dos operadores do
campo jurídico e a forma como estas influenciam a construção da verdade jurídica entre nós. Refere-
se também às diferentes interpretações que os operadores atribuem aos procedimentos e institutos
jurídicos.
Esta audiência se destinou a ouvir o depoimento do ex-presidente do Tribunal de Contas do
Rio de Janeiro e seu filho, ambos envolvidos em crimes de corrupção e lavagem de dinheiro,
investigados que foram pela Operação Cadeia Velha. Tanto o ex-presidente, quanto seu filho, já
haviam celebrado com o órgão de acusação seus respectivos acordos de Colaboração Premiada. Ali
também seriam ouvidas outras quatro testemunhas da acusação. Assim, participaram deste ato, além
destes dois atores, o juiz, dois membros do Ministério Público, o oficial de justiça, a escrevente e os
advogados dos delatados pelos colaboradores. Devido à importância política do ex-presidente do
Tribunal de Contas e das pessoas por ele delatadas, na sala de audiências também havia um número
grande de repórteres e outros advogados, não necessariamente representando os envolvidos naquele
processo.

247
Apesar de investigados na Operação Cadeia Velha os depoimentos dos colaboradores
seriam colhidos nesta audiência para instruir o processo criminal que foi instaurado a partir da
Operação Ponto Final (Processo nº 0505915.08.2017.4.02.5101306). Desta forma, atuariam nessa
audiência como testemunhas, ainda que suas informações já constassem dos termos de depoimentos
que prestaram por ocasião dos acordos celebrados.
Como vem acontecendo com frequência nessas investigações, as provas colhidas em
acordos de Colaboração Premiada dão origem a outras investigações, como nesse caso, o que
acarreta a conexão e a intercessão entre as investigações, as provas, os colaboradores, os acusados e
as denúncias. A própria investigação instaurada para apurar o envolvimento do ex-presidente do
Tribunal de Contas do Rio de Janeiro decorreu de acordos de Colaboração Premiada firmados por
ex-executivos da construtora Odebrecht, investigados na Operação Lava-Jato de Curitiba (conforme
noticiado na Petição do Anexo I), como já afirmado.
Assim como era comum acontecer naquele ambiente, o juiz só ingressava na sala depois que
era informado pela escrevente, que todos os participantes do ato estavam presentes. Desta forma, seu
acesso àquele ambiente imprimia certa solenidade, mas não ao ponto de fazer todos os presentes se
levantarem de suas cadeiras, como acontece nos filmes sobre julgamentos no sistema norte-
americano. Outro dado que despertou minha atenção logo na primeira audiência que assisti naquele
juízo foi que, apesar de não utilizar toga – o que poderia representar alguma informalidade do juiz e
do ato por ele celebrado –, este operador trajava sempre um terno escuro, o que, imprimia uma
sobriedade ao ato.
Assim que cumprimentou a todos os presentes, o juiz informou que a audiência teria início,
indagando, imediatamente, aos advogados se gostariam de apresentar algum requerimento de ordem
preliminar, alguma questão de ordem307.
O primeiro a se manifestar foi um advogado de um dos delatados que disse:

306
Como se tratava de processo originário da Operação Ponto Final, nele, figuravam como acusados/ delatados, o ex-
governador da cidade; Sergio de Oliveira Cabral Santos Filho; o empresário do ramo de transporte rodoviário de
passageiros, Jacob Barata Filho; o ex-presidente do Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de
Janeiro - DETRO, Rogério Onofre de Oliveira; o presidente da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros
do Estado do Rio de Janeiro - FETRANSPOR, Lélis Marcos Teixeira; o presidente do Sindicato de Empresas de
Transporte Rodoviário do Rio de Janeiro, Marcelo Traça Gonçalves; o doleiro, Álvaro José Galvez Novis; o sócio de
Jacob Barata e presidente do Conselho do Sindicato das Empresas de Ônibus do Rio de Janeiro, João Augusto Morais
Monteiro; Edmar Moreira Dantas, que trabalhava para o doleiro Álvaro Novis; o empresário Cláudio Sá Garcia de
Freitas; a esposa de Rogério Onofre, Deyse Deborah Alexandre Neves; Alexandre Luiz de Queiroz Silva, sócio de uma
empresa de consultoria de investimentos envolvida com a FETRANSPOR e o empresário Bernardo Lederman Zajd.
307
A categoria “questão de ordem” é empregada pelo campo jurídico para se referir à duas representações que se
assemelham: a primeira, está ligada à dúvida dos operadores sobre a interpretação das normas processuais em relação
ao procedimento a ser seguido, ou sua interpretação em face da Constituição Federal. Além disso, há ainda a categoria
questão de ordem pública, utilizada como estratégia para conduzir de forma satisfatória (garantindo) a aplicação da
atividade jurisdicional.

248
_ “A defesa gostaria de solicitar o adiamento do ato porque as declarações de duas
testemunhas/colaboradoras não constam nos autos na íntegra. E, além disso, não
constam nos autos também os termos da Colaboração Premiada e nem as gravações
audiovisuais dessas pessoas. Por isso requer que esse ato não seja realizado nessa
data e seja remarcado para outra oportunidade, quando a defesa tiver acesso a eles”
308
(ADV1).

O que este operador estava solicitando ao juiz era o adiamento da audiência porque, mesmo
sendo advogado de defesa de um dos delatados, não teve acesso às provas produzidas na fase
investigativa – constituídas pelos depoimentos e as gravações audiovisuais dos colaboradores ali
presentes, assim como os termos de suas respectivas Colaborações -, porque tais provas não
constavam nos autos do processo anteriormente examinado por ele. Por esse motivo, o advogado
requeria ao juiz “que se dignasse a não realizar aquela audiência” e a remarcasse para nova data, após
a defesa tomar conhecimento de tais documentos (ADV1).
Em resposta, que soou como aviso, o juiz afirmou que:

- “Trata-se do mesmo requerimento que já foi realizado no outro processo e que,


portanto, vou atuar nesta situação da mesma forma como já fizera em outros
processos e audiências” (JF).

Esta afirmação reproduzia a ideia de que o advogado com quem o juiz dialogava já tinha
ciência de sua praxe. Mas, para quem não frequentava essas audiências, era impossível saber que isso
significava que o ato seria realizado, independente do pedido dessa parte, pois este magistrado não
considerava irregular o fato de as defesas não terem tido oportunidade de conhecer os documentos e
informações apresentados pelos colaboradores contra seus respectivos clientes e tampouco a
possibilidade desse conjunto de material probatório ser prejudicial à defesa. Assim, logo em seguida
arrematou:
_ “Eu já entendi o que o senhor está dizendo. Ou seja: não faça o ato porque está
faltando os Termos de Colaboração Premiada, os depoimentos e os vídeos anexados
à ação penal” (JF).

Ao que o advogado respondeu:


_ “Sim!” (ADV1)

Em seguida, o membro do Ministério Público interveio, participando da discussão e,


dirigindo-se ao advogado, perguntou:
_ “O senhor poderia indicar quais são os Termos?” (MPF).

308
Ainda que o advogado tenha se referido apenas aos acordos de Colaboração Premiada dos dois
colaboradores/testemunhas que seriam ouvidos nesse ato, o processo a que se relacionava esta audiência encontrava-se
instruído com as Colaborações Premiadas, vídeos e depoimentos prestados pelos seguintes colaboradores: Álvaro
Novis, Edimar Dantas, Renato Chebar, Jonas Lopes de Carvalho Júnior e Jonas Lopes de Carvalho Neto.

249
O advogado, então, respondeu:

_ “Os Termos das folhas 48 a 50, onde há apenas transcrição de um trecho do Termo
de depoimento do colaborador (inaudível) Junior e na folha 51, onde também há uma
transcrição de um trecho do depoimento do colaborador Jonas Neto. Nem a íntegra
desses depoimentos consta nos autos” (ADV1)

Sem responder a este profissional, o juiz dirigiu-se à outra advogada de defesa e perguntou:
_ “A doutora gostaria de falar alguma coisa?” (JF)

A advogada a quem o juiz se dirigia, e que representava outro delatado, respondeu:

_ “Sim, Excelência! Nós fizemos um requerimento do espelhamento309 das mídias


apreendidas, em vários processos. No Cadeia Velha310, houve manifestação do
Ministério Público assinada por quase todos os operadores dessa força-tarefa, no
sentido de deferir o espelhamento e não a devolução311 do processo. Acontece que,
na busca e apreensão da Operação Ponto Final, a gente fez pedido idêntico e acho
que foi mal compreendido, porque o Ministério Público se manifestou pelo
indeferimento do espelhamento. A gente pediu, nos dois casos, a devolução e, se não
fosse possível, o espelhamento. Em um caso, Cadeia Velha, o Ministério Público se
manifestou pelo deferimento do espelhamento, por isso acho que o segundo pedido
foi mal compreendido pelo colega que assinou a manifestação do Ponto Final...”
(ADV2)

Esta maneira de se comunicar com o juiz, empregando expressões técnicas (espelhamento,


devolução) integra um linguajar habitualmente empregado pelos operadores desse campo (o jargão
jurídico). O uso dessas categorias “nativas” nos discursos desses profissionais evidencia a
naturalização de tais práticas. No entanto, para quem não pertence a este campo, elas não são
compreendidas. Não obstante a dificuldade de compreensão pelos leigos, tal circunstância não tem o
poder de alterar a dinâmica, a linguagem ou a forma como estes atos são desenvolvidos.
A advogada a quem o juiz se dirigiu estava afirmando que já havia ingressado com diversos
requerimentos, solicitando o acesso, via Internet, da transcrição dos depoimentos (“espelhamento”), o
que indicava que nem a consulta - aos depoimentos realizados na fase investigativa, assim como os
Termos de colaboração dos colaboradores - por esse meio de acesso estava disponível. A profissional
tentava demonstrar, com isso, que o seu pedido diferia daquele que fora apresentado, inicialmente,
pelo outro advogado. Esforçava-se em justificar que essa forma de acesso não acarretaria a
paralização do processo porque não seria necessária a entrega dos autos do processo (físico) para seu

309
Termo empregado para indicar o acesso ao documento pelo site da Justiça Federal via Internet. O documento espelho é
uma cópia rastreada do documento original.
310
Esta maneira de se referir ao processo empregando o nome da operação policial que lhe deu origem, além de reforçar a
importância dessas investigações nesse cenário, é mais um óbice às informações acerca do conteúdo examinado. A
ênfase, portanto, não recai sobre o crime, nem sobre o acusado, mas, sim, sobre a investigação policial.
311
Esta categoria significa a abertura de prazo para o advogado ter acesso ao processo (devolução do processo às partes).

250
exame. Assim, este expediente não atrasaria o curso do processo, já que parecia ser este o motivo do
indeferimento do pedido inicialmente apresentado pelo outro advogado. Ao mesmo tempo, atendia à
determinação dos membros do Ministério Público, no sentido de não permitir o acesso ao processo
físico pelas defesas. Além disso, a advogada informou também que em outro processo, igualmente
examinado por este mesmo juízo - ou seja, o Cadeia Velha -, os procuradores haviam deferido tal
pedido, enquanto o relativo a esta audiência – da Operação Ponto Final - , ao contrário, indeferiram.
Ou seja, queixava-se a profissional do tratamento diferenciado que recebera nos dois processos, não
obstante seu cliente figurasse em ambos como acusado. Também os representantes do Ministério
Público que atuavam neles eram os mesmos.
A manifestação da advogada, apesar de diferente daquela proferida pelo primeiro advogado –
confirmava a reclamação anterior, relativa à prática de cerceamento da defesa pelo Ministério
Público, já explicitado pelo primeiro advogado, ainda que o protesto desta profissional se referisse à
adoção de distintos tratamentos pelo órgão de acusação, quanto aos seus pedidos que, segundo esta
advogada, tinham a mesma finalidade e orientação.
Mais uma vez, o juiz dirigiu-se a esta advogada para lhe informar que após a audiência
poderiam conversar, em seu gabinete, para verificarem, juntos, os motivos desse indeferimento.
Contudo, esta profissional lembrou ao magistrado que só se manifestara porque ele havia solicitado
aos advogados a apresentação dos seus respectivos requerimentos preliminares. Em seguida, solicitou
que este pedido ficasse registrado na ata da audiência, o que foi executado pela secretária do juiz,
após a autorização do mesmo.
Este breve diálogo entre os dois me fez pressupor que o juiz tinha pressa em realizar aquele
ato e não podia sequer disponibilizar algum tempo para discutir uma demanda, que a própria
advogada verbalizou como sendo uma “questão de ordem”. Também pela narrativa desta
profissional, entendi que a mesma julgava ser necessário primeiro enfrentar os motivos do
indeferimento do seu pedido, antes de qualquer outro assunto. Quando o juiz sugeriu conversar
sozinho com essa profissional, fez parecer não desejar enfrentar tal assunto diante dos demais
advogados, o que também poderia insinuar um tratamento diferenciado para esta profissional.
Qualquer uma dessas hipóteses deixava clara a tentativa do juiz em se esquivar do problema
apresentado pela advogada.
Mais tarde, em conversa informal com outro advogado criminal, já familiarizado com este
juiz, fui informada de que este magistrado “não conhecia muito bem processo penal”. Antes de atuar
naquela vara, trabalhou em uma Comarca do interior do Estado em causas cíveis e que aceitara a
oportunidade de se tornar um “juiz da Lava-Jato”, porque tinha pretensões de alçar um cargo mais
elevado, inclusive em organizações internacionais responsáveis pelo processo e julgamento de causas

251
criminais que versam sobre direitos humanos, em razão da possível visibilidade dada a sua atuação
na força-tarefa do Rio de Janeiro.
Após o embate com a advogada referida, o magistrado perguntou se o “membro” do
Ministério Público gostaria de se pronunciar em relação ao requerimento do advogado do primeiro
delatado. Em resposta, este profissional afirmou que, apesar de entender que a presença do advogado
de defesa perante aquela audiência – quando seria colhido o depoimento da testemunha/colaborador -
, “aconteceria sob o crivo do contraditório, suplantaria, e em muito, qualquer informação contida em
documento juntado ao processo, mesmo que este tenha sido colhido unilateralmente” (MPF). E em
seguida afirmou ter promovido, naquela data (da audiência), a juntada aos autos do processo de todos
os depoimentos dos colaboradores ali presentes e citados na denúncia. Também requereu ao juiz que
mandasse as defesas fundamentarem seus pedidos de acesso a esses documentos, obrigando tais
profissionais a justificarem o “eventual prejuízo” causado por tal cerceamento, assim motivando o
pedido de renovação daquele ato (audiência). Justificando seu argumento, afirmou:
_ “O colaborador está aqui. Está à disposição para ser submetido ao crivo da “cross
examination” de todos os advogados dos réus. Não há prejuízo algum porque já
tinham sido juntadas as transcrições dos depoimentos e hoje foram juntados os
depoimentos, com o acréscimo dos audiovisuais” (MPF).

Diante desta afirmação, o primeiro advogado de defesa perguntou ao Ministério Público:


- “Todos os áudios?” (ADV1)

Ao que o representante do Ministério Público respondeu:

- “Todos os audiovisuais que foram utilizados na denúncia foram juntados hoje”


(MPF).

Ao ouvir esta declaração do Ministério Público fiquei um pouco confusa, porque parecia que
ele não tinha ouvido a queixa inicial do primeiro advogado, pois somente agora estava se
manifestando sobre tal pedido.
Como se tratava da primeira audiência após o oferecimento da denúncia, também se pode
supor o esforço retórico dos advogados de defesa, já que não conseguiram acessar as informações e
provas, nem mesmo para combater esta peça de acusação. Além disso, já havia se passado mais de
vinte minutos, desde o início da audiência e, até aquele momento, nem juiz, nem Ministério Público
se designaram a informar tal providência aos advogados. Por fim, o representante do Ministério
Público afirmou a juntada também das transcrições dos depoimentos dos colaboradores, embora sem
dizer desde quando. Mesmo assim, a transcrição de depoimento é uma coisa. O Termo do
depoimento completo é outra. A transcrição do depoimento é uma reprodução de algumas partes do
depoimento e não sua íntegra.

252
Quando o Ministério Público defendeu a ausência de prejuízo da defesa, justificou tal
argumento afirmando que naquela audiência seriam ouvidos os colaboradores, os quais poderiam ser
arguidos ou terem suas respostas impugnadas por estes advogados de defesa, realizando-se, assim, o
“crivo do ‘cross examination’”.
O emprego desta categoria do direito anglo-saxão transformou essa cena em algo ainda mais
incoerente, para não dizer bizarro. Até porque os advogados de defesa, no sistema dos EUA, têm
direito de conhecer todas as evidências que podem ser apresentadas oralmente pelas testemunhas e
outros agentes no decorrer do tribunal e, só depois desse exame tais evidências podem ou não se
transformar em fatos jurídicos e provas, constituindo parte dos records do trial by jury.
Nenhuma dessas circunstâncias estava presente ali. Muito pelo contrário. Os advogados de
defesa estavam informando que até aquele ato ainda não tinham conhecimento das informações e
provas produzidas pelos colaboradores; o que disseram em seus depoimentos ou quais elementos
indicaram como prova de corroboração de tais afirmações, em suas Colaborações Premiadas. Por
outro lado, não havia nenhuma garantia que aquela audiência reproduziria, na íntegra, todas as
informações declaradas pelos colaboradores. Ora, jamais seria aceito no sistema jurídico estrangeiro,
do qual o operador brasileiro retirou a categoria “cross examination” citada, o advogado de defesa ser
obrigado a contestar prova, sem prévio conhecimento de seu teor.
Ressalto ainda, que, ao contrário dos advogados de defesa, tanto juiz quanto o órgão de
acusação tiveram oportunidade de conhecer tais informações em momento bastante anterior a esta
audiência, já que o representante do Ministério Público precisou fundamentar sua denúncia com base
nessas informações e o juiz, ao tomar conhecimento da denúncia e aceitá-la, também as conheceu, a
ponto de se convencer acerca da justa causa para a acusação e determinar a oitiva das testemunhas.
Desta forma, a diferença de tratamento entre acusação e defesa era nítida, neste caso.
Ainda que o representante do Ministério Público tenha utilizado uma categoria que é própria
do processo penal anglo-saxão, o “cross examination”, ao longo do seu discurso e do
desenvolvimento desta audiência, percebi que este operador estava se referindo ao princípio do
contraditório brasileiro, como também pretendo explicar em seguida.
Retornando à audiência observada, mesmo depois da “orientação” dada pelo juiz, o
advogado do primeiro delatado voltou a insistir em sua argumentação, diante da recusa do magistrado
em adiar aquele ato, assim declarando:
_ “Excelência! Só queria deixar registrado que nós (referindo-se aos advogados de
defesa que juntamente com ele representavam o réu em questão) já requeremos
várias vezes nesse sentido, tanto na fase da acusação (policial), quanto na fase
processual, especialmente porque a ausência do conhecimento dessas informações
influencia, sobremaneira, a forma como a defesa expõe seus argumentos em resposta
à acusação” (ADV1)

253
Antes que o advogado prosseguisse, o juiz o interrompeu, dizendo:

- “Perfeito! Isso (referindo-se à juntada dos acordos de colaborações) é só um


procedimento e nós não vamos discutir agora” (JF).

E voltando-se para os demais advogados, perguntou, já meio impaciente:

_ “Já terminaram os requerimentos?” (JF).

Todavia, o representante do Ministério Público, novamente insistiu em sua recomendação:


- “Excelência! Só para concluir. Para que o Ministério Público concorde com
qualquer pedido de renovação de qualquer ato praticado, desde a resposta à acusação
(denúncia), como já foi requerido, deve ser apontado pela defesa, especificamente,
qual seria o prejuízo que teria havido para a parte esse não acesso a tais documentos”
(MPF).

O juiz lhe respondeu:

_ “Nós já havíamos decidido sobre isso e esse tema anteriormente. Está correto
trazê-lo à baila, novamente, porque este é outro processo. Como já consignei em
outros momentos e em vários outros processos permeados por Colaborações
Premiadas, especialmente quando os acordos vêm de outros juízos ou instâncias, há
uma demora em receber esses termos. Sempre se procurou demonstrar que esses
termos e/ou vídeos, não são a prova que o juiz vai considerar no processo. A juntada
desses instrumentos - e o ideal é que sejam juntados como anexo ao processo
principal -, serve apenas para possibilitar o controle de legalidade por parte do
Ministério Público, caso o colaborador não informe aquilo que se comprometeu a
informar e, controle de legalidade por parte do colaborador, no caso de o Ministério
Público se recusar a reconhecer algum direito que estava previsto no contrato do
acordo de Colaboração Premiada. Então, por isso, o juízo fica impossibilitado,
inclusive pela lei, de simplesmente utilizar esses depoimentos e vídeos para
fundamentar sua decisão. É essencial, para o processo de conhecimento que o
colaborador aqui venha e, exposto o seu depoimento ao contraditório, preste os
esclarecimentos necessários, traga eventualmente algum documento que se
comprometeu a apresentar... De forma que aqueles termos e vídeos, essas
negociações que ocorrem fora do ambiente judicial – são instrumentos extrajudiciais
– servem apenas para o controle da legalidade. Então, eu tenho repetido algumas
vezes porque é importante estar repetindo para que fique registrado neste processo”
(JF).

O que o juiz estava afirmando era que tanto o acordo de Colaboração Premiada - elaborado
entre o membro do Ministério Público Federal e o colaborador -, quanto o depoimento desta parte -
também realizado no momento da Colaboração, ainda na fase pré-processual, sem a presença dos
advogados dos delatados -, no seu entender (ou seu sentir, conforme MENDES, 2011), não afeta a
regularidade da defesa dos réus, porque não os considerava como prova, pois em sua perspectiva,
estes atos somente adquiririam tal status depois de submetidos ao contraditório. Ainda segundo o
magistrado, como estas informações foram anexadas ao processo - isto significava que não estavam

254
“dentro” do processo, relativizando, assim, seu poder probatório -, seriam consideradas apenas como
necessárias ao “controle de legalidade” das partes contratantes do acordo de Colaboração Premiada.
Neste sentido foi sua afirmação, proferida logo em seguida:
- “Quando possível, juntam-se esses termos e esses vídeos e dá-se vistas às partes.
Quando possível! Quando esses documentos vêm de instâncias superiores é
demorado e o processo não tem que ficar parado por conta disso. Enquanto esses
termos, esses vídeos não chegam, o processo não tem que ficar parado. Inclusive, em
outro momento já disse que eu não reconheço direito a nenhuma das partes de saber,
previamente, qual é o teor do depoimento de um colaborador/testemunha, nem do
interrogatório de um réu colaborador. Isso não existe no nosso sistema processual.
Assim como o Ministério Público não tem conhecimento prévio do que dirá uma
testemunha de defesa que é trazida em juízo, durante o processo. Então, eu percebo,
ou prefiro acreditar que, há um excesso de zelo por parte da defesa ao pedir para ter
acesso a essas informações preliminares, que essa oportunidade seria dada, caso os
termos e vídeos já estivessem aqui nesse juízo”. (JF)

O que foi interessante verificar no aparente tratamento isonômico dado pelo juiz - quando
afirmou que, “assim como a acusação não tem ciência do que a testemunha de defesa vai afirmar”, da
mesma forma, ele “não reconhecia direito nenhum à defesa para saber, previamente, qual era o teor
do depoimento do colaborador, nem do interrogatório de um réu colaborador” -, foi a inversão do
ônus da prova em processo penal, que nas tradições jurídicas ocidentais dos países democráticos é
todo da acusação. No entanto, para reforçar seu argumento, taxou como “excesso de zelo” as
reivindicações dos advogados de defesa.
Para justificar a legitimidade do seu comportamento, o juiz declarou não existir, portanto,
“qualquer prejuízo” que motivasse o adiamento da audiência, e prosseguiu, declarando que:
_ “Não reconheço a necessidade de retardar esse ato ou de renovar qualquer outro
ato que eventualmente já tenha sido praticado. Sei que há vários habeas-corpus
impetrados nas instâncias superiores pelos advogados de defesa, não tendo ocorrido
êxito em nenhum deles, até agora. Há habeas-corpus no Supremo Tribunal Federal,
com o Ministro Gilmar Mendes. Então, obviamente, se vier alguma decisão
diferente, o juiz cumprirá. Mas na ausência de tal decisão, o meu entendimento, que
vem sendo sufragado pelo nosso Tribunal Federal, pelo Superior Tribunal de
Justiça... Eu não sei no Superior Tribunal de Justiça, mas imagino que isso também
tenha passado por lá... Mas na ausência de ordem em contrário, minha decisão
permanece sendo observada!” (JF)

De acordo com esta declaração, o juiz indicava que tinha conhecimento dos diversos
Habeas-Corpus impetrados pelos advogados de defesa, mas tal circunstância não modificaria sua
decisão, enquanto não ocorresse uma ordem superior o obrigando a agir de forma contrária. Afirmou
ainda que até aquela audiência, tanto o Tribunal Regional Federal, quanto o Superior Tribunal de
Justiça tinham indeferido tais pedidos, restando apenas a manifestação do Supremo Tribunal Federal,
ainda sem resposta.

255
Mesmo depois dessa afirmação, os advogados de defesa continuaram contestando o
magistrado. Tanto que o advogado de defesa do primeiro delatado, insistiu, mais uma vez, afirmando
que:
- “A defesa de Jacob Barata não teve ciência dessa petição do Ministério Público
juntando...” (ADV1)

Antes mesmo que este defensor pudesse terminar sua frase, o juiz se antecipou em
interrompê-lo, afirmando o seguinte:
_ “Sim! Mas ainda que tivesse... Ainda que tivesse! Se fosse essencial que esse
documento estivesse previamente nos autos, o senhor diria, com toda autoridade e
razão, que gostaria de ter analisado para preparar a defesa. Mas eu, discordando do
seu posicionamento, eu não vejo essa essencialidade. Isso é alguma coisa estranha
(aumentando um pouco o tom da sua voz) ao processo. É outro procedimento
paralelo que se instaura para que o Ministério Público possa obter provas para o
processo e a prova que ele conseguiu, aparentemente, indicar é o depoimento de um
dos colaboradores, que irá aqui se iniciar hoje. Na minha visão, eles são paralelos.
Não vão se encontrar. Uma situação jurídica, uma coisa é o procedimento
extrajudicial de Colaboração Premiada, outra é o processo judicial que vamos aqui
realizar, sob o crivo do contraditório, onde será oferecida a oportunidade de todos
aqui indagarem o colaborador, produzir provas e, essas sim, serão levadas em
consideração pelo juízo” (JF).

Assim, o juiz defendia não considerar essencial a juntada prévia dos documentos que
integravam os acordos de Colaboração Premiada, realizados pelos colaboradores/testemunhas, os
quais constituíam os termos de Colaboração; os respectivos depoimentos dos colaboradores, bem
como todas as provas até ali produzidas. Segundo o entendimento deste magistrado, o procedimento
da Colaboração Premiada seria extrajudicial e, portanto, não constituía processo, o que somente
aconteceria quando fosse realizado o contraditório. Assim, ao classificar o procedimento como
extrajudicial, o juiz estaria tentando reduzir a importância do acesso da defesa a estas informações.
Também nesta declaração o juiz denomina de prova o depoimento prestado pelo
colaborador, na fase preliminar do acordo e, ao mesmo tempo, afirmou que só seriam consideradas
como tal, as provas produzidas sob o crivo do contraditório, ou seja, as provas que as partes
produziriam naquela audiência. Esta duplicidade de afirmações do juiz – considerando como provas
tanto as informações colhidas na fase preliminar quanto aquelas produzidas na fase judicial –
constituiu uma inovação frente aos discursos doutrinários relacionados a esta categoria, indicando
que o juiz considerava também como prova até mesmo o que ainda não tinha passado pelo “crivo do
contraditório”.
O comportamento do juiz remeteu às práticas do Tribunal do Santo Ofício, quando a defesa
precisava adivinhar aquilo que a autoridade inquisidora sabia, correndo o risco de, adivinhando, ser

256
considerada praticante de bruxaria (SILVA, 1999). Assim, o que mais despertava minha curiosidade
era o fato de esta audiência, sob a perspectiva de constituir um ato relativo a um processo penal
contemporâneo e democrático, demandar a necessidade de a defesa combater as provas apresentadas
pela acusação e apresentar as suas.
Tais pensamentos foram interrompidos quando o juiz arrematou:
_ “Alguma coisa não ficou clara?” (JF).

De onde estava, pude observar os dois advogados que inicialmente se manifestaram, se


entreolharem, enquanto o primeiro deles franzia a testa e abaixava a cabeça. Mais uma vez, antes de
poder retomar a sua fala, o juiz foi interpelado, desta vez, pelo terceiro advogado, constituído por
outro delatado e que até aquele momento ainda não se pronunciara. Este profissional afirmou, então,
que:
- “Pela ordem, excelência! Essa é a primeira manifestação da defesa do réu nos autos
e “pegando o gancho” da defesa do outro co-réu, como eu não estou atuando nos
outros processos, queria pedir, diante do Ministério Público - por mais que Vossa
Excelência entenda que não há essa essencialidade -, é o entender da defesa de
Rogério Onofre de Oliveira a necessidade de ter acesso ao conteúdo produzido em
investigação criminal, onde se realizou a Colaboração Premiada para a ação penal.
É importante para a defesa, na medida em que contradições e omissões, que são
relevantes para o controle da legalidade do Termo de Colaboração, que a defesa
tenha acesso a essas informações antes da audiência. Porque se só tiver acesso na
hora da audiência a defesa não tem condições de apontar uma omissão ou
contradição de forma embasada. Por tanto, para colaborar com o sistema de justiça
criminal, para nós termos acesso a esse material, na medida em que nos permite
colaborar com esse “cross examination”, mencionado pelo douto procurador, na
medida de trazer elementos, porque não é novidade colaboradores que mentem, que
omitem e que se contradizem para poder obter o benefício penal prometido pelo
Ministério Público. Então, acredito eu, com as devidas “vênias” a vossa excelência,
que sim, é um direito da defesa, de forma ampla, poder proporcionar um debate,
inclusive contraditando o conteúdo da delação, para que se possa fazer um controle
de legalidade, na medida em que omissões, contradições e mentiras são atos que
importam, inclusive, na revogação do acordo (ADV3).

Também este advogado ressaltou a necessidade (e o direito) de a defesa tomar conhecimento


das informações obtidas na investigação, com vistas a poder preparar-se para este exercício de forma
adequada, inclusive, visando contestá-la, apontando omissões e contradições fundamentadas, o que
constituía, no entendimento deste profissional, o exercício regular da defesa.
A afirmativa segundo a qual “não é novidade que colaboradores mentem, omitem e se
contradizem para poderem obter os ‘benefícios penais’” concedidos pelo Ministério Público -
revelando, assim que, aparentemente, esta prática tem sido comum entre os colaboradores, sugeria a
suspeita deste profissional quanto à veracidade das provas produzidas pelos colaboradores-

257
testemunhas presentes naquele ato. Contudo, como não houve nenhuma manifestação de desagravo
desses atores ou de seus advogados, nem de nenhum dos demais participantes, esta declaração
acabou assumindo um tom genérico e impessoal, não chegando sequer a ser apreciada pelo juiz.
No entanto, após ouvir essa afirmação, o juiz reagiu, aparentando certa irritação e
respondeu:
- “O senhor está repetindo o que já foi dito pelos outros advogados e eu reitero o que
disse antes” (JF).

Antes mesmo que o terceiro advogado pudesse se manifestar, o advogado do primeiro


delatado voltou a combater o juiz, afirmando que:
- “O senhor disse que se realmente eu quisesse ter acesso ao depoimento eu teria que
me manifestar, requerendo prazo para analisar o documento. Vossa Excelência já
determinou a oitiva do colaborador/testemunha? Se não, eu não gostaria de ficar toda
hora obstando a realização do ato porque eu sei que Vossa Excelência vai dar
continuidade ao ato. Meu pedido é que Vossa Excelência marque outra audiência
para ouvir as testemunhas da defesa, ouvindo antes, as testemunhas da acusação.
Então...” (ADV1)

A declaração deste advogado indicava que já tinha percebido que nada iria demover a decisão
do juiz em realizar aquele ato. Por este motivo, tentava reduzir o prejuízo ao seu cliente, pedindo,
então, que as testemunhas de defesa fossem ouvidas em outra oportunidade, depois das testemunhas
de acusação.
Contudo, antes que este advogado pudesse completar sua frase, o juiz o interrompeu, mais
uma vez, agora bem mais impaciente:
- “Eu já esclareci aqui qual é o meu entendimento e eu vou realizar o ato! Mas as
irresignações estão devidamente registradas. A audiência é gravada, então podemos
seguir. De qualquer forma, eu não queria abordar isso aqui, mas o Ministério Público
já se adiantou, eu creio que poderia ter colocado isso na peça de acusação, o juízo
não vai... Nenhum juízo vai, simplesmente, retroceder a uma alegação de prejuízo e
realizar novamente qualquer ato processual. Há de se indicar qual foi o prejuízo, qual
foi realmente o dano ao direito de defesa, causado por esse instrumento que, repito,
não é do processo; que deve ser trazido apenas para o controle de legalidade do
acordo. Até porque, repito, nós temos como base o artigo 402, do Código de
Processo Penal312 que nos permite, eventualmente, sanar alguma dúvida nesse
sentido. De qualquer forma, ainda falando sobre a avaliação do teor do depoimento
do colaborador, a defesa certamente terá vista aos tais termos de Colaboração
Premiada e poderá apontar eventual contradição que enfraqueceria este depoimento.
Ou seja, realmente não há motivos para a não realização do ato. Repito que não
reconheço – se vier alguma decisão ao contrário vou obedecer – não reconheço à
defesa o direito de conhecer com antecedência o teor do depoimento do colaborador,
assim como o Ministério Público não conhece previamente o teor do depoimento da
testemunha de defesa. Bom, de qualquer forma, as irresignações estão registradas.
Vamos ao ato!” (JF).
312
Código de Processo Penal – Artigo 402: “produzidas as provas, ao final da audiência, o Ministério Público, o
querelante e o assistente e, a seguir, o acusado poderão requerer diligências cuja necessidade se origine de
circunstâncias ou fatos apurados na instrução” (BRASIL, 2017).

258
Diante da afirmação do juiz de que não retrocederia, nem mesmo após a alegação de
prejuízo da defesa, todos os advogados dos delatados ficaram em silêncio e ninguém mais interpelou
o juiz novamente. Enfatize-se, portanto, que o juiz não acolheu nenhum dos pedidos dos advogados
que, não obstante representarem a defesa de delatados distintos e pleiteavam o mesmo direito: o
acesso às informações anteriormente produzidas pela acusação e que seriam examinadas nesse ato. E,
assim, o juiz deu continuidade à audiência, passando a interrogar os colaboradores/testemunhas.
Quando chegou a vez desses profissionais realizarem perguntas aos
colaboradores/testemunhas, um a um, afirmou que desejava deixar registrado em ata que estava
deixando de promover esta indagação porque não tivera acesso a todo o teor das informações dos
colaboradores. O que foi acolhido pelo juiz e registrado pela escrevente.
Ao determinar que os advogados de defesa deveriam justificar seus pedidos de vistas às
provas já realizadas pelo colaborador e pelo órgão de acusação, indicando de que forma o não acesso
a elas poderia prejudicar a atividade da defesa, o juiz também alertou ao membro do Ministério
Público que este deveria “ter colocado isso em sua peça de acusação”. Sob a ótica do direito, esta
prática poderia ser entendida como exemplo de parcialidade do juiz, já que seu argumento, em certa
medida, se aproximou do interesse da acusação. À luz da dogmática jurídica, ao prosseguir com a
audiência, sem que a defesa tivesse acesso às provas produzidas pela acusação, o juiz estaria
desequilibrando a relação isonômica que a lei processual garante às partes313.
Isto porque, segundo a nossa doutrina processual penal, as partes ou sujeitos processuais, ou
seja, as pessoas que integram a relação processual são classificadas em sujeito ativo e sujeito passivo
da infração penal, sendo esta última a que pleiteia a prestação jurisdicional, enquanto a primeira,
aquela contra a qual é deduzida a ação penal. Conforme a posição processual que essas partes
assumem, são distinguidas como parte acusadora e parte acusada, ou apenas, acusador e acusado. O
acusador no processo penal, especialmente nos crimes de ação penal, é o Ministério Público.
Excepcionalmente, o Estado, mesmo sendo titular do poder punitivo, concede ao ofendido ou ao seu
representante legal o direito de acusar, como acontece, geralmente, nos crimes que o Código Penal
classifica como sendo de ação penal privada314 (TOURINHO, idem, pp. 408-410). Logo, segundo

313
Esta crítica também pode ser comparada ao estudo de Lupetti (2012) sobre a necessidade que os juízes brasileiros
veem em demonstrar sua imparcialidade, representada por eles pela obrigatoriedade de não explicitarem seus
sentimentos, preconceitos e valores - nem às partes, nem em seus escritos nos processos -, posto que tais agentes
entendem que tal demonstração contaminaria a aparência de sua imparcialidade.
314
A lei penal prevê hipóteses de crimes em que, não obstante serem classificados como sendo de ação penal pública, a
participação do ofendido ou do seu representante legal é permitida, como são os crimes de ação penal pública
subsidiária ou condicionada à representação (artigo 100 do Código Penal). Já a Lei nº 1.079, de 1950, também prevê a
possibilidade de qualquer cidadão figurar como acusador, quando se refere à ação penal popular.

259
estes discursos, o juiz não é parte. Ele se põe de permeio entre os contendores para dizer qual deles
tem razão (TOURINHO, idem, p. 275). Não poderia, portanto, realizar ato com índole acusatória ou
defensiva.
Ainda segundo os discursos jurídicos brasileiros, um dos elementos que caracteriza o nosso
sistema “contraditório” é a paridade de armas entre as partes e que, em tese, consistiria em uma
relação simétrica e igualitária entre as partes no processo, categoria que o campo jurídico brasileiro
associa ao momento ou fase judicial, exclusivamente315. Vale dizer, o tratamento isonômico entre as
partes, apenas se refere aos atos processuais, não alcançando, portanto, a fase investigativa.
Sob o ponto de vista sociológico, o conflito que seria examinado neste ato judicial não foi
administrado. Ao tratar de forma diferenciada defesa e acusação, o magistrado estaria produzindo
outros conflitos entre as partes ali presentes. Afinal, como o próprio magistrado informou, os
advogados de defesa impetraram alguns Habeas-Corpus (a exemplo do HC nº 422.086/RJ) contra ele
e contra o Ministério Público, alegando cerceamento de defesa. Ainda que tais argumentos tenham
sido rejeitados, tanto pelo Tribunal Regional Federal, quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, ao
verem negados seus pedidos nesta última Corte, os advogados impetraram novo pedido - combatendo
o acórdão proferido pela quinta turma do Superior Tribunal de Justiça -, desta vez junto ao Supremo
Tribunal Federal (Habeas-Corpus nº 153.843/RJ). Neste órgão, ao contrário do que haviam decidido
os tribunais inferiores, o pedido dos advogados foi acolhido, conforme julgamento do Ministro
Gilmar Mendes, relator deste pedido e que determinou ao juiz da 7ª Vara Criminal Federal a
repetição dos atos processuais já realizados, bem como o estabelecimento de prazo para que os
advogados de defesa pudessem analisar as informações produzidas pelos colaboradores/testemunhas,
antes de uma nova audiência316.
Ao tomar conhecimento desta decisão, o juiz divulgou uma declaração junto à imprensa, se
insurgindo contra ela, argumentando que se tratava de uma decisão liminar adotada
monocraticamente, significando que no entendimento daquele magistrado tal decisão deveria ter sido
produzida pelo colegiado que representava aquele tribunal superior (SCHüFFNER, 2018). Esta
atitude ilustra uma prática que se tornou bastante comum dentre as realizadas pelo campo jurídico no
período das Operações Lava-Jato: o uso da imprensa e das mídias sociais pelos agentes do Estado

315
Para o campo jurídico esta categoria está associada à noção de processo justo e democrático, como inerente ao modelo
de Estado Democrático de Direito, já que se trata de uma proteção ao direito de defesa, previsto no artigo 5º, inciso LV,
da Constituição Federal de 1988, quando declara que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”. Dentre
outras providências neste sentido, a lei processual determina, por exemplo, que a acusação sempre se manifeste antes da
defesa (artigo 610, do Código de Processo Penal).
316
Habeas-Corpus nº 153843/RJ - RIO DE JANEIRO, Relator Min. GILMAR MENDES, julgado em 16/03/2018 e
publicado no DJe-053, em 20/03/2018. Divulgado em
https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313912454&ext=.pdf.

260
que integram esse pool de operadores, para divulgarem seus atos e opiniões, como forma de buscar
apoio popular para conferir legitimidade a eles317.
Esta prática lembra o que Fontainha (apud MACHADO, 2016) denominou de
hipermidiatização dos processos criminais. Uma prática que no Brasil constitui uma tradição quando
os casos criminais são levados a público pelas autoridades do Estado, com vista a mobilizar
sentimentos morais da população. De acordo com o autor, com as Operações Lava-Jato isso não foi
diferente, muito embora tenha acarretado duas implicações distintas. A primeira, seria o
descumprimento de novos dispositivos, que incluem vazamentos das declarações dos investigados e
coletivas de imprensa com os representantes das instituições de controle e fiscalização, inclusive com
o uso de “power point”. Ainda que estas atividades violem direitos e garantias dos denunciados,
independentemente de no futuro eles serem considerados inocentes -, o principal é que representam
um dispositivo instrumental da mídia pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público, contrariando a
ideia de discrição, enquanto regra fundamental da justiça ocidental moderna, sobretudo em relação a
casos que estão sob julgamento e ainda não acabaram. Segundo o autor, há um uso estratégico dos
representantes dessas instituições em colaborarem com a imprensa, simpática à Lava-Jato e suas
congêneres. E eu acrescento: e vice-versa. A imprensa também colabora com a atuação desses
agentes que integram tais Operações, aceitando e divulgando suas informações “vazadas” dos
processos judiciais, porque estas alimentam os “furos” de reportagens e o mercado das notícias. O
segundo desdobramento indicado pelo autor se refere às consequências políticas dessas Operações.
Segundo ele, há a midiatização de processos criminais e isso geralmente se desdobra, do ponto de
vista legislativo, com o endurecimento da lei penal, embora as consequências políticas da Lava-
Jato sejam incomparáveis, inclusive com o Mensalão. Ainda segundo o autor, a midiatização de um
processo como este visou apenas constituir o gatilho do impacto político.
Embora a decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal tenha determinado apenas a
repetição das audiências relativas aos processos originários da Operação Ponto Final, o juiz decidiu
refazer também, e por conta própria, todos os processos relativos às operações Cadeia Velha e Ponto

317
Neste caso, o juiz ainda utilizou sua rede social (TWITTER) para compartilhar a seguinte frase do historiador
brasileiro, Jaime Pinsky: “Em uma sociedade democrática o juiz não deve privilegiar amigos, parentes ou pessoas pelas
quais sente afinidade”. Esta manifestação foi entendida pela mídia como uma referência ao pedido de suspeição do
Ministro, encaminhado pelo Ministério Público Federal à Procuradoria-Geral da República, em julho de 2017,
argumentando que este julgador tem relações de amizade com um dos acusados em processos resultantes das Operações
Policiais Ponto Final e Cadeia Velha e estaria beneficiando-o com suas decisões (BRASIL, 2018). A troca de
acusações entre estes dois magistrados não terminou neste episódio relatado acima. Em outra oportunidade este mesmo
Ministro, também utilizando a mídia, acusou o juiz de abuso de autoridade, por ter postergado a prisão de outro acusado
(BRASIL, 2018). Esta discussão ainda contou com a participação do Ministério Público, que divulgou uma nota,
repudiando o comportamento do Ministro e apoiando o juiz. O emprego destes recursos, que poderiam representar uma
aproximação das agências estatais de Justiça com a sociedade, tem constituído uma ferramenta de divulgação e ênfase
do jogo de vaidades e poder entre estes profissionais.

261
Final 2 (um desdobramento da Operação Ponto Final), como uma medida preventiva contra futuros
e eventuais pedidos idênticos dos demais advogados de defesa que atuavam nesses processos318.
Ao renovar estes atos, o magistrado anulou todas as audiências realizadas no período que
equivaliam a cinco meses de trabalho, como mais tarde ele próprio confidenciou a um dos membros
do Ministério Público, enquanto finalizava outra audiência, realizada alguns dias depois daquela
decisão superior. Ainda nesta manifestação o magistrado descreveu a decisão do Ministro do Supremo
Tribunal como “uma palhaçada”. Assim, na perspectiva desse magistrado, o julgamento daquele
tribunal não foi percebido como uma orientação séria e que merecia sua atenção, ou que tenha sido justa.
Ainda que o juiz tenha cumprido a determinação superior, seu comentário evidenciou a disputa de poder
entre estes operadores, já que, sob a perspectiva deste magistrado, somente suas próprias decisões estariam
corretas, o que representava, em certa medida, a crença em estar acima da lei, já que a decisão do Ministro
afirmava a existência e a obrigatoriedade de o juiz observar princípios e disposições legais e
constitucionais.
Vale também ressaltar que ao anular as outras audiências, o juiz indicava que poderia ter agido da
mesma forma em várias outras oportunidades. Chama a atenção também o fato de não ter sido
considerado, ou mencionado por ele, o custo financeiro, institucional e pessoal gerado por esta atitude,
atingindo não apenas a todos os envolvidos nestes processos, como também à população em geral,
especialmente porque os impostos pagos pelos contribuintes mantêm o funcionamento das instituições
estatais e os salários dos seus operadores.
Este exemplo se insere na perspectiva de outras pesquisas sobre o amplo arbítrio dos juízes e
tribunais brasileiros, tanto no que se refere à interpretação da lei, quanto na seleção das provas,
representado pelo princípio do “livre convencimento do juiz”. Ainda que o juiz seja obrigado a
motivar suas decisões, por força de dispositivo legal, o livre arbítrio acima descrito se aproximou das
análises que indicam decisões judiciais que não observam os pedidos das partes e a aplicação das leis,
já que cedem a critérios conforme a vontade dos julgadores, a serem justificados a posteriori
(MENDES, 2011; SETA, 2015).
Como Mendes (idem, pp. 74-75) já demonstrou, a forma peculiar pela qual atua o campo
jurídico brasileiro permite que a verdade jurídica seja construída pelos tribunais, de forma não
consensual e, ao mesmo tempo, autoriza o juiz, diante do litígio submetido à sua apreciação, a decidir
primeiro e depois buscar no processo as provas que fundamentam esta decisão. Em outras palavras, o
livre convencimento do juiz é a única regra que vale.

