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Dostoievski e as terríveis paixões humanas

Por Robert Bréchon

Dizia Van Gogh que se servia das cores para pintar as “terríveis paixões
humanas”. Também Dostoievski “pintou” as paixões humanas, todas as paixões.
Isso explica, sem dúvida, que os seus primeiros leitores ocidentais se tenham
sentido tão desconcertados com a obra que escreveu, a começar pelo seu
tradutor e exegeta, o visconde Eugène Vogüé1. Mas a mesma razão explica,
também, o êxito universal conquistado na nossa época por uma tipicamente
russa e eslava2.
Durante muito tempo a literatura europeia só conheceu, das paixões humanas,
a do amor – e mesmo para a descrever não deixou de se manter relativamente
pudica, circunspecta, contida. Nos grandes romancistas do século XIX, sem
excluir Balzac, Flaubert e Eça, a intensidade dos sentimentos expressos fica
muito aquém da crueldade das situações. A realidade ultrapassa largamente a
ficção. Era necessário recuar até Shakespeare para encontrar personagens em
tumulto e em fúria, como o mundo em que vivem.
No presente, porém, a ficção assumiu a violência da vida real. O universo
romanesco, de Faulkner a Styron, é um pandemonium, como se, pela primeira
vez desde há séculos, a história tivesse verdadeiramente contaminado a
literatura3. Mas foi o exemplo de Dostoievski, sem qualquer dúvida, a influência
determinante que fez pender o romance realista para o abismo psicológico e
metafísico.
O extremo do possível
O que impressiona imediatamente o leitor de qualquer dos romances de
Dostoievski é a extrema tensão das relações humanas, a extraordinária
veemência das falas das personagens e o seu gosto pelos gestos
espectaculares, por vezes extravagantes. Rasumikine ajoelha-se no passeio da
rua perante Dúnia4. Raskolnikov prosterna-se diante de Sónia, Nastásia
Filipovna também se põe de joelhos ante o príncipe. “em plena rua” 5. O velho
Verkovenski, no decurso de uma reunião literária, grita desabaladamente e a

1
E.M. de Vogüé deu a conhecer Dostoievski em França a partir de 1886, por conseguinte cinco anos
apenas depois da sua morte. No começo do século XX André Gide impôs uma visão acentuadamente
redutora, psicologizante e moralizante da obra de Dostoievski, cujos reflexos se encontram ainda em
Malraux, Sartre e Camus. Deve-se acrescentar que Pierre Pascal, que fez uma apresentação do conjunto
da obra na colecção de Pléiade, contribuiu grandemente para a sua difusão em França e no mundo.
2
Sabe-se que Dostoievski tem obtido extraordinário êxito não só no Ocidente como também no Japão.
3
É mais na América (do Norte e de Sul) que vemos repercutir-se a violência dostoievskiana. Sobre a
influência do romancista russo no romance americano consulte-se o ensaio de Jean Weisberger Faulkner
et Dostoievski (PUF, 1968).
4
Crime e Castigo
5
O Idiota
seguir desata em soluços perante o público 6. Dimitri Karamazov mostra-se
constantemente exaltado. Michkine gesticula de tal maneira que quebra um vaso
precioso. “Falta-me um sentido a da medida”, diz ele. Pode-se dizer de todos os
heróis dostoievskianos o que a mãe de Raskolnikov diz da mulher de
Svidrigailov:”"O exagero está-lhe na massa do sangue”. Não só gritam e
gesticulam como vivem numa perpétua urgência. Tudo se passa como se o
encontro a que se dirigem fosse, de cada vez, o evento decisivo de que depende
a sua salvação. Assiste-se a espantosos bailados de personagens que correm
umas para as outras, umas atrás das outras, porque têm sempre qualquer coisa
a dizer-se, qualquer coisa que não pode esperar. O tempo fundamental da sua
vida é aquele em que, após um longo período de contenção, alguma coisa nelas
transborda ou explode: Svidrigailov, por exemplo, ao cabo de sete anos de
paciência, bate na mulher até a matar.
