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questões de vida ou morte

FUNIL PARA UTI


Covid-19 multiplica demanda por leitos de terapia intensiva e obriga hospitais a implementarem "ranking de
sobrevivência" para escolher quem tem prioridade
MÔNICA MANIR
22abr2020_13h56

Ilustração de Carvall

A
técnica de enfermagem Williane Maily Lins dos Santos, de 30
anos, estava internada desde o dia 16 de abril no hospital João
Murilo, em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, com falta de ar
e cansaço. Onze dias antes, havia se afastado do trabalho em uma
clínica de hemodiálise por causa de uma laringite que lhe tirou a voz.
Recebeu a indicação de antibióticos em postos de saúde, mas o
quadro só piorava. A mãe, Maria Soares Lins Pereira, técnica de
enfermagem e fisioterapeuta, levou a filha ao hospital público já
desconfiada do quadro de covid-19 por causa do desconforto
respiratório e da tosse contínua. Santos foi colocada numa sala de
isolamento. “Ela foi descompensando, descompensando, o oxigênio
no sangue foi caindo, e nada de um leito disponível.” A 53 km de
Recife, a cidade de Vitória de Santo Antão, com cerca de 138 mil
habitantes, não dispõe de UTI para adultos.

Pernambuco tem uma Central de Regulação de Leitos, um dos


mecanismos capazes de regular questões urgentes em tempos de
pandemia de covid-19: se não há vagas em UTI para todos, quem será
escolhido e quem será preterido? Que critérios serão usados? E quem
fará essa seleção? Em busca de um leito de UTI para para a filha,
Pereira recorreu à nefrologista Suzana Melo, chefe de Santos.
“Conversando com colegas, descobri que havia três hospitais com
leitos disponíveis em Recife, eles diziam ‘a vaga está aqui, pode
mandar’, mas a Central de Leitos informava que a Williane não havia
sido regulada, o nome dela não entrou no processo”, afirmou a
nefrologista. O leito só foi liberado na noite do dia seguinte, tarde
demais para os pulmões da jovem. Santos, sem outra doença, mãe de
uma menina de 6 anos, morreu de insuficiência respiratória aguda 33
horas após dar entrada no hospital. “Não sei se foi a burocracia, se foi
a falta de leitos, mas não fluiu”, lamenta-se a médica com a voz
abafada por uma máscara N95. Ela rendia colegas afastados pela
contaminação.

Até antes da epidemia, o Brasil contava com cerca de 33 mil leitos de


tratamento intensivo para adultos, mas a covid-19 consome as vagas
em ritmo acelerado e vem levando ao colapso o atendimento nos
estados. Pacientes estão morrendo sem conseguir vagas. Amazonas,
Ceará, Pará e Pernambuco anunciaram que suas UTIs públicas, se não
atingiram 100% de ocupação, estão muito perto disso. A principal
referência no tratamento de covid-19 em São Paulo, o Instituto Emílio
Ribas, chegou ao extremo de sua capacidade pela segunda vez na
semana. No Rio de Janeiro, 90% dos leitos de UTI destinados a
pacientes com coronavírus estão tomados.
Em um vídeo gravado em abril de 2019, após participar de um fórum
sobre políticas públicas e privadas em torno da oncologia, o novo
ministro da Saúde, Nelson Teich, afirmou que, diante do dinheiro
limitado, é importante fazer escolhas e exemplificou com a decisão
entre salvar um adolescente, que vai ter a vida inteira pela frente, e
uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. “Para ela [a pessoa
idosa] melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que
eu vou gastar para investir num adolescente. Só que essa pessoa é um
adolescente que vai ter a vida inteira pela frente, e o outro é uma
pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a
escolha?” Com a epidemia de covid, a questão se impõe, e
instituições de saúde têm de fazer uma escolha dramática para
escolher quem tem direito à vaga.

