Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
pt
9000-420 – Funchal
Telef (+351291)214970
alberto.vieira@madeira-edu.pt
Fax (+351291)223002 http://www.madeira-edu.pt/ceha/
RECOMENDAÇÕES
O utilizador pode usar os livros digitais aqui apresentados como fonte das suas próprias obras,
usando a norma de referência acima apresentada, assumindo as responsabilidades inerentes ao
rigoroso respeito pelas normas do Direito de Autor. O utilizador obriga-se, ainda, a cumprir
escrupulosamente a legislação aplicável, nomeadamente, em matéria de criminalidade informática,
de direitos de propriedade intelectual e de direitos de propriedade industrial, sendo exclusivamente
responsável pela infracção aos comandos aplicáveis.
1
ALBERTO VIEIRA
quase exclusivo do comércio do açúcar resultante dos direitos cobrados pela coroa na ilha, bem
como o monopólio dos contingentes de exportação estabelecidos pela coroa em 1498.
A penetração destes mercadores na sociedade madeirense é por demais evidente. O usufruto de
privilégios reais e o relacionamento matrimonial favoreceram a sua integração na aristocracia
madeirense. Eles são maioritariamente proprietários e mercadores de açúcar. Também os
flamengos e franceses surgiram na ilha, desde finais do século XV, atraídos pelo comércio do
açúcar. Todavia são poucos os que criam raízes na sociedade madeirense - João Esmeraldo é
uma rara excepção -, o único e exclusivo interesse era o comércio do açúcar.
No quadro da comunidade flamenga na ilha da Madeira sobressaem João Esmeraldo e os Lem.
Sobre a importância de João Esmeraldo atesta Gaspar Frutuoso: Da Tabua pouco mais de meia
légua está a Lombada de João Esmeraldo, de nação genovês, que chega do mar à serra, de muitas canas de
açúcar e tão grossa fazenda, que já se aconteceu fazer João Esmeraldo vinte mil arrobas de sua lavra cada
ano, e tinha como oitenta almas suas cativas entre mouros, mulatos e mulatas, negros, negras e canários.
Foi esta a maior casa da ilha e tem grandes casarias de aposento, e engenho, e casas de purgar, e igreja.
E depois do falecimento de João Esmeraldo, ficou tudo a seu filho Cristóvão Esmeraldo, que o mais do
tempo andava na cidade do Funchal sobre uma mula muito formosa, com oito homens detrás de si, quatro
de capa e quatro mancebos em corpo, filhos de homens honrados, muito bem tratados, e trazia grande
contenda com o Capitão do Funchal sobre quem seria provedor da Alfândega de el-Rei, que é uma rica
coisa de renda de Sua Alteza e ricas casarias. Casou João Esmeraldo na ilha com Águeda de Abreu, filha de
João Fernandes, senhor da Lombada do Arco4.
João Esmeraldo dividia a actividade entre a casa de negócio no Funchal e vivenda com capela na
Lombada da Ponta de Sol, ambas construídas a partir de 1494, onde tinha os canaviais e
engenho. Foi uma personalidade muito marcante na sociedade madeirense e mesmo junto da
coroa. De modo que com a criação do em 1501 do município da Ponta de Sol conseguiu que a
sua Lombada ficasse na dependência da edilidade funchalense. No Funchal, no espaço da
primitiva casa demolida em 1877, temos hoje um núcleo museológico dedicado à “Cidade do
Açúcar”. Este espaço, inaugurado em 1996, pretende ser à memória viva da época áurea do
açúcar na Madeira, isto é, os séculos XV e XVI. A concretização resultou da recuperação dos
vestígios da chamada casa de Colombo no Funchal, construída no século XV pelo fidalgo
flamengo João de Esmeraldo. A casa de residência no Funchal foi construída a partir de 1495 e a
ela associa-se o convívio de Cristóvão Colombo, o navegador italiano que aportou à ilha em
1476 e 1482. A passagem do navegador pelo Funchal em 1498, aquando da terceira viagem, é um
testemunho da profunda ligação à ilha. Nesta data teria privado com João Esmeraldo neste
imponente palácio.