Tudo isso – o exagero, a exaltação, a urgência – me parece definir Dostoievski.
É o romancista da consciência inquieta, no exacto sentido do termo, isto é:
projectada para além de si mesma, visando uma finalidade sempre inacessível,
incapaz de satisfação e de repouso. “A minha natureza é demasiado apaixonada.
Seja onde for e em tudo, vou até ao último limite”. Nestas palavras é o próprio
Fédor Mikailovitch Dostoievski que se confessa, em carta ao seu amigo Maikov.
Todos os seus heróis poderiam fazer a mesma confissão. Todos aspiram ao
“extremo do possível”. A fórmula não é de Dostoievski: pertence a Georges
Bataille. Mas exprime, melhor que qualquer outra, a ambição prometaica ou
luciferina da consciência moderna, que, depois da “morte de Deus”, sentindo a
vertigem do vazio espiritual, segue o seu impulso ou a sua propensão para tentar
atingir as fronteiras da condição humana.
“Sou filho da descrença e da dúvida”, diz Dostoievski. Mas a dúvida, quando se
apodera da alma russa, não a conduz ao positivismo ou ao cepticismo: abre um
abismo que sente a necessidade de explorar, o que só pode conduzi-la ao
niilismo ou ao misticismo. “O homem é um segredo; é preciso devassá-lo… É
este segredo que me preocupa, porque quero ser um homem”. A obra
romanesca do escritor tem por finalidade devassar esse segredo. Tal projecto,
que permitiu finalmente a Dostoievski realizar-se, tomou o lugar de outro que o
teria levado a perder-se – porque a rebusca do extremo do possível só pode
conduzir à loucura. Em 1838, apenas com dezassete anos, o jovem Fédor
Dostoievski escreve a seu irmão Miguel: “Tenho um projecto: enlouquecer”. Nos
seus romances descreve, de facto, homens e mulheres que enlouquecem e que
são, como ele teria sido, cúmplices da sua loucura. Mas foi assim que ele pôde
exorcizar o seu próprio desejo de enlouquecer.
O momento fatal
O projecto fundamental que orienta toda a obra do escritor data, por conseguinte,
da sua adolescência. Mas a obra seria decerto muito diferente se Dostoievski, já
em idade adulta, não tivesse feito em diversas circunstâncias a experiência de

6
Os Demónios (ou Os Possessos)
situações-limite: as da morte em vida ou as da vida que recebeu a primeira
mordedura de morte.
Não é somente por interesse biográfico que se recorda a epilepsia de que sofreu
durante quase toda a vida. Não se sabe ao certo, de resto, a partir de que data,
exactamente, a doença se manifestou. Parece que a primeira crise grave o
atacou em 1850, quando se encontrava preso como forçado. Parece, também,
que as crises foram mais violentas e mais frequentes em ocasiões de
importância crucial para ele, como no Outono de 1865, período-charneira em
que se decidem ao mesmo tempo a sua vida privada (uma amiga, Suslova,
recusa-se a casar com ele) e a sua carreira literária (quando começa a escrever
a primeira das suas obras-primas, Crime e Castigo). Dostoievski descreveu os
sintomas das crises que o acometeram – mas, sobretudo, faz-nos vivê-las de
dentro. É significativo que talvez a mais vil das suas personagens, Smerdiakov
(o criado do velho Karamazov), e a sua personagem mais nobre, o príncipe
Michkine, sejam epilépticos.
Mais importante, porém, é o próprio desenrolar da crise, tal como a experimenta
o Idiota. Em quase todos os casos, a crise é precedida e anunciada por um
êxtase, momento de “soberana serenidade… graças à qual a sua razão se
elevava até à compreensão das causas finais”, num “esbraseamento” do
cérebro. Nesse instante de fulgor “teve ainda tempo de dizer para si próprio que
a felicidade imensa que lhe causava valia bem uma vida inteira”. E compreendeu,
então, o sentido da profecia do Apocalipse: “Deixará de existir o tempo”. Mas o
êxtase é imediatamente seguido (pelo menos durante um segundo) pelo
mergulho no abismo da inconsciência e do sofrimento. Luz e trevas, paraíso-
inferno, anjo e besta, tudo isto num mesmo movimento, num mesmo afinco. Esta
ambivalência do instante fatal encontra-se na biografia de todos os heróis
dostoievskianos.