318
Conforme divulgado em https://oglobo.globo.com/brasil/bretas-vai-reiniciar-processos-de-cadeia-velha-ponto-final-2-
22509630#ixzz5PnmmfzAR e https://oglobo.globo.com/brasil/bretas-vai-reiniciar-processos-de-cadeia-velha-ponto-
final-2-22509630#ixzz5PnmT9DMX .

262
A autora demonstra não apenas o enorme descompasso entre os discursos dos doutrinadores
reconhecidos no campo jurídico e aquilo que os juízes entrevistados entendem ser o “livre
convencimento do juiz”, apesar destes operadores utilizarem tais doutrinas, quando muito, para
fundamentarem as decisões que livremente escolhem e reforçam seu argumento de autoridade
Mendes (2011, p. 58). Dentre as doutrinas indicadas, vale o destaque dado a Frederico Marques319,
para quem o livre convencimento está consagrado pela doutrina processual como a mais
recomendável das formas e sistemas de valoração das provas, seja no Direito Processual Penal, seja
no Direito Processual Civil. Ainda segundo este autor, haveria, no entanto, outros autores (sem citar
quais) que faziam algumas restrições a seu uso, “atribuindo a este princípio a responsabilidade por
erros judiciários graves de que dá notícia a história”. Tais discursos, conforme declara este autor,
“afirmam que se o livre convencimento constitui uma conquista da ciência processual, por outro lado,
se apresenta como perigoso porque pode transformar-se em arbítrio”. E completa, afirmando que
“Não se deve, porém, confundir o livre convencimento com o mau uso que dele possa fazer algum
juiz energúmeno ou atrabiliário320, que desconheça os justos limites de suas funções” (MARQUES,
1997-b:v 2, 278).
Como afirma Mendes (ibidem), o referido autor usa um argumento de autoridade, uma vez
que não explicita quais são as doutrinas a que se refere e que reproduzem essas críticas, nem quais
são as fronteiras do puro arbítrio, quando afirma: “literalmente, o livre convencimento não significa
liberdade de apreciação das provas em termos tais que atinja as fronteiras do mais puro arbítrio”. E o
autor prossegue afirmando que o livre convencimento motivado “libertou o juiz, ao ter de examinar a
prova de critérios apriorísticos contidos na lei, em que o juízo e a lógica do legislador se impunham
sobre a opinião que em concreto podia o magistrado colher; não o afastou, porém, do dever de decidir
segundo os ditames do bom senso, da lógica e da experiência”.
A autora também adverte que a obrigação de motivar ou fundamentar a decisão judicial
constitui, segundo a doutrina, o limite bastante imposto ao magistrado pela lei para impedir o seu
arbítrio na decisão. Contudo, na prática, o que sua pesquisa demonstrou foi que os juízes que

319
A autora ressalta que, apesar de reproduzida pelo campo, a doutrina de Frederico Marques, Elementos de Processo
Penal “foi escrito em meados do século XX, antes, portanto, do advento da Constituição da República de 88. Foi
reeditado em 1997 e, para manter a integridade do texto e atualizá-lo aos preceitos constitucionais atuais, foi usado o
método de sinalizar as inovações sofridas pelo ordenamento jurídico entre pontos como estes que aqui aparecem. A
atualização foi feita pelo prof. Vitor Hugo Machado da Silveira. Registre-se, ainda, que a edição de 1997 não noticia a
data da primeira edição da obra, dando a entender aos incautos tratar-se de trabalho atual de Frederico Marques, morto
em 1993, com 90 anos, cinco anos depois do advento da Constituição de outubro de 1988” (MENDES, ibidem).
320
A autora reproduz do Dicionário Aurélio os significados dessas expressões. Assim, enquanto energúmeno significa
endemoniado, fanático, possesso, atrabiliário, por sua vez, seria a qualidade do sujeito colérico, violento (MENDES,
ibidem).

263
entrevistou não proferiram decisões baseadas no raciocínio lógico a partir da análise de provas. Ao
contrário, eles buscam as provas que confirmam suas decisões (MENDES, idem, p. 61).
Por sua vez, De Seta (idem, p. 162), quando examinou as decisões colegiadas do Tribunal do
Júri e do Supremo Tribunal Federal, advertiu que os procedimentos, as rotinas e, principalmente o
exercício da função jurisdicional, são completamente orientados pela rotina do contraditório, gerando
decisões de autoridade, permitindo dúvidas sobre a segurança das relações jurídicas, em face da
impossibilidade de compreensão dos fundamentos que levam nossos juízes e tribunais a decidirem
pela procedência ou não das ações por eles apreciadas. Para esta autora, a lógica do contraditório que
permeia as práticas e discursos do campo jurídico, impondo o dissenso, também está presente nas
decisões colegiadas deste tribunal, assim como são conflitantes as doutrinas que seus integrantes
adotam durante os debates anteriores à produção dessas decisões. Desta forma, é comum a
concorrência e variedade de interpretações e de julgamentos, mesmo quando se trata de decisões
emitidas por órgãos colegiados, prevalecendo ali também o livre convencimento dos julgadores.
A forma como o juiz atuou na audiência aqui descrita é um exemplo de construção da
verdade jurídica processual que não deriva de um raciocínio lógico-demonstrativo baseado nos fatos
comprovados no processo e nem no consenso estabelecido a partir da participação simétrica entre as
partes, como acontece em outras tradições. Trata-se de uma verdade construída a partir do argumento
de autoridade do julgador, consubstanciado no princípio do livre convencimento e na busca da
verdade real, já comentada.
Também como já afirmado, o sistema brasileiro difere do modelo anglo-saxão, de tal forma
que as diferentes concepções da categoria prova nestes sistemas, assim como sua admissibilidade,
são significantes para a compreensão das lógicas de construção da verdade processual em ambos os
sistemas.
A audiência aqui descrita reproduziu a lógica do contraditório, presente no direito
brasileiro, como já apontado por outras pesquisas empíricas sobre a forma como o Judiciário
brasileiro administra os conflitos sociais. Esta lógica impede a construção da verdade pelo consenso e
difere completamente do direito ao confronto visto no modelo anglo americano, o qual enseja a
construção da verdade consensual.
A lógica do contraditório, em nada se assemelha ao princípio constitucional do
contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República de 1988)321. De acordo com Kant

321
O princípio do contraditório é considerado como uma garantia às partes litigantes da oportunidade de manifestarem-
se sobre cada ato do processo, e esta é praticada por meio da argumentação jurídica, “característica da tradição
judiciária em que está inserido” (KANT DE LIMA, ibidem). De acordo com o inciso LV, do artigo 5º, da Constituição
Federal de 1988, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (BRASIL, 2017).

264
de Lima (2012, pp. 35-36), esta lógica orienta tanto as práticas dos operadores quanto a produção do
conhecimento jurídico brasileiro. Trata-se de uma técnica escolástica medieval, cuja característica
principal é a produção de infinitas e antagônicas teses, que jamais se consensualizam. Esta oposição
entre as teses só se define pela intervenção de um terceiro, reconhecido pela autoridade que possui no
campo e que está fora da disputa e nem possui relação com as partes. Este terceiro - representado no
nosso sistema jurídico pela figura do juiz -, é o responsável pela escolha de uma das teses que se
opõem, sendo que esta escolha é que vai interromper a disputa argumentativa, que, sem ela, tenderia
ao infinito.
A lógica do contraditório consiste, assim, em uma forma de construção da verdade própria
de algumas tradições judiciárias e acadêmicas, como a disputatio322, que se opõe às formas
contemporâneas de produção da verdade jurídica e da verdade científica, na medida em que estas se
baseiam em um processo de construção consensual de fatos, sobre os quais se fazem interpretações
antagônicas e concorrentes, que são orientadas por determinadas regras preestabelecidas. Já na
tradição judiciária escolástica, ao contrário, isso não ocorre, já que nada pode ser consensual. “Nessa
tradição, até os chamados fatos são objeto de controvérsia, como aponta um antigo dito popular e
brocardo jurídico português que define a atividade de produção da verdade como uma ‘apuração da
verdade dos fatos’” (KANT DE LIMA, ibidem).
Diferentemente desta lógica, o conhecimento científico se formula a partir de uma
construção de consensos sucessivos que define fatos, até que por meio de uma “revolução”323
produza uma nova e distinta legitimidade, que possa vir a ser contrariada. Neste caso, o processo que
provoca a interpretação não advém de uma autoridade – que, no caso do contraditório, é quem
decide a extinção da antítese dos argumentos contrários –, mas dos próprios adversários, que
têm de demonstrar que seus argumentos são mais convincentes: “é a autoridade do argumento, e não
o argumento de autoridade, que define o destino da disputa” (KANT DE LIMA, ibidem).
322
A disputatio consistiu em técnica de ensino, especialmente empregada entre os séculos XII e XIII, na qual
determinada tese ou assunto eram discutidos sob uma perspectiva dialética, que só terminava quando o mestre escolhia
qual era o argumento vencedor. Ao contrário da disputatio, a lectio implicava em uma atitude passiva dos alunos, já que
o mestre lia e analisava com seus alunos os textos escritos por autoridades (Aristóteles, Sagradas Escrituras, por
exemplo), ou seja, autores reconhecidos em determinadas áreas do saber (NUNES, 1979). A disputatio se desenvolve
da seguinte forma: primeiro escolhe-se o problema a ser resolvido; em seguida se estabelece uma hipótese, para logo
depois se apresentarem os argumentos que corroboram a tese pré-estabelecida e, após estes, são formulados argumentos
contrários. Depois destes, o mestre responde a questão, procurando respeitar as arguições indicadas. Por fim, o mestre
respondia cada objeção feita, quando necessário (cf. NUNES, 1979, pp. 243-286).
323
A categoria revolução é retirada de Kuhn (2006, p. 25), que esclarece que os exemplos mais evidentes de revoluções
científicas são aqueles episódios famosos do desenvolvimento científico que, no passado, foram decisivos para o
desenvolvimento científico e estão associados aos nomes de Copérnico, Newton, Lavoisier e Einstein. De acordo com o
autor, cada um deles forçou a comunidade científica a rejeitar a teoria científica anteriormente aceita, em favor de outra,
mais recente e incompatível com aquela. Como consequência, “cada um desses episódios produziu uma alteração nos
problemas à disposição do escrutínio científico e nos padrões pelos quais a profissão determinava o que deveria ser
considerado como um problema ou como uma solução de problema legítimo” (KUHN, ibidem). O autor também
descreve as maneiras pelas quais cada um desses episódios transformou a imaginação científica.

265
Por fim, o autor afirma que, em face dessa precariedade, que é inerente ao conhecimento
científico, seus textos não são reproduzidos em manuais, evitando com isso definir como deve ser o
conhecimento do campo, ao contrário do nosso direito, no qual proliferam manuais, tratados e
dicionários – “fontes duradouras de opiniões doutrinárias controversas que são instrumentalizadas,
conforme as necessidades específicas dos atores do campo, num dado momento” (KANT DE LIMA,
ibidem). O autor emprega a categoria “manualização” para se referir a estes materiais, os quais
acarretam o efeito de represar o conhecimento no tempo e no espaço, “impedindo o raciocínio crítico
e reflexivo e ocultando, na maioria das vezes, a autoria, a história e as razões das dissidências e das
escolhas efetuadas, todas editadas para a comodidade do leitor”.
Como no Brasil predomina o princípio da busca da verdade real, originária da lógica
inquisitorial, mesmo que existam entre nós algumas regras de admissibilidade e de exclusão de
provas, elas encontram maior dificuldade de aplicação. Isso ocorre, porque se trata de uma lógica que
resulta da nossa sensibilidade jurídica (GEERTZ, 2008) e que gravita em torno da concepção
segundo a qual para se alcançar a verdade real não há limites para a obtenção da prova.
O princípio da verdade real, próprio do processo inquisitorial, permanece até o presente
momento no Direito brasileiro e por ser antagônico à limitação de provas, gera conflitos entre os
institutos da verdade real e das limitações de admissibilidade de provas pela exclusão. Conforme
esclarece Ferreira (2013, p. 134) a partir do conceito de prova e de suas finalidades, compreendem-se
as formas pelas quais se engendram as disputas no processo penal. De um lado, a doutrina jurídica
brasileira conceitua a “prova” afirmando que “é o meio instrumental que se valem os sujeitos
processuais (autor e réu) de comprovar os fatos da causa, ou seja, os fatos deduzidos pelas partes
como fundamento do exercício do direito de ação e de defesa”. Assim, Tourinho Filho (2010, p. 513,
sic), por exemplo, vai afirmar que “provar é, antes de mais nada, estabelecer a existência da
verdade; e as provas são os meios pelos quais se procura estabelecê-la”. Já CAPEZ (2008, p. 290),
por sua vez, afirma que “o processo penal é uma relação jurídica integrada por um complexo de atos
que visam à decisão final, e, no processo penal condenatório, necessário o reconhecimento de
elementos para que o juiz chegue ao termo final do processo, alcançando a verdade real e realizando
a justiça”.
A característica principal da doutrina jurídica brasileira é sua impermeabilidade à empiria e
à interdisciplinaridade com outros ramos do conhecimento, resultando uma produção intelectual
jurídica autora de um discurso generalizante, universal, abstrato e de autoridade. Enquanto porta-
vozes do sistema jurídico, estes autores defendem a ideia de que o sistema jurídico brasileiro é um
sistema acusatório, diferenciado do sistema inquisitório somente em razão da separação das funções
de acusar e julgar (GRINOVER, 2008, pp. 64-65).

266
Ocorre que em outras áreas do conhecimento, como a história, por exemplo, o processo
judicial é identificado a partir de outras características que não coincidem com a dos doutrinadores
jurídicos brasileiros. Segundo estes estudos o processo inquisitorial se caracteriza por ter um
inquérito escrito e secreto e porque nele o magistrado possui poderes de instrução (LIMA, 1990, pp.
127-128).
A classificação do sistema brasileiro como um sistema acusatório somente porque
desvincula os papéis dos atores do processo e suas respectivas funções, mostra-se incoerente,
inclusive quando o exame recai sobre alguns dos elementos existentes no processo, dentre os quais o
relativo ao ônus da prova, considerado um princípio que vige tanto no direito brasileiro quanto no
anglo-saxônico, mas que são tratados conforme as diferentes sensibilidades jurídicas desses locais.
No direito penal brasileiro, o ônus da prova incumbe a quem a alega (artigo 156, do Código
de Processo Penal), sendo geralmente atribuído à acusação porque a maioria dos crimes – de ação
penal pública - é representada pelo Ministério Público324. A oposição que o próprio direito brasileiro
faz a esta regra, encontra-se, inclusive, expressa na lei processual penal quando determina no mesmo
dispositivo legal, a possibilidade de o magistrado realizar prova325.
Esta regra compromete diretamente a imparcialidade do juiz e a paridade de armas, pois
acaba por permitir ao juiz a produção de prova a favor de algum lado das partes, muito embora tal
circunstância não cause estranheza aos operadores deste campo.
Quando o caput do artigo referido não determina, de forma expressa, que cabe única e
exclusivamente ao Estado a obrigação de provar, mas sim, que a prova cabe a quem a alegar, este
dispositivo permite a interpretação segundo a qual também o acusado no sistema jurídico brasileiro
tem a necessidade de produzir argumentos e informações que provem sua inocência, ideia prevalente
entre nós. Tanto que o artigo 189, do Código de Processo Penal afirma que: “Se o interrogando negar
a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimentos e indicar provas” (FERREIRA, idem,
134).
Na audiência ora reproduzida, após afirmar o que entendia como essencial para ser
considerado como “prova”, o juiz determinou que a audiência fosse realizada, impondo à defesa a
obrigação de produzir prova para convencê-lo do possível prejuízo causado a esta parte, em razão da
falta de acesso às informações (provas) produzidas pela acusação. Em mais de uma vez o juiz

324
A exceção no processo penal figura nos crimes de ação penal privada, onde cabe ao ofendido ou seu representante
legal a titularidade da ação penal (artigo 100, do Código Penal brasileiro).
325
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – Artigo 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém,
facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas
consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II –
determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre
ponto relevante.” ( BRASIL, 2017).

267
afirmou que não vislumbrou qualquer prejuízo para esta parte, mas tal entendimento não foi acolhido
pelos advogados de defesa e nem pelo tribunal superior, que determinou ao magistrado o ônus de
franquear as provas a estes atores, antes de realizar uma nova audiência, já que esta foi anulada em
razão das práticas do magistrado.
Ainda segundo a lógica processual brasileira, o Ministério Público não tem conhecimento
antecipado da informação que será prestada pela testemunha de defesa, assim como a defesa também
desconhece o que será afirmado pela testemunha de acusação. Cabe a estas partes, durante a
audiência de instrução e julgamento, arguir, ou confrontar suas declarações, bem como produzir
provas em contrário ao que tais testemunhas afirmarem. Antes deste ato, o órgão de acusação pode
ter uma ideia da linha de argumentação a ser seguida pela defesa, já que esta parte teve que combater
sua denúncia. Desta forma, o membro do Ministério Público não sofre nenhum prejuízo em seu
exercício, já que, a princípio, a acusação já foi realizada, sua prova já foi arquitetada e somente lhe
restará reforçar ou ampliar sua tese. Caso não fosse assim, sua denúncia sequer poderia ser recebida
pelo juiz, por lhe faltar justa causa para a ação penal, justificada pela presença de materialidade do
crime e indícios de sua autoria.
Situação completamente inversa é a da defesa que não teve acesso aos elementos formadores
das convicções do órgão acusador - ao elaborar sua denúncia - e do juiz - ao recebê-la. Como no caso
em exame a defesa não participou da fase preliminar - quando foram coletados os elementos
probatórios e produzida a sua corroboração -, assim como acontece no Inquérito Policial, nos
procedimentos investigatórios do Ministério Público, tais elementos possuem alta carga de acusação,
diante da fé pública que os revestem, já que produzidos por autoridades estatais, na fase investigativa,
onde prevalece o sigilo imposto a estes procedimentos.
Este exame permitiu observar que não obstante os discursos jurídicos (doutrina,
jurisprudência e o Estatuto da Advocacia – Lei nº 8.906, de 1994) - segundo os quais a imposição à
defesa do ônus de produzir e sustentar uma estratégia processual efetiva, quando ela é destituída das
prerrogativas jurídicas e das possibilidades materiais, torna-se arbitrário, inquisitorial e injusto -, juiz
e Ministério Público atuaram conforme representações muito distintas acerca dos papéis dos atores
que compõem a relação processual neste caso.
O embate entre os advogados de defesa e o juiz, exemplifica a lógica do contraditório,
evidenciando que não coincidem as representações dos autores em relação às garantias
constitucionais (ampla defesa, imparcialidade do juiz, principalmente), revelando a dificuldade do
campo jurídico em construir consensos, como forma de construção da verdade jurídica.
Afinal, como Kant de Lima e Baptista (2013) já afirmaram, a verdade judiciária entre nós,
apoiada em procedimentos que se amoldam ao exercício da lógica do contraditório (KANT DE

268
LIMA, 2012, pp. 35-36), é construída de forma análoga à construção do conhecimento jurídico, que
segue, quase na totalidade, os princípios fundados na disputatio escolástica medieval. Segundos os
autores, “Neste processo, em busca de UMA verdade, dá-se mais relevância, para descobri-la, à
lógica dos argumentos de autoridade do que àquela da autoridade dos argumentos, esta última própria
da argumentação científica contemporânea, fundada na construção sucessiva de consensos
temporários, fundamento de seu suporte fático”.
Quando o juiz determinou o fim dos debates, declarando “vamos ao ato!”, ainda que os
advogados desejassem continuar apresentando suas manifestações me recordou a noção de tempo do
ritual judiciário formulada por Garapon (1999, p. 62), quando se refere ao tempo dotado de uma
valoração superior, cujo controle fica nas mãos do presidente deste ato: o juiz.
No caso em exame, mesmo quando o juiz aparentou dispensar certa atenção à reclamação da
advogada acima mencionada, decidindo ouvi-la em separado, sugerindo a ideia da prestação de um
tratamento distinto em relação aos demais advogados de defesa. Este ato, conhecido no campo
jurídico como “despacho com o juiz”, ou “despacho auricular”, em momento distinto da audiência,
durante o qual são examinados aspectos sobre o processo judicial, remete ao que Baptista (2008) já
afirmou sobre as diferentes sensibilidades no Brasil e na Argentina neste aspecto. Como a autora
ressaltou, enquanto aqui se trata de uma prática comum, representada até como uma prerrogativa da
profissão, a ponto de os magistrados que não a aceitam, serem repreendidos pelo órgão correcional
correspondente, na Argentina, ao contrário, este ato não é praticado e nem aceito, porque
compromete a imparcialidade do juiz.
Outro aspecto também relevante diz respeito ao papel assumido pelo colaborador (como
testemunha e colaborador ao mesmo tempo), que nesta audiência deixou à mostra o duplo tratamento
que o campo jurídico produz, conforme o desempenho dos atores. Ao se investir da tarefa de
testemunhar o ocorrido, significou que este ator estava obrigado a não mentir, sob o risco de ser
incriminado (MISSE, 2008) por falso testemunho, o que não aconteceria se apenas estivesse atuando
como investigado326. A mentira, portanto, tem duplo tratamento, sendo completamente antagônicos,
dependendo do ator que a elabora. Em outras palavras, não há previsão de crime de falso testemunho
para o colaborador, porque essa “figura típica” apenas é dirigida a quem atua como testemunha,

326
A Lei nº 12.850, de 2013 prevê que o colaborador que apresenta informações falsas, incorre no artigo 19, desta lei, ou
seja, será responsabilizado por “imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração
penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe
inverídicas”, delito cuja sanção corresponde ao limite de um a quatro anos de reclusão e multa. No entanto, alguns
doutrinadores defendem que esta conduta melhor se adequa ao crime de denunciação caluniosa, prevista no artigo 339,
do Código Penal, que estabelece as penas de reclusão de dois a oito anos e multa (BRASIL, 2017).

269
327
perito, intérprete ou tradutor (artigo 342, do Código Penal) . Devido a este tratamento legal, o
campo jurídico opera segundo a representação de que o investigado, seja ele colaborador ou não,
pode mentir para se defender da acusação, como Kant de Lima (2011, pp. 199-222) já alertou. O
paradoxo que resulta dessa ‘concessão’ é a noção de que a palavra do investigado/acusado/réu não é
confiável (Luhmann, 2012).
Quando o colaborador assume a tarefa de ser também testemunha neste processo, sua
palavra ganha peso probatório, o que não aconteceria se apenas atuasse como investigado. Afinal a
prova testemunhal, sobretudo no processo penal, é de valor extraordinário, pois, dificilmente, e só em
hipóteses excepcionais, provam-se as infrações com outros elementos de prova (TOURINHO
FILHO, 2007, p. 596). Daí porque é considerada pelo campo jurídico como a rainha das provas.
Como testemunha, o colaborador presta o compromisso de dizer tudo o que souber a
respeito do que lhe for perguntado; o dever de falar a verdade e somente a verdade, sob o risco de,
em não o fazendo, cometer o crime de falso testemunho. Tal compromisso (previsto no artigo 210, do
Código de Processo Penal) constitui mais uma herança de nossa religiosidade, presente nas práticas
jurídicas, tão naturalizada neste campo, a ponto de poder ser observado em texto de uma renomada
doutrina processualista penal, no tópico “dever de prestar compromisso”, a citação de um trecho da
Bíblia (Gênesis, capítulo XIV, versículo 22) em que Abraão respondeu ao rei de Sodoma: “levanto
minha mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o Criador dos céus e da terra, jurando em seu nome...”,
como referência a tal dever prestado pela testemunha (TOURINHO FILHO, idem, p. 606).
Outro fator relevante nesta audiência foi o emprego de uma categoria do sistema anglo-
saxão adaptada à nossa realidade, quando o membro do Ministério Público afirmou que seria
utilizada a técnica do “cross examination”. Discursos como este - que aproximam institutos de outras
tradições com os nossos -, é bastante comum entre os operadores brasileiros. Contudo, o que as
práticas examinadas nesta audiência sugerem é que a nossa tradição inquisitorial permanece
impermeável a institutos de índole democrática, entendi ser oportuno destacar abaixo, algumas
características deste instituto estrangeiro.

IV. 2 – CROSS EXAMINATION E CONTRADITÓRIO


Por mais óbvio que possa parecer, as principais características do cross examination estão
relacionadas ao sistema jurídico no qual o instituto está inserido. Todavia, mesmo nos sistemas que
compõem a tradição anglo-saxônica existem diferenças entre os procedimentos adotados. Por isso,
neste exame tomei como referência o modelo canadense descrito por Ferreira (2013) e o

327
Código Penal, Artigo 342: Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito, tradutor ou
intérprete em processo judicial, policial ou administrativo, ou em juízo arbitral. (BRASIL, 2017).

270
estadunidense, ou, mais especificamente, os atos do trial by jury da Califónia (EUA), visitados por
Bisharat (2015).
Vale ressaltar que até mesmo nos Estados Unidos, tanto o governo federal quanto os
governos estaduais têm seus próprios estatutos criminais, assim como um sistema de tribunais,
promotoria e departamento de polícia, onde a autoridade para processar delitos criminais – governo
federal ou estado – depende de diversos e complexos fatores que não caberão na abordagem deste
texto, embora seja importante destacar. Assim, apesar de possuírem exclusionary rules, tais regras
processuais podem variar de um Estado para o outro. Apenas o direito Constitucional é universal.
Para começar, no sistema anglo-saxão, a imparcialidade dos magistrados é regra e decorre
da divisão dos poderes entre os atores que nele atuam. Nesta tradição a atuação do juiz é a de mero
mediador entre partes possuidoras de direitos disponíveis, pois como lembra Ferreira (2013, p. 69),
no sistema adversário canadense e estadunidense existe uma passividade do juiz: sua função é a de
encontrar os fatos sem, no entanto, fazer nenhuma investigação. Além disso, especialmente no
sistema estadunidense, o único propósito do processo criminal é o de determinar se o promotor
conseguiu estabelecer a culpa do acusado, como exigido pela lei, cabendo ao juiz não permitir a
utilização do procedimento para nenhum outro propósito que não seja este. O juiz, inclusive, não
pode se comunicar com uma parte, sem a presença das demais - nem no processo cível, nem no
criminal -, sob pena de nulidade do processo.
No modelo estadunidense, as partes negociam o acordo diante do juiz e ainda que este ator
não interfira neste “negócio”, ele está presente, verificando sua regularidade (BISHARAT, 2014;
2015). Este momento inicial em que as partes - órgão de acusação (prosecutor ou district attorney328)
e acusado, acompanhado do seu advogado (defense attorney) -, estão negociando seus interesses
diante do juiz constitui uma audiência pré-processual ou preliminar (preliminary hearing). Nesta
audiência as partes examinam se as evidências levantadas podem receber o status de “prova”,
momento em que, portanto, é examinada a justa causa da acusação, de tal forma que esta audiência
visa proteger o investigado contra uma possível instauração de um processo “não comprovado”
(FERREIRA, 2013, p. 105).
Além disso, no modelo estadunidense, o cross examination, juntamente com o direct
examination, constituem formas de inquirição das testemunhas ou técnicas de produção de
evidências, que poderão se constituir em fatos e provas. Em outras palavras, consistem em uma etapa
do processo, quando são aduzidas as provas testemunhais, oportunidade em que são escolhidas e

328
A equivalência entre o prosecutor norte-americano e o promotor de justiça brasileiro se refere apenas à atividade
acusatória que ambos desempenham no processo penal, uma vez que nos Estados Unidos da América, trata-se de
profissional diretamente eleito pela população, enquanto aqui, esta indicação é feita por via de concurso público de
provas e títulos.

271
refutadas também as informações levantadas pelas partes para se chegar à definição de quais provas
servirão para o processo.
Ocorre o direct examination - que em português significa exame direto -, também chamado de
examination-in-chief, quando a testemunha é questionada pela própria parte que a levou ao tribunal,
sendo realizada diretamente pelo advogado desta parte. Geralmente o direct examination visa
obter as evidências que irão apoiar fatos que satisfaçam um elemento exigido para a defesa de uma
parte, mas esta inquirição é submetida a algumas regras. Por exemplo, a parte que apresenta a
testemunha ao tribunal não pode induzir a resposta na sua pergunta.
Já no “cross examination” - exame cruzado, em português -, ao contrário, a defesa examina a
testemunha da acusação e vice-versa. Trata-se, portanto, do direito das partes inquirirem a
testemunha apresentada pela parte adversária. Neste caso, as regras são outras. Por exemplo: a parte
inquiridora pode fazer pergunta indutiva para a testemunha da outra parte. Isso significa que as
inquirições das testemunhas são distintas e são regidas por regras, tais como: as que definem quem
pode ser testemunha (compellability), ou que controlam a maneira como as perguntas podem ser
feitas às testemunhas ou depoentes, ou, ainda, as que recaem sobre as evidências físicas (ou reais) e
como estas podem ser apresentadas na Corte para inspeção.
Tanto as evidências quanto as testemunhas são examinadas a partir de regras de exclusão das
evidências (exclusinary rules) e regras de procedimento da Corte, sendo as testemunhas
questionadas e as evidências impugnadas. O cross examination e o direct examination acontecem
quando a acusação e a defesa apresentam suas testemunhas e a partir daí se desenvolve todo o
confronto do processo judicial (conforme FERREIRA, idem; BISHARAT, 2014; 2015, entre outros).
Tais regras de destinam-se a excluir provas logo no momento de sua proposição, tanto na audiência
preliminar que antecede ao trial by jury, quanto durante ele, e são justificadas com base na eficiência
do julgamento; para evitar o prejuízo indevido ou injusto para as partes; para proteger o interesse
público; para impedir o desequilíbrio na relação custo-benefício que pode advir na determinação da
verdade, e da correta disposição do litígio, entre outras. São entendidas como salvaguarda dos
direitos das pessoas acusadas (FERREIRA, 2013, p. 105).
Nesse sistema, a credibilidade da evidência é determinada no julgamento do fato, aplicando o
senso comum e a experiência humana, tal como Garapon e Papadopoulos (2008) também
ressaltaram. Vale dizer, a preliminary hearing (audiência preliminar) é o momento em que é
examinada a justa causa da acusação. Esta audiência visa proteger o investigado contra uma possível
instauração de um processo “não comprovado”. Trata-se de audiência de natureza adversária, na qual
as partes consensualizam entre si os fatos ou informações que serão considerados como evidências
(evidence) e verificam se esses elementos integrarão ou não o processo. Significa afirmar, que o

272
consenso constitui um start (ou ponto de partida) para a argumentação, como Ferreira (2013, p.
XXVII) afirmou. Desta forma, o que constitui dissenso reduz a credibilidade da prova examinada, ou
seja, é o grau de certeza construído pela argumentação, que estabelece o resultado da demanda. A
verdade, neste sistema, é construída pelas partes através do consenso mútuo sobre o que será objeto
de dissenso, conforme Kant de Lima (2008, pp. 161-198).
Nesta audiência preliminar a acusação é quem apresenta a evidência em primeiro lugar,
cabendo à defesa examiná-la. E, especialmente como acontece no direito canadense, a acusação
precisa provar, para além de uma dúvida razoável, que há justa causa para o processo se iniciar,
enquanto a defesa não está obrigada a apresentar evidências, mas, se o fizer, à acusação é concedido
o mesmo direito a exame (cross-examination). A defesa pode realizar o exame da testemunha trazida
pela acusação ou apresentar uma objeção quanto à admissibilidade da evidência apresentada pela
acusação. Após ambos os lados completarem seus exames, a acusação tem o direito de fazer
impugnações sob a discricionariedade do juiz do tribunal (FERREIRA, idem, pp. 92-193; 121-123).
Neste ato, o juiz avalia a força das evidências contra o investigado, cabendo à acusação,
exclusivamente, o ônus de demonstrar a existência de uma “causa provável” - probable cause - de
que o investigado cometeu um crime grave - felony329. Os casos em que não houver “causa provável”
serão desconsiderados pelo magistrado. A probable cause pode ser demonstrada através da
probabilidade de o acusado ter cometido o crime, caso em que as exigências de evidência são menos
rígidas do que ocorre quando o julgamento se dá diante do Grand Jury (júri de acusação, composto
por jurados leigos). Entendendo que há “causa provável”, o juiz encaminha o investigado para o
Grand Jury, ou, do contrário, o libera, não acolhendo a acusação.
Esta fase preliminar encerra-se com as declarações da acusação e da defesa. Após a
acusação encerrar seus argumentos sobre o caso, a defesa pode requerer que seja decretada a
insuficiência da evidência - insufficient-evidence motion ou no-evidence motion -, alegando que o
Estado não tem um crime provado, razão pela qual este julgamento não pode continuar. Se o juiz
concordar, o caso é encerrado, mas, do contrário, caberá ainda à defesa apresentar sua tese. Nessa
audiência, portanto, o juiz figura como mero espectador, não podendo produzir provas para formar
sua convicção e como ator imparcial, não pode tomar parte no ato, a não ser para impugnar
evidências ou perguntas que fogem às regras.
329
Ferreira (2004, p. 105) lembra que nos EUA as audiências preliminares (preliminary hearings) estão limitadas,
inicialmente, aos casos de fellony (crimes graves). Entretanto, nem todos os estados membros daquele país requerem
uma audiência preliminar e alguns limitam seu uso para crimes mais sérios, como, por exemplo, o homicídio, para o
qual, nos EUA, a pena de morte pode ser imposta. Bisharat (2015, p.127), por sua vez, afirma que na Califórnia, nos
casos de fellony offenses - casos mais sérios envolvendo punições que vão de um ano até à pena de morte –, há uma
audiência preliminar realizada no tribunal, onde o promotor é obrigado a apresentar fortes evidências, que consistem,
geralmente, no testemunho da vítima, bem como evidências materiais, que indiquem causas prováveis do cometimento
do crime por parte do acusado. Essa audiência, portanto, é uma prévia do julgamento.

273
Após a audiência preliminar de exame e exclusão das evidências, a acusação chama o
acusado, que, juntamente com o juiz, faz a proposta de negociação da culpabilidade (plea
bargaining), negociando assim a verdade processual. Trata-se de verdadeira barganha entre a
acusação e o acusado, como já foi afirmado. A partir desta barganha o acusado poderá aceitar as
evidências contra si imputadas, ou rejeitá-las, ou ainda, permanecer calado. Desta forma, a plea
bargaining acontece em uma audiência pré-processual, da qual participam o defensor do acusado e a
acusação, na qual esta parte pode deixar de iniciar o processo para a condenação do acusado em troca
da aceitação da responsabilização do investigado por crime menos grave, ou ainda, em troca da
colaboração do suspeito para a descoberta de coautores (FERREIRA, idem, p. 47)330.
Quando o acusado aceita a autoria de um delito menos grave, ajustado na barganha,
aceitando tal responsabilidade penal, realiza, assim, um acordo com a acusação e torna efetiva a plea
bargaining. Consequentemente, o processo não chega a existir. Assim, a pena imposta é resultado de
uma negociação pré-processual e não em virtude de uma comprovação de culpa no processo.
Ressalte-se, portanto, que o que está em discussão é a responsabilidade penal do acusado e não sua
culpa (conforme FERREIRA, 2004).
Quando a proposta de acordo é rejeitada pelo acusado, ou quando este permanece calado, se o
juiz entender que existe uma causa provável (problable cause) de que ele cometeu o delito, o caso
será levado ao Grand Jury, embora isto não obste futuras negociações. Assim sendo, até mesmo
quando o acusado permanece calado, significa que está exercendo o direito de ver instaurado o
processo, ou seja, de só ser condenado depois de ser julgado por seus pares, em um processo que o
Estado deve a ele: daí a expressão due processo of law – que nossos doutrinadores também
assemelham ao devido processo legal brasileiro. E mais, quando o acusado permanece calado, isso
significa que a acusação terá que se esforçar para provar a sua culpa, para além de uma dúvida
razoável331, pois do contrário, perderá a causa.

330
De acordo com este autor, no plea bargaining, o acusado abdica do seu direito ao processo, que impõe à acusação o
ônus da prova, em troca de benefícios. Segundo ele, a submissão da acusação ao processo, com o fim de provar a culpa
além de uma dúvida razoável, estimula o Estado à proposição da negociação da verdade. Ainda segundo Ferreira (2013,
pp. 47-48), é por isso que autores que escrevem sobre essa tradição jurídica, como Gardner (1980, p. 29), afirmam que o
acusado não tem que fazer nada, ou seja, a defesa pode não produzir prova alguma, mas apenas desqualificar as provas
da acusação, buscando alcançar um padrão inferior de prova. Assim, a acusação busca a prova para além de uma dúvida
razoável, se a defesa alcançar o nível inferior a apenas uma dúvida razoável, vencerá a demanda, em razão da acusação
não ter alcançado este nível. Assim, o trabalho da defesa consiste em tentar, a todo tempo, produzir uma dúvida contra a
“certeza” produzida pela acusação. Portanto, percebe-se que o processo judicial criminal anglo-americano lida sempre
com o princípio do in dubio pro reo, ou seja, a dúvida do padrão de prova da acusação pesa sempre a favor do réu.
331
Segundo a Suprema Corte do Canadá, que também adota a common law, o beyond resonable doubt (descrito no
julgamento do caso R. v. Lifchus) consiste em: 1) um padrão da prova que está intrinsecamente ligado com o princípio
fundamental aplicado em todos os julgamentos criminais: o da presunção de inocência; 2) o ônus da prova recai
somente sobre a acusação no decorrer do processo e jamais se desloca para os acusados; 3) uma dúvida razoável não é
uma dúvida baseada em simpatias ou preferências; 4) a dúvida razoável se baseia na razão e no senso comum; 5) está
ligada à existência ou ausência de provas; 6) a prova não envolve a busca de uma certeza absoluta, tampouco não é

274
Além da diversidade na forma de construção das verdades nos sistemas criminais das
tradições da Civil Law e da Common Law, do due process of law estrangeiro deriva o princípio da
presunção de não culpabilidade (not guilty), extraído do direito de o indiciado permanecer em
silêncio (right to stay mute). Segundo Ferreira (2009, p. 69), no direito norte-americano, até a metade
do século XVIII, a recusa por parte do indigitado a submeter-se a julgamento significava a confissão
de sua culpabilidade, permitindo a aplicação das penalidades de prisão, consistentes em torturas, que
lhes causavam a morte.
Naquela tradição, como lembra o autor, convencionou-se que o silêncio ou a recusa das
pessoas acusadas de crimes dolosos ou de conspiração deveria ser entendida como uma confissão.
Somente na primeira metade do século XIX ficou estabelecida a intervenção de um terceiro, no lugar
do acusado renitente, para proferir a expressão “não culpado” (not guilty), a partir da qual o
procedimento seria levado ao julgamento pelo júri (trial by jury), estabelecendo-se desta forma, a
regra nos moldes em que prevalece até o momento atual na jurisdição estadunidense. Assim sendo, o
processo passou a ser instaurado pela presunção de inocência332 e, com isso, o ônus da prova da
culpabilidade do acusado passou a competir, exclusivamente, ao Estado. Este tratamento, segundo o
autor, resulta da simetria pretendida por este sistema, já que o órgão de acusação detém, por trás de
si, todo o aparato estatal para a persecução penal (FERREIRA, idem, p. 70).
Em outras palavras, o due process of law norte-americano contém normas relativas a
direitos oponíveis ao Estado contra os abusos de sua autoridade e são fundamentos da tradição
jurídica democrática, com a garantia de participação popular, assegurando aos seus cidadãos um
julgamento justo (como previstos na 5ª e 14ª emendas à Constituição dos Estados Unidos da
América), conforme Garapon e Papadopoulos (2008), já citados. O direito ao processo, portanto,
configura um direito pessoal e disponível do acusado: pessoal, porque somente ele poderá exercê-lo;
disponível porque o direito de ser julgado por este tribunal pode ser abdicado pelo acusado, ocasião
em que negociará o fato criminoso com o órgão de acusação (FERREIRA, 2004, p. 72).
Já o devido processo legal à brasileira consiste na imposição de um processo pela iniciativa
do Estado, por meio da atividade do Ministério Público ou da vítima (ou seu representante legal),
logo, vinculado ao interesse da acusação. Não constitui direito do acusado, porque este não pode
recusá-lo. Desta forma, a afirmação segundo a qual o nosso instituto é uma garantia da defesa do
acusado, porque pressupõe seja realizado de acordo com o comando constitucional, penal e

prova sem nenhuma dúvida, nem é uma dúvida imaginária ou frívola; é necessário uma probabilidade de culpa; 7) um
júri que concluir que o acusado somente é provavelmente culpado, deve absolvê-lo (FERREIRA, ibidem).
332
De acordo com este autor, se o acusado no sistema do Canadá e dos Estados Unidos da América optar em ficar calado
frente à acusação do órgão de acusação, “então o processo judicial se instaura e o promotor fará a sua acusação formal,
devendo provar a culpabilidade do acusado frente a um corpo de jurados ou diante de um juiz” (FERREIRA, ibidem).

275
processual penal, gera o estranho raciocínio de que possa existir, no ordenamento jurídico de um país
democrático, uma condenação sem processo ou um processo ilegal!333
Entre nós, ao contrário do que acontece no modelo estrangeiro aqui comparado, o silêncio
do acusado tem sido considerado como equivalente a uma dúvida acerca da sua inocência, tanto que
prevalece o dito popular que diz “quem cala, consente!”. Além disso, nos procedimentos dos acordos
de Colaboração Premiada, o colaborador abre mão do seu direito ao silêncio, em troca do
aperfeiçoamento do acordo. Mesmo quando ele fala (confessando seus crimes e delatando os
coautores), sua palavra não tem valor ou é desacreditada. Como não existe o tipo penal que prevê o
crime de perjúrio para o acusado - previsto tão-somente para a testemunha, perito e tradutor -, há a
representação, na nossa sensibilidade jurídica, de que é permitido ao acusado mentir para se
defender. Desta forma, falar ou permanecer em silêncio constituem o mesmo resultado para o
acusado: a suspeita em sua palavra. Tal suspeita enseja, inclusive, na elaboração de cláusula de
rescisão do acordo, que vale tanto para as situações em que se descobre a mentira do colaborador, ou
quando ele não conta tudo o que sabe. Significa afirmar que a mentira - pela primeira vez no direito
penal brasileiro -, têm relevância jurídica.
Além disso, quando a investigação criminal é iniciada, as provas ali colhidas, inclusive com
a franca e grande contribuição do colaborador, já estabelecem sua culpabilidade e a dos demais
coautores por ele indicados.
Já no modelo estrangeiro, quando as evidências já aceitas e consensualizadas chegam ao
Grand Jury, são submetidas - durante todo o julgamento - a novos questionamentos pelas duas partes,
transformando-se, então, em fatos e provas judiciais (fact, proof), nas quais os jurados se baseiam
para proferirem sua decisão (veredicto). Há, portanto, uma nítida diferença entre evidence, fact e
proof, que adquirem diferentes status legais conferidos depois de sua passagem por esses
procedimentos judiciais: audiência preliminar e Grand Jury (BISHARAT, 2015, p. 124).
Neste sistema, ser julgado pelo júri significa ser julgado pelos seus próprios pares e onde a
decisão dos jurados levará em conta a representação sobre o senso comum e a experiência humana –
sua razoabilidade. Quando a acusação é feita, o júri considera o quanto esse poder pode ser
devastador contra o cidadão, que se vê sozinho, contra o Estado. Por isso, como ressalta Bisharat
(2015, p.127), o júri se coloca entre o indivíduo e o acusador para desafiar o poder deste último e

333
Por isso, destaco a doutrina de Tourinho (2013, p. 57) quando afirma que o devido processo legal configura dupla
proteção ao indivíduo: “atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade quanto no âmbito formal,
ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à
publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos
recursos, à decisão imutável, à revisão criminal)”.

276
“proteger o indivíduo de perseguições”, significando ônus para a acusação, no sentido de convencer
os jurados sobre a justeza do seu ato.
Garapon e Papadopoulus (2008), assim como Bisharat (2014; 2015), afirmam que a marca
mais destacada no sistema de tradição da Common Law - especialmente o estadunidense -, talvez seja
a busca do consenso sobre a responsabilidade penal do acusado; um consenso sobre o que será
admitido como verdade processual naquele caso. Quando o acusado chega à conclusão de que é
melhor reconhecer sua responsabilidade penal – tendo consciência das evidências contra si existentes
– ele, juntamente com o prosecutor, constroem uma verdade para os fatos, não importando se esta
verdade é ou não a “verdade real”, já que, consensualizada pelas partes, com o objetivo de extinguir o
processo. Aliás, neste sistema o processo se instaura sob a presunção de não culpabilidade
(presumption of innocence), não havendo uma busca da “verdade real” 334 (FERREira, ibidem).
Vale lembrar, ainda, que no modelo estadunidense o processo judicial constitui uma garantia
do investigado, conforme Kant de Lima (1995; 1997; 2005; 2009-2/2010, entre outras referências) e
Ferreira (2004; 2013) já ressaltaram. Caso o investigado queira abrir mão do processo - seja porque
será demorado, seja porque haverá o risco de uma condenação mais grave, ou por qualquer outro
motivo -, este não será instaurado. Haverá a audiência preliminar onde o acusado irá barganhar (plea
bargaining) com o órgão de acusação, com vistas a evitar o processo, como já foi anteriormente
afirmado.
Neste modelo, o acordo com o investigado também é interessante para o Estado,
representado pelo órgão de acusação e pelo juiz, em razão do alto custo econômico, institucional e
pessoal que representa movimentar um processo judicial (BISHARAT, 2014; 2015). Assim, ambos
os lados concordam em não haver a instauração do processo. No entanto, se o acusado quiser ser
processado, assim o será. Só que, neste caso, a acusação deverá provar, para além de uma dúvida
razoável, que ele é culpado pelo crime. À defesa, por outro lado, caberá apenas desacreditar a
acusação. Isso significa que esta parte não tem que fazer prova da inocência do acusado porque a
simples dúvida sobre a acusação já é suficiente para afastá-la.
No Brasil, ao contrário, o processo pertence ao Estado. Não é permitido ao acusado abrir
mão dele, mesmo se este assumir a culpa pelo fato criminoso. A defesa muitas vezes, precisa
descontruir as provas, colhidas na fase de investigação e dotadas de fé pública – porque elaboradas
por autoridades estatais -, que são anexadas ao processo. Significa afirmar que, nestes casos, incumbe

334
Ferreira (idem, p. 41) ressalta que mesmo quando o acusado não aceita a proposta de negociação e não requer o direito
ao processo, ou seja, ao julgamento pelo Trial by jury, ele não será condenado sem um julgamento, “pois o silêncio do
acusado é interpretado como uma declaração de not guilty (não culpado) e assim será conduzido ao julgamento pelo
tribunal do júri”, o que fundamenta o entendimento segundo o qual “o silêncio do acusado deve sempre ser interpretado
como presunção de inocência.”