Nos Açores a situação foi diferente. Os flamengos surgem desde o começo como importantes
povoadores. Foi por isso que as ilhas açorianas ficaram conhecidas como as ilhas flamengas5. Eles
foram imprescindíveis para o povoamento das ilhas do Faial, Terceira, Pico e Flores6. O
primeiro a desembarcar nos Açores terá sido Jácome de Bruges, apresentado em documento de
1450 como capitão da ilha Terceira. Pouco se sabe da acção desenvolvida por este flamengo, há
até quem duvide da autenticidade do título de posse da capitania da ilha7. Mais importante foi,
sem dúvida, a vinda de Josse Huerter em 1468 como capitão das ilhas do Pico e Faial.
Acompanharam-no inúmeros flamengos que contribuíram para o arranque definitivo do
povoamento das ilhas do grupo central e ocidental. Martim Behaim8 refere para 1466 a presença
de dois mil flamengos no Faial, enquanto Jerónimo Munzer9, vinte e oito anos depois, diz serem
apenas mil e quinhentos os que residiam aqui e no Pico. A partir daí os Açores ficaram
conhecidos como as ilhas flamengas, tal como o afirmava Linschoten em finais do século XVI. A
esta primeira leva de estrangeiros como povoadores sucederam-se outras com objectivos
distintos. O progresso económico do arquipélago despertara a atenção da burguesia europeia,
que surge aí à procura dos seus produtos. O pastel atraiu, primeiro os flamengos e, depois os
ingleses. Daqui resultou a importante colónia na cidade de Ponta Delgada.
Temos dois momentos significativos da presença da comunidade flamenga na Ilha. Entre finais do
século XV e o primeiro quartel do século seguinte, estamos perante um grupo significativo
empenhado no comércio do açúcar, o produto do seu interesse na ilha. Poucos fixaram morada,
afirmando-se na sociedade local. Apenas João Esmeraldo, Anton e Martim Lem ganharam raízes
8
deixando marcas até a actualidade. Note-se que dos Nieulant, Grave e Alfradrique não ficou rasto.
O segundo momento acontece nas duas últimas décadas do século XVI, momento em que a
comunidade flamenga assumiu uma posição de destaque na praça madeirense.
A presença da comunidade flamenga perdura na centúria seguinte. Acontece que a partir de 1608
temos notícia da presença de um cônsul belga, Jos Vast Vecmy, no Funchal. Foi o primeiro
consulado na ilha mas não sabemos o que representaria em termos de importância a comunidade
flamenga na ilha, pois os dados são escassos. Isto deverá ser resultado do facto de a ilha continuar
a necessitar dos produtos da Flandres, nomeadamente para o abastecimento alimentar, situação
que ficou favorecida com a união das coroas peninsulares. Assim no decurso da centúria a ilha
importava cereais, presunto e manteiga da Flandres, sendo referido em 1625 pela vereação que o
provimento da ilha dependia do comércio exterior, designadamente com a Flandres. Para o
período de 1596 a 1642 temos 29 % do cereal entrado no Funchal daí oriundo11. Já para as
centúrias seguintes a presença dos flamengos parece ir em decrescendo, em favor dos ingleses que
quase dominam todo o comércio com o mar do Norte. Desapareceu quase por completo o rastro
dos flamengos na ilha, sendo os contactos esporádicos12.
11 Alberto Vieira, O Comércio de Cereais dos Açores para a Madeira no século XVII, in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), Angra do
Heroísmo, 1984, 674. Alberto Vieira, O Município do Funchal (1550-1650)”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, 1986, Funchal,
1989, p.1058.
12 . João José Abreu de Sousa, O Movimento do Porto do Funchal e a conjuntura da Madeira de 1717 a 1810. Alguns Aspectos, Funchal, 1989.
9
As primeiras notícias sobre o comércio de açúcar com as cidades da Flandres são de 1468. Nesta
data o açúcar madeirense já circulava na cidade de Bruges. Todavia estas primeiras remessas
faziam-se a partir de Lisboa e só a partir de 1472 temos então a importação directa. No quadro
dos negócios sobre o açúcar os mercadores flamengos não conseguem atingir o mesmo patamar
dos genoveses e venezianos. Por outro lado a sua acção está quase só circunscrita às duas
primeiras décadas do século XVI. Aqui, as cidades estado italianas dominam com mais de 78%
do açúcar transaccionado. Isto não corresponde de modo algum a uma menor importância do
açúcar neste mercado mas resulta sim do facto de o comércio estar sob o controlo da feitoria
portuguesa. Os dados das escápulas de 1499 assim o confirmam. Atente-se, ainda que no
período de 1513 a 1538 dezoito navios do trato do açúcar madeirense com a flandres foram
apresados pelos franceses. Destes temos seis que iam desde Viana do Castelo14.