Não partem do nada. No Brasil, a referência para a distribuição de


vagas de UTI é a resolução 2.156, de 2016, do Conselho Federal de
Medicina (CFM). São critérios para admissão e alta de pacientes que,
quando da sua criação, buscavam respaldar os médicos intensivistas
no uso racional desses leitos limitados e de alto custo. O critério
básico de admissão seria “a instabilidade clínica, isto é, a necessidade
de suporte para as disfunções orgânicas, e a monitoração intensiva”.
O artigo sexto é mais específico, estabelecendo a escala de prioridades
numa combinação um tanto complexa para os leigos. A prioridade
máxima seria de pacientes que necessitam de intervenções de suporte
à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma
limitação de suporte terapêutico. Depois viriam aqueles que
necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem
de intervenção imediata, também sem nenhuma limitação de suporte
terapêutico. Em terceiro lugar, pacientes que necessitam de
intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de
recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica. Em quarto,
pacientes que precisam de monitorização intensiva, pela elevada
probabilidade de intervenção imediata, mas com limitação de
intervenção terapêutica. Em último lugar, doentes em fase terminal,
ou moribundos, sem possibilidade de recuperação.

Em resumo, três tópicos básicos se conjugam na avaliação. Primeiro,


considera-se se o paciente necessita de intervenção; ajustando para a
covid-19, quem precisa de respirador teria prioridade. Segundo, qual
a probabilidade de recuperação do paciente? Alta, média, baixa,
nenhuma? Pacientes com alta chance de se recuperarem encabeçariam
a lista. Terceiro, limitação de suporte terapêutico – caso de pacientes
que já deixaram as chamadas diretivas antecipadas, dizendo que não
aceitam manobras de ressuscitação ou procedimentos de
entubamento. Aqueles que não desejam nenhum tipo de intervenção
mais intensa e invasiva seriam encaminhados para os cuidados
paliativos.

P
ara Henderson Fürst, advogado e presidente da Comissão
Especial de Bioética e Biodireito do Conselho Federal da OAB, a
resolução do CFM pode ser insuficiente diante da batalha diária
que a covid-19 impõe aos hospitais, com centenas de casos com
características semelhantes chegando a um funil. “Precisaremos de
outros parâmetros, inclusive de atuação dos conselhos de Bioética de
cada instituição de saúde, para auxiliar nessa tomada de decisão.” Na
mesma linha segue o clínico geral Flávio César de Sá, emergencista
com residência em infectologia e pós-doutorado em Bioética na
Universidade Cornell, em Nova York. “As recomendações do CFM
valem sempre, mas elas não foram pensadas para essa situação de
emergência, em que a gente talvez tenha realmente de deixar pessoas
de fora da internação”, diz. “Para tomar essa decisão, é importante
que haja algum tipo de resolução institucional prévia para que as
equipes não fiquem perdidas, ao sabor do momento”, afirma ele.
Professor do departamento de saúde coletiva na área de ética e saúde
da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Sá diz que o Brasil tem que pensar como se
comportar diante desse dilema.

O Comitê de Ética Hospitalar do Hospital de Clínicas da Unicamp,


juntamente com o pessoal que cuida dos cuidados paliativos, médicos
da terapia intensiva e da emergência e uma advogada especializada
na área de saúde, desenvolveu uma estratégia de ação, com a criação
de uma espécie de manual sobre como agir em tais casos e quais as
prioridades. As recomendações estão sendo divulgadas para o
pessoal das UTIs e do Pronto Socorro do hospital. A primeira coisa,
diz Sá, é saber se o paciente deixou uma diretriz antecipada de
vontade já pronta, informando se aceita ir para o tratamento intensivo
e se concorda em ser submetido a procedimentos de entubação e
ressuscitação. O emergencista reconhece que poucas vezes cruzou
com tais diretrizes no trato com os pacientes. “Mesmo quem tem
doença crônica ou que ameaça a vida provavelmente nunca pensou
ou refletiu sobre isso. Quando essas diretivas existem, ajudam muito
na tomada de decisão.”