277
à defesa provar a inocência do acusado. Quando isso ocorre, a acusação já começa a fase processual
com uma grande vantagem em relação à defesa, já que basta ressaltar as provas já juntadas.
São também bastante peculiares os discursos que afirmam que o nosso devido processo legal
constitui uma garantia da defesa do acusado, na medida em que pressupõe seja realizado de acordo
com o comando constitucional, penal e processual penal brasileiro. Esta afirmação gera o estranho
raciocínio de que possa existir, no ordenamento jurídico de um país democrático, uma condenação
sem processo ou que a condenação pode ser concretizada por meio de um processo ilegal!
O que algumas pesquisas sobre o campo jurídico brasileiro vêm indicando é que para os
nossos operadores, fatos, provas, evidências e indícios, não possuem quaisquer distinções. Não existe
nenhum procedimento judicial de aferição acerca do status da prova, sendo possível encontrar nos
discursos dos operadores jurídicos o emprego de expressões, tais como, a prova dos fatos ou a
verdade dos fatos.
Afinal, como lembra Figueira (2007, pp. 44-45), dentro do campo de disputas de argumentos
e de atribuição de sentidos comum ao mundo jurídico, inclusive o brasileiro, a prova é um elemento
de persuasão que visa obter uma decisão judicial favorável. O autor, se referindo a Bourdieu (2006),
afirma que “a autoridade enunciativa é detentora do poder simbólico de dizer o direito, de enunciar a
verdade jurídica de determinado caso submetido à apreciação judicial”. Assim, a prova, entre nós, é
tudo aquilo que a autoridade interpretativa diz que é, não sendo possível esquecer também que
concorrem para essa ideia as condições sociais e institucionais do campo jurídico, as formas de
socialização dos seus operadores, o habitus de pensamento, que são fatores determinantes de uma
visão compartilhada sobre o que pode ou não ser interpretado como prova. E mais, por parte da
autoridade interpretativa, além de existir uma subjetividade na valoração da veracidade da prova
acerca do fato enunciado, há também uma subjetividade da valoração probatória, dentre o conjunto
de enunciados que podem ser considerados como prova por parte da autoridade interpretativa
(FIGUEIRA, ibidem)335.
No que se refere à inquirição das testemunhas, no Brasil, até 2008, a regra era a da
presidência do juiz (artigo 212, do Código de Processo Penal). No chamado sistema presidencialista,
não era permitido que a defesa e a acusação se dirigissem diretamente às testemunhas, devendo
apresentar ao juiz as perguntas que este formulava a elas. Ou seja, somente o juiz poderia se dirigir à
testemunha que estivesse prestando depoimento. Tanto que a redação antiga do artigo 212, do Código
de Processo Penal afirmava que “As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à

335
Por isso, este autor afirma que para os operadores jurídicos brasileiros a prova é uma categoria que não possui
estabilidade semântica, pois, como visto em sua pesquisa, o campo jurídico aproxima as categorias indícios, evidências
e provas (FIGUEIRA, idem, p. 18), o que não ocorre no sistema jurídico acima comparado.

278
testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o
processo ou importarem repetição de outra já respondida”.
Com a edição das Leis n.º 11.689 e 11.690, de 2008 - que alteraram, respectivamente, normas
relativas aos procedimentos do Tribunal do Júri e das provas -, esta regra foi alterada, permitindo que
defesa e acusação realizem as perguntas diretamente às testemunhas ou depoentes. O juiz pode
rejeitá-las, quando induzirem a resposta da testemunha, ou não tiverem relação com a causa, ou
ainda, constituírem repetição de outra pergunta já respondida. O magistrado também pode formular
perguntas à testemunha, completando sua inquirição, no caso de permanecerem dúvidas sobre
alguma questão não elucidada após as perguntas feitas pelas partes. Assim, diante dessa possibilidade
de as próprias partes formularem essas perguntas, os juristas brasileiros passaram a defender a ideia
de que esta prática consistia na cross examination estadunidense. No entanto, esta categoria está
ligada a outro sistema de representações e finalidades que não se assemelham ao nosso. Sobretudo
porque aqui não existe um protocolo de exclusão de provas, na medida em que sua admissibilidade
para a condenação depende do livre convencimento do juiz (MENDES, 2011), prevalecendo a lógica
do contraditório entre as partes (KANT DE LIMA, 2012).
Como já alertou Ferreira (2013), ainda que o processo penal brasileiro possua regras que
determinem a eliminação de provas (artigo 157, do Código de Processo Penal), nossos juristas e
operadores não as compreendem como regras que representam garantias para o acusado, tal como
acontece no sistema anglo-saxão. Ao contrário, como já afirmado, as provas se destinam tão somente
ao convencimento do juiz. E mais, somente na fase judicial será possível discutir sua exclusão, já que
não existe – tal como ocorre no modelo estrangeiro aqui comparado -, uma audiência preliminar com
esta finalidade. Além disso, a matéria relativa à prova é apresentada de forma desconexa (espalhada
em diversos artigos da lei processual), além de estar relacionada à busca da verdade real, o que
fragiliza ou flexibiliza garantias processuais como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de
inocência, entre outras.
O contraditório, na perspectiva do campo jurídico brasileiro, refere-se ao conjunto de atos que
na fase judicial integram práticas e finalidades distintas: da acusação e dos advogados de defesa -
apresentando suas respectivas teses e refutando as da parte contrária – e a do juiz, decidindo,
conforme seu livre convencimento, qual decisão proferir.
Além disso, o nosso sistema atribui grande relevância ao interrogatório do imputado, diante
da crença de que ele seja a pessoa que mais sabe sobre o crime investigado e, consequentemente,
sobre a verdade ou a falsidade das acusações. Resulta que será minuciosamente interrogado na fase
preliminar da persecução criminal e novamente inquirido na fase judicial. Tal prática difere do que
ocorre no sistema criminal do Canadá e dos EUA, já que nestes modelos não há meios de obrigar ao

279
acusado a falar se ele se recusar, e isso acontece em razão de lhe ser assegurado o direito de
permanecer calado (FERREIRA, 2013, p. 40).
Dentre as técnicas de apuração da verdade no nosso sistema, o interrogatório ganha ênfase,
pois consiste em uma técnica destinada a provocar a confissão e suscitar o arrependimento em quem,
em geral, nem quer se confessar e nem se arrependeu. Como ao réu é permitido calar-se e até mentir
sem sofrer qualquer punição por isso, sua palavra será sempre suspeita. Desta forma, não é proibida a
realização de perguntas capciosas para força-lo a se contradizer, sendo também permitido induzir
suas respostas, já que é preciso duvidar sempre de sua palavra. Esta tem sido a regra de nossas
práticas burocráticas policiais e judiciais, como já afirmou Kant de Lima (1994, p. 253).
Ainda em relação à audiência acima descrita, também merece destaque a fala do magistrado
quando atribuiu a este ato a finalidade de realizar o controle de legalidade do acordo de Colaboração
Premiada pelo Ministério Público pelo colaborador, já que o texto legal (artigo 4º, da Lei nº 12.850,
de 2013) estabelece que tal controle cabe, exclusivamente, ao próprio juiz.
De acordo com a doutrina jurídica, a categoria legalidade consiste em um princípio
administrativo-constitucional que tem a finalidade de limitar os excessos dos agentes do Estado,
significando que tais agentes são obrigados a praticar seus atos com base na lei e em respeito ao
interesse público (artigo 37, da Constituição da República de 1988). Seguindo tal entendimento é
possível imaginar que a avaliação da legalidade dos atos estatais caberia a qualquer cidadão, e não
apenas aos pactuantes do acordo de Colaboração Premiada. Desta forma, a fala do magistrado
acima referida atualizou esta orientação, na medida em que apenas considerou necessário que o
membro do Ministério Público e o colaborador examinassem a legalidade das cláusulas pactuadas
entre eles, excluindo, assim, qualquer exame dos advogados dos delatados, especialmente no que
poderia se referir à legalidade das provas obtidas durante as investigações.
A audiência descrita exemplifica práticas que se afastam do consenso entre as partes e que
constroem a verdade com base no argumento da autoridade, que neste campo é quem detém o poder
de comando: o juiz. Quando o sigilo das informações resulta na forma peculiar de construção da
verdade jurídica – já que apenas a acusação teve acesso a elas -, denota que o processo penal
brasileiro ainda está fortemente marcado pela configuração que remonta os procedimentos
inquisitoriais tradicionais realizados pelo Tribunal do Santo Ofício.
O campo jurídico brasileiro admite a ideia de que os institutos estrangeiros possam ser
sobrepostos às práticas dos nossos operadores, sem serem transformados por elas ou pela nossa
sensibilidade jurídica, o que na prática não se confirma. Como qualquer outro produto de cultura,
que por excelência, não depende de instintos animais, a atualização das nossas praticas jurídicas

280
depende da sensibilidade jurídica local. Assim, nem cross examination, nem plea bargaining são
produzidas entre nós.
Por mais que as categorias “Colaboração Premiada” e “Plea Bargaining” sejam
aproximadas pelos discursos e práticas dos operadores e dos juristas brasileiros, quando partimos
para uma descrição densa (GEERTZ, 2008), verificamos que a distância entre elas é bastante
sensível. Afinal, como os próprios entrevistados afirmaram, a celebração do acordo de Colaboração
Premiada acontece nos gabinetes do Ministério Público e, portanto, sem a presença do juiz. Não há
uma audiência preliminar para as partes discutirem, a partir das informações de que dispõe, qual será
o resultado possivelmente obtido a partir do consenso entre elas acerca do que consideram ser a
“verdade dos fatos”. O juiz somente tem acesso ao acordo, já assinado, em momento posterior, de
homologação deste ato, ao qual, especialmente no Rio de Janeiro, parece estar vinculado,
exclusivamente, ao que o Ministério Público estabelece. Aqui não há accountability.
O que temos é um sistema jurídico marcado pela lógica do contraditório e uma Colaboração
Premiada, onde os elementos ou informações probatórias (testemunhos, objetos materiais etc.) são
colhidos na fase de investigação policial (no inquérito) ou do Ministério Público (procedimento
investigatório criminal), ou seja, por agentes do Estado, significando que seus atos possuem fé
pública, atributo que confere a tais atos um elevado teor de verdade.
As informações produzidas nesta fase formam a convicção do órgão de acusação, com vistas
ao oferecimento da denúncia. Tais elementos são levados para o processo (na fase judicial), o que
significa que no procedimento inaugurado pela Colaboração Premiada a realização de provas
prescinde da efetiva garantia do contraditório e da ampla defesa para a parte que representa os
delatados ou demais investigados que não acolhem o acordo. Em vista do caráter excessivamente
probatório dessas informações, pode-se ao menos presumir o esforço que esta parte terá de realizar
para conseguir afastá-las do processo.
Aqui, no Brasil, diferentemente, não se negocia a imputação, de tal forma que o colaborador
vai assumir a responsabilidade pela infração cometida e que confessou. A negociação somente incide
sobre as diminuições dos efeitos dessa condenação, tanto para o acusado, quanto, inclusive, para
pessoas de sua família. Ou seja, negocia além da pessoa dele e assume a punibilidade pelo crime
imputado. Os efeitos amenizadores do acordo vão ser levados em conta no momento da dosimetria da
pena no processo. Ou seja, haverá, obrigatoriamente, a instauração do processo.
As opções de escolha do órgão de acusação no modelo estadunidense decorrem do
mecanismo da accountability336. Assim, quando o órgão de acusação oferece a plea bargaining, sabe

336
O termo accountability não possui tradução exata para a língua portuguesa, mas geralmente é associado à ideia de
responsabilização, no sentido de prestação de contas. Sua aplicação entre nós é ainda muito incipiente, sendo

281
que as opções escolhidas estão fundadas na possibilidade de vir a ser responsabilizado por elas,
devido a accountability. Em outras palavras, ele tem uma gama de escolhas em mãos (discretion),
mas essas implicam a responsabilidade de prestar contas dos seus atos, dentro dos limites impostos
pela lei337. Como entre nós não existe o mecanismo da accontability, os nossos agentes públicos
seguem atuando de acordo com a autoridade que cada um julga possuir, sem que tais escolhas sejam
admitidas pela lei ou que exista qualquer preocupação quanto à responsabilização futura de tais
escolhas338.
No Brasil, o processo também pode deixar de prosseguir quando o autor do fato acolhe a
proposta de Colaboração Premiada e o Ministério Público não oferece denúncia contra ele. Isto
porque a Lei nº 12.850, de 2013 estabelece no § 4º, do artigo 4º, que nas mesmas hipóteses do caput,
deste artigo, - ou seja, quando o colaborador efetivamente contribuir com a investigação ou com o
processo e desde que não seja o líder da organização criminosa e tenha sido o primeiro a prestar
efetiva colaboração (conforme, incisos I e II, do § 4º, do artigo 4º, da Lei).
Ambas as circunstâncias dependerão se da Colaboração Premiada advier um ou mais dos
seguintes resultados: I – identificar os demais coautores e partícipes da organização criminosa e as
infrações penais por eles praticadas; II – revelar a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas da
organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da
organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações
penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua
integridade física preservada (caput do artigo 4º, da Lei nº 12.850, de 2013). Ou seja, há um critério
temporal que incentiva a competição entre os colaboradores - já que será “beneficiado” somente
aquele que cumprir tal tarefa primeiro – e um critério de produção: o acordo apenas se dirige a quem
conseguir os resultados acima indicados.
Vale dizer, na primeira hipótese, a denúncia fica suspensa, significando que pode ser
oferecida a qualquer momento, o que constitui uma ameaça para o colaborador. Já na segunda, o

associado às esferas da política e da administração pública, no que se refere à fiscalização dos gastos públicos. Trata-se
de uma obrigação das instituições e de seus agentes de prestarem contas dos seus atos, em virtude das responsabilidades
que decorrem de uma delegação de poder. Logo, seu desenvolvimento é mais sentido nas nações onde a participação
democrática em todos os níveis de vida do Estado acontece. A prestação de contas, dessa forma, funciona como um
mecanismo para assegurar que o Estado efetive suas políticas públicas dentro dos limites da lei. Em sentido amplo, a
accountability é definida como a obrigação dos agentes públicos de responder por seus atos a instâncias internas ou
externas. Os debates sobre as novas formas de democracia consideram a existência de eficientes mecanismos de
prestação de contas como critérios de aferição da boa democracia. (KANT DE LIMA, 2005; MUNIZ, 2014;
HAGOPIAN, 2005 e MOISÉIS, 2010, entre outros).
337
Os district attorneys dos EUA, como se sabe, são ou eleitos ou nomeados pelas autoridades do executivo.
338
Embora a Corregedoria de Justiça (órgão vinculado ao Tribunal de Justiça) e o Conselho Nacional de Justiça (órgão
integrante da estrutura do Ministério da Justiça) possuam atividades fiscalizatórias dos atos funcionais dos operadores
da justiça, o procedimento de responsabilização das falhas funcionais é extremamente burocratizado e de difícil acesso
ao público. Além disso, o vínculo do investigado com a instituição fiscalizadora é visto por muitos autores como um
ponto negativo para a instauração da accountability, conforme Mouzinho (no prelo).

282
membro do Ministério Público não a oferece mesmo. Assim, na prática, o acordo de Colaboração
Premiada não isenta o colaborador da responsabilidade penal, mesmo quando não é realizada a
denúncia, ou o perdão judicial é concedido, já que o acordo que prevê a imunidade decorrente do não
oferecimento da denúncia fixa também, dentre as cláusulas pactuadas, os “benefícios penais” que o
colaborador irá receber, na maioria das vezes, a multa civil ou reparatória.
Repetindo a característica inquisitorial do nosso processo criminal, no qual a presume-se a
culpa (FERREIRA, 2013; KANT DE LIMA e MOUZINHO, 2016), o acordo de Colaboração
Premiada também não isenta o colaborador da culpa – mesmo quando não é realizada a denúncia, ou
o perdão judicial é concedido, como prevê a lei – apenas a confirma, e legitima os procedimentos
utilizados para a obtenção, enfim, da “verdade real”, que consiste no único objetivo do sistema
criminal brasileiro.
Deixar de oferecer a denúncia, assim como suspender o prazo do seu oferecimento ou
isentar a pena (com o perdão judicial) significam atividades do Estado e que são realizadas para o fim
de se obter as provas necessárias para dar seguimento à investigação ou instaurar a denúncia do órgão
de acusação. Interessam, portanto, exclusivamente, à acusação e confirma que o processo penal
brasileiro não está nas mãos do colaborador, como acontece na plea bargaining, onde esta atividade
consiste em um direito constitucional do acusado, que pode, inclusive, desistir dele, se assim achar
vantajoso, economizando tempo e recursos de ambas as partes - defesa e acusação -, conforme afirma
Bisharat (2014; 2015).
Dentre uma infinidade de outros casos examinados e que poderia descrever - caso a extensão
do texto permitisse -, esta audiência pode ser tomada também como exemplo de como o campo
jurídico brasileiro produz diferentes interpretações para os procedimentos jurídicos.
A seguir, descrevo e analiso as categorias que mais se destacaram nos discursos dos
entrevistados e que foram apontadas por eles como os principais atributos da Colaboração Premiada.

283
CAPITULO V

PRINCIPAIS CATEGORIAS PRESENTES NOS DISCURSOS DOS


ENTREVISTADOS

Neste capítulo examino duas categorias retiradas dos discursos dos entrevistados: a
segurança jurídica e a justiça negocial. O destaque dado a estas categorias, apesar de outras também
aparecerem de forma recorrente nas falas dos operadores, justifica-se por estas duas serem
consideradas por eles “como os principais atributos dos acordos de Colaboração Premiada”.

V. 1 – SEGURANÇA JURÍDICA

Dentre as diversas categorias nativas que aparecem nos discursos dos Procuradores Regionais
da República entrevistados durante a pesquisa, a segurança jurídica vinculada ao acordo de
Colaboração Premiada merece destaque, especialmente pela atribuição que estes operadores lhe
conferem.
Consultando as doutrinas jurídicas brasileiras acerca desta categoria, encontrei definições que
ora se aproximavam, ora se afastavam dos significados atribuídos pelos operadores, já que, em geral,
associavam à segurança jurídica aos diferentes modelos de Estado e à ideia de certeza quanto aos
resultados da relação jurídica (penal, comercial, trabalhista, civil, administrativa etc.).
Assim, inicialmente, sob a ótica da doutrina, a segurança jurídica refere-se à “certeza” da
existência de um direito e sua proteção contra possíveis mudanças por ato arbitrário do Estado339.
Desta forma, a segurança se traduziria na presença de normas e instituições do sistema jurídico, que
poderiam ser invocadas pelo Estado ou pelo indivíduo - seus principais destinatários -, uma vez que a
certeza do direito estaria atrelada à ideia de prestação equânime e previsível da Justiça, enquanto
insegurança jurídica, ao contrário, configuraria os sentidos de distribuição desigual de Justiça e de
impunidade ou injustiça. Neste sentido, Amorim (2008) verificou acontecer o mesmo em torno das
decisões judiciais em torno dos contratos comerciais340. Ainda que a categoria hipossuficiência,

339
Aqui prevalece - não obstante a existência de outras -, a representação deste ente como sendo determinada por um
conjunto de fatores: uma instituição organizada política, social e juridicamente, que se encontra em um território
delimitado e, na maioria dos casos, sua lei maior é uma Constituição escrita. Sua administração é realizada por um
governo soberano reconhecido no plano nacional e internacional. Este ente é responsável pela organização e pelo
controle social, na medida em que possui o monopólio legítimo do uso da força e da coerção (CICCO e GONZAGA,
2008, p. 43).
340
A autora compara os estudos de Árida et all (2005) e Ribeiro (2007) para ressaltar que, diferente do que estes indicam,
no Brasil o direito que regula as relações do mercado, particularmente, o direito contratual e o direito do consumidor,
sofrem interferência do Estado, sob a justificativa de compensar as desigualdades existentes entre fornecedores e

284
acionada pela autora, refira-se ao desequilíbrio econômico entre as partes que pleiteiam em juízo o
reconhecimento de um direito na esfera do consumo e do comércio - tal como o campo jurídico
brasileiro a emprega -, tomo-a neste estudo com um sentido mais amplo, como sinônimo de carência
de direitos. Neste sentido, os acordos de Colaboração Premiada se apresentam como instrumentos
de tutela do Estado, na medida em que suprime a voz dos jurisdicionados, especialmente, daqueles
que figuram nestes pactos como delatados. A estes, é suprimido o direito de se manifestar e combater
a acusação, enquanto, por outro lado, os colaboradores são tutelados para contribuírem com a
investigação criminal.
Também verifiquei nos discursos doutrinários que o significado do instituto segurança
jurídica está associado à ideia de segurança e proteção, concedida tanto pela lei quanto pelas decisões
judiciais para que qualquer instituto jurídico se desenvolva regularmente, sem obstáculos. Assim,
guarda pequena diferença de significado com a categoria segurança do direito, na medida em que
esta se restringe ao direito previsto em lei, já que “é o estado de seguridade, ou de garantia legal, que
se atribui a um direito, para que possa o respectivo titular exercitá-lo, ou se utilizar das ações
correspectivas, quando seja molestado nele. A segurança do direito, pela qual sempre é o seu titular
assegurado em seu livre uso e gozo, é firmada em preceito legal, de que se retira todo poder para o
defender e o livrar das violações e esbulhos” (SILVA, 1982, p. 87, entre outros). Ainda segundo
esses autores, segurança jurídica seria um termo polissêmico e instável.
A “incerteza” do direito ocorreria quando o sistema jurídico impedisse a internalização ou a
universalidade de um direito posto/previsto, através de atos legislativos ou judiciais, como acontece
quando há inflação legislativa (mutabilidade ou multiplicidade indiscriminada de textos legais),
significando excesso de dispositivos legais sobre o mesmo tema (concomitantes ou concorrentes); ou
quando leis com lacunas permitem o emprego de interpretações dúbias e variáveis ou com sentido
obscuro/incompleto/impreciso341342; ou ainda, quando os julgamentos judiciais são demorados ou
seus resultados são incertos, ainda que diante de casos semelhantes.

consumidores, estes, legalmente considerados partes mais fracas, independente da situação econômica que efetivamente
desfrutam. Segundo ela, “Tal interferência é associada à categoria ‘hipossuficiência’, vigente no direito brasileiro, que
bloqueia a normativização igualitária das partes nos contratos e a socialização de responsabilidades mútuas entre atores
participantes de mercados livres. Porém, no caso brasileiro, a interferência estatal, em vez de proteger os fracos,
incentiva desprezo e desconsideração pelo consumidor, gerando assim a reprodução de um mercado simbólico, em que
os consumidores passam a ser consumidos.” (AMORIM, 2008).
341
Outro referencial estrangeiro adotado pelo campo jurídico brasileiro, Hans Kelsen, relaciona o princípio da segurança
jurídica com o ato de se conhecer e interpretar a norma, afirmando que o grau de segurança é inversamente proporcional
à quantidade de significados possíveis. Para este jurista e filósofo austríaco, quando a norma tivesse apenas um
significado materializaria a segurança jurídica de maneira plena. Assim, um dos papéis da Teoria do Direito consistiria,
justamente, em limitar os sentidos da norma.
342
Na seara penal, Cirino dos Santos (2000, p. 23) declara que “leis penais indefinidas ou obscuras favorecem
interpretações judiciais idiossincráticas e impedem ou dificultam o conhecimento da proibição, favorecendo a aplicação
de penas com lesão ao princípio da culpabilidade”.

285
Para o direito, as cláusulas denominadas situações jurídicas consolidadas, fundamentariam a
segurança das relações jurídicas. Trata-se de institutos previstos no artigo 5º da Constituição de 1988,
quando afirma que a lei nova não retroagirá para ofender, o ato jurídico perfeito, o direito adquirido
e a coisa julgada. Todas elas são relacionadas à segurança jurídica e classificadas pelo legislador
brasileiro como garantias constitucionais fundamentais343.
Também se afirma que o princípio da segurança jurídica é um subprincípio do Estado de
Direito e importante instrumento da Administração Pública para garantir mecanismos de realização
de direitos fundamentais e das expectativas que geram na esfera política de particulares (MARTINS-
COSTA, 2004). Outros defendem a noção que relaciona a segurança jurídica à previsibilidade,
afirmando que “o indivíduo não só conhece aquilo que pode e não pode fazer e as consequências da
eventual violação da norma, mas sabe também que o Estado nunca o surpreenderá” (DIMOULI,
2012). Desta forma, o Estado restaria limitado em seu próprio poder, já que o Direito seria o
orientador das relações sociais; a previsibilidade das consequências jurídicas estaria, assim, garantida
e a sensação de segurança também.
Tais ideias decorreriam de uma construção de Estado organizado, gerido e limitado pelo
Direito. Em outras palavras, um Estado onde a Constituição e as leis infraconstitucionais - enquanto
normas gerais e abstratas aplicadas universalmente -, corresponderia à garantia dos direitos, na
medida em que representaria o rompimento com o modelo de Estado absolutista e arbitrário,
anteriormente vigente.
Em linhas gerais, o surgimento do Estado de Direito é indicado pelos doutrinadores
consultados, como resultado da submissão da vontade do monarca absolutista à adequação e
conformidade com a lei, já que esta seria fruto da representação da vontade popular, expressa na
atividade legislativa do parlamento.
A doutrina de direito constitucional, por intermédio do porta-voz lusitano, José Canotilho
(2002, p. 157), constantemente referenciado pela doutrina brasileira contemporânea, reafirma a noção
de que o surgimento da segurança jurídica está vinculada à proteção da confiança no sistema jurídico
pelo indivíduo. Logo, de acordo com o autor, o princípio da segurança jurídica e da confiança do
cidadão seriam os principais elementos constitutivos do Estado de Direito, desde seu surgimento e

343
O artigo 5º inciso XXXVI, da Constituição da República de 1988, afirma que “a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A doutrina jurídica brasileira majoritária entende que tais institutos
promovem a segurança e a estabilidade das relações jurídicas. Esta noção está também prevista no artigo 6º, da Lei de
Introdução ao Código Civil, segundo o qual “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitando o ato jurídico
perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1º - Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei
vigente ao tempo em que se efetuou”. (BRASIL, 2002). Já em relação à coisa julgada, afirma-se que constitui instituto
jurídico concebido para conferir imutabilidade às decisões judiciais, já que a característica fundamental da jurisdição é a
definitividade na resolução dos conflitos. Por fim, direito adquirido é aquele que a lei considera definitivamente
integrado ao patrimônio de seu titular (DINIZ, 1993, entre outros).

286
exigiriam: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos atos do poder; (2) de forma que
em relação a eles ao cidadão seja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos
jurídicos dos seus próprios atos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da proteção
da confiança são exigíveis perante ‘qualquer ato’ de ‘qualquer poder’ - legislativo, executivo e
judicial (CANOTILHO, ibidem).
Seguindo essa orientação, os doutrinadores jurídicos brasileiros defendem que o princípio da
segurança jurídica e o da proteção à confiança são elementos conservadores, inseridos na ordem
jurídica e visam a manter o status quo, evitando surpresas quanto à conduta do Estado que atinjam
interesses dos administrados ou frustram suas expectativas, manifestada em atos ilegais (COUTO E
SILVA, 2015, entre outros)344. Desta forma, a segurança jurídica estaria conectada à elementos
“objetivos da ordem jurídica, tais como a garantia de estabilidade jurídica, a segurança de orientação
e a realização do direito - enquanto a proteção da confiança se prenderia mais a elementos subjetivos
da segurança, como a calculabilidade e a previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos
jurídicos dos atos praticados pelos poderes públicos” (COUTO SILVA, idem, sic).
A ideia de que a segurança jurídica está estreitamente ligada ao principio da legalidade, pedra
fundamental do Estado Democrático de Direito, fica nítido na fala de um dos entrevistados, abaixo
transcrita:
_ “A gente sabe que tem que ter responsabilidade ao usar o acordo de Colaboração
Premiada, tem que haver moderação e legalidade, observando, sobretudo, os
princípios constitucionais. Utilizar esses instrumentos que a lei nos dá, é
fundamental para garantir a perpetuação desses instrumentos. E, por isso, toda essa
nossa preocupação com o valor do instituto da Colaboração Premiada. A segurança
jurídica do acordo; a proteção do colaborador; o controle de legalidade pelo
Judiciário... Isso tudo são princípios que nos são muito caros, porque a gente tem
interesse nesses institutos. A gente sabe que deslizes eventuais que aconteçam na
utilização desses institutos podem colocar tudo por água abaixo!”
(MPF2)

Esta manifestação foge à regra dos discursos dos entrevistados, já que a ampla liberdade
desses atores na interpretação da lei constitui prática naturalizada pelo campo. Também chama a
atenção o peculiar significado elaborado pelos representantes do Ministério Público para a categoria
segurança jurídica, fato que a torna uma categoria nativa.
Inicialmente, este significado se dissocia do construído pela doutrina jurídica brasileira, que
geralmente atribui a segurança jurídica à observação da lei ou à concretização da Justiça, essa última
entendida como a existência de decisões judiciais que abrigam a defesa de um direito. Como já foi
344
Ao analisar o Habeas-Corpus nº 127483 / PR, o Supremo Tribunal Federal afirmou que os princípios da segurança
jurídica e da proteção da confiança “tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo
de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por
parte do colaborador”. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10199666.

287
visto, os doutrinadores preconizam que e a lei é fonte primeira de segurança jurídica ao ser elaborada
pelos legisladores, eleitos pelo povo. Contudo, como estes podem ser influenciados por ideais
diversos do que prometeram defender, as leis por eles construídas podem sofrer distorções, chegando
algumas, a ficarem contra a vontade do povo que os elegeu. Por essa razão, os julgados emitidos
pelos juízes e tribunais constituiriam, conforme a doutrina, a segunda e complementar fonte de
segurança jurídica, já que tais intérpretes da lei poderiam afastar os desvios legislativos por meio do
exercício da “boa hermenêutica” (SOUZA, 1996, p. 128).
Ora, segundo Bourdieu (2007a, pp. 234-235), o conteúdo prático da lei que se revela na
decisão judicial, resulta da luta simbólica entre profissionais dotados de competências técnicas e
sociais desiguais, portanto, capazes de mobilizar – ainda que de modo desigual -, os meios ou
recursos jurídicos disponíveis, pela exploração das “regras possíveis”, e de utilizar eficazmente, quer
dizer, como armas simbólicas, para fazerem triunfar a sua causa. Segundo o autor, “o efeito jurídico
da regra, quer dizer, a sua significação real, é determinada pela relação de força específica entre os
profissionais, podendo-se pensar que essa relação tende a corresponder (tudo o mais sendo igual do
ponto de vista do valor na equidade pura das causas em questão) à relação de força entre os que estão
sujeitos à esta respectiva jurisdição”.
Esta relação de forças específica entre os profissionais, mencionada por Bourdieu (idem),
pode ser verificada na pesquisa quando o exame recaiu sobre a relação entre magistrado e Ministério
Público, nas audiências relativas aos acordos de Colaboração Premiada.
Inúmeras pesquisas empíricas sobre a justiça brasileira já demonstraram que nas decisões
monocráticas ou colegiadas, os magistrados interpretam a lei conforme o “seu sentir” (MENDES,
2011 e DE SETA, 2015). Tais decisões idiossincráticas e muitas vezes arbitrárias (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2018) geram diferentes resultados, inclusive, distantes daquilo que as partes litigantes
almejam obter da prestação jurisdicional, o que para estes configura insegurança jurídica. Contudo,
impermeáveis a este resultado, o campo jurídico continua defendendo a liberdade dos juízes
decidirem conforme seu livre convencimento e sua iniciativa probatória (verdade real). Neste
sentido, reproduzo abaixo um trecho da entrevista de um dos representantes do Ministério Público,
visando enfatizar a sua representação sobre a verdade real. Segundo ele:
- “ ... Uma vez homologado esse acordo, se os fatos que ele trouxe para os anexos
que são produzidos nesses acordos e as provas de corroboração que eventualmente
ele produziu, se tiverem sido, de fato, eficazes para apuração da verdade real345
dentro dos processos que são gerados dali, ele saberia ou teria certeza de que aquele
benefício previsto no acordo inicial seria cumprido pela Justiça”.
(MPF3)

345
Ver no capítulo anterior o significado e a aplicação dessa categoria, segundo a perspectiva dos operadores jurídicos.

288
Assim, a entrevista acima reproduzida enfatiza a naturalização dos operadores, quando
afirma que as informações contidas nos acordos de Colaboração Premiada se destinam à “apuração
da verdade real”. Esta afirmação gera a estranha ideia de que os representantes do Ministério Público
aceitam a iniciativa probatória do juiz, ainda que isso signifique, no processo penal brasileiro,
esvaziar as atribuições do próprio Ministério Público, enquanto parte de acusação, encarregada,
portanto, de produzir a prova necessária à condenação.
Como afirmado, a iniciativa probatória do juiz é um atributo tão tradicional no sistema
criminal brasileiro que, apesar de comprometer o caráter acusatório do nosso processo penal, aparece
naturalizada e aceita sem qualquer constrangimento pelos entrevistados, mesmo diante da clara
disputa de poder entre as instituições (Ministério Público e magistrados) pelo mercado das
Colaborações Premiadas e respectivas Operações Lava-Jato.
Ainda no que se refere à representação dos entrevistados sobre a categoria segurança
jurídica, nas primeiras entrevistas que realizei com os integrantes da Operação Lava-Jato carioca, ela
foi acionada para se referir a um atributo correspondente à proteção dos colaboradores, como pode
ser verificado no trecho da entrevista abaixo reproduzida:
-“Eu já conversei com advogados, porque o grande interesse do colaborador é a
segurança jurídica que aquele acordo vai trazer, né? Então, a gente a partir do
momento em que assina o acordo de colaboração tem todo interesse de que o nosso
colaborador seja protegido de alguma forma, que ele tenha segurança jurídica”.
(MPF2)

Segundo este entrevistado, à segurança jurídica é atribuída a noção de certeza do


cumprimento do acordo, o que evidencia sua ligação ao principio do pacta sunt servanda346 -
princípio do direito privado, especialmente no que se refere ao direito dos contratos -, segundo o qual
o pacto de vontade faz lei entre as partes, ou aquilo que as partes pactuam tem força de lei347.

346
Pacta sunt servanda é um brocardo jurídico em latim que significa "os pactos assumidos devem ser respeitados"; ou
"os contratos assinados devem ser cumpridos", ou ainda, “o que é acordado entre as partes se torna lei”. Também
denominado princípio da força obrigatória do contrato (ou acordo), para o campo jurídico, consiste em um princípio que
funda o Direito Civil e se estende a diversos outros ramos do direito (comercial, trabalho, internacional etc.), segundo o
qual não se pode obrigar alguém a cumprir um contrato, no qual não seja signatário, não tenha aderido. Opõe-se a ideia
- também reproduzida em outra expressão latina - do rebus sic stantibus, que se refere à possibilidade de um acordo ser
alterado, apesar dessa obrigatoriedade fundante, sempre que as circunstâncias que envolveram a sua elaboração não
forem as mesmas no momento de sua execução (imprevisível e inimputavelmente), de modo a prejudicar uma parte em
benefício da outra. Gomes (1998, p. 36) afirma que "celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e
requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais
imperativos." Já Diniz (1993, p. 63) declara que tal princípio se justifica porque "o contrato, uma vez concluído
livremente, incorpora-se ao ordenamento jurídico, constituindo um a verdadeira norma de direito".
347
A doutrina jurídica distingue a lei e os contratos, com base em sua interpretação. Segundo LÔBO (2011, p. 174), “A
lei é predisposta pela autoridade legislativa; o contrato é fruto do acordo das partes. A lei é abstrata e geral; o contrato é
concreto e relativo às partes. A lei não depende de consentimento ou aprovação dos destinatários para valer e ser eficaz;
O contrato vale e é eficaz a partir do consentimento tido como suficiente. A finalidade da lei é regular interesses

289
No entanto, os entrevistados não mencionaram tal princípio, embora totalmente coerente
com a ideia da Justiça Negocial. Ao contrário, recorreram à categoria da segurança jurídica,
sugerindo que, apesar de pretenderem fazer uma Justiça Negocial – assim entendida aquela na qual a
vontade das partes prevalece e se torna obrigatória a partir da celebração do acordo -, a nossa tradição
inquisitorial impõe a categoria segurança jurídica, originária do Direito Público, o que também é
bastante peculiar.
Além de confirmar que o interesse do colaborador é a manutenção do que foi pactuado entre
as partes, este entrevistado afirmou que a partir da assinatura do acordo, o Ministério Público
desempenharia não apenas o papel de garantidor dessa segurança, como também, o de protetor do
colaborador. Esta declaração poderia ser interpretada como uma dúvida quanto à eficácia da
homologação do acordo, que não seria suficiente para dar ao colaborador a certeza do seu
cumprimento, sendo, por este motivo, necessária a “proteção” do Ministério Público.
Esta noção traduz duas ideias muito singular. A primeira, quando estende ao Ministério
Público o papel de “protetor” do colaborador, corresponde afirmar que, para estes operadores, o
colaborador é visto como hipossuficiente. A segunda acarreta certo estranhamento ao não se perceber
esta mesma representação em relação a outros tipos de acordos judiciais, como são, por exemplo, os
casos de divórcio consensual; guarda dos filhos ou o acordo referente à pensão alimentícia de filhos
menores, no direito de família, e, no ramo do direito do trabalho, os dissídios coletivos.
O que declarações como a do entrevistado acima referido indicam é o estranhamento desses
atores a uma prática muito comum em outros ramos do direito, especialmente no direito privado
(contratos), mas inusitada para o direito penal. Nesses outros ramos do direito, a homologação do
acordo pelo juiz é parte inerente ao procedimento e uma vez homologado, não muda mais. A
homologação faz aquele acordo valer como lei entre as partes. Portanto, os entrevistados parecem
confundir os assuntos que se referem à práticas do direito privado e do direito público. Isto porque,
em outros ramos do direito, a homologação judicial constitui ato inerente ao procedimento e produz,
em relação ao acordo, justamente, o sentido de garantia das cláusulas estipuladas. Por outro lado, o
Ministério Público atua também como fiscal da lei, o que poderia sugerir a confirmação de um pacto
regular e legal. Contudo, nos acordos de Colaboração Premiada, a ênfase do papel do Ministério
Público refere-se mais ao de parte no processo, do que o de fiscal da lei, como era de se esperar. Por
isso, no entender dos entrevistados, a homologação judicial não confere ao acordo a mesma certeza
de sua execução como ocorre em acordos realizados nos outros ramos do direito.

coletivos ou públicos; a do contrato, a de regular interesses particulares e determinados. A aplicação da lei não leva em
conta a intenção de quem a edita; a do contrato tem como fundamental a intenção comum das partes. A lei é uma
regulamentação heterônoma; o contrato é uma regulamentação autônoma”.

290
Vale dizer, a segurança jurídica, da forma como os entrevistados a apresentaram, muda de
sentido também, já que pretendiam “tirar o juiz de campo” – quando sugerem a limitação de seus atos
àquilo que é proposto pelo Ministério Público, sem recair sobre ele qualquer fiscalização ou
contrariedade – e, por outro lado, põe em dúvida a possibilidade de, uma vez homologado pelo juiz, o
acordo vir a não ser cumprido. Isso só indica que é estranho ao direito brasileiro tal prática negocial
no âmbito do direito penal, já que produz uma suspeição tanto em relação ao poder quanto à
disposição do Estado em fazer cumprir o acordo. Em outras palavras, mais uma vez, paira sobre o
acordo de Colaboração Premiada uma suspeição, só que desta vez ela não recai sobre a figura do
colaborador, mas sim, sobre o próprio sistema de justiça e, consequentemente, sobre o Estado.
A declaração acima é interessante porque também traduz a ideia de parcialidade (ou
seletividade) do agente estatal encarregado da persecução penal -, a proteção do colaborador e a
segurança da eficácia daquilo que foi pactuado são consideradas pelos operadores como incentivos
para o criminoso colaborar com as investigações -, que acontece no sistema criminal como um todo,
como outras pesquisas já demonstraram348e tem como fundamento a própria representação que os
operadores jurídicos constroem acerca da sociedade onde estão inseridos. Afinal, lembrando o que
disse um dos entrevistados, já citado,
- “(...) nós temos uma mentalidade arcaica, de um país que foi escravocrata; de um
país que teve uma nobreza tardia; um país que foi colonizado por uma nação
aristocrática, por um rei...
Então a gente tem uma sociedade muito elitista e hierarquizada e que ainda tem esse
ranço elitista de achar que algumas pessoas sabem o certo e o errado, mas não
todos.”
(MPF4)

A ideia de domínio exercido sobre o colaborador (considerado pelos operadores como


“nosso” colaborador), pode também remeter à noção de subjugação e controle do mais forte; de
quem tem o poder de dizer o direito (BOURDIEU, 2007a) e de determinar o rumo das investigações
e da vida dos jurisdicionados, todos hipossuficientes (AMORIM, 2008; FIGUEIRA e MENDES,
2016), no sentido de que não são suficientemente capazes de decidir o que é melhor para si mesmos.
Todavia, como a pesquisa não entrevistou os colaboradores, o exame mais aprofundado dessa
“proteção” não pode ser totalmente explorado, ainda que os próprios relatos dos membros do
Ministério Público tenham indicado essa orientação incialmente.
Além do sentido de “proteção” do colaborador, a segurança jurídica recebeu outras
significações como aconteceu, por exemplo, quando os entrevistados a associaram à necessidade de
outras instituições e agentes preservarem as cláusulas do que fora pactuado pelos celebrantes no

348
Refiro-me, especialmente, aos estudos de Kant de Lima (1995; 1999; 2004; 2010; 2016, entre outros).

291
acordo de Colaboração Premiada. Neste sentido, foram as declarações dos representantes do
Ministério Público que defenderam a limitação do magistrado na apreciação do conteúdo dos acordos
(ou seu mérito) e das agências aderentes, que compartilham as provas e ficam limitadas a não aplicar
sanção superior aquela já estabelecida nos acordos pelo Ministério Público Federal,
independentemente da gravidade do crime por elas apurados.
O entendimento acerca da limitação da atividade judicial - significando o controle exclusivo
das Colaborações Premiadas pelo Ministério Público -, inverteria, desta forma, a lógica do sistema
jurídico criminal que atribui ao juiz o papel de fiscal dos atos jurídicos, amplamente difundida no
campo jurídico até aqui349.
Desde o final de 2015, o monopólio das Operações Lava-Jato no Rio de Janeiro, assim
como a primazia na celebração dos acordos de Colaboração Premiada, relativos a estas Operações,
deu ao Ministério Público Federal amplo destaque. Mas há outras questões envolvidas nessa disputa
pelo poder de dizer o Direito que não se referem apenas no reconhecimento e liderança desta
Instituição no sistema da persecução criminal, uma vez que envolve também grandes interesses
financeiros, como será visto mais adiante.
A referência à segurança jurídica também se estendeu a outros aspectos da persecução
criminal, como pode ser visto no seguinte trecho da entrevista abaixo reproduzida:

- “Existem os recursos para o Tribunal Federal, depois tem o Superior Tribunal de


Justiça, depois o Supremo Tribunal Federal. E são anos e anos de recursos atrás de
recursos. São embargos de declaração em cima de embargos de declaração.
Embargos de declaração que não são julgados nunca...
Ainda é a regra do jogo, porque está previsto na lei.
Então, a gente viu que nem o réu gosta disso. Até o réu do “colarinho branco”, que é
o que a gente mais procura hoje, ele quer resolver a situação dele. Ele não quer
saber...
Ele tem receio de eventualmente ser condenado em segunda instância e ter que
cumprir pena provisoriamente, né? E isso virou um jogo de azar, né? Porque tem
ministro que dá liminar e tem ministro que não dá.
No Supremo, a maioria já decidiu que pode executar a pena após a segunda
instância350... Só que lá não existe o princípio da colegialidade351, o que gera uma

349
Dentre outros doutrinadores, Tourinho Filho (2010, pp. 381-382) cita as atividades judiciárias classificando-as em
principal (quando promove as decisões, aplicando a lei ao caso em concreto); secundárias (como as de organização das
secretarias dos tribunais, dentre outros exemplos) e as anômalas (quando fiscaliza o princípio da obrigatoriedade da
ação penal do Ministério Público, entre outras atividades).
350
Uma referência clara à luta interna do campo jurídico pela aplicação do direito (BOURDEU, 2007). Trata-se de
discussão sobre a possibilidade de ser executar a pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória e que tem
gerado decisões diferenciadas e críticas de diversos atores do campo jurídico brasileiro, tendo em vista a declaração
constitucional contida no inciso LVII, do artigo 5º, da Constituição, segundo o qual "ninguém será considerado culpado
antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Na lei infraconstitucional, a matéria está legislada no
artigo 283, do Código de Processo Penal, quando afirma que ninguém poderá ser preso senão em decorrência de
sentença condenatória transitada em julgado, além dos casos de flagrante delito, prisão temporária ou preventiva. Esse
artigo foi elaborado por uma Comissão de reconhecidos processualistas penais do Brasil, que alterou a redação anterior

292
insegurança jurídica enorme. Então se você entrar com um Habeas-Corpus para
impedir a execução da pena e cair com o Ministro Marco Aurélio, ele vai dar. Se
cair com o... Com um que respeite o princípio da colegialidade, como o Ministro
Celso de Mello, ou um que seja a favor da antecipação da condenação, como o
Ministro Fux, ou o Ministro Barroso, a pessoa vai cumprir pena. Então, assim, isso
não é o ideal, né?
O ideal para a segurança jurídica seria os fundamentos do direito, né? Você teria o
Supremo Tribunal Federal a última... O último guardião da Constituição, na defesa
dos direitos fundamentais.
Mas, não é isso que a gente tem visto, não”.
(MPF3)

Neste trecho da entrevista, o membro do Ministério Público afirma que a quantidade de


recursos existentes na lei processual penal, aliado ao fato de existirem diferentes tratamentos dados
pelo Supremo Tribunal Federal à questão da antecipação da pena, decretada quando houver
condenação confirmada pela segunda instância judicial, são fatores que também causam a
insegurança jurídica do instituto.
Esta declaração, à primeira vista, poderia transmitir a ideia de que este operador estaria
sendo incoerente ou ambíguo. Afinal, ao criticar o tratamento desigual que as distintas decisões da
Corte Suprema acarretam, aparenta estar defendendo os interesses dos recorrentes, mas, por outro
lado, quando recrimina a quantidade de recursos interpostos contra as decisões judiciais, significa
justamente o contrário. Acontece que para o entrevistado, os recursos processuais são medidas que

(pela Lei 12.403/2011, que se originou do Projeto de Lei 4.208, de 2001) com o fim de evitar a antecipação da execução
das sanções, antes da análise de todos os recursos cabíveis, como pode ser visto na exposição de motivos registrada nos
anais do Congresso Nacional. No entanto, dentre as propostas de reforma do texto do Código, ainda em discussão, há a
que permite o chamado “julgamento antecipado”, válido para crimes com pena de até 8 anos de reclusão (ver em
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7715945&disposition=inline). Acontece que em 2009, o STF
reconheceu a execução da pena somente após o trânsito em julgado, como uma garantia dos cidadãos, em um
julgamento que resultou da maioria de oito votos a três, mas a amplitude do texto Constitucional foi limitada pelo
próprio Supremo Tribunal Federal, quando julgou, em 17/02/2016, o Habeas Corpus nº 126.292, impetrado em favor
Marcio Dantas, contra decisão do Ministro Francisco Falcão, do Presidente do Superior Tribunal de Justiça, que
indeferiu o pedido de liminar no Habeas Corpus nº 313.021/SP (conforme veiculado em
https://www.jota.info/justica/uma-moto-e-um-roubo-de-r-26-mil-o-caso-que-fez-o-stf-mudar-sua-jurisprudencia-
21022016). Nesse último, foi relator o Ministro Teori Zavascki, que afirmou que “A execução provisória de acórdão
penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não
compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição
Federal”. (disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246). Na época, a
mídia brasileira sustentou que o Supremo Tribunal Federal mudou seu entendimento porque tinha interesse político em
antecipar a condenação do ex-presidente Lula da Silva (conforme https://www.jota.info/stf/do-supremo/um-garcom-e-
um-fazendeiro-os-reus-dos-hcs-que-trataram-da-2a-instancia-03042018). Atualmente, entre os representantes do
Supremo Tribunal Federal que aceitam a antecipação, o Ministro Lewandowski já decidiu (no julgamento do Habeas
Corpus nº 149.404) que "A antecipação do cumprimento da pena, em qualquer grau de jurisdição, somente pode ocorrer
mediante um pronunciamento específico e fundamentado que demonstre, à sociedade, e com base em elementos
concretos, a necessidade da custodia cautelar", conforme divulgado em https://www.conjur.com.br/2018-mar-
18/execucao-pena-antes-transito-julgado-motivacao.
351
Princípio criado pelo próprio campo jurídico, que indica a confirmação de uma decisão proferida por órgão colegiado,
como são, em regra, os Tribunais, e que se repetiria para todos os demais casos idênticos. Contudo, como foi visto por
De Seta (2015), as decisões dos magistrados que integram estes tribunais são isoladas, não há consenso entre elas, o que
possibilita diferentes resultados, mesmo quando o caso analisado guarda alguma semelhança com outro anteriormente
julgado por eles.

