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Ilustração de Carvall
A
técnica de enfermagem Williane Maily Lins dos Santos, de 30
anos, estava internada desde o dia 16 de abril no hospital João
Murilo, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, com falta de ar
e cansaço. Onze dias antes, havia se afastado do trabalho em uma
clínica de hemodiálise por causa de uma laringite que lhe tirou a voz.
Recebeu a indicação de antibióticos em postos de saúde, mas o
quadro só piorava. A mãe, Maria Soares Lins Pereira, técnica de
enfermagem e fisioterapeuta, levou a filha ao hospital público já
desconfiada do quadro de covid-19 por causa do desconforto
respiratório e da tosse contínua. Santos foi colocada numa sala de
isolamento. “Ela foi descompensando, descompensando, o oxigênio
no sangue foi caindo, e nada de um leito disponível.” A 53 km de
Recife, a cidade de Vitória de Santo Antão, com cerca de 138 mil
habitantes, não dispõe de UTI para adultos.
P
ara Henderson Fürst, advogado e presidente da Comissão
Especial de Bioética e Biodireito do Conselho Federal da OAB, a
resolução do CFM pode ser insuficiente diante da batalha diária
que a covid-19 impõe aos hospitais, com centenas de casos com
características semelhantes chegando a um funil. “Precisaremos de
outros parâmetros, inclusive de atuação dos conselhos de Bioética de
cada instituição de saúde, para auxiliar nessa tomada de decisão.” Na
mesma linha segue o clínico geral Flávio César de Sá, emergencista
com residência em infectologia e pós-doutorado em Bioética na
Universidade Cornell, em Nova York. “As recomendações do CFM
valem sempre, mas elas não foram pensadas para essa situação de
emergência, em que a gente talvez tenha realmente de deixar pessoas
de fora da internação”, diz. “Para tomar essa decisão, é importante
que haja algum tipo de resolução institucional prévia para que as
equipes não fiquem perdidas, ao sabor do momento”, afirma ele.
Professor do departamento de saúde coletiva na área de ética e saúde
da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Sá diz que o Brasil tem que pensar como se
comportar diante desse dilema.
O
s critérios para a seleção de leitos nem sempre foram apenas
clínicos e científicos. Parâmetros como religião, estado civil e
condição econômica foram usados em outros momentos. Em
1962, o Seattle Artificial Kidney Center, centro de diálise de alto custo
nos Estados Unidos, só tinha condição de tratar os rins de nove
pacientes em três leitos. Criou-se Comitê de Seleção de Diálise de
Seattle, mais conhecido como God Committee ou Comitê Divino.
Depois da avaliação médica, esse comitê, formado apenas por leigos,
selecionava os pacientes usando critérios sociais, como sexo, idade,
estado civil, religião, número de dependentes, escolaridade, ocupação
e o potencial de a pessoa ser bem-sucedida no futuro, seja o que esse
sucesso no futuro significasse para o grupo. A decisão, de tão
polêmica, provocou reação do holandês Willem Kolff, papa da
hemodiálise - ele criou o primeiro protótipo da máquina de
tratamento de rins em 1943: “Será que devemos permitir a
hemodiálise apenas em pacientes casados, que vão à igreja, têm
filhos, têm emprego, um bom salário e que colaborem com ações
comunitárias? Será que devemos aceitar o princípio de que a posição
social deva determinar essa seleção?” Só em 1971, quando os
programas de seguro saúde e o apoio financeiro do estado de
Washington permitiram que todos os indicados para tratamento de
hemodiálise fossem aceitos, o Comitê Divino deixou de agir. Seus
critérios controversos motivaram a criação dos Comitês de Bioética ou
de Ética Hospitalar nos Estados Unidos.