Nos Açores a inexistência de uma forte rede de negócios em torno do açúcar, bem como a
desvalorizarão em favor do pastel e cereais, limitaram as possibilidades de intervenção da
burguesia italiana e castelhana e abriram as portas pelo que temos a intervenção de flamengos e
ingleses, interessados no comércio do pastel. Linschoot, em 1589, refere que o comércio do pastel
era feito por franceses, ingleses e escoceses; quanto a Ponta Delgada, diz-nos que aí "vão
mercadores franceses, ingleses e escoceses buscar o pastel mais do que vão … Terceira, e que lá levam mais
de duzentos quintais todos os anos". Esta assídua frequência de mercadores estrangeiros nos portos
de Ponta Delgada e de Angra era considerada pelos vizinhos como ruinosa, pelo que solicitaram
ao monarca, em 1557, medidas limitativas da sua actuação. No entanto, estas pretensões só
foram atendidas na década de 80, já sob o domínio filipino; através de uma guerra de
represálias interditou-se o mercado açoriano à sua intervenção, primeiro com a proibição de
venda das suas mercadorias, depois, impedindo o exercício de qualquer actividade nas ilhas.
Todavia, a proibição não surtiu o efeito desejado, uma vez que se mantiveram activos servindo-
se da intervenção de outros mercadores, pelo que em 1590 e 1596 o governo espanhol reforçou a
represália.
Se no caso das relações das ilhas com os reinos peninsulares os laços e imperativos de soberania
dos territórios, aliados tendência monopolizadora da burguesia metropolitana, impuseram um
estreitamento de contactos e de comércio com a Península, no que respeita aos mercados
nórdico e mediterrânico as ilhas afirmaram-se pelos produtos, impostos pela nova economia de
mercado, o açúcar e o pastel. Para além disso, as insuficiências da indústria peninsular
traduziam-se numa procura de novos mercados capazes de satisfazer o gosto, cada vez mais
apurado da nova aristocracia e da nova burguesia. Se é certo que os artefactos de uso diário
poderiam ser encontrados na península, outros há que escasseavam, havendo necessidade de os
importar de Itália, Flandres e Inglaterra.
Para a nova classe dirigente a ostentação da riqueza surge como uma forma de afirmação social
e política, sendo exteriorizada por meio do uso de produtos flamengos e italianos; deste modo
14 Ana Maria Ferreira, A Madeira, o comércio e o corso francês na primeira Metade do Século XVI (1513-1538), in Actas do I Colóquio Internacional de
Historia da Madeira.1986, Funchal,1989, pp.481-497.
11
os panos peninsulares são preteridos em favores dos riquíssimos tecidos de Ypres, Ruão e
Londres. Na Madeira a ostentação traduz-se na compra de uma campa em Flandres ou na
aquisição de valiosas pinturas flamengas que depois ornamentavam as capelas dos morgados
mais importantes da ilha. Em 1546, João Lourenço Leitão refere ter comprado o retábulo de
Nossa Senhora da Piedade do Mosteiro de S. Francisco em Flandres por trinta e sete mil reais. E,
em 1566, aquando do assalto francês à cidade do Funchal, Frutuoso refere que o saque de
valiosos móveis "porque pela maior parte, pelo trato dali, a mais e maior riqueza daquela terra eram jóias
e ricas peças de móveis ricos, que mandavam fazer de Flandres e outras partes pelos constantes e
forasteiros, a troca de mercadorias da terra e de suas novidades, sem estimarem nem sentirem a compra e
custo de semelhantes coisas, ainda que custosas...".
Gaspar Frutuoso referindo-se a S. Miguel, dá conta que Diogo Nunes Botelho, um dos
principais proprietários da ilha, mandava vir de Flandres, Inglaterra e Sevilha alfaias e vestidos
a troco de pastel. Para a burguesia ou para a aristocracia insulares, enriquecidas com o comércio
do açúcar ou do pastel, os créditos arrecadados serviam apenas para ostentação e afirmação no
acanhado meio em que viviam. As restrições impostas pelo meio geográfico impelem-nas para
essa forma de investimento do capital, pondo de parte a possível revalorização na actividade de
troca.