293
protelam a solução do caso, porque em sua perspectiva o que o colaborador quer - mesmo aquele que
pratica o “crime de colarinho branco” -, é resolver sua situação. E resolver a situação dele significa
saber logo, “sem maiores delongas”, qual será sua punição.
A doutrina jurídica brasileira majoritária entende que os recursos judiciais são direitos dos
investigados/acusados e considerados como “remédio”, “socorro”, indicados por lei para a proteção
ou defesa do seu direito, que pode estar sendo ameaçado ou violentado. Trata-se de “proteção legal
assegurada para garantir a integridade dos direitos” (SILVA, 1982, p.52). Tanto pode significar um
pedido judicial formulado pelo jurisdicionado, com o fim de provocar o reexame da decisão
proferida, como pode se referir a alguma medida necessária ao desenvolvimento do processo.
Consiste, segundo os discursos doutrinários, em meio pelo qual a parte prejudicada por uma decisão
judiciária se dirige à autoridade que a prolatou ou à autoridade superior a ela, a fim de obter uma
reforma ou anulação dessa decisão, reputada como ofensiva aos seus direitos (TOURINHO FILHO,
2010, p. 845, entre outros). A lei processual penal define as espécies de recursos existentes, assim
como as regras para a sua formalização (se produzido nos mesmos autos da ação ou não; prazo para
sua interposição etc.).
Afinal, segundo esta orientação, o fundamento dos recursos é a “falibilidade humana”
(TOURINHO FILHO, ibidem, sic). Segundo este autor, “Se as decisões fossem proferidas por deuses
ou semideuses, trariam elas a nota de infalibilidade. Mas quem as profere são os juízes, homens
portanto, e , como tais, falíveis. Ao lado disso, há a necessidade psicológica: o recurso visa à
satisfação de uma tendência inata e incoercível do espírito humano em não se conformar com um
primeiro julgamento. Ademais, na generalidade dos casos, os recursos são dirigidos a órgãos
superiores, constituídos de juízes mais velhos, mais experimentados, mais vividos, e tal circunstância
oferece-lhes maior penhor de garantia. Por outro lado, sabendo os juízes que suas decisões poderão
ser reexaminadas, procurarão eles ser mais diligentes, mais estudiosos, tentando fugir do erro e da
má-fé” (TOURINHO FILHO, ibidem).
Como os recursos se referem à proteção dos direitos dos jurisdicionados e o entrevistado
está defendendo a segurança jurídica do colaborador, esta declaração poderia parecer mesmo
disparatada, mas o que o entrevistado está defendendo é a celeridade com que devem ser definidos os
acordos de Colaboração Premiada. Portanto, para o entrevistado, não importa se a redução de
recursos vai acarretar a redução de direitos do investigado, pois o que é imprescindível é que o
acordo seja efetuado com agilidade e confirmado pelo juiz e que não haja qualquer fato ou
circunstância que inviabilize sua execução. Significa também que, uma vez aceito e validado pelo
juiz, este acordo estará legitimado para gerar novas investigações e, consequentemente, aumentar o
número de investigados e de processos, portanto. Mas isso o entrevistado não disse.

294
Vale ressaltar, ainda, que a crítica formulada por este operador à insegurança jurídica que o
Supremo Tribunal Federal causa, em razão dos diferentes posicionamentos adotados pelos Ministros
que integram essa Corte - especialmente em relação à questão da antecipação da execução da pena -,
vem se somar às produzidas por diversos outros atores do campo jurídico. A única diferença entre
elas é que enquanto os demais críticos entendem a postura da Corte Suprema como uma ofensa às
garantias processuais dos investigados/acusados352, os representantes do Ministério Público criticam
tais decisões porque elas se opõem (em alguns casos), à manutenção das prisões requeridas por eles.
Neste caso, o exemplo mais citado pelos entrevistados foi o relativo aos decretos judiciais
da 7ª Vara Criminal Federal que determinaram a prisão do empresário Jacob Barata Filho, presidente
da Fetranspor – Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro -
, e relativos à Operação Ponto Final. Estas decisões foram arguidas por Habeas-Corpus impetrados
pelos advogados de defesa do empresário, que obtiveram decisão favorável daquela Corte Suprema.
Vale lembrar que este empresário - denominado pela mídia como o “Rei do Ônibus”, em razão da sua
influência nesse setor -, foi denunciado a partir das investigações realizadas pela Operação citada,
onde foram apuradas as práticas de crimes que envolviam diversos empresários do ramo de
transporte coletivo no Estado e políticos cariocas, entre eles, o ex-governador do Rio de Janeiro,
Sérgio Cabral; diversos Deputados Estaduais e representantes do Tribunal de Contas do Estado,
como afirmado inicialmente. Estes Habeas-Corpus foram apreciados pelo Ministro Gilmar Mendes
que deferiu todos os pedidos.
Quanto à atividade do Supremo Tribunal Federal, outro entrevistado afirmou que:

- “Em relação a sua pesquisa, a Operação Cadeia Velha no Supremo Tribunal


Federal foi distribuída a outro relator, que era o Ministro Dias Toffoli e foi diferente
do Ministro Gilmar Mendes, que era competente pela Lava-Jato originária.
Embora as pessoas envolvidas nessa operação também estivessem relacionadas com
a Operação Ponto Final, como Jacob Barata e tal, a organização criminosa era um
pouquinho diferente. A Fetranspor corrompeu o governo do Estado, mas corrompia
também os Deputados da Assembleia Legislativa – ALERJ. Esses Deputados, em
troca, votavam os processos legislativos que favoreciam aos representantes da
entidade. Então, assim, eram fatos distintos.
Apesar de distribuído para outro Ministro, no caso que envolvia a Fetranspor, o
Ministro Gilmar Mendes353 entendeu que competia a ele.

352
Entre outros, Bottino afirma que entre os anos de 2008 e 2012 foram providos 27,86% dos Habeas-Corpus impetrados
junto ao Superior Tribunal de Justiça para reformarem total ou parcialmente as decisões dos tribunais de 2ª instância,
enquanto no mesmo período foram deferidos 8,27% destes procedimentos que visavam reformar as decisões do
Supremo Tribunal Federal, conforme divulgado em https://www.jota.info/stf/supra/os-problemas-da-decisao-do-stf-
sobre-execucao-provisoria-da-pena-18022016.
353
Parte da imprensa brasileira arguiu a suspeição das decisões do Ministro Gilmar Mendes, pelo fato deste juízo ter
relaxado as diversas prisões do presidente da FETRANSPOR, Jacob Barata, decretadas pelo juiz da 7ª Vara Criminal
Federal, relacionando tais decisões ao fato de o Ministro possuir negócios profissionais e afinidades pessoais com o
presidente da Federação. Conforme divulgado em https://istoe.com.br/barata-vai-barata-vem/.

295
Quando o Ministro Gilmar Mendes revogou o decreto de prisão do Jacob Barata não
era uma decisão do Dr. Bretas. Era uma decisão do Tribunal Regional de 2ª
Instância, do Dr. Abel. Embora os fatos fossem os mesmos, eram outros envolvidos,
o dinheiro foi enviado para outras pessoas, para outras finalidades, diferentes do que
aconteceu na Operação Ponto Final. É interessante perceber como essa distribuição
de competência vai ensejar diferentes soluções”354.
(MPF6)

Neste trecho de sua entrevista, o representante do Ministério Público Federal se refere às


questões relativas à competência dos Ministros do Supremo Tribunal Federal para o julgamento dos
procedimentos das Operações Lava-Jato. Isso porque os primeiros processos originários dessas
Operações de Curitiba foram instaurados no Supremo Tribunal Federal, em razão do foro de
prerrogativa de alguns dos envolvidos nesses processos e esses pedidos passaram a ser da
competência355 do então Ministro Teori Zavascki, considerado, na época, como juízo originário. Por
este critério, quando o magistrado recebe o feito e, portanto, é o primeiro que toma conhecimento
dele, torna-se “prevento” em relação aos demais casos com os quais o primeiro guarda relação.
O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (artigo 69) fixa a competência dos
Ministros pelo critério da conexão e da continência, o que significa dizer que todos os demais
procedimentos relativos à mesma matéria, também se inserem na competência deste juízo. Como os
tribunais são compostos por vários magistrados e suas decisões são “colegiadas”, esse Ministro
passou a atuar como Relator de todos os procedimentos e pedidos relacionados a esta Operação e
quando ele faleceu, foi substituído pelo Ministro Dias Toffoli356. O mesmo critério definiu a
competência do Ministro Felix Ficher, do Superior Tribunal de Justiça e do Desembargador Abel
Gomes, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que figura como Relator dos processos
originados das Operações Lava-Jato cariocas, quando são enviados, em grau de recurso contra as
decisões da 7ª Vara Criminal Federal.

354
Idêntica manifestação dos representantes do Ministério Público Federal carioca foi noticiada pela imprensa brasileira e
pode ser vista em https://oglobo.globo.com/brasil/lava-jato-diz-que-gilmar-extrapolou-competencia-ao-soltar-barata-
22145204.
355
De acordo com a doutrina jurídica brasileira, os critérios que determinam a competência de um juiz são considerados
normas relativas à divisão de sua atividade e reguladas pelas leis constitucional, processuais (penal, civil etc.) e pelos
regimentos internos dos tribunais. A competência pela prerrogativa da função, também denominada de competência
originária em razão da pessoa, “consiste no poder que se concede a certos Órgãos Superiores da Jurisdição de
processar e julgar determinadas pessoas. Há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado, e em atenção
a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria gozam elas de foro especial, isto é,
não serão processadas e julgada como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores de instância
mais elevada” (TOURINHO FILHO, 2010, p. 315). O curioso é que esses discursos não percebem a instabilidade que
tal tratamento diferenciado acarreta para a cidadania brasileira. Sobre essa crítica ver também Kant de Lima e
Mouzinho (2016).
356
Sobre o tema ver De Seta (2015). O critério se estende também a quem não tem tal prerrogativa em razão da conexão
entre os processos, outro critério que o campo jurídico também considera como necessário à unidade de julgamento.

296
Quando as primeiras Operações Lava-Jato começaram a ser deflagradas no Rio de Janeiro e
os primeiros recursos contra as decisões do juiz da 7ª Vara Criminal Federal foram enviados ao
Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes se tornou, pelo mesmo critério acima
comentado, competente para apreciá-los.
Assim, o que o entrevistado está afirmando é que o Ministro Gilmar Mendes não poderia ter
julgado os Habeas-Corpus do empresário, já que se referia a um procedimento relativo à Operação
Ponto Final, que é desdobramento daquela investigação de Curitiba e, portanto, estaria sob a
competência do Ministro Dias Toffoli.
O entrevistado estava criticando, portanto, a distribuição dos processos na instância superior,
porque entendeu que estes feitos (originários da Operação Ponto Final e da Operação Cadeia Velha)
se tratavam de expedientes que guardavam conexão com os relacionados à Lava-Jato de Curitiba
como responsável por “diferentes soluções”, dentre elas a gerada pelas decisões do Ministro Gilmar
Mendes, que acolheu alguns Habeas-Corpus de investigados, como já foi visto.
É interessante notar que na representação deste entrevistado, o problema que ele discute teria
sido causado pela distribuição dos processos. Foge à sua compreensão, portanto, o fato de que as
decisões idiossincráticas permitidas pelo livre convencimento dos julgados é que efetivamente
constituem a raiz desse problema.
Diversos pesquisadores com os quais dialogo neste texto já examinaram esta categoria (entre
outros, MENDES, 2011; DE SETA, 2015 e CARDOSO DE OLIVEIRA, 2018). Afinal, a liberdade
dos magistrados em decidirem primeiro, para depois escolherem as provas com as quais justificavam
seus julgamentos, foi demonstrada por Mendes (2011) em sua pesquisa com estes operadores. Esta
estratégia permite aos magistrados evitar qualquer responsabilização decorrente da não observância
do mandamento constitucional e processual, que exige a fundamentação das decisões (artigo 93, IX,
da Constituição Federal de 1988), mesmo quando tais atos ultrapassam ou até mesmo colidem com
os pedidos das partes.
Por outro lado, a ausência de colegialidade, que pode ser traduzida por ausência de decisões
consensualizadas e uniformes, proferidas pelo órgão judicial que ocupa a última instância do Poder
Judiciário brasileiro, já foi estudada por De Seta (2015). Esta autora também demonstrou a
arbitrariedade desses julgamentos, acarretando, inclusive, decisões sobre pedidos que sequer
constavam da petição inicial das partes, como aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal
interpretou o artigo 42, da lei nº 6.538, de 1978, relativo à violação do privilégio postal, não suscitado
pela Associação Brasileira de Empresas de Distribuição, em sua ação de arguição de preceito
fundamental, na qual o objeto de questionamento era o monopólio da atividade de distribuição de
correspondências pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. O curioso é que neste

297
caso, a Associação pleiteou ao tribunal referido apenas a interpretação do que significava a categoria
carta, prevista no artigo 11, da lei acima citada, para fins de julgamento da violação aos preceitos da
livre iniciativa, livre concorrência e do livre exercício de atividade da ECT. Ao final de quatro anos
de apreciação, a causa foi julgada. Ainda que o tribunal tenha mantido o privilégio da União na
atividade postal, a Associação pode continuar realizando suas atividades sem o risco de seus
associados serem responsabilizados penalmente, em razão do efeito produzido por este julgamento,
mesmo que tal ação tenha sido julgada improcedente (DE SETA, 2015, pp. 79-100).
Por fim, a extensão da arbitrariedade de interpretação judicial repercute, inclusive, fora dos
tribunais e fóruns, como Cardoso de Oliveira (2018, pp. 42-43) exemplifica citando o caso do
Ministro do Superior Tribunal de Justiça que alegou “foro de prerrogativa”, porque não queria
ninguém atrás de si, enquanto utilizava um caixa eletrônico do Banco do Brasil, chegando ao ponto
de exigir a demissão de um estagiário do tribunal, porque este aguardava sua vez de utilizar o
terminal e se recusou a sair da fila formada atrás do magistrado. Conforme o autor, entre nós há
diversos exemplos onde se pode verificar “a tensão entre concepções de igualdade e a desarticulação
entre esfera (campo argumentativo) e espaço (campo interativo) públicos”, profundamente
imbricados e que vão desde “o clássico ato de furar fila, até o acionamento claramente arbitrário das
leis e regras de comportamento” (CARDOSO DE OLIVEIRA, ibidem).
Na perspectiva dos entrevistados, a ausência de colegialidade do tribunal superior estaria
gerando a insegurança jurídica dos acordos de Colaboração Premiada, mas esta representação está
longe de significar a segurança jurídica dos direitos do investigado/réu, previstos
constitucionalmente, já que se refere, exclusivamente, aos diferentes julgamentos relativos à
possibilidade de execução da pena a partir da decisão condenatória confirmada em segunda instância,
assunto que aqui já foi citado.
O que resulta da análise dessas entrevistas é que a categoria segurança jurídica, apesar de
utilizada, ora para justificar a proteção do colaborador, ora para afirmar a proteção das cláusulas
pactuadas nos acordos de Colaboração Premiada, ora para evitar sua alteração por decisões que
julgam os recursos, se destina, exclusivamente, à eficiência da investigação (e atividade persecutória
do Ministério Público). A força desta ideia é de tal ordem que chega a pretender limitar a atuação do
juiz e das demais instituições de controle e fiscalização, como foi verificado no capítulo anterior.
Por fim, no material didático cedido por um dos entrevistados, é apresentada uma lista de
fatores que colocam em risco o instituto da Colaboração Premiada, causando sua insegurança.
Reproduzo o respectivo slide abaixo:

298
QUADRO V – RISCOS À COLABORAÇÃO PREMIADA

Fonte: produzido pelo MPF5

A insegurança jurídica é o primeiro item que constitui risco à permanência do instituto da


Colaboração Premiada indicado neste material. Apesar de não haver qualquer registro sobre o
significado desta categoria, seu conteúdo pode ser retirado das entrevistas aqui mencionadas, já que
se trata de material confeccionado por um deles.
Outro dado que igualmente acarretaria este risco, segundo este slide, seria a atuação das
agências que aderem ao acordo e que também já foi visto acima.
O terceiro item apontado neste material se refere aos “riscos legislativos”. Neles estão
compreendidas as propostas legislativas que acabam por “dificultar a aplicação do instituto”. Neste
item é informado que no Relatório da Comissão Permanente de Inquérito da Câmara dos Deputados
sobre a PETROBRÁS357, de 2015, foram propostas mudanças legislativas que previam o não

357
A Comissão Parlamentar de Inquérito - CPI é instituída pelo Poder Legislativo, a partir de pedido de 1/3 dos
Senadores ou de Deputados Federais, para promover uma investigação o que transforma a própria casa parlamentar em
uma comissão para ouvir depoimentos e tomar informações diretamente. Trata-se de mais um procedimento que visa
produzir a verdade jurídica no sistema brasileiro. Depois de concluir as investigações, a Comissão Parlamentar de
Inquérito pode encaminhar suas conclusões, se for o caso, ao Ministério Público, para que este promova
a responsabilidade civil ou criminal dos acusados. As CPIs estão regulamentadas no artigo 58, § 3º da Constituição
Federal de 1988. Exemplo que se tornou conhecido foi a CPI da Petrobrás, instaurada na Câmara dos Deputados em
fevereiro de 2015, visando investigar denúncias de corrupção naquela empresa, conforme divulgado em
http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/02/camara-dos-deputados-instala-cpi-para-investigar-petrobras.html. O Relatório final
desta CPI com as propostas legislativas citadas pode ser visto em
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1402613.

299
acolhimento de acordo de Colaboração Premiada quando o investigado possuísse maus antecedentes
ou quando o advogado de defesa atuasse para dois colaboradores ao mesmo tempo (BRASIL, 2015).
É interessante notar a preocupação dos operadores com a legislação que veda a reincidência
da colaboração, verificada quando o colaborador, que já deu causa à rescisão de um pacto
anteriormente celebrado, possa realizar com o Ministério Público novo acordo. Como foi dito
anteriormente, a desconfiança sobre o colaborador é de tal grandeza que aparenta existir certa
incoerência ao se constatar esta redação. Os reiterados acordos com o doleiro Alberto Yussef
exemplificam a prática dos operadores. Por isso, é possível examinar essa circunstância sob outra
ótica: ao se aceitar, inclusive, colaborador inidôneo, não se perde nenhum cliente e, com isso,
mantém-se em atividade a máquina da Colaboração Premiada.
Quando o material acima também traduz como risco ao instituto a proposta legislativa que
afasta a atuação de um único advogado de defesa de dois ou mais colaboradores, tal afirmação
aparenta constituir obstáculo ao instituto a impossibilidade deste profissional realizar ajustes e
combinações entre seus clientes acerca dos seus respectivos depoimentos. O que poderia constituir,
para outras atividades investigativas, um obstáculo à apuração dos fatos, aparentemente para a
Colaboração Premiada não se aplica. Neste caso, o que os operadores estão defendendo é a
possibilidade de ampliação do número de colaboradores, como informou um advogado com quem
conversei durante as audiências assistidas.
A crítica relativa ao acesso das Comissões Parlamentares de Inquérito aos termos e provas
obtidas nos acordos de Colaboração Premiada demonstra a preocupação dos operadores com a
possibilidade de vazamento dessas informações, já que muitos desses pactos se referem o
envolvimento de vários políticos nas investigações das Operações Lava-Jato e correlatas,
especialmente, os representantes do Legislativo Nacional.
Com relação à gravação das reuniões onde são negociados os termos e as contrapartidas dos
acordos, já mencionada no capítulo anterior, é preciso ressaltar que se trata de providência que, a
princípio, seria destinada a resguardar o direito do colaborador, na medida em que poderia exigir do
Ministério Público o cumprimento do pacto, caso o que estivesse escrito não fosse respeitado. Mas,
também se refere ao direito do delatado em ter acesso ao que foi revelado pelo colaborador. No
entanto, a crítica apontada pelo autor deste material demonstra que esta lógica – inclusive regulada
pelo §13, do artigo 4º, da Lei nº 12.850, de 2013358 -, é invertida, já que segundo esta perspectiva,

358
Além da Lei nº 12.850, de 2003, a Orientação Conjunta nº 1, de 2018, das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão
do Ministério Público Federal, que orienta e padroniza as atividades dos representantes deste órgão, com vistas a
atenderem as exigências judiciais para a homologação dos acordos de colaboração premiada, bem como o
aprimoramento dos acordos de leniência, prevê essa gravação no item 7 desta normativa, com a seguinte redação: “7.
Os principais atos do procedimento e suas tratativas, incluindo a entrega de documentos e elementos de prova pelo

300
refere-se, exclusivamente, a uma garantia para o Estado, representado pelo Ministério Público. Ora,
Estado não tem garantia. Estado tem poder e a garantia do cidadão é que limita esse poder. No
entanto, no Brasil existe esta representação: de que o Estado possui garantias.
Ora, apesar de empregarem o instituto da segurança jurídica como justificativa para a
manutenção da Colaboração Premiada, tal como vêm sendo operacionalizada pelos representantes
do Ministério Público, estes operadores parecem estar muito mais preocupados com os resultados das
investigações obtidos a partir das informações indicadas pelos colaboradores nesses acordos, do que,
propriamente, com a proteção do colaborador contra os abusos estatais, especialmente no que se
refere à garantia dos direitos processuais, como a ampla defesa, a jurisdição e a presunção de
inocência, entre outros359. Vale dizer, a categoria insegurança jurídica empregada pelos entrevistados
justificaria o monopólio da atividade da investigação e do poder de punir, ressaltando a concorrência
corporativa por poder entre Polícia, Justiça e Ministério Público.
Afinal, como lembra Foucault (2013), estes discursos possuem um “lugar”, ou melhor, “uma
posição”, a partir da qual estes atores podem, devem ou precisam se expressar para que as atividades
sejam realizadas (ou para evitá-las), seja em razão de interesses individuais, de um grupo específico
ou de segmentos sociais mais amplos, em prol dos mesmos interesses. Além disso, os discursos
podem ser considerados como uma “ação especial” (PIRES, 2016, p. 14), feitos para e,
principalmente, sobre alguém ou alguma coisa para surtir efeitos sobre determinados indivíduos ou
grupos. Não se pode esquecer que a consequência prática do discurso é que ele está intimamente
relacionado com uma ação política. Como afirma este autor, discursar é, portanto, fazer política,
sendo esta também entendida como uma ação que mobiliza um determinado interesse e não há
dúvidas de que existem interligações e permanências importantes entre política e poder (PIRES,
idem).
Ora, os discursos dos representantes do Ministério Público que defendem a garantia da
segurança jurídica dos acordos de Colaboração Premiada, visam fortalecer seu poder e,
consequentemente, seu lugar de destaque na hierarquia existente no campo jurídico brasileiro no que

colaborador deverão ser registrados nos autos do “Procedimento Administrativo”, mediante atas minimamente
descritivas, com as informações sobre data, lugar, participantes e breve sumário dos assuntos tratados, ou, se possível,
ser objeto de gravação audiovisual”. Já o item 13 dessa orientação afirma que: “13. Incumbe à defesa instruir a
proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando
as provas e os elementos de corroboração. (...) 13.5 A colheita dos depoimentos deve ser feita, sempre que possível,
com gravação audiovisual e redução a termo dos depoimentos prestados pelo colaborador; 13.6. A gravação audiovisual
deve ser realizada separadamente, em relação a cada termo de depoimento do colaborador, visando preservar o sigilo
das demais investigações”. (BRASIL, 2018, grifei).
359
Sobre essas garantias ver (FERREIRA, 2009 e 2013).

301
se refere à dicção do direito (BOURDIEU, 2007a)360. A segurança jurídica desses atos, portanto, está
vinculada à (e dependente da) garantia desse status e desse poder.
O que os operadores chamam de “descoberta da verdade”, como mencionado na entrevista
acima citada, está relacionado com a possibilidade de produção de prova pela investigação, uma vez
que a verdade descoberta, nem sempre pode ser provada, já que no nosso sistema jurídico ela
depende do poder do juiz - expresso em seu livre convencimento -, como tem sido visto pelos
resultados dessas infinitas delações, onde todo mundo acaba “caguetando” todo mundo. Afinal, como
um dos entrevistados afirmou: “um vai delatando o outro e assim por diante. Não tem fim” (MPF6).
Ao longo deste estudo foi demonstrado o crescimento das atribuições (e com elas, a
arbitrariedade) do Ministério Público, desde a Carta de 1988. O recente ingresso dessa instituição no
domínio das investigações criminais ampliou drasticamente suas competências, ainda que
deteriorando as garantias processuais, especialmente as que se referem à paridade de armas e à ampla
defesa, que, não obstante, continuam previstas no texto constitucional, como também já afirmou
Mouzinho (no prelo).
Neste cenário onde proliferam as Operações Lava-Jato - que tanto geram novos acordos de
Colaboração Premiada, como estes também originam novas investigações -, cujos limites de
aplicação ainda não estão (e talvez seja interessante que não estejam) claramente definidos, a disputa
pelo poder investigatório entre as instituições de controle se manifestam e se multiplicam, ressaltando
práticas inquisitoriais que sequer são combatidas, especialmente por aquelas que têm,
constitucionalmente, o dever de fiscalizar o cumprimento das leis: o próprio Ministério Público e o
Supremo Tribunal Federal.
Sem colocar uma pá de cal nessa discussão, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao assentar
a natureza da Colaboração Premiada como negócio jurídico processual, estabeleceu que “(...) os
princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de
honrar o compromisso assumido no ajuste de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada,
legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador”361.
Ao falar de garantia no processo penal os doutrinadores jurídicos brasileiros reproduzem as
orientações do autor italiano Luigi Ferrajoli (2014) e o garantismo penal, criado por ele, como um
modelo adequado para obstar a mitigação da lei, diante da arbitrariedade dos seus intérpretes.
Ferrajoli defende a noção de efetividade dos direitos fundamentais previstos na Constituição e a
limitação que as leis e, em especial, a Constituição, desempenham sobre a atividade estatal, com o

360
Sobre a disputa pela dicção do direito, no campo jurídico brasileiro e a hierarquia produzida por esse domínio, ver
Mendes (2011).
361
Refiro-me à decisão proferida no Habeas Corpus nº 127.483/PR, Relator Min. Dias Toffoli, julgado em 27/8/2015, já
comentado.

302
fim de garantir o respeito aos direitos fundamentais do cidadão, enfatizada na observância do
princípio da legalidade.
Caso esta pesquisa se limitasse aos modelos produzidos pela academia jurídica, baseados,
quase exclusivamente, na análise da doutrina, o argumento seria no sentido de que a Colaboração
Premiada constitui um instituto repleto do que Ferrajoli (2014, p. 161) denomina “espaços de
insegurança”, marcados pela discricionariedade política e abertos à indeterminação da “verdade
processual”. Segundo a orientação do autor estrangeiro, estes espaços acontecem diante da
inexistência de uma regra semântica que vincula o princípio da legalidade estrita (permitindo
expressões indeterminadas ou antinomias semânticas) e da ausência de verificação do sentido
denotativo penal dos pressupostos das decisões. São essas as carências que abrem espaço ao poder de
disposição, ou seja, aos “decisionismos” baseados em critérios subjetivos ou “políticos”.
Outra questão igualmente interessante apresentada pelo jurista italiano, diz respeito à
introdução, no processo penal do seu país, do instituto da premiação do colaborador. Segundo ele,

(...) por meio destes procedimentos é de fato introduzido no nosso ordenamento o


discutido instituto da colaboração premiada com a acusação. Com o agravante de
que ela não foi codificada abertamente, mediante a previsão de uma circunstância
atenuante, mas de forma subreptícia, por meio de um mecanismo idôneo a incentivar
os procedimentos acordados e desencorajar o juízo ordinário, com todo o seu sistema
de garantias; que ela não é mais uma medida excepcional, conjuntural e limitada a
determinados tipos de procedimentos, mas sim um novo método processual
codificado para todos os processos; que, enfim, o benefício da pena não será
concedido por um juiz no curso de um juízo público, mas pela própria acusação no
curso de uma transação destinada a desenvolver-se em segredo (FERRAJOLI,
2002, p. 601).

Todavia, não se pode deixar de ressaltar que o jurista italiano está se referindo à realidade
italiana por ele observada. A comparação, por semelhança, com o cenário brasileiro prospera, quando
muito, como recurso discursivo, até porque as doutrinas brasileiras que adotam o garantismo362 como

362
O movimento garantista ganhou força a partir da segunda guerra mundial, especialmente como resposta à divergência
existente entre a normatividade do texto constitucional e sua não efetividade nas legislações infraconstitucionais, em
face da proteção dos direitos fundamentais. A teoria do garantismo, que o campo jurídico atribui à Luigi Ferrajoli
através de sua obra “Direito e razão: teoria do garantismo penal”, é uma teoria geral do direito que se apoia no axioma
segundo o qual a ofensa a um princípio constitucional constitui a ofensa ao próprio Estado Democrático de Direito.
Além deste comentário, é oportuno mencionar que o garantismo  defendido por Aury Lopes (2009), entre outros,
como sendo aplicado no Brasil  é um discurso (dentre os diversos existentes) e que, não obstante indicar a
preocupação com as garantias processuais dos jurisdicionados, tem mera prevalência no plano retórico, posto que as
estruturas e o funcionamento da nossa jurisdição mantêm-se inalteradas, organizadas e operacionalizadas conforme as
lógicas do contraditório e do inquisitorial. Ou seja, a observação de campo vem demonstrando que a solução do conflito
não é fruto de uma negociação explícita e sistemática entre as partes interessadas, como ocorre em outras tradições
jurídicas. Como Kant de Lima (1995b, 1999, 2008, 2010, entre outras obras) reiteradamente já observou, enquanto o
contraditório se reduz a um debate quase infinito entre as partes e que só chega ao fim por intermédio da decisão de um
terceiro (o juiz), a lógica inquisitorial, por sua vez, consiste em uma produção de verdade pautada no segredo, sem o

303
discurso existente entre nós, não defendem a mudança da nossa estrutura jurídica  o que seria
necessário para a adequada aplicação deste discurso , mas apregoam somente uma reinterpretação
da estrutura já existente. Tais concepções, portanto, não ultrapassam o plano da retórica.
Os aspectos relacionados à operacionalização do instituto levantados neste texto, tais como a
aplicação de tratamentos diferenciados entre colaborador e delatado; a limitação do Judiciário quanto
ao exame do mérito dos acordos de Colaboração Premiada; a produção antecipada de provas, sem o
contraditório; a aplicação antecipada de pena, sem o esgotamento das instâncias recursais, são fatores
que provavelmente concorrem, em grande medida para a insegurança jurídica do próprio instituto,
mas que, por outro lado, integram o exercício da autoridade enquanto forma de representação da
legitimidade da ação dos operadores que, neste campo dominado pelas Colaborações Premiadas,
detém o poder e reproduzem a lógica do sistema inquisitorial tradicional.

V.2 – JUSTIÇA NEGOCIAL

Dentre todas as categorias presentes nos discursos dos entrevistados, a Justiça Negocial
também merece destaque não só pela quantidade de vezes repetidas por eles, mas, principalmente,
pela representação que estes operadores elaboram sobre seu significado, alcance e operacionalização.
Isto acontece, especialmente, porque o instituto da Colaboração Premiada é associado a
esse modelo de Justiça que, segundo o campo jurídico, privilegia a formação de consenso entre as
partes. Como já havia visitado esse tema em minha pesquisa de mestrado, pareceu-me ser bastante
oportuno poder, com essa análise, atualizar o debate sobre ele. Além disso, alguns entrevistados
declararam que o nosso instituto teria se originado ou foi influenciado pela Plea Bargaining,
estadunidense, razão pela qual esta categoria também mereceu destaque.
As formas de resolução de conflitos têm sido classificadas como judiciais ou extrajudiciais,
mas estas são apenas duas das esferas de que os cidadãos podem utilizar para dirimir seus
conflitos363. Esta divisão também está apoiada na perspectiva de análise adotada, já que os modelos
de administração de conflitos – enquanto instrumentos que viabilizam a vida em sociedade e, ao

contraditório. Assim, não é difícil concluir que tais lógicas não privilegiam a manutenção de garantias processuais, tais
como a ampla defesa, a presunção de inocência e o devido processo legal, principalmente.
363
Como afirmei anteriormente, os meios ou técnicas de consenso que objetivam a resolução dos conflitos sociais não
oficiais estão basicamente associados à busca por melhores respostas aos problemas do restrito acesso à justiça, da
morosidade e dos altos custos do sistema judicial e são conhecidos pelas siglas ADR, Alternative Dispute Resolution
(significando resolução de disputas alternativas ou resolução alternativa de litígios); RAL (resolução alternativa de
litígios), ou MAC – Mediation, ArbitrageetConciliation(mediação, arbitragem e conciliação).Alguns desses métodos,
tanto podem acontecer fora dos mecanismos oficiais de justiça como vinculados a estes, mas todos têm como principal
finalidade evitar o contencioso, obter solução mais rápida e menos onerosa (LYNCH, 2001). Ver também Santos
(1996).

304
mesmo tempo, difundem o controle social - diferem, por exemplo, em relação à Antropologia e ao
Direito. Isso porque, para a Antropologia, o direito não tem sua origem e permanência no Estado, já
que existem sociedades não estatais que exercem igualmente o controle social fundado na persuasão
e na disciplina e não na coerção (KANT DE LIMA, 1997c). Para o campo jurídico, no entanto,
prevalece a ideia de que o monopólio da administração dos conflitos pertence ao Estado, por meio da
Justiça, e esta se alcança mediante o processo judicial.
Como também lembra Kant de Lima (idem), as estratégias de controle social associadas aos
instrumentos de administração dos conflitos podem ser classificadas de duas formas: aquelas que
apontam os conflitos para depois administrá-los conforme regras, relativamente, explícitas, e aquelas
que querem impedir tal explicitação, ou pune os conflitos quando explicitados, diante da crença na
necessidade de manutenção da harmonia e a paz social. O autor cita o exemplo da sociedade
brasileira, onde as instituições de justiça e de controle social associam a existência de conflitos à
noção de desordem, caos e violência. As representações dos operadores jurídicos sobre a forma
hierarquizada da sociedade em que estão inseridos justificaria, inclusive, intervenções com o
emprego de meios violentos e necessários para o restabelecimento da ordem, em vista do precário
nível de sociabilidade e educação da maioria da população (KANT DE LIMA, idem).
Estas ideias que associam o conflito a algo negativo e atribuem a exclusividade do Estado
em sua administração são reproduzidas pelos doutrinadores jurídicos364, especialmente pelos autores
considerados porta-vozes do direito no Brasil. Constituem formas autorizadas de interpretar a lei, ou
como Mendes (2011) já afirmou, a “melhor forma de interpretação da lei”.
Como estes discursos constituem a base da formação profissional dos operadores do campo
jurídico - como Kant de Lima (1995; 1997; 2004; 2010, entre outros)365 já afirmou -, emprego-os
nesta análise com a finalidade de ressaltar que, mesmo se tratando de um discurso de poder,
constituindo, por esse motivo, um meio de propor e difundir determinada “verdade”, isso não
significa que outros discursos não venham complementá-los ou contrariá-los. Afinal, no topo da

364
Geertz (2006, p. 40) já afirmou que o saber jurídico não é científico, é dogmático. Em igual sentido, Mendes (2011, p.
14) esclarece que a dogmática jurídica, também chamada de doutrina, é uma forma de construção do saber própria do
campo jurídico que consiste em reunir e organizar de forma sistemática e racional comentários a respeito da legislação
em vigor e da melhor forma de interpretá-la. A dogmática é um saber que produz as doutrinas jurídicas, através das
quais o direito se reproduz. Tais doutrinas constituem o pensamento de pessoas autorizadas a trabalhar academicamente
determinados assuntos, interpretar os textos legais e emitir pareceres a respeito da forma mais adequada de interpretá-
los e de aplicá-los.
365
Trata-se de material empregado na formação jurídica desses atores, presente tanto nos cursos de graduação em direito,
quanto nos cursos preparatórios para os concursos destinados ao ingresso nas carreiras jurídicas e complemento: será
utilizada, inclusive, para o ingresso na atividade que é considerada o primeiro degrau dessas carreiras: o exame de
admissão da Ordem dos Advogados. Assim, esta visão, descontextualizada, generalizante, irrefletida e alienada do
contexto social, influenciará as atividades e os discursos destes profissionais.

305
hierarquia do sistema jurídico brasileiro, os magistrados continuam exercendo o monopólio de dizer
o direito (Kant, 2010; Mendes, 2011, Baptista, 2007, entre outros).
Dentre os porta-vozes do processo penal brasileiro, Tourinho Filho (2007), por exemplo,
afirma algo que pode se considerar como “mito de origem”, quando diz que no início da civilização,
a autocomposição foi a primeira forma compositiva dos litígios. Segundo este autor, “O emprego da
força devia ter sido a forma mais usual para a solução. Era a ‘autodefesa’. Por óbvio não era a
solução ideal, porquanto o mais forte levaria vantagem. ‘La raison du plus fort est touours la
meilleure’ - a razão do mais forte é sempre a melhor -, como dizia La Fontaine em uma de suas
fábulas. Outro meio para a solução dos litígios era a ‘autocomposição’. Pela economia de despesas,
de gastos, ausência de violência, seria uma forma excelente. Todavia, embora vigente, ainda hoje,
para numerosos casos, não pode ser estendida à generalidade dos conflitos, uma vez que, com
frequência, ‘envolve uma capitulação do litigante de menor resistência’. Ademais, se um dos
conflitantes não quisesse a composição? Por óbvio o conflito não seria solucionado” (TOURINHO
FILHO, idem, p. 44).
Sem explicar a que sociedade está se referindo ou qual o contexto histórico que a desenhou,
tal discurso etnocêntrico e generalizante (OLIVEIRA, 2004) sugere que os meios de “solução” dos
conflitos incidem de uma única forma e também assim se desenvolvem, independente de onde
tenham ocorrido, e não importando a sensibilidade jurídica local (GEERTZ, 2006). Vale lembrar que
Geertz (idem, p. 249) construiu a categoria sensibilidade jurídica para designar o sentimento de
justiça de uma determinada cultura. Segundo este autor, toda e qualquer cultura tem uma
sensibilidade jurídica que pode ou não se aproximar da nossa, mas que não é única, nem absoluta.
Sensibilidade jurídica, portanto, é o complexo de operações utilizado por uma sociedade para
relacionar princípios abstratos desse direito.
O direito é, portanto, parte constitutiva da sociedade, tal como a arte ou a religião. A única
característica que os diferencia é o fato de caber ao primeiro a administração dos conflitos sociais,
embora o controle social não seja a única função do direito. Sua especificidade permite também
construir a própria vida social. Segundo Geertz (2008, pp. 328-329), “O direito, mesmo um tipo de
direito tão tecnocrata como o nosso, é, em uma palavra, construtivo; em outra, constitutivo; em uma
terceira, formacional. Uma perspectiva seja qual for sua origem, segundo a qual a adjudicação passa
a ser forma voluntária de disciplinar desejos, ou uma devida sistematização de deveres, ou uma
harmônica harmonização de comportamentos – ou que ela consiste em uma articulação de valores
coletivos tacitamente residentes em precedentes, estatutos e constituições – contribui para uma
definição de um estilo de vida social (diríamos, uma cultura?) tanto quanto perspectivas que
afirmassem que a virtude é a glória do homem, ou que o dinheiro faz o mundo girar, ou que acima de

306
uma floresta de periquitos está uma marquise de periquitos, o fariam. Essas noções são parte daquilo
que a ordem significa; são pontos de vista da comunidade, e não seus ecos”.
Além disso, para Geertz (idem, pp. 261-262), o processo judicial é um componente cultural
de determinado grupo social e, para entendê-lo como tal, significa pressupor que todo processo
jurídico envolve um comportamento que tem a finalidade de simplificar os fatos vividos, amoldando-
os às normas; e que a própria operação que transforma o processo judicial em um sistema de
descrição do mundo, ou seja, a descrição jurídica do fato, já é, por si mesma, normativa. Vale dizer,
os “fatos” analisados são, eles próprios, interpretações, enquanto a normatividade dessa interpretação
(narrativa) indica que ela é feita tendo em vista um “dever-ser” 366.
No entanto, distante dessa perspectiva, Tourinho Filho (2010), segue explicando como se
deu o surgimento do monopólio judicial, considerado por ele, como a forma pacífica e justa de
administrar os conflitos, como pode ser visto no seguinte trecho de sua doutrina: “Era preciso,
destarte, que a composição, a solução do litígio, se fizesse de maneira pacífica e justa e ficasse a
cargo de um terceiro. Era preciso, antes de mais nada, que se tratasse de um terceiro forte demais, de
modo a tornar sua decisão respeitada e obedecida por todos, principalmente pelos litigantes.
Conforme vimos, somente o Estado é que podia ser esse terceiro. Então, o Estado avocou a tarefa de
administrar justiça restaurando a ordem jurídica quando violada. Essa intervenção, entretanto,
ocorreu paulatina e gradativamente. Hoje somente o Estado pode dirimir os conflitos de interesses.
Daí a regra do art. 345 do nosso Código Penal: é proibido fazer justiça com as próprias mãos, embora
a pretensão seja legítima. Só o Estado, e exclusivamente o Estado é que pode administrá-la. Daí se
infere que, detendo ele o monopólio da administração da justiça, surge-lhe o dever de garanti-la.
Desse modo, se apenas o Estado é que pode administrar justiça, solucionando os litígios, e ele o faz
por meio do Poder Judiciário, é óbvio que, se alguém sofre uma lesão em seu direito, estando
impossibilitado de fazê-lo valer pelo uso da força, pode dirigir-se ao Estado, representado pelo Poder
Judiciário, e dele reclamar a prestação jurisdicional (aquilo que ele se prontificou a fazer com
exclusividade), isto é, pode dirigir-se ao Estado-juiz e exigir dele se faça respeitado o seu direito. A
esse direito de invocar a garantia jurisdicional chama-se direito de ação. Daí proclamar a Lei
Fundamental no seu art. 5º, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça de direito. De que maneira o Estado consegue dirimir os conflitos de interesses? Por meio do
processo.” (TOURINHO, idem, pp. 44-45, sic).

366
Não por menos Geertz (idem, p. 26) também afirma que os doutrinadores jurídicos constroem um saber denominado
dogmática jurídica, enquanto saber próprio do campo jurídico, “que consiste em reunir e organizar, de forma sistemática
e racional, comentários a respeito da legislação em vigor e da melhor forma de interpretá-la; é através dela que o direito
se reproduz nesse campo”.

307
O autor referido também explica o processo como sendo uma “forma de composição de
litígios”. E segue afirmando que em sua etimologia, a palavra processo traz a ideia de ir para a frente,
de avançar. Então, segundo esta noção, o processo seria uma sucessão de atos com os quais se
procura dirimir o conflito de interesses. Ainda segundo o autor, no processo se desenvolve uma série
de atos coordenados visando à composição da lide, e esta se compõe quando o Estado, por meio do
juiz, depois de devidamente instruído com as provas colhidas, depois de sopesar as razões dos
interessados, dita a sua resolução com força obrigatória. Pode-se dizer, também, que processo é
aquela atividade que o Juiz, encarregado que é de solucionar os conflitos de interesses de maneira
imparcial, secondo verità e secondo giustizia, desenvolve, objetivando dar a cada um o que é seu
(TOURINHO FILHO, ibidem, grifos conforme o original).
Esta noção, que enfatiza a participação de um terceiro forte, justo e pacificador do conflito,
responsável pela “administração da Justiça”, é naturalizada pelo campo, que além de reproduzi-la,
entende o conflito como algo ruim e que precisa ser extirpado da sociedade, e não como algo inerente
à vida em sociedade, especialmente em uma sociedade marcada pela influência do mercado, como já
ressaltaram Kant de Lima (1995; 1999) e outros pesquisadores, já mencionados neste texto.
Além disso, a associação da verdade à Justiça, reproduzida pelo doutrinador citado, quando
emprega a expressão italiana secondo verità e secondo giustizia, vai confirmar a racionalidade
preponderante no campo jurídico brasileiro, segundo a qual não é possível se obter a Justiça sem que
a verdade seja descoberta. Assim, a busca pela verdade justificará, inclusive, a possibilidade de o juiz
produzir provas (verdade real), não obstante os interesses das partes e inclusive sobre fatos
incontroversos (conforme GRINOVER, 1999, p. 79). Estas representações serão reproduzidas pelos
operadores em seus discursos e justificarão suas práticas.
Quando a Colaboração Premiada foi regulada pela Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013,
alguns discursos jurídicos passaram a informar que, assim como aconteceu com a transação penal –
instituto criado em 1995, pela Lei nº 9.099, para promover o consenso em algumas cortes judiciais
brasileiras– também este instituto se inseriria no modelo de Justiça Negocial, que se distinguia do
processo penal tradicional, cujo principal objetivo era a aplicação da pena. Assim, segundo os
discursos doutrinários, a Justiça Negocial foi introduzida no sistema criminal brasileiro como uma
modalidade destinada a promover o consenso e realizar uma Justiça despenalizadora, surgindo novos
atores sociais, como os conciliadores e ampliando-se o papel do Ministério Público, que passou a ser
responsável pelo oferecimento da transação penal, uma espécie de proposta de aplicação antecipada
da pena e sobre a qual já me manifestei em outro momento (ALMEIDA, 2014).

