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Como foi mencionado anteriormente, para que se efetue a comunicação é necessário haver um código
comum. Diz-se, em termos mais gerais, que é preciso "falar a mesma língua": o português, por exemplo, que
é a língua que utilizamos. Mas trata-se de uma língua portuguesa ou de várias línguas portuguesas? O
português da Bahia é o mesmo português do Rio Grande do Sul? Não está cada um deles sujeito a influências
diferentes — linguísticas, climáticas, ambientais? O português de um médico é igual ao de seu cliente? O
ambiente social e o cultural não determinam a língua? Estas questões levam à constatação de que existem
níveis de linguagem. O vocabulário, a sintaxe e mesmo a pronúncia variam segundo esses níveis.
Começaremos por distinguir a língua escrita da língua falada. Admitem os linguistas que no interior
da língua falada existe uma língua comum, conjunto de palavras, expressões e construções mais usuais, língua
tida geralmente como simples, mas correta. A partir desse nível tem-se, em ordem crescente do ponto de vista
da elaboração, a linguagem cuidada (ou tensa) e a linguagem oratória. E no sentido contrário, da informalidade,
tem-se a linguagem familiar e a linguagem informal ou "popular".
Texto 2:
Diz a lenda que Rui Barbosa, ao chegar em casa, ouviu um barulho estranho vindo do seu quintal. Foi
averiguar e constatou haver um ladrão tentando levar seus patos de criação. Aproximou-se vagarosamente do
indivíduo e, surpreendendo-o ao tentar pular o muro com seus patos, disse-lhe:
— Oh, bucéfalo anácrono!!!... Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim
pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à
socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de
cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica, bem no alto da tua sinagoga, e o farei com
tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, diz:
— Dotô, rezumino... Eu levo ou dêxo os pato???...
(Autoria desconhecida)
Ênio, poeta latino do século II a.C., falava três línguas: o grego, que ele tinha aprendido por ser, na
época, a língua de cultura dominante no sul da Itália; o latim, em que escreveu suas obras; e o osco (uma
língua aparentada com o latim), que era, com toda a probabilidade, sua língua nativa. O mais provável é que
o latim fosse usado nas relações com as autoridades romanas; o grego, nas grandes cidades; e o osco, nas
regiões rurais. E Ênio, que sabia as três, costumava dizer que tinha “três almas”.
É curioso observar que ele exprimiu com isso uma coisa muito importante relativa ao conhecimento
de uma língua: não se trata simplesmente de “uma outra maneira de dizer as coisas” (table em vez de mesa,
te quiero em vez de eu te amo), mas de outra maneira de entender, de conceber, talvez mesmo de sentir o
mundo.
(...) Examinemos um exemplo, quanto ao significado das palavras nas línguas. Temos, em português, a
palavra dedo, que nos parece muito concreta; diríamos que é simplesmente o nome que damos, em nossa
língua, a um objeto que nos é dado pelo mundo real: um dedo é uma coisa, ou seja, uma parte definida do
corpo, e o que pode variar é a maneira de designar essa coisa. No entanto, em inglês há duas palavras para
“dedo”: finger e toe, que não são a mesma coisa. Um finger é um dedo da mão, e um toe é um dedo do pé;
para nós são todos dedos, mas para um inglês são coisas diferentes.
(Mário A. Perini. A língua do Brasil amanhã e outros mistérios.)
Texto 6: “O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro”, de Gilberto Freyre (fragmento).
Os padres-mestres e os capelães de engenho, que, depois da saída dos jesuítas, tornaram-se os
principais responsáveis pela educação dos meninos brasileiros, tentaram reagir contra a onda absorvente da
influência negra, subindo das senzalas às casas-grandes; e agindo mais poderosamente sobre a língua dos
sinhôs-moços e das sinhazinhas do que eles, padres-mestres, com todo o seu latim e com toda a sua
gramática; com todo o prestígio das suas varas de marmelo e das suas palmatórias de sicupira. Frei Miguel do
Sacramento Lopes Gama era um dos que se indignavam quando ouvia “meninas galantes” dizerem “mandá”,
“buscá”, “comê”, “mi espere”, “ti faço”, “mi deixe”, “muler”, “coler”, “le pediu”, “cadê ele”, “vigie”, “espie”. E
dissesse algum menino em sua presença um “pru mode” ou um “oxente”; veria o que era beliscão de frade
zangado.