O pastel, o açúcar e o vinho atraíram os mercadores europeus que invadiram o mercado insular
com os vários artefactos e produtos alimentares. A importância do comércio com as praças da
Eucrásia, Bruges, Flandres e Meldeburgo torna-se bem clara, já em 1485, em face da interdição
desse trato e suspensão dos privilégios aos mercadores flamengos aí residentes. Esta era a forma
de represália mais adequada contra a guerra nestas paragens. Para os portos nórdicos
exportavam quer açúcar, pastel e urzela quer algodão e escravos; em troca, a ilha recebia os
panos (Londres, Escócia, Ruão), cereais e peixe seco ou salgado. No arquipélago açoriano o
comércio europeu orientava-se fundamentalmente, para as praças nórdicas (Inglaterra, Flandres,
Holanda), com uma indústria têxtil importante, uma vez que o arquipélago era um dos
principais produtores de pastel de mercado insular no século XVI.
Na segunda metade do século XVII o açúcar madeirense foi paulatinamente substituído pelo
brasileiro. Neste circuito de escoamento e comércio é evidente a intervenção de madeirenses e
açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do
açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto das rotas comerciais ampliava-se até ao trato negreiro,
cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirenses criaram a sua própria rede de
negócios, com compatrícios fixos em Angola e Brasil.
O comércio do açúcar destaca-se no mercado madeirense dos séculos XV e XVI como o principal
animador das trocas com o mercado europeu. Durante mais de um século a riqueza das gentes
da ilha e o fornecimento de bens alimentares e artefactos dependeu do comércio do produto. O
açúcar foi, durante mais de um século, o principal activador das trocas da Madeira com o
exterior. As dificuldades sentidas com a penetração do açúcar insular no mercado europeu
levaram a coroa a intervir no sentido de manter um comércio controlado, que a partir de 1469
passou a ser feito sob o permanente olhar do senhorio e coroa. A situação manteve-se até 1508,
altura em que a coroa aboliu o regime de contrato. A partir de uma das medidas tomadas pela
coroa (o contingentamento de 1498) para defesa do mercado do açúcar madeirense poder-se-á
fazer uma ideia dos principais mercados consumidores. As praças do mar do norte dominavam
o comércio, recebendo mais de metade das escápulas estabelecidas: aqui a Flandres adquire uma
posição dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço mediterrânico. Se
12
15 .Joel SERRÃO, "Nota sobre o comércio do açúcar entre Viana do Castelo e o Funchal...", in Revista de Economia, III, 209-212; Virginia
RAU, A Exploração e o comércio de sal em Setúbal, Lisboa, 1951; A.R.M., RGCMF, T. I, fls. 301-301vº, Lisboa, 15 de Março de 1505, carta régia,
publ. in A.H.M., XVII, 453-454.
16 . Domenico GEOFFRÉ, Documenti sulle relazioni fra Genova ed il Portogallo del 1493 al 1539, Roma, 1961, 18-20, 266-265, 268-270, 277-279,
284-285, 290-292, 309-310, José Maria MADURELL MARIMÓN, art. cit., 486-487, 493 -494, 497-499, 501-502, 521 -522, 564-564.
13
caro. Talvez, devido a este favoritismo encontramos com frequência referências à escala na
Madeira de embarcações que faziam o comércio com as Canárias, Berbéria e S. Tomé. Esta
situação deveria, de igual modo, explicar a venda de açúcar madeirense em Tenerife, no ano de
150517.
O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte
pelas ilhas e litoral do Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran
Canaria e La Palma. Assim, na década de 30 os navios normandos ocupados neste comércio
dirigiam-se preferencialmente a esta área. Convém anotar que a maioria das embarcações que
rumavam a Marrocos, com escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no
comércio com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas
décadas seguintes, não obstante a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre
1536 e 1550, como o principal fornecedor de açúcar à Flandres. Todavia, é patente a posição
cimeira da ilha de São Tomé a partir de 1539. É de destacar aqui o papel da comunidade judaica,
que estabelece uma rede de negócios entre estes espaços, alguns portos litorais do continente
português, como Viana do Castelo e Vila do Conde, e as principais cidades da Flandres.
A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais
mercados do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas).
Deste modo as rotas desviam-se para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os
canaviais foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante
indústria de conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara
noutras épocas.
