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Memórias Catrumanas

Sidney Valadares Pimentel

Memórias Catrumanas
Recordações da Vila de Nossa Senhora
da Pena do Burity no Urucuia

GOIÂNIA
2007
Copyright © 2007 By Sidney Valadares Pimentel

Direitos Reservados desta Edição: Sidney Valadares Pimentel


Todos os Direitos Reservados. Proibida a Reprodução total ou
parcial. Sanções Previstas na Lei 5.988, 14.12.73, artigos 122 – 130.

Contato: urucuiano@hotmail.com
Pedidos: gev@grupovieira.com.br

Projeto Gráfico, Diagramação e Capa: Diogo Nepomuceno Mendes


Revisão Ortográfica: Edna Lúcia Rodrigues

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO (CIP)

Pimentel, Sidney Valadares


P644m Memórias catrumanas: recordações da Vila de Nossa Senhora
da Pena do Burity no Urucuia/ Sidney Valadares Pimentel.___ Goiânia:
Editora Vieira, 2007.
344p.
ISBN:
1. Antropologia. 2. Etnografia. 3. Tempo – Cidade. 4. Memórias. 5. Vila
de Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia. I. Título.

CDU: 572.7

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
A meu irmão Edson,
aquele que melhor soube personificar
a herança romântica modernista do pai.
Um livro de memórias não tem lugar para piedade.
Ribeiro Somente
Sumário

Introdução............................................................................................11
Sobre o bom e o mau sertão................................................................17
As histórias da vila................................................................................20
Correntes migratórias..........................................................................25
A domus catrumana.............................................................................28
Os caminhos........................................................................................33
Ruas e praças........................................................................................39
Árvores.................................................................................................43
A busca pela terra prometida...............................................................49
Valadares e Pimentéis..........................................................................63
A casa nova...........................................................................................66
O cavalheiro da triste figura.................................................................71
As novas exigências..............................................................................76
A nova casa nova..................................................................................85
A loja....................................................................................................96
Serviçais e agregadas..........................................................................100
Os caixeiros........................................................................................105
O puro e o impuro.............................................................................110
Luz, sorvetes e picolés.......................................................................125
Os castigos e seu simbolismo.............................................................128
Redes de protecionismo....................................................................134
Dois modos de ganhar a vida.............................................................144
Gente de fora.....................................................................................148
O entrecruzamento de diásporas.......................................................152
De volta ao ninho..............................................................................155
Arquitetura das moradias..................................................................163
Flores e desavenças............................................................................168
Entre produzir e coletar.....................................................................171
Jegues e armas de guerra...................................................................174
Artífices e artefatos............................................................................181
Curas e curadores..............................................................................192
Religiosidades....................................................................................200
Os ritos de morte...............................................................................208
Festas e festins....................................................................................218
O dicumê...........................................................................................232
As estratégias educacionais................................................................243
Leitura e leitores................................................................................263
Da brincadeira e dos brinquedos.......................................................269
Da aquisição da homência.................................................................288
O namoro...........................................................................................291
O noivado..........................................................................................297
Política e politicagem.........................................................................301
A violência.........................................................................................311
Assim Caminha a Catrumanidade....................................................317
Ana Muda...........................................................................................319
Jeromuage..........................................................................................322
Marcelino...........................................................................................325
Tubina................................................................................................328
Benedita Tonta...................................................................................331
Benício Providência...........................................................................334
Josino..................................................................................................337
Conclusão..........................................................................................341
Agradecimentos.................................................................................343
Introdução

Recorrência ao chavão, intertextualidade ou plágio ainda uma


vez repetido. Não importa o nome que se queira dar ao sentimento
que me move ao iniciar esta árdua empreitada. O certo é que eu que-
ro começar este livro de memórias dizendo que, como Eça e como
Nava, eu também sou um pobre homem. Não da Póvoa de Varzim,
nem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais, mas da Vila de
Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia.
As recordações que aqui deixo gravadas são a expressão do
testamento simbólico de um catrumano que aí nasceu e viveu seus
primeiros quinze anos de vida. E depois de ter emigrado para outros
cantos com o objetivo de estudar e fazer a vida fora, vez por ou-
tra empreende a volta ao seio de sua cultura apenas para constatar,
com o desaponto que os olhos úmidos denunciam, os desbragados
desmandos políticos e administrativos que ali foram cometidos em
nome das melhores intenções. Mas antes de prosseguir, que me seja
dado fazer uma advertência.
Se o leitor que me acompanha estiver esperando encontrar nes-
tas páginas uma busca desesperada de precisão histórica de nomes,
datas e procedência genealógica, pode ir tirando o cavalinho da chu-
va. Sendo esta a sua expectativa, sugiro que abandone o livro neste
ponto. Em seu lugar tome, por exemplo, o Raízes e culturas de Buritis
no sertão urucuiano, de Oscar Reis Durães, com que estará muito me-
lhor servido. Ou, por outro lado, se o interesse do leitor for o de ter
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acesso a uma interpretação cultural daquilo em que a vila de Buritis


se tornou no final do século XX, mediada pelo saber antropológico
stricto sensu, satisfará muito melhor sua curiosidade intelectual lendo
a bela obra intitulada Festas da política: uma etnografia da modernidade
no sertão (Buritis-MG), de Christine de Alencar Chaves. Dito isto, é
preciso informar ao leitor interessado e que, apesar da advertência
acima, teimar em me seguir, qual é a natureza do trabalho que tem
em mãos.
Em primeiro lugar, não pretendo que se compreenda, a par-
tir do que disse acima, que faço tábula rasa de toda a carga de co-
nhecimentos que adquiri pelo mundo afora. Em segundo lugar, peço
que se tome este modesto trabalho apenas pelo que pretende ser: a
memória etnográfica de uma vila que, por força da ação da moder-
nidade, perdeu há muito sua inocência como um lugar de viver e de
morar.
E se hoje a cidade que foi engendrada pela vila (ou teria sido a
vila que perdeu a casca deixando transparecer seu verdadeiro eu de
cidade?) já não possui algo daquele seu encanto antigo, talvez se pos-
sa afirmar, em compensação, que ela continua tão boa para pensar a
cultura local como o foi em determinado momento para viver, desde
que entre nós e ela coloquemos o fosco biombo da memória que, a
um tempo, tudo mostra e tudo esconde. É a partir desta astúcia da re-
presentação, que pretendo construir uma abordagem que seja a um
tempo meio-etnográfica, meio-memorialista, meio-autoreferencial e
meio-autobiográfica.
Certamente, a tentativa de compreensão que apresento ao lon-
go destas linhas é dotada de uma característica extremamente fácil
de ser apresentada, entre todos os demais, como mais um índice de
fragilidade do trabalho: o fato de a realidade que o autor viu (ou ima-
gina haver visto) ter-lhe chegado por meio das lentes de um garoto
que possuía entre cinco e quinze anos de idade. A objeção é extre-
mamente pertinente e, sem dúvida, pode ser tomada como um fator
limitante. No entanto, ao mesmo tempo em que a idade do observa-
dor pode conduzir a visão por vieses que uns olhos mais calejados
pela realidade e a experiência perceberiam diferentemente, o tempo
decorrido desde então poderá ser tomado como um poderoso teste
dos filtros psicológicos e culturais da memória.
Memórias Catrumanas 13 Sidney Valadares Pimentel

Assim, o que se perde por um lado, ganha-se por outro. Por-


que em vez de datas precisas, fatos incontestáveis, descendências hi-
perdemonstradas, modelos explicativos que remontam a linhagens
teóricas diversas e técnicas de extração da verdade às custas de uma
chibata metodológica rígida, o que aqui estará presente será o jorro
da memória e do passado como este se manteve vivo ao longo de
meio século. Transitando entre o passado e o presente, a suposição
e a verdade, o local, o regional e o nacional, o sangue e a afinidade,
a interdição e a transgressão, o castigo e o perdão, o de dentro e o
de fora, a tradição e a modernidade, o mágico e o racional, o que
este livro tentará resgatar será o modo como aquele menino frágil
e já então meio enredeiro e trapaceirinho viu ou pensa ter visto o
transcorrer dos longos dias sem que ninguém, Criador ou Criatura,
se interpusesse entre nós catrumanos e o que nos oprimia.
Se o gado bovino fosse como o suíno e o eqüino —
indisciplinados, bandoleiros —, sem nenhum apego
ao chão em que nasceram e se criaram, a conquista dos
espaços vazios ainda estaria longe de ser feita. Há uma
suposição histórica de que as extensões territoriais deste
imenso país foram conquistadas pelo gado andando na
frente e os vaqueiros atrás, apossando-se dos campos
freqüentados por suas criações.

Carmo Bernardes
Sobre o bom e o mau sertão

Comecemos estas nossas lembranças traçando algumas idéias


sobre a áspera e sacrificial ecologia do lugar.
Devido aos rumos tomados pelos conceitos de sertão e serta-
nejo entre nós, em especial a partir da publicação em 1956 do roman-
ce Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, hoje é possível
perceber nos discursos da intelectualidade e da mídia uma visão ro-
mântica a respeito da ampla área cultural que, começando a leste do
estado de Goiás, prolonga-se pelo noroeste de Minas em direção ao
norte, acompanhando as sinuosidades do rio Urucuia até sua entrada
no São Francisco e por aí afora até penetrar na Bahia.
Nos dias atuais, o uso do gentílico urucuiano tem o poder de
transferir a quem o recebe os atributos de um ser moralmente di-
ferente e digno de ser admirado. Mas naquele tempo falar no Vale
do Urucuia significava referir-se a uma área inóspita e escassamen-
te habitada por uma população catrumana depauperada pela falta
de recursos públicos, pela inexistência de vias de comunicação e pe-
los desalmados animaizinhos, como os rodoleiros, os barbeiros e os
anofelinos, que adoeciam mais ainda os habitantes da região. Isto
para não mencionar a encarniçada competição entre os jagunços e
a polícia, que sempre colocavam em polvorosa a população. Tanto
quando lutavam entre si defendendo interesses diversos quanto nos
raros momentos em que se uniam em torno de uma causa comum e
contra um terceiro.
Memórias Catrumanas 18 Sidney Valadares Pimentel

Também ultimamente a palavra catrumano vem sendo toma-


da como símbolo da identidade mineira nortista e noroestã. Reco-
bre sentidos positivos traçados a partir da sua intersecção com as
demandas do que se convencionou chamar de sertanejo. Mas como
costumava acontecer com este último signo que indexava caracte-
rísticas relacionadas à aspereza do sertão, também o de catrumano
era tomado como uma espécie de rebaixamento a um nível quase
infra-humano, isto é, o dos primatas. Sendo quadrumano ou quadrú-
mano aquele que se serve das quatro mãos para subir nas árvores,
colher os frutos e servir-se. Em nível sociológico, catrumano identi-
fica-se com as noções de atrasado, de caipira, de matuto, de capiau,
de jacu-de-tapera, de chapéu-atolado, dependendo da intenção com
que é usado e do local em que se manifesta.
Diversas são as formas de referir-se ao sertão. Entre estas, duas
são bastante significativas: o sertão-coisa e o sertão-conceito. No início
do seu romance, pela boca do Tatarana, adverte-nos Guimarães Rosa
como suporte a esta diferenciação: “Uma coisa é pôr idéias arranja-
das, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil e
tantas misérias...”.
Estou convencido de que, durante o início da década de 1950,
mesmo entre a intelectualidade brasileira mais arguta e esclarecida,
era o sertão-coisa que sobressaía. Quem sabe aqui e ali pudesse ser
encontrada uma ou outra fímbria de lucidez sobre o tema. Mas não
é de meu conhecimento. Mesmo para as pessoas mais instruídas na
vila de Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia, essa diferencia-
ção era inalcançável e até mesmo impensável. Todos imaginavam ou
admitiam que o lugar real em que viviam era o sertão-bruto.
E o sertão não era um bom lugar. Nem pra eles, nem pra nin-
guém. Tanto que queriam transformá-lo a todo custo. Não sei se al-
guém, mesmo aqueles que ostentavam maior lucidez, chegou algum
dia a apresentar essa idéia de forma compreensível. Mas hoje é pos-
sível constatar com clareza que o mundo aparecia como um espaço
em dégradé. No imaginário sertanejo o espaço era composto de faixas
que se iam acentuando não em relação às tonalidades de cores, mas
em relação à civilização. De modo que, como estratégia para fugir à
acusação de atraso, procurava-se sempre dizer que mais para dentro,
ou mais para a frente, o atraso era maior.
Memórias Catrumanas 19 Sidney Valadares Pimentel

Isto ocorre ainda hoje. Lembro-me de uma questão proposta


recentemente por uma colega de pesquisa a um morador de Buri-
tis descomprometido com a idéia romântica de sertão: “O sertão é
aqui?” Ao que este respondeu: “Não, o sertão fica pra lá, no rumo de
Arinos, antiga Barra da Vaca. Mas aqui já foi sertão”. Se a pergunta
tivesse sido feita a um morador daquela cidade, com toda certeza não
teria sido diferente a resposta. Provavelmente diria o interlocutor:
“Ele fica pra lá, no rumo da Serra das Araras” — ou de São Joaquim,
ou de outra localidade julgada mais atrasada. Daí, a possível inutili-
dade de tentar-se tomar o sertão-coisa como espaço para compor a
identidade do ser real sem as resistências produzidas pela indexação
da noção de atraso.
Conforme já sugeri, faz relativamente pouco tempo que o ser-
tão se transformou em algo pelo menos aceitável. Num espaço bom,
que possa servir como instrumento para determinar a identidade de
um grupo. Existem indicações mostrando que pelo menos desde o
século XIII a idéia de sertão opõe-se à de litoral. A lógica da antítese
parece estar assentada na coexistência nem sempre pacífica entre o
litoral e o mundo não-civilizado. Quanto mais se adentrava no ser-
tão, menores eram os índices de conforto, bem-estar e facilidades.
Ao contrário, ali se localizavam todos os perigos que ameaçavam e
tolhiam a ação das pessoas. De modo que a transformação do mau
em bom sertão foi feita sob a marca da devastação ecológica, no caso
do sertão-coisa, e do reconhecimento como objeto acadêmico ou tu-
rístico, quando se tratava do sertão-conceito. E ambos só vieram a
ocorrer na região de cerrado onde se assenta a nossa ex-vila depois,
pelo menos, da década de 1970.
As histórias da vila

Tanto a primitiva denominação de Vila de Nossa Senhora da


Pena do Burity no Urucuia (ou, como a chamou a Bula papal Pro mu-
nere sibi divinitus de S.S. Pio XI, de 25 de abril de 1929: Mariae Virginis
de Penna de Burity), quanto os posteriores vila de Buritis e apenas
Buritis conservam o elemento de identificação natural que antiga-
mente serviu para lhes conferir sentido: um buritizal substancioso
existente às margens do fiozinho de água refrescante a que, a partir
de determinado momento, seus moradores passaram a chamar de
Vereda. Esse buritizal e a própria Vereda vêm sucumbindo dia após
dia ante a sanha destruidora da chegada da civilização ao sertão e a
absurda idéia de mandar fazer uma “limpeza” daquele filete de água
que, numa palavra, o desfigurou e o secou.
Fico às vezes matutando com meus botões se a vila de que
me recordo é de fato aquela onde nasci e me criei, ou se é um es-
pectro coletivo, isto é, uma construção elaborada a partir de vários
esboços compostos a bico de pena e que podem ser encontrados
como material ilustrativo de velhos livros de História sobre o ser-
tão brasileiro. Lembro-me das casas ao redor do altaneiro jatoba-
zeiro que, só por obra de um milagre, ainda existe. Casas velhas
e novas, altas e baixas, medianamente conservadas ou demolidas,
mas todas, sem exceção, naufragadas na matéria fantasmagórica de
uma mitologia criada localmente para dar vida e colorido à mono-
tonia do cotidiano.
Memórias Catrumanas 21 Sidney Valadares Pimentel

Recordo-me bem das palavras ditas pelo garapuavense Veríssi-


mo Antônio Vasconcelos Teixeira — de alcunha Veríssimo Doido, ou
Veríssimo Capeta, que de louco só tinha o nome e os sonhos —, ao
descer do ônibus de seu Olívio na frente da Pensão da Doca, com a
camisa toda empetecada de cocô de um periquito prosa e que, entre
admoestações ligando o atraso do lugar aos pecados cometidos por
sua gente, fez o seu julgamento definitivo: “Mais atrasada e deca-
dente ainda do que eu pensava”. Ou então, das proferidas por minha
mãe, quando, na fresca da tarde, se sentava à frente da loja, para cos-
turar: “Um paradão que só vendo!”.

A história que se conta sobre a vila diz muito e ao mesmo tempo


não diz quase nada. Diz muito precisamente onde procura acompa-
nhar as narrativas populares e seu quase inesgotável estoque de inven-
tividade e mitificação. E não diz nada quando, pretensiosamente, pro-
cura entender a história da vila como a história única, a verdadeira, a
legítima, aquela em que se pode cegamente confiar. A mesma história
pode ser contada sobre várias outras comunidades como as também
cerratenses Arinos, Serra das Araras, São Joaquim. E até sobre outras
Memórias Catrumanas 22 Sidney Valadares Pimentel

pequenas corrutelas no Mato Grosso, no Tocantins e em Goiás.


No caso da vila de Buritis, o que se produziu foi uma espécie de
saque da historiofonia ou da historiografia sobre a fundação de outras
cidades, sendo tudo tratado num nível mais ou menos generalista.
De um modo geral, os elementos usados são os mesmos. Conta-se
que num tempo bem anterior, infelizmente impossível de ter com-
provados seu porquê e seu como, a vila foi fundada. A terra perten-
cia provavelmente a uma sesmaria dada a fulano por este ou aquele
motivo. Uma parte da terra, porém, foi cedida pelo donatário para
nela se construir um orago em homenagem a determinado santo ou
madona. A doação foi feita por alguém, freqüentemente duas ou três
irmãs, que se apossaram de uma parcela pertencente ao sesmeiro.
Em volta do orago começou a crescer uma corrutela cujos moradores
praticavam a devoção a este santo ou a esta madona. E aí começou a
redistribuição da terra mediante a venda ou cessão temporária.
Nem sempre o processo percorre todas as fases descritas. Mui-
tas vezes ele se apresenta de modo diverso, mas guardando carac-
terísticas idênticas. No fundo, é um alicerce mitológico criado pela
cultura para permitir aos grupos se pensarem como comunidade. No
caso da vila de Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia, ele en-
globa apenas parte da estrutura do mito, mas não deixa de ser mito.
Como é apresentado o mito de origem da vila? Não existe ver-
dadeiramente um mito estruturado mediante um enredo que possua
começo, meio e fim. O que existem são sintagmas que, como afirmei
acima, fazem parte de muitos outros enredos. Assim: a área onde se
localiza a vila pertenceu, provavelmente, no século XVIII, à sesmaria
concedida ao capitão João Ferreira Sarmento; pela mesma área pas-
saram sertanistas e bandeirantes mesmo antes desse período; exis-
tem referências a um sítio povoado à beira de um córrego etc.
Um outro veio explicativo costuma enveredar para um rumo
ainda mais temerário, ao datar a fundação coincidentemente com a
criação da paróquia. Ora, em primeiro lugar, nenhuma paróquia é
criada sem a existência anterior de uma comunidade de fiéis. Em se-
gundo lugar, a data de criação da paróquia pela diocese de Paracatu
é bem posterior ao início do atendimento dos fiéis pelos sacerdotes
das cidades ribeirinhas de São Francisco e São Romão. Finalmente,
se o que determina a escolha é a questão do sagrado, não podemos
Memórias Catrumanas 23 Sidney Valadares Pimentel

esquecer que, mesmo antes do sagrado dos brancos, havia o sagrado


dos moradores da terra. Sagrado por sagrado, o dos caiapó e de ou-
tras nações indígenas é tão demarcador quanto aquele que chegou
até nós proveniente da Península Ibérica.
Talvez a maior dificuldade resida no fato de se pretender identi-
ficar a idéia de ampliação do território e de conquista com a presença
do homem. Nesse caso, principalmente do conquistador paulista, o
sertanista bandeirante, o homem branco. Quando se discute a ques-
tão, nem se toca na importância do gado para a civilização. Não se
reconhece que, a partir de determinado momento, o gado precedeu
o colonizador, como joões-batistas ruminantes que viessem na frente
para anunciar a vinda do colonizador.
Como mostra o historiador goiano Paulo Bertran ao falar da
colonização do Centro-Oeste, algumas vezes os próprios bandeiran-
tes se surpreenderam por encontrar esterco de gado onde pensavam
ser os primeiros a pisar. Havia, além disso, a penetração determinada
pelos partidários da chamada Casa da Ponte, que se opunham aos se-
quazes da Casa da Torre dos Garcia d’Ávila. Estes últimos tiveram a
permissão da Coroa portuguesa para realizar a conquista dos sertões
sanfranciscanos desde o final do século XVI, não importando se cau-
savam ou não prejuízo aos sesmeiros, ou se extorquiam quaisquer
outros direitos. Ao domínio latifundiário da Casa da Torre resistiram
os Guedes de Brito, cuja empresa de conquista tomou o nome de
Casa da Ponte. Para evitar o combate sangrento entre os partidá-
rios das duas casas, decidiu a Coroa portuguesa que a Casa da Torre
estenderia suas conquistas a oeste e ao norte do rio São Francisco,
enquanto a Casa da Ponte se beneficiaria de tudo que conseguisse
angariar a leste do mesmo rio, até o centro de Minas Gerais.
Antes, pois, de Matias Cardoso fundar a cidade de Januária e
daí partir para a conquista do sertão urucuiano, a estratégia usada pe-
los partidários da Casa da Ponte consistiu em realizar a entrada por
meio da instalação de pequenas fazendolas. A distâncias espaçadas
e usando pequenos ranchos de taipa e currais improvisados, eram
deixados lotes de aproximadamente cinquenta reses que eram cui-
dadas por um casal de escravos. Com o tempo, algumas fazendolas
foram-se fundindo como forma de manter sob controle a migração
das reses e precaver-se contra os ataques dos nativos. De modo que,
Memórias Catrumanas 24 Sidney Valadares Pimentel

das vertentes do rio São Francisco até o Planalto Central, o gado foi-
se dispersando e tocando seus vaqueiros, no que alargaram suas con-
quistas sem a necessária presença de conquistadores de fora.
Correntes migratórias

O que veio primeiro, o ovo ou a galinha? Dito com outras pala-


vras: é o não-reconhecimento que leva à invisibilidade, ou é a incapa-
cidade de se tornar visível que conduz à falta de reconhecimento? Seja
qual for a ordem mais aceitável, o certo é que nas constelações sociais
alguns grupos foram relegados ao esquecimento porque não foram re-
conhecidos. Algumas vezes pela própria sociedade. Outras pela cultu-
ra ou pelos seus explicadores, que não conseguiram relativizar o que
tinham em mente. E assim queimaram etapas. Ou saltaram fases. Ou
ainda produziram periodizações capengas e repletas de depressões e va-
zios. Foi o que aconteceu em alguns escritos de divulgação e narrativas
sobre Buritis em que a corrente migratória dos pernambucanos sequer
foi considerada como tal, sendo eles condenados assim ao silêncio e
à invisibilidade. Como um acerto de contas, nestas memórias tentarei
repor pelo menos parte do que nos foi negado.
O ponto de partida que tomo como limiar inferior para escre-
ver estas memórias é o início dos anos 50. Em meados da década, já
desligada do município de São Romão e integrada ao de Unaí como
um de seus distritos, a vila contava com uma população urbana de
mais ou menos 500 habitantes, estimada a uma média de aproxi-
madamente cinco ou seis pessoas por residência. Esse contingente
populacional mostra um crescimento acelerado, se comparado com
as estatísticas oficiais para o início da década.
Memórias Catrumanas 26 Sidney Valadares Pimentel

Para o censo de 1950, o IBGE apontava uma população de 308


indivíduos, 144 dos quais eram homens e 164, mulheres. Desse total,
somente 257 pessoas possuíam mais de cinco anos de idade e, desses,
97 possuíam escolarização, ou seja, sabiam ler e escrever. Traduzindo
os dados do IBGE em termos mais compreensíveis, podemos dizer
que na vila, no ínicio da década de 1950, viviam 47% de pessoas do
sexo masculino e 53% do sexo feminino; dessa população, 83% ti-
nham mais de cinco anos de idade e apenas 17% contavam com cinco
anos ou menos; da totalidade dos indivíduos, somente 38% sabiam
ler e escrever, enquanto 62% não sabiam; entre os indivíduos que
sabiam ler e escrever, 56% pertenciam ao sexo feminino.
Na vila e em suas cercanias vivia uma população mais ou menos
homogênea. Talvez o que mais chamasse a atenção nesse momento
fosse a predominância de uma composição étnica de cor parda. Em
meio a poucos branquelos e muitos negros ou mulatos, sobressaía,
de fato, uma grande maioria de pardavascos. Uma coloração que se
aproximava daquilo que alguns moradores denominavam “branco
sujo”. Ninguém podre de rico ou possuidor de uma fortuna pessoal
humilhante para os demais. Alguns ricos, outros remediados e uma
grande massa de pobres.
Nesse momento, o arruado era o centro mais animadinho. O
lugar onde se podiam travar novos conhecimentos e encontrar gente
e produtos forasteiros. A vila era o entreposto comercial para onde
se dirigiam os moradores da área campestre, quando necessitavam
de abastecer-se de bens que não produziam em suas fazendas ou em
suas unidades familiares. A troca se dava entre os próprios catruma-
nos. E a vida permaneceria nesse diapasão sabe-se lá até quando, não
fossem dois fatos que viriam impulsionar mudanças radicais na vila e
na ocupação fundiária da região. O primeiro foi o estabelecimento da
firma Irmãos Pimentel Ltda., que trouxe melhoramentos e moderni-
dades em especial à vida urbana. O segundo, os fluxos populacionais
determinados pela construção da Nova Capital e pela barragem de
Três Marias no rio São Francisco, durante o governo do presidente
Juscelino Kubitscheck de Oliveira.
O mais importante a aduzir nesse momento é que cada um
destes fatos veio acompanhado de um veio migratório. O primeiro,
dos paus-de-arara, como o escrivão Pedro Pereira da Silva se dirigia
Memórias Catrumanas 27 Sidney Valadares Pimentel

à irmandade de pernambucanos e suas famílias que chegaram à vila


no início da década anterior, isto é, dos anos 40, ali se estabelecendo
como pequenos comerciantes e artesãos do couro e, posteriormente,
como médios comerciantes do varejo, nas especialidades de secos e
molhados, além de instalarem na cidade, por sua conta e risco, pe-
quena usina de eletricidade movida a diesel, bar e sorveteria, má-
quina de beneficiar arroz e empresa exportadora de couros e cereais
para Goiás.
O segundo começou quando, em 1956, eleito presidente, além
de outras iniciativas, Juscelino deu início imediatamente à constru-
ção de Brasília e da barragem de Três Marias. Por incrível que pareça,
a construção da nova capital e a da usina tiveram a capacidade de
exercer sobre a vila de Buritis efeitos diferentes e contrários. Enquan-
to Brasília funcionou como um pólo de atração da população que
vivia na vila e em suas cercanias, a expulsão das famílias ribeirinhas
indenizadas pela cessão de suas terras fez com que essas mesmas po-
pulações viessem adquirindo e ocupando uma larga faixa de terra
em vários municípios do estado. Entre estes, o município de Unaí, ao
qual se subordinava administrativamente a vila.
O cenário que então se desenha é o de dois movimentos po-
pulacionais simultâneos. Ao mesmo tempo em que uma grande par-
cela da população da vila parte em busca de melhores condições de
trabalho e de vida, outra parcela, denominada localmente “os che-
gantes”, vem e começa a arrendar ou a comprar terras, substituti-
vamente aos que se foram. Em pouco tempo, com o seu trabalho e
um sentimento desenvolvimentista que animava a população bra-
sileira durante o governo JK, aliados ao impulso modernizante que
os pernambucanos trouxeram à vila desde o início da década, houve
grandes avanços, sendo fundados novos núcleos urbanos como espe-
rança de que estava por vir um novo tempo.
A domus catrumana

Se em vez de debruçar-se sobre os processos inquisitoriais


acumulados ao longo de trinta anos, entre o final do século XIII
e o início do XIV no povoado occitânico francês de Montaillou,
o brilhante historiador normando Emmanuel Le Roy Ladurie ti-
vesse diversamente procurado inteirar-se do que se passava con-
temporaneamente na vila de Nossa Senhora da Pena do Burity
no Urucuia, muito provavelmente tivesse chegado a aproxima-
ções etnográficas não muito distanciadas das que lhe foi possí-
vel então formular. A comparação é tão mais real quanto mais
pensarmos no modelo da domus, que ele apresenta como uma
característica básica da organização aldeã occitânica, como um
tipo ideal aplicável a outras sociedades e outras culturas. À catru-
mana inclusive.
Para compreender a comparação que pretendo fazer, é preci-
so que nos inteiremos primeiramente do conceito e da natureza da
domus. Conscientizemo-nos, como ponto de partida, que ela é mais
do que a casa, ainda que a raiz latina nos conduza insuportavelmen-
te para essa identificação. Tampouco ela se limita à noção pura e
simples de família camponesa. Mais do que isto, a idéia que se en-
contra por detrás do significante domus seria, puxando a brasa para
nossa sardinha noroestã, a constituição familiar catrumana, organi-
zada numa casa e nos interesses e negócios de um grupo doméstico
formado por pessoas que coabitam sob o mesmo teto ou sob tetos
Memórias Catrumanas 29 Sidney Valadares Pimentel

diversos, próximos ou não, mas que funcionam para a consecução


dos mesmos objetivos.
Assim, como família e como casa, a domus centraliza, num
conjunto de atividades e de funções, os papéis genealógico, afetivo
e econômico. Como grupo doméstico onde convivem co-residentes,
ela toma para seu controle a organização de elementos essenciais ou
acessórios, centralizados ou dispersos, como o armazenamento e a
elaboração de alimentos, os bens, os filhos, as alianças conjugais, a
famulagem e tudo o mais que corresponde aos condicionamentos e
ganhos da empreitada. Embora fizessem parte de uma realidade nem
sempre consolidada e forte em razão da má sorte ou do fracasso, as
domus podem ser vistas como uma noção unificadora da vida social,
familiar e cultural da vila manifestada por intermédio de uma rede de
famílias e interesses que ao mesmo tempo se compartimentavam e se
colocavam em comunicação como uma constelação interdependente.
A importância da parentela perante toda a constelação de uni-
dades compostas, seja por uma família nuclear, seja por uma família
extensa, pode ser aquilatada pelo pertencimento a uma domus como
expressão de um englobamento. O uso e até mesmo o abuso da con-
tração da preposição “de” com o artigo masculino plural “os” per-
mite constatar essa idéia de posse: eu sou dos Pimentel, dos Lopes
etc. Também quando alguém cometia um crime ou um ato ilícito, a
transgressão era coletivizada e debitada à conta da domus engloban-
te: isso é coisa dos Prado, dos Durães — e assim por diante.
Ainda que na vila, de um modo geral, houvesse um número
bem maior de mulheres que soubessem ler e escrever com um desem-
penho que ia de sofrível a mediano, a importância do gênero mascu-
lino ficava ressaltada por meio de esquemas montados para “colocar
as mulheres em seus devidos lugares”. Isto ocorria em especial quan-
to à sucessão dos bens e direitos, para cuja compreensão proponho
considerar o problema nas perspectivas horizontal e vertical.
Vejamos a questão inicialmente do ponto de vista horizontal.
Embora as leis vigentes obrigassem à partilha igualitária entre
os descendentes dos bens pertencentes aos pais, os “filhos-homens”
eram às vezes mais bem aquinhoados do que as “filhas-mulheres”.
A estratégia consistia no seguinte: em vida, às vezes à socapa, ou-
tras descaradamente às claras, o chefe-da-domus doava bens aos “fi-
Memórias Catrumanas 30 Sidney Valadares Pimentel

lhos-homens” e o que sobrava depois da morte dos pais, isto é, o que


consistia verdadeiramente no espólio, era dividido igualmente entre
todos os remanescentes.
Não deixa de ser interessante apontar que etimologicamente a
origem da palavra “espólio” está relacionada com a idéia de butim,
dos bens tomados pelos vencedores aos vencidos. Neste caso, a espo-
liação de um gênero (o feminino) pelo outro. O processo era condu-
zido na maior naturalidade, como parte da necessidade de manter as
boas relações no interior da domus. Assim, quando o filho se casava,
ou mesmo antes, o pai costumava dar-lhe “algo” para começar a vida.
Este algo podia ser uma casa, um lote de reses, dinheiro vivo ou até
mesmo uma fazenda “de porteira fechada”, isto é, incluindo tudo que
existisse nela. Ignorantes a respeito dos bens da domus ou, mesmo se
conscientes do roubo, submissas ao poder paterno, as filhas faziam
vista grossa à espoliação.
Tudo faz crer que por detrás do engodo havia a compreensão de
que logo a “filha-mulher” iria fazer parte de outra domus, aquela a que
pertencia o seu futuro marido, da qual herdaria mais tarde. Daí, a ex-
pressão muito ouvida quando, em vez de levar a noiva da casa do pai,
era o próprio noivo que se aboletava na residência do sogro, como se
disse inúmeras vezes a propósito dos casamentos de pelo menos três
das filhas do pescador Marcolino Fonseca Melo: “Coitado de Marcol;
quando pensava que ia ficar livre de uma colher, foi que acabou ga-
nhando mais um garfo”. Neste caso, identificava-se culturalmente o
garfo com o gênero masculino e a colher com o feminino.
Ainda que com menor clareza e, portanto, com menor visibili-
dade à população, havia também uma preeminência, em sentido ver-
tical, tanto dos mais velhos sobre os mais novos, quanto dos filhos de
um primeiro casamento sobre os porventura advindos de um segun-
do e terceiro. Em alguns casos, essa regra combinava-se com a regra
horizontal já explicitada, de modo que o sistema da domus se comple-
xificava ainda mais.
A primazia estabelecida dos mais velhos sobre os mais novos de
uma mesma família podia manifestar-se de vários modos: economi-
camente, quanto ao respeito moral, em termos de preferência para
o exercício de determinadas atividades, ou até para exercer o direito
ao casamento. Da mesma forma, os filhos provindos de casamentos
Memórias Catrumanas 31 Sidney Valadares Pimentel

sucessivos muitas vezes entravam em competição para determinar o


que cabia a cada grupo. Em alguns casos, a escassez de documentação
não permitia comprovar nada sobre a periodização do que fora sendo
acumulado ao longo do tempo de vida do cônjuge tomado em con-
sideração. É claro que o surgimento de filhos externos ao casamento
complicava ainda mais as coisas, embora neste período o processo de
reconhecimento de paternidade ficasse mais por conta da boa vonta-
de do varão em admitir a filiação do que por qualquer outro método
dotado de maior objetividade.
A população da vila valorizava preferencialmente as relações
interdominiais (isto é, entre as domus) e a união endogâmica. O reco-
mendável sempre, acima de todas as circunstâncias, seria que, já que
a filha ou o filho teria de se casar mesmo, que se casasse com um ou
uma pretendente “de dentro”. De preferência, que a escolha recaís-
se sobre um jovem vilão ou uma jovem vilã (nos bons sentidos dos
termos) que possuíssem algo de seu. Mas o bom mesmo era que esse
algo fosse muito e que tivesse a possibilidade de ser imediatamente
capitalizável.
Na composição desse imaginário, alguns pares de oposições se
combinavam para, afinal, constituir o que se considerava mais ou me-
nos aceitável: o de dentro e o de fora versus o rico e o pobre. Assim,
a combinação preferencial era a união com alguém que, ao mesmo
tempo, fosse “podre de rico” e “gente da vila mesmo”. Não sendo
possível, seria compreensível acomodar-se a uma relação de natureza
exogâmica, desde que o estrangeiro fosse “gente de posses”.
Corre na vila um mito construído há décadas, cuja narrativa é
passada de geração a geração, e cuja eficácia simbólica está relaciona-
da à ideologia da realização endogâmica. Ele conta a história de uma
moça do lugar, filha de um chefe-de-domus importante, criada na fa-
zenda pertencente a seu pai. De acordo com as narrativas existentes,
a moça casou-se ainda muito jovem com um português que a levou
para morar na capital do estado. Desorientada frente a um mundo
que desconhecia, o da cidade grande, e a uma relação conjugal muito
diferente dos costumes com que convivera até então e depois de dar à
luz duas crianças, a moça urucuiana teria sido possuída por um ban-
zo semelhante ao que atingia os negros escravos trazidos de sua terra
contra a própria vontade. Ante tal sofrimento, ela tomou veneno e
Memórias Catrumanas 32 Sidney Valadares Pimentel

morreu. Uma decomposição discursiva dos mitemas incluídos nesta


micronarrativa urucuiana apontaria a relação íntima entre a força
da pressão endogâmica e a impossibilidade da volta como parte do
esquema interpretativo para a decifração do enigma colocado pelo
mito.
Os caminhos

Por volta de meados do século XX, a vila não possuía todas as


entradas e saídas com que passou a contar com o correr do tempo e a
chegada da modernização. Época houve em que o caminho mais lar-
go — e que poderia com menor esforço ser reconhecido como uma
estrada — era o que levava a Cabeceiras e, logo, a Formosa, antigo
Arraial dos Couros, ambas em território goiano.
Naquele momento, quando a herança romântica da légua, de
sabor bem português, ainda não havia sido completamente substituí-
da pela precisão instrumental dos quilômetros, a distância entre a vila
e os primeiros índices de civilização era de 24 léguas, se tomarmos
como tais os avanços que, então, podiam ser encontrados em Formo-
sa: pavimentação, algumas praças arborizadas, cinema, automóveis,
pequenas fábricas etc. Os demais pontos em que a vila podia ser to-
cada, indiferentemente, davam acesso a trilhas e caminhos sinuosos,
abertos a cascos de gado e de montarias. Nada que lembrasse uma
estrada real. No limite, era uma terra ferida pelas rodas massacrantes
dos carros de bois, que, com seus pinhões de ferro, perfuravam para-
lelas de pequenos pontos na vegetação rasteira do cerrado.
Excetuando a saída que ia dar na “serra pra Formosa”, havia
os caminhos menos importantes que convergiam para a vila ou dela
partiam. Um deles, como se houvesse se tornado de repente invisí-
vel, ou subterrâneo, e reaparecido na outra ponta da rua mais estrei-
to e desigual como um caminho-peba, até parecia a continuidade da
Memórias Catrumanas 34 Sidney Valadares Pimentel

estrada que provinha de Goiás. Esse caminho, só muito mais tarde


vim a perceber que ia dar em lugares dos quais ouvia falar, mas, sem
a precisão da descoberta concreta, não fazia a menor idéia pra que
lado ficava, nem qual era sua aparência. A fazenda de Honório (onde
se fazia a cachaça Sete de Setembro, uma aguardente como nunca se
viu igual, de acordo com testemunhas gustativas de então). A fazen-
da de Cesário. A cachoeira do Urucuia. A Extrema de Poti. O Funil
de tia Celina. Eram todos signos cujo significado eu compunha na
mente da mesma forma que compunha as noções, ambas estranhas e
estarrecedoras, de Deus e do Diabo.

Um outro caminho saía do ponto cardeal que a população


da praça chamava de “lá em cima” ou “lá em riba”, dirigindo-se
para o mesmo córrego da Extrema, só que para os lados de sua
nascente, a partir de onde descia recebendo vários filetes de água
que o iam engrossando à medida que se aproximava de sua barra
Memórias Catrumanas 35 Sidney Valadares Pimentel

no Urucuia. Era desse lado que ficava a propriedade que meu pai,
José Gomes Pimentel, arrematara da Igreja, o que levou seus ad-
versários políticos da UDN a espalhar que ele dera o tombo em
Nossa Senhora da Pena.
As fazendolas que nessa parte existiam e até outras mais para
baixo eram identificadas pelo nome do mesmo córrego, acrescidas
dos nomes dos respectivos proprietários, que também adquiriram
suas posses da diocese de Paracatu: a Extrema “de Alcides”, “de Pi-
mentel”, “de Orlando do Prado”, “de Darinho”. Mais próximo desta
última existia um minúsculo fio d’água, pouco mais que uma mina
que dava vazão ao seu anseio de correr em direção ao rio, que se cha-
mava Descanso. No meu miúdo e corriqueirozinho imaginário ca-
trumano em formação, aquela palavra, para uma grota, era um des-
propósito. Descanso. O nome teria sido colocado por alguém durante
uma parada momentânea de estafante caminhada? Ou seriam as pa-
lavras do Salmo 23, possivelmente ecoadas em meu espírito depois
de ouvi-las citadas, seja pelos católicos frei Cecílio e frei Prequelmo,
seja pelo presbiteriano reverendo Stevão: “O Senhor é o meu pastor:
nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me
para junto das águas de descanso”.
Um terceiro caminho saía da parte de cima da vila, do mesmo
lado que dava acesso à estrada para Goiás, passava ao lado da pro-
priedade que há um tempo pertenceu à nossa tia Guilhermina e seu
marido, Pedro Valadares Versiani, atravessava a Vereda e subia uma
pequena colina em direção ao que se chamava porto de São Vicente.
Era por esse trilho que saíamos a cavalo quando, de férias, íamos para
“lá em cima”, que era como, na família, sempre nos referíamos à fa-
zenda São Vicente da Direita, de nossa propriedade.
Dois últimos trilhos saíam alternadamente na direção da re-
gião denominada Pernambuco, além da qual o mundo não existia
para mim. Ou era o meu inalcançável deserto dos tártaros. O nome
Pernambuco deve-se ao fato de que aí corre um riacho que é afluente
do Urucuia e que possui o mesmo nome. De acordo com a historio-
fonia do lugar, no início do século XIX foi criada a primeira prelazia
para permitir o controle eclesiástico da região que já fora dada como
sesmaria desde antes de meados do século XVIII. Daí, a constituição
de toda a mitologia em torno do nome, segundo a qual repetiam-se
Memórias Catrumanas 36 Sidney Valadares Pimentel

aqui as nomenclaturas herdadas do lugar de onde provinham dona-


tários e prelados.
Mas eu dizia que era possível ir da vila ao Pernambuco toman-
do-se qualquer uma de duas variantes. A mais óbvia e usada com
maior freqüência partia da praça da igreja. Depois de atravessar uma
estreita passagem em formato semicircular construída de achas de
aroeira fortemente fixadas no solo, descia por um estreito trilho que
corria ao lado dos escombros arqueológicos de uma igreja velha,
prosseguindo em ziguezagues para as barrancas do Urucuia. Nes-
se ponto, chamado “o Porto”, não havia rasuras que permitissem o
trânsito a pé ou mesmo a cavalo, e o transporte era feito em canoa
conduzida por um piloteiro tratado de Pivéi (Pio Velho), ou Pio Pas-
sador, a soldo do passageiro.
A outra variante também partia da praça e seguia na direção
do cemitério, passando ao lado de um frondoso pau-d’óleo e pros-
seguindo à esquerda até o lugar denominado “o Vau”, onde, mesmo
a pé, era possível atravessar num ponto em que o rio se reduzia a
quase nada. Nesse lugar, que era coincidente com uma longa corre-
deira, a rasura era tamanha que se divisavam com nitidez os lajedos
do fundo.
Curioso que a coincidência do nome dessa região com o esta-
do em que a maioria dos membros adultos de nossa família haviam
nascido era motivo de inúmeras chacotas dos vilões, principalmen-
te com meu pai e seu irmão Alcides. Uma delas era proporcionada
sempre por um compadre de nossos pais chamado Antoniel, que era
irmão de Eduarda, nossa “governanta”, e pai de uma menina que
todos em casa tratávamos por Dadá e que ali morava enquanto fre-
qüentava o curso primário no grupo escolar.
Antoniel morava de agregação num sítio cortado pelo córrego
do Boqueirãozinho, pertencente a um ex-sócio de meu pai, o abasta-
do comerciante Euclides Andrade, morador e comerciante em Belo
Horizonte. Sempre que aparecia em nossa casa para ver a irmã ou a
filha, para comprar algo, ou simplesmente para um dedo de prosa,
na hora da despedida, Antoniel dizia: “Compadre Pimentel, não está
com vontade de ir na sua terrinha?” Meu pai compreendia o chis-
te baseado na duplicidade de sentidos e respondia com um sorriso:
“Hoje não, compadre, quem sabe da próxima vez”.
Também compadres de nossos pais, o escrivão Pedro Perei-
ra da Silva e sua esposa Eunice moravam com uma renca de filhos
numa casa relativamente próxima da nossa na praça. Ele era outro
que sempre saía com brincadeiras a propósito do mesmo assunto.
Ao contrário de minha mãe e por algum motivo que eu nunca soube
compreender, meu pai nunca tratou o escrivão de compadre. Ami-
gos, camaradas, correligionários políticos, pessedistas até não poder
mais, davam-se muito bem. Chamava-o de Pedro ou, quando estava
de melhor humor, de “esse espírito de porco”. Em compensação,
Pedro servia-se de seu estoque de observações etnocêntricas que, em
vez de aborrecer, divertiam meu pai. “Aqui agora ninguém mais é
você, todo mundo é tu”, dizia para mexer com tia Isabel, esposa de
tio Alcides, alusão que deve ser recorrente, pois encontrei-a também
num trabalho etnográfico escrito em 1976 pela antropóloga Francis-
ca Isabel Vieira Keller, com base em um estudo de 1969 no extremo
oeste do estado do Maranhão.
De certa feita, meu pai viu-se acometido de uma forte virose
que, naqueles idos de 1950, foi diagnosticada como “gripe asiática”.
Entre os procedimentos usados para curá-lo, o farmacêutico (que na
época ainda era o velho José de Oliveira Rezende, também chamado
de seo Rezende, ou Verrezende, de quem ainda falaremos mais adian-
Memórias Catrumanas 38 Sidney Valadares Pimentel

te), condenou-o a muitos dias de cama, injeções de fortificantes e


poções descongestionantes preparadas em seu pequeno laboratório,
além de tubos e mais tubos de soro nas veias, recurso que, naquela
época, era grande novidade na vila.
Um dia, como de costume, vem o “espírito de porco” do Pedro,
senta-se ao lado e fica a entreter o doente com as novidades da vila e as
últimas presepadas dos adversários políticos de ambos, notadamente
os udenistas Pedro Valadares Versiani, Norberto de Souza Prado e Ar-
gemiro Antonio do Prado. Mas não foi nada não. Vendo que o líquido
descia muito vagarosamente para a veia, resolveu apressar o goteja-
mento, abrindo um pouco o registro. Cometeu o seu ato danoso do dia
e saiu pra cuidar das procurações e escrituras de seu cartório. De sorte
que quando meu pai convocou o farmacêutico ao quarto para mostrar
o estado pitimbadamente arroxeado em que se encontrava o seu braço,
este se apressou a reparar o mal retirando a agulha e friccionando o
local afetado com uma de suas substâncias maravilhosas. Desse dia em
diante, e até que meu pai terminasse o seu período de convalescença,
sempre que o compadre Pedro vinha para suas visitas, minha mãe pu-
xava uma cadeira e ali ficava, como um queijo na tábua, para prevenir
alguma traquinagem ainda mais prejudicial à saúde do marido.
Assim era o Pedro Pereira. Mas, conforme anunciei antes, hou-
ve uma época em que ele divulgou uma de suas pérolas em que, mais
uma vez, confundiam-se os dois Pernambucos. Dizia ele que numa
das poucas vezes em que arranjou uma peitica mais séria com mi-
nha mãe, que, como se dizia, era mulher de cabelo nas ventas, meu
pai encheu-se de brios e anunciou em casa que estava indo para o
Pernambuco. No calor da discussão, a comadre Alcina, intempestiva-
mente, de acordo com o relato do escrivão, teria dito: “Já vai tarde”.
Meu pai, então, teria arreado seu esperto burro Moderno e ido dar
uns cortes ali mesmo, do outro lado do Urucuia, até que a calma
voltasse ao lar.
Se foi verdade mesmo? A essa altura dos acontecimentos, quem
é que vai saber? Mas que ela tinha cabedal e coragem até pra mais dis-
so, lá isso tinha. Afinal de contas, sendo filha de quem era, tinha de
quem puxar. E como se sabe em todo esse Urucuia de Deus, quem sai
aos seus não degenera.
Ruas e praças

O mais remoto possível que a memória consegue viajar em di-


reção à vila esbarra sempre nos primeiros anos da década de 1950,
quando eu já lá ia varando pelos cinco anos de idade. 1951 ou 1952 se-
ria talvez o ponto de partida. Nessa época, ainda vivíamos na segunda
casa que a família ocupou na rua do Meio. Como as demais da vila,
a casa não tinha número. Era uma casa grande, com três portas na
frente, duas das quais davam para o cômodo onde ficava o armazém
de secos e molhados aberto por meu pai pouco depois que chegara à
vila quase dez anos antes.
A rua do Meio e a denominada rua de Poti confluíam com a
rua de Cima, como se fossem as três hastes de uma hélice. Antes da
abertura da ampla Avenida Bandeirantes, à margem da qual foram
construídas a sede definitiva da Prefeitura Municipal e a igreja nova,
a descida principal para a praça era feita pela rua de Cima, hoje rua
Belo Horizonte, até o início da rua do Meio. Esta começava defronte
a casa de meu tio Alcides Gomes Pimentel, ou Tialcides, como o cha-
mávamos — irmão e um dos dois sócios de meu pai na firma Irmãos
Pimentel Ltda. — e prolongava-se por uns quatrocentos metros e
carqueirada até a praça.
Mais tarde, esse espaço indefinido na frente da casa de tio Alci-
des foi concebido como uma pracinha triangular que recebeu o nome
de praça Deputado Manoel José de Almeida. Por algum motivo, esse
logradouro, que há algum tempo chegou a tomar os ares de uma
Memórias Catrumanas 40 Sidney Valadares Pimentel

verdadeira praça, com bancos e arborização, foi novamente levado


à condição de terra arrasada, restando dele nos dias de hoje somen-
te uma aroeira ali nascida por obra do acaso. Apesar de receber o
nome de um importante político e coronel da polícia mineira, o que
agora resta é somente um alicerce na forma de triângulo escaleno
mal-ajambrado, onde voltaram a crescer tiririca, malva e carrapicho
timbete, também conhecido como bosta-de-baiano. Mas, antes dessa
homenagem — que a julgar pelo desarranjo do local até os dias de
hoje mais parece uma espécie de punição por algo imperdoável do
que um ato de cortesia e de consideração com um benfeitor —, isto
é, antes da construção da praça, tudo aquilo era uma macega que, à
força de roçagens periódicas, adquiriu tenência e engrossou os antes
débeis caulículos.
Havia ali também um generoso trilho que atravessava o largo,
passando ao lado de um frondoso pé de jambo que não existe mais.
Ah! se meu jambeiro falasse. Pois além de fornecer aquele róseo fruto
meio adocicado, meio sem graça, para o gáudio daqueles que a vila
chamava “os moleques de rua”, servia ainda aos adultos, como prote-
ção e abrigo para os furtivos encontros, as tão significativas pegadas
nas mãos, ou os amassos mais prafrentex num momento em que a
onda liberadora ainda não tinha chegado ao sertão. Pouco depois da
pracinha, bem defronte à casa simples — mas ampla — do fazendeiro
Sinhozinho, a rua dava uma leve guinada para a direita e seguia reta
até o cemitério, atravessando toda a praça da igreja e prosseguindo
através dos ranchos de taipa, região que era denominada, inclusive
pelos moradores da rua de Baixo, de “lá mais pra baixo”.
Hoje a velha e abandonada praça chama-se praça Dom Eliseu
em homenagem ao religioso holandês Albertus Hendrikus, que foi
um dos responsáveis pela criação da diocese de Paracatu e que, em
sua ação diocesana, recebeu o nome de Eliseu. Porém, em outros tem-
pos, ela já foi a Praça, a Pracinha, a praça da Igreja, a praça de Baixo,
a praça do Jatobazeiro, a praça do Campinho e muitos outros nomes
que ficaram perdidos nas inalcançáveis franjas da memória. Dividida
entre um espaço sagrado, o da igrejinha e suas proximidades, e outro
profano, que o envolvia e englobava, era ali que ocorriam os eventos
e as cerimônias mais importantes da vila. Os batizados. Os casamen-
tos. O trânsito obrigatório com os mortos. A primeira comunhão. Os
Memórias Catrumanas 41 Sidney Valadares Pimentel

espetáculos públicos de loucos, bêbados e arruaceiros. As primeiras


peladas. As encenações do entrudo, de São João e das Pastorinhas.
Os comícios. As procissões. A queima do Judas e a leitura de sua Dé-
cima. As partidas e chegadas primeiramente da jardineira de Artau e
posteriormente do ônibus de seo Olívio. As paradas dos caminhões
de pescadores que não se arriscavam a prosseguir até a cachoeira do
Urucuia sem o prévio aconselhamento e, na maioria das vezes, o ali-
ciamento do pescador Marcolino Fonseca Melo — o seo Marcol —,
tido como uma espécie de Mago do Rio.
Num tempo anterior à prática do futebol na vila, havia um ver-
dadeiro matagal que só começou a ser dominado quando, à força do
uso, a meninada do “ranca-toco” desbastou o terreno que ficava entre
o jatobazeiro e um cruzeiro velho existente a poucos metros da igreja.
O terreno era cortado por vários trilhos abertos na malva que se in-
terconectavam na área limpa, quase geométrica, que rodeava o tronco
do velho jatobazeiro. Havia um que partia do adro da igreja, passava
ao lado do cruzeiro velho e seguia longitudinalmente na direção da
Casa Pimentel, que ficava na esquina da praça com a rua do Meio.
Outros trilhos saíam defronte às casas do velho Vitalino, de seu filho
Marcol, de seo Antonino Lopes e da pensão de tia Celina, convergindo
todos para o jatobazeiro e formando uma teia de caminhos.
O terreno onde ficava a casa de tio Alcides era largo o sufi-
ciente para permitir que pudesse fazer esquina, tanto do lado direito
quanto do lado esquerdo. À direita, como vimos, ficava a confluência
demarcada pelo encontro da rua de Cima com a rua de Poti e a rua
do Meio. Esse ponto de encontro confrontava com o vértice mais
agudo da pracinha triangular que recebeu o nome de praça Deputado
Manoel de Almeida. Confrontando com o outro vértice, ficava a es-
quina da esquerda, que, iniciando no ponto onde acabava a garagem
construída para abrigar o caminhão, permitia a passagem entre esta
quina e a cerca de arame do quintal de seo Cândido José Lopes Filho,
o Candoxa. Essa passagem dava acesso à beira do córrego da Vereda
em cujas vazantes havia uma verdadeira floresta de dulcíssimos ara-
çás. Sempre que eu tinha um bom álibi para me ausentar de casa sem
incorrer no perigo de receber as severas e doloridas punições que
minha mãe era useira e vezeira em aplicar, dava um jeito de escapar
para aquele lugar ou um pouco mais embaixo, perto da fonte que ha-
Memórias Catrumanas 42 Sidney Valadares Pimentel

via mais próxima da praça, com o fito de caçar nhambus, codornas e


preás e comer mãozadas e mãozadas de araçás. Aquela frutinha apa-
rentada com a goiaba, mas muito mais deliciosa, era para meu gosto
um verdadeiro manjar entre todas as frutas do cerrado. Muito mais
deliciosa do que o araticum (também chamado de cabeça-de-negro),
a cagaita, o baru, a mangaba, o sapoti, o ingá, o murici e muitas ou-
tras. Era nesse ponto que costumávamos atravessar o córrego quan-
do decidíamos nos aventurar pela Barroca, uma profunda e perigosa
vossoroca que deixava à vista o tauá multicolorido que apanhávamos
para alisar e dar formas com nossos canivetes Corneta bem afiados.
A partir da confluência da rua do Meio com a praça da igreja,
começando na esquina onde se situava a casa comercial do pernam-
bucano Sinésio Rodrigues Santana, denominada Casa Santana, saía
um estreito beco, o então Beco de Sinésio, que cortava a rua de Trás,
hoje denominada Presidente Costa e Silva, prosseguindo por mais
um ou dois quarteirões. Durante muito tempo e por vários motivos,
a rua de Trás foi considerada uma rua suspeita. Além de ser mais
escura e mais afastada, se comparada com a rua do Meio, era um lo-
gradouro onde costumavam ocorrer alguns furdunços em razão de
ali viverem algumas “mulheres de vida livre”, como a negra Antônia
Batata, nossa lavadeira e responsável pela iniciação sexual da maioria
dos jovens da vila ao longo de mais de duas décadas. Tanto dos que
reconhecem a influência, quanto dos que negam peremptoriamente
terem sido seus discípulos.
Além da praça da igreja, havia ainda uma outra que era mais
um largo do que uma praça propriamente, chamada Largo do Gru-
po, por ser aí que se situava a única escola pública da vila, o Grupo
Escolar Cândido José Lopes. Esse espaço hoje não tem as mesmas di-
mensões de então. Agora, retalhado e entregue para a construção de
edificações particulares e públicas, reduziu-se a uma pequena parcela
do que era. Mas na década de 1950 foi campo de batalha da moleca-
da do grupo; espaço privilegiado para a Procissão do Encontro da
Virgem Mãe com seu Filho Crucificado; pastagem para as tropas que
andavam soltas pelas ruas e praças e ponto obrigatório de passagem
dos marmanjos metidos a conquistadores, que tinham a pretensão
de flertar com as simpáticas filhas de seo Gil do Prado e da costureira
D. Negrinha.
Árvores

Entre as árvores de porte existentes na vila, já havia quase no


centro da praça da igreja o mesmo jatobazeiro que vem resistindo
bravamente à sanha destruidora de inúmeros governantes e mo-
radores. Ao redor do tronco áspero dessa árvore havia um círculo
rapado na grama e na malva, que em alguns pontos quase chegava
aos limites laterais da copa. Essa área era reconhecida por todos
como espaço público. Todos tinham direitos sobre ela. Esses direi-
tos eram praticamente ilimitados. Daí, os atentados que se come-
tiam de vez em quando contra a própria existência do jatobazeiro,
sem que ninguém tivesse iniciativa ou poder para tentar revogar os
atos danosos contra ele, ou punir os agressores.
Lembro-me de que, sob a proteção e a sombra de seus galhos,
um dia alguém (quem teria sido o inaugurador de tal danura?) teve
a idéia de construir uma espécie de andaime elevado de aroeira para
ser usado como estaleiro de uma pequena serraria artesanal destina-
da ao destrinchamento de toras de madeira. Poucos dias depois de os
trabalhadores furarem o chão e fixarem os pés-direitos, a população
presenciou a chegada das primeiras toras para serem topiadas e ser-
radas. Arrastadas por juntas de bois cujas tiradeiras vinham atadas a
elas por meio de grossas correntes, as toras foram deixadas em volta
do estaleiro. Então, dias depois vieram os serradores e deram cobro a
sua arte de transformar os pesados troncos em tábuas, vigas, portais,
caibros e ripas. Não sem antes fazer uma dolorida operação num dos
Memórias Catrumanas 44 Sidney Valadares Pimentel

galhos mais baixos do jatobazeiro que, inadvertidamente, obstruía os


movimentos do serrador de cima.
Mas nem todos os troncos das árvores abatidas levados para a
praça foram penosamente erguidos do chão e colocados sobre o esta-
leiro para serem serrados. Mesmo muito tempo depois, várias toras
ainda continuaram esquecidas ali a servir de assento para os mora-
dores, como longos bancos roliços a testemunhar os pecados e vícios
privados e as demonstrações e benefícios públicos, à semelhança de
uma fábula catrumandevilliana. Ali muitas promessas de guardar se-
gredos foram quebradas. Muito faltoso foi escarmentado. Interdições
anunciadas e transgressões, caladas. Paixões sussurradas. Negócios
concluídos, outros desmanchados. Ali eram realizados todos os co-
mícios de todos os partidos. Era o campo de batalha entre udenistas
e pessedistas. Entre perristas e petebistas. Entre lottistas e janistas.
Entre pimentelistas e versianistas. Entre os moleques-situacionistas e
os moleques-oposicionistas.
Pouco acima do jatobazeiro, em linha reta e confrontante com
as residências dos fazendeiros Cesário Rodrigues de Souza e Antonino
Lopes, havia dois enormes pés de cedro. Um pouco à direita da casa
do pescador Marcol existia ainda um terceiro, onde ficava estacionada
a carroça que ele trouxera de Araguari, novidade que, por muito tem-
po, causara tanto sucesso na vila. O córtex do cedro, de consistência
similar à do mediterrânico sobreiro, era muito usado na vila para fa-
zer cortiças ou bóias. Com a lâmina afiada de um canivete ou de uma
pequena quicé, era possível extrair nódulos da casca e dar-lhe formas,
exatamente como fazíamos com pedaços de toá da barroca existente
do outro lado da Vereda.
Ao contrário do jatobazeiro, cujo tronco era excessivamente
avantajado para esse fim, os pés de cedro eram constantemente usa-
dos para amarrar cavalos. Apesar da pouca sombra que ofereciam,
não era um espetáculo incomum a presença de gordos e ariscos pala-
fréns, ou sonolentos e esqueléticos matungos e éguas sendeiras ata-
dos ao tronco por horas e horas, enquanto, nos bares e vendas, seus
donos se encharcavam da saborosa Sete de Setembro.
Vêm desta época lembranças de beberrões contumazes como
Hélio (filho do próprio fabricante da Sete Setembro), Tonhão de Ce-
sário e Valdaci de Sinhozinho (conhecidos, respectivamente, entre
Memórias Catrumanas 45 Sidney Valadares Pimentel

os próprios companheiros, como Vinte-e-Nove e Pé-de-Cana), além


de um certo Zé Ferrão (morador na região denominada Barriguda e
que, quando desfilava em seu cavalo esquipador tendo à cintura um
berro niquelado que fulgurava ao sol, tinha um poder superior ao
das tacas das mães para prender em casa a meninada rueira), Nidão
Baratão, Sebastião Vaz, Andalécio do Pé-da-Serra e muitos outros.
Como atalaia de menor importância, existia uma mangueira
frondosa ao lado da igrejinha, pouco abaixo da embocadura da atual
Avenida Bandeirantes, entre a casa da viúva Genoveva Ferreira do
Prado, conhecida por D. Grossa, e a de uma mulher apelidada de
Bem. Na época de mangas, a chuva de pedras de estilingue lança-
das, ora contra as frutas, ora contra papagaios, jandaias e periquitos,
atormentava especialmente D. Grossa. Essa solícita senhora, a quem
a molecada da vila sempre recorria para a melindrosa tarefa de apa-
relhar as ligas de seus estilingues, sofria na pele os efeitos danosos
daquele ditado popular segundo o qual o feitiço, às vezes, acaba se
voltando contra o feiticeiro.
Finalmente, depois da mangueira e seguindo na direção do ce-
mitério, pouco depois das últimas choças e, portanto, também da
vendinha que mais tarde o Veanjo, ou seo Anjo (como era chamado
o pernambucano Manoel Ângelo Bonfim), passou a tocar ao lado da
amásia Ana Paca, encontrava-se um frondoso pau-d’óleo. E dessa ár-
vore até o velho cemitério, o que existia era um comprido descam-
pado. Quando muito, aqui e ali, podiam-se ver pequenas e retorcidas
árvores típicas do bioma cerratense.
Disse ainda o Senhor: Certamente vi a aflição do meu povo,
que está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus
exatores. Conheço-lhe o sofrimento, por isso desci a fim
de livrá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela
terra a uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel.

Êxodo, 3:7-8
A busca pela terra prometida

Raimundo Gomes Pimentel era como se chamava o velho pa-


triarca morador no município pernambucano de Santa Maria da Boa
Vista, vizinho a Petrolina, que no dia 20 de dezembro de 1932

arrebanhou os poucos pertences e a filharada e, colocando tudo


num vapor, subiu o Velho Chico em busca de melhores dias e
Memórias Catrumanas 50 Sidney Valadares Pimentel

melhor sorte para os seus.


Vapor era a denominação metonímica que se dava aos grandes
barcos, ou gaiolões destinados à navegação, que dia e noite subiam
e desciam o rio São Francisco transportando passageiros e cargas. O
nome “vapor” deve-se ao fato de que as embarcações eram movidas
por uma roda gigantesca impulsionada por uma possante locomoti-
va, que, por sua vez, retirava sua energia e seu dinamismo da lenha
queimada em uma câmara especialmente concebida para esse fim.
Muitos foram os vapores que, desde o último quartel do século
XIX, singraram o rio trazendo e levando turistas, comerciantes, re-
tirantes, cometas, prostitutas, estudantes, ribeirinhos, políticos e sa-
cerdotes, além de toda espécie de cargas e mercadorias. Alguns com
capacidade para transportar mais de sessenta toneladas de carrega-
mento e mais de cem pessoas. Ostentavam na proa seu nome, geral-
mente em homenagem a um político ou pessoa importante (Raul
Soares, Antônio Nascimento, Saldanha Marinho, Benjamim Guima-
rães), ou santo (São Francisco, São Salvador).
De tal modo que a 23 de janeiro de 1933, isto é, 35 dias depois da
partida a bordo do vapor Otávio Carneiro, o viúvo Raimundo e seus
filhos José, João, Joaquim, Alcides e Raimundo, o Mundim, e as filhas
Antônia e Maria, desembarcaram em Januária, no norte de Minas. Ali
viveram vários anos trabalhando em atividades agrícolas, no comércio,
em curtumes e no fabrico de objetos de couro. Ali também se casaram
Raimundo, o pai (pela segunda vez), José, João, Alcides e Maria.
Mas vamos por partes.
Além dos filhos que teve com a primeira mulher, de segundas
núpcias contraídas com uma januarense que, como a primeira, era
barranqueira, se chamava Ana e morreu ainda jovem, Raimundo teve
os filhos Juvenal, Juvêncio, Nena e Zequinha. Algum tempo depois,
quando acompanhou os filhos na migração para a vila de Buritis e
em seguida para a cidade de Formosa, casou-se pela terceira vez com
uma goiana, de cuja união nasceram os filhos Manoel e Naninha. En-
tre os filhos de meu avô que vim a conhecer, somente um, Juvenal,
que tinha o apelido de Nalim, faleceu antes do pai, jovem e solteiro,
em trágico acidente na Lagoa Feia, em Formosa.
José era o primogênito e, em toda a irmandade, aquele que
melhor se havia com as artimanhas do comércio. Por esse motivo,
Memórias Catrumanas 51 Sidney Valadares Pimentel

enquanto alguns se dedicaram a outras atividades com as quais anga-


riavam menor prestígio social, ele procurou especializar-se na com-
pra de mercadorias e em sua venda para os barranqueiros que viviam
isolados nas beiras do Velho Chico, tanto pra cima, na direção da
cidade de São Francisco, quanto pra baixo, no rumo de Riacho da
Cruz e Itacarambi.
Contam os que conheceram o Zé Pernambuco, como José era
conhecido naqueles tempos em Januária, que ele tinha aproximada-
mente 19 anos quando presenciou a primeira chuva torrencial em
sua vida. Aquele dia caiu uma tromba d’água tão forte que a enxur-
rada rolava pela areia da praça de Santa Cruz arrastando tudo que
encontrava pela frente. Segundo os que presenciaram a cena, a força
da água e da lama que desciam para o Velho Chico causou tal impres-
são no adolescente José que ele, desequilibrado e extasiado ante a
violência da natureza, pediu a um vendeiro uma boa talagada de ca-
chaça e bebeu tudo num rompante só, como se desejasse demonstrar
ímpeto de aventura e homência. Em seguida, não se sabe se enebria-
do mais pelo efeito do álcool do que pela visão inconcebível do toró
que continuava a cair, jogou-se na enxurrada e se deixou levar aos
trambolhões. Segundo testemunhas, foi preciso que os que assistiam
àquela cena luxuriante percebessem que ele se comportava daquela
maneira quase como uma provocação ao destino que o ligara, ainda
menino, ao sertão árido, espinhoso e quase impenetrável. E então,
ao ouvir que alguém vociferava rude mas dubiamente, quase como
num jogo de linguagem, que “Zé Pernambuco tá na água”, correram
e o retiraram para o seco e para a proteção de um teto, deixando
escorrer de seu corpo a umidade da chuva e a sequidão natural que
o acompanhava desde o nascimento. E o apreço pela água, pelo rio,
pela massa líquida, que carregou consigo pela vida afora, em vez de
ter causa em sua natureza pisciana, podia muito bem estar relaciona-
do com esse seu exorcismo da sequidão punitiva.
Durante quase uma década, José e seus irmãos se dispersaram
pela cidade e pelas cercanias em atividades diversas. Desde cedo, José
mostrou ser aquilo que se convencionou chamar um self made man,
com especial inclinação para as transações comerciais. Contudo, não
obstante a diversidade de atividades, a família se unia em torno do
desejo de continuar a migração para um lugar onde todos pudessem
Memórias Catrumanas 52 Sidney Valadares Pimentel

ter mais sucesso e reconhecimento.


Cinco anos depois de sua chegada a Januária e do seu estabe-
lecimento como mercador viajante, José se casou com Isabel, uma
bela mulher negra pertencente à grande família Matos, que vivia ali
nas imediações da antiga e arenosa praça de Santa Cruz e da rua dos
Peixeiros. Quando, depois do acidente automobilístico que matou
meu pai, a partir de 1962, eu e meu irmão Randolfo fomos mandados
estudar no internato do Ginásio São João, em Januária, ainda conhe-
cemos vários remanescentes da numerosa família, como D. Maria (a
mãe de Isabel), Bastos, marceneiro e grande violonista, seo Vital e
Quincas Barrão, todos unidos numa família extensa.

Do enlace de José com Isabel, nasceu um filho que tomou o


mesmo nome do pai e o apelido de Zezito. No ano seguinte nasceria
também uma menina, Maria do Socorro. Pouco mais de um ano de-
pois, Isabel morreria de um terceiro parto. E algum tempo depois da
mãe, a menina Maria do Socorro também viria a falecer. Com onze
anos de idade, Zezito veio juntar-se à nossa família depois que, casa-
do pela segunda vez com minha mãe e estabelecido na vila de Buritis
Memórias Catrumanas 53 Sidney Valadares Pimentel

cuidando de um armazém de secos e molhados, meu pai melhorara


sua situação financeira. Até então o menino permanecera em Januária
com a avó Maria, que cuidara dele desde a morte prematura e ines-
perada da filha.
Pouco depois de casado com Isabel, José foi incentivado por
um parente dela a comprar mercadorias em Januária e levar para
comercializar no lugarejo denominado Porto-de-Manga, situado às
margens do rio Urucuia. Esse parente, o Militão, possuía uma fa-
zenda do outro lado do Velho Chico, confrontando com a pequena
cidade de São Francisco, e acreditava que em Porto-de-Manga José
poderia fazer um bom dinheiro com suas mercadorias. Isto se deu no
final do ano de 1939. A viagem de Januária a Porto-de-Manga era de-
morada e penosa. Feita em grandes e pesados paquetes, os canoeiros
só conseguiam fazer a viagem prosseguir à custa de penosas remadas
e impulsões com grandes varejões.
Na primeira viagem empreendida por José até o pequeno vi-
larejo à margem do verdoengo e piscoso Urucuia, Alcides resolveu
acompanhar o irmão. Vieram também Maria, que nessa época ainda
era menina, Isabel e o filho Zezito. Enquanto isso, o velho Raimundo
e os filhos Tonha, Joaquim, João e o caçula Mundim continuavam vi-
vendo e trabalhando num sítio situado a nove léguas de Januária, mas
um pouco afastado da beira do rio São Francisco. Nessa viagem, de-
pois de passar alguns dias ajudando José na comercialização das mer-
cadorias, Alcides voltou novamente a São Romão, que ficava a pouco
mais de quatro léguas da foz do Urucuia com o São Francisco, e dali
tomou um vapor para Pirapora, de onde seguiu para São Paulo.
Nos três anos que se seguiram àquela primeira viagem para
mercadejar em terras urucuianas, José e Alcides continuaram tro-
cando correspondências. Pouco depois da chegada de Alcides a São
Paulo, Joaquim deixou o sítio onde trabalhava na roça com o pai e foi
juntar-se a ele na capital paulista. João também deixou Januária e par-
tiu. Só que, em vez de seguir a trilha dos irmãos, foi para Barretos,
onde podia colocar em prática todo o aprendizado que recebera do
pai no preparo de couros para a indústria e na fabricação de objetos
manufaturados como sapatos, botinas, selas etc.
Depois de uma breve estada na capital, Alcides dirigiu-se para o
interior, indo trabalhar na Usina Junqueira, situada na divisa dos es-
Memórias Catrumanas 54 Sidney Valadares Pimentel

tados de São Paulo e Minas Gerais. Concluído o trabalho para o qual


fora contratado na usina, dirigiu-se para Itaquerê, permanecendo
ali dois anos. De Itaquerê, mudou-se para Brotas, também no inte-
rior paulista, onde trabalhou quebrando pedras para a construção de
uma barragem. Foi então que decidiu voltar a Januária onde, segun-
do julgava, poderia ganhar até mais do que como peão em constru-
toras. Então, escreveu ao irmão Joaquim, que continuava na cidade
de São Paulo como empregado do comércio varejista, comunicando
sua decisão de voltar para o norte de Minas. Em Januária permane-
ceu algum tempo trabalhando em atividades diversas e tratando de
preparar-se para o casamento com uma januarense chamada Isabel
Araújo. Em 1962 ainda conheci parentes chegados de tia Isabel que
moravam na praça de Santa Cruz e na rua Mata Machado e cuidavam
de pequenos estabelecimentos comerciais e de um pequeno sítio da
família, a Baixa Verde.
Mas enquanto cuidamos de falar das idas e vindas de Alcides
e Joaquim para São Paulo, deixamos o primogênito José em Porto-
de-Manga, para onde se dirigira atendendo aos conselhos do seu
contraparente e compadre Militão. Ali instalara a sua pequena Meca
com produtos que chegavam de Januária e São Romão conduzidos
em canoas e paquetes, onde os catrumanos oriundos de todo o ser-
tão sanfranciscano e urucuiano se abasteciam. Ali havia o minimum
minimorum para satisfazer suas necessidades materiais e ideológicas.
Roupas. Cortes de panos. Chapéus. Bicos. Sinhaninhas. Botões. Agu-
lhas. Ferramentas. Espelhos. Rouge. Pó-de-arroz. Melhoral. Biotôni-
co Fontoura. Consolos. Fumo de rolo. Imagens de santos. Verônicas.
Trancelins. Diademas. Etc. Atendia a pedidos e encomendas diversas.
Mandaria buscar o que estava faltando, informava aos barranqueiros
que se queixavam da carência de algum produto. Logo chegaria. E as-
sim José ia acumulando o pequeno lucro das mercadorias vendidas.
Numa dessas viagens, já que ninguém é de ferro, o solitário
comerciante viúvo José se envolveu com uma moça do lugar que, em
pouco tempo, estava grávida de uma menina que, depois de nascida,
recebeu o nome de Valdeci.
Corria o ano de 1940 quando um sertanejo falou a José das pos-
sibilidades lucrativas das romarias de Santo Antônio, no povoado da
Serra das Araras, e de Nossa Senhora da Pena, na vila de Buritis,
Memórias Catrumanas 55 Sidney Valadares Pimentel

ambas situadas no sertão urucuiano, na direção de Goiás. No ano


seguinte, José contratou um guia e, usando tropa e arreios cedidos
pelo amigo Militão, embrenhou-se pelo sertão adentro com o obje-
tivo de ir até a vila vender suas mercadorias por ocasião da festa de
Nossa Senhora da Pena. Naquela primeira viagem, que ele conside-
rava mais de reconhecimento do que de negócio, José, seu guia e um
outro sujeito chamado Lelé Ramalho que os acompanhava ficaram
hospedados num rancho que lhe fora cedido pelo seu conterrâneo e
futuro compadre Manoel Ângelo Bonfim.
Em razão da grande concorrência feita por comerciantes de
toda parte e que vendiam toda espécie de mercadorias, abarracados
em volta do jatobazeiro que àquela altura já era adulto, José não teve
muito sucesso com seus produtos. Tanto que, para não ter de voltar
com a mercadoria, vendeu tudo a preço de banana e, em seu lugar,
comprou produtos de primeira necessidade e couros de caça que ti-
nham boa saída ali na beira do São Francisco. Se do ponto de vista
comercial a viagem não teve muito sucesso, serviu para José avaliar,
in loco, as possibilidades comerciais do lugar. E quando, finalmente,
ele, o guia e Lelé Ramalho deixaram a vila com suas bruacas abarro-
tadas, ele tinha a certeza de que voltaria e ali viveria até os últimos
dias de sua vida.
De volta às barrancas do Velho Chico, José intensificou suas
relações com fornecedores e compradores tanto de Januária quanto
de São Francisco e São Romão. Nessa última cidade, enamorou-se
de uma moça pouco mais velha do que ele, pertencente à linhagem
dos Valadares, gente que vinha ocupando altos cargos no Império e
na República desde meados do século XVIII. A matrona principal da
linhagem, uma espécie de abelha-rainha em torno da qual o mito dos
Valadares foi construído, chamava-se D. Joaquina Maria Bernarda da
Silva de Abreu Castelo Branco Souto Maior de Oliveira Campos, ou
simplesmente Joaquina do Pompéu. A tradição oral foi a responsável
por disseminar o mito dessa matrona que era chamada Sinhá Braba,
em especial devido aos confrontos e arranca-rabos que manteve com
sua principal rival e inimiga de Pitangui, D. Maria Felisberto Alvaren-
ga da Cunha, a Maria Tangará.
Filha de D. Ana Fernandes Valadares, apelidada Donana, e Lu-
cas Cordeiro Valadares, a pretendida de José se chamava Alcina e era
Memórias Catrumanas 56 Sidney Valadares Pimentel

a sexta filha de uma irmandade de sete. Donana tinha posses her-


dadas da família principalmente na área cultural do que se poderia
chamar Médio Urucuia, perto de um pequeno centro populacional
denominado Barra da Vaca, que hoje constitui o município mineiro
de Arinos. Depois de rápidos namoro e noivado, José e Alcina se ca-
saram, finalmente, em abril de 1942. E depois de curta permanência
em São Romão, os recém-casados decidiram ir experimentar a sorte
na vila de Buritis, para onde se mudaram no mesmo ano.