308
Quando a Lei nº 12.850, de 2013 entrou em vigor, surgiram discursos defendendo a ideia
segundo a qual, com o advento da Colaboração Premiada, o consenso voltou a ser adotado pelo
processo penal brasileiro (SANTOS, 2017; CHEMIN, 2017)367.
Como a Lei 12.850, de 2013 emprega as categorias “negociação” e “acordo”, quando se
refere ao acordo de Colaboração Premiada368, alguns intérpretes consideram o instituto como sendo
instrumento da Justiça Negocial, Justiça Criminal Consensual, ou do Direito Criminal Negocial
(VASCONCELOS, 2017, entre outros), noção também reproduzida nas declarações dos
entrevistados, como é exemplo a abaixo descrita:

- “A Colaboração Premiada se insere no modelo de Justiça Negocial.


É um poder muito grande né? Desde lá, da transação penal e da suspensão
condicional do processo, e agora, com a Colaboração Premiada, você confere um
poder muito grande para o Ministério Público e isso enseja uma grande
responsabilidade, né?
(MPF2)

Segundo este entrevistado, a Justiça Negocial Criminal foi introduzida no nosso sistema a
partir da edição da transação penal, assemelhando igual tratamento aos acordos de Colaboração
Premiada. Tal declaração indica que a Justiça Negocial consistiria em uma prática recente no
processo criminal brasileiro, iniciada a partir da edição da Lei nº 9.099, de 1995, que regulamentou
os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo. Contudo, é preciso indagar
sobre qual prática consensual este operador está se referindo quando menciona a transação penal.
Vale lembrar que a Constituição de 1988 previu em seu inciso I, do artigo 98369, a criação
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais Estaduais, providos por juízes togados, ou togados e leigos
(competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade
e infrações penais de menor potencial ofensivo), mediante procedimentos orais e sumaríssimos,

367
Há também entre os doutrinadores jurídicos quem critique o instituto. Entre outros, Rosa (2016b) afirma que a
barganha é inerente à vida econômica e significa novo modo de pensar o Processo Penal e que tentar encaixá-la a partir
das categorias clássicas do Processo Penal brasileiro constitui um erro lógico de abordagem. Segundo o autor,
“Precisamos de novos pressupostos de compreensão, especialmente no tocante à distinção entre ‘direitos fundamentais’
e ‘privilégios’, já que a disponibilidade da ação penal e o do direito (e não dever) ao processo serão os pressupostos ao
estabelecimento do mercado da barganha”.
368
LEI N° 12.850, de 02 de agosto de 2013 -Artigo 4º - (...) § 6o O juiz não participará das negociações realizadas entre
as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o
defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou
acusado e seu defensor. § 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações
do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua
regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de
seu defensor. (BRASIL, 2013, grifei).
369
CONSTITUIÇÃO REPUBLICANA DE 1988 – Artigo 98: (...) I  juizados especiais, providos por juízes togados,
ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor
complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo,
permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau
(BRASIL, 2017, p. 55).

309
sendo ainda permitida, nas hipóteses previstas em lei, a transação penal entre Ministério Público e o
jurisdicionado, acerca da pena que seria adotada, como forma de resolução do conflito.
Em 26 de setembro de 1995, este dispositivo constitucional foi regulamentado pela Lei nº
9.099370, que inseriu esta nova Corte – os Juizados Especiais Cíveis e Criminais Estaduais - na
estrutura do Judiciário estadual371, caracterizada pela tendência de despenalização de crimes
considerados de lesividade menor para a sociedade adotada por vários países372. Dentre as técnicas de
promoção do consenso introduzidas por essa lei, a transação penal (prevista em seu artigo 76)373,
possibilitou ao Ministério Pública a oferta de penas não privativa de liberdade aos (supostos)
infratores, que, ao menos segundo a lei, deveria ocorrer durante uma audiência “de conciliação”, que
antecedia a etapa judicial destes procedimentos.
Devido a esta atribuição legal dada ao Ministério Público Estadual, muitos autores do campo
jurídico passaram a classificar a transação penal como um acordo que entre si faziam os operadores
desse órgão e o jurisdicionado. Este argumento defendia que a transação penal resultava do
consenso, construído com base na confirmação do exercício democrático de participação jurídica e da
garantia jurisdicional do tratamento isonômico374.
Todavia, em pesquisa de campo que realizei em algumas dessas cortes, localizadas em
diferentes Municípios do Rio de Janeiro, a partir da observação das práticas e dos discursos dos
atores envolvidos na operacionalização deste instituto, verifiquei que o consenso em relação à
aplicação da transação penal não passava de mais um recurso retórico375.

370
LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995 – Artigo 1º: Os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, órgãos da
Justiça Ordinária, serão criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para conciliação,
processo, julgamento e execução, nas causas de sua competência (BRASIL, 2017, p. 728).
LEI Nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 – Artigo 2º: o processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade,
simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a
transação. (BRASIL, 2017, p. 728)
371
Com a edição da Lei nº 10.259, de 2001 foram criados também os Juizados Especiais Federais, que passaram a atuar
nas causas que competem à Justiça Federal.
372
Dentre outros exemplos, na Itália, em 1981, a Lei nº 689 permitiu ao juiz, a pedido do acusado e com a anuência do
órgão de acusação, aplicar adiantadamente a sanção, extinguindo a punibilidade do autor, sendo o registro de tal
adiantamento de pena feito somente para impedir novo benefício. Em Portugal, o Código de Processo Penal de 1987,
permitiu (nos artigos 392 e seguintes) a proposta de multa ou pena alternativa feita pelo órgão de acusação ao tribunal,
que sendo aceita pelo acusado equivaleria a uma condenação. Mas isso não significa dizer que aqui esta tendência
prevaleceu, já que também concorriam alguns exemplos de política incriminadora (denominado de movimento pela lei e
pela ordem), dos quais se retira a edição da lei dos crimes hediondos (lei nº 8.072, de 1990), que majorou as penas para
os crimes de homicídio cometidos com tais características, entre outras legislações que se traduziram em criação de
novos tipos penais, aumento de penas para crimes já previstos ou alteração dos regimes de cumprimento de pena,
tornando-os mais rígidos.
373
LEI 9099, de 26 de setembro de 1995 – Artigo 76: Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal
pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de
pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. (BRASIL, 2017, p. 735).
374
Sobre os diferentes significados atribuídos à transação penal pela doutrina, ver ALMEIDA (2014).
375
Ressalto que outras pesquisas de campo realizadas uma década antes já apontam para esta circunstância (AZEVEDO,
2000; KANT DE LIMA, AMORIM e BURGOS, 2003)

310
Assim, apesar de criada pela lei para fomentar a administração dos conflitos sociais por
meio do consenso entre as partes neles envolvidas, a transação penal era transformada pelas práticas
dos operadores jurídicos, em instrumento de imposição da vontade da parte que nesta relação
representava a que detinha maior poder (de persuasão, de comando, de coação): o membro do
Ministério Público.
Esta imposição afastava a natureza de negociação (bilateral, portanto) do instituto, tão
defendida pelos discursos dogmáticos. Desta forma, a finalidade da prestação jurisdicional baseada
no consenso era perdida, frente à imposição do monólogo do operador jurídico376; da ampla liberdade
do órgão de acusação na escolha das penas (que chegaram a ser de doação de sangue ou a cesta
básica canina), baseada em critérios arbitrários; das relações de poder que dominam esse campo e de
uma economia processual traduzida pela ideia de aplicação antecipada de pena, sem o devido
processo judicial (ALMEIDA, 2014).
Mesmo existindo inúmeras pesquisas empíricas como a minha e outras que também
apontam as incongruências desse modelo de Justiça Negocial - entre elas, AMORIM et all, 2002;
LOBO, 2017; RANGEL, 2017 -, o campo jurídico continua reproduzindo o discurso dos seus porta-
vozes377, o que confirma a forma muito peculiar de produção do conhecimento nesses ambientes,
onde o saber não é fruto de uma reflexão, mas sim, de difusão do argumento da autoridade (KANT
DE LIMA, 2009/2-2010).
Outro fato que também despertou minha atenção enquanto visitava os Juizados Criminais,
foi que os leigos (BOURDIEU, 2007a), representados, especialmente, pela parcela da população que
frequentava essas Cortes, eram informados por uma Cartilha dos Juizados Especiais, produzida e
distribuída pelo próprio Tribunal de Justiça carioca, com a finalidade de orientar a população sobre a

376
Dentre outras observações contidas nessa pesquisa, foi interessante perceber que mesmo nos ambientes em que as
partes eram obrigadas a se sentar lado a lado, devido ao reduzido espaço físico disponibilizado para a realização dessas
audiências de conciliação, a todo o momento eram alertadas pelos conciliadores e pelos promotores de justiça (quando
estes conduziam o ato) de que não deveriam dirigir a palavra umas às outras. Esta prática tornaria impossível qualquer
diálogo entre os envolvidos, impossibilitando a formação de consensos entre eles.
377
Os raros exemplos de doutrinas que se opõe aos discursos majoritários são: Karam (2004, p. 40), quando afirma que a
transação penal é "uma negociação cujo escopo é fazer com que uma das partes tenha sempre assegurada sua satisfação,
nada tendo a perder, enquanto a outra, além de negociar sobre pressão, nada terá a ganhar". Por sua vez, Lopes Junior
(2002, pp. 99-110), para quem os Juizados Especiais Criminais contribuem "para a banalização do direito penal,
fomentando a panpenalização e o simbolismo repressor", assim, segundo este doutrinador, a Lei n. 9.099/95 teria
implementado no ordenamento jurídico brasileiro "uma política de utilitarismo processual, em que se busca a máxima
eficiência (antigarantista)", quando, ao contrário, deveria promover um debate sério sobre a descriminalização de
diversas condutas a eles submetidas. Já Salo de Carvalho (2002, p. 43), afirma que neste modelo de Justiça, assumir a
defesa das garantias significa se opor ao discurso da repressão penal, na concepção que atualmente ela acontece, a partir
das ideias neoliberais e Prado (2005), para quem o “processo penal consensual tem a capacidade ideológica de fazer
com que no discurso acadêmico e no discurso dos tribunais medidas como a transação penal, que é o método pelo qual
alguém aceita sofrer uma pena sem que o Estado demonstre a responsabilidade penal, seja vista como um direito. Em
síntese, você tem o direito de ser punido e de ser apenado sem que provem que você é culpado, sem que demonstrem a
sua responsabilidade”.

311
função destes órgãos (BRASIL, 2009). Nesta Cartilha era afirmado, dentre outras coisas, que a
aceitação da transação penal impedia a instauração do processo penal, sugerindo, com isso, que o
processo poderia ser evitado se e quando concretizada a transação. Em outras palavras, atribuía-se ao
processo uma índole negativa, como algo que deveria ser evitado e, com isso, era propagada uma
noção um tanto paradoxal que, varria para fora dos direitos dos cidadãos, o direito universal à tutela
jurisdicional, previsto no texto constitucional como um direito fundamental (artigo 5º, inciso XXXV)
e denominado pela doutrina de princípio da jurisdição.
Como lembra Amorim (2011), “a tradicional demanda reprimida por direitos no Brasil,
sobretudo para as camadas menos favorecidas, sem condições econômicas de recorrer aos Tribunais
comuns, encaminharam-se para os Juizados Especiais, onde a prestação jurisdicional era gratuita e
havia a promessa de rapidez e simplicidade no atendimento, em muitos casos, sem necessidade de
advogado, o que representavam atrativos a população sem amparo judicial”, sobrelevando o número
de jurisdicionados que buscaram aquelas Cortes.
Assim, à primeira vista, a informação divulgada por esta Cartilha poderia parecer uma
contradição, já que quem produzia e distribuía tal discurso era o próprio órgão jurisdicional, o que
poderia representar o esvaziamento de suas funções. Contudo, ao constatar, no interior desses órgãos
a existência de mecanismos de promoção funcional, quase exclusivamente pautados na quantidade de
processos considerados “resolvidos/solucionados”, pelas metas de produtividade378, traduzidas na
quantidade de processos analisados379, percebi que havia certa lógica na reprodução de tal discurso.
Afinal, as transações penais, quando aceitas, motivavam o arquivamento dos feitos que, por esta
razão, eram computados como “resolvidos/solucionados” no sistema judicial. Desse modo, a
aplicação da transação penal constituía estratégia que acelerava o encerramento dos procedimentos,
especialmente quando comparado ao trâmite desenvolvido pelo processo judicial tradicional, com
suas fases de conhecimento e julgamento, caso a transação penal não fosse aceita pelo
jurisdicionado.

378
Tais metas de produtividade foram estabelecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2010, ano em que a
Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública - ENASP, pacto firmado entre o Judiciário, o Ministério
Público e o Ministério da Justiça entrou em vigor. Mas antes disso, as metas nacionais do Poder Judiciário já
tinham sido estabelecidas no II Encontro Nacional do Judiciário, realizado em 2009. Naquele ano, foi criada a Meta 2,
com a finalidade de reduzir o estoque de processos não julgados, sendo tal compromisso renovado todo ano, priorizava,
assim, o julgamento de processos antigos, estabelecendo índices percentuais mínimos de julgamento específicos para os
diferentes segmentos e tribunais. Já a A Meta 1 foi criada em 2010, para aumentar a quantidade de processos julgados
pela Justiça, diante do número de ações judiciais que começam a tramitar todos os anos, conforme divulgado em
http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79281-justica-cumpriu-91-da-meta-de-produtividade-em-2014-e-fica-mais-celere.
379
O site do Tribunal de Justiça é possível visualizar planilhas onde são apresentados os indicadores que ingressam nessa
avaliação, realizada trimestralmente, cuja finalidade é “reduzir a taxa de congestionamento” da Justiça, conforme
divulgado em http://www.tjrj.jus.br/documents/10136/1257030/produtividade-magistrado-fase-conhecimento.pdf.

312
A ameaça maior - sugerida pelos discursos dos próprios operadores dos Juizados Criminais e
por essa Cartilha -, seria sempre o processo judicial que, no discurso constitucional, ao contrário,
consiste em garantia do jurisdicionado, especialmente no âmbito do processo penal onde o princípio
do in dúbio pro reo é considerado como consequência do princípio da presunção de inocência380.
Na prática dos operadores, não havia consenso porque, na maioria dos casos, o representante
do Ministério Público sequer estava presente a este ato, ficando tal encargo atribuído ao conciliador,
que apenas lia para o jurisdicionado a proposta de pena oferecida pelo Ministério Público para aquele
caso. Assim, restava ao suposto autor do crime a possibilidade de aceitar a transação penal,
cumprindo a pena imposta naquele “acordo” ou renunciá-la. Mas neste último caso, os conciliadores
se encarregavam de apresentar o processo judicial como um instrumento de ameaça, já que em seus
discursos, representava a possibilidade de ser aplicada uma pena maior do que aquela prevista na
transação penal. Invariavelmente, diante deste aviso, os poucos jurisdicionados que se aventuraram
em recusar a transação penal, acabavam cedendo sua vontade, diante desta ameaça. Mesmo quando o
Ministério Público participava da audiência de conciliação, não havia consenso entre as partes porque
a única coisa negociada era a imposição de pena. Não se discutia, em nenhuma das circunstâncias, a
ocorrência ou não do crime, portanto, a verdade.
Concluindo: instituída para promover o consenso, a transação penal era transformada, pela
prática dos operadores, em uma máquina de aplicação antecipada da pena, que desobrigava o Estado
do seu encargo de demonstrar a responsabilidade do imputado pela prática do crime. Desta forma, o
ideal de Justiça cedia passos a um conjunto de valores que faziam com que a variável “tempo” fosse
utilizada em favor de uma rentabilidade muito própria a uma economia do direito ou a uma economia
do campo do direito.
Por tais motivos, quando ouvi os Procuradores Regionais da República comparando, por
semelhança, a transação penal com a Colaboração Premiada, além de sugerirem que ambos os
institutos integravam o modelo de Justiça Negocial Criminal no Brasil, minha primeira reação foi de
surpresa. Até porque, quando estas entrevistas foram realizadas, já havia assistido várias audiências
em que pude verificar, a partir das declarações dos atores participantes, que também em relação à
Colaboração Premiada o que acontecia era uma forma bastante peculiar de consenso: o consenso à
brasileira.
Os raros discursos dos entrevistados que distinguiam os institutos da transação penal e da
Colaboração Premiada, apenas o faziam com base no critério quantitativo da pena prevista em lei
para os crimes aos quais seriam aplicados, como é exemplo a afirmação abaixo reproduzida:

380
Sobre a análise da categoria presunção de inocência em perspectiva comparada, ver a pesquisa empírica de Ferreira
(2013).

313
- “Eu entendo que a Colaboração Premiada é uma espécie de Justiça Negocial.
Assim como existe a transação penal na legislação há algum tempo e que seria para
crimes de menor potencial ofensivo, existe também a Colaboração Premiada. Só
que não seriam só para crimes de menor potencial ofensivo. Pelo contrário, ela é
empregada em crimes de alta complexidade, para que sejam investigados esses
crimes, normalmente praticados por uma organização criminosa.
(MPF8)

Segundo esta perspectiva, enquanto a transação penal seria aplicada apenas quando se
tratasse de crimes de menor potencial ofensivo - assim considerados, os que possuem pena de até dois
anos, conforme artigo 61, da Lei nº 9.099, de 1995 -, a Colaboração Premiada seria aplicada para
todos os crimes, inclusive os da macrocriminalidade.
A categoria macrocriminalidade é empregada pelo campo jurídico para designar os delitos
praticados no “mundo dos negócios”, opondo-se à microcriminalidade, que se destina a classificar os
crimes comuns ou crimes praticados “fora do mundo dos negócios”. No “mundo dos negócios”
estariam os crimes financeiros, tributários, falimentares, cambiais etc.
Os crimes dessa natureza são cometidos tanto por pessoas físicas quanto por pessoas
jurídicas, enquanto os da microcriminalidade são praticados por pessoas físicas (PIMENTEL, 1973,
p. 23). Tais categorias também são utilizadas para classificar os autores desses delitos conforme seu
status social e econômico. Assim, conforme Lira (1995, p. 353), os crimes da macrocriminalidade
são praticados por “pessoas de alta escolaridade e privilegiada condição social e econômica”. Trata-
se, segundo este autor, de criminosos que possuem a capacidade intelectual de praticar crimes
altamente complexos e tecnicamente bem engendrados e estes autores “são normalmente, primários,
de bons antecedentes e com prestígio social e político”, os de “colarinho branco” (LIRA, ibidem). É
curioso que tal classificação atribua ao criminoso comum a incapacidade de praticar crimes com o
mesmo grau de complexidade como os do “colarinho branco”, mas deixo tal análise para outro
momento.
Também encontrei entre os entrevistados quem defendeu a ideia de que “a fase” da Justiça
Negocial ou Justiça Consensual se iniciou a partir da Lei nº 12.850, de 2013. Esta noção está
presente no seguinte trecho da entrevista abaixo reproduzida:
- “Hoje tem uma realidade diferente porque se pode dizer que a gente vive uma fase
em que a Justiça Criminal é Consensual. Existe um campo para uma Justiça
Criminal Consensual, para uma Justiça Criminal Negociada. Há um traçado claro na
lei (de 2013) para um negócio jurídico personalíssimo, peculiar, que é este acordo de
Colaboração Premiada. Isso, só de 2013 para cá! Com essa clareza de qual é o
instituto, de como é que ele funciona, de que regras a gente tem para atendê-lo, isso é
bem mais recente”.
(MPF4)

314
Portanto, assim como visto nas declarações anteriores, também para este entrevistado a
simples previsão legal seria suficiente para garantir o emprego de uma modalidade de Justiça que
privilegia o consenso entre as partes.
Outros entrevistados enfatizaram algumas características da Colaboração Premiada, além
do aspecto negocial, como a declaração abaixo citada:
- “Aqui no Brasil é muito difícil uma pessoa ficar presa 2 anos, cumprindo pena
privativa de liberdade, quando o crime é de ‘colarinho branco’. É muito difícil!
Então, não tem como chegar na hora de negociar – e a Colaboração Premiada é um
modelo de Justiça Negocial, e dizer para o colaborador: ‘Olha você me dá todas as
provas, que eu vou ter um ganho de escala tremendo na minha investigação e você
vai ficar preso cinco anos, ok?’ Ora, para que esse sujeito vai querer fazer o acordo
de Colaboração Premiada para ficar tanto tempo preso, se ele sabe como o sistema
funciona? É claro que ele vai “preferir a sorte”! Aliás, esse é outro ponto importante:
os colaboradores só fazem acordo de Colaboração Premiada para obterem
benefícios. Isso para mim é um mantra!”
(MPF5)

Segundo este entrevistado, por ser considerado um acordo bilateral de vontades, ambos os
contratantes possuem interesses distintos ao realizarem o acordo. Enquanto para o Ministério
Público, o interessante é obter as provas que o colaborador pode oferecer, e por intermédio delas
obter um elevado “ganho de escala” na investigação que realiza, para o colaborador, o interesse está
relacionado aos “benefícios penais”. Significa, sob o ponto de vista deste entrevistado, que as penas
previstas nesses acordos precisam ser reduzidas, já que o colaborador “do colarinho branco”, que
conhece como o sistema criminal brasileiro funciona, sabe que criminosos desse status não são
punidos, ou quando o são, suas penas são muito reduzidas. Já para o órgão de acusação, significa que
as provas obtidas - em troca desses “benefícios penais” oferecidos ao colaborador -, tornarão sua
investigação eficaz.
Tornar a investigação eficaz significa reunir os elementos de provas suficientes para
conseguir convencer o juiz quanto à justa causa da acusação. Esta declaração confirma a ideia
segundo a qual a fase de produção das provas é realizada durante a investigação. Ainda que não
existam na legislação brasileira regras que conceituem e estabeleçam a diferença entre provas,
indícios e evidências, e, além disso, a categoria prova não possua estabilidade semântica no campo
jurídico brasileiro, conforme já ressaltou Figueira (2008), a confissão do colaborador constitui
prova381, no sentido estrito da palavra382, assim como a entrega de pen-drive com arquivos,

381
A confissão está prevista no título das provas no Código de Processo Penal, artigos 197 a 200; no artigo 65, inciso III,
alínea “d” do Código Penal, e em legislações extravagantes.
382
Dentre outros doutrinadores jurídicos, Tourinho Filho (2010,p. 553) afirma que as provas são os meios pelos quais se
procura estabelecer a verdade, entendendo-se ainda por prova, “os elementos produzidos pelas partes ou pelo próprio
juiz, visando a estabelecer, dentro do processo, a existência de certos fatos” (grifei).

315
documentando a operação criminosa; a fatura de cartão de crédito ou notas fiscais que comprovam a
compra de algum bem ou material, entre tantos outros exemplos de elementos probatórios entregues
pelos colaboradores, com o fim de realizarem o acordo com o Ministério Público383. Produzidos
nessa fase inicial investigatória, tais elementos probatórios fundamentam a denúncia e a sentença
condenatória, como já foi afirmado quando comparei as categorias prova e prova de corroboração.
Esta representação reforça a noção segundo a qual a Colaboração Premiada, assim como os
demais institutos alternativos brasileiros empregados pela Justiça para a administração de conflitos,
visa “queimar etapas” ou constituir um “atalho” ao processo, reduzir a carga de trabalho ou quaisquer
outros fins, menos a prestação jurisdicional apoiada na promoção consensual entre as partes. Mais
uma vez, a noção acerca do processo judicial se traduz em algo arriscado, imprevisível, “um jogo de
sorte” (ou azar) e, não, em um direito constitucionalmente garantido ao cidadão, enquanto
pressuposto de sua cidadania, como já foi afirmado em outras passagens deste texto.
A representação do instituto da Colaboração Premiada como um “atalho” para a persecução
criminal pode ser verificada na declaração abaixo reproduzida:
- “Já na Colaboração Premiada nós temos acesso a todos os fatos, de cima para
baixo. Alguém que está inserido ali dentro e que fala quem fazia o que, como e
quando. Então, a partir dali o trabalho fica muito mais fácil. Passa a ter um atalho e
tem que investigar, simplesmente, provar que houve um almoço em determinado
lugar, que houve um encontro, que houve uma ligação... Isso, quando alguém aponta
como foi e quando foi, fica muito mais fácil, do que quebrar o sigilo telefônico e
ficar procurando sem uma indicação prévia. Então, essa que fez e que tem feito toda
a diferença. A investigação fica muito mais célere e muito mais eficiente, quando se
aponta onde a gente tem que ir buscar os elementos”.
(MPF1)

O atalho que o entrevistado está se referindo constituiria as etapas iniciais da investigação,


tradicionalmente realizadas por denúncias anônimas, escutas telefônicas ou outros eventos que
deflagravam esta atividade, como mais tarde foram informados por este mesmo entrevistado. Assim,
esta representação associa a Colaboração Premiada a um modelo de Justiça negocial, cuja finalidade
seria produzir a eficácia e a celeridade dos procedimentos investigatórios.
Esta noção também foi referida por outro entrevistado, quando afirmou que:

- “Quer dizer, o instituto da Colaboração Premiada é, realmente... Eu acho que ele


veio para ficar. Além de tudo, há uma série de vantagens nessa Justiça Negocial: é a
repatriação... É a reparação da vítima, no caso, a sociedade, que ocorre muito rápido

383
A Orientação Conjunta nº 01/2018, que instrui os membros do Ministério Público quanto a suas práticas para a
celebração do acordo de Colaboração Premiada, informa no item 7 que “os principais atos do procedimento e suas
tratativas, incluindo a entrega de documentos e elementos de prova pelo colaborador deverão ser registrados nos autos
do ‘Procedimento Administrativo’, mediante atas minimamente descritivas, com as informações sobre data, lugar,
participantes e breve sumário dos assuntos tratados, ou, se possível, ser objeto de gravação audiovisual” (BRASIL,
2018).

316
e de forma muito eficaz. A possibilidade de colocar uma operação na rua com
semanas, ou às vezes, dias de investigação. Ao passo que antes, você só colocava a
operação na rua, com base em uma escuta (telefônica) que ‘queimava’, às vezes, até
dois anos...”
(MPF3)

Como afirma este entrevistado, a Colaboração Premiada representa uma prestação


jurisdicional rápida e eficaz. Eficácia e celeridade são binômios que, necessariamente, para o campo
jurídico, representam noções que se complementam, tanto que a ideia de processo justo está
vinculada ao tempo em que este é desenvolvido (representado pela categoria duração razoável do
processo)384.
Ao justificar seu argumento, o entrevistado acima referido comparou a efetividade da
investigação decorrente da Colaboração Premiada com a lentidão e a ineficácia do modelo anterior,
quando tal instituto ainda não existia. Para tanto, citou o exemplo de um caso em que atuou:
- “Vou te dar um exemplo, talvez a senhora tenha ouvido falar do Silveirinha, do
‘Propinoduto’385. É um processo de 2002 e foi gerado a partir de uma comunicação
espontânea das autoridades suíças, de que haveria fiscais brasileiros do Rio de
Janeiro, com contas que somavam em torno de 33 ou 34 milhões de dólares. Essa
informação espontânea veio por conta do ‘11 de setembro’386, porque os Estados
Unidos passaram a exigir por conta daqueles países considerados paraísos fiscais,
que tivessem regras mais rígidas de compliance387, então a Suíça fez isso. O gerente
da agência bancária daquele país, inclusive, já foi condenado e já cumpriu pena na
Suíça. Isso tem 15 anos. Essas informações vieram para o Brasil. Silveirinha, que era
o principal titular dessas contas, era subsecretário de Fazenda do Estado do Rio de
Janeiro, fiscal de renda e coordenador de campanha, tesoureiro da campanha de
Rosinha Mateus Garotinho, então aliada de Sérgio Cabral. A esposa do Silveirinha
era assessora do Sérgio Cabral, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro, quando ele ainda era deputado estadual. O que é que aconteceu? No
‘Propinoduto’... Quando o Silveirinha foi preso, Sérgio Cabral tinha uma conta

384
Esta noção pode ser vista em (ROCHA, 1993, p. 37), segundo o qual “[...] não se quer justiça amanhã. Quer-se justiça
hoje. Logo a presteza da resposta jurisdicional pleiteada contém-se no próprio conceito do direito garantia que a justiça
representada. A liberdade não pode esperar, porque enquanto a jurisdição não é prestada, ela pode estar sendo afrontada
de maneira irreversível; a vida não pode esperar, porque a agressão ao direito à vida pode fazê-la perder-se; a igualdade
não pode esperar, porque a ofensa a este princípio pode garantir a discriminação e o preconceito; a segurança não
espera, pois a tardia garantia que lhe seja prestada pelo Estado terá concretizado o risco por vezes com a só ameaça que
tornam incertos todos os direitos”.
385
Rodrigo Silveirinha era um fiscal de renda concursado e subsecretário adjunto de Administração Tributária do Estado
do Rio de Janeiro, no governo de Anthony Garotinho (1999 a 2002), além de Diretor da Companhia de
Desenvolvimento, no governo de Rosinha Garotinho. Em 2003, foi condenado a 15 anos de reclusão, além de uma
multa de R$ 180 mil reais, por lavagem de dinheiro, ocultação de bens, evasão de divisas e outros crimes contra a
ordem tributária. A via crucis percorrida entre processos e recursos judiciais está noticiada em
https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/03/o-rei-do-escandalo-do-propinoduto-virou-taxista.html.
386
Referência ao atentado ocorrido em 11 de Setembro de 2001, que atingiu as Torres Gêmeas, um complexo do World
Trade Center, em Nova York. Dentre outras notícias, verhttp://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-
09/serie-de-ataques-de-11-de-setembro-completa-17-anos.
387
Compliance, termo originário do verbo em inglês to comply, que significa agir de acordo com uma regra, uma instrução
interna, um comando ou um pedido, um padrão básico de negociação. Estar em compliance significa que a empresa, de
qualquer ramo de atividade, cumpre à risca todas as imposições dos órgãos de regulamentação, dentro de todos os
padrões exigidos de seu segmento, conforme http://www.administradores.com.br/noticias/cotidiano/afinal-o-que-
significa-compliance/123578/.

317
chamada Eficiência, em Nova York, com 3 milhões de dólares, porque ele era um
corrupto ainda pequeno, ele só era deputado, ainda não era presidente da ALERJ,
não era nem Senador ainda. Ele contratou os irmãos Chebar para que eles tirassem
esse dinheiro do nome do Cabral, o que, de fato, fizeram. Cabral virou governador e
esses 3 milhões viraram 100 milhões. Mas o fato é que o Silveirinha foi denunciado
por corrupção, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha e condenado a uma
pena de 20 anos de reclusão. Anos depois, ele foi preso preventivamente e cumpriu 1
ano e 2 meses preso. Depois, o tribunal reduziu a pena para 15 anos e extinguiu a
punibilidade do crime de formação de quadrilha. Depois, o Superior Tribunal de
Justiça, baixou a pena para 6 anos de reclusão. E aí, tem um recurso do Supremo
Tribunal Federal, que não deixa ele cumprir a pena, a execução provisória da pena.
Talvez tal decisão tenha sido do Ministro Marco Aurélio do STF e quando vier a
decisão definitiva, é muito provável que essa pena vai estar prescrita. E o detalhe é
que esses 33 milhões de dólares que estão na Suíça, desbloqueados, até hoje, não
podem ser repatriados porque não tem trânsito em julgado da sentença. Isso porque
a Suíça exige que haja o trânsito em julgado da sentença para fazê-lo. O Brasil é um
país onde os recursos processuais são infinitos para quem tem condições financeiras,
né? O processo tem anos e anos sem que haja uma solução. Silveirinha hoje é
taxista. Provavelmente gastou todo seu dinheiro com advogados. O dinheiro que
desviou está na Suíça e não se sabe se vai reverter para a sociedade. Isso já tem 15
anos. Então, o sistema tradicional não é um sistema que beneficie nem os réus, nem
o Ministério Público, nem a sociedade. Então estou te dando o exemplo do
Silveirinha porque se já existisse a Colaboração Premiada e o Silveirinha tivesse
colaborado na época, ou a esposa dele, provavelmente o Cabral já teria sido
descoberto e esse esquema todo que ele montou, do jeito que essa organização
cresceu, isso não teria acontecido, né?”
(MPF3)

Ao narrar o “caso do Silveirinha” o entrevistado utilizou este exemplo para comparar como
ele percebia o processo penal antes do advento da Colaboração Premiada, a fim de destacar a
eficiência deste instituto, podendo tal eficiência ser traduzida pela noção de uma solução mais rápida
tanto no que diz respeito à repatriação de dinheiro desviado pelos criminosos, quanto na possibilidade
de se obter a condenação.
Assim, segundo esta afirmação, o governo suíço só repatria os recursos quando há sentença
definitiva (decisão contra a qual não cabe mais recursos) e o caso narrado estava sem decisão há mais
de 15 anos (contados até a data da entrevista). Já com a Colaboração Premiada, segundo o
entrevistado, seria possível que o próprio colaborador, sendo ele o titular da conta no exterior,
devolvesse direta e imediatamente esse dinheiro, sem a burocracia de um pedido de repatriação de
divisas, que envolve dois países, tal como fizeram os “irmãos Chebar”388.
A celeridade é novamente citada quando o entrevistado defende a ideia de que os recursos
processuais - empregados quando uma das partes não concorda com a decisão judicial -, precisam ser

388
Os irmãos Renato Chebar, economista e Marcelo Chebar, doleiro, foram investigados na Operação Calicute que
apurou, entre outros crimes, o desvio de dinheiro praticado pelo ex-governador Sérgio Cabral. Os irmãos, que cuidavam
das finanças do político, celebraram acordo de Colaboração Premiada com o Ministério Público Federal que estipulou,
em uma de suas cláusulas, a devolução do dinheiro para o Brasil, conforme divulgado em
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/02/1855272-delatores-de-cabral-e-eike-cumprem-prisao-domiciliar-em-portugal.shtml.

318
contidos ou reduzidos. Esta afirmação é, ao menos, curiosa, porque tais recursos são geralmente
considerados pelo campo jurídico como garantias processuais representadas pela ampla defesa e pelo
duplo grau de jurisdição.
No entanto, de acordo com o entrevistado, a Colaboração Premiada seria eficaz,
justamente, por evitar tais recursos, sendo oportuno lembrar que em outras passagens deste texto, esta
representação acerca da dispensa dos recursos processuais também foi mencionado por outro
entrevistado.
Durante a pesquisa também foi visto que se tornou prática bastante comum entre os
operadores das Operações Lava-Jato e demais operações correlatas, a inclusão, dentre as cláusulas
do acordo de Colaboração Premiada, de renúncia do colaborador ao direito de recorrer das sentenças
penais condenatórias proferidas em relação aos fatos relativos a estes acordos. Também se incluía
nesse rol abdicatório, o direito de impetrar Habeas-Corpus e a desistência do exercício de defesas
processuais, inclusive, as relativas às discussões sobre a competência do juízo e nulidades do
processo389. Significava, portanto, que o colaborador abria mão de direitos processuais que, na
linguagem do campo jurídico constituem garantias consideradas como fundamentais e que
caracterizam a prestação de um processo justo, democrático e imparcial.
O entrevistado acima também conjecturou sobre a possibilidade de o resultado do caso
narrado ser diverso daquele ocorrido, se naquela época existisse a Colaboração Premiada e
“Silveirinha” e sua esposa tivesse aceitado colaborar com as investigações. Assim, na perspectiva
deste entrevistados, estes fatos teriam possibilitado a descoberta das práticas criminosas do ex-
governador do Rio de Janeiro, em tempo menor do que resultou. Entendi que essa afirmação
pretendia ressaltar a importância da Colaboração Premiada para a agilização dos resultados da
persecução penal, uma vez que, mesmo não existindo tal instituto, na época, poderiam ser utilizadas
outras modalidades de premiações para quem colaborasse com as investigações ou o processo, como
a confissão e a delação premiada390 -,

389
Exemplo dessa prática pode ser visto no acordo de Colaboração Premiada que um dos ex-diretores da Petrobras firmou
com o Ministério Público de Curitiba, conforme foi noticiado em https://canalcienciascriminais.com.br/delacao-
premiada/.
390
Dentre as legislações que preveem a “premiação” de quem colabora com a investigação ou com o processo, cito: a) o
Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848, de 1940), no dispositivo relativo ao crime de extorsão mediante sequestro (§ 4º, do
artigo 159), foi alterado pela Lei n° 9.269/96, que estabeleceu a premiação para quem denunciasse o crime à autoridade,
de modo a facilitar a libertação da pessoa sequestrada, sendo estabelecida a redução da quantidade da pena de um terço
para dois terços; b) a lei que dispõe sobre os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei nº 7.492, de 1986),
também conhecida como Lei do Colarinho Branco ou Lei dos Crimes Financeiros, ao estabelecer no § 2º, do artigo 25
(incluído pela Lei nº 9.080, de 95), que o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade
policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços; c) a Lei que dispôs sobre os
meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas (Lei n° 9.034, de
1995) - posteriormente revogada pela Lei nº 2.850, de 2013 -, previu em seu artigo 6º a redução da pena de um a dois
terços, “nos crimes praticados em organização criminosa, quando a colaboração espontânea do agente levar ao

319
Os discursos que defendem a celeridade do processo encontram eco em parte da doutrina
jurídica brasileira. Entre outros, Bruscato (2005, p.11), apesar de não se referir ao instituto, afirma
que “A efetividade do processo está umbilicalmente vinculada a sua rapidez e celeridade em
propiciar uma prestação de tutela jurisdicional eficaz. A morosidade nessa prestação sempre foi uma
questão a desafiar a argúcia e o talento dos cientistas do processo e dos legisladores”.
No entanto, outros autores alertam para a necessidade de um cuidado maior com o tempo no
processo penal. Dentre outros, Lênio Streck (2019) já chegou a afirmar, criticando a forma como a
Colaboração Premiada tem sido adotada, que “o processo penal fast-food”, é antigarantista, uma
referência à teoria do garantismo penal, de Luigi Ferrajoli391. Pimentel (2016), por sua vez, emprega
as palavras do jurista estrangeiro, Carnelutti (1958, p. 58), defendendo sua atualidade, quando afirma
que “A semente da verdade necessita, às vezes, de anos, ou mesmo de séculos, para tornar-se
espiga... O processo dura; não se pode fazer tudo de uma única vez. É imprescindível ter-se
paciência. Semeia-se, como o faz o camponês e é preciso esperar para colher-se... O Slogan da justiça
rápida e segura, que anda na boca dos políticos inexperientes, contém, lamentavelmente, uma
contradição in adjesto: se a justiça é segura, não é rápida; se é rápida, não é segura”.

esclarecimento de infrações penais e sua autoria”; d) a Lei que dispôs sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de
bens, direitos e valores e criou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, entre outras providências
(Lei nº 9.613, de 1998), cujo § 5º, do artigo 1º estabeleceu a redução da quantidade da pena de um a dois terços,
cumprida inicialmente em regime aberto, prevendo também a possibilidade de o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la
por pena restritiva de direitos, quando o autor, coautor ou partícipe colaborasse espontaneamente com as autoridades,
prestando esclarecimentos que conduzissem à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens,
direitos ou valores objeto do crime. Esta lei foi alterada posteriormente, pela Lei nº 12.683, de 2012; e) a lei que trata
dos crimes de lavagem de capitais ou ocultação de bens, direitos e valores (Lei nº 9.613, de 1998) e que prevê no § 5º,
do artigo 1º, a possibilidade de o juiz reduzir a pena de um a dois terços, deixar de aplica-la ou substituí-la por pena
restritiva de direitos, além de o acusado poder começar a cumpri-la em regime aberto, quando colaborar
espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de
sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.
391
Embora a ideia de contenção do Estado em matéria penal já existisse antes da teoria do garantismo de Ferrajoli, nossas
doutrinas dão destaque a sua obra, especialmente no que tange à adoção do conceito de “Estado garantista”, o qual
resulta da orientação segundo a qual o aparelho estatal teria como única e principal finalidade a efetivação dos direitos
fundamentais dos cidadãos, enfatizando a prevalência desses direitos sobre os interesses do Estado e da administração
pública(FERRAJOLI, 2002, pp.74-75).O garantismo defendido por Luigi Ferrajoli é um, dentre os diversos discursos
jurídicos existentes no campo jurídico, havendo também discursos que defendem a ideia diametralmente oposta que é a
de Estado de Polícia, segundo a qual a defesa dos interesses do Estado está acima da função de garantia dos direitos
fundamentais do cidadão. Assim, há também discursos que defendem a tese da primazia dos direitos sociais sobre os
direitos fundamentais. Contudo, Luigi Ferrajoli vem sendo adotado como referência de Teoria do Estado, por ser
considerado adepto da concepção de Estado garantista, pela qual o aparelho estatal tem como única e precípua
finalidade a efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos. Em outras palavras, este autor privilegia a primazia dos
direitos fundamentais constitucionais sobre os interesses do Estado e da Administração Pública, preconizando a
submissão do aparelho estatal ao princípio da legalidade estrita. Para ele, todos os agentes públicos estariam submetidos
às leis gerais e abstratas que disciplinam seus comportamentos e o exercício de suas funções, obedientes às garantias
dos direitos fundamentais do cidadão. O curioso é que no Brasil, as doutrinas que adotam o garantismo como discurso
existente entre nós não defendem a mudança da nossa estrutura jurídica  o que seria necessário para a adequada
aplicação deste discurso , mas apregoam somente uma reinterpretação da estrutura existente. Desta forma, tais
concepções não ultrapassam o plano da retórica.

320
O tempo do processo já foi referido por Garapon e Papadopoulus (2008, pp. 274-277),
quando comparam os processos judiciais das tradições francesa e norte-americana. Segundo eles,
enquanto na common law, o tempo no direito é formado por discursos individuais que “constroem o
tempo da nação, um tempo tão imemorial e tão inoxidável quanto a própria common law”, o tempo
da cultura jurídica francesa está preso ao passado, ao seu instante de fundação, ou seja, à Revolução
Francesa. Nessa cultura jurídica o direito e o juiz estão vinculados ao ideal fundador e ao
compromisso de um futuro sem surpresas desagradáveis; o futuro deve ser igual ao passado, quando
tudo teve início.
Também em relação ao tempo dos processos, dentre os pesquisadores brasileiros, Brito
(2013) lembra que nos cartórios por ele observados, quem controla o tempo do processo são as
partes. Já em relação aos prazos processuais, eles são próprios para as partes, mas impróprios para os
juízes e contam em dobro para os agentes públicos que também participam deles (Ministério Público
e, quando é necessário, a Defensoria Pública), significando que até a distribuição dos prazos é
desigual, dependendo sempre, de quem é a parte que o está utilizando.
O conjunto desses discursos indica que a Colaboração Premiada é representada pelos
operadores como um instrumento processual que visa dotar a persecução criminal de celeridade e
eficácia, em razão da redução de etapas que se aplicaria, caso se estivesse falando do processo
judicial tradicional, pelo fato de já na fase investigativa ocorrer a produção de provas.
É curioso, portanto, que quando se refiram ao modelo de Justiça Consensual ou Negocial
supostamente promovido pelo instituto, estes discursos deixam de fora deste modelo de prestação
jurisdicional os delatados pelos colaboradores. Equivaleria dizer que enquanto para o colaborador
aplica-se a Justiça Negocial ou Consensual, para os delatados só restaria a Justiça Tradicional e suas
idiossincrasias.
Além disso, os institutos consensuais previstos na legislação brasileira até o advento da
Colaboração Premiada, como a conciliação, a mediação e a transação penal não são alternativos,
nem extrajudiciais, mas, ao contrário, obrigatórios e fases integrantes do processo que rege a
prestação jurisdicional. E mais, nas práticas dos operadores eles não são vistos e nem empregados
como mecanismos que visam dar autonomia e poder de escolha aos cidadãos, mas sim, “como
política interna corporis dos Tribunais, visando esvaziar prateleiras” (AMORIM; BAPTISTA, 2014,
p. 16).
Aliás, como lembram Amorim e Baptista (2014) - ao se referirem à conciliação e à mediação
-, tais institutos, enquanto procedimentos alternativos ao modelo de Justiça considerado tradicional,
são apropriados em sistemas de Justiça considerados avançados, que acolhem e reconhecem a justiça
privada, realizada pela e na sociedade, como são exemplos a Alternative Dispute Resolution

321
(significando resolução de disputas alternativas ou resolução alternativa de litígios) ou a Mediation,
Arbitrage et Conciliation (mediação, arbitragem e conciliação)392. Mas isso, segundo as autoras,
parece estar longe de acontecer no Brasil, “dada a centralização em cada estrato da hierarquia de
poderes e, das descentralizações, que formam novos centros de poderes em estratos mais baixos das
393
organizações estatais” .Significa afirmar que conforme a instância a qual pertença o operador
jurídico, em cada uma das instituições que integram o Poder Judiciário, haverá uma verdade sendo
produzida e esta apenas será revogada por outra autoridade, mas de hierarquia superior, cabendo a
esta sempre dizer a “verdade real” sobre os fatos em investigação ou em julgamento (FERREIRA,
2013).
A tradição processual brasileira contribui para a dificuldade de adoção de tais institutos
alternativos, que até poderiam desafogar a Justiça, já que, até hoje, não considera devida aos cidadãos
a garantia do devido processo legal, que é mantida como uma concepção determinada pela jurisdição.
Assim, “Regido por legislação estatal para um território nacional imenso e diferenciado, as leis
processuais cíveis e penais oferecem garantias ao Estado e não a seus cidadãos. Daí advém a noção
de ‘tutela’394 sobre os jurisdicionados, pois os procedimentos usados nas práticas processuais não
alcançam a categoria de leis protetoras do cidadão acusado civil ou penalmente” (AMORIM e
BAPTISTA, idem, pp. 301-302).
Embora as autoras examinem os institutos utilizados no âmbito da Justiça cível, entendo
oportuno empregar suas observações no contexto aqui examinado, já que de acordo com a declaração
do entrevistado acima citada, o mesmo parece estar acontecendo em relação às Colaborações
Premiadas. Até porque, este instituto é concretizado em momento anterior à instauração do processo

392
Sobre as formas alternativas não estatais de resolução de conflitos, ver Kant de Lima (1997) e Nader (1996). Tanto a
conciliação, quanto a mediação ou até mesmo a arbitragem, são técnicas que antecedem e não se inseriam na
competência do poder judicial. Aliás, como lembra Foucault (2002, p. 64), o fato de os mais poderosos buscarem o
controle dos litígios judiciários, impedindo que este se desenvolvesse, espontaneamente, entre os indivíduos, resultava
do interesse desses poderosos se apossarem da circulação litigiosa dos bens, como também da circulação judiciária,
concentrando, assim, as armas e o poder judiciário em suas mãos.
393
As autoras citam Cappelletti e Garth (1988, p. 71), doutrinadores estrangeiros empregados pelo campo jurídico
brasileiro, devido à tradição que nossos autores seguem ao aproximarem nossas experiências locais à realidade dos
autores estrangeiros. Assim, segundo Amorim e Baptista (idem) estes autores, baseados em antiga pesquisa realizada
em vários países com diferentes níveis de desenvolvimento sugerem uma fase de justiça avançada, chamada de "terceira
onda" do acesso à justiça, que, após duas ondas anteriores, em que leis e tribunais teriam sido criados e estariam
plenamente institucionalizados na sociedade, surgiriam condições para o estabelecimento do que chamam de
‘mecanismos privados’ realizados na sociedade e, certamente, reconhecidos pelos tribunais. Porém, ainda hoje, o acesso
à Justiça e ao direito, assim como demais direitos da liberdade individual (como por exemplo a garantia ao devido
processo legal e o direito de votar) ainda seguem limitados a modelos tradicionais, vigentes no Brasil quando o escravo
era coisa e não pessoa, ou trabalhadores brancos pobres, eram excluídos de direitos individuais”.
394
As autoras explicam que a categoria tutela possui significado que recai sobre os direitos, no sentido de que “o Estado
tutela a vigência dos direitos para proteger os cidadãos, sobretudo para assegura-lhes os direitos fundamentais, calcados
na liberdade individual. Contudo, as leis processuais - e, sobretudo as práticas judiciais - acabam por enfatizar uma
tutela, não sobre os direitos, mas sobre a pessoa do jurisdicionado, no ato da prestação jurisdicional, ou seja, dos
serviços judiciais prestados aos cidadãos” (AMORIM e BAPTISTA, idem, p. 301).