Outra circunstância inesquecível, para o escritor e também para nós, é a da sua
“execução” fingida na praça Semenovski, em S. Petersburgo, a 22 de Dezembro
de 1849. Simulacro de execução, na verdade, pois que no último momento,
depois da leitura da sentença de morte e da toilette fúnebre, diante do pelotão
que já apontava as espingardas, lhe foi anunciado, bem como aos outros
condenados, que o czar lhes concedia o perdão e comutava a pena em quatro
anos de trabalhos forçados na Sibéria. “Vemos o sol”, escreve o condenado ao
irmão, num grito de alegria.
A sombra desse momento, porém, projecta-se em toda a sua obra. É também o
príncipe Michkine quem melhora a evoca, ao formular a problemática da
tangência da vida e da morte. Viu guilhotinar um homem em Lyon: “A coisa mais
terrível é essa certeza. O mais espantoso é o quarto de segundo durante a qual
curvamos a cabeça sob o cutelo e o ouvimos descer”. A maioria dos heróis
dostoievskianos, mesmo que não sejam formalmente condenados à morte,
parecem viver nesse instante dilatado e suspenso, nessa hérnia do tempo, em
que tudo se decide. “Era a minha vida inteira que estava suspensa por um
cabelo”, diz Nastásia Filipovna. E Stavroguine, quando viola a pequena
Matriocha, quando decide desposar a Coxa ou quando projecta matar-se dá a si
mesmo a impressão de jogar toda a sua vida num só instante, como se
apostasse “cara ou coroa”.
A palavra ébria e a confissão
A fascinação do destino, manifestado no instante fatal, faz parte da alma russa,
tal como certa mitologia a representa (lembre-se a “montanha russa” dos
parques de diversões). Foi por um edifício de análise, porém, que isolei na obra
de Dostoievski esse elemento cursivo e fulgurante que faz dos seus heróis
equilibristas a dançar sobre o abismo. Na anatomia do romance, esse elemento
propriamente trágico não passa do esqueleto. A carne da narrativa é pesada,
enorme, inchada. Nada se distancia mais da densidade da tragédia (que
continua a ser o modelo do romance ocidental) do que os diálogos intermináveis
dos romances de Dostoievski. O que desconcertou os primeiros leitores
estrangeiros, tanto, pelo menos, como a exorbitância das personagens, foi a
extensão e a lentidão da narrativa: conversas sem fim, por vezes depois de
beber, num salão, numa estalagem, num compartimento de carruagem
ferroviária, num jardim, numa rua; falatórios de bêbados, que em muitos casos
só ganham tais proporções porque, efectivamente, os interlocutores beberam de
mais. Mas, geralmente, é a palavra posta em movimento, deixada à solta, que
embriaga. E isso pode durar horas, dias e noites, sem parar. É assim, também,
a alma russa: a palavra nascida da embriaguez, a embriaguez nascida da
palavra.