O comércio entre as pessoas da vila e os centros importado-


res de matéria-prima e exportadores de produtos industrializados
era feito principalmente através dos portos de Januária, São Romão
e São Francisco. Mesmo depois de se instalar na vila, José continuou
a manter contato com essas cidades ribeirinhas, principalmente com
Januária, onde seu filho Zezito permanecia vivendo sob os cuidados
da avó. Ali continuavam morando também o velho Raimundo e sua
já numerosa família. Sempre que se comunicava com os irmãos, em
especial com João, Joaquim e Alcides, José procurava incentivá-los a
também se mudarem para a vila. Em seus conselhos, chegava a exa-
gerar as potencialidades econômicas do lugar. Dizia que a vila não
possuía quase nenhum recurso e que o mais certo era que eles teriam
sucesso em qualquer tipo de negócio que inventassem de tocar.
Memórias Catrumanas 57 Sidney Valadares Pimentel

Foi então que um dia, nos idos de 1943, atendendo aos ape-
los do irmão, Alcides tomou um vapor em Januária com destino a
São Romão. Naquela cidade, hospedou-se na pensão que pertencia a
Dativo Joaquim Estrela, casado com Lídia Cordeiro Valadares, irmã
de sua cunhada Alcina. Ali Alcides encontrou um amigo de seu ir-
mão José a quem comunicou que pretendia ir para a vila, mas estava
sem meios de prosseguir viagem. O sujeito então lhe disse que tinha
em seu poder um burro pertencente ao subdelegado do povoado de
Barra da Vaca e, caso se interessasse, ele poderia usá-lo até lá. E de
lá para frente sempre haveria como acabar de chegar, nem que seu
irmão José tivesse de mandar um positivo com animal para buscá-lo.
Assim ele fez, tendo chegado a Buritis no dia 7 de setembro de 1943 e,
portanto, exatamente na data em que começava a romaria dedicada
à Santa Padroeira da vila.
À vista da falta de espaço para abrigar o irmão, José conseguiu
hospedagem para ele com um vizinho por nome de Catulino. Alcides
passou então alguns dias dormindo na residência desse seu bondoso
hospedeiro e comendo na casa do irmão em frente. No último dia
da festa, Catulino convidou José e Alcides para almoçar em sua casa.
A comida era especial, mas o que mais maravilhou Alcides foram as
catorze qualidades de doce servidas de sobremesa.
Dois dias depois do encerramento da festa, José mandou um
peão levar Alcides a cavalo até Januária, onde ele continuava moran-
do. Consta que, na partida, José teria feito a Alcides uma pergunta
de despedida que aos circunstantes soou como um enigma. “Até lá
ou até cá”, teria dito José. “Até cá”, respondeu Alcides decidido. E de
fato sua promessa foi cumprida. No final do ano seguinte, depois do
nascimento do primeiro filho — Florisval —, Alcides e Isabel enfren-
taram a demorada e penosa viagem a cavalo para a vila, conduzindo
o pimpolho na cabeça da sela.
Desde Santa Maria da Boa Vista, que distava cerca de dezoito
léguas de Petrolina, região onde nasceram os filhos do primeiro ca-
samento do velho Raimundo, os Pimentel se especializaram na arte
de transformar peles in natura, especialmente de gado, carneiros e
cabritos, em produtos manufaturados. Em seus curtumes rescenden-
do a barbatimão, o pai tratava as peles que os filhos ajudavam a cor-
tar e moldar para fazer as ditas “precatas” cangaceiras, ou botinas,
Memórias Catrumanas 58 Sidney Valadares Pimentel

ou sapatos de homem e de mulher, ou correões, ou selins e arreatas


para o uso diverso na caatinga e no comércio. Era o que-fazer e o
ganha-pão da família. Munidos de afiadas quicés, barbantes muito
bem encerados, pés-de-ferro, moldes de tamanhos diversos e sovelas
pontiagudas, colocavam em prática um saber que foi se sedimentan-
do nos rapazes e que estes carregaram pela vida afora até depois de
se mudarem e irem viver em Minas.
Quando preparavam sua mudança que seria levada de Boa Vista
para Petrolina onde tomariam o vapor, por “prevenição” os Pimentel
não se esqueceram de incluir, enrolados entre os colchões, alguns
pedaços de couro curtido a ser usado enquanto não tivessem condi-
ções de instalar seu próprio curtume no lugar para onde se dirigiam.
Coincidentemente, João, o segundo na linha de produção de filhos
do velho Raimundo, engraçou-se com uma moça januarense chama-
da Maria, cuja família também se dedicava à manufatura de produtos
de couro. Deu a corda com a caçamba. Depois do casamento, João
e um cunhado passaram a dedicar-se à produção de tamancos feitos
de mangue e couro, muito usados em toda a região ribeirinha, mas
principalmente em Januária.
Ao contrário do que possa parecer, o processo de produção era
bastante simples. Quando cessava a cheia e o rio baixava, apareciam
os mangues, que eram apanhados por carroceiros. Depois de com-
prar os caules do mangue a preço de banana, João e o cunhado le-
vavam-nos a uma serraria e mandavam apará-los obedecendo a um
molde preestabelecido quanto ao tamanho e a forma.
Depois de um tempo em que trabalhavam como sócios, João
desmanchou a sociedade e mudou-se com a família para Belo Ho-
rizonte, onde pretendia botar uma loja de calçados. Mas, como não
chegou a concretizar-se o negócio idealizado, deixou a capital minei-
ra e mudou-se para a vila de Buritis, onde já se encontravam os ir-
mãos José e Alcides. O primeiro com seu armazém de secos e molha-
dos que progredia a olhos vistos, e o segundo, além de uma pequena
vendinha, tocando uma oficina de fabricação e conserto de objetos
de couro em geral. Apesar das severas advertências de José a João de
que pedra que muito rola não cria lodo, este último demorou-se pou-
co na vila, transferindo-se com toda a família para Formosa, onde
instalou um curtume e uma pequena fábrica de calçados. Quando
Memórias Catrumanas 59 Sidney Valadares Pimentel

me lancei à procura de documentação desse período, encontrei um


instantâneo fotográfico colhido durante o casamento de Ana, a pri-
mogênita de João, realizado em Formosa. Nessa foto, além do velho
Raimundo, estão presentes seis filhos de seus três casamentos, além
de três noras e oito netos.
Pouco mais ou menos nessa mesma época, o patriarca Raimun-
do, que ficara em Januária com os filhos restantes, também decidiu
empreender a migração com os que permaneciam em sua compa-
nhia, à exceção de Maria, casada com o januarense Jovino Alves de
Souza. No entanto, Raimundo não se dirigiu imediatamente à vila.
Por algum tempo ficou morando num lugar denominado Fazenda
da Roça, perto da Barra da Vaca, onde Tonha, a filha que lhe restava
solteira, casou-se com um filho do fazendeiro Ulisses, denominado
Branco. Raimundo então continuou seu périplo, mudando-se inicial-
mente para a vila e depois para Formosa, onde já se encontrava o
filho João cuidando da fabriqueta de calçados e do curtume. Com o
pai ia também o caçula Mundim, que, mesmo depois do encerramen-
to das atividades manufatureiras de João, continuou a trabalhar com
a produção e conserto de calçados. Pouco tempo depois da partida
do pai, Tonha e o marido também se mudaram da Fazenda da Roça,
onde permaneceram Joaquim e a esposa Nenzinha, irmã de Branco.
E, assim, quase toda a família que um dia partira atônita de
Petrolina e estivera tresmalhada em alguns momentos voltava a se
reunir com o objetivo comum de ganhar a vida. E eu disse “quase”
porque Maria e Jovino permaneceram em Januária depois da partida
de Raimundo, só vindo a se juntar aos demais em meados da década
de 1950, quando arrebanharam os filhos e também se mudaram para
a vila, completando dessa maneira o itinerário tantas vezes imagina-
do de um dia alcançarem a Terra Prometida.


Que somos nós?
Pronomes pessoais.

Mário de Andrade
Valadares e Pimentéis

Para uma vila que podia contar com menos de cem fogos e,
portanto, com população apoximada de quinhentos habitantes, o nú-
mero de domus existentes tanto na área coletivamente habitada quan-
to nas proximidades rurais era bastante elevado. Contadas de memó-
ria e sem muita precisão, poderiam ser nomeadas como principais
as ligadas aos Pimentel, aos Fonseca Melo, aos Lopes, aos Durães,
aos Versiani, aos Prado, aos Nery, aos Garcia, cada uma das quais
articulava suas constelações de interesses e de parentelas associadas.
Ao lado dessas, coexistiam muitas outras domus de menor alcance
mas de não menor importância quanto aos laços que envolviam de
modo variável as múltiplas redes de lealdades e deslealdades, de con-
sangüinidade e fortes ou débeis alianças matrimoniais, bem como de
amizades nascidas de inimizades comuns, muitas delas materializa-
das no compadrio.
A domus que nossos pais construíram assentando pedra sobre
pedra e tijolo sobre tijolo foram o amálgama de duas forças ora con-
vergentes, ora contraditórias. Em alguns momentos exerciam forte
atração, em outros se repeliam. Contudo, sempre com os olhos vol-
tados para algo maior do que a existência de cada uma separadamen-
te, que era o futuro e o sucesso da empreitada que tinham em vista.
As polaridades que construíram nossa descendência como seres bio-
lógicos e culturais também nos lançaram no meio de forças antité-
ticas. Uma, a dos Valadares, que valorizavam a tradição; a outra, a
dos Pimentel, que olhando para a frente e para o alto, investiam na
modernidade.
Como já disse, minha mãe arrastava atrás de si como um
caudal a herança centenária de um vespeiro que herdara da abelha-
rainha Joaquina do Pompéu largas léguas de terra, orgulho da con-
quista, gado e outras riquezas. A tradição que ela e sua gente carrega-
vam como um enfeite, um broche, uma condecoração, era legítima,
não era inventada. Caracterizava-se pela unidade dos costumes e pela
invariabilidade amalgamada numa sociedade rústica e repetitiva qua-
se como um moto contínuo. A tradição, para nossa banda feminina,
era a tradução de um modelo regional de existência. Antes mais do
que hoje, quando netos e bisnetos são obrigados a sair e travar conta-
to com outras realidades. É claro que mesmo estes sempre voltam,
mas voltam diferentes, ainda submissos à tradição, mas diversamen-
te submissos. Penso que sempre houve nos submundos de uma men-
talidade que toma a tradição como freio da modernidade, subsumido
a esse processo de transformação êmica, uma necessidade de expul-

são do diverso, que surgia perigosamente como força transformado-


ra. Inimiga figadal de minha mãe na vila, mas uma mulher extrema-
mente inteligente, D. Lió, esposa do lojista Sinésio Santana, e
proprietária da Pensão Santana, compreendia a crueza desse proces-
Memórias Catrumanas 65 Sidney Valadares Pimentel

so à sua maneira, ao afirmar: “Pimentel e Alcina foram expulsos de


perto dos Valadares porque eram pobres”.
No final de abril do ano de 1942, parentes e vizinhos se reuni-
ram na fazenda Palmeira para assistir à realização do casamento de
João Valadares Carneiro ( João Velho) com Maria Cordeiro Valadares
(Quinha) e do viúvo pernambucano José Gomes Pimentel com Alci-
na Cordeiro Valadares, sendo as duas noivas neta e filha, respectiva-
mente, da proprietária Ana Fernandes Valadares (Donana) e Lucas
Cordeiro Valadares. Não existe documentação fotográfica do con-
corrido evento, que teve a animar o público somente um sanfoneiro
chamado Pretão, que tocou a noite inteira para alegria da famulagem
e dos visitantes.
A repetição dos sobrenomes do primeiro casal não é mera coin-
cidência. No levantamento feito pelo genealogista Napoleão Ema-
nuel Valadares, a reiteração dos nomes de família (Valadares, Carnei-
ro, Cordeiro) entre casados é a tônica geral e a demonstração mais
cabal de como a família possui uma programação de manutenção da
tradição por meio de arranjos preferencialmente endogâmicos.
Não era o que acontecia, contudo, no casamento entre nossos
pais. Além de pau-de-arara emigrante, ele era um pobretão que pro-
curava ganhar a vida com o suor de seu rosto, comprando e vendendo
mercadorias na região que ia do sertão sanfranciscano ao urucuiano,
história que o leitor já conhece de cor e salteado. Visto desse prisma,
esse casamento reproduz a união entre dois modos de aculturação:
um que é dado pela idéia de apropriação sedentária e o outro pela
noção de travessia. Enquanto os “nossos” Valadares se sedentariza-
ram na região próxima à Serra do Meio, os Pimentéis (como a nós se
referia, ironicamente, o Lico de seo Candoxa, outro que era de mal
com minha mãe e não perdia oportunidade de dar sua estocadinha)
vieram de longe, experimentando alternativas que iam do insucesso
ao sucesso, sabedores de que não podiam contar com nada mais do
que sua vontade de vencer.
A casa nova

Passados pouco mais ou menos cinco anos de sua chegada à


vila com uma mão na frente e outra atrás, ou — como alguns anos
mais tarde diria a mesma D. Lió — comprando e vendendo couro de
cateto e pena de ema, meu pai já havia construído sua primeira casa.
Quando se mudou para a vila nos idos de 1942, a família ocupou uma
casa velha, já então meio-tapera, que ficava na rua do Meio, quase de-
fronte a casa grande que mais tarde seria construída pelo fazendeiro
Sinhozinho. Foi nessa casa antiga que nasceram os três mais velhos
de nossa irmandade: Edson, Romero e eu. Randolfo e José Geraldo, o
caçula, que morreria de difteria poucos meses depois do nascimento,
já vieram à luz na casa nova que ficava porta a porta com a que eu
conheci como pertencente a meu padrinho Zeca Machado.
Naquele tempo, a construção de uma casa na vila era um acon-
tecimento raro que seria lembrado anos a fio. Mas se, além de nova, a
edificação ainda incorporasse aspectos estruturais inéditos nas demais
residências, transformava-se em notícia que corria longe, ao mesmo
título que um marco de temporalidade. Lembro-me de minha mãe
referir-se muitas vezes a algo que ocorreu antes ou depois da mudan-
ça para a nova casa. “Quando ocorreu tal coisa”, dizia ela, “nós ainda
morávamos na casa velha”. Ou então: “Nós já tínhamos mudado para
a casa nova quando Zezito veio morar em nossa companhia”.
Ao contrário da residência velha alugada, a casa nova era maior,
mais bem construída e comportava certas modernidades só conheci-
Memórias Catrumanas 67 Sidney Valadares Pimentel

das de ouvir falar pela população da vila. Para começo de conversa,


das três portas que havia na frente, duas se destinavam ao armazém
de secos e molhados, que, agora, tinha seu lugar próprio de funciona-
mento, englobando uma área aproximada de dezesseis metros qua-
drados. O cômodo da loja recebeu um balcão estreito de cedro, que
o cortava ao meio perpendicularmente ao comprimento da casa. Do
lado de fora do balcão não havia prateleiras nem suportes ou ganchos
onde colocar mercadorias. Somente alguns produtos não perecíveis,
como rolos de cordas de caroá ou de arame farpado, que às vezes
serviam de assento para os fregueses que apareciam oferecendo um
couro de jaguatirica ou de sussuarana, ou que iam passando e deci-
diam entrar para um dedo de prosa. Na pesquisa, tive a sorte de ainda
conseguir recuperar uma fotografia antiga dessa casa. À frente dela,
encontra-se perfilada toda a nossa irmandade, à exceção de Zezito,
que nessa época ainda vivia em Januária, na companhia da avó.

Mas era na parte de dentro do balcão que a diversidade das


mercadorias se mostrava em toda sua plenitude. No exíguo espaço
disponível, acumulava-se uma miscelânea, sem ordem ou qualquer
arranjo especial, dos produtos mais procurados pela parca popula-
ção cujas necessidades se expressavam numa demanda sem qualquer
grau de sofisticação. Poucos cortes de pano. De brim cáqui. De mo-
Memórias Catrumanas 68 Sidney Valadares Pimentel

rim. Algodão. Chita. Sinhaninha. Carretel de linha. Agulha. Saco de


estopa. Consolo. Bico de mamadeira. Botina ringideira. Faca. Facão.
Foice. Machado. Gilete. Sabão de barra. Sabonete. Cheiro. Pó-de-ar-
roz. Rouge. Formicida Tatu. Feijão. Farinha de mandioca. Açúcar.
Sal. Fumo de rolo. Chapéu de palha. Munição variada. Bala. Pólvo-
ra. Correião. Espelhinho de bolso. Pente Flamengo. Anzol. Linha.
Panela. Caldeirão. Chapa de fogão. Lamparina. E drogas. Drogas e
remédios a um canto das prateleiras. Sal amargo. Sal de Gláuber. Ca-
lomelano. Jalapa. Biotônico Fontoura. Melhoral. Cafiaspirina. Ciba-
lena. Sal de fruta Eno. Emulsão Scott. Cera Dr. Lustosa. Bromil. Lei-
te de rosas. Regulador Xavier. Capivarol. E mais tarde um primitivo
aparelho de rádio que captava as ondas das rádios Nacional, Tupi e
Mayrink Veiga e, à noite, atraía para a venda gente que aparecia para
ouvir os programas musicais. Principalmente os que tocavam os xo-
tes e xaxados de Luiz Gonzaga, artista preferido de meu pai.
Ao fundo da venda havia uma porta que dava passagem a um
cômodo contíguo pouco menor do que o destinado à exposição das
mercadorias. Naquele quarto dormiam nossos pais e, além de uma
cama de casal e uma cômoda tosca, pouco mais existia ali. Uma cor-
tina de chita alegremente decorada em grandes flores vivas de giras-
sóis encobria a crueza das folhas da porta e ajudava a embaçar a visão
dos curiosos.
A terceira e última porta à direita do cômodo onde funcionava
o armazém de secos e molhados permitia o ingresso na casa por in-
termédio de um batente alto que, transposto, ia dar na sala-de-fora.
Como o restante da casa até a entrada para a cozinha, essa sala era
calçada de ladrilhos foscos mas que davam à residência um aspecto
inédito, se comparada com as demais da vila, cujo piso era de terra
batida. Além de uma espreguiçadeira encostada a um canto, eram
mantidas nessa sala duas cadeiras de abrir e fechar fabricadas em Ja-
nuária e trazidas em carro de bois juntamente com outras mercado-
rias encomendadas para a venda. Além de um grande crucifixo em
madeira, havia na parede dois quadros de nossos pais num trabalho
artístico de pintura sobre fotografias em tamanho grande.
A sala-de-fora se comunicava com o restante da casa por inter-
médio de um estreito corredor que ia dar nos fundos da residência e
de uma porta que permitia o ingresso no quarto-de-fora, uma espécie
de dependência para hóspedes. Um pouco mais tarde, aquele quarto
haveria de abrigar o farmacêutico prático José de Oliveira Rezende
— de 1946 até o ano de 1952, quando nos mudamos para a casa da
esquina da praça da igreja. Seguindo pelo corredor, era possível ter
acesso ao quarto de casal, que, como vimos, ficava à esquerda nos
fundos da loja, bem como a dois outros quartos onde dormia o res-
tante da família, à sala-de-jantar e à cozinha, construída como uma
espécie de puxado, fora da área originalmente pensada para consti-
tuir o corpo da casa.
Do lado esquerdo, os limites do lote guardavam parca distân-
cia da parede da residência. Um metro e meio, se tanto. Mas do lado
direito era tão ampla a parte sem construção que cabia uma alta e
copada árvore frutífera. Essa árvore fazia as delícias da gente de casa
e a inveja dos moleques de rua, que não tinham coragem de se aven-
turar em nosso quintal para comer daquela maçã proibida por causa
do verdadeiro pavor que tinham da minha mãe. Aquela árvore era
conhecida na vila como castanha-do-pará. Nenhum parentesco com
a homônima lecitidácea que produz frutos esféricos contendo até 24
sementes. Os deliciosos frutos daquela árvore, único espécime que
cheguei a conhecer em toda a minha vida, brotavam diretamente do
caule como os da jabuticabeira.
Mais para os fundos do lote e próximo de um estreito portão
que dava acesso ao quintal pela rua de trás, havia um pequeno paiol
onde se guardava o suprimento de milho para as galinhas e os porcos.
Num reservado do paiol era guardada também a reserva do arroz
que era socado todos os dias para o consumo da casa, assim como
uma caixa contendo o toucinho salgado.
Finalmente, eu não poderia concluir esta parte sem me re-
ferir a três características com que o espírito inovador de meu pai
brindara a nova casa: a calçada, a cisterna e a latrina. Sem nenhuma
exceção, até bem mais tarde naquela década, as duas únicas casas
da vila que possuíam calçada de modo a projetar-se em direção à
rua por cerca de um metro ou pouco mais eram esta e a outra da es-
quina da loja na confluência da rua do Meio com a praça da igreja.
Também, ao longo dos anos 40, senão mais, a água usada nas casas
da vila para o asseio em geral e para ingestão humana vinha do
córrego da Vereda, que passava ao lado da povoação e ia desaguar,
Memórias Catrumanas 70 Sidney Valadares Pimentel

um pouco mais à distância, no rio Urucuia. A maioria das famílias


atribuía essa tarefa às mulheres, em especial às moças, e aos “bo-
bos”, que eram criados ou mantidos para auxiliar ou assumir os
trabalhos mais pesados, quando não os mais rebaixantes.
Em nossa casa, a água era trazida em borrachas acondicionadas
em cargueiro por um empregado chamado João Pereira Valverde, o
João Macaco. A borracha é uma espécie de odre feito de couro con-
tendo gargalo e tampa que, se atarrachada, impede o transbordamen-
to do líquido existente em seu interior. Havia vários pontos em que
a água podia ser buscada. Cada qual com seu nome e sua história: as
fontes “do Poço”, “da Raiz”, “do Mata-cavalo”, o “Poço dos Padres”,
a “Varginha”. Do mesmo modo que havia os pontos para buscar
água destinada ao consumo doméstico, havia também os banheiros
“dos homens” e das “mulheres”, espécie de fonte semiparadisíaca,
semi-edênica, onde, separadamente, os dois sexos faziam o asseio
corporal. A cisterna mandada construir por meu pai punha termo a
essas dificuldades. Seguindo sua orientação, o artífice desse primeiro
poço foi um negro cognominado João Fura-Chão que, entre uma car-
raspana e outra, também exercia as funções de coveiro na vila.
A outra modernidade que passou a enfeitar essa nova casa foi
uma latrina, substitutivo das repousantes mas devassáveis moitas de
bananeira. Os responsáveis pela construção da latrina foram o mes-
mo João Fura-Chão, que cavou o buraco, e o pedreiro Nezim Pé-de-
Chumbo, que construiu a casinha, cobriu, colocou porta, assoalhou
e recortou o característico orifício na forma de hexágono irregular.
Comenta-se ainda hoje que, quando o João havia perfurado a fossa,
choveu de gente em nossa casa para conhecer a novidade. Entre os
curiosos, veio como sempre o escrivão Pedro Pereira, que, por mais
que examinasse o buraco, não conseguia entender a lógica do seu
uso. Então, entrando no armazém, perguntou a meu pai: “Mas, Pi-
mentel, tira uma dúvida minha: pra fazer o serviço, a gente tem que
descer lá no fundo?”.
O cavalheiro da triste figura

As descoradas fotografias que ainda podem ser encontradas em


velhos e carcomidos baús, ou pregadas em álbuns antigos, mostram
as principais diferenças nas vestimentas usadas pela população da vila
em momentos diversos. Na agitação da faina diária, ou na quietude
dos momentos de aconchego, o que se via era a despreocupação com
o apuro no trajar-se. Era somente se participando de situações espe-
cialíssimas e ritualizadas ao extremo, que alguém comparecia à cena
diária portando seu terno de casimira (gasimira, no dialeto local), ou
de linho, sua camisa branca de tricoline com abotoaduras douradas e
sua vistosa gravata. A mesma regra geral valia para as mulheres.
Memórias Catrumanas 72 Sidney Valadares Pimentel

Entre as escassas fotos deixadas por meu pai, duas são particu-
larmente úteis como comprovação dessa disparidade. Ambas são do
mesmo ano, 1955. A primeira mostra meu pai e seu irmão Joaquim,
além de seo Roberto Beirigo, especialista em instalação de equipa-
mentos elétricos, e uma quarta pessoa não identificada, ao lado da
máquina de beneficiar arroz mandada instalar na vila pela firma Ir-
mãos Pimentel Ltda. Apesar da importância do momento, estão to-
dos em mangas de camisa. A outra foto foi tirada durante o batismo
de Josete, filha de nossa prima Odete Pitangui do Prado, que morreu
ainda bebê. Aparecem nela meu pai e minha mãe (esta com a batizan-
da nos braços), tia Celina, a avó, sua filha Odete e Dália (professora na
vila e filha do fazendeiro Antonino Lopes). Na foto, todas as mulheres
estão muito bem trajadas com seus vestidos talhados a rigor, enquan-
to meu pai está portando um terno escuro que lhe cai muito bem.
Com que propósitos faço as considerações dos parágrafos aci-
ma? Precisamente com o objetivo de apresentar um novo persona-
gem que, ao longo de catorze anos, exerceu uma importância muito
grande não apenas no seio de nossa família, como também em toda
a vila e que nunca, em momento algum e em nenhum lugar, foi visto
trajado de outro modo senão de terno e gravata, como se estivesse
indo participar da cerimônia mais importante de sua vida.
Era uma manhã ensolarada e quente na vila. Cada um dos vi-
lões e cada uma das vilãs cuidavam dos afazeres do dia. Os vendei-
ros vendiam. Os ferreiros malhavam o ferro. Os pescadores, como de
praxe, pescavam sempre peixes menores do que afirmavam ter deixa-
do escapar. Os capinadores carpiam seus joios e urtigas. Os ceifeiros
ceifavam seu arrozal. As donas de casa cuidavam dos maridos e das
crianças. As cozinheiras cozinhavam. As lavadeiras lavavam. As mu-
lheres de vida livre da rua de Trás fuleiravam. As crianças faziam suas
criancices. A molecada que não tinha escola pra freqüentar, ou enco-
menda pra entregar, fazia molecagem. E tudo seguia na mais perfeita
ordem e cada coisa estava em seu devido lugar quando, de repente, lá
vem o pedreiro e latoeiro Nezim Pé-de-Chumbo, como guia e palafre-
neiro, conduzindo um homem elegante montado num airoso ginete.
O cavaleiro, via-se logo pelo talhe, não era gente nem aderente do
povinho prascóvio do lugar nem de qualquer uma das vivendas mais
longínqüas, como a urucuiana Barra da Vaca ou a riopretana Unaí.
Memórias Catrumanas 73 Sidney Valadares Pimentel

Qual era o aspecto do chegante? Branco, cabelos e olhos casta-


nhos, muito alto, esguio. Portava um terno de casimira cor de âmbar.
Sob o paletó, um colete do mesmo tecido trespassado por uma cor-
rente de ouro moldada em grossos fios que se interconectavam por
meio de uma presilha também de ouro maciço. E por baixo do cole-
te, uma camisa branca de tricoline que servia de moldura para uma
larga gravata. No bolso do paletó, um lenço de seda deixava trans-
parecer num de seus cantos um monograma bordado com as letras
JR. Calçava sapatos pretos pouco usados. A montaria era um cavalo
baio, de bom porte, com crinas sedosas que lhe caíam pelo pescoço.
Os arreios também eram vistosos e de boa qualidade. A sela, uma
curvelana macia e pouco usada. Quando o ginete se mostrava inquie-
to, o dono conseguia acalmá-lo passando de leve a mão no pescoço e
hipnotizando-o ao sussurro quase inaudível de “Titã, Titã”.

Defronte o armazém de secos e molhados pertencente a meu


pai, o cavaleiro e seu guia — o primeiro excessivamente alto e o se-
gundo, de pouca altura como uma reedição sertaneja do Cavaleiro
Memórias Catrumanas 74 Sidney Valadares Pimentel

da Triste Figura e seu palafreneiro Sancho — detiveram os passos e,


depois que o estrangeiro enlaçou a ponteira do cabresto numa acha da
cerca, penetraram no recinto sem hesitação. O proprietário estava ca-
bisbaixo e distraído. Enrolava uma encomenda que um moleque viera
buscar e só viu os dois chegantes quando ambos já estavam próximos,
bem perto do balcão. O latoeiro fez as apresentações dizendo que o
estranho chamava-se José de Oliveira Rezende e era, de profissão, far-
macêutico prático. Estava de passagem pela vila e fora dar em sua ca-
sinha, a quem indagou se por ali não havia nenhuma botica ou coisa
que o valha que ele pudesse usar no atendimento aos doentes da vila.
Depois disso, Nezim despediu-se afirmando que tinha coisas urgentes
a tratar, razão pela qual o deixava ali aos cuidados de meu pai.
O recém-chegado confirmou as informações do latoeiro.
Era, de fato, um farmacêutico prático com larga experiência no
ramo. Nascera em Varginha, onde atuara muitos anos na profis-
são. Depois de algum tempo, saíra para trabalhar em outras loca-
lidades e agora estava de viagem para a cidade de Cristalina, no
estado de Goiás, onde acertara de tomar conta de uma farmácia.
Concluiu sua narrativa afirmando que a falta de dinheiro para
prosseguir o surpreendera ali e que, se meu pai concordasse, ele
estaria disposto a atender a algumas pessoas que estivessem ne-
cessitando de tratamento usando os medicamentos que, confor-
me já notara, havia ali no armazém. Assim, ambos se beneficia-
riam. Em uma semana, no máximo, ele ganharia o suficiente para
prosseguir sua viagem sem passar privações e meu pai também
seria beneficiado vendendo os medicamentos.
Ante a possibilidade do lucro imediato com a comercialização
das drogas ali existentes, ou simplesmente para dar uma demão ao
estranho que, nesses idos, já beirava os sessenta, meu pai aquiesceu.
E não apenas concordou com a proposta, como lhe ofereceu hos-
pedagem. Acomodado no quarto-de-fora, as poucas coisas que ele
trazia no tilim e em polpudos alforjes foram dispostas ao lado de
uma cama rescendendo a limpeza. João Macaco, empregado e pau-
pra-toda-obra de meu pai, cuidou de desarrear e colocar no pasto
do escrivão Pedro Pereira da Silva o cavalo em que o boticário viera
montado. Futuramente, esse animal seria o responsável por muitos
insultos dirigidos por seu proprietário contra esse empregado.
Memórias Catrumanas 75 Sidney Valadares Pimentel

Muito do que relato nestas memórias se relaciona com seo Re-


zende e a importância que ele desempenhou durante cerca de cator-
ze anos em nossa casa e na vila. Isto porque, ao concluir-se a primeira
semana desde aquela escaldante manhã em que chegara escoltado
pelo latoeiro, ele procurou meu pai e, titubeante, pediu para ficar
mais uns dois ou três dias além da semana que propusera inicial-
mente, já que uma de suas pacientes continuava com a saúde muito
frágil, quando então recebeu como resposta aquela frase que quase
o prostrou por terra, como se tivesse levado um coice na boca do
estômago: “O senhor fique todo o tempo que desejar, seo Rezende”.
E nos próximos catorze anos em que ali permaneceu tratado como
gente de casa, se indagado, o farmacêutico nunca saberia dizer se
meu pai falara com o coração ou com o bolso.
As novas exigências

Aos poucos, a casa nova foi testemunhando a concretização


dos propósitos que nossos pais tinham de construir uma vida estável
e uma família saudável. Com o tempo, as prateleiras se abarrotaram
de cada vez mais e mais mercadorias. Os produtos agora passavam a
ser negociados mais intensamente com os comerciantes de Formosa,
o que diminuía a penúria da importação e permitia o crescimento
dos lucros em escala cada vez mais ampliada.
Também agora a diversidade da oferta crescia. Era preciso
pensar no aumento do espaço dedicado tanto à exposição quanto ao
armazenamento dos produtos. Para conseguir esse intento, uma al-
ternativa possível seria a ampliação do cômodo da loja para a direita,
onde ficava o disputado pé de castanha-do-pará. Mas até essa solução
se mostrava insuficiente já que, muito provavelmente, com muita
brevidade estaria a exigir novas ampliações em razão da necessidade
de ceder mais espaço para o funcionamento da farmácia. Isto porque
tão logo se viu assentado e com a firme decisão de deitar raízes na
vila, seo Rezende vinha sugerindo a compra de equipamentos e dro-
gas para atender às exigências da manipulação de remédios, além de
maior diversidade dos medicamentos produzidos pelos laboratórios
farmacêuticos.
Era uma sinuca de bico.
Também a casa já começava a se mostrar pequena para abrigar
a família e aderentes. No início dos anos 50, além de nossos pais, ali
Memórias Catrumanas 77 Sidney Valadares Pimentel

viviam os quatro filhos nascidos na vila, Valdeci, nossa irmã que era
fruto de um relacionamento de meu pai com uma mulher de Porto-
de-Manga e que, tão logo se viu casada, minha mãe tomou para criar,
e o primogênito Zezito, que fora trazido de Januária para nossa com-
panhia com a idade de onze anos. Devem ser acrescentadas ainda,
como moradores cativos da casa, seo Rezende e uma empregada que,
a esta altura, creio tratar-se já de uma serviçal de pele clara chamada
Eduarda, que viveu conosco até inícios da década de 1960.
Entre os que migraram de Pernambuco para Minas naquela
viagem de 1933, João e Raimundo, o velho, acompanhados de suas
respectivas famílias, haviam-se transferido para Formosa, onde ins-
talaram curtume e sapataria. Joaquim, casado, permanecia tocando
uma pequena venda no sítio denominado Fazenda da Roça, distante
quatro léguas do povoado da Barra da Vaca. Assim, somente nossa
família e a de tio Alcides viviam na vila. Este último ganhando a vida
também como pequeno comerciante e lambedor-de-sola, designação
rebaixante conquistada mais devido ao estereótipo etnocêntrico cris-
talizado em torno da situação de migrante pau-de-arara nordestino
do que em razão da atividade que exercia em sua oficina.
Memórias Catrumanas 78 Sidney Valadares Pimentel

Por esse tempo, vivia na vila um parente de minha mãe cha-


mado Pedro Valadares Versiani, o Pedrão, que haveria de ter grande
importância local em razão de suas ligações políticas com o recém-
emancipado município de Unaí, para cuja Câmara Municipal elegeu-
se vereador já em 1947. A primeira mulher de Pedrão, Guilhermina
de Oliveira Pitangui, a quem todos lá de casa chamávamos tia Guilé,
era irmã de nossa tia e vizinha Celina Pitangui do Prado e uma santa
de simpatia e bondade.
As desavenças políticas havidas posteriormente entre nosso
pai, pessedista convicto, e o Pedrão, udenista ab ovo, nunca chegaram
a empanar o apreço que em nossa família tínhamos por tia Guilé e
nossos primos Terezinha, Wanda, José Maria e Maria José.

Havia ainda uma quinta irmã, que não morava na vila e por
isso mesmo só vim a conhecer muito mais tarde em Formosa, na
casa e pensão de nossa tia Joaninha Pitangui, com quem nunca tive
proximidade alguma.
Pois exatamente quando meu pai se via na bananosa de ter de
encontrar espaço bastante para o crescimento de seus negócios, veio
a tomar conhecimento de que o Pedrão estaria procurando compra-
Memórias Catrumanas 79 Sidney Valadares Pimentel

dor para uma nova casa que começara a construir na confluência da


rua do Meio com a praça da igreja. O lote dessa residência era de
tamanho descomunal. Abrangia uma área aproximada de uns mil e
oitocentos metros quadrados, ou talvez um pouco mais. Era mais
do que suficiente para o que, embora ainda superficialmente e sem
precisar detalhadamente, meu pai tinha em mente. Então, servin-
do-se da intermediação e aconselhamentos de seu compadre Zeca
Machado, que àquela altura já havia construído sua casa defronte a
nossa, foi adquirida a inconclusa residência da esquina. Na negocia-
ção, já que meu pai não possuía recursos disponíveis suficientes para
a compra à vista, entrou a nossa casa nova, que ficou em mãos do
fazendeiro Norberto do Prado, também udenista como seu correli-
gionário Pedrão.
Hoje não é mais possível com precisão recuperar os termos
em que foi feita a transação, mas supõe-se que meu pai tenha dado,
“na orelha”, a residência em que morávamos pela casa inacabada.
A casa que era nossa teria, então, sido transferida para o fazendeiro
Norberto do Prado, que por sua vez a pagara a Pedro Versiani. As-
sim, esse nosso contraparente teria recebido apenas e em dinheiro
vivo o correspondente ao valor da casa que nos pertencia. O sabido
é que, no acerto final, ficara estabelecido que nós só entregaríamos
nossa casa depois de concluída integralmente a casa da esquina, que
se encontrava nos esteios e coberta. Assim, por nossa conta e risco,
ela deveria ser terminada no prazo máximo de um ano.
Decerto o leitor que me segue nessas páginas deve estar matu-
tando sobre os perigos de uma negociação tão arriscada no tocante a
prazos e custas para concluir uma obra de tal monta num momento
e lugar em que não havia a mínima possibilidade de contar com um
empréstimo para fazer face às despesas. E tem toda razão. E essas
questões inquietavam também meu pai. Mas o que as pessoas da vila
sequer desconfiavam era que, mais uma vez, ele não daria um passo
maior que as pernas, como era costume dizer.
Diferentemente da imensa maioria de proprietários rurais da
vila que iam consumindo paulatinamente suas posses herdadas, aque-
le homem de pequena estatura — que chegara “comprando couro de
cateto e pena de ema” — possuía uma inteligência, uma capacidade
de trabalho, uma força de vontade e um tino para perceber as opor-
Memórias Catrumanas 80 Sidney Valadares Pimentel

tunidades de ganho como jamais visto por ali. Prova isto o fato de
que, antes de concretizar a permuta dos imóveis, ele tenha proposto
um acordo societário aos irmãos Alcides (que continuava morando
na vila e trabalhando em sua venda-oficina de pequenos consertos e
fabricação artesanal de produtos em sola) e Joaquim (que tocava seu
pequeno comércio na Fazenda da Roça). Foi assim que, traçados os
planos para a criação da sociedade que se materializaria na constitui-
ção da firma Irmãos Pimentel Ltda., foi fechado o negócio e meu pai
tratou de terminar a construção do imóvel adquirido, que seria sua
parte no negócio.
Como já disse, Manoel Ângelo Bonfim, o seo Anjo, era um
pernambucano que chegou antes de nós. Para falar francamente, foi
esse nordestino que, partindo de Pernambuco, em parte descobriu
e em parte inventou a trilha que vinha dar na vila. Foi num grande
rancho desse seu conterrâneo que meu pai se hospedara com toda a
quinquilharia que trouxera para negociar, quando viera ao lugar pela
primeira vez.
Seo Anjo era um sertanejo alto e forte que tinha a pele cur-
tida e amorenada pelo sol das caatingas e dos carrascais cobertos
de vegetação áspera. Era casado com D. Maria, nordestina extre-
mamente diligente que trouxera consigo e que, barrigada após bar-
rigada, lhe dera uma fieira de filhos da melhor cepa. Anos mais
tarde, quando seo Anjo dividiu cama, mesa e sinagoga, que até
então eram exclusividade dessa heroína e boa parideira, com uma
outra mulher do lugar que, sabe-se lá por que desígnios da sorte,
carregava o nome de Ana Paca, foram os filhos, em especial o de-
dicado Cassimiro, que proveu o seu sustento, amenizando as dores
da mesaliança.
Além de muito festivo, sendo um dos que melhor se garantiam
numa sanfona pé-de-bode, seo Anjo possuía também seu saberzinho
nas artes de curtimento de peles e consertos de calçados e tralhas de
tropeiros e carreiros. Tio Alcides e ele monopolizavam essa atividade
na vila. Não sei se por causa ou apesar disto, os dois estabeleceram
uma relação de proximidade muito forte.
Devido a essa amizade, pouco antes de concretizar-se a nego-
ciação para criação da sociedade entre germanos que redundaria na
fundação da firma Irmãos Pimentel Ltda., seo Anjo convidou tio Al-
Memórias Catrumanas 81 Sidney Valadares Pimentel

cides para fazerem uma viagem exploratória a Formosa, onde o ve-


lho Raimundo e nossos tios João e Mundinho já se encontravam tra-
balhando na fabricação de calçados. O que buscavam nessa viagem
era fazer um levantamento das possibilidades de negociação com os
comerciantes formosenses, já que o tempo de viagem gasto dali até
a vila era menos da metade do que se gastava da vila até as cidades
localizadas às margens do Velho Chico, para buscar mercadorias.
Tio Alcides, desde que se mudara definitivamente para a vila,
passara também a comprar certas mercadorias de vendagem quase
imediata que expunha em improvisadas prateleiras ao lado das solas,
vaquetas, pregos, tinta, graxa, elástico, sovelas, martelos, torqueses,
pé-de-ferro e tudo o mais que fazia parte de seu ofício. Nada que fi-
zesse frente ao comércio de produtos mais diversificados e mais sofis-
ticados que o irmão José tinha ali perto, mas de qualquer modo era
sempre um ganho a mais.
Não faço a mínima idéia se antes de meu pai alguém já tivera o
infeliz palpite de aproveitar o espaço disponível sob o jatobazeiro da
praça para o destrinchamento de toras de madeira. O certo é que a
tarefa de provimento das peças necessárias à conclusão da casa com-
prada a Pedrão — portais, portas, janelas — foi encomendada a um
morador da vila chamado Miro, que além de pedreiro era também
carpinteiro. Para cumprir um calendário que pedia urgência, o ser-
viço foi apressadamente realizado por Miro e seu irmão Raimundo.
O primeiro em cima do estaleiro, que é onde precisa de o serrador
ter mais prática e perícia para não deixar que o corte saia do risco,
colocando o trabalho a perder.
Enquanto Miro (ajudado entre outros por seu irmão Raimun-
do e Poti Joaquim Ramos, também pedreiros, e pelo carpinteiro Zé
Martins) cuidava de apressar a conclusão da casa comprada a Pedro
Versiani, tratavam os três irmãos pernambucanos, agora promiten-
tes sócios, de detalhar melhor os planos para a instalação da firma.
Foi por essa época que um caminhoneiro de alcunha Zé Rita,
cuja atuação no desenvolvimento e modernização dos meios de trans-
porte na região foi de importância ímpar, começou a trafegar de For-
mosa para Cabeceiras e de lá para a sua fazenda chamada Campininha,
aventurando-se mesmo a descer a serra, que na época era pura piram-
beira, até a vila. De acordo com testemunhas da época, para diminuir
Memórias Catrumanas 82 Sidney Valadares Pimentel

os perigos da descida, o Zé Rita teria atado uma árvore de médio porte


à parte traseira do chassi do caminhão por meio de grossas correntes,
objetivando acrescentar ao veículo maior poder de frenagem.
A novidade e o pioneirismo de Zé Rita produziram nos irmãos
e futuros empresários a certeza de que, para o alcance que preten-
diam dar ao empreendimento vindouro, uma das mais dispendiosas
aquisições que teriam de incluir em seus planos faraônicos de trazer
o progresso ao sertão — de um modo que lhes fosse também rentá-
vel — seria a aquisição de um caminhão para o transporte de mer-
cadorias, matéria-prima e passageiros. Até algum tempo antes, isto
seria sequer impensável. Mas agora, com o exemplo do estouvado
Zé Rita, ficara provado que não era um sonho impossível. E já que
meu pai e nosso tio Joaquim tinham maior experiência no ramo do
varejo, o mais recomendável seria que essa função coubesse, na em-
presa, a tio Alcides.
Com essa tarefa em mente, tio Alcides, que agora deixara o
serviço de remendos de sola quase que exclusivamente nas mãos de
seo Anjo, ficou antenado para a nova atividade que teria de abraçar
de então em diante. Quase na mesma época em que a grande loja da
esquina da praça ficara pronta e meu pai se dispunha a fazer a mu-
dança, esse mesmo tio fez outra viagem a Formosa, ainda a cavalo,
para tratar de assuntos de seu interesse pessoal. Ao pernoitar num
lugarejo chamado Cabeceira da Mata, ele soube, na pensãozinha
em que se hospedara, que Zé Rita estava sendo esperado ali naquela
mesma noite, vindo de sua fazenda, e no dia seguinte deveria prosse-
guir viagem para Formosa.
Na manhã seguinte, tio Alcides procurou o caminhoneiro e in-
dagou se dava para levá-lo e ele disse que sim. Na estrada, se é que
aqueles trilhos paralelos repletos de tufos de capim, grotas e tocos
podiam receber um nome tão pomposo, entabularam conversações,
e nosso tio, meio ressabiado devido à fama que o dono do caminhão
possuía de sujeito impaciente e meio grosseirão, comunicou-lhe a
decisão que ele e os dois irmãos já haviam tomado de adquirir um
veículo como aquele para resolver os problemas de transporte de
mercadorias da firma que estavam pensando em criar.
Zé Rita disse então a tio Alcides que, se seus irmãos e sócios
concordassem, ele poderia facilitar para eles a compra daquele
mesmo caminhão em que viajavam. Segundo ele, aquele, ao con-
trário do anterior, que andava caindo aos pedaços, era seminovo,
como tio Alcides mesmo podia constatar. É claro que até aquele
instante meu tio não tinha conhecimento algum de como aquela
geringonça em que viajavam funcionava. Ou, como era costume
troçar então, se era a parafuseta que entrava na ventolina, ou o
contrário. Mas ele não deixou transparecer a profunda ignorância
que tinha a respeito daquilo tudo. E respondeu que, para tomar
qualquer decisão, precisava consultar os irmãos.
“Que consultar o quê!”, disse Zé Rita. “Vocês têm de comprar
mesmo e tá na hora”.

Aí, então, nosso tio tomou a decisão ali mesmo: “Se a gente
combinar no preço, eu compro”. E naquele mesmo instante fizeram
o negócio. O caminhão foi comprado por cento e vinte mil cruzeiros,
pagos a dez por mês, valor que foi acrescido de mais dez mil para
compensar o que Zé Rita gastara na abertura da estrada.
Algum tempo depois de curto período de aprendizado, com
as pernas bambas ao enfrentar — mais do que as dificuldades — os
Memórias Catrumanas 84 Sidney Valadares Pimentel

medonhos perigos do caminho, tio Alcides transpôs a serra pela pri-


meira vez. E dali em diante, muitas foram as vezes em que subiu o
dificultoso espigão com o caminhão carregado com oitenta sacos de
arroz em casca, ou desceu apinhado de mercadorias compradas em
Formosa, Anápolis e até em São Paulo, e destinadas tanto à matriz
na vila quanto à filial na azenda da Roça. Isto para não mencionar os
passageiros que iam e voltavam. Porque antes de Artau, outro pio-
neiro, começar a fazer a linha que, só Deus sabe como, ligava a vila
a Goiás com sua pequena jardineira, era o Chevrolet 1952 e depois o
GMC 1954 pertencentes à firma Irmãos Pimentel Ltda. que se encar-
regavam do transporte de passageiros.
E foi assim que os três irmãos, José, Alcides e Joaquim, se lan-
çaram à árdua tarefa de dar sua quota de contribuição para o que
consideravam ser sua dívida com a terra que os acolheu.
A nova casa nova

Foi com grande ansiedade que todos da família aguardamos


o final da construção da casa na esquina da praça. E então chegou o
momento em que ela foi concluída e nos mudamos para a nova resi-
dência, entregando a que morávamos para Norberto do Prado.
A residência funcionava como uma espécie de retaguarda para a
loja. Uma retaguarda tanto física quanto operacional. Hoje transfor-
mações introduzidas por moradores recentes mudaram o frontispício
do prédio. Em sua concepção original, o casarão era dotado de quatro
portas dando para a praça, bem como de cinco portas e três janelas
voltadas para a rua do Meio. Entre essas últimas, as janelas e uma das
portas, isto é, precisamente a que ficava na extremidade oposta à es-
quina da praça, pertenciam à residência propriamente dita.
Podia-se ingressar na casa por meio de duas entradas. Uma di-
reta, considerada principal, por meio da porta que dava para a rua do
Meio. A outra indireta, varando-se pelo fundo da loja, indo dar num
cômodo que abrigava, ao mesmo tempo, o laboratório de manipula-
ção de remédios usado por seo Rezende e o escritório particular de
meu pai. Daí, por meio de um alpendre em L, virando à esquerda,
chegava-se à sala-de-jantar, ou, seguindo em frente, à cozinha.
A porta principal ficava frente a frente com a da entrada da
residência de um outro adversário político de meu pai, o udenista Ar-
gemiro do Prado, a quem minha mãe, nos momentos de cólera polí-
tica, costumava se referir como “a praga do Argemirim”. Duas coisas
Memórias Catrumanas 86 Sidney Valadares Pimentel

irritavam especialmente este sujeito de compleição esquelética: ser


chamado pelo apelido de Tenente Vela e receber os afagos de uma
mão nos joelhos. A ambas ele costumava responder com a ameaça de
fazer uso de um revólver 38 que com freqûëncia trazia à cinta. Sua
mulher Domingas, de aspecto tão doentio como o dele, deu-lhe oito
filhos com os quais, apesar da vizinhança, não tínhamos a liberdade
de brincar em razão das divergências políticas.

Por volta dos últimos oito anos da década de 1950, essa nos-
sa casa, mesmo considerando apenas a parte residencial, era, sem
sombra de dúvida, a mais ampla da vila. Concebida para comportar
grandes cômodos, compunha-se de seis quartos, duas salas, cozinha,
despensa e corredores que uniam tudo isso num conjunto mais ou
menos harmônico. Ultrapassando o batente da entrada principal, pe-
netrava-se numa sala a que costumávamos chamar de sala-de-fora,
mas que minha mãe, em seus raros arroubos de matrona hospitalei-
ra, denominava sala-de-visitas. Foi nesse espaço que meu pai, logo
depois da mudança, instalou uma pequena sala-de-aula de uma inci-
piente escola particular, entregando a regência da classe à nossa tia
Celina Pitangui do Prado, que ali deu aulas por um tempo aproxima-
Memórias Catrumanas 87 Sidney Valadares Pimentel

do de seis meses. O que o terreno de nossa casa tinha em largura, o


dessa nossa tia possuía em comprimento, abrigando nele a Pensão
Pitangui.
Essa tia era casada com um sujeito muito bem humorado cha-
mado Egídio Evangelista do Prado, de quem nossos primos faziam
gato e sapato. Cinco eram os filhos do casal: Moacir, Odete, Altair,
Saint-Clair e Selma. Entre todos, os que permaneceram mais viva-
mente em minha memória foram o Moacir e o Saint-Clair. Moacir,
apelidado de Lobo, ou Guará, tocava muito bem uma sanfona pé-de-
bode. Apreciava a música como poucos, tendo sido a primeira pes-
soa a adquirir uma vitrola na vila. Daquelas de dar corda e trocar as
agulhas. O Saint-Clair, que carregava a alcunha de Quéu, tinha uma
idade mais parelha com a minha e, juntos, fizemos boas caçadas de
estilingue. O Moacir, a Odete e a Altair tinham idades mais próximas
entre si e mais diferenciadas dos outros dois mais novos.

Como o restante da casa, o piso da sala era feito de ladrilhos


quadrados, tamanho 20x20, da cor natural do barro queimado e sem
Memórias Catrumanas 88 Sidney Valadares Pimentel

nenhum outro acabamento, como pintura ou decoração. As paredes


desse cômodo, que, naturalmente, recebia mais luz que os demais,
abrigaram os dois quadros artisticamente trabalhados em pincel
sobre fotografia, que já enfeitavam a sala-de-fora da casa anterior.
Num deles, meu pai, com aproximadamente 30 anos ou pouco mais,
porta um terno azul-escuro e gravata quadriculada sobre camisa de
tricoline branca impecável. No bolso, à mostra, a presilha dourada
da caneta-tinteiro Parker 51. A impressão de seriedade que a imagem
de seu rosto passa, o ar de circunspecção e a posição quase ritual em
que aparece não lembram o indivíduo espirituoso e brincalhão que
ele sempre fora.
No outro quadro, minha mãe, aparentando a mesma idade,
traja um vestido também azul, sem gola, com um pequeno ramalhe-
te sobre o peito e presilhas no cabelo claro. Os olhos que fitam seve-
ramente a câmera, o cenho fechado, tudo faz lembrar a mulher que,
por diversas razões, todos na vila aprenderam a respeitar e a temer.
Um pouco mais tarde, os quadros de nossos pais receberam a
companhia de dois outros: um desenho sobre fotografia de seo Re-
zende, que, então, já se tornara um ente da família, e uma fotografia
menor — mas nem por isso menos importante no tocante ao valor
atribuído aos ícones ali colocados — do presidente Juscelino Kubits-
check descendo sorridente as escadas de um teco-teco, quando vi-
sitou Formosa por volta do ano de 1956. Recordo que na casa de
nossos tios Alcides e Isabel, ao lado de suas fotografias, existia um
quadro igual, provavelmente adquirido na mesma época e lugar.
Na parede que ficava no lado esquerdo da sala-de-fora havia
uma porta que dava para um cômodo pequeno e aconchegante. Esse
quarto pertenceu, enquanto conosco morou, ao farmacêutico e, por
isso, era referido por todos na casa como “o quarto de seo Rezende”.
Não era grande esse compartimento, mas era o quanto bastava para
abrigar os parcos pertences e a simplicidade franciscana do boticário.
Nele havia, próximo à janela que dava para o amplo quintal existen-
te do lado direito da casa, uma cama patente nova, adquirida junta-
mente com os demais móveis e utensílios comprados por ocasião da
mudança.
À cabeceira da cama, em vez de um criado-mudo, ficava uma
mesinha e uma cadeira adquiridas do marceneiro Zé Martins, onde
Memórias Catrumanas 89 Sidney Valadares Pimentel

o farmacêutico lia seus livros e compêndios em português e em fran-


cês e redigia suas receitas e notas. Ao pé da cama ficava uma caixa
de madeira, sobre a qual seo Rezende depunha uma mala de roupas
e cuja abertura na parte da frente era usada como uma espécie de
prateleira ou estante. Havia ainda um pequeno armário onde fica-
vam guardados os ternos, os coletes, as camisas e as roupas de baixo,
compartimento que ninguém tinha licença nem liberdade de abrir
ou vasculhar sob nenhum pretexto, visto que as roupas usadas eram
colocadas num saco dependurado a um canto e, depois de limpas,
repostas sobre a cama para que ele próprio as guardasse. As únicas
e exclusivas permissões que as serviçais da casa tinham eram as de
recolher as roupas sujas e devolvê-las, depois de lavadas e passadas,
num embrulho que ele próprio, pacientemente, desfazia com todo
cuidado, colocando cada uma em seu devido lugar. Assim, já que até
as atividades corriqueiras de desfazer a cama para o repouso noturno
e rearranjá-la na manhã seguinte ele tomava para si, só restava às en-
carregadas a obrigação matinal de esvaziar e assear meticulosamente
o urinol, bem como de varrer e espanar os móveis.
Do lado direito da sala-de-fora, em linha com a parede que for-
mava um dos lados do corredor prosseguindo até a sala-de-jantar,
ficava a porta de um outro quarto — mais amplo, embora mais som-
brio —, que era ocupado constantemente por meu padrinho Baltazar
Fonseca Melo, caixeiro da loja, e, temporariamente, quando vinham
de férias, pelos irmãos mais velhos, Zezito e Edson.
Excepcionalmente, esse cômodo era também usado como
quarto de hóspedes. Entre os visitantes que em momentos diversos
ocuparam esse quarto, lembro-me de uma bela moça, filha do fazen-
deiro Raymundo Campolina, de parentes que vinham da Barra da
Vaca, sempre na época da Festa de Setembro, de um avaliador e fiscal
da agência do Banco do Brasil em Paracatu chamado Moacir Torres
e de um agrimensor que viera para conhecer a vila conduzido por tio
Joaquim, de nome Francisco Buscaccio.
Seguindo pelo corredor, antes de chegar à sala-de-jantar e con-
tíguo ao cômodo que descrevi anteriormente e que era tratado como
“o quarto de Baltazar”, havia um outro, conhecido como “o quarto
dos meninos”, onde dormiam os três irmãos mais novos, isto é, por
ordem de nascimento, Romero, eu e Randolfo. Era também nesse
Memórias Catrumanas 90 Sidney Valadares Pimentel

quarto que minha mãe acomodava vários correligionários políticos


de meu pai que apareciam de vez em quando à cata de votos, entre
os quais o deputado e escritor Mário Palmério e o também deputa-
do e coronel da polícia mineira Manoel José de Almeida, que, cedo,
recebeu dos adversários políticos de nosso pai o injusto apelido de
“Mané Promessa”.
Além da porta que dava passagem ao corredor interno, esse
aposento possuía ainda uma janela que dava para o corredor externo,
ou alpendre, onde ficava o lavatório destinado às abluções matinais,
e por meio do qual se tinha acesso à cozinha, indo para a esquerda,
ou à “sobreloja”, seguindo para a direita. Era também, a partir desse
quarto, que, por meio de uma escada, se tinha acesso ao improvisa-
do sótão, área existente entre o forro da loja e o telhado, que servia
de depósito para coisas pouco pesadas. Caixas vazias, papéis velhos,
jornais para embrulho e para serem usados na latrina e tudo o mais
“que qualquer hora pode ter alguma serventia”.
Defronte “o quarto dos meninos” ficava “o quarto de dona Al-
cina”, onde dormiam nossos pais. Naquele grande aposento existia
a única cama de casal e o único guarda-roupas da casa, que se fa-
zia acompanhar de uma canastra coberta de couro e tacheada onde
minha mãe guardava suas mais caras lembranças. Ao contrário da
cama, talhada ali mesmo na vila pelo marceneiro Zé Martins, o guar-
da-roupas era uma peça bem feita, com os pés e as partes visíveis
torneadas em estilo colonial. Contrastando com aquela peça, havia
ainda um pequeno armário, improvisado em tábua de pinho e sem
o acabamento dispensado aos demais móveis. Nele eram guardados
alguns livros, em sua maioria almanaques da Editora O Pensamen-
to e outras obras que veiculavam idéias do saber esotérico, além de
envelopes de comprimidos intactos ou vidros com restos de medica-
mentos usados.
No final do corredor, ficava a sala-de-jantar, que era o lugar
onde, com maior freqüência, as intimidades dos moradores da casa
eram compartilhadas. Tomando mais ou menos o centro da sala, ha-
via uma mesa retangular coberta de verniz escuro e, ao seu redor,
quatro cadeiras da mesma cor. No canto direito da porta que dava
para o grande quintal, ficava uma cristaleira, que minha mãe chama-
va de guarda-louças, dotada de duas gavetas, com acabamento idên-
Memórias Catrumanas 91 Sidney Valadares Pimentel

tico ao da mesa, onde eram guardados talheres, pratos, guarnições,


compoteiras, guardanapos e toalhas.
Depois do canto onde terminava o corredor de entrada até o
fundo da sala onde havia uma porta que dava acesso ao amplo quin-
tal, a parede era inteiriça, isto é, sem comunicação com nenhum dos
aposentos. Já a parede existente do lado direito possuía duas portas.
Ambas permitiam o ingresso nos respectivos cômodos que abrigavam
o grupo feminino. No que ficava mais próximo da parede do fundo
dormiam nossa irmã Valdeci, uma antiga empregada chamada Eduar-
da, que se fazia sempre acompanhar de uma sua sobrinha, a Dadá, e
finalmente nossa prima Ilma, filha de tio Joaquim, sócio da firma.
Por ocasião das aulas no grupo, além de Dadá e Ilma, a quem
na medida do possível todos tratávamos como da família, vivia tam-
bém em nossa casa uma garota chamada Helena, filha do vaqueiro
João Farias Pinho, que tirava sorte na fazenda São Vicente da Direita
de nossa propriedade. Além de Helena, o outro cômodo, menor e
mais abarrotado de coisas, abrigava a serviçal que trabalhava na casa
há menos tempo e a quem minha mãe dava atribuições mais simples
ou mais complexas e a todo momento, por qualquer dá cá uma palha,
ameaçava dispensar.
Ainda na sala-de-jantar localizava-se a porta que dava para o
alpendre. Com a largura aproximada de pouco mais de um metro
e meio e com o formato em L, esse corredor começava na porta da
cozinha e terminava na porta que dava entrada para a sobreloja. Em-
bora houvesse espaço ali para caber alguma peça menos robusta, o
único utensílio existente era um pequeno lavatório usado por todos
da casa para fazer o asseio matinal e por meu pai, especialmente,
para fazer a barba.
Além da porta que dava passagem ao corredor, a cozinha pos-
suía mais duas por meio das quais se comunicava com a grande des-
pensa no cômodo contíguo e com a parte do fundo, onde havia uma
pequena casinha que servia de depósito. Defronte a porta que dava
entrada ao corredor, mas na extremidade oposta da cozinha, ficava o
fogão de lenha. Por aquela época, os fogões construídos na vila eram
bem mais simples do que o que existia em nossa casa. O costume
então era fazê-los de adobe, sem fornos e rebocados à mão com uma
camada de barro e cinza ou de tabatinga branca. Muitos, em lugar de
Memórias Catrumanas 92 Sidney Valadares Pimentel

chaminé, possuíam apenas uma pequena abertura vazada na parede,


por onde a fumaça saía pintando o lado externo de fuligem e picumã.
O nosso, não. O que havia em nossa casa era feito, combinadamente,
de adobe e tijolo, além de possuir um forninho de ferro, chaminé que
avançava até o teto, acabamento em cimento queimado sobre arga-
massa de barro e rapadura, e dois compartimentos abertos na parte
de baixo, onde se guardava a lenha para mantê-la enxuta no período
das águas.
Além do fogão, que era uma construção fixa, havia ainda na
cozinha móveis toscamente construídos em pinho, tais como uma
mesinha, uma caixa onde se guardavam panos de pratos e uma pra-
teleira. O mesmo acontecia na despensa onde, além das prateleiras e
ganchos para dependurar produtos em processo de cura, havia uma
grande caixa de toucinho salgado.
Pouco distanciada da porta da cozinha situava-se uma pequena
construção com reservado para armazenar selas, arreios, mantimen-
tos, ferramentas etc. Ao lado, mantivera-se um espaço aberto onde
ficavam, devidamente protegidos da chuva, um forno de assar biscoi-
tos e a cisterna calçada e com resistentes sarilho e cordoalha. Anexo
à parede da cozinha e próximo do pé de manga-abóbora, ficava um
pequeno cômodo que servia de banheiro. Acima daquele cômodo,
cuja porta era feita toscamente de uma folha de compensado, havia
um meio tambor que servira antes para transportar gasolina e agora,
lixado por dentro e pintado com tinta a óleo, acomodava a água que
servia para os residentes se assearem diariamente. A outra metade
do tambor, submetida ao mesmo procedimento, abastecia o encana-
mento que ia dar na pequena pia existente no corredor em L, usada
por todos para lavar as mãos e o rosto e pelos adultos, em especial
por meu pai, para escanhoar o rosto com sua invejada navalha
Solingen. Constituía obrigação imprescindível das “meninas” da casa
o abastecimento diário dos dois reservatórios com a água da cister-
na, tarefa cujo cumprimento era vigiado de perto pela “governanta”
Eduarda.
À esquerda da casa, limitado pelo muro que dava para a praça,
o alpendre em L e a divisa com o quintal de nossa tia Celina, ficava
um pequeno jardim. Para dizer a verdade, era o único jardim que en-
feitava a casa. Ali, em canteiros formados por carreiras de pequenas
Memórias Catrumanas 93 Sidney Valadares Pimentel

pedras ou de tijolos traçando os mais diversos formatos geométricos,


cresciam ervas e plantas ornamentais cultivadas na vila por minha
mãe e por suas parentas, comadres e amigas. No centro do jardim
havia um pé de manacá-da-serra que exalava seu aroma pela casa in-
teira. Por volta de 1958, quando adquiriu sua caminhonete Chevro-
let modelo Marta-Rocha, meu pai mandou instalar um portão largo
no muro que dava para a praça, em frente à mangueira, para servir
de improvisada garagem.
Mas era do outro lado da área residencial que ficava a maior
porção do terreno, a servir de quintal para a casa e a loja. Deste lado,
isto é, excetuando-se a área ocupada pela casa, pela loja e pelo jardim,
o terreno podia ser dividido em dois grandes blocos. O primeiro e
mais amplo englobava aquilo que poderíamos chamar propriamente
de quintal, enquanto o segundo deu abrigo a uma parte substancial
da ampliação dos negócios da firma, ou seja, as instalações do bar e
sorveteria, da máquina de beneficiar arroz e do motor diesel de 24
HP e respectivo conjunto gerador que, além de fornecer eletricidade
para todo aquele equipamento, ainda vendia energia para as residên-
cias da vila.
O quintal propriamente dito situava-se num plano inferior ao
da casa, de modo que, para ter acesso ao terreno que ficava ao rés-do-
chão, era preciso descer uma escada de tijolos de três lances, numa
altura aproximada de oitenta centímetros. Afastado da parede lateral
da despensa uns três metros, havia uma banca construída especial-
mente para lavar, arear e enxaguar as vasilhas que tinham de estar
sempre tinindo de tanto lustro. A exigência da dona era que as pane-
las e caldeirões de ferro e de alumínio estivessem a todo momento
barreadas com cinza pra não pegar carvão.
A uma pequena distância da banca ficava a casinha, a privada,
a latrina. Atendendo em especial às orientações de seo Rezende, que
inspecionava diariamente essas instalações, as meninas cuidavam
para que daquele fosso não exalasse o característico odor de fezes e
urina curtidas. Para evitar que isSo acontecesse, diariamente eram
obrigadas a varrer e lavar o assoalho de madeira. De tempos em tem-
pos, tanto o assoalho como a própria cavidade recebiam uma porção
respeitável de cal virgem. Além dos cuidados higienistas das meni-
nas com a prevenção do mau odor — ou, de acordo com a expressão
Memórias Catrumanas 94 Sidney Valadares Pimentel

pleonástica de Dadá, a sobrinha da “governanta” Eduarda, da “catin-


ga de mau cheiro” —, era ainda sua obrigação abastecer a latrina com
folhas de jornal velho que, depois de rasgadas em pedaços menores,
eram espetadas num prego ou num gancho de arame a uma altura
aproximada de meio metro, ou pouco mais, para serem usadas como
papel higiênico.
Um pouco distanciado da privada, embora seguindo o mesmo
alinhamento, ficava o galinheiro, compartimento coberto de telhas
comuns e emparedado com bambus resistentes. Havia ainda quase
no centro desse terreiro um cercado que era usado por minha mãe
como horta, mas que, de fato, em razão dos costumes alimentares
carnívoros herdados da linhagem paterna, nunca chegou a fazer mui-
to sucesso. Daí que, em vez de folhagens, a preferência dos mora-
dores da casa recaísse sempre sobre aqueles produtos que podiam
ser associados à carne, como a mandioca, ou que podiam servir de
temperos, como o coentro, a cebolinha, o açafrão, a hortelã.
Entre o estaqueado da horta e o muro que dava para a rua do
Meio havia duas árvores: um pé de coité e um de baliza. E mais à es-
querda destes até a casa existia um espaço vago onde eram colocados
a secar ao sol os couros de gado e de caça para que não fossem devo-
rados pela superpopulação gulosa de polias, larvas e besourinhos.
Do outro lado do muro que separava o quintal da área — diga-
mos — industrial, fora edificado um conjunto de prédios feitos em
tijolos queimados, que se estendia desde o alinhamento da rua do
Meio até a divisa com o quintal da pensão de tia Celina. A parte da
frente, construída num nível um pouco mais elevado que as outras
partes, compunha-se de dois cômodos, ambos mais bem acabados do
que os demais. As paredes, em reboco e pintura de melhor qualidade,
e o piso, em cimento queimado de cor natural.
O cômodo da esquerda, com pista de dança, fora concebido
para abrigar festas e cerimônias alegres e tristes. A um canto, perto
de onde havia uma pequena abertura quadrada na parede que sepa-
rava as duas salas, ficava um toca-discos 78 rpm, com potente ampli-
ficador ligado a dois alto-falantes, um externo e outro interno. Além
da pequena abertura, essa sala se comunicava com a outra e com a
rua por meio de duas portas largas.
Antes de mudar o rumo destas lembranças, é preciso ainda di-
Memórias Catrumanas 95 Sidney Valadares Pimentel

zer que entre a última parede onde funcionava a máquina de arroz


e a cerca do quintal de tia Celina existia um chiqueiro. Nele, apro-
veitando a sombra de um juazeiro existente do outro lado, entre
mamoeiros nativos, e que protegia a população carcerária suína do
calor excessivo do sol, eram cevados os capados a ser abatidos para o
consumo doméstico.
A loja

A loja, empreendimento comercial mais importante e mais lu-


crativo dentre todos os que compunham a sociedade, ficava localizada
ali mesmo na frente e à esquerda, no casarão da praça. Acompanhan-
do o corpo da construção, o espaço destinado à exposição e venda de
mercadorias ocupava uma área de aproximadamente sessenta me-
tros quadrados. Ao fundo, cobrindo todas as paredes, situavam-se
as prateleiras com espaço suficiente para, entre outras coisas, expor
chapéus, cobertores, tecidos, sapatos, botões, roupas feitas, cintos,
carretéis, produtos farmacêuticos e veterinários, pólvora, chumbo,
cartuchos e armas brancas.
Memórias Catrumanas 97 Sidney Valadares Pimentel

Na frente das prateleiras, como um anteparo que impedisse o


acesso direto dos fregueses aos produtos em exposição, situavam-se
quatro balcões medindo cada qual cerca de dois metros de compri-
mento, um metro de altura e oitenta centímetros de largura, dois dos
quais dispunham de vidros transparentes na parte superior e na fren-
te, enquanto um só os possuía na frente. Cada balcão, com vidros na
parte frontal, era guarnecido com suportes em formato triangular,
que serviam para sustentar uma longarina com o mesmo compri-
mento da peça e com a espessura de dois centímetros quadrados.
Essa longarina servia para proteger o vidro contra possíveis aciden-
tes perpetrados por crianças ou adultos, funcionários ou fregueses.

Nos balcões-mostruários ficavam expostos alguns produtos


mais caros e miudezas extremamente fáceis de ser surrupiados por
mãos ágeis, ao menor descuido dos caixeiros. Mas principalmente
eram mantidos ali os perfumes, cosméticos, pequenas jóias e lem-
branças então existentes ou somente preciosas utilidades, como a lo-
ção Royal Briar, o Leite de Rosas, o sabonete Eucalol, a Acqua Velva,
a Loção Brilhante, o Rugol, a Gillette Azul, o sabonete Fêno de Chi-
mène, o Brylcreem, a brilhantina Glostora, brincos, broches, trance-
lins, óculos de grau, terços, o escambau. No espaço existente entre
Memórias Catrumanas 98 Sidney Valadares Pimentel

os balcões e as portas frontais e laterais, nos cantos e atrás das portas,


tomando cuidado para não empatar o trânsito dos fregueses e funcio-
nários, eram colocados produtos de maior volume ou excessivamen-
te desajeitados para ser expostos nas prateleiras, como rolos de corda
e de arame farpado, ferramentas de cabos longos, vassouras etc.
No balcão que ficava numa das extremidades, a que se situava
precisamente perto da porta que dava entrada para a sobreloja, exis-
tia um porta-papel de embrulho com rolos em três larguras. E na
extremidade oposta fora instalada uma balança Filizola automática,
como dizia a sua propaganda, isto é, que não necessitava mais de
pesos e contrapesos para o seu uso, como acontecia com as demais
balanças da vila, inclusive com a que, até inícios da década, era usada
por meu pai em seu armazém de secos e molhados.
A área consagrada aos tecidos ocupava a maior parte do espaço
nas prateleiras frontais. Muita da mercadoria ali exposta constituía-
se de retalhos adquiridos em São Paulo no peso e vendidos a metro
na vila. Ainda que a oferta não fosse ampla, a diversidade era impres-
sionante. Por ali passaram peças e cortes de tecidos conhecidos entre
as costureiras como brim, gorgorão, popelina, cambraia, casimira,
percal, tussor, xantungue, brocado, americano, algodãozinho, flane-
la, fustão, organza, gabardina, tricolina, lese, tafetá, cretone, chita,
tropical, piquê, alpaca, crepe, jérsei, opala, linho, zuarte e muitos
outros de cujos nomes não me lembro mais.
Além do lugar consagrado às manipulações de medicamentos,
que, em nossa casa, ficou batizado pelo nome de sobreloja, ainda
que não funcionasse num pavimento superior como a denominação
parecia indicar, havia a um canto da loja, nas últimas prateleiras à es-
querda, um espaço destinado aos “remédios de laboratório”, que, in-
dependentemente da prescrição do velho farmacêutico, podiam ser
adquiridos à larga. Podiam ser encontrados ali os analgésicos e/ou
antitérmicos Fontol, Melhoral, Cibalena, Guaraína, Cibazol e Cera
Dr. Lustosa; os reguladores femininos A Saúde da Mulher e Regula-
dor Xavier; os antitussígenos Xarope São João e Bromil; o antiácido
Sal de Fruta Eno; o fortificante Emulsão Scott; as diuréticas Pílulas
de Foster; o antidiarréico Eldoformio; os antipalúdicos Camoquim
e Aralen — e muitos outros recomendados pela automedicação para
debelar crises que pertenciam ao cotidiano doentio da vila.
Memórias Catrumanas 99 Sidney Valadares Pimentel

Mas era numa longa mesa existente à esquerda do pequeno e ima-


ginário corredor que partia da porta de comunicação entre a loja e a so-
breloja e ia dar na porta de entrada para o alpendre, que seo Rezende
manipulava seus medicamentos. Ali estavam sempre colocados, de modo
extremamente organizados, os objetos de que dispunha para a fabricação
artesanal de seus xaropes, licores, ungüentos, pomadas, géis etc.
Na ponta da mesa à esquerda ficava uma balancinha acompa-
nhada de seus respectivos pesos, alguns dos quais tão minúsculos que
dariam quase para determinar o peso da santa alminha de um colibri
recém-nascido. Depois, com uma ordem que àquela altura somente ele
sabia perceber, havia um instrumental laboratorial composto de mistu-
radores, pipetas e paletas de vários tamanhos, queimadores, tubos de
ensaio, medidores, filtros, placas de Petri, termômetros, densímetros e
tudo o mais de que necessitava para sua atividade química e alquimista.
Na prateleira, separada em caixinhas e saquinhos hermeticamente fe-
chados, o farmacêutico guardava as matérias-primas que, combinadas
entre si ou com outros produtos, eram responsáveis pelas maravilhas
terapêuticas com que se transformara num benfazejo taumaturgo.
Um pouco à direita e paralelamente à tenda dos milagres de
seo Rezende ficava um balcão que meu pai usava como mesa de escri-
tório. Aliás, todo o espaço existente atrás do balcão exercia essa fun-
ção. Nesse lugar ficava um armário onde se guardavam os documen-
tos mais importantes e definitivos da firma, bem como aqueles que
ali permaneceriam apenas temporariamente, antes de serem levados
para o livreiro — que era como se chamava, então, o responsável pela
escrituração fiscal.
Sobre o balcão ficava também a única máquina de escrever
existente na vila, uma Remington Rand verde, com tampa alta, com
que meu pai escrevia toda a sua correspondência. E já que falamos de
exclusividade, terminemos esta parte com mais uma: era ali naquele
balcão onde começavam a ser usados os exemplares da assinatura do
jornal Estado de Minas. Primeiramente sendo devorados por todos os
que se interessavam pela leitura dos fatos políticos (meu pai), dos cri-
mes famosos, como o do Sacopã, e das notícias de cantores e atrizes
(minha mãe), e das histórias em quadrinhos (eu), depois do quê eram
colocados à disposição dos caixeiros da loja como papel de embrulho
e dos usuários da latrina para cumprir fins menos nobres.
Serviçais e agregadas

As atividades e os que-fazeres dos empregados e serviçais da


domus permitiam que pudessem ser classificados como “as de casa”,
“os da loja” e “os do bar”. A governanta Eduarda viveu conosco apro-
ximadamente uma década e meia, ajudando a tomar conta da casa
e de nós, os meninos e as meninas. Começou a trabalhar ali ainda
jovem, quando morávamos na casa anterior. Aparentada do fazen-
deiro Sinhozinho, nosso vizinho de então, até a idade madura aquela
moça vivia sob a tutela oficiosa do irmão Antoniel. Além de algumas
atribuições de menor importância, cabia a Eduarda gerenciar as ati-
vidades de competência tanto das serviçais quanto das jovens agrega-
das nos momentos em que minha mãe se ausentava, já que, estando
presente, ela própria cuidava disso.
É claro que nem sempre Eduarda manteve a função de gover-
nanta. Quando, no final da década de 1940, ela veio trabalhar em
nossa casa, as atividades menos importantes também eram realiza-
das por ela. Até porque, além dela e de minha mãe, não havia mais
ninguém na casa para cumprir aquelas tarefas. E foi só depois, com
a complexificação da vida doméstica, quando se tornou necessária
a contratação de outras auxiliares, que ela veio a atingir o status de
intermediação entre os patrões e as serviçais.
Havia no entanto uma coisa da qual, pelo que me lembro, pelo
menos no início, minha mãe não aceitava que nenhuma serviçal se
encarregasse: torrar o café que era consumido diariamente em nos-
Memórias Catrumanas 101 Sidney Valadares Pimentel

sa casa. Para esse serviço melindroso e cheio de ciência, só Eduarda


servia. O café, em grãos verdoengos, vinha em sacas de sessenta qui-
los para ser comercializado na loja. Dali era levado, aos quilos, para
uma grande panela de ferro em que Eduarda, de posse de uma colher
de pau grossa, transformava inicialmente em pequenas metades de
bolinhas de carvão e depois em finíssimo e aromático pó, triturando-
as num pequeno moinho de ferro.