322
judicial, e, de certa forma, para o colaborador, trata-se de um expediente que antecipa a aplicação da
pena e impõe a admissão de sua culpa.
Não é de hoje que o grande número de processos, a morosidade em sua apreciação e a falta
de acesso à Justiça constituem as maiores e mais graves críticas feitas a este serviço público. Na
prática, contudo, nem mesmo a celeridade - imposta por ritos abreviados do processo e a aplicação de
institutos ditos como consensuais, como a transação penal -, a exemplo dos apreciados pelos
Juizados Especiais Criminais, constituiu eficiência, como foi visto em minha pesquisa anterior
(ALMEIDA, 2014).
Além da celeridade do processo, a Justiça Negocial consubstanciada no acordo de
Colaboração Premiada, foi utilizada também como instrumento de classificação das pessoas, como
pode ser visto no trecho de uma das entrevistas, abaixo transcrito:

- “Então, é assim, é uma Justiça Negocial que tem sido feita, né? E que gera um
resultado muito rápido e útil para a sociedade.(...)A gente tem essa experiência nos
crimes de menor potencial ofensivo e naqueles crimes com pena mínima de 1 ano de
reclusão, em que se pode oferecer a suspensão condicional do processo. Não deixa
de ser uma espécie de Justiça Negocial, em que você tem ali e pode até estipular a
prestação de serviço ou até multa civil. No entanto, com a Colaboração Premiada, a
atribuição do Ministério Público aumentou, porque passou a ser para qualquer tipo
de crime e desde que a pessoa traga benefícios para a sociedade e que seja... E que
determine que seja interessante fechar esse acordo com ela. A gente tem a convicção
de que esses acordos de Colaboração Premiada são um marco na aplicação do
direito penal, porque, até então, o que se tinha era esse processo... Estou falando dos
crimes de “colarinho branco”... Não é a realidade do Estado... O Estado tem outros
crimes, crimes de violência. Mas na realidade dos crimes de “colarinho branco”,
crimes macroeconômicos, que envolvem “o pessoal do andar de cima”, o que a
gente percebe é que raramente, ou quase nunca, ou talvez nunca, o corrupto de
“colarinho branco”, do “andar de cima” tenha cumprido pena”.
(MPF3)

Este entrevistado considera que os representantes do Ministério Público já possuem


experiência no modelo de Justiça Negocial, porque antes esta modalidade de Justiça se destinava à
aplicação da transação penal e da suspensão condicional do processo, mas tal discurso não se
coaduna com o que apontaram as pesquisas de campo relativas a esta atuação, como já foi referido
acima.
Também na percepção deste entrevistado, a Colaboração Premiada, apesar de se inserir
neste modelo de Justiça Negocial, apenas destina-se ao “pessoal do andar de cima”, assim
considerados os autores dos crimes de “colarinho branco”, que segundo este entrevistado,
“raramente, ou quase nunca, ou talvez nunca, tenham cumprido pena” no país. Ou seja, para este
entrevistado a Colaboração Premiada, ainda que associada à Justiça Negocial, teria como objetivo

323
impor a penalidade e a esta parcela da sociedade que, até o surgimento deste instituto, vinha se
mantendo impune diante das infrações cometidas.
Este argumento iguala os infratores, não pelo tratamento juridicamente isonômico, com
referência aos direitos dos acusados, mas, sim, com referência à sujeição penal (MISSE, 2008)
uniforme, que resulta na falta de direitos e no medo de perdê-los, como fator igualador.
Quando os membros do Ministério Público oferecem ao “pessoal do andar de cima” pena
muito abaixo da previsão legal, estão, mais uma vez, acentuando a desigualdade jurídica dos
cidadãos, já que tal tratamento não alcança o “pessoal do andar de baixo” da sociedade brasileira e
que representam a massa carcerária de criminosos comuns do país, assunto que voltarei a mencionar,
logo em seguida.
A declaração do entrevistado é interessante por vários motivos. Primeiro, por enfatizar essa
distinção entre os que pertencem ou não à frequente clientela do sistema criminal brasileiro, tornando
público tal tratamento, que tem origem na própria atividade do entrevistado e demais membros do
Ministério Público. Segundo, porque confere a um instituto com índole negocial a ênfase da
característica punitiva, prática tradicional no sistema de justiça criminal brasileira. Com isso, esvazia
a possibilidade de se afirmar a forma de administração do conflito por meio do consenso, o que
aparentemente é um paradoxo, já que o instituto da Colaboração Premiada estaria, segundo os
discursos dos próprios operadores, inserido em um modelo de Justiça Negocial. O conflito, em si, é
relegado para o segundo plano, “varrido para debaixo do tapete”, porque prevalece a ideia de
punição, o que significa afirmar que o conflito retorna para a sociedade (AMORIM, 2013).
Outras representações se somaram à noção contratual do acordo de Colaboração Premiada
e ao papel do colaborador nesse modelo de Justiça Negocial, ao longo das entrevistas. Assim é
exemplo a seguinte declaração:
- “... a Colaboração Premiada é uma ferramenta que hoje faz parte do direito
moderno, o Direito Negocial. Se nós podemos fazer um acordo no processo civil e
eventualmente, acabar com uma querela que pode durar anos, por que isso não pode
ser feito no processo penal? Por que o cidadão que enveredou pelo caminho do crime
tem que morrer refém do silêncio, tem que morrer inserido em uma organização
criminosa, porque não pode atravessar para o outro lado e se mostrar arrependido e
dizer: quero mudar de vida? Por que não?”
(MPF1)

Dentre as declarações acima destaco a que afirma que a Colaboração Premiada consistiria
em instrumento por meio do qual o colaborador “arrependido”, “passaria para o outro lado” e
“mudaria de vida”. Esta forma de representar a confissão, associada ao arrependimento, minimiza as
hipóteses em que os colaboradores confessam o crime apenas para receberem os “benefícios penais”

324
oferecidos pelo Ministério Público Federal, pois como informou outro entrevistado citado acima, “os
colaboradores só fazem acordo de Colaboração Premiada para obterem benefícios”.
O curioso é que ambas as representações correlacionam a Colaboração Premiada com a
Justiça Negocial ou Consensual. A declaração que afirma ser a Colaboração Premiada um
instrumento que permite ao colaborador “passar para o outro lado”, admitir (confessar) aquilo que fez
e se mostrar arrependido, querendo “mudar de vida” é interessante porque atesta uma seleção baseada
em critérios conectados à crença em um poder divino de quem julga, já que capaz de transformar o
indisciplinado em disciplinado. Esta divindade pode ser comparada às manifestações encontradas na
prática inquisitorial do Tribunal do Santo Ofício (conforme FOUCAULT, 2004; Lima, 1999).
Esta representação também pode ser vista em um diálogo produzido durante uma das
audiências que assisti, quando um réu, ao ser interrogado pelo juiz declarou: “Ah! Se arrependimento
matasse...”, sendo imediatamente “aconselhado” pelo magistrado no seguinte sentido: “A hora é essa!
É um bom caminho! O processo é uma chance para o senhor se livrar dessa culpa” (JF).
Esta afirmação, assim como a declaração do entrevistado, acima reproduzida remete também
ao que Lima (1999; 2001); Kant de Lima (1997 e 1999) e Kant de Lima e Mouzinho (2016), entre
outros autores, já comentaram sobre a culpa, a confissão e as práticas dos inquiridores dos Tribunais
do Santo Ofício da Idade Média e que curiosamente permanecem nos procedimentos investigatórios
que inauguram o processo penal brasileiro. Vale lembrar que na Colaboração Premiada o
colaborador não apenas confessa a prática do crime, como delatar seus coautores e é obrigado a
contar tudo o que sabe, como já foi visto no capítulo anterior.
Outro destaque, dentre as diversas declarações dos entrevistados relacionadas à categoria
Justiça Negocial, refere-se, justamente, às que contrariam os discursos jurídicos que compõem a base
da formação profissional desses operadores, bem como integram as bibliografias utilizadas em
concursos públicos para o ingresso na carreira jurídica. Refiro-me, inicialmente, à autonomia da
vontade, como caracterizadora da validade de todo ato jurídico, presente em Caio Mário (1997) e à
teoria do agir comunicativo, de Jürgen Habermas (2003), ambas as doutrinas referenciadas e
reverenciadas pelos professores dos cursos de graduação em Direito, logo nos primeiros semestres
desses cursos395.
Em linhas gerais, o civilista brasileiro Caio Mário da Silva Pereira (1997, pp. 327-331), por
exemplo, afirma que determinados atos humanos são caracterizados como atos jurídicos quando
resultam de ações humanas comandadas pela vontade, as quais se revestem das condições impostas

395
É, portanto, peculiar que alguns sites mantidos por membros do Ministério Público Federal, com dicas para concursos
públicos de ingresso na carreira, relacionam a doutrina de Caio Mario dentre as que são requeridas nesses concursos, a
exemplo do que pode ser visto em http://www.edilsonvitorelli.com/2013/06/bibliografia-para-o-concurso-do-mpf.htmle
https://www.juriseconcursos.com.br/26o-concurso-mpf-dicas-examinadores-bibliografia-e-muito-mais/.

325
pelo direito positivo. Ainda segundo este autor, todo ato jurídico se originaria de uma emissão de
vontade, de tal forma que a autonomia da vontade significa que o indivíduo é livre de, pela
declaração de sua própria vontade - que esteja em conformidade com a lei -, criar direitos e contrair
obrigações. Em seguida, este doutrinador aponta os defeitos do negócio jurídico, referindo-se aos
“vícios do consentimento” (entre os quais estariam o erro, o dolo e a coação, ladeados pelos “vícios
sociais”, que seriam a simulação e a fraude), além de esclarecer que quando é rompido o binômio
vontade-norma legal, o ato se forma, porém maculado ou inquinado de um defeito, constituindo tais
vícios na ruptura do equilíbrio dos elementos essenciais ao negócio jurídico, causando sua invalidade
(PEREIRA, ibidem, pp. 350-380).
As concepções de Habermas (2003, p. 36), por sua vez, se aplicam às sociedades onde as
pessoas são consideradas iguais, pois para este autor, é primordial que na comunicação todos os
interessados possam participar do discurso e que todos tenham oportunidades idênticas de
argumentação, ou seja, tal noção está estruturada em torno da ideia de emancipação humana. O
filósofo alemão também destaca a importância da linguagem e do discurso no processo de integração
social não violento, declarando que a comunicação é a busca incessante de um entendimento entre as
pessoas, a qual consiste em instrumento para a realização do consenso. Por outro lado, segundo este
ponto de vista, o consenso não nega a heterogeneidade, a diferença, a individualidade dos sujeitos,
mas, se trata de um mecanismo capaz de proporcionar uma unidade da razão, na multiplicidade de
vozes.
Isto não significa que a teoria habermasiana despreze o dissenso, a heterogeneidade, pois
estes são vistos como pressupostos de todo processo de interação. De acordo com o autor, a
racionalidade comunicativa explicita a relação social entre pelo menos dois atores que, através da
argumentação, chegam a um consenso. Vale dizer, o risco do dissenso, segundo Habermas (idem, pp.
40-41) estará sempre presente em uma teoria comunicativa, pois é inerente ao processo do diálogo e
se materializará quando o outro participante do diálogo puder “dizer não!”, livremente.
É preciso salientar que enquanto o autor brasileiro emprega uma análise distante da realidade
presente nas práticas dos procedimentos brasileiros realizados nas delegacias, nos tribunais e nos
gabinetes do Ministério Público, o autor estrangeiro citado, por sua vez, fala de um ponto de vista
filosófico sobre uma sociedade que pressupõe a participação de pessoas que possuem o poder “de
dizer não”. Para Habermas (idem, p. 54), quando as pessoas chegam a um acordo – não imposto, mas
refletido e consciente, mesmo tendo que fazer concessões – o entendimento daí resultante é o que há
de mais benéfico e viável para uma determinada sociedade, funcionando o diálogo como um
mecanismo necessário para se garantir a liberdade individual.

326
Vale dizer, a teoria do agir comunicativo, criada pelo autor, defende a ideia de uma liberdade
comunicativa plena, imprescindível ao Estado Democrático de Direito e que se propõe a, em última
instância, garantir efetivamente liberdades subjetivas/individuais iguais. Ou seja, tal racionalidade
argumentativa pressupõe uma sociedade que se vê como uma sociedade composta de cidadãos iguais
perante a lei e o Estado. Esta concepção, ainda que não tenha compromisso empírico, parte do ponto
de vista de uma sociedade composta por interlocutores que se veem em pé de igualdade diante do
Estado e onde o tratamento jurídico privilegiado e desigual não é admissível no espaço público, como
acontece entre nós.
Como tais doutrinas são empregadas, especialmente, quando se examina a validade dos atos
jurídicos e, provavelmente, foram estudadas pelos entrevistados, em algum momento de suas
trajetórias acadêmica ou profissional, destaquei, dentre as diversas entrevistas colhidas relacionadas a
tais análises e sua aplicação aos acordos de Colaboração Premiada, as que se seguem abaixo:

- “Há formas diferentes de se estabelecer o acordo. O direito não produz consenso.


Não é necessário de se ter concordância em relação à validade. Há que se ter
concordância em relação à adequação. Pode haver divergência quanto ao que é
válido, mas convergência em relação ao que é adequado. Do ponto de vista do
Direito, que é uma pragmática, na solução de problemas concretos da vida, basta o
entendimento. Não é necessário haver o consenso. Mas aquela situação
habermasiana de fala vai continuar indispensável. É necessário que se fale a mesma
língua, que se esteja livre de coerção. Livre de manipulação. É necessário ouvir
todos os potencialmente afetados. É preciso que haja intelegibilidade e que não haja
coerção, nem manipulação. Se se limita o número de interlocutores, se não houver
acesso igual à informação, se houver coerção, ou se houver manipulação, o
entendimento que sai daí não é qualificado”.
(MPF4)

Nesta declaração, o entrevistado atribui ao Direito a responsabilidade de não produzir o


consenso, o que poderia sugerir, paradoxalmente, a ideia de que institutos como a transação penal ou
a Colaboração Premiada - citadas por ele e seus colegas de profissão, como práticas que integram o
modelo de Justiça Negocial - não fossem admitidas pelo nosso sistema de normas e instituições
jurídicas. Assim, entendi que o entrevistado se referia ao fato de que a simples positivação destes
institutos no Direito não seria capaz de produzir o consenso, já que sua realização dependeria das
interpretações e práticas dos atores jurídicos.
Ainda de acordo com o entrevistado, em relação ao acordo de Colaboração Premiada, as
partes não precisam concordar quanto a sua validade, mas sim, quanto a sua adequação. Ao ouvir esta
declaração, a princípio, pensei que poderia significar que o entrevistado estivesse afirmando a
possibilidade de serem entabulados acordos cujos conteúdos não fossem capazes de produzir os
efeitos esperados pelas partes, mas que fossem adequados aos propósitos da persecução penal, à

327
descoberta de um criminoso etc., lembrando-me do significado atribuído pelo campo jurídico à
categoria validade, enquanto atributo de algo que tem capacidade de produzir resultados. Quando
perguntei ao entrevistado o que ele estava querendo afirmar, tal ideia foi confirmada, já que ele
respondeu que:
- “Significa que a gente está de acordo com a solução (o resultado), ainda que a
gente não esteja de acordo com as razões pelas quais a gente converge”.
(MPF4)

Esta afirmação, aliás, coincide, com as práticas do campo jurídico. Cito como exemplo a
definição das decisões colegiadas dos Tribunais Superiores, onde também não há consenso, como
demonstrou De Seta (2015). Segundo a autora, ao se referir às decisões do Supremo Tribunal
Federal, o resultado do julgamento - pela procedência ou improcedência do pedido -, nem sempre se
coaduna com uma condução majoritária da fundamentação apresentada para apoiar a decisão. O
consenso pela procedência do pedido abrange, com frequência, fundamentos diversos que não se
relacionam entre si, não construindo uma fundamentação que legitime a decisão obtida. Como cada
Ministro julga conforme seu livre convencimento, as fundamentações expostas nos julgamentos não
correspondem às decisões proferidas, na medida em que não demonstram um resultado da maioria ou
uma unanimidade consensual. Para ela “o autor atento, ao buscar na fundamentação o resultado
majoritário ou unânime afirmado, não encontra consenso informador da decisão” (DE SETA, idem,
pp. 101-102).
Voltando à declaração do entrevistado acima reproduzida, ressalto que é afirmado por ele
que na prática, para a concretização do acordo bastaria “o entendimento”, não sendo necessário haver
“o consenso’. A originalidade desse relato refere-se à aproximação que o entrevistado faz entre as
categorias entendimento - segundo a lógica presente no cotidiano das práticas jurídicas brasileiras - e
“understanding”, no sentido empregado por Habermas (2002) e relativo a outras tradições jurídicas.
O entendimento - enquanto categoria nativa do Direito -, tem uma ligação com o
entendimento (do fato, da causa) a que chega o juiz, porque, afinal, as práticas das partes envolvidas
no processo judicial se dirigem à convencer o juiz acerca de suas respectivas pretensões. Vale dizer,
o entendimento que o juiz elabora e que forma seu livre convencimento396 e que difere do
entendimento das partes. Assim, cada ator do processo tem o seu entendimento; não há um consenso
entre eles sobre o que poderia constituir a verdade (e a solução) para o caso em exame. Esta solução
é dada pelo juiz, em razão do seu argumento de autoridade, ou, como já afirmou Mendes (2011),
porque no campo jurídico é ele quem ocupa o topo da hierarquia na dicção do direito.

396
Sobre a categoria livre convencimento motivado do juiz, ver Mendes (2011).

328
O entrevistado se refere, portanto, ao sentido dado à categoria entendimento, à luz do que é
retirado das práticas jurídicas brasileiras, onde está inserido. Em outras palavras, a análise do
entrevistado é feita a partir da categoria nativa. Assim, difere, inclusive, da categoria compreensão
que não significa apenas a criação de um consenso, mas também a ideia de que os participantes do
diálogo compreendem os diferentes contextos em que estão inseridos reciprocamente e, a partir dessa
compreensão, chegam ao consenso, como acontece, por exemplo, nas negociações entre as partes da
“plea bargaining” norte-americana. Neste caso, não há uma busca pela verdade real como acontece
entre nós. Tanto a verdade acerca do conflito examinado nesse modelo estrangeiro, quanto a solução
escolhida para o conflito, resulta do consenso produzido pelas partes nele envolvidas (GARAPON e
PAPADOPOULOS, 2008; BISHARAT, 2014;2015; KANT DE LIMA, 2009/2-2010; FERREIRA,
2013).
É interessante, portanto, que o entrevistado cite a orientação do filósofo alemão quando se
refere a uma categoria - o consenso -, que é empregada em um estudo que explicita a diferença
existente entre a ação orientada por interesses individuais e a ação baseada em interesses consensuais
produzidas por um grupo social. No primeiro caso, não há espaço para se ouvir os argumentos do
outro, enquanto no segundo, além desse espaço existir, busca-se, em conjunto, quais os melhores
objetivos que podem ser alcançados para a vida em sociedade. Tanto que para Habermas (2003b), o
entendimento mútuo é compreendido como sinônimo de consenso. Vale dizer, o entendimento mútuo
é resultado do consenso entre dois ou mais pontos de vista diferentes, de tal forma que é representado
pelo filósofo como a realidade aceita pela sociedade.
Ainda segundo Habermas (2002, p. 12), quanto mais complexos os diálogos entre os atores
sociais dentro de um espaço imparcial, maior o seu grau de desenvolvimento e sua aproximação com
a “verdade comum” (entendimento mútuo). A teoria do agir comunicativo, que leva ao entendimento
mútuo, segundo o autor, se funda em regras, dentre as quais ressalto a de o ouvinte reconhecer e
entender o conteúdo falado (as proposições precisam ser justificadas e inteligíveis) e sua autonomia
em poder contestá-lo. Em seguida, aquele que falou deve refletir sobre tais argumentos contestados e
buscar uma nova afirmação e contextualização da realidade (as proposições precisam ser justificadas
e se referirem a uma realidade objetiva e racional). As fusões das diferentes proposições precisam
atender a uma realidade objetiva e contextual. O entendimento mútuo, portanto, seria resultado do
agir comunicativo, uma comunicação livre, racional, crítica e consensual397.

397
De acordo com o filósofo, o agir comunicativo depende de contextos situados que, de sua parte,
representam recortes do mundo da vida concernentes aos participantes da interação. “É tão somente esse
conceito de mundo da vida – tomado como conceito complementar ao agir comunicativo por conta de
análises do saber contextual estimuladas por Wittgenstein – que assegura a ligação ente a teoria da ação e
conceitos básicos da teoria social” (HABERMAS, 2012, p. 485). O mundo da vida é definido pelo autor com
329
Mais uma vez é preciso salientar que o autor fala de um ponto de vista filosófico sobre uma
sociedade que pressupõe a participação de pessoas que possuem o poder “de dizer não”. Para
Habermas (idem, p. 54), quando as pessoas chegam a um acordo – não imposto, mas refletido e
consciente, mesmo tendo que fazer concessões – o entendimento daí resultante é o que há de mais
benéfico e viável para uma determinada sociedade, funcionando o diálogo como um mecanismo
necessário para se garantir a liberdade individual.
Há que se problematizar a citação de Habermas pelo entrevistado e também pela doutrina
jurídica brasileira para tratar do consenso entre nós, tendo em vista que nosso ordenamento suporta
institutos jurídicos que traduzem mecanismos hierarquizados e privilégios, de que são exemplos,
dentre outros, as categorias da hipossuficiência, os privilégios processuais e o instituto da prisão
especial.
Ao citar as orientações do filósofo alemão, referindo-se aos seus estudos sobre a teoria da
ação comunicativa e a formação de consensos, o entrevistado acima citado, aproxima a realidade
alemã da brasileira, como se os estudos do autor estrangeiro pudessem ter aqui a mesma aplicação e
resultado, sem considerar que a teoria foi elaborada em outro contexto histórico e social. As
diferenças entre os momentos históricos, as conjunturas políticas, as culturas locais e os respectivos
sistemas jurídicos não foram considerados em sua análise.
Ora, o direito, como lembra Geertz (2006), é um produto de cada sociedade, de tal forma
que não é possível pensá-lo como um saber composto por um conjunto de regras universais
interpretadas também de forma universal, válido em qualquer parte do planeta e transmutável de uma
sociedade para outra. Desta forma, se o mesmo conjunto de normas for adotado em sociedades
diferentes, certamente ganharão significações diferentes em cada um desses contextos sociais.
Quando indaguei ao entrevistado se as realidades brasileiras e alemãs não estariam distantes,
sua resposta foi:
- “As teorias normativas não existem para serem realizadas. Por isso, é uma situação
ideal de fala. Não é que a gente ache que isso vai ser possível. A gente tangencia.
Vai se aproximando. O quanto distante o Brasil está dessa situação de fala? O quanto
distante está a Alemanha?
Com certeza estamos mais distantes do que a Alemanha. Embora Habermas tenha
construído a teoria na Alemanha, com base na realidade da sociedade alemã, isso não

base em três elementos estruturais: cultura, sociedade e pessoa. A cultura significa o conjunto de
conhecimento que possuem os atores quando procuram a compreensão sobre algo no mundo; a sociedade é
compreendida como o conjunto de diretrizes legítimas que regulam as relações desses atores com o grupo
social, e a noção de pessoa é traduzida pelas competências que dotam os atores para falarem e agirem, ou
seja, habilidades que constroem sua própria personalidade. Para Habermas, existe uma interação direta entre
ação comunicativa e mundo da vida, na medida em que a primeira reproduz as estruturas simbólicas do
segundo. Assim, no que se refere ao entendimento mútuo, a ação comunicativa tem a finalidade de divulgar e
renovar o saber cultural.

330
nos torna menos... Não quer dizer que essa teoria não seja útil aqui no Brasil. Acho
até que podemos introduzi-la no Brasil porque nós somos ocidentais e modernos.
Nossa cultura é ocidental. Então, assim, nós estamos no mesmo ambiente cultural
que a Alemanha, grosso modo. Nós fazemos parte do ocidente moderno. A gente não
está inserido igual, porque a gente está na periferia e eles estão no centro (risos).
Eles dominam e a gente é dominado. Então é claro que, embora a gente faça parte do
mesmo contexto, a gente não entra igual nessa “festa”. Eles são os convidados e nós
somos os serviçais (risos). Mas nós estamos na mesma casa. A gente vive
experiências em comum, o que permite que o empregado aprenda com o convidado e
vice-versa”.
(MPF4)

Com se vê, para o entrevistado, o consenso habermasiano consiste em um ideal, uma utopia,
que não vai ser possível alcançar, ainda que perceba os dois contextos sociais distintos bem
próximos, afirmando que todos estão “na mesma festa” e que pertencem ao mesmo continente e
ambiente cultural, além de conviverem o mesmo dado temporal: a contemporaneidade. Apesar das
representações que desigualam as duas sociedades e que estão bem marcadas nessa declaração:
centro x periferia; dominante x dominado; convidados x serviçais, o entrevistado entende que a
convivência “na mesma casa” ou “na mesma festa” pode permitir a aprendizagem e a troca de
experiências. Sem se referir que parâmetros empregou nessa classificação (financeiro/econômico,
cultural, jurídico), o entrevistado hierarquiza, tornando inferior, a sociedade da qual ele mesmo faz
parte e, ainda que tenha tentado reduzir essa submissão, não reduz a ideia de estratos sociais distintos.
Assim, mais uma vez, se afasta das expectativas de Habermas.
No trecho desta entrevista abaixo, evidencia-se a representação comum do campo jurídico a
respeito da sociedade brasileira:
- “É a nossa cultura paternalista. De a gente nunca confiar que as pessoas sejam
capazes de saberem o que é melhor para elas. A gente tem muito essa desconfiança:
o eleitor não sabe votar; eu preciso que o juiz diga o que é melhor para as partes... A
gente tem ... Parte dessa nossa cultura refratária à busca do consenso; da
composição. As formas negociadas de Justiça têm a ver com essa nossa desconfiança
na autonomia das pessoas, que é um pouco produto de um elitismo. No fundo isso é
resultante de uma mentalidade arcaica, de um país que foi escravocrata; de um país
que teve uma nobreza tardia; um país que foi colonizado por uma nação
aristocrática, por um rei... Então a gente tem uma sociedade muito elitista, muito
hierarquizada e que ainda tem esse ranço elitista de achar que algumas pessoas
sabem o certo e o errado, mas não todos. Então, haverá sempre um técnico, um
magistrado, uma vanguarda, um líder, um mito. É sempre o outro, que está melhor
preparado para dizer o que é o bem do povo; o que é o bem da maioria. De acordo
com essa ideia, o povo, sozinho, não sabe o que é bom para ele. A classe
trabalhadora, sozinha, não sabe o que é melhor para ela. Precisa de uma vanguarda,
de um líder, de um mito. Tem sempre alguém acima e além, que vai nos dizer o que
fazer, porque sozinhos nós não conseguimos decidir. A gente precisa do grande pai,
quando eu digo que a sociedade é paternalista. A gente precisa de um “paizão” para
dizer o que é certo e o que é errado. Porque nós, infantilizados, não sabemos o que é
bom para a gente”.
(MPF4)

331
Segundo este entrevistado, a sociedade brasileira é refratária ao consenso já que seus
cidadãos são vistos como imaturos, infantis e dependentes de alguém que lhe guie e resolva seus
problemas. Mesmo utilizando ironia, esta declaração revela como este operador representa a
sociedade da qual ele próprio faz parte. Significa afirmar que para este operador os cidadãos
brasileiros merecem ser tutelados, pois se pensam como pessoas incapazes de agirem por si mesmos,
inaptos a fazerem escolhas e tomarem decisões. Essa forma de reduzir a capacidade volitiva
(vontade) dos brasileiros, reproduz a ideia segundo a qual os operadores jurídicos - incluindo o
entrevistado - não veem os cidadãos brasileiros como iguais.
Esta afirmação contém moralidades que afastam a noção de igualdade, enquanto fundamento
de uma democracia que poderia acontecer no Estado brasileiro, mantendo nebulosas, casuais e sem
poder de convencimento científico os fundamentos em que estão firmadas, na medida em que, além
de ratificar a naturalização do discurso da desigualdade, denota concepções ligadas ao próprio papel
do aplicador da Colaboração Premiada, o qual se qualifica como isento dessas características:
alguém que não precisa de um mito, um pai, ou um líder para lhe representar, ou falar em seu nome.
Isto significa que enquanto o cidadão brasileiro é percebido como alguém débil - social, econômico,
política e moralmente -, este operador, ao contrário, se vê como quem possui qualidades antagônicas
a estas e, portanto, acima dele.
Esta forma de representar os brasileiros como hipossuficientes (AMORIM, 2011) decorre
das representações que os operadores fazem da sociedade em que estão inseridos. Isto porque, a
sensibilidade do campo jurídico brasileiro não percebe a igualdade jurídica como uma garantia de
tratamento jurídico uniforme dispensado pelo Estado a todos aqueles que estão ligados a ele pelo
vínculo da cidadania, como poderia sugerir a interpretação literal do texto constitucional quando
afirma que todos são iguais perante a lei, como Mendes (2011) já alertou.
Afinal, de acordo com esta autora, no Brasil, a regra da igualdade jurídica é atualizada
segundo a máxima proferida por Rui Barbosa, um jurista renomado do final XIX e início do século
XX, segundo o qual “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos
desiguais na medida em que eles se desigualam”. Esta atualização afasta a noção de igualdade
jurídica da ideia de tratamento uniforme, como aconteceu em países que atualizam o modelo do
Estado, Democrático de Direito de forma mais apurada. De acordo com a autora citada, é a
naturalização da desigualdade entre nós que confere a atualidade da regra da igualdade de Ruy
Barbosa.
Este jurista, segundo a autora, promoveu uma interpretação do jusnaturalismo às avessas,
uma vez que esta escola afirma a igualdade entre os homens em razão da sua natureza, isto é, todos
são iguais porque a natureza os fez homens. Ruy Barbosa, no entanto, no discurso que escreveu e

332
proferiu como paraninfo dos formandos da turma de 1920, da Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco, em São Paulo - conhecido como Oração aos Moços -, empregou raciocínio contrário,
justificando a desigualdade social existente entre os homens conforme as variações da natureza. Vale
dizer, o autor atrelou a ideia de desigualdade jurídica à ideia de diferença, afirmando que a
desigualdade jurídica seria resultado da “natureza” das coisas (MENDES, 2004)
Como lembram Marshall (1965); Kant de Lima (2009), Figueira e Mendes (2012), entre
outros, em outras sociedades igualitárias, ao contrário do que acontece no Brasil, a igualdade jurídica
é universal e é o que torna admissível o convívio isonômico das desigualdades impostas pelo
mercado, permitindo a formação de subgrupos de cidadãos que se reúnem em face de características
fáticas semelhantes. Por mais paradoxal que possa parecer, é justamente a ideia de isonomia jurídica
formal que possibilita o aparecimento do direito à diferença. Isto porque, o modelo individualista do
qual foi gerada tal concepção, não impõe uma “convergência homogeneizadora”, já que possibilita a
inclusão dos “diferentes” neste sistema social, onde estes podem e devem defender os seus direitos,
amparando-se na igualdade jurídica atribuída a todos e reconhecida por este sistema. Assim, todos
aqueles que estejam vinculados a determinado Estado, presume-se que tenham a possibilidade
igualitária de defender seus interesses perante os tribunais, assim como o acesso e o gozo dos direitos
inerentes à cidadania (MENDES, 2005).
Tais representações são reproduzidas nas práticas e nos discursos dos operadores, a exemplo
da declaração do entrevistado acima, quando critica a sociedade brasileira que considera como
“muito paternalista”, acentuando, assim, a ideia de desigualdade. Este discurso é interessante porque
é produzido por alguém que se diz seguidor das ideias de Habermas, que, ao contrário, está
afirmando, com sua teoria, a possibilidade de os participantes do diálogo se perceberem como iguais.
Afinal, como afirmou este entrevistado:
-“Meu referencial teórico é todo habermasiano, como você pode notar”.
(MPF4)

É interessante que alguém que diz adotar a teoria habermasiana e representa a sociedade
brasileira da forma como o fez, não veja a impossibilidade da aplicação de tal teoria no Brasil. Por
outro lado, sua fala denota a força do saber tradicional, orientado pela regra de Ruy Barbosa. Ainda
que tenha consciência quanto à existência do que denomina de “elitismo”, quando o entrevistado
tenta explicar o referencial teórico estrangeiro não consegue se desapegar da herança de longa
permanência dos estereótipos desse modelo tradicional de sociedade.
Esta representação é ainda mais acentuada em outra passagem desta entrevista, quando este
operador declara que:

333
- “A nossa tradição no Direito é de apostar no Judiciário para resolver todos os
conflitos. É uma cultura de litigiosidade. É quase uma forma de se sentir vingado. É
uma expiação da frustração que o conflito traz. A pessoa diz: ‘Vou te levar para os
tribunais!’ O sujeito se sente como exercendo um poder, né? Tem o prazer do
exercício de um poder quando demanda. O brasileiro gosta de litigar. O brasileiro é
um litigante compulsivo”.
(MPF4)

Como se percebe a partir desta declaração, o direito à prestação jurisdicional não é visto como
um direito fundamental do cidadão (previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Carta), nem como um
dever do Estado. Ao contrário, para este entrevistado, o direito é considerado um exagero, um
capricho do jurisdicionado, “uma forma de se sentir vingado”.
Ora, o referencial teórico citado pelo entrevistado, embora parta de uma análise baseada no
contexto estrangeiro, é amplamente difundido no campo jurídico brasileiro, segundo à racionalidade
do campo jurídico local. Segundo o filósofo alemão citado, a teoria do agir comunicativo e da
racionalidade constituiu a base de uma teoria crítica da sociedade fundada na teoria do discurso, o
que lhe levou à concepção da moral, do direito e da democracia (HABERMAS, 1999, p. 9), o que
aparenta estar em sentido completamente oposto às ideias do entrevistado.
Quando o filósofo alemão afirma que a linguagem é uma verdadeira forma de ação,
aproxima sua teoria à noção do discurso-ação, contida em Foucault (1995), aqui também referida.
Para Habermas (idem), o simples fato de alguém falar provoca, além de uma exigência de
compreensão mútua, uma expectativa de que o que é dito goza de certeza, veracidade e sinceridade.
Por isso, o fundamento de sua teoria da ação comunicativa, representada pela interação social com a
linguagem, é a possibilidade de os atores sociais partilharem de um mundo objetivo, um mundo
social e um mundo subjetivo. Desta forma, para o autor, apenas o agir comunicativo, que tende ao
entendimento entre os atores, pode ser a base ética de uma sociedade.
O que pude perceber ao final desta entrevista foi que a categoria consenso não possui
estabilidade semântica no campo jurídico brasileiro, o que a torna, para esta análise, uma categoria
nativa, daí a necessidade de buscar sua descrição densa, definindo os seus sentidos para o campo.
Conjuguei neste exercício os autores citados, porque entendi importante destacar a validade
do ato voluntário que acolhe a Colaboração Premiada - considerada, inclusive, como negócio
jurídico, o que pressupõe que seu fundamento esteja baseado na capacidade de comunicação e
consenso entre os interlocutores – diante de mecanismos que reduzem ou subtraem a autonomia
individual (como a coação, a ameaça, o erro, a fraude, considerados como estratégias que viciam a
vontade do agente) e sua correlação com a forma de produção da verdade no processo penal
brasileiro.

334
Vale dizer, como os discursos legal, doutrinário e jurisprudencial afirmam que a Colaboração
Premiada consiste em acordo que entre si fazem o Ministério Público (ou o Delegado de Polícia) e o
colaborador (acompanhado do seu advogado)398, entendi ser oportuna a análise dos discursos
empregados pelo próprio campo jurídico, acerca do elemento anímico (vontade) e sua correlação com
a validade dos atos para este mesmo campo.
Ora, o que se percebe no exame dos discursos dos operadores responsáveis pela celebração
desses acordos é que as orientações dos autores acima citados são afastadas ou recebem outras
versões (interpretações). Assim, embora socializados nesses discursos, prevalece entre os operadores
da Colaboração Premiada a noção que privilegia a aplicação do direito segundo a lógica do
argumento da autoridade excludente, inquisitorial e hierárquico.
Por outro lado, o modo pelo qual se dá a produção da verdade do nosso campo jurídico não
busca um entendimento mútuo ou o consenso. Desde a formação acadêmica, até a atuação
profissional privilegia-se a lógica do contraditório, que difere das lógicas adversariais de produção da
verdade, dominantes em outras áreas do conhecimento e nas científicas. Estas últimas “são fundadas
na busca de consensos provisórios sobre fatos que se constroem pela reflexão e a explicitação das
diferentes perspectivas dos envolvidos, em um processo de argumentação demonstrativa, que visa ao
conhecimento de todas as partes legítimas envolvidas no processo”, como lembra Kant de Lima
(2009, p. 29). Segundo este autor, na lógica adversarial, o consenso entre os pares é fundamental
para validar o conhecimento – como acontece em alguns casos no Trial by jury, onde a unanimidade
é requerida. Ainda de acordo com este autor, no nosso sistema jurídico existe uma valorização
explícita do conhecimento detido de forma particular, não universalmente disponível na sociedade:
quem pergunta sempre sabe mais do que quem responde e é deste saber que advém a autoridade deste
discurso. E é esta lógica do argumento da autoridade que prevalece nas práticas e discursos dos
atores desse campo (KANT DE LIMA, ibidem, p. 29).
Os discursos coletados indicam que o consenso nos acordos de Colaboração Premiada é
marcado pela suspeita intermitente na palavra do colaborador, como foi visto ao longo deste texto.

398
Embora a Lei 2.850, de 2013 defina a Colaboração Premiada como meio de obtenção de prova (artigo 1º e inciso I, do
artigo 3º), refere-se à negociação do acordo em seu artigo 6º, ao estabelecer que “O juiz não participará das negociações
realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o
investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o
investigado ou acusado e seu defensor” (BRASIL, 2017). Dentre os doutrinadores jurídicos que classificam a
Colaboração Premiada como acordo cito, entre outros, Greco Filho (2014). Na jurisprudência destaca-se a decisão do
Supremo Tribunal Federal proferida no Habeas-Corpus nº 127.483/PARANÁ, quando afirmou que “(...) A colaboração
premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de
obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de
natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à
sanção premial a ser atribuída a essa colaboração. Este documento pode ser acessado no endereço eletrônico
http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 9346031.

335
Invariavelmente, suspeita-se que ele mente: ou para beneficiar a si mesmo, ou para prejudicar seu
desafeto.
Embora os operadores entrevistados sejam socializados nos autores acima citados - tanto o
filósofo alemão Habermas, quanto o doutrinador civilista brasileiro, Caio Mario - prevalece no
campo jurídico brasileiro a noção escolástica tradicional, que reproduz a ideia segundo a qual quanto
maior o status funcional, maior o saber e quanto maior o saber particularizado (não compartilhado e
construído de forma individual, particular), maior também é o poder de dizer o direito (KANT DE
LIMA, 2010).
De acordo com esta hierarquia, o juiz ocupa o topo desta estrutura e o Ministério Público,
está quase dividindo com ele esse lugar, já que as decisões contidas nos acordos de Colaboração
Premiada, segundo o que já foi visto, devem ser imutáveis, impermeáveis à qualquer alteração de
suas cláusulas, mesmo que advindas do Judiciário, como desejam os operadores entrevistados. Desta
forma, o papel de fiscalizador das atividades do órgão de acusação, que poderia (ou deveria) ser
realizado pelo magistrado, acaba também sendo afastado, segundo os discursos dos entrevistados.
Como o entrevistado acima citado ressaltou em sua declaração a necessidade de o acordo de
Colaboração Premiada ser realizado sem coerção, nem manipulação, entendi ser oportuno trazer
também para a reflexão a declaração de outro entrevistado, que esboça a relação entre as ideias da
voluntariedade do colaborador e da coação decorrente da ameaça ou da efetividade da prisão, abaixo
reproduzida:

- “Primeiro, na verdade, o colaborador está realmente livre para decidir. Se ele está
numa situação de equilíbrio, aí é outro ponto. Essa questão de equilíbrio não existe
em ambiente nenhum. O acordo de Colaboração Premiada é realizado, muitas
vezes, para evitar um mal maior para o colaborador, ou porque ele está querendo
precipitar o resultado. Então, equilíbrio é algo muito difícil. Inclusive, em um acordo
não criminal. As partes estão em situações em que cada qual enxerga quais são os
seus interesses. Antes de a gente falar em equilíbrio - e é obvio que o cidadão que
faz um acordo tem que fazê-lo de livre e espontânea vontade -, a gente tem que falar
de interesse. Eu não posso dizer que uma pessoa que está optando por um acordo de
Colaboração Premiada, porque ela está sendo investigada, ou na iminência de ser
processada, não posso dizer que seja legítimo privá-la da possibilidade de fazer um
acordo de Colaboração Premiada. Ainda que não tenhamos esse equilíbrio – por
conta dessa perspectiva do surgimento de uma ação penal ou porque esteja preso -,
qual é a razão para privar as partes do acordo? Porque o que importa é o seguinte: é
se esse acordo envolve informações verdadeiras. Se eu estou em um momento de
fragilidade, isso não significa que não possa estar com a consciência, com a
capacidade de discernir, a ponto de dizer o que eu quero ou não fazer. A discussão
levada para esse ambiente sugere o desvio do foco. O importante é: as partes estão
conscientes do que elas estão fazendo? Aquilo que está sendo colocado na mesa é
real? Porque se não for, o colaborador está sujeito a responder pelo crime de
denunciação caluniosa, além de ser denunciado pelo envolvimento no crime que está
sendo apontado. O Ministério Público ou a Polícia, caso deturpem o acordo, estão

336
sujeitos a responsabilidade pessoal. Existe toda uma exigência para que aquilo que
foi trazido (pelo colaborador) seja verdadeiro. Então, é isso? Vamos dar mais valor a
essas questões periféricas do que à essência do ato? Porque equilíbrio, se pararmos
para pensar, dificilmente vai haver. Alguém sempre estará em uma situação de
desequilíbrio. É isso, aliás, que vai fazer com que alguém ceda mais ou menos. Mas,
não vai ser isso que vai determinar se você vai fazer ou não um acordo. Nós já
tivemos pessoas que já vieram fazer o acordo sem ter nenhuma investigação
instaurada contra elas. Elas sabem que podem vir a ser responsabilizadas e
resolveram se antecipar. É uma estratégia! Isso é legítimo. Agora, dizer que só fez
porque sabe que pode ser investigado, só fez porque está preso. E daí? Isso quer
dizer, então, que não posso ter o direito negocial no direito penal?”
(MPF1)

Para este outro entrevistado, portanto, em qualquer acordo formulado entre as partes,
inclusive o não criminal, não há equilíbrio entre os atores que o celebram e esta circunstância não é
importante, muito embora reconheça que o desequilíbrio determine o quanto um dos lados desta
relação terá que ceder para poder realizar o ato. Em seu entendimento, o que importa nos acordos de
Colaboração Premiada são os interesses dos pactuantes: o que interessa ao Ministério Público são as
informações apresentadas pelo colaborador e o que interessa para este são os “benefícios penais”.
Ainda segundo o entrevistado, caso as partes não cumpram suas obrigações sofrerão sanções.
O entrevistado afirma ainda que, a manifestação de vontade do provável colaborador é livre,
mesmo quando este estiver diante da iminência de ser acusado ou quando já se encontra preso. Esta
fala sugere, portanto, que a ameaça da perda de liberdade ou a ameaça da manutenção de tal perda
não interferem na manifestação de vontade do colaborador, quando este decide celebrar o acordo de
Colaboração Premiada, nessas circunstâncias.
O desequilíbrio entre as partes que celebram o acordo, referido por este entrevistado, remete
à forma muito peculiar com que o campo jurídico percebe e aciona seus institutos. Isto porque, para o
ramo dos contratos, há diferença entre os contratos de adesão e os contratos paritários. Atribui-se aos
primeiros a inexistência de uma fase de discussão entre as partes, o que já acontece nestes últimos,
pois se fundamentam na intenção comum das partes. Assim, nos contratos de adesão – como são
exemplos os de prestação de serviços essenciais, como água, luz, telefonia etc.-, uma das partes
impõe sua vontade à outra, sem que haja uma discussão acerca das cláusulas contratuais, das
desigualdades ou dos desequilíbrios. E justamente por conta destas desigualdades, é que o campo
jurídico entende haver a necessidade de intervenção do Estado para a proteção de quem adere ao
contrato, sendo esta intervenção destinada à combater as cláusulas abusivas399 e situações que
possam causar prejuízos de qualquer espécie, assegurando uma igualdade material entre as partes
(THEODORO JÚNIOR, 2008, entre outros).
399
A doutrina jurídica considera como cláusulas abusivas aquelas que causam desvantagens ou prejuízos para uma das
partes e, consequentemente, gera o desequilíbrio entre os direitos e deveres das partes contratantes.