Essa palavra desencadeada, em expansão, que o locutor deixa de controlar, é a
palavra da confissão. Os romances de Dostoievski são trajectórias de confissões
entrecruzadas. Toda a gente se confessa a toda a gente. Algumas vezes a
confissão tem por fim vangloriar-se, fazer-se admirar. Mas, muito mais vezes,
destina-se a que o indivíduo se acuse, se humilhe, se desacredite aos olhos de
outrem. É o caso, evidentemente, de certo tipo de personagens que se encontra
em todos os romances: o chocarreiro. Lebedev declara-se “podre de vícios”,
Marmeladov confessa a Raskolnikov que não passa de um “porco”, etc. Mas
também se encontra a vertigem da confissão e o desejo de autopunição em
personagens trágicas como Dimitri Karamazov, Rogojine, Nastásia Filipovna e,
de modo, flagrante em Stavroguine7 e Raskolnikov. Marca de temperamento
tipicamente russo, que explicaria de algum modo e de antemão as inexplicáveis
confissões dos processos de Moscovo, mas também – e mais seguramente – a
experiência existencial duma constante universal do carácter humano que define
a relação do indivíduo consigo mesmo e com o Outro. Na carta a Maikov, já
citada, Dostoievski não se acusa apenas de ser por de mais apaixonado. Diz
ainda: “A minha natureza é vil”. A humilhação e a confissão expressas na palavra
embriagada a um tempo revelam e escondem o “segredo” do homem.
A embriaguez, porém, não dura indefinidamente. O palrador saído da
embriaguez, isento das suas ilusões e dos seus excessos, reencontra a lucidez

7
A Confissão de Stavroguine, episódio central de Os Demónios, esteve sujeito a censura e só foi
publicado em 1927.
com o silêncio – mas está muito próximo, então, do desespero absoluto e da
morte. Foi isso que Agustina Bessa Luís viu muito bem 8 ao evocar a cena final
de O Idiota, quando Rogojine e Michkine descansam junto do corpo de Nastásia
assassinada, já reconciliados e despojados da sua paixão, como quem se desfaz
duma peça de roupa, tendo alcançado à sua maneira o extremo do possível.
O jogo do amor e do dinheiro
A paixão que devora os heróis dostoievskianos toma formas diversas. Podem-
se distinguir, entre ele, os sensuais (é o título de um capítulo de Os Irmão
Karamazov), os cúpidos, os jogadores, os quiméricos, os ambiciosos, etc. A obra
inteira é um catálogo das paixões humanas mais típicas e, por vezes, mais
aberrantes. Mas as personagens mais significativas estão possuídas por várias
paixões ao mesmo tempo ou por uma paixão ambígua. O herói de O
Adolescente, Arcádio, sonha ser rico com Rotschild, mas para poder gastar todo
o dinheiro. Pode-se ser ao mesmo tempo avaro e pródigo. Dimitri Karamazov é
simultaneamente um devasso, que considera o corpo de Gruchenka desejável
“até ao dedo grande o pé esquerdo”, e o jogador que se arruína por uma noite.
O herói de O Jogador é fascinado igualmente por Paulina e pelo jogo. O jogo é
o jogo do dinheiro e o dinheiro é o risco do jogo – mas o jogo é sempre, também,
jogo erótico e a aposta arriscada é sempre, de maneira mais ou menos velada,
o corpo da mulher que se deseja. O herói dostoievskiano quer gozar e perder-
se. Uma coisa conjuga-se sempre com a outra. Uma das cenas mais conhecidas
de toda a obra do escritor é aquela em que Nastásia Filipovna lança ao fogo o
enorme maço dos cem mil rublos que Rogojine pagou pela posse do seu corpo.
Ela desafia o seu outro pretendente, Gavrila, a tirar as notas das chamas, que já
as lambem no fogão. O príncipe, sem dizer nada, olha. É por esse olhar que
Nastásia pratica a loucura de queimar o dinheiro. Dostoievski está inteiro nessa
cena prodigiosa: todos os temas, todos os sentimentos e comportamentos mais
contraditórios, cupidez e potlatch, sensualidade e pureza, sado-masoquismo e
àgapê, principalmente, mas acima de tudo a extrema humildade e o extremo
orgulho.
Pode-se dizer, decerto, que há em Dostoievski uma categoria de personagens
que se furtam, em larga medida, à ardência das paixões: aquelas em que se
projecta o seu ideal humano de caridade. Mas não se deixará de reconhecer que
mesmo no príncipe Michkine e em Aliocha Karamazov a paixão existe, só no
horizonte da consciência, sob a forma de tentação. Só Tíkone em Os Demónios
(ou Os Possessos, como por vezes é traduzido o título), e, sem dúvida, o staretz
Zósimo de Os Irmãos Karamazov, alcançaram a zona de paz espiritual em que
se está ao abrigo da tentação do jogo, da posse ou do prazer.