Com o tempo, a exclusividade da governanta foi superada,


quando veio para nossa cozinha uma máquina de torrar café adqui-
rida por meu pai, não sei bem se na loja de seu Ibrahim Jorge ou
na de Rachid Saad, comerciantes “turcos” de Formosa. A máquina
de torrar café era uma engenhoca metálica composta de uma bola
que girava sobre um eixo por meio de um longo cabo que terminava
numa pequena manivela. Ao ser acionada a manivela, a máquina re-
volvia os grãos de café no interior da bola, que ficava na chapa sobre
as labaredas do fogão de lenha.
Uma vez em que fomos de férias para a fazenda São Vicente,
minha mãe levou na tralha de cozinha essa máquina, o que causou
o maior espanto entre os catrumanos da vizinhança. Um desses, de-
nominado Antoninho do Cachimbo, ao ver a máquina roncando no
Memórias Catrumanas 102 Sidney Valadares Pimentel

fogão embarriado de D. Nina, a bondosa mulher do vaqueiro João de


Farias, exclamou espantado: “Minha Nossa Senhora, mas o mundo tá
é evoluído. Já inventaram até máquina de torrar café!”. Meu pai riu
da simplicidade do visitante e lembrou-lhe que aquilo não era nada,
pois fazia pouco tempo que um russo tinha subido num foguete, ao
que o Antoninho não deixou por menos: “Foquete é? Só se for fogue-
te de rabo duma égua russa”. E caiu na risada, dizendo que meu pai
estava era mangando dele.
A importância de Eduarda na casa podia ser aquilatada não so-
mente pelas tarefas que, preferencial ou exclusivamente, ela cumpria.
Sua notoriedade e proeminência advinham também de vários outros
indicadores, como os trajes que usava, o quarto em que dormia, o
espaço que tinha na casa para acomodar suas coisas, os pitacos que
lhe era permitido dar de vez em quando nos assuntos de minha mãe,
as horas de janela sem repreensão, a liberdade para namorar, a per-
missão para fazer quitandas que eram colocadas na loja para vender
e lhe proporcionavam uma alternativa fonte de renda etc.
Entre os pretendentes que participaram do beija-mão e se des-
dobraram em mesuras para conseguir cortejar Eduarda, lembro-me
especialmente de Ulisses Pereira dos Santos — o Negulisso, ou seo
Nego —, que tomava conta do bar, e de um vaqueiro da fazenda São
Vicente da Direita, chamado Manoel, com quem, depois que abando-
nou nossa domus, ela veio a se casar.
Entre as prerrogativas de Eduarda, uma de que tirou partido
especialmente foi fazer valer o direito de levar para sua companhia a
sobrinha e afilhada Sebastiana, de alcunha Dadá. Além de Dadá, fo-
ram morar conosco naquele período as meninas-moças Helena, filha
mais velha do vaqueiro João de Farias, e nossa prima Ilma, filha de
nosso tio Joaquim Pimentel.
Helena, Ilma e Dadá, fora dos horários das aulas no grupo es-
colar e das leituras e preparações das lições, os famosos para-casa,
ajudavam no cumprimento de certas tarefas domésticas. Devo acres-
centar a esse grupo nossa irmã Valdeci, que, embora mais velha do
que as outras, freqüentava os mesmos bancos da escola pública e
exercia as mesmas funções domésticas.
Naquele período, de acordo com a avaliação criteriosa de mi-
nha mãe, que não suportava beber água salobra, o precioso líquido
Memórias Catrumanas 103 Sidney Valadares Pimentel

consumido em casa provinha de duas fontes: da cisterna e do córrego


da Vereda. A água usada para abastecer o filtro e, conseqüentemente,
para também ser utilizada na composição dos medicamentos mani-
pulados por seo Rezende, vinha do córrego. Enquanto isso, toda a
água restante necessária à limpeza e à manutenção da vida na casa
vinha do poço, aberto e calçado a tijolos pelo vizinho Joaquinzão
Chocolateira.
A atividade operosa das abelhinhas agregadas à domus iniciava-
se bem cedo, quando partiam em grupos de duas e às vezes até de
três, com suas arrodilhas e suas latas, para buscar a água de beber. No
canto da praça, ao lado da casa de Antoninha Preta, existia uma passa-
gem por onde desciam as lavadeiras e as apanhadeiras de água na Ve-
reda. Forcejando para não escorregar na subida íngreme e quiabenta,
para não justificar o adágio que mandava ir “procurar sua arrodilha
onde quebrou seu pote”, as buscadeiras de água tinham de apressar-
se porque havia mais tarefas a cumprir antes de dar entrada triunfal-
mente, e com o sentimento do dever cumprido, na sala de aula.
A empreitada que tinham a seguir não demandava igual esforço
físico, mas elas próprias reconheciam que era mais rebaixante. Exis-
tiam nos cômodos da casa oito urinóis que deviam ser esvaziados na
privada e asseados com bucha e sabão para não permitir a criação de
limo. E como o número de “voluntárias” era muito grande, elas se
revezavam nas atividades, porque, além de encher o filtro e lavar os
penicos, ainda tinha a horta para ser molhada.
As atividades físicas àquela hora matinal funcionavam como
uma retomada da realidade da vila depois do tempo dedicado ao es-
forço intelectual que geralmente se iniciava às quatro horas da ma-
nhã para todos os menores e estudantes que coabitavam sob o mes-
mo teto. Nessa hora, cada um ou cada uma apanhava seu livro ou
seu caderno e uma lamparina e procurava um lugar onde pudesse
estudar sem atrapalhar ou sem ser atrapalhado pelos outros.
As serviçais compunham o quadro de servidoras assalariadas,
que, em razão de trabalharem em nossa casa, ali também tinham seu
quarto e sua cama. Naquele momento, não me lembro de existir na
vila um modo de assalariamento de serviçais domésticas como é pos-
sível encontrar nos dias de hoje em que a empregada trabalha numa
residência, mas dorme fora. Foram tantas as moças que ali traba-
Memórias Catrumanas 104 Sidney Valadares Pimentel

lharam como serviçais, que o nome é o que menos importa. Muitas


Marias e Joanas. Algumas Anas. Cada uma com suas particularidades
e seus atrativos.
Uma que vinha como retirante do sertão da Bahia e chegara à
vila sem conhecer ninguém. Mas, como sabia fazer uma buchada e
um sarapatel como poucas, foi contratada por minha mãe, dispensan-
do todas as referências. Outra, também baiana, comia colheradas de
uma conserva de pimentas malagueta e fidalga como se engolisse um
refrescante purê de amêndoas de baru. Havia uma que socava arroz
com duas mãos-de-pilão ao mesmo tempo, uma em cada manzorra.
Sem perder o compasso e o galeio, ou deixar que o cereal saltasse
pela boca guarnecida com o anel de um pano-de-prato encardido.
Uma outra, esteatopígica como uma tanajura. Esta serviu de
modelo para que alguém, não sei de fato quem, usasse seu nome para
colocar no caçula Randolfo — que também tinha as nádegas avanta-
jadas — o apelido de Domingas. Apelido que, para sua sorte, pegou
menos do que o de Caruncho. Mas recordo especialmente uma negra
baixa e troncuda, que carregava a alcunha de Anita Pezão. O apelido
fora conquistado em razão de que o seu pé esquerdo calçava dois
números a mais do que o direito. E como este último, portanto o
menor, de tamanho 45, já era excessivamente grande para o padrão
feminino, não havia na vila meios para conseguir um calçado que pu-
desse ser usado por ela em ocasiões especiais, notadamente durante
a romaria de Nossa Senhora da Pena. Então, num gesto benfazejo,
minha mãe tirava-lhe o molde de cada pé riscando o contorno com
um lápis sobre uma folha de papel de embrulho e entregava a tio
Alcides para que, numa de suas muitas viagens a Formosa, pedisse
a tio Mundim, então já estabelecido como sapateiro autônomo, que
transformasse aquele desenho numa chinela ou algo parecido, mila-
gre que era sempre recebido por Anita com muito contentamento.
Os caixeiros

Tanto na loja quanto no bar, acho que por influência de minha


mãe, não se aceitavam moças, somente rapazes. Uma vez, uma viúva
que se mudara recentemente para a vila pediu emprego para sua fi-
lha, uma morena bonita dos cabelos longos. Sabedor do pedido, meu
pai ficou de pensar. O longo silêncio que se seguiu era um indicador
mais do que evidente de que a resposta seria um alto e sonoro não.
Cansada de esperar, a viúva fez o mesmo pedido a Sinésio, proprietá-
rio da Casa Santana, nosso concorrente, cujo estabelecimento ficava
bem defronte à Casa Pimentel. A candidata foi aceita ali imediata-
mente. E por alguma motivação que a publicidade sabe muito bem
explicar, boa parcela dos fregueses passou a alisar mais os balcões
da loja de Sinésio. Ainda que fosse somente para estar mais perto da
atraente balconista.
Tenho divertidas recordações desse momento. Lembro-me dos
expedientes que os caixeiros da nossa loja usavam — mesmo eles,
os filhotes da concorrência, em nome de quem fora ela preterida
— para tirar uma casquinha. Um deles consistia em colocar peque-
nas tiras de cascas de laranja entre o maior-de-todos e o fura-bolo e
arremessá-las na direção da loja. Quando tinham sorte, seu minús-
culo bumerangue entrava pela porta da frente e saía pela do lado
descrevendo um arco e voltando para perto de onde se encontravam.
Somente para chamar a atenção da injustiçada caixeira. Outras vezes
podia suceder que a tira, mal-arremessada, colidisse com o rosto de
Memórias Catrumanas 106 Sidney Valadares Pimentel

algum circunspecto freguês, o que obrigava o arremessador a olhar


para o lado assobiando e disfarçar, para evitar o constrangimento de
uma descompostura.
Mas havia ainda outros expedientes que eles costumavam usar.
Como, por exemplo, escolher os momentos em que ela se encontra-
va sozinha na loja para ir trocar dinheiro. Mesmo sem a necessidade
premente daquilo. Mesmo sem o aperreio de ser obrigado a trocar
uma nota grande para cobrar uma caixa de fósforo ou uma merreca
de fumo de rolo. E então, como um rito, repetia-se sempre o mesmo
amasso. O mesmo gesto quase letárgico, incompatível com o estado
da alma. Em que a mão se demorava mais do que o necessário sobre
a palma da caixeira do concorrente, transação que era concluída não
como uma relação de troca, mas como uma excitação do espírito.
Entre os caixeiros que trabalharam na loja, minha memória
registra os nomes de Baltazar Fonseca Melo, Francisco Campos (Chi-
quito), seu irmão Sebastião Campos (Tião) e Geni, além de nosso
parente por parte de mãe, Joaquim de Oliveira Carvalho, que atendia
alternadamente na loja e no bar.
Que eu me lembre, meu pai nunca teve problemas com seus
balconistas. Nunca foi obrigado a dispensar nenhum por descon-
fiança. Viajava deixando o caixa nas mãos dos caixeiros que, somen-
te quando tinham alguma dúvida, pediam socorro a minha mãe.
Creio que a razão disto estava relacionada com o processo de es-
colha. Chiquito e Tião eram filhos de D. Filomena Campos, a D.
Fulô, dedicada mestra. Viúva — aparentada com D. Lourdes, esposa
do pescador Marcol, ambas de fala macia mas enérgica —, D. Fulô
criou seus quatro filhos, entre os quais uma moça, com o mesmo
carinho e sob os mesmos preceitos com que ensinava a seus alunos.
Ou vice-versa.
Chiquito ficou pouco tempo como caixeiro. Um dia, depois
de reunir suas poucas economias provenientes do pequeno salário
que ganhava na loja, pegou uma carona no caminhão da firma e foi
embora para Anápolis. Ali, depois de trabalhar como balconista em
farmácia, empregou-se como viajante de um laboratório farmacêuti-
co, emprego que só veio a deixar muitos anos depois quando decidiu
voltar para a então já emancipada cidade de Buritis. Agora, como far-
macêutico prático de um estabelecimento seu próprio. Algum tempo
Memórias Catrumanas 107 Sidney Valadares Pimentel

depois, Tião, o irmão mais novo, seguiu o mesmo caminho de ida e


de volta. Por essa mesma época, nosso parente Joaquim de Oliveira
Carvalho, apelidado Quinca de Orora, trabalhou aí também como
caixeiro da loja e do bar, antes de se casar com Iracema, a filha penúl-
tima de nosso tio Coteco, e se mudar para Brasília (Se eu por acaso
me esquecer, peço ao leitor que me lembre para eu não deixar de
falar do apreço e da preferência explícita que minha mãe tinha pelos
filhos desse seu irmão primogênito).
Porém, de longe, o mais importante entre todos os balconistas
que trabalharam na loja foi Baltazar, a quem algumas pessoas da vila
chamavam carinhosa e intimamente de seo Balta. Vinha de um dos
ramos da importante domus dos Fonseca Melo. Baltazar ficou órfão
com dez anos de idade e desde então dedicou-se à lida rural para aju-
dar a mãe a criar os irmãos Deca, Corina e Clarindo, na exploração
da propriedade deixada pelo pai. Com pouco mais de vinte anos, já
se empregara como caixeiro da Casa Pimentel, onde trabalharia até a
dissolução da sociedade por volta do ano de 1959.

Na loja, em razão de sua responsabilidade e extrema correção


em tudo que fazia, Baltazar assumiu uma função similar à que era
exercida por Eduarda na casa, isto é, a de gerente-geral. De tudo cui-
Memórias Catrumanas 108 Sidney Valadares Pimentel

dando com o maior esmero. Como se fosse o próprio dono. Baltazar


conhecia os bons e maus pagadores como a palma da mão. Sabia a
quem vender fiado. E sabia melhor ainda como cobrar dos retardatá-
rios sem deixá-los constrangidos.
Em meados daquela década, eu sempre o via às voltas com pro-
curações e certidões para a legalização definitiva, creio, das terras
herdadas do pai. Nessa época, um seu tio chamado Alexandrino que
sofria de tireomegalia, razão pela qual era apelidado de Xandu Papu-
do, vinha sempre à loja discutir com ele algumas questões relaciona-
das não sei bem se a ajustes de divisas, à subdivisão das terras, ou ao
julgamento do espólio de algum prístino parente de ambos. O certo
é que vezes sem conta Baltazar e seu tio Xandu se envolviam em
discussões acaloradas por causa de assuntos que eu naquele tempo
julgava serem pendengas relacionadas a disputas territoriais.
Certa vez Baltazar estava na loja quando entrou o Xandu mais
uma vez para saber se ele havia tomado umas providências carto-
riais pelas quais ficara responsável. Depois de tomar-lhe a bênção,
Baltazar disse-lhe, então, que havia ido ao cartório em Unaí e dado
entrada à petição, mas o documento demoraria a sair. E como de-
monstração de que havia cumprido realmente o que ficara em sua
responsabilidade, mostrou ao tio uma pequena folha de papel carim-
bada, dizendo: “Até, meu tio, eu trouxe o protocolo como compro-
vação do pedido. Se o senhor quiser, pode levar ele com o senhor pra
provar que nós fizemos nossa parte. O senhor fica com o protocolo
e quando for pra pegar o documento, me devolve”. Mas em vez de
pegar o recibo, Xandu sapecou na cara do sobrinho: “Pototó, poto-
tó. O que é que eu vou fazer com pototó, Batazalo?” E saiu pisando
duro rua acima.
Por essa época, era costume entre as famílias na vila, além
do batismo e da crisma, levar os filhos a uma terceira cerimônia de
confirmação chamada consagração. Na onda dessa prática religiosa,
talvez para me tornar um menino menos endiabrado, minha mãe
arranjou para que Baltazar — que nessa época já era tratado qua-
se como parente, tendo inclusive suas acomodações em nossa casa
— me consagrasse como seu afilhado. E assim ficou sendo. Ainda
que ela e Baltazar não se tratassem por compadres, dali em diante ele
era meu padrinho e como tal eu o tratava. Tenho o maior apreço e o
Memórias Catrumanas 109 Sidney Valadares Pimentel

maior respeito por esse grande homem — nos dois sentidos — que
depois, como político, prestou significativos serviços à nossa terra,
ainda que nem sempre tenha recebido o devido reconhecimento.
O puro e o impuro

Além dos caixeiros, atendia no mesmo espaço reservado à loja,


embora assumindo um papel destacado, diferenciado e mais impor-
tante do que qualquer um dos balconistas, o farmacêutico com quem
o leitor já travou conhecimento e que, desde meados da década an-
terior, passara a viver em nossa casa. Seo Rezende não era, de fato,
um empregado. Ele se encontrava ali na vila por livre e espontânea
vontade. Nunca se soube com certeza vindo de onde. Soube-se de-
pois que vivera algum tempo em Varginha, onde trabalhara como
farmacêutico prático. Mas Varginha não era bem ali. Não se encon-
trava para os lados do sertão sanfranciscano, de onde, de acordo com
um dos seus mitos de origem, surgira montado em seu alvo ginete.
Tampouco estava na direção das Cabeceiras, onde, de acordo com
outro mito de origem, fora encontrado por uma pessoa da vila e tra-
zido para ser apresentado a meu pai.
Um certo Viana, subdelegado da Barra da Vaca, afirmou certa
vez que, em seu périplo, seo Rezende passara por lá. Tendo sido ele,
Viana, quem sugeriu para que ele procurasse o latoeiro Nezim Pé-de-
Chumbo na vila. Quando ali chegara montado em seu garboso Titã. Já
o também pernambucano Cassimiro, o filho mais velho de seo Anjo,
afirma ter sido ele quem trouxera o velho farmacêutico decretado
para trabalhar na vila. De modo que durante todo o tempo em que
viveu em nossa casa, a existência de seo Rezende foi uma verdadeira
incógnita. De sua obscura e pregressa vida só contou superficialida-
Memórias Catrumanas 111 Sidney Valadares Pimentel

des. Salvo nos banhos no Urucuia e na Vereda, não me recordo de tê-lo


visto uma única vez sequer despido das formalidades de terno, gravata
e colete, trespassado na frente por uma correntinha de ouro. Era um
exímio nadador. Nisso, como em vários outros aspectos, demonstrava
ser possuidor de uma cultura e uma educação sobejamente diversas da
que éramos portadores nós, os catrumanos do lugar.

Como é costume exemplificar-se nas discussões sobre as re-


lações entre teoria e prática, existem duas técnicas para aprender a
nadar. Uma delas consiste em discorrer sobre o processo de deslo-
camento dos corpos numa massa líquida. O outro, mais prático, em
apenas jogar o aprendiz dentro da água para que ele se vire. Era esse
segundo processo que costumávamos seguir na vila. No máximo,
aderindo a expedientes mágico-imitativos como o que corria entre
os meninos e as meninas, segundo o qual, engolindo-se um lambari
vivo, logo-logo o aprendiz estaria nadando maravilhosamente bem.
Nessa onda, muitos engoliram verdadeiros cardumes de piabas que,
Memórias Catrumanas 112 Sidney Valadares Pimentel

debatendo-se entre nossos dedos em busca da liberdade, eram ra-


pidamente lançadas goela abaixo, deixando como lembrança de sua
passagem pela terra apenas um leve queimor no estômago. Mas ne-
nhum resultado prático. Aliás, desde que me entendo por gente, esse
processo já fazia parte da cultura e do saber catrumanos. Tanto assim
que já fora até captado pela voz e pelos acordes da pé-de-bode do
tocador Vicente Borló. Lembro-me de ouvi-lo puxar o fole da sanfo-
na oito-baixos na saleta da pensão de D. Lió e esgüelar para os que
dançavam:

Engoli cem lambaris


pru mode aprendê nadá.
Ai ai ai roxa morena
Dessa vez eu chego lá.

Ao contrário do que ocorria conosco, ainda moço seo Rezende


aprendera técnicas com base no desenvolvimento da natação como
prática esportiva. Sabia nadar em vários estilos, mas o seu preferido
era o crawl que, em nossa santa ignorância, denominávamos “nadar
de braçada”. Seu horário preferido para o banho era bem cedo da
manhã. De modo que às vezes saía e ainda nos deixava dormindo.
A estreiteza da Vereda às vezes tolhia sua vontade de exercitar-
se. Mas quando ia para o Urucuia tinha o hábito de nadar até mais
de duzentos metros sem descanso. Costumava descer pelo trilho que
passava ao lado da igreja velha e ia dar no porto onde ficava a canoa
do velho Pio Passador. Naquele local havia uma horta, cultivada não
me recordo por quem. Na cerca de gravetos dessa horta, seo Rezende
dependurava o terno que havia trocado providencialmente por um
calção de banho e caía na água sem se dar pela frieza àquela hora
matinal. Em razão desse costume que cultivou durante muito tem-
po, era tido pela população da vila como um sujeito meio esquisitão.
Mas não havia esquisitice nenhuma.
Chegara à vila quase somente com a roupa do corpo. Os bol-
sos, completamente vazios. A única coisa que possuía de valor era
o saber farmacêutico. E que não era pequeno. Comparado à gente
prascóvia do lugar, era um verdadeiro sábio. Além da língua pátria,
lia e falava com desempeno o francês. Quando chegara, em meados
Memórias Catrumanas 113 Sidney Valadares Pimentel

da década de 1940, além de algumas mudas de roupa de baixo e de


cima, trazia também, num desbotado tilim de lona gasta e dois alfor-
jes, alguns manuais terapêuticos publicados no Brasil e na França,
que ele consultava diariamente para escrever suas receitas ou mani-
pular as tisanas que prescrevia. Verdadeiros vade-mécuns do saber
farmacológico. Hoje não é mais possível afirmar quais ele trouxe na
chegada e quais adquiriu posteriormente. O certo é que no final da
vida, ao partir com o filho para a cidade de Passos de Minas, deixou
umas duas dezenas de manuais de farmacologia.
Um desses livros, pequeno e grosso, de capa verde, era o For-
mulaire thérapeutique, de 1925, de autoria de M. M. Lyon & Loiseau,
publicado pela casa editorial parisiense Masson et Cie. O outro, o
Guide-formulaire de thérapeutique, era uma brochura de capa verme-
lha um pouco maior, escrito por V. Herzen e publicado em 1914, em
oitava edição, pela livraria J.-B. Baillière et Fils, também de Paris.
Havia também o Formulaire magistral de thérapeutique clinique et de
pharmacologie escrito por Odilon Martin e publicado também pela
J.-B. Baillière et Fils em 1915, com prefácio do Dr. Grasset, professor
emérito da Universidade de Montpellier.
Entre os manuais publicados em nossa terra, ele deixou a pri-
meira edição do pequeno Pharmacóphilo, de 1925, de autoria do dr.
Kenio Drummond, “reunião de formulas usuaes em pharmacia e de
summidades medicas” (sic). Por último, havia um exemplar sem capa
e sem dados de publicação de um conjunto de recomendações te-
rapêuticas publicadas pelos Laboratórios Raul Leite e que, a tomar
pelos sinais de manuseio e pelas pequenas anotações à margem, de-
via ser documento de consulta obrigatória de nosso bom terapeuta.
De posse dessa bibliografia que para nós, vilões, era como se fosse
lavrada em incompreensível latinório, o velho pôs fim a incontáveis
enfermidades de crianças e adultos.
Como disse, seo Rezende era detentor de vastos conhecimen-
tos teóricos e práticos. Tanto sobre a sintomatologia das doenças
endêmicas mais comuns quanto sobre o processo de sua cura me-
diante a manipulação de substâncias, ou sobre a recomendação de
medicamentos que, atendendo a sua sugestão, agora podiam ser fa-
cilmente adquiridos ali mesmo na Casa Pimentel. Talvez em razão
do instrumental de que o farmacêutico se cercara no dia-a-dia, sua
Memórias Catrumanas 114 Sidney Valadares Pimentel

interferência curativa agora era lida pela população da vila como uma
prática que estava mais de acordo com os preceitos médicos do que as
intervenções dos curadores e raizeiros. Notadamente pelas pessoas
mais intelectualizadas que, de certo modo, exerciam liderança sobre
as demais. Os líquidos e pozinhos, sais e bases, solventes e emolien-
tes, formas e bacias, balancinhas e pesos, bicos queimadores, pipetas,
bisturis, seringuinhas e seringonas, toalhas, estojos de ferver e mui-
tas outras coisas compunham o instrumental com que seo Rezende
se tornara o terror de todos, mas especialmente dos pequenos.
Lembro-me, a propósito, de um episódio ocorrido quando seo
Olivério levou sua filha à loja para se tratar de uma pereba que se
zangara. Seo Olivério era um compadre de nossos pais que vivia de
agregação no sítio da Extrema. Algum tempo depois, essa sua filha,
de cujo nome não me recordo, foi tratada da ingestão de soda cáusti-
ca. Não por tentativa de suicídio, mas por pura malineza. Queria ver
que gosto que aquelas escaminhas prateadas tinham, disse. Recordo
ainda a labuta de seo Rezende com a garota, obrigando-a a engolir
colheradas e mais colheradas de uma pasta de polvilho e água, simi-
lar em tudo ao grude que se faz para colar as bandeirinhas nas festas
juninas. Pasta a que ele próprio adicionara uma porção de certo pó
que tinha a coloração da genciana. Salvou-se a menina. Muitos anos
depois, vim a reencontrá-la. Relembrando o fato, disse-me ela que a
única seqüela que ficara da peripécia era um queimor no esôfago, o
que a obrigava a sempre tomar suas refeições entremeadas de goles
de água fria.
Uma outra intervenção que deu muito o que falar nas redonde-
zas, e foi acrescentando cada vez mais fama ao nome de seo Rezende
como boticário que operava verdadeiros milagres em suas curas, foi
a que envolveu o caso de um certo Wilson da Candinha, morador de
uma região que a população chamava Detrás da Serra. Esse Wilson
era um pequeno lavrador que costumava complementar sua dieta
doméstica com a carne de caça conseguida na espera de mateiros,
catingueiros e outros “eiros” cervídeos da região.
Nesta oportunidade, procurando tirar proveito das áureas flo-
radas dos pequizeiros como estratégia para atração dos veados, e
inocente de tudo da infeliz surpresa que o aguardava, Wilson passou
a mão na carabina e foi para sua espera. Pois não foi nada não. O
Memórias Catrumanas 115 Sidney Valadares Pimentel

caçador subiu num pequizeiro bem florido onde sabia que os cervi-
nos estavam vindo comer a florada, armou a rede e sentou-se nela
para puxar a arma que previamente amarrara numa corda fina mas
resistente. Dependurou a pesada carabina numa galha fina, que não
suportou o peso e caiu. Refestelado bem ancho de si na rede, Wilson
só escutou um barulho surdo que fez tuf, e ele pensou lá com seus bo-
tões: “Uai, essa bala pegou em quê?”. Quando ele menos esperava, a
rede foi-se tingindo de sangue. A bala entrou nos quartos, atrás, e saiu
na virilha. Bala 44. Apavorados, os parentes pegaram o Wilson e trou-
xeram para a vila. Pois o leitor não há de crer que, abaixo de Deus, foi
seo Rezende que salvou o caçador daquele acidente? Naquele início
dos anos 50 ainda não existia Brasília e não havia como recambiar o
corpo do acidentado para Formosa ou para Anápolis. E foi à custa de
ir tenteando com uma seringuinha de lavagem interna, além da admi-
nistração de poderosas poções preparadas com produtos de farmácia,
aliados a raízes e ramos que eram apanhados no mato pela negra Sati-
ra, sua informante e fornecedora dos milagres da biodiversidade, que
o farmacêutico colocou o Wilson são de novo.
Mas voltando à vaca fria, eu estava contando sobre o dia em
que seo Olivério levou a menina para que o velho a tratasse de uma
ferida que se infeccionara. Ao ver o tamanho da seringa com a qual
o farmacêutico se preparava para aplicar uma injeção na garota, seu
Olivério disse naquele seu maneirismo catrumano: “Mas sô Rogeno,
c’uma aguia desse tamano a menina não regeste nem pregeste”.
Seo Rezende era um homem sério, cumpridor de seus deveres,
fleumático. Sua única diversão era a cura. Não ria, pouco sorria. Uma
única vez peguei-o, a contrapelo de sua personalidade, fazendo um
chiste. Mané Macaco — irmão de João Macaco, negrinho metido a
esperto que trabalhava como ajudante de meu pai e cuidava do cava-
lo Titã pertencente ao farmacêutico — procurou-o para se curar de
uma “doença de rua” que transformara seu baixo corporal em inter-
mitente biqueira. João Macaco, que passava as horas de folga ali pela
loja, de bobeira, esperando que alguém o enviasse a cumprir algum
mandado, ao ver o irmão que saía da sobreloja precedido pelo far-
macêutico, tartamudeou: “Tttttaca uma Bbbbbenzetacil nesse nego
pr’ele deixá de sê ssssssafado, sssssô Rezende”. Seo Rezende parou,
olhou para o negrinho e disse: “João, aprende uma coisa: Benzetacil
Memórias Catrumanas 116 Sidney Valadares Pimentel

só pode ser aplicado em criança”. O João: “Uai é, e pppppor quê?” Ao


que o farmacêutico, sem perder a fleuma, respondeu a um estupefato
negrinho: “Porque gente grande ninguém dá conta de segurar”. E di-
rigiu-se para o canto da loja onde ficavam os medicamentos, de onde,
sob o olhar aflito de Mané Macaco, trouxe exatamente uma ampola
da dolorida injeção “receitada” pelo irmão.
A menos que não fizesse bom tempo, o ritmo de vida de seo
Rezende era o mesmo. Levantava-se bem cedo e descia para a Vereda
ou para o Urucuia para o banho matinal. De volta do rio, tomava o
seu café com quitandas, apanhava o guarda-sol e saía para a visita da
manhã a todos e todas as pacientes que estivessem sob os seus cuida-
dos. Sua prática era a do “médico de família”, modelo que ficou fa-
moso na medicina dos séculos XIX e XX. Conduzia debaixo do braço
o instrumental necessário às consultas, auscultações e intervenções:
o termômetro, as seringas, o garrote de borracha.
Conhecedoras do que estava por vir, as crianças abriam o bué
logo à entrada daquele sujeito alto, formal, portando terno e chapéu
Ramenzoni escuro. As mães corriam a oferecer uma cadeira e, de-
pendendo das posses, um cafezinho que o farmacêutico costumava
aceitar sem se fazer de rogado. Permanecia ali apenas o tempo sufi-
ciente para o atendimento. Sem pressa ou delonga a mais do que o
necessário. De modo que só voltava para casa depois de visitar todos
os pacientes e cuidar deles com o maior desvelo.
Não me recordo de tê-lo visto discutindo com qualquer pacien-
te questões relacionadas com o preço de seu atendimento uma única
vez. Tudo sendo feito pelo sistema de contabilidade da loja, com base
em duas planilhas de custo diferentes. Quando se tratava de medica-
mento manipulado, o próprio farmacêutico apontava os pesos e volu-
mes dos produtos químicos utilizados, bem como o seu custo quando
da aquisição pela firma. Sendo remédios fabricados em laboratório,
a planilha de cálculo era a mesma para os demais produtos da loja.
Tanto num como no outro caso, quando o paciente ou o responsável
por ele ia pagar a conta, os caixeiros sempre calculavam uma percen-
tagem correspondente ao atendimento por parte do farmacêutico.
Nunca é demasiado lembrar que para a gente de nossa casa, ou
da casa de nossos tios, por uma espécie de reciprocidade tácita, seu
trabalho não custava nada. O mesmo no tocante à gente mais neces-
Memórias Catrumanas 117 Sidney Valadares Pimentel

sitada da vila. Uma entrega tão desinteressadamente dadivosa como


aquela, sem dúvida, haveria de trazer como contraprestação algo que
estivesse ao alcance dos mais pobres e desvalidos. Pois o eximir-se do
recebimento logo traria como conseqüência uma chuva de pequenas
contradádivas que os beneficiados faziam chegar a nossa casa sob a
forma de dúzias de ovos, galinhas e frangos, patos, pernis de porco,
ou, simplesmente, meia dúzia de laranjas, limas e cidras, um pé de
alface ou um palmito de guariroba — dependendo, em cada caso, das
posses do ofertante.
Se, como calculava minha mãe, seo Rezende foi-se embora de
nossa casa com setenta e três anos mais ou menos, devemos admitir
que ele teria nascido por volta do ano de 1885, admitindo-se que co-
nosco morou até 1958, quando, acometido do câncer intestinal que
o matou, foi levado pelo filho subitamente descoberto para junto de
seus familiares em Passos de Minas.
Hoje, com as informações superficiais de que disponho a respei-
to de sua formação profissional, não há como concluir se ele foi sub-
metido a alguma preparação acadêmica, ainda que incompleta, em
medicina (como certa vez confessou a meu pai), ou em farmacologia
(como era possível deduzir de suas intervenções junto à população
da vila). Ou até mesmo em nenhuma, nesse caso tendo sido subme-
tido a mero treinamento em algum estabelecimento farmacêutico. E
se auto-intitulado, a partir de então, farmacêutico prático.
Seja qual for a verdade a respeito de sua formação na área de
saúde, seo Rezende conservava uma larga influência do modo de
pensar e exercer a cura nos séculos XVIII e XIX. Lembremos, para
compreender melhor as atitudes de nosso amigo farmacêutico, que
ele era um legítimo seguidor de Hipócrates, pensador que relacio-
nava a etiologia das doenças com o meio ambiente. Seus seguidores
setecentistas, denominados neo-hipocráticos, tomaram o mesmo
caminho. A medicina que propuseram foi chamada pelo filósofo e
historiador francês Michel Foucault de “medicina das coisas”, por
oposição à “medicina dos homens”, nos trabalhos que este autor es-
creveu a respeito da política da saúde no século XVIII. O caminho
traçado até o pensamento de Hipócrates permitiu o surgimento de
várias doutrinas, teorias e ideologias sobre a origem das doenças e os
meios de combatê-las. Entre essas concepções, uma das mais impor-
Memórias Catrumanas 118 Sidney Valadares Pimentel

tantes foi a “teoria miasmática”, de acordo com a qual a causa mais


fundamental das doenças era a presença de miasmas, produtos de
emanações nocivas que corrompiam o ambiente. Daí, a necessidade
de produzir a desinfecção de todos os elementos naturais para evitar
a ação deletéria sobre os corpos e a saúde dos homens.
Seo Rezende era seguidor desse tipo de orientação que envol-
via as noções de saúde e de doença. Os que conviveram com ele ao
longo da década e meia que viveu na vila ainda hão de recordar-se
com que freqüência ele fazia uso do álcool para, segundo afirmava,
desinfetar as mãos da presença dos micróbios que são trazidos até
nós pelo ar que nos rodeia. Não bastava, para tanto, o uso de sabone-
tes, do sabão de Marselha e similares. Mas, apesar disso e um tanto
em desconformidade com as tendências que seguiam as orientações
de Pasteur, ele depositava uma confiança quase cega na capacidade
que tinha o álcool de expurgar os elementos danosos trazidos pelo ar
do ambiente e pelo contato com os objetos e as pessoas. Em casa, a
todo instante servia-se do litro de álcool que tinha sempre ao alcance
de suas magras mãos. Na rua, quando em visita a seus doentes, trazia
um frasco supostamente destinado às injeções, mas de fato usado
para assear as mãos.
Quase cinqüenta anos depois da morte de seo Rezende, quan-
do saí em busca de informações a respeito de sua descendência na
cidade mineira de Passos e na paulista de Ribeirão Preto, ao avistar-
me nesta última com sua nora e indagar-lhe que imagem do velho
farmacêutico permanecera em sua memória durante o curto tempo
em que conviveram, disse-me ela: “O que mais lembro é da mania
que ele tinha de lavar as mãos com álcool a todo instante”.
Como conseqüência da adesão à teoria miasmática, seo Re-
zende encasquetou um dia com a idéia de que o córrego da Vereda,
que corria ali ao lado da vila, indo desaguar no Urucuia, era uma
fonte mais do que provável, segura, de insalubridade para a popu-
lação. Devendo, portanto, ser limpada dos obstáculos de natureza
principalmente vegetais que impediam o fluxo livre das águas, a fim
de extirpar-se tal ameaça. Naquele momento, devido à distância que
separava o córrego das ruas mais próximas e à inexistência de rede
coletora de esgotos, não havia detritos lançados à água que justificas-
sem uma ação profilática desse teor.
Memórias Catrumanas 119 Sidney Valadares Pimentel

Ali ficavam o “banheiro dos homens” e o “banheiro das mulhe-


res”. Aproveitando que a própria população definira locais apropria-
dos onde homens e mulheres, separadamente, deveriam fazer seus
asseios corporais, seo Rezende decidiu dar uma mãozinha no sentido
de tornar o sítio masculino mais apropriado. Encomendou então do
marceneiro João Branco uma escada em madeira resistente e encar-
regou o moleque João Macaco de assentá-la dentro da água, à beira
do barranco. Ao fio de horas, sob a supervisão do próprio farmacêu-
tico, o João Macaco escavou, firmou, fixou a escada tenteando para
que ficasse na melhor posição e imune às traquinagens dos moleques
que freqüentavam diariamente o banheiro para se lavar ou brincar de
pique. Ante tamanha azáfama do farmacêutico, a costureira D. Ne-
grinha, que naquela época morava com o marido e os filhos defronte
de nossa casa, perguntou a meu pai por que razão ele ia todo dia
mexer na Vereda, tendo recebido deste, como resposta, uma espécie
de adágio buscado em seu repertório particular de provérbios serta-
nejos: “Dona Negrinha, a senhora não sabe que quem não tem o que
fazer faz colher de pau e borda o cabo?”.
Naquele momento, os banheiros de rios eram uma mão-na-
roda e a solução mais eficaz encontrada pela população para seus
banhos diários, já que poucas casas, além da nossa e da de nosso tio
Alcides, possuíam um arranjo, com adaptação em balde de alumínio,
suspenso como improvisado pingente por corda e roldana, destinado
ao asseio corporal; ali as mulheres pegavam água para servir em casa
e lavavam a roupa suja (nos sentidos literal e metafórico); ali a mo-
lecada brincava de pique; ali eram pescados os piaus jejos e patacas,
traíras médias e uma miuçalha que integravam a dieta da população.
Tudo ajustado às pequenas necessidades do dia-a-dia. Nada a me-
recer a ação que, em benefício da saúde e atendendo à sugestão de
nosso bom samaritano, foi perpetrada contra a Vereda.
Mas como tudo na vida, nada e ninguém é perfeito. Tanto que
um dia, depois de ouvir as justificativas miasmáticas de seo Rezen-
de, meu pai, creio que pagando de seu próprio bolso, contratou uma
pessoa pra fazer a referida limpeza. E por uma ironia do destino, o
encarregado do “serviço sujo”, que nos dias de hoje seria tomado
como um crime ambiental inafiançável, foi exatamente seo Marcol,
o homem que melhor entendia o sistema ecológico das microbacias
Memórias Catrumanas 120 Sidney Valadares Pimentel

da região, já que, conforme se dizia, conhecia os rios como a palma


da mão.
O resultado não se fez esperar. Desbarrancado e sujeito ao
assoreamento produzido pela escavação, a Vereda, de água limpa e
levemente esverdeada, se transformou numa vagarosa corrente de
água turva e sem vida. Ou, utilizando um vocabulário positivista, ao
gosto dos adeptos da teoria miasmática, num paciente terminal.
Como penso já ter dito, em nossa domus, de mamando a cadu-
cando, todas as pessoas, e cada uma de modo muito especial, trata-
vam o velho com o respeito, a deferência e a cerimônia que ele fazia
por merecer. Nunca ninguém de nossa casa ou de qualquer uma das
demais casas da vila teve a audácia e o atrevimento, já não digo de
altercar, mas simplesmente de demonstrar um isto assim de discor-
dância a qualquer decisão ou afirmação sua. No limite, frente a uma
demanda considerada mais descabida, meu pai ia empurrando com
a barriga para se decidir a agir deste ou daquele modo, como se es-
tivesse a aguardar uma melhor oportunidade para tornar realidade
os pleitos do farmacêutico. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando
este procurou mostrar a situação periclitante em que se encontrava
a latrina velha existente em nossa casa, já prestes a desbarrancar. Es-
perando concluir a negociação com o abridor de cisternas e privadas
Joaquinzão Chocolateira, de modo a ampliar seu ganho na transação
o máximo que pudesse, quando pensava que não, lá estava a latrina
no chão, quase causando um sério acidente com uma das moças que
moravam em nossa casa.
Algumas pessoas, em especial, cortavam o sete com seo Rezen-
de. Entre estas, o serviçal João Macaco e eu próprio. João Macaco era
um negrinho esperto e inteligente que, desde “rapaz novo”, meu pai
tomara a seu serviço. Em nossa casa, o João fazia de tudo. Alimentava
e dava de beber aos capados do chiqueiro, levava e buscava animais de
montaria no pasto, rachava lenha e botava pra dentro para não pegar
chuva, levava recados e buscava carne no açougue, fazia entregas, ia
buscar água de servir na borracha e se encarregava de tudo o mais que
competia a um rapazinho que não se especializara em nenhuma pro-
fissão. E que, além de tudo, por um mal dos pecados, teve a sorte ou a
falta de sorte de cumprir alguns mandados do velho farmacêutico.
Desde que chegou à vila, seo Rezende encarregou o João de
Memórias Catrumanas 121 Sidney Valadares Pimentel

cuidar de seu luxento cavalo. Ia buscá-lo no pasto do notário Pedro


Pereira da Silva, ali mesmo ao lado da vila, e o levava à Vereda para
o banho e a ração de rapadura. Nas primeiras vezes, o velho o acom-
panhava, instruindo-o a respeito da melhor forma de fazer a lavagem
e a esfregação. Ali ordenava que ele o levasse até uma parte mais
funda do córrego, não apenas para permitir uma escovação e lava-
gem mais caprichadas, como também para evitar que o moleque fos-
se surpreendido com um coice. Após o banho, o dono fazia com que
o ajudante puxasse o cavalo para a parte superior do barranco onde
havia um verdejante tapete de grama, para fazer a escovação final. E
aí é que vinha a parte melhor para o matungo quando, como recom-
pensa, seo Rezende retirava de um embornal pedaços de rapadura e
o alimentava. Depois de um certo tempo em que esses procedimen-
tos eram cumpridos à risca semanalmente pelos dois, o farmacêutico
entregou a tarefa ao tirocínio do João.
Pois não foi nada, não. Agora senhor de si e crente de que o ve-
lho nunca tomaria conhecimento do abuso, o ajudante deu de esme-
rilar o cavalo. Montado em pêlo e tendo como arreata de contenção
apenas o cabresto em cuja ponteira dava uma volta para passar pela
boca do animal, saía o João na mais desabalada carreira pelo pasto,
ora galopando, ora esquipando, antes de levar a montaria para o nun-
ca tão merecido banho. E com o passar do tempo e a crença na im-
punidade, foi o negrinho avançando mais e mais, até não se importar
mais nem com o banho, nem com o repasto pós-asseio, consumindo
ele próprio a rapadura que o velho lhe entregava.
Mas nada como um dia depois do outro. Um dia, nunca se sou-
be se advertido por alguém, ou se desconfiando ele próprio da trapa-
ça do João, seo Rezende resolveu segui-lo de longe para certificar-se
com seus próprios olhos em que medida suas orientações vinham
sendo seguidas à risca. Qual não foi, então, sua surpresa quando, ao
final de tudo, encontrou o ajudante refestelado à sombra de uma ár-
vore mastigando os nacos de rapadura, enquanto seu estimado Titã,
suado e arquejante, espiava o negrinho com uns olhos pidões a meia
distância. Foi esta a primeira vez em que seo Rezende tratou o João
por mentecapto, termo desconhecido até então ali na vila, e que de
então em diante foi usado repetidas vezes por todos como qualifica-
tivo de nosso prestativo ajudante.
Memórias Catrumanas 122 Sidney Valadares Pimentel

Se com o João Macaco a coisa havia chegado a esse nível, comi-


go o destampatório do velho não era menor.
Em nossa casa, meu irmão Randolfo era duplamente protegi-
do: de um lado, pelos benefícios concedidos pela ideologia da ultimo-
genitura que ali na vila sertaneja funcionava muito bem, e, do outro,
por ser afilhado do farmacêutico. Randolfo era um ano e sete meses
mais novo do que eu e, como caçula, vivia aquela situação ambígua
entre a proteção estrutural e o castigo dos mais velhos. Principal-
mente de quem estava logo acima na escala de idade — isto é, eu.
As pequenas disputas por brinquedos e outros objetos de conquista
infantis faziam com que, pelo menos durante algum tempo, o caçula
levasse a pior, momento em que era, de algum modo, protegido con-
tra os maiores.
Principalmente seo Rezende exercia esse papel de escudo em
seu benefício. A intercessão do velho tomando as dores do afilhado
rebatia em todos, inclusive em nossos pais, mas em especial sobre
mim. Eu era o Bestão e o Cai-Cai. Creio que o primeiro epíteto
fora merecidamente colocado porque ainda cedo eu teria ampliado
meu vocabulário com base num imaginário “Vocabulário Popular
Infanto-Juvenil das Excrescências, Saliências e Reentrâncias do Cor-
po Humano”, como expressão do baixo corporal e do amplo bes-
teirol que corria a vila como notícia ruim. E por saber que eu era
um dos adeptos e um dos principais responsáveis pela disseminação
desse tipo de informação, nosso bom farmacêutico ficava em minha
cola como um agente do bem contra o mal.
Ainda recentemente, tratando dessa questão com um pedrei-
ro extremamente competente que inúmeras vezes foi chamado para
fazer reparos ou novas construções para meu pai, lembrou-se ele de
duas tiradas engraçadas ocorridas entre mim e seo Rezende. Recor-
dou-me ele de que um certo dia eu estava fazendo as tarefas escolares
no balcão onde ficava o escritório de meu pai, na sobreloja, quando
de repente comecei a cantar baixinho uma música de sucesso naque-
la época:

Eu tava na peneira
Eu tava peneirando...
Memórias Catrumanas 123 Sidney Valadares Pimentel

... quando fui interrompido pelo velho com uma paródia in-
ventada ali na hora:

Eu tava na besteira
Eu tava era bestando...

Em outra oportunidade, lembrou o mesmo pedreiro que ele


estava a fazer reparos numa parede de tijolos perto do barracão onde
funcionava a máquina de arroz, enquanto eu, com a idade aproxima-
da de uns dez anos, brincava ao lado de fazer casinha com os tijolos
empilhados. Nesse momento, surgiu o velho pela escada de pedra ao
lado da casa e se dirigiu, alto, ereto, impassível, para a latrina. Afirma
ele que eu aguardei até que a porta da privada se fechasse e então,
olhando para o servente que o ajudava nos reparos e que acabara de
acender o seu palheiro, cantei baixinho:

Ai seo Rezende
O senhor pita mas não ‘cende.

Em tudo, a minha cantiga era uma legítima expressão do absur-


do. Em primeiro lugar porque o farmacêutico não cultivava o vício
do tabagismo, procurando sempre incentivar os adeptos a abando-
narem o consumo do fumo em suas diversas modalidades. Seria, en-
tão, como se eu procurasse impor-lhe algo que, de modo algum, ele
acataria. E em segundo lugar, como expressa a parte final do segundo
verso que começa com a adversativa, seria como impor-lhe o contra-
senso de um consumo improdutivo. Só Deus sabe o sentido que eu
quis atribuir à minha cantiga naquele momento.
Entre os tantos apelidos que recebi ao longo da infância e da ju-
ventude, o de Cai-Cai também foi colocado em mim por seo Rezende
e estava relacionado a uma certa fragilidade dos membros inferiores,
o que me fazia andar com os joelhos esfolados de tanta queda. Nes-
se ponto, merece ser dada uma explicação complementar. Enquanto
criança, salvo pelo fato de não manifestar nenhuma deficiência de
atenção e aprendizagem, eu poderia muito bem passar, aos olhos de
um leigo, por alguém dotado de hiperatividade. Buliçoso e agitado,
eu andava correndo para todo lado, provocando acidentes com as
Memórias Catrumanas 124 Sidney Valadares Pimentel

coisas em volta e com meu próprio corpo. Minha mãe, para preve-
nir-se contra desatinos, deu para colocar-me inicialmente de casti-
go e, posteriormente, para manter-me amarrado por uma pequena
cordinha ao pé da mesa em que se exercitava com suas costuras.
Mas excetuando a agitação, eu era um menino quase normal. Dife-
rençava-me dos outros colegas por ser mais inteligente e mais vivo
— sem quaisquer laivos de genialidade —, ou, como se dizia então,
menos “rudo”.
Luz, sorvetes e picolés

Entre as maravilhas da modernidade trazidas pela firma à vila,


a que causou maiores impacto e espanto foi a aquisição de um con-
junto gerador. Impulsionado inicialmente por um motor diesel de 12
cavalos e depois — verificando-se a insuficiência deste para a (quase)
insensatez que os sócios tinham em mente — por outro que tinha o
dobro da potência, esse gerador foi usado para fornecer “luz elétri-
ca” às residências e para fazer funcionar o bar e a máquina de bene-
ficiar arroz.
Nem todos tinham idéia mais ou menos precisa a respeito das
possibilidades de uso da novidade. Muitos dos proprietários de re-
sidências que correram logo a pedir a instalação da eletricidade em
seus domínios o fizeram mais para não perder o bonde da história
e não passarem por atrasados, do que por convicção a respeito das
vantagens da inovação. Não era, certamente, por outro motivo que a
idéia mais ampla de “eletricidade” fora substituída pela de “luz elé-
trica”, já que não se reconhecia no caro invento mais do que a possi-
bilidade de substituição e aposentadoria das tradicionais lamparinas
e dos lampiões, candeeiros e torcidas de cera.
Não foram poucas as despesas envolvidas na empreitada. Em
primeiro lugar, contratou-se em Anápolis um técnico experiente,
sem cuja orientação teria sido impossível levar a cabo o empreen-
dimento com presteza e competência. Com a ajuda desse técnico,
chamado Roberto Beirigo, foi tudo planejado para, em prazo exíguo,
Memórias Catrumanas 126 Sidney Valadares Pimentel

chegar-se à conclusão do serviço, de modo que as diversas atividades


estivessem logo em pleno funcionamento.
A aquisição do equipamento e material necessário coube a tio
Alcides que, em seguidas viagens, trouxe o material de construção
destinado às instalações: tijolos queimados, telhas francesas, ferros e
vergalhões, madeira, cimento, argamassa, brita e material de acaba-
mento em geral, canos, joelhos, tês, luvas, torneiras, caixas-d’água,
parafusos, porcas, suportes; trouxe também o material elétrico como
fios e cabos encapados e desencapados, chaves elétricas, acionadores,
disjuntores, estabilizadores, interruptores, tomadas, soquetes, lâm-
padas, quadros de comando e tudo o mais necessário ao serviço de
instalação e manutenção. Enquanto isto, ali mesmo perto da vila,
trabalhadores especialmente contratados para tal fim se encarrega-
riam de escolher, cortar, aparar, descascar e lavrar na medida do ne-
cessário grandes postes de aroeira, que seriam usados para conduzir
a eletricidade da “usina central” até os pontos de consumo.
E aí então, concluídas as edificações e armazenado o material
que seria usado nas instalações, sob a orientação e a intercessão direta
de seo Roberto, começaram os procedimentos para a instalação. Os
trabalhos de alvenaria e de madeiramento couberam ao pedreiro Rai-
mundo de Marieta e ao carpinteiro Zé Martins, enquanto o eletricista,
auxiliado pelo mencionado Negulisso (Nego Ulisses), ajudava em toda
a montagem. De modo que as atividades de construção e acondiciona-
mento de todo o equipamento, bem como da instalação da eletricida-
de nas residências duraram pouco mais ou menos três meses.
Não obstante a competência do eletricista-chefe Roberto Bei-
rigo, aliada à dedicação de todos os auxiliares que contribuíram com
as instalações das máquinas e equipamentos, não foram poucos os
problemas de natureza técnica que mais hoje, mais amanhã, retarda-
ram a conclusão dos trabalhos. Até aquele momento, quase tudo era
trazido de Formosa e Anápolis no GMC da firma. Dos materiais mais
sofisticados aos mais simples, como os tijolos queimados, que eram
trazidos de Formosa e Anápolis.
Foi por essa ocasião que se fizeram os primeiros tijolos na vila.
Sucedeu que, para a construção de uma caixa-d’água ao nível do piso
que deveria ser usada para refrigerar o motor diesel, faltaram tijolos.
Então, para resolver o problema, o pedreiro Raimundo, que havia to-
Memórias Catrumanas 127 Sidney Valadares Pimentel

mado conhecimento do processo de fabricação artesanal e queima des-


se produto na cidade de Unaí, disse a meu pai que não precisava man-
dar tio Alcides buscar em Goiás. Uma semana depois, os tijolos estavam
prontos e queimados, sendo estes os primeiros fabricados na vila.

Muitos ainda se recordam das novidades que chegaram até nós


com a instalação do conjunto gerador. Mas a que causou maior im-
pacto cultural em todos, de mamando a caducando, foi a fabricação
de picolés e sorvetes. Tanto que a inauguração do bar constituiu-se
numa festa com direito a discursos e fotos. A adesão ao consumo des-
ses produtos refrescantes era proporcional às piadas e gozações que
surgiam no meio da população a propósito do escasso lapso de tempo
que eles permaneciam sem se derreter e desaparecer, se submetidos a
temperaturas acima de zero grau. A máquina de arroz, que era geren-
ciada pelo mencionado Negulisso e operada pelos funcionários Fiinho
e Zé Barbosa, foi um outro recurso que trouxe transformações impor-
tantes aos moradores da vila no tocante ao uso da força de trabalho,
principalmente a feminina. Até aquele momento, além de desempe-
nhar outras tarefas na domus como as de cozinheiras e lavadeiras, ca-
bia em especial às mulheres (e aos bobos) buscar água no córrego e
ainda pilar o arroz consumido diariamente no almoço e no jantar.
Agora, o beneficiamento desse cereal pela máquina vinha amenizar
em parte o esforço despendido nesse particular pelas mulheres.
Os castigos e seu simbolismo

No parágrafo inicial de seu romance Ana Karênina, o grande


escritor russo Leon Tolstói afirma que todas as famílias felizes se
assemelham, ao passo que as infelizes são infelizes cada qual a seu
modo. Em sua citadíssima comparação, ele só se esqueceu de dizer
que os objetivos da família não são idênticos aos dos indivíduos que
fazem parte dela. E como corolário disso, que uma família pode ser
de um jeito e um ou mais dos indivíduos que a compõem, de outro.
E assim, embora a família se sinta feliz, nada impede que um de seus
membros seja, desse ponto de vista, um dissidente e portanto, à sua
maneira, um desafortunado. Eu nasci numa família venturosa e, a
qualquer título, bem de situação. Com certeza uma das mais, senão
a mais bem aquinhoada da vila. O que me faz pensar que, apesar de
eu ter tido todos os motivos para ter sido um menino alegre e feliz,
de fato não o fui.
Não pretendo transformar estas memórias num libelo meio la-
muriento e meio engraçado como um Tristram Shandy da vida. En-
tão, deixem-me confessar que, como Proust, eu também detestava
ir para a cama cedo. O grande memorialista francês porque tinha o
ímpeto de ficar zanzando pela casa para ouvir o que se conversava,
ou porque, varado de ciúmes, esgueirava-se pelos vãos escuros para
espionar sua mãe. Eu porque adorava ir para a rua. Mesmo que não
estivesse com vontade de brincar, eu gostava de ficar ali na rua senta-
do na calçada ou numa cadeira observando a brincadeira dos outros.
Memórias Catrumanas 129 Sidney Valadares Pimentel

Eu tinha um apreço maior pela rua do que pela casa. Só muito


tempo depois vim a compreender que era o individualismo que des-
pertava em mim mais cedo. E no entanto me mandar para a cama,
mesmo de manhã, ou mesmo por dois e até três dias consecutivos,
como castigo por algo indevido que fizera, era uma das escaldaduras
que minha mãe mais apreciava aplicar. Ela possuía um elenco invejá-
vel de castigos, aplicados de acordo com a gravidade da transgressão
e a gradação da pena. Nesse particular era insuperável. A sua fama
corria longe.
Mas, antes de fazer referência ao seu modelo comportamen-
talista calcado nos elementos interdição—transgressão—castigo e a
dolorida razão prática que o acompanhava, é preciso delinear um
curto panorama dos traços culturais que permitiam e até justifica-
vam os maus-tratos. Desse ponto de vista, os direitos que os pais
julgavam ter sobre suas crianças não diferenciavam muito dos que
pensavam possuir sobre os adolescentes e adultos. Muitas vezes até
sobre os adultos casados. Principalmente se estes pertenciam ao
gênero feminino, quando, então, eram equiparados às crianças no
tocante à incapacidade, inidoneidade e necessidade de sujeição aos
critérios da domus. Na vila, o inconformismo de certos pais com a in-
dividualista preferência das filhas em relação ao melhor pretendente
a suas mãos muitas vezes era resolvido com surras exemplares que
deixavam marcas no corpo como lembrança e índice dos limites acei-
táveis da liberdade de escolha.
Mas é óbvio que o poder dos pais, como capitães do lar, sobre
os corpos e as vontades das crianças e dos adolescentes ainda era
maior e socialmente menos controlável. A idéia que hoje, à distância,
temos desses fatos é a de que naquele momento velhos costumes,
de influência claramente agostiniana, perduravam em nossa cultura.
Principalmente a criança era tida como um estorvo como se, mesmo
após o batismo, ela não conseguissse superar a culpa do pecado origi-
nal, mal de origem e transtorno que, quase naturalmente, a acompa-
nhava desde o nascimento. Daí a intolerância dos progenitores com
cada ação que não estivesse em conformidade com os cânones peda-
gógicos da boa criação.
Havia uma verdadeira gramática que ordenava o “malfeito”
numa escala de valores. A coisa funcionava assim como um conti-
Memórias Catrumanas 130 Sidney Valadares Pimentel

nuum, ficando um mero olhar reprovativo na extremidade inferior e,


na superior, as doloridas chibatadas aplicadas com o chicote de duas
pontas. Os outros corretivos distribuíam-se pelo meio, situando-se
mais à frente ou mais atrás, de acordo com o tipo de desobediência
ou dano causado pelo infrator. Muitas vezes, dependendo do interdi-
to agravado, era necessário combinar dois ou mais castigos.
Com o tempo e o conhecimento acumulado de situações an-
teriores, era possível prever a natureza do código informal, não es-
crito, das penalidades. Como uma espécie de jurisprudência dos atos
inaceitáveis, já sabíamos, antes de cometer o delito, que tal ou qual
pena correspondia a tal ou qual ato transgressor e vice-versa. Assim,
até certo ponto, fazíamos parte de uma certa economia da punição.
São tantas as culpas que não há como conservar um registro atuali-
zado de todas. Mentir. Falar indecência. Desobedecer. Ser pego com
a boca na botija das bebidas e das comidas. Apanhar frutas escondido
no quintal alheio. Brigar na rua ou na escola. Não saber o ponto na
ponta da língua. Ficar na rua até tarde. Imiscuir-se na conversa dos
mais velhos. Fugir para ir tomar banho na Vereda ou no Urucuia.
Tomar banho de chuva. Não tomar banho na hora certa. Subir em ár-
vore. Atrapalhar o trabalho dos outros. Deixar de fazer a obrigação.
Quebrar algo importante ou de estimação. Etc. Etc.
Como num programa gerativista catrumano, a um número
praticamente infinito de interdições a serem quebradas, correspon-
dia um número limitado de castigos e punições, sabendo-se que uma
mesma punição podia ser aplicada a modalidades diversas de trans-
gressões, importando apenas a natureza e a gravidade. Mesmo as-
sim, existia uma gama variada de ameaças e penas. Entre os castigos
aplicados, havia aqueles baseados na contundência e na dor e outros
fundados na privação humilhante.
Algumas vezes, como nos lembra o antropólogo Clifford
Geertz, uma piscada é mais do que uma contração das pálpebras.
Se faz parte de um aprendizado e uma combinação, além de ser um
movimento de defesa natural, corresponde a um gesto. Na certeza de
que essa gestualidade era não apenas compreendida mas igualmente
compartilhada por todos que lhe deviam obediência ou reverência
em algum grau, minha mãe se servia freqüentemente desse ameaça-
dor expediente. E quando eu digo todos, quero dizer todos mesmo,
Memórias Catrumanas 131 Sidney Valadares Pimentel

sem exceção, incluindo seus filhos legítimos e adotivos, as agregadas


e serviçais da casa, os caixeiros da loja, os empregados do bar e da
máquina de arroz, nossos primos, bem como qualquer pessoa sobre
quem pesasse sua autoridade em determinado momento e situação.
Antes de ser compartilhada, a piscadela tinha de ser aprendi-
da. Era preciso que alguém soubesse que havia subsumida à contra-
ção das pálpebras de determinada maneira um sentido que se voltava
para estabelecer, manter ou recompor a disciplina de algum ponto
de vista. Quando, por exemplo, minha mãe estava conversando com
outras pessoas adultas e uma criança ou uma serviçal se aproximava
com jeito de que tinha a intenção de ouvir o que se falava, a piscadela
significava que era para a intrusa dar o fora. Não deixar ali nas proxi-
midades nem os ares de sua graça, nem seu aroma ou hálito. E ela que
quebrasse pau nos ouvidos, de acordo com uma expressão que lhe era
cara, e permanecesse ali por perto. Pois acontecendo isso podia até
ser que naquele momento, em atenção à pessoa ou pessoas com quem
estivesse confabulando, não dissesse ou fizesse nada. Mas depois po-
dia esperar que haveria, sem dúvida, um acerto de contas. Aliás, com
grande freqüência, acerto ou ajuste de contas era uma expressão que
pairava sobre cada um de nós como uma ameaça disciplinar.
Em parte semelhante à piscadela existia um outro modo de
olhar severo a que costumávamos nos referir pela expressão “dar
uma cubada em alguém”. Quando, em nosso dialeto local, afirmáva-
mos que alguém deu umas cubada em fulano, queríamos dizer que
este alguém fuzilou-o com o olhar, de modo a fazê-lo compreender
que estava sendo demais, ou sendo inconveniente, ou simplesmente
sendo corrigido por algo que fizera ou deixara de fazer. A metáfora
usada no dito “fuzilar com os olhos” dá ao leitor a dimensão do ges-
to como um ato belicoso de que eram capazes os olhos ao disparar
chispas contra quem se dirigia. Tendo, no fundo, o mesmo efeito da
piscadela como aviso e poder de amedrontação.
O beliscão, algumas vezes também chamado de penicão, era
uma outra técnica punitiva que fazia o transgressor arrepender-se
mil vezes de ter agido assim ou assado. Em geral, todos conhecem
apenas o que é dado com o polegar e o indicador da mão. Pois minha
mãe sofisticara a aplicação do beliscão a tal ponto que era capaz de,
usando os mesmos dedos do pé, beliscar o pobre vivente de modo
Memórias Catrumanas 132 Sidney Valadares Pimentel

tão ou até mais dolorido. Acho que a diferença mais fundamental


entre ambos era a de que, enquanto este último somente conseguia
agir sobre a parte inferior das pernas, o primeiro podia alcançar pra-
ticamente todo o corpo, da orelha para baixo. O beliscão na orelha,
aliás, possuía uma aplicabilidade ainda mais vasta por servir também
de instrumento de aprisionamento e contenção da criança que, como
um boi na chincha, era conduzido para onde o adulto quisesse sem
ação nem para se debater ou tentar fugir.
As punições de maior contundência começavam com tapinhas,
evoluíam para tapas, taponas, descambando finalmente, dependendo
da natureza do delito, para as surras que deixavam o cristãozinho mole.
Não havia lugar proibido para os tapas. Da raiz do cabelo ao solado do
pé tudo era permitido. Muitos carregaram marcas odiosas pelo resto
de suas vidas em conseqüência dos maus-tratos de pais, padrastos e
criadores. Mas nada como as surras para testemunhar os ajustes de
contas dos adultos com as crianças. Aqui também podia-se encontrar
um continuum que ia do quase suportável ao insuportável. Começando
pelo uso de um cipó ou galha que fosse ao mesmo tempo delgada e
resistente. Entre estes, pelo que me lembro, a preferência caía sobre a
galha da goiabeira e o quase indestrutível, mesmo que vergastado mi-
nutos seguidos, ramo de miroró. O relho e o cinto vinham em seguida
e a dor maior causada por um ou outro dependia da grossura do relho
e da largura do cinto. Mas seja como for, nada que os transformasse
num objeto de desejo ou que nos levasse a preferir um ao outro.
Vinham por fim os chicotes que se dividiam em dois tipos: o
pá-larga e o de duas pontas. Ambos eram feitos de couro curtido. O
pá-larga era um chicote que meu pai usava em suas viagens boiadei-
ras com firme empunhadura como um punhal e uma tala de aproxi-
madamente cinco centímetros de largura por cinquenta centímetros
de comprimento. O de duas pontas pertencia também a meu pai e
se assemelhava ao pá-larga menos na tala, que era dividida em duas
pontas começando desde pouco abaixo da empunhadura. Uma lapa-
da dele doía muito mais do que a do pá-larga, deixando um estrago
no corpo também bem maior. Geralmente o pá-larga era usado mais
por minha mãe, enquanto meu pai tinha preferência pelo de duas
pontas. Mas ambos produziam devastação semelhante em termos de
dor e humilhação.
Memórias Catrumanas 133 Sidney Valadares Pimentel

Outros castigos que sofríamos agiam mais pelo lado da priva-


ção do que da violência física. Estes tinham o poder de nos conter
em casa. Muitas vezes, dependendo da natureza do ato transgressor,
minha mãe nos punha sentados em alguma cadeira ou tamborete por
horas e horas com permissão para nos levantarmos apenas quando
necessitados de ir à privada. Ou deitados com portas e janelas tran-
cadas pelo prazo de uma tarde inteira, enquanto o mundo lá fora
pulsava agitação e vida. Ou durante períodos e até dias seguidos.
Com meu irmão Edson, que era afilhado da madona Padro-
eira, esse castigo adquiria requintes medievais. Seu talismã poderoso
era uma imagem do Jesus Crucificado que brilhava no escuro. Minha
mãe, então, ameaçava colocá-lo deitado no escuro sem a presença da
luminosa imagem para que ele ficasse desprovido de qualquer prote-
ção e completamente à mercê do Anjo Caído.
Quando eu lá ia varando pelos sete anos, sob a alegação de que
eu tinha as pernas fracas e só andava com os joelhos perebentos de
tanto cair, minha mãe me amarrava ao pé da mesa, enquanto atendia
aos fregueses no pequeno armazém. Um último castigo de que me
lembro e que me deixava sempre pê da vida, em razão talvez de ser
um trabalho sumamente improdutivo, era o de separar uma quarta
de milho debulhado e feijão previamente misturados, tomando o cui-
dado para não deixar nem um carocinho sequer no lugar errado.
Redes de protecionismo

Fosse em razão das forças internas, fosse devido às pressões


externas, havia uma constante tensão em nossa domus. Penso não
constituir nenhum pecado movido pela imodéstia, nem desdouro
para os demais sócios, afirmar que meu pai era a cabeça pensante
da sociedade. No tocante às iniciativas comerciais, ele andava não
somente à frente dos irmãos, como também dos demais negociantes
da vila. Quanto aos saltos que tinha em mente dar era um homem
discretíssimo. Muitas vezes nem os próprios sócios tinham a mínima
idéia do que se passava em sua mente privilegiada, a não ser quando
lhes apresentava, prontas e acabadas, as propostas para os próximos
investimentos. Por causa de sua discreção, quando a concorrência
dava pela coisa a novidade já estava implantada ou pelo menos ini-
ciada. Desse ponto de vista, o golpe mais decisivo foi dado com o kit
de modernidades que trouxe, de uma pancada só, a iluminação das
ruas, a eletricidade nas casas, o bar, a sorveteria, a máquina de bene-
ficiar arroz, o serviço de alto-falante e um salão destinado a eventos
sociais. Cumprindo, nesse aspecto, parte das funções que deveriam
ser de responsabilidade do Estado.
Além de negociante, ele era também político, dividindo prin-
cipalmente (ainda que não somente) com o fazendeiro Antonino
Cândido Lopes a liderança do PSD local. Depois de um mandato
conquistado na primeira legislatura da Câmara Municipal de Unaí
pelo udenista Pedro Valadares Versiani (1947-1950), o PSD tomou a
Memórias Catrumanas 135 Sidney Valadares Pimentel

direção do processo elegendo seo Antonino para o mesmo cargo no


período de 1951 a 1954 e meu pai para a legislatura que começou em
1955 e prolongou-se até 1958. Com a sua morte em 1961, seo Antoni-
no Lopes determinou, sozinho, os caminhos do partido local até sua
extinção pelo golpe de Estado de 1964.
As pressões externas de natureza vária que agiam sobre nossa
domus determinavam um clima extremamente inquieto para todos
nós, principalmente para minha mãe, que, em defesa do marido,
tornou-se desde cedo uma mulher diligente e que “não deixava por
menos” quando se tratasse de defender suas (nos três sentidos) con-
vicções. Ainda que para tanto fosse obrigada a passar por cima das
convenções sociais que orientam para a manutenção de uma boa paz
com amigos e parentes. É claro que suas flechas e chispas ordinaria-
mente se voltavam para os udenistas principais, como seu parente Pe-
dro Valadares Versiani, além de Norberto de Souza Prado, Argemiro
do Prado, Querobino Fonseca Melo e sua irmã Leopoldina Fonseca
Melo, a D. Lió. Aliás, pelos mesmos motivos políticos, minha mãe foi
brigada com D. Lió e D. Doca, segunda e terceira esposas do comer-
ciante Sinésio Rodrigues Santana, nosso vizinho na casa da praça.
Mas como afirmei, em defesa do que imaginava ser o correto e
justo, ela não poupava nem os parentes mais próximos. Em seu jeito de
ser, não aceitava que ninguém se dirigisse a ela para se referir de modo
desairoso a qualquer indivíduo pertencente a sua parentela, embora
ela própria fizesse críticas aos parentes ou aderentes aos quais tivesse
alguma reserva. A esse respeito, costumava dizer lançando mão de seu
ferino método comparativo: “Sempre confie num descendente de meu
irmão Coteco; desconfie sempre desses Estrelas de São Romão”.
Em 1951, o pleito para prefeito de Unaí colocou frente a frente
o candidato pessedista João Costa contra o udenista José Luiz Adju-
to, que tinha como seu vice na chapa o major Jéferson Martins. Sem
grandes apoios fora da cidade de Unaí, o major apelou para que o
também udenista Randolfo Cordeiro Valadares, de alcunha Zinho,
morador na fazenda do Zumbi, perto da povoação da Barra da Vaca,
fosse dar uma ajudinha para a sua campanha na vila de Buritis. As
providências de Zinho, irmão e compadre de minha mãe, não se fize-
ram esperar. Arreou um cavalo e partiu. Surpreendentemente, em ra-
zão da espinhosa tarefa que tinha em mente cumprir, dirigiu-se para
Memórias Catrumanas 136 Sidney Valadares Pimentel

nossa casa onde pretendia se hospedar. O que dizem ter ocorrido daí
em diante só Deus sabe se é verdade ou não. Mas ouvi de um parente
próximo de ambos que minha mãe foi recebê-lo na porta e, antes que
desmontasse de seu suado ginete, disse-lhe que, como sabia que ele
tinha ido até lá com o propósito de fazer política para o major Jéfer-
son, ele nem precisava desmontar, podia voltar em cima do rastro, o
que, fulo de raiva, ele fez. De então em diante, o afastamento entre
os dois irmãos foi inevitável e completo. Tanto que, insensível aos
apelos de nossa sempre compreensiva tia Badina, quando meu pai
morreu, ele recusou-se a ir à vila para o costumeiro apoio moral à
irmã repentinamente enviuvada. Contaram-me recentemente que,
diante da recusa do irmão em comparecer ao velório do marido, mi-
nha mãe teria respondido com um muxoxo para demonstrar que para
ela aquela decisão era insignificante, após o que desabafou: “Decerto
ele pensa que aqui não tem rede”. Retomava, assim, uma crítica que
costumava fazer ao irmão de preferir o ócio ao negócio. E ainda por
cima, como se não bastasse, fez tio Zinho provar do próprio veneno,
recusando-se também a ir ao seu velório. O pior da desavença en-
tre os irmãos foi que nós, os filhos de ambos, nunca tivemos nenhu-
ma proximidade na infância. Apesar disso, minha mãe sempre teve
um apreço muito grande pelos sobrinhos, principalmente Murat e
Ney que, como costumava dizer, “puxaram a inteligência de meu tio
Saint-Clair”. Bom, eles que são irmãos e brancos que se entendam.
A vida, então, não era fácil pra ninguém. Pela dificuldade que
tínhamos para fazer nossas malinezas à socapa, imagino a trabalheira
que era para os adultos responsáveis nos manter em ordem, além de
ter de cuidar de todas as demais tarefas. Corriam pela casa verda-
deiros riachos informativos a dar conta dos usos e abusos diários de
tudo que havia ali e que devia ser mexido assim e não assado. Eram
diversas as indagações que pairavam no ar ao correr do dia. Quem
não se levantara a tempo ou simplesmente se esquecera de fazer a
sua obrigação? De buscar água na fonte, decorar seu ponto na ponta
da língua para a aula de geografia ou história, tirar o limo dos pe-
nicos, molhar a horta, botar comida para os porcos, torrar o café,
dar milho às galinhas, varrer a casa, arrumar os quartos, espanar os
móveis, buscar a carne no açougue de seo Neco, encher os tambores
do banheiro e do lavatório, banhar-se na hora certa, botar comida
Memórias Catrumanas 137 Sidney Valadares Pimentel

para o louro, sacudir para tirar as polias, dobrar e guardar os couros,


botar lenha para dentro, voltar para casa logo depois da aula, assear a
privada e tudo o mais que compunha o dia-a-dia daquela casa.
Nós éramos muitos não somente para compartilhar as tarefas,
como também para enredar. Havia como que um sentimento extre-
mamente prazeroso de deixar o irmão, a prima, a amiga em maus
lençóis. Mãe, fulana não fez tal coisa. Mãe, fulano disse que beltrano
falou que sicrano quebrou pau no ouvido e não cumpriu a ordem
que a senhora deixou pra ele fazer isso e aquilo. Para escapar dos
castigos, aprendíamos a nos antecipar usando a lei de talião: se você
contar que eu fiz isso, eu também conto que você fez aquilo. E todos
sabiam que cada um estava nas mãos de cada um dos demais. Era
uma casa de reféns, sem ninguém para pagar o resgate.
Era de espantar que, com toda a vigilância montada naquela
casa, ainda passasse algo que fosse despercebido pelos adultos. Pou-
co abaixo do declive que demarcava o fim do corredor de entrada, em
frente à janela que permitia o ingresso de luz do corredor externo,
ficava uma cadeira de braços e espaldar mais alto do que as que cir-
cundavam a mesa de jantar, onde minha mãe se sentava para ler, cos-
turar e botar sentido em tudo que se passava tanto na área masculina
quanto na feminina.
Para se compreender melhor aquele ponto de observação e
vigília encontrado ou idealizado por minha mãe, é preciso delinear
com maior precisão o seu funcionamento. Em alguns momentos ela
estava ali; em outros, não. Mas, mesmo não se encontrando naquele
lugar, mesmo estando a cadeira vazia, era impossível sabê-lo, a não
ser que o interessado se fizesse mostrar de muito perto. E então a
cadeira em si tinha poder, era uma espécie de símbolo que funciona-
va como um panótico. Isto porque, como a cadeira ficava defronte a
janela, quem estivesse sentado nela permanecia sempre semi-oculto
na parte de trás pelo alto espaldar, lateralmente pelas duas bandas da
janela e, na frente, pela mesa e suas cadeiras.
Entre os Valadares—Pimentel, tínhamos todos idades aproxi-
madas, sem grandes lapsos de tempo a separar os nascimentos. Ed-
son, o mais velho, nasceu em 20 de julho de 1943; Romero, o segun-
do, em 27 de novembro de 1944; eu, o terceiro, em 9 de março de
1946; Randolfo, o último, em 10 de setembro de 1947.
Memórias Catrumanas 138 Sidney Valadares Pimentel

Em nossa casa instalara-se desde muito cedo uma rede de pro-


tecionismo destinada a livrar a pele dos “malfeitores” que cometiam
seus pequenos ou grandes delitos. Nosso irmão Romero, o segundo
na hierarquia, era o dodói de Eduarda. Mais hoje mais amanhã, lá es-
tava ela defendendo-o contra as ameaças de taca por ter feito, ou por
ter se eximido de fazer suas obrigações. Como um catrumano Oskar
protegido pelas quatro saias da avó Anna Bronski, ele se aninhava no
meio das saias da “governanta” para safar-se de um puxão de ore-
lhas, ou de boas chicotadas. Devido a ser Romero o mais orelhudo
da irmandade, puxando com nosso avô Raimundo, Eduarda colocou
nele o apelido de Coelho — ou Coei —, denominação que chegou
mesmo a substituir o nome de batismo até os dias atuais. De fato,
nunca consegui saber as razões pelas quais ela formou sua preferên-
cia por esse nosso irmão, a não ser pelo fato de ser ele mirradinho e
surdina, para utilizar uma expressão usada com bastante freqüência
por minha mãe.
Memórias Catrumanas 139 Sidney Valadares Pimentel

