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BASES DE DADOS

GENÉTICOS FORENSES
TECNOLOGIAS DE CONTROLO
E ORDEM SOCIAL
Título

BASE DE DADOS GENÉTICOS FORENSES

1.ª Edição, Mês 2014

Autores

AA.VV.

Editor

Coimbra Editora, S.A.


Ladeira da Paula, 10
3040-574 Coimbra
Telef. (+351) 239 852 650
Fax (+351) 239 852 651
www.coimbraeditora.pt
editorial@coimbraeditora.pt

Execução gráfica

Coimbra Editora, S.A.


Ladeira da Paula, 10
3040-574 Coimbra

ISBN 978-972-32-2225-8
Depósito Legal n.º 000 000/14

Qualquer reprodução desta obra, total ou parcial, que não tenha sido previamente autorizada pelo Editor, pode
constituir crime ou infração, puníveis nos termos da legislação aplicável.
BASES DE DADOS
GENÉTICOS FORENSES
TECNOLOGIAS DE CONTROLO
E ORDEM SOCIAL

HELENA MACHADO
HELENA MONIZ
(Organizadoras)
Esta publicação foi financiada por Fundos FEDER através do Programa Operacional
Factores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT —
Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto Base de dados de perfis de
ADN com propósitos forenses em Portugal — Questões atuais de âmbito ético, prático e
político (FCOMP—01—0124—FEDER—009231)
ÍNDICE

Págs.
NOTA PRÉVIA ................................................................................................... 7
SOBRE OS AUTORES .......................................................................................... 9
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 13

PARTE I
REGULAÇÃO E DIREITO

HELENA MACHADO e SUSANA SILVA — Identidades tecnocientíficas na esfera


forense e médica: perspetivas de cidadãos sobre inserção de perfil genético
em base de dados e acerca de doação de embriões para investigação ....... 23
HELENA MONIZ — Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito compa-
rado na estrutura das soluções legais previstas na Lei n.º 5/2008, de 12
de Fevereiro ........................................................................................... 47
TAYSA SCHIOCCHET — Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos
de perfis genéticos para fins de investigação criminal no Brasil ............. 67
MARÍA JOSÉ CABEZUDO BAJO — La prueba de ADN: valoración preliminar de
la regulación Española y de la Union Europea ........................................ 103

PARTE II

GOVERNABILIDADE E MEDIAÇÕES

DANIEL MACIEL e HELENA MACHADO — Biovigilância e governabilidade nas


sociedades da informação ........................................................................ 141
CLAUDIA FONSECA — Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso
da tecnologia DNA para identificação criminal ...................................... 167

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6 Base de Dados Genéticos Forenses

PARTE III
INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Págs
FILIPE SANTOS — As funções do DNA na investigação criminal — estudo de
cinco casos em Portugal ......................................................................... 197
SUSANA COSTA — Os constrangimentos práticos da investigação criminal
em Portugal e suas repercussões na aplicabilidade da Base de Dados
de ADN ......................................................................................... 229

PARTE IV
TECNOLOGIAS NO PRESENTE, PASSADO E FUTURO

HELENA COSTA e LUÍS MIRANDA — Novas ferramentas da investigação criminal


— potencialidades e limites da previsão de caraterísticas físicas através da
análise de ADN ...................................................................................... 271
DIANA MIRANDA — O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal
em Portugal ........................................................................................... 307

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NOTA PRÉVIA

A publicação deste livro foi apoiada por Fundos FEDER através do


Programa Operacional Fatores de Competitividade — COMPETE e por
Fundos Nacionais através da FCT — Fundação para a Ciência e a Tec-
nologia (Ministério da Educação e Ciência), através do projeto Base de
dados de perfis de DNA com propósitos forenses em Portugal: questões atuais
de âmbito ético, prático e politico (POFC — COMPETE) (ref. COMPETE
FCOMP—01—0124—FEDER—009231).
As atividades deste projeto sediaram-se no Núcleo de Estudos sobre
Ciência, Economia e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Univer-
sidade de Coimbra e desenvolveram-se em parceria com o Centro de
Direito Biomédico/Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Univer-
sidade de Coimbra e o Centro de Investigação em Ciências Sociais da
Universidade do Minho.
As organizadoras agradecem o interesse manifestado pela Coimbra
Editora em publicar esta obra e o apoio à revisão editorial facultado por
Filipe Santos.

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SOBRE OS AUTORES

Cabezudo Bajo, Maria José é doutorada em Direito pela Universidade Nacional


de Educação à Distância (UNED, Madrid, Espanha) onde exerce funções de Professora
Titular de Direito Processual. Os seus interesses de investigação centram-se no inter-
câmbio e proteção de dados pessoais na União Europeia, a prova de DNA e sua eficá-
cia processual.

Costa, Helena é licenciada em Anatomia Patológica, Citológica e Tanatológica


pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde do Porto e mestre em Biologia Molecular
e Celular pela Universidade de Aveiro. É investigadora no Laboratório de Genética
Aplicada do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. Os seus interesses
de pesquisa focam-se na área da genética forense, em particular no estudo de métodos
alternativos e complementares à identificação genética e na análise das questões bioé-
ticas subjacentes à sua aplicação.

Costa, Susana é doutorada em Sociologia e investigadora permanente no Núcleo


de Economia, Ciência e Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra. Bolseira de pós-doutoramento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Tem trabalhado as questões relacionadas com a ciência e o direito, em particular, o uso
do DNA no auxílio à justiça.

Fonseca, Claudia é doutorada em Antropologia pela Universidade de Nanterre


(França), Professora colabora do Programa de Pós-Graduação de Antropologia na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil) e diretora e professora do Dou-
toramento em Antropologia Social da Universidade Nacional de San Martin (Argen-
tina). Seus interesses de pesquisa incluem organização familiar, parentesco e relações
de género, Antropologia da Ciência e Antropologia do Direito, com ênfase particular
nos temas de direitos humanos e tecnologias de governo.

Machado, Helena é doutorada em Sociologia e Professora Associada com Agre-


gação no Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
do Minho. É investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coim-

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10 Base de Dados Genéticos Forenses

bra. Os seus interesses de pesquisa centram-se nos estudos sociais da genética forense,
focando temas como os impactos culturais, políticos e éticos das bases de dados gené-
ticos forenses e a genetização das relações sociais.

Maciel, Daniel é mestre em Antropologia Médica pela Universidade de Coimbra


e é investigador colaborador no Centro em Rede de Investigação em Antropologia.
É doutorando em Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Uni-
versidade Nova de Lisboa. Os seus interesses de investigação incluem a criação, uso e
apropriação de arte; discursos, funcionamento e racionalidade institucional e também
a manutenção e negociação de relações de poder.

Miranda, Diana é licenciada em Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da


Universidade do Minho e tem uma pós-graduação em Criminologia pela Faculdade
de Direito da Universidade do Porto. É doutoranda no Centro de Investigação em
Ciências Sociais da Universidade do Minho. Os seus interesses de pesquisa centram-se
na área dos estudos sociais da ciência e tecnologia, estudos da vigilância, estudos pri-
sionais e criminalidade.

Moniz, Helena é doutorada em Direito (Ciências Jurídico-Criminais) e Professora


Auxiliar na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. É investigadora no
Centro de Direito Biomédico/Instituto Jurídico da Faculdade de Direito, da Univer-
sidade de Coimbra. Os seus interesses de pesquisa centram-se na área do Direito Penal
e do Direito Médico. Participou em diversos projetos científicos internacionais sobre
proteção de dados pessoais e dados genéticos.

Santos, Filipe é licenciado e mestre em Sociologia pelo Instituto de Ciências


Sociais da Universidade do Minho. É doutorando no Centro de Investigação em
Ciências Sociais da Universidade do Minho. Os seus interesses de investigação focam
a análise sociológica das interseções e inter-relações mediadas entre a ciência e a tec-
nologia, em particular, a construção, usos e representações das tecnologias de DNA no
âmbito da investigação criminal.

Schiocchet, Taysa é doutorada em Direito pela Universidade Federal do Paraná


(Brasil). É Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS, Brasil) e Professora Visitante da Université Paris
X (França). Líder do Grupo de Pesquisa BioTecJus. Estudos Avançados em Direito,
Tecnociência e Biopolítica na UNISINOS. Tem experiência de investigação na área
de Direito e Bioética, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos,
bioética e ética na pesquisa, biotecnologia, antropologia, estudos de género, laicidade,
criança e adolescente e povos indígenas.

Silva, Susana é doutorada em Sociologia e Investigadora Auxiliar no Departa-


mento de Epidemiologia Clínica, Medicina Preditiva e Saúde Pública da Faculdade de

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Sobre os Autores 11

Medicina da Universidade do Porto, exercendo atividade no ISPUP — Instituto de


Saúde Pública da Universidade do Porto. Na investigação privilegia o estudo dos
processos de articulação entre a medicina, direito, tecnologia e género, pelo enfoque
na compreensão pública da biotecnologia e da saúde e nos usos sociais das tecnologias
reprodutivas e genéticas.

Souto, Luís é doutorado em Ciências Biomédicas pela Universidade de Coimbra,


coordena atualmente a unidade laboratorial Laboratório de Genética Aplicada do
Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro. Tendo sido anteriormente
quadro do ex-Instituto de Medicina Legal de Coimbra, integrou a unidade de inves-
tigação CENCIFOR, Centro de Ciências Forenses, até 2013. É docente convidado
na Universidade de Aveiro, responsável pela área de Biologia e Genética Forense. Tem
desenvolvido trabalho de investigação na área da genética de populações humanas e
genética forense.

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INTRODUÇÃO

As bases de dados genéticos forenses têm criado impactos assinaláveis


nos sistemas de justiça, um pouco por todo o mundo. A partir de con-
tributos de especialistas provenientes de diferentes áreas disciplinares
— antropologia, biologia, direito e sociologia — este livro discute algu-
mas das questões éticas, jurídicas, políticas e sociais mais prementes que
estão associadas à criação, utilização e expansão deste tipo de bases de
dados. Trata-se, no entanto, de uma análise restringida a Portugal, Espa-
nha e Brasil, aqui irmanados pelo facto de todos eles terem recentemente
dado passos no sentido de criarem a sua respetiva base de dados nacional
de perfis genéticos com finalidades forenses.
Uma base de dados genéticos com finalidades forenses agrega um
conjunto de perfis genéticos que são determinados a partir de amostras
biológicas colhidas de um conjunto de indivíduos ou encontradas em
cenas de crime. Em contexto de investigação criminal, os perfis genéticos
obtidos por essas vias poderão ser comparados com os perfis já incluídos
em base de dados genéticos forense, com vista a apurar se ocorre ou não
uma correspondência positiva. O arquivamento dos perfis genéticos, e
de qualquer outro tipo de informação constante na base de dados, é
realizado em ficheiros informatizados. A utilização de bases de dados
genéticos forenses pode servir finalidades de identificação criminal e de
identificação civil. Ou seja, pode ser utilizada para diversos fins, tais
como: para identificação de autores e de vítimas de crimes, de vítimas de
catástrofes, de pessoas desaparecidas e para o estabelecimento dos laços
de parentesco entre indivíduos. As reflexões contidas neste livro focam
exclusivamente o papel das bases de dados genéticos forenses no campo
da aplicação para identificação e investigação criminal.
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14 Base de Dados Genéticos Forenses

A primeira vez que a tecnologia de análise de perfis genéticos per-


mitiu resolver um caso criminal foi em Inglaterra, com a detenção, em
1987, do assassino de duas adolescentes — Linda Mann e Dawn
Asworth — encontradas mortas, respetivamente, em 1986 e em 1983.
A polícia havia retirado amostras de sémen dos seus corpos, mas não tinha
pistas que permitissem resolver os casos. Graças à tecnologia de identi-
ficação por perfis genéticos foi possível identificar o homicida das jovens,
que veio a ser, inicialmente, sentenciado com uma pena de prisão perpé-
tua. Esta identificação criminal foi concretizada após ter sido desenca-
deado um conjunto de operações que se revelou moroso, dispendioso e
bastante polémico por implicar o envolvimento de pessoas inocentes no
curso da ação de investigação criminal: ao longo de seis meses, a polícia
procedeu à recolha de amostra de DNA (por colheita de sangue ou saliva)
junto de 5000 jovens do sexo masculino num perímetro geográfico que
se considerou abranger a zona de residência do homicida. Anos mais
tarde, em 1995, foi criada em Inglaterra a primeira base de dados de
perfis genéticos de âmbito nacional. Desde então, tem crescido expo-
nencialmente o número e a dimensão de bases de dados genéticos utili-
zadas no domínio da investigação criminal. Estima-se que existam hoje
cerca de sessenta de dados genéticos forenses operacionais (1), em diversas
partes do mundo, com maior prevalência na América do Norte e na
Europa, para além da China e da Austrália.
No momento presente, assiste-se a uma crescente expansão da apli-
cação da genética na investigação criminal e tem sido feito, a uma escala
internacional, um considerável investimento político na criação de sis-
temas de partilha de informação genética entre países, com vista a con-
trolar e a desenvolver uma maior cooperação na investigação criminal e,
em particular, no combate ao terrorismo, ao crime internacional, ao
crime organizado e à imigração ilegal. Para além das potencialidades

(1)
Não existem dados rigorosos sobre a situação concreta das bases de dados
genéticos com propósitos forenses em relação a vários países. Contudo, informação
atualizada pode ser encontrada no site da Forensic Genetics Policy Initiative, em
http://dnapolicyinitiative.org/.

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Introdução 15

evidentes da utilização da tecnologia de DNA em contexto forense, estas


têm sido potenciadas pelo imaginário coletivo que vê na obtenção de
perfis genéticos e na existência das bases de dados de DNA uma espécie
de ícone da verdade, graças ao seu poder de individualização que permite,
sob o ponto de vista biológico, que o corpo humano possa ser definido
como um corpo distinguível e único aos olhos da ciência.
Associada à ideia de verdade que a tecnologia de identificação indi-
vidual por perfis genéticos veicula, emerge a promessa de “certezas”:
certezas na identificação de autores de crime, certezas na produção de
prova em tribunal, certezas na tomada de decisão dos tribunais. Con-
tudo, a par com estas “certezas” surgem dúvidas e questionamentos,
apontados por académicos, profissionais forenses e juristas de vários
países. Sobretudo os especialistas do direito e das ciências sociais e
humanas têm debatido os potenciais benefícios e riscos da criação e
expansão de bases de dados genéticos com finalidades forenses, ponde-
rando os caminhos a trilhar na procura de um equilíbrio entre a segurança
e os direitos, liberdades e garantias. De facto, como acontece em todos
os meios de obtenção de prova que restringem direitos fundamentais do
cidadão, também as bases de dados genéticos forenses potenciam aquela
restrição — em nome da prossecução da justiça e da descoberta da ver-
dade material processualmente válida. Um aspeto importante é saber
até onde pode ocorrer aquela restrição em nome da investigação criminal
e da descoberta do autor do crime. A menos que se defenda um direito
penal do inimigo qualquer restrição de um direito fundamental de um
qualquer cidadão deve respeitar o princípio da proporcionalidade em
sentido amplo. Além disso, a utilização de bases de dados genéticos
forenses remete para outras questões sociais, culturais e políticas mais
amplas, associadas a processos de reprodução de desigualdades sociais,
discriminações étnicas e culturais e a mecanismos de controlo e de
reprodução da ordem social. O livro que tem entre mãos pretende
lançar algumas ideias e discussões sobre estas problemáticas.
Assim, o conjunto de interrogações e complexidades associadas às
bases de dados genéticos forenses, que esta publicação interpela, surge
organizado em quatro dimensões principais, que correspondem às dife-
rentes secções desta publicação: “Regulação e Direito”; “Governabilidade
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16 Base de Dados Genéticos Forenses

e Mediações”; “Investigação Criminal”; e “Tecnologias no Presente,


Passado e Futuro”.
O capítulo que inaugura este livro na secção “Regulação e Direito”,
de autoria de Helena Machado e Susana Silva, discute os processos sociais
que articulam atores humanos, instituições, materiais e artefactos bioló-
gicos, a partir de dois estudos empíricos que visam, respetivamente,
identificar as motivações de cidadãos para contribuírem para a construção
da base de dados forenses portuguesa pela doação do seu perfil genético,
e mapear as opiniões de casais envolvidos em técnicas de procriação
medicamente assistida (PMA) acerca da investigação científica com recurso
a embriões. Este texto parte do princípio de que o potencial apresentado
pelo material biológico humano para o desenvolvimento da aplicação de
técnicas de genética molecular em diferentes áreas da vida social — por
exemplo, na medicina e no combate à doença, ou no campo forense da
investigação criminal — tem criado conexões sociais ambivalentes que
articulam atores humanos, instituições e valores e normas em complexas
redes sociotécnicas e que constituem a base de construção de identidades
que estabelecem inter-relações entre o corpo molecular, as trajetórias de
vida e as identidades individuais e coletivas.
Os restantes capítulos da secção “Regulação e Direito” desenvolvem
questões jurídicas e éticas associadas ao caso de Portugal, Brasil e Espanha.
Começando pelo regime português, Helena Moniz apresenta-nos
um texto onde pretende estimular o debate relativamente a algumas
questões que têm preocupado os juristas nesta matéria: a colheita de
material biológico para obtenção do perfil genético em arguido e o
princípio da não auto-incriminação, os pressupostos formais de integra-
ção de um perfil na base, a necessidade de fundamentação do pedido de
colheita de material biológico, a admissibilidade (ou não) da colheita em
suspeito, na sua aceção no âmbito do direito processual penal, ou a
utilização desta técnica quando haja desaparecidos. Por fim, e sabendo-se
que é essencial na investigação criminal a transferência de dados entre
países, assume particular preocupação a não transposição para a ordem
interna portuguesa da decisão-quadro 2008/615/JAI, de 23 de Junho
(cujo prazo terminou em Agosto de 2011), na parte respeitante aos
perfis genéticos.
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Introdução 17

Taysa Schiocchet desenvolve, com base no sistema jurídico brasileiro,


uma reflexão sobre os possíveis riscos e benefícios, bem como os limites
e possibilidades, da utilização do DNA para fins forenses. Enfatizando
a necessidade de um olhar interdisciplinar sobre esta matéria, este capí-
tulo aborda diferentes aspetos relacionados com os impactos jurídicos e
sociais, e com o contexto jurídico-político vinculado à regulamentação
da base de dados de perfis genéticos para fins de investigação criminal
através da Lei n.º 12.654 de 2012. A autora enuncia e reflete, de forma
detalhada, sobre os desafios e tensões que se colocam pela importação
de uma tecnologia oriunda de países centrais e pela sua implantação num
país profundamente marcado por contrastes económicos e por uma
diversidade cultural, étnica e social. Como sublinha esta jurista brasileira,
torna-se imprescindível que a reflexão teórica, sobre as consequências da
interação entre direito, tecnociência e genética, seja realizada de modo
a adaptar-se às particularidades da sociedade brasileira que, sendo hoje
uma potência económica mundial, continua a deter um processo de
desenvolvimento que permanece condicionado pela desigualdade na
distribuição da riqueza.
Maria José Cabezudo-Bajo analisa, a partir da regulação deste tipo
de prova em Espanha e atendendo às principais tendências no plano
Europeu, as mais recentes controvérsias em torno da genética, no que diz
respeito aquilo que a autora designa por fiabilidade e licitude dos resul-
tados obtidos. Em particular, este capítulo analisa os seguintes aspetos
da regulação da prova genética: a falta de provisão normativa relativamente
a protocolos de atuação que garantam a fiabilidade da recolha da amostra
biológica; a inexistência de uma norma europeia que permita a obtenção
de uma amostra de DNA em contexto transfronteiriço; a definição clara
de qual a parte da sequência de DNA à qual se deve limitar a extração
lícita do perfil genético; e, por fim, a necessidade de definir qual o tipo
de informação pericial que deve ser facultada ao juiz relativamente à
aplicação do teorema de Bayes na prova genética.
A segunda parte do livro, intitulada “Governabilidade e Mediações”
apresenta, em dois capítulos, uma reflexão crítica que cruza a antropologia
e a sociologia da ciência e tecnologia com o debate em torno dos chamados
estudos da vigilância — estes últimos orientados para o mapeamento e
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18 Base de Dados Genéticos Forenses

discussão das formas de controlo e reprodução da ordem social projetadas


por dispositivos tecnológicos que são mobilizados no contexto das políticas
de segurança pública e de controlo da criminalidade da parte dos Estados
modernos. O texto de Daniel Maciel e Helena Machado procura sistema-
tizar as principais linhas orientadoras de debate em torno das questões
éticas, sociais e políticas suscitadas pela criação e expansão de bases de dados
de informação biogenética, sobre os cidadãos, orientadas para o controlo
social e a gestão do risco do crime, explorando os seguintes tópicos de
reflexão: a cientifização da justiça e do trabalho policial; a governabilidade
do risco, da tecnologia e da informação; a cultura de controlo e o conceito
de biovigilância. O texto seguinte, de Cláudia Fonseca, convoca a neces-
sidade de repensar uma série de questões importantes sobre direitos, cida-
dania e discriminação a partir de uma análise antropológica sobre a forma
como as tecnologias genéticas de identificação de indivíduos, enquanto
elementos aparentemente neutros — da ciência e da tecnologia —, provo-
cam rearranjos na maneira de pensar e lidar com questões de justiça.
Baseando-se em estudos realizados por outros autores em diferentes países,
a autora desenvolve uma reflexão em três aspetos fundamentais: (1) como
as leis e outras mediações jurídicas, no atual sistema de justiça, condicionam
os efeitos das bases de dados perfis genéticos; (2) como os perfis genéticos
operam para criar novas categorias de perceção, fabricando novos tipos de
ser humano e quais os efeitos destes novos tipos para a identidade das
pessoas; (3) e quais as “figurações” dessa tecnologia, isto é, qual a maneira
em que diferentes atores, incluindo os média, o direito, determinadas cate-
gorias profissionais e observadores críticos, angariam esforços materiais e
semióticos para produzir certa imagem da tecnologia do DNA.
A terceira secção deste livro comporta duas abordagens sociológicas
da questão da utilização da tecnologia de DNA na investigação criminal,
em Portugal. O capítulo da autoria de Filipe Santos incide sobre o papel
desempenhado pelas tecnologias de DNA em casos criminais, ampla-
mente mediatizados, que ocorreram em Portugal — procura perceber
de que modo, e para que fins, as tecnologias de DNA são utilizadas na
prossecução dos objetivos do inquérito criminal; e como é que a sua
utilização é percecionada e representada nos meios de comunicação social.
Com base na consulta de processos judiciais e na análise de notícias
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Introdução 19

publicadas na imprensa, o autor conclui que prevalece uma submissão


simbólica à supremacia da ciência e ao conhecimento produzido em
espaço laboratorial, que se joga em contínua tensão com fatores funda-
mentais na interpretação dos indícios biológicos e na resolução dos casos
criminais, tais como a experiência, o conhecimento e o trabalho dos
investigadores criminais. No texto seguinte, Susana Costa desenvolve
uma análise dos constrangimentos práticos da investigação criminal em
Portugal, e suas repercussões na utilização da base de dados nacional
forense, com base numa análise da legislação e através da realização de
entrevistas a membros dos órgãos de investigação criminal. A autora
identifica dificuldades várias na cientifização da atividade policial (tais
como a burocratização e baixa operacionalidade da base de dados gené-
ticos forense) e destaca de entre outros fatores a questão da preservação
da cadeia de custódia, cuja integridade se encontra permanentemente
ameaçada pelas práticas rotineiras dos atores da investigação criminal e
os constrangimentos que norteiam a sua atividade quotidiana.
A última secção do livro incide sobre o papel da tecnologia na inves-
tigação criminal, no passado, no presente e no futuro. O texto de Helena
Costa e Luís Miranda descreve, numa linguagem acessível a leigos, as
potencialidades e limites dos métodos de previsão de caraterísticas fenotí-
picas (por exemplo, o sexo e a cor dos olhos e do cabelo) na análise de
amostras de local de crime, ou até de corpos em avançado estado de
decomposição. Este método tem vindo a ser apresentado como podendo
potenciar a poupança de tempo e outros recursos importantes para as
investigações por permitir limitar as possibilidades a considerar no âmbito
de uma identificação. Não obstante os autores destacarem a elevada
potencialidade, presente e futura, do método de previsão de características
físicas, salientam que é imprescindível acautelar as questões éticas, legais e
técnicas subjacentes ao uso destas metodologias, e que este tipo de prova
nunca pode ser usado para condenar ninguém, apenas para restringir o
número de suspeitos a considerar. O livro finaliza com o texto de Diana
Miranda, que apresenta uma análise da evolução histórica da utilização da
tecnologia e da ciência nos métodos de identificação criminal em Portugal.
A autora desenvolve com detalhe o trajeto evolutivo das práticas de iden-
tificação criminal, desde a criação de registos criminais com descrições
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20 Base de Dados Genéticos Forenses

físicas, medições antropométricas e impressões digitais, até às mais recen-


tes tecnologias biométricas, como é o caso do recurso ao DNA. Trata-se,
no fundo, de identificar, no período compreendido entre o século XIX e
o século XXI, mais continuidades do que descontinuidades na utilização
de instrumentos de identificação criminal e formas de individualização e
nos mecanismos de vigilância e controlo estatal que se legitimam por via
da autoridade epistémica da ciência.
Em suma, este livro ambiciona proporcionar um contributo inova-
dor para o debate em torno das incertezas, inquietudes e complexidades
que as bases de dados genéticos forenses podem suscitar, ao procurar
responder a duas interpelações fundamentais: em primeiro lugar, ao
desafio da necessidade de produção de conhecimento multidisciplinar e
intercultural em torno dos impactos e consequências da criação, utiliza-
ção e expansão deste tipo de base de dados. Em segundo lugar, à neces-
sidade de consolidar uma reflexão crítica em torno da conciliação e
equilíbrio entre o inegável valor das bases de dados genéticos forenses
na investigação criminal e a ponderação dos riscos; riscos que se colocam
em termos de direitos humanos, mas também no plano da reprodução
de desigualdades sociais e da discriminação social e étnica; sem deixar
de refletir ponderar a vertente do reforço de mecanismos de vigilância
do Estado e de consolidação de processos técnico-científicos e jurídicos
de categorização moral e cultural dos cidadãos.
Para finalizar, salientamos que a presente publicação integra reflexões
e olhares construídos por especialistas provenientes de países muito
diversos — com diferentes estruturas organizacionais de investigação do
crime, com diferentes culturas judiciárias e práticas policiais, com his-
tórias de governabilidade de tecnologia e níveis de confiança pública
bastante distintas. O enquadramento destas reflexões conduz-nos a
questionar se as inquietudes e incertezas associadas à utilização de bases
de dados genéticos forenses não se agudizarão nos países que incorporam
mais tardiamente a utilização deste tipo de instrumento…

HELENA MACHADO e HELENA MONIZ

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PARTE I

REGULAÇÃO E DIREITO
IDENTIDADES TECNOCIENTÍFICAS
NA ESFERA FORENSE E MÉDICA: PERSPETIVAS
DE CIDADÃOS SOBRE INSERÇÃO DE PERFIL GENÉTICO
EM BASE DE DADOS E ACERCA DE DOAÇÃO
DE EMBRIÕES PARA INVESTIGAÇÃO

HELENA MACHADO
SUSANA SILVA

1. INTRODUÇÃO

O material biológico humano e o seu potencial para o desenvolvi-


mento da investigação científica e da aplicação de técnicas de genética
molecular em diferentes áreas da vida social — por exemplo, na medicina
e no combate à doença, ou no campo forense da investigação criminal —
tem criado conexões sociais ambivalentes que articulam atores humanos,
instituições e valores e normas em complexas redes sociotécnicas e que
constituem a base de construção de identidades que estabelecem
inter-relações entre o corpo molecular, as trajetórias de vida e as identi-
dades individuais e coletivas (Hauskeller, 2006).
Diferentes modalidades de construção de identidades e subjetivida-
des têm resultado da aplicação de meios tecnocientíficos a produtos direta
ou indiretamente extraídos do corpo humano como o sangue, amostras
de DNA, gâmetas ou embriões. Referimo-nos, por exemplo, a identi-
dades médicas associadas a indivíduos/grupos classificados como saudáveis
ou (potencialmente) doentes; a identidades cívicas baseadas em movi-
mentos sociais e associações de doentes; a identidades coletivas ligadas à
Regulação e direito Coimbra Editora ®
24 Helena Machado / Susana Silva

origem genética e traduzidas na ideia de ‘raça’ ou ‘etnia’; identidades


suspeitas relacionadas com indivíduos ou grupos identificados como tendo
uma probabilidade elevada de cometer crimes; e identidades relacionais
que se consubstanciam na articulação entre laços biogenéticos e relações
afetivas e emocionais (Machado e Silva, 2011).
O nosso objetivo é analisar, para o caso português, as identidades
tecnocientíficas que emergem de representações sociais e expectativas
sobre a inserção de perfil genético em base de dados forense e acerca da
doação de embriões para investigação científica manifestadas por cidadãos
que participaram em dois estudos coordenados pelas autoras, que tinham
em comum a pretensão de mapear modalidades de compreensão pública
da ciência e tecnologia. Com base em inquéritos, nestes estudos reco-
lheu-se informação, respetivamente, sobre as opiniões de cidadãos acerca
da base de dados nacional forense com propósitos de identificação civil
e criminal (1) e sobre as opiniões de casais envolvidos em técnicas de
procriação medicamente assistida (PMA) acerca da investigação científica
com recurso a embriões (2).
Os processos sociais que articulam atores humanos, instituições,
materiais e artefactos biológicos (no caso em análise, perfis genéticos
inseridos em base de dados forense e embriões criopreservados que podem

(1)
O projeto Base de dados de perfis de DNA com propósitos forenses em Portugal:
questões de âmbito ético, prático e politico (FCOMP—01—0124—FEDER—009231),
coordenado por Helena Machado e sediado no Centro de Estudos Sociais da Univer-
sidade de Coimbra, foi financiado por Fundos FEDER através do Programa Opera-
cional Fatores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da
FCT — Fundação para a Ciência e Tecnologia. Colaborou na recolha e análise de
dados Daniel Maciel.
(2)
O projeto Saúde, governação e responsabilidade na investigação em embriões: as deci-
sões dos casais em torno dos destinos dos embriões (FCOMP—01—0124—FEDER—014453),
coordenado por Susana Silva e sediado no Instituto de Saúde Pública da Universidade do
Porto (ISPUP), foi financiado por Fundos FEDER através do Programa Operacional
Fatores de Competitividade — COMPETE e por Fundos Nacionais através da FCT —
Fundação para a Ciência e Tecnologia. Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética
do Hospital de S. João. Colaboraram na recolha e análise de dados Catarina Samorinha
e Sandra Sousa.

Coimbra Editora ® Parte I


Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 25

ser doados para investigação) são aqui discutidos em dois contextos que,
embora distintos, partilham vários elementos: incluem o envolvimento
dos cidadãos com a ciência e a tecnologia e relacionam-se com fenóme-
nos que têm sido enquadrados por cientistas, políticos e diferentes
especialistas como campos promissores para a construção de um futuro
melhor, seja pelo combate mais eficaz ao crime por via da expansão e
utilização crescente de uma base de dados genéticos com propósitos
forenses, seja pelo desenvolvimento da investigação científica com recurso
a embriões que poderá possibilitar novas terapias ou melhorar a eficácia
das opções terapêuticas disponíveis.
Neste texto analisam-se as respostas às seguintes questões colocadas,
respetivamente, nos referidos inquéritos: aceitaria ter o seu perfil genético
individual numa base de dados forense (sim, não, talvez) e porquê (ques-
tão aberta); consentiria o uso dos seus embriões em projetos de investi-
gação científica (sim, não, não responde); qual a principal razão passível
de justificar a doação ou não doação de embriões para investigação
científica (questão aberta). As respostas obtidas foram sistematicamente
codificadas e sintetizadas por categorias e registou-se a respetiva frequên-
cia, de acordo com o protocolo estabelecido por Stemler (2001) para a
análise de conteúdo temática. Obteve-se um nível de concordância total
e todas as dúvidas foram resolvidas através de discussão conjunta até se
obter consenso.
Das identidades tecnocientíficas que podem ser construídas a
partir da análise das respostas a estas questões emergem subjetividades
assentes na negociação de sentido atribuído aos genes, ao seu próprio
material biológico e aos seus embriões, mas também em conexões com
configurações de direitos civis e interpretações de responsabilidade
individual e coletiva em matérias de saúde, de solidariedade e de com-
bate ao crime. Essas subjetividades têm sido designadas por cidadania
biológica (Rose e Novas, 2005; Rose, 2007), cidadania genética ou
cidadania biopolítica (Heath et al., 2004; Gibbon e Novas, 2008), na
medida em que se enquadram na perceção de direitos e responsabili-
dades associados a riscos e benefícios, individuais e públicos, decor-
rentes do uso de material biológico humano pela tecnociência (Einsie-
del, 2009: 193-194).
Regulação e direito Coimbra Editora ®
26 Helena Machado / Susana Silva

Logo, as questões que orientam a nossa análise são as seguintes: de


que forma as identidades tecnocientíficas manifestadas nas respostas dos
inquiridos se relacionam com identidades individuais e coletivas? Como
é que os cidadãos se situam perante as promessas de elevadas expectati-
vas (combate ao crime, combate à doença) que são prometidas por estas
tecnologias inovadoras? Como é que os participantes avaliam os riscos
e benefícios associados a estas tecnologias e como é que essa avaliação
pode produzir implicações nas respetivas representações sociais sobre os
seus próprios direitos e deveres enquanto cidadãos?

2. LEGISLAÇÃO, REGULAÇÃO SOCIAL E O DADOR SUPER-


-CIDADÃO

A regulação da recolha de material biológico e de informação gené-


tica tem sido pautada, em Portugal, por um conjunto de normas e valo-
res assentes na importância do consentimento informado e livre dos
cidadãos, na responsabilidade individual para o bem comum e na ênfase
colocada nas noções de dádiva e altruísmo de cidadãos voluntários que
facultam células, tecidos ou órgãos humanos (Machado e Silva, 2008;
Silva e Machado, 2009). Nesta secção descrevemos alguns aspetos da lei
que em Portugal regula a recolha, armazenamento e processamento de
informação genética com objetivos forenses (para identificação civil e
criminal) e da lei que regula a aplicação de técnicas de procriação medi-
camente assistida e a investigação com embriões humanos, que ilustram
o alinhamento com normatividades assentes nas ideias de voluntariedade
cidadã e na responsabilidade individual de contribuir para o bem comum,
por via da ajuda à ciência e tecnologia através da doação de material
biológico ou embriões.
A 21 de março de 2005, o então recém-eleito governo Socialista
anunciou a intenção de criar uma base de dados genéticos de toda a
população para efeitos de identificação civil que poderia também ser
usada no trabalho de investigação criminal. Este plano de criação de
uma base universal de dados genéticos com finalidades de identificação
civil e criminal foi enquadrado pelo governo num conjunto de várias
estratégias para melhorar a justiça em Portugal, sendo perspetivado como
Coimbra Editora ® Parte I
Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 27

parte de diversas medidas concebidas para ‘tornar mais eficaz o combate


ao crime e a justiça penal’ respeitando as garantias de defesa do arguido
(Programa do XVII Governo de Portugal, 2005).
Esta proposta nunca chegou a concretizar-se e, na realidade, a Lei
n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, que veio a criar a base de dados nacional
forense com objetivos de identificação civil e criminal é das mais restri-
tivas da Europa (Machado et al., 2011; Machado, 2011) no que diz
respeito aos critérios de inserção e manutenção de perfis genéticos. Ao
contrário das bases de dados de perfis genéticos recorrentemente apon-
tadas como casos de sucesso na área forense — como as da Áustria,
Escócia, Inglaterra e Irlanda do Norte, em que os perfis de indivíduos
condenados podem ser conservados indefinidamente, o que também
acontece nos casos de simples suspeitos, mesmo após a sua ilibação, em
Inglaterra e Irlanda do Norte —, em Portugal adotou-se uma solução
de caráter restritivo: apenas se inserem os perfis de indivíduos condena-
dos por crime doloso a pena concreta de prisão igual ou superior a três
anos (ainda que tenha sido substituída) e desde que haja despacho do
juiz de julgamento determinando aquela inserção (n.º 2 do art. 8.º) e
os perfis são removidos na mesma data em que se procede ao cancela-
mento definitivo das respetivas decisões no registo criminal (n.º 1, al. f ),
do art. 26.º).
A ideia de criação de uma base de dados genéticos universal dei-
xou, contudo, a sua marca. O legislador optou por incluir o cidadão
voluntário ao estipular no art. 6.º a possibilidade de construção da
base de dados forense a partir de voluntários que, de forma “livre e
informada”, aceitem doar a sua “impressão digital genética”. O volun-
tário deverá dirigir, por escrito, o seu pedido de recolha às entidades
competentes para a análise laboratorial da respetiva amostra (o Labo-
ratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária e o Instituto Nacio-
nal de Medicina Legal), o que simbolicamente significa a maximização
da sua liberdade, autonomia e sentido de bem comum, tornando-se
num super-cidadão, coadjuvante da super-ciência que tem como mis-
são combater o crime.
A imagem do cidadão empenhado no bem comum, comprometido
em apoiar a ciência e a tecnologia na sua missão de trazer benefícios para
Regulação e direito Coimbra Editora ®
28 Helena Machado / Susana Silva

a sociedade também surge reproduzida na lei portuguesa que regula a


aplicação de técnicas de PMA, publicada em 2006 (Lei n.º 32/2006), e
que permite a investigação com recurso a embriões não criados delibe-
radamente para esse propósito. A realização de tais estudos carece da
autorização do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida
(CNPMA) e da convicção de que os seus resultados possam originar
benefícios, presentes e futuros, para a humanidade. Tais benefícios
podem incluir propostas de intervenção clínica inovadoras passíveis de
serem aplicadas a problemas de saúde como o transplante de órgãos e o
tratamento de desordens neurodegenerativas (como Parkinson, Alzheimer
e esclerose múltipla) e doenças crónicas e cardíacas (Gottweis et al., 2009;
Lynch, 2009; Prainsack et al., 2008), assim como na melhoria do sucesso
e da qualidade dos tratamentos de fertilidade.
Em Portugal, os casais com embriões criopreservados têm que
assinar um consentimento expresso, informado e consciente, cujo modelo
atual foi aprovado pelo CNPMA em Junho de 2013, escrevendo “sim”
ou “não” no retângulo colocado à frente da seguinte afirmação: “Con-
sentimos no uso dos nossos embriões em projetos de investigação
científica” (CNPMA, 2013). Logo, para além da existência de centros
e de equipas de investigação e de políticas que permitam a investigação
com recurso a embriões, esta também depende da decisão de cidadãos
que consintam a doação dos seus embriões para uma super-ciência que
visa combater a doença.
Porém, a obrigatoriedade de obtenção de um consentimento infor-
mado por parte dos casais com embriões criopreservados quanto à
doação dos mesmos para investigação científica poderá registar alterações
a breve trecho. No dia 24 de fevereiro de 2011, o Conselho de Minis-
tros aprovou um regime de utilização de células estaminais de origem
humana para fins de investigação científica que previa a criação de um
sistema de informação para os dadores de embriões idêntico ao sistema
dos dadores de órgãos biológicos (Firmino, 2011). Logo, partiu-se do
princípio de que os casais que recorrem à PMA em Portugal querem
doar os seus embriões para investigação científica e, como tal, quem
não o quiser fazer terá que o declarar expressamente. Desta forma, o
enquadramento legislativo português poderá deixar de privilegiar os
Coimbra Editora ® Parte I
Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 29

destinos dos embriões que envolvem um projeto parental a favor da


investigação com recurso aos mesmos, alteração com eventuais impli-
cações nas decisões dos casais sobre o destino dos embriões criopreser-
vados (Silva et al., 2011).
Poder-se-á vislumbrar nestas normatividades pautadas pelo conceito
de voluntário e de cidadão-dador a emergência de uma nova moralidade
que “obriga” os super-cidadãos a proporcionar dádivas para as super-
-ciências forenses e médicas orientadas para o bem comum (Rose e
Novas, 2005), seja sob a forma de perfil genético destinado a investi-
gar a criminalidade, seja pela doação de embriões criopreservados para
projetos de investigação científica? Como se conjuga a proteção dos
direitos individuais, da liberdade, autonomia e privacidade com o
‘dever’ de doar material biológico e consentir a entrada do respetivo
perfil genético na base de dados forense ou no ‘dever’ de doar os seus
embriões para colaborar com a investigação científica destinada a
melhorar a saúde?
A promoção do sentido de responsabilidade individual na manu-
tenção da ordem social, quer pela doação de uma amostra biológica do
próprio corpo, cuja análise se destina a ser incorporada numa base de
dados de perfis genéticos que pretende combater o crime, quer pela
doação de embriões para combater a doença, pode ser perspetivada como
uma nova forma de reproduzir as distinções sociais entre os cidadãos
respeitáveis e altruístas e os cidadãos suspeitos e egoístas? De que forma
as expectativas dos cidadãos se entrecruzam com modalidades de con-
fiança pública nas instituições do sistema de justiça e da medicina e se
articulam com representações sociais relativas a crenças no poder da
ciência para combater dois dos principais males que afetam as sociedades:
o crime e a doença.
Sendo ainda escasso em Portugal o conhecimento científico das
expectativas e representações sociais dos cidadãos relativamente à doação
de perfil genético para inserção na base de dados nacional forense
(Machado e Silva, 2014) e à doação de embriões criopreservados para
investigação (Silva, Samorinha e Machado, 2013; Silva et al., 2013), o
presente texto sistematiza alguns dados recolhidos pelas autoras, anali-
sando-os à luz das principais identidades tecnocientíficas que emergem
Regulação e direito Coimbra Editora ®
30 Helena Machado / Susana Silva

das interseções entre cidadania biopolítica, confiança pública e volunta-


riedade em Portugal nos dois contextos supramencionados.

3. MOTIVAÇÕES PARA ACEITAR OU NÃO ACEITAR DOAR O PER-


FIL GENÉTICO PARA A BASE DE DADOS NACIONAL FORENSE

As bases de dados genéticos forenses podem ser muito úteis nas


atividades de investigação criminal e na aplicação da justiça, mas a sua
utilização suscita questões éticas, sociais e políticas diversas e complexas
que, do nosso ponto de vista, devem ser equacionadas no quadro de um
envolvimento adequado de vários atores sociais, nomeadamente legisla-
dores, operadores judiciários, peritos forenses, políticos, mas também
cidadãos comuns. Comparando os resultados obtidos sobre as opiniões
e experiências públicas relativamente à utilização de bases de dados
genéticos forenses em Espanha (Gamero et al., 2007; Gamero et al.,
2008) Estados Unidos da América (Dundes, 2001) e Reino Unido
(Wilson-Kovacs et al., 2012; Anderson et al., 2011; Human Genetics
Commission, 2008, 2009) verifica-se consenso em torno dos seguintes
tópicos: receio de que a informação genética seja acedida por entidades
externas e estranhas às atividades de investigação criminal, em particular
seguradoras e agentes movidos por intuitos comerciais; apoio à inserção
de perfis genéticos de condenados por crimes graves neste tipo de bases
de dados; e crença generalizada na tecnologia de DNA como um ins-
trumento que pode tornar a investigação criminal mais eficaz.
Com o intuito de contribuir para um debate alargado e multifacetado
em torno dos potenciais benefícios e riscos das bases de dados genéticos
com propósitos forenses, identificaremos, de seguida, algumas das tendên-
cias das perspetivas públicas em Portugal relativas à criação, regulação e
utilização deste tipo de bases de dados. Para tal, baseamo-nos nos resul-
tados apurados pela aplicação de questionários online a uma amostra não
representativa de 628 portugueses, cujos procedimentos de recrutamento
e seleção, assim como de recolha dos dados, foram já descritos (Machado
e Silva, 2014). A maioria dos participantes era do sexo feminino (69,3%)
e tinha um diploma do ensino superior (82,9%). Cerca de metade dos
inquiridos tinha menos de 30 anos (50,3%) (Tabela 1).
Coimbra Editora ® Parte I
Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 31

Tabela 1
Características dos participantes

Frequência n(%)
Sexo
Feminino 435 (69,3)
Masculino 193 (30,7)
Idade (anos)
<30 316 (50,3)
30-35 101 (16,1)
>35 211 (33,6)
Nível de escolaridade
≤ 12.º ano 109 (17,4)
Ensino superior 519 (82,6)

Na tabela 2 descrevem-se os motivos mencionados pelos participan-


tes para aceitar, talvez aceitar ou recusar a inserção do próprio perfil na
base de dados criminal. Quase metade dos participantes (46,5%) acei-
taria a inserção do seu próprio perfil na base de dados, enquanto 30,3%
responderam “talvez” e 23,2% recusariam.
Os participantes que mencionaram aceitar ou recusar a inclusão do
seu perfil genético na base de dados justificaram as suas respostas sobre-
tudo com razões ligadas à categoria “O cidadão cumpridor da lei” (45,9%
e 59,6%, respetivamente), a qual assenta numa categorização moral que
distingue entre cidadãos “suspeitos” e cidadãos que cumprem a lei e que
não cometerão crimes e que, por isso, aceitariam de bom grado doar o
seu perfil genético para inserção na base de dados criminal. Os motivos
relacionados com questões de “regulação e direitos humanos” foram mais
frequentemente apontados pelos indecisos (40,5% vs 27,4% dos que
recusariam e 24,0% dos que aceitariam). Os “benefícios societais” cons-
tituem o terceiro grupo de argumentos apresentado por aqueles que
aceitaram (22,9%), ou talvez aceitassem (11,1%) serem incluídos na base
Regulação e direito Coimbra Editora ®
32 Helena Machado / Susana Silva

de dados, argumentos que nunca foram utilizados por aqueles que recu-
saram a inserção.
Os motivos mais frequentemente apontados para aceitar a inserção
do próprio perfil genético na base de dados criminal surgem associados
tanto a uma tónica de caracterização moral que distingue os cidadãos
cumpridores da lei (aqueles que “não devem, não temem”) dos cidadãos
“suspeitos”, como a valores de altruísmo e de responsabilidade individual
em contribuir para o bem coletivo — expressos em respostas que acen-
tuam que doar o próprio perfil pode ajudar a justiça e o combate ao crime
ou que é um dever de todo o cidadão. A convicção de que aceitar a
inserção do próprio perfil genético é algo que serve os interesses da socie-
dade foi ainda expressa, entre aqueles que aceitariam, pela ideia de que
todos os cidadãos deveriam estar na base de dados genéticos com propó-
sitos forenses.
O desconhecimento sobre o tipo de regulação, a falta de con-
fiança quanto ao controlo que é feito no acesso à base de dados e ao
uso dos dados genéticos e a falta de informação sobre a base de dados
foram algumas das razões mais invocadas pelos indecisos. Os que
recusariam reportaram mais frequentemente um distanciamento rela-
tivamente à população envolvida em atividades criminais, a falta de
confiança no acesso e no uso dos dados genéticos e a convicção de
que a inserção do perfil genético na base de dados constituiria uma
violação da privacidade.

Tabela 2
Motivos para aceitar, talvez aceitar ou recusar a inserção do próprio
perfil na base de dados criminal, por tipo de predisposição

Talvez
Aceitar aceitar Recusar
n=292 n=190 n=146
n (%) n (%) n (%)
O cidadão cumpridor da lei 134 (45,9) 62 (32,6) 87 (59,6)
Não sou criminoso 4 (1,4) 16 (8,4) 87 (59,6)
Para ajudar no combate ao crime 61 (20,9) 31 (16,3) 0 (0,0)

Coimbra Editora ® Parte I


Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 33

Talvez
Aceitar aceitar Recusar
n=292 n=190 n=146
n (%) n (%) n (%)
Quem não deve, não teme 53 (18,2) 9 (4,7) 0 (0,0)
É o dever do cidadão (contribuir) 16 (5,5) 6 (3,2) 0 (0,0)
Regulação e direitos humanos 70 (24,0) 77 (40,5) 40 (27,4)
Todos deveriam estar na base de dados 68 (23,3) 3 (1,6) 0 (0,0)
Depende do tipo de regulação 2 (0,7) 48 (25,3) 3 (2,1)
Falta de controlo no uso e acesso 0 (0,0) 22 (11,6) 20 (13,7)
É uma violação da minha privacidade 0 (0,0) 4 (2,1) 17 (11,6)
Benefícios societais 67 (22,9) 21 (11,1) 0 (0,0)
Para a minha proteção e da sociedade 23 (7,9) 8 (4,2) 0 (0,0)
Para uma justiça mais eficaz 23 (7,9) 5 (2,6) 0 (0,0)
Útil na identificação criminal e civil 17 (5,8) 7 (3,7) 0 (0,0)
Para pesquisa científica 4 (1,4) 1 (0,5) 0 (0,0)
Outros motivos 4 (1,4) 18 (9,5) 12 (8,2)
Preciso de mais informação 1 (0,3) 13 (6,8) 2 (1,4)
Usos incorretos na justiça criminal 0 (0,0) 2 (1,1) 5 (3,4)
É inútil 0 (0,0) 2 (1,1) 5 (3,4)
É igual à impressão digital 3 (1,0) 1 (0,5) 0 (0,0)
Sem resposta 17 (5,8) 12 (6,3) 7 (4,8)

4. MOTIVAÇÕES PARA ACEITAR OU NÃO ACEITAR DOAR


EMBRIÕES PARA INVESTIGAÇÃO

Políticos, investigadores e cientistas tendem a depositar elevadas


expectativas no poder regenerador e curativo das células estaminais
embrionárias, muitas vezes percepcionadas como “super-heróis” contem-
porâneos (Burns, 2009) capazes de melhorar a satisfação dos profissionais
de saúde e doentes e de solidificar a confiança pública na ciência, tec-
nologia e medicina (Genuis, 2008). Na sustentação de tais expectativas
Regulação e direito Coimbra Editora ®
34 Helena Machado / Susana Silva

podem mascarar-se questões sociais, éticas e científicas controversas, tais


como: a submestimação do conhecimento existente sobre a prevenção
de doenças; o debate sobre a aceitabilidade social e moral da investigação
em embriões de origem humana e a correspondente atribuição de paten-
tes; a mercadorização de tecidos humanos e células estaminais embrio-
nárias, assim como a instrumentalização de mulheres e homens como
fontes de embriões; o turismo científico e eventual competição jurisdi-
cional; o acesso diferenciado às terapias resultantes dessa investigação; e
a escassez de envolvimento dos públicos nos processos de decisão (Alves
et al. 2013).
Na realidade, as motivações e expectativas de quem aceitou ou não
aceitou doar embriões para investigação científica só muito recentemente
começaram a ser analisadas em países como os EUA, Canadá, Austrália,
Bélgica e Reino Unido, mas em Portugal esta temática ainda não foi
explorada (Silva et al., 2012). Tais estudos realçam as seguintes motiva-
ções por parte de quem aceitou doar os seus embriões para uso em
projetos de investigação: 1) o interesse em contribuir para o desenvolvi-
mento científico e a percepção de que essa será a melhor alternativa para
evitar a destruição dos embriões (Haimes et al., 2008; Haimes e Taylor,
2009; Hammarberg e Tinney, 2006; Lyerly et al., 2006; Mitzkat et al.,
2010; Zweifel et al., 2007); 2) ter confiança na equipa médica (Lyerly
et al., 2006; Nachtigall et al., 2010), a sensação de reciprocidade (de
Lacey, 2005; McMahon et al., 2000) e altruísmo (Lyerly et al., 2006;
Zweifel et al., 2007) e poder atribuir utilidade a embriões classificados
como de “má qualidade” e não transferidos para o útero (Haimes et al.,
2008; Haimes e Taylor, 2009; Mitzkat et al., 2010); 3) a perceção de
que o embrião não é uma pessoa (Haimes et al., 2008), ter concretizado
o desejo de ter um filho (Choudhary et al., 2004) e ter um familiar
doente que poderá beneficiar dos avanços na investigação científica
(Zweifel et al., 2007).
Também de acordo com estes estudos, quem decidiu não doar
embriões para investigação usou os seguintes argumentos: 1) a convicção
de que o embrião é uma potencial criança e/ou filho que deve ser tratado
com dignidade (Bjuresten e Hovatta, 2003; Hammarberg e Tinney, 2006;
Laruelle e Englert, 1995; Lyerly et al., 2006) e destinado à utilização
Coimbra Editora ® Parte I
Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 35

exclusiva de quem lhe deu origem (Haimes et al., 2008; Haimes e Taylor,
2009; Hill e Freeman, 2011; Mitzkat et al., 2010); 2) a falta de confiança
na ciência e/ou nos médicos e investigadores (Choudhary et al., 2004;
Lyerly et al., 2006; McMahon et al., 2000; Nachtigall et al., 2010), assim
como o desconhecimento acerca dos objetivos dos projetos de investi-
gação (Laruelle e Englert, 1995; Mitzkat et al., 2010); 3) a preferência
pela doação de embriões a outro casal (Hammarberg e Tinney, 2006;
Hill e Freeman, 2011), a discordância entre os membros do casal quanto
à doação de embriões para investigação científica e ainda motivos rela-
cionados com crenças religiosas (Choudhary et al., 2004).
Entre 17 de agosto de 2011 e 16 de agosto de 2012, duas entrevis-
tadoras administraram 313 questionários junto de 221 casais heterosse-
xuais e de 92 mulheres envolvidos em fertilização in vitro ou injeção
intracitoplasmática de espermatozoides na Unidade de Medicina da
Reprodução de um Hospital público português sobre as suas decisões
quanto ao destino dos embriões criopreservados, obtendo-se uma pro-
porção de participação de 96%. A idade, o nível de escolaridade e o
estatuto profissional dos participantes estão descritos na tabela 3.
A maioria estava empregada (80,7%) e 40,8% tinham mais de 35 anos.
Pouco mais de um quarto dos participantes declarou ter o ensino supe-
rior (28,1%).