Para Frei Miguel — padre-mestre às direitas — era com os portugueses ilustres e polidos que
devíamos aprender a falar, e não “com tia Rosa”, nem “mãe Benta”; nem com nenhuma preta da cozinha ou
da senzala. Meninos e moças deviam fechar os ouvidos aos “oxentes” e aos “mi deixe” e aprender o português
correto, do reino.
Sucedeu, porém, que a língua portuguesa nem se entregou de todo à corrupção das senzalas, no
sentido de maior espontaneidade de expressão, nem se conservou acalafetada nas salas de aula das casas-
grandes sob o olhar duro dos padres-mestres. A nossa língua nacional resulta da interpenetração das duas
tendências. Devemo-la tanto às mães Bentas e às tias Rosas como aos padres Gamas e aos padres Pereiras.
O português do Brasil, ligando as casas-grandes às senzalas, os escravos aos senhores, as mucamas aos
sinhôs-moços, enriqueceu-se de uma variedade de antagonismos que falta ao português da Europa. Um
exemplo, e dos mais expressivos, que nos ocorre, é o caso dos pronomes. Temos no Brasil dois modos de
colocar pronomes, enquanto o português só admite um — o “modo duro e imperativo”: diga-me, faça-me,
espere-me. Sem desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente nosso, caracteristicamente
brasileiro: me diga, me faça, me espere. Modo bom, doce, de pedido. E servimo-nos dos dois. Ora, esses dois
modos antagônicos de expressão, conforme necessidade de mando ou cerimônia, por um lado, e de intimidade
ou de súplica, por outro, parecem-nos bem típicos das relações psicológicas que se desenvolveram através
da nossa formação patriarcal entre os senhores e os escravos: entre as sinhás-moças e as mucamas; entre
os brancos e os pretos. “Faça-me”, é o senhor falando, o pai, o patriarca; “me dê”, é o escravo, a mulher, o
filho, a mucama. Parece-nos justo atribuir em grande parte aos escravos, aliados aos meninos das casas-
grandes, o modo brasileiro de colocar pronomes. Foi a maneira filial, e meio dengosa, que eles acharam de se
dirigir ao pater familias. Por outro lado, o modo português adquiriu na boca dos senhores certo ranço de ênfase
hoje antipático: “faça-me isso”; “dê-me aquilo”.
(FREYRE, Gilberto. In: Casa grande & senzala.)
E agora? Se fôssemos pensar que as pessoas que dizem Cráudia, chicrete e pranta têm algum
“defeito de fala”, seríamos forçados a admitir que toda a população da província romana da Lusitânia também
tinha esse mesmo defeito na época em que a Língua Portuguesa estava se formando. E que o grande Luís de
Camões também sofria desse mesmo mal, já que ele escreveu ingrês, pubricar, pranta, frauta, frecha na obra
que é considerada o maior monumento literário do português clássico, o poema Os Lusíadas. E isso, é “craro”,
seria no mínimo absurdo. No entanto, eu vi, apavorado, um programa de televisão chamado Nossa Língua
Portuguesa classificar esse fenômeno de "defeito de fala", sugerindo até uma “terapia fonoaudiológica” para
“consertá-lo”!
Se dizer Cráudia, praca, pranta é considerado “errado”, e, por outro lado, dizer frouxo, escravo,
branco, praga é considerado “certo”, isso se deve simplesmente a uma questão que não é linguística, mas
social e política — as pessoas que dizem Cráudia, praca, pranta pertencem a uma classe social desprestigiada,
marginalizada, que não tem acesso à educação formal e aos bens culturais da elite, e por isso a língua que
elas falam sofre o mesmo preconceito que pesa sobre elas mesmas, ou seja, sua língua é considerada “feia”,
“pobre”, “carente”, quando na verdade é apenas diferente da língua ensinada na escola.
Ora, do ponto de vista exclusivamente linguístico, o fenômeno que existe no português não-padrão é
o mesmo que aconteceu na história do Português padrão e tem até um nome técnico: rotacismo. Assim, o
problema não está naquilo que se fala, mas em quem fala o quê. Neste caso, o preconceito linguístico é
decorrência de um preconceito social.
(BAGNO, Marcos. In: PINSKY, Jaime (org.). 12 faces do preconceito. São Paulo: Contexto, 1999.)