A equipe da Unicamp estudará objetivamente critérios de


possibilidade de sobrevivência. “Estamos usando um modelo
parecido com o dos italianos, uma avaliação que leva em conta a
presença de comorbidades mais um critério que se chama SOFA
(Sequential Organ Failure Assessment, ou avaliação sequencial de
falhas de órgãos).” Esse índice soma pontos relativos a resultados de
exames laboratoriais e clínicos e permite chegar a um score, um
número, que está relacionado à probabilidade de a pessoa morrer na
internação. Quanto mais alto o score, menor a chance de sobreviver.
“Esse índice não é novidade, é usado em terapia intensiva há muito
tempo e é bem consistente”, afirma Sá. A proposta do Comitê de Ética
do Hospital de Clínicas da Unicamp é associar o SOFA com as
indicações de terapia intensiva do CFM e, a partir daí, decidir se a
pessoa deve ou não ir para a UTI – e, mesmo uma vez internada,
reavaliar a cada 24 horas se ela está se beneficiando da terapia
intensiva. “Se não estiver melhorando ou, ao contrário, estiver
piorando, não é o momento de fazer prolongamento inútil da vida
das pessoas. Se a terapia intensiva não está significando uma
vantagem, uma possibilidade de recuperação, talvez seja o caso de a
pessoa ceder espaço para alguém que tenha maior probabilidade.”

Ser entubado e ir para a UTI eram preocupações mais típicas de


pacientes graves – mas a covid-19 mudou isso e trouxe outras
questões. Por isso, ainda que o paciente tenha escrito e juramentado
no seu testamento vital que não gostaria de ir para a UTI ou ser
entubado, como dizer “não” à ventilação mecânica diante da falta de
ar? “A dificuldade para respirar é sufocante não apenas para a
pessoa, mas também para quem está por perto, incluindo o
profissional de saúde”, diz a médica e psicóloga Vera Lucia Zaher,
professora colaboradora da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP). Outra questão é a jurídica, pois, entre os
requisitos legais para uma diretiva antecipada ter validade, é
necessário que o conteúdo não seja considerado crime ou infração
penal, explica Marina Borba, professora de Bioética no Centro
Universitário São Camilo, em São Paulo: “Um documento que enseja
a prática da eutanásia ou do suicídio assistido não terá validade
jurídica no Brasil”. Para deixar expressas suas vontades, a pessoa
também pode se dirigir a um cartório e deixar tudo escrito e
autenticado.

Na definição de critérios para uso dos leitos de UTI, a faixa etária do


paciente também foi levada em conta pela equipe do Hospital da
Unicamp. “Choca muito estabelecer um critério de idade. Mas, se
chegar a uma situação em que há muitos candidatos com critérios
parecidos de sobrevivência, a idade é um que se impõe, supondo que
as pessoas mais idosas têm menos tempo disponível de vida depois”,
diz Sá. A equipe estabeleceu 85 anos como o limite acima do qual a
UTI só vai acontecer se houver vaga disponível. “É muito duro, é
muito difícil, eu sinceramente espero que a gente não chegue a esse
limite, porém, se chegarmos, é um critério que a gente vai ter que
usar.” Na pandemia, sensibilizou o mundo a história de um padre
italiano que morreu depois de ceder o respirador a um paciente mais
jovem. Don Giuseppe Berardelli, de 72 anos, flagrado muitas vezes
circulando sorridente pelas ruas na sua scooter vermelha, havia
ganhado o respirador alguns anos antes de um fiel de sua paróquia
em Casnigo, perto de Milão, quando teve uma crise de asma. No
hospital em Bérgamo, onde tinha sido diagnosticado com o vírus, ele
teria cedido o valioso presente a um paciente também contaminado.

O
s critérios para a seleção de leitos nem sempre foram apenas
clínicos e científicos. Parâmetros como religião, estado civil e
condição econômica foram usados em outros momentos. Em
1962, o Seattle Artificial Kidney Center, centro de diálise de alto custo
nos Estados Unidos, só tinha condição de tratar os rins de nove
pacientes em três leitos. Criou-se Comitê de Seleção de Diálise de
Seattle, mais conhecido como God Committee ou Comitê Divino.
Depois da avaliação médica, esse comitê, formado apenas por leigos,
selecionava os pacientes usando critérios sociais, como sexo, idade,
estado civil, religião, número de dependentes, escolaridade, ocupação
e o potencial de a pessoa ser bem-sucedida no futuro, seja o que esse
sucesso no futuro significasse para o grupo. A decisão, de tão
polêmica, provocou reação do holandês Willem Kolff, papa da
hemodiálise - ele criou o primeiro protótipo da máquina de
tratamento de rins em 1943: “Será que devemos permitir a
hemodiálise apenas em pacientes casados, que vão à igreja, têm
filhos, têm emprego, um bom salário e que colaborem com ações
comunitárias? Será que devemos aceitar o princípio de que a posição
social deva determinar essa seleção?” Só em 1971, quando os
programas de seguro saúde e o apoio financeiro do estado de
Washington permitiram que todos os indicados para tratamento de
hemodiálise fossem aceitos, o Comitê Divino deixou de agir. Seus
critérios controversos motivaram a criação dos Comitês de Bioética ou
de Ética Hospitalar nos Estados Unidos.