Tabela 3
Características dos participantes

Frequência n(%)
Sexo
Feminino 313 (58,6)
Masculino 221 (41,4)
Idade (anos)
<30 57 (10,7)
30-35 259 (48,5)
>35 218 (40,8)

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36 Helena Machado / Susana Silva

Frequência n(%)
Nível de escolaridade
≤ 12.º ano 384 (71,9)
Ensino superior 150 (28,1)

Nas tabelas 4 e 5 descreve-se o principal motivo mencionado pelos


participantes para consentir ou não consentir o uso dos próprios embriões
em projetos de investigação científica, de acordo com a respetiva decisão
nesta matéria. A grande maioria dos participantes (84,6%) consentiria o
uso dos seus embriões em investigação, enquanto 12,0% não o faria.
Os casais envolvidos em técnicas de PMA, quer os que aceitariam,
quer os que rejeitariam o uso dos seus embriões em investigação, sublinha-
ram a ética da responsabilidade individual para alcançar os “benefícios
societais” que resultarão da investigação com recurso a embriões de origem
humana, expressa na invocação dos seus contributos para o desenvolvimento
científico e para a melhoria dos tratamentos de PMA como a principal
razão que justifica a doação de embriões para tal finalidade (soma das duas
categorias: 66,6% e 51,5%, respetivamente). O “cidadão coadjuvante da
ciência” que pretende “ajudar os outros” constitui o terceiro argumento
apresentado por aqueles que aceitariam (19,5%) ou recusariam (15,6%) o
uso dos próprios embriões em projetos de investigação (Tabela 4).

Tabela 4
Motivos para consentir o uso dos próprios embriões em investigação
científica, segundo a decisão dos participantes a este respeito

Doação de embriões para investigação


Sim Não Não responde
n=452 n=64 n=18
n (%) n (%) n (%)
Benefícios societais 321 (71,0) 37 (57,7) 13 (72,2)
Para que a ciência possa evoluir 145 (32,1) 20 (31,2) 6 (33,3)
Para melhorar os tratamentos (de PMA) 156 (34,5) 13 (20,3) 7 (38,9)

Coimbra Editora ® Parte I


Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 37

Doação de embriões para investigação


Sim Não Não responde
n=452 n=64 n=18
n (%) n (%) n (%)
Para melhorar a saúde humana 20 (4,4) 4 (6,2) 0 (0,0)
O cidadão coadjuvante da ciência 111 (24,6) 15 (23,4) 2 (11,1)
Se estão a usufruir
19 (4,2) 2 (3,1) 0 (0,0)
da ciência, devem contribuir
Para ajudar os outros 88 (19,5) 10 (15,6) 2 (11,1)
Personalidade ou educação 4 (0,9) 3 (4,7) 0 (0,0)
Outros motivos 14 (3,1) 5 (7,8) 1 (5,6)
O casal não querer mais filhos 3 (0,7) 2 (3,1) 0 (0,0)
Dar utilidade aos embriões 7 (1,5) 0 (0,0) 0 (0,0)
Conhecer a valorizar
4 (0,9) 3 (4,7) 1 (5,6)
a investigação em embriões
Sem resposta 6 (1,3) 7 (10,9) 2 (11,1)

Já as motivações reportadas pelos participantes para não doar embri-


ões para investigação diferem segundo a sua decisão a este respeito.
Razões como a “falta de informação” acerca dos projetos que pretendem
usar os embriões (28,1%), a convicção de que o embrião “é um filho”
(21,9%) e o facto de o embrião “ser necessário para o próprio casal”
(15,6%) foram mais frequentemente apontadas pelos inquiridos que não
aceitariam doar os seus embriões para investigação (soma destas catego-
rias: 65,6% versus 26,1% entre os que aceitariam). O “cidadão não
coadjuvante da ciência”, seja por “questões religiosas” (17,3%), por ego-
ísmo (13,3%) ou por “personalidade ou educação” (7,5%), constitui o
principal grupo de argumentos apresentado por aqueles que consentiriam
no uso dos seus embriões em investigação (38,1% versus 12,5% entre
os que não consentiriam) (Tabela 5).
Os motivos apontados para consentir ou não o uso dos próprios
embriões em investigação científica surgem associados tanto a uma
tónica de caracterização moral que distingue, por um lado, os cidadãos
altruístas (aqueles que doariam “para ajudar os outros” e alcançar
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38 Helena Machado / Susana Silva

“benefícios sociais) dos cidadãos “egoístas” e, por outro lado, os embri-


ões considerados como “filhos” dos outros embriões, como ao nível de
confiança depositado na comunidade e nas instituições científicas,
expresso em respostas como o “receio do que pode acontecer aos
embriões” e a (in)disponibilidade de informação sobre a investigação
em embriões.

Tabela 5
Motivos para não consentir
o uso dos próprios embriões em investigação científica,
segundo a decisão dos participantes a este respeito

Doação de embriões para investigação


Não
Sim Não responde
n=452 n=64 n=18
n (%) n (%) n (%)
O cidadão não coadjuvante da ciência 172 (38,1) 8 (12,5) 3 (16,7)
Questões religiosas 78 (17,3) 1 (1,6) 2 (11,1)
Egoísmo 60 (13,3) 4 (6,2) 0 (0,0)
Personalidade ou educação 34 (7,5) 3 (4,7) 1 (5,6)
Falta de informação e desconfiança 134 (29,7) 24 (37,5) 7 (38,9)
Falta de informação (sobre a investigação) 65 (14,4) 18 (28,1) 5 (27,8)
Receio do que pode acontecer aos embriões 69 (15,3) 6 (9,4) 2 (11,1)
Estatuto do embrião 58 (12,8) 18 (28,1) 3 (16,7)
Pensar que já está ali uma vida 23 (5,1) 4 (6,2) 1 (5,6)
Considerar que (o embrião) é um filho 35 (7,7) 14 (21,9) 2 (11,1)
Outros motivos 43 (9,5) 10 (15,6) 2 (11,1)
(O embrião) Ser necessário
18 (4,0) 10 (15,6) 2 (11,1)
para o próprio casal
Desacordo entre o casal 11 (2,4) 0 (0,0) 0 (0,0)
Não vejo qualquer explicação 14 (3,1) 0 (0,0) 0 (0,0)
Sem resposta 45 (10,0) 4 (6,2) 3 (16,7)

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Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 39

5. CONCLUSÃO: MODALIDADES DE PRAGMATISMO GENÓ-


MICO CÍVICO

A reflexão que aqui se apresenta contribui para robustecer a convic-


ção das autoras de que a construção de espaços públicos de decisão e de
debate abertos e flexíveis, que contemplem a heterogeneidade de atores,
de públicos e de formas de conhecimento, afigura-se essencial no âmbito
das aplicações de tecnologias genéticas, tanto no âmbito forense como no
campo médico e da investigação científica, de modo a proporcionar voz
e capacidade de expressão a todos os cidadãos. Tem sido comum abordar
as visões e racionalidades de diferentes atores sociais como esferas distin-
tas e separadas, perspetiva que assume, ainda que implicitamente, a ideia
de que os cidadãos orientam as suas expectativas e valores por objetivos
que são, necessariamente, distintos e, quiçá, distantes dos objetivos de
legisladores, políticos e cientistas. Ora, neste ensaio mostramos que tanto
os cidadãos como especialistas de genética forense e de áreas científicas
associadas à PMA partilham uma elevada receptividade ao progresso
científico e depositam elevadas expectativas e confiança no poder da
ciência e tecnologia para resolver problemas: seja para combater o crime,
acreditando-se que a tecnologia de DNA é a arma mais eficaz para iden-
tificar criminosos; seja para curar doenças, por via da investigação cien-
tífica em células estaminais embrionárias, ou para ajudar pessoas com
dificuldade em conceber uma criança (ao possibilitar a melhoria de vários
indicadores de sucesso das aplicações de técnicas de PMA).
Para além das continuidades, é nosso entendimento que é necessá-
rio empreender uma análise que também possa mapear as especificidades
e as descontinuidades das racionalidades e expectativas de uns e de outros.
Nesta secção conclusiva propomo-nos fazê-lo, socorrendo-nos do con-
ceito de pragmatismo genómico cívico para sintetizar as principais carac-
terísticas das perspetivas dos cidadãos (e dos especialistas) quer sobre a
doação de perfil genético para efeitos forenses, quer quanto à doação de
embriões para investigação científica. Este conceito pretende ampliar a
sensibilidade relativamente à análise das experiências práticas e da base
empírica (pragmatismo) pelas quais os cidadãos (enquanto agentes cívi-
cos) constroem relações biopolíticas de âmbito genómico com as insti-
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40 Helena Machado / Susana Silva

tuições, em particular no domínio da medicina e da justiça, que tradu-


zem conexões de trajetórias de vida e conceções sobre o próprio corpo
e genes com representações sociais em torno das tecnologias genéticas e
das instituições que as utilizam e de quais os direitos e deveres de cada
cidadão nesses contextos.
O pragmatismo genómico cívico revelado nos estudos aqui anali-
sados manifesta-se pela construção de diferentes modalidades de iden-
tidades tecnocientíficas, que se articulam e criam conexões complexas
e híbridas, sustentadas por processos de hierarquização moral, social e
emocional, que passamos a sistematizar. As identidades tecnocientífi-
cas que emergem das motivações de cidadãos para aceitar, recusar ou
estar indeciso relativamente à possibilidade de ter o seu perfil genético
individual inserido numa base de dados forense ou para doar ou não
doar os seus próprios embriões para investigação científica revelam bio
e tecno socialidades que refletem representações sociais em torno do
que é benéfico para a sociedade e para o interesse coletivo, co-cons-
truídas com base em categoriais sociais que resultam de processos de
hierarquização moral dos indivíduos e dos embriões e de hierarquiza-
ção da confiança depositada nas instituições sociais e, em particular,
no sistema de justiça e investigação criminal e na medicina e investi-
gação científica.
A aplicação das tecnologias genéticas no campo forense da investi-
gação criminal tem implicações importantes na atribuição de estatuto
moral aos indivíduos, distinguindo, por exemplo, entre suspeitos da
prática de um crime e “não suspeitos”. Mas a hierarquização moral dos
indivíduos por via das tecnologias genéticas estende-se também ao campo
da biomedicina, distinguindo, por exemplo, cidadãos altruístas de cida-
dãos egoístas e embriões “filhos” dos restantes embriões. Estas classifi-
cações surgem também associadas à hierarquização de níveis de confiança
depositados nas instituições jurídicas e científicas, distinguindo entre
receios/riscos e expectativas/benefícios, sociais e individuais, envolvidos
nos usos de tecnologias genéticas. Estes resultados revelam articulações
entre diferentes tipos de identidades tecnocientíficas descritos na parte
introdutória deste texto, nomeadamente, as identidades suspeitas e as
identidades médicas, ambas marcadamente pautadas por processos de
Coimbra Editora ® Parte I
Identidades tecnocientíficas na esfera forense e médica… 41

diferenciação moral e social que veiculam identidades relacionais que se


consubstanciam na articulação entre os significados e sentidos atribuídos
aos laços biogenéticos e à dimensão afetiva e emocional dos comporta-
mentos e decisões humanas.
Às motivações manifestadas pelos cidadãos para justificar a colabo-
ração, de modo altruísta e voluntário, com a justiça e a medicina,
subjaz a ênfase neoliberal contemporânea na responsabilidade individual,
na auto-governabilidade e na necessidade de promover abordagens
assentes no princípio da precaução, orientado para controlar e transfor-
mar o futuro de cada um, com consequências sobre o que pensamos
sobre as nossas identidades, os nossos corpos e as nossas vidas — indi-
vidualmente e coletivamente (Clarke et al., 2009). O ato de aceitar ou
não aceitar ter o seu perfil genético individual em base de dados gené-
ticos forense e o ato de consentir ou não consentir o uso dos seus
embriões em projetos de investigação científica e os motivos apontados
para justificar tais decisões traduzem identidades cívicas que conferem
sentido ao papel e posição dos cidadãos enquanto indivíduos mas tam-
bém agentes sociais capazes de poder contribuir para a transformação
social ou para benefícios coletivos. As identidades cívicas assentes em
tecnologias genéticas criam conexões complexas e híbridas com identi-
dades coletivas que embora tenham uma base genómica se articulam
com valores e normas sociais amplos relacionados com representações
sociais em torno das instituições e dos riscos e benefícios potenciados
pela ciência e tecnologia.

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PARÂMETROS ADJETIVOS,
CONSTITUCIONAIS E DE DIREITO COMPARADO
NA ESTRUTURA DAS SOLUÇÕES LEGAIS PREVISTAS
NA LEI N.º 5/2008, DE 12 DE FEVEREIRO (1)

HELENA MONIZ

1. INTRODUÇÃO

A construção de uma base de dados contendo dados genéticos, ainda


que estes se reportem apenas a uma parte do genoma, e ainda que os
dados estejam restringidos àquela parte do genoma que não nos permite
ter conhecimento de qualquer doença ou predisposição para a contrair,
cria logo no jurista a preocupação pela proteção de direitos fundamentais:
desde a proteção da dignidade humana até à proteção da reserva da vida
privada individual, desde a proteção da integridade física até à proteção
do moderno direito à autodeterminação informativa… E, por isso,
qualquer colheita de material biológico para a obtenção de um perfil
genético, completo ou incompleto, impõe um consentimento do titular
daquela informação — consentimento não só para a colheita do material
biológico, como para a obtenção da informação que se pode recolher a

(1)
O texto que se segue corresponde à minha intervenção oral realizada no
âmbito do Workshop — A base de dados de perfis de ADN para fins de investigação
criminal : Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, no âmbito da Formação Contínua
2010/2011 organizada pelo Centro de Estudos Judiciários e que decorreu a 6 de Maio
de 2011 (no auditório da Escola Superior de Enfermagem, em Coimbra); apenas se
acrescentou uma ou outra nota de rodapé para esclarecimento pontual do raciocínio.

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48 Helena Moniz

partir da análise científica daquele material, como para o armazenamento


do material biológico e/ou da informação genética. Esta necessidade de
consentimento do titular para a lesão de diversos direitos fundamentais
foi a minha preocupação quando escrevi “Os problemas jurídico-penais
da criação de uma base de dados genéticos para fins criminais” (Moniz,
2002) (2). Nessa altura não existia lei e ainda me referia à obtenção de
um perfil de ADN, para finalidade de investigação criminal, apenas a
partir da colheita de sangue. O que me levou a não fazer uma distinção
clara entre o momento da colheita e o momento da análise do material
biológico, pois ambos os procedimentos, a colheita de sangue e a sua
análise, pareciam exigir conhecimentos técnicos específicos (3), como
também a concluir, e porque não existia lei, pela necessidade de consen-
timento do arguido.

2. DIREITO À NÃO-INCRIMINAÇÃO

A Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, pretendeu resolver alguns dos


problemas referidos na altura. Mas, novos surgiram. Na verdade, se a
consagração na lei da possibilidade de colheita de material biológico e a
obtenção do perfil para integração numa base de dados com finalidades
de identificação civil e de investigação criminal permitiu, por um lado,
ultrapassar os problemas resultantes da necessidade de pedir consenti-
mento para a colheita e para a obtenção do perfil e sua inserção na base,
por outro lado, criou algumas dúvidas quanto a certas garantias do
arguido. Isto porque, se a admissibilidade legal de utilização do perfil
de ADN no âmbito do processo penal nos permite dizer que o legislador

(2)
(Moniz, 2002).
(3)
E por isso conclui (cit. nota 3, p. 255), no que se referia à análise de sangue
para confirmar o estado de toxicodependência do arguido que “sabendo que ‘a recolha
ou fixação dos factos através de exame não poderá exigir do seu autor qualquer conhe-
cimento especial de índole científica, técnica ou artística sob pena de haver lugar a
perícia’ (Marques Ferreira, 1991), então a recolha e análise de sangue não constitui um
exame, mas sim uma perícia”. Penso, como veremos, que a recolha de material bioló-
gico através de zaragatoa bucal nos leva a uma conclusão diversa.

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Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 49

assim justificou as lesões de direitos fundamentais (como o direito de


reserva da vida privada, ou o direito à auto-determinação informacional,
ou ainda o direito à integridade física (4)) cumprindo o princípio da
proporcionalidade em sentido amplo (consagrado no art. 18.º da CRP),
não nos permite, no entanto, sermos tão seguros quanto ao direito à não
auto-incriminação.
O direito à não auto-incriminação costuma ser entendido de um
modo bastante restrito, pois muitas vezes é quase reduzido a um direito
ao silêncio. Este encontra consagração no nosso CPP (5), maxime na
possibilidade de o arguido se remeter ao silêncio em plena audiência de
discussão e julgamento, sem que haja possibilidade de recorrer às decla-
rações por ele prestadas anteriormente (e consequentemente aquelas
declarações não podem ser valoradas). Este princípio constitui uma
consequência da estrutura acusatória do processo (e ainda integrado por
um princípio de investigação, a exigir do tribunal uma conduta ativa na
busca da verdade material processualmente válida), das garantias de defesa
(art. 32.º da CRP (6)), da proteção de forma indireta da dignidade
humana e dos direitos fundamentais. Sendo o núcleo principal o direito
ao silêncio, o certo é que a doutrina o tem estendido ao direito a não
entregar documentos, nomeadamente, diários íntimos.
O problema surge relativamente aos exames e diligências que sejam
realizadas diretamente no corpo da pessoa (arguido, suspeito, condenado,
vítima…). A doutrina divide-se: alguns seguem uma perspetiva restritiva
do princípio da não auto-incriminação, limitando-o ao direito ao silên-
cio, e admitindo como não lesivo deste princípio a colheita de material
biológico através da raspagem da mucosa bucal com zaragatoa sempre
que o arguido nada diga e, portanto, exerça o seu direito ao silêncio;

(4)
Não entendo que a simples raspagem da mucosa bucal com uma zaragatoa
para a obtenção de material biológico constitua uma lesão da integridade física com
relevo sob o ponto de vista jurídico-penal. Diferente poderá ser o entendimento quando
seja necessário fazer uma colheita de sangue através da inserção de uma agulha no
corpo da pessoa.
(5)
Nos arts. 61.º, n.º 1, al. d), 132.º, n.º 2, 141, n.º 4, al. a), 343.º, n.º 1.
(6)
Neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/95.

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50 Helena Moniz

outros que têm uma conceção mais ampla do princípio da não-autoin-


criminação, pelo que a simples obtenção de material biológico contra a
vontade do arguido, ainda que nem sequer seja utilizada a força física
(porque o arguido abriu a boca, embora tendo declarado expressamente
que a colheita era realizada contra a sua vontade), constitui uma violação
daquele princípio e das garantias de defesa do arguido asseguradas cons-
titucionalmente; estes últimos consideram que constitui uma vertente
do princípio da não auto-incriminação o direito à recusa em realizar
exames ou outras diligências de prova que tenham por objeto o corpo
de uma pessoa. Assim sendo, será que o legislador deveria ter consagrado
uma norma idêntica à constante do art. 34.º, n.º 4, da CRP, que respeita
às ingerências das autoridades nas telecomunicações? Será que neste
âmbito, e tendo em conta que a simples colheita de material biológico
e obtenção do perfil de ADN para fins de identificação não constitui
uma atividade tão intrusiva como a que decorre da ingerência nas tele-
comunicações (caso em que para além do arguido há sempre a possibi-
lidade de lesar direitos fundamentais de outras pessoas) é necessária uma
consagração constitucional expressa?
Os princípios não são absolutos, admitindo exceções e impondo a
realização de uma concordância prática entre os interesses em conflito.
Penso que as situações têm que ser avaliadas em função do concreto
arguido, do tipo de criminalidade, das provas que existem, do que é
necessário para acrescentar maior convicção quanto a ter sido ele (ou não)
a praticar o crime. Por exemplo, suponhamos que alguém furta uma
maçã num supermercado, a come e, em seguida, atira o caroço para o
caixote. A partir do caroço poderá ser possível recolher material biológico
que poderá permitir a obtenção de um perfil de ADN. Mas justifica-se,
à luz de uma concreta ponderação de interesses, a violação do princípio
da não auto-incriminação? Poderá o juiz nestas circunstâncias entender
que é necessária a realização da análise para obter o perfil de ADN, tendo
em conta o direito à reserva da intimidade do visado? Penso que, caso a
caso, deve ser realizada a respetiva ponderação — o que está assegurado
pelo disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008. Pois, de acordo com
o art. 8.º, n.º 1, o juiz pode ordenar a recolha de amostras em processo
crime ao abrigo do disposto no art. 172.º do CPP. Ora, nos termos do
Coimbra Editora ® Parte I
Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 51

art. 154.º, n.º 2 (ex vi art. 172.º, n.º 2) o juiz deve ponderar “a necessi-
dade da sua realização tendo em conta o direito à integridade pessoal e à
reserva da intimidade do visado”.
Mas, se a necessária ponderação parece assegurada quando se trata
da colheita em arguido, o mesmo não parece estar assegurado no caso
de suspeito. A Lei n.º 5/2008 em lugar algum admite a possibilidade
de colheita de material biológico para a obtenção do perfil de ADN em
suspeito. Pelo que entendo que se for pedido ao suspeito este procedi-
mento, o suspeito deve, ao abrigo do art. 59.º, n.º 2, pedir a sua cons-
tituição de arguido.
Porém, a mesma ponderação não parece existir quando se trata da
colheita de material biológico e obtenção do perfil de ADN em conde-
nado. À luz da Lei n.º 5/2008 e do seu art. 8.º, n.º 2, e considerando
que o despacho é um despacho “quase-automático” (Reis Bravo, 2010 (7))
— a partir do momento em que estejamos perante um caso de conde-
nação transitada em julgado, por crime doloso, em pena concreta supe-
rior a 3 anos de prisão (ainda que tenha sido substituída) — então,
parece não ser realizada qualquer ponderação entre, por um lado, o
direito à não auto-incriminação do arguido e, por outro lado, a neces-
sidade de armazenamento do seu perfil na base de dados de perfis de
ADN para finalidades criminais. Sempre se poderá argumentar com a
ideia de que o legislador já fez a necessária ponderação estabelecendo
um limite à possibilidade de o perfil ser integrado em função da pena
concreta em que o arguido tenha sido condenado. Limitação, no
entanto, que não se afigura suficiente para todos aqueles que prefeririam
a consagração de um catálogo de crimes a justificar aquela recolha e
inclusão. Tem sido, aliás, feito alguma paralelismo com o regime das
escutas telefónicas — embora eu entenda que neste último caso a lesão
de direitos fundamentais é muito mais gravosa atendendo a que não só
o arguido mas também terceiros que nada tenham a ver com o crime
podem ser afetados; o que não ocorre na obtenção do perfil de ADN

(7)
Perfis de ADN de arguidos-condenados (o art. 8.º, n.os 2 e 3, da Lei n.º 5/2008,
de 12-02), RPCC, n.º 1, 2010 (Jan.-Mar.), p. 97 e ss.

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52 Helena Moniz

nos termos da Lei n.º 5/2008, dado que o marcador utilizado para a
obtenção daquele perfil deverá ser sempre um que não forneça informa-
ção de saúde ou de características hereditárias específicas (cf. art. 2.º,
als. b), f ) e e), art. 12.º). No entanto, a intromissão mais gravosa ocorre
em momento posterior ao da inserção do perfil de ADN na base, obtido
após a condenação. Na verdade, uma vez inserido, haverá automatica-
mente o cruzamento desta informação com a informação integrada na
base (todos os perfis entretanto nela inseridos), permitindo assim, even-
tualmente, concluir (eventualmente, porém com maior frequência à
medida que a base tenha mais e mais perfis inseridos) que o mesmo
perfil tinha sido encontrado num outro local de crime e assim iniciar-se
ou reiniciar-se um novo processo para averiguar se, na verdade, estamos
ou não perante o agente daquele outro crime (conclusão a que só se
poderá chegar com a articulação com outros elementos de prova, pois
em caso algum pode ser tomada uma decisão exclusivamente com base
no tratamento dos perfis de ADN: arts. 3.º, n.º 4, e 38).

3. LEGISLAÇÃO EM PAÍSES EUROPEUS

Passemos agora a uma breve referência à legislação de outros países


europeus sobre a matéria. Em Inglaterra (e País de Gales e Escócia) o
critério de inserção de perfis de ADN na base é bastante amplo, admi-
tindo a possibilidade de inserção em relação a detidos por qualquer crime.
Os perfis ficam retidos na base indefinidamente no caso de Inglaterra (8)
e País de Gales, e são eliminados quando os titulares são absolvidos; ou
ficam retidos indefinidamente quando os titulares são condenados, no
caso da Escócia.
Na Alemanha, são integrados na base os perfis de arguidos, acusados
e condenados em crimes graves ou contra a auto-determinação sexual,

(8)
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem — Case of S. and Marper v. the
United Kingdom, 4 de Dezembro de 2008, onde se referiu, expressamente, a necessidade
de eliminar os perfis de todos os detidos que tenham sido, posteriormente, absolvidos ou
cujo processo tenha sido arquivado. Consultado a 31.07.2013 em http://www.bailii.org/
eu/cases/ECHR/2008/1581.html.

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Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 53

se se considerar que a natureza da ofensa ou a forma como foi realizado


o ilícito, a personalidade do acusado, ou qualquer informação, constitua
fundamento para supor que outros crimes da mesma natureza se segui-
rão; são igualmente integrados os perfis de reincidentes (cf. § 81 g StPO);
a colheita do perfil é realizada por ordem do juiz, a não ser que haja
consentimento do arguido, e pode ocorrer durante a fase de investigação.
No que respeita remoção dos perfis, esta apenas ocorre por decisão do
juiz após avaliação (para determinar da necessidade ou não de o manter
na base) a decorrer 10 anos após a inserção no caso de adultos (ou 5
anos após a inserção no caso de jovens) (9); a manutenção dos perfis para
além destes períodos só pode ocorrer mediante justificação. A amostra
é destruída imediatamente após a obtenção do perfil.
Em Espanha onde a lei (Lei Orgânica n.º 10/2007, de 8 de
Outubro) é idêntica à nossa, são inseridos os perfis de detidos e
condenados por crimes graves, crimes contra a vida, crimes contra a
liberdade (nomeadamente, crimes contra a liberdade e autodetermi-
nação sexual) crimes contra a integridade pessoal, crimes contra o
património quando realizados com violência ou intimidação das pes-
soas e criminalidade organizada, sendo eliminados aquando da pres-
crição do crime (prazo contado a partir do último praticado); e no
caso dos condenados o registo do perfil é apagado na data do cance-
lamento dos dados do registo criminal (quanto àquele crime), a não
ser que haja uma ordem judicial em contrário. Porém, para que seja
possível a inserção tem que haver, segundo a Ley del Enjuiciamiento
Criminal (LECRIM art. 363.º), uma ordem do juiz afirmando ser
“indispensável para a necessária investigação judicial e reta administra-
ção da justiça”, devendo a intervenção corporal mostrar-se adequada
aos “princípios da proporcionalidade e razoabilidade”. A colheita pode
ser efetuada pelos órgãos de polícia criminal, porém necessitam de uma
decisão judicial fundamentada.
Em França (arts. 706-54 e ss do Code de Procédure Pénale), o
perfil é obtido e inserido por despacho judicial quando se trate de um

(9)
Cf. §§ 11(4), 34 (1) e 32 (3) BKA.

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54 Helena Moniz

dos delitos integrados no catálogo (10) (nomeadamente, crimes de natu-


reza sexual, crimes contra a humanidade, contra a vida, atos de tortura
e de barbárie, tráfico de estupefacientes, crimes contra a liberdade, pro-
xenetismo, exploração da mendicidade e exploração de menores, crimes
de roubo, extorsão, peculato, dano e ameaças, atentados aos interesses
fundamentais da nação, atos de terrorismo, de falsificação de moeda, de
associação criminosa, branqueamento de capitais); mas, também é pos-
sível a integração do perfil de ADN na base logo que haja condenação
por crime punido com pena de prisão superior a 10 anos (pelo que um
crime económico não inserido naquele catálogo, mas cuja condenação
foi superior a 10 anos de prisão permite a obtenção e inserção do perfil
de ADN (11)). Os perfis são retirados da base 40 anos após a sentença
ou quando o condenado atingir os 80 anos de idade.
Em Itália (Legge n. 85, 30. Giugno. 2009) são inseridos na base
os perfis dos presos preventivamente, dos que estão em prisão domi-
ciliária, dos detidos em flagrante delito (sendo retirados se houver
absolvição), dos condenados qualquer que seja o crime doloso praticado
ou ainda dos condenados em medida de segurança detentiva; porém,
há alguns crimes em que o perfil apenas pode ser integrado na base
após a condenação, como no caso dos crimes contra a administração
pública e contra a administração da justiça (com exceção do crime de
declarações falsas perante o Ministério Público, ou perante o defensor,
o crime de falso testemunho, o crime de favorecimento — pessoal ou
real), dos crimes contra a fé pública (onde se integra, por exemplo, o
crime de falsificação de documentos e o crime de falsificação de nota-
ção técnica) e dos crimes contra a moral pública e os bons costumes.
Havendo condenação, são eliminados 20 anos após o incidente que
motivou a recolha (o que significa que se o condenado tiver cometido
diversos crimes, e em relação a todos eles estavam verificados os requi-

(10)
Também são integrados na base os perfis de acusados por um destes crimes
ainda que os acusados sejam declarados inimputáveis por anomalia psíquica.
(11)
Caso haja recusa em se submeter à colheita do material biológico, o agente deve
ser punido com uma pena de prisão de 1 ano e multa de 15 000 euros (art. 706—56 (II).

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Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 55

sitos que permitiam a inserção do perfil, aqueles 20 anos vão ser con-
tados a partir da última condenação, nem que o perfil tenha sido
integrado a partir da primeira), mas com a cláusula geral de limitação
da conservação de qualquer perfil na base por mais de 40 anos.

4. APLICAÇÃO DA LEI

A Lei 5/2008 já tem alguns anos e entretanto foram surgindo diver-


sas dúvidas quanto à sua aplicação. Tentarei responder a algumas delas:

a) O simples despacho do juiz de julgamento para recolha de


amostras em condenado, ao abrigo do art. 8.º, n.º 2 (depois da con-
denação transitada em julgado), basta para que se possa introduzir
o perfil na base?

Não basta um simples despacho para colheita de amostra e obtenção


do perfil de ADN em condenado em pena de prisão igual ou superior
a 3 anos. Para além deste, e ao abrigo do disposto no art. 18.º, n.º 2,
ainda é necessário o despacho a pedir a integração do perfil (obtido) na
base. O magistrado tem, pois, que fazer dois despachos:

1) o despacho que ordena a recolha em condenado (art. 8.º,


n.º 2), permitindo a obtenção do material biológico e a sua análise e
2) o despacho que ordena a inserção do perfil na base (art. 18.º,
n.º 3).

Sempre se poderia dizer que o pedido de colheita de material bioló-


gico e obtenção do perfil de ADN, ao abrigo do art. 8.º, n.º 2, também
seria para integrar o perfil de ADN na base. Porque é que o legislador
exigiu, então, um outro despacho? Na verdade, o magistrado pode que-
rer numa primeira fase que o perfil obtido fique apenas à guarda daquele
processo, não necessitando para tanto de grande fundamentação, pois,
tal como afirma Reis Bravo (2010), esta é uma decisão quase-automática;
pelo contrário, o magistrado fica vinculado a uma necessidade de funda-
mentar de modo mais completo o pedido da integração do perfil na base.
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56 Helena Moniz

Aquele perfil à guarda do processo poderá, mais tarde, ser utilizado


ao abrigo do art. 8.º, n.º 6; quando o magistrado é responsável em outros
processos do mesmo arguido, pode entender que aquele perfil se poderá
mostrar útil nesses outros processos. E caso assim seja, de acordo com
o art. 8.º, n.º 6, e desde que os processos sejam simultâneos ou sucessi-
vos, poderá, mediante despacho judicial, dispensar a recolha da amostra
naqueles outros e utilizar aquele perfil, entretanto, obtido.
É certo que parece existir alguma contradição entre a possibilidade
de utilização de uma amostra e do perfil em outro processo distinto
daquele no âmbito do qual foi obtido (ainda que se trate de processo
simultâneo ou sucessivo) e o disposto no art. 34.º, n.º 2, que limita a
possibilidade de utilização do perfil como meio de prova apenas ao pro-
cesso em que foi obtido. Mas, na verdade, a limitação do art. 34.º, n.º 2,
resulta da intenção do legislador de proibir a recolha de amostra e obten-
ção de um perfil sem que seja realizada a ponderação necessária e sem
que seja aferida a adequação da medida e, por isso, exigiu a fundamen-
tação do pedido realizado ao abrigo do disposto no art. 8.º, n.º 1.
Quando se pretende utilizar a informação obtida em outro processo,
de acordo com o art. 8.º, n.º 6, também aqui terá que haver um despa-
cho judicial a ponderar a necessidade da medida e a sua adequação, tal
como acontece quando é pedida uma amostra e a obtenção do perfil, ao
abrigo do art. 8.º, n.º 1. Com a possibilidade de utilização em proces-
sos simultâneos ou sucessivos evita-se nova colheita e nova análise, mas
não se evita a necessidade de avaliação e fundamentação do pedido.
A proibição constante do art. 34.º, n.º 2, queria exatamente evitar
o pedido de colheita de amostra e obtenção do perfil sem aquela funda-
mentação. Porém, esta proibição apenas vigora para os casos em que se
pretenda utilizar um perfil obtido em um outro processo para utilização
num segundo processo que já não é nem simultâneo, nem sucessivo em
relação ao primeiro.

Como se conserva a amostra à guarda do processo se esta lei nada diz?

A lei n.º 5/2008, nalguns casos, necessita de ser completada com a


lei das perícias médico-legais (Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto). Já
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Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 57

antes de existir a lei n.º 5/2008 podíamos fazer colheita de material


biológico com o consentimento do arguido, à luz do CPP e da lei de
perícias médico-legais (Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto), e a amostra
ficava à guarda do processo. Também agora a amostra poderá ficar à
guarda do processo durante esse período, nas situações excecionais em
que não se proceda à introdução do perfil de ADN na base.

E quando se deve proceder à destruição da amostra?

A destruição da amostra imediatamente após a obtenção do per-


fil (art. 34.º, n.º 3) não abrange estes casos em que se procedeu à
recolha em arguido; pelo que, nestes casos, mais uma vez teremos que
recorrer à lei das perícias médico-legais e destruir as amostras ao fim de
2 anos, salvo se “o tribunal tiver comunicado determinação em contrá-
rio” (art. 25.º, n.º 2).

Para que o magistrado dê cumprimento ao disposto no art. 8.º,


n.º 2, basta que envie para os serviços de recolha de material bioló-
gico uma cópia do acórdão de condenação do arguido?

É preciso um despacho, não basta a cópia do acórdão com um


ofício do oficial de diligências. É necessário um despacho que diga de
forma expressa que houve já trânsito em julgado da sentença, pois é um
dos requisitos fundamentais para que seja possível a recolha em conde-
nado (a pena de prisão superior a 3 anos ainda que substituída), ou então
uma certidão narrativa com selo branco.

A limitação imposta no art. 8.º, n.º 2, a quem for condenado


a pena de prisão igual superior a 3 anos, é aplicável aos casos de
colheita de amostra e obtenção de perfil em arguido ao abrigo do
art. 8.º, n.º 1?

A limitação só está no n.º 2; o n.º 1 não tem limitação. A limita-


ção que existe no n.º 1 do art. 8.º é a limitação apenas decorrente das
remissões para o CPP: as remissões são feitas para o art. 172.º e este,
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58 Helena Moniz

por sua vez, para o art. 154.º, n.º 2, e para o art. 156.º, n.os 5 e 6, do
CPP, onde se diz expressamente que a perícia sobre as características
físicas do arguido (leia-se conhecimento do seu perfil de ADN) neces-
sita de despacho do juiz, onde deve ser fundamentada a necessidade
daquela perícia — para dar cumprimento a uma exigência de ponde-
ração que o princípio da não auto-incriminação impõe. Porém, arti-
culando o disposto no art. 154.º, n.º 2, com o art. 8.º, n.º 1, da Lei
n.º 5/2008, a recolha de amostras pode ser pedida pelo arguido (e
quando assim é há um consentimento) ou pode ser ordenada pelo juiz
(ou seja, não há diferença de regime entre os dois preceitos). A única
diferença parece residir na parte respeitante ao exame, caso em que não
seria preciso o mandato do juiz para a sua realização, de acordo com o
art. 172.º do CPP; porém, também aqui não existe qualquer diferença
dado que também o exame sobre as características físicas do agente está
sujeito ao mesmo regime do art. 154.º, n.º 2, por força do art. 172.º,
n.º 2, ambos do CPP.

O despacho exigido pelo art. 8.º, n.º 1 ou pelo n.º 2 pode ser
ordenado pelo Ministério Público?

Não. A lei refere expressamente “despacho do juiz” e “despacho do


juiz de julgamento” (n.os 1 e 2, respetivamente). Trata-se de matérias
atinentes a direitos fundamentais e não deixam de ser condutas lesivas
de direitos fundamentais. Pelo que a ordem de colheita de material
biológico e a de obtenção do respetivo perfil deve ser da competência
do “juiz das liberdades” ou do juiz de julgamento (dependendo da fase
em que se encontrar o processo) (12).

(12)
A Lei n.º 5/2008 parece ser mais exigente do que o CPP, dado que a perícia
sobre as características físicas só exige despacho do juiz se não houver consentimento
da pessoa (cf. art. 154.º, n.º 2, do CPP). Porém, também à luz do art. 8.º, n.º 1, da
Lei n.º 5/2008, o arguido pode solicitar ao juiz a recolha da amostra; a necessária
“intermediação” do juiz constitui uma exigência suplementar tendo em conta a posição
debilitante em que se encontra o arguido e a limitação do princípio da não auto-in-
criminação, resultante da perícia em causa, a exigir uma especial ponderação. Embora

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Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 59

b) É possível a colheita de amostra e obtenção do perfil em


suspeito (antes da constituição de arguido)?

A Lei n.º 5/2008 nunca se refere à colheita de amostra biológica


para obtenção de perfil de ADN em suspeito (13). Sabendo que a colheita
de material biológico para obtenção do perfil de ADN constitui uma
atividade lesiva de direitos fundamentais, tal com anteriormente disse,
a falta de consentimento impede a sua realização. Pelo que, e nos termos
gerais, apenas é possível a obtenção de perfil em suspeito se ele der o seu
consentimento, devendo ser para o efeito informado das finalidades da
colheita. Sem consentimento, a conduta constituíra uma conduta lesiva
de direitos fundamentais e do princípio da não auto-incriminação. Claro
que o suspeito pode solicitar a sua constituição como arguido (ao abrigo
do art. 59.º, n.º 2, do CPP), pelo que a partir desse momento a colheita
pode ser efetuada de acordo com o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008 (14).
Melhor será, e porque se trata de matéria referente a direitos fundamen-
tais, que haja uma lei da Assembleia da República — e a admitir a
colheita de material biológico e a obtenção do perfil de ADN em suspeito
dever-se-ia limitar esta possibilidade a um catálogo de crimes (15) e a uma
demonstração de que a obtenção daquela prova por aquele meio cons-
titui objetivamente uma necessidade premente para a investigação, com
dificuldade em ser satisfeita com outro meio de obtenção de prova.

eu tenha dúvidas que haja possibilidade de recusa se for o arguido a solicitar a recolha
da amostra.
(13)
Entendendo por suspeito “toda a pessoa relativamente à qual exista indício
de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se
prepara para participar” (art. 1.º, al. e), do CPP).
(14)
O suspeito poderá, no entanto, participar como voluntário de acordo com
o disposto no art. 6.º da Lei n.º 5/2008, devendo, no entanto, ser ele a fazer o pedido
para a colheita de amostra.
(15)
Já quando integrei a comissão que projetou o diploma que esteve na Base
da Lei n.º 5/2008 defendia também para a colheita de material biológico e a obtenção
do perfil de ADN em arguido a sua limitação a um catálogo de crimes, com ficou
registado nas atas das reuniões (que infelizmente nunca foram publicadas).

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60 Helena Moniz

Pode haver colheita de material biológico na vítima?

De acordo com os arts. 171 e seguinte do CPP, e quando se consi-


dere que haja vestígios do crime na pessoa, esta pode ser sujeita a exame
e, portanto, pode ser recolhido o material biológico (16). O que se afigura
importante em matéria, por exemplo, de crimes contra a autodetermi-
nação sexual. Neste caso, a colheita do material e obtenção do perfil de
ADN pode ser indispensável para a investigação. Porém, penso que se
deverá alertar a vítima para o facto de que também será necessário obter
o seu perfil de ADN para que se possa fazer a necessária despistagem.
E o seu perfil não poderá ser integrado na base, a não ser que a vítima
queira participar como voluntário.

c) Quem é o “magistrado competente” a que se refere o art. 8.º,


n.º 4 (colheita em cadáver, parte de cadáver e local do crime, ao
abrigo do art. 171.º)?

Devemos distinguir aqui 3 momentos essenciais:

1.º momento — Procedimento de obtenção de um meio de prova

A colheita da amostra deve ser realizada de acordo com as regras


processuais, tal como o determina o art. 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008.
A amostra também pode ser recolhida em objeto apreendido no segui-
mento de uma busca — neste caso o magistrado competente é o magis-
trado que pode solicitar a realização dos exames.

2.º momento — Obtenção do perfil: realização de uma perícia

A realização de uma perícia tem que ser ordenada por um juiz dado
que se trata sempre da obtenção de características físicas de uma pessoa

(16)
A realização de exames para a obtenção de características físicas é da com-
petência exclusiva do juiz de instrução — art. 269.º, n.º 1, al. b), do CPP.

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Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 61

(ainda que não se saiba quem é a pessoa; é a perícia que vai permitir
obter características físicas de uma pessoa e, eventualmente, identificá-la).
Há, pois, uma clara distinção entre o momento da recolha da amostra
— que constitui um exame — e o momento de análise científica do
material biológico da qual vai resultar o perfil e ADN que se pretende
— o que constitui uma perícia.
E quanto à inserção do resultado da perícia (o perfil de ADN) na
base? Temos, por exemplo, perfis obtidos em amostras colhidas em local
do crime. Quem é o magistrado competente para pedir a inserção na
base? Este é o:

3.º momento — inserção do resultado da perícia — perfil — na


base de dados

De acordo com o art. 18.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008 o “magistrado


competente” é o MP durante a fase de inquérito, o juiz de instrução
durante a fase de instrução e o juiz de julgamento na última fase do
processo. O perfil será integrado no ficheiro referido no art. 15.º,
n.º 1, al. d).
No caso de a colheita ter sido realizada em arguido (de acordo com
o art. 8.º, n.º 1) o problema não se põe dado que os perfis obtidos em
arguido não são integrados na base.
Nos casos urgentes, isto é, nos caso em que é preciso colher a amos-
tra, em local de crime, para que o vestígio não desapareça — estamos
perante um procedimento cautelar urgente (art. 269.º, n.º 1, do CPP);
os OPC fazem a recolha do vestígio encontrado em local de crime ao
abrigo do art. 249.º, n.os 1 e 2, al. a), do CPP, dando conhecimento de
imediato da diligência ao magistrado (cf. art. 249.º, n.º 3 in fine). No
momento em que se pretenda obter o perfil a partir daquele material
colhido regem as regras das perícias (constantes do CPP (17)), sendo o

(17)
Quanto à obtenção do perfil a partir do vestígio biológico colhido nestas condi-
ções o juiz deve ponderar sobre a necessidade da sua obtenção ao abrigo do art. 154.º
do CPP (e art. 269.º, n.º 1, al. a), do CPP).

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62 Helena Moniz

perfil inserido de acordo com o disposto no art. 18.º, n.º 2, da Lei


n.º 5/2008.

d) Pode retirar-se material biológico de objeto apreendido em


consequência de uma busca em casa de um suspeito (e, portanto,
não constituído arguido)?

Aquando da realização de uma busca, os OPC podem efetuar apre-


ensões de objetos, nos termos do art. 178.º, n.º 4, devendo sujeitar estas
apreensões a validação pela autoridade judiciária, no prazo de 72 horas
(n.º 5 do art. 174.º). Do objeto apreendido poder-se-á colher material
biológico, a partir do qual se pode obter um perfil de ADN. Ou seja,
poder-se-á fazer as perícias que se entendam necessárias ao objeto apre-
endido. No entanto, se a partir do objeto colhemos material para a
obtenção de ADN, também aqui a realização desta perícia terá que obe-
decer às exigências constantes das perícias realizadas sobre as característi-
cas físicas de uma pessoa, ou seja, às exigências do art. 154.º, n.º 2,
necessitando, pois, um despacho do juiz que pondere da necessidade e
adequação da sua realização. Uma vez obtido o perfil a partir do material
biológico encontrado no objeto apreendido, podemos integrar o perfil na
base? Não, pois a Lei n.º 5/2008 não só não prevê a inserção de perfil
de ADN obtido a partir de colheita de material biológico em objeto
apreendido, como não prevê a inserção de perfil de suspeito. Além disto,
também não prevê a possibilidade de cruzamento desta informação com
a informação existente na base. Pelo que, aquilo que parecia uma porta
aberta para, por meios indiretos, obter o perfil de ADN de um suspeito,
acaba por não ter qualquer utilidade prática.

e) Num caso de desaparecimento de alguém, a colheita de ves-


tígios biológicos é realizada ao abrigo do art. 7.º ou do art. 8.º da
Lei n.º 5/2008?

Quando alguém desapareceu e é necessário obter o perfil de ADN


para finalidades de identificação civil a partir de objetos do desaparecido,
a amostra-referência que se quer obter poderá ser colhida de harmonia
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com o art. 7.º da Lei n.º 5/2008; o perfil será depois inserido na base
de acordo com o art. 15.º, n.º 1, al. c).
Porém, na maior parte das vezes não se tem conhecimento se o
desaparecimento ocorreu no âmbito da prática de um crime. E supo-
nhamos, que encontramos material biológico no local onde o desapare-
cido esteve a última vez (embora, com os dados da investigação realizada
até ao momento não se saiba se se trata de local onde se procede a busca
para finalidades de identificação civil, ou se se trata de local de um crime).
Nestes casos esta amostra é uma amostra-problema, e o perfil obtido a
partir dela deve ser integrado na base no ficheiro relativo a perfis gerados
a partir de amostras-problema para finalidades de identificação civil e
simultaneamente (porque não se sabe se não estamos perante um crime)
no ficheiro de perfis obtidos a partir de amostras-problemas encontradas
em local de crime, ao abrigo do art. 8.º, n.º 4. Sintetizando, nestes casos
de desaparecimento, sem se saber se se tratou de um crime ou não, o
perfil obtido deverá ser integrado:

1) no ficheiro das amostras-problema obtidas para finalidades


de identificação civil, ao abrigo do art. 7.º, n.º 1 [art. 15.º, n.º 1,
al. b)]; e
2) no ficheiro de amostras-problema obtidas em local de crime,
ao abrigo do art. 8.º, n.º 4 [art. 15.º, n.º 1, al. d)].

5. CONCLUSÃO

Estas são as regras que temos. Mas, é preciso transpor para o orde-
namento jurídico português a decisão-quadro 2008/615/JAI, de 23 de
Junho (18). Esta decisão exige-nos muito mais em termos de colheita e
em termos de retenção do perfil, bem como em matéria de transferência
de perfis de ADN. O art. 21.º da Lei 5/2008 não é suficiente para
permitir a transferência de perfis de ADN nas condições e com a exten-

(18)
O prazo de transposição terminou em Agosto de 2011 (cf. art. 37.º da
decisão 2008/615/JAI, de 23 de Junho).

Regulação e direito Coimbra Editora ®


64 Helena Moniz

são que aquela decisão-quadro pretende. Na verdade, este art. 21.º veio
dizer que a Lei n.º 5/2008, e todas as eventuais atividades que sejam
permitidas (e nos termos em que o sejam) “não prejudica as obrigações
assumidas pelo Estado Português em matéria de cooperação internacio-
nal” nos domínios da identificação civil e investigação criminal. Porém,
todas as ações de transferência de dados pessoais, como é o caso do
perfil de ADN identificado, são ações relativas a matérias de direitos
fundamentais com todas as restrições impostas pela CRP e pela LPDP
(lei n. 67/98, de 26 de outubro). Pelo que será sempre necessário que
uma lei que faça a necessária concordância prática entre as exigências de
cooperação internacional e de investigação criminal e os direitos funda-
mentais em questão. Como vimos no início, os critérios de inserção e
remoção dos perfis nas bases são diferentes em diversos países da UE.
As regras quanto à possibilidade ou não de transferência de amostras
também são diferentes. O que cria necessariamente entraves e dificul-
dades em matéria de cooperação judiciária internacional. De acordo
com aquela decisão-quadro, o que se pretende é a livre transmissão da
informação contida nos perfis de ADN, devendo a transferência do
perfil ir associada a um número de referência que (de acordo com o
art. 2.º da decisão) não deverá permitir a identificação direta da pessoa
em causa (não estando afastada a possibilidade de identificação indireta).
Pelo que, nesta parte, teremos sempre que cumprir as regras da LPDP
(que me parecem insuficientes para assegurar a necessária cooperação)
ou, então, necessitamos de criar uma nova lei que preveja regras especí-
ficas sobre esta matéria (o que não acontece na Lei n.º 5/2008). Em
matéria de recolha de material genético e transmissão do perfil de ADN
obtido, de acordo com o art. 7.º da decisão quadro, deverão ser cum-
pridas as regras quanto às condições para recolha e análise do material
genético do estado-requerente, bem como as regras do estado-requerido.
Porém, dada a diferente regulamentação, em muitos casos os procedi-
mentos de cooperação estarão prejudicados. E, na nova regulamentação,
não nos devemos esquecer de que a ciência evolui e a partir do perfil de
ADN poderão ser obtidos (com o auxílio de novos marcadores) novos
dados, como a cor dos olhos, a cor do cabelo, a cor da pele… Ainda
estamos numa fase inicial quanto às possibilidades de obtenção desta
Coimbra Editora ® Parte I
Parâmetros adjetivos, constitucionais e de direito comparado… 65

informação; porém, em países como os Países-Baixos (19) já têm sido


utilizadas estas técnicas. Por isso, novas regras terão de ser criadas de
modo a assegurar os direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Marques Ferreira, Manuel (1991), “Meios de prova”, in AAVV, O novo código de


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e 3, da Lei n.º 5/2008, de 12-02)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
20(1), 97-126.

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LECRIM, Real decreto de 14 de septiembre de 1882 por el que se aprueba la Ley de
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(19)
Act of 8 May 2003 to adapt the Regulation Of Forensic DNA Investigation In
Relation To Determining Externally Perceptible Personal Characteristics From Cell Material.

Regulação e direito Coimbra Editora ®


66 Helena Moniz

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Coimbra Editora ® Parte I


REFLEXÕES JURÍDICAS ACERCA
DA REGULAMENTAÇÃO DOS BANCOS DE PERFIS
GENÉTICOS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO
CRIMINAL NO BRASIL (1)

TAYSA SCHIOCCHET

1. INTRODUÇÃO

A questão ética central encontrada na sociedade tecnocientífica


explicita-se no paradoxo da técnica moderna, quando não é o fracasso,
mas o seu sucesso, que pode ocasionar o desrespeito aos direito humanos,
quando não uma catástrofe global. No campo dos avanços biotecnoló-
gicos, subverteram-se as relações entre o que é dado ou natural e o que
é possível desejar e manipular.
Os avanços e descobertas provenientes da genética humana são
portadores de esperanças reais em termos de prevenção, segurança e
assistência, mas também de preocupação diante do seu uso ilimitado

(1)
Este artigo apresenta os resultados parciais de algumas pesquisas realizadas
anteriormente e em curso. Dentre elas, destaca-se a principal, realizada entre 2011 e
2012 e vinculada ao projeto intitulado “Bancos de perfis genéticos para fins de per-
secução criminal”, financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi-
mento (PNUD) em parceria com a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério
da Justiça (SAL/MJ), junto ao programa Pensando o Direito. Além disso, houve
financiamento da Fundación Carolina (2011/2012) e do CNPq/CAPES, por meio
da Chamada n. 07/2011. Alguns destes resultados também podem ser lidos em:
Schiocchet (2009, 2011).