Para além do orgulho

8
Agustina Bessa-Luís, “Dostoievski e a peste emocional”, em Colóquio Letras nº61, Maio de 1981.
René Girard demonstrou que a chave do universo moral de Dostoievski é a
dialéctica do orgulho e da humildade 9. A única paixão a que todas as outras se
reduzem é a paixão do Eu. Os comportamentos e as falas das personagens são
estratégias das consciências a reconhecê-las. Só o Outro, depois da “morte de
Deus”, pode fazer de mim um deus. O Outro é o mediador necessário da relação
do Eu consigo mesmo. Literalmente fascinado pelo Outro, de que faz seu rival
verdadeiro ou imaginário, o herói dostoievskiano que se sente julgado e em
situação de acusado, em perpétuo “processo” como o herói kafkiano, de que é,
em certo sentido, o precursor, força o juízo julgador desse Outro dominando-o,
comprando-o, enganando-o ou desarmando-o pela humildade.
Nos romances de Dostoievski depara-se uma espécie de teoria da gravitação
psíquica: as consciências das personagens atraem-se em função da respectiva
massa. Como o narrador das Memórias Escritas num Subterrâneo – livro que
inaugura, em 1864, essa vasta gesta do orgulho humano -, cada um sonha
possuir bastante densidade psicológica para constranger o rival a gravitar à sua
volta, em vez do contrário. Mas o drama da consciência dostoievskiana é o de
se sentir dividida. Uma parte dela não só é cúmplice do Outro como é mesmo o
Outro. O tema do duplo, que já aparecia nas narrativas de juventude, assume a
sua expressão mais forte no último romance, Os Irmãos Karamazov. A mais
“inteligente” das personagens, Ivan, é também a mais dividida – e vê-se, pelo
seu exemplo, que a parte do duplo é a parte do Diabo.
A salvação só pode conseguir-se pela superação do orgulho e pela fusão do Eu.
Tomar o partido do Outro, não por fingida humildade, como fazem os ansiosos,
os ciumentos, e os chocarreiros, mas por caridade (o àgapê amor-bondade,
oposto ao eros), equivale a criar um espaço psíquico radicalmente novo - que é
afinal o Reino de Deus, ou o Paraíso reencontrado. Sabe-se que Dostoievski,
seduzido na juventude pela utopia socialista - sob a influência primeiro de
Bielinski e depois de Petrachevski -, a repudiou violentamente depois de
cumprida a pena de trabalhos forçados e da sua “conversão”. Fez o exorcismo
dos “demónios” dessa ideologia da juventude nas personagens Stavroguine e
Verkovenski, escolhendo Cristo e a sua mensagem: “Amai-vos uns aos outros”.
Todas as promessas duma salvação possível pelo amor, esparsas aqui e ali nos
seus romances, como por exemplo, na figura luminosa de Sónia, a jovem
prostituta que acompanha Raskolnikov ao cativeiro, ou na do Idiota, têm um
começo de realização de Aliocha Karamazov. O seguimento do romance deveria
mostrar Aliocha a realizar no mundo social a palavra evangélica anunciada por
Zósimo. A morte de Dostoievski, em 28 de Janeiro de 1881, privou-nos da
primeira das suas obras que seria inteiramente positiva e feliz. Mas seria essa
obra “doistoevskiana”?