337
Assim, em linhas gerais, apenas haveria desequilíbrio nos contratos de adesão, o que não
caracteriza o acordo de Colaboração Premiada, já que tem sido considerado como negócio jurídico
personalíssimo (a partir do julgamento do Habeas-Corpus nº 127.483/PR), ou seja, aquele que se
perfaz pela composição de vontades das partes contraentes - portanto, voluntário e bilateral - e cujo
objeto contratado deve ser lícito. Além disso, caracteriza-se por ser uma modalidade de negócio que
depende de uma condição especial de um dos negociantes, o que impõe uma obrigação infungível, ou
seja, apenas aquela parte especificamente determinada possui condição de realiza-lo, não podendo tal
obrigação ser repassada a outrem. Dentre outros exemplos, a doutrina jurídica brasileira exemplifica
o contrato celebrado com um pintor famoso para realizar uma obra-prima pessoal. São denominados
de negócios intitui personae (THEODORO JÚNIOR, idem).
Em geral, quando os operadores se referem ao desequilíbrio, destacam a desigualdade
material que, especialmente, em uma sociedade de mercado como a nossa, constitui regra geral,
como afirma Pires (2012). Aliás, como lembra este autor, o liberalismo não se expressou de forma
unívoca em todas as sociedades400. Em algumas, a relação entre sociedade e Estado teve como
intermediário o Direito – que, frente à desigualdade social, promoveu a igualdade formal, como
afirmado por Marshall (1965), já em outras, ao contrário, “o Direito é representado pelos atores como
instrumento de submissão da sociedade pelos grupos que particularizam o Estado (Kant de Lima,
1995). A diferença é grande e o contraste nem sempre é imediato. Há nuanças e gradações” (PIRES,
2012, p. 6).
A noção de igualdade jurídica, por sua vez, que teria advindo das revoluções burguesas
iniciadas no fim do século XVIII e difundidas ao longo do século XIX, não encontra abrigo entre nós
porque aqui ainda vigem representações acerca das pessoas enquanto atores de uma sociedade da
época imperial, na qual os direitos fundamentais e garantias individuais não asseguravam uma
cidadania igualitária. Essas representações estão consagradas de maneira uniforme nas leis vigentes
quando abrigam privilégios legais aos econômica e politicamente poderosos, instituindo
desigualdades de tratamento jurídico, como são exemplos, a prisão especial, foros privilegiados e os
privilégios processuais concedidos ao Estado, como Kant de Lima (1995); Mendes (2005) e Amorim
(2009, pp. 10-11) já afirmaram.
Ainda no que se refere à voluntariedade da Colaboração Premiada, segundo o texto legal, é
necessária à consecução e à homologação do acordo (artigo 4º, da Lei nº 12.850, de 2013), quando

400
O autor contrapõe a noção de Polany (2000) que, dentre outras análises, afirma que no tipo de sociedade baseada no
sistema de mercado, a economia política liberal é sempre acompanhada de instrumentos que protegem a sociedade dos
danos inevitáveis da construção que separa a economia das demais relações sociais. Sendo tais instrumentos (ou
dispositivos) originados da reação da sociedade ao se opor aos interesses particulares das classes, impondo um
andamento aceitável para os processos de conservação e mudança de base social, política e econômica (PIRES, idem, p.
5).

338
afirma que “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3
(dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha
colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal” (BRASIL,
2013)401.
Apesar de considerar como algo “periférico”, de pouca importância, a discussão sobre a
igualdade entre os pactuantes, ou – usando a categoria que o entrevistado empregou – o equilíbrio
entre as partes do acordo de Colaboração Premiada, representado na liberdade de ambos os
contraentes poderem se manifestar, tal assunto tem constituído uma verdadeira vexata quaestio, no
campo jurídico, revelando sua magnitude.
De um lado, há quem defenda a voluntariedade como ato sinônimo à liberdade de
manifestação, sendo que tal liberdade pressupõe autonomia, que por sua vez resulta de uma decisão
interior ao próprio agente e não da obediência a uma ordem ou comando, ou, ainda, de uma pressão
externa que pode ser representada pela ameaça de uma prisão ou da permanência nela, ou pela prática
de um ato de violência. E, por violência entende-se “todo ato de força contra a espontaneidade, a
vontade e a liberdade de alguém” (CHAUÍ, 2007, p. 342, entre outros).
Há, nessa linha de argumentação, inclusive, quem entenda que a Colaboração Premiada
celebrada em razão da ameaça de prisão ou quando o colaborador estiver preso, deve ser considerada
ilícita por faltar o requisito da voluntariedade (BORRI, 2016), ou que tal prática constitui uma forma
de tortura praticada pelo Estado (LOPES JUNIOR, 2016).
Seguindo essa orientação, entre os julgadores, há quem afirme que a voluntariedade define
um ato pautado pela vontade do individuo ao praticar algo, seguindo sua própria iniciativa e
autonomia da ação. Sendo que o "respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo
ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros". Assim, a autonomia não
constitui um favor concedido como pressuposto implícito para abreviar o tempo de prisão, que
significa violência, “um ato brutal, um abuso físico e/ou psíquico contra alguém e que se caracteriza
por relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, medo e terror” (MENDES,
2016).
Também encontrei quem defendeu o emprego da prisão para a obtenção do acordo e que sua
obstrução constituiria uma forma de dificultar o trabalho do Ministério Público, como foi afirmado
por um dos entrevistados, quando declarou que:
- “Existem alguns setores do Judiciário que são muito contra alguns institutos que
chegaram longe demais e inclusive, o Ministro Gilmar Mendes, do STF, né? É
alguém que tem soltado muito os nossos presos preventivamente, frequentemente.
Então, resumindo é isso! As nossas dificuldades são essas. Há alguns reveses que a

401
Entre outros, Badaró (2015); Jardim (2016); Mendes e Barbosa (2016).

339
gente sofre nesse caminho por conta de decisões judiciais que impedem que a gente
avance. A prisão preventiva é um fator que se tem, não só para acautelar o meio
social de quem está reiterando na prática do crime, mas também para estimular
outras pessoas a colaborarem e desvendarem outros crimes que estão sendo
praticados dentro do esquema de organização criminosa muito capilarizada”.
(MPF3)

Para este entrevistado, portanto, a prisão preventiva constitui, inclusive, um estímulo para
que outras pessoas colaborarem com o Ministério Público e a decisão judicial que a combate não é
vista como uma atividade jurisdicional necessária ao exame da ilegalidade ou da arbitrariedade da
prisão. Afinal, caso a prisão em tela fosse legal e juridicamente válida, a decisão do Ministro do
Supremo Tribunal Federal que a combateu é que estaria eivada de ilegalidade e arbitrariedade.
Assim, merece também destaque a afirmação que considera como “reveses” às atividades do
Ministério Público decisões como a do Ministro, que “tem soltado muito” os presos preventivamente.
O que torna a declaração acima ainda mais peculiar é o fato de que este mesmo entrevistado
tenha empregado, em outra parte da entrevista, o “medo da prisão” dentre as justificativas para
alguém realizar o acordo de Colaboração Premiada, quando se referiu à celeridade que o instituto
promoveu às investigações realizadas pelas Operações Lava-Jato do Rio de Janeiro, como pode ser
visto no seguinte trecho:
- “A investigação fica muito mais célere e muito mais eficiente, quando se aponta
onde a gente tem que ir buscar os elementos. E o colaborador está ali para isso. Ele
tem todo o interesse que a investigação seja eficaz porque se não for, ele não terá os
benefícios da Colaboração Premiada. Se ele omitir algum fato, ele perde os
benefícios da Colaboração Premiada. Se ele mentir, ele perde os benefícios da
Colaboração Premiada. E ninguém quer correr esse risco. Porque a pessoa que ele
está delatando pode ser um colaborador no futuro. Ou uma pessoa que ele nem
delatou, mas está com medo de ser presa, se apresenta também como colaborador ao
Procurador. Então, essa verdade tem que estar bem em conformidade com todos os
colaboradores”.
(MPF1)

De acordo com a declaração deste entrevistado, além de o medo da prisão constituir motivo
para alguém se candidatar ao papel de colaborador, a suspeição generalizada criada pelos acordos de
Colaboração Premiada, representada pela ideia de que “a pessoa que está sendo delatada hoje pode
ser um colaborador no futuro”, sendo tal fato também apontado como ensejo que obrigaria o
colaborador a não só apresentar os fatos que conhece, como também a não mentir e nem se omitir.
Ainda para este operador, a “verdade” de quem colabora deve estar em conformidade com a
“verdade” de todos os demais colaboradores. Como os acordos são sigilosos e os colaboradores não
podem e nem devem ter acesso às informações que cada um produziu (suas verdades), resulta que

340
apenas o membro do Ministério Público tem acesso irrestrito a estes documentos e é o único que sabe
de “todas as verdades” e, assim, quem está mentindo.
O argumento que considera a ameaça da prisão como um incentivo ao investigado de
colaborar com a acusação é próprio do campo jurídico brasileiro que naturaliza a prisão e a violência
que esta representa - especialmente para as classes menos favorecidas economicamente (do “andar de
baixo”) - e que constitui a supressão de direitos civis fundamentais “para a garantia da ordem
republicana e a garantia da igualdade jurídica” (KANT DE LIMA, 2004, p.49). Este é mais um
argumento que iguala os infratores, não pelo tratamento juridicamente isonômico, relativo aos direitos dos
acusados, mas que pretende a sujeição penal (MISSE, 2008) uniforme, que resulta na falta de direitos e no
medo de perdê-los como fator igualador.
Estas ideias remetem, mais uma vez, à pesquisa de campo de ABREU (2019) sobre as
audiências de custódia no Rio de Janeiro, já que o autor chama a atenção para a naturalização que incide,
inclusive, sobre diversos níveis de agressão e o esculacho (PIRES, 2011)402, que para alguns custodiados
fazem “parte do jogo”. Segundo o autor, estes fatos não são estranhados ou combatidos, nem pelos
custodiados, nem pelos operadores. Vale dizer, sem a garantia da igualdade jurídica, não há como tornar
possível a compreensão contemporânea dos direitos humanos: “Se para a sociedade os Direitos Humanos
não possuem boa compreensão sobre o seu significado, parte desses custodiados entendem que se forem
pegos, vale tudo; um tiro no pé, uma coronhada, ou apagar o cigarro na palma mão. Essas e outras
agressões podem não ser percebidas como atos de violência. Nesse sentido podemos compreender que
determinados custodiados entendem a agressão policial como algo ‘normal’ que ‘acontece’” (ABREU,
idem, pp.71-72).
Como também afirma o autor, esta naturalização foi percebida até quando os custodiados
apresentavam as marcas das agressões em seus corpos, e resolviam denunciá-las, mesmo sabendo –
baseados em suas experiências - que estas denúncias “não iam dar em nada”. Os operadores, por sua
vez, orientavam suas ações a partir da materialidade das agressões: quando elas não eram visíveis, as
declarações dos custodiados eram desacreditadas pelos operadores. Além disso, fazer “alguma coisa
com os policiais” – na hipótese de denunciá-los pelas agressões - poderia ser acionado como uma
justificativa pelos operadores para a violência policial. Diante dessa naturalização, os operadores não
realizavam uma revisão das condições em que a prisão em flagrante foram efetuadas e nem havia
qualquer preocupação destes com as garantias de direitos dos custodiados. Abreu (idem, p. 72), então,
ressalta a possibilidade de os custodiados que naturalizam a violência policial não perceberem na Justiça

402
Segundo Pires (2011), o “esculacho” é uma categoria nativa referente à forma autoritária de tratamento dos conflitos.
Esta prática associada aos vigilantes da empresa Supervia, responsáveis pela vigilância nos trens do Rio de Janeiro, fere
a ética inserida numa moralidade comum à dinâmica do comércio informal de vendedores ambulantes nesse meio de
transporte público.

341
e, consequentemente, na audiência de custódia, como forma ou lugar adequado para a administração dos
seus conflitos.
Durante uma conversa informal, o professor Roberto Kant de Lima esclareceu que nos
Estados Unidos, os ricos (desiguais do mercado) têm mais direitos que os pobres e isso é aceito,
considerado normal, porque a riqueza está associada ao mérito de cada um. Já aqui no Brasil, a
desigualdade está associada ao status privilegiado. Assim, a forma de igualar é a sujeição criminal,
porque com ela se tenta atingir os ricos, aplicando o tratamento desigual que é dado aos pobres,
ignorando as desigualdades do mercado. Quer dizer, o mercado não pode desigualar porque o direito
desiguala antes. Então, a solução é privar de direitos para punir; não igualar direitos para punir.
Além disso, a declaração do entrevistado, mais uma vez, suscita as noções que Kant de Lima
(1992, 1995, 1997, entre outras) e Kant de Lima e Mouzinho (2016) que já afirmaram que a forma
inquisitorial como a verdade é representada pelos operadores dos acordos de Colaboração Premiada,
difere completamente da forma onde o instituto ter-se-ia originado, conforme afirmaram os
entrevistados. Afinal, na tradição jurídica onde a plea bargaining se instituiu, o segredo e o
hermetismo das informações geram sempre suspeição e não podem ser vistos como mecanismos
legítimos de produção de resultados válidos, pois o que dá legitimidade à verdade neste modelo é o
fato dela ser universalmente partilhada por aqueles que a elaboram, além de ser acessível a todos, já
que elaborada a partir de um dissenso inicial (KANT DE LIMA, 1997).
Ainda que o conflito de interesses seja inerente às relações sociais, a forma como tais
conflitos são administrados é que difere, de acordo com a sensibilidade jurídica local observada,
sendo possível afirmar que, no nosso caso, o consenso é produzido à brasileira. O emprego da força,
inclusive da força simbólica (BOURDIEU, 2007a), prescinde o equilíbrio entre os envolvidos no
conflito. Para haver equilíbrio é preciso que as partes se vejam como iguais, inclusive no que se
refere ao direito de se manifestar, sem sofrer qualquer tipo de reprimenda por isso. Ainda que os
capitais social, econômico e cultural (BOURDIEU, 2013) sejam distintos, a liberdade para expor os
argumentos e ideias, assim como o livre arbítrio para fazer escolhas, não deve sofrer nenhuma
pesagem a priori. Nenhuma das partes envolvidas em um litígio deve estar em situação superior à
outra porque sua verdade é mais qualificada em razão, por exemplo, do predicado da fé pública que
lhe é atribuído por lei. Um agir voluntário - para se amoldar à teoria habermasiana - é, sobretudo, um
agir sem coação e ameaça.
Dentre os juristas que se manifestaram sobre o assunto, em palestra proferida no 7º
Congresso Brasileiro de Sociedades de Advogados, em São Paulo, o Ministro Marco Aurélio de
Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a Colaboração Premiada do réu preso seria um
“ato de covardia”. Segundo o Ministro, “Acima de tudo, a delação tem que ser um ato espontâneo.

342
Não cabe prender uma pessoa para fragilizá-la para obter a delação. A Colaboração, na busca da
‘verdade real’, deve ser espontânea, uma colaboração daquele que cometeu um crime e se arrependeu
dele” (RODAS, 2016).
Acontece que ao empregar em seu discurso a categoria espontaneidade, ao invés de
voluntariedade – como expresso na Lei nº 12.850, de 2013 -, ao invés de apaziguar os debates o
Ministro citado o acentuou ainda mais e evidencia a falta da literalidade da lei. Apesar de defender o
afastamento desta prática, ele apenas ressaltou a existência do dissenso no campo jurídico brasileiro,
sobre qual dessas categorias utilizar para a defesa da autonomia da vontade do colaborador, já que a
espontaneidade para alguns autores, representa a ideia de atitude e não de vontade. Além disso,
quando este julgador afirmou que a Colaboração Premiada é um meio de se chegar à verdade real,
manteve como acolhida a construção de uma verdade distante da que se viabiliza pelo consenso entre
as partes. Por fim, ao associar o arrependimento do colaborador, ao ato de colaborar, mais uma vez,
manteve representações sobre práticas tradicionais do processo penal, que associam o crime ao
pecado, já que não basta ao colaborador assumir a culpa do crime. É preciso também que tenha se
arrependido. Em outras palavras, apesar de criticar o uso da estratégia da prisão como forma de
coagir o colaborador, confirmou a permanência entre nós de um processo de matiz inquisitorial.
Ainda que tais argumentos defendessem a tese da incompatibilidade entre o uso da prisão e a
autonomia da vontade do colaborador, não reduziu a demanda do campo no sentido da promoção de
uma discussão semântica das categorias: voluntariedade e espontaneidade, que divide opiniões.
Ao analisarem o instituto da delação premiada, alguns doutrinadores afirmam que seu
acolhimento pelo delator deveria ser produto da livre manifestação pessoal dele, sem qualquer tipo de
pressão física, moral, ou mental, representando, em outras palavras, intenção ou o desejo de
abandonar o empreendimento criminoso, não importando as razões que determinaram tal decisão.
Sendo assim, não seria necessário que a manifestação fosse espontânea, bastando que fosse
voluntária. Entendem tais autores que a espontaneidade ocorre quando a ideia inicial de delatar parte
do próprio delator. Já na voluntariedade, ao contrário, não ocorre tal exigência, podendo a ideia
inicial partir de outra pessoa, como a autoridade responsável pela investigação ou a própria vítima.
Segundo tal entendimento, para fundamentar a delação premiada, tanto faria se o delator tivesse
aceitado delatar por vingança, arrependimento, inveja, ódio etc. (BUSATO e BITTENCOURT, 2014,
p. 19).
Em outra linha de argumentação, há a defesa segundo a qual a preservação da
voluntariedade estaria vinculada à descoberta de quando aconteceu a coação e se ela efetivamente foi
realizada. E, para tanto, os autores propõem uma analogia entre os institutos da Colaboração

343
Premiada e do negócio jurídico, a partir da interpretação do artigo 151, do Código Civil403, que
define coação como o ato que incute “ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à
sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens” (GRANDIS, 2015, entre outros)404.
No entanto, os autores afirmam que aqueles que defendem a ideia de que o efeito provocado
pela prisão − tão temida pelo réu − enquadra-se no conceito legal de coação, demandando a anulação
dos acordos de Colaboração Premiada celebrados por colaborador preso, o fazem com base no artigo
171, II da legislação civil405, que estabelece que é anulável o negócio jurídico por vício resultante de
erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores. Para estes autores, tal
orientação não pode ser admitida porque se trata de uma análise isolada do artigo 151 dessa lei e que
apenas uma leitura sistemática do Código Civil seria correta e produziria, ao contrário, uma
concepção restritiva da categoria coação, já que seu artigo 153406 estabelece que “não se considera
coação a ameaça do exercício normal de um direito”.
Tais discursos assentam este argumento na análise do mandato de prisão expedido por
autoridade competente, que examina a legalidade do cárcere. Para essa corrente de pensamento,
somente é possível falar em coação quando a perda de liberdade do colaborador for considerada
ilegal.
Neste sentido, em uma de suas decisões407, o juiz da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba,
afirmou que “O criminoso não é coagido ilegalmente a colaborar, por evidente. A colaboração

403
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) - Artigo 151: A coação, para viciar a declaração da vontade,
há de ser tal que incuta ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos
seus bens. Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente, o juiz, com base nas
circunstâncias, decidirá se houve coação (BRASIL, 2002).
404
Este autor afirma que “a colaboração premiada tem a configuração jurídica de um contrato, um acordo no qual o
Ministério Público e o acusado discutem e negociam livremente as cláusulas de um ajuste que, se fielmente cumprido,
acarretará, ao final, relevantes benefícios para ambas as partes”. Segundo ele, a Lei n.º 12.850/2013, inclusive, em
diversas passagens de seu texto ressalta a natureza contratual da colaboração premiada, quando se utiliza, por exemplo,
dos termos “negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração” (art. 4º, §
6º),“homologado o acordo” (art. 4º, § 9º), “termos do acordo homologado e sua eficácia (art. 4º, § 11), “em todos os
atos de negociação” (art. 4º, 15) e, principalmente, que o “termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por
escrito e conter : I – o relato da colaboração e seus possíveis resultados; II – as condições da proposta do Ministério
Público ou do delegado de polícia; III – a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; IV – as assinaturas
do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor; V – a especificação
das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, quando necessário” (art. 6º)” (GANDIS, idem).
405
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) – Artigo Art. 171. Além dos casos expressamente declarados
na lei, é anulável o negócio jurídico: I - por incapacidade relativa do agente; II - por vício resultante de erro, dolo,
coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores (BRASIL, 2002).
406
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) - Artigo 153: Não se considera coação a ameaça do exercício
normal de um direito, nem o simples temor reverencial (BRASIL, 2002).
407
Decisão proferida na ação penal nº 5047229-77.2014.404.7000, na qual figuraram como acusados Carlos Habib
Chater, Alberto Youssef e seus subordinados. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/decisao-prisoes-lava-jato-
operacao.pdf. Durante o Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato, realizado em 2017 pelo Centro de Debates de
Políticas Públicas, apenas para pessoas convidadas, este operador afirmou ser necessário 'ouvir críticas' sobre prisões
preventivas, conforme divulgado em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/moro-diz-que-prisao-
preventiva-e-polemica-e-diz-ser-necessario-ouvir-criticas/.

344
sempre é voluntária ainda que não espontânea. Nunca houve qualquer coação ilegal contra quem quer
que seja da parte deste Juízo, do Ministério Público ou da Polícia Federal na assim denominada
Operação Lava-Jato. As prisões cautelares foram requeridas e decretadas porque presentes os seus
pressupostos e fundamentos, boa prova dos crimes e principalmente riscos de reiteração delitiva
dados os indícios de atividade criminal grave reiterada e habitual. Jamais se prendeu qualquer pessoa
buscando confissão e colaboração. Certamente, a colaboração não decorre, em regra, de
arrependimento sincero, mas sim da expectativa da obtenção pelo criminoso de redução da sanção
criminal. Se o processo, a perspectiva de condenação e mesmo as prisões cautelares são legais, é
impossível cogitar de qualquer ‘coação ilegal’ da parte da Polícia Federal, Ministério Público Federal
ou da Justiça Federal. Não há qualquer invalidade ou reprovação cabível à postura da Acusação que,
em troca da verdade e apenas da verdade, oferece ao criminoso tratamento legal mais leniente”
(MORO, sic).
Há, ainda, os que defendem a ideia de que não se pode alegar ilegalidade do acordo de
Colaboração Premiada pautada na coação, porque a Lei nº 12.850, de 2013, exige a presença do
advogado do colaborador em todos os atos (artigo 4º, §15) e este profissional, em razão de suas
atribuições legais e éticas – porque possuem múnus público, em virtude de sua função ser
considerada constitucionalmente como essencial à Justiça (artigo 133, da Carta de 1988) -, seria
responsável pela fiscalização imediata de todos os atos praticados: desde as tratativas para a
celebração do acordo até a sua homologação judicial (MASSON e MARÇAL, 2015, pp.96-97).
Ao atribuir aos advogados a responsabilidade pela fiscalização dos acordos de Colaboração
Premiada, a afirmação acima ressalta a autonomia desses profissionais, diante da ausência de
subordinação ou hierarquia entre eles e o Ministério Público e os juízes, amplamente difundida pela
deontologia jurídica e tão necessária ao funcionamento democrático das instituições judiciais e
policiais brasileiras. Contudo, ela se mantém apenas no plano retórico, já que o que tem sido uma
prática bastante comum em tempos de Operação Lava Jato é a suspeição que recai sobre a pessoa do
colaborador se estender a todos que com ele guardam alguma relação – família, amigos -, inclusive,
seus advogados. Como foi visto no capítulo III deste texto, a realização de escutas telefônicas, entre
outras modalidades de técnicas investigativas sobre as atividades destes profissionais, chegam a
aparentar um caráter intimidatório408 ao exercício da defesa dos colaboradores. Neste ponto também
é oportuno lembrar a crítica que Falcão (1979) e Shirley (1987) promoveram acerca da tradição
estatal de nosso direito público, que desde a inauguração das faculdades de Direito no Brasil – São

408
Conforme disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/para-oab-quebra-de-sigilo-de-advogado-de-temer-tentativa-
de-intimidar-advocacia-1-23457695.

345
Paulo e Olinda, no século XIX -, estas são destinadas a formar quadros para a administração do
Estado e não advogados para proteger os cidadãos contra os abusos do Estado409.
Há também quem defenda a ideia de que a perda da liberdade (em face da prisão ou da
ameaça de sua aplicação) atinja, exclusivamente, a liberdade de locomoção e, portanto, não há que se
falar em coação do colaborador, já que sua liberdade de expressão não é cerceada. Nesta toada foi a
manifestação do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, quando julgou, em 2015, o
Habeas-Corpus nº 127.483/PR. De acordo com o Ministro, o requisito de validade do acordo é a
liberdade psíquica do agente, e não a sua liberdade de locomoção. Segundo ele, “A declaração de
vontade do agente deve ser produto de uma escolha com liberdade (= liberdade psíquica), e não
necessariamente em liberdade, no sentido de liberdade física. Portanto, não há nenhum óbice a que o
acordo seja firmado com imputado que esteja custodiado, provisória ou definitivamente, desde que
presente a voluntariedade dessa colaboração. Entendimento em sentido contrário importaria em negar
injustamente ao imputado preso a possibilidade de firmar acordo de colaboração e de obter sanções
premiais por seu cumprimento, em manifesta vulneração ao princípio da isonomia...” (STF, Habeas-
Corpus nº 127.483, Relator Dias Toffoli, plenário, 27/08/2015)”410.
Por outro lado, algumas decisões emitidas pelo Supremo Tribunal Federal confirmam a
noção produzida também em 2015, pelo Ministro Teori Zavaski, quando julgou o Habeas-Corpus nº
127.186/PR411 e advertiu que “seria extrema arbitrariedade (…) manter a prisão preventiva [de
alguém] como mecanismo para extrair do preso uma colaboração premiada, que, segundo a lei, deve
ser voluntária”, concluindo, que “Subterfúgio dessa natureza, além de atentatório aos mais
fundamentais direitos consagrados na Constituição, constituiria medida medievalesca que cobriria de
vergonha qualquer sociedade civilizada”.
Assim foi também a orientação do Ministro Marco Aurélio, em 2017, durante o julgamento
de Habeas-Corpus nº 367.156/MT apresentado pela defesa do ex-governador de Mato Grosso, Silval
Barbosa, em que foi Relator o Ministro Antonio Saldanha Palheiro e no qual se discutiu a suspeição
da juíza de primeira instância que, antes da homologação do acordo, promoveu o interrogatório dos
colaboradores, não se limitando a questioná-los sobre o procedimento da colaboração, já que também
os arguiu sobre os fatos a ela relacionados, o que, segundo a defesa, constituiu em produção de prova
412
. Embora seu voto a favor da concessão do pedido tenha sido vencido, o Ministro Marco Aurélio,

409
Decreto Imperial, de 11 de agosto de 1827, que estabeleceu a fundação das primeiras faculdades de Direito no Brasil:
São Paulo e Olinda.
410
Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10199666.
411
Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/hc127186voto.pdf.
412
O Supremo Tribunal Federal também já enfrentou a discussão sobre a aplicação da prisão preventiva em decorrência
do descumprimento de acordo de Colaboração Premiada, no Habeas Corpus nº 138.207/PR, julgado em abril de 2017,
no qual foi Relator o Ministro Edson Fachin. Neste caso, a Segunda Turma decidiu não haver, do ponto de vista

346
afirmou: “Não sei onde vamos parar, porque hoje prender-se para depois apurar-se é a tônica. Prende-
se até mesmo para fragilizar o homem e se lograr a delação premiada. Enquanto não delata, não é
libertado, se recorre sucessivamente e fica por isso mesmo. Avança-se culturalmente assim? Não, é
retrocesso. É retrocesso quanto a garantias e franquias constitucionais. Adentra-se um campo muito
perigoso quando se coloca até mesmo em segundo plano o princípio da não culpabilidade”413.
Esta crítica proferida pelo Ministro em seu voto merece atenção porque, apesar de indicar
sua contrariedade à estratégia que utiliza a prisão como meio de obtenção da delação premiada,
aciona a categoria homem, sem explicitar acerca de qual homem está se referindo. Seria o homem
desigual, representado pela parcela da população brasileira que lota os presídios brasileiros ou o da
insignificante parcela de “criminosos do colarinho branco” beneficiados, conforme afirmou um
entrevistado, por um sistema criminal que não os atinge e quando chega a fazê-lo lhe garante
tratamento mais benéfico do que o previsto em lei?
A principal discussão que poderia nortear estes argumentos é a relativa à inexistência dos
direitos civis a serem defendidos pelos tribunais e de forma igualitária, que na falta da sua razão de
ser, se tornam instrumentos de poder contra a desigualação do mercado. Em diversas ocasiões Kant
de Lima (2000; 2004; 2009-2/2010, entre outros) adverte sobre a importância dos direitos civis para a
ordem republicana e para a garantia da igualdade jurídica, em particular. De acordo com o autor, é
esta igualdade, aliás, que torna possível a compreensão contemporânea dos direitos humanos, vistos
como capazes de prover tratamento igual aos diferentes, universalizando a aplicação da lei às
distintas identidades que se especificam no espaço público. Contudo, no Brasil, os direitos são
sempre particularizados, de tal forma que a ideia prevalente é a da competição ou concorrência entre
os direitos (das vítimas; dos policiais; dos agressores), como se o fato de se obter a concessão de um
acarretasse, automaticamente, a exclusão do outro, o que pode ser representado pelo dito popular:
“farinha é pouca, meu pirão primeiro”. A forma particularizada de tratamento também é revelada na
aplicação das leis que, embora relativas às regras gerais, estão sempre sujeitas, sucessivamente, à
melhor e maior autoridade interpretativa (Kant de Lima, 2000). Os tribunais, por sua vez, ao invés de
atuarem como guardiães dos direitos civis, transformam-se em um poder tutelar que tem por função

jurídico, relação direta entre o acordo de Colaboração Premiada e a prisão preventiva, já que “A Lei 12.850/2013 não
apresenta a revogação da prisão preventiva como benefício previsto pela realização de acordo de colaboração premiada.
Tampouco há previsão de que, em decorrência do descumprimento do acordo, seja restabelecida prisão preventiva
anteriormente revogada. Portanto, a celebração de acordo de colaboração premiada não é, por si só, motivo para
revogação de prisão preventiva”. Assim, entendeu o tribunal no sentido de apenas autorizar a prisão quando presentes
seus requisitos, não podendo o decreto prisional ter como fundamento apenas a quebra do acordo, conforme divulgado
em
http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo862.htm#Pris%C3%A3o%20preventiva%20e%20acor
do%20de%20colabora%C3%A7%C3%A3o%20premiada.
413
Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/marco-aurelio-critica-prisoes-preventivas-com-
-objetivo-de-obter-delacoes-19604154.

347
tratar desigualmente aqueles conflitos que ocorrem entre iguais e aqueles que ocorrem entre
desiguais, “quinhoando desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”, nas palavras
de Rui Barbosa (KANT DE LIMA e MOUZINHO, 2018, p. 267)414.
A magnitude deste assunto também pode ser representada pelas propostas legislativas que
correm nas Casas Legislativas do país. Até o término desta pesquisa tramitava o Projeto de Lei n.
4.372/16, de autoria do Deputado Federal Wadih Damous415, que, entre outras propostas estabeleceu
como requisito indispensável à homologação judicial da Colaboração Premiada o fato de o acusado
ou indiciado se encontrar em liberdade. Para tanto, o art. 3º da Lei 12.850/13 passaria a conter um
terceiro parágrafo, afirmando que “somente será considerada para fins de homologação judicial a
colaboração premiada se o acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou
investigação instaurados em seu desfavor” (BRASIL, 2016).
Ao justificar este Projeto, seu autor ressaltou como medida de preservação do caráter
voluntário do instituto da Colaboração Premiada “que a prisão cautelar não deve ser utilizada como
instrumento psicológico de pressão sobre o acusado ou indiciado, sob pena de se violar a dignidade
da pessoa humana”. Segundo o Deputado Federal, autor do projeto, o objetivo dessa alteração na lei
seria para “proteger as regras processuais que tratam da prisão preventiva e evitar que prisões
processuais sejam decretadas sem fundamentação idônea e para atender objetos outros, alheios ao
processo ou inquérito” (BRASIL, 2016).
O autor do Projeto de lei também ressalta o fato de que as leis que tratam da premiação
penal sempre manteve atrelado este ato à voluntariedade do colaborador, como condição necessária a
sua validade. Assim, merece destaque o seguinte trecho dessa justificativa:
A Colaboração Premiada pressupõe para sua validade ausência de coação, impondo
uma clara e inafastável liberdade do colaborador para querer contribuir com a
justiça. A voluntariedade exigida pela legislação desde 1999 e assimilada pelo
legislador de 2013 é incompatível com a situação de quem se encontra com a
liberdade restringida. É uma contradição em termos (BRASIL, idem).

O Projeto apresenta outras propostas igualmente coadunadas com a proteção das garantias
processuais, tanto que estabelece como segunda alteração da lei que nenhuma denúncia se
fundamente, exclusivamente, nas declarações do colaborador, reforçando assim, a regra contida no
artigo 41 do Código de Processo Penal, a fim de impedir que ações penais sejam anuladas por
ausência de justa causa ou pela precariedade de elementos probatórios. Desta forma, seria
acrescentado o § 17 ao artigo 4º da Lei nº 12.850, com a seguinte redação: “Nenhuma denúncia
poderá ter como fundamento apenas as declarações de agente colaborador. § 18. As menções aos

414
Como lembra também José Murilo de Carvalho (2008), a cidadania no Brasil padece de um déficit de garantia dos
direitos civis.
415
Conforme divulgado em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1433188.

348
nomes das pessoas que não são parte ou investigadas na persecução penal deverão ser protegidas pela
autoridade que colher a colaboração” (BRASIL, 2016).
Ao ser apresentado e discutido na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime
Organizado da Câmara dos Deputados, o Projeto obteve parecer que rejeitou sua tramitação. O autor
de tal parecer foi o Deputado Federal, que também é delegado da Polícia Civil, Edson Moreira e que,
entre outras críticas, afirmou que “não existe nenhuma correlação, nenhum liame entre o instituto da
delação, que tem natureza penal e o da prisão, que tem caráter processual”416.
Defendeu esse parlamentar, que há a voluntariedade requerida para validar a Colaboração
Premiada, nos termos do artigo 4º, da Lei nº 12.850, de2013, refere-se à liberdade psíquica do
colaborador, que não pressupõe a sua liberdade de locomoção. Além disso, segundo este
entendimento, a prisão cautelar não teria qualquer relação com a Colaboração Premiada, ou porque
não poderia ser imposta como forma de pressionar uma colaboração, ou porque não poderia ser
revogada simplesmente porque houve a colaboração. Para justificar tal orientação, este legislador
citou a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal, quando o Ministro Dias Toffoli, na
condição de Relator, julgou o Habeas-Corpus nº 127.483/PR, acima referido, onde afirma que o
requisito de validade do acordo de Colaboração Premiada é a liberdade psíquica e não a sua
liberdade de locomoção.
Em seguida, em agosto de 2017, o Projeto de Lei nº 4.372, de 2016 foi encaminhado à
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, onde o Relator,
Deputado Federal Paulo Teixeira, lhe concedeu parecer favorável, apoiando sua decisão na doutrina
de Badaró (2015), para quem
Desnudada, é fácil perceber que a delação premiada, eufemisticamente denominada
“colaboração processual”, reduz-se a uma sistemática de punir, ouvir e confessar.
Cautelarmente, mas sem o término do devido processo legal, o investigado é privado
de sua liberdade e de seus bens. Depois, mediante a delação, ele concorda em abrir
mão de sua liberdade e de seus bens, abdicando do devido processo legal que é
substituído pelo consenso. Simples assim! E o resultado: uma pena não prevista em
lei – algo como regime aberto diferenciado – que não é fruto do processo, mas do
acordo, renunciando, até mesmo, ao habeas corpus em cláusula contratual.
Eis no que se transformou a delação premiada do investigado preso. Se não houver
uma vedação a essa perversa metodologia inquisitória, o processo penal correrá o
risco de não mais servir para garantir os direitos fundamentais de investigado preso.
As delações de investigados presos são um terrível retrocesso. Devem ser
consideradas inválidas, por não atenderem ao requisito do caput do art. 4º da Lei nº
12.850/2013, que exige a voluntariedade da colaboração.
E se um investigado preso desejar fazer a delação e o Ministério Público assim
considerar que tal colaboração poderá ser efetiva? Que este dê o primeiro passo,
postulando a soltura do investigado que se dispõe a ser colaborador. Solto, terá a

416
Disponível em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=9B188C8C00057F8494AB5A8BDF3BB83
A.proposicoesWeb2?codteor=1485107&filename=Parecer-CSPCCO-22-08-2016.

349
liberdade que lhe dará a voluntariedade para aceitar ou não a delação. A lógica não
pode ser “prender para delatar”, mas no caso de investigados presos, soltar para
voluntariamente delatar!
Se nada for feito, no futuro nos restará postular a anulação dos contratos de delações
premiadas de investigados presos, invocando como fundamento o Código Civil, que
em seu artigo 171, inciso II, ao tratar da invalidade dos negócios jurídicos, considera
anulável negócios jurídicos celebrados mediante “coação” ou em “estado e perigo”!

O parlamentar, autor do parecer acima, também acresceu a sua argumentação o parecer


emitido pelo Instituto dos Advogados Brasileiros e anexado aquele Projeto de Lei, no qual declara
que “trancafiar uma pessoa com a finalidade precípua de convencê-la a colaborar com a apuração de
crimes e restituir-lhe a liberdade como um prêmio, uma vantagem a ser concedida em troca do
fornecimento de nomes de possíveis cúmplices fere o princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana. Ademais, não pode, de forma alguma, ser considerada espontânea uma confissão, e possível
delação, extraída do investigado nestas condições” (BRASIL, 2016).
Este foi o último andamento do referido Projeto de Lei, visto antes da conclusão desse texto.
No entanto, em agosto de 2018, uma decisão judicial veio confirmar uma dessas propostas. Isso
aconteceu quando a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal rejeitou a denúncia oferecida pelo
Ministério Público Federal no Inquérito (INQ) 4.074 contra o senador Ciro Nogueira (PP/PI), seu
assessor Fernando Mesquita e o empresário Ricardo Ribeiro Pessoa, diretor da UTC Engenharia, e
por unanimidade rejeitou a acusação contra os advogados Fernando de Oliveira Hughes Filho e
Sidney Sá das Neves, todos envolvidos na Operação Lava Jato417.
Como já comentei aqui, especialmente a partir destas Operações Lava Jato e correlatas, a
Suprema Corte passou a desempenhar o papel de tribunal criminal, apreciando os procedimentos que
se originam dessas investigações, bem como acumulou a tarefa de julgar os respectivos recursos e
pedidos de Habeas Corpus. Neste julgamento, a suprema corte brasileira decidiu que a denúncia
baseada apenas em delação premiada não poderia ser recebida pelo juiz, devendo o procedimento de
investigação (ou inquérito policial) ser arquivado418, confirmando, assim, esta proposta registrada no
referido Projeto de Lei.
Como este julgamento apenas se aplica ao caso objeto do pedido significa que esta Corte vir
a ser novamente consultada por outros Habeas Corpus. Como suas decisões não resultam de
consenso, como De Seta (2015) já afirmou, o tratamento acima exposto pode ou não se repetir.
Também não se pode deixar de mencionar que a lógica do contraditório que permeia as práticas e
discursos do campo jurídico e que impõe o dissenso, também está presente nas decisões colegiadas

417
Conforme divulgado em https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/612630886/2a-turma-rejeita-denuncia-contra-senador-
ciro-nogueira-e-ricardo-pessoa.
418
Conforme divulgado em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=386825.

350
deste tribunal, assim como são conflitantes as doutrinas que seus integrantes adotam durante os
debates que antecedem suas decisões. Desta forma, é comum a concorrência e variedade de
interpretações e de julgamentos mesmo quando se trata de decisões emitidas por este órgãos
colegiados, conforme afirmou De Seta (idem).
O que todos esses discursos revelam é o complexo e exaustivo exercício retórico dos seus
autores, o que denota a luta concorrencial pela aplicação do Direito (BOURDIEU, 2007a), presente
em todas as instituições brasileiras (jurídica e política) e o difícil abandono de práticas e
representações inquisitoriais, perpetuadas e reproduzidas no processo penal brasileiro desde sua
fundação até os dias atuais.
Esta profusão de entendimentos acerca da Colaboração Premiada remete também ao que
Foucault (1995, p. 241) já disse em relação aos discursos: eles são empregados com o fim de produzir
algo, já que as relações de poder se exercem através das práticas discursivas.
Correlacionando esta orientação, Lenin Pires (2016, p. 14) também lembra que esses
discursos, evidentemente, são produzidos para surtir efeitos sobre determinados indivíduos ou grupos
e se instituem a partir de um lugar social em que interesses particulares ganham relevância. Afinal,
como o autor afirma, se o discurso pode ser pensado como um “lugar”, demonstrando uma posição
social, ele se institui com base em um propósito político e com intenções, muitas vezes, de poder.
Chamo também a atenção para o fato de que todas as discussões acima mencionadas se
referem a uma modalidade de crime e de autores que estão “no andar de cima” - como afirmou um
dos entrevistados - da clientela atingida pela persecução penal no Brasil, qual seja, a da
macrocriminalidade Os crimes e criminosos considerados “comuns”, os “do andar de baixo”,
portanto, não são lembrados, ainda que representem o elevado índice – mais de 700 mil presos, com
base em estatística do Sistema Penitenciário brasileiro, realizada em 2017 - que colocou o país em
terceiro lugar, no ranking mundial relativo à quantidade de presos, apenas ficando atrás dos EUA e
da China419. No entanto, ele é o único país, dentre os citados, que vem aumentando a taxa de
aprisionamento, como também o que ostenta o maior número de presos sem condenação em primeira
instância (40%)420..
Este fato levou o próprio Ministro de Segurança Pública a admitir que a nossa persecução
criminal estava mais voltada para o aprisionamento do que para a “inteligência”, referindo-se à

419
Chama a atenção o fato de o próprio governo brasileiro prever que em 2025, haverá no país, aproximadamente, um
milhão e quinhentos mil presos419.Conforme divulgado em https://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/deutschewelle/2017/12/08/brasil-e-terceiro-pais-com-maior-numero-de-presos.htm.
420
Ver Kant de Lima e Mouzinho (2016; 2018) quando criticam a invisibilidade destes dados, em comparação à
repercussão dada às Operações Lava-Jato.

351
ausência de um sistema criminal mais eficaz em suas investigações421. Além disso, a maioria destes
aprisionamentos referiu-se a crimes contra o patrimônio (40%); tráfico de entorpecentes (26%) e
contra a vida (14%). A taxa de aprisionamento era de 352,6 a cada 100 mil habitantes. Por sua vez, a
taxa de óbitos - por mortalidade violenta ou doenças adquiridas no sistema prisional -, constitui outro
dado alarmante: estimava-se que era de 95,23 presos, dentre 100 mil habitantes no sistema prisional,
em levantamento feito em 2014 pelo Senado Federal422.
Em agosto de 2018, o Conselho Nacional de Justiça divulgou seu Cadastro Nacional de
Presos423, comunicando que havia no Brasil 602.217 pessoas privadas de liberdade – nesse total
incluídas as prisões civis e internações como medidas de segurança -, distribuídas nas unidades da
Federação424. Além disso, cerca de 190 mil mandados de prisão foram emitidos em todo o país e se
encontravam em fase de cumprimento, o que elevaria para cerca de 100 mil a mais a quantidade de
presos no país, comparado ao levantamento produzido no ano anterior.
Este cadastro atualiza os dados já informados, embora mantendo a taxa de 40% (quarenta
por cento) dos presos cumprindo pena sem condenação em primeira instância425. Já em relação aos
crimes, 27,58% refere-se a roubo, simples ou nas suas formas agravadas, excluído o latrocínio;
24,74% ao tráfico de drogas e condutas correlatas; 11,27% ao homicídio, e 8,63% ao furto. Somente
entre outubro de 2017 a agosto de 2018 foram computadas 109 mortes de presos no país, não sendo
informadas suas causas. Do total de 1.456 estabelecimentos penais no país, em 474 deles houve
mortes de detentos. Ao todo, foram registrados maus-tratos aos presos em 81 estabelecimentos e em
436 unidades foram registradas lesões corporais, sendo ambos os crimes praticados pelos próprios
funcionários destas instituições.
No Rio de Janeiro, até o final da elaboração deste texto, existiam mais de 50 mil presos para
28 mil vagas nos 45 presídios em funcionamento no Estado, segundo informação da Secretaria

421
Conforme divulgado em https://www.justica.gov.br/news/copy_of_collective-nitf-content-26 e
http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen.
422
Conforme divulgado em http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/fcba53db-0aee-46fa-a49d-
ff22326f9781.
423
Dados retirados do Banco Nacional de Mandado de Prisão – BNMP, instituído pela lei nº 12.403/2011e regulamentado
pela Resolução nº 137/2011, do Conselho Nacional de Justiça. Os dados foram alimentados pelos Tribunais de Justiça e
Tribunais Regionais Federais. Conforme divulgado em
http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/987409aa856db291197e81ed314499fb.pdf.
424
De acordo com este documento, São Paulo e Rio Grande do Sul não atualizaram as informações até a data da sua
emissão, o que significa a possibilidade de elevação desses números. Consideram-se presos e internados da Justiça
apenas as pessoas privadas de liberdade em razão de ordem de constrição proferida no curso de processo de
conhecimento até o advento eventual condenação, ainda que sujeita a recurso, bem como os presos que cumprem pena
no Sistema Penitenciário Federal.
425
O documento afirma que são computados como presos sem condenações, as pessoas já condenadas em primeiro grau,
mas cujas guias de recolhimento à Justiça ainda não foram expedidas.