Regulação e direito Coimbra Editora ®


68 Taysa Schiocchet

e indevido, ocasionando, dentre outras consequências, uma discri-


minação genética. Como testemunho destas e outras tantas preo-
cupações, surge um grande número de documentos nacionais e
internacionais, tanto jurídicos, quanto técnicos, de bioética e ética
da pesquisa, todos com a finalidade de regulamentar o uso das novas
tecnologias genéticas.
A importância e mesmo necessidade de regulação na órbita inter-
nacional é visível particularmente em relação ao acesso, exploração e
partilha de material e informação genéticos humanos em âmbito global.
A tentativa hercúlea de compatibilização entre exploração e proteção
do humano exige um aporte global dessas questões, uma vez que elas
não se restringem ao espaço nacional, isolado pelos limites da soberania
estatal. O acesso ao material e informação genéticos não seguem a
mesma lógica do direito estatal clássico, ainda que dele necessite em
muitos momentos.
As implicações relacionadas às tecnologias genéticas são múltiplas
— social, econômica, científica, sanitária, ética e mesmo jurídica —
incluindo temas como privacidade, confidencialidade, proteção das
identidades, garantia de não-discriminação, liberdade de pesquisa e
avanço da ciência, livre circulação de bens e, mais concretamente, temas
como coleta e armazenamento de material genético, acesso e uso de
informação genética, credibilidade e licitude da informação coletada e
analisada, salvaguarda da cadeia de custódia, biobancos, universalidade
de acesso a tais tecnologias etc. Diante disso, atualmente diversos países,
e mesmo a sociedade internacional por meio de seus órgãos representa-
tivos, mobilizam-se no sentido de avaliar o impacto das aplicações desse
novo conhecimento tecnológico para então regulamentá-las.
Levando em consideração esses pressupostos, o presente artigo tem
como objetivo analisar, com base no sistema jurídico brasileiro, os pos-
síveis riscos e benefícios, bem como os limites e possibilidades à utiliza-
ção do DNA para fins forenses. Mais concretamente, pretende-se
apresentar os impactos jurídicos e sociais, bem como o contexto jurídi-
co-político vinculados à regulamentação dos bancos de perfis genéticos
para fins de investigação criminal no Brasil, a qual resultou na criação
da Lei n.º 12.654, de 2012.
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 69

2. PRESSUPOSTOS INTERDISCIPLINARES PARA O DEBATE


JURÍDICO

As descobertas na área da genética humana são consideravelmente


amplas e sua aplicação técnica cada vez mais diversificada, não apenas
na área da identificação civil e penal, mas também no contexto da pes-
quisa e da medicina. Os resultados obtidos no campo do diagnóstico
genético são significativos e seu principal benefício consiste na possibi-
lidade de prevenir doenças ou evitar o seu desenvolvimento, já que é
possível descobrir precocemente a presença de genes e cromossomos
alterados, os quais são responsáveis por inúmeras enfermidades genéticas.
Com os avanços das biotecnologias nos últimos anos, mais precisamente
com a possibilidade de estabelecer a função e regulação dos genes, a
pesquisa e a medicina são efetivamente as áreas que contam com um
arcabouço normativo mais avançado em detrimento de outras, como a
do Direito Penal.
Por outro lado, é preciso sublinhar que a despeito da presença maciça
das biotecnologias e pesquisas genéticas no país, inclusive forense, bem
como da proliferação de documentos normativos no plano internacional,
a população brasileira é particularmente afetada pela criminalidade e
pelos reflexos de um sistema jurídico debilitado e titubeante. A incipi-
ência jurídica e mesmo imaturidade sobre o tema no Brasil, tanto na
literatura quanto na regulamentação do Direito estatal positivo, deve-se
ao impacto recente das biotecnologias na temporalidade e na espaciali-
dade do Direito, bem como nas categorias jurídicas clássicas.
É sabido que a criação de bancos genéticos ocorre com finalidades
distintas. No entanto, é preciso considerar a complexidade e o necessá-
rio imbricamento dessas finalidades, especialmente na criação e gestão
dos biobancos, pois há um fator comum anterior a todos os tipos bancos
que é o acesso ao material biológico (genético) humano.
De fato, categorias jurídicas são postas em discussão pelas novas tec-
nologias aplicadas às ciências da vida, o que acaba por revelar o impacto
produzido nas mais diversas áreas do saber humano e, especialmente, nos
fundamentos sobre os quais se assenta o sistema jurídico, enquanto regu-
lador das ações humanas. Nesse contexto, em que pese a avançada nor-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
70 Taysa Schiocchet

mativa constitucional, notadamente a consolidação de princípios e direitos


fundamentais que o país conquistou a partir de 1988, diversos são os
desafios a serem enfrentados. Em uma sociedade marcada pela profunda
desigualdade socioeconômica, pelas pressões supranacionais sofridas em
virtude de interesses econômicos do mercado globalizado e pelos altos
índices de criminalidade, a efetiva concretização dos direitos fundamentais,
ainda que regulamentados, resta profundamente prejudicada.
Outro aspeto relevante é a constatação de que “os discursos biotec-
nológicos são uma composição de fatos biotecnológicos e de discursos
justificativos que os apresentam como necessários, ou mesmo fatais”
(Sfez, 2001: 3) (2). Diante disso, qualquer estudo que tenha por objeto
a biotecnologia ou um tema a ela relacionado deve estar atento a sua
dupla composição, de modo a identificar além das descobertas científi-
cas e inovações tecnológicas, os discursos, as representações e as ideolo-
gias que estão por detrás delas, mascarando seus antagonismos e domi-
nações. Nesse aspeto, os estudos antropológicos e, mais amplamente,
os interdisciplinares são uma eficaz ferramenta para a adequada compre-
ensão desse complexo fenômeno.
Portanto, a análise das implicações jurídicas do acesso e da explo-
ração de material e informação genéticos humanos deve ser feita a partir
de uma perspetiva interdisciplinar, que auxilie a demonstrar a insufici-
ência dos discursos científicos isolados e mesmo das categorias jurídicas
clássicas, como: liberdade, dignidade, justiça individual, autonomia,
autodeterminação informacional, presunção de inocência, direitos cole-
tivos, pessoa, privacidade, intimidade, segredo, discriminação, doação e
outras. Daí a necessidade de repensar as categorias existentes, a partir
de um enquadramento normativo fundamentado em pilares que não se
restrinjam mais àqueles concebidos classicamente no interior do Estado
soberano, ainda que nele contextualizados (Foucault, 2004; Andorno,
2010; Schiocchet, 2009).

(2)
Tradução livre de : “Les discours biotechnologiques sont un mixte de faits
biotechnologiques et de discours justificatifs qui les présentent comme nécessaires,
voire fatals”.

Coimbra Editora ® Parte I


Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 71

A América Latina e, em especial, o Brasil, não estão alheios a essa


realidade biotecnológica que necessita “acessar o humano” em nome da
ciência, da saúde ou da segurança (3). O Brasil, por exemplo, está na
rota internacional da realização de estudos genéticos multicêntricos para
as indústrias farmacêuticas. A oferta de testes genéticos no país é um
fato ordinário e o acesso irrestrito, a menos que a condição econômica
seja um impeditivo. A biopirataria também já chegou a terras tupini-
quins. As suas denúncias retomam ciclicamente espaço na mídia. Depois
das plantas exóticas e dos animais em extinção, chegou a vez do ser
humano ser biopirateado. Os noticiários reportam a coleta irregular de
material genético de povos indígenas brasileiros e denunciam a sua
comercialização por repositórios norte-americanos. Entre uma notícia
e outra, entre um caso e outro, os discursos em torno do genoma humano
ganham espaço e as representações acerca das implicações genéticas são
cada vez mais assimiladas pelos indivíduos (Schiocchet, 2009).
No Brasil e na América Latina, em geral, torna-se imprescindível
que a análise sobre os reflexos da conjunção entre direito, tecnociência
e genética seja realizada levando em consideração o perfil de uma socie-
dade que está em desenvolvimento e que é fortemente marcada pela
diversidade étnica e cultural. É preciso ter em mente que o problema
de alguns países latino-americanos como o Brasil e o fato de ainda
estarem em desenvolvimento não é a pobreza, mas a má distribuição
das riquezas. É preciso lembrar que o Brasil não é apenas uma potên-
cia econômica, mas é também fonte de recursos naturais valiosos e cada
vez mais cobiçados. É preciso lembrar que a diversidade brasileira não
é apenas genética, é étnica e também cultural. É preciso lembrar que
o país é referência tecnológica em diversas áreas. Enfim, é preciso
lembrar que a reflexão teórica deve estar cravada nessa realidade da
sociedade brasileira.
De fato, vive-se num país cujo acesso às biotecnologias de ponta em
centros de excelência dissemina rapidamente essas novas tecnologias, sob

(3)
Sobre o tema ver, exemplificativamente: Kidd (1991), Vander Velden (2005)
e Diniz (2007).

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72 Taysa Schiocchet

a forma de produtos no mercado; ao mesmo tempo em que possui um


enorme deficit social no que se refere ao acesso universal aos serviços
básicos (educação, saúde, segurança, lazer). Diante disso, é inegável que
o desenvolvimento tecnocientífico afeta de maneira peculiar o país, onde
é possível perceber uma tendência em assimilar, cada vez mais, as soluções
jurídicas elaboradas no plano internacional e de países desenvolvidos
tecnologicamente. Para tanto, porém, é preciso harmonizar tais referên-
cias externas às experiências, dificuldades e características da realidade
brasileira, seja em termos legais, sociais ou econômicos.
A força e os interesses presentes nos discursos biotecnológicos são
reveladores da união entre ciência e tecnologia na área da genética
humana. Os atores — produtores e reprodutores desses discursos — são
diversos, de acordo com o interesse visado: a) o mercado, representado
maioritariamente pelas indústrias e fornecedores de suprimentos tecno-
lógicos, buscando novas fontes de lucro com a expansão dos mercados;
b) os pesquisadores, em nome da ciência e da liberdade de pesquisa,
buscando novas descobertas, prestígio e financiamento para a continui-
dade das investigações; c) os indivíduos, preocupados com os riscos à
privacidade ou discriminação, mas, sobretudo, ansiosos por benefícios à
sua saúde em termos de prolongamento e qualidade de vida; d) o Estado
e alguns setores da sociedade em geral preocupados com a segurança
pública (4) e, finalmente, e) o sistema jurídico, tendo que conciliar os
interesses aparentemente inconciliáveis ou, por vezes, nem cogitados
pelos referidos atores.
Os anseios em termos de segurança pública e as preocupações em
termos de ameaças à privacidade tornam-se realidades palpáveis. O desa-
fio é encontrar o adequado equilíbrio. Nesse pacote de riscos e bene-
fícios estão incluídos temas de diversas ordens. O que eles têm em

(4)
Como exemplo, foi identificada uma quantidade expressiva de textos (científicos,
técnicos, jornalísticos e de opinião) que advogam fortemente pela utilização dessa tecno-
logia genética para fins de persecução criminal e para tanto se sustentam na certeza e
robustez probatória, no uso da tecnologia como algo necessariamente benéfico e disponí-
vel, na expressiva diminuição de casos arquivados e de erros para inocentar ou condenar.
Em geral, tal tecnologia é apresentada como a arma mais poderosa no combate ao crime.

Coimbra Editora ® Parte I


Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 73

comum é provocar o questionamento constante das verdades sobre as


quais os seres humanos fundam suas ciências, suas economias, suas
políticas e seus sistemas de normas. Nunca, talvez, problemas tão
microscópicos, como aqueles vinculados à genética molecular, exigiram
soluções tão macroscópicas do ponto de vista político-económico e, por
que não, jurídico.

3. CONTRAPONTOS ACERCA DOS IMBRICAMENTOS ENTRE


PREVENÇÃO DA CRIMINALIDADE E BANCOS DE DNA

É pressuposto desta pesquisa reconhecer a importância da utilização


forense do DNA, inclusive para fins de persecução criminal, assim como
a importância da sua adequada regulamentação. Nesse sentido, é igual-
mente importante identificar as reais possibilidades trazidas por essa nova
tecnologia genética, assim como apresentar claramente os seus limites
técnicos, éticos e legais, sem criar falsas expectativas a partir de discursos
puramente legitimadores do uso da técnica, os quais enfatizam os bene-
fícios e promessas, por um lado, e dissimulam os riscos, as incertezas e
as limitações, por outro.
O primeiro questionamento consiste em indagar se a utilização dos
perfis genéticos para fins de persecução criminal contribuirá efetivamente
para a diminuição da violência e da criminalidade. No que se refere a
esse aspeto, não se pode admitir a confusão entre os conceitos jurídicos
basilares de punição delitiva e prevenção delitiva.
É bastante provável que os métodos investigativos proporcionados pelo
uso dos perfis genéticos diminuam a impunidade em relação aos autores
de determinados delitos penais, contribuindo com uma tutela judicial mais
efetiva. No entanto, é necessário saber com maior precisão, com base, por
exemplo, em pesquisas realizadas nos países onde os bancos já foram
implantados, para então ter algum parâmetro — relativo — de comparação,
acerca da eventual diminuição da quantidade de crimes cometidos para,
então, poder ser possível falar em “combate à criminalidade”.
Nesse sentido, aliás, autores como Lorente Acosta (Acosta, 2002 apud
Bonaccorso, 2010: 183) afirmam que antes de se lançar abruptamente
na criação de banco de dados genéticos criminais, cada país, estrategica-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
74 Taysa Schiocchet

mente, deveria fazer um estudo prévio sobre seus índices de criminalidade


nos últimos 10 ou 20 anos, bem como sobre as medidas postas ou a serem
colocadas para seu controle ou diminuição. Só em seguida, deve-se ela-
borar um projeto de lei adequado frente às necessidades reais apuradas,
de forma a se construir um banco de dados que seja efetivamente opera-
cional frente à realidade específica do país.
No Brasil, os casos mais frequentemente citados para demonstrar a
utilidade e eficácia dos bancos de perfis genéticos são os crimes sexuais.
Portanto, cumpre analisar as características e fatores que envolvem tal
prática criminal no Brasil.
No que se refere ao autor do delito, em mais da metade dos casos
(62,7%) as vítimas de estupro conheciam seus agressores, somando-se
os percentuais de acusados que eram conhecidos, companheiros,
ex-companheiros, pais/padrastos, parentes ou que tinham alguma outra
relação com vítima. Em 29,7% dos casos os autores tinham relações
de parentesco com as vítimas (pais, padrastos e parentes) e em 10,0%
os autores mantinham ou mantiveram relacionamentos amorosos com
as vítimas, ou seja, eram companheiros ou ex-companheiros das mesmas
(Teixeira, 2011). Os dados acima apenas corroboram os estudos de
gênero amplamente conhecidos que demonstram que a violência sexual
praticada contra as mulheres (5) pelo marido ou companheiro está entre
as mais recorrentes.
Além disso, é preciso lembrar que a luta contra a impunidade nos
casos de crime sexuais é complexa e requer esforços conjuntos dos servi-
ços de saúde, das polícias, dos órgãos periciais e do Poder Judiciário.
Somente com estruturas preparadas para o acolhimento humano das
vítimas, onde elas sintam condições de prestar queixa e se submeter ao
necessário exame de corpo de delito poderá aumentar o número de ini-

(5)
Existe uma questão social que leva a acreditar que as mulheres pobres são
as que mais sofrem violências, porque os homens pobres são mais violentos. Porém,
essa visão não é correta, já que a violência familiar se dá em todas as classes sociais.
O que ocorre é que a visibilidade nas camadas mais pobres da sociedade é maior, na
medida em que as pessoas são mais próximas, os vizinhos acabam se envolvendo, e as
mulheres pobres denunciem mais essa violência (Barsted, 2006: 75).

Coimbra Editora ® Parte I


Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 75

ciativas de registro dos casos. Para a maioria das vítimas, é muito difícil
registrar a ocorrência por medo de serem estigmatizadas em seu meio
social, ou mesmo pela própria família, razão pela qual se estima que menos
de 10% dos casos de violência sexual cheguem às delegacias. No Brasil
a maioria dos crimes sexuais é cometida por homens comuns, na maioria
das vezes do convívio próximo ou com algum grau de parentesco com a
vítima, e que apesar da reincidência típica dos crimes sexuais, acredita-se
que 90% não sejam denunciados (Albuquerque, 2008: 13).
Tais dados não implicam concluir que o banco de perfis genéticos
não possa ser útil, ao contrário, armazenar perfis genéticos oriundos de
cenas de crimes pode auxiliar a solucionar mais crimes, mas no caso de
amostras de indivíduos identificados (suspeitos ou acusados), esse arma-
zenamento será importante apenas se os crimes futuramente cometidos
pelo mesmo indivíduo possuírem vestígios biológicos (de DNA) rele-
vantes. Nesse sentido, o banco ou o uso do DNA para fins de perse-
cução criminal pode servir como mecanismo para elucidação de crimes,
o que não está direta e necessariamente ligado à “redução da crimina-
lidade” brasileira.
Contrariamente ao que se tem observado na literatura e nos dados
estatísticos brasileiros, os estigmas em relação ao perfil da população car-
cerária aliados ao de que os crimes sexuais são praticados por pessoas
desconhecidas, cria no imaginário o mito de que com a implantação do
banco de perfis genéticos para fins criminais se reduziriam os índices de
criminalidade. Entretanto, como se pode observar, a população carcerária
é composta principalmente por condenados por crimes contra o patrimô-
nio, razão pela qual o uso inadvertido das taxas de homicídio apenas, acaba
por desvirtuar o real perfil da criminalidade no Brasil.
Diante disso, é possível questionar em que medida seria o DNA a
peça chave para a condenação de mais homicidas e estupradores, quando
no Brasil a criminalidade tem como uma das principais fontes os crimes
contra o patrimônio? De fato, quanto mais crescem os números da
violência, mais surgem questionamentos sobre alternativas para diminuir
os índices de criminalidade. Em se tratando de crimes sexuais não
resolvidos por dificuldade probatória, a implantação do banco de perfis
de DNA seria uma opção para solucionar os casos que fazem parte das
Regulação e direito Coimbra Editora ®
76 Taysa Schiocchet

estatísticas de crimes não resolvidos. Para os casos em que o agressor é


conhecido — a maioria deles segundo os dados apresentados — não
haveria a necessidade do banco de perfis propriamente para realizar uma
eventual coincidência de amostras individuais.
Além disso, o uso do DNA teria uma influência relativa já que ele
não seria a prova única e, portanto fundamental para o convencimento
do juiz, salvo se houver o falecimento da vítima, a qual não poderia,
portanto, indicar o eventual agressor conhecido. Nos casos em que o
DNA for a prova única, ele terá importância para o processo no sentido
de indicar que o sujeito esteve presente na cena do crime ou mesmo que
teve relações sexuais com “vítima”, mas em si mesmo ou isoladamente
o DNA nada esclarece acerca da existência ou não de consentimento
para a relação sexual. Isso somente poderá ser inferido a partir de outras
circunstâncias analisadas em conjunto com o laudo pericial de análise
do perfil genético. Tudo isso para dizer, em síntese, que a questão é
menos evidente e mais complexa do que pode parecer.

3.1. A eficácia dos bancos de perfis genéticos frente ao “combate


à criminalidade”

Descrita por vários autores como a impressão digital dos tempos


modernos, a identificação de indivíduos por perfil de DNA é nomeada
como a maior descoberta da ciência forense desde a tradicional impres-
são digital, sendo inclusive objeto de comparação pela literatura espe-
cializada, mediante o uso da expressão “impressão digital genética”, nas
palavras de Machado et al. (2011).
De fato, o DNA pode ser usado como forma de demonstrar a cul-
pabilidade de criminosos, inocentar suspeitos e mesmo condenados,
identificar corpos e restos humanos em desastres aéreos e campos de
batalha, determinar paternidade, auxiliar nos casos de desaparecimentos
e trocas de bebês em berçários, bem como detetar substituições e erros
de rotulação em laboratórios de patologia clínica, conforme destaca Pena
(2005). No que se refere à utilização para fins de investigação criminal,
as amostras são colhidas no local do crime e devem ser comparadas com
outras recolhidas do suspeito. As chamadas amostras-referências são
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 77

adquiridas por meio da raspagem da parte interna da bochecha ou pelo


sangue e serão comparadas com aquelas colhidas onde ocorreu o crime.
Além do sangue e saliva, podem ser retirados fios de cabelo para coleta
de DNA (devendo a coleta ser feita desde a raiz) e o fio armazenado em
envelope estéril.
Nesse contexto, o banco de DNA é apontado como uma ferramen-
tal essencial ao “combate à criminalidade”, notadamente dos crimes
sexuais, uma vez que identifica os agressores, mesmo no caso de não
haver nenhum suspeito conhecido. O principal argumento para essa
justificativa é o de que uma característica marcante desse tipo de crime
é a reincidência, pois os criminosos sexuais costumam cometer o mesmo
crime ou similar, afetando múltiplas vítimas, geralmente aumentando
sua natureza, gravidade e frequência (Albuquerque, 2007: 14).
Por isso, em crimes que deixam vestígios biológicos, o banco de DNA
é visto como uma forma de solução para a impunidade, com o argumento
de “coibir a prática de crimes”. Entretanto, em que pese a ocorrência de
crimes sexuais cometidos por assassinos em série, a maioria dos crimes
sexuais são cometidos por pessoa conhecida, que, portanto, não necessi-
taria ser identificada através do seu perfil genético, em princípio.
Diante da realidade contextualizada, das características da crimina-
lidade no Brasil e da finalidade primordial do uso do DNA no âmbito
forense — auxiliar na persecução de um eventual autor de delito — não
é possível afirmar categoricamente que o banco de perfis genéticos é a
solução para o “combate à criminalidade”. Seria leviano fazer essa afir-
mação, especialmente no Brasil, onde a criminalidade possui caracterís-
ticas específicas e mesmo distintas em relação aos países onde tal tecno-
logia já está implantada.
É necessário, primeiramente, discernir a punição frente à constatação
da autoria do delito, por um lado, e a eventual — portanto, futura e
incerta — redução da criminalidade, por outro lado. É difícil demonstrar,
mesmo por meio de pesquisas confiáveis, que a redução da criminalidade
é um efeito direto da criação de um banco de perfis genéticos para fins
de persecução criminal, em razão de diversos fatores que podem influen-
ciar o “combate à criminalidade”. Aliás, em diversos países, como o Reino
Unido, questiona-se fortemente a eficiência desse tipo de banco, especial-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
78 Taysa Schiocchet

mente frente à relativização de direitos e garantias fundamentais em prol


de um bem ou interesse coletivo (no caso a redução da criminalidade),
que muitas vezes não se concretiza. Ao menos não na proporção argu-
mentada por aqueles que advogam pela criação e expansão do banco.
Portanto, em resumo, o argumento do “combate à criminalidade”
associado aos bancos de perfis genéticos deve ser relativizado, vez que o
seu impacto no combate à criminalidade pode ser bastante reduzido.
No Reino Unido, país que possui uma ampla experiência nessa questão
aliás, ficou demonstrado que a expansão do banco de perfis não implicou
no aumento da solução de delitos (autoria) com o auxílio dos perfis
genéticos, conforme se pode observar no quadro abaixo.

DNA detections are driven


by the number of scene profiles loaded per year

Sources: UK DNA database annual reports and Home Office crime data

O grande problema oriundo da massificação mediática e da absor-


ção do argumento do “combate à criminalidade” pela sociedade é que
eles podem gerar um efeito “rebote” perverso que é a perda de confiança
da população nos órgãos e instituições públicas que se arrogaram o poder
de, ipsis literis, “reduzir a criminalidade” brasileira.
Não basta, para a elucidação de um delito, apenas colher vestígios.
É necessário comparar os dados genéticos desses fluídos colhidos no local
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 79

do crime com o dos suspeitos, e, também, com os demais indícios.


É preciso estabelecer a devida proporção do impacto da criação de um
banco de perfis genéticos sobre a realidade criminal brasileira. Além do
mais, a criminalidade no Brasil passa por outras vias, como a violência
juvenil urbana e o tráfico de drogas, o que pode ser comprovado pelo
último relatório do Ministério da Justiça, datado de junho de 2011,
sobre o departamento penitenciário nacional, o qual aponta que o per-
fil da população carcerária brasileira é composto, em sua maioria, de
homens na faixa etária de 18 a 24 anos e de cor não branca (6). Estes
homens jovens cometem, em sua maioria, crimes contra o patrimônio,
a pena cumprida varia de 4 a 8 anos, e o regime de cumprimento da
pena é o fechado. Além disso, 198.803 possuem ensino fundamental
incompleto. Dados que podem, inclusive, colocar em questão o modelo
de política criminal consolidado no Brasil e o papel do banco de perfis
genético frente a este modelo.
O fato é que, com Machado (2011), não se vislumbra uma justifi-
cativa plausível para pensar que a inclusão de um perfil deva servir para
“reforçar” a pena de um indivíduo. Para evitar este tipo de argumenta-
ção é crucial estar atento ao perigo de tornar o uso da tecnologia de
DNA não um instrumento de identificação individual, mas sim um
instrumento de estigmatização (ENFSI, 2012).
No que se refere a esse aspeto, é interessante a perspetiva crítica do
sociológico Duster (2006: 194) sobre a experiência do uso forense do
DNA nos EUA frente a vulnerabilidade de grupos étnicos e a possibili-
dade de manipulação indevida do DNA pela polícia:

Without this discussion, we are left wondering how it is pos-


sible that some people see DNA evidence as definitive, while others
maintain strong skepticism — that DNA technology, no matter
how definitive, may not be used fairly in a criminal justice system
that is tainted and sometimes corrupted. Thus African Americans

(6)
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE-
94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm

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80 Taysa Schiocchet

and Latinos in the poorest neighborhoods in our major cities are


far more likely to approach DNA evidence with a general mistrust
for reasons including those described above.

That is, if police can plant cocaine and guns on those that they
later testify against, and obtain a conviction, they can surely plant DNA.
The legitimacy of the criminal justice system rests primarily on fair
application of laws. Who (or what part of society) would believe that
police would actually plant DNA evidence, and even if they did, can
DNA evidence ever stand alone without other circumstantial evidence?

É fundamental, portanto, distinguir no argumento do “combate à


criminalidade” o impacto em termos de punição frente ao delito (como
indicado acima) e de prevenção ou redução da criminalidade — sem
dados concretos para a realidade brasileira até o momento. Além de ser
reduzido — ou mesmo nulo em alguns casos — o valor dos bancos de
perfis genéticos na “prevenção da criminalidade”, ele não deve ser con-
fundido com a punição.
De fato, o Brasil sofre com o problema crônico da violência e cri-
minalidade. No entanto, reitera-se que é fundamental identificar os
contornos específicos desses fenômenos, para saber como e em que
medida efetivamente o uso forense do DNA pode contribuir. Em outras
palavras, é preciso identificar quantitativamente quais os delitos que
requerem uma maior atuação estatal e, ao mesmo tempo, as causas des-
ses delitos, de modo que se tenha uma política criminal mais adequada
as nossas dificuldades.

4. O DEBATE LEGISLATIVO BRASILEIRO ACERCA DA LEI


N˚ 12.654/2012

A despeito da presença maciça das biotecnologias e pesquisas gené-


ticas no país, inclusive forense, bem como da proliferação de documen-
tos normativos no plano internacional, a população brasileira é particu-
larmente afetada pela criminalidade e pelos reflexos de um sistema
jurídico debilitado e titubeante. Já mencionou-se a incipiência e mesmo
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 81

imaturidade jurídica sobre o tema no Brasil. No entanto, o vácuo nor-


mativo, existente em diversos países, não é óbice para a criação de ban-
cos de perfis genéticos para fins de persecução criminal. Ao contrário,
a criação dos referidos bancos acaba servindo como força propulsora à
elaboração normativa. No Brasil não foi diferente.
Contudo, no que se refere ao processo de criação dos bancos de per-
fis genéticos no Brasil (negociações, cartas de intenções, capacitações etc.),
o fato é que o princípio da transparência restou prejudicado, de modo que
não se tem muitas informações, pelos canais oficiais do governo, das asso-
ciações ou órgãos públicos envolvidos sobre todas as etapas de mobilização
política, notadamente vinculadas à Polícia Federal, anteriores ao debate
legislativo propriamente.
De qualquer forma, o primeiro passo para chegar-se ao atual estágio da
criação da Rede de Bancos de Perfis Genéticos no Brasil foi dado em 1995,
quando, em Brasília, foi inaugurado o laboratório de DNA da Polícia Civil
do Distrito Federal. Nesse laboratório, diversos peritos de outros Estados
foram treinados. Assim, surgiram laboratórios no Estado do Rio Grande
do Sul, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraíba.
No Brasil, a implantação do uso forense do DNA ocorreu no ano de
1994, sendo criada a Divisão de Pesquisa Forense (DPDNA), vinculada à
Polícia Civil do Distrito Federal. Primeiramente, fazendo análises de homi-
cídios, investigação de paternidade e a busca de parentes desaparecidos no
regime militar. Com a intensificação dessa prática, houve a proposição do
projeto de lei n.º 417/2003, alterando o artigo 1.º da Lei n.º 10.054/00 e
incluindo o uso de DNA como uma das formas de identificação criminal.
A partir de uma parceria com o FBI, em 2010, foram instalados o
CODIS 5.7.4, com finalidade criminal, e o CODIS 6.1, para identificação
de pessoas desaparecidas e vítimas de desastres, no Brasil. Foram capacitados
20 peritos criminais para a utilização do CODIS e foi criado o GT-RIBPG.
No ano de 2011, os bancos de perfis genéticos estaduais começaram a ope-
rar. Com a realização da I Conferência Anual da Rede Integrada de Bancos
de Perfis Genéticos foi aprovado o PLS 93/2011 no Senado.
A Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos no Brasil conta,
atualmente, com dezoito laboratórios, localizados em diversos estados,
no Distrito Federal e um no laboratório da Polícia Federal. Esses labo-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
82 Taysa Schiocchet

ratórios armazenam os materiais genéticos coletados nas cenas de crimes,


com o objetivo de serem comparados com o perfil genético de um indi-
víduo, suspeito ou condenado pela prática do crime.
Por outro lado, com o objetivo de verificar o panorama da produção
legislativa acerca do assunto “Bancos de Perfis Genéticos para Fins de
Persecução Criminal” no Brasil, realizou-se uma pesquisa nos arquivos da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal brasileiros, disponíveis em
seus respetivos sites oficiais. Nessa busca foram utilizados vários termos
relacionados ao tema e os resultados obtidos foram selecionados conforme
sua pertinência em relação ao assunto dos bancos de DNA de modo amplo.
Na Câmara dos Deputados, encontrou-se 20 Projetos de Lei rela-
cionados aos seguintes temas: bancos de DNA; discriminação e suas
respetivas sanções, por predisposição ao desenvolvimento de doenças
genéticas; aconselhamento genético pelo Sistema Único de Saúde; regu-
lamentação dos exames genéticos e a proteção de seus resultados; normas
relacionadas à proteção e tratamento de dados pessoais; criação de ban-
cos estaduais de DNA de recém-nascidos; entre outros.
No Senado Federal foram encontrados 4 Projetos de Lei que guardam
relação com o objeto da pesquisa, versando sobre: coleta de material
genético ao lavrar auto de prisão em flagrante e na abertura de inquéritos
policiais e outros procedimentos investigatórios; identificação genética
aos condenados por crimes contra pessoa ou considerados hediondos;
acesso e conservação do patrimônio genético; discriminação, e suas res-
petivas sanções, por predisposição ao desenvolvimento de doenças gené-
ticas; entre outros.
Nos últimos 15 anos no Brasil, foram apresentados 24 (vinte e
quatro) projetos de lei versando sobre coleta de material genético
humano, sendo 20 (vinte) de iniciativa legislativa da Câmara dos Depu-
tados e 4 (quatro) do Senado Federal. Dessas proposições legislativas,
apenas 7 (sete) tratavam sobre coleta de material genético para fins de
investigação criminal e identificação civil, sendo a maioria de iniciativa
da base governista. Em percentuais, esses projetos representam 29,16%
dos 24 projetos citados anteriormente.
Em que pese a mobilização de um conjunto de atores, notadamente
peritos forenses, desde a década de 90, no contexto específico da produção
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 83

legislativa os anos de 2011 e 2012 foram decisivos para a aprovação da


Lei n.º 12.654, de 28 de maio de 2012 (7), que autoriza a coleta de mate-
rial genético para fins de persecução criminal e regulamenta o banco de
perfis genéticos para esse mesmo fim. No que se refere ao processo de
elaboração e discussão da legislação, ele não foi efetivamente democrático,
no sentido de que não houve uma discussão mais ampla com a sociedade
sobre a questão. Mesmo entre alguns especialistas de áreas distintas o tema
não era muito nítido. O debate, portanto, ficou concentrado em questões
técnicas e restrito a algumas elites — notadamente a elite técnica: composta
por peritos e policiais; em segundo lugar a elite política: composta por
alguns legisladores diretamente amparados pela elite técnica e, por fim, a
elite intelectual: quase inexpressiva, composta por poucos juristas e alguns
outros profissionais como sociólogos e antropólogos.
A referida Lei regulamenta a questão nos seguintes termos:

(…) Art. 5.º-A. Os dados relacionados à coleta do perfil gené-


tico deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos,
gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.

§ 1.º As informações genéticas contidas nos bancos de


dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos
ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética
de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais
sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos.
§ 2.º Os dados constantes dos bancos de dados de perfis
genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e admi-
nistrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização
para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial.
§ 3.º As informações obtidas a partir da coincidência de
perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial fir-
mado por perito oficial devidamente habilitado.

(7)
Publicada no Diário Oficial da União em 29 de maio de 2012, com vacatio legis de
180 dias e vigência a partir de 29 de novembro de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12654.htm>. Acesso em: 30.06.2012.

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84 Taysa Schiocchet

Art. 7.º-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados


ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição
do delito.
Art. 7.º-B. A identificação do perfil genético será armazenada
em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido
pelo Poder Executivo.
(…)
Art. 9.º-A Os condenados por crime praticado, dolosamente,
com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos
crimes previstos no art. 1.º da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de
1990, serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil
genético, mediante extração de DNA — ácido desoxirribonucleico,
por técnica adequada e indolor.

§ 1.º A identificação do perfil genético será armazenada


em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expe-
dido pelo Poder Executivo.
§ 2.º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá
requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado,
o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.

No entanto, seria inadequado supor que a recente utilização de tal


tecnologia — tanto no Brasil como no Reino Unido, que inaugurou o
primeiro banco desse tipo em 1995 — ocorre sem questionamentos
éticos, sociais e legais. O tema é controverso. O grande desafio reside
em esclarecer as questões técnicas e jurídicas, por meio de um constante
diálogo interdisciplinar, transparente e republicano.

5. PARÂMETROS JURÍDICOS PARA A REGULAMENTAÇÃO


DOS BANCO DE PERFIS GENÉTICOS PARA FINS DE PER-
SECUÇÃO CRIMINAL NO BRASIL

Os bancos de perfis genéticos para fins de persecução criminal


necessitam do acesso ao corpo humano ou parte dele, enquanto fonte
biológica, para alcançar algum tipo de resultado. Esse acesso é, em geral,
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 85

viabilizado mediante o consentimento informado da pessoa, enquanto


expressão da sua vontade. A obtenção da amostra biológica é, assim, a
ponte de acesso ao corpo. Nesses casos, é preciso questionar se é devido,
permitido ou proibido utilizar o mesmo enquadramento normativo da
disposição corporal, realizado mediante disposição gratuita e operacio-
nalizada pelo consentimento informado, para o campo criminal.
Ainda que a Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Huma-
nos (UNESCO, 2003) não se aplique especificamente aos bancos de
perfis genéticos para fins de persecução criminal, é importante considerar
sua preocupação com o acesso e manipulação de material e dados gené-
ticos humanos. Ao mesmo tempo em que aceita as diretrizes legislativas
internas de Direito Penal, ela sinaliza os limites para a criação do deno-
minado “banco de dados de DNA”. Para tanto, a referida Declaração
traz definições importantes, inclusive para os bancos de perfis genéticos
para fins de persecução criminal.
Os dados associados a uma pessoa identificável, previstos no item
IX, são fundamentais para atingir o objetivo de um banco de dados para
identificação criminal, já que identificam e qualificam o doador do
material genético. Porém, para evitar divulgação ilícita e garantir a
proteção dos dados, o item X, corresponde a não identificação direta da
pessoa, que é feita apenas através de um código. Na perspetiva de um
banco de dados para persecução penal, os dados irreversivelmente dis-
sociados seriam aqueles que confrontados com outros perfis não apre-
sentaram coincidência, conforme o item XI.

5.1. Enquadramento normativo brasileiro: A Constituição de 1988


e seus reflexos

É imprescindível a discussão sobre os limites que a Constituição


Federal brasileira pode apresentar à regulamentação dos bancos de perfis
genéticos para fins de persecução criminal, no sentido de proteção a
determinados bens jurídicos fundamentais. Entretanto, o que se tem
observado na prática legislativa é o recurso constante às finalidades de
política criminal, sobretudo no que tange à persecução criminal, para
relativizar direitos e garantias fundamentais em nome da observância e
Regulação e direito Coimbra Editora ®
86 Taysa Schiocchet

atendimento ao direito da coletividade à segurança. Busca-se o instru-


mento imediatista e simbólico da lei penal como solução para os pro-
blemas de segurança pública e para os deficits do aparato do Estado no
combate à criminalidade.
A promulgação da Constituição Federal de 1988 abriu para o Bra-
sil uma nova gama de possibilidades de reestruturação social, estatal e
jurídica, com a positivação de diferentes núcleos de direitos fundamen-
tais — individuais, coletivos e culturais com uma profundidade como
nunca ocorrera anteriormente na vida constitucional do País, estando,
entre as transformações ocorridas, a edição da legislação penal.
Diferentemente do que a lógica sintática nos demonstra, na qual a
expansão do direito e o surgimento de novas leis e normas deveria represen-
tar uma melhor e mais abrangente proteção dos bens jurídicos devido ao
aumento do espectro de condutas sujeitas à incidência da lei penal, a poten-
cial inefetividade da legislação penal é aparente. No mesmo sentido, pode-se
citar o caso do terrorismo nos países europeus, por exemplo, onde o que se
percebe é que, segundo Meliá (2011), o terrorismo não é efetivamente
combatido através de uma saturação de leis criminais, mas pelo contrário,
as mesmas sobrecarregam a capacidade preventiva, realçando ainda mais a
ideia de que, muitas vezes, lançamos inúmeras regras em nosso sistema
jurídico sem ao menos saber sua função e o que está sendo protegido.
É possível perceber que, apesar da crescente expansão do direito
penal e do surgimento de inúmeras leis referentes a novas situações antes
desconhecidas pelo ordenamento, apenas estamos suprindo de forma
simbólica as necessidades da sociedade no momento em que criamos leis
que, muitas vezes, não são efetivas, portanto em meio à situação da
possível implementação de um banco de perfis genéticos para fins de
persecução criminal é necessário cuidado na formulação das leis referen-
tes ao tema, para que haja parâmetros bem definidos quanto a sua uti-
lização e limites impostos pelo Direito. Isso porque a legitimação do
referido banco não representa uma melhor proteção e abrangência jurí-
dica, já que, se o mesmo não for aplicado correta e cuidadosamente, não
possuirá a efetividade buscada em sua idealização.
Por essas razões, somente depois de enfrentadas e superadas as dis-
cussões de ordem constitucional é possível pensar na regulamentação
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 87

específica referente aos bancos de perfis genéticos para fins de persecução


criminal. Dentre as questões consideradas fundamentais, destacam-se
algumas delas.
Primeiramente, é imperioso analisar se é constitucional que a coleta
de material genético ocorra compulsoriamente (mesmo mediante “técnica
não invasiva”) ou se deve ser voluntariamente, mediante consentimento
informado (ou assentimento), tendo em vista os direitos fundamentais
possivelmente afetados, dentre eles: integridade corporal (em sentido
amplo), intimidade (tanto corporal quanto genética), autodeterminação
informacional e corporal, não autoincriminação, liberdade religiosa, assim
como a tutela judicial efetiva.
Desse questionamento, decorre a necessidade de analisar qual é a exten-
são ou o sentido do princípio constitucional relativo à proibição de produ-
ção probatória contra si mesmo no direito brasileiro (do ponto de vista da
legislação, da jurisprudência e da doutrina) Especialmente tendo em vista
que o DNA nesses casos possui dupla natureza, isto é, trata-se de um ato
de investigação (identificação) e, ao mesmo tempo, um ato de produção
probatória (prova) — ainda que de natureza probabilística e falível.
Pode-se considerar este aspeto um dos maiores desafios jurídicos a ser
enfrentado, isto porque a Constituição Federal brasileira (além da Conven-
ção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário)
prevê expressamente como direito fundamental — portanto cláusula
pétrea — que ninguém tem o dever de produzir prova em seu desfavor
(autoincriminação), mesmo diante de uma acusação formal. Trata-se, em
outras palavras, do princípio da autodefesa que integra o direito ao silêncio,
o direito de não produzir provas contra si mesmo, bem como o direito de
não confessar. Concretamente, é preciso definir qual o sentido e extensão
desses direitos no ordenamento jurídico brasileiro.

5.2. Aspetos pontuais relativos à Lei n.º 12.654, de 2012

Uma lei que estipule tamanha mudança na forma de identificação


e investigação criminais deve vir acompanhada de estudos aprofundados
sobre o assunto, mediante estudos de caso, análises de constitucionalidade
em relação ao mérito, exame sobre como colocar esses novos procedi-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
88 Taysa Schiocchet

mentos em prática, sobre os benefícios e prejuízos por eles trazidos, bem


como sobre a segurança e garantia que deve envolver os materiais cole-
tados. Isso para que não se tenha mais uma lei sem utilidade prática e
que não satisfaça as necessidades ou, pior, que agrida os direitos dos
cidadãos e os princípios ditados pela Constituição Federal brasileira. Por
isso, é preciso que se leve em consideração invariavelmente os postulados
processuais penais — fundados nos postulados constitucionais — de
modo que se compreenda o Direito Processual Penal não apenas como
instrumento do Direito Penal, mas como mecanismo concretizador das
promessas constitucionais.
A Lei n.º 12.564, de 2012 inclui salvaguardas importantes, como a
necessidade de autorização judicial para o acesso aos dados genéticos
armazenados (artigo 9.º-A, parágrafo 2.º), bem como o limite de tempo
para a retenção de perfis de DNA de pessoas condenadas (artigo 7.º-A).
Contudo, ela não prevê a obrigatoriedade de destruição das amostras
biológicas, tampouco — e talvez o aspeto mais importante do ponto de
vista democrático e da transparência — aproveitou a oportunidade de
realizar uma consulta pública mais ampla que contemplasse além das
questões jurídicas e científicas, os impactos sociais e econômicos do uso
forense da tecnologia genética. No mesmo sentido, pouco se avançou
em termos de regulação dos padrões de qualidade e segurança de coleta,
armazenamento e processamento do DNA — em toda a cadeia de cus-
tódia — até o seu uso no contexto de um processo penal determinado.
Quanto à necessidade de autorização judicial e, portanto, maior
restrição ao uso por parte da polícia, Machado et al. (2011), em uma
pesquisa de campo em Portugal em que consideram as restrições à polí-
cia necessárias, pois há uma desconfiança generalizada nas práticas poli-
ciais. Pelo mesmo caminho segue a perceção social brasileira sobre a
atividade policial avaliada pelo Sistema de Indicadores do Instituto de
Pesquisa Econômica (IPEA, 2012). Nesse contexto, mais de 50% da
população confia pouco ou não confia na instituição Polícia Civil e cerca
de 46% tem a mesma impressão sobre a Polícia Federal.
No Brasil existem duas formas de identificação das pessoas: a civil
e a criminal. A regra geral, nos termos do artigo 5.º, inciso LVIII da
Constituição Federal, é a de que a pessoa que for civilmente identificada
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 89

não será submetida à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas


em lei. A identificação civil, regulada pela Lei n.º 12.037, de 2009, é
realizada por meio de carteira de identidade, de trabalho ou passaporte,
por exemplo. Já a identificação criminal (8) ocorrerá por meio de foto-
grafia, digital e, agora, perfil genético.
A Lei n.º 12.654/2012, com a finalidade de permitir a identificação
criminal mediante a coleta de material biológico, alterou duas leis. A Lei
n.º 12.037/09 (Lei de Identificação Criminal) e a Lei n.º 7.210/84 (Lei
de Execuções Penais). Foi prevista a possibilidade de coleta do material
biológico apenas quando se tratar de réu condenado pela prática de
determinados crimes (dolosos, com violência de natureza grave, hedion-
dos — não incluídos aqueles equiparados aos hediondos, como o tráfico
de drogas e tortura). Ainda que a Lei não seja expressa, acrescenta-se a
necessidade do trânsito em julgado da sentença para a coleta, garantia
decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência
(art. 5.º, LVII).
Já durante as investigações, para apurar a autoria de determinado
crime, a Lei permite o acesso ao banco de perfis genéticos, mediante
requerimento judicial, mas não a coleta do material biológico.(9)Ou seja,
o uso e eventual eficácia do banco na fase da investigação estaria vincu-
lado à reincidência por parte de uma pessoa condenada anteriormente
e que teve seu perfil genético armazenado.
Quanto ao requisito de autorização judicial, a Lei pode dar margem
a diferentes interpretações ao não tratar expressamente de duas situações
distintas quanto ao acesso e uso do DNA, quais sejam: i) o momento da
coleta do material genético, após condenação — sem menção expressa
quanto à necessidade de autorização judicial — e ii) o momento do acesso
ao perfil genético armazenado no banco, durante a investigação — para
o qual a Lei estabelece expressamente a necessidade de autorização judi-

(8)
De todo modo, convém registrar que a identificação biométrica (por meio das
digitais e mesmo fotos) vem sendo utilizada no Brasil para outros fins — além dos cri-
minais — como para passaporte, entrada em bibliotecas, universidades, academias etc.
(9)
Sobre a natureza da informação genética, bem como a diferença entre mate-
rial, dado, informação e perfil genéticos, ver: Schiocchet (2011).

Regulação e direito Coimbra Editora ®


90 Taysa Schiocchet

cial. A regulamentação brasileira é, ao final, menos rigorosa quanto ao


acesso ao DNA mediante a coleta e mais rigorosa quanto ao uso posterior
da informação já processada e armazenada.
É possível questionar ainda acerca da efetividade da Lei, caso o
condenado se negue a ceder o material biológico para o exame de DNA.
Parte da doutrina jurídica brasileira, que defende mais fortemente os
direitos e garantias do cidadão, tenderá a negar o direito do Estado
responsabilizar disciplinarmente ou penalmente o sujeito, sob pena de
inconstitucionalidade.
Quanto à extensão do princípio da não autoincriminação, vale
mencionar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, por conta do
princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), que o
acusado não é obrigado a fornecer padrão vocal ou padrão de escrita
para que sejam realizadas perícias que possam prejudicá-lo. Senão, veja-se
dois precedentes do STF nesse sentido:

Habeas Corpus. Denúncia. Art. 14 da Lei n.º 6.368/76.


Requerimento, pela defesa, de perícia de confronto de voz em
gravação de escuta telefônica. Deferimento pelo juiz. Fato
superveniente. Pedido de desistência pela produção da prova
indeferido.
1. O privilégio contra a autoincriminação, garantia cons-
titucional, permite ao paciente o exercício do direito de silêncio,
não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões
vocais necessários a subsidiar prova pericial que entende lhe ser
desfavorável.
2. Ordem deferida, em parte, apenas para, confirmando a
medida liminar, assegurar ao paciente o exercício do direito de
silêncio, do qual deverá ser formalmente advertido e documentado
pela autoridade designada para a realização da perícia. (10)

(10)
HC 83096, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em
18/11/2003, DJ 12-12-2003 PP-00089 EMENT VOL-02136-02 PP-00289 RTJ
VOL-00194-03 PP-00923.

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Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 91

Ementa: Habeas Corpus. Crime de desobediência.


Recusa a fornecer padrões gráficos do próprio punho, para
exames periciais, visando a instruir procedimento investiga-
tório do crime de falsificação de documento. Nemo tenetur
se detegere.
Diante do princípio nemo tenetur se detegere, que informa o
nosso direito de punir, é fora de dúvida que o dispositivo do inciso
IV do art. 174 do Código de Processo Penal há de ser interpretado
no sentido de não poder ser o indiciado compelido a fornecer padrões
gráficos do próprio punho, para os exames periciais, cabendo apenas
ser intimado para fazê-lo a seu alvedrio. É que a comparação gráfica
configura ato de caráter essencialmente probatório, não se podendo,
em face do privilégio de que desfruta o indiciado contra a auto-incri-
minação, obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova capaz
de levar à caracterização de sua culpa. Assim, pode a autoridade não
só fazer requisição a arquivos ou estabelecimentos públicos, onde se
encontrem documentos da pessoa a qual é atribuída a letra, ou pro-
ceder a exame no próprio lugar onde se encontrar o documento em
questão, ou ainda, é certo, proceder à colheita de material, para o
que intimará a pessoa, a quem se atribui ou pode ser atribuído o
escrito, a escrever o que lhe for ditado, não lhe cabendo, entretanto,
ordenar que o faça, sob pena de desobediência, como deixa transpa-
recer, a um apressado exame, o CPP, no inciso IV do art. 174.
Habeas corpus concedido (11).

Nesse mesmo sentido, convém lembrar que recentemente no Bra-


sil houve uma grande discussão acerca da obrigatoriedade do teste de
alcoolemia (conhecido como o “teste do bafômetro”). Ao final, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, seguindo precedentes do
Supremo Tribunal Federal (STF), que motoristas não podem ser obri-
gados a participar do “teste do bafômetro” ou fornecer material para

(11)
HC 77135, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em
08/09/1998, DJ 06-11-1998 PP-00003 EMENT VOL-01930-01 PP-00170.

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92 Taysa Schiocchet

exame de sangue, sob pena de violar a garantia constitucional da não


autoincriminação.
No entanto, que o Estado não está impedido de usar vestígios para
colher material útil na identificação do indivíduo, como já aconteceu
em alguns casos emblemáticos no Brasil. Um deles envolveu a coleta de
restos de cigarro deixadas no cinzeiro do Distrito Policial e a consequente
análise de DNA, sem o consentimento da pessoa envolvida. O exame
de DNA oriundo dessas amostras foi analisado pelo Poder Judiciário e
considerado lícito. O outro caso envolveu a cantora Gloria Trevi, presa
no Brasil e suspeita de ter sido estuprada no interior do presídio. A can-
tora mexicana estava grávida. Portanto, aguardou-se o nascimento do
filho e coletou-se material biológico da placenta — desintegrada do
corpo. Também nesse caso, a prova coletada foi considerada lícita. Foi
elemento fundamento o fato de se tratar de partes destacadas do corpo
humano e que, portanto, não mais pertencem à pessoa, segundo enten-
dimento firmado pelo Tribunal (ver, nesse sentido, Recl. 2.040-DF, rel.
Min. Néri da Silveira, julgado em 21.02.02).