Discriminar alguém por ser negro, índio, nordestino, mulher, deficiente físico, homossexual etc. já
começa a ser considerado “publicamente inaceitável” e “politicamente incorreto”, fazer essa mesma
discriminação com base no modo de falar da pessoa é algo que passa com muita “naturalidade” (...). É que a
linguagem, de todos os instrumentos de controle e coerção social, talvez seja o mais complexo e sutil.
Assim, alguém das camadas privilegiadas da população vê erro na língua dos cidadãos das outras
camadas, as menos favorecidas. Frequentemente esses acusadores, por atribuírem a si mesmos um
conhecimento linguístico superior, acima da média, denunciam também erros cometidos por membros de sua
própria classe social e lamentam o “descaso”, até mesmo dos falantes “cultos”, pela “língua de Camões”.
Há erros mais “errados” (ou mais “crassos”) do que outros — a escala de “crassidade” é inversamente
proporcional à escala do prestígio social.
(Marcos Bagno. A norma oculta – língua & poder na sociedade brasileira.)
Escapo-me dali, me apressando entre os atalhos. Quando reentro em casa não encontro vivalma.
Todos foram para o caminho da areia assistir à desgraça, consolando Ultímio. De soslaio, parece-me ouvir um
ruído. Entro na sala fúnebre e nada vejo, senão o aquietado corpo do velho Mariano. Lá está o desfinado, entre
flores e velas. Subo para o quarto. De novo, sobre a cabeceira, uma outra carta. A tremência em minhas mãos
não me ajuda a ler:
Estas cartas, Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, se deixe em bastante sossego e escute.
Você não veio a esta Ilha para comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano. Você cruzou essas
águas por motivo de um nascimento. Para colocar o nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o morto.
Veio salvar a vida, a nossa vida. Todos aqui estão morrendo não por doença, mas por desmérito do viver.
É por isso que visitará estas cartas e encontrará não a folha escrita mas um vazio que você mesmo
irá preencher, com suas caligrafias. Como se diz aqui: feridas da boca se curam com a própria saliva. Esse é
o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a
escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar onde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que
é o lugar onde somos eternos.
Comece em seu pai, Fulano Malta. Você nunca lhe ensinou modos de ele ser pai. Entre no seu
coração, entenda aquela rezinguice dele, amoleça os medos dele. Ponha um novo entendimento em seu velho
pai. Às vezes, seu pai lhe tem raiva? Pois lhe digo: aquilo não é raiva, é medo. Lhe explico: você despontou-
se, saiu da Ilha, atravessou a fronteira do mundo. Os lugares são bons e ai de quem não tenha o seu, congênito
e natural. Mas os lugares nos aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa.
A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior prisão, sem muros, sem grades. Só o medo do que há lá
fora nos prende ao chão. E você saltou essa fronteira. Se afastou não em distância, mas se alonjou da nossa
existência.
Antes, seu pai estava bem consigo mesmo, aceitava o tamanho que você lhe dava. Desde a sua
partida ele se tornou num estranho, alheio e distante. Seu velhote passou a destratá-lo? Pois ele se defende
de si mesmo. Você, Mariano, lhe lembra que ele ficou, deste lado do rio, amansado, sem brilho de viver nem
lustro de sonhar.
(Mia Couto. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra.)
As opções a seguir descrevem marca(s) linguística(s) contida(s) no texto. Assinale a opção em que
a(s) marca(s) apontada(s) não corresponde(m) a traço(s) de oralidade do texto.
( A ) Emprego do vocativo “Mariano” e uso do pronome você, para construir o discurso direto.
( B ) Flexibilidade na colocação de pronomes átonos, como em “Sente-se, se deixe em bastante sossego e
escute” (l.6) e “Lhe explico” (l.17).
( C ) O emprego do vocábulo “Pois” como marcador discursivo no trecho “Pois lhe digo” (l.17).
( D ) Ocorrência de interrogações em discurso direto, como em “Às vezes, seu pai lhe tem raiva?” (l.16-17) ou
“Seu velhote passou a destratá-lo?” (l.24).
( E ) Não contração da preposição “de” com o pronome “ele”, que é sujeito de infinitivo, conforme ocorre em
“Você nunca lhe ensinou modos de ele ser pai” (l.15).