Se Romero era protegido por Eduarda, Edson recebia a prote-


ção estrutural que lhe davam os direitos de primogenitura. É inte-
ressante notar que, ao contrário das discussões colocadas para a hie-
rarquia familiar herdada da imigração européia como é encontrada
ainda hoje no sul do país, a “cultura da domus” tendia à valorização
das duas extremidades — a primogenitura e a ultimogenitura — ao
mesmo tempo em que desvalorizava os que se encontravam nas po-
sições intermediárias. Assim, eram visíveis as preferências que em
especial meu pai tinha pelo filho mais velho, quase legitimando-o
como seu sucessor natural. Não obstante isto, acho que se deveu a
minha mãe a alcunha que, desde cedo, ele recebeu de Jeromuage, de-
vendo-se a denominação ao fato de esse mano conversar meio “can-
tado” como uma moenda de engenho, muito parecido com o jeito de
falar de um certo Jerônimo que vivia numa propriedade não muito
distante da vila. Além deste, um outro apelido que Edson recebeu
ainda menino foi o de Tronchinho, em razão de ter nascido com uma
dobra na parte superior da orelha direita.
No tocante ao caçula Randolfo, a importância estrutural rece-
bida de sua posição de ultimogênito era reforçada pelo apadrinha-
mento de seo Rezende, que não permitia que se tocasse em um único
fio de seu cabelo. Ainda me recordo do velho trabalhando em seu
laboratório, enquanto o rapa-de-tacho vinha do alpendre como um
rodoleiro (ou melhor, como um caruncho, que era um dos seus ape-
lidos que pegou) dizendo: “Padim, qué tabaiá, padim”. Seo Rezende,
então, botava em sua mão alguma coisa qualquer inquebrável e o
punha sentado pacientemente num banquinho ali perto, enquanto
voltava para seus afazeres farmacêuticos, sem deixar de prestar aten-
ção para ver se eu não estaria por perto para arrebatar o brinquedo
das mãos de seu protegido.
Bem, quanto a mim, por alguma razão desconhecida, como na
música dos Titãs, só me protegia o acaso, além das negações peremp-
tórias (Negar sempre!) que aprendi a usar como estratégia para esca-
par aos castigos corporais. Eu era um menino desastrado, um Midas
às avessas, que conseguia transformar em cacos tudo que colocassem
em minhas mãos. Possuidor de vasta cabeleira, de bom tamanho, po-
rém magro, magérrimo. Quando eu tinha onze anos, influenciada
não sei por que teoria de cultura física, minha mãe proibiu-me de
Memórias Catrumanas 140 Sidney Valadares Pimentel

jogar bola enquanto eu não engordasse pelo menos cinco quilos a


mais do que pesava então.
Foi por essa mesma época que apareceu em mim uma hiper-
trofia facial causada, segundo avaliação médica posterior, por des-
calcificação, aliada a algum tipo de traumatismo não identificado à
época como tal, que serviu de base, na família e fora dela, para o sur-
gimento de preconceitos fundados na idéia de incompletude e que
tiveram o poder de me transformar quase num bicho do mato. Para
resolver o problema da deficiência de cálcio, minha mãe passou a me
dar um remédio que só não era de paladar mais extravagante do que
um medicamento chamado Kusuk que seo Rezende me fez tomar
em determinada época para curar nem eu sei mais o quê. A substân-
cia preparada por minha mãe não era nada mais nem menos do que
casca de ovo de galinha ressecada na chapa do fogão de lenha, após
o quê era triturada no almofariz de cobre. Por mais que se tentasse
transformá-la em pó, ainda ficavam pigmentos que se entocavam en-
tre os dentes produzindo a maior gastura na gente.
Vem dessa época uma batelada de apelidos que fui conquis-
tando ao longo da infância ( Jamelão, Zé Rita, Cai-Cai, Bestão, entre
outros), alguns dos quais perduraram até mais tarde. De todos, o
que adquiriu maior amplitude em todos os sentidos foi o de Zé Rita,
nome do caminhoneiro estouvado e metido a valente, que vendeu
o primeiro caminhão para nosso tio Alcides, e pelo qual ainda sou
tratado com freqüência no círculo de irmãos e primos.
Além de nós quatro, viviam também em nossa casa os dois
meios-irmãos Valdeci e Zezito. A primeira, que foi sempre extrema-
mente esguia e comprida, era conhecida como Lagartixa. Filha de
meu pai com uma moça do povoado de Porto-de-Manga, foi tomada
para criar por minha mãe pouco depois de nascida. Essa criaturinha
que, como os adultos em casa costumavam dizer, “não era flor de
se cheirar”, sofreu os revezes da adoção numa domus em que não se
alisava a pele de ninguém, muito menos se esse alguém era marcado
por símbolos que se aproximavam da noção de bastardia. Mas entre
todos foi Zezito, o filho do primeiro casamento de meu pai em
Januária, aquele que menos foi atingido pelos excessos de autoridade
de nossa família. Trazido para a vila em 1950 quando atingira os dez
ou onze anos de idade, certamente haveria de sentir falta da boa vida
Memórias Catrumanas 141 Sidney Valadares Pimentel

ao lado dos parentes e da avó que o protegeu com seus excessos de


carinho maternal em substituição à mãe que lhe faltara muito cedo.
Em sua nova vida, certamente todos haveriam de ceder para que
houvesse uma convivência pacífica com o pai que até então conhecia
pouco e com uma madrasta rigorosa que conhecia ainda menos. Foi
em especial com esse primeiro filho inquieto, e que não chegou a
criar limo em suas andanças estudantis, que meu pai teve tempo de
ser mais compreensivo em sua ânsia de que os filhos se preparassem
para “ser alguém na vida”.
Eu não poderia concluir o arrolamento dos parentes e aderen-
tes que viviam em nossa casa sem mencionar um primo que, com
aproximadamente dois anos de idade, ali foi recebido em “adoção
informal”. Era ele “filho natural” de nosso tio Juvenal — o Nalim —,
morto tragicamente num acidente na Lagoa Feia, em Formosa. Pou-
co depois do falecimento de Nalim, nossos pais, cientes da existência
do sobrinho, que se chama Ivan Moreira dos Santos, o adotaram em
meados do ano de 1959, levando-o para nossa casa na vila. Como
de costume, tão logo veio para nosso convívio, recebeu o menino o
apelido de Espiga, e, posteriormente, o de Pantera, que carrega até
os dias atuais.
E depois ainda havia os primos com os quais convivemos mais
de perto, principalmente os filhos de tio Alcides com a inesquecível
tia Isabel, mulher baixinha, de pensamento bem prático e pronún-
cia abaianada: Florisval, Walter e Terezinha. Esta última regulava
comigo. Florisval, que o pai chamava pelo apelido de Parafuso e a
mãe pelo de Fulozinho, era pouco mais novo do que Edson e foi seu
colega no ginásio em Formosa, antes de se mudar definitivamente
para Anápolis. Walter, o segundo, tinha dois apelidos que eram sinô-
nimos, o de Marimba e o de Cabaça, alcunhas por que é conhecido
ainda hoje. O Parafuso e o Cabaça eram muito mais cosmopolitas do
que nós em razão de, volta e meia, pegarem uma xepa no caminhão
do pai e viajarem com ele por esse Goiás afora.
Além desses queridos primos, ainda havia os que chegaram de
Januária acompanhando os pais, tio Jove e tia Maria. Este tio, Jovino
Alves de Souza, era um sujeito ao mesmo tempo muito sério e muito
engraçado. E era exatamente ao expressar toda a sua seriedade que
ele se fazia divertido no falar. Ainda me lembro de uma expressão
Memórias Catrumanas 142 Sidney Valadares Pimentel

que ele costumava usar para definir a idéia de reciprocidade, com a


qual todos os filhos e sobrinhos nos divertíamos enormemente: “O
freguês se coloca no lugar do outro pra ver as precisão desse outro
freguês”. Ou então, para apresentar a idéia de carestia: “O freguês às
vezes quer ganhar e reganhar no mesmo objeto”.
Quando, por volta de meados da década, tio Jove veio com a
família para a vila, foi trabalhar no bar que havia sido recém-inau-
gurado. Depois de um tempo, deixou o bar e dedicou-se a uma roça
primeiramente na beira do rio Urucuia e depois em nosso sítio da
Extrema. Meu pai costumava tratar esse seu cunhado com muito tato
dizendo que ele “era muito fino e por qualquer coisinha costumava
furar o capim do bucho”. Quando já não estava mais no bar, um dia
tio Jove teve uma desavença com tia Maria e, num rompante de ja-
nuarense marrento, pegou sua espingarda e uma capanga onde guar-
dava a munição e saiu caminhando apressado na direção do cerrado.
Imaginando que ele fosse usar a arma para dar um fim à própria vida,
Memórias Catrumanas 143 Sidney Valadares Pimentel

tia Maria foi procurar meu pai dizendo: “Ai José, pelo amor de Deus,
meu irmãozinho, manda um atrás de Jove que ele vai se matar”. Meu
pai estava costurando uma barrigueira e nem tirou o olho da sovela
com que procurava fixar uma argola para dizer: “Foi não, Maria. Ele
foi foi matar um catingueiro que está comendo flor num pé de pequi
lá na larga da Extrema”. Não deu outra. No dia seguinte, pouco antes
do almoço, Expedito, seu segundo filho, apareceu em nossa casa com
um pernil de catingueiro mandado pelo pai. Além dos cinco que já
haviam nascido quando os pais se mudaram para a vila — Maria do
Socorro, Expedito, José, Raimundo, Manoel —, aí nasceu o último,
Demerval, que era afilhado de nossos pais.
Dois modos de ganhar a vida

Aquela imagem já apresentada mostrando um José completa-


mente embriagado ante a violência da natureza que fez despejar so-
bre a praça de Santa Cruz em Januária um verdadeiro toró quando
ele tinha menos de 20 anos ficou no passado. Meu pai não dançava,
não ria espalhafatosamente, não gostava de freqüentar locais baru-
lhentos. Nunca o vi ingerindo nem uma gota de bebida alcoólica,
jeito de ser que, entre os filhos, foi herdado somente por Edson, o
único abstêmio da família.
Apesar dessa sua característica, não era um homem pouco so-
ciável. Pelo contrário, gostava de participar dos eventos para os quais
era convidado. Tenho em meu poder uma fotografia pouco nítida da
recepção oferecida por ocasião do casamento de Vadote e Dália, fi-
lhos dos fazendeiros Lindolfo Gonçalves e Antonino Lopes, respecti-
vamente. Ele encontra-se ao lado de seo Rezende e do barbeiro Sodi,
irmão da noiva, defronte uma mesa posta para a recepção de que
constam duas garrafas de café e alguns pratos contendo quitandas.
A não ser em momentos críticos, fazia-se passar sempre por um
sujeito de bem com a vida, como se diria nos dias de hoje, e de muito
bom humor. Lembro-me de algumas tiradas dele na loja, atrás do
balcão ou sentado num banquinho à sombra, do lado que dava para o
jatobazeiro. Nesses momentos, era comum o escrivão Pedro Pereira
da Silva deixar seus afazeres cartoriais e achegar-se para um dedo de
prosa. Vendo-o, meu pai dizia: “Tudo bom?”, a cujo cumprimento
Memórias Catrumanas 145 Sidney Valadares Pimentel

ele respondia: “Bããão”. Então, só para provocar, fazia a tréplica para


desvalorizar a réplica otimista do Pedro: “Bom pra rascunho ou bom
pra sabão?”. O peão de boiada, pequeno agricultor e barbeiro João
Sem-Termo e o ferreiro João Preto eram outros a cujas observações
etnocêntricas ele tinha sempre uma resposta engraçada.
Meu pai era um homem que sempre acreditou em sua capaci-
dade de ganhar a vida com o próprio esforço. Liderou os irmãos e, de
resto, toda a família, acreditando que cada um tinha uma parcela a dar
para seu próprio crescimento e seu sucesso pessoal. Dando cada qual
sua quota de dedicação e trabalho, Alcides e Joaquim, seus irmãos e
sócios na firma Irmãos Pimentel Ltda., ao extinguir-se a sociedade,
estavam igualmente bem de situação econômica e financeira.
No modelo aritmético que meu pai valorizava, a operação de
somar era mais importante do que a de diminuir. Daí, a grande dife-
rença entre seu modo de pensar e o da gente da terra. Até então, a ri-
queza de cada domus era constituída pelo que seus membros tinham
herdado de seus ascendentes. E depois de recebida a herança, poucos
eram os que se esforçavam para, senão fazer crescer, pelo menos con-
servar a riqueza recebida. O costume era alienar as posses existentes,
primeiramente o gado e pequenos animais e depois as terras, vendi-
das gleba atrás de gleba.
Penso que não seria exagerado afirmar que, quando meu pai
chegou à vila com sua mulher grávida do primeiro filho, sua tropa
estropiada pela estafante viagem e suas mercadorias, a quase totali-
dade das pessoas de situação financeira mais confortável que ali vi-
viam se aproximavam do modelo ideal descrito anteriormente. Por
essa ou aquela justificativa, os senhores da terra iam gastando o que
recebiam em polpudas heranças e, quando pensavam que não, se não
tinham ficado “com uma mão na frente, outra atrás”, também não
eram mais nem remediados.
Quem mostrou que havia uma outra possibilidade de enfren-
tamento da questão foram os pernambucanos que ali aportaram, em
especial meu pai e seus dois sócios. E, por incrível que possa parecer,
quem um certo dia colocou às escâncaras toda a crueza dessa reali-
dade que a cada dia depauperava mais e mais as domus constituídas
principalmente por proprietários rurais, foi precisamente a mesma
D. Lió, que não perdia a oportunidade de dar uma estocada em meu
Memórias Catrumanas 146 Sidney Valadares Pimentel

pai para atucanar minha mãe. A ela deve-se a clareza de haver denun-
ciado a lógica de um outro ponto de vista. Sabe-se que, no meio de
uma discussão acalorada com minha mãe, D. Lió teria dito: “Quem
esse povo pensa que é? Chegaram no Buriti comprando e vendendo
pena de ema e couro de cateto...” E não precisava dizer mais nada.
Tudo estava dito agora em seu libelo etnocêntrico: começaram do
nada e se fizeram por sua própria conta e risco. Bem o inverso do que
ocorria sistematicamente.
A propósito, ainda me lembro de um livro existente em nos-
sa casa e hoje desaparecido que era um bom testemunho em favor
do que conto neste ponto. Continha ele um relatório impresso pelo
governo do estado de Minas Gerais, com base no primeiro levanta-
mento realizado oficialmente na bacia hidrográfica do rio Urucuia. O
trabalho foi comandado por um certo Dr. Mascarenhas, engenheiro,
em meados dos anos 50, tendo como guia e principal assessor nativo
o pescador Marcolino Fonseca Melo. Lá pelas tantas de seu relatório,
afirma o engenheiro que encontrara na vila um próspero comercian-
te pernambucano, indivíduo de mentalidade modernizante e que,
entre outros feitos, junto a dois irmãos com quem se associara, havia
montado loja, farmácia, bar, máquina de beneficiar arroz, além de
ter instalado um sistema particular de fornecimento de eletricidade
para as casas da vila.
E foi assim que, além do que lhe rendia a sociedade com os
irmãos, meu pai foi-se fazendo em outra área que sobremaneira o
atraía, a do investimento em propriedades rurais e na pecuária. Por
essa época, os bens pertencentes à igreja na vila passaram para o
controle dos redentoristas em Paracatu, que, prontamente, os colo-
caram à venda, sendo as quotas-partes adquiridas, em primeira ou
segunda mão, por vários moradores da vila, entre os quais meu pai,
tio Alcides, seo Antonino Lopes, Orlando de Souza Prado, seo Dário
(Darinho), meu padrinho Baltazar Fonseca Melo e muitos outros. Na
parte que nos pertenceu e para onde nos mudamos em 1960, depois
da extinção da sociedade, meu pai criou gado.
A grande propriedade denominada São Vicente da Direita
constituía um direito de herança adquirido aos herdeiros e legali-
zado. Ainda que fosse uma área bastante acidentada e com pouca
terra de cultura, talvez porque nela houvesse água em abundância,
Memórias Catrumanas 147 Sidney Valadares Pimentel

meu pai pensava fazer dela uma propriedade bem ajustada para a
criação de gado zebu. Beneficiando-se de uma hipoteca dessa mesma
fazenda junto ao Banco do Brasil, comprou 400 novilhas enraçadas,
metade gir e metade nelore, além de vários garrotes.
Gente de fora

Posso contar nos dedos o número de pessoas ou, como era cos-
tume dizer, de “gente de fora”, que se aventurou a ir ganhar a vida
na vila. E mesmo assim, dentre os que tomaram a decisão e um dia
vieram dar com os costados por ali, alguns acharam o lugar pequeno
demais para eles e voltaram em cima do rastro ou passaram adian-
te. A propósito, contou-me tio Alcides que, quando o Dr. Melo Aze-
do, médico pernambucano que esteve morando na vila no final da
Segunda Grande Guerra, decidiu-se a ir embora, apresentou como
justificativa para a sua decisão a seguinte assertiva lógica: “Olha, Al-
cides, onde tem dez médicos, aí cabe mais um; mas onde não tem
outro, não cabe nenhum”.
Não consigo apresentar com algum grau de precisão a seqü-
ência cronológica da vinda dos que, ou tiveram maior importância
para a vila como um todo, ou foram mais importantes para mim,
pessoalmente. Entretanto, de acordo com a lembrança que tenho
desse período, acho que, se não o primeiro, um dos que vieram logo
foi um pernambucano chamado seo Cecílio, casado com uma mulher
que tinha um nome paronímico ao seu — Cecília — e uma carrada de
filhos e filhas, a maioria atravessando a adolescência.
Seo Cecílio possuía um caminhão todo estropiado que os filhos,
principalmente os dois mais velhos, Lomas e Abelardo, esmerilavam
a mais não poder naqueles caminhos esburacados que conduziam a
Goiás. Este último, que viria a casar-se com nossa irmã Valdeci tor-
Memórias Catrumanas 149 Sidney Valadares Pimentel

nando-se nosso cunhado, foi o responsável por um acidente que con-


tarei mais adiante, em que a jardineira de um certo Artau foi lançada
precipício abaixo na serra, interrompendo o transporte de passagei-
ros entre a vila e Formosa.
Imagino que depois dos Cecílios veio a família de seo Luiz Alves
de Souza. Ou muito me engano, ou, logo de chegada, esses mineiros
de Araújos foram ocupar uma pequena e maltratada casa na praça da
igreja, ao lado da residência de seo Marcol. Como os Cecílios, vinha
com eles uma batelada de filhos, quase todos com nomes bíblicos:
Maria, Levi, Absalão, João Batista. Entre todos, o que se tornou meu
amigo inseparável foi o Levi. Tendo aproximadamente a minha ida-
de, fomos estudar na mesma classe e de lá saíamos planejando ou já
executando as mesmas malandragens ou malvadezas de sempre.
Com os estilingues nos bolsos trazeiros e as pedrinhas de ta-
piocanga nos dianteiros, éramos verdadeira temeridade. Uma vez
apostamos qual de nós dois conseguiria acertar o chifrezinho de um
dos cocás do bando pertencente a D. Lourdes de seo Marcol, que
passavam o dia pastando ali na praça. Não sei se o Levi errou por
gosto ou se naquele dia ele estava com a mão meio boba mesmo, o
que não era comum. O certo é que a pedra dele ricocheteou no chão
e foi bater muito longe, enquanto a minha, como se guiada pela mão
do Anjo Mau, atingiu precisamente o ponto que eu marquei. Ah, foi
um deus-nos-acuda. Vendo o cocá sapateando no chão e tocando de
roda que nem piorra, o Levi acovardou-se e fugiu pra sua casa. O
Marcelino, sineiro e irmão da Ana Muda, que estava debaixo do jato-
bazeiro remendando uma ponteira de cabresto, vendo a tremedeira
em que eu me encontrava, me aconselhou a dar no pé: “Some daqui,
chiminino, que ninguém viu. Sá Lurde ver que ocê matou o bichim
dela vai virá um sedém”.
Entre atender o conselho do Marcelino e confessar o crime,
não tive dúvida. Mesmo sabendo da surra que estava me arriscando
a levar em casa, fui lá e contei para D. Lourdes o que havia aconteci-
do, não me esquecendo de esconder a particularidade da aposta e de
acrescentar que eu atirara a pedra numa fogo-apagou e, por falta de
sorte, a pedra tinha acertado bem no corninho do cocá. D. Lourdes
nem tirou a vista da massa que estava mexendo numa vasilha para
dizer: “Tem nada não, traz ele pra cá que a gente come”.
Memórias Catrumanas 150 Sidney Valadares Pimentel

Depois da vinda de seo Luiz, chegou não sei de onde um casal,


seo Odemir e D. Anita, além do filho Chiquinho, que na época beirava
seus sete anos de idade. O curioso é que as pessoas a quem pergunto
não costumam se lembrar dessa família, como se não passasse de um
sonho meu. Incoerentemente com o padrão de vida que sua família
levava na vila, seo Odemir não fazia nada. Não tinha comércio, não
plantava roça ou criava gado, não era um profissional liberal, nem
ferreiro, nem carpinteiro, nem pedreiro, nem nada que justificasse o
que, na época, classificávamos como “exibimento besta”.
D. Anita era uma loura de farmácia, de altura mediana e cheia
de carnes, sem ser gorda, aparentando uns trinta anos de idade, que,
no dialeto vilão, andava “estufando os peitos e sacudindo os quar-
tos”. Toda a família falava com um leve sotaque puxado para o cario-
quês, botando muitos “xis” em lugar dos “esses” nos finais e meios
das palavras, característica que acentuava a diferença deles em rela-
ção aos nativos.
Deve-se a essa família, mas especialmente a D. Anita, a in-
trodução no linguajar catrumano de pelo menos dois termos
até então desconhecidos: arraia e lanche. O primeiro, brinquedo
esvoaçante feito de papel de seda e preso por fio de linha, conhecí-
amos pelo nome de papagaio. O segundo passou por um processo
de absorção mais demorado devido a resistências incrustadas na
cultura local. Para o consumo de alimentos mais leves tomados no
período entre o almoço e o jantar, nós usávamos as expressões me-
renda e café de mei’dia. Então, quando era por volta das duas horas
da tarde que D. Anita saía na calçada e gritava: “Chiquinho, venha
tomar o lanche”, costumávamos repetir em uníssono, mas baixinho
para que ela não escutasse, uma variante que compuséramos como
forma de afirmar nossa resistência cultural: “Chiquinho, venha to-
mar o lixo”. Não posso afirmar ou desconfirmar se anos depois,
com o sentido específico de alimento leve tomado entre o almoço
e o jantar, a palavra foi definitivamente incorporada ao linguajar
local, mas naquela época a recusa era total. E se aquela família de
“estrangeiros” não tivesse ido embora logo, quem sabe tivéssemos
tido motivos para recusar outros signos e outras práticas que o
modo de falar deles tentasse impingir à nossa cultura catrumana.
Quem pode dizer o contrário?
Memórias Catrumanas 151 Sidney Valadares Pimentel

Finalmente, por volta de 1958 ou 1959, veio para a vila mais


uma numerosa família, indo ocupar na praça da igreja a casa que per-
tenceu a Querobino Fonseca Melo, irmão do pescador Marcol, que se
mudara recentemente com a mulher, D. Odília, e os filhos, para For-
mosa, onde tinha aberto uma pensão na antiga praça do mercado. A
casa onde o chegante, chamado Rui Aires da Silva, instalou a família,
ficava entre a Pensão Pitangui e a casinha pertencente a Joaquinzi-
nho. Além da mulher, D. Deusalina, e a filharada, acompanhava seu
Rui o motorista de seu esmeriladíssimo caminhão, o uruguaio Luís
Alberto Pifachá. Esse latino foi não apenas o primeiro estrangeiro
que morou e trabalhou na vila, como também quem apresentou a
seus moradores a primeira bola de capotão, uma G-18, como então
chamávamos a pelota de futebol, uma Gaeta profissional de 18 go-
mos, seminova.
Luís Alberto era o homem dos sete instrumentos. Sua função
principal era a de motorista, mas ainda por cima buscava e rachava
lenha, ajudava a socar arroz, consertava os defeitos do caminhão, en-
sinava as regras básicas do esporte bretão e ainda encontrava tempo
para flertar com uma neta de siá Norberta que morava vizinha ao
escrivão Pedro Pereira da Silva.
Entre os filhos do casal que conviveram conosco em casa, nas
ruas e na escola, lembro-me especialmente de uma menina chamada
Brenda Maria e seu irmão, Breno Mário, ambos iniciando a adoles-
cência. Por onde andará aquela bela menina que, pela primeira vez,
quebrando as convenções implantadas pelas severas professoras do
grupo escolar, participou do desfile da Semana da Pátria na função de
baliza vestindo um saiote plissado e deixando a assistência boquia-
berta com seus movimentos de contorcionismo circense? E aquele
menino que então já demonstrava um precoce tino comercial, alu-
gando sua bicicleta para que aprendêssemos a andar? Quis o destino
que este último, uns vinte anos depois, viesse a ser meu aluno numa
faculdade em Goiânia, quando então voltei a ver seus pais vivendo
numa cidade próxima a esta capital.
O entrecruzamento de diásporas

Em 1932, quando abandonaram Santa Maria da Boa Vista, sua


terra natal, e subiram o Velho Chico em busca de uma nova vida,
meu avô Raimundo e sua primeira descendência ainda não sabiam,
mas estavam engajando-se numa diáspora que anos mais tarde se cru-
zaria com outras duas no que antes fora a Vila de Nossa Senhora da
Pena do Burity no Urucuia. A terceira, nossa contemporânea, embo-
ra também extremamente importante para os buritienses, pertence
à fase mais moderna quando (retomando uma metáfora que usei no
começo destas memórias) a vila deixou quebrar a sua casca, permi-
tindo o surgimento de sua cidade-pinto. Essa é a diáspora promovida
pelos modernos agricultores gaúchos que, sem serem forçados a isto,
deixaram a vida que viviam em outro lugar e se mudaram para a vila.
A segunda tem uma relação mais próxima conosco, os herdeiros da
sorte, dos saberes e da luta dos pernambucanos.
A segunda diáspora faz parte do fluxo populacional que ainda
na década de 1950 veio aportar à vila. Sem atermo-nos às filigranas
do processo, podemos compreendê-lo como uma espécie de movi-
mento dialético ocorrido a partir de 1956, quando Juscelino se elege
presidente e decide construir a cidade de Brasília, para ser a capital
da Nação, e a barragem de Três Marias, para fornecer eletricidade ao
Sudeste. Como uma das conseqüências da construção de Brasília, a
vila e suas proximidades, que já não possuíam vasta população, vi-
ram-se esvaziadas mais ainda, não apenas mas principalmente dos
Memórias Catrumanas 153 Sidney Valadares Pimentel

estratos da classe trabalhadora ou do campesinato que vendia sua


força de trabalho para os proprietários mais bem aquinhoados.
Os nomes dos que se foram apenas temporariamente ou para
sempre ainda se encontram vivos na memória das pessoas. Naquele
tempo, era com a maior naturalidade que se indagava o paradeiro de
alguém, recebendo como resposta a frase que soava como uma in-
conformista declaração de perda. Mas gente, cadê Sebastião Dupago
que tomou um chá de sumiço? Uai, foi-se embora pra Brasília, não
tá sabendo? Domingas também? Dominga e a filharada toda. E é? E
quem mais? Lourenço de D. Grossa. E dizem que vai mandar buscar
Nonato, aquele branquelo dos olhos melados abaixo dele. E Benício
Providência também. E Antoniel com comadre Chica e a miuçalha. E
Astério. E Tonino de Cesário. E Lomas. E Helena Facão. E a relação
é dolorosamente infinda.
Mas nada como um dia depois do outro, eu diria repetindo um
adágio catrumano que tem o sabor de vingança. Pois quando menos
se esperava e com uma visibilidade talvez menos nítida também, de
repente a vila e suas cercanias começaram a parecer tão povoadas
como antes. E assim, pouco a pouco, as casas e recantos que haviam
ficado tristes e vazios retomaram a agitação com gente que vinha
de Três Marias, Vazante, Coromandel, Morada Nova, São Gonçalo
do Abaeté, Tiros, São Gotardo, Patos, Patrocínio, Bom Despacho e
muitos outros lugares.
Vieram em primeiro lugar os que foram diretamente desa-
lojados pelas águas do lago de Três Marias. Em agosto de 1958,
os Ferrão, entre os quais o patriarca Vital Ferrão e os filhos Sargi,
Joaquim e José, compraram terras à margem direita do córrego dos
Confins pertencentes a nosso contraparente Honório Rodrigues da
Costa, onde plantaram imediatamente suas roças. Ainda em 1958,
chegaram e foram para a região do rio São Domingos, pouco acima
da barra do córrego Passa Três, região de boas terras de cultura, o
mineiro Pedro Bertoldo de Oliveira acompanhado de filhos e gen-
ros. Na mesma época chegou uma extensa família dedicada ao traba-
lho, principalmente agrícola, composta por Ari Apolinário, ou Ari da
Ema, sua esposa Edite e cunhados Sílvio, Tió e Nanzinho. Finalmen-
te, a partir de 1960, chegaram outros que permaneceram em minha
memória, como o velho Otávio e seu filho Nego do Tavo, Ciríaco,
Memórias Catrumanas 154 Sidney Valadares Pimentel

Joaquim Prego, Zé Maduro, Gentil e muitos outros que, como mi-


grantes, fizeram para a área rural tanto quanto os Pimentel fizeram
para a área urbana da vila.
Essa segunda diáspora ocorrida no final da década de 1950 e
a que foi empreendida pelos nossos, no início dos anos 40, tinham
entre si inúmeras semelhanças e diferenças. Ambas tinham a ver com
os excessos da natureza provocados ou não pelo homem. A nossa
pelo excesso de calor e sequidão; a deles pelo excesso de águas. Os
participantes da nossa viviam às margens do mesmo caudal onde
eles viviam e os expulsou. Os que faziam parte da deles escolheram
como refúgio o mesmo lugar. Embora a partir de elementos dife-
rentes, ambos os participantes tinham em suas mentes os espectros
das comunidades que imaginavam construir. Os que compunham o
imaginário de nossa diáspora centraram-se na vila existente. Os ou-
tros se preocuparam mais em construir na prática a comunidade que
vinham imaginando desde que ali desembarcaram. A dos nossos foi
sempre a vila de Buritis; a deles, a vila de São Pedro, assim nomeada
em homenagem a seu principal incentivador e fundador.
De volta ao ninho

Um certo dia do ano de 1958, meu tio Alcides, vindo de Anápo-


lis para a vila com o seu caminhão carregado de mercadorias, passou
na agência do correio da cidade de Formosa para apanhar a corres-
pondência. O endereço postal da firma era centralizado nessa agên-
cia onde possuía a Caixa Postal n. 7. Ali, mostrando a meu tio uma
carta com o envelope já encardido de tanto manuseio, a agente postal
perguntou se o destinatário que constava do envelope não seria por
acaso o velho farmacêutico que morava em nossa casa na vila de Bu-
ritis. A carta não trazia o nome do remetente. Na face frontal do en-
velope fora gravado o seguinte endereçamento sui generis: “Esta carta
é dirigida ao Sr. José de Oliveira Rezende, morador e domiciliado em
lugar não sabido. Solicita-se aos agentes dos correios fazerem a carta
andar de cidade em cidade até encontrar o seu destinatário”. Notan-
do a coincidência do nome inscrito no envelope com o de seo Rezen-
de, tio Alcides propôs então à agente levar a carta para a vila. Caso
ficasse provado tratar-se de alguém homônimo, ele a traria de volta
a fim de que fosse reenviada para outra localidade. Foi assim que no
dia seguinte, não sem um misto de curiosidade e apreensão, meu
tio entregou a tal carta a meu pai reproduzindo fielmente a conversa
que tivera com a agente. Meu pai leu o endereçamento incomum no
envelope e mostrou-o a minha mãe. O carimbo, ou a mancha escura
em que ele se transformara, indicava como ponto de origem a cidade
de Passos de Minas. Estava formado o imbróglio. Mais do que uma
Memórias Catrumanas 156 Sidney Valadares Pimentel

correspondência, havia ali um mistério que era preciso desvendar.


E agora, disseram nossos pais, o que fazer com aquela carta?
Como vim a saber mais tarde, o significado que a misteriosa missiva
tinha à primeira vista era o mesmo de um documento judicial por
meio do qual um magistrado todo-poderoso obrigasse-os a devolver
um bem precioso que houvessem conseguido amealhar naqueles
quase quinze anos de convívio. A indagação que pairava no ar era
esta: será que devemos entregá-la a seo Rezende? Isto porque àquela
altura ninguém mais em casa tinha dúvida quanto à pessoa a quem
ela era dirigida. E se ela contivesse alguma notícia ruim? Naquela ida-
de não seria melhor, talvez, protegê-lo contra algum contratempo ou
algum desgosto? Se durante três lustros ele permaneceu ali anônimo
e sem que ninguém o procurasse, o que estariam querendo agora?
Como já afirmei atrás, o farmacêutico não era um homem dado
a confissões sobre o seu passado. Que saísse espontaneamente de sua
boca, nunca ninguém teve informações suficientes para deduzir o
mínimo possível sobre sua vida, a não ser que era um mineiro de
Varginha. Não costumava fugir do presente arrastando-se por longas
e tristonhas ausências. Daí, as preocupações com aquela carta que
tanto podia conter boas novas quanto palavras intranqüilizadoras. O
diabo leve quem ficar por baixo, disse por fim meu pai fazendo uso de
um de seus ditados preferidos, cujo significado conformista era mais
ou menos o de que o que está feito, está feito e não está por fazer. Em
seguida, pedindo para ficar a sós com o farmacêutico, indicou-lhe
uma cadeira em seu escritório na sobreloja, passando-lhe a carta. Seo
Rezende abriu pacientemente o envelope com a ajuda de uma espá-
tula e leu silenciosamente, com as mãos e os lábios trêmulos. Depois,
pediu licença e foi para o seu quarto, onde, com toda certeza, releu
a missiva para se acostumar ao seu conteúdo. Algum tempo depois,
com os olhos intumescidos de emoção, voltou ao escritório e narrou
para meu pai uma bela e tristonha história de amor repleta de mite-
mas típicos do romantismo individualista do século XIX.
Enredo A: Para dar cobro a seus anseios de um dia se transfor-
mar num médico, com muito esforço, o jovem varginhense José de
Oliveira Rezende conseguiu seu ingresso na Faculdade de Medici-
na em Belo Horizonte. Quando estava no segundo ano, envolveu-se
sentimentalmente com uma colega de curso que, logo, engravidou-
Memórias Catrumanas 157 Sidney Valadares Pimentel

se dele. Filha de família rica, os pais da moça se recusaram a aceitar a


continuidade do namoro pelo simples motivo de ser ele um rapaz po-
bre. Desgostoso com o desfecho dado pela família da colega e amada,
o estudante abandonou o curso e voltou para sua terra, onde traba-
lhou um tempo numa farmácia. De lá saiu mais tarde para a cidade
de Delfinópolis onde trabalhou como farmacêutico prático, até dei-
xar também essa cidade para aceitar um convite para trabalhar numa
farmácia de Cristalina, em Goiás. Foi nessa viagem que, passando
pela vila, gostou do lugar e da gente e decidiu ficar lá para sempre.
Quanto ao missivista, disse seo Rezende a meu pai, não era
ninguém mais nem menos do que o filho que tivera com a dita ex-
colega e que agora, morador na cidade de Passos de Minas, casado e
pai de família, o procurava. Nem meu pai nem minha mãe nunca dei-
xaram transparecer que achavam aquela história meio fantasiosa, o
que faz crer que realmente criam em sua veracidade. Meu pai talvez
não tivesse uma cabeça tão boa para os mapas e a geografia quanto
tinha para os negócios. Senão teria percebido claramente que, para ir
de Delfinópolis a Cristalina, não havia como passar na vila de Buritis,
a não ser que fizesse uma volta muito grande. E no mais a narrativa
era romântica, mas convincente. Percebendo o entusiasmo alegre do
farmacêutico ante a possibilidade de reencontrar não um filho des-
garrado ou pródigo, mas o filho de cuja existência ele parecia nem
ter conhecimento, meu pai lhe disse que na semana seguinte estava
pensando em ir a Paracatu, acrescentando que ele bem poderia ir
junto para, de lá, fazerem uma ligação telefônica para seu filho em
Passos, mas ele se recusou dizendo que preferia que ele viesse vê-lo
na vila. E assim foi feito. Meu pai ligou para o filho dele e combinou
a melhor data para que um aviador por nome Vevé, estabelecido em
Paracatu, o apanhasse em seu teco-teco e o trouxesse à vila para o
encontro com o pai pródigo.
Chamava-se Aníbal. Letra por letra, Aníbal de Oliveira Maia.
Seo Rezende era um homem alto e esguio, mas a imagem que per-
maneceu em minha mente dos dois caminhando na direção da som-
bra do jatobazeiro da praça era a de que o filho ainda era mais alto,
apesar de claudicar um pouco. Ali debaixo do jatobazeiro, sentados
nas toras de madeira que serviam de assento, passavam muito tempo
conversando. O tema de sua conversa nunca se saberá. Uma coisa, no
Memórias Catrumanas 158 Sidney Valadares Pimentel

entanto, ficou evidente. A recusa inicial de seo Rezende em aceitar o


convite para ir visitar a nora e as netas em Passos logo foi colocada
por água abaixo. Tanto que já na semana seguinte o mesmo Vevé
descia com seu avião na vila para levar nosso bom amigo para a visita
combinada. Dessa viagem, seo Rezende nunca mais regressaria ao
lugar que escolheu para doar boa parte de sua vida, seu conhecimen-
to e seu trabalho.
Nessa época seo Rezende andava muito adoentado. Isso se per-
cebia sem muito esforço. Principalmente os que viviam sob nosso
teto. Há muito tempo que o farmacêutico vinha experimentando
de seu próprio “veneno”. A constância diária com que ele aplicava
injeções em si próprio era impressionante. Meu pai e minha mãe,
preocupados com isso, em vão procuravam convencê-lo a ir com tio
Alcides em Formosa ou Anápolis para se submeter a exames clínicos
e de laboratório. Ele sempre afirmava que estava bem, mas não es-
tava. Nós, pobres ignorantes, não tínhamos preparo para perceber
o que se passava em seu quarto naquelas seções diárias de injeções.
Hoje acredito piamente que o câncer que o vitimou, já de há muito
se alastrara em seu intestino. E a droga constante daquelas aplica-
ções não era nada mais nada menos do que a morfina que o ajudava
a suportar a dor intensa do mal que ele, provavelmente, desde então
já considerava incurável. Porque ali só ele tinha controle absoluto so-
bre a aquisição e o uso dos produtos farmacológicos existentes. Com
toda a certeza, a relação das drogas que tio Alcides recebia e adqui-
ria numa distribuidora farmacêutica em Anápolis não fazia nenhum
sentido para nenhum de nós, a não ser para seo Rezende que sabia o
porquê e o como de seu uso.
Quase cinqüenta anos depois daquela manhã em que a bordo
de um monomotor Cessna seo Rezende foi-se embora da vila com
destino a Passos de Minas para todo o sempre, eu empreendi a mes-
ma viagem, mas de carro e partindo de Goiânia, com o fito de, na-
quela cidade, buscar notícias sobre sua descendência que pudessem
contribuir para as narrativas etnostálgicas que compõem este livro
de memórias. Não vou lotar a paciência do leitor com as imensas
dificuldades que tive para localizar os parentes de nosso bom amigo
e vou passar diretamente ao que interessa. Em 13 de janeiro de 2001,
aos 84 anos de idade, Aníbal Oliveira Maia (como disse, era esse o
Memórias Catrumanas 159 Sidney Valadares Pimentel

nome daquele filho que um dia teve a sorte de encontrar seo Rezen-
de por intermédio de uma dentre as muitas cartas semelhantes que
escreveu e enviou pelo correio) morreu em Ribeirão Preto, tendo
sido enterrado na cidade de Passos. Em 2005, vim a conhecer tanto
a viúva, Conceição, quanto as filhas, Suzana, Sandra e Solange, que
continuavam a viver em Ribeirão, onde travei conhecimento com as
três primeiras, principalmente com Suzana e seu marido Adnan, dos
quais me tornei muito amigo. Mas nem assim consegui apurar mui-
to do que, de fato, se passou com o avô, Zezé Rezende, como era
chamado por parte da família. Na falta de informações mais precisas
sobre as circunstâncias do nascimento e infância do Aníbal, o que po-
demos acrescentar, na tentativa de procurar compreender melhor a
vida anterior de seo Rezende, é compor um outro enredo tão supos-
to e imaginado quanto o anterior, que tanto pode estar muito perto
como excessivamente longe de uma versão real dos fatos.
Enredo B: Seo Rezende era um farmacêutico prático que du-
rante um certo tempo viveu maritalmente com uma senhora bem de
situação da cidade de Varginha, chamada Maria de Oliveira Maia, que
anteriormente fora casada com Evaristo Justino de Lima. Da relação
do farmacêutico com essa mulher, teria nascido um menino que re-
cebeu o nome de Aníbal, de cuja certidão consta, como pai, o citado
Justino, provavelmente em virtude de que, de acordo com as leis de
então, uma mulher casada não podia registrar um filho declarando
como pai outro indivíduo. O menino ainda não havia crescido muito
quando, por desacordo em relação ao modo caridoso e filantrópico
de dirigir a farmácia, que também pertencia à Maria Maia, seo Re-
zende teria se afastado da relação e ido trabalhar em outras cidades,
entre as quais Delfinópolis. Assim, o Aníbal que o encontrou via cor-
respondência no final da década de 1950 seria realmente seu filho,
ainda que o nome do pai constante em sua documentação não fosse
o de José de Oliveira Rezende.
Antes de concluir, resta ainda a seguinte indagação a respon-
der: por que motivo o farmacêutico teria criado uma história dife-
rente para dar conta de seu passado? Com toda certeza porque, em
seu imaginário oitocentista, ter um filho de uma relação não-estável
e não-legal era algo incompatível com o nome e com o prestígio que
havia conseguido angariar em nossa vila, se visto de uma ótica rea-
Memórias Catrumanas 160 Sidney Valadares Pimentel

lista. Daí, a necessidade de apresentar “seu caso” envolto numa capa


romântica, justificadora e que exalava ímpeto individualista por to-
dos os poros.
Se algum dia a civilização ganhar essa paragem longínqua,
talvez uma grande cidade se levante na campina extensa que
te serve de soco, velho Buriti Perdido. Então, como os hoplitas
atenienses cativos em Siracusa, que conquistaram a liberdade
enternecendo os duros senhores à narração das próprias
desgraças nos versos sublimes de Eurípides, tu impedirás,
poeta dos desertos, a própria destruição, comprando teu
direito à vida com a poesia selvagem e dolorida que tu sabes
tão bem comunicar.

Affonso Arinos
Memórias Catrumanas 162 Sidney Valadares Pimentel
Memórias Catrumanas 163 Sidney Valadares Pimentel

Arquitetura das moradias

Um tanto similarmente à abordagem feita por Gilberto Freyre


em relação aos sobrados e mocambos, não seria demasiado afirmar
que as habitações da vila poderiam ser classificadas de acordo com o
uso em sua construção de material orgânico ou inorgânico. Se con-
cebêssemos a idéia de uma gradação ligando esses dois pólos, seria
possível considerar uma área como mais ou menos orgânica ou mais
ou menos inorgânica, dependendo do ponto em que nos encon-
trássemos. Havia, por exemplo, choças na ponta da rua construídas
usando somente elementos provenientes do mundo vegetal. Esteios,
caibros, portais feitos de madeira. Cobertura e enchimento das pare-
des, de capim ou folhas de palmeiras. Portas de braços da palmeira
buriti e tudo amarrado com cipós ou embiras. Outras combinavam
esses materiais com elementos inorgânicos. As paredes, por exem-
plo, podiam ser feitas de pau-a-pique combinando a madeira com
barro e um acabamento feito de bosta-de-vaca-mole, o que lhes dava
uma coloração verde-clara.
A área mais central da vila, por outro lado, abrigava residências
em cuja construção era utilizada uma proporção maior de minerais.
Em pouco tempo, a maior concentração de prédios que obedeciam
ao padrão inorgânico se transformou em indicador de melhoria de
vida. De acordo com o paradigma para a edificação das casas princi-
palmente da “área inorgânica”, estas deviam possuir cômodos am-
plos, ainda que nem sempre muito bem arejados. E como não ha-
Memórias Catrumanas 164 Sidney Valadares Pimentel

via ali o costume de estucar os cômodos, salvo aqueles usados para


comportar as mercadorias dos estabelecimentos comerciais, como
medida de proteção contra a invasão de possíveis larápios, a telha-
vã funcionava como uma estreita galeria por onde o vento circulava
livremente, o que fazia com que a temperatura no interior das resi-
dências se aproximasse bastante da existente no exterior: elevada de
dia, mais amena à noite.
Entretanto, se o modelo arquitetônico localmente adotado
permitia essa variação, não deixava de haver também o inconvenien-
te de permitir a entrada de muita poeira nas residências. O incômodo
só não era mais grave em razão da escassa frota de veículos que podia
ser encontrada transitando diariamente nas ruas da vila. Em meados
da década de 1950, o número de carros pertencentes a moradores
do lugar não chegava a cinco, incluído nesta contagem o caminhão
pertencente à firma Irmãos Pimentel Ltda. É claro que o pó em sus-
pensão aumentava muito por ocasião da romaria de Nossa Senhora
da Pena, ou quando da passagem pela vila das enormes boiadas que,
partindo do sertão, eram tocadas para grandes fazendas de Unaí ou
Paracatu e, dali, para os abatedouros.
As casas eram geralmente construídas de modo a permitir uma
diferenciação entre os espaços privativos que deveriam ser usados,
de um lado, pelos ocupantes do sexo masculino, e, de outro, pelas
do sexo feminino, em especial filhas e criadas, ou por menores. Aos
primeiros correspondiam os cômodos da frente ou os exteriores da
residência. Às segundas e aos menores, as dependências concebidas
especialmente de modo a restringir, proteger e resguardar, já que
eram ambos tomados pelo mesmo estatuto que igualava as mulheres
(em especial as solteiras) e as crianças como seres incapazes. Devido
à necessidade de manter essa configuração, os cômodos masculinos
eram também mais claros e mais arejados, enquanto os femininos
eram mais sombrios e pouco ventilados.
Além dos espaços privativos (os quartos-de-dentro e os quar-
tos-de-fora), faziam parte do modelo arquitetônico das casas da vila
os locais destinados ao convívio com pessoas conhecidas ou apa-
rentadas, mas não pertencentes à unidade doméstica, ou ainda com
desconhecidos. Sala-de-fora ou sala-de-visitas era como se chamava
aquele cômodo, que funcionava como o terceiro degrau de uma es-
Memórias Catrumanas 165 Sidney Valadares Pimentel

cala valorativa que, começando no terreiro da frente, avançava pela


calçada até o batente e só então, transposto esse, dava entrada na
casa, em geral por meio de um estreito corredor. De modo que a
sala-de-fora funcionava como um posto de identificação da diversi-
dade. E somente aqueles que pertenciam à unidade familiar, ou os
assim considerados, tinham autorização para ir entrando pela casa
sem passar pelo crivo e pela vistoria nesse posto inicial de vigília e
controle.
Que sorte de objetos podiam ser encontrados na sala-de-fora?
Variava muito de família para família, dependendo do traquejo social
de seus membros, do seu grau de cosmopolitismo, de suas posses e,
naturalmente, das condições de acesso a bens de consumo que, salvo
raríssimas exceções, só chegavam à vila por meio das casas comer-
ciais mais sortidas como a loja de Pimentel e a loja de Sinésio, ou,
ditas de outro modo, a Casa Pimentel e a Casa Santana. Mas quase
sempre podiam ser encontrados, nesses cômodos-portarias, duras e
desconfortáveis cadeiras de madeira de abrir e fechar ou cômodas es-
preguiçadeiras; ícones de santos ou fotografias de membros da famí-
lia adultos ou crianças, vivos ou mortos, de parentesco mais próximo
ou mais distante; e, naturalmente, cabides para dependurar capas,
chapéus e guarda-chuvas. Não era incomum que nessa sala houvesse
ainda uma porta que dava acesso a um quarto, estruturalmente iso-
lado das intimidades da residência, às vezes chamado de quarto-de-
visitas, destinado a abrigar pessoas “de fora” ou estranhos que por
ventura, por um motivo ou outro, a família se visse na contingência
de hospedar.
À sala-de-dentro que era também, mas não exclusivamente,
sala-de-jantar, tinham acesso somente as pessoas consideradas “pró-
ximas” ou “de casa”. Muitas vezes, a sala-de-dentro era um com-
partimento mais sombroso (porque mais resguardado), contígüo à
sala-de-fora e que mantinha comunicação com esta diretamente por
intermédio de uma porta. Era na sala-de-dentro que os membros
da família e seus parentes mais chegados se reuniam para tratar das
questões mais candentes que envolviam a integridade, a moralidade
e a segurança da domus. Contudo, não era comum o uso desse com-
partimento para que as pessoas da casa entabulassem negociações ou
o utilizassem para realizar negociatas de qualquer natureza. Quando
Memórias Catrumanas 166 Sidney Valadares Pimentel

houvesse a necessidade de comprar ou vender, o usual era utilizar-se


a sala-de-fora, os alpendres — que melhor fariam em se chamarem
apêndices —, ou até mesmo coberturas toscas localizadas nos fundos
dos quintais, como paióis. Bancos feitos de casqueiros, ou toras de
madeira existentes sob as árvores, eram às vezes também utilizados
como locais de encontros que tinham objetivos outros que o mero
“jogar conversa fora” ou “falar abobrinha” tão comum no dia-a-dia
dos aparentados de sangue ou afins.
Durante um largo período, os pisos das casas eram, em sua
maioria, de terra batida. Como quase nenhuma se construía ao rés
do chão e do terreno exterior, demandava o carregamento de muita
terra para a formação da base que era, então, espalhada e socada para
dar firmeza. Foi somente no primeiro quartel da década de 1950 que
começaram a ser pavimentadas as primeiras residências. Inicialmen-
te com tijolos e só mais tarde com ladrilhos queimados trazidos de
fora.
As casas da ponta-da-rua, que classifiquei um pouco acima como
pertencentes a uma área mais orgânica, quase nunca recebiam acaba-
mento nas paredes com reboco e pintura, mesmo as de cal. Quando
construídas de pau-a-pique, com cobertura de barro vermelho e uma
leve camada de bosta-de-vaca-mole, passavam a ter uma coloração
esverdeada que, com o passar do tempo, iam perdendo em benefício
de uma cor desbotada. Além de sua função construtiva, o uso do
estrume fresco de bovinos exercia também uma função profilática e
preventiva ao produzir uma espécie de blindagem dos buracos e fres-
tas nas paredes de pau-a-pique, onde, em geral, se escondiam insetos
nocivos como o barbeiro, hematófago transmissor do mal de Chagas.
As casas localizadas no setor mais central e, portanto, na área mais
inorgânica, além de um cuidado maior no tocante ao material usado,
recebiam reboco de argamassa. Em muitas casas, usava-se somente
a cal na pintura. Em outras, além desta, aplicava-se uma camada de
tinta a óleo não apenas nas paredes, como também nos barrados, nas
portas e janelas.
A umidade exterior, a ventania e até mesmo o arejamento que
vinha de fora com a brisa eram tomados como as causas mais im-
portantes das doenças. Principalmente da etiologia das gripes, dos
defluxos, das corizas, das chupações de nariz, dos males do peito, das
Memórias Catrumanas 167 Sidney Valadares Pimentel

pneumonias, dos narizes entupidos, do espirro, da tosse, das gargan-


tas inflamadas. Por esse motivo, não se abriam demasiadamente as
janelas e portas. No máximo, eram mantidas semi-abertas ou com
apenas uma das folhas aberta, o que tornava as casas sombrias, mal-
arejadas e escuras. À noite, as casas se tornavam mais escuras ainda.
Então, usavam-se lamparinas ou lampiões a querosene ou a azeite. E
torcidas a sebo ou a cera.
Está fora de dúvida que inúmeros conterrâneos ou amigos de
infância não conseguirão encontrar total correspondência entre a
descrição que faço e as constituições das casas onde nasceram e/ou
cresceram. E é compreensível que assim seja. Muito semelhantemen-
te ao que Vladimir Propp fez com os contos populares russos, des-
trinchando suas características com o objetivo expresso de procurar
reter e associar os mitemas fundamentais que os constituíam para,
só então, demonstrar a existência de uma estrutura básica possível
de ser apreendida e reproduzida infinitamente, também o paradigma
arquitetônico apresentado para a vila não passa de um conjunto de
características que expressam a estrutura e a funcionalidade geral,
mas que, quando atualizado, pode não reter todos os elementos, ain-
da que não perca a totalidade. Isto bate com o modelo. Aquilo não
bate. Nisto nos reconhecemos, naquilo não. Sem dúvida, a lógica é a
da cultura e não da exatidão e da completude.
Flores e desavenças

Até o final da década, não me recordo de haver na vila nenhu-


ma residência com jardins ou canteiros frontais. O usual era que a
parede da frente da casa onde se localizava a porta de entrada estives-
se no mesmo alinhamento da rua. Embora inexistisse um serviço de
posturas que uniformizasse a distância entre a entrada e a rua, todas
as residências eram construídas de acordo com o mesmo padrão. As-
sim, aqueles jardins introduzidos no Brasil pelos portugueses e que
tanto sucesso fizeram em cidades litorâneas não eram incorporados
às casas da vila. Tampouco o eram as grades com portõezinhos que,
principalmente a partir de meados da década de 1960, passaram a
fazer parte da entrada das residências.
Memórias Catrumanas 169 Sidney Valadares Pimentel

Dito assim pode parecer que afirmo que as casas não possuíam
jardins e canteiros. Possuíam, mas ambos se localizavam, ou de um
dos lados da residência, ou na parte de trás do lote, quando não em
ambos. Embora conservassem sua função estética, seu efeito “de-
monstração” destinava-se muito mais a um certo público interno
feminino constituído por amigas, comadres e parentes, que compe-
tiam entre si, do que ao público externo. Ali abundavam cercados,
canteiros e aléias de verduras, flores e ervas medicinais. Quase sem-
pre compostos em figuras geométricas ou no formato de corações
adubados com esterco curtido e limitados por demarcações de pe-
dras ou sobras de madeira semi-enterradas. Era ali que as mulheres
implantavam seus campos experimentais com todo tipo de plantas.
Quitoco. Erva-cidreira. Sabugueiro. Manjericão. Alecrim. Hortelã.
Funcho. Salsa. Beldroega. Losna. Babosa. Camomila. Poejo. Arruda.
Língua-de-sogra. Violeta. Onze-horas. Pimenta-malagueta. Pimenta-
dedo-de-moça. Pimenta-fidalga. Pimenta-roxa. Lírio. Magnólia. Ora-
pro-nobis. Rosa. Rosa branca. Rosa rosa. Rosa encarnada. Mastruz.
Romã. Etc. Etc. Etc. E depois vinham as árvores de grande porte que
dão frutas. Mangas. Manga-rosa. Manga-espada. Manga-abóbora.
Manguita. Manga-ubá. Jenipapeiros. Jaboticabeiras. Goiabeiras.
E depois ainda havia as criações do reino animal que eram
mantidas em casa contidas nos limites dos lotes. Cachorros e gatos.
Galos. Galinhas. Frangos e frangas. Pintos. O povinho miúdo dos
garnizés. Ou os baitas galos-índios do pescoço pelado. Os rhodes. Os
patos e perus. E as populações verdoengas que aprendiam a falar à
custa da repetição e da teimosia ou permaneciam trancados em sua
linguagem sibilina e incompreensível aos humanos: periquitos, jan-
daias, papagaios, araras.
Muitas árvores e animais faziam a delícia dos de casa e da mo-
lecada da rua. Mas também podiam ser responsáveis por espalhar a
cizânia na vizinhança. No caso das árvores frutíferas, quando cres-
ciam seus galhos para o outro lado, empetecando com suas folhas
amareladas e frutos apodrecidos o bem cuidado quintal do vizinho.
Ou da vizinha, que era quem, em tais casos, se sentia mais atingida.
No caso dos animais quando, se aproveitando de brechas nos tapu-
mes que dividiam os quintais, fugiam para o outro lado, principal-
mente em busca de sobras de comida.
Nesse ponto aprofundava-se o processo de cisão entre a ma-
nutenção das áreas comunais e a privatização do “meu pedaço”. E
então, num crescendo, a particularização exigia o aperfeiçoamento
das técnicas de construção de cercas e tapumes. Mesmo sendo mem-
bros de uma mesma linhagem, as regras de vizinhança e de convívio
tinham de ser obedecidas para a manutenção da paz. De fato, ainda
que no princípio não houvesse qualquer distinção física, senão ape-
nas uma linha imaginária que unia (ou separava) os lotes de dois vizi-
nhos, o transcorrer do tempo e a crescente frustração de expectativas
quanto ao bem-viver conduziam ao início do processo de demarca-
ção objetiva das áreas.
A confirmação das particularidades começava, em geral, com a
construção de uma cerca de arame farpado de três ou mais fios, sobre
a qual a trepadeira melão-de-são-caetano costumava traçar, com seus
cordões débeis, uma rala mas colorida cortina vegetal. Um segundo
estágio implicava cortar e trazer para o local varetas de arbustos de
aproximadamente dois metros de comprimento, que eram trançadas
verticalmente, aproveitando os fios de arame como anteparos para
fixação. Um terceiro era cumprido retirando-se toda a cerca e cons-
truindo em seu lugar um muro de adobes ou de tijolos. Finalmente,
como última etapa, mandavam-se esmigalhar garrafas e litros vazios
e afixar os estilhaços sobre o muro mediante a liga de uma argamas-
sa que os prendia fortemente. Note-se que algumas vezes a primeira
e segunda etapa podiam ser substituídas por uma cerca de madeira
roliça da grossura de um caibro, fixadas verticalmente por meio de
tabocas rachadas ao meio e amarradas com fios de arame ou fortes
embiras.
Entre produzir e coletar

A economia da vila fundamentava-se parcialmente na comer-


cialização de mercadorias manufaturadas ou industrializadas, impor-
tadas inicialmente em lombos de burros das cidades ribeirinhas de
Minas Gerais ( Januária, São Francisco, São Romão) e, posteriormen-
te, em caminhões, das cidades goianas de Formosa e Anápolis. Em
torno da vila, nas fazendas e fazendolas, existia uma economia de
subsistência, cujo excedente era trocado também por mercadorias
usadas no dia-a-dia.
De acordo com a orientação de meu pai, não havia produto
sem saída ou que não pudesse servir para a permuta (quase em escala
de puro escambo) por alguns litros de querosene, algumas gramas de
chumbo Perdiz, envelopes de Guaraína, vidros de Biotônico Fontou-
ra, ou um maço de cigarros Fio de Ouro, Luiz XV ou Astória. A re-
gra era cristalina. Como tudo tinha saída, tudo tinha entrada. Como
era comum, ele fazia o preço. E ganhava comprando e vendendo.
Era esse o caso, por exemplo, da mamona. A Casa Pimentel iniciou
a comercialização da mamona, produto que vivia perdendo ali nos
quintais e nas roças por falta de quem comprasse. Desde então, a ma-
mona passou a ser recebida debulhada e ensacada para ser enviada
pra São Paulo, ora via São Romão, ora via Formosa.
A criação era feita pelo sistema extensivo, e o gado existente
reduzia-se praticamente à raça curraleira. Não estava no horizonte
dos fazendeiros a melhoria genética nem o controle endêmico de
Memórias Catrumanas 172 Sidney Valadares Pimentel

seus plantéis. Raros eram os que se decididam a despender recur-


sos com vacinas e outros medicamentos destinados ao controle de
doenças. Apesar disso, seo Candoxa foi o pioneiro na importação de
gado zebu na região, tendo trazido para sua fazenda algumas reses
da raça gir. Coube a ele também importar os primeiros espécimes de
cavalos manga-larga. Anos depois, beneficiando-se de um emprésti-
mo do Banco do Brasil, meu pai comprou um grande lote de novilhas
e reprodutores gir e nelore, sendo estes últimos os primeiros da raça
a entrar nas fazendas próximas da vila.
Da mesma forma, não havia o costume de complementar a ali-
mentação conseguida com as pastagens naturais. Aqui e ali podiam
ser vistos ralos tufos do capim barba-de-bode e do capim-gordura, ou
meloso, mas em sua maioria o capim mais encontrado era o agreste.
Em razão da inexistência de boas pastagens, aliada à despreocupa-
ção com a complementação alimentar, durante o período das secas o
gado era acometido de uma fraqueza geral. Principalmente durante
o período de agosto a outubro, algumas reses deitavam e não conse-
guiam erguer-se sozinhas. Era necessário então que os empregados,
munidos de compridas travessas de madeira roliça usadas como an-
daimes ou guindastes, erguessem as mais fracas. Penso que vem de
aproximadamente meados dos anos 50 a introdução da cana-ferro
na região. Não tenho a mínima idéia sobre quem tenha sido o seu
introdutor, mas o certo é que vem mais ou menos dessa época o uso
dessa espécie em nosso sítio, a Extrema, que ficava a aproximada-
mente três quilômetros do centro da vila. De fato, a cana-ferro era
uma variedade que tinha a função de fornecer mais forragem do que
glicose.
Entre os produtos agrícolas, eram plantados em maior escala
o arroz, o feijão e o milho. Não havia o costume de utilizar as áreas
planas de cerrado devidamente adubadas, nem a mecanização. A in-
trodução de tratores, grades e arados só acontecerá mais tarde, no
final da década, com a entrada dos “chegantes” de Três Marias e adja-
cências. Até aquele momento, os cereais eram plantados em roças de
tocos feitas em áreas ribeirinhas, denominadas “terras de cultura”.
Não obstante as dificuldades da derrubada, do roçado, da cata, da
queimada e da capina, produziam-se esses grãos, em especial o arroz
e o milho, em grande escala. A comercialização dos cereais era feita
Memórias Catrumanas 173 Sidney Valadares Pimentel

diretamente pelos produtores mediante negociação com atravessa-


dores da cidade de Unaí, sede do município. Isto por um lado. Por
outro lado, parte dos cereais era comercializada pela pequena cere-
alista pertencente à firma Irmãos Pimentel Ltda., que transportava
os produtos de seu armazém, notadamente o arroz, para as cidades
goianas de Formosa e Anápolis.
Além dos bens que encabeçavam a produção agrícola das áreas
sob a jurisdição da vila, outros produtos, ou de menor importância,
ou de consumo mais local, também ocupavam a terra agricultável.
Entre eles, cabe menção ao amendoim, à mamona, às diversas varie-
dades de abóbora e moranga.
Jegues e armas de guerra

O meio de transporte mais revolucionário com que a vila po-


dia contar até o alvorecer dos anos 50 era o carro de bois. E assim
mesmo não era qualquer vilão que tinha condições de possuir o
seu. Nem mesmo qualquer fazendeiro. Muitos eram os que só po-
diam contar com as tropas de carga. Constituídas principalmente
por muares — burros, mulas e jumentos. Isto porque havia a crença,
com base talvez na experiência dos tropeiros, de que essa espécie era
mais resistente do que a dos eqüinos. E assim, para o transporte de car-
gas, sempre se preferia um burro a um cavalo, uma mula a uma égua.
Seo Anjo, pernambucano que chegou à vila no final da década
de 1930, possuía a maior tropa de carga da região. Por volta do ano
de 1955 ainda me recordo do despropósito de animais pertencentes a
esse nordestino que viviam perambulando pelas ruas e praças. Prin-
cipalmente na praça da igreja, onde havia mais grama para aparar.
Mas também na rua do Meio, beirando os muros e calçadas. Ali, fora
dos trilhos cavados na terra vermelha, a grama permanecia intacta e
viçosa. Então, os jumentos se aproveitavam para vir rapando o verde
que, apesar da estiagem, permanecera vivo e intacto ao lado dos ali-
cerces das casas e dos muros.
Mesmo sem o contato visual, nós conseguíamos reconhecer à
distância quando era a tropa de seo Anjo que estava chegando e não
outros animais. Nosso índice identificador era a sinfonia de sininhos
e cincerros que acompanhavam a tropelia e os característicos ruídos
Memórias Catrumanas 175 Sidney Valadares Pimentel

com os beiços e os cascos. Os jegues eram uma festa para nós, me-
ninos, e o ai-jesus dos ciosos pais de família que procuravam a todo
custo ocultar da curiosidade de suas filhas a crueza naturalista das pe-
ripécias reprodutivas dos animais. Aquilo para nós, meninos, na casa
dos dez, onze anos, era o mais edificante substitutivo das aulas de
Educação Sexual que podíamos obter. Conteúdo que, àquela altura
da educação brasileira, nem de leve passaria pela cabeça de nossas di-
letas professoras ministrar aos capetinhas disfarçados de alunos que
tinham em suas salas de aula. Todos, sem exceção, mergulhados, des-
de aquela idade, senão antes, no besteirol aprendido e reforçado pelo
imaginário subjacente ao anedotário ensinado pelos mais velhos.
Longe das vistas de seo Anjo ou de algum de seus filhos, princi-
palmente Cassimiro e Estêvão, os jumentos eram usados pela popu-
lação como se fossem de uso público. Algumas vezes nós organizáva-
mos corridas com eles. Outras vezes, eles eram usados pelos adultos
para fins mais práticos. De certa feita, o escrivão Pedro Pereira da
Silva e o irmão de seu cunhado Norberto do Prado, o fazendeiro Or-
lando de Souza Prado, combinaram com meu pai de trazer-lhe no dia
seguinte uma banda de catingueiro. Fechada a negociação, cada um
pegou um jumento com sua cordinha de caroá e, com armas e redes
às costas, seguiram montados nos animais para a espera num pequi-
zeiro não muito distanciado da vila. Mais ou menos umas duas horas
depois que os caçadores haviam sumido de nossas vistas, vimos os
dois animais, em sua característica lerdeza, voltando para junto do
restante da tropa. Na manhã do dia seguinte, lá estava um rapazinho
gago criado por Orlando com a metade do veado prometido.
Cassimiro, o primogênito de seo Anjo, aprendera desde cedo
a cuidar da tropa e dos cargueiros, sempre conduzindo mercado-
rias. Fosse da vila para mesmo perto ou então para mais longe, era
comum ver-se ele e o pai com seus lotes de animais transportando
tudo quanto há de cá pra lá e de lá pra cá. Nessa época, pelo que me
recordo, rapaduras e mantimentos em grãos eram o que mais con-
duziam. Às vezes mercadorias deles mesmos; outras vezes, a soldo
dos interessados.
Um pouco mais tarde, meu pai convidou esse mesmo Cassimi-
ro para ser capataz de sua tropa. Então, acompanhado do moleque
João Pereira Valverde, o João Macaco, e mais um auxiliar com força
Memórias Catrumanas 176 Sidney Valadares Pimentel

para ajudar a botar e tirar as bruacas, por algum tempo esse ainda
jovem mas diligente nordestino conduziu nossos burros e mulas por
esse sertão adentro e afora. Inicialmente em viagens mais longas
para levar algumas mercadorias até São Romão e de lá trazer outras.
Depois, em viagens mais curtas em torno da vila, para mascatear
produtos “de loja”, cedidos pelo abastado comerciante de Belo Ho-
rizonte, Euclides Andrade, em regime de partição de lucros do mon-
tante negociado.
A tropa de carga que pertencia a meu pai constava de alguns
burros e mulas, acompanhados de todo o equipamento e arreatas
necessários ao transporte. Além desses, faziam parte da comitiva três
animais de sela usados pelos condutores, além de mais um ou dois
sobressalentes, espécie de reserva para substituir qualquer um em
caso de acontecer algum acidente de percurso. Além de servir para o
transporte de cargas, tanto a tropa de meu pai quanto a de seo Anjo
funcionavam como correio para conduzir correspondências e valo-
res ao longo de todo o caminho entre a vila e as áreas ribeirinhas.
Naquele tempo, os carros de bois foram mais um recurso
auxiliar do que um substitutivo do quase descomunal esforço dos
tropeiros e seus animais de carga. Reservados para o transporte em
dimensões e peso praticamente incompatíveis com os suportados pe-
los cargueiros, os carros de bois são uma segunda fase da abertura
dos caminhos que até o seu surgimento não passavam de tortuosos
trilhos cavados na relva. Não que, ante a relativa fragilidade dos re-
cipientes — as bruacas —, houvesse grande variedade de produtos
cujo transporte se tornasse impossível. Estes eram praticamente
inexistentes. Para o armazém de secos e molhados de meu pai, os
cargueiros traziam de São Romão quase todo o necessário. Pesadas
caixas de madeira contendo cada qual duas latas de querosene de vin-
te litros. Sacos de sal de trinta quilos. Robustas ferramentas confec-
cionadas em ferro e aço como machados, picaretas, marretas, chapas
de fogão de lenha etc.
Mas, para o alargamento dos trilhos, os carros de bois eram
insuperáveis. Chegado até nós pelas mãos dos colonizadores, esse
veículo medieval exigia um know-how que fazia a fama de muitos
mestres de ofício. Incontestável era que o saber envolvido na cons-
trução de um carro de bois devia ser amplo no que se referia aos
Memórias Catrumanas 177 Sidney Valadares Pimentel

materiais empregados e bastante aprofundado no tocante ao conhe-


cimento de cada material. A madeira usada, dependendo da oferta
existente, diferia muito de lugar para lugar quanto à fabricação das
chedas, do recavém, das cambotas, do cabeçalho, do meão, do eixo,
do cambão, das cangas etc. Além da quantidade a mais de mercado-
rias que os carros de bois podiam conduzir, desde que o terreno per-
mitisse o tráfego, havia uma economia de tempo considerável e uma
proteção maior dos bens transportados em travessias de rios, lagos e
pântanos, em virtude da altura das mesas dos carros, se comparados
aos cargueiros.
Existiam na vila muitos carreiros, carros e juntas de bois que
fizeram fama naquelas redondezas. Deixando o lamentoso e monó-
tono gemido produzido por cantadeiras muito bem untadas, os bois
puxavam seus carros que cruzavam a cidade calmamente, vagaro-
samente, pachorrentamente. Ou então rapidamente tocados pelos
aguilhões que entravam na pele como uma flecha envenenada. Eram
muitos os carreiros que fizeram fama em razão de sua perícia como
tocadores. Vêm-me à mente o Firmino com sua dupla Coração e Ca-
talão, o Pedro Bito com a junta Tigre e Tigreiro, e o Miru com o par
Alvejado e Formoso. E naquela época eu ainda não fazia a mínima
idéia de que a nomeação dos bois de carro obedecia cegamente às
descobertas saussurianas, cujo binarismo paradigmático era dado
ora pelo significante, ora pelo seu anverso, o significado.
Depois da etapa cumprida pelos carros de bois, foi a vez dos
veículos movidos à combustão, em especial caminhões, jipes e jardi-
neira, nessa ordem. Por volta de 1951, a população da vila teve no-
tícias de que um caminhão conduzido por um sujeito avalentoado e
irritadiço chamado Zé Rita andava transitando entre Formosa e a fa-
zenda do proprietário, chamada Campininha, que ficava na chapada,
para os lados da corrrutela de Cabeceiras de Goiás. Numa viagem de
cargueiros para entregar rapaduras em Cabeceiras, seo Anjo deparou
com o tal motorista que tinha o costume de lançar impropérios, seja
contra seus ajudantes, seja contra a sua máquina, quando o motor
desta porventura teimava em ratear, ou só pegar no tranco. Quando,
ao regressar à vila, o tropeiro pernambucano contou detalhes do que
vira, alguns moradores o tomaram por exagerado, outros por menti-
roso. Foi esse chofer, sem sombra de dúvida, o primeiro aventureiro
Memórias Catrumanas 178 Sidney Valadares Pimentel

do volante que teve a ousadia de levar o seu caminhão além da então


corrutela de Cabeceiras de Goiás na direção nordeste, descendo a
serra, ainda hoje íngreme e cheia de armadilhas, que dá acesso ao
vale do Urucuia, em geral, e à antiga vila de Buritis, em particular.
Nesse mesmo ano, como parte dos entendimentos que vinha
fazendo para a constituição da sociedade comercial com meu pai e
nosso tio Joaquim Gomes Pimentel, que tocava um pequeno comér-
cio num local denominado Fazenda da Roça, perto da Barra da Vaca,
tio Alcides adquiriu um caminhão usado, mas seminovo, do mesmo
Zé Rita, que veio a constituir o seu capital inicial na sociedade de-
nominada Irmãos Pimentel Ltda. Como vimos anteriormente, esse
caminhão da marca Chevrolet e o GMC, ano 1954, que o substituiu,
foram os veículos responsáveis pelo transporte de passageiros e mer-
cadorias até a dissolução da sociedade no final da década. E mesmo
quando, por volta de 1955, um sujeito louco de pedra chamado Ar-
tau, ou algo parecido, abriu uma linha para passageiros com uma jar-
dineira caindo aos pedaços, o caminhão GMC da firma cobria as ir-
regularidades da jardineira com as suas prórias inconstâncias já que,
apesar da confiança dos usuários, as datas da partida e da chegada
eram absolutamente impossíveis de ser previstas.
Hoje em dia, contando ninguém acredita. Mas, não obstante a
situação deplorável da furreca do Artau, ainda me lembro de como
ele, à semelhança de um Fitzcarraldo brasileiro, mandara escrever em
grossas letras sobre a faixa de lataria existente acima das barulhentas
janelas da jardineira o otimista roteiro: Buritis-Cabeceiras-Formosa-
Alvorada-Cavalcante-Flores-São João da Aliança-Arraias-Veadeiros.
Intento que ele nunca conseguiria realizar nem mediante milagre.
Eu, por mim, jamais ouvi falar de alguém que tenha cumprido o ro-
teiro anunciado.
Feliz ou infelizmente para os usuários que costumavam usá-la
no trecho da vila até Formosa, um dia em que o dono a abandonou
no alto da serra com algum defeito momentaneamente insaná-
vel, Abelardo, um outro motorista não menos ajuizado, que mais
tarde se casaria com nossa irmã Valdeci, abalroou-a, projetando-a
num precipício de mais de 50 metros de altura. Até muito tempo
depois ainda podiam ser vistos vestígios da lataria cor-de-terra da
acidentada jardineira. Para a população da vila, que mesmo nos
Memórias Catrumanas 179 Sidney Valadares Pimentel

momentos de viagens ditas regulares nunca abandonara o cami-


nhão de nosso tio, foi como se a jardineira do utópico Artau nunca
houvesse existido.
Até o final da década, salvo a presença intermitente do Merce-
des Benz Unimog U401, que se assemelhava mais a uma máquina de
guerra do que a um veículo propriamente dito, existiam na vila ape-
nas dois jipes pertencentes aos irmãos Orlando e Norberto de Souza
Prado e uma caminhonete modelo Marta Rocha de propriedade de
meu pai. O citado Unimog pertencia a um certo Geraldão, sócio do
pescador Marcol por algum tempo, que conduzia pescado para ser
revendido na cidade goiana de Anápolis.

Embora a estrada continuasse em estado deplorável, a partir de


1952 intensificou-se sempre mais e mais o trânsito de veículos moto-
rizados que vinham de, ou iam para Cabeceiras, Formosa e Anápolis,
a exemplo do caminhão do pioneiro Zé Rita; dos dois caminhões que
pertenceram à firma Irmãos Pimentel Ltda.; de um caminhão per-
tencente ao também pernambucano Salustiano Rodrigues Santana,
de alcunha Preto Santana (irmão do comerciante Sinésio), morador
no então povoado de Barra da Vaca e casado com uma moça da vila,
filha do pescador Marcol, que de vez em quando dava os ares da sua
presença por cá; dos dois jipes pertencentes aos irmãos Orlando e
Norberto, além do esquisitérrimo jipão Unimog em que o aventurei-
Memórias Catrumanas 180 Sidney Valadares Pimentel

ro Geraldão carregava mensalmente toneladas de peixe, provenien-


tes principalmente dos rios Urucuia e São Domingos.