6. A GENÉTICA DO SINGULAR AO COLETIVO

6.1. Sobre a genética dos indivíduos

Em que pese a afirmação de que haveria uma clara distinção entre


a parte codificante e não-codificante do DNA, é preciso levar em con-
sideração que essa taxionomia e distinção é resultado do estado atual do
conhecimento científico, o qual tende a apresentar novas descobertas.
Nesse sentido, muitos biológicos tem demonstrado que essa distinção
categórica é falaciosa, pois mesmo a parte não-codificante do DNA pode
apresentar informações específicas (e, portanto, sensíveis) atinentes ao
sujeito analisado.
Casabona e Malanda (2010: 62) lembram que o perfil genético traz
informação sobre a descrição étnica do sujeito (independentemente de
esta característica ter se manifestado fenotipicamente) e sobre o sexo
(o que poderia revelar alguma anomalia patológica, como as trissomias,
ou mesmo uma característica psicológica e social relacionada ao sexo).
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 93

Além disso, não se descarta a possibilidade de que no futuro (próximo)


os estudos do DNA dito não-codificante aportem outros tipos de infor-
mação (como a cor dos olhos), afinal as pesquisas genéticas são recentes
na história da humanidade e avançam vertiginosamente.
Assim sendo, qualquer dado pessoal de caráter genético deve ser
considerado um dado que afeta a intimidade genética da pessoa e, por-
tanto, deve ser protegido pelo direito fundamental a intimidade.
A informação genética, nesses casos, será necessariamente objeto
de comparação para ter algum valor científico e mesmo jurídico-pro-
batório. Diante disso, destaca-se o caráter probabilístico dessa infor-
mação genética, por um lado, e a relação com estudos populacionais e
comparativos, por outro.
Além disso, é preciso ainda levar em consideração a denominada
“teoria do mosaico”, segundo a qual existem dados que isoladamente
não aportam informações pessoais, mas que, uma vez cruzados com
outros dados, sim podem trazer informações que afetam a intimidade
genética pessoal. Como exemplo, Casabona e Malanda (2010: 62)
mencionam a descoberta da existência ou da inexistência de relação
parental biológica desconhecida anteriormente.
Os dados apurados e anonimizados pelos arquivos genéticos para
fins criminais se limitam ao âmbito não-codificado do DNA, que pos-
sibilita aos biólogos moleculares determinar a identidade da pessoa e
possíveis relações de parentesco. De todo modo, convém lembrar que
a amostra armazenada (material genético) contém todas as demais infor-
mações genéticas do indivíduo.
Por outro lado, mesmo tratando-se de perfil genético (e não infor-
mação sobre características físicas, até o momento relativamente indis-
poníveis no mercado brasileiro) é preciso avaliar os riscos relativos ao
armazenamento destas informações em um banco. Em outras palavras,
é preciso avaliar a vulnerabilidade das mesmas, seja em termos de acesso
(restrito a quem e controlado por quem) ou, mais especificamente, em
termos de codificação (dissociação do perfil ao nome da pessoa).
Fatos como estes demonstram que o acesso à tecnologia e à infor-
mação por ela gerada pode ser utilizado — atualmente ou no futuro —
de diversas maneiras, muitas vezes desconhecidas ou não previstas,
Regulação e direito Coimbra Editora ®
94 Taysa Schiocchet

inclusive de forma antiética ou ilegal. Por essa razão, incumbe ao Direito


levar em consideração essas possibilidades (ainda que não desejadas) no
momento da elaboração de uma legislação.

6.2. Sobre a genética das populações

Os perfis genéticos não oferecem resultados de identificação plena,


absoluta (100%) e, portanto, não são irrefutáveis, como sugerem erro-
neamente algumas pessoas envolvidas cientifica e politicamente com o
tema. Em outras palavras, a genética forense não valora os resultados
das análises em termos de fiabilidade absoluta, mas o menor ou maior
grau de incerteza em termos de probabilidades.
Trata-se, portanto, de um resultado ou prova de probabilidade. Por
essa razão, os resultados não podem ser aceitos de forma automática.
Desse modo, o laudo pericial não deve mascarar fragilidades encontradas
no decorrer das análises. Para esse cálculo de probabilidade recomenda-se
a utilização de uma fórmula de base estatística, que é o denominado
Teorema de Bayes, o qual permite inserir informações adicionais ao
número de polimorfismos coincidentes. Para tanto, é preciso levar em
consideração quais os marcadores serão utilizados, qual a frequências dos
polimorfismos na população (estudos genéticos populacionais), bem
como qual é a população de referência (de determinado estado, região,
país, etnia etc.).
De fato, para que haja efetivamente um resultado mais próximo
da realidade, é preciso levar em consideração dados adicionais não
estatísticos que são conhecidos pelo juiz e não pelo perito. Portanto,
ressalta-se, é preciso relativizar os resultados da prova genética e com-
preender que o poder da perícia é limitado. Isso implica para os ope-
radores do direito (juízes, advogados, promotores etc.) em não aceitar
os resultados do perfil genético automaticamente como se fosse prova
irrefutável, bem como em apresentar rigor e fundamentação na valora-
ção dessa perícia, necessariamente, em conjunto com as demais provas
e indícios do caso concreto.
Nesse sentido, Casabona e Malanda (2011: 43) alertam que muitas
vezes a coincidência do perfil do suspeito com o perfil da cena do crime
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 95

pode sugerir apenas que o suspeito esteve presente na cena do crime (e,
em algumas ocasiões, nem mesmo isso pode ser concluído, pois os ves-
tígios podem ter sido transferidos de um lugar a outro — intencional-
mente, por descuido ou mesmo por casualidade). Os autores esclarecem,
por exemplo, que:

(…) aunque del informe se derive que el semen encontrado en


la cavidad vaginal de la mujer que denuncia una violación se corres-
ponde con el ADN del sospechoso, ello únicamente nos informará,
en su caso, de que ha existido una relación sexual, pero no de que
ésta se haya producido sin el consentimiento de la presunta víctima.
Esto último requerirá realizar otras investigaciones probatorias.
Por ello, un resultado positivo en el análisis de ADN no puede
servir, por un lado, para establecer una conexión irrefutable entre
el vestigio biológico y el sospechoso; y por otra parte, tampoco
afirmar la culpabilidad del mismo. Sin embargo, un resultado
negativo sí podría llevar a la absolución pese a la existencia de indi-
cios de culpabilidad.

Por fim, é preciso dar especial atenção à denominada cadeia de cus-


tódia (12) como forma de garantia da fiabilidade, segurança e credibilidade
da informação genética levada a termo em laudo pericial. Sem tais garan-
tias toda e qualquer informação proveniente da pesquisa genética e do
laudo pericial carecerão de qualquer valor jurídico probatório. A inco-
lumidade da cadeia de custódia é fundamental para assegurar a adequação
e transparência das técnicas utilizadas, bem como o estado das amostras
coletadas e armazenadas. Na verdade a referida cadeia de custódia servi-
ria ainda para assegurar a adequada identificação, coleta, conservação,
verificação e custódia da amostra de DNA, desde a sua obtenção até que
se incorpore definitivamente no processo como meio de prova.

(12)
Sobre as garantias relacionadas à fiabilidade técnica e licitude, além de
aspetos referentes ao conteúdo do informe pericial, recomenda-se a leitura de Cabezudo
Bajo (2011, 2012).

Regulação e direito Coimbra Editora ®


96 Taysa Schiocchet

Nesse âmbito é que se sugere a harmonização das normas referentes


aos procedimentos uniformes com aquelas reconhecidas em âmbito inter-
nacional de modo que haja efetivo controle dos procedimentos técnicos
e científicos e a possibilidade de contra-perícia. No Reino Unido, por
exemplo, existe regulamentação (13) detalhada e rigorosa que determina,
dentre outras questões, que as mostras devem ser lacradas e etiquetadas
na frente do doador, a temperatura de conservação da amostra e o prazo
de entrega em 48h. Além disso, dispõe que o laboratório não deve acei-
tar as amostras que sejam entregues em condições insatisfatórias, ou seja,
sem a devida identificação ou cuja consistência seja motivo de suspeita.
Além dos aspetos anteriormente tratados, é fundamental enfrentar
concretamente questões como: a) os critérios de inserção, manutenção
e exclusão tanto dos perfis extraídos e analisados, quanto das amostras
coletadas; b) os requisitos para que não haja anulação pelo Poder Judi-
ciário da prova produzida caso não observe os direitos e garantias cons-
titucionalmente reconhecidos; c) a eventual necessidade de que a coleta
da amostra genética seja realizada com o acompanhamento de um advo-
gado; assim como, d) a possibilidade de utilizá-la para a apuração de
outros delitos (prova emprestada).

7. CONCLUSÃO

Ao final deste percurso, é possível identificar a aproximação ética,


social e jurídica que se fez a partir do objeto de pesquisa proposto. Con-
siderando a incipiência do tema especialmente no Direito brasileiro, faz-se
o registro de que inúmeras questões merecem um maior aprofundamento
investigativo. De qualquer sorte, foi possível traçar alguns contornos
teóricos e técnicos no que se refere à regulamentação jurídica dos bancos
de perfis genéticos para fins de persecução criminal no Brasil.
Reitera-se como pressuposto desta pesquisa o reconhecimento da
importância dos avanços da genética e os benefícios que ela pode trazer

(13)
Circular do Ministério do Interior sobre o Banco Nacional de DNA (Home
Office Circular n.º 16/1995).

Coimbra Editora ® Parte I


Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 97

para a sociedade e para o Direito, inclusive na seara forense-criminal.


Em alguns momentos, os resultados dessa pesquisa destacaram as ressal-
vas e fragilidades desta tecnologia, sobretudo em razão da preocupação
do sistema jurídico com os riscos ou má-utilização ou mesmo como
reação a uma tendência contemporânea expressiva por parte de alguns
setores da sociedade em aceitar integralmente o uso da técnica como
algo necessária e integralmente benéfico.
De fato, o uso da tecnologia do DNA no âmbito forense não escapa
à lógica biopolítica do governo da vida humana, considerada fundamen-
talmente no seu aspeto biológico. Trata-se de uma lógica de biopoder
capilarizada, que atravessa não apenas os sujeitos mas seus próprios
corpos e que exige, portanto, uma análise não puramente tecnicista nem
legalista da questão.
Nesse sentido, é fundamental retomar os pressupostos interdiscipli-
nares para a discussão jurídica do tema destacados no decorrer da pes-
quisa. O Direito é convocado a atuar de modo interdisciplinar, levando
em consideração não apenas os danos causados, mas, preventivamente,
os riscos inerentes ao uso da técnica.
Uma regulamentação e utilização inadequadas pode gerar a perda
de confiança da sociedade na polícia, no Judiciário, na perícia e em
outros órgãos governamentais envolvidos, o que pode ser extremamente
prejudicial. Do mesmo modo, se o Estado criar expectativas falsas na
população referentes à redução generalizada da criminalidade. Por essa
razão, é crucial estar atento aos argumentos e discursos que se utilizam
em prol da legitimação desses bancos, mesmo que a intenção de deter-
minados atores sociais seja benéfica.
Sabe-se que existem diversos atores envolvidos. Muitos deles são
caracterizados a partir de estereótipos típicos de cada área: empresas
privadas diretamente interessadas na expansão dessa tecnologia para,
assim, expandir o mercado de fornecimento de insumos; policiais cor-
ruptos e não capacitados para lidar com esse tipo de tecnologia, peritos
que nem sempre estão capacitados ou quando capacitados consideram-se
imparciais em razão do domínio técnico; advogados criminalistas inte-
ressados simplesmente na defesa dos seus clientes; magistrados insensíveis
ao uso de novas tecnologias, entre outros tantos atores que poderiam ser
Regulação e direito Coimbra Editora ®
98 Taysa Schiocchet

descrito de modo caricaturado. No entanto, é imperioso que o sistema


jurídico supere tais descrições personalizadas — ainda que existentes —
de modo a não incorrer no erro de generalizações, de modo a controlar
e regulamentar essa questão de forma metatemporal e metapessoal, por
mais óbvio que isso possa parecer.
A discussão acerca desta temática tem sido polarizada em torno
de duas questões, em princípio, inconciliáveis: o dever estatal de garan-
tir a segurança pública por meio do “combate à criminalidade”, por
um lado, e o respeito à garantia constitucional de não produzir prova
contra si mesmo, identificado no direito ao silêncio, por outro lado.
Eis, nessa ótica, dois interesses incompatíveis, um público e outro
privado, que a utilização de DNA para fins de persecução criminal
faria emergir.
Contudo, este debate nos parece demasiadamente polarizado e, no
final das contas, um falso debate. Nem o “combate à criminalidade”,
para os defensores do banco, nem a ofensa à garantia constitucional de
não produzir prova contra si mesmo, aos opositores, constituem a ques-
tão jurídica central na regulamentação do uso da tecnologia do DNA
no âmbito forense-criminal — muito menos de forma tão antagônica
como vem sendo tratada.
Parece-nos que o verdadeiro desafio reside em considerar que a
criação de um banco de perfis genéticos para fins de persecução criminal
pode, sim, contribuir — mas antes — com a tutela judicial efetiva, no
sentido de se punir o autor do delito, assim considerado um direito
fundamental — e menos com a redução da criminalidade. Por outro
lado, a autonomia pessoal e o direito à autodeterminação corporal e
informacional seriam suspensos, afinal nenhum direito é absoluto, mas
sob a conditio sine qua non de que a coleta, o armazenamento, o proces-
samento e a valoração probatória ocorra de maneira justificada, propor-
cional e controlada, com respeito ao requisito de credibilidade técnica
da informação genética aportada no laudo pericial, bem como ao requi-
sito de licitude durante toda a cadeia de custódia com vistas à preserva-
ção dos direitos à privacidade, intimidade e não estigmatização, entre
outros. Isso considerando que se trata, sim, de ato de prova e não mera
identificação criminal, portanto com todos os procedimentos e garantias
Coimbra Editora ® Parte I
Reflexões jurídicas acerca da regulamentação dos bancos de perfis… 99

referentes à produção probatória. Todavia, tal produção probatória, de


cunho genético, pode tanto incriminar como inocentar o sujeito.
Assim sendo, quanto maior a exposição ou vulnerabilidade dos dados
em questão, maior é o imperativo legal de proteção. Desse modo,
considera-se importante assegurar, mediante instrumentos jurídicos
robustos, a proteção aos demais direitos e garantias fundamentais que
devem ser respeitados, sob pena de vício elementar. Nesse sentido,
merece destaque o rigor científico e jurídico, isto é, em termos de cre-
dibilidade e licitude, em todas as fases da denominada cadeia de custó-
dia: I. Fase de obtenção da amostra, II. Fase de análise do perfil genético,
III. Fase de tratamento do dado e, por fim, IV. Fase de valoração no
processo penal. Caso contrário, tal informação de origem genética deve
ser considerada nula.
Outrossim, é preciso considerar os desafios e perspetivas relaciona-
dos com a utilização dos bancos de perfis genéticos no Brasil, especial-
mente considerando os erros e acertos de outros países — já experientes
nesse campo. O primeiro grande desafio é a capacitação e sensibilização
de todos os atores envolvidos nesse processo (peritos, policiais, magis-
trados, advogados etc.), de modo que saibam observar as normas proce-
dimentais da cadeia de custódia, assim como compreender que o perfil
genético pode constituir uma evidência que deve ser analisado em con-
junto com as demais evidências. Um segundo desafio reside na adequada
compreensão da importância e significado dos cálculos matemáticos de
probabilidade, além dos conhecimento do campo da biologia e, mais
especificamente, da genética humana, em especial dos estudos genéticos
populacionais. Em terceiro lugar, tem-se a necessidade de definir o
conteúdo do laudo pericial.
Finalmente, em quarto lugar, considera-se fundamental criar uma
comissão interdisciplinar que dê continuidade à reflexão e discussão
acerca de questões emergentes, dos impactos causados pela utilização
efetiva de tal tecnologia genética, bem como das novas descobertas no
campo da genética, da bioinformática e no campo da probabilidade.
Dentre outros tantos temas que merecem ser aprofundados e discutidos
por uma comissão dessa natureza, destaca-se a negativa de se submeter
à coleta e suas consequências, se haveria necessidade de acompanhamento
Regulação e direito Coimbra Editora ®
100 Taysa Schiocchet

de um advogado durante a cólera, a importância da coleta adequada de


evidências biológicas oriundas da cena do crime, a eventual necessidade
de manutenção das amostras biológicas para fins de realização de con-
tra-perícia ou contraprova, a possibilidade e legitimidade ética e jurídica
de criação indireta de biobancos, mediante o armazenamento das amos-
tras biológicas e, por fim, a possibilidade de acirramento da discrimina-
ção e estigmatização social em razão de caracteres fenotípicos (como
etnia, cor de pele e olhos) que possa eventualmente ser inferidos, direta
ou indiretamente, da utilização dos perfis genéticos, especialmente con-
siderando os dados e pesquisas que confirmam a estigmatização social e
étnica perpetrada pelo atual sistema de justiça criminal brasileiro, o qual
acaba reforçando a cisão entre dois mundos: dos “criminosos” e dos
“cidadãos de bem”.
Em síntese é fundamental cultivar a capacidade crítica — e autocrí-
tica — a partir da reflexão e do diálogo interdisciplinares, constantes,
plurais e transparentes entre os diversos atores envolvidos e setores afetados,
de modo a mitigar eventuais interesses pessoais ou corporativos presentes
nos processos de legitimação, utilização e disseminação de tais tecnologias.
Somente assim será possível contribuir com o fortalecimento da jovem
democracia republicana em prol da cidadania da sociedade brasileira.

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LA PRUEBA DE ADN:
VALORACIÓN PRELIMINAR DE LA REGULACIÓN
ESPAÑOLA Y DE LA UNION EUROPEA

MARÍA JOSÉ CABEZUDO BAJO

1. MARCO GENERAL DEL TRABAJO Y ENFOQUE METO-


DOLÓGICO

Este trabajo se enmarca dentro de un proyecto de investigación


financiado por el Ministerio de Ciencia e Innovación español, cuyo
objetivo es dar respuesta a la siguiente pregunta: ¿el uso forense del ADN
y sus bases de datos constituyen una herramienta realmente eficaz en la
lucha contra la criminalidad grave, tanto nacional como transfronteriza?
En definitiva, nos preguntamos si esta herramienta es realmente eficaz,
cuánto de eficaz es y en qué medida podría mejorarse dicha eficacia.
Para dar respuesta a esta cuestión hemos iniciado nuestro trabajo de
investigación tomando como punto de partida una necesidad real: uno
de los principales desafíos a los que se enfrentan hoy los Estados, la
Unión Europea (UE) y la comunidad internacional es mejorar la lucha
contra la criminalidad grave, tanto nacional como transfronteriza. Y por
ello, en estos tres niveles, nacional, UE e internacional, las correspon-
dientes Instituciones están adoptando medidas legislativas en las que
están tomando en cuenta el uso forense del ADN y sus bases de datos
con el fin, precisamente, de que constituya una herramienta útil en la
lucha contra la criminalidad.
Dicha normativa, que expondré a lo largo de este capítulo de libro,
está siendo analizada por nosotros, lo que nos está permitiendo identi-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
104 María José Cabezudo Bajo

ficar algunas cuestiones que van a impedir el logro de ese fin pretendido,
esto es, constituir una herramienta eficaz en la lucha contra la crimina-
lidad. Este análisis lo estamos realizando desde una perspectiva jurídi-
co-procesal, en cuanto a que dicho conjunto de normas permita la
obtención de una prueba de descargo o, en su caso, de cargo que, junto
con otros medios de prueba pueda utilizarse para dictar una sentencia
de condena.
Sin embargo, a pesar de que el punto de vista desde el que efectu-
amos el análisis es concreto, la perspectiva procesal, lo cierto es que
tenemos que tomar en cuenta cuestiones de muy diversa índole, pues
todas ellas van a tener que ser objeto de valoración por parte del órgano
jurisdiccional competente. Dichas cuestiones no son solo de naturaleza
estrictamente jurídicas, sino que hemos de tomar en cuenta además
aspectos que tienen que ver con la genética forense, la probabilidad y la
tecnología informática. Debido a la interdisciplinariedad de estas mate-
rias, con la complejidad que ello conlleva, tuvimos la necesidad de ela-
borar un enfoque metodológico que nos permitiera fijar un marco común
al que reconducir todas estas cuestiones, abordarlas de forma sistemática
y tratar de dar soluciones jurídicamente bien construidas. A continua-
ción expondré el enfoque metodológico que nos ha permitido abordar,
con carácter general, este complejo tema.
Desde un punto de vista procesal, hasta ahora, consideramos que el
uso forense del ADN y sus bases de datos constituirán una herramienta
realmente eficaz en la lucha contra la criminalidad grave, nacional y
transfronteriza, fundamentalmente, la criminalidad organizada y el ter-
rorismo, si su regulación cumple dos requisitos: 1) en primer lugar, si
dicha regulación posibilita la obtención de una prueba de ADN lo más
fiablemente posible; 2) en segundo término, si permite la obtención de
una prueba de ADN lícitamente; ello, a su vez, significa que ha de
obtenerse, de un lado, con el máximo respeto a los derechos fundamen-
tales que puedan verse afectados y, de otro, en cumplimiento de los
correspondientes requisitos legalmente previstos. Pero, dado que, como
he denominado, “el uso forense de la tecnología del ADN” incluye tres
fases, esto es, A) la fase de obtención de una muestra de ADN, B) la
segunda etapa, relativa al análisis de su perfil en el laboratorio y, final-
Coimbra Editora ® Parte I
La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 105

mente, C) la tercera fase de tratamiento del dato de ADN en la base de


datos, tal prueba pericial de ADN podrá ser altamente valorada por el
órgano jurisdiccional competente en el correspondiente proceso penal
español, si fue obtenida de forma lícita y lo más fiablemente posible, en
cada una de las tres fases indicadas. Si ambos requisitos de cumplen en
las tres fases, podremos afirmar que la regulación permite la obtención
de una prueba de descargo o, en su caso, de cargo que puede fundamen-
tar, junto con otros medios de prueba, una sentencia de condena.
A continuación voy a explicar mejor ambos requisitos relativos a la
mayor fiabilidad posible y licitud para que el mencionado enfoque
metodológico cobre sentido.
Para ello voy a tomar como punto de partida el hecho de que con-
sideramos errónea la creencia de que el uso forense del ADN y sus bases
de datos policiales permiten, en la actualidad, la obtención de una prueba
científica infalible.
No obstante, admitimos que es una herramienta que posee un
extraordinario potencial en la lucha contra la criminalidad grave, nacio-
nal y transfronteriza. Dicho potencial se está logrando gracias a que,
con carácter general, los continuos avances científico-tecnológicos se
están poniendo, cada vez más, al servicio de la investigación de los deli-
tos especialmente graves y, asimismo, por la, cada vez mayor, irrupción
de los cálculos de probabilidad en el ámbito de la valoración de las
pruebas, particularmente, las pruebas científicas. Y de ambos aspectos,
los avances científico-tecnológicos y cálculos de probabilidad, se está
beneficiando también el uso forense del ADN y sus bases de datos. En
efecto, el uso forense del ADN es posible, en la actualidad, gracias al
avance científico-técnico que supuso el desarrollo de la huella genética
de un individuo en el Reino Unido en el año 1984 (1). Así, gracias a
este descubrimiento alcanzado en el ámbito de la genética, que se aplicó
al ámbito forense, está siendo posible esencialmente la identificación del

(1)
La invención de la huella genética tuvo lugar en el año 1984 y se debe al
profesor de la Universidad de Leicester, Alec Jeffreys. La primera vez que se utilizó
sirvió para dictar una sentencia de condena en el Reino Unido.

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106 María José Cabezudo Bajo

titular de la muestra, no identificada, que fue abandonada en el lugar


del delito mediante la comparación, caso a caso, de su perfil con el de
un sujeto imputado e identificado. Un segundo avance, extraordinario,
en una lucha más eficaz contra la criminalidad, que se ha unido al ante-
rior, tuvo lugar en el año 1995 gracias a la tecnología, pues posibilitó la
creación, por primera vez en el Reino Unido, de una base de datos de
ADN. Desde entonces son numerosos los paises del mundo que han
creado bases de datos (2). En virtud de dicho avance tecnológico se ha
posibilitado, no solo el almacenamiento de perfiles de ADN en las
numerosas bases de datos que se han ido creando, sino también la inter-
conexión de tales bancos de datos. Ello está permitiendo efectuar bús-
quedas y comparaciones automatizadas entre todos los perfiles, ya
incluidos en los múltiples bancos creados, tanto a nivel nacional como
transfronterizo, con el fin de lograr coincidencias entre tales perfiles. Así
pues, la posibilidad de identificar al titular de la muestra abandonada
en el lugar del delito e, incluso, de vincular varias escenas de un delito
se está incrementado de forma notable. En tercer lugar, si se alcanza
una coincidencia, este resultado es posible cuantificarlo en términos de
probabilidad, mediante la aplicación del Teorema de Bayes sobre la
prueba de ADN (3). En virtud de dicho Teorema es posible medir o
cuantificar cuál es la probabilidad, dada una coincidencia entre dos
perfiles, de que ambos sean de la misma persona. Gracias a ello, pode-

(2)
Las tres encuestas realizadas por INTERPOL, la última en 2008, dirigidas a
determinar el uso del perfil de ADN en las investigaciones penales entre sus 188 Esta-
dos miembros, fueron contestadas por 172: de dichas respuestas han podido afirmar
que 120 países utilizan perfiles de ADN en sus investigaciones policiales y 54 tienen
bases de datos nacionales de ADN. Está disponible en: http://www.interpol.int/Public/
ICPO/Publications/HandbookPublic2009.pdf
(3)
Uno de los primeros estudios en los que se plantea la aplicación el Teorema de
Bayes para la vinculación de un sujeto con un delito, mediante otros medios que no eran
aún el ADN, es Finkelstein y Fairley (1970). En España, se ha afirmado por Carracedo
Álvarez (2004), que para valorar correctamente la probabilidad de que una muestra de
ADN provenga de un individuo, es necesario recurrir al Teorema de Bayes. Puede con-
sultarse en: http://www.cej.justicia.es/pdf/publicaciones/fiscales/FISCAL39.pdf, p. 6.

Coimbra Editora ® Parte I


La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 107

mos afirmar que la prueba de ADN, como prueba científica que es,
puede expresarse en términos de probabilidad.
Ahora bien, para que dicho potencialidad se vaya haciendo realidad
es necesario llevar a cabo dos acciones: de un lado, hay que identificar qué
aspectos están por desarrollar o solucionar o mejorar, para que, una vez
eliminados, dicho potencial se haga realidad. La pregunta sería entonces:
¿qué desarrollos hay que llevar a cabo para ir avanzando hacia la realidad
de ese potencial? De otro, la respuesta a esta pregunta pasa por reconocer
que, en este avance, porque ya lo es en sí mismo, por identificar y mejorar
estos aspectos por desarrollar se mezclan cuestiones jurídicas, de genética
forense, probabilísticas e incluso de tecnología informática. Será esencial
reconocer la sinergia existente entre ellos: si se desarrollan unos y no se
está al tanto de los otros, no se avanzará adecuadamente. En última ins-
tancia, la norma jurídica es el producto final donde se tienen que reflejar
los avances alcanzados en todos los ámbitos mencionados.
En concreto, desde nuestro punto de vista jurídico, podemos con-
siderar que, si se utilizan los métodos científicos y tecnológicos adecua-
dos desde la obtención de la muestra hasta una vez elaborado el informe
pericial, podremos lograr una prueba muy fiable. E, incluso, podríamos
llegar a reconocer que si aplicamos todos los avances que se pueden
alcanzar en el ámbito científico y tecnológico podríamos llegar a alcan-
zar una prueba de una fiabilidad prácticamente del 100% (a salvo de los
propios errores o incertidumbres que lleva consigo la propia tecnología).
Voy poner dos ejemplos hipotéticos que tienen que ver con la ciencia y
la tecnología para justificar dicha afirmación:
Primer ejemplo hipotético: Se dice que de una muestra de ADN, por
ejemplo, de saliva con células epiteliales, se extrae el perfil utilizando, en
España, 15 marcadores junto con la amelogenina, que se encuentran en la
parte no codificante del ADN (4). Pero, ciertamente gracias a la ciencia

(4)
En este sentido, Farfan Espuny (2004), ha señalado que “la variabilidad gené-
tica entre individuos se concentra principalmente en el ADN no codificante y que, por
tanto, de un análisis de individualización genética con fines forenses no puede extraerse
ningún tipo de información sobre características fenotípicas (rasgos físicos, susceptibi-
lidad a enfermedades o fármacos, etc.)”. Puede consultarse en: http://www.cej.justicia.

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108 María José Cabezudo Bajo

podríamos lograr un perfil “completo”, que nos permitiera identificar defi-


nitivamente al titular de la muestra. Para ello, habría que analizar el ADN
completo, incluyendo así la parte codificante de ADN. La ciencia lo per-
mitiría. En este caso, lograríamos una fiabilidad del 100% de la prueba
de ADN obtenida; eso sí, siempre que logremos comparar, incluso de forma
no automatizada, el perfil dubitado, recogido en el lugar del delito, con el
perfil de referencia del imputado, logrado tras una intervención corporal
para lo cual tendríamos que tener indicios que justificasen dicha interven-
ción judicial en el cuerpo humano (art. 363.II LECRIM). En este caso,
ya no necesitaríamos calcular la frecuencia con que ese perfil se da en la
población, ni la probabilidad, dada la coincidencia entre ambos perfiles, de
que pertenecieran al mismo sujeto. Y, ello, porque dicho perfil sería único
y diferente al resto, debido a que no existen dos personas con el mismo
ADN, salvo los gemelos univitelinos (5). A cambio, eso sí, al analizar la
parte codificante del ADN se revelaría información genética de gran tras-
cendencia, datos sensibles, fundamentalmente, relativos a la salud. En
definitiva, se vulnerarían injustificadamente derechos fundamentales, tales
como la intimidad y la protección de datos personales.
Segundo ejemplo hipotético: si junto con el hecho de que puede
analizarse el perfil “completo” de ADN, expuesto en el caso anterior,
añadimos que, gracias a la tecnología pueden almacenarse en bases de
datos cuantos perfiles de ADN se quiera e interconectarse on line tales
bancos de datos, el resultado sería que los perfiles de ADN de todos
ciudadanos del mundo podrían almacenarse en bases de datos y podrían
ser objeto de búsquedas y comparaciones. La tecnología lo permite. No
sería necesario llevar a cabo intervenciones corporales y se superaría el
reto que supone la criminalidad transnacional, cuando sujetos y muestras
pueden estar repartidos entre distintos Estados. La comparación ya no
sería entre dos perfiles, no identificado y de referencia, sino que se podrían

es/pdf/publicaciones/medicos_forenses/MEDI19.pdf, p. 5. Pero nos preguntamos si es


tan clara la distinción entre la parte codificante y no codificante y, en este sentido, si
puede afirmarse con rotundidad que los 16 marcadores y otros que puedan utilizarse se
encuentran en la parte no codificante.
(5)
Farfan Espuny (2004: 5)

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 109

realizar búsquedas y comparaciones entre todos los perfiles de ADN del


conjunto de la población mundial. La probabilidad de encontrar una
coincidencia sería del 100% y la probabilidad de que se tratara del mismo
sujeto sería igualmente del 100%, lo que supondría que ya no tendríamos
que efectuar ningún cálculo de probabilidad. Sin embargo, para ello,
sería necesario no establecer ningún límite a la inclusión y permanencia
de perfiles en las bases de datos y, en su caso a la conservación de las
muestras. Desde un punto de vista jurídico, ello vulneraría injustifica-
damente el derecho a la intimidad y a la protección de datos.
Pero no debemos dejarnos deslumbrar por la ciencia y tecnología hasta
este punto. En ambos casos, el logro de una fiabilidad del 100% de la
prueba resultante tiene que limitarse. Si aplicamos todos los avances que
se pueden alcanzar en el ámbito científico y tecnológico, es cierto que
podríamos llegar a alcanzar una prueba de una fiabilidad del 100%. Sin
embargo, nos podría conducir, desde un punto de vista jurídico, a la
obtención de una prueba ilícita. Por ello, en ambos ejemplos, ha entrado
el ordenamiento jurídico a regular ambas cuestiones. En el primer caso,
ha previsto y, en su caso, ha limitado la parte de ADN que puede ser
analizada en el laboratorio. En el segundo supuesto, se han regulado o
limitado los criterios de inclusión y cancelación de perfiles, así como de
conservación de las muestras. Así, pues, desde un punto de vista jurídico,
la cuestión esencial es buscar el equilibro entre la protección de los derechos
fundamentales afectados y otras garantías esenciales legalmente previstas,
de un lado, y la identificación del sujeto que abandonó la muestra en el
lugar del delito, de otro. En definitiva, se trata de lograr esencialmente
una regulación en la que no haya una restricción desproporcionada de los
derechos fundamentales en juego. En consecuencia, hay que identificar
dónde está el límite legal a los avances científicos y tecnológicos. Cada
Estado establece dicho punto donde considera oportuno.
En este sentido, y siguiendo con los dos ejemplos que hemos puesto
cabe señalar que, respecto al primer ejemplo, es cierto que se ha regulado
la parte de la muestra de ADN que ha de analizarse en el laboratorio
con el fin de extraer su perfil. Así lo ha hecho la norma española (art. 4
LO 10/2007) pues indica que solo se inscribirán en la base de datos los
“identificadores obtenidos a partir del ADN, en el marco de una inves-
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110 María José Cabezudo Bajo

tigación criminal, que proporcionen, exclusivamente, información gené-


tica reveladora de la identidad de la persona y de su sexo”. Sin embargo,
en virtud de dicho precepto, cabe preguntarse si, resultaría respetuoso
con tal precepto, la extracción de información genética de la identidad
de la persona, mediante el análisis de la parte codificante del ADN que
es la que también contiene información genética que revela otros datos
sensibles, tales como los relativos a la salud de un sujeto. La respuesta
es desgraciadamente que dicho precepto no parece impedirlo. El desa-
rrollo de esta cuestión será analizado en el punto V.
En relación con el segundo ejemplo, podemos indicar que ciertamente
los legisladores nacionales de los Estados miembros han previsto criterios
de inclusión y cancelación de los perfiles, el control de las muestras de
ADN y los fines a los que han de destinarse (6). Sin embargo, dicha regu-
lación es, cada vez, menos respetuosa con los derechos fundamentales a la
intimidad y protección de datos personales. En particular, los legisladores
están fomentando el aumento de tamaño de dichas bases a través de, al
menos, cuatro vías de carácter jurídico. Paradójicamente, dichas vías
constituyen algunas de las actividades que conforman el “tratamiento de
datos en la base de datos” (art. 2.b) Decisión marco 2008/977) y que, por
ello, debieran ser respetuosas esencialmente, con el derecho fundamental
a la protección de datos personales. Tales vías, que ya se han expuesto en
otro lugar (7), son las siguientes: En primer lugar, mediante la ampliación
de los criterios de inclusión de perfiles en las bases de datos, tales como el
grado de imputación, la clase de delitos, más o menos graves y el tipo de
muestras. En segundo término, a través del inexistente o deficiente plazo
legal de cancelación de los perfiles de ADN en las bases de datos. En
tercer lugar, dicho aumento de perfiles de ADN se ha llevado a cabo
mediante una imprecisa regulación sobre la conservación de las muestras
de ADN. Finalmente, el crecimiento de los bancos de datos de ADN se
pretende lograr mediante una regulación en la que no se identifique el

(6)
Así, por ejemplo, en España, la LO 10/2007 ha previsto dichas cuestiones
en los arts. 3,9 y 5.
(7)
Cabezudo Bajo (2011)

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 111

concreto fin al que han de estar destinado el perfil o las muestras de ADN.
Y, ello sin perjuicio de que cada vez está fomentándose más a nivel trans-
fronterizo, el intercambio de perfiles de ADN entre distintos Estados,
mediante diversos instrumentos jurídicos, tales como las mencionada
Decisión 2008/615, convenios bilaterales o multilaterales.
Así pues, ciertamente se podría lograr una fiabilidad del 100% en la
identificación del investigado y en la prueba obtenida, si se aplicasen los
avances científicos y tecnológicos a la prueba del ADN. Sin embargo,
también lo es que, a la hora de obtener una prueba de ADN fiable,
tenemos que asumir la necesidad de que se cumplan asimismo una serie
de requisitos constitucionales y legales cuya inobservancia impide valorar
esa prueba obtenida. En definitiva, es necesario que, además, la prueba
sea lícita, esto es, obtenida con el máximo respeto a los derechos funda-
mentales afectados y a otras garantías esenciales legalmente previstas. En
este sentido, es al limitarse la fiabilidad, debido al establecimiento de estos
requisitos jurídicos, cuando ya no podremos hablar de una prueba de
ADN fiable sino de una prueba lo más fiable, lo cual ya es en sí mismo
un extraordinario reto, pues requiere la utilización de la tecnología ade-
cuada y su adecuada realización en el caso concreto.
Y es al limitarse la fiabilidad en aras de la licitud de la prueba cuando
la fiabilidad de la prueba de ADN ya no es del 100% y, por ello, tiene
que entrar en juego la aplicación del Teorema de Bayes en la valoración
judicial de la prueba de ADN. En virtud de dicho Teorema, como ya
dijimos anteriormente, es posible medir o cuantificar la probabilidad,
dada la coincidencia, de que el titular de ambos perfiles sea la misma
persona. Y, además, permite cuantificar una probabilidad muy alta, dado
que la frecuencia con que el perfil de ADN que ha coincido se da en la
población es bajísima. En concreto, dicha frecuencia es posible calcularla
gracias a las bases de datos poblacionales (8) que se han venido elaborando

(8)
En este sentido, Alonso Alonso (2004) indica que se está trabajando a nivel
nacional como europeo para el desarrollo de bases de datos poblacionales más amplias
en el seno del Grupo Español y Portugués de la Sociedad Internacional de Genética
Forense (GEP—ISFG) y el Grupo de Trabajo en ADN de la Red Europea de Institu-

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112 María José Cabezudo Bajo

hasta ahora esencialmente a nivel local-nacional, lo que pone en entre-


dicho su fiabilidad cuando se produce fundamentalmente una coinci-
dencia a “nivel transfronterizo” de los perfiles de ADN.
De conformidad con lo manifestado en relación con la licitud y la
fiabilidad, y bajo el enfoque metodológico adoptado para abordar en
general nuestro trabajo de investigación, expondremos a continuación
el objeto concreto de este capítulo de libro.

2. OBJETO DEL CAPÍTULO DE LIBRO

Para contextualizar mejor las cinco cuestiones concretas que vamos a


identificar en este capítulo de libro y llevar a cabo su análisis, ha sido nece-
sario identificar previamente, a qué nos referimos con licitud y la mayor
fiabilidad posible de la prueba de ADN, así como en qué consisten las fases
de obtención de la muestra de ADN, de extracción del perfil de ADN y
de tratamiento del dato de ADN en la base de datos y qué fines persiguen (9).
Asimismo, conforme a dicho trabajo previo, hemos podido sistematizar las
normas aprobadas a nivel UE y a nivel español. La organización de este
conjunto de normas, que se expone a continuación, sirve para centrar el
análisis llevado a cabo en este capítulo de libro y en trabajos futuros.
1) Respecto a la fiabilidad de la prueba, a nivel UE, en B) la fase
de extracción del perfil, se han aprobado dos normas esencialmente: la
primera (10) exige que las actividades de laboratorio llevadas a cabo por
los prestadores de servicios forenses se acrediten por un organismo de
acreditación nacional que certifique que tales actividades cumplen la
norma EN ISO/IEC 17025; la segunda (11) invita a los Estados miem-

tos Forenses (ENFSI). Puede consultarse el artículo en: http://www.cej.justicia.es/pdf/


publicaciones/medicos_forenses/MEDI23.pdf.
(9)
Dicho trabajo ya se ha desarrollado y publicado en Cabezudo Bajo (2004),
“La obtención transfronteriza…, op. cit., pp. 742-748.
(10)
Decisión marco 2009/905/JAI, de 30 de noviembre, sobre acreditación de
prestadores de servicios forenses que llevan a cabo actividades de laboratorio.
(11)
Resolución del Consejo de 30 de noviembre de 2009, relativa al intercambio
de resultados de análisis de ADN. La ampliación del número de marcadores a 12, es

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 113

bros, de un lado, a que utilicen 12 marcadores o “loci” de ADN que


componen el actual conjunto europeo normalizado de “loci” (ESS), y,
de otro, a que obtengan los resultados del análisis ESS de acuerdo a
técnicas de ADN ensayadas y aprobadas científicamente que se basen en
los estudios llevados a cabo en el ámbito del Grupo “ADN” de la ENFSI.
Asimismo, el anexo de la Decisión 2008/616 contiene normas en este
sentido. En relación con C) la fase de tratamiento del dato de ADN, el
anexo de la Decisión 2008/616 contiene aspectos tecnológicos sobre el
tratamiento del dato de ADN en las bases de datos de los Estados miem-
bros y su intercambio.
En España, las cuestiones relativas a la fiabilidad se han regulado
esencialmente en el RD 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se
regula la composición y funciones de la Comisión Nacional para el uso
forense del ADN (en adelante RD CNUFADN). Así, en cuanto a A)
fase obtención: a) la elaboración y aprobación de los protocolos técni-
cos oficiales sobre la obtención y la conservación de las muestras (12).
En relación con B) la fase extracción del perfil, la acreditación de los
laboratorios que estén facultados para contrastar perfiles genéticos en
la investigación y persecución de delitos, así como la evaluación de su
cumplimiento y el establecimiento de los controles oficiales de calidad
a los que deban someterse de forma periódica los mencionados labora-
torios (13); b) el establecimiento de criterios de coordinación entre los
laboratorios, así como el estudio de todos aquellos aspectos científicos
y técnicos, organizativos, éticos y legales que garanticen el buen fun-
cionamiento de todos los laboratorios que integran la base de datos
policial sobre identificadores obtenidos a partir del ADN (14); c) y la
elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre el
análisis de las muestras, incluida la determinación de los marcadores

debido a que el valor estadístico de los datos de ADN corresponde a la probabilidad


aleatoria de coincidencia y depende completamente del número de marcadores de
ADN analizados fiablemente.
(12)
Art. 3. c) del RD CNUFADN
(13)
Art. 5 de la LO 10/2007 y 3. a) RD CNUFADN.
(14)
Art. 3. b) RD CNUFADN.

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114 María José Cabezudo Bajo

homogéneos sobre los que los laboratorios acreditados han de realizar


los análisis (15).
2) En relación a la licitud de la prueba y en la primera fase, A)
referida a la obtención de la muestra de ADN, en la que pueden verse
afectados los derechos fundamentales a la integridad física, la vida
privada, e inviolabilidad del domicilio o el derecho a la protección de
datos, han adoptado normas sobre la obtención de una muestra. En
concreto, bien de persona identificada (16), o bien del lugar del delito (17).
Principalmente, en este sentido, la Directiva sobre la Orden de Inves-
tigación Europea (18). Asimismo, en B) fase de análisis del perfil, se
indica en la Decisión 2008/615, de 23 de junio de 2008 (art. 2.2) que
los “índices de referencia contendrán exclusivamente perfiles de ADN
obtenidos a partir de la parte no codificante del ADN y un número
de referencia”. En cuanto a C) la tercera fase, referida al tratamiento
de datos de ADN en la base de datos, en la que puede verse afectado
principalmente el derecho fundamental a la protección de datos, se ha
aprobado la Decisión marco 2008/977/JAI, de 27 de noviembre de
2008, relativa a la protección de datos personales tratados en el marco
de la cooperación policial y judicial en materia penal, junto con las
normas especificas aplicables al dato de ADN previstas en la Deci-
sión 615/2008 (arts. 24-32).

(15)
Art. 3. c) RD CNUFADN.
(16)
Art. 7 de la Decisión marco 2008/615.
(17)
En materia de obtención de pruebas coexisten 5 instrumentos jurídicos:
1) Convenio europeo de asistencia judicial en materia penal de 1959; 2) Convenio de
aplicación del Acuerdo de Schengen 1990 (CAAS); 3) Convenio de asistencia judicial
en materia penal de 2000; 4) Decisión Marco 2003/577, desarrollada en España por
la Ley 18/2006, de 5 de junio; 5) Decisión Marco 2008/978.
(18)
Iniciativa de Bélgica, Bulgaria, Estonia, España, Austria, Eslovenia y Suecia,
con vistas a la adopción de una Directiva del Parlamento y del Consejo relativa al
exhorto europeo de investigación en materia penal — JAI (2010) 3, publicada en el
DOUE 24de junio 2010, C 165. Con ella, se pretende lograr una nueva y única
regulación. En este sentido, puede verse el “Libro Verde sobre la obtención de pruebas
en materia penal en otro Estado miembro y sobre la garantía de su admisibilidad”,
COM (2009) 624 final de 11 de noviembre 2009.

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 115

En España, respecto a 1) la licitud de la prueba, los aspectos relati-


vos a A) la primera fase, referida obtención de la muestra, del lugar del
delito y de persona identificada se establecen en la LECRIM (19) y en la
LO 10/2007, de 8 de octubre, reguladora de las bases de datos policia-
les de ADN (20) y en cuanto a la garantía de la cadena de custodia úni-
camente se menciona en la LO 10/2007 (21). En relación con B) la fase
de extracción del perfil en el laboratorio, la función relativa a la deter-
minación de las condiciones de seguridad en la custodia de las muestras
y la fijación de todas aquellas medidas que garanticen la estricta confi-
dencialidad y reserva de las muestras, los análisis y los datos que se
obtengan de los mismos, de conformidad con lo establecido en las leyes,
se ha previsto en el RD CNUFADN (22). Asimismo, hay que tomar en
cuenta, según dispone el art. 4 de la LO 10/2007 que solo se inscribirán
en la base de datos los “identificadores obtenidos a partir del ADN, en
el marco de una investigación criminal, que proporcionen, exclusiva-
mente, información genética reveladora de la identidad de la persona y
de su sexo”. En cuando a C) la tercera fase de tratamiento de datos de
ADN en la base de datos, el tratamiento y fundamentalmente la protec-
ción del dato de ADN se regula en la LO 10/2007 y en LO 15/1999,
de 13 de diciembre de Protección de Datos, así como en su reglamento
de desarrollo, el RD 1720/2007, de 21 de diciembre.
Así pues, si aplicamos el mencionado planteamiento metodológico
sobre el conjunto de las normas reguladoras del uso forense del ADN y
de sus bases de datos policiales, tendremos que llevar a cabo un análisis
transversal de la licitud, de un lado, y de la mayor fiabilidad posible, de
otro, en cada una de las tres fases mencionadas. En virtud de dicho
estudio podremos determinar si tales normas realmente posibilitan la
obtención de una prueba de ADN lícita y lo más fiable posible. Si es
lícita el órgano jurisdiccional podrá valorarla, será una prueba válida que,

(19)
Arts. 326, párrafo 3.º y 363, párrafo 2.º
(20)
Disposición Adicional Tercera.
(21)
Art. 6 de la LO 10/2007.
(22)
Art. 3. d)

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116 María José Cabezudo Bajo

asimismo, en función del grado de fiabilidad que haya alcanzado deter-


minará el valor probatorio otorgado por el el órgano jurisdiccional
nacional competente. Este trabajo está siendo llevado y cabo y nos está
permitiendo identificar múltiples problemas jurídicos.
En concreto, en este capítulo de libro, voy a plantear cinco nuevas
cuestiones controvertidas que inciden sobre la fiabilidad y la licitud de
la prueba y que se suscitan en las tres fases ya indicadas.
1) En primer lugar, en la fase de obtención de la muestra de
ADN, hay dos temas que ponen en cuestión la fiabilidad y la licitud
de la futura prueba de ADN. Ambas cuestiones se han identificado
tras el análisis de las normas españolas y de la UE reguladoras de esta
fase de obtención de la muestra mencionadas anteriormente y teniendo
en cuenta el fin que deber perseguirse en esta etapa de obtención de
la muestra.
En este sentido, la obtención de la muestra tendría que regularse
teniendo en cuenta la finalidad que debe perseguirse en esta primera
fase. Dicho objetivo es que la muestra sea obtenida, conservada y tras-
ladada al laboratorio utilizando métodos adecuados, que aseguren que
llega al laboratorio tal y como se tomó, esto es, que garanticen la iden-
tidad entre la muestra obtenida, conservada, trasladada y recibida por el
laboratorio. Ello significa, desde la perspectiva de la fiabilidad, que debe
asegurarse la integridad de la muestra. Y, desde el punto de vista de la
licitud, implica que ha de efectuarse, en primer lugar, con el máximo
respeto a los derechos fundamentales que pueden verse afectados, como
son los derechos a la intimidad y el derecho a la integridad física y, en
su caso, a la inviolabilidad del domicilio y, en segundo término, cum-
pliendo con otras garantías legalmente previstas que aseguren su auten-
ticidad, como es el pleno respeto a las normas sobre la cadena de custo-
dia, que impiden la manipulación de la muestra.
En concreto ambas cuestiones son: A) La falta de previsión norma-
tiva de los protocolos de actuación que debieran cumplirse para garan-
tizar la fiabilidad de la muestra durante su obtención. B) Desde la
perspectiva de la licitud, la inexistencia de una norma europea, en virtud
de la cual pueda recogerse transfronterizamente una muestra de ADN,
esto es, obtenerse en un Estado miembro, a solicitud de otro Estado
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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 117

miembro cuya jurisdicción es competente, de conformidad con la regla


forum regit actum y, posteriormente, ser trasladada al Estado requirente.
2) En segundo término, voy a plantear dos cuestiones que se sitúan
en la fase de análisis del perfil, que van a dificultar la obtención de una
futura prueba de ADN fiable y lícita. Ambas cuestiones se han identi-
ficado igualmente tras el análisis de las normas españolas y de la U
reguladoras de esta fase de análisis del perfil de ADN en el laboratorio
anteriormente indicadas y teniendo en cuenta el fin que deber perseguirse
en esta etapa de análisis del perfil.
Dichas normas han de pretender la consecución de la finalidad que
se persigue en esta fase. Dicho fin consiste en que el análisis del perfil de
ADN ha de posibilitar la obtención de un código alfanumérico que repre-
senta un conjunto de características que permiten identificar al individuo
titular de la muestra obtenida (23). Para ello, es necesario que dicho aná-
lisis se realice con la mayor fiabilidad posible, utilizando los métodos
científico-tecnológicos adecuados que permitan asegurar lo más posible
que la identidad correspondiente al perfil extraído coincide con la identi-
dad del titular de la muestra de la que se extrajo. Y, asimismo, ello ha de
realizarse con el límite que determina el respeto a los derechos fundamen-
tales afectados y a otras garantías esenciales legalmente previstas.
En particular, dichos problemas jurídicos son: A) En relación con
la licitud, cabe preguntarse a qué parte de la secuencia del ADN ha de
limitarse el análisis para extraer el perfil, si únicamente a la parte no
codificante o también a la codificante. B) Respecto a la mayor fiabilidad
posible, cabe destacar la falta y, por tanto, la necesidad de identificar en
una norma los marcadores que los laboratorios españoles han de utilizar
en armonía con el resto de los Estados miembros, de cara a la fiabilidad
de la prueba resultante tras el logro de una coincidencia “transfronteriza”
de perfiles.

(23)
De la definición del art. 2) de la Decisión 2008/616 de “perfil de ADN”,
se deriva que la extracción del perfil es la identificación de “un código alfabético o
numérico que representa un conjunto de características identificativas de la parte no
codificante de una muestra de ADN humano analizada, es decir, la estructura mole-
cular específica en los diversos loci (posiciones) de ADN”.

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118 María José Cabezudo Bajo

3) Finalmente, voy a exponer un problema que se enmarca en la


fase de tratamiento del dato de ADN en la base de datos, que pone en
cuestión la fiabilidad de la futura prueba de ADN.
En efecto, en virtud del tratamiento del dato de ADN se persigue
esencialmente un doble objetivo. Siendo el primer fin el logro de una
coincidencia entre perfiles, nos interesa destacar aquí el segundo de tales
objetivos, como es A) la elaboración del correspondiente informe pericial
de ADN. Dicho informe ha de contener una información esencial y es
aquella en la que el perito cuantifica el hecho de la coincidencia lograda
entre dos perfiles, de referencia y no identificado, en términos de pro-
babilidad. Esta información desgraciadamente no se le está suminis-
trando adecuadamente al Tribunal en la actualidad.