O pastel aparece na economia insular em condições idênticas ao açúcar. Foi uma cultura
introduzida pelos europeus para satisfazer as carências do mercado de têxteis. Até ao século
XVII com a introdução do anil na Europa ele foi a principal planta da tinturaria europeia, donde
se extraía as cores preta e azul. A par disso a disponibilidade de outras plantas tintureiras, como
a urzela (donde se tirava um tom castanho-avermelhado) e o sangue-de-drago, levaram ao
aparecimento de italianos e flamengos, interessados no comércio, que por sua vez nos legaram a
nova planta tintureira: o pastel. O pastel foi primeiro cultivado na Madeira, e depois nos Açores
e nas Canárias. Mas só no arquipélago açoriano, nas ilhas de S. Miguel, Terceira, S. Jorge e Faial,
atingiu maior dimensão económica. A toponímia regista-se a sua presença e define os espaços
do seu cultivo. Na Madeira refere-se a cultura e comércio no século XV. Os italianos teriam sido
os principais interessados no comércio o que os levou a considerarem a Madeira como a ilha do
pastel. No século XVI está documentada a sua saída para Flandres. Mas os dados documentais
são escassas as referências denunciadoras da sua presença, o que poderá resultar da
As palhotas, dispostas de modo anárquico, vão dando lugar a casas assoalhadas, alinhadas ao
longo de arruamentos paralelos à costa e em torno da praça que domina o templo religioso. O
capitão, de Santa Catarina, avançou encosta acima até se fixar no alto das Cruzes, no espaço
dominado pelo actual Museu da Quinta das Cruzes. Do outro lado, no Cabo do Calhau, surgiu o
burgo popular, dominado pelo mar e pela rua que o ligava a ermida de Nossa Senhora da
Conceição de Baixo. Foi a partir daí que avançou o núcleo urbano a que mais tarde veio a dar
origem à cidade. Do nicho do cabo do Calhau, passou-se a Ribeira Santa Maria (hoje de João
Gomes) e aos poucos conquistou-se espaço aos canaviais para traçar ruas e erguer casas de
sobrado. O próprio duque, D. Manuel, deu o exemplo, doando em 1485 o seu chão de canaviais,
conhecido como campo do Duque, para nele ser traçada uma praça, construir-se a igreja, Paços
do Concelho, de tabeliães e Alfândega. Ligando tudo isto estava a Rua dos Mercadores, hoje da
Alfândega, donde partiram novos arruamentos que deram espaço e vida ao quotidiano dos
mercadores. São exemplo disso a Rua do Sabão, João Esmeraldo. Perante nós estão dois
percursos: dum lado o capitão que avança pelo extremo ocidental do vale até ao alto das Cruzes
e depois desce até à cidade manuelina. Do outro os companheiros do navegador, a gente
obreira, que mantêm o convívio com o mar, avançando ao longo da linha da água ao encontro
da cidade dos mercadores e artesãos.
Para muitos a Sé é o emblema da cidade do Funchal. O templo foi mandado construir por
ordem de D. Manuel, iniciando-se as obras em 1493. Construída para ser a principal paróquia da
vila, acabou por ser a sede do novo bispado, criado em 1514 por Leão X a pedido de D. Manuel.
A sua sagração ocorreu em 18 de Outubro de1517. Note-se que este monarca demonstrou uma
predilecção especial por este templo cumulando-o de ofertas: a pia baptismal, o púlpito, a cruz
processional. Aqui misturam-se vários estilos. São evidentes os traços do manuelino, na fachada,
abside, no púlpito e pia baptismal. O barroco está patente nas capelas laterais, como sucede com
a do Santíssimo Sacramento. Do conjunto chama-se a atenção para o cadeiral apresenta-se com
duas ordens de cadeiras, ricamente trabalhadas. Em madeira dourada sobressaem esculturas
com cenas bíblicas e do quotidiano madeirense do século XVI. Borracheiros e escravos convivem
com santos e outros populares em poses consideradas pouco dignas para o local onde se
encontram.
A primitiva Alfândega do Funchal foi criada em 1477 no Largo do Pelourinho por ordem da
Infanta D. Beatriz, como forma de controlar a arrecadação dos direitos sobre a entrada e saída de
mercadorias. Não sabemos onde esta funcionou no princípio, pois só teve edifício próprio a
partir do século XVI, por plano de D. Manuel. Aí esteve a alfândega até 1962, altura em que
mudou para modernas instalações. O edifício antigo ressuscitou das ruínas com o processo
autonómico, ao ser adaptado para sede da actual Assembleia legislativa Regional da Madeira,
inaugurada em 4 de Dezembro de 1987. O projecto de adaptação é da autoria do arquitecto
Chorão Ramalho. Nesta adaptação salvou-se o que ainda restava da época manuelina. As Salas
dos Contos e do Despacho são os melhores testemunhos da época. Aí são visíveis, o tecto de
alfarge, arcarias góticas com capitéis das colunas e misulas com decoração de elementos vegetais
e figuras humanas, o portal armoriado da fachada norte e restos de arcarias góticas no interior.