Nesse período, inúmeras foram as vezes em que se organizaram


verdadeiros batalhões de trabalhadores (quase sempre capitaneados
por seo Anjo), que, mediante alguns trocados, ou em regime de mu-
tirão, mourejaram para tapar buracos e arrancar tocos em desvios,
com o objetivo de evitar lamaçais e atoleiros que impediam o trân-
sito dos veículos mais pesados. Esses empecilhos eram verdadeiros
pântanos por onde não se conseguia atravessar nem com o uso das
providenciais correntes, que eram o recurso mais recorrente na épo-
ca, sendo necessária a procura, nas imediações dos atoleiros, de fa-
zendeiros de boa vontade que concordassem em ceder duas ou mais
juntas de bois de carro para arrastar o caminhão ou veículo mais leve
para fora do lamaçal. Isto assim quando não era o próprio veículo,
que, com excesso de carga, punha abaixo um mata-burro ou ponte,
como sucedeu certa vez com o caminhão dirigido por tio Alcides no
córrego denominado Dois Irmãos, a poucos quilômetros da vila.
Artífices e artefatos

Ainda que não existissem em número elevado, os profissio-


nais com domínio sobre determinadas técnicas eram mais do que
suficientes para suprir as demandas dos moradores que, por sinal,
não eram excessivamente amplas. No campo da metalurgia, que exi-
gia a intervenção dos oficiais na fabricação ou reparo dos objetos
mais exigidos no dia-a-dia da população, o ferro, tanto em estado
puro quanto em suas várias combinações, era o metal de uso mais
geral. Em conseqüência, entre os objetos danificados ou em desu-
so, os mais procurados eram aqueles em que o ferro entrava como
o seu elemento básico de composição. Tanto que peças ou pedaços
de ferro oriundos de engrenagens ou máquinas que perderam sua
funcionalidade não costumavam ser encontrados dando sopa, como
era costume dizer, nos quintais ou em terrenos baldios. Assim, mais
hoje ou mais amanhã, qualquer tranqueira perdida por ali podia ser
transformada por algum dos nossos bricoleurs catrumanos em algo
útil. Fosse na fabricação de um facão, de uma faca, de um anzolão
para pinda, do cão ou pinguelo de uma espoleteira, de uma dobradi-
ça para cancela, de um arpão, de ferragem para as rodas de um carro
de boi, e daí afora.
De minha lembrança, estabelecidos na vila havia dois ferreiros
propriamente ditos e um terceiro, que era mais latoeiro do que outra
coisa qualquer. Este último, chamado Manoel Ribeiro da Silva, mas
conhecido em toda a região pelo apelido de Nezim Pé-de-Chumbo,
Memórias Catrumanas 182 Sidney Valadares Pimentel

morava na praça da igreja, entre a casinha que abrigou durante algum


tempo a professora Zeta e a casa onde viviam a velha siá Norberta
e sua neta Maria Pompília. O Nezim trabalhava preferencialmente
com alumínio e zinco, além de outros metais tão facilmente dobrá-
veis ou amoldáveis quanto estes.
Nas viagens em que tio Alcides trazia mercadoria para a loja
em grandes caixas de compensado e de pinho, ou em grandes fardos
de algodão, o Nezim ficava ali, de botuca, esperando que alguém re-
tirasse as cintas de liga de aço que protegiam os invólucros para que
ele as levasse consigo. Algumas vezes, ele próprio ajudava a desmon-
tar os embrulhos, lançando mão do bico-de-arara, ferramenta usada
para cortar as fitas, e dava sua quota de contribuição. Como com-
pensação pelo que ganhava, de vez em quando ele presenteava meu
pai com um bom funil ou com um novo ralo para milho. Podiam ser
encontrados também em sua oficina, que mais se assemelhava a uma
Meca de latão e alpaca, outros objetos de utilidades diversas, como
lamparinas, copos de latas de formicida Tatu ou de litros de óleo de
soja Sol com asas fixadas em pontos-rápidos, latas de querosene com
a beirada rebatida etc.
Além de fabricar utensílios vários para o dia-a-dia da popula-
ção, Nezim tinha também uma grande capacidade inventiva. De cer-
ta feita, ele bolou uma carrocinha adaptada para vender uma espécie
de suco que a própria família manipulava e ele distribuía principal-
mente durante o período de maior acúmulo de pessoas, como por
ocasião da romaria de Nossa Senhora da Pena.
A carrocinha possuía na parte de baixo, dissimulada por uma
caixa envolvente de madeira e alumínio, um recipiente redondo ajus-
tado na parte superior a uma pequena bomba de sucção terminando
na ponta por uma canícula de alumínio em formato curvo. A bomba
propriamente dita assemelhava-se a uma almotolia de lubrificação
que sugava o líquido quando o Nezim fazia subir e descer uma pe-
quena manivela, fazendo-o jorrar no interior de uma caneca. O reci-
piente continha, ora um líquido esverdeado, como se fosse feito de
essência de clorofila, ora avermelhado, assemelhando-se ao suco de
tomate maduro. Para diferençá-los, ao primeiro o inventor e comer-
ciante chamava de verde e, ao segundo, de maduro. Tanto no adoci-
cado, quanto no sabor, ambos eram idênticos, apenas a coloração os
Memórias Catrumanas 183 Sidney Valadares Pimentel

diferia. Aos poucos, a própria freguesia acabava concluindo que nada


de substancial os separava. E quando não descobria por si própria e
alguém dizia que não queria o verde, queria era o maduro, o Nezim
mesmo acabava com a ilusão do comprador revelando que a colora-
ção vinha dos mesmos papéis de seda que usávamos na fabricação de
papagaios.
O trabalho do Nezim, no tocante à rudeza e à complexidade
dos instrumentos que manipulava, situava-se alguns graus abaixo
dos demais catrumanos matalúrgicos, isto é, o Pedro Ferreira e o
João Preto. Quanto ao primeiro, eu nunca soube de fato se ele era
Ferreira de família ou Ferreiro de profissão. Podia ser qualquer um.
Ou os dois ao mesmo tempo.
Tenho poucas lembranças do Pedro Ferreira. O que perma-
nece em minha memória com maior nitidez é seu tosco avental de
couro curtido todo enegrecido de fuligem ao lado da fornalha e do
fole que fazia fuuuiiiiiip, fuuuiiiiiiip. A tenda do Pedro ficava relati-
vamente perto da casinha rústica de adobe onde moravam sua filha
Antoninha e seu genro Joaquinzinho. Vivia ainda com esse casal, na
mesma casa, uma mulher com problemas de sanidade mental chama-
da Lídia. Além de ferreiro, o Pedro era também fogueteiro, sendo o
único detentor do saber pirotécnico de que me lembro na vila.
Se o Pedro era um oficial voltado mais para a reparação de
danos, isto é, um tipo de profissional a que hoje chamaríamos de
quebra-galho, o João Preto era um oficial de mão-cheia. A casa onde
ficava a sua tenda e onde morava com a mulher Leonídia, o filho An-
tônio e as filhas Alzira e Nelci estava situada na mesma praça onde
fora construído o grupo escolar. Na cerca de arame farpado que sepa-
rava o lote do ferreiro do imenso quintal do grupo havia alguns fios
folgados, outros sem os grampos, arrancados de tanto atravessarmos
pra lá e pra cá.
O Antônio, a Alzira e a Nelci estudavam no grupo. A Nelci, que
estudava na minha sala, tinha o impronunciável apelido de Zói-de-
Boi-Morto. Tratá-la por aquela alcunha era o mesmo que convidá-la
para uma luta corporal. Dália Lopes, nossa mestra do segundo ano,
fazia de tudo para apaziguar os ânimos em sala, mas às vezes ela
própria perdia as estribeiras com a Nelci em razão de seu palavreado
considerado impróprio para uma moça de boa família.
Memórias Catrumanas 184 Sidney Valadares Pimentel

Uma vez, depois de dar tratos à bola para conseguir responder


às perguntas de uma prova de Língua Pátria, nossa querida colega
entregou a folha de papel almaço rabiscada dos dois lados, ao mesmo
tempo em que expressava o ânimo em que se encontrava naquele mo-
mento com a seguinte frase: “Pra mim chega. Se estiver bom, bem; se
não estiver, eu mando a bucha”. Surpresa ante o palavreado grotesco
da Nelci, Dália piscou seguidamente os olhos celestiais e repreendeu-
a com a seguinte observação: “Muito bonito para uma moçona do
seu tamanho dizer uma expressão dessa”. E repetiu-a com um certo
desdouro, como a testar o sabor que aquelas palavras teriam em seus
lábios de mestra que só deviam dar os bons exemplos.
O João Preto trazia os filhos no curto, apesar de ser com eles
todo finezas e educação. Com eles e com todos nós que de vez em
quando nos achegávamos pela frente da casa para pedir a devolu-
ção de uma bola que inadvertidamente atravessara a janela e caíra
dentro de casa, ou um copo d’água para mitigar a sede causada por
estafante pelada na praça. O João era isso tudo. E o que ele tinha de
amabilidade tinha de competência em sua oficina, ou melhor, em sua
tenda de ferreiro. Era um oficial inventivo. Sempre que meu pai pre-
cisava de encontrar uma solução criativa para alguma engrenagem
que estava a lhe queimar as pestanas já há algum tempo, dizia ao
João Macaco: “Vai lá e diz àquele nego safado que eu estou chaman-
do ele aqui”. Nem precisava explicar a quem ele se referia, o João já
sabia. Dali a pouco vinha o João Preto despido de sua encarvoada
sobrepeliz e um sorriso escancarado de orelha a orelha: “O que é
que esse comedor de bode quer comigo?”. Explicada a dificuldade,
em pouco tempo ele apresentava uma solução ou uma maneira de
contornar o problema. E a sugestão dele era sempre a mais acertada
e a que melhor se ajustava.
Durante o período em que vinha constantemente ao sertão
em seu teco-teco naquela distante década de 1950, freqüentemente o
coronel Manoel José de Almeida, deputado federal e presidente das
escolas Caio Martins, enfrentava condições adversas nos improvisa-
dos campos de aviação das pequenas cidades e povoados. O da vila de
Buritis, especialmente, fora construído no cerrado próximo com o
uso de foices, enxadões e enxadas. Por maior que tenha sido o capri-
cho e mais competente a orientação dos trabalhos, na faixa de terra
Memórias Catrumanas 185 Sidney Valadares Pimentel

chamada de pista permaneceram muitos tocos e raízes que sempre


causavam problemas nas operações de descida e decolagem.
De certa feita, não sei se acrescidas às imperfeições do terre-
no a imperícia do aviador, uma das peças que compõem o trem de
aterrissagem, ou seja lá o que for, topou num toco mais resistente e
partiu-se. Felizmente para a importante tripulação, não ocorreu ne-
nhum dano maior até que o piloto recuperou-se do susto e conseguiu
estacionar a aeronave antes de penetrar no ralo cerrado. Examinado
o estrangolo causado pelo toco, verificou-se que não era possível co-
locar o avião no ar novamente sem antes consertar ou substituir a tal
peça. Tio Alcides, que numa situação difícil daquelas seria o salvador
da pátria, tinha ido levar uma mudança em Corumbá de Goiás e, con-
tando com a sorte, sua volta estava sendo aguardada somente para
dali a dois dias, visto que de Corumbá ainda iria até Anápolis, a fim
de fazer compras para a loja da vila e a da Fazenda da Roça.
Estavam nesse ponto as considerações sobre o saneamento das
dificuldades causadas pelo infeliz acidente, quando meu pai, como
se voltando de uma longa ausência, bateu a mão no balcão e disse:
“Gente, e o João Preto? Aquele nego safado é bem capaz de dar um
jeito nisso”. Sabedor do motivo pelo qual estava sendo convocado à
nossa casa àquela hora, quando D. Leonídia já se preparava pra botar
a janta na mesa, o João botou uma roupa limpa e desceu a rua arras-
tando a velha chinela de couro. Ciente da dificuldade, pegou a peça
partida, rolou-a na mão para sentir-lhe a consistência e o aspecto tá-
til, depois aproximou-se do lampião que chiava suspenso a um canto,
observou a liga e devolveu a peça à mão de meu pai. “Posso tentar
soldar, mas o melhor mesmo era fazer uma nova”, disse.
O coronel, extenuado do calor preguento que descia sobre a
vila, olhou para o ferreiro, depois para o aviador e para meu pai e
balançou a cabeça quase imperceptivelmente. “Sei não, mas parece
que o coronel prefere que você solde isso aí pra ver como é que fica”,
disse meu pai. O ferreiro rolou as peças mais uma vez nas palmas das
mãos e aceitou: “Está bem, o senhor é que decide”. Encerrada a reu-
nião, o João Preto pegou os dois pedaços e saiu. Na manhã do dia se-
guinte, pouco depois do café, chegou o ferreiro com a peça reluzindo
de tão polida. Não se via nela nenhuma cicatriz, nenhuma marca de
solda. Levada ao avião, ajustou-se à perfeição como se fosse nova em
Memórias Catrumanas 186 Sidney Valadares Pimentel

folha. Surpreso, o coronel não tinha palavras que coubessem o seu


contentamento com a ciência do ferreiro. Sanado o problema, entra-
ram no avião o coronel e o aviador e se foram bem anchos de seus.
Passados dois ou três meses, lá vem o deputado de novo. De-
pois dos cumprimentos de praxe, meu pai perguntou se a peça tinha
ficado boa mesmo. “Tão boa, que nunca foi substituída. Está lá no
lugar até hoje”, disse o coronel. Meu pai foi, abriu uma gaveta, tirou
as duas partes da peça partida e devolveu-lhe dizendo: “Aquela que o
senhor está usando é a nova que o João fez, a sua quebrada está aqui”.
E todos riram muito do acontecido.
Pedreiros e carpinteiros também eram dois tipos de profissio-
nais a que se recorria muito na vila. Ambos costumavam trabalhar
juntos numa construção. Muitas vezes um até assumia o papel do
outro. Tudo dentro de uma escala de aprendizagem do trabalho mais
simples para o trabalho mais complexo. Os primeiros iniciavam como
carregadores e misturadores de material de construção ou, como é
mais próprio dizer, como serventes. Com a aprendizagem, passavam
a pedreiros. Estes últimos demoravam muito a ser formados. No final
da década, o pedreiro reconhecidamente de maior competência era
um adventista chamado Raimundo Olímpio das Neves, ou, como era
mais conhecido, Raimundo de Marieta. Ele começara seu aprendiza-
do trabalhando como servente, principalmente de seu irmão Miro.
O que acontecia com os profissionais da argamassa, ocorria
também com os da madeira. Começava-se aprendendo a aparar ma-
deira para assentar caibros e ripas. Depois o aprendiz passava para os
segredos da fixação das águas e da cumeeira, até se transformar num
mestre de todo o madeiramento. Muitas vezes o carpinteiro aperfei-
çoava-se tanto na arte do corte, dos encaixes, da sustentação, do ali-
samento e da fixação, que findava por evoluir para uma outra arte, a
da marcenaria. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Zé Martins,
um profissional da transformação da madeira que era tão elogiado
e tão procurado como carpinteiro quanto como marceneiro, tendo
sido responsável pela fabricação de todos os móveis de algumas casas
da povoação.
Alfaiate não havia. Nenhum para contar caso do outro. Não sei
se por preconceito machista com uma profissão que era tida funda-
mentalmente como atividade do gênero feminino, ou se por outro
Memórias Catrumanas 187 Sidney Valadares Pimentel

motivo qualquer. Entretanto, várias eram as costureiras que cuida-


vam da fabricação de roupas tanto masculinas quanto femininas.
Além das costureiras profissionais, era comum que algumas donas
de casa tentassem suas costuras, alinhavos e chuleios, mesmo corren-
do o risco de botar perdidos cortes de fazendas de raro valor como
costumava acontecer com algumas tidas como barbeiras. Para cobrir
o sentido dessa imperícia, a cultura local cunhou até um termo que
era usado mais amplamente do que apenas no mundo da costura, o
de matão ou matona. Ah, você vai levar esse corte de popeline (ou de
brocado, ou de organza) para fulana fazer? Cuidado que ela vai botar
ele perdido. Ela é uma matona. Olha que o da comadre beltrana ficou
parecendo roupa de carregação.
Antes de haver-se generalizado no país, meu pai implantou
na loja a moda do prêt-à-porter. A costureira encarregada de cortar
e coser uma batelada principalmente de calças e camisas era D. Ne-
grinha. Essa senhora era uma mulher magra, com aspecto de frágil,
mas que tinha ajudado a criar na agulha e na máquina uma filharada,
composta em sua maioria de mulheres. Quando ela e o marido, Gil
do Prado, viviam numa casa alugada defronte à que morávamos na
rua do Meio, todos os filhos já haviam nascido e desde então ela já
trabalhava como uma moura para ajudar a criar os filhos. A respon-
sável pela escolha das fazendas, quanto a padrão e cores, era minha
mãe. Cáqui era a cor que mais saía. Além de costurar para a loja e
para toda a população da vila, era D. Negrinha também quem fazia
as roupas talhadas à nobreza que eram usadas por seo Rezende: cal-
ças, paletó, colete e camisa. Como ele era meio corcunda, ela fazia
questão de fazer a prova com ele vestido para evitar desvios no talhe.
Quem também costurava bem e dividia com D. Negrinha uma larga
parcela dos que encomendavam roupas novas era uma viúva chama-
da D. Júlia, mãe de meu padrinho Baltazar Fonseca Melo.
Havia ainda uma modista, prima e vizinha nossa, chamada
Odete Pitangui do Prado, que só costurava para mulheres. Tendo ti-
rado o corte fora, não sei bem se em Paracatu ou Formosa, Odete era
a modista por excelência do lugar e a mais requisitada, não sei se em
razão do seu talhe, ou porque era a única a possuir pilhas e mais pi-
lhas de revistas de moda, ansiosamente vasculhadas pelas freguesas
na tentativa de encontrar um modelo adequado para o evento de que
Memórias Catrumanas 188 Sidney Valadares Pimentel

tinham em mente participar. Diga-se, a bem da verdade, que nem


sempre o modelo escolhido continuava em moda nos grandes cen-
tros, mas a defasagem era relativizada pela modista ou pela freguesa
com um dar de ombros, expressão do isolacionismo, que queria di-
zer mais ou menos o seguinte: “Ah, deixa. Como ninguém de lá vem
cá pra ver que estamos desatualizadas e como ninguém daqui vai se
mostrar lá, façamos de conta que não existe o aqui e o lá”.
Não é de minha lembrança que durante os anos 50 tivesse ha-
vido na vila mais de um açougueiro. Quando eu digo açougueiro,
estou me referindo ao magarefe que se dedica ao sacrifício, destrin-
chamento e venda de carne, pelo menos bovina, num local de comer-
cialização chamado açougue. Carniceiros ou esfoladores domésticos
de suínos sempre houve, sendo a coisa mais natural a criação e a
engorda de porcos em chiqueiros nos quintais, animais que eram ali-
mentados com restos de comida e milho, e abatidos para o consumo
doméstico com uma certa periodicidade.
O açougueiro da vila tinha a alcunha de seo Neco. Minha mãe
o tratava por Compadre Neco. Seu açougue resumia-se a um peque-
no e abafado cubículo na rua de Trás, quase na confluência com o
Beco de Sinésio, onde ficava também sua residência. Havia na saleta
que servia de açougue uma espécie de longarina que a atravessava
pouco abaixo de onde começavam os caibros roliços de pereiro. Nes-
sa travessa eram atadas algumas cordas grossas de caroá, enegrecidas
de sebo e sangue coalhado. As cordas eram amarradas na travessa em
pontos espaçados, deixando aparecer uma volta dupla que termina-
va num pequeno laço. Era nessas voltas, em número de quatro, que
ficavam dependurados os quartos das reses sacrificadas. O método
usado para exposição da carne era muito simples. Pouco acima das
canelas da rês, o açougueiro trespassava o músculo de um lado para o
outro com uma faca de ponta afiada e, suspenso o quarto, enfiava-se a
volta da corda por aquela abertura. Do outro lado, o laço recebia um
pequeno toco que funcionava como uma presilha de sustentação.
Naquele tempo, não havia um matadouro onde se realizavam
os sacrifícios. As reses recebiam a sangria lá mesmo onde eram com-
pradas, fosse num curral ou no mato. Nessas suas empreitadas, seo
Neco andava sempre num cavalo esperto, de modo a não permitir
que a rês escolhida tivesse a oportunidade de debandar. Laçada a ví-
Memórias Catrumanas 189 Sidney Valadares Pimentel

tima, a primeira tarefa antes de proceder-se ao massacre era cortar


alguns arbustos folhudos como é o caso do assa-peixe, ou galhos de
árvore, para não permitir que a carne exposta retivesse muita sujeira
e se desvalorizasse. Feito todo o alvoroço de esfaqueamento e aber-
tura do corpo da infeliz vítima, era importante que já estivesse pro-
videnciado, e ali por perto esperando, um veículo para o transporte
da carne até o açougue. Em geral, esse meio de transporte reduzia-se
a um dos não muito abundantes carros de bois existentes por ali,
ou à carroça de seo Marcol. Em qualquer um dos casos, repetia-se a
operação de calçar o veículo com folhas para evitar a perda de suas
características naturais e, pois, também de seu valor.
Chegando a rês abatida ao açougue, não havia a necessidade de
informar a nenhum dos moradores que havia carne à venda, já que,
por um processo de comunicação informal, todos já sabiam da novi-
dade e os interessados ali se encontravam à porta aguardando que os
quartos fossem devidamente desmembrados para levar para casa o
pedaço de sua preferência. É interessante apontar que os moradores
não aguardavam em fila, mas compondo uma aglomeração meio dis-
persa, sabendo cada um qual era a ordem de precedências e o lugar
que ocupava nessa ordem. Não me recordo de nenhuma situação em
que a fila, como um tipo de organização a um tempo igualitária e
hierárquica, se impusesse a todos como um aspecto do automatismo
psicológico. Quando começava a distribuição dos nacos, nem todos
saíam satisfeitos com o que conseguiam, já que alguns pedaços eram
reservados por antecipação, não se encontrando mais à venda.
Muitas famílias compravam fiado, mediante o uso da caderne-
ta. Caderneta é maneira de dizer. Seo Neco ia anotando num pedaço
de papel de embrulho pardo com um lápis da ponta bem rombuda
e depois passava para um velho caderno de arame das folhas sujas e
corroídas. O caderno de seo Neco não tinha uma folha destacada para
cada correntista. Cada vez que o freguês mandava buscar uma porção,
ele anotava o nome da pessoa e o valor correspondente, sem se preocu-
par em especificar o tipo de carne e o peso entregue. Apesar dessa desor-
ganização, eu nunca tomei conhecimento de que alguém tenha colocado
dúvida sobre tais anotações no momento do acerto de contas.
A carne vendida por seo Neco não era classificada de acordo
com múltiplos critérios dados pela sua localização, pensada do ponto
Memórias Catrumanas 190 Sidney Valadares Pimentel

de vista da fisiologia bovina. Se, por exemplo, um freguês chegado de


fora tivesse vontade de comer um patinho, ou contrafilé, ou picanha,
podia ir tirando o cavalinho da chuva que no açougue de seo Neco
ele nunca encontraria uma porção de carne que se ajustasse a tal no-
menclatura. Seo Neco só vendia “carne boa” ou “carne de segunda”,
homogeneizando e reduzindo a fisiologia do animal a esse padrão
bipolar.
Se objetivamente o seu produto só atingia esse grau classifi-
catório, de um ponto de vista subjetivo, ele usava outros expedien-
tes para vender seu peixe, digo, sua vaca. Imagino que se tratasse de
um apelo publicitário para comercializar o produto como o que se
usa hoje no setor de combustíveis, em que, não obstante o compra-
dor pague por um aditivo, de fato ele não só não tem a menor idéia
do que está comprando, como sequer sabe se é algo com existência
comprovável. Também para a carne, seo Neco usava um apelo simi-
lar, ainda que não cobrasse mais ou menos por ele, não passando,
isto sim, de mais um motivo dado ao freguês para decidir a compra.
Criando um neologismo para explicar, digamos que esse apelo pu-
blicitário pudesse ser classificado como um certo grau de “churu-
mabilidade”, presente numa frase que ele sempre dizia à minha mãe
quando a vaca estava gorda, mas não excessivamente: “Vamos levar
carne boa, comadre, que a carne hoje tá churumada. Tá churumada,
comadre, churumada”.
Minha mãe, então, pedia o seu pedaço que, depois de bem lim-
po dos rejeitos e muxibas, seu compadre lhe entregava atado a um
forte pedaço de cordonete ou barbante. Porque nessa época não se
embrulhava a carne a ser levada para casa. Furava-se o naco e atraves-
sava-se um fio de forte barbante em cuja volta o freguês enganchava
o dedo e seguia com o pedaço à mostra, algumas vezes sendo vigiado
a pouca distância por alguma matilha dos cães vadios que costuma-
vam perambular pela vila. Esse costume foi responsável pela criação
de um chiste que era sempre repetido quando alguém desfilava com
seu pedaço de carne no cordão e o outro, para referir-se à muxiba-
gem do que passava, dizia: “Vai pescar hoje?”.
Mais na frente, no momento oportuno, reportar-me-ei a um
assassinato que foi perpetrado por um indivíduo categorizado como
tantã, de alcunha Bola, motivado por ciúme de sua irmã com a víti-
Memórias Catrumanas 191 Sidney Valadares Pimentel

ma, um certo Teófilo. O morto, sendo parente de seo Neco ou de sua


esposa, depois da machadada que levou no crânio, foi levado para
o açougue e, na falta de local mais apropriado, ou, por ser costume
na vila colocar-se os mortos sobre um banco, foi depositado sobre
uma banca espessa de madeira de lei onde o açougueiro costuma-
va deitar o cachaço de suas vítimas bovinas para seccionar, também
com machado, as cartilagens e a medula do espinhaço, que serviriam
para compor um substancioso ensopado. O certo é que, se naque-
le momento alguém se lembrou de fazer algum comentário sobre a
coincidência do destino do infeliz Teófilo e dos sacrificados bovinos,
dias depois, quando seo Neco retomou sua atividade de magarefe,
ninguém se recordava mais de nada.
Curas e curadores

Quando for contada, com maior rigor do que apresento aqui, a


história dos processos e alternativas de cura do infindável número de
enfermidades com que a população da vila era obrigada a conviver
por força das circunstâncias, ela certamente não haverá de começar
com o uso de drogas e medicamentos manipulados em complexos
laboratórios e adquiridos em farmácias e boticas.
Hoje em dia parece não haver dúvida quanto ao fato de que o
primeiro médico formado que atendeu a enfermos em nossa terra foi
um pernambucano chamado Antônio Cavalcanti de Melo Azedo. Du-
rante o final da Segunda Guerra Mundial, esse profissional da cura,
uma espécie de periodeuta bem-sucedido e competente, andou fazen-
do seus milagrezinhos em boa parte dos gerais que vão da Vila Riso-
nha de São Romão até Unaí, passando pelos povoados catrumanos de
Barra da Vaca e vila de Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia.
É preciso mencionar neste ponto que, antes desses sucessos
da ciência hipocrática, viviam mais perto ou mais longe do casario
alguns raizeiros e raizeiras, que exercitavam um tipo de medicina
popular de base fitoterápica. Recordo-me, em especial, de dois: o
Raimundinho e a D. Marcelina, o que sugere não haver, entre eles,
uma reserva de mercado para a cura categorizada a partir da noção
de gênero. Podia haver, talvez, uma procura preferencial construída
em razão do sucesso ou fracasso na cura de determinadas doenças
por este ou aqueloutro terapeuta.
Memórias Catrumanas 193 Sidney Valadares Pimentel

D. Marcelina era uma mulher clara que vivia numa fazenda si-
tuada na região denominada Pasmado. Freqüentemente um seu filho,
o Sebastião Vaz, aparecia em nossa loja para comprar litros do vinho
Moscatel, componente obrigatório das eficazes garrafadas que tanto
sua mãe quanto o Raimundinho manipulavam. Nunca consegui sa-
ber se todo o carregamento de vinho que o Sebastião Vaz acondicio-
nava em resistentes alforjes chegava intacto ao “laboratório” de D.
Marcelina, ou se, sendo ele um beberrão de marca maior, conseguia
desviar parte do produto para seu próprio consumo.
Já o Raimundinho, como o vi algumas ocasiões na vila, era um
sujeito grenhudo, pequeno e magricela, de pele puxando para o par-
davasco, barba rala por fazer, que gostava de andar descalço e com
as barras da calça de algodão cru arregaçadas até o meio das canelas
meio arqueadas. Similarmente a D. Marcelina, Raimundinho exercia
um saber próximo da prática xamânica, por usar em sua terapêutica
uma combinação do poder de substratos de plantas e animais com o
poder sugestivo da linguagem.
Entre os substratos, era quase infinita a composição dos ele-
mentos retirados dos animais, alguns dos quais eram usados de
modo mágico, como as vergônteas do boi, do jumento e da anta; o
bico torrado de certos pássaros; o sebo do carneiro; o óleo de certos
peixes e de mamíferos, como o quati, além de muitos outros. Mas era
no reino vegetal que se encontrava a imensa maioria dos componen-
tes que nossos taumaturgos catrumanos combinavam em suas mei-
zinhas doces e amargas, como quitoco, erva-cidreira, capim-santo,
gengibre, barbatimão, catuaba, verga-tesa, arnica, hortelã-pimenta,
fedegoso, buchinha, tipi, canela-de-perdiz, copaíba, favela, cagaita,
pimenta-de-macaco, erva-de-bicho e vários outros. Não podemos es-
quecer, como disse mais acima, que era comum os elementos cons-
tantes das garrafadas dos curadores virem dissolvidos em litros e li-
tros de um vinhozinho fraco e doce, o que davam principalmente às
folhas, cascas e raízes uma palatabilidade mais aceitável e ao gosto
dos consumidores de cura.
Além do saber fitoterápico, encontrava-se envolvido também
na cura um outro conhecimento que fazia com que os terapeutas
fossem tidos como raizeiros, rezadores e benzedores. De fato, xa-
mãs. E nesse aspecto a sapiência catrumana era tão vasta quanto a
Memórias Catrumanas 194 Sidney Valadares Pimentel

que envolvia a cura por meio da ingestão ou o simples contato com


elementos menos palpáveis. Havia, então, rezas e benzeduras para
tudo, ou melhor, contra tudo. Contra espinhela caída, mordida de
cobra, desarranjo intestinal, dor de dente, queimaduras, quebranto,
carne quebrada, arca caída, sapinho, sol, cobreiro, engasgo, nó nas
tripas, sangue esgotado e muitos outros incômodos. Eu próprio fui
atendido de certa feita por uma fabulosa benzedeira da vila chamada
siá Pedra.
Na época eu tinha lá os meus dez ou onze anos e andava aco-
metido de uma febre esquisita que me prostrava na cama sem ânimo
para nada. Depois de medir com um lenço a distância que ia do indi-
cador até o cotovelo e dobrar essa medida, a xamã verificou quanto
era maior do que toda a cintura. Mostrou então que a irregularidade
existente era prova mais do que segura de que o que eu tinha era espi-
nhela caída. Mas disse que com três dias seguidos de benzimento não
tinha pã nem quã. O mal cedia mesmo. Indagou em seguida se nossa
governanta — que estava por ali em volta, pronta para qualquer even-
tualidade ou adjutório — estava naqueles dias, e como ela dissesse
que não, siá Pedra encarregou-a de ir na horta buscar três raminhos
de arruda com os quais me benzeu. Ao final do benzimento, espan-
tou-me verificar que, como ela supusera, os ramos de arruda real-
mente haviam murchado, como se tivessem sido levados à chama.
Havia ainda um outro procedimento voltado para a cura — este
também de natureza não-instrumental, como o eram a fitoterapia e
a alopatia pura e simples —, relacionado ao catolicismo popular e às
manifestações devocionais milagreiras, que podia ou não ser utiliza-
do separadamente de qualquer outra das modalidades terapêuticas.
Na falta de melhor denominação, proponho chamá-la de cura por
correspondência, não somente porque nos pedidos ou agradecimen-
tos os devotos usavam bilhetes ou pequenas cartas, mas também por-
que o momento posterior à manifestação da cura era marcado pela
correspondência entre a parte curada e o ícone representativo desta.
No fundo, não é nada mais nada menos do que a simbolização da
cura por meio do ex-voto.
Nesse caso, a cura era o ponto final de uma cadeia que come-
çava com uma privação de certo aspecto do funcionamento do or-
ganismo, dos sentidos, de um órgão etc. e que, mediante uma pro-
Memórias Catrumanas 195 Sidney Valadares Pimentel

messa do doente ou de alguém da família feita a determinado santo


ou santa, fazia com que a doença regredisse ao seu estado de saúde.
Era assim que, similarmente ao que acontecia com o curador ou o
médico, chegava o momento de pagar pela graça concedida. Podia
acontecer que o bilhete ou carta bastasse, mas o mais comum era que
ele viesse acompanhado de uma pequena escultura de madeira ou de
cera tomando a forma da parte antes prejudicada e, agora, sã.
Se os curadores tinham uma ação local, a crença de que os san-
tos e em especial Nossa Senhora da Pena tinham mana para curar, ul-
trapassava os limites da vila. Vinha gente de várias partes para fazer
uma promessa, ou agradecer pela graça recebida. Tanto uma quanto
a outra eram encaminhadas por meio de uma correspondência. A
diferença era que, depois de recebida a graça, isto é, a cura, o peque-
no texto se fazia acompanhar de uma representação icônica da parte
que foi objeto da promessa.
Quando acabava a festa de Nossa Senhora da Pena e os romei-
ros partiam, eu sempre ficava amolando o sineiro Marcelino para
que me mostrase os escritos e ex-votos. E mais tarde, quando travei
conhecimento com a arte modernista brasileira, nunca duvidei de
que naqueles braços e pernas desproporcionais estivesse a influência
mais forte da arte popular sobre artistas de renome como Tarsila do
Amaral.
Era esta, digamos assim, uma pequena parte da pré-história
da luta imemorável entre as mazelas da natureza e os recursos in-
ventados pelos homens para dominá-las. Num primeiro momento,
recursos simpáticos buscados na própria natureza e que não foram
submetidos a processos mais complicados de transformação. Creio
que podemos concluir, sem alongar em excesso nossas justificativas,
que a chegada do Dr. Melo Azedo e, posteriormente, do farmacêu-
tico prático José de Oliveira Rezende, que de alguma forma o subs-
tituiu, se não põe fim a essa fase, pelo menos passa a disputar com o
saber da medicina popular o privilégio da cura.
Embora sem maior preparo para o enfrentamento das doen-
ças que se manifestavam com maior freqüência entre os moradores,
quem primeiro se dedicou à manipulação de medicamentos na vila
foi, com toda certeza, seo Antonino Lopes. Havia em sua casa na pra-
ça um laboratório composto de poucos instrumentos com os quais
Memórias Catrumanas 196 Sidney Valadares Pimentel

preparava as combinações químicas destinadas a debelar as crises de


sua já tão desesperançada clientela.

Nos dias de hoje, esgota-se rapidamente o número de morado-


res que ainda se recordam da eficácia dos xaropes e meizinhas pre-
parados por aquele boticário muito bem-intencionado, mas detentor
de poucos recursos teóricos. Entretanto, eles mesmos são unânimes
em se lembrar do ajuntamento que se verificava em sua improvisada
botica, sempre que voltava de suas demoradas viagens a Paracatu
trazendo os alforges repletos de novas drogas saídas há pouco e que
eram porretas para pôr termo a este ou àquele mal. A passagem tem-
porária do Dr. Melo pela vila e a chegada logo em seguida de seo
Rezende colocaram um ponto final nas pretensões salvacionistas de
seo Antonino.
Quando a historiografia falta no sentido de esclarecer sobre a
vida e a importância dos homens numa comunidade, o mito perma-
nece como a única explicação dos aspectos mais valorizados. E mui-
tas vezes, mesmo quando surge a história racional, a mitologia com
Memórias Catrumanas 197 Sidney Valadares Pimentel

esta se combina para ajudar a explicar os fatos. Um bom exemplo são


os relatos sobre a vinda do Dr. Melo Azedo ao sertão. O que ficou
disto são mais suposições do que certezas. Restaram histórias conta-
das sobre ele e sua família, muitas das quais se chocam com outras
versões da mesma história. O Dr. Antônio Cavalcanti de Melo Azedo,
médico pernambucano, deve ter chegado à região do Urucuia por
volta de 1943 ou 1944. Lembremos que esse período coincide com o
desenrolar da Segunda Guerra Mundial.
De acordo com uma versão que desde essa época corre o ser-
tão, ele teria vindo ainda moço para a região fugindo de desaven-
ças políticas entre sua família e opositores políticos. Porém, de fato,
foram outras as razões. Recentemente formado, ele procurou fazer
o estágio como profissional médico nas Forças Armadas para, caso
ocorresse a sua convocação, ser incorporado às Forças Expedicio-
nárias Brasileiras como oficial tenente. No entanto, não conseguiu
seu intento em razão de as inscrições para a incorporação estarem
fechadas em Recife. Decidiu então viajar para Belo Horizonte, onde,
segundo fora informado, estavam aceitando candidatos.
Na viagem de vapor, conheceu pessoas que lhe informaram ser
São Romão cidade pequena, mas com boas perspectivas para clinicar.
E como, ao chegar em Belo Horizonte, as inscrições também esta-
vam fechadas, encaminhou-se para aquela cidade ribeirinha. Desde
seu desembarque, acompanhado da mulher, Rináuria, ou D. Rina,
como era chamada, o Dr. Melo foi bem recebido pelo prefeito major
Saint-Clair Valadares e seu filho Diomedes, havendo este último se
tornado padrinho de seu filho, também Antônio Cavalcanti, que nas-
cera ali pouco depois de sua chegada. Depois de passar alguns meses
atendendo a doentes de São Romão e de suas cercanias, o Dr. Melo
Azedo tornou-se amigo de algumas pessoas que viviam no Médio
Urucuia, próximo das atuais cidades de Arinos e Buritis. Dentre estes,
tudo faz crer que o seu maior e mais leal amigo foi o nosso parente
materno Francisco Fernandes Valadares, fazendeiro que morava em
sua propriedade perto do povoado da Barra da Vaca e que lhe serviu
de guia na longa viagem a cavalo desde São Romão.
Algum tempo depois de permanecer sob a custódia do amigo
Chico Valadares na fazenda denominada Forquilhinha, o Dr. Melo
trouxe a mulher e o filho para viver em nossa vila. Nessa época foi
Memórias Catrumanas 198 Sidney Valadares Pimentel

morar numa velha casa construída pelo fazendeiro Felipe Rodrigues


da Costa. Essa construção, de aspecto pouco agradável e sem aca-
bamento, fora erguida entre a igrejinha e o lote onde o fazendeiro
Vitalino Fonseca Melo ergueria sua residência, para abrigar os mo-
radores mais necessitados da vila. Muitos anos depois, a administra-
ção da mesma casa foi cedida ao controle dos vicentinos, mas antes
lembro-me de que a indigente Benedita Tonta, ou Benedita Grossa,
ali morou por vários anos.

Durante todo o período em que viveu na vila, as condições de


vida a que se submeteu foram sempre as mais franciscanas possíveis.
A água para beber e para servir era buscada no Poço dos Padres, no
córrego da Vereda, acondicionada em duas latas de querosene e con-
duzida num carrinho de madeira projetado e construído pelo marce-
neiro Zé Martins. Nos afazeres domésticos, a tolerante D. Rina con-
tava ainda com o auxílio de Vicência Lobo, uma negra extremamente
Memórias Catrumanas 199 Sidney Valadares Pimentel

operosa, cujo adjutório diminuía sensivelmente a carga do trabalho


de casa.
Em razão das condições de vida e saúde existentes em toda
a região, o Dr. Melo acabou por transformar-se num médico real-
mente itinerante. Incontáveis foram as oportunidades em que se viu
obrigado a deixar sua casa a horas mortas e sair a cavalo conduzido
por um guia que o levasse a atender um acidentado ou uma mulher
que estivesse enfrentando um parto complicado. E as viagens não
o incomodavam. Principalmente quando as solicitações provinham
de regiões vizinhas ao povoado da Barra da Vaca, surgia sempre a
oportunidade de dar uma chegadinha à Forquilhinha, fazenda de seu
querido amigo Chico Valadares, para um dedo de prosa. Foi por oca-
sião de uma viagem dessas que um positivo o alcançou para levar-
lhe a informação sobre a morte do recém-nascido Rogério, um filho
seu que nascera em nossa vila. Quase um ano foi o tempo que o
Dr. Melo esteve morando na vila. Por essa época, sua amizade com
o major Jéferson Martins Ferreira o levou à cidade de Unaí, onde
desempenhou a atividade médica por alguns anos, antes de voltar a
Recife, sua terra natal. Entre 1945 e 1946, pouco depois da partida
do Dr. Melo, mudou-se para a vila o farmacêutico prático José de
Oliveira Rezende.
Religiosidades

Quando, no início da década de 1940, nossos pais se mudaram


definitivamente para a vila, a igrejinha dedicada a Nossa Senhora da
Pena já existia. Era, então, pouco mais que um orago. Mas, antes da
sua construção, havia uma outra a que a gente da vila chamava igreja
velha. Cheguei a conhecer os vestígios desta. Vezes sem conta, muni-
dos de estilingues e pedrinhas de tapiocanga, eu e meu primo Saint-
Clair Pitangui do Prado, o Quéu, caçamos codornas e nhambus em
seus escombros ou em suas proximidades. Já, então, o que sobrava
da construção não permitia ser tomado como índice arqueológico da
existência anterior naquele local de uma edificação de grande por-
te. Recordo-me de ter visto, ainda tombados pelo chão, dois ou três
pés-direitos de cernes de aroeira que resistiam à ação deterioradora
do tempo. Ao seu lado, talhada na mesma madeira, uma peça mais
longa que pode ter servido para a sustentação da cumeeira. E, no
meio disso tudo, pedaços de adobe deformados pela chuva, mas ain-
da dispostos em linha, como se ali iniciasse uma parede, assim como
a miuçalha de cacos de telha.
Pelo menos duas versões existem para dar cobro aos motivos
pelos quais a gente do lugar, ainda durante o romper do segundo quar-
tel do século XX, teria construído uma igreja nova, decisão que levou
ao abandono da então existente. De acordo com a primeira versão, a
decisão estaria relacionada com uma tragédia. Uma vez minha mãe
me afirmou ter ouvido essa história da boca de siá Norberta, mãe da
Memórias Catrumanas 201 Sidney Valadares Pimentel

graciosa Pompília, primeira esposa do pernambucano Sinésio, que,


segundo afirmara, vivia na vila na época do sinistro acontecimento.
Era somente de vez em quando que a vila convivia com a pre-
sença de padres que vinham, ora de São Francisco ou São Romão,
ora de Formosa ou Paracatu, em viagem de visitação, ou de desobri-
ga. Numa dessas viagens, viera um padre novo muito brincalhão. Um
dia, ao tentar assustar um gato que entrara inadvertidamente na igre-
ja, levou deste uma unhada na artéria, tombando ali mesmo, esvain-
do-se em sangue. Conta esse trágico mito que de então em diante a
população foi deixando a igreja velha se acabar, ao mesmo tempo em
que construía a nova, para onde transferiram os altares e os santos
então existentes. Ainda de acordo com siá Norberta, parece que foi
daquela vez que ocorreu um fato que teria deixado a população da
vila assustada. Deu-se que, por um motivo que os fiéis não conse-
guiam explicar, a Santa Padroeira fugia sempre à noite, regressando
para os escombros da velha igreja semidemolida. Foi preciso, então,
que o seu protonicho tivesse sido completamente destruído para que
a santa concordasse em permanecer quieta em seu novo lar.
A dar crédito à segunda versão, de conteúdo mais racional e
menos inventivo, muito provavelmente a conclusão da construção
da igreja velha nem teria chegado a se concretizar. Quem aduz essa
explicação é o historiador Oliveira Mello em seu livro A igreja de Pa-
racatu nos caminhos da história, no qual, citando um certo Frei Alei-
xo, informa que a igrejinha dedicada a Nossa Senhora da Pena teria
sido construída sob os auspícios, não da Diocese de Paracatu, mas
dos padres dominicanos sediados em Formosa. De acordo com Oli-
veira Mello, esse mesmo Frei Aleixo afirma em carta de 1926 que
ia já adiantada a construção da igreja velha quando o terreno que
“servia de assento aos alicerces de pedra desceu, fazendo estrondar e
desaprumar as paredes e o frontispício. O terreno, sendo cavado de
sepulturas antigas e ao alcance das enchentes do Rio Urucuia, havia
de descer mais com o peso do teto e assim ficaram as despesas de
mão-de-obra e de muito material perdido”. Foi daí que a própria po-
pulação decidiu transferir a construção para um local mais elevado.
E já ia a obra em andamento quando os dominicanos vieram para
auxiliar com “alguns conselhos técnicos para as obras do povo não
ficarem de novo perdidas”.
Memórias Catrumanas 202 Sidney Valadares Pimentel

Ainda segundo esse historiador, o período gasto para a cons-


trução da igreja estendeu-se de 1926 a 1928. Embora a narrativa de
Oliveira Mello seja em todos os aspectos factível, existe na vila quem
a conteste por não menos incerta e tão fantasiosa quanto a outra. De
acordo com essa nova interpretação, teria sido em especial seo Lin-
dolfo Gonçalves o principal encarregado não apenas da construção
da obra, mas também do altar e de outros detalhes do acabamento.
Seo Lindolfo era filho de um alagoano que viveu muitos anos com a
mulher e os filhos na fazenda Pesqueiro pertencente a Francisco José
Fernandes Capanema e Silva, o seu Pitangui, pai do major Saint-Clair
Fernandes Valadares, ex-prefeito de São Romão.
Alguns anos depois, já na vila e sempre trabalhando com a cria,
compra e venda de gado, seo Lindolfo morou muitos anos no casarão
da praça que hoje pertence a seu filho Vadote e sua nora Dália, filha
do fazendeiro Antonino Cândido Lopes. Foi casado com a professo-
ra Hemetéria Josefina Lopes, irmã do mesmo Antonino, com quem
teve oito filhos. Segundo consta, teria sido com a ajuda principal-
mente dos filhos, menores de idade, que seu Lindolfo daria suporte à
construção da igrejinha. Vadote e Inês, apelidada Zeta, lembram-se
de que, ainda quase crianças, ajudavam a buscar água no Urucuia
para ser usada na construção. Mas, de acordo ainda com esses rela-
tos, apesar de ser um homem que bebia muito, seo Lindolfo muito
fez pela construção e acabamento artístico do altar e pela conser-
vação de algumas imagens que anualmente eram levadas a Januária
para receber reparos nas rachaduras e novas pinturas.
Verdade ou não, o certo é que, quando meus pais, recém-
casados, se mudaram para a vila, a igreja de Nossa Senhora da Pena
tinha pouco mais de uma dúzia de anos. Naquela época, ela era re-
lativamente menor em comprimento. Não existia ainda um peque-
no puxado que a alongou em pelo menos três metros e que foi
construído para abrigar a sacristia. Sua coloração também não era
a rosicler de hoje. Não me recordo se suas paredes chegavam a re-
ceber alguma pintura especial, ou se o seu branco, que sempre pa-
recia esmaecido ou descorado, tinha essa aparência por causa da cal
que, com o tempo, ia se deteriorando. Mas o certo é que as pessoas
sempre procuravam evitar o esfregaço nas paredes para não correr o
perigo de sair dali com suas fatiotas esbranquiçadas.
Memórias Catrumanas 203 Sidney Valadares Pimentel

Construída num estilo com leve influência barroca muito re-


corrente em áreas ditas sertanejas de Minas e da Bahia, a igrejinha de
Nossa Senhora da Pena era grande o suficiente para comportar a po-
pulação de fiéis pouco numerosa da vila, mas excessivamente pequena
para abrigar a multidão que anualmente invadia o arruado em setem-
bro, por ocasião da romaria da santa. Especialmente em alguns anos
em que o número de fiéis romeiros excedia o esperado, surgia a neces-
sidade de realizar uma missa campal na data consagrada à Padroeira.
Então era preparado um altar confiscando-se uma mesa entre os bens
domésticos de D. Olívia (segunda esposa do fazendeiro Vitalino Fon-
seca Melo), de D. Lourdes (esposa do pescador Marcol), ou de minha
tia Celina (zeladora da igreja e proprietária da Pensão Pitangui).
Não me lembro de terem buscado uma única vez em nossa
casa. Talvez porque meu pai cultuasse a fama de anticlerical e tives-
se, entre suas leituras preferidas, certas obras consideradas àquela al-
tura esotéricas e ocultistas, principalmente de influência orientalista
como a do sábio Swami Vivekananda e vasta literatura ligada à cor-
rente do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento — e não a
Bíblia. Minha mãe, por seu turno, ainda que costumasse freqüentar
as cerimônias religiosas católicas, teve sempre uma certa queda para
as religiões espiritualistas, notadamente para o espiritismo. Entre
Memórias Catrumanas 204 Sidney Valadares Pimentel

os padres que freqüentavam a nossa casa e a nossa mesa, apesar do


corte epistemológico existente entre a crença de meu pai e a deles,
vem-me à memória o sibilino epíteto de frei Brocardo. Mas voltando
à missa campal, uma mesa era ricamente paramentada do lado de
fora da igreja, de onde o sacerdote conduzia a celebração perante as
centenas de crentes.
Do ponto de vista arquitetônico, a igrejinha foi concebida
seguindo um plano bastante simétrico. Uma porta maior almofa-
dada na frente e duas outras laterais mais estreitas, todas divididas
em duas folhas que, ao serem escancaradas, ringiam nas grosseiras
dobradiças provavelmente moldadas ali mesmo numa forja local.
Enquanto as portas laterais eram trancadas por dentro usando-
se robustas travancas, a da frente possuía uma grande fechadura
com uma chave também enorme do tipo que, pelo menos desde a
Idade Média — ao se fazer presente estereotipadamente no molho
de chaves que se encontra preso à cintura de São Pedro —, vem
moldando a imagem do Pescador da Galiléia como zeloso ícone da
segurança celestial.
Até meados da década de 1950, no interior da nave não havia
bancos nem genuflexórios. A sensação que se tinha, ao atravessar os
umbrais da porta principal e penetrar na igreja vazia, era similar à de
um Jonas que, de repente, se visse tragado por uma gigantesca baleia
de argila e madeira. Os ruídos celestiais confundindo-se com os ci-
cios e o ruflar de asas dos morcegos no teto. Ou das andorinhas nas
biqueiras do telhado. E embaixo a ausência, a vacância de fiéis.
Mais ao fundo, compostos no rico altar central, os nichos des-
tinados a cada um dos santos merecedores de culto ali. A então rica
Madona. Olhando firme, severa, para a frente. Para os fiéis que se
compraziam, na esperança de ser atendidos em seus pedidos. Na es-
perança de conquistar seu grande milagre. Ou seu milagrezinho cor-
riqueiro. Na negociação que faziam com seus santos à espera de ser
abençoados. À espera de que os santos fossem intercedendo pelos
estratos celestiais acima. Cada qual em seu posto. Vigilante pela ma-
nutenção da hierarquia. Até o ponto mais alto. Até que Deus se com-
padecesse e autorizasse o benefício. Que podia ser um noivo rico.
Uma roça de arroz livre das pragas. Um bom parto. Que seria pago
com alguns caraminguás, ex-votos e promessas de boas ações.
Memórias Catrumanas 205 Sidney Valadares Pimentel

De lado, em outros nichos, preservando sua individualidade


milagreira, sempre vigiados por anjos e arcanjos celestiais, um São
Benedito olhando por seus irmãozinhos de cor. Um São Sebastião
agonizante, todo trespassado de lanças e flechas, e uma Santa Luzia
não menos mártir. Os olhos azuis que Santa Luzia sustém num pra-
to me faziam sempre lembrar os olhos de uma moça que certa vez
se hospedara na pensão de minha tia Celina vinda não sei de onde,
acompanhada não sei de quem, mas que teve o poder de despertar o
protodiabinho que desde então agita o rabinho dentro de mim quan-
do revejo olhos dotados daquela cor marítima. Zulim, zulim — como
dizia meu primo Quéu.
Esse rico altar-mor barroco não existe mais. Nem o altar, nem a
pena de ouro maciço que a Madona sustinha em suas mãos. E agora
também, por mais absurdo que seja, nem a Madona original que se-
gurava a pena. Alguém, certamente com poder para barganhar com
compradores do fabuloso negócio da arte sacra brasileira, deve ter
catirado ambos e dado algum fim mais prático ao produto da venda.
Já que, simplesmente destruí-lo criminosamente a golpes de macha-
dinha para não servir de morada aos morcegos é desculpa esfarrapa-
da que, como se diz, não cola nem aqui nem na China.
Deve haver ainda hoje alguma documentação visual do altar.
Talvez uma ou outra velha foto esmaecida guardada em fundo de
baú em que apareça a composição da peça em sua totalidade. Nela
se poderá ver as duas entradas laterais que, através de escadas, da-
vam acesso à parte superior e que contornavam, por trás, tanto o
nicho central da Padroeira quanto os demais, onde ficavam os ou-
tros ícones. Nas laterais internas da igreja, nos intervalos das janelas,
havia pequenas reproduções coloridas, cobertas de papel celofane
transparente, representando as estações da Agonia do Cristo.
Mas era na parte de trás do altar central que se escondia a
mais temível e mais aterrorizadora das imagens. A imagem do Se-
nhor Morto. Incontáveis as vezes em que saí em desabalada carreira,
tropeçando nas pernas já de si não muito firmes, depois de espiar a
figuração daquele Santo Homem. Tive ali a idéia clara do que signifi-
cava ser abandonado à própria sorte. Anualmente, meu interesse pe-
las representações da Semana Santa iam somente até a Procissão do
Encontro, quando Maria se deparava com o Filho agonizante. Nada
Memórias Catrumanas 206 Sidney Valadares Pimentel

que excedesse aquele momento. Nada que me levasse até o velório


do Cristo.
Havia em torno da igreja, mas principalmente na parte da
frente, uma espécie de aura. Uma área, para todos efeitos, sagrada
e, portanto, normatizada por meio de determinadas permissões e in-
terdições. Ali não era permitido falar indecência. Fazer então, nem
pensar. Qualquer ato estouvado, vinha logo a repreensão da parte
de um adulto: “Menino sem termo. Não respeita nem o santo. Vai
esculhambar pra lá, senão vou contar pra sua mãe”. As interdições
ampliavam-se para ações consideradas desrespeitosas aos santos e,
portanto, profanadoras. Comprar e vender. Falar e rir alto. Tratar
de assuntos não pertinentes ao mundo religioso. Pegar na mão era
permitido. Mas só a casados e noivos. Namorar agarrado não. Nem
permanecer com o chapéu na cabeça. Ou portando armas. Tudo isso
era cobrado imediatamente ao infrator, como se a transgressão não
apontada pudesse ser imputada a todos. Inclusive aos que notaram o
delito e quebraram pau nos ouvidos, fingindo não perceber.
A área de proteção do sagrado terminava um pouco antes de
um cruzeiro velho que havia a uns trinta metros da porta da igreja.
Em volta daquela área havia tudo o mais que circunscrevia e engloba-
va. “Não faça isto aqui. Vai mais pra lá”, diziam. O “mais pra lá” era
a área onde tudo era permitido sem incorrer na profanação. Ainda
que continuasse a ser pecado. Mas, nesse caso, o delinqüente haveria
de prestar contas só à infalível santidade e não também à falível vigi-
lância terrena.
Se, como é natural, a vila convivia com os mais diferenciados
comportamentos de seus moradores frente ao sagrado, do lado das
ordenações religiosas também a coisa não se dava de modo diferente.
Talvez em razão da distância que os separava de suas desgarradas
ovelhas sertanejas, os sacerdotes de Olinda, em Pernambuco, e de
Montes Claros, no norte de Minas, responsáveis pela administração
do sagrado na vila durante muito tempo, pouco puderam interferir
no dia-a-dia da religião local. Essa consideração de ordem espacial
relativiza, mas não explica in totum as intervenções que vieram a
ocorrer posteriormente, quando a paróquia da vila passou para a ad-
ministração da diocese de Paracatu. Isto porque, antes de a congre-
gação dos carmelitas daquela cidade se responsabilizar pelo trabalho
Memórias Catrumanas 207 Sidney Valadares Pimentel

diocesano, a paróquia esteve algum tempo sendo atendida pelos do-


minicanos de Formosa, sem que houvesse intromissão exagerada nos
negócios da igreja local. Mas foi só os carmelitas da prelazia de Pa-
racatu assumirem a ação religiosa na vila, que começaram a ocorrer
intervenções aqui e ali, mudando completamente o modo de admi-
nistrar as coisas da igreja localmente. Junto com uma excessiva poli-
tização e partidarização dos sacerdotes, ocorreu a alienação de todas
as terras pertencentes à Padroeira que circundavam o povoado.
Apresentada a questão desse modo, pode parecer que não ha-
via na vila a presença de outras instituições religiosas a não ser as
católicas. Ledo engano. Desde o início dos anos 50 pelo menos, re-
ligiosos cristãos, mas não-católicos, começaram visitações à região
com o objetivo de converter novos fiéis. Foi pouco depois de 1950
que o reverendo Stevão Sloop e sua esposa Francis, pertencentes à
Igreja Presbiteriana, começaram suas visitas à vila para realizar suas
pregações. Também pouco antes de meados da década, viria morar
definitivamente em Buritis um dentista prático, José de Oliveira Ro-
cha, apelidado Zé Dentista. Logo depois de se casar com uma prima
nossa, a modista Odete Pitangui do Prado, esse dentista faria grande
sucesso como pregador da Igreja Adventista.
Como resultado da ação evangelizadora, ainda durante o ter-
ceiro quartel da década começariam a ser construídos os prédios da
Igreja Adventista e da Congregação Cristã do Brasil.
Os ritos de morte

Ficou escassa documentação pictórica dos ritos de morte. Ou


muito me engano, ou só existia no lugar uma máquina fotográfica,
uma antiga Kodak 135mm pertencente a tio Alcides, com a qual ele
registrava tudo de bom e ruim que acontecia não somente no aglo-
merado urbano, mas também nas viagens que fazia com o seu tão
requisitado caminhão. Talvez por detrás do sumiço de informações
icônicas a respeito da morte e dos ritos que a acompanham esteja
presente algum temor mágico.
Naquele tempo, a própria presença do fotógrafo para docu-
mentar o momento da passagem fazia parte do que se considerava
uma morte digna. E a ausência do retratista significava a perda de
uma parcela da dignidade do morto. Que recursos seriam usados
posteriormente pela família para comprovar o aqui e o agora do fale-
cido? A comprovação documental integrava um processo em que, se
por um lado provava a partida, por outro certificava que algo ficara a
demonstrar sua perenidade na lembrança.
A fotografia interferia inicialmente no processo de expulsão do
morto de casa. A expulsão começava com a saída do corpo sacraliza-
do pelos costumes culturais, conduzido em seu esquife e depositado
em uma cova de sete palmos no cemitério. Inicialmente sua presença
ainda se fazia sentir junto à viúva e aos filhos. O lugar na mesa, a
espreguiçadeira onde se sentava sempre à boquinha da noite para
coçar as frieiras, o travesseiro que permanecia na cama com o cheiro
Memórias Catrumanas 209 Sidney Valadares Pimentel

do morto, as picuinhas com o tempero da esposa e com os vestidos


curtos das filhas, vai tudo cessando aos poucos. Cada picuinha bes-
ta, cada mania que a pouco e pouco vai caindo no automatismo do
dia-a-dia é mais uma parcela de expulsão do defunto do interior da
casa. As recordações que ficam são principalmente aquelas que fo-
ram atestadas pela fotografia. Até que um dia a foto sai de uma caixa
sobre a cômoda ou de dentro de um velho baú e vai habitar uma
parede da sala e de então em diante o morto não faz mais parte da
família, mas sim do tempo. Um defunto sem o hic et nunc do regis-
tro fotográfico era quase tão destituído de importância quanto um
defunto sem choro. Daí, a importância de nosso tio, único detentor
do dispositivo cujo poder de disparar um mecanismo transformava
um mero mortal numa imagem fixada por uma temporalidade que
dispensava o calendário.
A fase que seguia os procedimentos a partir da decretação ofi-
cial ou oficiosa da morte de alguém costumava seguir sempre os mes-
mos passos. Tudo começava ordinariamente no momento em que
o moribundo, já de vela na mão, exalava seus derradeiros suspiros.
Naquele instante, iniciava-se a primeira sessão desesperada de cho-
ros e gritarias, que tinha a função de alertar a vila para o fato de que
deveria preparar-se para participar das solenidades de encomenda do
corpo. De fato, significava mais isto do que permitir que a família
demonstrasse sua dor com o passamento do parente ou parenta.
Vencida essa etapa, era chegado então o momento de fazer o
asseio do corpo para que ele penetrasse limpo no outro mundo. Em
algumas sociedades é comum haver funcionários da própria comuni-
dade que desempenham esse papel. Não me recordo da existência de
alguém na vila que assumisse essa função, independentemente da fa-
mília a que pertencesse o morto. Ao contrário, o costume ali era que
os familiares, ou pessoas próximas, auxiliassem na execução dessa
tarefa. As atividades de que constavam eram as mesmas do dia-a-dia:
o banho reparador das impurezas e da sujeira terrena, o corte dos
cabelos, o escanhoamento da barba e do bigode, a colocação de um
traje limpo e em bom estado de conservação, no caso dos membros
do sexo masculino. Quando se tratava das mulheres, a preparação
do corpo incluía também alguns toques de maquiagem, um vestido
mais sóbrio ou a própria mortalha. Dependendo da vontade do mo-
Memórias Catrumanas 210 Sidney Valadares Pimentel

ribundo, ou da decisão póstuma da família, podia haver a inclusão de


algo especial, um amuleto, um xale, uma verônica a acompanhá-lo.
Um dos amuletos mais comuns, tanto para homens quanto
para mulheres, era o uso do Cordão de São Francisco, similar ao que
é usado pelos frades da ordem franciscana, amarrado à cintura. Cos-
tume tradicional entre os católicos desde o século XIII, esse cordão
era confeccionado artesanalmente em algodão cru, cujo processo de
produção se fazia acompanhar de orações e ritos mágicos para dar
mana e poder ao morto no momento em que tivesse de livrar-se das
tentações do Anjo Decaído.
Preparado o corpo, deve ser encontrado um móvel na casa, ou
trazido da vizinhança, comprido suficientemente para caber o de-
funto, com sobras. Durante uma época, esse objeto tomou a forma
de um banco de madeira resistente, onde o morto era colocado com
as mãos justapostas sobre o peito e os pés unidos, tanto umas quanto
os outros atados de modo que o corpo não pendesse para os lados,
assumindo definitivamente sua imobilidade. Há quem encontre no
costume do uso do banco como catafalco uma função meramente
instrumental, dada pela necessidade de manter o corpo em constan-
te estado de ventilação para evitar o apressamento da deterioração
da matéria. A interpretação faz sentido. Principalmente numa região
tão quente quanto o noroeste mineiro. Além da razão prática levan-
tada, faz sentido apontar ainda uma outra: quanto mais ampla for a
superfície onde acomodar o corpo maior será a demanda de forros e
alfaias à altura e honradez do defunto.
Não é demais lembrar neste ponto que, quando o passamento
ocorria longe de casa, às vezes em regiões de difícil acesso, o mor-
to era conduzido numa rede, simbolismo que ficou extremamente
conhecido a partir do maravilhoso poema do pernambucano João
Cabral de Melo Neto, “Morte e vida severina”. Toda corrutelinha
teve sua personagem severiniana. A de nossa vila chamava-se Jorde.
Jorde, pertencente a uma família bem pobre, morava no pequeno
largo que hoje se chama praça Deputado Manoel José de Almeida.
Apesar de possuir o minimum minimorum para se sustentar, a
família era muito numerosa e mais hoje, mais amanhã, encontrava
motivo para fazer uma fuzarca e atrair a atenção dos vizinhos. O
elevado consumo de aguardente, mesmo entre as mulheres, era a
Memórias Catrumanas 211 Sidney Valadares Pimentel

tônica daquela família de pândegos. Aliás, o grupo se comportava em


tudo por tudo como um grupo matrifocal, característica que se fazia
presente até no modo de ser nomeado. Enquanto os outros eram re-
metidos para o masculino plural — os Lopes, os Fonseca, os Durães
—, eles eram nomeados pelo feminino plural: as Feijoas. A família
era capitaneada por uma anciã que era chamada de “a velha Feijoa”.
Entre os filhos e filhas que eu cheguei a conhecer havia um rapaz —
Diomedes —, quatro mulheres — Jorde, Ernestina, Cula e Lora — e
um menino, o Dolino. Este último, que possuía algum descontrole
mental, era filho da Cula, mas toda a parentela tinha cuidados com
sua saúde e bem-estar. Naquela época, com seus cinco ou seis anos,
Dolino vivia perambulando ali mesmo perto de casa completamente
despido ou portando um camisolão que se assemelhava a uma ma-
ria-mijona. Toda a vila se divertia quando chovia e, como as demais
crianças, Dolino fugia de casa para ir brincar na enxurrada. Naqueles
momentos, então, uma das tias do menino chegava à porta e gritava
para dentro: “Cula, tira a pomba da chuva”. A graça estava no fato de
a palavra pomba, entre a população da vila, estar carregada de uma
grande diversidade semântica, entre cujos sentidos se encontravam a
idéia de vulva, em emprego chulo.
Quando iniciei uma pequena digressão para falar das Feijoas,
eu dizia que nossa personagem severiniana era a Jorde, que pertencia
à irmandade. Para mim é como se tivesse acontecido ainda ontem.
Era a boquinha da noite e a loja ainda estava aberta. De repente soou
na praça, vindo da direção da passagem para a Vereda que havia ao
lado da casa do sineiro Marcelino, um som triste e amortalhado usado
como canto fúnebre e lamentoso, que aos poucos foi subindo até se
mostrar como o que era. E o que era, era o corpo da pobre Jorde que,
morta de-repente enquanto trabalhava na roça, estava sendo trazida
numa rede, enquanto suas irmãs, aparvalhadas ante a intromissão da
Velha da Foice que ceifara num átimo a vida da boa Jorde, entoavam
seu catrumano réquiem aeternam dona eis (dai-lhes o repouso eterno).
O fazimento do caixão era uma das atividades post mortem car-
regadas de maior simbolismo. Em primeiro lugar, cada tipo de pes-
soa exigia um tipo de caixão que tinha com ele determinada relação
simbólica. Um caixão de anjo devia guardar com essa característica
certa identidade no tocante, por exemplo, à cor. O mesmo acontecia
Memórias Catrumanas 212 Sidney Valadares Pimentel

com o caixão de uma virgem ou de um adulto. O caixão do anjo, sen-


do do sexo masculino, devia ser coberto de um tecido azul-celeste,
enquanto o do sexo oposto deveria receber um pano cor rosa. Sendo
uma virgem ou um rapaz atravessando a puberdade, deveria estar
coberto das cores branca e azul-celeste, respectivamente. Finalmen-
te, sendo adulto, independentemente do sexo e estado civil, cobria-se
o caixão com um tecido roxo.
A propósito, descobri recentemente uma fotografia, datada de
6 de março de 1958, que permite retomar aspectos reais e simbólicos
dos ritos de morte na vila. Naquele período, a praça da igrejinha
era espaço obrigatório do trânsito com os mortos. Como os velórios
eram feitos em casa, o esquife saía da residência e passava pela praça
para que o corpo fosse encomendado, ainda que não houvesse um sa-
cerdote para tal. A foto a que me refiro é o registro da passagem pela
igreja com o corpo de Julieta Antonio da Rocha, esposa de Raimundo
Ferreira do Prado e mãe de meus colegas de infância Onofre (o cabo
Onofre), Olga (casada com Fulgêncio Durães, o Fulô de seu Revali-
no), Ordália (esposa de Deca Fonseca), além de Ornelina e Ondina,
que na época eram bem crianças. Não é possível afirmar com toda
certeza se a foto foi tirada antes ou depois da passagem do corpo da
defunta pelo recinto da igreja, mas suponho que seja posterior ao ato
de ressacralização como última encomenda antes do sepultamento.
O esquife encontra-se do lado esquerdo da igreja, próximo da antiga
mangueira que ali havia, colocado sobre duas cadeiras que lhe ser-
vem de improvisada essa. As cadeiras encontram-se emparelhadas,
uma à cabeceira e a outra aos pés da morta, com seus espaldares
de costas para a parede lateral esquerda da igreja, de tal modo que,
aberta a tampa do caixão, fica à mostra o interior do esquife. Apesar
da impressão em preto e branco da fotografia, é possível deduzir que
o caixão tenha sido confeccionado ali mesmo na vila, com o material
encontrado nas casas de comércio local e a partir do único modelo
que pude registrar em minha memória.
Tudo leva a crer que aquele, por exemplo, houvesse sido for-
rado em gorgorão roxo traspassado dos quatro lados por galões ou
passamanes claros. Nas duas extremidades, cinco carreiras de galões
se entrecruzavam com outro tanto formando grades isométricas. A
tampa do ataúde, abaulada, era coberta do mesmo tecido e possuía
Memórias Catrumanas 213 Sidney Valadares Pimentel

idênticos detalhes dos galões, ressaltados pelo contraste de cores.


Todo esse material podia ser encontrado à venda na Casa Pimentel.
Havia a um canto da loja, à esquerda da porta que dava entrada para
a sobreloja, duas ou três peças de pano que não tinham saída para
mais nada, já que se convencionou, em razão do uso recorrente, que
“aquilo era pano de defunto”. Ao lado dessa prateleira, havia uma
caixa contendo galões de cores e larguras diversas. Além de remédios
e velas, estes eram os produtos que, com grande freqüência, eram
requisitados mesmo de madrugada, sempre que morria alguém.

Não era comum colocar-se o defunto dentro do caixão à espe-


ra do momento da saída para a igreja. Algumas vezes, por falta de
espaço onde acomodá-lo, o esquife permanecia na oficina do carpin-
teiro. Outras vezes, por razões alheias à sua vontade, o carpinteiro
só conseguia concluí-lo em cima da hora. Pela constância em que era
convocado para a tarefa, tudo faz crer que o carpinteiro Zé Martins
era uma espécie de fazedor oficial de caixões na vila. Tanto que em
razão da crença de que o barulho das ferramentas no trabalho de
armação e acabamento do caixão fazia mal aos sensibilíssimos ou-
vidos do morto, que só devia levar para o túmulo o som das enco-
Memórias Catrumanas 214 Sidney Valadares Pimentel

mendações e dos cânticos de louvor, recomendava-se que o fazedor


de caixões fosse desincumbir-se de sua tarefa em lugar bem longe do
velório. Conforme me afiançaram, teria sido por essa e não por ou-
tra razão que, quando morreu D. Domingas, esposa de Poti Joaquim
Ramos, o Zé Martins, seu vizinho, foi realizar sua obra na oficina
do também carpinteiro João Branco, situada a alguns metros mais à
frente. Ficavam assim ressalvadas as duas exigências. Nem se fizeram
ouvidos moucos à exigência de que a morta não devia escutar os sons
da construção de seu próprio esquife, nem passou-se a responsabili-
dade do serviço para outro.
Por tudo que eu saiba, havia na vila dois coveiros que eram
chamados quase afasicamente de abridores de sepultura: o João Fura-
Chão e o Joaquim Chocolateira. Diziam que, incongruentemente
com a profissão que abraçara, o João morria de medo de almas do
outro mundo. E era por essa razão que o coveiro bebia todas. Só
assim acumulava toda a coragem de que necessitava para realizar a
contento o seu trabalho no cemitério. O João não carregava aquele
nome por acaso. A sujeira que ostentava no corpo e na roupa, sendo
quase impossível distinguir uma do outro, não impedia que o con-
tratassem para fazer outros trabalhos, como a abertura de fossas e
de cisternas.
Embora cuidasse exatamente das mesmas tarefas, o Joaquim
Chocolateira era um sujeito completamente diferente do João Fura-
Chão. Joaquim e o irmão Zequinha moravam com a mãe, D. Dico,
e uma irmã, Natalina, numa casa vizinha à nossa. Fora de suas ativi-
dades de perfuração, o Joaquim andava limpinho e cheiroso, sendo
consumidor, por excelência, de uma loção chamada Royal Briar, fa-
bricada pela Atkinsons. Quando, à tardinha, ele tomava banho e saía
à rua, o perfume da loção rescendia longe. Sabedor da preferência de
nosso vizinho pela tal loção, meu pai não deixava faltar o produto na
loja. Quando estava minguando a quantidade de vidros em oferta,
ele dizia a um dos empregados no momento de fazer a relação de
mercadorias que tio Alcides devia trazer na próxima viagem a Aná-
polis: “Não vai me esquecer de botar a loção Royal Briar no pedido,
senão o Joaquinzão bota a gente doido aí”.
Além de perfurador de sepulturas, fossas e cisternas, o Joaquim
era um excelente tocador de sanfona. Era difícil haver um arrasta-pé
Memórias Catrumanas 215 Sidney Valadares Pimentel

na vila sem a presença de sua afinadíssima pé-de-bode. Aliás, com


exceção do Zequinha, toda a família era muito afinada no tocante à
música e tinha muito jeito para danças e coreografias. Lembro que
além da boa Vicência, que apesar de sofrer de embaraço fônico (pse-
lismo) possuía ótima voz, D. Dico e sua filha Natalina estavam entre
as principais organizadoras das Pastorinhas, manifestação folclórica
do ciclo natalino. Além de dançar, elas ajudavam a cantar os autos
que acompanhavam a coreografia.
Nessa época e ao contrário do que costumava acontecer em
outras localidades, o cemitério era o lugar onde preferencialmente se
depositavam os restos mortais das pessoas. Não me lembro de essa
regra haver sido quebrada a não ser uma única vez, quando morreu
aos seis meses de idade nossa prima Josete, denominação metoními-
ca com base nos nomes dos pais José e Odete. Segundo me afiançou
a própria Odete, foi ela a responsável pela tomada de decisão de fazer
uma campa no quintal da Pensão Pitangui, onde morava com o mari-
do, no meio dos canteiros do jardim, apresentando como razão para
ato tão incomum o temor que ela própria sentia diante da morte.
A observação demonstra que, diante da morte de um parente
ou amigo querido, o sentimento da perda era ritualizado continua-
mente ao longo de todo o velório, mas em três momentos em especial
o rito atingia um clímax e uma força de expressão mais eloqüentes,
que os fazia parecer quase como se fossem repetições de espasmos
intermitentes, à semelhança do que acontece com os registros de um
cardiógrafo. O primeiro ocorria no preciso instante do passamento,
quando era preciso aceitar a dura verdade do “nunca mais” e avisar
os demais moradores a respeito do infeliz acontecimento. O segundo
acontecia no momento em que se fechava a tampa do caixão, sig-
nificando que ali ele se despedia de sua casa e de seus pertences. O
último, finalmente, à beira do túmulo, quando se abria a tampa pela
última e definitiva vez para a cerimônia do derradeiro adeus. Feito o
sepultamento, o morto se transformava numa “obra de referência”,
que ao mesmo tempo pressionava a família no sentido de continuar
a cultivar sua memória e a esquecê-lo como um ente dotado de exis-
tência real.
O luto é pensado às vezes como um tipo de roupa que se veste.
Na vila, não. O enlutado ali devia se portar de determinado modo
Memórias Catrumanas 216 Sidney Valadares Pimentel

em vários sentidos. Disso dependia também a honra do desapare-


cido. Do ponto de vista da vestimenta, havia o luto aberto e o luto
fechado. Aos viúvos e viúvas cabia atender às exigências do luto fe-
chado, ainda que não houvesse uma conceituação demasiadamente
rígida para ambos no tocante aos prazos. De um modo geral, o luto
fechado das viúvas se prolongava por um tempo além do aceito pe-
los viúvos, atingindo muitas vezes prazos de semestralidade ou de
anualidade, ou até mesmo para a vida toda, dependendo da idade,
de condicionamentos da herança, bem como da força da pressão so-
cial. O que se podia constatar era que viúvas de faixa etária menos
elevada costumavam quebrar o luto mais cedo. Outras vezes, pela
contingência de encontrar quem ajudasse a tomar conta dos bens
deixados pelo marido, acontecia o mesmo. A propósito disso, havia
um chiste bastante recorrente em que se modificava propositada-
mente o queixume lamentoso da jovem viúva como sugestão de que
quem ficara viúvo era o morto e não a que permanecera viva. Em
vez de dizer: “Que será de mim agora?”, o comentário maldoso era
que ela dissera: “Quem será de mim agora?”. Já os viúvos normal-
mente apresentavam como justificativa para a quebra do luto fecha-
do a necessidade de facilitar um segundo casamento, mesmo que
a exigência trouxesse como justificativa as dificuldades para cuidar
dos filhos menores.
Os filhos e filhas, principalmente se vivendo sob a dependência
dos pais quando ocorreu o passamento, tinham a obrigação de usar
luto. Pelo menos luto aberto, que se constituía às vezes apenas num
detalhe simbólico, como uma tira preta usada na manga ou no bolso
da camisa, quando não fosse toda uma peça de roupa. Da mesma for-
ma que, do ponto de vista simbólico, o luto dos filhos era menos ri-
goroso que o dos pais, o tempo que passavam usando-o também era
bem menor. Além da roupa e dos procedimentos mais recatados dos
parentes do morto ou da morta, notadamente da viúva ou do viúvo,
havia outras regras que deviam ser atendidas. Muito se comentou na
vila a propósito da quebra de tabu alimentar de um comerciante, por
ocasião da morte de sua terceira esposa. De acordo com os comen-
tários, muito contrariamente aos costumes, tão logo regresso do en-
terro de sua ex-mulher, esse comerciante teria ido direto à geladeira
e comido quase meia lata de goiabada.
Memórias Catrumanas 217 Sidney Valadares Pimentel

Essa regra está associada aos inúmeros tabus relacionados à


proibição do prazer — sexual, do divertimento, da comida — logo
imediatamente ao sepultamento de um ser querido. Recordo-me de
que, quando meu pai morreu de acidente em junho de 1961, uma
providência foi tomada em nossa casa logo após o início do período
de nojo: o ocultamento com panos negros dos grandes espelhos e do
aparelho de rádio.
Festas e festins

A noção de festa na vila ora combinava, ora excluía manifesta-


ções típicas do sagrado e do profano. No primeiro caso, o pólo do-
minante era a religiosidade; no segundo, a diversão e os folguedos.
Em qualquer dos casos, porém, a quase totalidade da população se
via envolvida e levada a cooperar para o pleno sucesso dos objetivos
com que a festa fora criada.
Sempre e sem qualquer sombra de dúvida, a mais importante
de todas era a romaria dedicada a Nossa Senhora da Pena, Padroeira
da vila. A romaria, que levava e ainda leva a denominação calêndrica
de Festa de Setembro, tinha como ápice a data fixa de 8 desse mês,
quando ocorre a missa matinal que encerra as festividades. Nos dias
atuais, devido à multiplicação de templos católicos, que passaram
de um para quase quinze, dois dos quais atingindo as dimensões de
verdadeiras catedrais, assim como da completa desfiguração da igre-
jinha primitiva tanto no que se refere ao valor artístico quanto ao
valor monetário, a importância da festa decresceu muito.
Os preparativos começavam bem cedo. Era nesse período pre-
cedente que a Casa Pimentel mais vendia. Sabedor do crescimento
da demanda em especial por roupas, calçados e produtos necessários
à fabricação de quitandas, meu pai aumentava os pedidos de merca-
dorias, que eram trazidos de Anápolis e Formosa por tio Alcides. A
julgar pelo que ocorria em nossa domus, o leitor poderá avaliar como
a vila fervilhava na preparação para a festa.
Memórias Catrumanas 219 Sidney Valadares Pimentel

No que tange ao vestuário, era o momento de retirar fazen-


das na loja para renovar o guarda-roupa da família. A costureira dos
homens era D. Negrinha, que nessa época ficava sobrecarregada de
encomendas. A roupa dos meninos era composta de camisa de trico-
line ou shantung de gola larga e calça de brim levemente encorpado
dando nos joelhos. Um suspensório de elástico colorido, sapato preto
e meias brancas completavam o traje.

A roupa de minha mãe e das demais adultas da casa era fei-


ta pela prima Odete Pitangui do Prado, que também se desdobrava
para dar conta de todas as encomendas. Geralmente peças inteiriças,
sem decotes escandalosos, prolongando-se até abaixo dos joelhos. As
calças e ternos de meu pai vinham da Alfaiataria Batista, pertencente
a Hugo Batista, o mais importante alfaiate estabelecido em Formosa
naquele tempo. As camisas eram feitas por nossa própria mãe, que
se especializara nisso, embora não soubesse cortar e costurar outras
Memórias Catrumanas 220 Sidney Valadares Pimentel

peças do vestuário masculino. Se bem me lembro, os vestidos de


nossa irmã Valdeci também vinham do gabinete de modas de Ode-
te, enquanto as roupas das empregadas de forno e fogão eram enco-
mendadas a costureiras de menor gabarito. Em geral, os calçados de
todos nós também vinham do estoque da loja, à única exceção dos
sapatos destinados à cozinheira Anita Pezão, por não haver ali algum
que lhe servisse em tamanho, largura e disparidade entre um pé e
outro, como já contei.
Nas festas dedicadas à Padroeira, tudo girava em torno do tem-
plo que em pouco excedia as dimensões da capela de um diminuto
bairro rural. Na praça defronte, as pequenas e improvisadas barra-
quinhas vendiam de tudo que pudesse interessar a alguém que fosse
a um tempo romeiro e catrumano. Entre tanta diversidade de mer-
cadorias e de preços, sobressaíam os vendedores de roupa, de vasi-
lhas, de santos, de remédios recomendados para todos os males, de
novidades e brinquedos. Havia ainda os jogadores de dados e comer-
ciantes de ilusões.
Recordo especialmente um jogador que manipulava uma pe-
quena esfera vermelha sob três grandes dedais em que o outro apos-
tador tinha de adivinhar sob qual dedal ela se encontrava quando se
completava a mexida. É claro que ele só conseguia acertar a primeira,
que servia como isca. Todas as demais era o ilusionista e dono da
banca que ganhava. Contudo, para mim, o mais interessante nem
era o jogo de dedais, mas o jogo de palavras que ele usava ao mover
os objetos sob a manopla bem treinada, palavras de que me lembrei
quando li muito tempo depois o Cem anos de solidão, de Gabriel Gar-
cía Márquez. Dizia ele em sua absurda magia ganhadeira: “Sapiran-
ga, cururu tetei, piloto de navio no mar, uma sapiranga que mata
dentro de 24 horas numa rua de Montevidéu, dançando bolero com
um pé só”.
Para a praça acorria todo mundo da manhã até a noite, quando
os vendilhões acendiam seus lampiões, atraindo para suas barraqui-
nhas interessados compradores e insetos notívagos, o que sempre
servia como mote para que, nas prédicas, os padres comparassem o
maior interesse dos fiéis pelas coisas profanas do que pelas sagradas.
Durante as festividades, a vila se enchia de gente que vinha de
toda a redondeza e pedia pouso nas casas de compadres, amigos ou
Memórias Catrumanas 221 Sidney Valadares Pimentel

parentes. Alguns, por falta de gentis hospedeiros, armavam barra-


cas de palha ou de lona nos quintais ou nas ruas e ali permaneciam
enquanto durasse a festa. Era o momento de jogar água revigorante
nos moinhos da amizade ou do parentesco. Vinham em caminhões,
jipes, furrecas. Traziam suas coisas em carros de bois, em cargueiros
ou nas costas. Muitos traziam as botinas atreladas aos ombros como
atilhos de milho ou amarrilhos de maxixe, enquanto os pés rachavam
ao calor da terra ressecada.
Além dos que vinham das redondezas próximas, havia os que
chegavam de mais longe. Montados em burros e mulas imponentes
e espertos, mansos de coçar ou ariscos. Depois de horas de marcha
estafante, entravam na vila fazendo bonito os que chegavam da Barra
da Vaca: Quincas de Oto, Toinho Valadares, Toinho Santana, Jarbas,
Zé Doido, Branco de Ulisses. E somente então se davam conta de
que não haviam combinado onde cada um ficaria hospedado. Eu? Na
casa de Pimentel, diz Quincas de Oto. Nós também vamos pra casa
de Tialcina, dizem os irmãos Jarbas e Toinho Valadares. E você, Zé
Doido? Ah, não sei ainda. Bobagem, vamos pra casa de Tialcina que
lá cabe todo mundo. No final, só Toinho Santana ia pra Pensão San-
tana, de seu irmão Sinésio e D. Lió.
Ao longo dos quatro ou cinco dias de festa, tanto os vilões
quanto os visitantes iam acumulando pertences e souvenirs que se-
riam posteriormente apresentados aos incrédulos como um atestado
de que “eu estive lá”. Entre os testemunhos, os mais valorizados e
portanto também os mais procurados eram os instantâneos fotográ-
ficos. O aqui e o agora proporcionados pelos lambe-lambes introdu-
ziam na cultura local uma realidade desconhecida até então, a não
ser no grupo escolar: a formação de filas à espera da vez de cada qual
ser fotografado e sair com as “feições” impressas no papel graças ao
milagre proporcionado pela fixação do nitrato de prata.
Nessa época vinham à vila também fotógrafos que possuíam
equipamento bem mais moderno do que o dos lambe-lambes. Entre
os “retratistas” que compareciam, permanecem em minha recorda-
ção em especial os nomes de dois: o Zé Leite e o Donato. Ainda tenho
em minhas mãos duas fotos de nossa família tiradas por Zé Leite, uma
das quais foi feita durante a Festa de Setembro de 1954. Além de fazer
as tradicionais fotos em diversos tamanhos para serem colocadas em
Memórias Catrumanas 222 Sidney Valadares Pimentel

álbuns, Zé Leite ainda aceitava encomendas para o tratamento artís-


tico em formato de gravuras coloridas em tamanho grande, que, de-
pois de colocadas em molduras, eram fixadas no alto das paredes das
salas como parte da galeria dos antepassados de tal ou qual domus. É
claro que, devido a certos acidentes de natureza icônica, nem sempre
a reprodução permitia uma identificação da gravura com o modelo
original. Mas principalmente se contando com a ajuda identificado-
ra dos parentes, sempre era possível perceber algumas semelhanças.
Donato era um pouco mais novo do que o Zé Leite e, se me recordo
bem, mais dado a relacionamentos amistosos com as moças do lugar.
Tanto assim que, embora na busca iconográfica que fiz eu não tenha
encontrado nenhuma foto do Zé Leite, tive acesso a várias em que o
Donato se encontra sempre rodeado pela juventude de então.