3. FALTA DE PREVISIÓN NORMATIVA DE LOS PROTOCOLOS


DE ACTUACIÓN EN LA RECOGIDA DE LA MUESTRA DE ADN

Para la consecución del fin al que debe orientarse la fase de obten-


ción, ha de garantizarse, desde la perspectiva de la fiabilidad, la inte-
gridad de la muestra. Para ello, tendrá que obtenerse por personal
cualificado y tomarse y conservarse en condiciones que eviten su conta-
minación, lo que no ocurrirá si es contaminada por el personal que la
recoge o la muestra se altera en el proceso de recogida o traslado al
laboratorio, sin perjuicio de que pueda estar contaminada en sí misma.
Es necesario, pues, que se establezcan unos protocolos de actuación en
la recogida de la muestra.
A este respecto, sería fundamental que la actuación de nuestra Poli-
cía Científica y la del resto de los Estados miembros y de terceros países
se adaptase a los protocolos de recogida, traslado al laboratorio y respeto
a la cadena de custodia, que se han elaborado a nivel internacional. La
utilización de dichos protocolos de actuación contribuiría a asegurar la
fiabilidad de la prueba, en primer lugar, cuando la muestra fuese recogida
“a nivel nacional” en un Estado miembro o tercer Estado. Y, ello, por-
que, una vez obtenida la muestra de ADN y extraído su perfil, dicho
dato puede ser objeto de consultas y comparaciones automatizadas entre
bases de datos de ADN de distintos Estados miembros y terceros países.
Coimbra Editora ® Parte I
La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 119

Si han utilizado los mismos protocolos de actuación, la prueba resultante


podrá, al menos en esta cuestión, valorarse altamente en el Estado cuya
Jurisdicción es competente. Pero también se aseguraría la fiabilidad de
la prueba, si, en segundo lugar, la muestra tuviese que ser obtenida
transfronterizamente, pues ambos Estados, requirente y requerido, uti-
lizarían los mismos protocolos de recogida.
Como referencia a tomar en cuenta sobre dichos protocolos de
actuación, cabe destacar los estudios llevados a cabo a nivel internacional,
por la ISFG y el GEP_ISFG (24). En ellos, se establecen, entre otras
cuestiones fundamentales, los requisitos que ha de cumplir el personal
encargado de la recogida de muestras, qué precauciones han de observarse
durante el proceso de recogida y envío de muestras al Laboratorio, cómo
ha de documentarse la recogida de las muestras, qué condiciones han de
cumplirse en la toma de muestras indubitadas o de referencia y en la
recogida de indicios biológicos de la escena del delito así como del cuerpo
de la víctima, cuáles han de ser los sistemas de empaquetado y preser-
vación de muestras, así como las exigencias que han de observarse en la
recepción de muestras en el Laboratorio de Genética Forense.
Pero la elaboración de dichos protocolos a nivel internacional, que
era necesaria, no resultará plenamente eficaz si no se da un paso más,
como es su previsión normativa, con el fin de lograr que dichos proto-
colos resulten de obligado cumplimiento con carácter general. En
España, el RD 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se regula la
composición y funciones de la CNUFADN, ha atribuido a la citada
Comisión la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos oficia-
les sobre la obtención y la conservación de las muestras (25). En la ela-
boración y aprobación de los protocolos técnicos oficiales sobre la
obtención de la muestra, la CNUFADN ha tomado en cuenta los cita-
dos estudios elaborados, a nivel internacional, por la ISFG. Pero sería
deseable que se previera normativamente. Si, asimismo, fuesen aproba-

(24)
Pueden consultarse en http://www.gep-isfg.org/documentos/Recogida%20
de%20evidencias.pdf
(25)
Art. 3. c).

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120 María José Cabezudo Bajo

dos por el legislador europeo, de manera que tuviese que ser asumido
por sus Estados miembros, se posibilitaría el aseguramiento transfronte-
rizo de la fiabilidad de la prueba en los dos casos anteriormente indica-
dos: tanto en el caso de que se recogiese a nivel nacional y posteriormente
hubiese intercambio de perfiles y se lograse una coincidencia, cuanto en
el supuesto de que tuviese que recogerse una muestra de ADN en otro
Estado miembro.

4. OBTENCIÓN TRANSFRONTERIZA DE LA MUESTRA DE


ADN

La obtención transfronteriza de una muestra de ADN tiene lugar


cuando la recogida de la muestra ha de realizarse en un Estado miembro
de la UE (autoridad de ejecución) distinto a aquel ante el que se ha
incoado un proceso penal y que solicita la obtención de dicha muestra
(autoridad de emisión). Estas normas son esenciales para garantizar la
licitud de la prueba. A este respecto, a nivel UE, se han adoptado espe-
cíficamente normas sobre la obtención de una muestra de ADN de
persona identificada (26).
Pero, lo cierto es que en materia de obtención de pruebas en general,
no se ha aprobado aun la norma europea que plasme el principio de
reconocimiento mutuo en cuanto a la obtención y traslado de las pruebas
al Estado miembro requirente y que resulte aplicable a la prueba de
ADN. Por el contrario, en la actualidad, coexisten distintas normas rela-
tivas a la obtención de pruebas, referidas tanto a procedimientos de
asistencia judicial, como a instrumentos de reconocimiento mutuo. En
concreto, coexisten cinco instrumentos jurídicos (27): 1) Convenio europeo
de asistencia judicial en materia penal de 1959; 2) Convenio de aplicación
del Acuerdo de Schengen 1990 (CAAS); 3) Convenio de asistencia judi-
cial en materia penal de 2000; 4) Decisión Marco 2003/577, de 22 de
julio de 2003, relativa a la ejecución en la Unión Europea de las resolu-

(26)
Art. 7 de la Decisión marco 2008/615.
(27)
Bachmaier Winter (2006).

Coimbra Editora ® Parte I


La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 121

ciones de embargo preventivo de bienes y de aseguramiento de pruebas,


desarrollada en España por la Ley 18/2006, de 5 de junio; 5) Decisión
Marco 2008/978, de 18 de diciembre de 2008, relativa al exhorto euro-
peo de obtención de pruebas para recabar objetos, documentos y datos
destinados a procedimientos en materia penal.
Con las dos mencionadas Decisiones marco se ha ido progresiva-
mente avanzando en la regulación sobre la obtención de pruebas entre
Estados miembros. Pero no se logrará una regulación integral hasta que
no se apruebe la Directiva sobre el exhorto europeo de investigación (28),
que continua tramitándose en la actualidad. Con ella, se pretende lograr
una nueva y única regulación en materia de obtención de pruebas. Dicha
norma constituirá un punto de inflexión en materia de obtención, entre
los Estados miembros, de las pruebas y, en particular, de la prueba de
ADN, dado que en la actualidad no resultan de satisfactoria aplicación
ni la Decisión marco 2003/577, ni la Decisión 2008/978 por las siguien-
tes razones:
En cuanto a la Decisión marco 2003/577, de 22 de julio de 2003,
plantea un problema esencial y es que dicha norma solo cubre la parte de
la cooperación judicial penal en cuanto a la obtención de pruebas, si bien
el traslado subsiguiente de las mismas se deja a los procedimientos de
asistencia judicial, como son los Convenios relativos a la asistencia judicial
en materia penal entre los Estados miembros de la Unión Europea.
Visto lo anterior, se consideró necesario mejorar más la cooperación
judicial aplicando el principio de reconocimiento mutuo a una resolución
judicial bajo la forma de exhorto, con el fin de que pudiera obtenerse
cualquier objeto, documento o dato para su uso en los procedimientos en
material penal. Por ello, se aprobó la Decisión marco 2008/978, que aun

(28)
Iniciativa de Bélgica, Bulgaria, Estonia, España, Austria, Eslovenia y Suecia,
con vistas a la adopción de una Directiva del Parlamento y del Consejo relativa al
exhorto europeo de investigación en materia penal — JAI (2010) 3, publicada en el
DOUE 24de junio 2010, C 165. Puede verse el “Libro Verde sobre la obtención de
pruebas en materia penal en otro Estado miembro y sobre la garantía de su admisibi-
lidad”, COM (2009) 624 final de 11 de noviembre 2009. Asimismo, léase, Bachmaier
Winter (2011).

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122 María José Cabezudo Bajo

no se ha desarrollado en España. A diferencia de la Decisión 2003/577,


esta nueva norma cubre la obtención, análisis y traslado. Sin embargo,
cuenta con un aspecto negativo y es que solo se aplica a determinados
medios de prueba, porque se limita a pruebas ya existentes o disponibles
en forma de objeto, documentos o datos. Por lo tanto, no es aplicable a
la obtención de la muestra de ADN pues, conforme a dicha Decisión marco
no cabe dictar un exhorto sobre pruebas que no existen o que, aun exis-
tiendo, no están directamente disponibles sin una investigación o examen
posterior, como ocurre con las muestras de ADN, que requieren de un
posterior análisis para extraer su perfil. Así pues, esta Decisión marco
sustituye, en las materias que caen bajo su ámbito de aplicación, al sistema
de asistencia judicial en materia penal. Pero en el caso de pruebas que no
pueden obtenerse y trasladarse conforme a la Decisión 2008/978, se apli-
carán los correspondientes convenios de Asistencia Judicial en materia penal.
En consecuencia, el exhorto previsto en la Decisión marco 2008/978 está
llamado a coexistir con los actuales procedimientos de asistencia judicial.
Sin embargo, dicha coexistencia es transitoria hasta que los tipos de obten-
ción de pruebas excluidos del ámbito de aplicación de esta Decisión marco
estén sujetos igualmente a un nuevo instrumento de reconocimiento mutuo.
Dicho instrumento será la Directiva sobre el exhorto europeo de
investigación, que cuando se apruebe (29), sustituirá a las Decisiones Marco
2003/577/JAI y 2008/978/JAI, así como a varios instrumentos sobre
asistencia judicial en materia penal, por lo que respecta a la obtención de
pruebas para su uso en procedimientos penales. De esta nueva Directiva
resulta altamente positivo el hecho de que con su aprobación se pretende
evitar que las pruebas sean inadmisibles o que tengan un valor probatorio
reducido en el marco de un proceso penal que se desarrolla en un Estado
miembro por la forma en que se obtuvieron en otro. Para ello, el art. 8.2
de la Iniciativa adopta la regla forum regit actum, pues dispone que la
autoridad de ejecución observará las formalidades y procedimientos

(29)
La Iniciativa de varios Estados miembros se ha publicado en el DOUE
24.06.2010 (C 165/22). Asimismo, puede consultarse en: http://eur-lex.europa.eu/
LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:165:0022:0039:ES:PDF

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 123

expresamente indicados por la autoridad de emisión, salvo que la presente


Directiva disponga lo contrario y siempre que tales formalidades y pro-
cedimientos no sean contrarios a los principios jurídicos fundamentales
del Estado de ejecución. Sin embargo, dicha Directiva resulta insatisfac-
toria en una cuestión esencial y es que no ha incidido suficientemente en
el respeto a los derechos fundamentales que pueden verse afectados a la
hora de obtener una prueba en otro Estado miembro. En este sentido,
la Iniciativa efectúa en el art. 1.3 (30) una alusión muy genérica al respeto
a los derechos fundamentales, cuando debiera haber establecido, al menos,
las salvaguardias propias del principio de proporcionalidad. Sería desea-
ble que el texto final las incluyera.

5. PARTE DE LA SECUENCIA DEL ADN A ANALIZAR: ¿REGIÓN


NO CODIFICANTE O CODIFICANTE?

Orientados a la consecución del mencionado fin, desde el punto


de vista de la licitud de la prueba, en su primera manifestación, el
análisis del perfil de ADN en el laboratorio ha de llevarse a cabo con
el máximo respeto a los derechos fundamentales afectados, esencial-
mente, el derecho a la intimidad. Ello introduce la cuestión relativa a
qué parte de la secuencia del ADN, si la no codificante o también la
codificante, puede analizarse.
El legislador español ha regulado la parte de la muestra de ADN
que ha de analizarse en el laboratorio con el fin de extraer su perfil. Así
la norma española (art. 4 Ley Orgánica 10/2007) indica que solo se
inscribirán en la base de datos los “identificadores obtenidos a partir del

(30)
Dispone el art. 1.3 “La presente Directiva no podrá tener por efecto modi-
ficar la obligación de respetar los derechos fundamentales y los principios jurídicos
consagrados en el artículo 6 del Tratado de la Unión Europea, y cualesquiera obliga-
ciones que correspondan a las autoridades judiciales a este respecto permanecerán
inmutables. Asimismo, la presente Directiva no podrá tener por efecto exigir a los
Estados miembros la adopción de medidas que entren en conflicto con sus normas
constitucionales relativas a la libertad de asociación, la libertad de prensa y la libertad
de expresión en otros medios de comunicación”.

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124 María José Cabezudo Bajo

ADN, en el marco de una investigación criminal, que proporcionen,


exclusivamente, información genética reveladora de la identidad de la
persona y de su sexo”. Por el contrario, el art. 12.º 1 de la ley Portuguesa
n.º 5/2008, de 12 de febrero, reguladora de las bases de datos policiales
de ADN para fines de identificación civil y criminal, indica en cuanto
al ámbito de análisis, que el análisis de la muestra se restringe a aquellos
marcadores de ADN que sean absolutamente necesarios para la identi-
ficación de su titular para los fines de la presente ley, si bien lo limita a
la parte no codificante del ADN, tal y como se prevé en el art. 2.º e) de
la misma Ley. Sin embargo, en virtud de dicho precepto español, cabe
preguntarse si, resultaría respetuoso con tal disposición, la extracción de
información genética de la identidad de la persona, mediante el análisis
de la parte codificante del ADN, que es la que también contiene infor-
mación genética que revela otros datos sensibles, tales como los relativos
a la salud de un sujeto. La respuesta es que lamentablemente dicho
precepto no parece impedirlo. Y ello, a pesar de que el preámbulo de
dicha Ley restringe expresamente el análisis a la parte no codificante del
ADN. Pero, dicha afirmación, loable, no se encuentra en el articulado
de la norma y, por ello, carece de valor vinculante alguno.
Dicho esto, en la práctica, los 15 marcadores STRs más utilizados en
España (31) junto con la amelogenina parecen formar parte de la región no
codificante de la secuencia del ADN (32), pero ciertamente, nuestro art. 4
LO 10/2007 no impediría analizar partes del ADN codificante, que per-
mitieran asimismo la identificación física de la persona, como su color de
ojos. A mi juicio, ello no sería imposible de justificar jurídicamente por-
que aunque el color de ojos se situara en la parte codificante, dicha infor-
mación no revela datos que vulneren el derecho a la vida privada.
Por el contrario, a nivel UE, la Decisión 2008/615, de 23 de junio
de 2008 (art. 2.2) indica expresamente que los “índices de referencia
contendrán exclusivamente perfiles de ADN obtenidos a partir de la

(31)
Son: D3S1358, VWA, D8S1179, D21S11, D18S51, FGA, D7S820, TH01,
D13S317, D16S539, D2S1338, D19S433, TPOX, D5S818, CSF1P0, Amelogenina.
(32)
Dicha cuestión ha de ser aun estudiada por nuestra parte.

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 125

parte no codificante del ADN y un número de referencia”. La norma


europea sí limita el análisis del perfil de ADN a la parte no codificante.
El art. 36.1 de esta Decisión indica que los Estados miembros han de
tomar las medidas necesarias para dar cumplimiento a lo dispuesto en
las disposiciones del capítulo 2, donde se encuentra el citado art. 2.2.
Cuando esto ocurra, el futuro desarrollo de esta Decisión puede obligar
a la utilización exclusivamente del ADN no codificante en los Estados
miembros, incluido España, por lo que, en ese momento, tendremos
que plantearnos si se modifica o no el art. 4 de la LO 10/2007 en el
sentido de indicar legalmente y de forma expresa la limitación del aná-
lisis del ADN a la parte no codificante.
Para lograr una regulación satisfactoria en este sentido, podría resul-
tar oportuna una definición legal en el ordenamiento jurídico español
que recogiera este conocimiento genético. Ello nos permitiría, en el
ámbito jurídico, saber exactamente qué es la parte codificante y no
codificante de la secuencia del ADN y qué marcadores se encuentran en
cada sector. Y, ello, a los efectos de poder determinar, en función de la
información genética que contiene cada una, qué partes pueden analizarse
y cuáles no, sin que resulten vulnerados injustificadamente los derechos
fundamentales a la intimidad y protección de datos personales, de cara
a la obtención de una prueba lícita.

6. ARMONIZACIÓN DE LOS MARCADORES DE ADN A NIVEL UE

En la UE se ha legislado recientemente, como he indicado con


anterioridad, con el fin de lograr coincidencias entre perfiles de ADN a
nivel transfronterizo. Sin perjuicio de que dichas normas europeas aun
no se han desarrollado en los Estados miembros, lo cierto es que una de
ellas, la Resolución del Consejo de 30 de noviembre de 2009, que iden-
tifica los marcadores que debieran utilizar tales Estados, planteará, en sí
misma, un problema de fiabilidad. Y, ello, porque los Estados miembros
difícilmente llegarán a utilizar los mismos marcadores de ADN estable-
cidos en dicha Resolución, dado que carece de valor vinculante.
En efecto, el uso forense del ADN y las bases de datos policiales de
ADN tienen como fin la identificación de la muestra dejada en el lugar
Regulação e direito Coimbra Editora ®
126 María José Cabezudo Bajo

del delito, lo que podrá ocurrir si se logra una coincidencia entre su


perfil y otro perfil identificado, ya inscrito en la base de datos. Una
coincidencia tiene lugar cuando concuerda un determinado número de
“alelos” de los dos perfiles que se están comparando. Generalmente, hay
dos alelos en cada “loci”, por lo que el número de coincidencias tendría
que ser de 2x n.º de “loci” o marcadores que se determinen. Sin embargo,
cada Estado ha determinado los marcadores que sus laboratorios han de
utilizar. Así, por ejemplo, Inglaterra (33) o Alemania utilizan 10 “loci” y
España 16 “loci”. Dada la diferencia existente entre los marcadores
utilizados por cada Estado miembro, cuando se logre una coincidencia
a nivel transfronterizo entre dos perfiles, procedentes de distintos Estados,
su fiabilidad será muy cuestionable.
Ante esta situación, y a efectos de uniformar los marcadores uti-
lizados entre los Estados miembros que van a intercambiar sus perfiles
en virtud de la Decisión Prüm y la Decisión 2008/616 que la desarro-
lla, la propia Decisión 2008/616, exigió que, al menos, de los 24 “loci”
que pueden contener el perfil, 7, constituyan el ESS y el conjunto
normalizado de “loci” de INTERPOL (ISSOL). Entre otras, esta
cuestión científica, la identificación de los marcadores que han de
analizarse para extraer el perfil de una muestra de ADN, es analizada
por diversas asociaciones internacionales y europeas (34), como la
ENFSI, que es la que ha promovido la regulación de la Resolución del
Consejo de 30 de noviembre de 2009. Dicha Resolución ha ampliado
estos 7 marcadores o “loci” a 12 (35), pues, dado que la bases de datos
nacionales están aumentando en tamaño y número y que el intercam-

(33)
El sistema utilizado se denomina SGM+ y, en concreto, utilizan los marcadores
D2S1338, D19S433, D16S539, D18S51, D8S1179, D3S1179, D3S1358, THO1, VWA,
FGA, D21S11 y la amelogenina. Vide en este sentido, McCartney, C., Williams, R,
Wilson, T., The future of forensic bioinformation, May 2010, ed., Nuffield Foundation, p. 69.
(34)
Son, como ya hemos indicado ISFG, el GEP—ISFG y el Grupo de Trabajo
en ADN de la ENFSI.
(35)
Los 12 marcadores, que se enumeran en el anexo de la Resolución: D3S1358,
VWA, D8S1179, D21S11, D18S51, HUMTH01, FGA, D1S1656, D2S441, D10S1248,
D12S391, D22S1045.

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 127

bio de datos de ADN entre los Estados miembros se está incremen-


tando, ha sido necesario mejorar la probabilidad de coincidencia entre
perfiles. En virtud de dicha norma, los Estados miembros habrán de
adaptarse a la utilización de esos 12 marcadores para contribuir a la
obtención transfronteriza de una prueba de ADN lo más fiable posible.
Y, ello, porque los marcadores utilizados en cada uno de los Estados
miembros no coinciden con los previstos en la Resolución de 30 de
noviembre de 2009.
Pero es que, además, resulta improbable que todos los Estados
miembros lleguen a utilizar esos 12 marcadores ESS. Ello es debido
a que, desde un punto de vista jurídico, dicha resolución constituye
una invitación a los Estados miembros, sin carácter vinculante, lo
que, desde el punto de vista de la economía de los Estados miembros
resulta paradójicamente favorable, dado el alto coste que esta adap-
tación supondría. Asimismo, aunque los Estados miembros llegasen
a utilizarlos, el problema entonces se planteará en el intercambio de
perfiles de ADN con terceros países, como USA (36), porque utiliza
otros 13 marcadores (37).
En el caso de España, que utiliza 16 marcadores, si los comparamos
con los 12 que establece la Resolución europea, no coinciden 6 (38). Ante
esta situación, cabe señalar que entre las funciones de la Comisión para
el uso forense de ADN está la de aprobar diversos protocolos técnicos
oficiales sobre el análisis de las muestras, incluida la determinación de
los marcadores homogéneos sobre los que los laboratorios acreditados
han de realizar los análisis (art. 3. c) RD CNUFADN). Sería deseable

(36)
Al menos España, Portugal y Alemania han firmado acuerdos de intercam-
bio de perfiles de ADN con USA.
(37)
Dichos 13 marcadores fueron elegidos porque, con su uso, la probabilidad
media de coincidencia aleatoria es menor que una entre un trillón entre individuos
no relacionados. Los 13 marcadores son: CSF1PO, FGA, TH01,TPOX, VWA, D3S1358,
D5S818, D7S820, D8S1179, D13S317, D16S539, D18S51, D21S11 y Amelogenina
(Butler, 2005: 94-95).
(38)
En concreto, no coinciden los siguientes marcadores: HUMTH01, D1S1656,
D2S441, D10S1248, D12S391, D22S1045.

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128 María José Cabezudo Bajo

que cumpliese con esta función lo antes posible pero con el menor coste.
Y, en última instancia, se aprobasen en una norma.

7. CONTENIDO DEL INFORME PERICIAL

Desde la perspectiva de la fiabilidad, es necesario que la coinci-


dencia alcanzada entre perfiles pueda cuantificarse en términos de
probabilidad, mediante la aplicación adecuada del método probabilís-
tico, que se ha entendido pacíficamente hasta ahora que debe utilizarse,
a la prueba de ADN. Dicho método es el Teorema de Bayes (39). El
problema es que, existiendo unanimidad respecto a su utilización en
la prueba de ADN, no se ha consolidado aun, en nuestra doctrina, la
fórmula mediante la cual dicho Teorema se aplica a la prueba de ADN.
Dicho trabajo debe realizarse por estadísticos expertos en probabilidad
y su resultado tendría que ser asumido, no sólo por nuestro legislador,
sino también por los peritos que han de comunicar al Tribunal esta
información en su informe pericial, así como por los órganos jurisdic-
cionales encargados de valorar la prueba de ADN.
Así pues, si hay coincidencia entre perfiles, se elaborará un informe
pericial (arts 723-725 Ley de Enjuiciamiento Criminal española), cuyo
contenido se refiere a la fiabilidad de la prueba de ADN. En concreto,
dicho informe debiera incluir un doble contenido. En primer lugar, ha
de poner en conocimiento del órgano jurisdiccional toda la información
relativa al procedimiento de obtención y conservación de la muestra y
sobre la extracción del perfil en el laboratorio. En definitiva, debe indi-
carse si se han llevado a cabo dichas fases utilizando los métodos cien-
tífico-tecnológicos adecuados que, como hemos indicado anteriormente,
debieran estar previstos normativamente.

(39)
Uno de los primeros estudios en los que se plantea la aplicación el Teorema de
Bayes para la vinculación de un sujeto con un delito, mediante otros medios que no eran
aún el ADN, es Finkelstein y Fairley (1970). En España, se ha afirmado por Carracedo
Álvarez (2004), que para valorar correctamente la probabilidad de que una muestra de
ADN provenga de un individuo, es necesario recurrir al Teorema de Bayes. Puede consul-
tarse en: http://www.cej.justicia.es/pdf/publicaciones/fiscales/FISCAL39.pdf, p. 6.

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La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 129

En segundo término, se debe poner comunicar al órgano jurisdic-


cional una información cuya obtención es compleja. Se trata de indicarle
al Tribunal la probabilidad de que habiendo una coincidencia, los titula-
res de los perfiles que han resultado coincidentes, sean la misma persona.
En definitiva, se trata de cuantificar la probabilidad de que, habiendo
coincidencia entre los dos perfiles, el identificado (correspondiente al
sospechoso) y el no identificado o dubitado (asociado al de la muestra
tomada del lugar del delito), el sujeto identificado o sospechoso sea el
titular de la muestra no identificada.
Si el perito explica exhaustivamente al órgano jurisdiccional esta
doble información y si, además, dicho órgano jurisdiccional la asimila
convenientemente, podrá valorar libremente la prueba de ADN, de
conformidad con el principio de libre valoración de la prueba que rige
en nuestro proceso penal.
En relación con la segunda información, que es la más compleja,
estamos trabajando, en primer lugar, sobre cómo incluir dentro del
Teorema de Bayes las distintas variables que pudieran ser relevantes a la
hora de valorar estadísticamente la prueba de ADN, y, segundo término,
sobre cómo y cuándo debiera el perito comunicar dicha información al
Tribunal. La segunda cuestión será expuesta en otro artículo. Aquí,
vamos a indicar una aproximación preliminar al primer problema, en
base a la ayuda prestada por expertos en estadística.
El análisis bayesiano sería el modo correcto de valorar la prueba; es
decir, calcular la probabilidad condicional de un suceso aplicando el
teorema de Bayes, que permite calcular el valor de una probabilidad
teniendo en cuenta datos previos.
Los sucesos a considerar en el análisis serían:

A) Primeramente, el que denominaremos suceso C: que la


muestra recogida en el lugar del delito pertenezca al sospechoso.
Y su complementario, no C, que denominaremos suceso I: que
la muestra recogida en el lugar del delito no pertenezca al sospechoso
B) A continuación, el suceso directamente asociado a la utili-
zación del ADN, suceso M: que haya coincidencia entre el perfil de
ADN procedente de la muestra y el del sospechoso.
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130 María José Cabezudo Bajo

El correspondiente suceso complementario, no M, sería que no


hubiera coincidencia.
El Teorema de Bayes puede usarse para mostrar el efecto que la
prueba de ADN puede tener sobre la creencia en la ocurrencia sobre los
sucesos C e I.
La fórmula genérica resultante de la aplicación del Teorema de Bayes
a la prueba de ADN es la siguiente:

Según dicha fórmula, el perito debería indicar al Tribunal cuál es la


P(C/M), esto es, la probabilidad, dada la coincidencia, de que los titu-
lares de ambos perfiles (el del sospechoso y el extraído de la muestra
abandonada en el lugar del delito) sean la misma persona. Dicha pro-
babilidad viene expresada por la fórmula indicada arriba donde:

P(C) es la probabilidad a priori de que el sospechoso o impu-


tado es el titular de la muestra recogida en el lugar del delito;
P(M/C) es la probabilidad, siendo que los titulares de ambos
perfiles son la misma persona, de que haya una coincidencia;
P(I) es la probabilidad a priori de que el sospechoso o imputado
no es el titular de la muestra recogida en el lugar del delito;
P(M/I) es la probabilidad, siendo que los titulares de ambos
perfiles no son la misma persona, de que el perfil del sujeto coincida
con el perfil de la muestra.

A cada una de dichas variables ha de asignársele un valor. Pero no


todos los números han de ser suministrados por el perito. En concreto,
el perito asigna valores a P(M/C) y fundamentalmente a P(M/I). El
valor de P(M/C) es uno, dado que si el sujeto es el titular de la muestra,
habrá certeza absoluta (probabilidad igual a uno) de que los dos perfiles
coincidan. En cuanto a P(M/I), su valor es la probabilidad con que el
perfil de la muestra puede encontrarse en la población considerada, y
dicha información la obtiene gracias al uso de las bases de datos pobla-
Coimbra Editora ® Parte I
La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 131

ciones. Sin embargo, P(C) y P(I) son probabilidades a priori que ha de


cuantificar el órgano jurisdiccional relativas a información distinta a la
asociada al ADN.
Debido al hecho de que son probabilidades a priori que el órgano
jurisdiccional ha de cuantificar, es por lo que se piensa que una forma
efectiva de indicar, por el perito, la valoración biológica-estadística del
ADN es hacer uso de la expresión siguiente:

Conforme a dicha expresión el cociente entre las probabilidad a


posteriori de que, dada la coincidencia, los titulares de ambos perfiles
(el del sospechoso y el extraído de la muestra abandonada en el lugar
del delito) sean la misma persona o no lo sean es igual al cociente de las
probabilidad a priori multiplicada por la LR (“likelihood ratio”), y que
puede denominarse “razón de verosimilitud”. De esta forma, es el órgano
jurisdiccional quien puede y debería valorar de forma objetiva la prueba
científica multiplicando su grado de creencia previa sobre la culpabilidad
del acusado, por el factor LR, que el perito debe proporcionarle.
Siendo LR, el cociente entre las probabilidades condicionadas de
que siendo que los titulares de ambos perfiles son la misma persona,
haya una coincidencia y de que, no siendo que los titulares de ambos
perfiles son la misma persona, haya una coincidencia:

Sin embargo, en nuestro país, el perito no le suministra esta infor-


mación al Tribunal. Por el contrario, se le informa únicamente de la
probabilidad con que el perfil coincidente se da en una población, gracias
al uso de las bases de datos poblacionales. En concreto, se dice, entre
otras afirmaciones “este perfil aparece en una población infinita en un
caso de cada trescientos cinco trillones, seiscientos mil billones”. Cierta-
Regulação e direito Coimbra Editora ®
132 María José Cabezudo Bajo

mente, esto es una probabilidad bajísima, lo que le lleva al juez a creer


firmemente en la culpabilidad del sujeto, o, al menos, en que es el titular
de la muestra abandonada en el lugar del delito. Dicha información no
es el resultado de la aplicación del Teorema de Bayes sobre la prueba de
ADN, sino que se trata de P(M/I), esto es, de la probabilidad, dada la
inocencia, de que haya una coincidencia. En definitiva, se pone en
conocimiento del Tribunal únicamente una parte de la información que
debiera suministrársele. Nótese sin embargo, que sabiendo que P(M/C)
es igual a uno, la información suministrada puede utilizarse en términos
de LR, al ser el inverso de P(M/I).
Conforme a lo indicado, cabe efectuar las siguientes afirmaciones:
en primer lugar, se ha reconocido que el Teorema de Bayes es el instru-
mento más adecuado para valorar estadísticamente la prueba del ADN;
en segundo lugar, sería esencial que el desarrollo del Teorema de Bayes
sobre la prueba de ADN fuera comúnmente admitido en el ámbito
jurídico; en tercer lugar, ambas cuestiones, que pertenecen al ámbito de
la probabilidad, debieran preverse normativamente; finalmente, resulta-
ría necesario que la formula resultante de la aplicación del Teorema de
Bayes a la prueba de ADN, normativamente prevista, fuese utilizada en
todos y cada uno de los informes periciales.

8. CONCLUSIONES

El uso forense del ADN y sus bases de datos policiales no es una


herramienta infalible, pero posee un extraordinario potencial. Pero, para
que dicha potencialidad se vaya haciendo realidad es necesario identificar
qué aspectos referidos a cuestiones jurídicas, de genética forense, probabi-
lísticas e incluso de tecnología informática, están por desarrollar para que,
una vez solucionadas, dicho potencial se haga realidad. Y, ello, porque, en
última instancia, la norma jurídica es el producto final donde se tiene que
reflejar los avances alcanzados en todos los ámbitos mencionados.
Así pues, ciertamente se podría lograr una fiabilidad del 100% en
la identificación del investigado y en la prueba obtenida, si se aplicasen
los avances científicos y tecnológicos a la prueba del ADN. Sin embargo,
también lo es que, a la hora de obtener una prueba de ADN fiable,
Coimbra Editora ® Parte I
La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 133

tenemos que asumir la necesidad de que se cumplan asimismo una serie


de requisitos constitucionales y legales cuya inobservancia impide valo-
rar esa prueba obtenida. En definitiva, es necesario que, además, la
prueba sea lícita, esto es, obtenida con el máximo respeto a los derechos
fundamentales afectados y a otras garantías esenciales legalmente previs-
tas. En este sentido, al limitarse la fiabilidad debido al establecimiento
de estos requisitos jurídicos, hablaremos del logro de una prueba de
ADN lo más fiable posible, lo cual ya es en sí mismo un extraordinario
reto. En consecuencia, hay que identificar dónde está el límite legal a
los avances científicos y tecnológicos.
Y es al limitarse la fiabilidad en aras de la licitud de la prueba cuando
la fiabilidad de la prueba de ADN ya no es del 100% y, por ello, tiene
que entrar en juego la aplicación del Teorema de Bayes en la valoración
judicial de la prueba de ADN. En virtud de dicho Teorema, es posible
medir o cuantificar la probabilidad, dada la coincidencia entre dos per-
files de que ambos sean de la misma persona. Y, además, permite cuan-
tificar una probabilidad muy alta, dado que la frecuencia con que el
perfil de ADN que ha coincido se da en la población es bajísima.
Por ello, el enfoque metodológico que proponemos para abordar el
estudio del conjunto de normas reguladoras del “uso forense de la tec-
nología del ADN” es el siguiente: desde un punto de vista jurídico y, en
particular, jurídico procesal, hasta ahora, consideramos que las bases de
datos policiales de ADN serán eficaces en la lucha contra la criminalidad
grave, nacional y transfronteriza, en particular, la criminalidad organizada
y el terrorismo, si su regulación cumple dos requisitos: 1) en primer
lugar, si dicha regulación posibilita la obtención de una prueba de ADN
lo más fiablemente posible; 2) en segundo término, si permite la obten-
ción de una prueba de ADN lícitamente; ello, a su vez, significa que ha
de obtenerse, de un lado, con el máximo respeto a los derechos funda-
mentales que puedan verse afectados y, de otro, en cumplimiento de los
correspondientes requisitos legalmente previstos. Pero, dado que, como
he denominado, “el uso forense de la tecnología del ADN” incluye tres
fases, esto es, A) la fase de obtención de una muestra de ADN, B) la
segunda etapa, relativa al análisis de su perfil en el laboratorio y, final-
mente, C) la tercera fase de tratamiento del dato de ADN en la base de
Regulação e direito Coimbra Editora ®
134 María José Cabezudo Bajo

datos, tal prueba pericial de ADN podrá ser altamente valorada por el
órgano jurisdiccional competente en el correspondiente proceso penal
español, si fue obtenida de forma lícita y lo más fiablemente posible, en
cada una de las tres fases indicadas.
Estamos aplicando nuestro planteamiento metodológico sobre el
conjunto de normas reguladoras del “uso forense de la tecnología del
ADN” adoptadas a nivel nacional, en concreto, español, UE e interna-
cional. Ello nos está conduciendo al análisis de la mayor fiabilidad
posible, de un lado, y de la licitud, de otro, a través de las tres fases que
conforman dicha tecnología, como son las fases de obtención de la
muestra de ADN, de extracción del perfil de ADN y la relativa al tra-
tamiento del dato de ADN en la base de datos. En virtud de dicho
análisis, hemos identificado en este capítulo de libro cinco nuevas cues-
tiones controvertidas.
1. En cuanto a los protocolos de actuación, su elaboración, a nivel
internacional, que era necesaria, no resultará plenamente eficaz si no se
da un paso más, como es su previsión normativa, con el fin de lograr que
dichos protocolos resulten de obligado cumplimiento con carácter gene-
ral. En España, en la elaboración y aprobación de los protocolos técnicos
oficiales sobre la obtención de la muestra, la CNUFADN ha tomado en
cuenta los citados estudios elaborados, a nivel internacional, por la ISFG.
Pero sería deseable que se previeran normativamente.
2. Respecto a la obtención transfronteriza de la muestra de ADN la
inminente aprobación de la nueva Directiva sobre el exhorto europeo de
investigación resulta altamente positivo en cuanto a que la adopción de
este nuevo instrumento dará lugar a un régimen completo de reconoci-
miento mutuo que sustituirá a los procedimientos de asistencia judicial
actuales. Y, asimismo, que haya adoptado la regla forum regit actum. Sin
embargo, dicha Directiva resulta insatisfactoria en una cuestión esencial
y es que no ha incidido suficientemente en el respeto a los derechos
fundamentales que pueden verse afectados a la hora de obtener una prueba
en otro Estado miembro. En este sentido, la Iniciativa efectúa una alusión
muy genérica al respeto a los derechos fundamentales, cuando debiera
haber establecido, al menos, las salvaguardias propias del principio de
proporcionalidad. Sería deseable que el texto final las incluyera.
Coimbra Editora ® Parte I
La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 135

3. En cuanto a parte de ADN que debiera analizarse si la parte no


codificante o asimismo, la parte codificante podría resultar oportuna una
definición legal en el ordenamiento jurídico español que recogiera este
conocimiento genético. Ello nos permitiría, en el ámbito jurídico, saber
exactamente qué es la parte codificante y no codificante de la secuencia del
ADN y qué marcadores se encuentran en cada sector. Y, ello, a los efectos
de poder determinar, en función de la información genética que contiene
cada una, qué partes pueden analizarse y cuáles no, sin que resulten vulne-
rados injustificadamente los derechos fundamentales a la intimidad y
protección de datos personales, de cara a la obtención de una prueba lícita.
4. En relación con marcadores, en el caso de España, que utiliza 16
marcadores, si los comparamos con los 12 que establece la Resolución euro-
pea, no coinciden 6. Ante esta situación, cabe señalar que entre las funcio-
nes de la Comisión para el uso forense de ADN está la de aprobar diversos
protocolos técnicos oficiales sobre el análisis de las muestras, incluida la
determinación de los marcadores homogéneos sobre los que los laboratorios
acreditados han de realizar los análisis (art. 3. c) RD CNUFADN). Sería
deseable que cumpliese con esta función lo antes posible pero con el menor
coste. Y, en última instancia, que se previeran normativamente.
5. Finalmente, respecto al contenido del informe pericial, la parte
esencial de dicho informe tiene como fin indicarle al Tribunal la proba-
bilidad de que, habiendo una coincidencia entre los perfiles, sean de la
misma persona. Asimismo, cabe efectuar las siguientes afirmaciones: en
primer lugar, se ha reconocido que el Teorema de Bayes es el instrumento
más adecuado para valorar estadísticamente la prueba del ADN; en
segundo lugar, sería esencial que el desarrollo del Teorema de Bayes sobre
la prueba de ADN fuera comúnmente admitido en el ámbito jurídico;
en tercer lugar, ambas cuestiones, que pertenecen al ámbito de la pro-
babilidad, debieran preverse normativamente; finalmente, resultaría
necesario que la formula resultante de la aplicación del Teorema de Bayes
a la prueba de ADN, normativamente prevista, fuese utilizada en todos
y cada uno de los informes periciales.
Todos estos temas continúan siendo objeto de estudio junto con
otras cuestiones nuevas. Especialmente, continuamos trabajando en la
aplicación del Teorema de Bayes sobre la prueba de ADN.
Regulação e direito Coimbra Editora ®
136 María José Cabezudo Bajo

AGRADECIMIENTOS

Este trabajo ha sido realizado en el marco del Proyecto de Investi-


gación DER 2009-08071, financiado por el Ministerio de Ciencia e
Innovación y titulado “Intercambio y protección de datos personales en
la Unión Europea: la prueba de ADN y su eficacia procesal en España”.

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teriza, en particular en materia de lucha contra el terrorismo y la delincuencia
transfronteriza. Diario Oficial de la Unión Europea, 6 agosto 2008, L210/12-72.

Coimbra Editora ® Parte I


La prueba de ADN: valoración preliminar de la regulación… 137

Decisión Marco 2003/577/JAI del Consejo de 22 de julio de 2003 relativa a la ejecu-


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y judicial en materia penal. Diario Oficial de la Unión Europea, 30 desembro
2008, L350/60-71.
Decisión Marco 2008/978/JAI del Consejo de 18 de diciembre de 2008 relativa al
exhorto europeo de obtención de pruebas para recabar objetos, documentos y
datos destinados a procedimientos en materia penal. Diario Oficial de la Unión
Europea, L350/72-92.
Decisión Marco 2009/905/JAI del Consejo de 30 de noviembre de 2009 sobre acre-
ditación de prestadores de servicios forenses que llevan a cabo actividades de
laboratorio. Diario Oficial de la Unión Europea, 9 desembro 2009, L322/14-16.
Declaración de aplicación provisional del Convenio de asistencia judicial en materia
penal entre los Estados miembros de la Unión Europea, hecho en Bruselas el
29 de mayo de 2000. Boletín Oficial del Estado, 247, 36894-36904.
Instrumento de Ratificación de 14 de julio de 1982 del Convenio Europeo de Asis-
tencia Judicial en Materia Penal, hecho en Estrasburgo el 20 de abril de 1959.
Boletín Oficial del Estado, 283. 25166-25174.
Instrumento de ratificación del Acuerdo de Adhesión del Reino de España al Conve-
nio de aplicación del Acuerdo de Schengen de 14 de junio de 1985 entre los
Gobiernos de los Estados de la Unión Económica Benelux, de la República
Federal de Alemania y de la República Francesa, relativo a la supresión gradual
de los controles en las fronteras comunes, firmado en Schengen el 19 de junio
de 1990, al cual se adhirió la República Italiana por el Acuerdo firmado en París
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Regulação e direito Coimbra Editora ®


138 María José Cabezudo Bajo

Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, de Protección de Datos de Carácter Per-


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Real Decreto 1977/2008, de 28 de noviembre, por el que se regula la composición y
funciones de la Comisión Nacional para el uso forense del ADN. Boletín Ofi-
cial del Estado, 298, 49596-49598.

Coimbra Editora ® Parte I


PARTE II

GOVERNABILIDADE E MEDIAÇÕES
BIOVIGILÂNCIA E GOVERNABILIDADE
NAS SOCIEDADES DA INFORMAÇÃO

DANIEL MACIEL
HELENA MACHADO
1. INTRODUÇÃO
O combate à criminalidade por via de dispositivos tecnológicos e pela
informatização e manuseamento massivo de informação biogenética sobre
os cidadãos reflete a expansão, crescentemente global, de aparatos de biovi-
gilância burocrático-estatais. Estes, por sua vez, produzem efeitos na gover-
nabilidade dos corpos e nos processos culturais identitários de populações
“suspeitas” que são alvos preferenciais de recolha de dados pessoais, armaze-
nados e geridos em redes de circulação transfronteiriça. No presente texto,
usamos o conceito de governabilidade dos corpos criminais e da criminali-
dade para discutir os processos de biovigilância nas sociedades da informação.
O enfoque no fenómeno da governabilidade da criminalidade é
explorado a partir da aceção desenvolvida por Michel Foucault, a pro-
pósito da passagem histórica de uma sociedade “disciplinar” para uma
sociedade da “segurança” (Foucault, 2004, para uma sistematização desta
mudança histórica consultar Cunha, 2009), orientada não para a erra-
dicação do crime mas para uma intervenção necessária e suficiente que
torne a criminalidade tolerável e assegure o equilíbrio societal. Essa nova
forma de governabilidade, em crescente expansão nas duas últimas déca-
das, fundamenta-se em práticas de gestão governamental caracterizadas
por um “conjunto” formado por instituições, procedimentos, análises e
reflexões, em que os cálculos e as táticas que permitem o exercício deste
tipo de poder específico e complexo têm a sua população-alvo, a sua
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
142 Daniel Maciel / Helena Machado

principal forma de economia política do conhecimento, e os seus prin-


cipais meios e aparatos técnicos de segurança (Foucault, 1979 apud
Hannah, 2000: 22, tradução dos autores). Esta modalidade de gover-
nabilidade legitima-se pelo recrutamento de conhecimentos especializa-
dos na área da ciência e do direito e a ordem social segue orientações
normativas provenientes desses saberes científico-jurídicos que, por sua
vez, se apresentam como ferramentas imprescindíveis para assegurar o
progresso da sociedade e a segurança e tranquilidade públicas.
O objetivo deste texto é sistematizar as principais linhas orientado-
ras de debate em torno das questões éticas, sociais e políticas suscitadas
pela criação e expansão de bases de dados de informação biogenética
sobre os cidadãos orientadas para o controlo social e a gestão do risco
do crime, explorando os seguintes tópicos de reflexão: (i) cientifização
da justiça e do trabalho policial; (ii) governabilidade do risco, tecnologia
e informação; (iii) cultura de controlo e biovigilância.
Partimos do argumento de que a crescente expansão de bases de
dados de informação sobre os cidadãos se enquadra numa nova cultura
de controlo, de governabilidade e de gestão do risco ancorada em prá-
ticas tecnológicas associadas à transformação do Estado moderno e das
suas fronteiras num modelo de “governo-à-distância” (Rose e Miller,
1992 apud Aas, 2004; ver também o conceito de “regulação-à-distância”
de Braithwaite, 2000). Este modelo assenta, sobretudo, na ideia da
gestão racional de populações de risco e afasta-se de princípios de res-
ponsabilidade social e moral e da intervenção visando a integração social
de ofensores criminais (Loader e Sparks, 2002).
Argumentamos que esta “nova” realidade projetada pela criação e
desenvolvimento de bases de dados sobre os cidadãos reproduz fluxos
dinamizados por dispositivos sociotécnicos que alimentam a sua opera-
cionalidade pelo reforço tanto do controlo social, como de mecanismos
de hierarquização social e de estigmatização étnica ou racial.

2. CIENTIFIZAÇÃO E MERCADORIZAÇÃO DA JUSTIÇA

As ciências sociais e humanas têm focado com crescente atenção o


desenvolvimento das tecnologias genéticas forenses com aplicabilidade
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 143

na investigação criminal e na produção de prova científica para os tri-


bunais. Não é surpreendente que tal aconteça pelas decorrentes impli-
cações sociais, culturais, económicas e políticas. Antes de mais, é
importante atender à dimensão do fenómeno da criação e expansão de
bases de dados que contém informação biogenética sobre condenados e
mesmo suspeitos, e que são utilizadas por agentes de investigação crimi-
nal com o objetivo de identificar autores de crime (por exemplo, pela
recolha de vestígio de cena de crime ou pela colheita de amostra bioló-
gica de um indivíduo identificado, e comparação dessa informação com
os perfis genéticos já inseridos nas bases de dados forenses? Estamos
perante um projeto técnico-genético e biopolítico crescentemente global
e imbricado em imaginários coletivos assentes no medo do crime e do
criminoso. A globalização e crescente visibilidade política deste fenó-
meno não deixam o cientista social indiferente, sobretudo porque sus-
citam interrogações múltiplas e complexas relacionadas com a defesa dos
direitos humanos e com os mecanismos de transparência e democratici-
dade nas sociedades atuais.
Em termos simplistas e, como tal, necessariamente redutores, é
possível afirmar que políticos e cientistas forenses tendem a projetar uma
visão otimista das bases de dados genéticos forenses, salientando as suas
potencialidades no combate e prevenção do crime (Kazemian et al., 2010;
Tseloni e Pease, 2010; Van Camp e Dierickx, 2008); enquanto acadé-
micos da área das ciências sociais e humanas, comités de bioética, orga-
nizações não-governamentais vocacionadas para a proteção dos direitos
e garantias dos cidadãos apresentam uma perspetiva que acentua a com-
pressão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (Machado et al.,
2012; McCartney et al., 2010).
Os avanços científicos na área da genética forense têm sido consi-
deráveis e o poder político, um pouco por todo o mundo, revela ser um
aliado entusiástico desta ferramenta que promete uma elevada eficácia
no combate ao crime: hoje, estima-se que 56 países no mundo detenham
bases de dados de perfis de DNA (24 dos quais na União Europeia) e
que 26 países estejam correntemente em processo de criação de bases de
dados deste tipo (Council for Responsible Genetics, 2012). Inclusive,
países como as Bermudas, Emirados Árabes Unidos, Uzbequistão e
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
144 Daniel Maciel / Helena Machado

Paquistão estão a planear construir bases de dados universais, isto é,


contendo os dados genéticos de toda a população (idem). Os EUA detêm
a maior base de dados genéticos forense do mundo (com perto de 10
milhões de registos de perfis genéticos) (FBI, 2012). Proporcionalmente,
a base de dados de Inglaterra e País de Gales tem uma dimensão similar,
pois cerca de 10% da população residente tem o seu perfil de DNA
inserido, armazenado e sujeito a manuseamento pelas autoridades poli-
ciais e judiciais (Toom, 2012).
A importância política da proteção face ao crime e de reforço da
segurança (Garland, 2001; Lyon, 2001a), a crença na melhoria da justiça
apoiada na ciência (McCartney, 2006) e a pressão política para a neces-
sidade de acompanhar as tendências científicas globais assumem, nas
sociedades atuais, uma natureza social e coletiva, como se estivessem
presentes em todos os indivíduos e, de certo modo, os transcendessem
(Durkheim, 1984 [1893]). Por outras palavras, a criação, desenvolvi-
mento e expansão de uma base de dados genéticos forense são legitima-
dos pela retórica da busca do bem coletivo, traduzido na promessa de
maior segurança e tranquilidade e obtenção da “verdade” que permitirá
identificar criminosos e ilibar inocentes. A sobrevalorização das promes-
sas tecnológicas e a suavização dos riscos produzem determinados efeitos
sociais, culturais e éticos, que convergem para dispositivos retóricos
destinados a apoiar mecanismos de construção da confiança pública,
dirigidos simultaneamente à justiça e à ciência.
As bases de dados de informação genética sobre indivíduos que
passaram pelo sistema de justiça criminal são ilustrativas da coprodução
ideológica da ciência e do direito, o que pode ser descrito como um
fenómeno de cientifização do sistema de justiça (Jasanoff, 1997), que
converte uma tecnologia cientificamente reconhecida num dos mais
poderosos meios de auxílio na ‘busca da verdade’. Revela-se neste dis-
positivo uma “cumplicidade epistemológica e uma circulação de sentido
entre a ciência e o direito moderno, resultantes da submissão da racio-
nalidade moral-prática do direito e da ética à racionalidade cognitivo-ins-
trumental da ciência” (Santos, 2000: 153).
A tríade “tecnologias de identificação — bases de dados — sistema
de justiça criminal” envolve-se num movimento direcionado para a gover-
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 145

nabilidade racional de populações (Lemke, 2010) que se fundamenta


não só em novas redes de regulação e vigilância tecnológica, mas também
em “regimes de verdade” eficazmente definidos e aplicados (Jasanoff,
1997; Santos, 2002). Neste contexto de expansão massiva de bases
de dados de informação, ciência e lei agem em conjugação no sentido
de otimizar a gestão e controlo dos fluxos de informação, assim como
na produção constante de novos conhecimentos e saberes periciais.
Surge, por exemplo, uma figura que agrega o imperativo prático da
lei com a sustentação teórica científica: o perito, figura híbrida entre o
político, o jurista e o cientista (Jasanoff, 2005), conjuga aspetos de ambas
as esferas da sociedade (lei e ciência) e é chamado a intervir nas zonas
de interseção entre a utilização de conhecimento científico e a sua adap-
tação às necessidades da sociedade (Jerónimo, 2006). O perito é, por
isso, uma figura de poder na hierarquização social dos regimes tecno-
científicos de produção da verdade, em nome do “bem comum”. Ao
mesmo tempo, afasta da esfera de decisão a participação dos leigos, no
fundo o primeiro alvo do controlo social exercido pelas bases de dados,
aqui colocados numa posição de submissão perante o perito jurídico-cien-
tífico (Machado, 2011).
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento das bases de dados de perfis
de DNA reflete mudanças sociais que vão de encontro às necessidades do
mercado e do capitalismo (como parte de um movimento geral para a
mercantilização das ciências da vida — ver Garcia, 2006), descritas por
alguns autores como ilustrativas de um aparato de governância genómica
(Gottweis, 2005). Esta perspetiva reconhece um processo social e político
de naturalização do capitalismo, pela via do qual, de acordo com a suges-
tão de Boaventura de Sousa Santos, a ordem e o progresso se desenrolam
“sob a égide do princípio do mercado, que se afigura mais hegemónico
que nunca no seio do pilar da regulação” (Santos, 2000: 143). Este pro-
cesso justifica o desenvolvimento societal do capitalismo e convoca, na sua
legitimação, diversos atores e sistemas de saberes e fazeres heterogéneos,
evocando mais as promessas de utilidade imaginada (Williams, 2010) e
de eficácia na identificação de criminosos do que os riscos e incertezas.
O reconhecimento do primado do princípio do mercado na esfera
da regulação passa pela desconstrução crítica das condições epistemoló-
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
146 Daniel Maciel / Helena Machado

gicas tanto do campo jurídico como da ciência moderna, assentes no


princípio da sua relativa autonomia. Este posicionamento considera
ainda os processos de hierarquização que produzem efeitos na despoli-
tização do conflito social e de moralização dos criminosos, sobretudo
daqueles que pertencem a grupos sociais desapossados, pela via da cres-
cente criminalização da pobreza (Wacquant, 2000, 2007).
Além disso, reconhecer a importância da esfera económica nos pro-
cessos sociais de construção e expansão de base de dados de perfis de DNA
deve problematizar a sua utilidade face aos custos e riscos envolvidos
(Guillén, 2000; Simoncelli, 2006; Águas et al., 2009). Será que os bene-
fícios desta tecnologia justificam esse investimento, em particular na
sociedade portuguesa, com carências a vários níveis e cujo sistema de
política criminal defende “a prevenção geral de integração e a prevenção
especial de socialização” (Moniz, 2002: 245)? Ou seja, pode argumentar-se
que esses meios serão melhor aplicados em políticas de prevenção do crime
por medidas de socialização preventiva de reinserção social de condenados
pela prática de crime e outros ofensores criminais e em medidas de reforço
de proteção a pessoas mais vulneráveis e vítimas potenciais.
A dominação jurídico-racional alimenta-se do cientismo, por via da
qual o direito se transforma em artefacto científico e se promove uma
utopia de regulação social que convoca o direito estatal mas que o con-
verte numa “utopia isomórfica da utopia automática da tecnologia”
(Santos, 2000: 133). Neste processo, configuram-se um dispositivo da
“universalidade” que se alimenta tanto da verdade científica, como das
funções esperadas da justiça, pelo cumprimento e aplicação da lei (igual
para todos). A universalidade é aqui apoiada na crença do perfil de
DNA como um método de identificação individual inequívoco e uni-
versalmente estabelecido (Aas, 2006) que pode revelar à justiça aquilo
que de outro modo permaneceria oculto — isto é, sustenta-se na cons-
trução do primado dos saberes e conhecimentos da ciência e na defesa
da aproximação do direito ao ideal de objetividade e certeza proporcio-
nada por esta (Jasanoff, 2006).
Em suma, a legitimidade política da criação e expansão das bases
de dados genéticos com finalidades forenses assenta, em boa medida, no
casamento entre ciência, justiça e mercadorização, que promete formar
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 147

uma ferramenta poderosa na prevenção, deteção e investigação da cri-


minalidade, capaz de providenciar níveis adequados de segurança e
tranquilidade públicas e de constituir a base de uma ‘nova justiça’ — mais
credível, célere e eficaz. A cientifização da justiça e do trabalho policial
de investigação criminal (Williams e Johnson, 2008) surge plasmada nos
argumentos que sustentam a criação e expansão de bases de dados gené-
ticos para investigação criminal: estamos perante novas formas de con-
trolo e de gestão da ordem social baseadas no conhecimento da indivi-
dualidade biológica. Esta forma de conhecimento é construída por um
cientismo que torna aparentemente intocável a aura de verdade e de
infalibilidade que rodeia a utilização de tecnologia de DNA na investi-
gação do crime, entrecruzando-se o poder estatal com a autoridade
jurídico-científica em nome da segurança e tranquilidade públicas.