Parte substancial desta riqueza em pintura flamenga, maioritariamente do século XVI, pode ser
considerada uma dádiva do açúcar. Com este produto os madeirenses conseguiram elevada
riqueza que ostentaram nas suas capelas privadas, ou em ofertas aos oragos da sua devoção. Há
a salientar ainda algumas transacções directas de açúcar por estas pinturas nos grandes centros
artísticos da Flandres. Igual comportamento teve a coroa para com os madeirenses. D. Manuel
16
foi um deles que cumulou alguns templos da ilha de tesouros. Está nesse caso a famosa cruz
processional, oferecida à Sé do Funchal.
Parte substancial da riqueza em pintura flamenga, maioritariamente do século XVI, pode ser
considerada uma dádiva do açúcar. Com este produto os madeirenses conseguiram elevada
riqueza que ostentaram nas suas capelas privadas, ou em ofertas aos oragos da sua devoção. Há
a salientar ainda algumas transacções directas de açúcar por imponentes quadros nos grandes
centros artísticos da Flandres. Idêntico comportamento teve a coroa para com os madeirenses.
D. Manuel foi um deles que cumulou alguns templos da ilha de tesouros. Está nesse caso a
famosa cruz processional, oferecida à Sé do Funchal.
O Museu está instalado no edifício construído por ordem de D. Luís de Figueiredo de Lemos
(1586-1608). São coevos a arcaria que dá para a Praça do Município e a capela. A Capela anexa é
dedicada a S. Luís de Tolosa, onde ficou sepultado este bispo, depois trasladado para a Sé. A
Capela apresenta um belo pórtico da cantaria negra. O Bispo D. José de Sousa de Castelo Branco
(1698-1721) anexou-lhe o Seminário. Com o terramoto de 1748 tornou-se necessária uma nova
construção que chegou à actualidade. A República em 1910 atribuiu-lhe novas funções, pois aí
funcionou o liceu até 1942. A construção do novo liceu em 1950 levou a sua recuperação pela
diocese que aí fez instalar o Museu Diocesano de Arte Sacra.
A GUERRA AOS FLAMENGOS. O período que medeia entre os finais do século XVI e a
primeira metade da centúria seguinte é o momento decisivo da História das ilhas e do Atlântico.
As questões políticas sobressaem às demais e anunciam uma globalização dos problemas em
que o principal palco é o Atlântico que tem como pilares as ilhas. Subjacente ao conflito está o
afrontamento ao mar ibérico, construído à custa de pactos e bulas papais desde o século XV. O
oceano da segunda metade do século XVI era já um mar aberto. Os conflitos contribuíram para o
reconhecimento definitivo da total abertura do oceano aos diversos intervenientes europeus.
A união das coroas peninsulares não implicou a incorporação do estado português. Estamos na
verdade perante a união de duas coroas e não de estados. A nova situação veio a provocar
mudanças em termos da geografia política do espaço atlântico fazendo dele o palco principal
dos conflitos entre as potências europeias. A situação é o prelúdio da perda da posição
hegemónica dos reinos peninsulares nas rotas que os ligavam ao Novo Mundo Desde meados
da centúria que o direito à circulação se tornou universal ganhando esta tese um forte suporte
jurídico e filosófico.
Na Madeira e nos Açores continuou a afirmar-se a presença britânica que teve consumação
plena na segunda metade do século XVII21. O mundo das ilhas manteve-se alheio ao jogo de
interesses europeus. Apenas nos espaços continentais atlântico (Africa e Brasil) e no Oriente se
tornava evidente o assalto dos beligerantes às possessões portuguesas, acabando por fragilizar a
hegemonia e império que os portugueses havia conseguido em princípios do século XVI. As
alterações mais significativas ocorreram nas ilhas de Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe pelo
simples facto de ambos os arquipélagos funcionaram como antecâmara dos centros
abastecedores de escravos do litoral africano da Costa e Golfo da Guiné.
Uma das formas usadas pelos mercadores nórdicos para se furtarem à prisão pelas autoridades
das Canárias estava no recurso ao pavilhão de um país amigo e ao disfarce do nome,
21 Sobre os Açores veja-se: Nestor de SOUSA, “Sinais da Presença Britânica na vida Açoriana (séculos XVII-XVIII)”, in Arquipélago, nº especial
Relações Açores - Grã Bretanha, P. Delgada, 1988, pp. 25-100; J. G. Reis LEITE, Os Fisher. Esboço Histórico de uma Família Açoriana, Angra do
Heroísmo, s. d..