352
Estadual de Administração Penitenciária - SEAP426. Em 2017, dados levantados pela Defensoria Pública
do Estado427, informavam que a taxa de presos sem condenação em primeira instância também era de
40%. A maioria dos internos possuía apenas o ensino fundamental. Devido às precárias condições de
vida nestes estabelecimentos, o número de mortes foi dez vezes maior do que o registrado em 1998 –
ano em que foi realizado o último concurso para o ingresso de profissionais de saúde no sistema
carcerário do Estado -, o que levou a Defensoria Pública a ingressar com uma ação civil pública
contra o governo estadual e a prefeitura da cidade, em 2018. Em questionário aplicado pela
instituição durante o atendimento aos presos nas audiências de custódia, entre 2015 a 2017, foi
informado que de um grupo de 10.477 pessoas presas em flagrante, 35% declararam ter sofrido
agressão, maus-tratos e tortura por ocasião da prisão428.
Por fim, merece destaque a existência de 1,46% imputações relativas a crimes contra a
Administração Pública e 0,79% de crimes previstos na lei das organizações criminosas, o que
representava 2,25% do total das imputações, confirmando a baixa incidência dos crimes “do andar de
cima” e que equivale a parcela da população investigada pela Operação Lava-Jato e suas correlatas.
Curiosamente, os dados acima indicados não suscitaram a repercussão midiática, ao contrário do que
vimos acontecer nos últimos anos em relação aos crimes e criminosos apontados pela Operação
Lava-Jato429.
Kant de Lima e Mouzinho (2016, p. 523) já haviam alertado para o fato de que o movimento
de punição desencadeado pela Operação Lava-Jato contra os alvos “não habituais do processo penal
brasileiro”, demonstrando não só a incipiência desse movimento, diante do elevado número de presos
no Brasil – contra os quais não havia sequer a sentença condenatória de primeira instância -, mas
também a profunda injustiça resultante da aplicação de critérios desiguais que orientam os
julgamentos e as representações sobre as consequências das condenações penais e o papel da
administração da justiça no Brasil. Os autores também chamaram a atenção para o fato de que nem
mesmo quando o processo criminal brasileiro muda seu alvo para atingir a parcela da população
brasileira mais favorecida economicamente, a desigualdade jurídica não é alterada, apenas o “ethos

426
Conforme divulgado em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/rj-tem-quase-o-dobro-de-presos-para-a-
capacidade-do-sistema-penitenciario.ghtml.
427
Conforme divulgado em http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/c2f0263c194e4f67a218c75cfc9cf67e.pdf e
http://www.defensoria.rj.def.br/uploads/arquivos/45510204f9c74311b8dd7d297492be34.pdf
428
Conforme divulgado em http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/5422-De-10-477-pessoas-presas-em-
flagrante-35-foram-agredidas.
429
Enquanto isso, os Projetos de Leis que tramitam no Congresso Nacional se referem, exclusivamente, à redução de
pena para o presidiário que esteja cumprido sentença condenatória e tenha bom comportamento (PLS nº 147/2017) e o
que permite aos juízes multarem os estabelecimentos penais em más condições (PLS nº 37/2017). Por fim, há o Projeto
de Lei do Senado (PLS nº 580/2015) que obriga os presos a ressarcirem o poder público pelos custos da detenção,
conforme divulgado em https://g1.globo.com/politica/noticia/comissao-do-senado-aprova-projeto-que-obriga-presos-a-
pagarem-pelos-custos-da-detencao.ghtml e https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/09/19/plenario-pode-
votar-projeto-que-obriga-preso-a-ressarcir-gastos-com-prisao.

353
inquisitorial da sujeição criminal” é mantido. Segundo os autores, esta assimetria das relações sociais
gera o efeito de só se conseguir atingir a igualdade quando a sujeição criminal (Misse, 2008) dos
poderosos é realizada, empregando-se sempre o mesmo critério que sujeita as classes menos
favorecidas economicamente. Desta forma, os autores ressaltam que entre nós, nem mesmo quando a
justiça é aplicada de maneira igualitária (entre poderosos e cidadãos comuns), isso não significa a
atualização da ordem jurídica burguesa e sua ideia de cidadania, enquanto esfera mínima de direitos
decorrentes do pertencimento a um Estado, preceito este consagrado na obra de Marshall (1965).
O próprio poder do Ministério Público, sedimentado na ordem jurídica brasileira pelo texto
constitucional de 1988, foi muito ampliado, na prática, a partir do advento do instituto da
Colaboração Premiada, como afirmou o entrevistado abaixo citado:
- “O Ministério Público, no cenário das Colaborações Premiadas ganha uma atuação
muito mais abrangente. Com a Constituição de 88, junto com as prerrogativas do
Ministério Público, vieram também as responsabilidades. De positivo, o que eu
percebo, é que desde então, a instituição veio evoluindo, ocupando cada vez mais os
seus espaços, exatamente no exercício dessas funções que foram constitucionalmente
deferidas. Ainda há muito a avançar. Por exemplo, hoje se fala muito em combate à
corrupção e eu acho que hoje, no Ministério Público, nesse aspecto, ganhou sim, um
protagonismo importante. Talvez isso fique como legado. Porque a população está
enxergando no Ministério Público uma instituição que tem o dever de atuar no
enfrentamento da corrupção”.
(MPF1)

É interessante notar que o entrevistado não atribui, explicitamente, o protagonismo do


Ministério Público ao fato de terem evoluído as investigações técnicas e de inteligência das agências
de controle e fiscalização ou ao amadurecimento das práticas de Justiça Negocial, mas, tão-somente,
em razão das Colaborações Premiadas, pelo fato de o instituto levar à verdade real e à confissão,
que sempre foram os principais objetivos do inquérito policial. Ainda que o instituto inove
empreendendo uma dita Justiça Negocial, ele se coaduna com as características inquisitoriais do
processo penal brasileiro tradicional pelo menos nos seus objetivos: confissão, verdade real e
punição.
Como lembra Pires (2016) os discursos dos operadores constituem um discurso-ação, na
medida em que reforçam a demarcação do lugar ocupado pela instituição - o Quarto Poder -, mesmo
quando seu “território” de atuação é ampliado para além dos casos dos “pés de chinelo” e quando
almejam a permanência de cláusulas pactuadas nesses acordos, até mesmo impedindo aos juízes
alterá-las. Vale lembrar que a instituição possui o mesmo tratamento constitucional, as mesmas
prerrogativas e autonomia financeira e funcional que recebem os Poderes Judiciário, Executivo e
Legislativo. Trata-se de uma instituição que atua no processo penal como custos legis, além de ser
considerada como essencial à Justiça; investigadora dos crimes e defensora da sociedade. A

354
antecipação da aplicação da pena, realizada com ampla dose de arbitrariedade - sem a instauração do
devido processo judicial – e livre de qualquer fiscalização, era a atividade que faltava, nessa lista
interminável de atribuições (e de poder). Por isso, no interior dos discursos de combate à corrupção, a
justificativa para a ampliação de este poder é superestimada pelos operadores.
A ampliação do poder não se refere também à possibilidade de qualificar ou intensificar o
trabalho dos membros do Ministério Público ou a presença da instituição fiscalizando a aplicação da
lei nos casos denominados de crimes comuns (os “do andar de baixo”), que constituem o índice mais
elevado no país, como se viu. Ao contrário, o foco se dirige à macrocriminalidade (crimes “do andar
de cima”), aqueles praticados por sujeitos que detém poder econômico, social e político no país.
Tendo em vista a repercussão social e política que tais casos acarretam - já que atingem cidadãos que
em razão do seu capital (BOURDIEU, 2013) são considerados pelos operadores como “especiais”;
aqueles que ocupam o “andar de cima” na hierarquia da sociedade brasileira – é garantida a
visibilidade do órgão e de seus membros.
A representação que divide os criminosos em “andar de cima” e “andar de baixo” remete à
pesquisa de campo que Nuñes (2019) realizou junto ao Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, quando
também demonstrou a existência dessa hierarquização, vinculada à exteriorização de valores morais -
moralidades situacionais (EILBAUM, 2012) – naquele contexto, no qual Ministério Público, juiz e
Defensoria adotam como referência, para a tomada de decisões em relação a quem é julgado.
Comparando com o que foi descrito por Bisharat (2015), não se tratam de valores da sociedade como
se pretende seja o Júri. Ao contrário, Nuñes elenca as categorias que orientam as decisões de maior
ou menor relevância para o processo - e que tanto determinam o percurso quanto o tratamento que os
casos receberão -, fundadas em tais moralidades, que são traduzidas por classificações que se opõe,
tais como, “trabalhadores” X “bandidos”; “mãe de família” X “namoradeira” etc. A autora também
descreve que é esta moralidade que justifica a punição que os representantes da acusação e da defesa
irão transacionar entre eles, significando o que estes atores consideram que os réus merecem
(NUÑES, idem, pp. 203-254). Assim, todo o aparato judicial e não apenas o Ministério Público, age
explicitamente “entortado”, desigualando os cidadãos. Julgam os crimes, não pela infração cometida,
mas, pelo status da pessoa que o cometeu.
É bom lembrar, como já assinalaram Kant de Lima e Mouzinho (2018), que esses fatos
remetem a uma noção que acompanha os discursos e as práticas dos operadores jurídicos desde
sempre e que reproduzem a doutrina de João Mendes de Almeida Júnior (1920), quando indicava a
necessária correlação entre a desigualdade social e jurídica e a inquisitorialidade dos procedimentos
penais, fossem eles policiais ou judiciais. De acordo com este autor, o Estado desempenharia o papel
de mediador dos conflitos da sociedade, definindo previamente, a seu critério (leia-se: dos seus

355
agentes), qual deveria ser seu tratamento jurídico ou judiciário, conforme fossem conflitos entre
iguais ou entre desiguais, considerando-se seu respectivo status social e jurídico. O campo jurídico
brasileiro mantem esta noção desde a inauguração das faculdades de Direito no Brasil no século XIX,
como já afirmaram Kant de Lima (1995) e outros.
Ao examinarem o instituto da delação premiada a partir do caso do Mensalão, Kant de Lima e
Mouzinho (2016, p. 523) também ressaltaram a insignificante quantidade de alvos não habituais do
processo penal brasileiro desencadeado pelo movimento de punição e “a profunda injustiça dos
critérios desiguais que orientam os julgamentos e as representações sobre as consequências das
condenações penais e o papel da administração da justiça no Brasil”.
Como os entrevistados nesta pesquisa afirmaram que a Colaboração Premiada se insere no
modelo de Justiça Negocial Penal, conjuguei a análise doutrinária e jurisprudencial neste exercício
porque a voluntariedade do pactuante - em que pesem os argumentos relativos à espontaneidade do
ato -, é considerada por tais discursos como pressuposto necessário à validade do acordo, como é
exigida para a validade de qualquer negócio jurídico.
Vale ainda destacar que, dentre os entrevistados, houve também argumentos que
reproduziram a ideia segundo a qual o acordo de Colaboração Premiada poderia constituir uma
técnica da defesa do colaborador, como são exemplos os trechos das entrevistas abaixo citados:
- “Muitos advogados tradicionais, de grandes bancas, que passaram a fazer acordo de
Colaboração Premiada, porque entenderam nisso como um meio de defesa muito
mais eficaz do que, simplesmente, oferecer uma resistência num processo que, muito
provavelmente, vai gerar condenação do seu cliente. Então, assim, a natureza da
Colaboração Premiada, é meio de obtenção de prova e é meio de defesa também.
Muito se critica porque o Estado estaria se valendo de uma traição, e tal... Mas, na
verdade, o Estado está só prestigiando um meio de defesa que o colaborador tem e
que ele já exercia com outros institutos, como a confissão, o arrependimento
posterior, o arrependimento eficaz, né? E a própria delação, que já existia antes”.
(MPF3)

- “Eu entendo que o advogado do delatado se oponha à delação. Porque é parte do


trabalho dele como advogado, fazer o que estiver ao seu alcance para melhor
representar o interesse daquele que o constitui para a sua defesa. Só que não dá para
esquecer que a delação, além de ser um negócio jurídico processual, além de ser um
meio de obter prova, ela também é um instrumento de defesa”.
(MPF4)

Como técnica de defesa, a Colaboração Premiada poderia ser entendida como um instituto
que privilegia a ampliação do espaço de consenso e que valoriza, na definição das controvérsias
relativas ao ilícito criminal, a adoção de soluções fundadas na própria vontade dos sujeitos que
compõem e integram a relação processual penal. Contudo, como se viu acima, apesar de estes
entrevistados admitirem a Colaboração Premiada como um instrumento da Justiça Negocial Penal,

356
os argumentos que defendem – seja quanto ao emprego da prisão preventiva para “estimular” outras
pessoas a colaborarem e desvendarem outros crimes (MPF3), ou à classificação da sociedade e do
direito brasileiros como “refratários ao consenso” (MPF4) -, continuam mantendo as representações
de uma tradição inquisitorial.
Caracterizar o acordo de Colaboração Premiada como uma técnica da defesa do
colaborador, assim como afirmar que seria injusto não permitir ao colaborador tal estratégia de
defesa, aproxima-o da noção de direito (faculdade) do colaborador. Ao ser traduzido como um direito
do investigado/acusado, consequentemente, significaria afirmar que o juiz e não apenas o Ministério
Público, deveria assegurá-lo. Para garantir tal direito, o juiz teria que adotar uma das seguintes
providências: ele mesmo oferecer o acordo - o que a Lei nº 12.850, de 2013 expressamente proíbe -,
ou determinar que o membro do Ministério Público o fizesse. Neste último caso, o magistrado estaria
invadindo a esfera de “discricionariedade” do órgão de acusação.
O que é interessante perceber nas declarações dos entrevistados, aqui citadas, é o múltiplo
repertório de justificativas que empregam e o engajamento delas em diferentes modos nos percursos
de suas atuações. Desse modo, é possível compreender como a ideia de Justiça Consensual, ou
Justiça Negocial adquire sentidos diversos, de acordo com as moralidades e as gramáticas que
conformam as ações desses atores.

357
CONCLUSÃO

No Brasil, os agentes políticos se confundem com a figura do próprio Estado e “reivindicam


para si o poder de decisão sobre a sociedade” (KANT DE LIMA, 2013). Este poder é representado
pelo discurso da “pacificação da sociedade”, cuja finalidade é tutelar as pessoas, as instituições, os
segmentos sociais etc. Sendo assim, criada para tutelar a sociedade, a lei é expropriada do Estado por
seus operadores, os quais se julgam competentes e legitimados para entendê-la e aplica-la conforme
seus entendimentos, que nem sempre são idênticos e nem precisam sê-lo. Há, portanto, uma
particularização da aplicação da lei, segundo as pessoas que aplicam e às quais a lei é aplicada
(KANT DE LIMA, 2010).
O saber privilegiado dos representantes do Ministério Público e a posição de destaque que
ocupam na hierarquia do sistema criminal, legitima o discurso de autoridade (argumento de
autoridade). Como lembra Perelman (1996, p. 76) “Só estamos em presença de um fato, do ponto de
vista argumentativo, se podemos postular a seu respeito um acordo universal, não controverso”. A
“autoridade dos argumentos”, portanto, acontece quando promovida dentro de uma lógica
argumentativa em que há consenso entre indivíduos que se consideram como iguais. Por este motivo,
não pode existir uma argumentação fundamentada em fatos, em ordenamentos jurídicos nos quais
privilegiam-se as hierarquias dos saberes estabelecidas pela força do “argumento de autoridade”.
O sistema jurídico brasileiro reduz, ou mesmo dificulta a possibilidade de um acordo entre as
partes envolvidas no processo judicial acerca dos elementos fáticos, o que impede a existência do
próprio fato no processo. Desta forma, “a ausência da consensualização sobre o que é fato no Direito
brasileiro, inviabiliza a construção da verdade pela argumentação” (FERREIRA, 2013). O campo
jurídico - visto como uma cultura -, reflete os padrões sociais, de tal forma que mesmo as produções
intelectuais desse campo reproduzirão a hierarquização social da desigualdade entre indivíduos, do
“Você sabe com quem está falando?” descrito por Da MATTA (2006). Resultado: a lógica do
“argumento de autoridade” é reafirmada no campo jurídico, que se torna impermeável e refratária às
críticas fundadas na “autoridade dos argumentos”.
Durante a pesquisa pude verificar que a forma de representar os papéis sociais está associada
à reprodução e perpetuação de um sistema de ensino jurídico pensado e destinado a reconhecer,
referendar e legitimar o exercício da autoridade jurídica distante de outras áreas do conhecimento
(BOURDIEU, 2007b). A autoridade jurídica exerce sempre violência simbólica, com reconhecimento
social, tendo como finalidade assegurar o valor social de sua ação.

358
Esta tradição gera também o efeito de naturalização dessas orientações hierárquicas e
desiguais – a exemplo da classificação da clientela atingida pelo sistema processual penal e
representada pelo binômio andar de cima/andar de baixo - inculcadas nos operadores deste campo.
Excluindo-se raríssimas exceções, os entrevistados acreditam poder combater a corrupção no país –
por eles considerada sistêmica – apenas acionando o processo penal e seus efeitos punitivos.
Acreditam, por conseguinte, que a sociedade brasileira deve ser protegida das consequências nefastas
dessa modalidade de crime e que constitui seu papel institucional defendê-la.
Distantes da empiria, seus discursos aproximam institutos processuais penais de origens
distintas, chegando a defender a semelhança entre a tradição jurídica brasileira e a experiência anglo-
saxônica, onde o individualismo e a liberdade de contratar fundaram a noção de responsabilidade.
Desconsideram que o que equilibra a igualdade das partes - tomando como exemplo o processo penal
norte-americano -, na “colaboração negociada”, ou no “negócio”, é o fato de o processo judicial
pertencer ao acusado (BISHARAT, 2014; 2015). Neste sistema, a autonomia do acusado resulta do
fato de poder negociar o direito ao processo com o órgão de acusação, já que é o titular desse direito.
Se quiser abrir mão dele, ou seja, aceitar a proposta do acusador para que não haja processo, pode
fazê-lo. Nos Estados Unidos, o equilíbrio entre as partes decorre do direito constitucional que
assegura ao acusado o trial by jury, de um lado, e, de outro, o desejo da acusação em terminar o
processo e, com isso, evitar os custos financeiros, institucionais e humanos (Bisharat ibidem).
Aqui, entre nós, o acusado não tem nenhuma alavanca que possibilite o equilíbrio da
negociação sobre o órgão de acusação. O equilíbrio está assim prejudicado. O processo é do Estado e
o Ministério Público é quem tem poder para decidir se vai ou não denunciar, ainda que limitado pelo
princípio da obrigatoriedade da ação penal que impõe a ele tal dever, quando presentes, a seu juízo,
provas suficientes da materialidade e da autoria de um crime. Mesmo que o investigado/acusado
queira assumir sua culpa pelo fato criminoso que lhe foi imputado, isso não evitará a instauração do
processo. Então, que semelhança existe entre os dois contextos?
Ao que tudo indica, os discursos que defendem esta aproximação estão praticando o que, nas
relações de consumo é denominado de “propaganda enganosa”. Ao dizerem que o colaborador
brasileiro pode negociar com o nosso Ministério Público, nos mesmos moldes em que o acusado
norte-americano negocia com o district attorney daquele sistema, estão “vendendo” um processo
penal “enganoso” e sequer são responsabilizados por isso.
Enquanto instituto inserido no nosso sistema processual penal, com a finalidade de
instrumentalizar a persecução penal e que poderia promover o diálogo entre as partes, privilegiando o
consenso, a Colaboração Premiada acaba cumprindo a mesma sorte de outros institutos penais
anteriormente criados com essa finalidade, tais como a transação penal e a conciliação. Reproduzida

359
em um modelo processual penal marcadamente inquisitorial, o resultado de sua operacionalização
consiste em o Estado - a partir do oferecimento de benefícios penais a sujeitos que muitas vezes já
estão presos preventivamente -, conseguir a confissão e provas, praticamente irrefutáveis, que levem
à verdade real, à incriminação de outros sujeitos e a punição de todos.
Ainda que os operadores insistam em descrever o acordo de Colaboração Premiada como
instituto semelhante ao que existe na tradição constitucional estadunidense, desqualificando, assim,
essa nossa tradição de quinhentos anos de história de procedimento criminal investigativo
inquisitorial, é preciso ressaltar, justamente, como aqui transformamos direitos em privilégios;
consenso em imposição da vontade de um dos lados; argumento de autoridade, em detrimento da
autoridade do argumento. Quem sabe assim, assumindo de uma vez por todas o quanto inquisitorial
permanece o processo penal brasileiro e o quanto defendemos as desigualdades materiais e jurídicas,
possamos parar de nos enganar, sem a necessidade de importarmos - e nos importarmos com - ideias
ou institutos de outras tradições.
Dessa forma, é interessante observar a tentativa de se criar um espaço que favoreça uma
composição de interesses por meio do estabelecimento de limites de convivência que respeitem,
inclusive, o dissenso, em face do reconhecimento da correlação de forças existentes. A questão que
se impõe é: como instituir uma consciência consensual em uma sociedade onde seus cidadãos não se
veem como iguais e onde falta um limite claro entre a validade de direitos e privilégios?
O sistema jurídico norte-americano segundo Bisharat (2014; 2015), tanto pode ser
considerado como sistema do júri quanto o do plea bargaining. Por sua vez, o sistema jurídico
brasileiro não é nem um sistema onde a verdade é construída pelos representantes da sociedade que
reunidos entre si, julgam um fato a partir de suas experiências partilhadas mutuamente, nem um
sistema onde o consenso determina qual será o fato objeto da barganha. Aqui não há sequer uma
audiência preliminar com esta finalidade. Se fosse empregar uma metáfora para representa-lo, diria
que ele é um crocodilo com asas de borboleta, como certa vez, durante uma discussão no grupo de
pesquisa do InEAC/UFF, empregou o professor Roberto Kant de Lima, ao se referir ao nosso sistema
jurídico.
Não estou afirmando, com isso, que o nosso sistema tenha que ser igual ao modelo
estrangeiro, ou que este seja melhor que o brasileiro. No entanto, fica difícil imaginar que um sistema
jurídico possa se orientar, ao mesmo tempo, por duas lógicas completamente antagônicas e no final
ainda produzir um resultado democrático, na medida em que é representado por uma fase que

360
estabelece o processo penal do tipo inquisitorial, enquanto outra lhe atribui feição contraditória,
sendo, por esta característica, denominado de sistema acusatório misto430.
Como lembra Kant de Lima (1992, p.163), “o sistema acusatório afirma o fato e presume a
inocência até que o prova; o sistema inquisitório não afirma o fato, pressupõe sua possibilidade e
probabilidade, presume um culpado e busca e colige indícios e provas. No sistema acusatório quer-se
convencer o juiz da culpa do acusado; no sistema inquisitório propõem-se ao juiz indícios suficientes
para que a presunção seja transformada em realidade. No sistema acusatório a preocupação é com o
interesse individual lesado pelo processo, no inquisitório, o que preocupa é o interesse público lesado
pelo delito”.
Nesse contexto, torna-se mais difícil ainda acreditar que a nossa Colaboração Premiada
possa ser uma cópia fiel, ou, até mesmo, uma inspiração retirada da Plea Bargaining norte-
americana. Afinal, qual o problema em admitirmos que inauguramos um instituto a partir de nossas
experiências e tradição inquisitorial? Seria, por acaso, ultrajante demais à cultura jurídica nacional
admitir que em pleno terceiro milênio ainda sejam mantidos, especialmente no nosso processo penal,
práticas e discursos que remontam aqueles produzidos pelo Tribunal do Santo Ofício da Idade
Média?
Afinal, independentemente da ordem jurídico-político-constitucional em vigor, continuamos
reproduzindo, desde o Brasil colonial, procedimentos de descoberta da verdade, relativas às infrações
penais, combinadas com os métodos escolásticos de ênfase inquisitorial, já que “A herança ibérica
que associa o crime ao pecado continua influenciando a base do nosso sistema de punição e,
principalmente, o nosso processo de descoberta dos fatos” (KANT DE LIMA, 1992, p. 96). Neste
sistema, a confissão e o arrependimento permanecem como principais instrumentos para o
estabelecimento da verdade.
Ora, a Colaboração Premiada, tal como praticada pelo campo jurídico brasileiro, combina
exemplar e completamente com os objetivos do sistema criminal tradicional. Até aqui, a confissão
constituía o principal objetivo deste sistema. Com a Colaboração Premiada, além da confissão,
privilegia-se a verdade real. A eficiência do instituto não implica, necessariamente, no
aperfeiçoamento do processo penal brasileiro e, muito menos, no crescimento e no aprimoramento da
nossa cidadania.

430
Os discursos jurídicos brasileiros perpetuam a ideia de que o nosso sistema processual penal é acusatório misto (ou
acusatório com laivos de inquisitivo, como afirma TOURINHO FILHO, 2010, p. 77), sob a justificativa de que ele
reúne, no mesmo procedimento, uma fase inquisitorial e outra contraditória. A primeira seria a fase preliminar de
investigação, geralmente a cargo das instituições de controle e fiscalização, como a Polícia ou o Ministério Público, e a
segunda, a fase judicial, sob a presidência do magistrado.

361
As possíveis transformações que aconteceram a partir do Estado moderno, na tradição
ocidental (tanto anglo-americana quanto europeia continental), em sua luta pelo monopólio e
universalização dos mecanismos estatais de resolução dos conflitos – de seu julgamento – essenciais
para a preservação e construção da ordem pública, assumiram contornos muito distintos entre nós.
Afinal, enquanto nessas tradições as sucessões de modelos de controle social e as formas jurídicas de
construção da verdade justificaram a passagem do inquérito ao exame (ou ao trial by jury), como
visto em Foucault (2002) ou em Berman (2006), aqui sincretizamos esses modelos importados sem
qualquer preocupação (aparentemente) com o que a ambiguidade gerada por esse processo pode
acarretar para o exercício da cidadania. Aqui, a tradição e a modernidade; a inquirição, o inquérito e
o exame não se sucederam (ou se opuseram) como em outras tradições. Ao contrário, eles “convivem
em uma harmonia hierárquica, holística e ambígua, capaz de revelar características e vicissitudes
peculiares a nossa sociedade, em sua formulação como Nação, em um Novo Mundo íbero-latino-
americano” (KANT DE LIMA, idem, p. 110).
Assim, ainda que tenhamos um tribunal do júri, com competência exclusiva para julgar os
crimes dolosos (praticados com intenção) contra a vida e crimes conexos, esta instituição em nada se
assemelha ao trial by jury norte-americano. Aliás, pesquisas de campo que contrastam os dois
sistemas como as de Kant de Lima (1995; 1999; 2006; 2010, entre outras); Ferreira (2004; 2013) e
Nuñes (2018, 2019), indicam que a lógica do processo criminal brasileiro é totalmente distinta
daquele modelo. A começar pelo fato de que naquele sistema, o processo judicial é visto como um
direito do cidadão, enquanto aqui, é dever do Estado. Aqui, as partes que contendem no processo
judicial brasileiro (seja ele penal, civil, administrativo etc.) não são adversárias no sentido afirmado
por Bisharat (2014; 2015). Elas produzem teses antagônicas, segundo uma lógica do contraditório
que se eterniza até que sobrevenha a decisão de um terceiro - o juiz -, que impõe seu término, como
Kant de Lima (1995, entre outras referências) já afirmou. O mesmo advogado pode defender um
argumento em determinado sentido em um processo específico e em outro, utilizar argumento
completamente oposto aquele.
Além disso, a verdade produzida pelas partes não resulta de um consenso com vistas a obter
a resolução do conflito. Ao contrário, elas visam a convencer o magistrado e este, por sua vez,
também produz a própria verdade, que pode até contrariar aquelas produzidas pelas partes, além de
decidir conforme seu livre convencimento, como Mendes (2011) e De Seta (2015) já demonstraram.
Como cada um produz sua verdade, a “verdade vencedora” é escolhida a partir do
argumento da autoridade (do juiz). Não existe aqui sequer um procedimento ou protocolo que
atribua valores ou a diferenciação entre os elementos probatórios, como Ferreira (2004) viu acontecer
nos processos criminais no Canadá, que seguiam a tradição anglo-saxã. Por fim, aqui, os operadores

362
não diferenciam as categorias evidências, indícios e provas, o que levou Figueira (2007) a concluir, a
partir de pesquisa de campo, que entre nós a categoria prova não possui estabilidade semântica.
Talvez a única semelhança entre os dois sistemas indicados seja mesmo o fator econômico
que determina o fluxo das atividades e das motivações dos operadores e agentes do Estado. Neste
sentido, alguns autores já indicaram o quanto as relações de mercado estão presentes nas prestações
jurisdicionais, nas quais a Colaboração Premiada está inserida (BOTTINO, 2016 e SILVA, 2017,
entre outros), assunto que não foi explorado nesta pesquisa, embora citado em outro lugar (PIRES,
ALMEIDA, 2018).
A Justiça brasileira é apontada pelos discursos jurídicos - inclusive dos próprios operadores -
, como uma atividade morosa, onerosa, incapaz de atender as demandas da sociedade. A estas
características pode ser somada também aquela que a representa como uma máquina de produzir
barganhas, com o único fim de reduzir os custos financeiros para o Estado, não importando se tais
barganhas inflacionam e antecipam as punições, já que prescindem do processo judicial, que leva
junto consigo as garantias constitucionais.
Como os entrevistados afirmaram que a Colaboração Premiada se originou, ou teve como
fonte a Plea Bargaining, não poderia encerrar este texto sem realizar uma rápida comparação entre
estes institutos, apenas renovando o debate já visitado por Kant de Lima (1995; 1997; 2004; 2009-
2/2010); Ferreira (2004; 2013); Figueira (2007) e Mendes (2011), entre tantos outros pesquisadores.
Como foi dito anteriormente, a categoria “bargain” significa, na tradição norte-americana,
um negócio entre duas pessoas e no qual todos os envolvidos ganham, mas também perdem alguma
coisa, ou seja, representa uma relação equilibrada entre as partes que pactuam. Já a categoria
“barganha”, entre nós, embora também assuma esta representação vinculada a acordo ou negócio,
não possui, contudo, a feição de paridade, na medida em que chega até a ser definida como o ato no
qual uma das partes ganha uma situação ou algo de forma fraudulenta (negócio obtido ou realizado
através do uso de subterfúgios ou chamariz), o que resulta, consequentemente, na impossibilidade de
a outra parte também sair vencedora nesse “negócio”.
Em nossa tradição, ainda que os discursos doutrinário constitucional e processual penal
afirmem que o investigado/acusado é presumidamente culpado, até prova em contrário, as
Colaborações Premiadas, mitigam esta orientação, na medida em que o investigado ou
acusado/colaborador produz prova contra si mesmo. A relação entre investigado/acusado não-
colaborador e o membro do Ministério Público é assimétrica porque o primeiro terá que provar sua
inocência contra todo o conjunto de provas produzidas sem a sua participação na fase investigatória.
Garapon e Papadopoulos (2008) afirmaram que a experiência estrangeira da qual se originou
a “barganha” norte-americana, resultou da autonomia individual decorrente da tradição religiosa em

363
que se fundou e na qual o contrato entre as pessoas se tornou a forma jurídica por excelência a
determinar os rumos daquela sociedade. No nosso caso, desde cedo, a religião foi utilizada para
refrear a autonomia dos primeiros brasileiros, já que todos eram considerados pecadores por não se
comportarem segundo os padrões “civilizados” da época e do modelo europeu (especialmente o
lusitano), de onde vieram as primeiras ordens religiosas da Companhia de Jesus 431, acompanhando os
nossos “colonizadores”.
Desde a origem nos submetemos aos habitus da Corte portuguesa. Constituímos uma
colônia explorada economicamente e dividida entre os poderes jurisdicionais dos capitães donatários,
dos juízes (ordinários, das Câmaras) e do rei. O direito que se estabeleceu aqui não resultou de nossas
próprias experiências, mas de um complexo e extenso conjunto de ordenamentos que combinavam as
Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), com o direito canônico - se a matéria
versasse sobre pecado – e com o direito romano (das leis imperiais) - se não se tratasse de matéria de
pecado. O sistema judiciário foi integrado à ordem social e política local, mantendo o sistema de
privilégios sociais sobreviventes do regime feudal e corporativo, praticados na Corte, aliado à união
do Estado e da Igreja, cujas tradições e costumes constituíram fontes privilegiadas do direito. Nem
mesmo nossa independência significou o rompimento com a tradição anterior, o que pode ser visto,
inclusive, pela vigência da legislação penal portuguesa entre nós, mesmo após “o grito do Ipiranga”
(LOPES, 2002, pp. 263-307). A herança eclesiástica contaminou o campo jurídico de forma
profunda, sendo exemplo a reprodução de previsões em nossos textos legais e nas práticas jurídicas,
até os dias atuais, da confissão.
Sem uma tradição negocial e a noção subjacente de que o acordo é assim considerado
quando as partes estão em paridade de condições, resta indagar, afinal, qual é o negócio jurídico que
é feito na Colaboração Premiada? O que o membro do Ministério Público e colaborador estão
negociando? O que é que eles estão ganhando e, ao mesmo tempo, perdendo neste “negócio”?
Enquanto na Plea Bargaining o órgão de acusação negocia o crime a ser assumido pelo
investigado (e a mudança do tipo penal acarretará, consequentemente, a mudança da pena também), o
que consiste, portanto, na negociação da verdade, na Colaboração Premiada, o objeto do acordo é,
exclusivamente, a pena. E o que significa isso? Significa que a acusação não negocia o tipo penal,
não negocia a verdade. Então, o que é que está sendo negociado?
Como os dados da pesquisa indicaram, o investigado/acusado confessa o crime e delata os
coautores para obter os “benefícios penais”, além de explicar – e provar – como funciona a

431
Embora alguns historiadores descrevam a catequização indígena como uma imposição do cristianismo europeu no
Brasil, Carvalho (2012), entre outros, defendem a existência de um “diálogo intercultural” entre índios e jesuítas,
afirmando que nossos índios, em certa medida, conseguiram adaptar a religião europeia à própria cultura.

364
organização criminosa. Ao confessar, justifica a acusação que incide sobre ele. Em troca, o Estado
reduz sua pena ou as circunstâncias que envolvem tão-somente sua punição (“benefícios penais”).
Portanto, por parte do Estado, o que está sendo negociado é somente a pena. A acusação, que
representa o Estado, não negocia o tipo penal porque o nosso direito só admite, espera, persegue e
incentiva a confissão do investigado/acusado. Vale dizer, em termos de busca da “verdade real”, a
acusação não perde nada!
Então, o que é que o colaborador negocia? Mesmo sem entrevistar estes atores, as
informações dos membros do Ministério Público Federal e as declarações que muitos pretensos
colaboradores ou colaboradores arrependidos/desistentes produziram nas mídias nos últimos anos,
indicam que o que estão negociando com o órgão de acusação o seu arrependimento (sincero ou não)
e um único interesse: o de sair o mais rápido possível da prisão ou nem chegar a ingressar nela.
As Colaborações Premiadas se inseriram no bojo das Operações Lava-Jato produzidas nos
últimos anos, como técnica de investigação, e tais procedimentos incidem no combate a crimes
econômicos perpetrados contra o Estado, por pessoas com alto poder aquisitivo e, em alguns casos,
também elevado poder político. Em quase a totalidade dos acordos de Colaboração Premiada, as
penas imputadas a estes atores, ainda que durem dois, cinco, ou dez anos, dificilmente serão
integralmente cumpridas no sistema penitenciário, como acontece com a maioria dos criminosos
considerados “do andar de baixo”, apesar de terem direito à progressão de regime previsto em lei432.
E quando isso acontece, não raras vezes em fase que antecede a elaboração do acordo de
Colaboração Premiada - como foram exemplos os acordos firmados por Jonas Lopes Neto, filho do
presidente do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e Carlos Miranda, operador financeiro do ex-
governador, Sérgio Cabral, entre outros -, a quantidade de tempo de permanência em suas unidades é
extremamente reduzido, já que o restante é cumprido em regime domiciliar, com uso de tornozeleira
eletrônica, ou transformado em serviços de prestação à comunidade ou outra medida não restritiva de
liberdade. Quando estas penas terminam, ou mesmo durante a sua execução, estes atores podem
voltar a gerir suas riquezas e desfrutar de seus bens, pelo menos daqueles que não foram devolvidos
ao Estado. Em função do capital cultural e econômico (Bourdieu, 2013) que desfrutam, alguns destes
atores sequer chegarão perto do sistema prisional brasileiro.
No modelo estadunidense, quando o district attorney perde um júri (não consegue provar a
acusação), sua reputação fica abalada e quando os cidadãos não ficam satisfeitos com sua atuação -
no que ser refere ao seu desempenho à frente da plea bargaining ou de qualquer outro ato - na eleição

432
Há décadas a ausência de equipamentos e instalações suficientes para a realização da progressão de regime vem sendo
denunciada no país (THOMPSON, 2002, p. 120 entre outros).

365
seguinte eles irão votar em outro candidato (Bisharat, idem, p. 139). Vale dizer, há um controle
público e político em torno dos casos em que estes atores abrem mão de promover a acusação.
No Brasil, quando o órgão do Ministério Público consegue pactuar o acordo de Colaboração
Premiada, o processo judicial não é obstado, como acontece quando a Plea Bargaining. Em outras
palavras, a Colaboração Premiada não visa evitar o custo econômico433 e pessoal; o risco de
condenação para o acusado e de absolvição para o órgão de acusação; o estresse; o longo tempo
percorrido pelo processo. Aqui, o acordo é apenas uma etapa que antecede ao processo e este, como
já foi afirmado, pertence somente ao Estado e tem o objetivo de descobrir a “verdade real”. A
conveniência e a oportunidade de realizar o acordo de Colaboração Premiada não passam por
nenhuma valoração política ou pública.
O que perde o Ministério Público quando não consegue elaborar o acordo de Colaboração
Premiada com o colaborador desistente/renunciante? Nada! O órgão de acusação pode oferecer a
denúncia contra ele e requerer a instauração do processo judicial ao magistrado. Como, em geral, são
colhidos diversos colaboradores de uma mesma organização criminosa, ainda que o órgão de
acusação não consiga utilizar as informações oferecidas pelo colaborador desistente - em face da
obrigação firmada, neste sentido, no Termo de Confidencialidade -, os demais colaboradores dessa
organização certamente o envolverão em suas delações e no final das contas, ele será denunciado
também.
O que perde o Ministério Público quando ele não consegue condenar os delatados? Nada!
Nem seu poder e nem sua reputação serão abalados. Não há, muito menos, o risco de perder o
emprego. O máximo que pode acontecer é perder uma promoção ou não ser indicado para algum
cargo político de confiança. A população, mesmo insatisfeita com sua atuação, não pode retirá-lo do
cargo porque sua nomeação é feita pelo Estado e somente o Estado pode demiti-lo e, para que isso
ocorra, é preciso que este servidor seja considerado improbo, ou seja, que cometa o crime de
improbidade administrativa ou outro crime. Não há sanção que incida sobre os membros do
Ministério Público, em face da sua baixa performance de rendimento profissional, como acontece no
modelo estadunidense. A liberdade dos membros do Ministério Público brasileiro em escolher os

433
O Relatório Justiça em Número 2018, do Conselho Nacional de Justiça, informou que somente em 2017, as despesas
totais do Poder Judiciário “somaram R$ 90,8 bilhões de reais, o que representou um crescimento de 4,4% em relação ao
último ano, e uma média de 4,1% ao ano desde 2011. O aumento em 2017 foi ocasionado, especialmente, em razão da
variação na rubrica das despesas com recursos humanos (4,8%). As despesas totais do Poder Judiciário correspondem a
1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Em 2017, o custo pelo serviço de Justiça foi de R$ 437,47 por habitante,
R$ 15,2 a mais do que no último ano”. Ainda de acordo com esse Relatório, o tempo médio de um processo judicial na
Justiça Federal (da instauração até a sentença de 1º grau) demora, em média, 3 anos e 8 meses. Já no 2º grau esse prazo
cai para 2 anos e 9 meses, não sendo informados os recursos financeiros e o tempo gasto com processo nos Tribunais
Superiores (BRASIL, 2018a).

366
casos que seguirão para apreciação judicial não sofre nenhuma limitação, como já afirmou Mouzinho
(no prelo).
Desta forma, quando se olha para a relação contratual estabelecida nesse negócio entre o
Ministério Público e o colaborador, o que se vê, de um lado, é o colaborador, na maior parte das
vezes, preso preventivamente, obtendo benefícios penais, ainda que perdendo a liberdade por tempo
reduzido e quase sempre perdendo também o direito à preservação de sua imagem e do seu nome. De
outro lado, o Ministério Público não perde nada! Quando muito, perde a possibilidade de indicar uma
punição majorada – qualitativa e quantitativamente -, se fosse aplicada a condenação sem os
benefícios penais que oferece ao colaborador. Resumindo, esta é a “barganha” à brasileira. Ela se
aproxima a um contrato com cláusula leonina ou exorbitante, ou seja, aquele que possui uma
determinada cláusula que ofende aos direitos ou prejudica uma das partes, aproveitando-se da
diferença entre quem está sendo beneficiado e quem está sendo lesado434.
Ao transplantarmos a categoria negócio para o contexto do processo penal, resulta nesse
instituto anômalo. Vale dizer, aqui a “barganha” acontece conforme a nossa sensibilidade jurídica,
ou seja, reproduz as práticas e discursos de uma herança inquisitorial e que fomenta a desigualdade,
enquanto atributo indissociável da forma como a Justiça brasileira funciona. Por isso, as teorias que
afirmam o exercício da comunicação e do consenso (Luhman e Habermas), largamente reproduzidas
nos cursos de formação profissional, nos discursos e nas peças processuais dos atores desse campo,
constituem mero exercício retórico.
Por todas essas razões, a figura do crocodilo com asas de borboleta lhe cai bem. Mesmo
quando lhe enxertam institutos democráticos, como os idealizados para fomentar o consenso entre as
partes (transação penal ou acordo de Colaboração Premiada), o peso da nossa tradição jurídica
ibérica, eclesiástica, católica, escolástica não o deixa levantar voo e se desprender desse sistema
arcaico e idiossincrático, tal como o pesado corpo daquele réptil.
Entendi que o exame dos discursos colhidos no decorrer do trabalho de campo seria
interessante porque é possível perceber como institutos de cunho democrático, que enfatizam a
autonomia das partes envolvidas no litígio, são desfigurados ao ingressarem no nosso sistema
jurídico. Ora, como afirma Kant de Lima (1999), no modelo estrangeiro de onde foi “copiado” –
segundo afirmaram alguns entrevistados - o instituto da Colaboração Premiada, a origem do direito
se confunde com a própria lei (rule of law ̶ as regras governam), ou seja, as leis são formuladas
pela sociedade e sua subordinação à lei resulta dos interesses desta sociedade e não da vontade do
Estado. Já no nosso caso, a legitimação se dá pela força cogente de regras que servem para tutelar a

434
A definição de cláusula leonina pode ser vista no próprio site do Conselho Nacional do Ministério Público, em
http://www.cnmp.mp.br/portal/glossario?filter-search-alf=C.

367
sociedade e que são criadas pelo Estado (rule by law ̶ o governo pelas regras). Vale dizer, a
existência do direito encontra-se vinculada à existência do Estado, significando a presença da
legislação positiva, sobretudo a codificada. Dessa forma, o que não está previsto em lei não tem
correspondência no direito, não tendo validade e nem força para se impor.
Ainda que o instituto inove, empreendendo uma dita Justiça Negocial, ele se coaduna com
as características inquisitoriais do processo penal brasileiro tradicional pelo menos nos seus
objetivos: alcançar a confissão, a verdade real e a punição. Além da perpetuação da inquisitoriedade
do processo penal brasileiro, o instituto da Colaboração Premiada também eterniza uma tradição que
confere tratamentos desiguais aos cidadãos brasileiros, na medida em que as autoridades estatais
responsáveis por sua aplicação têm liberdade de interpretar a lei, cada qual a sua maneira.
Parafraseando a expressão utilizada por um dos entrevistados, quando afirmou que os
membros do Ministério Público estão “trocando pneu com o carro em movimento”, poderia concluir,
afirmando que o pneu do nosso sistema processual penal está furado, mas o carro da persecução
criminal à brasileira continua em movimento e não pode parar. Talvez já esteja passando da hora de
trocarmos este pneu.

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______. Lei nº 10. 406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, Disponível em
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______. Lei Nº 12.850, de 02 de agosto de 2013. Diário oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 5 ago. 2013. Disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
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Ratificada pelo Decreto Nº 5.015, de 12 de março de 2004. Brasília: Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, 12 de março de 2004. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004- 2006/2004/decreto/d5015.htm, acesso em 23 de
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BRASIL. Ministério Público Federal - MPF. Manual Colaboração Premiada. Brasília: ENCCLA,
2014. Disponível em http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/sci/dados-da-atuacao/eventos-
2/eventos-internacionais/conteudo-banners-1/enccla/restrito/manual-colaboracao-premiada-
jan14.pdf/view, acesso em 20 de março de 2017.
BRASIL. Ministério Público da União – MPU. Orientação Conjunta Nº 1/2018 – Acordos de
Colaboração Premiada - das 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão – Combate à Corrupção do
Ministério Público Federal. Disponível em
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/OrientaoConjuntan1.2018.pdf, acesso em de 21 junho de 2018.

388
389
ANEXOS

ANEXO I – Petição relativa ao Acordo de Colaboração Premiada de ex-executivos da


Odebrecht

390
391
392
Fonte: http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-no-stj-e-no-stf/peticoes/no-stf/peticoes-em-
marco-de-2017/declinios-de-competenia/pet-6860-jonas-lopes.pdf435

435
Chama também a atenção a notícia contida nesse documento sobre a quantidade de acordos de colaboração premiada
firmados com executivos e ex-executivos da Odebrecht: 77 (setenta e sete).

393
ANEXO II
TERMO DE PROPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL CONTIDA
EM ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA

394
395
396
397
Fonte: Ministério Público Federal, disponível em https://static.poder360.com.br/2017/10/Termo-de-Acordo-Lu%CC%81cio-
Funaro.pdf

398
ANEXO III
Capa de um procedimento de investigação distribuído ao Supremo Tribunal Federal

Fonte: Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/peca-pet-6138.pdf.

399
APENDICE

PERGUNTAS FORMULADAS VIA “WHATSAAP”

1 – Em sua opinião, o que é a Colaboração Premiada?

2 – Em sua opinião, a Colaboração Premiada trouxe alguma contribuição para o processo penal
brasileiro? Se sim, qual foi?

3 – Todos os interessados em colaborar podem efetivamente realizar o acordo de Colaboração


Premiada?

4 – Em sua opinião, por que a Colaboração Premiada é criticada por alguns doutrinadores e juristas
brasileiros?

5 – Como é operacionalizado, na prática, o Acordo de Colaboração Premiada?

6 – Os prêmios ou “benefícios penais” firmados no Acordo de Colaboração Premiada e oferecidos


pelo Ministério Público Federal podem ser alterados? Por quê?

7 – Em sua opinião, a Colaboração Premiada acarretou alguma mudança de perspectiva em relação à


prova processual? Se afirmativo, qual?

400

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