3. GOVERNABILIDADE DO RISCO, TECNOLOGIA E INFOR-


MAÇÃO

Na perspetiva das teorias da sociedade do risco (Beck, 1992; Beck


et al., 2000; Giddens, 1991, 1999), os mecanismos de controlo social e
de gestão da confiança pública acionados pelo Estado estão muito depen-
dentes de dois vetores: (i) da acumulação, informatização e manuseamento
de quantidades massivas de dados sobre os cidadãos; (ii) de desenvolvi-
mentos tecnológicos e científicos aplicáveis ao sistema de justiça criminal.
Nesta secção discutiremos cada uma dessas dimensões das práticas estatais
de governabilidade das populações e do risco da criminalidade.
O final do século XX trouxe o desenvolvimento tecnológico na área
da vigilância em quatro campos fundamentais (Graham, 1998): redes
interconectadas de partilha de informação; o poder de processar, manu-
sear, transmitir e armazenar dados; a transformação de computadores
em aparelhos de visualização, simulação e processamento de dados; e o
surgimento das tecnologias de localização geográfica em tempo real,
como o Global Positioning System GPS. Estas tecnologias aceleraram uma
reconfiguração dos mecanismos clássicos de controlo da ordem pública
e da criminalidade por parte do Estado. De acordo com vários autores
(ver, por exemplo, Haggerty e Ericson, 2000; Van der Ploeg, 2003; Lyon,
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
148 Daniel Maciel / Helena Machado

2002; Lyon, 2004; Aas, 2004), trata-se de enraizar o conhecimento


construído sobre as populações num tipo de linguagem traduzível e
legível por máquinas (Dodge e Kitchin, 2004) e transmissível em padrões
de informação que se organizam em “pacotes” mobilizáveis por diversos
agentes de controlo social, como as instituições de investigação criminal.
Um dos casos mais reconhecíveis pelo cidadão comum será a implemen-
tação e expansão da videovigilância tanto em espaços de acesso restrito
como em espaços abertos e públicos, com o intuito de registar imagens
para posterior identificação (Hempel e Töpfer, 2009); poderíamos incluir
aqui também tecnologias de geolocalização (GPS) ou de identificação
biométrica (impressão digital, perfil de DNA).
Observa-se uma tendência para reunir o conhecimento produzido
sobre os cidadãos em dados “objetiváveis”, passíveis de armazenamento
em grandes bases de dados. De acordo com Aas (2004, 2006), criam-se
assim “condições de virtualidade” que decompõem o indivíduo em algo
identificável com certeza e precisão (“este perfil pertence à pessoa X e
não à pessoa Y”), independentemente da sua presença. A pessoa é assim
reescrita virtualmente, numa produção de “cultura-à-distância” que des-
creve uma nova forma de identidade que pressupõe que o corpo é uma
fonte de ordem. Dispensa-se desta forma o contributo pessoal do sujeito
observado, já que o seu testemunho subjetivo passa a ser visto como uma
fonte de incerteza e erro (principalmente face à certeza produzida pela
tecnologia com recurso ao corpo). Deparamo-nos portanto com um
novo tipo de identidade: uma “individualidade somática” que restringe
as possibilidades de participação cidadã à contribuição certeira da infor-
mação providenciada pelos corpos e dissecada pela tecnologia.
Neste sentido, o poder manifesta-se de forma “molecularizada” (Rabi-
now e Rose 2003 apud Raman e Tutton 2009), ou seja, procurando a
circunscrição e autorresponsabilização do indivíduo, aparentemente des-
pido da influência do contexto social, representado pelo elemento iden-
tificante armazenado em bases de dados. Trata-se de informação “des-
provida de narrativa” (Aas 2004), onde noções como “raça”, classe social
ou género são entendidas como meros indicadores subjetivos pelos pro-
fissionais forenses que manuseiam a informação (por exemplo, os dados
que são obtidos do indivíduo no momento de colheita de amostra bio-
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 149

lógica no âmbito de uma investigação criminal), que não interferem


significativamente na identidade da pessoa, na medida em que a sua
identificação ‘objetiva’ estará já, à partida, assegurada no código biológico
(para uma crítica a esta postura nas ciências forenses, ver Duster, 2006).
Esta “nova ontologia do corpo” está evidenciada no debate sobre as
bases de dados genéticos para fins de investigação criminal e a distinção
entre “DNA codificante” e “DNA não codificante” (Van der Ploeg, 2003):
teoriza-se que apenas parte da cadeia de genes que caracteriza a molécula
de DNA é ativa na codificação das características que garantem o desen-
volvimento e funcionamento normal do corpo humano; o resto da molé-
cula será composto por DNA-lixo, genes que não são utilizados. Apenas
o chamado “DNA não codificante” é utilizado na criação do perfil para
inserção nas bases de dados genéticos com finalidades de identificação
criminal (1). Isto acontece em concordância com um princípio de preser-
vação do direito à privacidade que está intimamente enraizado na confi-
guração do corpo em informação, aqui dividida em graus de relevância
(codificante vs. não codificante). Emerge, então, o direito a uma privaci-
dade que já não surge ligada à intrusão no corpo do indivíduo, mas sim
à intrusão do Estado na informação “guardada” no código genético.
O controlo e gestão da informação têm centralizado o debate sobre
as novas formas de concetualizar direitos e garantias fundamentais do
cidadão. Esta relação entre governabilidade e cidadania é mobilizada,
sobretudo da parte das ciências sociais e humanas, para a reflexão crítica
em torno de novas configurações de cidadania e de participação pública
(Rose, 2000; Lyon, 2002; Hert, 2005). Como refere Rose (2000), veri-
ficamos que os processos sociais de reprodução de mecanismos de desi-
gualdade e de diferenciação social surgem cada vez mais mediados pelo
controlo tecnológico e reforçados por uma cultura securitária. São prá-

(1)
O princípio de que o perfil de DNA deduzido é inócuo, no entanto, é falso,
pelo menos em termos absolutos, como vemos no comentário de Cole (2007a).
Argumenta-se, no entanto, que o seu valor informativo é mínimo e irrelevante do
ponto de vista da identificação pessoal, já que estima-se que apenas perto de 1,2% do
genoma é “codificante” (Niu e Jang, 2013), servindo a grande parte do genoma funções
bioquímicas (ENCODE, 2012).

Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®


150 Daniel Maciel / Helena Machado

ticas que validam, quotidianamente, a correta participação cidadã através


de processos tecnológicos de “securitização da identidade” — nos quais
se incluem as tecnologias de vigilância e de verificação/confirmação de
identidades. Ao mesmo tempo, uma camada de cidadãos, por infortú-
nio, origem ou pelo seu comportamento, são excluídos enquanto
“não-cidadãos”, “cidadãos falhados” ou “anti-cidadãos”, na medida em
que são diferenciados no acesso a essas tecnologias: passaportes, cartas
de condução ou cartões bancários delimitam e controlam, pela criação
de códigos individuais de legitimação, uma nova geografia urbana. Fala-
mos, portanto, de uma reformulação da governabilidade de populações
a partir do controlo dos fluxos de informação e da gestão de circuitos
de inclusão e exclusão, fundamentada no cálculo e na previsão do risco,
apontando a investigação criminal para a pesquisa em bases de dados
que circunscrevem “suspeitos estatísticos” determinados pela probabili-
dade de uma correspondência de perfis (Cole e Lynch, 2006).
A informação sobre os cidadãos — ou em particular, sobre determi-
nadas populações consideradas de risco — é estruturada e organizada de
forma a poder ser interpretada e devidamente aplicada de acordo com
uma determinada moldura legal e em coerência com o dispositivo buro-
crático do Estado e com os acordos internacionais de cooperação entre
países. Exemplo disso é o chamado Tratado de Prüm de 2005, um acordo
internacional entre sete países da UE, entretanto incorporado como dis-
posição legal europeia em 2008 (Decisão 2008/615/JHA de 23 de Junho;
ver Walsch, 2008, que retrata o Tratado de Prüm como uma extensão
dos pressupostos do acordo de Schengen) e cujas obrigações se alargarão
a todos os países da UE. Segundo o Tratado de Prüm, os países compro-
metem-se a partilhar informação sobre veículos, perfis de DNA e impres-
sões digitais (pressupondo, portanto, a construção dos três tipos de bases
de dados nacionais em países que ainda não as têm), de forma a contribuir
para uma maior eficácia no combate ao crime e ao terrorismo perante a
abertura da mobilidade entre as fronteiras dos países.
O Tratado de Prüm e subsequente decisão integram-se num conjunto
de redes integradas de partilha e gestão de dados (tais como o Schengen
Information System, o Eurodac e o Visa Information System, sistemas de
controlo, registo e partilha de informação sobre migrações na Europa
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 151

— ver Broeders, 2007) que expandem e fortalecem as novas tecnologias


de vigilância de forma a acomodar as exigências governamentais, tendo
em conta a crescente exigência de liberdade na mobilidade das populações
e dos mercados. A partilha de dados aparece então como o foco de um
conjunto de políticas que, ao mesmo tempo, incrementam a incidência
do dispositivo governamental sobre a vida das pessoas e das populações
e obrigam a novas disposições legais e pactos internacionais que regulem
a circulação e uso dessa informação. A título de exemplo, poderíamos
incluir aqui a Diretiva de Retenção de Dados 2006/24/EC da Comissão
Europeia, que estende e regulamenta o armazenamento de informação
de telecomunicações potencialmente identificativa, como transferências
bancárias, registos de chamadas/SMS ou logins no email, com o objetivo
de combater o crime internacional e o terrorismo (Maras, 2012).
Os avanços legislativos ao nível europeu são apresentados como uma
solução que garante não só o aumento da eficácia na pesquisa criminal
e no combate ao terrorismo, mas que também procura uma maior pro-
teção e segurança dos cidadãos. Este “casamento entre segurança e
liberdade” configura a segurança como “direito fundamental” (Gonçalves
e Gameiro, 2012) e encontra legitimação no discurso político, que tende
a veicular a ideia que as bases de dados forenses para identificação cri-
minal constituem uma ferramenta poderosa para “apanhar criminosos”,
o que justifica a compressão dos direitos individuais em nome do bem
coletivo (i.e. a segurança dos cidadãos) (Williams, 2010), conforme
iremos discutir na próxima secção deste texto.

4. CULTURA DE CONTROLO E BIOVIGILÂNCIA

A incorporação da genética em modalidades de vigilância e moni-


torização dos cidadãos cria formas de biovigilância, facilitadas pelo apoio
público na luta contra o crime e o terrorismo. Neste âmbito, as bases
de dados de perfis de DNA podem ser perspetivadas como uma das
instâncias pela qual se têm configurado novas e eficazes modalidades de
controlo social, associadas a estratégias políticas e governamentais de
prevenção e controlo do crime, em sociedades cada vez menos tolerantes
em relação aos cidadãos “suspeitos” e favoráveis à incorporação de regi-
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152 Daniel Maciel / Helena Machado

mes mais intensivos de regulação, inspeção e controlo (Norris e Arms-


trong, 1999; Garland, 2001; Lyon, 2001a; Marx, 2002).
Utilizamos aqui o conceito de “vigilância” na aceção avançada por
Lyon (2004) e que diz respeito ao “controlo racionalizado de informação
em organizações modernas”, interligado com a “produção e consumo
capitalista” e com o funcionamento burocrático do Estado, imbricada na
rotina quotidiana das populações e cada vez mais acoplada à mediação
de risco. Referimo-nos sobretudo à configuração biométrica dos novos
mecanismos de controlo e vigilância estatais. A aplicação de biometrias (2)
à categorização de populações não é um fenómeno novo (ver, por exem-
plo, a história do surgimento e aplicação das impressões digitais em Cole,
2001). Esta começou ao nível da identificação criminal e, subsequente-
mente, como identificador predileto dos cidadãos pelo Estado, sendo
notória a celeridade com que o estado português, por exemplo, as integrou
no conjunto de categorias definidoras de cidadania ao inserir a impressão
digital do sujeito no seu bilhete de identidade (Frois, 2009; Machado e
Prainsack, 2012). No entanto, é na inovação tecnológica recente que a
biometria integrou o aparelho vigilante de forma mais eficaz, prevalente
e quotidiana (Hert, 2005; Wilson, 2007).
Tornou-se possível difundir um conjunto de tecnologias de identifi-
cação, a custo relativamente baixo e inconspicuamente (Introna, 2005),
desde a videovigilância à verificação informática (por exemplo, por cartões
de identificação, como é o caso de caixas multibanco ou de transações
monetárias). Tal disseminação foi acompanhada pela capacidade crescente
de armazenamento de grandes volumes de informação em bases de dados
de acesso e manutenção fácil. Esta conjugação poderá permitir, de acordo
com alguns autores (Graham, 1998; Aas, 2004; Dror e Mnookin, 2010),
que essas tecnologias sejam socialmente adotadas num curto período de
tempo, operando assim na reconfiguração das formas de lidar com e
organizar a partir de uma sociedade cada vez mais globalizada.

(2)
Biometria refere-se aqui à medição e/ou registo de aspetos biológicos espe-
cíficos do corpo humano, seja altura/peso, impressões digitais, cor de olhos e cabelo
ou código genético, entre outros.

Coimbra Editora ® Parte II


Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 153

Ao mesmo tempo, torna-se evidente que o Estado moderno, que


controla e vigia de forma centralizada e discursivamente marcada, se
decompõe em diferentes modalidades de vigilância — ou diferentes
“vigilâncias” (Lyon, 1992), Cada uma destas modalidades está disposta
a agir sobre o indivíduo em diferentes dimensões, decompondo-o em
identidades observáveis e absorvidas pelas diferentes tecnologias em
diferentes contextos: uma câmara reconhece uma face (Introna e Wood,
2004; Introna, 2005), um scanner reconhece a íris do olho ou uma
impressão digital (ver Kabatoff e Daugman, 2008, em uma entrevista
com John Daugman, inventor de um algoritmo para deteção e reconhe-
cimento da íris do olho, para uma explicação desta tecnologia).
Nesta nova configuração social, a governabilidade das populações é
decomposta em mecanismos de controlo demográfico a partir de noções
de normalidade aferidas estatisticamente (Cole e Lynch, 2006). Ao
mesmo tempo, espera-se que o cidadão seja responsabilizado pelo seu
comportamento ao assumir ativamente a vigilância sobre si próprio. Este
aspeto de autorregulação individual espelha a popularidade de discursos
do tipo “quem não deve, não teme” (3) na política penal (Crossman,
2008), justificando a proliferação massiva de tecnologias de vigilância
com um grau de aceitação pública elevado (Graham e Wood, 2003),
implementadas independentemente da sua verdadeira eficácia — ver,
por exemplo, o caso do software de reconhecimento facial utilizado em
videovigilância, cuja ineficácia, argumentam Introna e Wood (2004),
demonstra que a tecnologia terá aqui mais um papel ordenador e cate-
gorizador do que propriamente de deteção.
Esta nova forma da sociedade se organizar foi observada por vários
autores e descrita de formas diferentes: sociedade de controlo (Deleuze,
1997), sociedade (bio)vigilante (Marx, 2002; Fox, 2003; Wood, 2009;
Bunyan, 2010) ou securitária (Foucault, 2004 apud Cunha, 2009).
Observa-se também que a própria incidência do aparelho vigilante é
diferenciada em diferentes focos e com diferentes intensidades (Norris,
2007). Espaços públicos de forte afluência — centros comerciais, par-

(3)
Tradução livre da expressão “nothing to hide, nothing to fear” (Crossman, 2008).

Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®


154 Daniel Maciel / Helena Machado

ques ou outras áreas urbanas de lazer — são também zonas prediletas


para a intensificação de sistemas de vigilância que visam a manutenção
de um espaço agradável e seguro (Kanashiro, 2008); ao mesmo tempo,
as zonas de elevada mobilidade observam uma intensidade proporcional
dessas mesmas tecnologias, por exemplo, aeroportos, por serem também
zonas de fronteira (Wilson, 2007; Gschrey, 2011; Maras, 2012).
As tecnologias de vigilância operam assim de diferentes formas,
consoante o contexto: se no centro comercial a identificação poderá
facilitar uma transação monetária (Fox, 2003), num procedimento mui-
tas vezes voluntário e acordado por ambas as partes, já no aeroporto a
vigilância foca-se no reforço da legalidade na mobilidade, interessando-se
por identificar e afastar aqueles que estão em situação irregular (Gschrey,
2011). Em ambos os casos, no entanto, podemos reconhecer o papel
das tecnologias vigilantes no reforço da cidadania participante — seja
através de processos de normalização de comportamentos e da recom-
pensa pelo correto engajamento na vida pública, enaltecendo o “super-
cidadão” que maximiza a sua “liberdade, autonomia e sentido de bem
comum” (Machado e Silva, 2008: 162); seja na deteção de indivíduos
indesejados pela identificação de ilegalidades ou pela exclusão moral de
determinados comportamentos e posturas (Garland, 2001 apud Owen,
2007). Deste modo, criar-se um sistema de tecnologias de vigilância
que se alimenta de agentes envolvidos numa malha de socialidades que
é reorganizada, quotidianamente, e que contribui para a própria afirma-
ção e confirmação de identidades sociais (Aas, 2006; Prainsack e Toom,
2010; Ajana, 2012).
Ser “europeu”, por exemplo, não se esgota na geografia deste con-
tinente nem somente numa filiação ou ascendência histórica, sendo a
própria identidade inscrita nos corpos, reformulada e legitimada de cada
vez que, em zonas de fronteira, é aceite ou negada a passagem ao indi-
víduo após a confirmação da sua identidade em bases de dados (Broeders,
2007; Prainsack e Toom, 2010; Gschrey, 2011). Este controlo é espe-
cialmente sentido por quem, sendo oriundo de fora da Europa, pretende
entrar neste espaço, já que o processo de entrada no espaço da UE obriga
ao imigrante a cedência de um conjunto de informações biométricas e
a sua inclusão em diferentes bases de dados para posterior confirmação
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 155

da legalidade da sua presença em cada posto de vigilância (Broeders,


2007). Falamos por isso não só de uma identidade genética sediada na
virtualidade dos sistemas de informação (Aas, 2004) — uma forma de
biocidadania (Ajana, 2012) — mas também da configuração de “fron-
teiras digitais” (Broeders, 2007) ou “fronteiras virtuais” (Gschrey, 2011)
mediadas por tecnologias de vigilância.
A pessoa é “transcrita” pelas tecnologias vigilantes em unidades
irredutíveis de identificação (uma impressão digital, um padrão da íris,
um perfil de DNA), informação compartimentada que será reconstruída
num perfil. Esta unidade de identificação será autorizada ou desautori-
zada a usufruir da liberdade de mobilidade, sediada nas diferentes bases
de dados que, por sua vez, se interconectam numa rede de identificação.
Trata-se daquilo a que Haggerty e Ericson (2000, ver também a respeito
Prainsack e Toom, 2010) chamam de “montagem vigilante” (surveillant
assemblage) e que caracteriza as modalidades de controlo, identificação
e vigilância transfronteiriça da europa contemporânea.
Os cidadãos tornam-se alvos e beneficiários destas novas técnicas de
governabilidade: são alvo, pois os seus dados são mais facilmente arqui-
vados e analisados pelas equipas de perícia policial; ao mesmo tempo,
gozam de um controlo que não só é mais restrito como uniformizado e
reforçado em lei internacional. O cidadão é por isso parcialmente des-
tituído de direitos à privacidade, ao mesmo tempo que é emancipado
na liberdade de movimento, refletindo um (des)empoderamento situado
(Prainsack e Toom, 2010), num contexto em que o poder político pres-
supõe a existência de um elevado grau de aceitação pública em relação
a estas novas disposições legais. São, portanto, tecnologias que por si
próprias operam esse controlo da circulação de indivíduos suspeitos de
envolvimento em atividades criminais, mas também em imigração ilegal,
de uma forma que é ao mesmo tempo próxima — por serem situadas e
individualizantes — e distanciada, por se organizarem em bases de dados
centrais e interligadas (Prainsack e Toom, 2010).
Há, na expansão do aparelho vigilante, alguns paralelos com a figura
foucaultiana do panótico de Bentham (Foucault, 1986). Desenhado no
século XIX com o propósito de propor uma arquitetura prisional que,
ao mesmo tempo, permitisse uma vigilância constante (com poucos
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
156 Daniel Maciel / Helena Machado

recursos humanos) e uma disciplinarização dos corpos vigiados, o panó-


tico de Bentham consiste num tipo de cárcere no qual as celas se dispõem
circularmente e viradas para o centro, onde se localiza um observatório
que permite a uma pessoa vigiar todas as celas em seu redor. Ao mesmo
tempo, o recluso não consegue perceber se está a ser vigiado, já que não
consegue ver para dentro desse observatório, pelo que se impõe sobre
ele um sentimento omnipresente de controlo invisível. Assim, o recluso
procurará constantemente interiorizar o “bom comportamento”, inde-
pendentemente de estar a ser vigiado ou não, e assim caminhará no
sentido de incutir sobre si próprio a reeducação e reabilitação que a
prisão procura.
Este é um processo de “normalização” do vigiado que está no fun-
damento do discurso que sustenta a implementação e expansão das
tecnologias de vigilância — ou seja, não somente estas tecnologias per-
mitem apanhar mais rapidamente um criminoso, como também agem
no sentido de dissuadir o crime ao obrigar as pessoas a controlarem os
seus próprios comportamentos (Foucault, 2004 apud Cunha, 2009). No
entanto, a ideia de que as tecnologias de vigilância, por si próprias,
configuram uma forma contemporânea de “panótico” (Norris, 2007)
— ou superpanótico (Graham e Wood, 2003), tendo em conta a respetiva
abrangência — não é consensual.
Em primeiro lugar, porque nem todas as vigilâncias possuem uma
conotação negativa; pelo contrário, a participação em mecanismos de
controlo social pode ser uma atividade gratificante (Lyon, 1992) como
evidencia a popularidade dos reality shows (aquilo a que chamaríamos um
sinótico [Mathiesen, 1997], um sistema em que muitas pessoas vigiam
um pequeno grupo — o inverso do panótico). Aliás, como argumentam
Haggerty et al. (2011), a literatura sobre as novas formas de vigilância
propôs já uma panóplia de “novos ‘óticos’” (4). Em segundo lugar, a

(4)
Estes “novos óticos” são referidos por Haggerty e colegas no seguinte extrato:
Surveillance scholars from a wide range of disciplines have subsequently posited a plethora
of new ‘opticons’, including the ‘superpanopticon’, ‘post-panopticon’, ‘periopticon’,
‘neo-panopticon’ and ‘ban-opticon’, to name but a few (Haggerty et al., 2011: 232).

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Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 157

vigilância não implica necessariamente uma atitude passiva do vigiado,


como a imagem do panótico foucaultiano tende a fazer crer (Aas, 2004),
havendo, como vimos, aceitação e engajamento público na implementa-
ção, manutenção e na própria gestão das tecnologias vigilantes.
Em terceiro lugar, a disseminação das tecnologias de vigilância não
é universal e, na maior parte das situações, dirige-se a alvos ou circuns-
tâncias específicas. Nestes casos, falamos de um ban-opticon (Bigo, 2006
apud Hempel e Töpfer, 2009), ou seja, um sistema em que um grupo
de pessoas ou instituições específicas (por exemplo, a polícia) monitoriza
um grupo de pessoas e comportamentos suspeitos. Aqui remetemos para
uma forma de controlo e governabilidade que não opera “no local”, por
observação direta, mas sim através de um dispositivo complexo que
interliga tecnologias de vigilância, bases de dados e redes de cooperação
nacionais e internacionais entre diversas instituições.

5. CONCLUSÃO: BASES DE DADOS GENÉTICOS E BIOVIGI-


LÂNCIA

O controlo das populações pelas tecnologias de biovigilância configura


uma governabilidade característica das sociedades contemporâneas, tornada
possível por um tipo de vigilância que não busca as pessoas ou compor-
tamentos subjetivamente avaliados como desviantes, mas sim parâmetros
de exclusão previamente inseridos (numa lógica de contenção de riscos) e
determinados por padrões identificáveis nas bases de dados — aquilo a
que Clarke (1988) chamara de dataveillance (ver também Lyon, 2001b).
Não se identifica apenas o (potencial) ofensor, mas também o próprio
perfil de risco, em processos de identificação e definição de grupos e iden-
tidades que, pelas suas características, se tornam suspeitos aos olhos das
bases de dados. Referimo-nos a “suspeitos estatísticos” (Cole e Lynch,
2006), assim assumidos pela racionalidade da frequência probabilística e
a partir de uma base discursiva aparentemente desinteressada das conota-
ções éticas/morais deste tipo de categorização. Parafraseando Gilles Deleuze
(1997 apud Aas, 2004), diríamos que o indivíduo é decomposto em diví-
duos, unidades de identificação que operam autonomamente na construção
das identidades a partir do aparelho vigilante. Uma asserção que se con-
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158 Daniel Maciel / Helena Machado

juga com a constatação de que presenciamos um novo tipo de configura-


ção social sustentada na responsabilização individual e na mobilidade como
valores fundamentais a defender, ligados intimamente a novas noções de
liberdade e direito civil (Haggerty e Ericson, 2000; Lyon, 2002; Aas, 2004;
Broeders, 2007; Wilson, 2007).
Noções de etnia, raça e identidade nacional são recicladas pelos
operadores de bases de dados genéticos enquanto categorias práticas
mobilizadas apenas por um imperativo organizador e assim sustentadas
numa frieza racional que assume essas categorias como dados adquiridos
(Fujimura e Rajagopalan, 2010). No entanto, vários autores (Duster,
2006; Cole, 2007b; Risher, 2009) chamam a atenção para o facto de as
novas tecnologias de vigilância terem, ao invés, reforçado a legitimidade
de velhos preconceitos e inclusivamente criado novas formas de estig-
matização e exclusão social ao reinventarem os critérios que fundamen-
tam a cidadania: por um lado, ao nível legal/burocrático, definindo-se
a partir de disposições legais nacionais, assim como de tratados interna-
cionais (Broeders, 2007), novas formas de categorização e delimitação
de populações; por outro, a partir do momento em que as próprias
tecnologias de vigilância operam pela produção de distinções entre indi-
víduos suspeitos e não-suspeitos (Van der Ploeg, 1999).
Enquanto outros dispositivos de vigilância recolhem informação
externamente visível, o funcionamento das bases de dados genéticos está
dependente de uma intromissão direta sobre o indivíduo, da recolha de
um tipo de informação que não é evidente, à partida, mas que é muito
mais poderosa na identificação, não só da pessoa, mas também dos seus
parentes genéticos (Williams e Johnson, 2004; Van Camp e Dierickx,
2007; Machado, 2011).
A determinação de perfis de DNA inscreve no indivíduo precisa-
mente essas categorias que, à partida, se definem como determinantes
para a correta manutenção da rede de sistemas de vigilância — se é
importante para um sistema de videovigilância haver um conhecimento
prévio do aspeto do(s) suspeito(s) e se é possível determinar com alguma
exatidão o fenótipo das amostras de DNA recolhidas, então torna-se
evidente que será prioridade permitir essa determinação no sentido de
garantir a otimização da investigação criminal (Kayser e Schneider, 2009).
Coimbra Editora ® Parte II
Biovigilância e governabilidade nas sociedades da informação 159

É no sentido de imperativo funcional (Dahl e Sætnan, 2009) que


um conjunto de práticas que, à partida, poderiam suscitar alguma preo-
cupação ética e moral se aplicam em investigação forense, suavizando-se
as suas consequências ao nível da compressão dos direitos individuais,
nomeadamente: a pesquisa familiar, ou seja, o ato de pesquisar na base
de dados perfis que sejam geneticamente próximos de uma amostra des-
conhecida recolhida em cena de crime (Greely et al., 2006; Bieber et al.,
2006); a pesquisa de ancestralidade geográfica, feita após uma determi-
nação da distribuição estatística de perfis genéticos por zona e da subse-
quente aproximação da amostra desconhecida a uma zona provável de
proveniência (Shriver et al., 2005); a pesquisa “por arrastão” (dragnets),
que consiste na recolha em massa de perfis de DNA numa determinada
área onde se presume ser provável residir o suspeito (Chapin, 2004), assim
como outros métodos e usos futuros a desenvolver, tais como a criação
de perfis genómicos expandidos, que identificam a ancestralidade e algu-
mas características físicas determinadas a partir do DNA (Haga, 2006).
Pela articulação do argumento da eficácia da investigação criminal
com a manutenção do direito fundamental à segurança, perfis, popula-
ções e áreas geográficas são “tornadas suspeitas” pela incidência diferen-
ciada da ação das bases de dados genéticos (Cole e Lynch, 2006), que
se constitui cada vez mais com tipos-alvo de perfis suspeitos e dessa forma
mantém e reforça estigmas historicamente presentes no sistema judicial
e penal (Duster, 2006).
Apesar destas preocupações, as bases de dados genéticos e as tecno-
logias que lhes estão associadas continuam, como vimos, em plena expan-
são, incorporadas em redes internacionais de vigilância e controlo de
populações. As tecnologias genéticas tornam-se, por isso, um elemento
integrante da “montagem vigilante” (Prainsack e Toom, 2010) que orga-
niza uma transformação global das estruturas do Estado e das sociedades
em torno de dispositivos tecnológicos e vigilantes. Aqui, novas concetu-
alizações de identidade e corpo ganham forma, assim como uma valora-
ção reforçada da participação e engajamento dos cidadãos na manutenção
dessas tecnologias. A organização da sociedade em torno dos fluxos de
informação traz, por isso, novas condições de emancipação ao decompor
as estruturas tradicionais de poder em dinâmicas mais fluídas. Ao mesmo
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160 Daniel Maciel / Helena Machado

tempo, reforça-se a centralidade do conhecimento científico, da área das


biociências como pilar de novos regimes de produção de verdades que
integram, simultaneamente, o poder político e a ação judicial.
O desenvolvimento de saberes e tecnologias associadas à recolha,
armazenamento e processamento de informação sobre os cidadãos com
vista à gestão e prevenção da criminalidade poderá passar no futuro por
mecanismos mais democratizados de governabilidade dos corpos e das
populações? Restará nas mãos de organizações cívicas com capacidade
de influência pública, assim como nas instituições envolvidas neste apa-
relho tecnocientífico, a capacidade de assumir a responsabilidade e
apresentar soluções para o futuro?

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MEDIAÇÕES, TIPOS E FIGURAÇÕES:
REFLEXÕES EM TORNO DO USO DA TECNOLOGIA
DNA PARA IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL

CLAUDIA FONSECA

1. INTRODUÇÃO

Em 2 de maio de 2012, a Câmara de Deputados deu aprovação


final e encaminhou para sanção presidencial em Brasília a proposta
legislativa de criação do banco de perfis de DNA para crimes violentos.
Entre outros itens, a lei 12.654-12 reza que:

Os condenados por crime praticado, dolosamente, com violên-


cia de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes
[.hediondos…], serão submetidos, obrigatoriamente, à identificação
do perfil genético, mediante extração de DNA […], por técnica
adequada e indolor.
§ 1.º A identificação do perfil genético será armazenada em
banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo
Poder Executivo.

Assinada pela presidente no dia 29 de maio (2012) e regulamentada


quase um ano depois (no 12 de março, 2013), a lei deve ser implemen-
tada nos próximos meses. Proponentes da lei afirmam que ela é
bem-vinda, pois vem “preencher uma lacuna” na legislação brasileira
sobre práticas que já existem, mas que não eram reguladas. Eu acres-
centaria que é bem-vinda também porque a formulação de uma nova
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168 Claudia Fonseca

lei abre espaço para uma discussão ampla e pública sobre os efeitos prá-
ticos e éticos das novas tecnologias de governo.
Em outras palavras, esse tema fornece uma oportunidade para a
sociedade — os governantes e o público em geral — repensar criti-
camente uma série de questões importantes sobre direitos, cidadania
e discriminação. Instiga antes de tudo a considerar como elementos
aparentemente neutros — da ciência e da tecnologia — provocam
rearranjos em nossa maneira de pensar e lidar com questões de justiça.
Seguindo essa linha, proponho nesse ensaio apelar para alguns ins-
trumentos analíticos dos estudos de ciência e tecnologia para afinar
nossa percepção dos novos saberes científicos no campo da investi-
gação criminal, documentando seus usos e avaliando seus efeitos na
prática em lugares onde o banco de perfis genéticos já foi implantado
há tempo.
Comentários entusiastas prometem que o banco de perfis genéticos
para fins de identificação criminal vai contribuir para a resolução do
problema número um do país — a insegurança causada pelo crime
violento, resultado por sua vez da “cultura da impunidade”. Aparecem
repetidamente na mídia histórias emblemáticas, geralmente importadas
dos Estados Unidos e da Inglaterra, sobre tal e tal estuprador que foi
preso graças à tecnologia do DNA, e sobre tal e tal assassino em série
que poderia ter sido preso antes de cometer tantos crimes se somente
tivesse existido na época um banco de perfis genéticos. Por outro lado,
ouvimos falar muito dos casos em que o DNA conseguiu exonerar pes-
soas injustamente suspeitas de um crime, inocentar determinados presos
e até tirar alguns condenados do corredor da morte.
Parece haver nessas histórias uma associação automática entre tec-
nociência e justiça — como se os elementos “impessoais” do DNA
pudessem finalmente introduzir no sistema de justiça uma objetividade
livre de preconceitos para levar adiante a causa do bem-estar de todos.
E, sem dúvida, há instâncias em que o uso da ciência — em particular
da informação genética — tem avançando a causa dos direitos humanos.
Basta pensar no trabalho de cientistas para identificar os corpos de
pessoas assassinadas durante ditaduras sangrentas na África ou América
Central ou, mais perto de casa, para identificar os filhos de desapareci-
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 169

dos da ditadura argentina (Penchaszadeh, 2012). Também tem permi-


tido a reunificação de famílias separadas por migrações ou políticas
estatais autoritárias. Eu mesma estou envolvida atualmente numa pes-
quisa sobre os estragos de uma política de saúde pública no Brasil que,
dos anos 40 aos anos 70 do último século, decretou o internamento
compulsório de pessoas atingidas pela hanseníase em colônias hospita-
lares, completamente isoladas do convívio social e familiar. Nesse caso,
a técnica de DNA está servindo para identificar e reunir parentes que
se perderam de vista por causa da política autoritária, se mostrando
inclusive um instrumento poderoso para a demanda jurídica de repa-
ração (INAGEMP, 2012).
Mesmo numa área tão polêmica quanto a investigação criminal,
parece haver certo consenso de que a tecnologia de DNA veio para
ficar, apresentando-se como recurso importante, se não indispensável,
para o trabalho do sistema judiciário. A coleta de vestígios genéticos
na cena de crimes para comparação com o DNA de pessoas suspeitas
indicadas por testemunhas (ou outros indícios) é acolhida como um
suplemento importante a impressões digitais e outras técnicas de iden-
tificação. Até agora, no Brasil, é este o uso que tem despontado em
manchetes anunciando como a tecnologia de DNA permitiu prender
tal estuprador. Vestígios não identificados de diferentes cenas de crime
são estocados para serem comparadas ao perfil genético de cada novo
suspeito. O novo banco de dados de perfis genéticos inverte esse pro-
cesso, estocando o código de DNA de pessoas identificadas a ser com-
parado ao material colhido na cena de novos crimes. No campo crítico
em que me situo — dos estudos da ciência e tecnologia — especialis-
tas (envolvendo peritos, juristas, filósofos, geneticistas e cientistas
sociais) levantam uma série de questões sobre a necessidade deste último
tipo de um banco.
Alguns observadores chamam atenção para a ameaça que um banco
de perfis genéticos representa para o direito à privacidade. Concentram
suas críticas na extensão de um poder central capaz de vigiar, produzir
e controlar informações sobre aspectos íntimos da vida de seus cidadãos
(Lazer e Meyer, 2004; Bieber et al., 2006). Outros se concentram em
problemas da coleta clínica do material genético, sublinhando a invio-
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
170 Claudia Fonseca

labilidade do corpo humano e especulando sobre a hierarquia de luga-


res íntimos — indo de superfícies menos controvertidas (cabelo, pele)
aos líquidos (sémen, sangue) e orifícios corporais (boca, cavidade vagi-
nal) (5). Outros especialistas se preocupam com aspectos políticos do
fenômeno — localizando suas dúvidas no fato de que a tecnologia para
investigação criminal recebe seu impulso principal de certo país — os
USA —, certo órgão — o FBI —, e certa empresa — a Life Technologies
(Wallace, 2012). Outros especialistas questionam as condições técni-
cas do processo laboratorial e se é possível, nos variados contextos,
garantir resultados exatos. Chamam atenção para possíveis falhas na
“cadeia de custódia” do material genético — uma cadeia que inclui a
coleta por policiais na cena do crime, o condicionamento e transporte
da amostra, o manuseio no laboratório, e muitos outros elementos
técnicos (Lynch et al., 2008). Ou, fitando a etapa posterior de inves-
tigação questionam a capacidade de juristas (e juris) de entender a
lógica dos resultados probabilísticos da identificação de um indivíduo
via DNA (Jasanoff, 2006) (6).
Todas essas questões apontam para pistas interessantes de investi-
gação, e pretendo voltar a algumas delas no final desse artigo, mas, por
enquanto, me concentro aqui em três pistas oferecidas pelos estudos
de ciência:

1. Como as leis e outras mediações jurídicas no atual sistema


de justiça condicionam os efeitos do banco de perfis genéticos;

(5)
Nos anos 80, por causa da tecnologia rudimentar, a única maneira de fazer
um teste de DNA era por extração de sangue. Hoje a tecnologia permite a coleta de
amostras a partir de muitas outros “vestígios” corporais. Não é dificil ver a relação do
avanço tecnológico com mudanças de legislação em muitos paises que tornaram a boca
um lugar “não-íntimo” do corpo, de onde é possível extrair amostras sem o consenti-
mento da pessoa (Williams e Johnson, 2008).
(6)
Como lembra Jasanoff (2006: 337), “O risco de inferir, a partir de infor-
mações científicas, mais do que elas podem estabelecer com certeza razoável é parti-
culmente agudo no caso da ciência genética que carrega conotações de precisão e
infalibilidade”.

Coimbra Editora ® Parte II


Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 171

2. Como os perfis genéticos operam para criar novas categorias


de percepção, fabricando novos tipos de ser humano e quais os
efeitos destes tipos para a identidade das pessoas; e
3. Quais as “figurações” dessa tecnologia, isto é, qual a maneira
em que diferentes atores, incluindo a mídia, o direito, determina-
das categorias profissionais e observadores críticos angariam esfor-
ços materiais e semióticos para produzir certa imagem da tecnolo-
gia do DNA?

Enquanto cientista social, tomo como ponto de partida do meu


argumento os efeitos da tecnologia para os sujeitos mais visados — aque-
les que já estão ou que têm grande possibilidade de entrar no banco de
dados. Já que o fenômeno ainda é incipiente no Brasil, recorro a pes-
quisas realizadas em outros contextos onde já foram documentados
protestos e resistências ao banco de dados. Seguindo a pista desses pro-
testos, de alguns presos numa cadeia portuguesa, de dois estudantes
negros nos Estados Unidos e de um pré-adolescente na Inglaterra, espero
encontrar hipóteses para pensar os possíveis efeitos do banco de perfis
genéticos no contexto brasileiro.

2. A IMPORTÂNCIA DAS MEDIAÇÕES — LEIS E “CRIMINOSOS”

Introduzo meu primeiro tema — a importância das “mediações”


jurídicas — examinando os efeitos potencialmente positivos da tecno-
logia de DNA para reverter a condenação de pessoas inocentes. Cita-se
nos jornais com bastante insistência cada novo sucesso da organização
norte-americana, Projeto Inocência, cujo objetivo é comprovar, com ajuda
do DNA, a inocência de pessoas já condenadas pelos tribunais e servindo
longas sentenças no sistema prisional. A ideia é re-analisar a evidência
da cena de crime para ver se o perfil de DNA do malfeitor corresponde
ou não ao da pessoa condenada pelo crime. Foi justamente por descon-
fiar da mediação do sistema rotineiro de justiça, que uma dupla de
advogados norte-americanos criou o “Projeto Inocência” em 1992. Hoje,
longe de ficarem satisfeitos com a libertação de quase 300 pessoas encar-
ceradas apesar de sua inocência (incluindo pelo menos 17 que estavam
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
172 Claudia Fonseca

aguardando uma injeção letal no corredor da morte), esses ativistas dos


direitos humanos parecem ainda mais inquietos. Dizem que vimos até
agora apenas “o topo do iceberg” de um sistema em que há milhares
de pessoas inocentes nas cadeias — pessoas condenadas injustamente
por causa de defensores incompetentes, investigações policiais parciais,
confissões falsas, testemunhas compradas e a compreensão limitada do
júri quanto à relevância de análises laboratoriais de sangue e cabelo (Jasa-
noff, 2006; Lynch et al., 2008). Em outras palavras, para determinados
observadores, ao revelar falhas básicas no sistema, o DNA parece estar
— paradoxalmente — servindo para exacerbar a desconfiança no anda-
mento da justiça.
Uma pesquisa realizada em 2011 em cadeias portuguesas, sugere que
os próprios presos associam o DNA mais a essas falhas do sistema do que
à possibilidade de reverter uma condenação injusta (Machado, 2012) (7).
Artur, condenado a 12 anos de cadeia por roubo, explica por que se negou
a fornecer uma amostra de sangue para determinada investigação:

Era um caso de uma morte. A Polícia Judiciária já andava há


muitos anos em cima daquilo e não encontrava um culpado! (…) a
Judiciária é dos maiores bandidos que anda aí, não é? (…) E ao
fim daqueles anos [decidiram] “Não encontramos o autor, não temos
ninguém a quem [acusar], vamos ali à fábrica do lixo, a cadeia,
vamos ali e olha, pronto, é este” (Machado, 2012: 78).

Henrique, servindo três anos por furto, entra em maior detalhe:

Não estou de acordo [que se possa ilibar inocentes…]. Porque


lhe digo por experiência própria (…) Tenho é que ter um bom
advogado que é para a [prova] ser interpretada [a meu favor]. A prova
de DNA é pior para nós [indivíduos que já foram condenados/

(7)
Os entrevistados de Machado incluem desde pessoas condenadas por abuso
de cartão de crédito até condenadas por homicídio — cumprindo penas de prisão desde
5 meses a 25 anos — de modo a captar diversidade de experiências e representações.

Coimbra Editora ® Parte II


Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 173

potenciais suspeitos]. Sem dúvida que é pior. (…) Um cabelo, você


agarra um cabelo e mete-o lá [na cena de crime]. E pronto, metem
uma pessoa na prisão (Machado, 2012: 75-76).

Todos os entrevistados de Machado afirmaram conhecer algo das


técnicas DNA de investigação, principalmente através dos episódios na
televisão de CSI (Crime Scene Investigation). Nenhum contestou a capa-
cidade dessa tecnologia “mostrar os fatos”. Entretanto, a maioria expres-
sou uma profunda desconfiança quanto ao manuseio dessa tecnologia e
a vontade do sistema judiciário de usá-la para comprovar a inocência de
uma pessoa já condenada.
Os presos parecem estar direcionando suas dúvidas para agentes
corruptos e a adulteração intencional dos fatos. Analistas acadêmicos
levantam outro tipo de suspeita, direcionada pra as mediações legais e
administrativas que condicionam a implementação dos testes de DNA.
Apelo à noção de mediações (8) (Latour, 2005) justamente para romper
com análises governadas por um determinismo tecnológico. Tal como
qualquer outra tecnologia, o uso do DNA na investigação criminal não
segue nenhum rumo automático. Conforme os diferentes “conectores”
— que incluem leis e outros elementos do sistema de justiça — a tec-
nologia pode ser usada para avançar a causa dos direitos humanos ou
para acirrar a discriminação contra pessoas vulneráveis.
Para os que endossam os esforços do Projeto Inocência, sobra a
pergunta: quais são as mediações necessárias para institucionalizar o uso
“pós-condenação” do DNA — trazendo os benefícios dessa tecnologia
para reverter lacunas na justiça rotineira e garantir os direitos das pessoas
já condenadas?
Conforme observadores, as leis — na maioria dos lugares — não
favorecem o uso pós-condenação do DNA (Lazer e Meyer, 2004). Em
primeiro lugar, geralmente, existe um prazo relativamente curto — às

(8)
Ao contrastá-los com “intermediários” (que transmitem mecanicamente os sig-
nificados), Latour insiste no caráter imprevisível dos mediadores que “transformam, tradu-
zem, distorcem, and modificam o significado dos elementos que carregam” (2005: 39).

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174 Claudia Fonseca

vezes só seis meses — para o condenado apelar de sua sentença. Ironi-


camente, a longa vida do DNA — o fato de ser possível usá-lo como
prova mesmo 20, 30 anos depois do crime — tem levado a mudanças
de legislação no mundo inteiro para aumentar ou mesmo abolir prazos
para a prescrição de diferentes crimes. Não houve preocupação seme-
lhante de ampliar os prazos para condenados apelarem da sentença, nem
de facilitar o acesso por defensores aos vestígios genéticos para rever as
provas materiais da condenação.
Em segundo lugar, mesmo quando o preso consegue reabrir seu pro-
cesso, é bem provável que — até um novo julgamento — seja impossível
se valer da tecnologia de DNA em seu favor pois faltam estrutura adequa-
das para a armazenagem e preservação das provas. Os advogados do Projeto
Inocência, por exemplo, não conseguiram levar adiante 75% das causas que
tentaram abraçar. Por causa da inépcia dos serviços judiciários, as provas
materiais que embasaram a condenação tinham sido perdidas ou deterio-
radas, tornando impossível rever as evidências à luz da técnica de DNA.
Observadores lembram que, na organização administrativa do judi-
ciário, em geral quem decide se “novas evidências” justificam reverter o
princípio sagrado da “coisa julgada” é o promotor de justiça, justamente
a pessoa que tem menos interesse em ver escancarados seus erros ou as
falhas do sistema. Como esperar que esse “mediador” apoie:

Os casos pós-condenação [que] desviam recursos da missão


organizacional prioritária — a de condenar criminosos — e solapam
a credibilidade do serviço [judiciário]? (Lazer e Meyer, 2004).

Por causa das dúvidas levantadas pelas exonerações alcançadas por


mais de quarenta organizações não-governamentais emulando o Projeto
Inocência original, diversos estados norte-americanos abriram um serviço
pós-condenação dentro do próprio aparelho da burocracia pública.
Curiosamente, pelo menos até 2004, nenhum dos recursos iniciados por
um desses serviços públicos tinha resultado na exoneração de um con-
denado… (Lazer, 2004: 6).
Finalmente, deveríamos observar que esforços tais como esse do
Projeto Inocência não têm qualquer relação direta com o banco de dados
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 175

de perfis genéticos. Têm a ver com a comparação dos vestígios do crime


com um “suspeito” (nesse caso, já preso e condenado) específico. Em
outras palavras, no Brasil, já podíamos ter esses “projetos” há tempo…
e, por algum motivo, não ocorreu.
Deduzimos, portanto, que os usos “positivos” do uso de DNA para
inocentar pessoas injustamente condenadas não ocorre sem que haja
investimentos políticos e financeiros nesse tipo de projeto. Por outro
lado — e o que preocupa observadores críticos —, o banco de dados
parece causar certos efeitos que não foram conscientemente projetados
— a saber, a criação de novos tipos de ser humano.

3. NOVOS TIPOS DE SER HUMANO

Ao falar de “novos tipos”, estou me referindo à discussão lançada


por Ian Hacking (1999) e retomada por Nikolas Rose (2007) e outros.
São pesquisadores que procuram operacionalizar conceitos amplos como
“medicalização” ou “genetização” da sociedade, definindo os diversos
mecanismos que seriam constitutivos desses processos e perguntando
quais os efeitos sobre as subjetividades. A ideia é que “habitamos”
diversos mundos ao mesmo tempo e criamos sentido a partir dessa
diversidade, selecionando ou re-inventando categorias relevantes de
percepção. Fitando, nos seus diversos estudos, uma série de categorias
que foram cunhadas ao longo do último século — esquizofrenia, abuso
sexual, autismo — Hacking mostra como esses novos termos são
“world-making”, isto é, criam “tipos” que não só formam a nossa per-
cepção dos objetos (identificação), mas também — quando são “intera-
tivas” (dizendo respeito a humanos) — alcançam a própria identidade
das pessoas. Assim, os “novos tipos” de pessoas, classificatórios e portanto
valorativos, se mostram “mediadores” por excelência entre tradições do
passado e inovações do momento — entre saberes científicos, invenções
tecnológicas, categorias de percepção e modos de ação (Hacking, 1999).
A genética se presta de forma particularmente eficaz a esse tipo de
“fabricação de pessoas”. Revelar o tipo do indivíduo (as características
e inclinações pessoais), além de meramente identificá-lo é exatamente o
que as tecnologias anteriores — frenologia, antropometria ou impressões
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176 Claudia Fonseca

digitais — tentavam e não conseguiam fazer de forma convincente


(Cole, 2001). O “excepcionalismo” da tecnologia de DNA reside jus-
tamente no seu potencial de finalmente dar uma resposta a esse pro-
grama de investigação.
Aplicada à área criminal, esse “excepcionalismo” encerra problemas
particulares. Durante toda a era vitoriana, pesquisadores como Lombroso
e Galton tinham tentado em vão estabelecer uma conexão científica entre
biologia e comportamento, em particular o comportamento desviante e
criminoso (ver Rabinow, 1996). Associada às atrocidade nazistas perpe-
tradas durante a Segunda Guerra Mundial, essa linha de investigação caiu
de moda durante várias décadas. Será por acaso que renasce a antropo-
logia criminal, agora na forma da “biocriminalidade”, logo nos anos 80,
quando a genética passa a dar saltos surpreendentes (Rose, 2000)? No
lugar dos arquivos contendo retratos de criminosos (e rebeldes políticos)
onde Lombroso procurava encontrar na fisionomia dos presos a chave de
leitura para seu comportamento anti-social, o banco de dados genéticos
de condenados fornecerá uma ferramenta atualizada (e ajustada à estética
do século XXI) para fazer conjeturas científicas sobre o “tipo criminal”.
O problema é que essas análises serão realizadas a partir de um
universo (os “criminosos”) forjado pelos mecanismos discriminatórios
da sociedade contemporânea. É geralmente reconhecido que, no Brasil,
tal como em outros países ocidentais, existe um número desproporcional
de afro-descendentes nas cadeias (Adorno, 1995). Da mesma forma,
Duster (2004) mostra, com estudos longitudinais sobre a população
encarcerada nos Estados Unidos, que o número desproporcional de
negros na cadeia se acentuou ao longo do século XX, recebendo inclusive
um claro impulso da “guerra contra as drogas” da era Reagan. Em 1933,
77% dos presos eram brancos; até o final dos anos 80, os brancos e
não-brancos estavam empatados. Hoje, a franca maioria dos presos é
afro-descendente, o que significa uma taxa de encarceramento oito vezes
a da população branca (Duster, 2004) (9).