17
aportuguesando-o. Isto ficou conhecido como comércio disfarçado22. Aliás, continuaram a ser
os campeões do contrabando que tinha por palco algumas ilhas como era o caso da Madeira23.
Um dos casos paradigmáticos que revela a desigual situação dos mercadores estrangeiros entre
as ilhas dos Açores e Madeira e as Canárias sucede com Bartolome Cuello, um mercador inglês
preso em Tenerife a 17 de Janeiro de 1592 e julgado em 159724. Note-se que ele mesmo assim
não conseguiu iludir a perseguição das autoridades inquisitoriais de Canárias. A confissão deste
mercador perante o tribunal de Las Palmas é um retrato evidente da actividade comercial dos
nórdicos no período de 1586 a 1591. Aí temos a definição do que se entendia como comércio
disfarçado: "...y demais de los navios que... tiene declarado que an venido la dicha isla de San Miguel con
nombre de escoceses con el mesmo engaño..los dichos escoceses traen pasaportes delRey d’Escosia.... los
mercaderes que por las dichas vias tratan en España tienen dellos de Francia y d’Escocia y de Flandres
para las mercadorias y las sellan con ellos....y en quanto a los flamencos de Olanda y Gelanda.... los
susodichos tratan ordinariament en Ynglaterra como vassallos de la Reyna y que traen gran cantidad de
ropa y de mercadorias lo quel todo llevan a España y a estas yslas y a las de San Miguel fingiendo ser
alemanes de Amburch y de Dunquerque en Flandres...." Esta prática não foi só apanágio de
Bartolome Cuello, pois que se documentam outros como Thomas Alder, Ht Web, Tomas Simon,
Juan Jurdan e Paulo Bux.
A união das coroas peninsulares foi, em dúvida, o princípio do fim da hegemonia ibérica no
Atlântico mas não do protagonismo das ilhas que continuaram a ser espaços intervenientes nas
novas realidades políticas e económicas que o final de século propiciou. No século XVII os
mecanismos comerciais estavam em mudança, afirmando-se, cada vez mais, a tendência para o
proteccionismo económico, definida pelas companhias comerciais e de legislação restritiva: os
holandeses criaram em 1629 a companhia das Índias Ocidentais, os portugueses em 1649 a
Companhia Geral do Comércio para o Brasil e os ingleses em 1660 a Royal Adventuress in to
Africa e, depois, em 1672, a Royal Campany of England. A política monopolista e proteccionismo
dos ingleses iniciaram em 1651 com o Acto de Navegação e teve continuidade nos actos
posteriores de 1661 a 1696. Em França a política do cardeal Richelieu (1624-1642) havia dado o
mote para a nova realidade político comercial. O mar que séculos atrás foram apenas um
privilégio dos peninsulares era agora património dos diversos empórios marítimos europeus. A
divisão política anterior deixou de ser uma realidade e deu lugar à era dos imperativos
económicos.
A presença e disputa dos holandeses rege-se por condições específicas, porque detinham
interesses importantes na cultura açucareira americana e procuravam assegurar o domínio de S.
Tomé, Santiago e demais feitorias para acesso ao mercado de escravos. A isso juntava-se o
empenho na manutenção das rotas do tráfico e de destruição dos interesses açucareiros da área.
O ataque em 1598 à ilha de Santiago e no ano imediato a S. Tomé surge no seguimento do
assalto a Las Palmas. Se na última o saque foi o principal motivo da intervenção já em S. Tomé o
objectivo era a destruição da cultura da cana, de fabrico do açúcar e controlo da rota dos
escravos.
O novo século anunciou-se como um momento de ligeira acalmia nos mares. Os conflitos das
potências europeias foram paulatinamente sanados pelo que a permanente instabilidade de
22 Alberto VIEIRA, O Comércio Disfarçado mas ilhas do Atlântico Oriental. O Processo de Bartolome Cuello na Inquisição de Las Palmas (1591-
98), in Anita NOVINSKI (ed.), Inquisição Ensaios sobre Mentalidade, Bruxarias e Arte , S. Paulo, 1992, pp.161-169.