9
René Girard, Dostoievski, du double à l’unité (Montfort, 1963). Encontra-se também em Mensonge
romantique et vérité romanesque (Grasset, 1961) uma notável análise de O Eterno Marido, retomada
em Des choses cachés depuis la fondation du monde (Grasset, 1978)
O poema sinfónico das consciências
Não se pode pôr em dúvida que Dostoievski, no fim da vida, acreditou
sinceramente na possibilidade da salvação pelo amor cristão – salvação para ele
próprio, para a Rússia e mesmo para a Humanidade. O seu momento mais
glorioso, o mais alto ponto orquestral da sua vida pública, foi o discurso que
proferiu na inauguração do monumento a Puchkine, em Moscovo, a 8 de Junho
de 1880. Entre aclamações, clamores e soluções de emoção, tipicamente
russos, proclamou: “Ser um verdadeiro russo, ser plenamente russo, não
significa senão ser irmão de todos os homens!”. Mas esse discurso foi um
acontecimento sem amanhã.
A verdadeira salvação, se salvação pode haver, não conseguiria ele alcançá-la
senão pela criação literária – só podia ser de ordem estética. Quando estava a
escrever Os Demónios, em 1870, explicava ao seu editor, Katkov, quem era
Stavroguine: “Uma sombria personagem, um celerado, uma personagem
trágica… ao mesmo tempo muito russa, muito típica”. E confessa: “Foi no meu
coração que o colhi”. Mas de Tíkone, o santo varão que prefigura o staretz
Zósimo, diz também: “Recebi-o no meu coração há muito tempo”.
Em que medida é Dostoivesji Stavroguine, Tíkome e também Raskolnikov,
Svidrigailov, Michkine, Lebedev, Ivan, Dimitri, Aliocha, ou mesmo Nastásia
Filipovna? Mas do que em Flaubert, ao dizer “Madame Bovary sou eu”, penso
em Fernando Pessoa, ao distribuir a sua visão do mundo por vários heterónimos.
Cada uma das grandes personagens de Dostoievski é muito mais (ou talvez algo
completamente diferente) que um “carácter”, como no romance tradicional. Não
é um simples intérprete do autor nem uma realidade psicológica objectiva, um
ser em si. É uma voz que nos fala, uma consciência que se interroga e em que
o mundo objectivo vem reflectir-se. Dostoievski abre caminho ao romance
“problemático”, em que as personagens são interrogações feitas ao mundo e às
quais só se pode responder com outras interrogações 10. Os seus heróis, disse
Oscar Wilde, contêm em si o “eterno segredo da existência”.
Mas o que dá estrutura à obra do escritor não é a voz desta ou daquela
personagem: é a verdade superior, de outra ordem, que nasce da sua
confrontação e das suas reações recíprocas. O crítico “formalista” russo Bahktine
acentuou, desde 1929, que a originalidade de Dostoievski é a de ter sido o
primeiro a tornar o romance uma arte polifónica11. Toda a arte do poeta consiste
em fazer coexistir esses mundos espirituais diversos e levá-los a agir uns sobre
os outros. Na verdade, é bem de poesia que se trata quando se atinge esse nível
de criação romanesca em que a unidade se organiza em diversidade e a
diversidade se resolve em unidade. Ainda hoje há críticos capazes de afirmar,
como fazia E. M. de Vogüé há quase um século, que os romances de Dostoievski
são confusos e mal construídos. Aplicaria antes a O Idiota ou a Os Irmãos
Karamazov o que Blanchot afirma sobre A Morte de Virgílio, de Broch: se esta

10
Entre os herdeiros conta-se Vergílio Ferreira, mais fiel, a meu ver, à lição de Dostoievski do que à de
Malraux, à qual, no entanto, explicitamente se confessa ligado.
11
Mikhail Bakhtine, La Poétique de Dostoievski (Seuil, 1963).
obra não nos diz onde está a unidade, “é simplesmente porque a configura em
si mesma; enquanto poema é essa a esfera […] onde as forças da emoção e as
certezas racionais, a forma e o conteúdo, […] se interpenetram”. E o conjunto
dos romances de Dostoievski, se não apresenta a construção da obra de Proust
nem a coesão da de Balzac, surge-nos hoje, a um século de distância, não como
o caos que os nossos antecessores viram nele, mas como uma espécie de
catedral harmoniosamente construída, embora complexa e incabada.

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