(9)
Se, por um lado, esses dados indicam uma discriminação contra pessoas de
pele escura, por outro lado, devemos lembrar que as classificações raciais são parte

Coimbra Editora ® Parte II


Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 177

Ativistas de direitos humanos estão de acordo. Consideram que a


vigilância potencial proporcionada pelos bancos de dados exacerba desi-
gualdades inerentes no sistema, de justiça, visando categorias já vitima-
das pelo preconceito racial. Na Inglaterra, por exemplo, onde atualmente
há mais de 6.000.000 de perfis no banco nacional (ou seja cerca de 10%
da população), constata-se um número desproporcional de indivíduos
negros. Em 2006, uma fonte jornalística (The Guardian), fazendo infe-
rências a partir da informação disponível, estimou que 37% dos homens
afro-caribenhos e 13% dos asiáticos no território do Reino Unido esta-
vam incluídos no banco de dados, contra 9% dos homens brancos (Lynch
et al., 2008). Cabe acrescentar que o uso de técnicas de DNA na inves-
tigação policial acaba por ter implicações não só para determinados
indivíduos mas também para suas famílias e comunidades.
A comunidade se torna relevante especialmente durante um dragnet
(como o que ocorreu em Charlottesville) — quando a policia, tendo uma
amostra da cena do crime, procura submeter todos os moradores de deter-
minada localidade a um exame de DNA para identificar o criminoso. Em
alguns casos, a amostra do suposto culpado sugere determinado fenótipo
(branco, negro…) permitindo fazer uma pré-triagem de suspeitos (Hacking,
2006; Bieber et al., 2006). A família passa a ser implicada especialmente
com o banco de perfis. Quando os policiais ainda não definiram nenhum
suspeito, podem procurar um acerto “frio”, comparando a amostra da cena
de crime com as centenas de milhares de perfis de pessoas identificadas no
banco. Nesse caso, podem fazer uma busca rigorosa, procurando apenas o
indivíduo com código idêntico à amostra, ou podem fazer uma busca
“frouxa” (low stringency), em que aparecem indivíduos com código próximo
ao da amostra. Neste caso o resultado sugere que o criminoso é um tio,
irmão ou outro parente do indivíduo no banco de dados.
Lembramos que o banco britânico de dados hoje inclui muito mais
do que pessoas condenadas. Inclui pessoas inocentadas, meramente

integrante das dinâmicas sociais. Vieira (2011) descreve com detalhes etnográficos
como a classificação de um mesmo suspeito tende a variar de mais branco para mais
preto a medida que o processo penal se aproxima da condenação.

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178 Claudia Fonseca

indiciadas e, de fato, qualquer individuo que já foi suspeito de ter come-


tido um delito. Considerando a grande quantidade de afro-descenden-
tes já enquadrada no sistema penal, estima-se que, com as buscas “frou-
xas” (via familiares), o banco de dados dá conta de quase toda a
população negra da Inglaterra (o caso dos Estados Unidos não sendo
muito diferente) (Lazer e Meyer, 2004; Wallace, 2008). Vista contra
esse pano de fundo, o uso da tecnologia de DNA em investigações poli-
ciais aparece como mecanismo não para combater e, sim, para exacerbar
o caráter discriminatório já inscrito no sistema penal, permitindo a
vigilância acirrada de certos tipos mais do que outros.
Duster (2006) tem sido particularmente evocativo quanto à
maneira em que as novas tecnologias policiais são vividas por jovens
das minorias étnicas. Ao sublinhar a “confiança diferencial” no uso
forense da tecnologia, ele descreve um episódio de 2003 em que dois
estudantes negros da Universidade de Virginia (Charlottesville, EUA)
se negaram a cuspir numa jarra para fornecer uma amostra de seu DNA.
Por qual motivo eles se recusariam a colaborar com a investigação
policial em busca de um estuprador que aterrorizava a comunidade há
mais de cinco anos? Conforme Duster, esses estudantes, tal como boa
parte de seus colegas negros da universidade, queriam contestar o que
viam como uma premissa teórica inerente na coleta de amostras: que
o mero fato de serem homens negros os colocaria na categoria de
pré-suspeitos. Tal como no caso dos presos portugueses descritos por
Machado, vemos aqui pessoas que não aceitam dar carta branca à esca-
lada de tecnologias policiais. Só que no caso descrito por Duster,
trata-se de indivíduos que nem sequer foram indiciados por um crime,
mas que, por causa de seu grupo étnico ou sua vizinhança, são parti-
cularmente visados pela polícia.

4. DE ADULTOS A CRIANÇAS: CORTANDO O MAL PELA RAIZ

A primeira vista, o banco de perfis genéticos diz respeito apenas aos


indivíduos condenados por crimes hediondos. Falamos acima de casos
em que o banco tem potencial para afetar um raio muito maior de pes-
soas. O exemplo seguinte, tirado do “berço” do banco de perfis gené-
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 179

ticos para identificação criminal — a Inglaterra —, descreve como o


banco chega a incluir até crianças e adolescentes nunca indiciados.
Quem inicialmente dirigiu minha atenção a esse caso foi uma con-
ceituada ONG, já com mais de duas décadas de experiência na análise
ética e política de inovações científicas, o Genewatch. No site desta
organização, encontra-se destacada uma ação judicial movida em 2008
contra o Banco britânico de perfis genéticos que chegou até a Corte
Europeia de Direitos Humanos. Trata-se de um menino de 11 anos,
acusado por furto mas nunca condenado, cujos dados genéticos estavam
guardados nos arquivos policiais (Genewatch, 2013a). Em outros luga-
res, há previsões legais que, teoricamente, permitem expurgar um regis-
tro depois de determinado tempo ou quando o suspeito não for indiciado
ou condenado. Não é o caso do banco de dados de Inglaterra e País de
Gales onde os dados de qualquer indivíduo ficam retidos por um período
indefinido. Ao julgar esse caso, o Tribunal Europeu considerou que, já
que o menino nunca foi legalmente condenado, a retenção de seus dados
no Banco Nacional de perfis genéticos era uma interferência despropor-
cional no seu direito à vida privada — constituindo uma violação de
direitos pelo próprio Estado que não devia ser tolerada numa sociedade
democrática (ver também Williams e Johnson, 2008).
Lembramos que o banco britânico de dados iniciou em 1995 de forma
cautelosa — incluindo apenas pessoas adultas condenadas por crimes
sexuais e violentos. Sob Tony Blair, o banco se expandiu para incluir o
registro permanente do DNA de pessoas suspeitas de qualquer infração,
a partir de 10 anos de idade. Conforme o Genewatch, até 2008, entre os
mais de seis milhões de pessoas no sistema, existe quase um milhão que
deu entrada com menos de 18 anos de idade, e meio-milhão com menos
de 16 anos. Encontram-se no banco os perfis de um menino de 12 anos
acusado de roubar as cartas de Pokemon de um colega de aula, de outro
com 13 anos cujo crime foi atirar uma bola de neve contra um carro
policial, e ainda outro de 10 anos, cujo material genético foi coletado
quando ele fez queixa de ser vítima de bullying (Genewatch, 2013b).
Pergunta-se: qual a lógica que justifica a incorporação de dados
genéticos sobre crianças num banco para uso policial? Nesse ponto,
podemos citar um relatório do próprio banco britânico que, em 2003,
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
180 Claudia Fonseca

ainda estava preparando o caminho para a inclusão de crianças e ado-


lescentes no acervo:

Dessa maneira, vamos poder detectar infratores mais cedo, antes


de qualquer acusação formal ser feita, poupando assim tempo e
custo dos policiais (NDNAD, 2004 apud Lynch et al., 2008: 152).

Chegamos aqui de volta à discussão sobre “tipos”, pois estamos


falando de uma medida baseada não na constatação de um fato do pas-
sado, mas na previsão do que provavelmente vai ocorrer. É um exemplo
supreendentemente franco da construção de um tipo criminal que, pre-
sumivelmente, pode ser identificado por fatores de risco, detectados já
na infância. É subentendido tratar-se de jovens com tendência de even-
tualmente desenvolver características antissociais, tornando-se uma
ameaça à segurança pública (Hacking, 2006).
Nikolas Rose (2000) situa essa preocupação com segurança dentro
da ótica da saúde pública, típica da segunda metade do último século.
Visa não só o controle, mas também a terapia preventiva — um tipo de
ortopedia social — implicando uma nova equipe de profissionais (girando
agora em torno de geneticistas e neurocientistas) como especialistas no
assunto. Só que, no campo da saúde, o risco envolve uma eventual
ameaça de doença ao indivíduo em questão. No campo de segurança
pública, o risco fala da ameaça que o próprio indivíduo apresenta para
a sociedade. Ao identificar “pré-suspeitos” — tipos de pessoa com ten-
dência a comportamento antissocial — considera-se que a tecnologia
está permitindo “cortar o mal pela raiz” (ver Fonseca, 2012).
Os laboratórios forenses, especificamente voltados para o combate
ao crime, e com material genético à disposição graças aos bancos de
dados, se tornam o local por excelência para a ciência de previsão. Em
alguns países, existe uma orientação de guardar apenas o código infor-
matizado do perfil genético. Em outros lugares a amostra biológica
original é estocada para consulta e re-exame futuros. Neste último caso,
a amostra também poderia ser usada para pesquisa… como é o caso em
muitos laboratórios forenses nos Estados Unidos. (Convenientemente,
a inclusão desses “sujeitos” na pesquisa prescinde de qualquer consenti-
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 181

mento informado — Weiss, 2011). É bem possível que, a partir desse


universo particular de pesquisa fornecido pelo banco de dados, sairá uma
associação também bastante particular sobre a relação entre classe, raça
e indivíduos de risco.

5. FIGURAÇÕES

A última “voz” de um sujeito em carne e osso que trago aqui vem


da minha experiência incipiente de pesquisa de campo numa Vara de
Júri em Porto Alegre (10). Trata-se de uma promotora que, a partir de
quase vinte anos de experiência na Vara, expressou certo ceticismo frente
às vantagens do banco de perfis genéticos. Explicou que a maioria de
crimes violentos ocorre em lugares públicos onde, muito antes da polí-
cia chegar, a cena do crime é tomada por familiares, vizinhos e simples
transeuntes. Nessas condições, há pouca esperança de isolar o DNA do
agressor. O laboratório forense do estado para onde se mandaria a “prova
material” para análise tem peritos competentes, mas estão sobrecarrega-
dos de trabalho e os resultados de análise, demorando até dois anos para
sair, podem chegar tarde demais para serem aproveitadas no julgamento.
Em todo caso, a impunidade do assassino não acontece, em geral, por
falta de provas materiais — mas por falta de testemunhas com coragem
para apontar o dedo. Sem a corroboração de testemunhas com narrati-
vas que constroem o contexto do crime, a mera presença de determinado
suspeito na cena do crime não é suficiente para condená-lo.
É interessante que as dúvidas da promotora, assim como as de outros
sujeitos citados ao longo desse artigo quanto à eficácia de um banco de
perfis genéticos não aparecem na mídia, nem parecem entrar nas consi-
derações dos legisladores nacionais. Pergunta-se: de onde vem a visão
otimista que encontramos diariamente nessas arenas públicas? A resposta
a essa pergunta traz à tona o que chamo de “figurações” — a maneira

(10)
Entrevista realizada em junho de 2012 no âmbito do projeto CNPQ, “A pro-
dução e uso de novos conhecimentos científicos nas tecnologias do governo” em compa-
nhia dos demais pesquisadores do tema de perícia forense, Vitor Richter e Lucas Besen.

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182 Claudia Fonseca

pela qual diferentes saberes científicos, junto com uma variedade de


outros atores — a mídia, o direito, as empresas, os cidadãos com sua
agenda de preocupações — angariam esforços materiais e semióticos para
dar corpo a novos (e velhos) fenômenos (Castañeda, 2002).
A presença da mídia, por exemplo, está evidente naquilo que diver-
sos observadores denominam o “imaginário forense” — um efeito pro-
duzido por seriados de televisão tais como CSI (Crime Scene Investigation)
e que transmite ao público uma convicção de que a ciência, com seus
instrumentos afiados de “bioidentificação”, é uma arma eficaz para pre-
venir e combater a criminalidade:
Pela mistura “credível” de elementos ficcionais e elementos com
sustentação nos procedimentos reais da ciência forense e da investigação
criminal apoiada em tecnologias avançadas (…), o CSI configura uma
performance cultural que cria mitos em torno do que a ciência-deveria-ser
(wishful-thinking science)” (Machado e Costa, 2012: 65).
Diante do público leigo, a ciência — e, em particular, o gene (ver
Nelkin e Lindee, 1995 sobre esse “ícone do século”) — tem um poder
de fascínio que extrapola o entusiasmo dos próprios cientistas. Estes
em geral evitam promessas proféticas calcadas em raciocínios reduccio-
nistas (Lewontin, 1972 apud Hacking, 2006). É geralmente reconhe-
cido, por exemplo, que “nenhum geneticista sério” diria que existe um
gene único para um traço comportamental (Brodwin, 2002). Mas esse
tipo de raciocínio aparece com bastante frequência nas reconstruções
populares da ciência.
Tanto entre leigos quanto entre muitos juristas, parece existir uma
fé no caráter “objetivo” da ciência que faz abstração das contingências
sociais (e altamente humanas) de sua prática. A insistência com a qual
juristas apontam para as vantagens das provas “infalíveis” de DNA sobre
as provas testemunhais “sujeitas ao erro humano” sugere uma visão
ingênua da ciência. Conforme analistas dos estudos sociais da ciência e
tecnologia (STS), caberia uma perspectiva mais circunspecta das provas
científicas — uma perspectiva que fala em termos de “verdades acessíveis”
(serviceable truths), úteis para avançar a causa da justiça, mas que, pres-
supondo os alicerces inevitavelmente sociais da ciência, não nutrem a
miragem de infalibilidade (Jasanoff, 2006: 332; Lynch et al., 2008).
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 183

A tradução de informações entre o campo científico e o campo do


direito traz suas próprias complicações. Já há uma série de diferenças
na produção de uma “verdade” em um campo e outro (Jasanoff, 2006).
Na ciência, essa produção é um processo a longo prazo, direcionado à
busca de leis gerais, e envolvendo constantes reformulações em razão do
exame e contestação por pares. Um fato científico produzido para a
arena jurídica é submetido às contingências do novo contexto: tempo
limitado, resultados circunscritos a um caso particular que devem ser
contundentes e formulados de maneira a prevenir a contestação. Na
tradução de uma arena para outra, a própria percepção dos “fatos” e da
sua relação com a realidade é alterada, cedendo para o que analistas
consideram as inclinações “essencializantes” da lei (idem).
Outro protagonista da figuração do uso forense do DNA é o setor
empresarial que produz o software, máquinas e reagentes necessários
para aplicar a tecnologia. Por exemplo, a CODIS (Combined DNA
Index System) — uma tecnologia de identificação aperfeiçoada pelo
FBI (Polícia Federal dos Estados Unidos), em parceria com a empresa
de biociências aplicadas, Life Technologies — é promovida no âmbito
de uma rede internacional de empresas privadas e organizações gover-
namentais. Conforme informações divulgadas via congressos e cursos
de formação mundo afora, o CODIS já foi implementado por mais de
30 países, além da própria Interpol.
Conforme um perito da Polícia Federal brasileira, o FBI “doou” o
sistema CODIS ao país em 2010, mas, por diferentes motivos, alguns
laboratórios estaduais optaram, na época, por “ficar fora da iniciativa”
(Mariz, 2012; ver também Schiocchet, 2012). A partir de 2011, a Life
Technologies, em parceria com associações profissionais e universidades
no Brasil, foi protagonista na organização de uma série de encontros em
diferentes capitais (São Paulo, Salvador, Brasília, Porto Alegre, etc.) sobre
técnicas forenses e o uso de DNA para identificação humana. Nesses
eventos, há repetido destaque dado a certas personalidades (por exemplo,
um ex-policial norte-americano “formado em ciências criminais pelo
FBI”, que oferece uma aula prática sobre investigação de cenas de crime)
e certos produtos, incluindo a linha completa de tecnologia para o banco
de perfis genéticos.
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
184 Claudia Fonseca

Participam desses seminários, além de leigos curiosos e alguns juris-


tas, peritos forenses — uma categoria em plena expansão. Trata-se de
especialistas altamente qualificados com formação em biologia, bioquí-
mica ou genética, com diplomas de pós-graduação e outros cursos de
capacitação dirigidos especificamente para a área de perícia genética.
Atentos às novas tecnologias que podem contribuir para a eficácia de
seu trabalho, alguns deles mostram porém certa reticência diante do
evidente marketing de novos produtos (Pessoa e Garrido, 2012). Con-
tudo, outros demonstram o entusiasmo de “consumidores precoces” (early
adopters) de inovação tecnológica — aqueles que, por circunstâncias
particulares, são especialmente convencidos das vantagens gerais da tec-
nologia em questão e que tendem a subestimar seus riscos, ambiguidades
e imprecisões (11).
Um ou dois desses entusiastas acabam servindo como espécie de
porta-voz da categoria, emprestando o prestígio da perícia forense para
o endosso do banco de perfis genéticos. Nas conferências que proferem
durante encontros profissionais, nas entrevistas que dão na televisão, nos
artigos que escrevem para os jornais ou revistas científicos, trazem essen-
cialmente os mesmo argumentos. Destacam o poder do DNA de ino-
centar pessoas injustamente condenadas. Antecipam criticas à nova lei,
lembrando que o banco brasileiro de informação genética deve incluir
apenas aquelas pessoas condenadas por crimes sexuais e hediondos.
Mostram fotos e contam histórias sobre serial killers pegos graças à tec-
nologia do DNA (12). Frisam que a tecnologia de coleta hoje é fácil e
indolor, não representando nenhuma invasão da integridade corporal do

(11)
Jasanoff (2002: 897) usa a “early adopters” para descrever um grande leque
de “consumidores precoces” — incluindo, por exemplo, as pessoas sofrendo de infer-
tilidade involuntária. São pessoas que militam através da legislatura, das políticas
públicas e outros espaços estratégicos onde, estancando o debate sobre possíveis pro-
blemas complicadores, exercem pressões para o pronto desenvolvimento e acesso de
todos a certa tecnologia.
(12)
Em quase todos os casos citados, trata-se de vestígios da cena de crime
comparados ao perfil de determinado suspeito — processo que prescinde de um banco
de perfís de pre-suspeitos tal como aquele criado pela a Lei n.º 12.654.

Coimbra Editora ® Parte II


Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 185

indivíduo. Garantem que, do jeito que a lei está formulada, haverá no


banco de dados apenas cifras matemáticas — tal como um “código de
barra” no supermercado — que não revelam mais do que a singularidade
do individuo. Em suma, dão a impressão de que, a partir do banco de
perfis genéticos, entraremos numa nova era de justiça. E louvam repe-
tidamente a Inglaterra, país mais “avançado” nesse assunto, onde o banco
de dados supostamente acabou com a impunidade dos criminosos.
Encontram-se no Brasil argumentos semelhantes em determinados
volumes da Revista de Perícia Forense centrados especificamente nesse
tema. Em um artigo o entusiasmo do autor desemboca numa recomen-
dação implícita pela expansão do banco para muito além dos limites
estipulados na atual Lei brasileira: “Obviamente, quanto maior a abran-
gência do banco de perfis genéticos de referência, maior será a eficiência
deste banco de dados”. (Buchmuller Lima, 2008: 10)
Frente ao fascínio inspirado pela mídia, a eficácia almejada pela
justiça e o entusiasmo dos “consumidores precoces”, parece sobrar pouco
espaço para dúvidas quanto à acolhida dessa nova tecnologia. A ONG
britânica Genewatch tem procurado criar justamente este tipo de espaço
onde, em seminários, revistas acadêmicas, sites da internet e outras are-
nas de discussão, tenciona o debate com recomendações de cautela.
Antes mesmo da regulamentação da nova lei, a diretora dessa ONG,
Helen Wallace, publicou um artigo em português numa conceituada
revista on-line (Wallace, 2012) sobre as práticas e discursos que garan-
tiram a “venda” do banco de dados em diferentes países do mundo. No
artigo, a autora descreve o programa eficiente de relações públicas coor-
denado por Life Technologies e seus assessores em que, por sofisticados
sites na internet, realça-se o potencial para usos humanitários de seus
produtos (que ajudam a combater o tráfico de crianças, reparar a vio-
lência genocida na África, contribuir para a reunificação de famílias
separadas por guerras e outros desastres, etc.). Menciona também como
essa empresa financia familiares de vítimas de violência em diferentes
países para que pressionem por tecnologias mais eficientes no combate
ao crime comum.
Entretanto, falando especificamente da expansão dos bancos de
perfís genéticos nos mais diversos países, Wallace sugere que, além de
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186 Claudia Fonseca

apresentar uma séria ameaça às liberdades civis, a tecnologia do banco


de dados traz promessas de difícil sustentação. Por exemplo, contesta
afirmações de que o NDNAD quase eliminou a impunidade de crimi-
nosos na Inglaterra, sendo responsável por resolver uma enorme porcen-
tagem dos crimes. Sua ONG calcula que, pelo contrário, apenas cerca
de 0.03% das identificações criminais foi fruto de acertos com um indi-
víduo no banco de perfís genéticos. Ilustrando o caráter questionável
dos dados citados incansavelmente por entusiastas dos bancos, Wallace
descreve uma cena que testemunhou:
Lobistas de Gordon Thomas Honeywell [empresa contratada para
advogar os interesses de Life Technologies] fizeram uma apresentação em
Brasília em 2010 na qual afirmavam que 3000 estupros cometidos por
pessoas estranhas à vítima puderam ser resolvidos por ano no Reino
Unido graças à amplitude do banco de dados naquele país. Na verdade,
é possível calcular, usando estatísticas oficiais, que de 13.000 estupros
por ano no Reino Unido, apenas uns poucos casos (entre 5 e 27, apro-
ximadamente) são solucionados usando a base de dados de DNA
(Wallace, 2012).
Essa atitude de “ceticismo organizado” encontra eco entre alguns
observadores no Brasil. Além de pesquisadores (particularmente da área
do direito) colocando perguntas quanto às repercussões dos bancos de
perfis para os direitos civis, há analistas que comentam certas incongru-
ência na lei 12.654. Por exemplo, a lei estipula: “As informações gené-
ticas contidas nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão
revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas”. Entretanto,
até certos peritos brasileiros reconhecem que “As técnicas de identifica-
ção genética permitem burlar com relativa facilidade tais restrições”
(Pessoa e Garrido, 2012). Além do mais, a lei cala sobre o destino das
amostras biológicas que dão origem ao perfil numérico (“um simples
código de barra”) estocado no banco de dados. Levando em considera-
çãos artigos do Código Penal — sobre a necessidade de guardar provas
para permitir controle posterior às análises (Schiocchet, 2012) —, é
difícil imaginar que essas amostras serão destruídas em vez de estocadas
em biobancos onde poderão eventualmente ser exploradas para uma
diversidade de fins.
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 187

Durante o trâmite do Projeto de Lei, o Ministério da Justiça, visando


dar subsídios ao trabalho dos legisladores, financiou pesquisa sobre os
bancos de perfis genéticos que rendundou numa reflexão ponderada de
vários pontos controvertidos (idem). Apesar desses esforços, o projeto de
lei avançou na sua forma original, quase inalterado até sua aprovação final.
Podemos supor que o caso brasileiro não é muito diferente do descrito
por Levine et al. (2008) para os Estados Unidos. Neste país, policiais e
procuradores desempenharam um papel chave na promoção dos bancos
de DNA. Chamadas a solucionar crimes, essas categorias profissionais
procuram implementos para tornar seu trabalho mais eficaz e, muitas vezes,
dispõem de armas políticas para alcançar seus objetivos. Por outro lado,
críticos da expansão dos bancos de perfís genéticos são, em geral, acadê-
micos individuais, membros de pequenas ONGs ou jornalistas — pessoas
e entidades que não chegam nem perto de possuir os recursos ou a influ-
ência política dos órgãos de segurança pública (Levine et al., 2008). Uma
relação assimêtrica acaba estancando o debate e produzindo uma imagem
sem ambiguidades das virtudes do “avanço” tecnológico.

6. GOVERNANÇA POR E DAS TECNOLOGIAS

Não há dúvida de que, com a tecnologia ligada ao banco de dados


de perfis genéticos para fins de persecução criminal, estamos lidando
com uma “forma global articulada numa situação específica” (Ong e
Collier, 2005). Nesse artigo, nos concentramos na escuta de autores e
sujeitos críticos em lugares onde o banco de perfis genéticos já foi
implantado há tempo, nos alertando para determinadas preocupações
“globais” da nova tecnologia. No mundo inteiro, a possibilidade de
recorrer a pericias genéticas opera ajustes no sistema judiciário — um
redimensionamento de prazos, equipamentos e organização administra-
tiva. Também, na grande maioria de lugares onde os bancos de dados
foram implantados, houve uma rápida expansão do leque de indivíduos
incluídos. Nenhum país chegou tão longe quanto a Inglaterra (pelo
menos, quanto à inclusão de indivíduos de baixa idade), mas boa parte
deles já expandiu muito além do alvo original (condenados por crimes
sexuais e hediondos) para incluir as pessoas condenadas, e — frequen-
Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®
188 Claudia Fonseca

temente — meramente suspeitas, de furto e outros crimes contra o


patrimônio. A sobrerepresentação de grupos social e economicamente
discriminados — minorias étnicas, imigrantes, etc. — também parece
ser uma constante nos bancos de perfis genéticos. Finalmente, as empre-
sas que promovem a tecnologia, assim como os movimentos de direitos
humanos que criticam a expansão dos bancos também agem em escala
global, transportando as narrativas, as propagandas e os debates críticos
de um continente para outro.
Aqui, apenas arranhamos a superfície de temas que estão sendo
aprofundados por outros autores quanto a esse tipo de “forma global”
(ver, por exemplo, o volume de Hindmarsh e Prainsack, 2010). Há um
consenso de que as tecnologias não são neutras. À medida em que via-
jam através do globo, carregam com elas “imaginários do bem e do mal”
sobre o que (e quem) deve ser promovido para o bem-estar da sociedade,
e o que (e quem) deve ser suprimido (Jasanoff, 2010). Junto com inú-
meros outros elementos científicos e tecnológicos incluídos nesse pro-
cesso, o banco de perfis é capaz de provocar um “reposicionamento do
humano” (idem) digno da atenção de analistas críticos.
Tal como outros fenômenos tecnológicos, o banco de dados se insere
dentro dos itinerários de determinadas formas de governança — de
vigilância e controle — que perpassam as fronteiras nacionais. Por outro
lado, existem as “situações específicas” que provocam ressignificações,
produzindo práticas e debates muito diferentes dependendo do local.
Processos de “biolegalidade” — isto é, envolvendo ajustes entre novas
tecnologias do corpo e as demandas do sistema legal (Lynch e McNally,
2008) — ocorrem em grande medida ao nível nacional, impulsionados
por atores em busca de estratégias para aprimorar a governança através
das novas tecnologias.
Machado e Costa (2012), na sua pesquisa sobre a introdução de
novas técnicas forenses em Portugal, demonstram o impacto de media-
ções “locais” para os variáveis efeitos da genética forense. A partir de
entrevistas com membros de diferentes órgãos da polícia portuguesa,
sugerem como, além dos problemas previsíveis envolvendo a cadeia de
custódia, a coleta de vestígios de DNA na cena dos crimes é submetida
a orientações administrativas que “amarram as mãos” de uma parte
Coimbra Editora ® Parte II
Mediações, tipos e figurações: reflexões em torno do uso da tecnologia… 189

estratégica da polícia. Ainda mais, em Portugal, os diferentes debates


políticos (incluindo marcada influência de militantes de direitos huma-
nos) resultaram numa legislação que torna a coleta de registros refém
das sensibilidades de juízes individuais. Ressaltando as limitações muito
reais de seu contexto, os entrevistados preveem que, de imediato, o uso
forense do DNA não trará as vantagens que o “imaginário forense”
projeta. O trabalho de Machado e Costa sublinha a importância de
variáveis contextuais para a compreensão das preocupações em torno dos
bancos de perfis genéticos, assim como dos efeitos precisos dessa nova
tecnologia. As relações de força entre instituições e as atitudes de con-
fiança ou desconfiança públicas em relação a essas instituições constam,
entre outros, como fatores de extrema pertinência.
Será a tecnologia mais eficaz no Brasil? Críticos colocam a pergunta
implícita: quais serão as possibilidades de contestar as “provas científicas”
apoiadas agora na “certeza absoluta” do DNA que, dada a tendência
“inquisitorial” do sistema jurídico, chegam com a aura da “verdade real”?
No sistema jurídico brasileiro, onde o direito dogmático é calcado numa
visão idealizada da sociedade, como resistir à tentação de uma visão
idealizada da ciência — a “ciência-como-deveria-ser”?
A realidade parece, contudo, longe de ideal. Por exemplo, conforme
recente levantamento da Secretaria Nacional de Segurança Pública sobre
perícia forense, não existe sistema coordenado no país para monitorar a
cadeia de custodia (SENASP, 2012). Na maioria das unidades de perí-
cia, os vestígios da cena de crime não são lacrados, não são guardados
em lugar seguro e seu percurso não é rastreável por procedimentos
administrativos rigorosos. Nessas unidades falta pessoal, equipamento
e organização. Em blogs de peritos, encontramos queixas até sobre a
falta de papel para imprimir laudos. Conforme os dados, os laboratórios
de DNA são apenas levemente melhor organizados, mas a que custo?
Sem se referir diretamente à tecnologia de DNA, um perito federal,
escrevendo numa revista de grande difusão, fala do perigo de “elitização”
da perícia forense — com muitos recursos indo para uma parte pequena
dos casos “com maior repercussão”… (Rosa, 2013).
E mesmo supondo uma tecnologia realizada com todo rigor, dado
o que muitos consideram o caráter discriminatório e elitista da justiça
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190 Claudia Fonseca

brasileira, quais serão os efeitos para a “biocidadania” das pessoas


cadastradas? É significativo que, em 2011, a primeira doação volun-
tária de material genético para um banco estadual de perfis genéticos
foi realizada por um condenado que ganhou, em troca, o abrandamento
de sua pena (Schiocchet, 2012: 36). É também interessante que, em
março de 2013, logo depois da regulamentação da lei 12.654, uma das
primeiras notícias na internet sobre o banco nacional de perfis gené-
ticos anuncia com aparente orgulho que certo estado já está começando
a coleta de dados entre “presos e acusados de crimes violentos e hedion-
dos” (Ribeiro 2013, grifos meus). Ao que tudo indica, nem as poucas
salvaguardas inseridas na lei conseguirão controlar o entusiasmo de
operadores do sistema judiciário.
É evidente que, para ter consequências na arena pública, a discussão
deve ir além de posições maniqueístas postas em termos de simplesmente
aceitar ou rejeitar o uso da nova tecnologia. Para tanto, observadores
acentuam a urgência de debate público (Hindmarsh e Prainsack, 2010).
O “envolvimento cidadão” no Brasil, contudo, fica sob constante pressão
de uma taxa de homicídio considerada dez vezes maior que a da maioria
dos países ocidentais. Cria-se um clima em que a preocupação com direi-
tos civis e direitos humanos é vista como “assunto de bandido”, isto é, algo
que favorece a criminalidade. Nesse contexto, não é surpreendente que
os militantes dos direitos humanos dirijam suas energias para causas mais
consensuais (discriminação racial, violência contra a mulher). Dado o
otimismo que permeia a atual “figuração” da genética forense, e a fragili-
dade de frentes críticas que pudessem tencionar o debate, os analistas de
STS podem parecer por vezes exagerados nas suas críticas. Mas, a seriedade
da discussão não deve ser subestimada. Estamos lidando com os desafios
de governança — por e das tecnologias. E, para uma trajetória futura bem
ponderada, ambas as dimensões devem ser enfrentadas.

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tion and its ethical implications”, Genomics, Society and Policy, 7, 1-19.
Williams, Robin; Johnson, Paul (2008), Genetic policing: The use of DNA in criminal
investigations. Portland: Willan Publishing.

Governabilidade e mediações Coimbra Editora ®


PARTE III

INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
AS FUNÇÕES DO DNA
NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
(1)
— ESTUDO DE CINCO CASOS EM PORTUGAL

FILIPE SANTOS

1. INTRODUÇÃO

As tecnologias de identificação por perfis de DNA têm vindo a


afirmar-se como o “padrão-ouro” na identificação individual (Lynch,
2003). Com o desenvolvimento dos procedimentos de recolha de vestí-
gios em cena de crime, aliado a técnicas de análise mais sensíveis e
robustas, as tecnologias de DNA têm vindo a assumir crescente impor-
tância nos sistemas de justiça criminal por todo o mundo, introduzindo
um novo paradigma de identificação forense (Murphy, 2007; Saks e
Koehler, 2005). Paralelamente têm vindo a permear o imaginário popu-
lar através de séries televisivas de ficção científica forense como CSI
(Crime Scene Investigation), Dexter, NCIS, entre muitas outras. Neste
género de ficção, as tecnologias de DNA são frequentemente retratadas
como poderosas ferramentas de investigação criminal, capazes de obter

(1)
Este texto foi produzido no âmbito de uma bolsa de doutoramento
concedida pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (SFRH/BD/72253/2010),
e do projeto de investigação “Base de dados de perfis de ADN com propósitos
forenses em Portugal: Questões atuais de âmbito ético, prático e político”, com a
referência FCOMP—01—0124—FEDER—009231 (2010-2013), coordenado
por Helena Machado e desenvolvido no Centro de Estudos Sociais da Universidade
de Coimbra.

Investigação criminal Coimbra Editora ®


198 Filipe Santos

resultados decisivos, categóricos e objetivos, de modo fácil e rápido, não


traduzindo as limitações e contingências que enfrentam no mundo real
do inquérito e processo criminal (Machado e Santos, 2011).
A introdução das tecnologias de DNA no sistema de justiça crimi-
nal em Portugal suscita duas questões que se podem enquadrar no
âmbito dos estudos sociais da ciência: de que modo, e para que fins, as
tecnologias de DNA são utilizadas na prossecução dos objetivos do
inquérito criminal? Como é que a sua utilização é percecionada e
representada nos meios de comunicação social? Assim, o objetivo prin-
cipal deste capítulo incide sobre o papel desempenhado pelas tecnologias
de DNA em casos criminais amplamente mediatizados que ocorreram
em Portugal. Para este efeito, será desenvolvida uma caracterização,
ainda que exploratória, dos diferentes usos do DNA no âmbito da
investigação criminal. Simultaneamente, afigurou-se relevante proceder
a uma breve análise das representações acerca das tecnologias de DNA
que circularam na imprensa escrita no âmbito da cobertura mediática
de cada caso.
O intervalo temporal para a seleção dos casos foi estabelecido
entre 1995, altura em que se iniciou o uso de prova de DNA em
Portugal e 2010. Foram selecionados cinco casos que ocorreram entre
1997 e 2007 e que ficaram publicamente conhecidos como Meia Culpa
(1997), Tó Jó (1999), Joana (2004), Serial-Killer de Santa Comba Dão
(2006) e Madeleine McCann (2007). Por um lado, trata-se de casos
onde se procedeu à recolha de vestígios biológicos em cadáver ou em
cena de crime e nos quais, ao longo de cada inquérito criminal, foram
usadas tecnologias de DNA para produzir elementos que pudessem
ter significado para a resolução de cada caso. Por outro lado, todos
os casos selecionados foram alvo de ampla cobertura mediática, sendo
que o papel das ciências forenses em geral, e das tecnologias de DNA
em particular, tiveram destaque enquanto elemento auxiliar da inves-
tigação criminal.
A opção pela seleção de casos que foram mediatizados tem que ver
com o facto de serem eventos com potencial para perdurarem na memó-
ria coletiva e, assim, constituírem referências nas representações públicas
acerca do crime e da justiça, mas também no modo como os cidadãos
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 199

compreendem e aceitam a utilização das tecnologias de DNA no combate


ao crime.
Porém, nem todos os casos criminais são alvo de idêntica mediati-
zação. O fenómeno da criminalidade quotidiana tende a uma cobertura
jornalística localizada e pode dizer-se que relativamente poucos casos
originam vários artigos noticiosos ao longo de mais de uma semana.
Surgem, episodicamente, casos criminais cujas características permitem
ultrapassar a escala noticiosa local ou mesmo nacional e logram man-
ter-se sob o foco mediático durante largos períodos de tempo. Ao
procurar compreender quais são estas características, Yvonne Jewkes
(2004) elencou uma lista do que designou como os “valores noticiosos
para o novo milénio” e que configuram, isoladamente ou em constela-
ção, o potencial de noticiabilidade de um crime. Por exemplo, crimes
que envolvam temas como sexo, violência, celebridades e pessoas de
elevado estatuto, ou crianças, tendem a ter maior destaque nos órgãos
de comunicação social e durante mais tempo. Assim, dos casos crimi-
nais que constituem a rotina do jornalismo judiciário, apenas alguns
cujas características se enquadram nos valores de noticiabilidade domi-
nantes são alvo de cobertura extensa e detalhada, configurando o que
alguns autores designam como julgamento mediático ou media trial
(Fox et al., 2007; Surette 1998).
A mediatização destes casos proporciona às audiências algumas
pistas para apreender as complexidades do sistema de justiça criminal.
Todavia, a informação transmitida pelos meios de comunicação social
tende a ser prismada por um imaginário mítico-simbólico frequente-
mente inserido em enquadramentos e temáticas semelhantes a forma-
tos ficcionais e de entretenimento (Jewkes, 2004; Machado e Santos,
2008). Convém ressalvar que o público não é um mero recetor passivo
das mensagens mediáticas, podendo internalizar e atribuir significados
em função das suas próprias circunstâncias e experiências (Sacco, 1995).
Na secção seguinte começaremos por sintetizar alguns dados dos
casos criminais selecionados, descrevendo de modo breve os seus con-
tornos. Depois, a secção principal deste texto, refletirá sobre os usos das
análises de DNA que foram efetuadas no seu contexto, procurando dar
forma a uma tipologia das funções que desempenharam. Por fim, serão
Investigação criminal Coimbra Editora ®
200 Filipe Santos

abordadas as representações mediáticas acerca das tecnologias de DNA


veiculadas na cobertura dos casos criminais selecionados.

2. SELEÇÃO E DESCRIÇÃO DOS CASOS CRIMINAIS

O critério de seleção incidiu sobre casos criminais amplamente


mediatizados, isto é, que tenham tido cobertura em órgãos de infor-
mação de âmbito nacional e que tenham sido acompanhados até ao
seu desfecho judicial. Foram necessariamente selecionados casos em
que tenha sido mencionado o uso de prova de DNA. Tendo sido esta-
belecido um intervalo temporal para a pesquisa entre 1995, altura em
que se iniciou o uso de prova de DNA em Portugal e 2010, foram
selecionados cinco casos que ocorreram entre 1997 e 2007 (Tabela 1).

Tabela 1
Descrição dos casos selecionados

Data do(s)
crime(s)
Designações
— Sentença Local Arguido(s) Tipo de crime
dos casos
judicial
(desfecho)
Álvaro Pinto
Jaime Curval
Incêndio [1];
16 de abril Octávio Alves
Furto [1]; Homicídio
“Meia de 1997 a 1 César Fonseca
Amarante qualificado [13];
Culpa” de junho Aloísio Oliveira
Homicídio qualificado
de 1998 Ricardo Rocha
na forma tentada [22]
José Queirós
Artur Santos
12 de agosto António Jorge
de 1999 a 17 Machado (Tó Jó) Homicídio
“Tó Jó” Ílhavo
de abril Nuno Lima qualificado [2]
de 2001 Sara Machado
12 de setembro
Homicídio
de 2004 a 11 João Cipriano
“Joana” Portimão qualificado [1];
de novembro Leonor Cipriano
Ocultação de cadáver [1]
de 2005

Coimbra Editora ® Parte III


As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 201

Data do(s)
crime(s)
Designações
— Sentença Local Arguido(s) Tipo de crime
dos casos
judicial
(desfecho)
Homicídio simples [1];
Homicídio qualificado
“Serial 24 de maio de
[2]; Ocultação de
Killer 2005 (1.º Santa
António Costa cadáver [2]; Profanação
de Santa desaparecimento) Comba
(Tói) de cadáver [1];
Comba a 31 de julho de Dão
Tentativa de coação
Dão” 2007
sexual [2]; Denúncia
caluniosa [1]
Hipóteses
de investigação:
Rapto para exploração
3 de maio de
sexual ou outros (sem
2007 a 21 de Gerald McCann
“Madeleine homicídio); Rapto
julho de 2008 Lagos Kate Healy
McCann” seguido de homicídio
(arquivamento do Robert Murat
com ou sem ocultação
inquérito)
de cadáver; Morte
acidental com
ocultação de cadáver

Nota: Entre parêntesis retos encontra-se discriminado o número de crimes que resul-
taram em condenação, conforme a sentença judicial.

Após a seleção dos casos procedeu-se à recolha de artigos relativos


à cobertura noticiosa em jornais diários portugueses com distribuição
nacional e em atividade durante o intervalo de seleção dos casos (Correio
da Manhã, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Público), nas edições
impressas e nas respetivas versões eletrónicas disponíveis na Internet.
Procurou-se fazer uma recolha tão abrangente quanto possível, desde a
publicação do primeiro artigo sobre cada caso, até à sua sentença ou
desfecho judicial. A etapa seguinte conduziu à recolha de informação
junto dos processos judiciais, tendo sido enviados requerimentos aos
vários tribunais onde se encontravam os processos, solicitando autoriza-
ção para a sua consulta. Foi efetuada uma revisão de todos os conjuntos
de volumes de cada processo, recolhendo a documentação relevante para
Investigação criminal Coimbra Editora ®
202 Filipe Santos

a compreensão do desenrolar do inquérito e julgamento e, em particular,


toda a documentação referente a exames e perícias forenses.
Para além do resumo da informação (Tabela 1), importará agora
fornecer alguns detalhes contextuais acerca de cada caso, tomando como
referência os dados apurados junto dos processos judiciais. O caso
“Meia Culpa” recebe a sua designação a partir do nome da “boîte” que
funcionava como bar de alterne em Amarante. Na madrugada do dia
16 de abril de 1997 três homens usando gorros que cobriam comple-
tamente o rosto com exceção dos olhos e da boca (balaclavas ou
passa-montanhas) entraram no bar e, ameaçando os presentes com armas
de fogo, despejaram um pequeno bidão de gasolina, incendiando o local
e escapando de seguida. O fogo, o pânico, e o facto de a saída de
emergência se encontrar bloqueada, levaram à morte de 12 pessoas no
local e uma outra após hospitalização, tendo causado ferimentos graves
em 9 pessoas.
O caso “Tó Jó” (diminutivo de António Jorge) diz respeito a um
duplo homicídio ocorrido em Ílhavo a 12 de agosto de 1999. Nesta
data, que coincidia com o último eclipse solar total do milénio, António
Jorge, então com 23 anos, terá esfaqueado o seu pai no andar superior
de sua casa. A sua mãe, que entretanto terá tentado fugir para o exterior,
foi também esfaqueada. Foram detetadas tentativas de limpeza dos
vestígios, incêndio dos cadáveres e simulação de roubo. Em menos de
uma semana, a 16 de agosto de 1999, o António Jorge era constituído
arguido, tendo confessado ser o único autor dos crimes. Contudo, vários
elementos suscitavam suspeitas de que teria havido envolvimento de
terceiros, nomeadamente os elementos da sua banda de black metal
(Agonizing Terror), da qual fazia parte a sua esposa Sara, assim como dois
amigos que faziam parte de uma outra banda do mesmo género (Sum-
mum Malum).
O caso “Joana” refere-se ao desaparecimento de uma criança de 8
anos de idade na aldeia da Figueira, perto de Portimão, a 12 de setembro
de 2004. A versão inicial foi de que a sua mãe, Leonor Cipriano a teria
mandado comprar um pacote de leite e duas latas de atum a um esta-
belecimento próximo e que a Joana não teria regressado a casa. Após
vários dias de buscas efetuadas pela Guarda Nacional Republicana
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 203

(GNR), e por se concluir que o desaparecimento não teria sido volun-


tário, o caso passa a ser investigado pela Polícia Judiciária (PJ). Pouco
tempo depois, a hipótese de rapto ou sequestro de Joana é colocada de
parte dando lugar a suspeitas sobre a sua mãe e um tio que na altura se
encontrava a viver em sua casa. Após vários interrogatórios, estes são
constituídos arguidos com base em fortes indícios de que teriam agredido
a Joana, provocando-lhe a morte e ocultado o seu cadáver.
O caso que ficou conhecido como “Serial Killer de Santa Comba
Dão” envolve três homicídios perpetrados por um mesmo indivíduo, na
altura cabo da GNR aposentado. Os crimes ocorreram com intervalos
de 6 meses (24/05/05, 14/11/2005 e 08/05/06), sendo estas as datas em
que foram dadas como desaparecidas três raparigas de uma localidade
próxima de Santa Comba Dão chamada Cabecinha de Rei. O principal
suspeito era bem conhecido e estimado na comunidade, tendo colaborado
no programa Escola Segura. No entanto, após o desaparecimento da
terceira rapariga (Joana), a reconstituição do seu trajeto conduziu a
investigação a um caminho de terra próximo da residência de António
Costa (ou Tói, como era conhecido na localidade). Aí foram encontra-
dos os seus óculos e, posteriormente, outros vestígios num edifício de
arrecadações nas proximidades. A conjugação de elementos coinciden-
tes levou os investigadores a colocar a hipótese de os três desaparecimen-
tos terem sido perpetrados pelo mesmo indivíduo e, na sequência de
buscas à residência e ao automóvel de António Costa, foram encontrados
vestígios cuja análise veio a revelar pertencerem às três vítimas.
O desaparecimento de Madeleine McCann terá sido um dos casos
mais mediatizados de sempre à escala global. Em maio de 2007, um
casal de cidadãos britânicos encontrava-se de férias num aldeamento
turístico na Praia da Luz, no Algarve, com os seus três filhos (Madeleine
de 3 anos, e os gémeos Sean e Amelie de 2 anos). Por volta das 22
horas do dia 3 de maio, a mãe, Kate, alerta para o desaparecimento da
sua filha Madeleine do quarto onde dormia com os seus irmãos,
enquanto os pais jantavam com um grupo de amigos num restaurante
do aldeamento. Após o uso de cães especialmente treinados para dete-
tar odores de sangue e cadáver, foi colocada a hipótese de que Madeleine
teria morrido e que o seu cadáver fora oculto. O inquérito viria a ser
Investigação criminal Coimbra Editora ®
204 Filipe Santos

arquivado a 21 de julho de 2008 por falta de indícios de que os então


arguidos (Gerald McCann, Kate Healy (2) e Robert Murat (3)) tivessem
cometido qualquer crime, sendo que Madeleine, tal como Joana, per-
manece desaparecida.
O propósito desta secção foi o de situar o leitor relativamente aos
materiais analisados, fornecendo apenas algumas coordenadas essenciais
na caraterização de cada caso. Na secção seguinte serão abordados os usos
das análises de DNA pelas autoridades de investigação criminal em Por-
tugal, tomando por referência os autos dos respetivos processos judiciais.

3. OS USOS DAS ANÁLISES DE DNA

Ao longo de um inquérito criminal os agentes de investigação ela-


boram vários relatórios onde dão conta dos “factos” apurados e das
hipóteses e conjeturas tecidas em torno destes, tendendo a tomar a forma
de uma narrativa criminal (4). Uma cena de crime constitui um objeto
frágil e precário, cujos limites são frequentemente desconhecidos (Braz,
2010) (ver capítulo de Susana Costa neste volume). Daí que a aborda-
gem inicial a uma cena de crime seja fundamental para a sua resolução,
no sentido em que marca o início de um processo de discriminação dos
vestígios, das pessoas e da informação relevante, em cenários muitas vezes
caóticos, onde as primeiras interpretações e significados são passíveis de
influenciar o rumo da investigação. Williams e Johnson (2007: 371)

(2)
Kate não acrescentou o nome McCann ao seu nome de solteira e é assim
identificada nos autos. Contudo, neste texto, e nos artigos noticiosos citados o casal
é referido como os “McCann”.
(3)
Robert Murat foi constituído arguido a 14 de maio de 2007 na sequência
da denúncia, por parte de uma jornalista, de alegados comportamentos suspeitos. Até
então, Robert Murat vinha prestando auxílio à investigação como tradutor-intérprete
em depoimentos de cidadãos britânicos.
(4)
O uso da expressão “narrativa criminal” é empregue com o propósito de
transmitir o carácter provisório e frequentemente indutivo inerente ao desenvolvimento
da investigação criminal e da interpretação dos indícios, sendo que a abordagem de
qualquer crime tende a partir de guiões cultural e profissionalmente estabelecidos
(Kruse, 2012).

Coimbra Editora ® Parte III


As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 205

falam de um “impulso central” que leva os investigadores criminais a


procurar “reconstruir” a sequência de eventos de cada crime, recorrendo
para tal à interpretação de sinais de atividade e movimento na cena de
crime, a aplicação de reportórios de conhecimento acerca de comporta-
mentos criminais tipificados, bem como conhecimento geral acerca de
cada tipo de crime. Todavia, as tentativas de reconstrução são exercícios
necessariamente imprecisos, tendo o intuito de reduzir a complexidade
inerente a cada cena de crime e suportando-se nos elementos indiciários
provisórios (interpretação de vestígios materiais e declarações de teste-
munhas) que vão surgindo e complementando a narrativa criminal. De
salientar que, de um modo geral, a situação e a dimensão da cena de
crime são definidas pela interpretação do(s) primeiro(s) agente(s) a com-
parecer na cena de crime, desde logo estabelecendo se houve crime e a
quem compete a investigação. A definição da situação irá permitir o
desenvolvimento de um contexto, à luz do qual se definirão circunstân-
cias, atores e vestígios que poderão estar associados ao crime.
Irei argumentar acerca do modo como, nos casos analisados, os usos
da prova de DNA por parte dos agentes que conduzem as investigações
constituem recurso a um conhecimento especializado do qual se espera
obter informações que possam contribuir para, por um lado, reduzir a
complexidade de cada caso e, por outro lado, para consubstanciar as
narrativas criminais. Assim, da análise dos volumes processuais de cada
caso foi possível construir uma tipologia composta por quatro “funções”
que pretendem descrever os usos das análises de DNA no contexto dos
inquéritos e que designei por: função exploratória; função assertiva;
função incriminatória; e função exculpatória. Estes usos ou funções
resultam em grande medida do estudo dos chamados quesitos, isto é,
sempre que qualquer vestígio é remetido para o laboratório para análise,
o agente tende a indicar o tipo de análises que deverão ser efetuadas e
que informação se pretende obter (5). Todavia, a caracterização das fun-

(5)
Principalmente nos casos mais antigos, verifica-se que os quesitos são for-
mulados de modo relativamente vago. Por exemplo, após discriminar os vestígios e os
locais onde foram recolhidos, o agente que requer os exames solicita: “… a efectivação

Investigação criminal Coimbra Editora ®


206 Filipe Santos

ções decorre também dos efeitos e consequências que os resultados das


análises produzem no desenrolar das investigações.
Por via das interações entre a ciência e a justiça, entre as cenas de
crime e os laboratórios, e entre os atores judiciários e os peritos forenses,
assiste-se à co-construção social da narrativa criminal onde a prova de
DNA desempenha um importante papel. Segue-se uma exposição das
várias “funções” encontradas, sendo estas exemplificadas através de refe-
rências e descrições de detalhes relevantes dos casos analisados.

3.1. A função exploratória

A função exploratória das análises de DNA é central na condução


do inquérito criminal. Após uma primeira abordagem, as equipas de
cena de crime executam várias tarefas no local (ou locais) onde se suspeita
que ocorreu um crime no sentido de fazer a documentação fotográfica
e verbal do local do crime, sendo usados vários instrumentos e técnicas
para revelar e caracterizar os vestígios (6). Por função exploratória pre-
tendo traduzir as questões que se colocam a partir do momento em que
são detetados vestígios, nomeadamente vestígios biológicos que possam
conter células nucleares, tais como sangue, saliva, esperma, raízes capi-
lares, suor, urina, etc. Portanto, esta função é principalmente expressa
nos quesitos anexos aos vestígios enviados aos laboratórios e que procu-
ram atribuir significados provisórios aos vestígios recolhidos, ao mesmo
tempo que podem servir para corroborar declarações de testemunhas e
suspeitos. Designadamente, a função exploratória das análises de DNA
pretende averiguar: que indivíduos estiveram presentes?; há vestígios que
não se enquadrem na primeira abordagem ao local; qual a natureza dos

dos competentes exames com vista a identificar, DNA, de eventuais suspeitos” (sic)
(fls. 40 do processo 704/99.9JAAVR).
(6)
Nos casos analisados, após localização visual de manchas suspeitas na cena
de crime, são conduzidos testes para determinar a sua natureza. O mais frequente é
o chamado teste de Kastle-Meyer que consiste no uso de uma solução de fenolftaleína,
a qual é incolor em meio básico, mas que sofre oxidação por peroxidase na presença
de hemoglobina, tornando-se cor-de-rosa (Williams e Johnson, 2004: 7).