Quando terminava o período das festividades, os romeiros, os


barraqueiros e os sacerdotes partiam para outro lugar e outra festa,
deixando atrás de si uma montanha de lixo orgânico e inorgânico que
somente aos poucos, e contando com a curiosidade, a intromissão e
Memórias Catrumanas 223 Sidney Valadares Pimentel

o apetite dos jegues de seo Anjo, iam sendo naturalmente consumi-


dos, já que a vila não contava com nenhum outro serviço de limpeza
urbana. Mas de tudo que ficava como lembrança da festa, o que mais
atraía a minha atenção eram os ex-votos: imagens, órgãos, bilhetes,
ou qualquer representação simbólica de um milagre conseguido.
Como já fiz referência, a maioria dos ex-votos eram reproduções em
cera que, depois de haver cumprido a função simbólica de remissão
a algo quase impossível conseguido por intercessão da santidade, po-
diam, posteriormente, prestar-se a outro papel mais ligado agora à
razão prática. Orientado, então, por tia Celina Pitangui do Prado e D.
Lourdes Fonseca, o sineiro Marcelino, a poder de fogo, transformava
todos aqueles braços, mãos, dedos, cabeças, pernas, pés e até corpos
inteiros em velas e torcidas de cera, que eram usadas em outros ritos
religiosos, principalmente os processionais.
Três meses e meio depois da Festa de Setembro, chegava o ci-
clo natalino composto pela dança das Pastorinhas, os teatrinhos de
Natal, as Lapinhas, encerrando tudo com as Folias de Reis no dia 6
de janeiro do ano entrante. Na ausência da orientação religiosa dire-
ta proporcionada pelos administradores do sagrado, a população da
vila mesma tomava a seu encargo a criação, importação, ou adapta-
ção de textos, músicas ou dramatizações que falavam do nascimento
maravilhoso de Jesus Cristo, iniciando os preparativos dias, semanas
e até meses antes do dia de Natal. Algumas dentre essas manifes-
tações folclóricas demandavam um esforço mais prático, enquanto
outras exigiam maior criatividade narrativa, mas todas, sem exceção,
combinavam as duas coisas.
As Lapinhas serviam de base para as demais, isto é, todas as
danças, representações e cantigas apresentadas giravam em torno da
vinda de Jesus ao mundo numa manjedoura e eram executadas no
mesmo ambiente em que a simulação da gruta tivesse sido compos-
ta. A construção da Lapinha começava com o trabalho braçal que de-
mandava uma excursão ao mato, mais propriamente a uma beira de
rio ou lagoa, onde pudessem ser encontrados os elementos necessá-
rios à composição estética da gruta, de acordo com o plano inventivo
de seus criadores e/ou criadoras. Geralmente a cor de todo o mate-
rial recolhido variava entre o verde-escuro e o verde-claro, raramente
acrescentando outras tonalidades. Se bem me lembro, para construir
Memórias Catrumanas 224 Sidney Valadares Pimentel

o arco frontal usado na composição da entrada da lapinha, cortava-se


uma espécie de bambuzinho que nasce na beira dos brejos e margens
ensombrecidas. Para compor o piso, as paredes inclinadas e o teto,
usava-se uma espécie de grama macia e baixa e, contrastando com
ela, tufos de capim barba-de-bode e outros capins semelhantes. Em-
baixo, como centro da gruta, ficava o presépio com o Menino Jesus
deitado de costas na manjedoura e com os braços e as pernas ergui-
dos e sorrindo no meio de tamanha simplicidade.
Nem sempre todas as peças que compunham o presépio cons-
tituíam uma unidade, tendo sido adquiridas para aquele fim. Muitas
foram ganhadas ou compradas em momentos diferentes e fora do
período natalino se prestavam a outros objetivos como, por exem-
plo, servir de enfeites. Entre os viventes do mundo natural, muitos
destoavam do lugar e do momento, como leões se lambendo doce-
mente ao lado de ovelhas. Além do que era encontrado guarnecen-
do a mangedoura, outros objetos enfeitavam a gruta, como estrelas
suspensas por um fio, um sol ou até mesmo um botão colorido de
roupa feminina, uma página arrancada à folhinha Mariana e um par
de sapatinhos de louça. E estava criado o ambiente para se louvar o
rico Menino pobre.
Tenho pouca recordação dos teatrinhos de Natal. O de que me
lembro vagamente era uma adaptação de um texto antigo que con-
tava a história de uma pequena órfã criada por uma mulher malvada
que a fazia trabalhar incessantemente cozinhando para ela e o mari-
do, que dizia ser seu pai verdadeiro. Todas as noites, a menina orava
pedindo a Papai do Céu que lhe trouxesse de volta a mãe. Ouvindo-a,
a madrasta malvada escarnecia de seus desejos, afirmando que isso
jamais aconteceria. Na noite de Natal, Papai Noel entrava pela janela
e a levava para junto de sua verdadeira família, já que nem o homem
que se dizia seu pai de fato o era. Como se vê, é uma história que
conta com todos os ingredientes dos contos antigos, que se resolvem
como resultado da luta do bem contra o mal. Recordo que o papel
da órfã Lorena foi interpretado por uma menina sardenta que tinha
o cabelo cor-de-mel-com-terra e o do hortelão bigodudo, marido da
madrasta má, por Moacir Pitangui do Prado, que, ainda por cima,
colocou fundo musical na peça, tocando uma música de Natal em
sua vitrola de dar corda.
Memórias Catrumanas 225 Sidney Valadares Pimentel

As Pastorinhas eram uma espécie de manifestação folclórica


do ciclo natalino trazida para o Brasil pelos portugueses e que foi
sofrendo influências locais em todo o território nacional. Diferente-
mente do modo como era dançado em outros lugares, elas se cons-
tituíam num bailado composto em sua maioria de moças, mas em
que também entravam rapazes. Carregada de uma clara influência
da Dança de São Gonçalo, o que faz crer que a modalidade praticada
na vila pode ter chegado à região vinda da área ribeirinha sanfrancis-
cana ( Januária, São Romão ou São Francisco), entre os adereços que
acompanhavam os cânticos de louvor ao Menino Jesus havia cestas
e arcos típicos das manifestações populares do campesinato portu-
guês. Dançava-se nas salas onde eram erguidas as lapinhas a partir
de composições que louvavam o nascimento de Cristo em graciosos
movimentos representativos da fé cristã.
Em nossa vila, a dança se estruturava com base em vozes, sem-
pre cantadas, tomadas como personagens que dramatizavam a histó-
ria, entre as quais as mais importantes eram a do Cardeal, a do Pei-
xinho, a do Rei e a das Pastorinhas. A ação figurativa era comandada
fundamentalmente pelo Cardeal, a cuja manifestação todos respon-
diam em coro. Numa das figurações cantava o Cardeal, representado
então por uma moça chamada Vicência Lobo, fantasiada de autori-
dade eclesiástica:

Quando a aurora ilumina


O seu doce cantor
Minh’alma alegre suspira
Em doce terno de amor.

Ao cântico louvador do Cardeal, as Pastorinhas dançavam e


cantavam em resposta:

Sou do prado, da floresta


Cardeal vem nos cantar
Alegrai a nossa festa
a Jesus vem adorar.
Memórias Catrumanas 226 Sidney Valadares Pimentel

O que as Pastorinhas significavam para a corrutela, a Folia de


Reis representava mais para o meio rural circundante. Havia gru-
pos de foliões também na vila, mas não com a importância dos que
existiam fora, notadamente na região do Pernambuco, onde, já des-
de então, a denominada Folia de Biá fazia muito sucesso. Recordo
que no casario havia uma folia composta por rapazes adolescentes,
organizada por dois irmãos, Liliu e Lucas, filhos do marceneiro Zé
Martins. Não me lembro de quais eram os instrumentistas do grupo,
a não ser de que o mais novo, Lucas, era o caixeiro.
Além dos cânticos de sentido sagrado entoados pelas folias de-
fronte às lapinhas, à chegada ou à partida, à mesa posta para come-
rem e em outros momentos ritualizados, havia as manifestações de
teor profano, apresentadas para o divertimento do público presen-
te. Entre elas, as que mais agradavam eram a catira e a curraleira.
Tanto uma quanto a outra são modalidades de execuções de sapa-
teados e palmas, das quais participam somente pessoas do gênero
masculino, que se fazem acompanhar por instrumentação musical
com base na viola, no violão e na sanfona. A catira e a curraleira se
diferenciam tanto no ritmo, quanto na dança e na composição da
letra que acompanha o cantorio. A música que acompanha a catira,
de origem indígena, evoluiu para uma modalidade bipartida entre o
que se denomina catira propriamente dita e o recorte, ou recortado,
que é uma parte cantada ao final com sentido mais divertido e um
ritmo mais alegre. A curraleira, por seu turno, além de se basear num
modelo unitário e de ritmo mais apressado, é usada localmente como
instrumento para veiculação de crítica social. A folia de Liliu e Lucas
cantava uma curraleira que dizia:

Fiz minha casa pra morar


A parede é de tomate
O cimento é de açúcar
O reboque é de abacate
O telhado é de taioba
E o batente é de maxuxo
Quando a fome me apertar
Minha casa vai pro bucho.
Memórias Catrumanas 227 Sidney Valadares Pimentel

Mas era na Folia de Biá, alcunha de Antônio Durães Coutinho,


que apareciam anualmente as curraleiras que mais davam o que fa-
lar. Algumas tratando de desavenças de natureza política, ou entre
fazendeiros vizinhos, por este ou aquele motivo. Uma que gerou
muito comentário na vila falava dos desacordos havidos entre o pró-
prio Biá e um seu confrontante, o fazendeiro Sonô, ex-sogro de meu
irmão Romero. Parece que o que deu origem à pendenga foram as
constantes invasões do gado deste último à propriedade e às roças do
primeiro. Avisado dos prejuízos que seu gado estava causando à pro-
priedade do vizinho, Sonô não deu importância às reclamações. Até
que, tendo prendido um lote invasor, no meio do qual se encontrava
um garrote, consta que Biá teria mandado avisar o filho de Sonô, de
nome Vadu, que fosse buscar as reses, o que nunca ocorreu. Então,
para exemplar o vizinho, Biá castrou o marruás. Diz assim a letra da
curraleira, que foi composta na forma dialógica por um artista catru-
mano da terra chamado popularmente de Claro Roxo:

Pra quê que ocê capô, Biá,


o garrote de sonô?
Eu capei ele
porque ele me atentô
quebrô o meu curral
e em minha cozinha ele entrô
mandei avisar Vadu
e nem assim ele importô.
Pra quê que ocê capô, Biá,
o garrote de Sonô.

Recorro à memória e não encontro registros correspondentes


ao evento a que hoje damos o nome de réveillon, com o sentido de rito
de passagem. Aliás, em nossa casa não havia o costume de realizar
nem essa comemoração, nem a tradicional ceia de Natal. Se não me
engano, a primeira ceia com esse sentido de que participei em toda
a minha vida aconteceu na casa de José Norival Lopes, o Lico, e sua
mulher Lanes, já em meados da década de 1960, da qual participaram
também pessoas importantes como João Honorato Primo, meu padri-
nho Baltazar Fonseca Melo e Poti Joaquim Ramos.
Memórias Catrumanas 228 Sidney Valadares Pimentel

Se não era comum a realização do réveillon, havia um costume


que o substituía perfeitamente. No transcorrer do dia 1o de janeiro,
se uma pessoa dizia para outra a locução interjetiva “Minhas alvíssa-
ras!” ou “Minhas festas!”, entendia-se que quem recebeu o cumpri-
mento ficava devedor de um presente, agrado ou prenda para quem
lembrou primeiro. Nossa tia Isabel de Araújo Pimentel era campeã
nesse tipo de jogo interjetivo. Após o ciclo natalino acontecia a Festa
de Janeiro, dedicada a São Sebastião, que nunca foi tida como uma
romaria e por isso mesmo reunia um número menor de participan-
tes. Essa festa, contando com a boa vontade do clero e a concordân-
cia de vários moradores da cidade, não existe mais.
Depois da Festa de Janeiro vinha o período do carnaval, que,
na vila, não me lembro de ter sido realizado nos mesmos moldes das
grandes cidades, de cujos excessos apenas tomávamos conhecimento
por meio do rádio. Isto não quer dizer que não houvesse, em nenhu-
mas circunstâncias, ritos saturnais. Havia o entrudo, banho público
anual ritualizado e o banho de talco. Em si, as duas modalidades de
carnavalização ocorriam concomitantemente, sendo desprovidas de
maiores complexidades. De acordo com as regras usadas para am-
bos, ninguém tinha a liberdade de invadir a casa do outro para dar-
lhe um banho de água ou cobri-lo de talco. Havia um espaço definido
para que alguém pudesse ser alcançado: a rua. Quem vai à chuva é
pra se molhar, dizia um ditado que costumávamos usar muito. Quem
saía à rua naquela data era porque estava disposto a participar da
brincadeira.
Vinha em seguida a Semana Santa, com tudo que as represen-
tações comemorativas do seviciamento e morte de Jesus traziam de
contraditório, ou seja, vazado em interdições e transgressões. Desde
o início do período da Quaresma, eram várias as proibições e tabus
para todos os cristãos católicos da vila, principalmente o de evitar co-
mer carne nas quartas e sextas-feiras. Mas era na quinta e sexta-feira
santas quando, de acordo com a tradição judaica, o Filho do Homem
foi morto e sepultado, que às anteriores se acrescentavam novas proi-
bições. Nesses dois dias, a todos era forçoso transfigurar-se quase em
outras santidades. Quase tudo que fazia parte do cotidiano ou que
as pessoas apreciavam fazer estava terminantemente vetado. E ai de
quem desobedecesse! As lojas, armazéns e bares não abriam suas
Memórias Catrumanas 229 Sidney Valadares Pimentel

portas. Não era permitido pagar nem receber dinheiro. Trabalhar


também não, a não ser nas atividades domésticas. Às empregadas de
nossa domus, bem como às das demais, não se aplicavam as mesmas
regras. Afinal de contas, o jejum era de carne e não de todo e qual-
quer alimento. Tanto que carne de peixe podia. A razão oferecida
para tal exceção era a de que a objeção só se aplicava ao consumo de
animais que tinham sangue, o que não ocorria com essa espécie. A
explicação nunca me convenceu, como não convenceria a um sujeito
curioso que ficasse de lado vendo o pescador Marcol abrindo um su-
rubim ou dourado. Mas o peso maior das proibições caía mesmo era
sobre a meninada, que não tinha autorização pra correr, nem gritar,
nem xingar, nem brigar ou arreliar com o companheiro, nem ligar o
rádio, ou comer doce ou, enfim, fazer qualquer coisa interessante e
“legal”. Era o momento do desprazer, que só seria superado no Sá-
bado de Aleluia, quando todos cumpriam a vingança milenar contra
os herdeiros e herdeiras do Judas Iscariotes.
A fabricação do Judas era uma tarefa assumida pelos rapazes
com idade entre os 18 e os 30 anos. Para construí-lo era preciso con-
seguir uma cabaça (que, depois de maquiada com tinta preta e verme-
lha, era colocada no lugar da cabeça), uma camisa de manga comprida
e uma calça, de preferência remendadas, e um par de botinas velhas.
Além disso, capim para o enchimento e baterias de bombas de diversas
potências que eram estrategicamente distribuídas em todas as partes
do corpo, objetivando produzir um espetáculo pirotécnico de magni-
tude quando se lhe ateasse fogo como conclusão dessa parte do rito.
Da confecção do explosivo boneco até a leitura da Décima, que
era o testamento deixado pelo Judas à população local, todos os atos
cometidos eram de natureza transgressora, como se entre o sepulta-
mento do Cristo Homem e sua ressurreição como Deus só existisse
o Caos. Nesse intervalo nada era certo. Nada era seguro. Nada priva-
tivo. Ou indizível. Ou secreto. Ou temerário. Pelo contrário, chegara
o momento de botar as cartas na mesa. De dizer quem tinha feito o
quê, com quem e sob que circunstâncias. De apontar os culpados,
como Filhos do Homem Errado. A lógica da manifestação assentava-
se na conturbação e na bagunça. Varando a noite, o jipe de Orlando
ou de seu irmão Norberto do Prado era empurrado e levado ladeira
abaixo até a Vereda. A mesa de um carro de bois que porventura esti-
Memórias Catrumanas 230 Sidney Valadares Pimentel

vesse estacionado numa rua escura era retirada e colocada a escorar


uma parede, enquanto suas rodas, como um carretel gigante, eram
empurradas para longe.
Enquanto um grupo se encarregava de desfazer o que estava
feito e de desmanchar o que estava composto, um outro ia pelas ruas
carregando o Rei da Bagunça, o Judas, gritando vivas e ditos pouco
elogiosos ou até rebaixantes, mostrando as identidades e semelhan-
ças existentes entre ele e os moradores. Lembro-me de certa oportu-
nidade em que, na frente de nossa casa e protegido pelo anonimato,
Gentil do Prado, o puxador, gritou: “O Judas é valente como D. Al-
cina?”, a cuja provocação a turba, em alarido, gritou confirmando:
“É sim senhor”. Mais adiante, na porta do próprio delegado, tornou:
“O Judas é mentiroso que nem Cesário?”. E a multidão: “É sim se-
nhor”. O puxador agora era José Norival Lopes, o Lico, que, na porta
do próprio pai, modulando a voz para dificultar o reconhecimento,
grita: “O Judas é preguiçoso que nem Candoxa?”. “É sim senhor”,
respondem em torno.
Terminado o passeio do Rei da Bagunça, ele era levado para
a praça e enforcado numa galha do jatobazeiro. No dia seguinte, ao
mesmo tempo em que desde cedo começam a chegar os moradores
que vão assistir ou participar do rito final, quando, antes da queima
do Judas, seu testamento será lido, instauram-se os comentários sobre
o que acontecera à noite. Minha mãe, sem deixar de demonstrar um
certo descontentamento, diz: “Eu conheci, foi Gentil que gritou, mas
ele me paga”, jura que não vai além da ameaça. Outro conta que o
cavalinho preto que carregou o Judas pra cima e pra baixo era o ron-
ceiro baio do barbeiro Dirceu Lopes, o Sodi, que fora submetido a um
banho de tintol e piche, sendo que o proprietário mesmo esteve mon-
tado nele amparando o Judas, sem reconhecer seu próprio animal.
Finalmente, por volta das nove horas, chega o momento da lei-
tura da Décima, composição poética que no passado deve ter sido
construída em estrofes de dez versos, ou em versos decassilábicos,
mas que não conservava mais essa estrutura. Todas as décimas de
que me lembro eram compostas como sextilhas em redondilha
maior que, em consonância com o clima perturbador da noite, tam-
bém assumiam a função de crítica social. Infelizmente pouco restou
desses poemas. Mostrarei a seguir duas sextilhas extraídas de déci-
Memórias Catrumanas 231 Sidney Valadares Pimentel

mas compostas em anos diversos. A primeira refere-se à acusação


(leviana segundo uns, verdadeira segundo outros) que sempre se fez
ao sanfranciscano Norberto do Prado, então morador na vila, de se
fazer amigo e protetor das viúvas para apropriar-se de parcela dos
bens inventariados. A segunda trata da traição conjugal de nosso tio
januarense Jovino Alves de Souza com uma vilã, relacionamento que
lhe teria gerado indesejáveis acréscimos na descendência.

Para Norberto do Prado


Eu dedico esta trova
Pra parar de perseguir
Viúva velha e a nova
Que faz o pobre defunto
Remexer em sua cova.

Eu deixo pro velho Jove


Rancador de tiririca
Um facão bem afiado
E uma bainha bem rica
Pra enfrentar quem quiser
Mexer com sua Cirica.

A balbúrdia causada pela noitada em que o Judas foi carregado


pelas ruas, assim como a crítica social veiculada nas estrofes da Déci-
ma, eram motivos de comentários na vila por semanas e meses. Num
momento em que ainda não existiam as reproduções xerográficas, as
denúncias e indiscreções cometidas pelo autor ou autores da Décima
permaneciam no imaginário dos moradores graças às ensebadas cópias
manuscritas ou datilográficas que corriam a vila de mão em mão.
Antes de concluir, não posso deixar de nomear as festas de São
João com suas fogueiras e quadrilhas puxadas por um dos sanfoneiro
da terra. Enquanto os rapazes e moças se entusiasmavam mais com
as quadrilhas, as fogueiras, com suas batatas doces no braseiro, fa-
ziam a felicidade dos menores.
O dicumê

O provimento da cozinha e da mesa dos moradores da vila de


Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia e de suas cercanias era
feito através de várias atividades de criação, plantio, coleta, caça e
pesca implementadas diariamente. Produzia-se, nesse momento,
para a subsistência da própria família e para a troca nos mercados
formal e informal por podutos de que se tinha necessidade. O criató-
rio a que se dedicava maior importância em razão de ser aquele que
oferecia mais proteína animal por cabeça sacrificada era o do gado,
seguido dos suínos e aves de terreiro.
Além das vacas e bois abatidos no único açougue da vila, em
algumas ocasiões era costume acontecer o sacrifício de bovinos e
suínos em certas domus, em comemoração a determinadas datas,
pela realização de eventos importantes como aniversários, noivados
e casamentos, ou como meio de prover alimento mais substancioso,
em especial quando da realização dos mutirões que reuniam muitos
trabalhadores por mais de dois ou três dias. Nessas ocasiões, como
não havia ainda na região condições para o congelamento como pro-
cesso de conservação da carne verde, parte dos animais sacrificados
era transformada em carne-seca, mediante o salgamento e a exposi-
ção ao sol, ou em carne-de-lata.
A carne-seca era de uso mais generalizado porque podia ser
conduzida em viagens a cavalo para preparos rápidos, ou sob a forma
de paçoca. Alguns tinham o costume de cortar nacos da carne-seca e
Memórias Catrumanas 233 Sidney Valadares Pimentel

comê-la sem fazê-la passar por qualquer outro processo de transfor-


mação, a não ser o salgamento e a secagem. A paçoca era tida como
um alimento de muito bom paladar e fácil de ser preparado, sendo
feito praticamente em todas as casas da região. Em sua preparação,
cortam-se pequenos pedaços da carne-seca, que serão submetidos à
fritura imersa em bastante óleo. Como herança da gastronomia ri-
beirinha sanfranciscana, de onde provinha, minha mãe tinha o cos-
tume de, juntamente com as mantas de carne “muciça” e bem “chu-
rumada”, como dizia seo Neco, incluir na fritura pedaços amarelados
e gordurosos do úbere da vaca também salgado e ressecado, para
acentuar o sabor da paçoca. Depois de bem frita, a carne era colocada
num pilão juntamente com uma porção considerável de farinha de
mandioca e socada até que a inteireza do músculo se descompusesse
em finos filamentos.
A carne-de-lata, feita como mandavam as boas regras da culi-
nária catrumana, também podia durar semanas e meses. Devia-se
o nome ao método usado para o seu acondicionamento, depois de
pronta. Segundo me lembro, minha mãe cortava partes inteiras do
bovino em pedaços maiores, alguns com até um palmo de compri-
mento e pelo menos metade de largura, furava bastante a carne, en-
fiava pelos buracos bons nacos de toucinho e deixava no tempero de
alho, sal e pimenta “criando gosto”. Horas depois, ou no dia seguin-
te, colocava a cozinhar numa grande panela de ferro até que a carne
estivesse maciinha e completamente desidratada. A carne então era
submetida à fritura para pegar cor e completar o processo de perda
de água. Depois de completamente frias, a carne e a gordura exce-
dente eram acondicionadas em uma lata muito bem areada e limpa.
Da carne de porco também podia ser feita a carne-de-lata, sabendo-se
que esta nem tinha a necessidade de ser enchida com toucinho.
No final dos anos 50, a vila travou conhecimento com um pro-
cesso mais ou menos similar, mas não utilizando a carne do boi e
do porco, mas sim a de pequenas aves caçadas na região. Quem eu
vi usando pela primeira vez esse processo foi minha atual cunhada
Mary Elita Costa Pimentel, a Lili, que deve ter chegado à vila por vol-
ta de 1959 ou 1960. Essa modalidade de preparado era feita com aves
silvestres de pequeno porte, como a nhambu, a codorna e a perdiz.
Depois da caçada, as aves abatidas eram todas depenadas, sapecadas
Memórias Catrumanas 234 Sidney Valadares Pimentel

e abertas por trás como se procede quando se pretende fazer o frango


cheio. Feito isto, Lili temperava as aves esfregando-as bastante por
dentro e por fora, deixando-as descansar até o dia seguinte quando
então cozinhava-as ao leite num grande tacho até que ficassem ten-
ras. Retiradas do leite, a nossa gastrônoma limpava cada peça muito
bem limpa com um pano para não deixar vestígios de nata, evitando
assim que depois de prontas as aves entrassem facilmente em proces-
so de deterioração. A fase final do preparo envolvia a fritura das aves
para desidratar, seguida de sua acomodação na lata, onde permane-
cia por vários meses e sempre apurando o gosto mais e mais.
Tanto quanto a carne da vaca, a do porco era muito apreciada.
A raça que existia originariamente na vila era de um tipo de suíno
comum, mais tipo banha do que tipo carne, que a população cha-
mava de “desenraçado”. Algum tempo mais tarde, meu pai trouxe
não sei de onde duas matrizes e um cachaço, dizendo ele que muito
enraçados em sangue cruzado de piau com durok. Quando chega-
ram, eram ainda quase leitões de pêlo meio amarelado com largas
pintas escuras, mais compridos e de menos caixa do que os capados
existentes no chiqueiro, os quais, de tanto toucinho em volta do cor-
po, chegavam a estourar a pele, deixando à mostra a gordura, onde
as varejeiras colocavam seus ovos. A culinária de base suína não se
diferenciava muito da que era encontrada tanto na direção do estado
goiano quanto no rumo das barrancas do rio São Francisco.
Memórias Catrumanas 235 Sidney Valadares Pimentel

Nos dias atuais, mesmo na região, não se observa mais a exis-


tência de um recipiente, componente obrigatório das antigas des-
pensas mineiras, chamado caixa-de-toucinho. A caixa-de-toucinho
era uma espécie de baú grande, geralmente de acabamento tosco,
onde se acondicionavam grandes mantas de toucinho retalhado e sal-
gado, a fim de que apurasse o sabor e não pegasse o ranço. Em si, o
processo era extremamente simples. Depois de separadas da carne e
lavadas em água corrente, as mantas de toucinho, que não podiam
exceder as dimensões da caixa em comprimento e largura, eram devi-
damente preparadas para o armazenamento. Assim: colocava-se sob
a manta disposta com a pele para baixo, transversalmente ao compri-
mento, uma mão-de-pilão ou um pedaço de madeira roliça. A técnica
do preparo consistia em ir movimentando a mão-de-pilão, ou seu
substitutivo, à proporção que se cortava o toucinho com uma faca
afiada, aprofundando até a pele, mas sem deixar atravessá-la. Cada
corte devia ficar a uma distância aproximada de dois dedos, tanto
da incisão anterior, quanto da posterior. Depois de satisfatoriamente
recortada, bem salgada e escorrida, a manta estava pronta para ser
arrumada na caixa.
No uso diário, os nacos eram retirados e fritados proporcional-
mente às necessidades de consumo da família. A reserva de toucinho
na caixa funcionava como uma espécie de calendário a demarcar a
data aproximada em que o próximo capado do chiqueiro deveria ser
sacrificado. Havia, desse modo, um perfeito equilíbrio entre duas
temporalidades, marcadas pelo tempo que a família gastava para
consumir uma caixa de toucinho e o tempo que se gastava para que,
entre os porcos submetidos à engorda, ao final daquele tempo, pelo
menos um estivesse “no ponto” para ser levado ao sacrifício.
Como não havia normas a coibir os excessos, toda casa possuía
seus capadinhos no chiqueiro. Alguns chiqueiros comportavam até
mais de uma dezena de porcos, dependendo da capacidade que tinha
a família de prover alimentação em ração de milho e em sobras de
comida, ou lavagem. Foram poucas as oportunidades em que o esto-
que de nossa domus esteve abaixo de dez capados. De modo que em
determinadas épocas do ano, principalmente quando o calor descia
inclemente sobre o arruado, a vila se transformava num mau cheiro
geral. Nunca se sabia de onde provinha aquele bodum, se do nosso
Memórias Catrumanas 236 Sidney Valadares Pimentel

ou dos chiqueiros dos outros. Mesmo assim, minha mãe tapava as


narinas com o lenço e dizia, olhando em volta para não falar em cor-
da em casa de enforcado: “Minha mãe, mas esse chiqueiro de Celina
hoje tá uma fedendina que só vendo”.
Mas o dia em que se matava porco em nossa casa era uma fes-
ta. A agitação começava logo cedo com a chegada de nosso tio Jove,
que, como o magarefe-chefe da domus, orientava todas as atividades
necessárias para que o sacrifício saísse a bom termo. Afiava as facas
grandes e pequenas, não se esquecendo de seu facão Jacaré com o
qual fez muito sujeito metido a biscoito de sebo cair na maravalha.
Se havia folhas secas da palmeira buriti, mandava amontoá-las a um
canto para serem usadas na hora de pelar. Caso contrário, mandava
um ajudante encher o tacho previamente colocado sobre uma trem-
pe, lançando sobre a água algumas mãozadas de cinza. Nunca soube
para que servia a cinza. Talvez nem ele soubesse. Então, depois de
amarrado pelo pé com um nó-de-porco, a vítima era tocada para o
cadafalso onde cederia sua vida em troca de alguns mícrons de mau
colesterol depositados sobre as veias dos que consumiriam sua carne
e sua gordura, atividade paciente que, como uma vingança, ajudaria
a matá-los porco a porco. Aí vinha a parte mais dolorosa, quando o
magarefe-chefe, traçando com a vista uma linha imaginária que, par-
tindo do lado interno do pernil dianteiro esquerdo, seguia na dire-
ção do coração, varando-o como a lança de um crente sobre o corpo
de um infiel. Morto o capado, vinha a fase de purificação do corpo,
quando se lhe dava um banho, caprichando para não deixar vestígios
de sujeira ou de sangue. A seguir vinha o sapecamento, o escanhoa-
mento, a começão da “péla”, a abertura e separação das vísceras e,
em pouco tempo, lá estava o barrão partido, esquartejado, dependu-
rado, tendo um seu pedaço ofertado pra fulano, outro pra beltrano,
outro pra sicrano, já que as dádivas e contraprestações surgidas na
vila naquele momento lembravam de algum modo o que é apontado
por Godfrey Lienhardt em relação ao simbolismo entre os sudaneses
Dinka, no que tange à correspondência entre a compartimentaliza-
ção dos pedaços do boi sacrificado com a compartimentação social.
Embora fornecessem menor quantidade de carne, as criaturas
bípedes e penosas do terreiro eram tão valorizadas, senão mais, do
que as bovinas e suínas. Isto para não mencionar a carne dos car-
Memórias Catrumanas 237 Sidney Valadares Pimentel

neiros e cabritos que, embora muito apreciada em nossa casa, era


preconceituosamente afastada da dieta dos vilões por ser tida como
“comida de pau-de-arara, de sabor adocicado”, ou “com gosto de
lã”, que “incha na boca”. Do ponto de vista ritualístico, a popula-
ção do terreiro, em especial dos galiformes, exercia uma importância
até maior do que a dos bovinos e suínos. Em ocasiões especiais, ou
quando surpreendida com a inesperada chegada de um parente, era
do frango ou da galinha que a dona de casa se socorria para sair do
aperto. O domingo era sempre uma data especial que não podia pas-
sar de liso, isto é, sem um frango à mesa. O mesmo ocorria quando
chegava alguém de importância para fechar um negócio. Assim, fosse
no ócio ou no negócio, o penoso ou a penosa eram sempre muito
bem vindos. Se alguém paria na casa, era preciso que houvesse um
estoque suficiente de franguinhas ou franguinhos novos pra serem
sacrificados, enquanto durasse o resguardo. Nunca me convenci de
que esse costume seja explicado exclusivamente pela razão prática,
já que para o fortalecimento da nova mãe haveria outros alimentos
de tanta ou até maior sustança. Suponho que, por detrás da justifi-
cativa de fortalecimento físico da mãe, possa estar também uma he-
rança passadista ligada ao sacrifício sacramental, ou samskâr, de que
fala Marcel Mauss. Não seria também por isto que, para demonstrar
como tudo é passageiro, as pessoas adagiavam: “Acabaram-se as gali-
nhas, acabou o resguardo?”.
Além dos frangos e galinhas propriamente falados, era costu-
me encontrar nas casas outras espécies como as dos patos e cocás.
De carne menos tenra do que os galiformes, os patos conseguiam so-
breviver muito bem em residências perto das quais existissem regos-
d’água ou pequenos lagos. Os cocás, por seu turno, em razão de sua
carne mais consistente e mais escura, e por ser usados como vigias
das residências contra cobras e outros animais danosos, eram con-
sumidos em menor escala e por isso chegavam a formar verdadeiros
bandos que corriam a vila e suas adjacências em forte alarido.
Ao sacrifício dos animais domésticos, acrescente-se a caça dos
silvestres de casco, couro, escamas ou penas, como complemento da
dieta catrumana. Desde que passei a me entender por gente, obser-
vei a chegada à vila de várias espécies de animais abatidos para ser
consumidos ou vendidos. Entre os de cascos, o preferido era o veado
Memórias Catrumanas 238 Sidney Valadares Pimentel

mateiro, que fornecia uma carne tenra e sem cheiro acentuado e um


couro resistente e especial para a fabricação de laços destinados à
lida com o gado. Grande conhecedor do assunto, meu pai comprava
todo o couro de mateiro que fosse ofertado na loja. Além do mateiro,
comia-se o catingueiro e, dependendo da fome em que o indivíduo
estivesse, até o galheiro, que, no dizer de nosso tio Jove, tinha um
“oroma que cê besta”. Outros bichos de casco que os catrumanos
costumavam “passar no papo” sem fazer figa eram a capivara, a paca,
o cateto e a anta, nessa ou em outras ordens de preferência.

Os peixes vinham de muitos rios trazidos por várias mãos, mas


os maiores e melhores eram mesmo os pegados no anzol ou na fisga
pelo pescador Marcol. Costumava-se dizer que Marcol não ia ao rio
para pescar, mas sim para buscar o peixe. Quantas vezes o vi entran-
do na vila com um companheiro, ambos descalços e com as barras
das calças encharcadas e arregaçadas até o meio das canelas, trazen-
do um surubim, que ele chamava de moleque, dependurado de um
resistente pau roliço. Muitos moleques eram tão grandes que, apesar
Memórias Catrumanas 239 Sidney Valadares Pimentel

da estatura dos dois carregadores, ainda vinham arrastando a ponta


do rabo pelo chão. Mas o peixe da preferência de meu pai não era o
surubim, era o dourado. Principalmente se fosse dos bem adultos,
com os ossos das costelas bem grandes. Minha mãe cortava aquelas
lepas de costelas de três dedos de largura e inteiriças no comprimen-
to e fritava na gordura bem quente depois de temperadas e passadas
na farinha de trigo ou na farinha de mandioca sem muitos gronzolos.
Ficava um verdadeiro manjar dos deuses. Mas não eram só estas duas
espécies aristocráticas que seu Marcol trazia, em sua rede vinha de
tudo. Curimba-azulega, pirá, piau-verdadeiro, mandi-açu, piranha da
branca e da preta, matrinxã, pacu, pocomã.
Nós, meninos, com estilingues, bodoques e espingardinhas-
de-chapéu-de-sol, não ficávamos atrás nas demonstrações de nossos
instintos matadores. Naquela época, era costume comer vários tipos
de aves, como as nhambus, as codornas, as perdizes, os papagaios, as
jandaias e os periquitos. Às vezes cometíamos os assassinatos e entre-
gávamos para nossas mães e empregadas fazerem grandes paneladas
com aqueles minúsculos corpinhos que depois de cozidos não davam
quase nada. Caçávamos também pequenos coelhos e preás, cujas pe-
les, depois de curtidas, ficavam da espessura de uma folha de papel.
A coleta nunca constituiu parte substancial de nossa dieta,
ainda que mais hoje, mais amanhã, andássemos à cata de frutas que
eram produzidas em determinadas épocas do ano e não em outras.
Forante as árvores que davam frutos nos quintais da vila, havia as
existentes fora, entre as quais, como já tive oportunidade de dizer,
a que produzia os frutos mais deliciosos era o araçazeiro. Mas havia
outras — algumas das quais nem eram consideradas verdadeiramen-
te frutas —, como marmelada-preta, sangue-de-cristo, jatobá, sapo-
ti, araticum, cagaita, buriti, murici, pequi, baru, caju, goiaba, ingá,
mangaba etc.
Forante a mamona e mais um ou outro produto que não se
prestava ao consumo alimentar direto, podemos dizer que os catru-
manos só se ocupavam do plantio anual do arroz, do feijão, do milho
e umas “bestajadinhas de mistura”, como era seu costume dizer. Os
dois primeiros porque faziam parte da dieta diária, ainda que não
houvesse nada mais para misturar com eles. O milho, além de servir
para alimentar os capados e as galinhas, era usado como fonte de ali-
Memórias Catrumanas 240 Sidney Valadares Pimentel

mento complementar para a família, permitindo fazer a pamonha, o


angu, o mingau, a canjica e o engrossado. Até bem depois de meados
da década de 1950, a população da vila só conhecia o milho comum,
chamado hoje de milho crioulo, que possuía um sabor mais ao gosto
das populações catrumanas para o uso na sua alimentação. Ainda me
recordo da recusa dos vilões em adotar o milho híbrido como subs-
titutivo do milho crioulo em razão da melhor palatabilidade deste
último, mesmo reconhecendo as propriedades nutricionais do pri-
meiro como alimento para as criações. Muitas outras misturas eram
plantadas juntamente com as roças de arroz, feijão e milho, como a
abóbora, a moranga, o quiabo, o maxixe, o caxixe.
Principalmente na vila eram quatro as refeições que se toma-
vam durante o dia, ou os “dicumê” (de-comer). A primeira, logo em
seguida ao despertar, mesmo que se compusesse apenas de chá e
quitandas, era o café-da-manhã. O café coado era bebida obrigató-
ria nessa refeição, ainda que a quitanda pudesse ser substituída por
um alimento mais substancioso, como um mexido preparado com as
sobras da janta do dia anterior. Em nossa domus, antes da ida para a
escola de manhã, praticamente todos eram obrigados a traçar o seu
“lavoisier”, composto de arroz e carne, a que se juntavam ovos fritos
e farinha de mandioca. Ao consumo desse tipo de preparado com
as sobras, a população se referia por meio da expressão “quebrar o
toco”. Se antes de ser consumido, por exemplo, aparecia alguém em
casa, o convite para o repasto geralmente era feito com a seguinte
pergunta: “Vamos quebrar o toco”?
Naquela época, não havia padaria na vila. Quando voltou de
Caio Martins, um rapaz conhecido como Tõe de João de Carlota ten-
tou colocar em prática sua aprendizagem na fabricação de pão fran-
cês, mas a experiência de padeiro não durou muito. Nesse ínterim,
a diversidade das quitandas que se faziam nas casas, para consumo
próprio, era muito grande. Lembro que, auxiliada em especial pela
governanta Eduarda, minha mãe fazia peta, bolo de puba ou de fubá,
fofão, pão de queijo, tareco, mané pelado, mentira. O tareco, de sabor
bem português, também chamado de biscoito-de-vidro, devido à cas-
quinha que se forma em sua volta depois de pronto, está desaparecen-
do. Tive acesso a duas receitas dessa quitanda, pouco diferentes entre
si. Transcrevo a seguir a que foi cedida por Olga Ferreira do Prado:
Memórias Catrumanas 241 Sidney Valadares Pimentel

Ingredientes:
1 kg de polvilho doce (fécula de mandioca)
1/2 kg de açúcar refinado
250 ml de óleo de soja
Cerca de 10 ovos (até o ponto de enrolar)
Uma pitada de sal

Modo de preparar:
Coloque o óleo no polvilho, misturando bem com as mãos até o ponto
de umedecer a massa. Bata os ovos com o açúcar e o sal no liquidificador,
despejando-os em seguida sobre a massa umedecida. Amasse bem e enrole
os biscoitos. O ponto da massa para enrolar é meio duro. Ponha para ferver
uma panela média com água até a metade. Coloque os tarecos enrolados
na água fervente até cobrir o fundo da panela. À medida que os biscoitos
forem subindo, retire-os com espumadeira e coloque-os num pano umede-
cido com água sobre uma mesa. Depois de escorridos, coloque os biscoitos
numa fôrma levemente untada com óleo sem deixar que fiquem muito pró-
ximos. Coloque-os para assar em forno brando pelo período aproximado
de 45 minutos.

Por volta do meio-dia era hora do almoço, que se compunha


sempre de arroz, feijão, carne e algum tipo de mistura. Antes que
uma senhora chamada D. Anita tivesse levado para a vila a palavra
“lanche” para nomear o alimento que se tomava entre o almoço e o
jantar, ele era geralmente denominado “café de mei’-dia”. À tardi-
nha, o jantar costumava ser um repeteco do almoço.
Muitas também eram as qualidades de doces que se faziam na
vila e que eram servidos aos de casa e aos visitantes como gentileza
e prova de amizade. Os doces podiam ser feitos com praticamente
qualquer produto nativo ou não, desde que a ele pudessem ser adi-
cionados os subprodutos da cana, o açúcar e a rapadura. Doce de
leite. Doce de leite talhado. Moles ou cortados. Com ou sem coco.
De mamão. De laranja-da-terra. De cidra. De figo. De coco buriti.
De caju. De sangue de porco, ou chouriço. De mangaba. De arroz
com leite. De banana. E depois ainda vinham os licores servidos em
aristocráticas licoreiras.
Memórias Catrumanas 242 Sidney Valadares Pimentel

Não havia na vila imponente mobiliário, como mesas exces-


sivamente compridas, ou de talhe sofisticado, destinadas ao repas-
to da família e de convidados. Assim, quando exigido como parte
de uma cerimônia, era costume juntar pelas extremidades duas ou
mais mesas de dimensões aproximadas. Poucas eram as casas que
possuíam uma baixela mais rica e apresentável para momentos espe-
ciais e outra mais simples e mais deteriorada, destinada ao uso diá-
rio. E mesmo nesse caso, é digno de nota que parte da baixela usada
cotidianamente já pertencera um dia ao primeiro grupo, passando
para a categoria inferior à medida que foi deformando, amassando,
depelando ou sendo, de alguma forma, corroída.
Consoante afirmei em outra parte, o garfo era símbolo e ex-
pressão da masculinidade, enquanto a colher o era da feminilidade.
Assim, comer com colher não pegava bem para os homens, sendo
perfeitamente aceitável para as mulheres. As quatro garotas que mo-
ravam em nossa casa — Helena (filha do vaqueiro João de Farias),
Valdeci (nossa meio-irmã), Dadá (sobrinha da governanta Eduarda) e
Ilma (filha de nosso tio Joaquim Pimentel) — comiam conjuntamen-
te numa grande travessa, cada uma com sua colher. O interessante é
que era mais aceitável aos homens comer “capitão” do que utilizar
esse utensílio culturalmente feminino. “Comer capitão” era a expres-
são que se usava na vila para referir-se ao ato de comer sem o auxílio
de qualquer instrumento. Era uma prática muito comum, principal-
mente se a comida era constituída apenas de arroz, feijão, farinha
(para dar liga) e algum caldo de carne, quando então o glutão fazia
pequenas bolas do alimento com as pontas dos dedos, amassando-as
bem para, só então, levá-las à boca.
As estratégias educacionais

Incontáveis foram as oportunidades em que os ingredientes po-


lítica e politicagem se combinaram para determinar onde e como seria
oferecida às crianças e adolescentes da vila a oportunidade de apren-
der a ler e escrever, que eram, naquele momento, as principais razões
da freqüência à escola. Algumas vezes, a interferência nem precisava
de um escopo político. Pelos motivos mais banais, concedia-se ou to-
mava-se uma sala de aula, transformando os alunos em joguetes.
Corre ainda hoje, como parte do folclore local, a história ab-
surda de um certo viúvo que tomou de volta os móveis doados a uma
professora particular para que ela iniciasse um projeto educacional
completamente desinteressado e gratuito. A exigência de devolução
do improvisado mobiliário (mesas, bancos e tamboretes) tinha como
motivo o fato de a professora haver intercedido contra as pretensões
do doador de convolar núpcias com uma filha dela. Esse episódio
insólito é útil para elucidar e exemplificar uma relação que, durante
muito tempo, foi a regra e não a exceção. Antes da instituição do en-
sino público na vila, foram inúmeros os locais usados como escola.
Hoje seria quase impossível determinar a seqüência temporal ou a
concomitância. O certo é que antes da criação da Escola Isolada Cân-
dido José Lopes, protonúcleo da escola pública, não se podem preci-
sar os nomes dos e das responsáveis pela condução multisseriada do
ensino, assim como diversos foram os lugares onde funcionaram as
salas de aula.
Memórias Catrumanas 244 Sidney Valadares Pimentel

D. Filomena Campos, dita D. Fulô, seguramente não foi a inau-


guradora, mas foi uma das mais importantes professoras da vila. Fui
alfabetizado por minha mãe e por ela e tenho desse período vivas
recordações. Mesmo após a criação da Escola Isolada Cândido José
Lopes, essa mestra continuou com seu curso multiseriado. Alcancei-
a com seus severos e incontáveis pitos (nos dois sentidos) e seu incri-
velmente impreciso relógio-de-sol, dando aulas na casa onde nasci
e que veio a pertencer a D. Maroca, irmã de seo Antonino e de seo
Candoxa. Depois de D. Fulô, muitos foram os que, alternadamente,
montaram suas salas de aula na vila. Entre a casa erguida por seo Vi-
talino Fonseca Melo e a que o fazendeiro Felipe Rodrigues da Costa
construiu para abrigar os pobres, havia uma casa chamada Casa dos
Padres, para onde cada aluno levava seus pertences escolares e seu
tamborete ou cadeira.
A inexistência de dados escritos impede determinar com
maior objetividade o pioneirismo no setor escolar na vila. Quem
veio primeiro e onde se estabeleceu? Mas parece fora de dúvida que
se deve dar crédito à informação de que, entre os pioneiros, encon-
tra-se uma família composta por uma mãe já idosa e três ou quatro
filhas, trazidas de Formosa pelo fazendeiro Lindolfo Gonçalves. En-
tre as moças professoras, permanecem na memória social os nomes
de Julieta, Jandira e Elfrida, que foram ocupar uma casinha existen-
te no local onde depois nossa tia Celina montaria a Pensão Pitan-
gui. Mas muito provavelmente o prédio que durante mais tempo foi
palco da nem sempre muito amigável relação ensino-aprendizagem
foi mesmo a casa em que viveram as famílias dos circunspectos Lin-
dolfo Gonçalves e Antonino Lopes. Hoje, depois de reconstituída
de modo a acentuar suas linhas coloniais, é uma espéie de cartão
postal da vila.
Pelo que se comenta, a casa teria hoje mais de dois séculos de
existência. Pertence atualmente ao casal Osvaldo Gonçalves (Vado-
te) e Dália Lopes — ele filho de seo Lindolfo e ela de seo Antonino.
Erguida a quase um metro de altura do rés-do-chão, lembro-me de
quando essa casa e a que existe à sua direita, pertencente ao fazen-
deiro Cesário Rodrigues de Oliveira, possuíam assoalhos de tábuas
sob os quais verdadeiros exércitos de ratazanas organizavam as mais
barulhentas gincanas.
Memórias Catrumanas 245 Sidney Valadares Pimentel

O quintal da casa de seo Antonino possuía as dimensões de


uma pequena chácara, onde cresciam ervas e fruteiras de várias qua-
lidades. Bem perto da casa existia um gigantesco pé de amora sobre
o qual o mínimo que se pode dizer é que o que lhe faltava em capaci-
dade de sombreamento sobrava em produtividade.
Especialmente a partir de meados daquela década, minha mãe e
a professora Dália Lopes viviam às turras. Dizer que viviam às turras
era pouco para caber a relação conturbada que sempre houve entre
ambas. Por razões que já não paga mais a pena ir buscar, elas não se
gostavam e não fingiam o contrário. Soube recentemente que, no fi-
nal de sua vida, minha mãe respondia ao cumprimento de Dália, cha-
mava pra dentro, oferecia cafezinho e dedicava-se aos comentários
sobre o que estava acontecendo na cidade, sobre quem tinha ficado
grávida sem querer, ou quem, por mais que se esforçasse, não conse-
guia se engravidar etc. Mas naquela época a coisa era bem diferente.
Fiz esse volteio todo pra contar que uma certa vez o meu cole-
ga Coleto, nascido Diógenes do Prado Lopes, sétimo na ordem de su-
cessão entre os dez filhos de seo Antonino e sua santa mulher Pexixa,
anunciou ao final da aula que a amoreira de sua casa estava que era
um despotismo de tanta amora madura. Quando o professor Vergílio
Cunha Chaves soltou, entre os que se aventuraram a passar lá para
Memórias Catrumanas 246 Sidney Valadares Pimentel

apreciar as belas amoras da casa de seo Antonino, estávamos eu, o


prório Coleto e o Davi Pé-de-Chumbo. Bom, como as mais suculen-
tas amoras estavam no alto, subimos todos para o olho da amoreira
e, como estávamos com a camisa branca do uniforme escolar, não
preciso dizer o estado em que descemos de lá. Aí foi um deus-nos-
acuda. Sua mãe vai te pegar, disse o Davi. E o Coleto: Nem quero
estar por perto na hora que você chegar lá. E aí aconteceu a primeira
grande surpresa que tive da noção de desavença. A imagem que eu
tinha da Dália era bem próxima da imagem de uma caninana. Que na
primeira oportunidade não perderia a oportunidade de estilar seu ve-
neno. Pois não foi o que sucedeu. Vendo o ocorrido e o medo pânico
em que eu me encontrava, chamou o Coleto e disse: “Vai com ele e
diz pra Alcina que a culpa foi minha. Fui eu que pedi pra ele subir pra
ajudar a pegar uma amoras pra eu fazer um doce pra minha mãe”.
Escapei por pouco. Mas até hoje ninguém me convence do contrário.
Pra mim, a eficácia simbólica da frase de minha ex-professora esta-
va naquele “pra minha mãe”. Explico: apesar das divergências com
minha professora, minha mãe teve sempre um apreço especial pela
mãe dela, a Pexixa, que, apesar de portadora de graves comprometi-
mentos neurológicos diagnosticados como epilepsia, foi mãe de duas
filhas e oito filhos, todos fortes e saudáveis.
Voltando ao tema principal deste tópico, do lado esquerdo da
casa de seo Antonino existia e ainda existe uma casa menor e mais
baixa onde dona Hemetéria Josefina Lopes, mulher do fazendeiro
Lindolfo Gonçalves, abriu uma sala de aula. Durante a década de
1950, essa mesma casa foi ocupada pela professora Inês Gonçalves,
dita Zeta, filha do mesmo Lindolfo. Depois da internação do marido
em razão de doença diagnosticada como esquizofrenia, ela e as duas
filhas vieram para a vila onde D. Zeta, excelente mestra, assumiu a
cadeira de professora no Grupo Escolar Cândido José Lopes. Porém,
antes de a casinha abrigar essa professora, morou ali um outro pro-
fessor chamado Ederbal. Ainda existem pessoas que se lembram dele
e de como, na falta de relógio, e similarmente ao que acontecia na
classe de D. Fulô, foi construído um relógio-de-sol que marcava os
momentos de entrar e de sair da aula.
Para não ser injusto, é preciso dizer que muitos outros profes-
sores e professoras, cujos nomes se encontram perdidos na memória,
Memórias Catrumanas 247 Sidney Valadares Pimentel

tiveram na vila suas classes e seus discípulos. Isto para não mencionar
o grande número de alunos que eram enviados para uma espécie de in-
ternato rural existente numa propriedade perto da Barra da Vaca, cha-
mada Fazenda Tamboril. Esse mestre-escola chamava-se Benevides e,
de acordo com os depoimentos da época, infundia verdadeiro pânico
entre os incautos discípulos, fossem eles inteligentes ou rudes. Entre
os rapazes da vila que foram enviados “para aprender mais a ser gente
do que a ler”, como me disse um dos alunos em tom de brincadeira,
seo Vitalino Fonseca Melo enviou o filho Marcol, e seo Lindolfo Gon-
çalves enviou a filha Lió e o filho Hemetério, futuro expedicionário.
Era esse o panorama da escola particular na vila, já que a edu-
cação pública propriamente dita é realidade dos anos 50. A primeira
escola pública criada chamava-se Escola Isolada Cândido José Lopes,
que depois se transformou em Escola Combinada e por fim em Grupo
Escolar Cândido José Lopes. Foi essa derradeira fase da metamorfose
que eu conheci melhor por ter convivido com os mestres e alunos de
então. Mas antes de falar dos recursos humanos, quero discorrer um
pouco sobre as condições materiais desse que foi o primeiro espaço
dedicado ao ensino não-particular na vila.
O lote onde se erguia o grupo escolar era tão vasto que caberia,
se esse fosse o caso, até um seminário com salas de aula, de estudo,
refeitório, cozinha, despensa, salão de jogos e até quadras de esporte.
A área construída compunha-se de um prédio de aproximadamente
75 m2 dividida em duas salas de aula isométricas nas extremidades,
intercaladas por um saguão acanhado e descoberto nas partes da
frente e de trás. À direita e à esquerda do saguão ficavam as pare-
des com amplas portas almofadadas, feitas de madeira de lei, que
davam entrada às duas salas de aula. Apesar do espaço exíguo que
compunha as salas, cada uma possuía seis amplas janelas também
de madeira, distribuídas igualmente nas partes dianteira e traseira.
O piso de todo o prédio era construído em cimento liso queimado
de cor natural, em cuja superfície, aqui e ali, soltavam-se algumas
placas, deixando à mostra verdadeiras cicatrizes. No início de todo
semestre, atendendo às ordens, só Deus sabe de quem, vinham o car-
pinteiro e o pedreiro (geralmente os conhecidíssimos Zé Martins e
Raimundinho de Marieta) e faziam reparos superficiais mas suficien-
tes para suportar as batalhas de mais um semestre.
Memórias Catrumanas 248 Sidney Valadares Pimentel

Além do prédio onde os mestres se revezavam na tentativa de


desasnar os rudes discípulos, havia ainda, a poucos metros, uma pe-
queníssima meia-água com as dimensões de pouco mais de um me-
tro quadrado, que era usada como privada para todos. É interessante
notar que, através das janelas das duas salas de aula, todos podiam
observar se os alunos que se diziam “apertados” e pediam para ir na
casinha realmente cumpriam o constante de sua demanda, ou esta-
vam apenas usando a justa solicitação como desculpa para dali se
bandearem para outros sítios mais aprazíveis que oferecessem agra-
dos mais suculentos, como as mangas do quintal de seo Antônio Gar-
cia, as goiabas do terreiro de João Preto, ou os araçás da vereda de
seo Candoxa.
Lembro-me de que era nas paredes internas desse sempre mal-
cheiroso recinto, repentinamente transformado em página de cader-
no de caligrafia, onde muitos procuravam se recuperar da fama de
preguiçosos nas tarefas da escrita e da arte pictorial. Ali muitos co-
meçaram a inscrever as reflexões filosóficas ou escatológicas (nos dois
sentidos) pelas quais seriam reconhecidos, se não em nível mundial e
nacional, pelo menos localmente. Ali alguns alunos decidiram publi-
car, com todos os efes e erres, algumas dimensões de determinados
órgãos os quais, por se localizarem no baixo corporal, costumavam
ser consideradas indizíveis e impublicáveis. Ali também começou,
Memórias Catrumanas 249 Sidney Valadares Pimentel

para vários de nós, o treinamento para os jogos de palavras, traduzi-


dos pela conservação dos elementos da composição, mas rearranja-
dos em nova ordem.
O mesmo Coleto que ajudou a me salvar de uma boa sova no
episódio do pé de amora dividia comigo um banco escolar na classe
do professor Vergílio. Esse competente mestre fora trazido de Pa-
racatu com o objetivo de suprir a falta de professores para as séries
mais avançadas do curso primário, que era como se chamava então a
primeira fase do primeiro grau. Era um homem tão rigoroso quanto
rígido. Os alunos, todos eles, sem exceção, piavam fino com o mestre.
Na hora de dar a lição, não havia meu pé me dói. “Senhor Diógenes,
faça jus ao seu nome de sábio e proponha questionamentos à D. Nel-
ci com base no texto marcado para o estudo de hoje.” Coleto olhava
para o professor com o rabo do olho e apenas fungava. “Senhor Dió-
genes, não enxovalhe um nome tão repleto de glórias, recusando-se
a dirigir à não menos nobre colega as inteligentes questões tiradas do
Livro de Leituras do nosso tão excelso Felisberto de Carvalho”. Nesses
momentos, Coleto expulsava ainda mais catarro das narinas do que
de costume. “Ah, não sabe? Então deixemos a tarefa à D. Nelci, que
não nos há de decepcionar”.
Como já afirmei, Nelci era filha do ferreiro João Preto que ti-
nha a sua tenda ao lado do grupo. Em razão de seus belos olhos para-
dos como uma lagoa, ganhara de algum dos colegas o nome de Zói-
de-Boi-Morto, de que não gostava. Vendo-a embasbacada na frente
do mestre, alguém que se sentava mais atrás, protegido pelo quase-
anonimato, botou a mão na boca para não permitir a identificação e
disse soturnamente: “Fala logo, Zói-de-Boi-Morto”.
Pronto. Era o bastante para que não houvesse mais aulas na-
quele dia. O professor Vergílio tinha essa particularidade. Não po-
dia sofrer o mínimo descontentamento ou dissabor. Na expressão
utilizada por toda a vila, qualquer aborrecimento ou contrariedade
que o tornasse irritadiço fazia com que ele “deixasse o queixo cair”.
De fato, como vim a saber mais tarde, ele sofria de um incômodo
denominado pela ciência de subluxação da articulação têmporo-
mandibular, ou simplesmente ATM. Quando irritado, deslocava-se-
lhe a mandíbula, de modo que ele não conseguia mais fechar a boca,
enquanto seo Rezende, de posse de rolhas de cortiça e colheres adre-
Memórias Catrumanas 250 Sidney Valadares Pimentel

demente preparadas, não forçasse a mandíbula para voltar ao seu lu-


gar, recompondo a posição normal da articulação e fazendo com que
se estancassem seus urros de dor. Nunca consegui provar isso, mas,
pela constância com que alguns colegas procuravam irritar o nosso
mestre, tudo faz crer que o objetivo desejado era sempre o de levá-lo
a “cair o queixo” e, portanto, determinar o fim das aulas naquele dia.
Mas, quando enveredei nesse excerto sobre o mestre, eu falava
da casinha que os alunos e alunas usavam para a satisfação de suas
necessidades e como espaço para manifestação de suas idéias. Pois
não foi nada não. Um certo dia, o professor Vergílio, que tinha espe-
cial pendor pelas artes, sendo inclusive um hábil executor de clarine-
ta, foi interrrompido pela nossa mesma colega Nelci, que se sentava
no banco à nossa frente, para receber a denúncia de que o Coleto,
sempre o endiabrado Coleto, em sua última excursão à privada dei-
xara gravada na parede em letras garrafais e a giz a mais terrível e
perigosa manifestação do concretismo vilão, a palavra “atecub”.
Não sei se, lida na ordem correta e ocidentalmente reconhecí-
vel (a que vai da esquerda para a direita), o professor Vergílio conse-
guiria entender o significado daquele signo. Mas o certo é que, assim
invertida, como se retirada de uma inscrição nipônica, ele nunca ha-
veria de compreender. E quando, inocente como um coelhinho da
páscoa, indagou o que aquilo significava e recebeu da turma, quase
em uníssono, a condenação de morte do Coleto, o mestre nem preci-
sou de exceder-se em seus impropérios. Como se não necessitasse da
parte que sempre precedia seus ataques, fez com os braços o gesto de
que estavam todos dispensados e ele próprio, horrorizado e cobrindo
o rosto com as mãos, seguiu para a farmácia para ser submetido a
mais uma seção de tortura.
O terreno do grupo começava à esquerda na esquina da cerca
de arame farpado que dividia com o quintal do ferreiro João Preto e
seguia, dividindo com a chamada praça de seo Gil, atual praça Salgado
Filho, prosseguindo dali até a esquina da rua 21 de Abril e desta até a
rua que está imediatamente atrás, a rua Brasília. No amplo perímetro
demarcado por esse contorno, só existiam construídos o prédio do
grupo e a privada. O restante, quando não havia um mandiocal plan-
tado que eu nunca soube a quem pertencia, era aproveitado para os
rachas com bolas de meias realizados antes, depois e nos intervalos
Memórias Catrumanas 251 Sidney Valadares Pimentel

das aulas. Quando a área interna do quintal era insuficiente para nos-
sas brincadeiras, apropriávamo-nos da praça que, então, ainda não
havia perdido espaço para o atual campo de futebol mal-ajambrado,
para o hospital, para a delegacia de polícia, para o posto de saúde,
para a Copasa e para as residências particulares. Com o tempo, além
dessas perdas, um ex-prefeito, avaliando certamente que o espaço era
excessivo para uma atividade tão desimportante como era a educa-
ção, decidiu alienar parte da área ocupada pelo grupo escolar.
O corpo docente que foi sendo incorporado para assumir as
salas de aula não esteve sempre imune às influências das mesmas
pressões existentes no tempo anterior à adoção da escola pública.
Mas à exceção do professor Vergílio, trazido de Paracatu para co-
brir uma falha insanável naquele momento, todas as demais pessoas
que assumiram a docência no grupo escolar eram gente da terra. Em
1950, Dália Prado Lopes tinha somente 15 anos e encontrava-se em
Paracatu estudando. Em 1952, porém, teve de deixar os estudos e
voltar para a vila a fim de cuidar da mãe doente e da casa. Então, para
suprir a ausência de docentes mais qualificados, inexistentes na vila,
começou a dar aulas, inicialmente submetida a contrato temporário
junto à prefeitura de Unaí e, em seguida, a partir de maio do mesmo
ano, em contrato permanente junto à Secretaria de Educação do es-
tado de Minas Gerais. Por via desse contrato, assumiu turmas do se-
gundo e terceiro ano, às vezes isolada, outras vezes conjuntamente.
Ao lado da prima e cunhada Dália, D. Zeta foi a responsável
pela solidificação do ensino público em Buritis, transformando o
curso primário em um saber mais sólido até do que o que se podia
encontrar em núcleos urbanos muito mais adiantados. Além delas,
algumas outras professoras ajudaram a consolidar o ensino público,
que até então não ia além da terceira série do curso primário. Entre
estas, cabe um lugar destacado a outra jovem natural da vila chamada
Lindaura Fonseca Campos. Filha do pescador Marcol, ainda menina
Lindaura esteve morando na cidade mineira de Araguari com o pai, a
mãe e alguns dos irmãos mais velhos. Quando a família regressou em
1952, Lindaura, com cerca de 13 anos, freqüentou as aulas particula-
res que uma moça da vila, chamada Misu, oferecia. Depois, passou
também por outras classes, como as oferecidas por nossa tia Celina
e pelo inesquecível professor Vergílio, tendo concluído ali o ciclo de
Memórias Catrumanas 252 Sidney Valadares Pimentel

formação. Àquela altura, o limite instrucional para os jovens da vila


se resumia em adquirir as capacidades de ler desimpedidamente as
cartas de amor que por ventura viessem a receber, de dar conta de
botar sua assinatura no livro de registros matrimoniais e na folha de
votação, e de fazer as quatro operações aritméticas.
Pouco antes de meados da década, a vila começou a ser visi-
tada por um deputado estadual e coronel da Polícia Militar mineira
chamado Manoel José de Almeida, criador e principal incentivador
das escolas Caio Martins, e que, aproveitando-se de seu esforço edu-
cativo junto àquela instituição de ensino profissionalizante, decidi-
ra candidatar-se a deputado federal pelo PSD. Deu a tampa com o
balaio. Meu pai, que também era pessedista, recebeu o coronel em
nossa casa e transformou-se em seu principal cabo eleitoral na vila,
numa relação que, convenhamos, foi útil para ambos.
Foi por aquela época que começou o êxodo de rapazes e moças
da vila para as unidades das escolas Caio Martins, notadamente a que
se situava na cidade mineira de Esmeralda. Lindaura, então com 16
anos, foi a primeira a partir. Nada planejado por antecipação. Numa
das agora constantes viagens à vila, o coronel Almeida, que nessa
época ainda morava em Belo Horizonte, trouxe consigo no teco-
teco uma filha que, travando conhecimento com algumas moças do
lugar, ficou impressionada com a contradição estampada nelas entre
uma beleza quase simplória e uma ignorância ímpar. Aos poucos,
foi tomando conhecimento das parcas condições da vida catrumana
e das razões da falta de polimento das jóias que ali existiam. Então,
na presença de minhas primas, as irmãs Altair e Odete Pitangui do
Prado, além da mencionada Lindaura, contou sobre a escola que era
administrada pelo pai e disse que, se alguma delas quisesse ir estudar
lá, ela tramaria para que tudo saísse a contento.
Caladas estavam, caladas permaneceram as irmãs Pitangui,
que não eram de enfiar a mão em cumbuca. Ante o silêncio das ou-
tras, Lindaura viu-se livre e desimpedida para lançar seu laço. Era
sua oportunidade de sair para conhecer outros mundos mais, além
de Araguari, e não pensou duas vezes. Disse: “Ah, se mamãe deixar,
eu vou”. Então, tentando avaliar o grau de instrução da pretendente,
a filha do coronel perguntou onde ela estudava. Lindaura foi respon-
deu categórica: “Não, a gente não estuda não. A gente não vai na
Memórias Catrumanas 253 Sidney Valadares Pimentel

escola não porque a gente já sabe ler e escrever”. E foi assim que a
menina-moça Lindaura, que não conhecia xampu, nem sabonete e
muito menos vaso sanitário, inaugurou a fila de jovens que partiriam
para estudar em Esmeralda.
O curso em Caio Martins não era lá essas coisas. Havia um
ensinamento formal baseado nas disciplinas tradicionais (Matemáti-
ca, Geografia, Ciências etc), aliado ao aprendizado técnico, principal-
mente agrícola. Quando a fila dos pretendentes começou a andar, fo-
ram várias as famílias que enviaram seus filhos para o estudo, o que,
naturalmente, gerou um acréscimo de votos para o coronel, compa-
tível com a aposta que ele fizera desde o início. Seguiram Lourenço
Ferreira do Prado, filho de D. Grossa; Edvarde Fonseca, primo carnal
de Lindaura; Sebastião Campos, filho da professora D. Fulô e futuro
caixeiro das Casas Pimentel; Valdecy, minha irmã; José Pimentel Fi-
lho, o Zezito, meu irmão, que marrento desde aquela época, fugiu
num trem para Pirapora com o fito de escapar ao regime interno e
ao sofrimento do trabalho agrícola; Lanes, filha de João Honorato
Primo, fazendeiro e primeiro prefeito depois da emancipação da vila;
Antônio, filho do funcionário da SUCAM João de Carlota, e alguns
outros cujos nomes me escapam neste momento.
Em Caio Martins, Lindaura concluiu o curso Normal Regional
Rural, que equivalia ao primeiro grau. Quando voltou à vila, mais
duas professoras haviam se incorporado ao trabalho no grupo es-
colar: Carlota Santana Prado e D. Anália. De modo que, com as três
classes iniciais do primário ocupadas, ainda que não tivesse sido cria-
da legalmente, Lindaura foi dar aula para uma suposta quarta série,
existente de fato mas não de direito. Lembro-me de que daquela tur-
ma fantasma faziam parte doze alunos, entre os quais Ordália Fer-
reira do Prado (de alcunha Piu), Helena (filha de João Farias Pinho,
nosso vaqueiro na fazenda São Vicente da Direita e valente extermi-
nador de onças), minha prima Terezinha de Araújo Pimentel e eu.
Posteriormente, egressas ou não do curso técnico de Caio Mar-
tins, outras professoras foram sendo absorvidas. Entre elas, um dos
nomes que me vem à memória é o de Lanes. De modo que várias
foram as combinações da relação mestre-disciplina por turma/ano.
Eu, por exemplo, cheguei à escola pública alfabetizado na classe mul-
tisseriada de D. Fulô e da segunda até a quarta freqüentei as classes
Memórias Catrumanas 254 Sidney Valadares Pimentel

dirigidas por Dália, professor Vergílio, Zeta e Lindaura quando, en-


tão, fui fazer o curso de admissão no Ginásio São João em Januária,
no norte de Minas.
Minha entrada na escola não foi feita para aprender a reconhe-
cer as primeiras letras, mas para aprender como juntá-las num todo
coerente e compreensível. Naquela época nós ainda vivíamos na pri-
meira casa construída por meu pai na rua do Meio. A bem da verda-
de, eu não sei dizer por obra de que milagre chegava em nossa casa
uma revista super colorida que minha mãe assinava, intitulada Vida
Doméstica. Minha mãe recebia a revista, lia, treslia, transferia para um
papel quase transparente alguns dos modelos de roupa para adultos
ou para crianças e guardava-a numa pilha onde pudesse encontrá-la
sempre que necessário. Nesse tempo eu já vivia vigiado para não sair
à rua, onde pudesse cometer algum desatino. Então, como parte da
estratégia de contenção, ela me colocava num banquinho e se punha
a me ensinar a pronúncia das letras. É desse momento a aprendiza-
gem catrumana de algumas consoantes que mais tarde, para evitar
que caçoassem de mim, tive de reaprender, tais como o fê (efe), guê
(gê), ji (jota), lê (ele), mê (eme), nê (ene), rê (erre) e o si (esse). Assim,
lá um certo dia, quando todos de casa menos esperavam, eu sabia
reconhecer as letras, ainda que não conseguisse juntá-las em palavras
e frases coerentes. Foi aí que minha mãe me deu banho, penteou mi-
nha cabeleira, colocou em minha mão uma cartilha e uma tabuada e
me mandou para a aula de D. Fulô.
A professora era uma mulher pequena e mirrada que, se não
me falha a memória, vivia numa casa velha defronte à área vaga que
mais tarde se transformou na praça Deputado Manoel José de Al-
meida. A sala de aula era única para todos os alunos, de mamando
a caducando. Ficava na parte da frente da mesma casa onde nasci. A
diversidade de livros na escola de D. Fulô era quase nenhuma. Em
relativa abundância, havia somente pequenos opúsculos dispostos
sobre uma banca de madeira. Eram os abecês e as tabuadas, o basicão
exigido para todos os alunos que se consideravam aptos a deixar a es-
cola. Essa bibliografia compunha-se de quadros simétricos dispostos
em cada página, quase que com a única diferença de que, enquanto
num tipo de documento havia letras e acentos, no outro havia alga-
rismos e sinais. Mas até as formulações e os pontos de vista básicos
Memórias Catrumanas 255 Sidney Valadares Pimentel

que serviam para um, serviam para o outro. Rê mais an é igual a rã.
Dois mais um é igual a três. Vô menos ô mais ó é igual a vó. Era assim
que, como a Bíblia fazia surgir o outro gênero de um osso do parceiro
englobante, a escola fazia surgir o mesmo de uma mesma e simples
operação.
E depois havia outros livros um pouco mais complexos. Quem
não se lembra da Cartilha Sodré e sua pata concretista? E além dos
livros ainda havia o restante do instrumental necessário ao bom de-
sempenho do aluno. Também no tocante aos cadernos, a diversida-
de não era grande. Havia em primeiro lugar “os de arame” e “os
sem arame”. Ambos, como se por encanto, tinham a capacidade de
ir perdendo folhas à medida que o fim do semestre ou do ano se
aproximava. De modo que no encerramento das aulas já não havia
folhas brancas para ser usadas. Principalmente nos cadernos brocha-
dos sem arame, pois, nesse caso, cada folha arrancada correspondia
ao dobro, já que a parte que ficava, sem a devida ligadura, soltava-se
também. Para as anotações nos cadernos, usavam-se sempre lápis,
apontadores e borrachas, penas e tinteiros.
A entrada no grupo causava mudanças em vários aspectos. Em
primeiro lugar, havia a obrigatoriedade de portar uniformes. Enquan-
to na escola particular ia-se à aula com a roupa da lida diária, sem
qualquer exigência de padronização ou até mesmo de muito asseio,
a freqüência à escola pública exigia um uniforme padronizado em
termos de cor e aspecto, em razão dos quais o aluno, mesmo na rua,
sentia-se constrangido a perder sua individualidade. E socialmente
dava-se tanto valor a esse constrangimento que a roupa comum usa-
da pelos alunos nem se chamava uniforme, chamava-se farda. Minha
mãe costumava dizer: “Vai tirar sua farda que é pra não sujar”. Ou,
no período de treino para o “grande” desfile de 7 de setembro: “O
treino vai ser de farda ou com uma roupa qualquer?”. O que queria
dizer que a farda não era uma roupa qualquer. Além de padronizar
internamente, ela constrangia o comportamento dos alunos na rua,
isto é, no trajeto de casa para o grupo e vice-versa. Tudo de malfeito,
ou errado, ou proibido que se fizesse era condenado num grau ainda
mais ou menos intenso, dependendo se o malfeitor estava ou não
vestindo sua farda do grupo. Isto para não mencionar a discrepância
existente de roupa para roupa, dependendo do cuidado, do apuro no
Memórias Catrumanas 256 Sidney Valadares Pimentel

corte e da qualidade do material usado. As faltas em relação ao pri-


meiro implicavam punições tanto em casa quanto na escola. Mas as
duas últimas condições nunca estavam satisfeitas uniformemente e
por inteiro. D. Negrinha, que morava na praça do grupo, fazia a rou-
pa dos alunos que podiam melhor custear as despesas de confecção,
enquanto muitas vezes eram as próprias mães dos alunos mais po-
bres que alinhavavam malemá suas fardas. Além do feitio, há a con-
siderar ainda a qualidade do material empregado. Os mais riquinhos,
como era costume dizer, faziam suas blusas brancas de tricoline ou
de fustão; os de menor poder aquisitivo compravam ora morim, ora
algodão cru, o que, naturalmente, introduzia nova hierarquização na
idéia de padronização e igualdade subjacente ao conceito do unifor-
me, isto é, da farda.
Consoante afirmei em alguns parágrafos atrás, os móveis usa-
dos nas escolas particulares da vila eram doados ou emprestados
pelos próprios moradores. Alguns se encontravam em estado tão
pitimbado que as responsáveis pelas classes compósitas eram obri-
gadas a escorar um de seus lados na parede. Com o tempo, a natural
inquietude e o peso dos usuários, alguns dos quais eram rapagões ou
mocetonas de corpo já bastante avantajado, os móveis iam cavando
profundos sulcos inicialmente no reboco das paredes e posterior-
mente até nos adobes, de modo a produzir ali uma espécie de cavilha
que protegia os alunos de um acidente inesperado. Já os móveis do
grupo escolar, em contrapartida, eram todos iguais, obedecendo a
um modelo usual naquele momento na maioria, senão na totalidade,
das escolas públicas de Minas Gerais.
A carteira, como já era denominada naquela época, era um mó-
vel de pouco mais de um metro de largura, extensão suficiente para
caber dois alunos não excessivamente obesos. Possuía dois nichos in-
dividuais e um comum aos companheiros que dividiam cada móvel.
O nicho coletivo era uma abertura de cerca de vinte centímetros de
altura, localizada entre a tábua inteiriça que servia de prancheta de
trabalho e a outra, mais estreita, que ficava logo acima das pernas,
onde eram colocados os objetos maiores, como livros e cadernos.
A prancheta de trabalho possuía uma pequena inclinação para
facilitar o apoio do braço aos menores. Na parte mais elevada e que
ficava mais próxima do encosto dos alunos que se sentavam na cartei-
Memórias Catrumanas 257 Sidney Valadares Pimentel

ra da frente ficavam os outros nichos, cavidades abauladas, de mais


ou menos um centímetro e meio de profundidade e vinte centíme-
tros de comprimento, assemelhando-se ao interior de uma pequena
canoinha, que servia para colocar lápis, pena e borracha. Ao lado,
uma cavidade menor e mais retangular, onde eram colocados os tin-
teiros.
Pouco acima do piso, havia uma travessa longitudinal que exer-
cia função ergonômica, onde os alunos colocavam os pés para des-
cansar as pernas. As carteiras eram sustentadas por duas estruturas
laterais bem fornidas, forjadas em ferro fundido, que sustentavam a
prancheta de trabalho dos alunos que ficavam atrás e o assento dos
dois que ficavam na frente.
Não podemos nos esquecer de que a vila naquele momento
era o próprio Cafundó do Judas. Somente muito de vez em quando,
apiedados da situação de penúria em que as populações sertanejas
viviam, surgiam doações de material didático enviado pelo governo
de Minas Gerais. No mais, a gente é que se virasse para fazer o me-
lhor que pudesse. Muito do material usado nas classes particulares
podia também ser encontrado nas salas do ensino público. E não se
deduza disto que a coincidência devia-se à transferência de obras do
ensino privado para o público e vice-versa. A oferta de material di-
dático, de um modo geral, é que era realmente limitada. Em nosso
grupo, além da Cartilha Sodré, líamos o Livro de Leitura, de Felisberto
de Carvalho. Havia Livro de Leitura para todas as séries do primário.
Eram livros cujas histórias metiam medo nos alunos. Foi num deles
que vi pela primeira vez o ícone do Anjo Mau, numa história sobre
o vício da embriaguez que pretendia ser bastante edificante. Se bem
me lembro, o segundo volume era um livro de capa bastante colorida
em que animais domésticos e selvagens disputavam espaço com um
casal de camponeses.
Apesar das “quedas de queixo” sempre atormentadoras do
professor Vergílio, ele era um mestre diferenciado. Não eram muitos
os artistas que tocavam instrumentos musicais na vila, nem estes
eram muito diversificados. Seo Anjo, Joaquinzão Chocolateira, seo
Egídio do Prado e seu filho Moacir, assim como Vicente Borló e o
marceneiro Zé Martins tocavam sanfona pé-de-bode. O ferreiro João
Preto tocava rabeca. Poti arranhava as cordas do violão. Todos to-
Memórias Catrumanas 258 Sidney Valadares Pimentel

cavam de ouvido. O único que sabia ler pautas musicais e por esse
motivo era considerado pela população como um verdadeiro músico
era seo Vergílio.
Quando veio para a vila, esse mestre conseguiu um quarto na
Pensão Pitangui, ao lado de nossa casa, onde, nos momentos de des-
canso, curtia sua solidão. À boca da noite, depois de comer o bife
acebolado de nossa tia Celina, apanhava sua clarineta e sentava-se na
porta da pensão, um tanto separado dos demais fregueses, pondo-se
a tocar melodias que caíam no agrado das pessoas mais idosas da
vila. Branca, Valsa de Eurídice, A Pequenina Cruz do Teu Rosário, Abismo
de Rosas e outras, pinçadas caprichosamente no cancioneiro popu-
lar. Quando a balbúrdia de jovens e adultos, nativos e mascates em
trânsito, ameaçava perturbar o sarau de nosso bom mestre, ele reti-
rava-se para debaixo do jatobazeiro e de lá continuava a executar suas
belas e sentimentais melodias.
Por ocasião de algumas cerimônias realizadas no grupo, era
o professor Vergílio que comparecia sempre com sua clarineta para
executar peças alusivas ao evento. Houve um Natal que não me saiu
da memória porque, além do professor Vergílio com sua clarineta,
fomos brindados também com a voz de uma menina chamada Bren-
da Maria cantando a música Chuá Chuá, de Pedro Sá Pereira e Ary
Pavão. Ela não cantava muito bem, admito. Mas só a presença dela,
balançando o corpo pra lá e pra cá e dizendo chuá-chuá compensava
quaisquer deficiências da voz.
Do ponto de vista dos surdos debates que ocorriam na vila em
torno da questão da aprendizagem e dos complicados métodos para
conseguir que ela se estabelecesse o mais eficientemente possível, o
mínimo que se pode dizer é que ali nunca se acreditou em algum tipo
de processo que não fosse puramente mnemônico. A lei geral que
valia para todos era a da decoreba e de seu corolário, o “repete aí que
eu quero ver se você sabe mesmo”. O que discernia, então, os que
haviam aprendido dos que permaneciam na negra noite da ignorân-
cia era o mesmo que separava um papagaio galego de um papagaio
verdadeiro. Era se o modelo, que estava nas páginas dos livros, podia
ser repetido tal e qual. Para tanto, os próprios discípulos desenvol-
viam técnicas criativas destinadas a facilitar a decoração de textos, de
poesias, de regras gramaticais, de resultados das quatro operações.
Memórias Catrumanas 259 Sidney Valadares Pimentel