23 Cf. Joel SERRÃO, Temas Históricos Madeirenses, Funchal, 1992, pp129-140.
24 Cf. W. de Gray BIRCH, Catalogue of the Collection of Original Manuscripts formerly belonging to the Holy Office of the Inquisition in the
Canary Islands, vol. III, Londres, 1903, pp. 1026-1054; L. ALBERTI e A. B. Wallis CHAPMAN, English Merchants and the Spanish Inquisition in
the Canaries, Londres, 1912, pp. 127-152.
18
25 Cf. Texto de Leonardo Dantas neste Volume. José António Gonsalves de Mello, João Fernandes Vieira Mestre de Campo do Terço de Infantaria de
Pernambuco, 2 vols, Recife 1956, reedição em 2000 pelo CEHA/CNCDP
26 . Cf. Texto de José António Gonsalves de Mello, Francisco de Figueiroa. Mestre de Campo do Terço das Ilhas em Pernambuco, Recife, 1954, publicado
neste volume.
27 ANTT, PJRFF[Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal], Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.965ª, fls.
267vº-268vº, 278-278vº, 4 e 9 de Dezembro de 1658 e 1 de Agosto de 1664; ibidem, nº396, fls.23vº-24, 6 de Abril de 1659.
28 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.nº.398, fls.5vº -7vº, 18 de Março de 1696
29 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº. 398, fls. 2-5vº, 3 de Dezembro de 1734 e 16 de Janeiro de 1735.
30 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.976, fls266vº-267, 20 de Junho de 1774.
31 Maria Licínia Fernandes dos Santos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, 1999, pp.76-77.
19
para chefiar um terço de infantaria das ilhas com 500 homens, sendo metade da Madeira e a
outra metade das ilhas de Pico, S. Miguel, Faial e Graciosa32. O terço de Francisco de Figueiroa é
constituído por 4 companhias, sendo uma comandada pelo capitão Manoel de Azevedo, que
havia servido já no Rio de Janeiro, Baia e Pernambuco33. Manoel Homem d’El-rei era o capelão,
nomeado pelo próprio mestre de campo34, enquanto António Faria era o ajudante35. A despesa
deste serviço é coberta pela Provedoria da Fazenda no Funchal, com o dinheiro reservado para a
fortificação da ilha36.
A Madeira, através das principais famílias, esteve envolvida no processo de formação e defesa
da sociedade brasileira. Madeirenses de diversas idades e origens sociais, sulcaram o Atlântico
para lançar a cultura da cana-de-açúcar, construir os primeiros engenhos, estabelecer os alicerces
das instituições régias e locais e defender a soberania portuguesa face ao afrontamento ou
usurpação de franceses, holandeses e castelhanos.
No quadro da presença flamenga nas ilhas temos a assinalar que esta aconteceu com maior
evidência nos arquipélagos da Madeira e dos Açores, por motivos e em situações distintas. Em
Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, não obstante a existência de contactos comerciais directos com
a Flandres, a presença flamenga é quase nula, prova de que o comércio0 estava na mão dos
portugueses, nomeadamente os judeus. Para o arquipélago madeirense todo o interesse esteve
virado para o comércio do açúcar pelo que são na maioria mercadores que aparecem,
maioritariamente na condição de estantes. São raros os casos de flamengos que fixam morada na
ilha. Aliás, o mais célebre é apontado por Gaspar Frutuoso como sendo genovês. Já nos Açores a
situação foi totalmente distinta. Estamos perante uma significativa presença de povoadores, com
um contributo de relevo para o povoamento das ilhas, que abriram as rotas ao comércio com a
sua terra de origem, por força do pastel. Se quisermos apontar um epíteto de ilhas flamengas
apenas o podemos fazer quanto à Madeira e aos açores, onde esta influência é ainda visível em
alguns testemunhos.
32 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.980, fl.103-105, 17 de Fevereiro, Ibidem, nº.965ª, fls. 14vº-15, 22, 27 de Abril e 11 de Maio de
1646; ARM, RGCMF, T. VI, fls. 66, 77vº-78, 27 de Abril e 8 de Maio.
33 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.980, fls.105vº-106, 17 de Fevereiro de 1646.
34 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº. 980, fl.107vº, 15 de Junho de 1646; ibidem, nº980, fls.148 -148vº, carta de patente de capelão de
26 de Setembro de 1646.
35 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.980, fls.106vº. 26 de Junho de 1646.
36 ANTT, PJRFF, Registo Geral da Fazenda e Contos, nº.965, fls. 14-14vº, 11 de Maio de 1646.