“O ideal seria que esse tipo de decisão pudesse ser compartilhada,


inclusive com os comitês de Bioética, mas pode ser que, em muitas
situações dessa pandemia, a gente não consiga isso”, diz a psicóloga
Vera Zaher. “Acaba ficando para os intensivistas esse estresse moral.”
Quando o ventilador tiver peso de ouro, a quem se dará preferência: a
uma mãe com filhos pequenos? A um profissional de saúde? A um
líder comunitário? A uma celebridade? E quem ficará em segundo
plano? Solteiros? Desempregados? Ateus? Prisioneiros? Já Fürst
entende que, uma vez estabelecido o cenário, a própria covid-19 vai
apontar algumas urgências. Vão faltar agentes de saúde para
combater a pandemia? Atende-se primeiro a eles. Precisamos de mão
de obra para produzir insumos e vacinas? Primeiro esses
profissionais. E os valores de cada sociedade também ficarão mais
evidentes. “Quando falam que não vão atender pessoas com
deficiência, por qualquer razão que seja, deixa-se muito claro o que
realmente aquela sociedade pensa das pessoas com deficiência. Esse
cenário testa o nosso caráter.” Ele se refere especialmente à decisão do
estado americano do Alabama, onde o vírus já fez 117 mortos até 21
de abril, de recomendar que pessoas com deficiência mental severa,
demência moderada para avançada e lesões cerebrais graves
provocadas por traumas seriam os candidatos com menores chances
ao ventilador mecânico, orientação que acabou por cair. Os estados de
Washington e Arizona sugeriram procedimentos semelhantes, sob
protesto de associações de amigos de pessoas com Síndrome de
Down e autismo.

Outra opção é encaminhar decisões de oferta e demanda de UTI para


um comitê gestor, que poderia regularizar a situação e universalizar o
atendimento, localizando inclusive leitos em hospitais privados. Foi o
que aconteceu em Pernambuco no caso da técnica de enfermagem
Williane Maily Lins dos Santos. Mas, pelo menos para ela, a decisão
chegou tarde. Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde de
Pernambuco informa que a paciente foi admitida na última quinta-
feira, dia 16, no Hospital João Murilo de Oliveira, com quadro
moderado de Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag). Na tarde
de sexta-feira, seu quadro piorou, e foi solicitada uma vaga de UTI à
Central de Regulação de Leitos. O leito foi disponibilizado ainda na
noite do mesmo dia em um hospital privado. “Infelizmente a paciente
teve uma piora súbita antes que fosse possível realizar a
transferência”, arremata a nota, lembrando que o estado teria
atingido, no domingo, 19, a marca de 646 leitos dedicados
exclusivamente à doença, sendo 319 de UTI. A secretaria não
detalhou a que horas foi feito o pedido.

Dois dias depois do enterro da filha, Pereira gravou um vídeo em que


aparece sentada ao lado do marido, também técnico de enfermagem.
Torcia os dedos da mão sobre o colo, chorando a morte da filha.
“Gostaria de saber quem foi que fechou esse ciclo, quem foi que
deixou que faltasse esse leito, porque, se não garantisse a vida,
garantiria uma assistência digna a uma profissional de enfermagem, a
um ser humano.” O teste para coronavírus foi feito depois da morte
de Santos. O resultado saiu três dias depois. Está marcado em verde-
limão: “Detectável: Coronavírus SARS-CoV2”.

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