Em nossa casa, desde cedo aprendíamos a cantar o trecho a ser


retido na memória. Para a tabuada, a musiquinha chata era idêntica,
independentemente da categoria e da operação. A hora em que nos
dedicávamos à repetitiva tarefa de decorar era importante, já que havia
entre nós a crença de que bem cedo da manhã era provável que apre-
endêssemos com maior facilidade do que à tarde ou à noite. Em razão
dessa crença mais ou menos disseminada na vila, acordávamos bem
cedo, entre 4 ou 5 horas da manhã, cada um pegava sua lamparina e seu
livro e procurava um ponto mais ou menos afastado do outro, para que
as vozes não se confundissem, e se dedicava à cantilena repetitiva.
De certa feita, entre as muitas vezes em que esteve hospedado
em nossa casa à cata de votos dos incautos catrumanos, o ex-deputa-
do e escritor Mário Palmério perguntou de manhã, à mesa do café,
se havia morrido alguém por perto, pois ouvira a triste e lamentosa
cantiga de carpideiras. Minha mãe então explicou a razão do ruído
e ele quase morreu de rir de nossa prática pouco usual. De vez em
quando, também da Pensão Pitangui de nossa tia Celina, que ficava
ao lado, provinham apelos calçados nas reclamações dos hóspedes
que, segundo se soube, não conseguiam conciliar o sono pela manhã
em razão do cantorio com que embalávamos nosso estudo.
Mais tarde, na aula, é que púnhamos à prova o resultado do que
havíamos apreendido. Anunciado o nome da vítima, ela era obrigada
a erguer-se de sua carteira, aproximar-se do mestre ou da mestra e
“dar o ponto”, tintim por tintim, sem faltar uma ênfase, ou uma pala-
vra sequer. Se o inquirido não houvesse apreendido a lição ou se, por
excesso de nervosismo, perdesse uma batalha na guerra da tabuada,
aí viria a segunda parte do rito, o castigo.
Os castigos tinham sempre o corpo como objetivo e variavam
de acordo com a importância da falta. Começando dos mais leves,
havia os verbos para copiar. Mil verbos, cinco mil verbos, dez mil ver-
bos. Os dedos ficavam roxos, a mão endurecia, o aluno se arrenegava
uma hora dessas de não ser ambidestro. Havia também os castigos
de ficar em pé, de ficar em pé com os braços abertos como um Cristo
crucificado pela didática, de ficar de joelhos, de ficar de joelhos sobre
caroços de milho. Diversidade punitiva tenebrosa. O terceiro estágio,
por fim, supra-sumo da violência escolar, envolvia o puxão de ore-
lhas e o uso da palmatória.
Memórias Catrumanas 260 Sidney Valadares Pimentel

Aos que nunca travaram conhecimento com essa espécie de


tacape educacional, expliquemos que uma palmatória era um ins-
trumento de tortura muito usado antigamente para castigar os alu-
nos. Confeccionada em madeira inteiriça, pesada e resistente de 2,5
cm de espessura, compunha-se de uma parte circular, com apro-
ximadamente 5cm de raio, ligada a um cabo de 30 cm de compri-
mento. Consistia a punição em segurar-se o instrumento pelo cabo
e bater a parte arredondada sobre a palma da mão do castigado.
Cada pancada recebia o nome de bolo, sendo o costume medir-se a
intensidade do castigo não em termos de sistema decimal, mas sim
em termos de dúzia: uma dúzia, meia dúzia, dúzia e meia de bo-
los. Algumas palmatórias possuíam cinco orifícios abertos em cruz
como estratégia para aumentar o sofrimento do seviciado, razão
pela qual, em alguns lugares, receberam a denominação de menina-
dos-cinco-olhos.
A palmatória que conheci na vila e de cujo realismo dolorido
tomei conhecimento pessoalmente possuía apenas um pequeno furo
no centro, aberto pela ponta de um prego de tamanho médio. É que,
de acordo com a crença mágica existente entre os alunos, se se abris-
se um minúsculo orifício no centro da santa-luzia, nome local para
Memórias Catrumanas 261 Sidney Valadares Pimentel

a palmatória, apenas o suficiente para caber disfarçadamente um


piolho, ela fatalmente racharia ao meio quando fosse usada contra
o responsável pela introdução do ectoparasito. Devo esclarecer que
o pretendido acidente nunca ocorreu, apesar da superabundância de
piolhos em nossas gaforinhas.
Coube a minha mãe botar um fim ao uso desse instrumento de
seviciamento didático na educação pública na vila. Não que ela tives-
se especial pendor pelas novas teorias de aprendizagem à la Piaget,
ou fosse uma humanista tout court. Afinal de contas, em nossa casa,
os castigos diários eram até mais constantes e mais doloridos do que
o que era produzido pela palmatória. Sua discordância era menos
com o instrumento do que com quem a usava.
Foi assim que depois de uma professora por quem ela não mor-
ria de amores haver usado uma vez a palmatória em minhas mãos,
ela mandou que eu a apanhasse em sua presença e a jogasse dentro
da privada. Como se não bastasse, mandou dizer à minha mestra que
ela nunca mais triscasse a mão em mim. E foi mais longe: disse as-
sim mesmo, com todos os efes e erres, que, se ela queria bater, fosse
parir primeiro. Eu não sabia o que era pior. Se apanhar de minha
professora, ou apanhar de minha mãe. Por cúmulo do absurdo, in-
compreensivelmente acabei ficando com a que me batia mais, mas
cuja violência era social e culturalmente sancionada pelos costumes
da população vilã.
Leitura e leitores

A não ser em nossa casa e na de mais uma ou duas professo-


ras, até quase o final da década não existia na vila nenhuma estan-
te provida com mais de dez livros, para não falar de uma biblioteca
minimamente diversificada. Ou melhor, havia. Havia numa sala da
residência do escrivão Pedro Pereira da Silva, mas estes guardavam
os assentamentos e segredos do cartório e somente os vivaldinos de
sempre se ocupavam de sua leitura minuciosa e chata, procurando
encontrar brechas em suas entrelinhas que permitissem aplicar os
golpes de sempre nos desavisados de sempre. Mesmo depois da cria-
ção da Escola Isolada Cândido José Lopes, a doação dos livros era ex-
tremamente econômica, não permitindo às vezes nem a distribuição
de um volume por aluno.
O acesso dos vilões à cultura formal, em especial à cultura
escrita, era extremamente escasso. E já não digo no que a própria
população deixou escrito. Ficou tão pouco documento daquele mo-
mento, que é quase como se vivêssemos numa sociedade ágrafa. Ain-
da que nesse aspecto eu corra o risco de estar sendo injusto com
outras mestras — a quem, antecipadamente, peço vênia, creditando
a imprecisão e a injustiça aos lapsos de memória —, o único lugar
onde pude testemunhar a existência de uma pequena biblioteca foi
a casa de D. Zeta, minha mestra do terceiro ano. Ali, numa tábua de
uma braça de comprimento, ao lado de muitas revistas de palavras
cruzadas completadas, havia alguns livros de História, Matemática,
Memórias Catrumanas 263 Sidney Valadares Pimentel

Língua Portuguesa e Ciências Naturais. Por isso, mesmo correndo o


risco de exacerbar minha imodéstia, sou obrigado a apresentar quase
só o testemunho de como tratávamos a questão do acesso à cultura
em nossa domus.
A escola era uma importante via de acesso ao conhecimento,
embora extremamente frágil no que tange a outros saberes, como,
por exemplo, a leitura de narrativas de qualidade literária ou não. Por
sorte, muito cedo, meus irmãos Edson e Zezito foram enviados para
estudar em Formosa, onde, além de encontrar um ensino de qualida-
de, eram mais incentivados a ler. Assim, quando voltavam de férias
no meio ou no fim do ano, traziam sempre obras com que se ocupar
nos dias de recesso.
Foi num desses intervalos que tive a oportunidade de travar
conhecimento com o primeiro romance que li em toda a minha vida,
o Iracema, de José de Alencar. Não tenho como descrever a sensação
de tristeza e abatimento que senti com o desfecho da obra de Alen-
car. Além deste, outros romances trazidos pelos manos passaram por
minhas mãos, mas nenhum com a mesma capacidade de arrancar
tantas lágrimas de meus olhos de catrumano noroestão. Depois dos
romances, vieram as narrativas de aventuras gravadas nas páginas do
seriado O Coyote. Publicado em mais de cem volumes, o seriado es-
crito pelo espanhol José Mallorquí tinha a capacidade de atrair nossa
atenção ao longo de muitas tardes e noites. E foi através dos beijos,
murros e balaços do bravo Don César de Echagüe y Echagüe que fui
tomando gosto pela leitura e pelas narrativas de ficção. Juntamente
com O Coyote, o kit de super-heróis que recebíamos através desses
dois irmãos, preocupados com a formação do caráter dos menores,
era praticamente infindável: Tom Mix, Tarzan, Fantasma, Zorro, Roy
Rogers, Daniel Boone, Davy Crocket, Capitão Marvel, Jerônimo, Mandrake,
Luluzinha, Jim das Selvas, Flash Gordon, Pato Donald e muitos outros.
Outra fonte de informação que tínhamos para leitura e con-
sulta eram as revistas e o anuário que minha mãe assinava, a Vida
Moderna, O Cruzeiro e o Almanaque do Correio da Manhã. A revista Vida
Moderna era publicada em um papel tão bom e tão pesado que nos
dias de hoje seria facilmente confundida com um encarte publicitário
de moda. Veiculava informações úteis à mulher tida como moderna
de meados do século XX. Muitos vestidos, saias e blusas foram cos-
Memórias Catrumanas 264 Sidney Valadares Pimentel

turados tomando como inspiração as peças que apareciam em suas


páginas. Mas a revista que minha mãe preferia e de cuja assinatura
não abria mão em hipótese alguma era O Cruzeiro, publicada pelos
Diários Associados do empresário Assis Chateaubriand. Era bastante
informada a respeito de moda, carnaval, artistas, esporte, política,
crimes urbanos, picuinhas destes com aqueles, de David Nasser com
Tenório Cavalcanti ou com Lacerda etc. Obrigava-nos a seguir os ca-
sos de crime e mistério. A rir do Amigo da Onça. A apreciar Rachel
de Queiroz. Enquanto O Cruzeiro tratava do dia-a-dia, o Almanaque do
Correio da Manhã funcionava como uma retrospectiva anual. Lembro
que em nossa estante havia o Almanaque do período de 1941 a 1946,
o ano em que nasci.
Homem de negócios e adepto do esoterismo, eram outras as
leituras que preocupavam meu pai. Assinante do jornal O Estado de
Minas, a política, os negócios e os incentivos do estado às regiões mais
pobres eram os temas sobre que concentrava suas leituras. Além do
jornal, lia e comercializava em sua loja o Almanaque d’O Pensamen-
to, que, entre outras, divulgava informações úteis sobre fases da lua,
melhores épocas para plantio, tratos culturais e colheita.
Mas as leituras a que meu pai se dedicava com maior afinco
eram as constantes dos livros que lhe chegavam pelo correio veicu-
lando os ensinamentos do Círculo Esotérico da Comunhão do Pen-
samento. Pois é, quem diria que por volta de meados do século XX,
na vila de Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia, alguém que
sequer concluíra o Curso Primário gastaria seu tempo lendo e me-
ditando sobre a sabedoria oriental de origem ou influência indiana?
Pois não só é fato, como foi motivo de vários arranca-rabos com os
intolerantes administradores da fé cristã que vinham à vila para apas-
centar suas ovelhas. Interessante a esse respeito é o depoimento que
li de um outro antropólogo, José Jorge de Carvalho, em que conta
que nos anos 30 seu bisavô também participou de um Círculo Eso-
térico “numa área rural perdida no interior de Minas Gerais”, o que
leva a crer que não era um episódio tão raro assim. Da mesma for-
ma, não era também muito pequena a biblioteca de obras esotéricas
de conteúdo filosófico ou prático publicadas pelo Círculo Esotérico
da Comunhão do Pensamento que o imigrante pernambuco conse-
guiu formar e que ficou como propriedade da domus depois de sua
Memórias Catrumanas 265 Sidney Valadares Pimentel

morte em 1961, destacando-se: Lições práticas de ocultismo utilitário,


de Francisco Valdomiro Lorenz; Como fazer fortuna em pouco tempo,
por homens que se enriqueceram nos negócios e eminentes pensa-
Memórias Catrumanas 266 Sidney Valadares Pimentel

dores, tanto no mundo literário como no político; Alegria e triumpho,


de Lourenço Prado; Primeira serie de instrucções, do Círculo Esotéri-
co da Comunhão do Pensamento (IOD-HÉ-VAU-HÉ); Psychologia do
commerciante, de William Walker Atkinson; O poder regenerador, de W.
W. Atkinson e Edward E. Beals; As doutrinas esotéricas das filosofias e
religiões da Índia e Raja ioga, de Ramacháraca; Pensamento Kryka Yoga,
de Swami Vivekananda.
Além das revistas e livros, tínhamos acesso à nascente mídia por
intermédio do rádio. No início, quando ainda vivíamos na primeira
casa construída por meu pai na vila, já tínhamos o primeiro receptor
radiofônico. Depois, principalmente a partir da instalação do conjun-
to gerador, tio Alcides e o comerciante Sinésio Santana adquiriram
também os seus aparelhos. Então, pouco a pouco foram surgindo
outros. Em nossa casa, pessoas diferentes mantinham interesses di-
versos pela programação radiofônica. Meu pai ouvia o Repórter Esso
diariamente ao meio-dia e programas de música nordestina à noite.
Minha mãe ouvia radionovelas em horários variados, e eu, meu ir-
mão Randolfo e nosso primo Walter seguíamos o seriado de ficção
científica intitulado “Radar, o homem do espaço”, à tardinha.
Do esforço que eu próprio fiz naquele momento, com o ob-
jetivo de ter uma relação mais próxima com a leitura, gostaria de
acrescentar duas experiências que me foram especialmente úteis e
prazerosas. A primeira, que eu considero a mais enriquecedora, foi a
aprendizagem e a abertura de perspectiva conseguida com a minha
coleção das estampas Eucalol. Naquela época, creio que até o ano de
1957 ou 1958, eu me especializei em surrupiar as estampas dos vo-
lumes de sabonetes que vinham para vender na loja, tomando todo
cuidado para repor tudo colando como estava, inclusive uma cinta de
segurança que envolvia o produto. Com essa atitude muito pouco re-
comendável fui acrescentando, estampa atrás de estampa, todo aque-
le manancial de informações visuais que ativavam o espírito e faziam
pensar. Quando fui para um internato estudar em 1962 ainda tinha a
coleção numa caixa de lenços, a qual, desde então, evaporou-se.
A segunda experiência tinha a ver com a primeira naquilo que
esta tinha de menos exemplar. Por volta de meados da década, não sei
precisamente se a rádio Tupy, a Nacional ou a Mairink Veiga colocou
no ar um programa semanal chamado Leite de Rosas e a Poesia, em
Memórias Catrumanas 267 Sidney Valadares Pimentel

que, tendo como fundo musical as melodias orquestradas de apaixo-


nantes e sangrentos tangos, o poeta J. G. de Araújo Jorge declamava
os poemas dos vários livros que já havia publicado. Para incentivar
o aumento do consumo do perfume, foi lançada então uma campa-
nha promocional segundo a qual seria presenteado com o livro de
poesias intitulado Amo!, do declamador, o ouvinte que enviasse uma
carta para o programa incluindo dentro do envelope três bulas do
produto. Sabendo-se que o Leite de Rosas era um dos produtos de
beleza mais vendidos na Casa Pimentel, nem preciso repetir para o
leitor o que fiz para receber alguns dias depois em nossa casa, com
ares de intelectual versado em rimas e composições, meu exemplar
do tal livro.
Da brincadeira e dos brinquedos

O longo aprendizado social começava bem cedo, logo depois


de a criança aprender a falar e adquirir a autonomia para transitar
da casa para o terreiro e deste para a rua. Muitas vezes, o que se
aprendia em casa era bem diverso do que se aprendia na rua. E o
terreiro, em geral, era o lugar onde se colocava em prática um ou
outro, ou a combinação de ambos. Assim, havia o brincar de cada
lugar, bem como o brinquedo eclético, o companheiro de sempre,
que nos acompanhava onde estivéssemos. Da mesma forma, havia
brincadeiras de meninos e brincadeiras de meninas, além das que os
gêneros podiam compartilhar.
Antes de tentar um pequeno inventário das brincadeiras e jogos
que ora aprendíamos, ora ajudávamos a inventar, vou traçar algumas
idéias gerais e também resumidas sobre o brincar na vila. Quem não
viveu aquele momento, sob as condições a que a minha geração foi
submetida, não tem a mínima idéia do que significa o brinquedo sin-
gular, individualizado e não sujeito às regras industriais da massifica-
ção. Creio não ser preciso dizer que cada brinquedo era constituído
como a construção de um objeto, enquanto cada brincadeira surgia
como uma invenção relacional. Nos dois casos, havia sempre a neces-
sidade da presença do outro. A coisa como um outro ideacional ou os
semelhantes como um outro pessoal.
Cada um de nós era um pequeno bricoleur, que, com pedaços
de madeira, osso, barro, borracha, metal, polvilho, linha de carre-
Memórias Catrumanas 269 Sidney Valadares Pimentel

tel, papel, tecido, cola, água, fogo, construía seus brinquedos. Todos
envolvendo um alto grau de inventividade e pensados como um si-
mulacro de algo mimeticamente sonhado e experimentado em nível
minimalista.
O brinquedo era uma coisa, um objeto, algo que um de nós
fazia com uma boa dose de invenção a partir do aproveitamento de
restos de outros brinquedos ou objetos usados no dia-a-dia. Ou mes-
mo de material inteiramente novo, conseguido só Deus sabe como e
adquirido só nós sabíamos com que fundos. Mesmo não sendo uma
coisa dotada de alto grau de ineditismo, o brinquedo constituía-se
em uma invenção nova, no sentido de que cada um de nós fazia o
seu, tornando-o um objeto diferente dos demais, seja no tamanho,
na cor, seja nos materiais de que era feito. Desse ponto de vista, ele
era sempre uma reinvenção que carregava em seu íntimo uma quota
do que éramos, ou pensávamos, ou sentíamos.
Mais do que o brinquedo, a brincadeira fazia parte da tradi-
ção cultural e vinha sendo repetida, geração após geração, mantendo
uma estrutura básica, ainda que aqui e ali se diferenciasse em algum
aspecto superficial. Tanto um quanto a outra possuíam a sustentá-
los um saber cultural. Só que o primeiro permitia uma contribuição
maior da individualidade do que a segunda, enquanto a contribuição
cultural nesta era mais relacional e visível do que no brinquedo.
Pensemos, como exemplos, numa peteca e numa roda de ci-
randa. Dependendo do que tínhamos em mãos, ou em mente, ou
ainda em ambas, podíamos paradigmaticamente reinventar uma pe-
teca usando uma infinidade grande de material para o enchimento,
ou de penas de aves diversas para a determinação da aerodinâmica.
Em contrapartida, o máximo que podíamos intervir na composição
da roda de ciranda seria na mudança de um verso ou outro, ou ainda
de toda a cantiga, e mesmo assim qualquer mudança deveria levar
em consideração o aceite geral para não haver desencontros.
Do ponto de vista dos participantes, tanto os brinquedos como
as brincadeiras podiam ser usados isoladamente ou em grupos mis-
tos, por meninos e/ou meninas. Quanto à espacialidade, isto é, os lu-
gares onde se brincava, havia a casa, o terreiro e a rua. O cruzamen-
to das duas relações determinava onde e por quem o brinquedo e a
brincadeira, preferencial ou obrigatoriamente, eram usados, saben-
Memórias Catrumanas 270 Sidney Valadares Pimentel

do-se que a coluna da espacialidade complica-se pelo fato de haver


múltiplas combinações: casa, terreiro, rua, casa+terreiro, casa+rua,
terreiro+rua.
Comecemos pela casa. De acordo com os critérios que adotei
para apresentar os brinquedos e as brincadeiras mais encontradiços
entre a população mirim da vila, por incrível que possa parecer, não
me vem à memória nenhum exclusivamente feminino que se reali-
zasse apenas no interior da residência. Já entre os meninos, havia um
brinquedo e uma brincadeira que tomavam a casa como o lugar pre-
ferencial para sua realização, que eram, respectivamente, o Futebol de
Botão e a Revista no Batalhão.
O Futebol de Botão era desconhecido na vila até pouco depois
de meados da década, quando alguns rapazes que haviam sido leva-
dos pelo deputado Manoel José de Almeida para estudar nas escolas
Caio Martins da cidade de Esmeraldas (MG) vieram para passar as
férias em casa. Entre eles, recordo-me de que os maiores entusias-
tas dessa modalidade esportiva eram os jovens Lourenço Ferreira do
Prado e Edvarde Fonseca Melo.
Com Edvarde e Lourenço aprendemos as poucas regras neces-
sárias à prática do jogo e logo tínhamos vários times competindo, o
que permitiu a criação de uma Liga Desportiva do Futebol de Botão
da vila de Buritis. A liga não possuía estatutos, e Edvarde, seu emérito
presidente, decidia pessoalmente todas as pendências. Lembro que a
mais célebre de todas foi a pendenga em torno da seguinte questão:
podem participar do campeonato dois times com o mesmo nome?
Como o nosso presidente respondeu afirmativamente a essa questão
de fundo, tínhamos às vezes partidas do Vasco contra o Vasco, ou do
Botafogo contra outro Botafogo. Sei que, entre os vários Flamengos
existentes, havia o meu próprio e o do também rubro-negro José Ju-
randir Ramos, o Zé do Ovo.
Naquela época ainda não haviam surgido os times de Fute-
bol de Botão fabricados com escudo sobre cada jogador, paleta
de impulsão e traves. Assim, cada um de nós era o artífice de seu
time, que muitas vezes chamávamos de esquadrão, assim como
das traves e bola. O processo usado na fabricação dos jogadores
não era complicado. O difícil era encontrar plástico e fôrma apro-
priados. Excluíamos dois tipos de plásticos: o que era excessiva-
Memórias Catrumanas 271 Sidney Valadares Pimentel

mente maleável e o excessivamente rijo, que não derretia nem a


poder de reza.
Mas o fator mais limitante para a produção de bons jogadores
era a inexistência de fôrmas redondas com as dimensões de pouco
mais de um centímetro de diâmetro por, no máximo, cinco milíme-
tros de profundidade, onde pudéssemos moldar o plástico derreti-
do. Quando um felizardo encontrava uma fôrma assim, ou a vendia
a peso de ouro, ou conservava-a em seu poder fabricando jogadores
que eram revendidos, sabendo-se que a moeda de troca para essas
negociatas eram balinhas, chicletes, um estilingue matador, uma
boa finca etc.
O processo em si não demandava complicados segredos de
alquimia. Aquecíamos o plástico (geralmente pedaços de duas ou
mais colorações para que o jogador saísse meio pampa), colocando-o
em seguida, em estado líquido, dentro da fôrma previamente untada
com um pouco de óleo de cozinha para facilitar a retirada depois de
pronto, como se faz na culinária com os bolos. Era preciso deixar que
o plástico derretido transbordasse um pouco. Feito isso, apertava-se
a massa plástica com uma tábua umedecida para evitar a aderência.
A pressão fazia com que, ao esfriar, não ficassem pequenas fendas no
botão, isto é, no jogador. Então, tomando de uma pinça improvisada
feita de arame grosso, jogávamos o botão dentro de uma vasilha de
água fria. Quando cessava o ssssshhht na vasilha, era sinal de que
já podíamos retirá-lo. Alguns se soltavam da fôrma imediatamente,
outros precisavam de ser jogados sobre uma superfície dura para se
soltarem. A última etapa consistia em esfregar a parte de baixo do
botão numa superfície áspera, como a do cimento não alisado, para
que perdesse as irregularidades.
Para construir as traves, usávamos as compridas ripinhas de pi-
nho que vinham em armações retangulares cobertas de papelão par-
do, em volta das quais eram enroladas as peças de pano que chega-
vam para ser vendidas na loja. As ripas eram cortadas em tamanhos
padronizados de modo a caber o goleiro, que em geral era uma caixa
de fósforo com algo pesado em seu interior, deixando espaços entre
ela e as duas peças laterais que coubessem, com folga, a bola chuta-
da em gol. Como paleta, usávamos um pente Flamengo de tamanho
menor, por ser o mais flexível que se vendia naquele momento.
Memórias Catrumanas 272 Sidney Valadares Pimentel

Cada concorrente possuía a sua bola, feita também de plástico


e moldada nas pontas dos dedos pelo mesmo processo usado para a
fabricação dos botões. As minhas bolas eram sempre as mais perfei-
tas, não em razão de minha habilidade na fabricação, mas porque eu
surrupiava botões femininos redondos na gaveta de armarinhos de
nossa loja e dava-lhes o acabamento necessário, ora obstruindo os
orifícios, ora retirando a pequena saliência por onde passava a linha
para fixá-lo à roupa.
Para servir de campo, usávamos sempre uma mesa da casa que
guardasse as proporcionalidades relativas de um verdadeiro campo
de futebol. A duração do jogo não era medida em minutos, mas em
número de gols marcados. O time que fizesse tantos gols, dependen-
do da combinação anterior, ou das regras para o campeonato, ga-
nhava a partida. Para cada meio tempo, um dos contendores tinha
o direito de escolher com qual bola gostaria de jogar, se com a sua
própria ou com a do adversário.
Se não me falha a memória, Revista no Batalhão é uma brinca-
deira que foi trazida de fora por influência dos adventistas, a quem
a gente da vila chamava, bem como aos batistas e presbiterianos, de
“protestantes”. Como brincadeira de salão, era voltada mais para
ajudar na socialização dos adolescentes. Consistia na formação de
um círculo de catorze jovens do sexo masculino sentados numa sala
ou salão. Cada participante recebia um título militar dentre os se-
guintes: Soldado, Cabo, Sargento, Tenente, Capitão, Major, Tenente-
Coronel, Coronel, General, General-de-Campo, General-de-Brigada,
Marechal, Duque e Comandante.
Nomeados os participantes, cada um se sentava onde quises-
se com o objetivo de quebrar a ordem seqüencial e hierárquica de
nomeação. O jogo começava sempre pelo Comandante, que dizia:
“Passando em revista o meu batalhão, dei por falta do...”, completan-
do com qualquer uma das funções. A pessoa cuja função foi citada,
então, era obrigada a responder, nomeando o reclamante: “Presen-
te, meu Comandante”, ou meu Capitão, ou meu Cabo, e assim por
diante. Caso a pessoa citada não percebesse que era com ele, ou não
o tratasse pela função correta, era obrigado a pagar uma prenda que
era, em geral, a imitação de alguém ou de algum animal.
A maioria das diversões infantis realizadas em casa, no entan-
Memórias Catrumanas 273 Sidney Valadares Pimentel

to, eram cumpridas conjuntamente por meninos e meninas. Uma


destas chamava-se A Direita Está Vaga e também fora trazida para a
vila pelos “protestantes”. Consistia igualmente na formação de um
círculo de jovens sentados numa sala ou salão, numerados a partir
do número um, uma de cujas cadeiras encontra-se vazia. No começo
da brincadeira, a pessoa que se encontra imediatamente à esquerda
da cadeira vazia pronuncia a frase que é mote para a continuação do
jogo: “Minha direita está vaga para o número tal”. A pessoa que teve
seu número anunciado levanta-se e vai sentar-se na cadeira vazia,
deixando a sua desocupada. A mesma frase é agora pronunciada por
quem se encontra à esquerda do assento que ficou vago. E assim a
brincadeira prossegue por largo tempo, quando então se pode perce-
ber os participantes mais e menos mencionados. Nesse jogo, começa-
ram muitos encontros afetuosos que redundaram em ligações mais
ou menos duradouras.
Além dessa brincadeira, com exceção das figuras de cordão ou
de papel dobrável, os origamis com os quais se delineiam formas geo-
métricas, a maioria das experiências que fazíamos em casa constituía
aquilo que poderíamos chamar de jogos de linguagem ou que se aproxi-
mavam das narrativas. Entre os primeiros, incluíam-se o Trava-Língua,
os Jogos de Adivinhação e as Charadas, todos extremamente recorrentes
em todo o território nacional. Com grande freqüência, as histórias que
se contavam eram adaptações dos contos dos irmãos Grimm ou das
fábulas de Esopo que chegaram até nós pelos colonizadores.
Não eram muitos os brinquedos e brincadeiras típicos, pratica-
dos apenas nos terreiros. Entre eles, os mais importantes e dignos de
nota eram o do Gado de Osso para os meninos, o Cozinhadinho para as
meninas e o Balanço para ambos. No primeiro, os meninos exercita-
vam sua mente na tentativa de formular o simulacro de uma fazenda
de criação pastoril como tinham visto de algum parente ou amigo da
família, ou como gostariam de ter a sua própria num futuro próximo.
Nessas miniaturas de fazendas, muitas das quais mantinham o
plano de uma propriedade verdadeira, as repartições e a lógica cons-
trutiva eram bem realistas. Os currais eram construídos com mani-
va de mandioca cortada em tamanhos padronizados para formar os
lances das cercas. As porteiras, também feitas com maniva, serviam
para conter o impulso bovino de levar nos peitos as cercas de con-
Memórias Catrumanas 274 Sidney Valadares Pimentel

tenção e tudo mais que o gado encontrasse pela frente. Ao lado da


curralama fornida, erguia-se a casa de fazenda, quase sempre feita de
“braços” da palmeira buriti, com seus luxos e repartições. Ao lado da
casa, recortado também no buriti, ficava a miniatura de um carro de
bois com sua cheda, seu recavém, fueiros, cabeçalho, eixo, cambotas,
meiões, cantadeiras, cangas, tiradeiras, canzis e tudo o mais que fazia
sentido naquele primordial meio de transporte.
Mais afastadas da sede ficavam as cercas das largas e pastinhos
que completavam a contenção do gado. Lembro que, aproveitando a
terra retirada para a abertura de uma cisterna, ou privada, construí a
casa e os currais na parte de cima do amontoado de cascalho, terra e
toá, deixando que os grandes pastos se projetassem pelas encostas do
pequeno morrote, efeito que se assemelhava muito às fazendas das
regiões montanhosas do grande estado mineiro. E além das constru-
ções ainda tinha o gado, que era o mais importante, a maior riqueza,
representado por pequenos ossos de bovinos e suínos e que chega-
vam a encher as propriedades. Nenhuma roça ou plantação, apenas
gado e mais gado.
Cada um de nós, fazendeiros, era também o único marchant de
suas próprias boiadas. Naquela época, as votações que encerravam
os períodos eleitorais eram realizadas com cédulas que continham
o nome e o número de registro de cada candidato e que eram depo-
sitadas nas urnas dentro de pequenos envelopes sem qualquer iden-
tificação. Concluídas as votações, as cédulas não utilizadas eram
usadas por nós, fazendeiros-mirins, como dinheiro para a comercia-
lização do gado. Era um sistema monetário criado por nós que pres-
cindia da identificação do valor de compra como um dado quantita-
tivo, mantendo a discriminação de valores relacionais apenas vistos
como medidas qualitativas. Era assim que as cédulas adquiriam sua
magnitude de acordo com os cargos para os quais seus signatários
concorriam às eleições, independentemente se saíram ou não vito-
riosos nas urnas, sendo valorados na seguinte ordem decrescente:
Presidente, Vice-Presidente, Senador, Governador, Vice-Governa-
dor, Deputado Federal, Deputado Estadual, Prefeito, Vice-Prefei-
to e Vereador. Vezes sem conta, nosso sistema monetário especial
começava a funcionar bem antes do período de votação, quando a
vila era sobrevoada por teco-tecos que despejavam sobre as casas
Memórias Catrumanas 275 Sidney Valadares Pimentel

centenas de cédulas exatamente iguais às que os tribunais eleitorais


usariam meses ou dias depois.
Se o brinquedo do Gado de Osso conservava alguns aspectos
que remetiam para a construção da masculinidade, a brincadeira do
Cozinhadinho ajudava na construção da feminilidade. Consistia este
último na reprodução de uma pequena cozinha onde as meninas pro-
curavam repetir alguns dos procedimentos usados por suas mães na
cozinha da casa. Para tanto, escolhia-se um canto ao abrigo do vento,
onde era preparada uma trempe ou um fogão improvisado que se
ajustasse às dimensões das panelas, em geral pequenas. Não havia
convenções culinárias ou gastronômicas a atender. Todos os ingre-
dientes podiam ser combinados e qualquer tempero se ajustava ao
gosto da novidade e da invenção.
O balanço, ou balangue, atendia à possibilidade da combina-
ção entre meninos e meninas numa mesma diversão. Para tanto, era
preciso encontrar uma trave ou um galho forte de árvore resistente
como a goiabeira, que se inclinasse obliquamente. Nesse galho, amar-
ravam-se as extremidades de duas cordas também resistentes, que
desciam paralelas entre si a uma distância aproximada de 80 centíme-
tros e que, acerca de meio metro do solo, eram atadas firmemente às
duas pontas de uma tábua, onde a pessoa se sentava para balançar,
sendo empurrado para fazer o movimento de um pêndulo que exage-
rasse o seu traçado tanto para um quanto para o outro lado.
Não havia brinquedo ou brincadeira apenas de rua e somente
feminino. Entre os masculinos, lembro-me especialmente do “pau-
de-sebo”, a “peteca” e o “papagaio”. Não creio ter presenciado o es-
petáculo do pau-de-sebo mais de duas ou três vezes. A razão disso
talvez esteja no fato de que, para erguer o mastro ensebado, era pre-
ciso contar com alguém de mais força.
O primeiro que vi foi erguido por um rapagão que era chamado
Zezé de Bem. Foi durante um período de festas, já que a praça tinha
muita gente. Não era a Festa de Setembro porque não me lembro de
haver barraquinhas ali por perto. Recordo que Zezé e um outro ra-
paz que o ajudava trouxeram o pau do quintal de sua casa, que ficava
na esquina da praça com a atual Avenida Bandeirantes, confrontante
com a casa de D. Grossa. Entre a casa de sua mãe, a Bem, e o velho
cruzeiro existente a uns cinquenta metros da igreja, os dois unta-
Memórias Catrumanas 276 Sidney Valadares Pimentel

ram bastante uma das extremidades do pau e, depois de cavarem um


buraco suficientemente largo e profundo, o plantaram firmemente
ali, socando bastante para adquirir firmeza. Feito isto, convidaram os
presentes a subir e pegar uma nota que, segundo diziam, estava colo-
cada na ponta e só não era vista devido à escuridão do lugar. Lembro
que naquele dia, ou melhor, naquela noite, ninguém conseguiu tirar
a prova da existência ou não do tal prêmio.
Naquele tempo, não vinham petecas prontas para vender
como podem ser encontradas hoje, com acabamento industrial e pe-
nas coloridas. Lembro-me de que as mais duradouras eram feitas ali
mesmo na vila, de couro de bode curtido, uma espécie de vaqueta
finíssima, pintado de amarelo. O enchimento era feito pelo próprio
comprador. Mas o tipo mais comum e que a maioria dos meninos
possuía era uma peteca feita de palha de milho e penas de galinha ou
de cocá. As melhores que fazíamos recebiam penas do rabo do galo
índio ou penas de ema, surrupiadas à socapa dos espanadores que
eram vendidos na loja, ou, quando estes faltavam, do que havia em
nossa casa para retirar a poeira dos móveis.
A tecnologia para confecção da peteca de palha de milho era
muito simples. Aparavam-se as duas extremidades das palhas inter-
nas e mais macias de uma espiga de bom tamanho, separando-as em
folhas de aproximadamente dois dedos de largura. Feito isto, duas
palhas eram superpostas perpendicularmente formando uma cruz.
No centro, colocava-se algo pesado a servir de enchimento (quase
sempre um pedaço de caco de telha retangular também envolto em
palha) e sobre o qual se dobravam as quatro pontas, que, em segui-
da, eram firmemente amarradas com delgadas mas resistentes fi bras
da palha rasgada. Para concluir, aparavam-se regularmente as pontas
com uma tesoura ou faca bem afiada, antes de enfiar cinco ou seis
penas em bom estado, e estava pronto o brinquedo a custo zero.
Até pouco depois de 1955, nenhum de nós jamais havia se refe-
rido ao divertido brinquedo esvoaçante construído em papel de seda
e finas talas de taboca por outro nome. Foi somente quando a família
de seo Odemir e D. Anita veio morar na vila que assistimos à chegada
e imposição de novo significante, o de arraia. Todos o conhecíamos
como papagaio. Também ele não era mais do que um brinquedo em
que testávamos nossa sensibilidade estética e conhecimento mais ou
Memórias Catrumanas 277 Sidney Valadares Pimentel

menos aprofundado de algumas leis da aerodinâmica. Em nossa ino-


cência pueril, nunca o usei ou o vi sendo usado como instrumento de
luta entre os meninos da vila. Nada de cerol ou aparelhamento bélico
de tal natureza destinado a desativar os papagaios dos outros. Para
todos nós, ele era de fato um brinquedo e a competição esgotava-se
no ato de empiná-lo o mais alto que pudéssemos e fazê-lo dar pirue-
tas e folhas-secas melhor do que nossos concorrentes. Nessa época,
como testemunhas de nossa imperícia, os fios da rede elétrica que a
firma Irmãos Pimentel Ltda. mandara instalar na vila e os esgarçados
galhos do jatobazeiro da praça viviam enfeitados das formas multi-
coloridas em que moldávamos nossos papagaios.
A fabricação de um papagaio demandava escolhas e o mí-
nimo saber aerodinâmico. Quando começávamos a construí-lo,
sem que o soubéssemos, estávamos manipulando coisas muito si-
milares ao que fazíamos ao usar a linguagem. Os lingüistas estão
carecas de saber que, para bem ou mal usarmos a linguagem, não
podemos escapar da seleção do que iremos combinar, seguida da
combinação do que, por este ou aquele motivo, decidimos selecio-
nar. São dois atos que, embora simultâneos, parecem ser proces-
sos distintos e seqüenciais.
O mesmo se dava quando decidíamos construir nosso papa-
gaio. Como ponto de partida, como afirmação de nossa própria indi-
vidualidade, ele deveria ser diferente dos demais que víamos tremu-
lando pelos ares. Os aspectos formais mais importantes que podíamos
manipular para diferenciá-los eram sua cor e seu aspecto, desde que
observados à distância, seja em duas ou em três dimensões.
A cor a ser selecionada dependia mais da disponibilidade de pa-
pel de seda na Casa Santana e na Casa Pimentel do que de nossa sen-
sibilidade estética e ânsia de individualização. Dentre as cores exis-
tentes em ambas as casas de comércio, selecionávamos então aquelas
que faziam mais sentido, de acordo com o projeto que tínhamos em
mente, seja para o corpo, seja para a rabeta.
Nunca tive competência para fazer o corpo de meus papagaios
em mais de uma cor. Sempre que tentava dividi-los em figuras geo-
métricas ajustadas em suas extremidades como se fossem pinturas, a
cola pesava interferindo na aerodinâmica do projeto. Algumas vezes
o papagaio não conseguia empinar, outras empinava, mas a partir de
Memórias Catrumanas 278 Sidney Valadares Pimentel

determinada altura se desgovernava, derreava pinoteando ora para


um lado, ora para o outro, e acabava preso em algum galho.
Já com a rabeta não existia a mesma limitação quanto à po-
licromia, visto que cada elo da corrente podia ter a coloração que
convencionássemos, sem que isso interferisse no equilíbrio de nos-
sa nave espacial. Assim, as dificuldades para a construção eram de
outra natureza, já que suas dimensões faziam parte do cálculo para
determinação do ponto ótimo de equilíbrio, não podendo o papagaio
ser nem excessivamente grande, nem demasiadamente pequeno. Se
pensarmos em sua forma bidimensional como sua planta baixa, é ali
que ele podia assumir uma forma mais diferenciada dos demais. A
forma poligonal era a mais comum, mas havia os mais quadradões
e caretas, construídos em retângulo. De certa feita experimentei o
formato oval, mas não obstante a aparência futurista, lembrando um
disco voador, a experiência mostrou-se frustrante. A terceira dimen-
são, isto é, a altura, limitava-se sempre à geometria do arco, apresen-
tando-se ora um pouco mais alto, ora mais baixo, de abaulamento
quase imperceptível, mas sempre obedecendo às teorias que, sabe
Deus como, aprendemos na prática e em consonância tanto com os
sucessos quanto com os fracassos de nossas experimentações.
Como todos sabem, existe uma integração muito mais intensa
entre o terreiro e a casa do que entre esta última e a rua. Talvez preci-
samente por isso, eu não consiga me lembrar de nenhum brinquedo
ou brincadeira praticado preferencial ou exclusivamente na casa e na
rua, enquanto vários podiam compartilhar tanto o terreiro e a rua
quanto o terreiro e a casa. Entre estes últimos, não me recordo de
um sequer praticado exclusivamente pelo grupo de crianças do sexo
masculino e apenas um que pode ser indicado para as meninas, o
brinquedo com bonecas.
Em praticamente toda a década de 1950 não se encontravam
à venda, nas casas comerciais da vila, bonecas que tivessem as di-
mensões e a perfeição plástica das que podem ser encontradas hoje.
Havia, em especial, dois tipos de bonecas: a boneca propriamente
dita e o bebezinho. As dimensões das bonecas variavam entre 15 e 25
centímetros. Nada de bonecas que sorriam, choravam, faziam xixi,
cantavam, rezavam e faziam tudo o mais para parecer gente. Eram
objetos duros que dependiam quase na totalidade da imaginação da
Memórias Catrumanas 279 Sidney Valadares Pimentel

menina. O mesmo acontecia com o bebezinho, que tinha aproxima-


damente seis centímetros.
Mas nem todas as meninas possuíam suas bonecas ou seus be-
bezinhos de loja. Algumas, mesmo filhas de famílias dotadas de boas
condições financeiras, não faziam o menor empenho em possuí-las.
Preferiam, ao contrário, suas “bruxas”, bonecas de pano desprovidas
da perfeição mimética existente nas demais, com enchimento de pai-
na ou algodão sem cardar, e com órgãos faciais como olhos, nariz e
boca bordados à mão. Cada “bruxa” possuía nome, roupas, riquezas
e pertences de acordo com o imaginário de sua dona, sendo muitas
vezes a encarnação minimalista dos sonhos desta.
Algumas vezes, os meninos se juntavam às meninas em diver-
sões que se estendiam da casa ao terreiro. Entre estas, devem ser men-
cionadas as brincadeiras de Passar Anelzinho e de Fazer a Gata Parir.
Tudo faz crer que a primeira era um divertimento inicialmente femini-
no que incorporou posteriormente o grupo masculino, enquanto, com
o segundo, ocorreu exatamente o inverso. Na brincadeira de passar
anelzinho, um grupo de meninos e/ou meninas fica sentado em fila ou
em círculo com as mãos postas como se em gesto ritual de contrição
e oração, enquanto alguém do grupo que tem um anel ou outra jóia
qualquer preso entre as palmas de suas mãos vai de participante em
participante passando-as entre os dedos de cada um e pronunciando a
seguinte frase: “Guarda este anelzinho bem guardadinho”. Concluída
esta fase, a um participante que ficou de lado, será perguntado e deverá
responder em que mãos o anel foi depositado. Não respondendo cor-
retamente, continuará como adivinho até acertar, enquanto o deposi-
tário e o recebedor trocarão de posições para a passagem seguinte.
Ao contrário dessa, a brincadeira de fazer a gata parir exige
força e preparo físico dos participantes. Para realizá-la corretamente,
um grupo de meninos deve sentar-se bem próximos uns dos outros
num banco comprido ou em qualquer lugar onde caibam todos os
participantes. A uma ordem, os que se encontram sentados nas duas
extremidades fazem pressão em direção ao centro, com o objetivo de
expulsar da fila os que fraquejarem, derrota que será anunciada pelos
vencedores aos gritos de “miau, miau”.
O terreiro tem ligações simbólicas com a casa tanto quanto
com a rua. Com a casa, em razão de ser pensada como contigüida-
Memórias Catrumanas 280 Sidney Valadares Pimentel

de, exercendo funções complementares no interior da domus. Com


a rua, devido à sua função intermediária e de trânsito entre uma e
outra. Na imensa maioria, senão na totalidade das residências, havia
sempre uma passagem da domus para a rua por intermédio de uma
porta, um portão, uma cancelinha, ou simplesmente uma abertura
sem nenhum instrumento de contenção. Em virtude desses simbo-
lismos, a relação casa — terreiro era sempre pensada como parte do
trânsito feminino, enquanto a relação terreiro — rua, como domínio
mais masculino.
As brincadeiras de Pular Corda, de Cadeirinha e de Cabra Cega
eram típicas do compartilhamento dos gêneros nos espaços exterio-
res. As duas primeiras eram de uma simplicidade franciscana e não
possuíam nem regras para a sua realização. Para pular corda não havia
necessidade de mais de duas pessoas para girar a corda e uma tercei-
ra para pular. A brincadeira de cadeirinha também era bem simples.
Neste caso, uma segurava no cotovelo da outra com o braço esticado
e em seu próprio cotovelo com o outro braço enquanto a outra fazia
o mesmo, de modo a formar uma espécie de liteira para uma terceira
pessoa ser carregada. A última brincadeira, por fim, exigia que um
menino ou uma menina, com os olhos vendados, conseguisse pegar
ou simplesmente tocar alguém dentre os demais que participavam da
diversão; para o prosseguimento do jogo, receberia a venda e seria a
próxima cabra cega.
Como um percurso principalmente masculino, era entre o ter-
reiro e a rua que os meninos praticavam a grande maioria dos brinque-
dos e brincadeiras. Entre estes, havia os com que exercitávamos nossa
malvadeza, notadamente contra os pássaros: o Estilingue, o Bodoque, a
Funda e a Espingardinha de Chapéu de Sol; os de competição individual,
como a Finca, a Biloca e o Pinhão; os de demonstração de destreza,
como o Pique e o Jogo de Bola; e finalmente os não-competitivos e que
serviam apenas como meios de transporte imaginários usados para
fazermos nossos passeios pela vila como o Cavalo de Pau e a Roda.
Qualquer menino, por volta dos sete anos, já conhecia as téc-
nicas corretas para a fabricação de um estilingue. Porém, dominar
o know-how é uma coisa, conseguir os ingredientes necessários para
fazer uma boa matadeira é que são elas. A vila sofria de uma crôni-
ca escassez de ligas, que eram o elemento mais importante. Mesmo
Memórias Catrumanas 281 Sidney Valadares Pimentel

ligas de câmara de ar de caminhão, que eram as menos apropriadas.


Para não falar das tiradas de câmaras de ar de bicicletas e até mes-
mo de motos.
Como eu mencionei anteriormente, por volta de meados da
década de 1950 havia na vila um caminhão, dois jipes e nenhuma mo-
tocicleta. Bicicletas havia no máximo umas cinco, e olhe lá. Correndo
as frinchas da memória, lembro-me de uma Phillips Leão importada,
comprada pelo pedreiro Raimundo ao caixeiro de loja Geni a troco
de um cavalo de propriedade de sua mulher Marieta. Essa bicicleta
era o objeto de desejo de quase toda a vila. Wilson de Candinha,
morador no Pé da Serra, também tinha uma (a primeira com freio
de pé que vim a conhecer) e o menino Breno Mário, filho de seo Rui
Aires da Silva, tinha outra. Talvez houvesse ainda mais uma ou duas.
É preciso lembrar que naquela época cada proprietário de bicicleta
possuía todas as ferramentas necessárias para reparar os defeitos me-
cânicos e colar os furos nas câmaras de ar de sua bicicleta colocando
manchões. E que só de tempos em tempos, quando as ditas cujas
estavam cheias de papos de tanto remendo, é que decidiam substituí-
las por outras mais novas. Mas, então, as câmaras já se encontravam
tão pitimbadas e remendadas que também não permitiam que se ti-
rassem nelas muitas ligas de estilingue. E como a demanda era alta
e baixa a oferta, era um produto caro. Mais em conta eram as ligas
tiradas de câmaras de ar do caminhão de nosso tio Alcides. Mas cá
pra nós, só se o sujeito fosse mesmo muito burro pra trocar um par
de ligas de bicicleta por um de caminhão.
Quando um menino tinha a sorte de conseguir um bom peda-
ço de câmara de ar, a primeira providência que tomava era levá-la à
casa de D. Grossa para que ela, com suas mãos de fada e sua afiada
tesoura, aparasse-a com toda a perfeição de que era capaz, retirando
todos os piques que contivesse. Isto tudo realizado na presença dos
olhos pidões de seus filhos Nonato e Irineu, que provavelmente tam-
bém andavam à procura de uma boa liga para substituir as de um ve-
lho estilingue, responsável por muitas maldades com rolinhas, juritis
e até os pobrezinhos e indefesos periquitos-de-vassoura.
Conseguido o par de ligas, a próxima tarefa era a de encontrar
uma boa forquilha e couro macio para compor o conjunto crimino-
so. Uma forquilha para ser boa devia ser bastante regular, ou seja,
Memórias Catrumanas 282 Sidney Valadares Pimentel

suas duas hastes deviam sair da mesma altura do “tronco” e deriva-


rem com o mesmo grau de abertura. O recrutamento de forquilhas
foi responsável pela mutilação de muitas goiabeiras; por um motivo
que não sei explicar, essa árvore dava as forquilhas mais regulares. O
couro, por seu turno, devia ser macio e resistente. As duas qualida-
des podiam ser encontradas precisamente na vaqueta conservada de
uma botina em desuso. Então, cortado o couro no formato exigido
e preparada a forquilha, o restante era fácil. Bastava amarrar as ligas
com um forte cordão ou com delgadas tiras do mesmo látex e está-
vamos a meio caminho andado para levar a viuvez e a orfandade a
muitas famílias de pássaros. Entre todos os bambas da vila no esti-
lingue, justiça seja feita a Anísio, o primogênito do escrivão Pedro
Pereira da Silva, o Antônio Dó da sociedade dos empenados, que,
em consonância com a cultura sertaneja, tinha o costume de marcar
com um pique na “coronha” de seu estilingue cada bicho de porte
que mandava para o beleléu.
O bodoque e a funda eram armamentos de igual potência,
mas de menor precisão na pontaria. O bodoque, de origem indígena,
compunha-se de um arco similar ao usado pelos nativos para o arre-
messo de flechas com a diferença de que, em vez de uma corda de
tensão, tinha duas paralelas ligadas entre si por um pequeno trança-
do de aproximadamente cinco centímetros, onde ficava a pedra a ser
arremessada. O trançado exercia, para o bodoque, a mesma função
que o couro para o estilingue. Dentre todos os meninos da vila, se
bem me lembro, quem mais eficientemente manipulava o bodoque
era um garoto que só vivia atacado por intensa crise de conjuntivite,
ou “dordói”, chamado Diosdite.
A funda era também um instrumento de menor precisão que,
em razão de suas características, usava-se mais para lançamento
de um bólido a média distância. Não seria a mesma arma utilizada
pelo pequeno Davi contra o gigante Golias? Era constituída de um
couro semelhante ao do estilingue, mas muito maior, de modo a
caber uma pedra grande, ligado nas extremidades a duas cordas
resistentes. Consiste seu funcionamento em colocar-se a pedra no
couro e, depois de girá-la no ar, segurando-se nas duas pontas, sol-
tar-se uma para permitir que a pedra se desloque do couro e siga na
direção desejada.
Memórias Catrumanas 283 Sidney Valadares Pimentel

Em todos os sentidos, a espingardinha de chapéu de sol era


uma verdadeira arma e, por esse motivo, só permitida aos maiores.
Funcionava como uma espoleteira e tinha quase o mesmo poder de
destruição. O seu nome provinha do fato de que o cano da espingar-
da era feito do cano de um guarda-sol ou, como se queira, de um
guarda-chuva. Tudo o mais era feito à imagem e semelhança de uma
verdadeira espingarda. A coronha era de madeira. O cão, de uma fi-
vela presa a uma liga, disparada por um gatilho de arame. Carregada
também pela boca, muitas vezes o cano não suportava a potência
da pólvora e da carga de chumbo fino e rachava na mão do atirador
fazendo sair, também em sentido real, o tiro pela culatra. Felizmente
nunca com graves conseqüências.
Em seguida, vinham os brinquedos de competição indivi-
dual, todos considerados jogos, como a finca, a biloca e o pinhão. Ao
contrário dos dois últimos, o primeiro era um brinquedo calêndrico,
praticado somente no período das águas quando a terra umedecia
facilitando a penetração da finca e permitindo a visualização dos ris-
cos. Consistia num ferro de aproximadamente 25 cm com a ponta
bem aguçada, que, ao ser jogado, devia fazer uma volta completa no
ar e cair onde o jogador pretendia, permanecendo em pé. Enquanto
o jogador não errasse, continuava lançando seu dardo, procurando
“fechar” o outro contendor e deixá-lo sem saída.
Biloca era o nome que dávamos localmente à bola de gude.
Como costuma ocorrer com o jogo de cartas, havia diversas modali-
dades de competição. A que mais utilizávamos e que é recorrente em
outros lugares se assemelhava ao jogo de golfe, devendo o jogador,
com o impulso do polegar, fazer a bola ir caindo nos pequenos bura-
cos previamente escavados no solo. O pinhão também era o mesmo
brinquedo jogado em outros lugares. A única particularidade digna
de nota era que os pinhões feitos na vila pelos irmãos Liliu e Lucas,
filhos do carpinteiro Zé Martins, eram tão rígidos que ninguém con-
seguia rachá-los dando-lhes um “toco”.
Os brinquedos não-competitivos e tidos a qualquer título e
com toda razão como “coisa sem graça” para os maiores eram o ca-
valo-de-pau e a roda. Consistia o primeiro em tomar-se um cabo de
vassoura ou um pedaço de pau que tivesse o seu formato, colocá-lo
entre as pernas e sair correndo e pinoteando como se fosse um gine-
Memórias Catrumanas 284 Sidney Valadares Pimentel

te. Para a prática do segundo, era preciso uma roda de arame ou de


ferro como a cinta de um barril com mais ou menos 40 cm de diâme-
tro e um cabo que também podia ser feito com um arame grosso e
rijo. Fazia-se um pequeno encaixe numa das extremidades do arame
e uma dobra na outra onde se ia segurar. O encaixe servia ao mesmo
tempo para direcionar a roda e impulsioná-la.
As brincadeiras de pique e do jogo de bola serviam para testar
a destreza dos participantes. Havia o pique no seco e na água, ainda
que as regras fossem as mesmas. Em ambos, a função da pessoa que
estava no pique era pegar um outro participante ou simplesmente
tocar-lhe de leve. O pique era um lugar (árvore, barranco, parede) de
onde partia o perseguidor e onde nenhum dos participantes perse-
guidos podiam ser tocados se estivessem em contato com ele.
Para nós, jogo de bola e futebol não significaram sempre a mes-
ma coisa, tendo surgido esse último como uma evolução a partir da
conjuminância de vários elementos. Até onde eu consigo me lembrar,
no início dos anos 50, o futebol não era do conhecimento geral, nem
era praticado na vila como uma modalidade esportiva. O primeiro
contato que nós, meninos, tivemos coletivamente com a bola foi por
volta de 1955, quando meu padrinho Baltazar, de volta de uma via-
gem a Anápolis, trouxe para mim de presente uma bola de borracha
que tinha quase o mesmo tamanho de uma bola de capotão.
Mais ou menos na mesma época, a cultura do futebol começou
a ser disseminada entre nós em razão da introdução das disputas de
futebol de botão e da vinda para a vila de um nordestino que tinha a
alcunha de Raimundo Cearense. Foi com esse entusiasta do futebol
que nós aprendemos as primeiras regras e organizamos os primeiros
rachas. Quando uma tarde eu apareci com minha bola na praça pela
primeira vez, o inesquecível Raimundo Cearense pegou-a nas mãos,
observou a rigidez de sua borracha e disse para que todos pudessem
ouvir: “É só uma bola de borracha, mas serve até nós arranjarmos
uma bola verdadeira. Agora vocês vão ver o que é o verdadeiro fu-
tebó”, pronunciando bem aberta a vogal “o” e fazendo a oclusão da
consoante final.
A partir desse dia, não demorou muito até que chegasse à vila
a primeira bola de capotão, uma Gaeta oficial trazida por um estran-
geiro, o uruguaio Luís Alberto Pifachá, que viera como motorista,
Memórias Catrumanas 285 Sidney Valadares Pimentel

mecânico, lenhador, ajudante de cozinha e pau-pra-toda-obra do


chegante Rui Aires da Silva. Ah, a vinda do uruguaio era a glória.
Agora, em vez de um expert, tínhamos dois. E não demorou muito
até que, com a ajuda de ambos, conseguíssemos ralear a malva, co-
locar improvisadas traves e demarcar os limites exteriores do campi-
nho, a linha de meio-campo, o círculo central, a grande e a pequena
área e a meia-lua. Quando, algum tempo depois de sua chegada, seu
patrão juntou a mudança e voltou para sua terra levando consigo
nosso benfeitor futebolístico, ele colocou aquela bola inaugural em
minhas mãos e disse: “Fiquem com ela para vocês”. Espero e torço
para que um dia algum governante menos descabeceado faça jus à
memória desses dois beneméritos esportivos colocando o nome de
um deles (ou até dos dois, por que não?) em algum centro desportivo
ou estádio local.
Chegamos, finalmente, a um brinquedo e uma brincadeira
praticados em casa, no terreiro e na rua: o Carrinho e a Metadinha.
Dava-se o nome de carrinhos a réplicas de automóvel ou caminhão,
em tamanho diminuto, que em geral só eram encontrados para com-
prar nas barraquinhas instaladas na praça durante a romaria de Nos-
sa Senhora da Pena. Um ou dois meses depois, não existiam mais
nem vestígios delas, já que, mais hoje mais amanhã, as carcaças eram
transformadas em jogadores para o futebol de botão.
Para suprir a falta, confeccionávamos nossos próprios mode-
los com cascas de melancia, ou com a matéria pouco resistente mas
facilmente recortável existente no interior do “braço” da palmeira
buriti. Com o passar do tempo, esses modelos também iam perden-
do alguns de seus componentes fundamentais, como eixos e rodas, e
sendo passados para os irmãos e primos mais novos, que os arrasta-
vam por todo lado com a mais legítima expressão de felicidade.
Havia ainda um outro tipo que era o carrinho-imaginário, no
qual o brinquedo e o brincador se confundiam. Para o uso deste, a
única coisa de que se necessitava era de uma roda ou círculo que
a gente segurava firmemente com as duas mãos como se fosse um
volante e saía por toda parte correndo, fazendo curvas, brecando,
produzindo o ruído do motor e das freadas com os próprios lábios.
Algumas vezes não havia necessidade nem do volante, sendo este
também imaginado como todo o resto.
Memórias Catrumanas 286 Sidney Valadares Pimentel

A metadinha, por fim, era uma espécie de contrato que me-


ninos e meninas faziam valendo apenas para o campo da alimenta-
ção, isto é, da comida e da bebida. Sua primeira regra estabelecia que
as pessoas que faziam parte da combinação entravam nela por livre
e espontânea vontade. Os que concordavam na participação eram
obrigados a ceder metade do que estavam comendo ou bebendo,
sempre que um outro contratante lhe dirigisse a palavra-senha: “Me-
tadinha”. Havia, no entanto, uma forma de livrar-se da obrigação
contratual que era, antes de outrem lhe pedir a metade, licenciar-se
das obrigações usando a contra-senha: “Licença”. Como contraparti-
da à liberdade de entrar na sociedade, o participante também estava
livre para deixá-la quando quisesse, desde que não fosse como estra-
tégia para eximir-se da obrigatoriedade de ceder a metade de suas
guloseimas depois de ouvir a senha.
Da aquisição da homência

As manifestações com base nas relações heterossexuais e o des-


pertar para o interesse afetivo começavam muito cedo entre os meni-
nos da vila. Examinando a questão em perspectiva, imagino que mes-
mo antes das meninas. Recordo que, enquanto diversos meninos já
haviam passado pela primeira experiência de natureza bestial ou até
mesmo humana e com mulheres que tinham idade para ser suas mães
ou suas avós, “mulheres de vida livre” ou não, a maioria das meninas,
já em idade para namorar, ainda brincavam com suas bonecas.
Entre as mulheres que trabalhavam de dia como mouras capi-
nando, ceifando o arroz maduro, arrancando o feijão, torrando a fa-
rinha, apurando a rapadura ou lavando roupa na Vereda, não se con-
tariam nos dedos de uma mão as que, além de tão árdua faina, ainda
se desdobravam, no tempo que lhes sobrava de dia ou de noite, para
dar prazer e fazer a iniciação sexual dos jovens púberes da vila. Entre
elas, a que gravou seu nome na história da educação sexual da vila foi
a sempre disponível Antônia Batata, de saudosa memória. Lavadeira,
boa de prosa, cachaceira, negra tifute segundo a caracterização local
de sua cor, barraqueira, pernas luminosas, grossas e bem torneadas,
cabelo pixaim untado a banha de porco e poligâmica.
Muitos respeitáveis chefes de domus foram obrigados a levan-
tar-se às pressas da dura cama de varas e do magro colchão de palha
da lavadeira e esgueirar-se pela porta dos fundos para não ter de en-
frentar seu próprio filho ou sobrinho que, avexado para ser recebido
Memórias Catrumanas 288 Sidney Valadares Pimentel

por Antônia, estava a ponto de botar abaixo com um pontapé a frágil


porta da frente. Palavras ásperas, lapianas matadeiras, pinholas esta-
ladas quebraram muitas vezes a quietude da noite pelo privilégio de
ser o seu dono o primeiro a colher o prazer ocultado no rígido corpo
de Antônia, que a todos recebia com o mesmo sorriso de sempre.
Não que a dama da rua de Trás não tivesse os seus preferidos.
Tinha-os. Um meu tio, ajudante de caminhão e meio-irmão de meu
pai, era um dos seus preferidos. Um outro de quem me lembro era
um rapagão filho de seo Antonino Lopes, que durante algum tem-
po exerceu a função de carreiro para o pai. Nunca soube se, verda-
deiramente, o grandalhão teve algum envolvimento tão profundo
com a Antônia Batata a ponto de deixar uma nódoa romântica de
tal intensidade em seu coração. O certo é que, quando ela se refe-
ria a ele, era por meio de um designativo que até, puxando fios e
significados daqui e dali, daria uma narrativa de sabor oitocentista:
“o carreiro Lopes”. E tudo isto ela fazia em meio a sentidos suspi-
ros e cantigas de bem-dizer. Hoje em dia, muitos dos que naquele
tempo foram dedicados alunos da Antônia Batata procuram negar
sua condição de discípulos de tão competente mestra, preferindo
tornar público seu autodidatismo. Fazer o quê, se até nas artes e na
literatura alguns autores, injustamente, procuram negar influên-
cias anteriores?
Da mesma forma que sóbria era capaz de amar a todos com
tanta intensidade, quando entubava umas cangebrinas armava bar-
racos homéricos. Só na presença de minha mãe se aquietava e domi-
nava seu ímpeto devastador. Num certo domingo, lembro uma car-
raspana que ela tomou e passou na frente da loja falando o diabo de
um certo morador do Pé-da-Serra que na noite anterior, de acordo
com seu depoimento extravasado por meio de palavras de baixo ca-
lão e grossos perdigotos, havia-lhe aplicado uma mão de vaca. Minha
mãe procurou então acalmar os excessos de Antônia, inicialmente
com bons aconselhamentos e depois com sonoros pitos. Mas antes
de tomar o Beco de Sinésio na direção da rua de Trás, ela despejou
irretorquíveis arrazoados de fundo bélico, que provocaram os risos
dos presentes, dizendo: “Eu vou-me embora pra casa, mas siá dona
Arcina pode ficar ciente que é pra depois não queixar que eu não avi-
sei. Que um dia eu ainda vou escanchar num ‘erplain’ e soltar uma
Memórias Catrumanas 289 Sidney Valadares Pimentel

bomba tonta em cima desse Buriti, que não vai sobrar nem um pé-
de-serrense pra contar causo dos outros”.
Lavadeira em nossa domus, Antônia era muito mal paga. Não
pela roupa que levava na cabeça dentro de uma bacia estufando de
tão cheia, pois desse serviço recebia por peça o justo valor combina-
do e, como se sabe, o que é combinado não é barato nem caro. Não
isso, mas os momentos de aprendizado e extração do prazer que a
rapaziada de nossa domus se sentia no direito de gozar. Não em sua
tapera-de-encontros na rua de Trás onde a competição não nos era
favorável, mas ali mesmo na beira do rio, sobre a macia alcatifa de
tiririca, ou entre as moitas de assa-peixe, ouvindo o murmurar das
rasuras da Vereda e o resfolegar de nossa Dulcinéia de ébano.
Havia outras que exerciam na vila, mas não com idêntica com-
petência, a mesma função didática de Antônia Batata. Dessas me
lembro pouco. Sei de ouvir pela boca dos vários caixeiros da loja que
havia uma certa Joana Facão que no final da década de 1950 abando-
nou a vila e foi-se embora pra Brasília. Tempos depois escutei das
mesmas fontes autorizadas que uma sua filha de alcunha Helena Fa-
cão havia “assentado praça” na capital, metáfora usada para elidir o
verbo prostituir.
Entre as “mulheres de vida livre” assumidas e prontas para o
que desse e viesse e as “mulheres de família”, tidas como honestas
procriadoras e sustentáculos das domus, havia uma categoria inter-
mediária composta por mulheres que não eram uma coisa nem ou-
tra. Geralmente mães solteiras que passavam sua existência botando
filhos no mundo de pais diversos como conseqüência de relaciona-
mentos provisórios, mas que mantinham uma vida regulada pela so-
briedade e por uma ocupação sancionada pela gente da vila como
legítima e honesta.
Passada a fase mais crítica do aprendizado, o menino se trans-
formava em rapaz, se não pronto, pelo menos bem encaminhado no
tocante ao saber “de homência” de que necessitava para assumir uma
relação estável com uma moça preferencialmente “bem nascida”
numa das melhores domus da vila. Vinha agora uma outra fase a que
se convencionou chamar namoro e que, ao contrário das conquistas
fáceis das “mulheres de vida livre”, não dependia somente do ímpeto
para impor-se e do dinheiro para pagar uma noitada.
O namoro

Não havia uma regra única e insubstituível a ser colocada em


prática para começar o namoro. É preciso lembrar que durante a dé-
cada de 1950 na vila não estávamos diante de um sistema tradicional-
mente familial e holista em que o namoro, o noivado e o casamento
eram combinados pelos pais e seguidos pelos filhos sem qualquer
direito de espernear, nem regidos por um processo de escolha mo-
derno tipicamente individualista e romântico em que a escolha cabia
unicamente aos “pombinhos”.
Até onde abarcavam os tentáculos familiares, do flirt, ou na-
morico, ao matrimônio, o sistema baseava-se numa combinação em
que, ora direta e violentamente, ora à socapa e por meio de subterfú-
gios, fazia-se de tudo para que o relacionamento fosse conduzido de
acordo com os interesses da família, principalmente do pai ou che-
fe-da-domus. Como independia de regras inescapáveis, não se pode
dizer como tudo começava. Às vezes com um olhar, um sorriso, um
modo gracioso de se comportar. Outras vezes nem isso. Bastava um
vulto, uma sombra entrevista, uma fotografia, uma referência a al-
guém numa carta ou bilhete. Não importa que tipo de estopim fez
explodir o ímpeto e o anseio de se relacionar. O certo é que lá um dia,
sem que se soubesse exatamente como, estourava a notícia: fulano e
sicrana estão flertando, ou namorando e toda a domus dava graças a
Deus que fosse assim, ou entrava em polvorosa pelo que considerava
um acinte.
Memórias Catrumanas 291 Sidney Valadares Pimentel

Como meio de coibir os abusos, os irmãos (mediante o uso de


violência com o rapaz e até com a irmã) e tias (por vias do aconse-
lhamento e da rede de fuxicos) se transformavam em informantes a
respeito de tudo que se passava com as moças dentro ou fora de casa.
Tudo era vigiado. Onde a moça ia, de onde vinha, com que compa-
nhias estivera. Cartas, bilhetes, gavetas, livros, uma pétala seca den-
tro de um livro, uma flor de malmequer despetalada, tudo era pista
a ser seguida. Suposições eram feitas sobre tudo. Algumas vezes o
namoro começava escondido, ou “na moita”, conforme se dizia para
expressar a ocultação, e continuava nessa condição até que os pais
descobrissem por meio dos vigias da domus e passassem a proibir ter-
minantemente os encontros ou a liberar geral.
Quando um rapaz estava “caidinho” por uma moça, dizia-se
que ele “arrastava as asas” pra ela. A metáfora tinha como base real
o comportamento de alguns pássaros que assim se insinuavam para
a fêmea demonstrando seu interesse no acasalamento. Quando o
rapaz se encontrava excessivamente apaixonado pela moça e disso
não procurava fazer segredo, afirmava-se que ele estava “arrastando
o loló” por causa dela, querendo dizer que em suas demonstrações
de afeto ele chegava próximo da humilhação. Porém, esse comporta-
mento não era o usual entre os rapazes: mesmo muito apaixonados,
faziam de tudo para não dar o braço a torcer, uma vez que na maio-
ria das vezes até desdenhavam da pretendida. Nem sempre a vitória
ficava do lado do pai. Supostamente, quando os membros da família
se dividiam quanto a um pretendente, a poderosa rede cultural dos
diz-que-diz, dos fuxicos, dos juízos de valor no meio de uma frase
aparentemente sem sentido, dos gestos de aprovação ou desaprova-
ção, dos encorajamentos da mãe e das tias, do auxílio das criadas no
leva-e-traz, podiam transformar um relacionamento a qualquer títu-
lo condenável, num casamento pomposo e estável para sempre.
O começo de tudo podia acontecer e geralmente acontecia
no footing, palavra que a vila não conhecia mas sabia praticar muito
bem. Sábados, domingos, feriados e dias santos de guarda começava
o vaivém logo que se tornava noite, prolongando-se até as nove horas
mais ou menos. No começo, o espaço socialmente demarcado para
a caminhada começava na porta da igreja e ia em linha reta até a es-
quina da Casa Pimentel, na confluência da rua do Meio com a praça
Memórias Catrumanas 292 Sidney Valadares Pimentel

do Jatobazeiro. Depois que a firma Irmãos Pimentel Ltda. mandou


instalar postes de eletricidade com lâmpadas de iluminação pública
na vila, o percurso foi estendido até o início da rua do Meio, na esqui-
na onde ficava a casa de tio Alcides e a loja do comerciante Ernesto
Nery. Era no vaivém que ocorriam o flirt, a fricção inicialmente com
os ombros e posteriormente com os braços, os quase imperceptíveis
toques dedo a dedo, as pegadas nas mãos — geralmente nessa or-
dem. A atração para o escurinho e o rápido amasso protegido pelas
folhas ralas do jatobazeiro ou do jambeiro que havia ali ao lado da
atual praça Manoel José de Almeida também ocorriam, dependendo
do “broto” e da capacidade de despistar a vigilância. Isto quando se
tratava de meninas novas e com reputação a proteger e conservar.
Porque as mais maduras, já tendo mudado de estado para a desvalo-
rizada categoria de “tias”, faziam parte da vigilância das mais novas.
Um outro momento bastante propício para fazer a abordagem
era por ocasião da realização dos bailes. Mas também aí havia todo
um conjunto de fatores limitantes ou simplesmente impeditivos. De-
pendendo do local onde estivesse sendo realizado o baile — também
conhecido como “função”, “arrasta-pé” ou “bate-coxas” —, a moça
filha de boa família não recebia autorização para ir. Sabedoras da
terminante proibição, as moças se preservavam, evitando gastar um
não de seu estoque já bastante vasto. Em geral, não havia a míni-
ma probabilidade de conseguirem a autorização para freqüentar um
“arrasta-pé de ponta de rua”, como eram chamados os bailes reali-
zados na periferia da vila, principalmente nos paupérrimos casebres
de pau-a-pique com piso de terra batida e cobertura de sapé, onde, à
luz de lamparina e embalados por uma pé-de-bode, os casais se diver-
tiam. O que sucedia com as moças não se dava com os rapazes, que
costumavam freqüentar esses bailes sem a necessidade da autoriza-
ção dos pais, visto que a eles era permitido tudo e sua presença nesses
folguedos era tida como parte da formação de sua masculinidade.
Quando meu pai e seus sócios na firma tomaram a decisão de
adquirir um motor diesel, entre as modernidades implantadas como
conseqüência da chegada da eletricidade estava a construção de um
amplo salão de danças em espaço contíguo ao usado para a instala-
ção da geladeira que seria usada para a refrigeração de bebidas e fa-
bricação de picolés e sorvetes. Até então as bebidas alcoólicas ou não,
Memórias Catrumanas 293 Sidney Valadares Pimentel

incluindo a cerveja, eram consumidas em temperatura natural. Re-


cordo desta época consumidores vindo do Pé da Serra, do Pernam-
buco, do São Vicente, da Sacada, do Fetal, da Barriguda, do Lamarão,
do Barreirinho e de muitos outros lugares, reservando para si sacos
de cerveja “quente” que eram colocados sob as mesas e que, depois
de retiradas de sua proteção de palhinha, eram bebidas como se fosse
leite ao pé da vaca. Até aquele momento também a animação dos
bailes era feita exclusivamente com o auxílio de três instrumentos: a
sanfona — acordeom ou pé-de-bode —, o violão e o pandeiro. Den-
tre todos os executores desses instrumentos, os que se mantiveram
vivos em minha memória são os tocadores de sanfona, entre os quais
Zé Martins, Vicente Borló, seo Anjo, Cassimiro, Moacir, seo Egídio
e Joaquinzão Chocolateira. Da mesma época, Poti Joaquim Ramos
é o único tocador de violão que permanece em minha lembrança, e
nenhum pandeirista.

Como eu vinha dizendo, os bailes da vila eram momentos pri-


vilegiados para que os namorados se tocassem, permanecendo num
fugaz ou duradouro abraço sem que, em razão disso, as moças fos-
Memórias Catrumanas 294 Sidney Valadares Pimentel

sem repreendidas pelos pais ou irmãos. A não ser, convenhamos,


que o abraço se transformasse num enlace mais apertado e íntimo e
alheio às regras de permissividade. A quebra do código se dava me-
diante alguns comportamentos que eram tidos como indevidos, ina-
dequados, inaceitáveis ou indecentes. Cabia ao cavalheiro convidar
a dama, ou “figura” (numa alusão clara à desvalorização do gênero
feminino em relação ao masculino na maioria dos jogos de cartas),
para dançar e nunca o contrário. Na falta de cavalheiros em número
suficiente, uma dama podia convidar outra, o que não podia acon-
tecer com os cavalheiros entre si porque “homem com homem dá
lobisomem”, ou “homem com homem dá choque”. Se convidada por
um cavalheiro para uma dança, o recomendável era que ela não lhe
“passasse uma tábua”, isto é, não recusasse, a não ser que aquele
estivesse embriagado, se portasse de modo inadequado ou houvesse,
por algum motivo, uma proibição expressa dos pais da moça. Em
caso de não ocorrer nenhuma dessas três hipóteses e ainda assim o
cavalheiro recebesse uma tábua, costumava ocorrer que ele ficasse
vigiando a moça para que ela não dançasse com nenhum outro todo
o restante da noite. Caso isso acontecesse, costumava acontecer que
o rejeitado fizesse o maior furdunço, não raro acabando com o baile
naquele momento.
A regra usual era que, depois de “atracados”, entre o cavalheiro
e a dama ficasse um espaço de aproximadamente vinte centímetros,
ou um palmo. Muitas vezes os namorados encurtavam intencional-
mente esse intervalo como estratégia para aprofundar a intimidade
entre ambos. Além desse, havia outros gestos por meio dos quais
procuravam dar sinais de que desejavam levar o flirt adiante, trans-
formando-o numa relação menos superficial, mesmo que mantida à
distância e desprovida do contato físico.
Como o costume era que o cavalheiro colocasse o braço direito
levemente encostado às costas da dama, enquanto sua mão esquerda
tomava a oposta dela em delicado gesto, o rapaz procurava às vezes
avançar o sinal, atraindo-a com maior força para junto de si ao mes-
mo tempo em que fazia forte pressão sobre a mão da moça como um
indicador de que pretendia conseguir mais do que vinha alcançando
até então. Caso ela correspondesse positivamente às tentativas de
atração, os próximos passos do rapaz seriam aproximar o seu rosto
Memórias Catrumanas 295 Sidney Valadares Pimentel

do da moça para dançar de “rostinho colado” e cochichar belas pala-


vras de afeto ao seu ouvido. Isto se o batalhão de vigias não estives-
se presente, pois, caso contrário, o rapaz sempre aguardaria melhor
oportunidade para tentar maior aproximação.
Devido às limitações impostas ao relacionamento principal-
mente pelos familiares da moça, os namorados eram obrigados a re-
correr aos bilhetes e cartas de amor como forma de expressão de seus
anseios e sua incontida afetividade. Mas, em razão possivelmente da
falta de instrução e de maior traquejo social, não se sentiam seguros
quanto à própria capacidade de transformar seus belos sentimentos
em belas palavras e figuras de linguagem. Então, o mais comum era
recorrer aos livros com modelos de cartas de amor que naquela época
eram ofertados em profusão principalmente pelos barraqueiros que
durante a romaria da Padroeira comercializavam variadas obras do
gênero, ao lado de manuais para a interpretação dos sonhos, poemas
de cordel e “livrinhos de sacanagem”, que tratavam a sexualidade
como uma aberração da natureza e faziam o maior sucesso entre os
rapazes maiores e mais escolados. É de meu tempo um livro de car-
tas de amor já sem capa, ensebado e desfolhado de tanto manuseio,
que circulava na vila de mão em mão. Imagino quantas moças não
terão recebido de pretendentes diferentes cartas vazadas nas mesmas
palavras, como se psicografadas por médiuns diferentes a partir de
uma mesma fonte de mana.
Porém, nem sempre um flirt terminava em pancadarias do pai
sobre a filha, do irmão sobre o desprezado cunhado, ou de ambos so-
bre suas respectivas vítimas. Afinal de contas, tinham consciência de
que o futuro da domus estava relacionado com a capacidade procria-
tiva da família. Principalmente de filhos pertencentes ao sexo mascu-
lino, que retirariam de outras domus mais do que a sua cederia sob a
forma de herança. E assim então, vencidas as dificuldades do flirt, do
namoro de longe e de perto, do namoro solto e agarrado, no claro e
no escuro, chegava o casal à não menos complicada fase do noivado.
O noivado

Não tinham poucas razões os gestores matrimoniais em se pre-


ocuparem com o destino das moças que, mais cedo ou mais tarde,
cederiam a um genro que algumas vezes nem conheciam. As fotos
apresentadas na página seguinte mostram a beleza e a juventude de
dois grupos de meninas-moças vilãs. A primeira, colhida no início, e
a segunda, no final da década de 1950.
Mas voltemos a nosso tema. O noivado interrompia a fase
aventureira e repleta de peripécias românticas do namoro e botava
em funcionamento uma outra realizada mais às claras, mas não me-
nos regulada do que a anterior, colocando em ação muito mais do
que os preparativos materiais para a criação de um novo lar. Decisões
de naturezas mobiliária e imobiliária eram importantes, mas não as
únicas nem as mais fundamentais.
Agora, aceito como candidato a marido, genro e cunhado me-
diante o compromisso de uma aliança provisória entre duas domus,
chegara finalmente o momento de aprofundar o conhecimento de
ambas as partes. A aliança-símbolo da aliança verdadeira faz lem-
brar com todas as letras aquele diálogo entre os antropólogos Clau-
de Lévi-Strauss e Pierre Bourdieu sobre a aliança matrimonial em
que, frente às alternativas colocadas pelo primeiro de que “faz-se o
casamento para não fazer a guerra”, o último diria categórico: “o
casamento é a guerra”. Em vários sentidos, o noivado é representa-
do por um conjunto de atos e intenções que mais bem seriam com-
Memórias Catrumanas 297 Sidney Valadares Pimentel

preendidos por meio da expressão “guerra de nervos”. São vários


os motivos que deixam a noiva “uma pilha”. Um motivo inicial e
bastante forte é a dúvida que geralmente a assalta se conseguirá com-
preender e aceitar, com a clareza de que necessita naquele momen-
to, uma nova vida. Um outro é representado pelos compromissos e
preparativos para o casamento que, segundo seu desejo, seria melhor
que não demorasse muito. Uma coisa era compreender e aceitar o
noivo com suas idiossincrasias e até, por que não dizer, esquisitices
nas vestimentas, nas preferências alimentares, nos cuidados com o
asseio corporal etc. Outra muito diversa era aceitar as teimosias, bir-
ras, excessivos cuidados da futura sogra que desde cedo faz tudo para
colocar as garras de fora. Começam aí futuros problemas de rela-
cionamento entre a nora ou o genro com a sogra e que faz com que
se multipliquem em relação a esta última as mútuas denominações
importadas da sociedade dos ofídios, como cobra, víbora, caninana,
cascavel, urutu e outras de igual sentido.

Mas nem sempre o clima de guerra está relacionado apenas com


as intromissões das sogras e nem estas são sempre responsáveis pelo
surgimento do clima bélico. Em muitos casos, as sogras e as tias se
davam bem com o genro desde os primeiros momentos do namoro,
Memórias Catrumanas 298 Sidney Valadares Pimentel

auxiliando as filhas a driblar o marido e filhos e facilitando ao máximo


os encontros. O período em que o genro esteve sendo vigiado pelo
sogro e pelos cunhados também costuma ser causa suficiente para
que perdure um clima tenso entre eles muitas vezes para sempre. Mas
não somente por esse motivo. Principalmente se se acrescentar a essa
razão os saques que os chefes da domus costumavam fazer em benefí-
cio dos marmanjos e em prejuízo das mulheres. Daí, os desacertos e
desacordos do genro que está entrando na família com os cunhados,
razão pela qual se valoriza uma expressão grotesca segundo a qual, se
cunhado fosse boa coisa, começaria com uma sílaba diferente.

O noivado era um período de maior permissividade dos noi-


vos entre si e de maior resguardo da noiva diante de estranhos.
Tácita ou explicitamente, o noivo tinha autorização para visitar a
noiva sem a prévia anuência do chefe de família e cada vez mais
sem pessoas a vigiá-los, as chamadas “velas”. À medida que corria o
tempo do noivado e aproximava-se o dia do casamento, iam conquis-
tando mais direitos à intimidade. Direito de saírem sozinhos, de an-
darem de mãos dadas, às vezes de ele colocar o braço sobre o ombro
Memórias Catrumanas 299 Sidney Valadares Pimentel

dela, de pequenos ou grandes amassos que às vezes evoluíam para


o intercurso sexual apressado. Algumas vezes essas relações ligeiras
encorajavam a moça para, enfrentando as violentas manifestações
do pai, pular a janela e fugir de casa à noite, indo encontrar-se com
o noivo em casinhas, tulhas ou paióis de pouca comodidade onde
podiam antecipar a consumação, em sua totalidade, de todos os seus
pensamentos libidinosos.
Ao mesmo tempo em que se permitia maior liberdade ao noi-
vo, a noiva sentia-se tolhida em seus movimentos e expansividade
mais do que antes, tanto pelo futuro marido quanto pela gente da
domus. Se a vigilância em torno do pretendente diminuía, crescia em
intensidade no sentido de proibir o relacionamento da noiva princi-
palmente com outros homens e com mulheres de procedimento du-
vidoso, as “mal faladas”. O noivado durava um tempo relativamente
longo, mas não excessivo, para não transformar a relação em objeto
do folclore popular. Em termos médios, durava o tempo necessário
para que a noiva costurasse e bordasse o seu enxoval, e o noivo pro-
videnciasse a construção ou a reforma da casa onde iriam morar. Mas
os dois extremos também podiam ser encontrados, como o de minha
prima januarense Maria do Socorro que noivou com o marido Le-
onel apenas algumas horas, durante o transcorrer de uma festa de
casamento na roça, e o casamento de meu padrinho Baltazar Fonseca
Melo com a professora Carlota Santana Prado, que só foi concretiza-
do depois de vários anos de namoro e noivado.
Nem sempre o “casamento por interesse” constituía arranjo de
natureza holista cuja promoção era incentivada pela domus que tinha
motivos para a aplicação do “golpe do baú”. Tanto este quanto o
dito “casamento por amor” devem ser tomados como estratégias ma-
trimoniais de ordem individualista por excelência. No final da década
de 1950, um sujeito de meia-idade, festeiro e namorador, sem que
qualquer força coercitiva o obrigasse a tal desatino, convolou núpcias
com uma viúva que já havia passado dos 80 anos. À época do ma-
trimônio, toda a vila comentou a respeito do que considerava nada
mais, nada menos do que o “olho gordo” do noivo na fortuna da noi-
va, acusação que ao final ficou provado não ser apenas maledicência
já que, não conseguindo seu intento de “administrar” a riqueza da
esposa, dela se separou em pouco tempo.
Política e politicagem

Não constitui novidade alguma afirmar que o campo político


no mundo interiorano brasileiro desde o período colonial vem sendo
definido de acordo com as conveniênias locais e não em razão de
marcas ideológicas imperantes em cada momento. Em nossa peque-
na vila a questão não se colocava de modo diverso. Nem sempre esti-
vemos ligados aos mesmos interesses. Algumas vezes, o que pautava
o comportamento político de nossos conterrâneos eram decisões
emanadas das ribeirinhas cidades de São Francisco ou São Romão, às
quais fomos subordinados administrativamente. Outras vezes, obe-
decíamos ao que era mais conveniente para nossos representantes
de Unaí, município a que estivemos ligados na última fase antes da
emancipação até inícios da década de 1960.
Como sabemos, a vida política brasileira nos anos 50 foi extre-
mamente conturbada. Em meados da década anterior, encerrava-se
o período de quinze anos em que vivemos sob a batuta autoritária
de Vargas. O arbítrio, a suspensão de direitos políticos, o tolhimento
da liberdade partidária, tudo isto combinado com algumas mudan-
ças na legislação trabalhista e na economia, além de uma orientação
populista voltada para as massas proletárias urbanas, foram as mar-
cas mais significativas desse período. O general Eurico Gaspar Dutra,
ex-ministro da Guerra de Vargas, candidato da coligação PSD-PTB,
consegue eleger-se para o primeiro período pós-getulista e governa o
país até 1950. Vargas volta ao poder, agora democraticamente eleito,
Memórias Catrumanas 301 Sidney Valadares Pimentel

governando até 24 de agosto de 1954, quando — diante de pressões


da UDN e do escândalo causado pelo chefe de sua segurança, que
tenta assassinar o jornalista Carlos Lacerda, udenista e seu principal
opositor — se suicida. Indicado à candidatura pelo PSD, o médico
mineiro Juscelino Kubitscheck de Oliveira é eleito presidente para o
período seguinte, que vai de 1956 a 1960.
O programa de Juscelino, expresso em seu Plano de Metas, de
acordo com o qual o país deveria atingir cinqüenta anos de progresso
em cinco anos de governo, era de cunho plenamente modernizante e
desenvolvimentista. Para atingir esses objetivos, o planejamento do
governo juscelinista privilegia os setores de energia, transporte, ali-
mentação, indústrias de base e educação, atraindo o capital estrangei-
ro para a ampliação dos serviços de infra-estrutura. Visto de fora dos
grandes centros nacionais, isto é, observado a partir do ponto de vis-
ta das populações interioranas, o governo de Juscelino afigura-se aos
grupos mais afeitos à modernização como um vetor de progresso que
traria a redenção de quatro séculos e meio de atraso, enquanto aos ou-
tros, aos mais conservadores, surge como uma aventura temerária.
Durante aquela década, mais do que dois partidos, havia na
vila dois grupos que se enfrentavam movidos pela repartição local do
poder, mesmo se se apresentassem como militantes de dois partidos
principais, o PSD e a UDN, que, a partir de determinado momento,
acharam conveniente a coligação com outros menores, o PTB e o
PR, respectivamente. E à medida que corriam os anos, mais se acen-
tuava a leitura, não propriamente ideológica do ponto de vista par-
tidário, mas de caráter instrumental, examinada através do que era
possível perceber das escassas informações que chegavam diretamen-
te a alguns, via certos informantes privilegiados com os quais faziam
contato de vez em quando.
O distrito de Unaí foi elevado a município por lei estadual no
ano de 1943, tendo a compô-lo os distritos de Unaí, Fróis e Gara-
puava, que pertenciam até então a Paracatu, e Buritis e Serra Bonita,
desmembrados de São Romão. Da primeira Câmara de Vereadores
de Unaí, eleita para o período de 1947 a 1950, já consta o nome de Pe-
dro Valadares Versiani que, posteriormente, será reconhecido como
o chefe político da UDN mais importante de nossa vila no decênio
seguinte. Além de Pedro Versiani, outros militantes de menor impor-
Memórias Catrumanas 302 Sidney Valadares Pimentel

tância faziam parte da liderança desse grupo, como seguidores do


também udenista major Jéferson Martins: os dois irmãos Orlando e
Norberto de Souza Prado, naturais da ribeirinha cidade de São Fran-
cisco; o comerciante Argemiro do Prado; e Querobino Fonseca Melo
e suas irmãs Leopoldina e Duchinha.
Do outro lado perfilavam-se aqueles que, tendo optado por
uma linha mais desenvolvimentista, seguiam regionalmente as
orientações dos Adjuto, de Paracatu, e do Dr. Cândido Ulhoa e, lo-
calmente, as de dois líderes pessedistas: José Gomes Pimentel, meu
pai, e Antonino Cândido Lopes. Pimentel, como era conhecido o
comerciante pernambucano que viera para a vila no início da dé-
cada anterior, ao filiar-se a uma orientação política voltada para a
modernidade, manifestava uma certa coerência entre o que pensava
para si, como seu projeto de vida, e o que pensava para a vila que o
recebera, como uma espécie de metonímia do Brasil. Seo Antonino
Lopes, por seu turno, como o vejo em perspectiva, era o homem dos
sete instrumentos. Que eu saiba, nunca teve de fato uma profissão
definida. Dentro de sua idéia de racionalidade, fazia de tudo o que
lhe parecesse útil e decente para ganhar a vida e sustentar sua nu-
merosa família. Foi fazendeiro, catirou gado, manipulou remédios
numa botica doméstica improvisada, fez política, deu conselhos, bo-
tou no mundo muitos filhos e filhas e — talvez entre todas as ativida-
des remuneradas ou não a que mais o agradava — exerceu a função
de despachante, encarregando-se de resolver problemas e desvendar
mistérios, principalmente de ordem cartorial, na distante e burocrá-
tica cidade de Paracatu.
Como expressão de uma certa hegemonia conseguida graças à
troca simbólica entre as demandas locais e nacionais, seo Antonino
Lopes eleito para a Câmara de Vereadores de Unaí para o mandato
de 1951 a 1954, e meu pai para o período de 1955 a 1958, tendo exer-
cido então a função de secretário da Câmara. A esses dois líderes
juntavam-se correligionários de grande importância na vila, como
Vitalino Fonseca Melo (fazendeiro) e seu filho Marcolino Fonseca
Melo (pescador), Egidio Evangelista do Prado ( juiz de paz), Pedro
Pereira da Silva (escrivão), Revalino Durães Coutinho (boiadeiro),
meu padrinho Zeca Machado (fazendeiro), meu tio Alcides Gomes
Pimentel (motorista de caminhão e sócio na firma Irmãos Pimentel
Memórias Catrumanas 303 Sidney Valadares Pimentel

Ltda.), Baltazar Fonseca Melo (comerciário), bem como os fazen-


deiros Poti Joaquim Ramos, João Honorato Primo e Gil Evangelis-
ta do Prado. Como se pode perceber, pertencia a esse grupo uma
gama maior não somente de participantes, como de controladores
de funções públicas, requisitos indispensáveis para a manipulação
política, como o registro fundiário das propriedades urbanas e ru-
rais e o controle dos aparelhos de Estado em geral. Eram esses os
ingredientes que tínhamos em mãos para misturar em nosso crisol
temperado com especiarias que recendiam, ora a desacordos, ora à
bem-aventurança.
Às questões relacionadas à organização da ordem política e
social acresciam outras, comuns em todas as comunidades interio-
ranas, de natureza mais local ou, no limite, regional. Não creio que
em nossa vila as coisas se passassem de modo diverso do que acon-
tecia em outras similares localizadas mais próxima ou mais longin-
quamente. Em todas, o mais comum era que a polícia andasse de
mãos dadas com a política, servindo a esta não de acordo com o que
estabeleciam os preceitos legais, mas de acordo com a vontade e a
determinação dos interesses partidários regionais e locais.
Nada nesse período fazia maior furor entre as hostes oposi-
toras do que a presença, em seus quintais eleitorais, de policiais em
pequenas patrulhas denominadas capturas, que chegavam às peque-
nas vilas e cidades para cumprir mandados de prisão, de garantia, e
de busca e apreensão. Chegavam geralmente com a determinação
expressa de seguir fielmente as ordens deste ou daquele mandatário.
Nunca às claras, mas atendendo a subterfúgios e a sinais que ambos,
e somente ambos, conseguiam entender. Vinham aparentemente,
durante o transcorrer das eleições, com ordens de garantir que as
votações fossem feitas de modo ordeiro. No entanto, por debaixo dos
panos, as determinações recebidas eram para intimidar, prender ou
humilhar os adversários políticos ou seus partidários, com o objetivo
de tornar aparente a falta de prestígio destes.
Muito provavelmente nenhum chefe político pessedista ou
udentista da vila conseguiu passar ao largo dessas ameaças e violên-
cias. Entre todas, a que tenho mais viva na memória, porque mexeu
com todos os moradores, de mamando a caducando, ocorreu em me-
ados do ano de 1955, poucos meses antes de meu pai ter sido eleito
Memórias Catrumanas 304 Sidney Valadares Pimentel

vereador à Câmara Municipal da cidade de Unaí. Por essa época,


apareceu na vila uma captura montada num jipe Willys sem capota
e comandada por um cabo pequeno e atarracado, de rosto glabro e
bigode espetado, cujo nome de guerra era Cabo Nery. Faziam parte
do destacamento mais três soldados e vinham todos armados até
os dentes. Por falta de um local mais adequado que servisse como
delegacia, o grupo requisitou a residência do fazendeiro Cesário
Rodrigues de Oliveira, que na época, salvo engano, era o próprio
delegado da vila.

Essa casa hoje é sumamente diferente do que era então, mas


uma sua descrição, mesmo aproximada, dará ao leitor a idéia exa-
ta de que era impossível encontrar ali um prédio menos apropriado
para servir de cadeia e mais apropriado para as presepadas que o tal
Cabo Nery tinha em mente realizar. A casa era feita de adobes, pos-
suía muitas janelas, e o piso era de tábuas sobre um vão de quase um
metro de altura, onde ratos e outros animais de tamanho maior pas-
seavam livremente. Lembro-me de que certa vez, talvez como uma
demonstração pública do que seria capaz de fazer com animais bípe-
des pensantes, o Cabo Nery saiu da delegacia segurando pela perna
um saruê que ele próprio matara na masmorra da delegacia, jogan-
do-o para a meninada fazer sua festa.
Memórias Catrumanas 305 Sidney Valadares Pimentel

Ante a estupefação da população acovardada, dia após dia o


comandante da captura foi colocando suas manguinhas de fora. Seus
editos, não escritos, corriam de boca em boca. Não me recordo da
ordem em que proclamou suas interdições. Sei entretanto que entre
estas se encontravam as proibições de andar nas ruas portando arma
branca ou arma de fogo, de defecar na beira da Vereda e na beira do
Urucuia, de portar estilingue ou bodoque, de fazer bailes sem a au-
torização prévia do delegado e outras de que não me lembro mais.
A segunda e a terceira apareciam à gente mais ajuizada da vila tão
esdrúxulas e pouco dignas de serem propostas por uma autoridade
que, à boca pequena, o valente comandante passou a ser tratado com
remoques e piadas desrespeitosas. A galhofa chegou ao seu ponto
culminante quando uma pobre mulher da vila que possuía o apelido
de Maruca foi surpreendida defecando na beira da Vereda, perto do
banheiro das mulheres, e teve de passar pela humilhação de se ver
atirada violentamente sobre seus próprio excrementos. Como se não
bastasse, e notando que a proibição do uso de estilingues não vinha
sendo obedecida à risca, ordenou uma busca e apreensão geral, ati-
tude que culminou com a tomada da referida arma passarinheira de
um tal Sebastião Lobo, filho natural do saudoso Poti Joaquim Ramos
com a lavadeira Domingas Lobo.
Até então, o Cabo Nery vinha tentando atemorizar em especial
os mais pobres com ações de pequena monta. Mas, nesse ínterim, meu
pai recebeu um aviso de um seu correligionário político de Unaí para
não aceitar provocações, já que aquela captura, atendendo a pedidos
de seus adversários políticos da vila, isto é, Pedro Versiani, Argemiro
do Prado e Norberto do Prado, havia sido enviada especialmente para
persegui-lo. Dizia ainda o informante que ele já estava “mexendo com
os pauzinhos” para remover o destacamento da delegacia da vila.
Poucos dias depois de meu pai receber essa informação, o seu
compadre Antoniel, aquele mesmo que era irmão de nossa gover-
nanta Eduarda e pai da menina Dadá que morava em nossa casa para
estudar, foi desarmado de um pequeno facão que usava em suas ati-
vidades de agricultor e humilhado no interior da Casa Pimentel. Es-
quentado como era, foi bom que meu pai não estivesse presente no
momento em que ocorreu a prisão de seu compadre. Pelo que se
contou depois, parece que o tal Cabo Nery tinha vindo com a firme
Memórias Catrumanas 306 Sidney Valadares Pimentel

determinação, caso fosse preciso, de até fazer uma sebaça na vila,


como era costume acontecer anos antes quando os jagunços inva-
diam os arruados e faziam e aconteciam sem ninguém para colocar
ordem nas coisas. E nesse ponto é que minha memória falha a res-
peito de quem foi a outra pessoa que o cabo, por nadica de nada,
desfeiteou e botou no xilindró. Este, como era defunto sem choro,
dormiu na cadeia uns três dias. No quarto dia, sem nenhum apadri-
nhamento, o cabo mesmo mandou soltar e passou a divulgar que um
grupo de pessoas havia invadido a delegacia à noite e arrancado o ca-
bra de lá à força. E exatamente quando arregimentava mais forças de
bate-paus vilões, para invadir as casas e fazer a tão propalada sebaça,
foi que chegou a contra-ordem e o chamado para comparecer no dia
seguinte, sem falta, ao destacamento de Unaí. Não houve despedida,
nem salva de tiros de alegria, nem punições a novos descarregos fe-
cais na beira do córrego. Mas uma saraivada de pedras de estilingue
com toda certeza houve.
Durante principalmente a segunda metade da década de 1950,
foi bastante acirrada a luta política na vila como expressão do que se
passava na metrópole, a cidade de Unaí. Como era e ainda é costume
ocorrer, as cidades-sede sempre fizeram oposição à emancipação dos
núcleos habitacionais, caracterizados como distritos, como forma de
manter o controle político e especialmente econômico sobre estes. A
distribuição das verbas era simbólica. Nem de longe podia ser tomada
como um simulacro da planilha representativa de quanto cada distri-
to recebia em comparação com o montante do recolhimento. Nesse
período, um posto da subcoletoria, ou seja lá que nome se lhe dê, já
havia sido instalado na vila. Para dirigi-lo, foi enviada uma unaiense,
Julieta Gaia, que ali trabalhou até o momento de aposentar-se. Mas
não vinha somente de Unaí a resistência contra a emancipação. En-
tre os principais líderes udenistas, existia a suposição de que eles não
tinham a mínima chance de sair vencedores numa eleição municipal.
Assim, a ordem era dificultar ao extremo qualquer ação que levasse à
elevação da vila em cidade.
De acordo com o folclore que ainda corre entre os que viveram
aquela época, havia olheiros de botuca em várias repartições públicas
na cidade de Unaí com o objetivo de procurar identificar as iniciativas
pró-emancipação e de tomar as devidas providências para desativá-
Memórias Catrumanas 307 Sidney Valadares Pimentel

las. Passou-se então um tempo de tentativas incompreensivelmente


frustradas ou fracassadas. Prazos que não eram obedecidos porque
os principais responsáveis não foram comunicados em tempo hábil.
Certidões a que faltavam asssinaturas e carimbos. Folhas arrancadas,
não se sabe por quem, em processos importantes. Documentos en-
tregues na agência dos Correios que nunca chegavam a seus destina-
tários. As coisas se passaram assim até que meu pai decidiu usar as
mesmas armas dos adversários, a da tergiversação. Enviava um pa-
cote com papéis velhos pelo correio, enquanto pessoalmente ou por
intermédio de um seu representante de confiança, fazia ele mesmo a
entrega da documentação importante. Infelizmente, ele morreu an-
tes de presenciar o sucesso de sua principal luta política.
Depois de quatro anos de atividade como representante da
vila junto à Câmara de Vereadores de Unaí, meu pai enfrentaria mais
uma eleição, a de 1958, como o principal cabo eleitoral pessedista
em apoio às candidaturas de Procópio Costa e Virgílio Justiniano Ri-
beiro a prefeito e vice, respectivamente. Não sei se porque na época,
com meus 13 anos, eu já tinha idade para compreender melhor o que
se passava à minha volta do que no pleito anterior, ou em razão de
que esta foi de fato uma eleição diferente, ou até mesmo pelos dois
motivos, o certo é que ela ficou em minha lembrança como símbolo
da agitação, da conturbação e da balbúrdia. Gritando e dando vivas
aos seus candidatos e morra aos nossos, os udenistas passavam em
nosso terreiro e em nossa porta assanhados, cantando as músicas
compostas em louvor da candidatura do advogado José Adjuto Filho.
Em resposta, os nossos se reuniam em blocos e tentavam responder
aos gritos no mesmo diapasão. A seguir, registro a pauta musical da
marchinha composta em Unaí e que nos ensinaram para que cantás-
semos durante a campanha. A pauta foi transcrita pela professora
Francis Otto e editada por Luciano Gomes.
Memórias Catrumanas 308 Sidney Valadares Pimentel

Acompanhando a melodia, dizia a letra:

A lua lá no céu é cor de prata


Procópio é candidato
Tem a mesma cor também.
Virgilinho também é como a lua
Não corre, nem recua
Dos gritos de ninguém.
PSD não há quem possa
Viva nossos candidatos
Que a vitória já é nossa.

A letra, como qualquer análise comprovaria, por mais superfi-


cial que fosse, era pura bravata. Digna de uma batalha carnavalesca
como as dos anos 40 e 50. Em meio a imagens poéticas da lua, os
nomes dos candidatos e as bravuras de que, individualmente, eles
seriam capazes. Em seguida, o elogio ao partido, concluindo com a
certeza da vitória. A eleição municipal de 1958 em que os candidatos
José Adjuto e Procópio Costa se enfrentaram trazia, como fato novo,
o envolvimento direto do clero em apoio a um político tido e havi-
Memórias Catrumanas 309 Sidney Valadares Pimentel

do como comunista. É preciso relativizar um pouco essa afirmação


para colocá-la em seus devidos termos. Tudo não passava de uma
certa sofisticação do material de campanha cuidadosamente elabora-
do contra o candidato da UDN. De fato, apenas um padre que tinha
motivos particulares e afetivos chamado frei Prequelmo se envolvera
na campanha. Além disso, havia um certo exagero dos adversários
na categorização do candidato udenista como comunista. Formado
em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e influenciado
pelo também udenista Carlos Lacerda, José Adjuto Filho usara em
suas campanhas formulações de cunho socialista. Foi o bastante para
que seus adversários usassem contra ele a acusação, muito em voga
na época, de “partidário do credo vermelho”. Curiosamente, pouco
depois de eleger-se prefeito e governar ao lado do vice Virgílio Jus-
tiniano Ribeiro, da oposição, José Adjuto Filho aderiu às principais
propostas defendidas pelo PSD, tornando seu mandato, aos olhos
dos companheiros, irreconhecível como o de um legítimo mandatá-
rio da UDN.
A violência

Os livros que usávamos em nossos programas de leitura no


Grupo Escolar Cândido José Lopes falavam do mundo rural e prin-
cipalmente das vilas e aldeamentos como o Éden no sertão. Lugares
simples e até carentes de certos benefícios materiais indispensáveis,
mas compensados por ser o espaço da paz e do entendimento por
excelência. O pequeno trecho de um livro de Língua Pátria — não sei
bem se o Livro de Leitura, de Felisberto de Carvalho, ou outro qual-
quer — dizia mais ou menos assim:

Seis horas salto do leito,


que céu azul, que bom ar!
Ai como eu sinto no peito,
moço, vivo, satisfeito,
o coração a cantar.

Se a paz, a tranqüilidade e a boa convivência fazem parte de um


ideário possível de ser inferido da literatura escolar de cunho preten-
samente edificante, a realidade das relações estabelecidas até mesmo
entre os grupos de vizinhança e de parentesco era bem outra. Não
eram poucos os furdunços armados em casas das “melhores famí-
lias” por parentes consangüíneos e afins. Pais que espancavam filhos
preguiçosos ou filhas, que estavam a meio caminho de “cair na vida”.
Esposas que surpreendiam os maridos gandaiando com outras, ge-
Memórias Catrumanas 311 Sidney Valadares Pimentel

ralmente mulheres malfaladas e descompromissadas das tarefas nor-


mais do lar. A esse respeito é muito lembrado nas rodas de conversa
o caso de uma vilã (sempre no bom sentido do termo) que surpreen-
deu o marido às voltas com uma mulher da vila, gente de bem e bem
conceituada, sobre os couros que usava para fazer reparos de meia-
sola em sua oficina de sapateiro. Mas as divergências políticas eram
responsáveis pelas inimizades mais profundas e mais duradouras. E
os arranca-rabos relacionados às discordâncias de natureza política
não se resumiam ao gênero masculino. Sabe-se lá por que razão, en-
tre as mulheres, as farpas lançadas eram até mais ferinas. E nesse
aspecto não há ninguém melhor a ser lembrado do que minha pró-
pria mãe, que não deixava por menos quando se tratava das pinimbas
compradas, tendo como motivo principalmente a defesa de meu pai,
às vezes dos filhos, e de suas próprias convicções e escolhas políticas.
E quanto mais forte a personalidade do opositor ou da opositora,
maior vigor colocava em sua verve. Mais ela se apresentava ancha em
suas crenças. Foi assim na rixa primeiramente com D. Lió, segunda
mulher do comerciante Sinésio, e depois também com Doca, a ter-
ceira. Foi assim com a velha Dondona. Com minha professora Dália
Lopes Gonçalves. Além de várias outras pessoas com quem, ao longo
de sua vida, foi-se indispondo pelas mais diversas razões.
Antes dessas pinimbas, de algumas das quais fui temerosa tes-
temunha, convivi com uma vasta mitologia sobre desavenças e acer-
tos de contas de gente realmente perigosa que vivia na vila ou em
suas cercanias. Desde cedo, em nossa casa, pela boca de minha mãe,
ou de gente com quem ela se dava bem, ouvi falar das aventuras do
jagunço Antônio Dó como se fosse um personagem da nascente in-
dústria cultural, como Radar, o Homem do Espaço, Roy Rogers ou
Jerônimo, o Herói do Sertão. De acordo com os relatos que eu escu-
tava amedrontado, Antônio Dó, o temível jagunço cujas peripécias
foram retratadas em vibrantes páginas pelos mineiros Raul Martins
e Guimarães Rosa, tinha um contrato informal — mas nem por isso
menos passível de ser cumprido em todas suas cláusulas, efes e erres
— de mútua ajuda e defesa com nossa avó Donana.
Enquanto nossa avó acoitava o jagunço, que, no dizer de mi-
nha mãe, era um homem mais honrado do que muitos que andam
livres por aí, ele dava garantias a ela de que ninguém, mas ninguém
Memórias Catrumanas 312 Sidney Valadares Pimentel

mesmo, tocaria num único fio de seu cabelo, nem de nenhum de seus
parentes, enquanto ele fosse vivo. De acordo ainda com minha mãe,
a vó Donana tinha tanta confiança em Antônio Dó que, quando os
revoltosos de 30 passaram pelo Urucuia, ela o encarregou de condu-
zir seus familiares para um lugar protegido, acho que num espigão
da Serra do Meio, dando toda garantia para que nada de ruim viesse
a lhes acontecer. Dizia ela que do ponto em que se encontravam,
viram quando os revoltosos chegaram à fazenda do Zumbi, onde pa-
raram para dar de beber à tropa e descanso aos homens.
Como era apresentado nesses relatos mitológicos, Antônio Dó
costumava também fazer das suas na vila ou em suas proximidades.
Em seu livro sobre Buritis, o historiador local Oscar Reis Durães
narra o episódio da perseguição movida por Maria Bita, a terceira e
última mulher do coronel Cândido José Lopes, pai de seo Antonino
Cândido Lopes, contra este. De acordo com aquele autor, a citada
Maria Bita, sentindo-se preterida na partilha dos bens do extinto ma-
rido por seu vivaldino enteado, contratou nosso jagunço-herói para
matá-lo. Sabedor da ameaça, seo Antonino corre a se proteger na fa-
zenda do amigo Felipe Rodrigues da Costa, que convenceu o jagunço
a não cumprir o mandado da viúva, lembrando-lhe que o perseguido
era na época seu protegido da mesma forma que em outro momento
ele, Antônio Dó, em semelhantes circunstâncias, também o fora. A
parte final da história em que se ressaltam os momentos de dúvida
do jagunço colocado na berlinda entre o preito de gratidão de um be-
nefício recebido anteriormente e a palavra agora empenhada, ressal-
ta a salomônica escolha em que mais uma vez sobressai a honradez
como o mais caro bem da pessoa.
Se, no entender de meu pai, Virgulino Ferreira Lampião era um
herói nacional e no de minha mãe Antônio Dó era um herói estadu-
al, havia outros cujas violências perpetradas por ali mesmo tiveram
o poder de transformá-los em bandoleiros locais. Entre estes, meus
ouvidos ressaltam ainda o nome de José de Queiroz. Lembro-me de
que se falava sobre esse personagem quase sempre à boca pequena.
Não fosse o comentador falar em corda na casa de enforcado. De
acordo com o que se dizia na época, José de Queiroz era um vilão
(agora principalmente no mau sentido) que possuía muitos crimes
nas costas. Morador na Forquilha Nova, fazenda que ficava à margem
Memórias Catrumanas 313 Sidney Valadares Pimentel

da estrada para Goiás, a pouco mais de três léguas da vila, José de


Queiroz fez desse sítio o valhacouto para se abrigar contra a vingan-
ça de parentes de suas vítimas.
Tanto quanto sua vida, a morte de José de Queiroz foi marca-
da por episódios que eram pisados e repisados pela população como
aspectos inseparáveis de um modelo de narrativa que se comprazia
na combinação do trágico com a repetição de outros mitos em sua
totalidade ou em partes significativas. E os episódios que levaram à
morte desse bandido local são o melhor exemplo disso. Perseguido
pela polícia, foi obrigado a se ausentar de casa para não ser surpreen-
dido nas inesperadas batidas das capturas, passando a viver no mato.
O único contato que mantinha com a gente da fazenda era através
de um sequaz de confiança, que, mediante um código combinado,
levava comida para ele todos os dias. Sucedeu então que, subornado
pela polícia, o comparsa entregou o ouro ao bandido, ou melhor, en-
tregou o bandido pelo ouro. De posse do sentido do código, a polícia
compareceu ao local, bateu no pau tantas vezes consoante o com-
binado e, quando o jagunço apareceu, desfechou uma saraivada de
balas que o pôs por terra.
Naquela época, quando eu ouvia em casa a narrativa sobre a
morte de José de Queiroz, eu não conseguia entender por quais ra-
zões permanecia em mim, sempre ao final, uma certa tentativa de
compreensão das atitudes do bandoleiro. Porque, apesar da conde-
nação pelas violências cometidas e pelas vidas tiradas, sobrava sem-
pre uma espécie de justificativas do tipo: “mas em compensação...”.
Hoje permaneço com as mesmas dúvidas. Mas pelo menos agora eu
tenho uma hipótese a ponderar. E não é a consideração etnocêntrica
de que nossos jagunços são melhores, mais justos e honrados do que
os jagunços de outras terras. É a suposição de que em nosso imagi-
nário, moldado em parte pelo cristianismo, a traição do sequaz equi-
valeria à do hipócrita beijoqueiro Judas com o também perseguido
Cristo. No fundo, era um libelo contra a covardia e a traição, menos
aceitáveis no código de sobrevivência no sertão até do que o assassi-
nato puro e simples.
Lembro-me ainda de dois casos de que tomei conhecimen-
to pessoalmente e que intranqüilizaram a vila mais ou menos em
meados da década de 1950 e que, direta ou indiretamente, levaram à
Memórias Catrumanas 314 Sidney Valadares Pimentel

morte de um sujeito estouvado e metido a valente que tinha a alcu-


nha de Zé Torto e um outro chamado Teófilo, que, por falta de sorte,
houve-se no meio da tribuzaina de um triângulo amoroso com um
“bobo” e sua desejada irmã.
A tragédia resultante do conflito de interesses entre a paixão
desenfreada de Teófilo pela irmã de Bola, que era como se chamava
o “bobo”, é um mitema extremamente recorrente em toda a cultura
popular brasileira, em especial na mineira, e, por que não dizer, na
cultura ocidental. Não nos esqueçamos da trágica paixão do Rei Davi
e de seu terceiro filho pela mesma mulher, fios que são tecidos na mo-
dernidade literária por William Faulkner ao compor o drama similar
em Absalão, Absalão! Assim também, o catrumano Teófilo apaixona-
se pela irmã de Bola, moça pela qual, incestuosamente, este também
devotava o seu amor. No final do drama real e como única solução
cabível para resolver a questão, Bola toma de um machado e parte a
cabeça de Teófilo. Ainda me recordo de haver espiado pela pequena
janela da casa de seo Neco (único açougueiro da vila e parente do
morto) o cadáver que mais parecia um esguio tronco com uma das
extremidades protegida por uma alva toalha sobre a qual se esvaía
uma seiva vermelha que empoçava a bancada sobre a qual jazia iner-
te. Ao saber que aqueles pedregulhos esbranquiçados que minavam
sob o improvisado turbante eram fragmentos da massa encefálica
que lhe escapavam da cuca, nunca mais tive estômago para comer
miolo de boi cozido, iguaria bastante apreciada em nossa casa.
Mais ou menos na mesma época, ocorreu outro acontecimen-
to violento que ficou na memória popular como uma morte nem
matada nem morrida, como se dizia, mas que era ao mesmo tempo
as duas coisas. Zé Torto era um sujeito avalentoado que morava na
rua de Trás, próximo da casa onde vivia com sua família um sujeito
muito boa praça chamado Astério Pereira Nery. O que ficou conheci-
do na época é que, por conta de uma pinimba sem muita importân-
cia, o Zé Torto pretendeu dar uns catiripapos num outro que ficou
conhecido no processo que instalaram para apurar o entrevero como
“o elemento Roque” e acabou levando uma facada na aba do peito
que o prostrou por terra. Socorrido em regime de urgência por seo
Rezende, ele foi levado para um hospital de Formosa, se não me falha
a memória, onde foi operado. Quando voltou para a vila, foi como se
Memórias Catrumanas 315 Sidney Valadares Pimentel

não tivesse passado perigo de morte ainda recentemente. Continuou


a tocar sua vida descuidadamente, fazendo os mesmos esforços de
antes. Até que um dia, ao conduzir nas costas sacos de arroz que
um caminhão descarregava, arrebentaram-lhe os pontos da cirurgia
e desse dia em diante foi definhando até a morte.
Assim Caminha a Catrumanidade
Ana Muda

A principal semelhança entre Ana Muda e seu irmão Marcelino


era, talvez, a cor. Uma e outro apresentavam uma pele seu tanto cla-
ra, puxada para o encardido. Mas no restante eram completamente
diferentes. Em inteligência, aptidões, préstimos. Enquanto o irmão
era hábil possuidor de dois ofícios — um profano, o de ajudante com
tropa; outro sagrado, o de tocador de sino da igreja —, ela ocupava
seus dias visitando algumas casas onde estava certa de poder ganhar
algumas migalhas que, reunidas, eram usadas no sustento da família.
Em suas visitações diárias, Ana Muda tinha preferência espe-
cial pelas casas de D. Olívia do velho Vitalino e de D. Lourdes de seo
Marcol, além de nossa própria casa e das de tia Celina e tia Isabel.
Mas em geral não pedia os donativos que conduzia para casa nos
braços e que lhe eram dados de acordo com as características de cada
unidade residencial que visitava. Assim, enquanto nas demais casas
recebia quase sempre gêneros de primeira necessidade como arroz,
feijão, farinha, um pedaço de carne quando se matava porco, em nos-
sa casa, além dessas possibilidades, mais hoje mais amanhã recebia
mercadorias retiradas das prateleiras da loja.
Muitas vezes, principalmente ao se aproximarem as festas de
São Sebastião e de Nossa Senhora da Pena, minha mãe a agraciava
com cortes de floridas chitas, de encorpados algodões ou alvos mo-
rins, tomando sempre o cuidado de incluir no presente um carretel
de linha Corrente combinando com o padrão do tecido, alguns col-
Memórias Catrumanas 319 Sidney Valadares Pimentel

chetes de gancho e de pressão ou retalhos de sinhaninha. Todo o ma-


terial recebido era levado pela “boba” para uma costureira — qua-
se sempre para D. Negrinha de seo Gil — que, então, transformava
aquela matéria-prima no mais próximo possível do que poderia ser
chamado um vestido. Geralmente uma maria-mijona multicolorida
que lhe chegava aos pés, sem obediência a qualquer modelo ou esti-
lo encontrável nas revistas de moda, mas que fazia a Ana sentir-se
como a própria Rainha de Sabá.
Ana Muda não era uma mulher preguiçosa e procurava, na
medida do possível, agradecer, a seu modo, as benesses que recebia.
Mesmo fora dos períodos especiais de festas calêndricas quando, en-
tão, costumava ser melhor aquinhoada, era uma pessoa muito pres-
tativa. É claro que seu desempenho não ia além de algumas tarefas
simples como ajudar a socar arroz, debulhar milho para os porcos,
catar feijão ou lavar as vasilhas. Mas gostava de se mostrar útil e, em
algumas dessas tarefas, podia apresentar um desempenho até acima
das pessoas consideradas normais. Recordo que sobretudo para socar
arroz e milho era muito esperta. Não foi qualquer uma das várias
empregadas que passaram pela nossa casa que nessa porfia levou a
melhor. Em várias ela conseguia passar quinau. Com os pés descalços
bem plantados no chão lado a lado, sabia manter as batatas das pernas
juntas e fazer um galeio formalizado do corpo de modo a projetar a
bunda para trás na exata medida em que lançava o tronco para a fren-
te, como uma hábil nadadora de estilo borboleta verticalizado. Trei-
nara a respiração a tal ponto que mal se podia perceber um leve ciciar
da entrada e saída do ar em seus pulmões. Quando a sua parceira e
oponente fazia um gesto com a mão querendo dizer que estava na
hora de dar uma paradinha para misturar a massa no pilão, Ana Muda
depunha a ponta da mão de pilão sobre a beira (onde se costumava
amarrar circularmente um pano como um turbante para impedir o
pilado de derramar) e sorria. Era o seu modo de prosseguir com o
desafio, como se tivesse a intenção de dizer: “Comigo ninguém pode.
Você pode até ser mais normal do que eu, mas pra socar arroz ou mi-
lho eu boto você no chinelo”. E à medida que prosseguia o serviço e o
cansaço baixava, maior ainda era o seu triunfo sobre a concorrente.
Como costumava acontecer com os demais indivíduos que os
vilões incluíam na categoria de “bobos”, havia um conjunto de gestos
Memórias Catrumanas 320 Sidney Valadares Pimentel

e sinais usados com o fito de fazer a Ana Muda entender o mínimo


necessário à comunicação. Essa gestualidade referia-se sempre a coi-
sas objetivas e práticas como comer, beber água, socar arroz, sentar-
se direito. A cada uma correspondia um gesto que tinha com o ato
alguma similaridade, principalmente de movimento. Para expressar
a idéia de comer, uniam-se longitudinalmente os quatro dedos da
extremidade da mão, que eram em seguida movimentados para a
frente e para trás na direção da boca. Quase como se o movimento
implicasse o recalcamento de comida pela boca adentro. O ato de
beber era expresso fechando-se os dedos na palma da mão e fazendo
um movimento ritmado para cima e para baixo por meio da flexão
do punho; o de socar arroz, colocando-se as duas mãos fechadas uma
sobre a outra e simulando em seguida o movimento da mão de pilão
subindo e descendo. E assim por diante.
Da mesma forma que a gestualidade servia para prover o enten-
dimento, às vezes, era usado também como meio que levava à dana-
ção e ao ódio. Ana Muda ficava possessa quando alguém, em especial
os meninos da vila, faziam gestos dizendo que ela fora vista asseando
suas partes íntimas no córrego da Vereda. Fazia-se isto colocando
a mão em concha e movimentando-a na direção do corpo, como a
imitar o gesto de um banho primitivo no rio. Nesses momentos, ela
ficava irada contra o suposto denunciante de suas intimidades e saía
pela rua lançando impropérios incompreensíveis contra o delator.
Jeromuage

Este catrumano não morava na vila. Morava em sua fazendola à


beira do córrego dos Confins, literário veio d’água, tendo sido daí, de
acordo com um grandessíssimo mentiroso e amigo próximo do imortal
escritor Mário Palmério, que ele teria tirado a inspiração para nomear
um de seus festejados romances. Isto no período em que aqui pousava
sua belonave em busca dos providenciais votos de nossos incautos ca-
trumanos, no dizer de um célebre escritor nosso parente e amigo.
Chamava-se Jerônimo Pereira Marques e tinha, com a esposa
D. Maria, os filhos Abel e Dativo. Por ter uma prosa muito bem pro-
nunciada, excessivamente arrastada e até pendendo para o dengoso,
toda a vila o conhecia pelo apelido de Jerônimo Moagem, ou, na pro-
sódia catrumana, de Jeromuage.
O termo moagem era usado como referência à semelhança
onomatopaica entre o falar e o som melancólico da moenda do en-
genho esmigalhando a cana, para retirar-lhe o doce caldo. Tudo con-
soante a telúrica expressão do sentimento do célebre poeta piauiense
Antônio Francisco da Costa e Silva, que assim dizia em seus versos
dodecassilábicos: “Range e ringe, rouquenha, a rígida moenda; /e
ringindo e rangendo a cana a triturar, /parece que tem alma, adivi-
nha e desvenda, /a ruína, a dor, o mal que vai, talvez, causar”. Havia
na vila um outro personagem que também possuía um falar penden-
do para o moroso e cantante e por isso recebera uma alcunha seme-
lhante, a de Inácio Dengoso.
Memórias Catrumanas 322 Sidney Valadares Pimentel

A respeito de um diálogo mantido certa ocasião entre o Jero-


muage e seu paciente filho Abel, contava-se uma divertida história. O
caso não tinha graça nenhuma se narrado sem seu tanto de teatrali-
zação e imitação principalmente da voz do pai. Mas, depois de apre-
sentada toda a pantomima, os vilões achavam a coisa mais engraçada
deste mundo. Era o seguinte o conteúdo do diálogo entre pai e filho:

Pai: Abel.
Filho: Oi, pai.
Pai: Abel, me diz uma coisa.
Filho: Digo, pai.
Pai: Abel, com quem é que eu pareço?
Filho: O senhor, pai?
Pai: Eu, filho. Com quem é que eu pareço?
Filho: Deixa eu ver. O senhor parece com seo Biá.
Pai: Não!
Filho: Então deixa eu ver.
(Breves instantes de espera).
Filho: Ah, pai, já sei. O senhor parece com o boi laranjo do cu verme-
lho.
Pai: Não, desgraça! Tá me azucrinando. É outro.
Filho: É outro, pai?
Pai: É outro, você sabe.
Filho: Então é com seo Zé Pimentel?
Pai: É não, eu lá tenho a cabeça chata por acaso?
Filho: Ah, então é com Marcole.
Pai: Também não.
Filho: Com o Vevitalino.
Pai: Não.
Filho: Com o Izidião.
Pai: Qual é Izidião, trem, o de dona Celina?
Filho: Esse não, pai, o dos Mangues.
Pai: Pareço não, com nenhum dos dois.
Filho: Ah, então já sei.
Pai: Quem então?
Filho: O Veantonino.
Pai: Ra-ra-ra. Ele mesmo. Até o terno marelo.
Memórias Catrumanas 323 Sidney Valadares Pimentel

E os participantes da pequena comédia riam a mais não poder


da preferência que Jeromuage manifestava mais pelo seo Antonino
Lopes do que por qualquer outro morador da vila.
Marcelino

Marcelino possuía múltiplas funções na vila. Vivia com a irmã


Ana Muda numa casinha de adobe que ficava do lado de baixo da
praça do Jatobazeiro, vizinha à residência do pescador Marcol, onde
posteriormente se construiu a Casa Paroquial. Devido às pequenas
dimensões da casa, insuficiente para abrigar ao mesmo tempo a
cozinha com o fogão de lenha e acomodações individuais para os
irmãos, dormiam ambos no mesmo catre. Largo o bastante para
cabê-los, mas de altura insuficiente para proteger contra a umidade
do piso de chão batido, o mal-ajambrado catre fora construído com
o uso de umas tábuas amanhadas sobre frágeis caixotes que Mar-
celino conseguia abiscoitar gratuitamente na Casa Pimentel ou na
Casa Santana.
Por viverem nesse regime de quase mancebia fraternal, mal-
dava-se na vila que era comum entre eles o intercurso sexual. Pior:
dizia-se que, ainda adolescente, a Ana teria sido desvirginada pelo
próprio irmão, de cujo relacionamento teria nascido uma criança na-
timorta. Mas parece que era tudo conversa fiada, porque não se tinha
desse nupcial incesto nenhuma prova mais contundente.
Além de viver sempre envolvido com tropa pertencente não sei
dizer a quem, Marcelino era também responsável por certas ativida-
des menos prosaicas relacionadas com o funcionamento de práticas
religiosas cotidianas. Essas funções independiam da presença dos ad-
ministradores do sagrado, já que só se podia contar metodicamente
Memórias Catrumanas 325 Sidney Valadares Pimentel

com a presença de sacerdotes na vila por ocasião das festas de São


Sebastião e de Nossa Senhora da Pena.
Cabia principalmente a Marcelino a manipulação dos objetos
sacrossimbólicos de repercussão auditiva, a saber, o sino (em especial
nos ritos religiosos dirigidos pelos padres, mas também em funções
caritativas associadas, quando morria alguém e era preciso fazer cor-
rer a nova) e a matraca, visto que na quinta e na sexta-feira santas
não se permitia o toque do sino. O toque repetitivo e nervoso da
matraca era, ao mesmo tempo, um chamativo para que a população
comparecesse às funções religiosas e um aviso de que o Cristo, como
era esperado, de fato morrera.
Ao contrário do que muita gente pensava, embora analfabe-
to e cachaceiro contumaz, Marcelino era uma pessoa que não tinha
nada de rudeza em seu espírito mais voltado para o pragmático. Em
determinados momentos, ele saía com certas tiradas extremamente
inteligentes, que são o melhor testemunho de sua sagacidade e es-
perteza intelectual. Quando, há cerca de quinze anos, travei conhe-
cimento com a obra do historiador italiano Carlo Ginzburg denomi-
nada O queijo e os vermes, foi para o cavaleiro-sineiro-matraqueador
Marcelino que dirigi minhas lembranças. Como o moleiro-carpintei-
ro-marceneiro-pedreiro-e-outros-eiros Menocchio, Marcelino ansia-
va profundamente ter acesso ao que os outros conheciam e ele não.
E aqui é preciso fazer menção a uma profunda diferença a separá-los:
enquanto Menocchio era alfabetizado, Marcelino não sabia fazer o
“o” com o fundo da garrafa. E parte do que ele tomava conhecimen-
to eram casos, convenções, histórias, referências, relações, mitos e
ditos que eu e outros colegas ouvíamos na escola e passávamos in-
continenti para ele.
Lembro que de certa feita contei-lhe que, de acordo com o que
a professora Inês Gonçalves, ou Zeta, dissera na sala de aula, a prin-
cesa Isabel se chamava Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela
Gabriela Rafaela Gonzaga de Bragança e Orleans. Marcelino pensou
um pouco, matutou, matutou e depois me perguntou: “Oxi-minino,
por que desgrama ela tinha um nome tão desgraçado de comprido,
se ela era uma princesa e não uma ladrona de égua?” (Nessa região
de Minas, costuma-se identificar nomes muito extensos com o ilícito
praticado pelo “ladrão de égua”.) Procurei fazê-lo entender que eram
Memórias Catrumanas 326 Sidney Valadares Pimentel

atributos familiares que traduziam a importância pelo recurso de no-


meação de uma ascendência extensa. Ele balançou a cabeça e sorriu
um sorriso maroto.
No dia seguinte, depois que voltei da escola, encontrei-o pen-
sativo sob o jatobazeiro da praça. Vendo-me, ele então me comuni-
cou que daquele dia em diante passaria a se chamar de acordo com
a linhagem que remetia também a seus ascendentes. E sem aguardar
que eu lhe indagasse qual era, foi logo declamando orgulhoso: José
Marcelino Gonçalves dos Santos Pereira da Cunha Teixeira da Silva e
Siqueira Ramos Pinto de Queiroz.
Tubina

No período das chuvas, a tiririca que cobria a praça da igreja


por baixo da malva virava um quiabo de tão escorreguenta. Uma das
peças que gostávamos de pregar nos animais de carga de seo Anjo era
chegar bem perto deles como se não quiséssemos nada a mais além
de passar ali perto e, de repente, dávamos um pulo e batíamos com as
mãos nas pernas. Assustados, eles tentavam correr, mas patinavam,
escorregavam e prancheavam na grama.
Em razão do tanto que deslizava ali, não foi só uma vez nem
duas que, já de si dotados de pouco equilíbrio por causa da tontura,
pudemos presenciar os tombos dos bêbados que se aventuravam a
atravessar o lamaçal. Incontáveis foram as vezes em que tio Alcides
foi obrigado a deixar o seu caminhão pousar ali nas imediações da
Pensão Santana, ou da Pensão Pitangui. Depois de pregar na lama,
nem a poder de reza se conseguia tirá-lo de lá. O mesmo acontecia
com a jardineira de Artau.
Sempre que penso nesses excessos da natureza, vem-me à lem-
brança um episódio engraçado acontecido na porta da Pensão Pitan-
gui depois de um toró daqueles de tirar pica-pau do oco. Até, acho
que foi daquela vez que ouvi pela primeira vez a expressão cafuçu do
brejo. Em razão da proximidade semântica, talvez se possa aceitar
que a palavra cafuçu tenha origem próxima à das expressões cafua e
cafundó. Para o mestre Aurélio, a cafua era um esconderijo, ou quar-
to escuro, onde se mantinham alunos castigados, podendo-se, então,
Memórias Catrumanas 328 Sidney Valadares Pimentel

aceitar como seu sinônimo o termo cafundó. Assim, o cafuçu seria


um sujeito grosseiro, roceiro, asselvajado.
Penso ter ouvido essa palavra pela primeira vez pronunciada
pelo saudoso Miguelzinho, dono de uma pequena venda na chamada
rua de Poti. Miguelzinho era um sujeito branco, de pequena estatura,
que caminhava jogando os ombros para os lados como um marrento
lutador de boxe. Andava sempre calçado com botinas que, com o
tempo, entortavam no bico projetando-se para o alto. Não gostava de
ser chamado pelo apelido de Tubina, que é uma espécie de abelha.

Este caso aconteceu uma tarde-noitinha. Desde a manhã uma


chuva forte havia despencado sobre a vila. A grama que havia defron-
te à Pensão Pitangui deslizava como se houvesse sido coberta por
uma camada de graxa. Naquela quadra do ano, aquele era um ponto
estratégico usado por Artau para deixar sua jardineira. Isto porque,
caso estivesse com a bateria fraca, ou por alguma outra razão o mo-
tor de arranco não funcionasse, o que ocorria com grande freqüên-
cia, o esconso do terreno até a parte de baixo da praça, onde ficava
a casa de seo Marcol, evitava muito esforço por parte dos que eram
solicitados a auxiliar na espinhosa tarefa de empurrar a dita cuja.
Memórias Catrumanas 329 Sidney Valadares Pimentel

Naquele dia, especialmente, a jardineira atolada, juntaram vá-


rias pessoas para ajudar, entre as quais o Tubina e Valdir Fonseca,
filho do segundo casamento do velho Vitalino Fonseca Melo. Este
último, que naquela época era rapazote, aproveitando-se do lusco-
fusco, escondeu-se atrás de alguém e gritou, modulando a voz para
não ser reconhecido: “Força, Tubina!” Ah, pra quê? O Miguelzinho,
sabe-se lá como, driblando as dificuldades postas pelo falsete e pelo
lusco-fusco, não teve dificuldades para reconhecer, entre tantos ali,
quem fora o desabusado que estava mexendo com ele. Aí foi um pau-
pra-virar. Puxando de uma faquinha que trazia sempre à cinta como
adjutório para inibir excessos como aquele, partiu para cima de um
agora desesperado Valdir, que por pouco não viu a sua avó pela gre-
ta.
Bem, no frigir dos ovos, depois de entrar a turma-do-deixa-dis-
so para esfriar os ânimos, Miguelzinho ainda escumando de raiva,
voltou a guardar a faca ao mesmo tempo em que gritava com toda
a força de seus pulmões: “Cafuçu do brejo, cafuçu do brejo”. Bem,
em benefício de nosso bom — mas nem sempre calmo — amigo de
infância, registremos que o Valdir nem chegou a escutar os impropé-
rios do gesticulador Tubina. Isto porque, quando viu a quicé brilhan-
do à pálida luz da lua, o Valdir saiu na mais desabalada carreira no
rumo da casa de seu irmão Marcol.
Benedita Tonta

Duvido que algum dia alguém tivesse chegado a saber se o seu


nome de batismo era de fato Benedita, como era conhecida. O certo
é que toda a vila lhe atribuíra um dia os sobrenomes depreciativos e
rebaixantes de Tonta e Grossa. O de tonta ainda vá lá. Todos os que a
conheceram hão de concordar que ela era certamente meio lesa, mas
grossa, nunca. Pelo menos no sentido corriqueiro atribuído a essa
palavra, de gordo e volumoso, não.
Benedita era um espeto de gente. Pardavasca, de estatura baixa,
andava pra todo lado apoiada no primeiro galho seco e sofrivelmente
desempenado que encontrasse pela frente e pudesse lhe servir, ora
de cajado, ora de florete, a estocar os meninos da rua que a açodavam
com suas malvadezas. As faces magras e vincadas pela idade e carên-
cia de nutrientes eram os sinais mais característicos da vida miserável
que levava.
Mais pelas condições de vida do que por filosofia de vida, era
mulher de um traje só. Não em termos do modelo em que era con-
feccionada a maria-mijona do momento, mas em razão de que era
sempre a única. Quando recebia uma roupa nova, usava-a até que ela
se transformasse em molambo escuro e malcheiroso. Engrouvinha-
da, a parte de trás ficava sempre mais curta do que na frente, como
se o vestido houvesse sido costurado por mãos inábeis. Aquele era o
seu traje, em geral confeccionado em chita colorida ou de cor bem
berrante, que ela usava por dias e mais dias. Ou até que um inespera-
Memórias Catrumanas 331 Sidney Valadares Pimentel

do acidente (um prego de tamborete, uma garra de arame farpado,


uma aspa de madeira) colocasse à mostra o corpo magro de nossa
inesquecível biografada. Aí então, apiedada da situação periclitante
em que se encontrava a roupa da Benedita Grossa, minha mãe tirava
um corte de tecido na loja e encaminhava para uma das costureiras
da vila fazer uma nova fatiota.
Corria uma história a respeito de Benedita Tonta, não sei dizer
se verdadeira, se criada a partir de, ou se apenas coincidente com o
mito de Romãozinho, extremamente recorrente em toda a região. O
certo é que, segundo se contava, quando ainda criança e por algo sem
muita importância, Benedita avançara contra a mãe com um pau na
mão e a espancara até que apareceu alguém para contê-la. Caída por
terra e ferida, a mãe então jogou na filha a praga de que ela haveria
de penar nos dias finais de sua vida, sendo maltratada por todos. E
que, na falta de comida e na pobreza, seria seu destino comer grama
na praça até o final de seus dias.
Verdade ou não, fato é que fui testemunha de muito do que
constava do desiderato da mãe humilhada, fundado na praga que lhe
jogara. Benedita morava numa casa velha que em tempos idos o fa-
zendeiro Felipe Rodrigues da Costa mandara construir ali na praça
da igreja, entre o lote que posteriormente abrigou a residência do
fazendeiro Vitalino Fonseca Melo e a igrejinha de Nossa Senhora da
Pena. Essa casa hoje não existe mais, mas quando Benedita ainda mo-
rava lá ela foi cedida à Sociedade de São Vicente de Paula para abrigar
os necessitados da vila.
No trânsito pelos trilhos cavados na malva e na tiririca da praça,
não foi uma vez só nem duas, como se diz localmente, que presenciei
aquele espetáculo do repasto reservado geralmente aos eqüinos e ru-
minantes. De repente, a pobre e malfadada Benedita estugava o pas-
so, deixava de lado o improvisado cajado e disputava o verde agreste
com a tropa de seo Anjo, arrancando tufos de grama e colocando-os
na boca apressadamente para esquivar-se da molecada de rua que a
perseguia gritando: “Mula véia, mula véia!”.
Se até essa época eu ainda não dava muito crédito à crença de
que praga de mãe pega mais do que doença ruim, a morte de Bene-
dita Tonta teve o poder de jogar por terra a minha descrença. Suce-
deu que uma certa manhã uma de suas companheiras de moradia no
Memórias Catrumanas 332 Sidney Valadares Pimentel

improvisado aviso dos vicentinos deu com ela morta, tendo o rosto
completamente desfigurado por ter servido de repasto aos ratos du-
rante a noite.
Benício Providência

Entre os que partiram para Brasília quando a indústria da cons-


trução civil começou a atrair mão-de-obra não especializada, lá se foi
o Benício Providência. O apelido fora conquistado porque, a qual-
quer solicitação ou ordem, ele costumava responder com o bordão
aquiescente de que já havia providenciado, ou já estava indo tomar
as devidas providências. Tanto que, usado mais hoje, mais amanhã,
o danado do apelido acabou pegando de tal modo que, a não ser seus
parentes mais chegados, provavelmente ninguém mais na corrutela
soubesse seu sobrenome real.
Nessa época, o ingresso na nova realidade (a de ajustar-se ao
multiculturalismo da nova capital) implicava tanto a conquista de
um novo gentílico — o de candango — como a necessidade de adesão
a novas formas de consumo. Um pressupunha as outras. Dependen-
do da faixa etária, da maior ou menor suscetibilidade à influência, e
do seu poder aquisitivo, o candango podia ser identificado à distância
por meio dos sinais exteriores que não conseguia ocultar. Por ocasião
da Folia de Reis, da festa de São Sebastião, ou da festa da Padroeira,
eles voltavam à vila com seus característicos disfarces que, pra variar
(expressão que, ao inverso do que parece sugerir, quer dizer: invaria-
velmente), a gente da vila considerava extravagantes.
E entre eles lá vinha o Benício Providência. Camisa e calça em
geral de linho sem qualquer mácula. Óculos ray-ban de lentes verdes.
Botinhas cujos canos, com aparas à frente, pouco cresciam acima dos
Memórias Catrumanas 334 Sidney Valadares Pimentel

tornozelos. E nas mãos o indefectível radinho Mitsubishi, fabricado


num modelo diminuto que quase cabia no bolso. Além, é claro, do
perfume que tinha o poder de anunciar a proximidade do candango
à distância e a cuja passagem de seu portador os vilões, até por um
certo sentimento de despeito, depois de inspirar a onda do “oroma”
para sentir-lhe a fragrância, costumavam dizer: “Nossa, essa candan-
gada hoje está matando”.
Neste ponto da narrativa, deixemos o Benício sob o jatobazeiro,
paramentado mais ou menos como anunciamos acima, sentado numa
tora de madeira e labutando com o radinho na tentativa de conseguir
sintonizar uma estação audível em meio a tanta estática e focalizemos
outra cena cujo personagem central agora é seo Antonino Lopes.
Como já vimos em outra parte destas memórias, Antonino
Cândido Lopes era um sujeito polivalente, extremamente conhecido
em toda a região, principalmente em Paracatu para onde se deslocava
constantemente para resolver pendências cartoriais. Muito repeitado
na vila, por onde passasse, o que se via era aquele despotismo de pe-
didos de “bênção, meu tio”, mesmo não tendo o solicitante nenhum
parentesco consangüíneo ou afim com ele. Nesses momentos, seo
Antonino parava, pegava na mão, abençoava e ficava por ali alguns
minutos concedendo ao suplicante um dedo de prosa, quando, en-
tão, procurava saber como andavam os parentes dele. Como o jato-
bazeiro ficava no centro da praça, quase confrontando com sua casa,
seo Antonino passava ali tardes e tardes, principalmente nos dias de
maior calor. Quando aconteceu esse episódio envolvendo o Benício,
ele já atravessava pelo menos a casa dos seus 75 anos.
Como o leitor ou a leitora hão de se recordar, havíamos deixado
o Benício Providência às voltas com seu radinho de pilha, tentando
encontrar algo compreensível no meio daquela balbúrdia de ondas
curtas. Naquele instante, seo Antonino desceu os três degraus da es-
cadinha que havia na porta dianteira de sua casa e veio caminhando
devagarinho, olhando bem onde pisava, até a tora onde o Benício se
encontrava sentado e sentou-se ali também, depois de pegar na sua
mão e responder ao seu pedido de bênção com o costumeiro “Deus
te abençoe”. E ali ficaram os dois um tempo falando do tempo, da
poeira, das chuvas que logo estariam caindo, da saúde da Pexixa, es-
posa de seo Antonino, dos parentes de um e do outro, de um sujeito
Memórias Catrumanas 335 Sidney Valadares Pimentel

que estava pra ficar rico de tanto desmanchar negócio e receber a


correspondente multa de arrependimento, da recente partida de seo
Rezende, dum furdunço provocado por um catrumano do Pasmado
por ter levado uma tábua duma parente-longe do Benício num ar-
rasta-pé na casa do Natalino, duma briga do Nidão de seo Anjo com
o Sebastião Vaz, de um sujeito que tinha se mudado recentemente
pra vila e que, na avaliação de seo Antonino, não valia o que o gato
enterrava — e de muitos outros assuntos que foram enfadando, en-
fadando, até que os dois caíram em profundo silêncio. Lá uma hora,
com seo Antonino já de pé pra voltar pra casa, o Benício Providên-
cia apanhou um fruto do jatobazeiro no chão e, depois de parti-lo
ao meio, cheirou a polpa amarelada e indagou: “Meu tio, ainda que
mal pergunte, isso é bagem de quê?”. Surpreendido pela pergun-
ta despropositada, seo Antonino tremelicou os lábios várias vezes
como gostava de fazer quando queria ser irônico e disse com uma
voz meio fanhosa: “Mas quá, gente, foi criado comendo jatobá e só
porque foi ali em Brasília não conhece mais!”. E voltou pra casa sem
nem olhar pra trás.
Josino

E lá vai ele descalço, arrastando os pés fissurados sobre o casca-


lho, num sobe-desce ladeira sem fim. Remói palavras que, à distância,
são pura ingresia e galeguice. Desta vez, a suposta desavença talvez
seja com D. Olívia, segunda esposa do fazendeiro Vitalino Fonseca
Melo, seu criador e senhorio. A razão é sempre a mesma. Toda a vila
sabe qual é o móvel do desacordo. É que, antes de encher os potes
Memórias Catrumanas 337 Sidney Valadares Pimentel

e as latas de servir na casa, ele acha que deve privilegiar sua crença
mágica. Ele tem um cruzeiro para molhar que fica longe, do outro
lado da Vereda, num local elevado e de não muito fácil acesso. Princi-
palmente para subir com uma lata de vinte litros quase cheia d’água.
A cruz é enorme, construída em cerne de aroeira. Por isso o
povo do lugar a chama de cruzeiro. E ele vai gastar uma, duas, três,
quatro viagens até achar que a cruz está bem encharcada. Parece que
em seu imaginário existe uma relação direta entre a porção de água
que ele conseguir despejar e o nível de precipitação pluviométrica na
região. Isso é o que ele pensa. Mas não é o que, provavelmente, pen-
sará D. Olívia, que precisa de água primeiro em suas bilhas e suas va-
silhas. Senão, quando o marido chegar estafado da fazenda e for com
muita pressa ao pote não vai encontrar bulhufas de água. Por isso ela
diz quase como uma súplica: “Trazer primeiro, molhar o cruzeiro
depois”. E ele então pega o trilho cruzando obliquamente a praça na
direção do Poço dos Padres, ou do Mata-Cavalo, ou da Varginha.
A voz que lhe sai da garganta é repetitiva e grave. Grossa como
se tivesse um exército de besouros mangangás aquartelado em suas
cordas vocais. As pessoas da vila desenvolveram um conjunto com-
plexo de códigos, sinais e entonações pra se comunicar com seus “bo-
bos”. Muito provavelmente pensava-se que, sem aqueles recursos,
ninguém conseguiria fazer-se entender. E o mais extraordinário era
que as unidades significativas não compunham um conjunto que se
aplicava a todos indistintamente. Não, a cada um aplicava-se deter-
minado código. O mais comum era que, ao dirigir-se a Josino, as pes-
soas (crianças e adultos) engrossassem suas vozes ao máximo, como
se, usando uma entonação menos grave, ele não pudesse alcançar a
compreensão do sentido.
“Trazer primeiro, molhar o cruzeiro depois”, ele repete. No
caminho, topa com uma cambada de rapazes que voltam do banho
no perau e resolvem mexer com ele. “Zino, cadê a pilha?”. Josino
enfia a mão no bolso da calça de algodão cru e tira uma pilha de
lanterna Rayovac esgotada. A pilha é sua distração e seus malabares.
Algum tempo atrás, usava um limão ou um coco xodó. Mas isso foi
antes de descobrir que a pilha usada funciona melhor. A lata sobre a
cabeça rude, o olho projetado na distância. Uma mão segura a lata
para não cair, a outra joga sua pilha-malabar. Josino não precisa olhar
Memórias Catrumanas 338 Sidney Valadares Pimentel

para a pilha. A experiência lhe diz que ela girará no ar uma única vez
e, depois de descrever 360 graus, descerá docemente sobre a palma
de sua mão como um zepelim. E assim ele fará de acordo com a exi-
gência de Olívia. Trará primeiro a água de beber e de servir em casa.
Depois cuidará de sua crença mágica.
Josino sabe, é claro, que aquilo que ele faz é a sério. Que sem
sua ajuda a vila e suas cercanias não receberiam a benfazeja água da
chuva, sem a qual as plantas, os animais, e até a gente mesmo se es-
turricariam. Josino sabe, ou pelo menos desconfia, que não adianta
correr e fazer penitência somente no período da seca, consoante o
proceder dos catrumanos da vila. Quando a chuva demora ou não
é suficiente, as pessoas se juntam, molham o cruzeiro e fazem tem-
poronas orações, imitando-o. Depois se esquecem de continuar as
promessas no dia-a-dia. Ele não, seu procedimento é contínuo, única
forma de fazer com que o milagre do abastecimento celestial perdu-
re. Mesmo no período das águas, quando acontece um veranico, lá
vai ele com sua pilha e sua lata d’água.

A gente da vila chama sua técnica de simpatia. Brutal coin-


cidência com a denominação de magia simpática dada a processos
idênticos por gente que anda metida no borogodó de livros e per-
quirições complicadas. Simpatia, nesse sentido, não tem nada a ver
com afetividade ou reciprocidade. O que a palavra procura expressar
Memórias Catrumanas 339 Sidney Valadares Pimentel

é a ligação que pode ser estabelecida entre os seres e as coisas. A


simpatia, Josino tem consciência, ainda que não possa explicar com
palavras, envolve as normas da contigüidade e da similaridade. Am-
bas estão presentes na magia praticada por nosso Mago da Chuva. De
acordo com a primeira, mesmo à distância, coisas que antes fizeram
parte da mesma realidade continuarão a agir umas sobre as outras.
A água que Josino usa já fez parte da mesma unidade num
momento anterior e provocará a precipitação de novas chuvas. De
acordo com a segunda, como o semelhante age sobre o semelhan-
te, o efeito (chuva) se parecerá sempre com a causa que o produziu
(água). É nisso que se assentava o mana de Josino. Agora, se sua técni-
ca mágica tinha poder suficiente para fazer chover sempre que usada,
bem, aí são outros quinhentos. Mas pelo menos no período que vai
de novembro até março, era batata. E depois ainda dizem que Josino
é bobo. Bobo uma pinóia. O borogodó dele é o mesmo dos livros e
dos sábios.
Conclusão

E assim chegamos ao final destas pouco densas narrativas que


procuraram trazer à luz os traços culturais e as intimidades da Vila
de Nossa Senhora da Pena do Burity no Urucuia. Tentei cruzar dados
que se encontravam em minhas lembranças de menino com coisas
que me contaram depois oralmente ou por intermédio de escrituras
de natureza e credibilidade vária.
Tanto os nossos memorialistas quanto os de outras plagas cos-
tumam fazer-se passar por literatos, deixando que o valor etnográfico
de seus escritos seja ressaltado como mais uma de suas característi-
cas. Não foi esse o caminho que tomei. Pretendi, desde o início, que a
imagem de nossa pequena vila surgisse da explicitação dos costumes,
produzindo uma mistura e até, por que não dizer, uma certa confu-
são entre uma visão interior e outra exterior, isto é, o catrumanoêmi-
co e o catrumanoético.
Tenho de ressaltar uma complicação a mais, dentre as que eu
previa encontrar, que limita o alcance do trabalho: o fato de eu estar
tratando, em muitos casos, de pessoas vivas ou só recentemente de-
saparecidas, o que, com toda certeza, em larga medida, compromete
e domestica o julgamento. Aliada a esta encontra-se uma outra difi-
culdade, caracterizada pelo fato de a vila, na década de 1950, consti-
tuir-se quase numa sociedade ágrafa, o que quer dizer que, por mais
que eu tenha buscado encontrar documentação escrita que refletisse
aspectos daquele momento como cartas, diários, postais, depoimen-
Memórias Catrumanas 341 Sidney Valadares Pimentel

tos, o máximo que consegui foram imagens fotográficas, a maioria


das quais quase completamente destruídas pela ação do tempo.
Como é natural, ao longo do trabalho fiz surgirem em especial
as pessoas com quem não somente eu como também os membros de
nossa domus tiveram maior proximidade. Acima de todos e do brilho
individual de cada um, procurei trazer à luz a figura forte, autoritá-
ria, centralizadora, mas ao mesmo tempo preocupada com a saúde
e o bem-estar da família representada por minha mãe. Uma legítima
Valadares. Espécie de abelha-rainha (como a mãe e a matriarca Joa-
quina do Pompéu), que, expatriada de perto dos seus, teve os olhos
constantemente voltados para a tradição da família. Em cujo discur-
so os nomes que compunham sua própria memória vinham sempre
precedidos ou qualificados pelas relações de parentesco: “meu tio
Pedrinho”, “Coteco, meu irmão”, “Maria, minha irmã”, “meu tio
Saint-Clair”, “Iracema, minha sobrinha” e assim por diante. Mas
que, acima de tudo, era uma mulher “positiva”, que não costumava
mandar recado nem deixar para depois o que tinha a dizer.
Mas sobretudo tentei construir o percurso de uma diáspora
iniciada na década de 1930 em Pernambuco e que, depois de breve
passagem por Januária, foi cumprir seu destino na vila, ajudando a
transformá-la e a dar-lhe feição mais moderna. Dediquei-me nestas
memórias a contar principalmente a história dos Pimentel, não em
virtude de dar-lhe maior peso na constituição de nossa família. Assim
procedi porque, além de nosso ramo materno já ter sido valorizado
pelos historiadores de acordo com seu merecimento, o lado paterno
foi sempre esquecido. Espero que, com a publicação das lembranças
que agora dou a público, possa-se compreender com maior correção
o papel das correntes migratórias para o norte e noroeste de Minas
Gerais, bem como contribuir para a conservação da memória histó-
rica e cultural da vila de catrumanos encravada no sertão urucuiano
que um dia se chamou Vila de Nossa Senhora da Pena do Burity no
Urucuia.


Agradecimentos

Ao longo dos últimos vinte anos, à espera do momento de


produzir este fruto etnográfico e memorialista, venho organizando
minhas próprias lembranças, assim como dialogando com várias pes-
soas que viveram na vila principalmente por volta de meados do sé-
culo XX. Nessa faina, beneficiei-me de parco acervo fotográfico que
ainda resta aqui e ali sobre as diversas atividades e intimidades que
descrevo no livro. Embora correndo o risco de esquecer muitas pes-
soas com quem conversei durante as duas últimas décadas, não posso
deixar de apresentar aqui meus mais sinceros agradecimentos àque-
les que permanecem vivos em minha memória, que cito a seguir:
Alcina, minha mãe. Meus irmãos Romero, Randolfo, Zezito e Edson,
notadamente este último, que investiu parte de seu tempo e recursos
para que eu concluísse o trabalho. Lili e Zizinha, minhas cunhadas.
Teodoro do Prado, hábil guardião do saber e da memória local. No-
nato e sua irmã Marilda. Dália Lopes e seu marido Vadote Gonçalves.
Inês Gonçalves, a Zeta. Deca Fonseca e sua mulher Ordália. José Ju-
randir Ramos, o Zé do Ovo. Meus primos Expedito Gomes de Souza
e Terezinha de Araújo Pimentel. Meu tio Alcides Gomes Pimentel.
Fulgêncio Durães e sua mulher Olga. Neusa Durães e seu marido, o
cabo Carlos. O casal Raimundo e Marieta. D. Dico e Vicência Lobo,
ex-participantes ativas do bailado natalino das Pastorinhas. Eduarda,
nossa ex-“governanta”. Os primos-casais Zé Bom e Natércia, e Valti-
nho e Ana, moradores nas proximidades da Serra do Meio, no muni-
Memórias Catrumanas 343 Sidney Valadares Pimentel

cípio de Arinos. Minha boa tia Nena, preceptora dos filhos de nossos
tios Alcides e Isabel. Lindaura Campos Valadares. Minha prima, a
modista Odete, e seu marido Zé Dentista. O casal Orlando do Prado
e Maria Pompília. João Macaco, nosso “negrinho do pastoreio”. Meu
padrinho Baltazar Fonseca Melo. As irmãs Zoraíde, Maria, Mariana,
Carlota e Inês. Helena, filha de nosso ex-vaqueiro João Farias Pinho,
e Dadá, sobrinha de Eduarda, que viveram em nossa casa um tempo
como estudantes. Antoniel e sua mulher Chica. Onofre, Ondina e
Ornelina, irmãos. Meu primo Napoleão e sua mulher Marlene, ele
genealogista arinense, ela natural da vila e pertencente à domus dos
Fonseca Melo. Salustiano, o Preto Santana, ex-caminhoneiro e ex-
prefeito de Arinos. Sebastião Campos. João Barrão. Cassimiro, pri-
mogênito de seo Angêlo Bonfim. Osmar Costa Vale. Alberto Ferraz.
O engenheiro Célio Jacinto de Abreu e sua mulher Ângela Prado
Abreu. E, por fim, a meus sobrinhos José Mário e Eliane Rodrigues
Pimentel, pelo muito que ajudaram no escaneamento de antigas fo-
tografias usadas no trabalho.
Não tenho como agradecer suficientemente à boa amiga e re-
visora Edna Lúcia Rodrigues pelo trabalho de dar coerência e bri-
lho à minha escrita, na árdua tarefa de preparar os originais para a
publicação. E, por fim, para permanecer sempre lembrado, a meus
familiares, pelo tempo em que me ausentei do convívio para lembrar
e escrever.
Mas não gostaria de concluir sem antes dizer que os relatos e
interpretações que constam deste trabalho são de minha inteira res-
ponsabilidade, ainda que muitos calcados em informações recebidas
de outros pessoalmente ou através de leituras.


Goiânia, 13.8.05 a 19.6.07
Esta edição foi produzida em julho de
2007, em Goiânia. Composto na fonte
Dante MT Std. Miolo papel Pólen
80 g/m2 e capa Triplex 250 g/m2.
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Impresso na Gráfica e Editora Vieira

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