Coimbra Editora ® Parte III


As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 207

vestígios?; poderão os vestígios constituir indícios de ilícito criminal? os


vestígios encontrados corroboram os depoimentos? Seguem-se alguns
exemplos dos usos desta função.
O caso Joana começou por ser encarado como um desaparecimento
de uma criança. Contudo, quando se colocou a hipótese de o desapa-
recimento não ter sido voluntário, a competência da investigação passou
para a Polícia Judiciária, tendo efetuado a primeira diligência de busca
e apreensão à casa onde vivia a Joana a 17 de setembro de 2004, cinco
dias após o desaparecimento, nada tendo sido encontrado com relevân-
cia para a investigação. Entretanto, foram ouvidos familiares e vizinhos
com o intuito de compreender os eventos e movimentações no dia do
desaparecimento, as relações pessoais e de reconstituir os passos de Joana
na altura do seu desaparecimento.
Quando Leonor é ouvida como testemunha na PJ no dia 21 de
setembro de 2004, já recaíam sobre si suspeitas de envolvimento no
desaparecimento de Joana. Viria a constar em relatório da PJ que as
entrevistas que dera a vários órgãos de comunicação social levantaram
suspeitas, na medida em que vestia de luto e falava da filha no passado
(fls. 2196 do processo 330/04.2JAPTM). No mesmo dia, Leonor e
Carlos Alberto Silva (que partilhava um quarto com a Joana e que foi
apontado por Leonor como a última pessoa a ver a Joana após uma
discussão com esta) foram constituídos arguidos e, prescindindo de
defensor, foram novamente ouvidos nessa condição, tendo assinado uma
“declaração” permitindo a recolha de material biológico. No dia seguinte
(22 de setembro) foram efetuadas duas diligências de busca: uma de
manhã — por dois inspetores —, nada tendo sido encontrado; e outra
ao fim da tarde — esta realizada por inspetores acompanhados de téc-
nicos-especialistas — a qual resultou na recolha de vestígios biológicos,
nomeadamente uma escova de dentes, uma escova de cabelo e uma fita,
objetos estes supostamente pertencentes à Joana. O auto indica também
que foram encontrados vestígios hemáticos junto à porta de entrada no
interior e no exterior, junto a um interruptor, nuns ténis do Carlos Silva,
numa esfregona e num balde.
O desenvolvimento deste caso surge como um exemplo adequado
da função exploratória dos usos do DNA, na medida em que, ao longo
Investigação criminal Coimbra Editora ®
208 Filipe Santos

da investigação foram requisitadas várias análises de DNA para determi-


nar se os vestígios podiam constituir indício de um crime violento dentro
da habitação, nomeadamente vestígios de sangue para os quais não havia
explicação plausível. Para tal foi necessário identificar os dadores dos
vários vestígios biológicos recolhidos, confrontando os resultados com os
depoimentos dos arguidos e das testemunhas. Poder-se-ia dizer que nas
primeiras inspeções à casa nada foi encontrado de relevante porque o local
não se afigurava como cena de crime e não se inseria na narrativa crimi-
nal que se desenrolava em torno de um alegado sequestro. Deduz-se,
então, que só a partir do momento em que os órgãos de polícia criminal
colocam a hipótese de ter havido um crime perpetrado após a Joana ter
chegado a sua casa com as compras foi possível fazer o uso exploratório
das análises de DNA a partir dos vestígios que, entretanto, foram visua-
lizados na suposta cena de crime. Por outras palavras, não havia ainda
uma contextualização de eventos, pessoas e circunstâncias que pudessem
enquadrar eventuais interpretações e significados dos vestígios biológicos
que foram recolhidos na sequência da alteração da narrativa criminal.
Assim, a estratégia adotada foi a de procurar materializar os indícios
(principalmente a descoberta dos vestígios hemáticos) por forma a supor-
tar a nova direção da narrativa e resolver as contradições e diferentes
versões dos depoimentos dos arguidos.
Também no caso do desaparecimento de Madeleine McCann foi
predominante a função exploratória. Com efeito, dos casos analisados,
este foi o que recorreu à colheita de amostras biológicas de mais indiví-
duos, mais diligências de busca e apreensão e exames periciais. Procu-
rava-se, assim, averiguar a presença de algum elemento estranho ao
contexto. Contudo, e o facto é destacado com frequência no processo,
a cena de crime teria sido comprometida pela presença de muitas pessoas
no apartamento alugado pelos McCann. Mais adiante, e na sequência
da utilização de uma equipa cinotécnica especializada na deteção de
odores de vestígios hemáticos e cadavéricos em julho de 2007, foram
recolhidos vestígios no carro alugado pelo casal McCann após o desapa-
recimento da sua filha e no apartamento onde passavam férias, especu-
lando-se que o corpo da criança pudesse ter sido transportado após a
sua morte no apartamento.
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 209

3.2. A função assertiva

A função assertiva diz respeito do uso das análises de DNA para


obter confirmação laboratorial de elementos que de outra forma haviam
já sido dados como assentes. Por exemplo, a confirmação da identidade
do dador de um vestígio recolhido num objeto pertencente a suspeito
que havia já confessado o crime e a propriedade do objeto. A lógica
desta função assenta na credibilização por via da cientifização da narra-
tiva criminal.
Esta função pode ser ilustrada com o exemplo do caso Meia Culpa.
Na sequência da notícia do crime, e após a intervenção dos bombeiros,
foi efetuada a inspeção ao local do crime onde ficou documentada a
destruição causada pelo incêndio da boîte “Meia Culpa”. No próprio
dia 16 de abril de 1997, e na sequência das diligências que incluíram o
seguimento do percurso de fuga dos perpetradores, há notícia de que
teriam sido encontrados dois gorros abandonados na berma da estrada
nacional que liga a Lixa a Felgueiras, bem como um Rover 213SE com
os vidros abertos e com sinais de ter sido feita uma ligação direta na
ignição. A viatura tinha sido dada como furtada na noite de 14 para 15
de Abril junto da PSP da Maia.
No dia 17 de abril é descoberto um terceiro gorro por um cidadão
que o entrega à GNR dentro de um saco de plástico. Os gorros (ou
passa-montanhas) são remetidos para o Laboratório de Polícia Científica
em Lisboa, solicitando “busca de cabelos e eventual estudo do DNA,
para possível comparação com suspeitos” (fls. 7 do processo 102/97).
O relatório de exame aos cabelos que foi possível recolher nos gorros é
datado de uma semana antes da conclusão do inquérito, quando os
suspeitos já se encontravam suficientemente indiciados pelos vários cri-
mes. Após comparação com os perfis elaborados a partir de amostras
de sangue dos 3 suspeitos de perpetrar o incêndio e com amostras de
cabelos de indivíduos que poderão eventualmente ter contaminado os
vestígios, apenas um dos gorros continha um vestígio de origem de
origem humana (um cabelo) com “identidade de polimorfismos para o
conjunto dos loci estudados” e o perfil de um dos arguidos (fls. 1858
e ss. do processo 102/97).
Investigação criminal Coimbra Editora ®
210 Filipe Santos

Segundo um relatório da GNR de Vila do Conde, a chave para a


resolução deste caso terá sido a mãe de um dos indivíduos (Octávio) que
furtou o veículo que viria a ser usado pelos perpetradores (Aloísio, César
e Ricardo). De acordo com o depoimento desta, notou um comporta-
mento estranho no seu filho após este ter tomado conhecimento dos
eventos em Amarante, tendo partilhado as suas suspeitas de envolvimento
do filho com uma pessoa conhecida, a qual comunicou anonimamente
à GNR de Vila do Conde. A mãe do Octávio prestou depoimento no
dia 25 de abril de 1997 e, alertada a PJ no próprio dia, e em colabora-
ção com o comandante do posto da GNR de Vila do Conde, foi detido
o Octávio e o seu colaborador (Jaime) no furto do automóvel. Foi
também identificado e detido o intermediário (Artur Jorge), levando à
detenção dos perpetradores do incêndio e do autor moral do crime
— José Queirós (o proprietário de um estabelecimento similar ao Meia
Culpa na mesma localidade, chamado “Diamante Negro) —, no dia 26
de abril, pouco mais de uma semana após o crime. Resulta daqui que
o uso das análises de DNA desempenhou uma função assertiva no sen-
tido de fazer a ligação entre um objeto associado ao crime e um dos
suspeitos. Coincidentemente, o único indivíduo identificado nas aná-
lises de DNA (Ricardo) foi também o único dos três perpetradores que,
em contestação ao despacho de acusação, declarou arrependimento,
lamentando as consequências dos seus atos.
O caso Tó Jó, cujo desenvolvimento será abordado mais adiante,
também poderia exemplificar esta função na medida em que, tendo sido
António Jorge o autor confesso dos homicídios, as análises de DNA que
identificaram o seu perfil com os vestígios hemáticos recolhidos na cena
de crime e nas unhas das vítimas vieram apenas confirmar e comple-
mentar os fatos estabelecidos.

3.3. A função incriminatória

Aquilo que aqui designo por função incriminatória pretende des-


crever o modo como as análises de DNA podem servir para deduzir
associações entre o suspeito e a vítima. Se na função exploratória se
pretende saber qual a natureza dos vestígios e se existe uma explicação
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 211

lícita e verosímil para a presença dos vestígios nos locais e objetos onde
foram recolhidos, na função incriminatória foi já possível determinar
que a presença dos vestígios só pode ser enquadrada em circunstâncias
de ilicitude. Neste sentido, as análises de DNA podem ser usadas para
obter uma confissão de um suspeito.
O caso que ficou conhecido como “Serial Killer de Santa Comba
Dão” afigura-se um bom exemplo do modo como as tecnologias de DNA
podem ser usadas com eficácia e proficiência na fase de inquérito, auxi-
liando a condução da investigação ao gerar informação determinante
para a resolução de um caso, naquilo que pode ser designado como
forensic intelligence (Ribaux et al., 2006) — entendendo-se intelligence
como os elementos úteis e significativos para uma investigação que
emergem do processamento e análise dos dados de um caso.
Conforme foi descrito anteriormente, a circunstância de os crimes
terem ocorrido num meio relativamente pequeno, onde todos se conhe-
cem e o principal suspeito ser estimado na comunidade, terá levado a
que os responsáveis da investigação tenham tido o maior cuidado em
não avançar com uma detenção até que tivessem reunido indícios sufi-
cientes. Quando, a 8 de maio de 2006, uma jovem de 17 anos (Joana)
residente em Cabecinha de Rei, Santa Comba Dão, é dada como desa-
parecida, a reconstituição do percurso que teria tomado desde a sua
escola casa conduz os inspetores a um caminho de terra batida, procu-
rando averiguar se os habitantes da zona teriam visto a jovem naquele
dia, sabendo que não teria chegado a entrar em sua casa. Verificaram
também que as três jovens desaparecidas habitavam na mesma zona,
tendo por hábito percorrer o mesmo trajeto. Entretanto, é assinalado
nos autos um indivíduo (“Nelo”) cujo perfil e comportamentos são
vistos como comprometedores (preferência por teenagers, frequência de
certos locais e ligações com a primeira vítima — Isabel), mas que não
possuía relações evidentes com as restantes vítimas (Mariana e Joana).
Contudo, o Ministério Público assume existirem indícios de que o “Nelo”
seria suspeito nos três casos.
Nos dias seguintes (17/18 maio de 2006), foram efetuadas novas
buscas no terreno, tendo sido encontradas fogueiras com vestígios de
roupa e calçado. Foi encontrado um par de óculos que foram associados
Investigação criminal Coimbra Editora ®
212 Filipe Santos

aos usados pela Joana e uma pulseira de missangas. A partir daí, a ins-
peção do local permitiu encontrar vários vestígios (cabelos) que foram
fotografados e recolhidos pelos elementos do Laboratório de Polícia
Científica no local para posterior identificação e comparação. A 9 de
junho, os inspetores regressam a Cabecinha de Rei para tentar uma
abordagem “menos formal” no contacto com os habitantes, apurando-se
várias declarações relativamente ao comportamento “suspeito” de Antó-
nio Costa — porque teria insistido em explicações junto de várias pessoas
para os seus ferimentos e eventuais vestígios biológicos seus que pudes-
sem ser encontrados; e porque, residindo no local onde foram encontra-
dos os óculos de Joana e por onde as três raparigas habitualmente pas-
savam, não se afigurava possível que algo tivesse sucedido sem que aquele
o soubesse.
A 22 de junho é conduzida uma diligência de busca para apreen-
são no carro e na habitação de António Costa, tendo sido apreendidos
vários objetos que pudessem estar relacionados com os crimes (sacos
de ração, fios de cobre, telemóveis) bem como vários vestígios bioló-
gicos. No mesmo dia, na forma de um contacto pessoal com a PJ, o
INML informa que os cabelos encontrados perto do caminho de terra
batida onde foram encontrados os óculos da Joana se identificam com
o perfil genético da Mariana. Na sequência da busca, o António Costa
foi constituído arguido, tendo sido interrogado nessa condição, pres-
cindindo de defensor. Nesse interrogatório, António Costa confessa
que manteve relações sexuais com a primeira vítima (Isabel) no seu
carro e explica os vestígios de sangue com ferimentos seus numa oca-
sião em que esteve a cortar lenha ou por ter transportado carne adqui-
rida num supermercado. Mais, autorizou a colheita de material bio-
lógico e adiantou em forma de explicação que tem por hábito deixar
o carro estacionado com as chaves na ignição, por isso, a existir sangue
que não seja seu deverá ter sido lá colocado por pessoas que o queiram
incriminar. Por ter sido soldado da GNR, o arguido possuía algumas
noções de investigação criminal e da importância dos vestígios, possi-
velmente enquadrando-se naquilo que Beauregard e Bouchard (2010)
designaram por forensic awareness, isto é, um conjunto de conhecimen-
tos e estratégias que operam no sentido de evitar o abandono de ves-
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 213

tígios. Tal pode inferir-se do modo como os corpos das vítimas foram
ocultos (as duas últimas vítimas foram depositadas em albufeiras, e não
no mar como a primeira, em conjunto com objetos pesados para evi-
tar o retorno à superfície), e das tentativas de consumir pelo fogo os
objetos pessoais das vítimas e de providenciar justificações legítimas
para os vestígios.
Contudo, no mesmo dia, e após ter sido novamente questionado
acerca dos vestígios hemáticos na bagageira do seu carro, António Costa
admite ter agredido Isabel no seu carro. Julgando-a morta, e tomado pelo
pânico, procurou ocultar o cadáver, atirando-o ao mar na Figueira da Foz.
Confessa também as circunstâncias em que matou e os locais onde ocultou
os cadáveres da Mariana e da Joana, o que viria a ser confirmado em auto
de reconstituição e no interrogatório judicial de arguido.
A função incriminatória terá sido empregue também no caso Made-
leine McCann, embora com resultados distintos. Durante o interroga-
tório a Kate McCann, e após ter sido constituída arguida a 7 de setem-
bro de 2007, esta foi confrontada com um grande número de questões
face às quais manteve o seu direito, enquanto arguida, de não responder.
Algumas dessas questões incidiam sobre os vestígios biológicos recolhidos
no carro e no apartamento, sendo explicitamente dito que teria sido
recolhido o “ADN da Madeleine” (fls. 2560 do processo 201/07.0GALGS).
No entanto, num email referente aos vestígios enviados para o Forensic
Science Service (7) datado de 3 de setembro (fls. 2617 e ss do processo
201/07.0GALGS) é dito que os resultados das análises de DNA são
demasiado complexos para uma interpretação significativa. Para além
de não ter sido possível identificar que tipo de fluido originou os vestí-
gios, os perfis resultantes eram incompletos. No vestígio encontrado na
bagageira do carro, o perito indica que apesar de os componentes do
perfil de Madeleine corresponderem a parte do perfil do vestígio, há uma

(7)
O Forensic Science Service era, à data dos acontecimentos, o laboratório do
Reino Unido que providenciava serviços forenses às forças policiais de Inglaterra e do
País de Gales. Em 2010, o governo britânico anunciou que, devido à sua situação
financeira deficitária, o Forensic Science Service deveria ser progressivamente encerrado
(Rincon, 2013).

Investigação criminal Coimbra Editora ®


214 Filipe Santos

grande probabilidade de a correspondência ser fortuita, na medida em


que, para além de partilhar 50% do seu perfil com os seus pais, contém
ainda componentes que são muito comuns na população. Uma vez que
é a combinação dos componentes que tornam um perfil “único”, não
foi possível determinar quais os componentes que constituem o perfil
de Madeleine a partir de um perfil que contém uma mistura dos perfis
de mais de duas pessoas (8). Os resultados preliminares enviados por
email viriam a ser confirmados num relatório formal do Forensic Science
Service. Assim, ao exibir as imagens da inspeção cinotécnica e ao con-
frontar os arguidos com a alegada existência do DNA de Madeleine
McCann no carro alugado, a investigação terá “exagerado” e “forçado”
a interpretação das análises de DNA num quadro incriminatório que
pudesse suscitar uma confissão. Por seu turno, Gerald McCann respon-
deu às questões durante o interrogatório sem oferecer explicações para
os vestígios.

3.4. A função exculpatória

Finalmente, a função exculpatória possui uma caracterização mais


complexa, no sentido em que, nos casos analisados, a sua utilização
estratégica pelos investigadores não foi explícita e intencional, mas antes
veio a revelar-se uma consequência da conjugação de outros fatores a
jusante do curso do inquérito. Em geral, poderia definir-se como uma
função útil no processo de eliminação de potenciais suspeitos e pode
conjugar-se com a função exploratória no sentido de estabelecer as pre-
senças e ausências, na presunção de que a presença implica o abandono
de vestígios biológicos. Deste modo, as análises de DNA podem servir
para eliminar suspeitas sobre determinado(s) indivíduo(s). Contudo, a
função exculpatória pode também estar associada, não apenas à inter-

(8)
De um modo geral, e no uso para efeitos de investigação criminal, designa-se
um perfil como uma “mistura” quando podem ser observados mais do que dois
alelos em vários loci (ou marcadores) estudados no perfil de uma amostra (Buckleton
et al., 2007).

Coimbra Editora ® Parte III


As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 215

pretação em função das circunstâncias de um caso, mas também à


degradação dos vestígios e aos limites, contingências e ao estado da arte
da biologia forense. Por outras palavras, pode haver usos “exculpatórios”
quando não é possível retirar conclusões das análises que sejam relevan-
tes para a narrativa criminal em curso. Porém, pelo conteúdo dos casos
analisados, pode dizer-se que a função exculpatória tende a surgir após
a fase de inquérito em resultado da frustração da “função incriminatória”.
Foi já referido como no caso Madeleine McCann a inconclusividade das
análises de DNA aos vestígios recolhidos na bagageira do carro foram
interpretados no sentido de assumirem uma “função incriminatória”,
mas acabando o inquérito por ser arquivado por falta de indícios de
crime. No caso Tó Jó, houve também lugar ao uso da “função incrimi-
natória” das análises de DNA em relação a um dos arguidos que viria a
ser revertida em sede de julgamento.
Com efeito, as análises aos vestígios hemáticos recolhidos na cena
de crime revelaram várias misturas de perfis em diferentes locais, tendo
sido possível identificar misturas de perfis entre as vítimas e o perpetra-
dor. Porém, foram recolhidos dois vestígios com perfis de “mistura” para
os quais o relatório do INML Coimbra coloca a hipótese de “compati-
bilidade”, nos marcadores estudados, da presença conjunta das duas
vítimas e de um dos suspeitos (Nuno), acrescentando não poder ser
excluída a presença dos outros dois suspeitos (António Jorge e Sara) e,
eventualmente, de outro material biológico “contaminante” (fls. 807 do
processo 704/99.9JAAVR).
Não obstante as conclusões do relatório apontarem para uma “com-
patibilidade” com o perfil do Nuno, mas não excluindo outros dadores,
o “uso” que é feito dos resultados implicou a incriminação do Nuno.
Com efeito, um despacho do Ministério Público extrapola do relatório
pericial que “tudo aponta para que o quarto elemento seja o Nuno…”
(fls. 807) e durante o interrogatório judicial de arguido a magistrada do
MP declara que:

Os resultados dos exames efetuados pelo IML que dão como


certa a existência do sangue do arguido em dois locais distintos e
na viatura das vítimas, permitem-nos concluir que o Nuno esteve
Investigação criminal Coimbra Editora ®
216 Filipe Santos

no local dos crimes na data em que os crimes ocorreram e que neles


terá participado. (fls. 826 do processo 704/99.9JAAVR).

Deve-se salientar que estas funções operam “fora” do laboratório,


constituindo-se como fatores na lógica e na gramática operacional da
polícia, mas não dos laboratórios de biologia forense. Por outras palavras,
quando a polícia remete vestígios biológicos a um laboratório está pro-
curar obter significados para questões que só fazem sentido no âmbito
do seu próprio corpo de conhecimentos profissionais e para as circuns-
tâncias particulares de cada caso. Daí que os quesitos, não raramente,
expressem os resultados que se pretende obter com as análises de DNA,
o que poderá, no limite, excluir outras hipóteses de investigação e limi-
tar as conclusões dos laboratórios. Ou seja, quando a definição da
situação inicial orienta a narrativa criminal num determinado sentido,
pode ocorrer uma limitação da informação procedente dos laboratórios,
na medida em que estes se cingem aos quesitos colocados.
Procurava-se, então, que as análises de DNA viessem confirmar as
suspeitas sustentadas noutros elementos. Conforme um dos relatórios
(fls. 866 e ss.), um dos inspetores no caso Tó Jó, argumenta que “os
elementos disponíveis para a compreensão da verdade dos factos viriam
a ser acrescentados, de forma decisiva, com provas científicas” e, acres-
centando letras de canções das bandas de black metal que abordam
temáticas entendidas como mórbidas, conclui que pode ser afastada
decisivamente a hipótese de o duplo homicídio ter ocorrido num quadro
familiar motivado por interesses meramente económicos, e que os con-
tornos do crime (dia do eclipse solar, uso de facas e os poemas acerca da
morte) são indicadores de um crime premeditado e praticado num qua-
dro de liturgia de grupo.
A função exculpatória viria a surgir pelo empenho do defensor do
arguido Nuno. Primeiro, ao desconstruir a legitimidade das ilações
extraídas das conclusões do relatório de exame ao questionar o modo
e as circunstâncias como os vestígios surgiram na cena de crime e,
segundo, ao requerer novo exame pericial a um outro laboratório e ao
nomear um consultor técnico para acompanhar a elaboração dos que-
sitos e a realização das perícias. As conclusões do novo relatório tam-
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 217

bém identificam material biológico de pelo menos dois indivíduos.


Contudo, em vez de assinalar a “compatibilidade” com o perfil do
Nuno, é dito que não é possível concluir com segurança, da possibili-
dade de um dos contribuidores das duas misturas analisadas ser o Nuno.
Assim, o acórdão acabou por absolver o Nuno na medida em que as
provas produzidas em audiência e nos autos não permitiram estabele-
cer, para além de qualquer dúvida razoável, que praticou os fatos pelos
quais vinha acusado.
Outro exemplo de como os quesitos podem ser formulados no
sentido de obter suporte para uma determinada narrativa criminal será,
novamente, o caso Joana. Aqui, a PJ procurava confirmar uma das
hipóteses para a localização do cadáver da criança, suspeitando-se que
partes do corpo poderiam ter sido ingeridas por porcos, fazendo-as assim
desaparecer. Num terreno cercado próximo da aldeia da Figueira teria
operado uma suinicultura onde foram recolhidas amostras de fezes dos
suínos e algumas fibras têxteis que foram enviadas para análise. Nas
imediações terá sido também encontrado um chapéu de pala vermelho
(com a sigla NY a preto), e procurava-se confirmar a hipótese de o cha-
péu pertencer a um dos arguidos e, deste modo, conseguir associá-lo ao
local para onde, alegadamente, o cadáver teria sido transportado. Assim,
o ofício que acompanha o chapéu indica o local onde o mesmo foi
encontrado e informa que uma testemunha ocular o reconheceu como
pertencendo ao arguido. Os quesitos solicitam: “a identificação de ves-
tígios biológicos; a identificação do ADN do utilizador do referido boné;
comparação do ADN identificado com o ADN do arguido João…”
(fls. 747 do processo 330/04.2JAPTM).
Da parte dos laboratórios, os relatórios de exame constituem objeto
de demarcação de fronteira onde os vestígios enviados da cena de crime
são “purificados” do seu contexto original e excisados das possíveis
interpretações subjetivas que possam emergir nos quesitos. Como tal,
todos os vestígios recebidos são sujeitos a traduções que visam a demons-
tração das várias etapas da “vida laboratorial” dos vestígios, documen-
tando as técnicas utilizadas e as análises efetuadas. Quando são envia-
dos objetos nos quais se pensa que poderão existir vestígios biológicos
relevantes, os mesmos são fotografados e descritos verbalmente quanto
Investigação criminal Coimbra Editora ®
218 Filipe Santos

às suas dimensões, aspeto, composição e eventuais inscrições e etiquetas.


Segue-se um exemplo retirado de um dos processos de como os objetos
podem surgir descritos:

VI.18 Uma camisa em tecido branco com motivos estampados


nos tons azul, verde, vermelho, amarelo e preto, na qual se detetou
uma etiqueta que apresentava as referências “14A Z 100% COT-
TON” (Foto a fls. 28).

No caso de vestígio biológicos que são recolhidos no local e trans-


portados para o laboratório é adotado o mesmo procedimento descritivo
das “condições” do que é recebido e de que modo é recebido. Note-se
a eliminação de qualquer presunção quanto aos conteúdos recebidos e
à sua prévia classificação:

Um envelope timbrado da Polícia Judiciária, Diretoria de


Coimbra, aberto, contendo um tubo de plástico transparente, vedado
com tampa branca com a seguinte identificação: “Vestígio 2 (hemá-
tico) bagageira (interior do fecho da mala)” e o número “2” na
tampa. Dentro do tubo encontrava-se um cotonete manchado de
cor acastanhada.

Vimos como as tecnologias de DNA podem ter vários usos e assu-


mir diversas funções ao longo de um inquérito judicial. Embora as
funções exploratória, assertiva, e incriminatória tendam a constituir
ferramentas dos investigadores na construção da narrativa criminal que
pode vir a materializar-se durante a acusação e a abertura da instrução
do processo judicial, nos casos analisados foi possível observar como a
intervenção das restantes partes a jusante da fase de inquérito pode ser
fulcral no desenvolvimento da função exculpatória.
Poderá também dizer-se que o “diálogo” entre a polícia e os labora-
tórios se caracteriza por um “pragmatismo evidenciário” do lado da
polícia e por um “distanciamento epistemológico” da parte dos labora-
tórios. Por “pragmatismo evidenciário” entendo a interpretação localizada
e situacional dos vestígios levada a cabo pelos investigadores e que tende
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 219

a inferir consequências para o desenvolvimento das narrativas criminais.


O “distanciamento epistemológico” dos laboratórios é patente, como foi
atrás descrito, no isolamento discursivo dos vestígios recolhidos na cena
de crime, sendo alvo de medições e inscrições com o propósito de lhes
conferir atributos científicos, sendo a tradução quantitativa um aspeto
essencial na construção da objetividade (Derksen, 2000).
É assinalável que junto aos autos dos vários processos também se
possam encontrar recortes da imprensa escrita, o que denota a relevância
da cobertura jornalística dos casos para a própria investigação, particu-
larmente porque os jornalistas também procuram recolher informação
de testemunhas e elaboram conjeturas sobre os eventos. Tomando por
referência a cobertura mediática acerca dos mesmos casos selecionados,
a secção seguinte irá abordar as imagens e representações acerca das
tecnologias de DNA veiculadas na imprensa escrita.

4. As representações mediáticas do DNA

Os casos criminais que são mediatizados tendem a reunir um con-


junto de características que incrementam o seu valor de noticiabilidade
(Jewkes, 2004). Para além daqueles que foram já referidos, e que por si
evidenciam os fatores de noticiabilidade dos casos selecionados, o modo
como os média desenvolvem as suas narrativas também tende a apoiar-se
numa definição da situação inicial e que tende a ser equivalente à defi-
nição policial — frequentemente a fonte privilegiada —, condicionando
o seu desenvolvimento dramático — quem são as vítimas e os vilões da
história, e que abordagem será feita à história. A cobertura mediática
de casos criminais constitui uma oportunidade de estudo da produção
simbólica coletiva por via da disseminação de elementos discursivos e
significados culturais que contribuem para a definição das questões sociais
e das ameaças à sociedade (Altheide, 2009).
Com efeito, cada caso suscitou a problematização de temáticas
paralelas à investigação. Deste modo, a cobertura do caso Meia Culpa
abordou a temática dos bares de alterne, incidindo também sobre os
“seguranças” em estabelecimentos de diversão noturna e as suas even-
tuais ligações com atividades criminais. O caso Tó Jó foi desde o
Investigação criminal Coimbra Editora ®
220 Filipe Santos

início enquadrado no âmbito das ligações entre a estética do estilo


musical black/death metal e alegadas práticas de satanismo. O caso
do “Serial Killer de Santa Comba Dão” distingue-se dos restantes no
sentido em que a cobertura noticiosa (excluindo notícias regionais
isoladas acerca dos desaparecimentos) só se inicia com a detenção do
António Costa, quando a autoria dos crimes já se encontrava “esta-
belecida”. Assim, de um modo geral, as narrativas noticiosas concen-
traram-se em torno da personagem principal (António Costa), enfa-
tizando a monstruosidade dos crimes por via do contraste com a
caracterização do arguido enquanto indivíduo de grande religiosidade
que era estimado e respeitado por toda a comunidade. Após a recu-
peração dos corpos das vítimas, boa parte da cobertura foi dedicada
ao processo judicial e à possibilidade de o arguido ser declarado inim-
putável pelos crimes em função dos exames de psiquiatria forense
requeridos pelas partes.
De modo notório, e em virtude da incerteza que dominou os casos
e por não terem sido encontradas as vítimas ou as eventuais armas do
crime, os casos dos desaparecimentos de Joana Cipriano e de Madeleine
McCann, foram aqueles onde a temática da ciência forense e das tecno-
logias de DNA mais se destacaram na cobertura noticiosa.
Na sequência da análise dos usos e da importância que as tecnologias
de DNA tiveram no desenvolvimento dos inquéritos dos vários casos,
importa agora descrever quais as imagens e representações acerca do papel
e contributo da ciência forense para a resolução dos casos. O objetivo
não será o de detalhar ou quantificar as referências às tecnologias de
DNA ou outras disciplinas forenses, mas o de procurar compreender
quais as dimensões qualitativas que são destacadas e valorizadas em
função da construção e disseminação de um imaginário popular em torno
da ciência forense.
No que respeita ao lugar das tecnologias de DNA na investigação
criminal e, particularmente, às expectativas depositadas nas suas poten-
cialidades, vários autores enfatizam o seu papel enquanto ferramenta
auxiliar do trabalho da polícia (Baskin e Sommers, 2010; Roach e Pease,
2006). Todavia, o discurso dominante na imprensa acerca das tecnologias
de DNA nos casos analisados tende a elaborar sobre uma visão mitificada
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 221

da infalibilidade da ciência forense que, frequentemente, exagera os


significados e impactos no decurso da investigação criminal. Por exem-
plo, numa notícia do Público acerca da detenção do Nuno no caso Tó
Jó, denota-se a surpresa face aos desenvolvimentos do caso e é atribuída
à biologia forense a concretização da identificação do quarto elemento
para além das vítimas e do perpetrador:

Para surpresa de todos, Nuno Lima acabou por ser detido na


passada segunda-feira, quase um ano após os acontecimentos. Os
testes de ADN foram fatais para o jovem do Porto. As conclusões
técnicas a que os peritos do IMLC chegaram corroboravam alguns
indícios e davam consistência à tese da polícia. E o certo é que um
dos perfis individualizados pelos peritos do IMLC era perfeitamente
compatível com o do jovem (Amaro e Campos, 2007).

No caso Tó Jó, mas também no caso Meia Culpa, o jornal Público


parece sobrevalorizar os aspetos científicos que de certa forma minimizam
os esforços investigativos no terreno, na sequência de artigos noticiosos
que destacavam a “novidade” das “impressões digitais genéticas” que
poderiam ser usadas para identificar vestígios biológicos a partir dos
gorros que foram encontrados.

As investigações ao “caso Meia Culpa” foram uma espécie de


teste à própria Polícia Judiciária a que esta respondeu com eficácia.
Apesar das pressões da opinião pública e do próprio Governo, a
polícia científica trabalhou durante dez dias e dez noites consecuti-
vas, para ao 12.º dia chegar a algumas conclusões importantes (Lage
et al., 1997).

Estes discursos podem enquadrar-se na projeção daquilo que Helena


Machado designou por “dispositivo de universalidade” que atua nas
intersecções entre a justiça e a ciência, nomeadamente no fator que diz
respeito à afirmação do distanciamento entre o saber e a ação dos peri-
tos e os que não detêm esse conhecimento (Machado, 2011: 156), e que
atua no reforço da posição dominante do conhecimento científico.
Investigação criminal Coimbra Editora ®
222 Filipe Santos

A cobertura mediática dos casos Joana, “Serial Killer de Santa Comba


Dão” e Madeleine McCann terá sido marcada, particularmente na
imprensa popular, pela popularização das tecnologias de DNA em séries
de televisão como CSI — Crime Scene Investigation que atuaram como
matriz cultural de referência e como metáfora das expectativas geradas
em torno dos usos da ciência forense para a resolução dos casos.
No caso da cobertura do caso “Serial Killer de Santa Comba Dão”,
os jornais Público, Diário de Notícias e Jornal de Notícias, fazem uma
reportagem circunstanciada do decorrer do julgamento, recorrendo a
elementos processuais e a testemunhos de conterrâneos para elaborar o
perfil do arguido e, no que respeita à resolução do caso, citam a desco-
berta dos óculos de Joana Oliveira como fulcral.
De um modo geral, as narrativas dos jornais analisados enquadram-se
naquilo que Moira Peelo (2006) designou por “testemunho mediado”
(mediated witness) e que consiste em construir o caso criminal de forma
a suscitar a adesão emocional do leitor, convidando-o a tomar partido e
a desenvolver experiências emocionais que, segundo Katz, são usadas no
quotidiano como “ginásio moral” (moral workout) (Katz, 1987). Con-
tudo, na medida em que as narrativas têm que ser adaptadas para con-
sumo das audiências dos média, por vezes há lugar a excessiva simplifi-
cação e até distorção dos fatos (Ericson, 1998). Assim, nas interseções
entre ciência e justiça, pode suceder que os temas sejam enquadrados de
formas atrativas e compreensíveis para o público (Holliman, 2004),
recorrendo ao imaginário da ficção televisiva, como foi o caso do Correio
da Manhã referindo-se à investigação do caso “Serial Killer de Santa
Comba Dão”:

A investigação foi, na realidade, semelhante a uma mistura de


duas séries televisivas — ‘CSI — Crime sob Investigação’, em que
a análise das mais insignificantes provas é fundamental, e ‘Ossos’,
onde o estudo dos cadáveres é um elemento essencial. É que, em
sede de julgamento — o cabo António Costa será julgado até mea-
dos de Abril na Figueira da Foz — não bastam a confissão, nem
mesmo a reconstituição dos homicídios como o militar na reserva
fez com minúcia (Ferreira, 2007).
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 223

Os casos Joana e Madeleine McCann destacam-se dos restantes em


função do volume e saliência conferida às temáticas associadas à ciência
forense e às tecnologias de DNA, particularmente na imprensa popular,
conforme explanado anteriormente por Machado e Santos (2011). Nos
artigos noticiosos dos jornais analisados nestes dois casos, o Correio da
Manhã destacou-se pela assunção de um estilo e de uma retórica sensa-
cionalista, cujo dispositivo de “testemunho mediado” coloca quer o
jornalista quer o leitor numa posição de meta-inquiridor dos factos,
indícios e provas que vão sendo estabelecidos ao longo do inquérito.
Este dispositivo é materializado na frequente anonimidade das fontes
citadas, na exploração de possíveis deduções, inferências e significados
dos elementos revelados no processo ou das meras especulações que foram
emergindo, como se pode verificar no seguinte extrato de um artigo
noticioso acerca do caso “Madeleine McCann”:

Não é apenas o facto de terem sido encontrados vestígios coin-


cidentes com o ADN de Maddie que leva os investigadores a acre-
ditarem que estão perante um caso de morte. São também os locais
onde os mesmos foram encontrados (…) Em primeiro lugar, os cães
ingleses detetaram odores de cadáver no quarto, na bagageira do
carro e nas roupas que Kate usava naquela noite. Depois, foram
encontrados os vestígios de sangue, não visíveis a olho nu, que
indicam a presença do cadáver da menina atrás de um sofá do quarto
e na mala do carro que só foi alugado 22 dias depois. (…) Foi
também nesse primeiro local (bagageira) que os animais voltaram a
encontrar vestígios biológicos de um ADN que corresponde ao da
menina inglesa e cujos resultados afastam a possibilidade de perten-
cerem aos irmãos gémeos (Dâmaso e Laranjo, 2008)

Conforme pode ser verificado no extrato, as tecnologias de DNA


vêm desempenhar um papel central no desenvolvimento deste tipo de
narrativa, fazendo eco de um imaginário mítico propalado nas séries de
ficção e disseminado na cultura popular no qual a ciência forense é
retratada como a “chave” para resolver crimes (Cole e Lynch, 2006).
Neste cenário mediático, é atribuído um estatuto de certeza e infalibili-
Investigação criminal Coimbra Editora ®
224 Filipe Santos

dade à “prova” produzida em laboratório por cientistas que contribui para


o reforço da “autoridade moral” da polícia (Cavender e Deutsch, 2007).
Tal foi particularmente visível durante o caso “Madeleine McCann” em
que a PJ era sujeita a duras críticas. Assim, a elaboração sobre este género
de conceções, associado ao imediatismo e à fusão de informação e entre-
tenimento característicos dos média modernos (Surette, 1998), tende a
gerar traduções equívocas ao apelar a um imaginário onde é a “ciência”
e não o investigador criminal que providencia as respostas para o pro-
blema do crime.
Em suma, quer o caso Joana, quer o caso Madeleine McCann, cons-
tituíram pretexto para a disseminação pública de informação acerca das
tecnologias de DNA aplicadas à investigação criminal e que não deverá
ser dissociada dos valores de noticiabilidade de cada caso e dos critérios
editoriais de cada jornal. Para além da vertente de entretenimento, a
mediatização de temas afastados do quotidiano do indivíduo comum,
como é o caso das tecnologias de DNA pode atuar também como uma
forma de pedagogia (Nelkin, 1994: 29), informando o público acerca das
potencialidades, mas também dos riscos e limitações da ciência forense.

5. CONCLUSÃO

Este capítulo incidiu sobre o estudo de cinco casos criminais que


ocorreram em Portugal e nos quais houve recurso às tecnologias de DNA.
A análise dos processos judiciais focou o desenvolvimento dos inquéritos
com particular atenção ao papel e funções das tecnologias de DNA. Não
obstante o valioso potencial destas tecnologias no apoio à investigação
criminal, verifica-se que os seus usos práticos não se inserem maiorita-
riamente nas expectativas disseminadas na cultura popular, isto é, de que
são capazes de proporcionar uma solução “mágica” para o crime (Cole
e Lynch, 2006). A investigação de um crime é um processo complexo e
exigente e que apela a uma vasta e diversificada gama de práticas e sabe-
res formais e informais por parte dos investigadores (Innes et al., 2005),
cujos esforços são expressos na construção de uma narrativa criminal
desenvolvida a partir da reconstrução do contexto e das circunstâncias
anteriores e posteriores ao evento criminal.
Coimbra Editora ® Parte III
As funções do DNA na investigação criminal — estudo de cinco casos… 225

Da análise dos casos resulta que o principal elemento dos esforços


de credibilização das narrativas e, consequentemente, das funções do
DNA descritas neste texto, assenta naquilo que Robin Williams (2010)
designou por “imaginário forense” e que se baseia nos princípios de
transferência e de individualização, ou seja, de que qualquer contacto
entre pessoas e objetos resulta na transferência de vestígios e de que na
natureza não existem duas coisas exatamente iguais. Assim, o recurso
às técnicas e conhecimentos científicos dos laboratórios forenses durante
a fase de inquérito insere-se nas tentativas de materialização dos eventos
(Kruse, 2010).
Porém, a materialização dos vestígios em prova nem sempre corres-
ponde às expectativas formuladas nos quesitos. Conforme foi atrás
exemplificado, as interações formais entre os investigadores no terreno
e os peritos nos laboratórios revelam contornos de uma rede sociotécnica
em que os vestígios recolhidos em cenas de crime são alvo de variadas
inscrições e traduções que marcam fronteiras e assimetrias. Noutros
termos, os quesitos policiais são frequentemente expressos em termos
binários que pressupõem a confirmação ou negação de hipóteses e que
podem produzir consequências no desenvolvimento dos casos, naquilo
que designei por “pragmatismo evidenciário”. Por seu turno, os peritos
dos laboratórios elaboram na tradução dos vestígios em objeto de conhe-
cimento científico, que se inicia com o registo detalhado das caracterís-
ticas dos objetos recebidos no laboratório e termina com a redação do
relatório pericial, num processo de “distanciamento epistemológico”.
Nos relatórios, as observações acerca dos objetos são traduzidas numa
linguagem neutralizante, quanto possível, de quaisquer efeitos remotos.
Não só os vestígios são identificados por um código, mas também as
conclusões são elaboradas numa linguagem que salvaguarda possíveis
inferências categóricas e universais, ou referências diretas aos casos (por
exemplo, quando é dito que o perfil A possui identidade com os mar-
cadores estudados do perfil B).
A interpretação contextual e circunstancial dos relatórios periciais
cabe ao Ministério Público e pode produzir consequências nas várias
instâncias do processo criminal — por exemplo, pode levar um juiz de
instrução criminal a decretar medidas de coação mais gravosas com base
Investigação criminal Coimbra Editora ®
226 Filipe Santos

nos indícios apresentados. Na medida em que as análises de DNA tendem


a ser interpretadas como elemento de objetividade e certeza no âmbito
de uma narrativa e de hipóteses previamente estabelecidas, existe a mani-
festa possibilidade de enviesamento contra os suspeitos (Dahl, 2007).
A análise dos processos judiciais e o estudo da sua cobertura na
imprensa revelaram idêntica submissão simbólica à supremacia da ciên-
cia e ao conhecimento produzido em espaço laboratorial. Em ambos os
contextos, as tecnologias de DNA parecem ser entendidas como algo
que transcende a agência humana sendo capazes de produzir justiça por
si mesmas (Gerlach, 2004: 132). Se a raiz científica das tecnologias de
DNA marca uma transição de paradigma relativamente às disciplinas
forenses tradicionais, albergando a promessa de maior precisão e fide-
dignidade na identificação dos culpados e na exculpação dos inocentes
(Saks e Koehler, 2005), sobre elas recaem também as expectativas de
produção de contributos decisivos para a resolução dos casos — o que
tende a ser amplamente disseminado junto do público por via das repre-
sentações mediáticas e ficcionais.
Em conjunção com estas expectativas, por vezes exageradas, surgem
riscos associados com a abdução determinista das conclusões periciais.
Conforme argumentam Roach e Pease (2006), as tecnologias de DNA não
servem apenas para identificar os culpados e podem até tornar mais difícil
a obtenção de uma condenação se as circunstâncias permitirem argumentar
quanto à plausível legitimidade do abandono de vestígios. Assim, como
foi possível constatar nos casos analisados, as tecnologias de DNA são
ferramentas que auxiliam e complementam o trabalho dos investigadores,
sendo que a experiência, o conhecimento e o trabalho destes constitui fator
fundamental na interpretação dos indícios e na resolução dos casos.

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Coimbra Editora ® Parte III


OS CONSTRANGIMENTOS PRÁTICOS
DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL EM PORTUGAL
E SUAS REPERCUSSÕES NA APLICABILIDADE
DA BASE DE DADOS DE ADN (1)

SUSANA COSTA

1. INTRODUÇÃO

A tecnologia de identificação por perfis de ADN por muitos con-


siderada como uma “máquina da verdade”, ou o “padrão-ouro”, estando
imune a erros (Lynch, 2003; Lynch et al., 2008; Dror e Hampikian,
2011), tem permitido transformações relevantes nos sistemas de justiça
criminal, devido à convicção da sua maior credibilidade científica em
contexto legal relativamente aos métodos de identificação tradicionais
— como a lofoscopia, a prova testemunhal ou a confissão (Barra da
Costa, 2011). A sua aceitação, um pouco por todo o mundo, é forte-
mente marcada por alguns argumentos decisivos: a possibilidade de
tornar a justiça mais científica e, por isso, mais eficaz e mais credível,
porque baseada na biologia, (Dahl e Sætnan, 2009), a possibilidade de
ilibar inocentes e, ainda, como forma de uniformização de procedimen-
tos nos vários países, contribuindo para a cooperação transfronteiriça
(McCartney, 2004; Pinheiro, 2011; Machado e Santos, 2012).

(1)
Este texto foi desenvolvido no âmbito da bolsa de pós doutoramento, com
a referência SFRH/BPD/63806/2009, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

Investigação criminal Coimbra Editora ®


230 Susana Costa

Em sociedades cada vez mais dominadas pelo medo, a identificação


por perfis de ADN e a existência de bases de dados surgem como fer-
ramentas essenciais no combate ao crime (Machado et al., 2011), que,
ao promoverem a ideia de segurança (2), eficácia, certeza e infalibilidade
(Williams e Johnson, 2004), apazigua receios sob o argumento de que
os suspeitos, ou potenciais suspeitos (Machado et al., 2008), passam a
estar identificados, catalogados e circunscritos num ficheiro de dados
permitindo a sua vigilância. Com base na necessidade de uma nova
cultura de controlo dos indivíduos, surge assim uma espécie de “socie-
dade administrada” (Nelkin e Lindee, 1995; Garland, 2001; Palmer e
Polwarth, 2011) que supostamente apazigua os medos. A crença no
potencial desta tecnologia assenta em duas ideias fundamentais: por um
lado, que os potenciais suspeitos inseridos na base de dados de perfis
genéticos, estarão sempre vigiados e, por outro lado, ao estarem vigiados,
permite que os seus comportamentos e atitudes se tornem mais previ-
síveis e, como tal, tornando-se mais facilmente administrados. Assim,
ter o perfil inserido numa base de dados de perfis genéticos assegura
uma inspeção e vigilância de todos aqueles que aí se encontram, já que
“uma vez na base de dados estamos constantemente numa ‘linha virtual’
de potenciais suspeitos” (3) (Dahl e Sætnan, 2009: 91) e apazigua o
sentimento de insegurança daqueles que se encontram fora da base,
transformando “(…) a incerteza e imprevisibilidade das classes perigo-
sas no conhecível, calculável e controlável”(Kemshall, 2003 apud
McCartney, 2004: 166).
Ao diferenciar as classes perigosas é transmitida a ideia de maior
segurança aos cidadãos. E, desta forma, as bases de dados de perfis de
ADN foram-se constituindo, ao longo dos últimos anos, não apenas como
um instrumento de governação poderoso, que permite detetar criminosos

(2)
A este propósito cf. Frois (2012: 13) que considera que “[o] modelo portu-
guês, tal como outros europeus, assenta numa estratégia muito em voga atualmente
que se relaciona com a prevenção e dissuasão da criminalidade. Prevenção, neste
domínio, traduz-se numa lógica de atuação em que a polícia antecipa e evita a ocor-
rência criminal”.
(3)
A tradução de citações são da responsabilidade da autora.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 231

e ilibar os inocentes, como também se constituíram como uma “tecnolo-


gia de vigilância” (Harcourt, 2007) necessária face aos riscos (McCartney,
2004), receios e medos que as sociedades hoje enfrentam tentando, desta
forma, identificar essas classes perigosas em “circuitos fechados” (Williams
e Johnson, 2004) ou “circuitos de segurança” (Rose, 2000).
Foram estes argumentos que, em grande parte, contribuíram para
criar as condições para a sua boa aceitação e para que, paulatinamente,
fosse utilizada como instrumento de governação por vários países (Hin-
dmarsh e Prainsack, 2010; Kaye, 2006; Dahl e Sætnan, 2009), nos quais
Portugal se insere.
Não obstante as inúmeras potencialidades reconhecidas a esta tecno-
logia ao serviço da justiça, também acarreta ameaças (McCartney, 2004:
158) que serão tanto maiores, segundo alguns autores, quanto mais per-
missiva for a lei que em cada país regula o funcionamento das bases de
dados de ADN (4). O grau de risco e de vigilância a que cada sociedade
está sujeita, depende, porém, de outros fatores. Portugal apresenta uma
lei mais restritiva comparativamente a outros países (5) e, como tal, teori-
camente salvaguardando muitos desses riscos associados à utilização desta
tecnologia. Porém, partilha esta utilização com diversos países avançados,
mas, com saberes e práticas de investigação criminal distintas das obser-
vadas nesses países. Assim, se no Reino Unido ou nos Estados Unidos
da América a introdução dos perfis de ADN na investigação criminal
permitiram a profissionalização e cientifização do trabalho policial (Cole,
2001, Nuffield Council on Bioethics, 2007; Williams, 2003; Williams
et al., 2004, Machado e Santos: 2012), a escassez de recursos humanos e
materiais e as práticas e saberes distintos para atuar em contexto de inves-
tigação criminal verificados em Portugal com diferentes Órgãos de Polí-
cia Criminal (OPC) a intercederem na cena de crime pode criar obstá-
culos aos objetivos propostos pela lei que regulamenta as bases de dados
de ADN (lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro).

(4)
Para uma análise dos países permissivos, restritivos e laissez-faire cf. Machado
et al., 2008; Machado e Santos, 2012.
(5)
Cf. Machado et al., 2008 e Pereira, 2008.

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232 Susana Costa

2. A LEI N.º 5/2008

Em Portugal a tecnologia de identificação por perfis de ADN deu os


primeiros passos na década de 90 do século XX para fins de identificação
civil, particularmente em casos de investigação de paternidade, bem como
no apoio à investigação criminal. Cerca de duas décadas depois, a Lei
n.º 5/2008 de 12 de fevereiro veio estabelecer a criação da Base de Dados
de Perfis de ADN em Portugal para fins de identificação civil e criminal.
Na dependência do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências
Forenses (INMLCF, IP) e sob tutela do Ministério da Justiça, as únicas
entidades com competência para proceder a análises (artigo 5.º, n.º 1)
são o próprio Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) e o Labo-
ratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária (LPC), embora apenas
o primeiro seja a autoridade com competência legal para o tratamento
dos dados aí armazenados (artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008).
Estipula a lei que a base de dados portuguesa é constituída por fichei-
ros com informação relativa a amostras de voluntários, ficheiros com
amostras referência (6) de pessoas desaparecidas, amostras de pessoas con-
denadas por crime com pena efetiva igual ou superior a três anos de pri-
são (7), mediante consentimento expresso do titular da amostra e com
despacho do juiz a ordenar a recolha da amostra (8) (artigo 8.º, n.os 1 e 2),
considerando que esta é a única via de não violar o direito à auto-deter-
minação informacional do indivíduo, constante no artigo 35.º do Cons-
tituição da República Portuguesa (9) e, por fim, amostras dos profissionais

(6)
“(…) amostra utilizada para comparação” (artigo 2.º, al. d), da Lei n.º 5/2008,
de 12 de fevereiro.
(7)
“(…) a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena
concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída”
(artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro).
(8)
“A recolha de amostras em processo-crime é realizada a pedido do arguido
ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da
constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172.º do Código do Processo
Penal” (artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro).
(9)
E também plasmado no artigo 3.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 233

que procedem ao tratamento das amostras (recolha e análise) (artigo 15.º).


Estes diferentes ficheiros deverão, segundo a lei, ser armazenados de forma
separada, lógica e fisicamente, manuseados por distintos profissionais de
forma a garantir a confidencialidade e inviolabilidade dos dados constan-
tes na base, não permitindo a introdução de dados pessoais no ficheiro
dos perfis de ADN ou que possa ser efetuada, pesquisa nominal
(artigo 15.º, n.º 2) garantindo, de igual modo, a codificação de todos os
dados aí constantes (artigo 17.º, n.º 3, al. e)).
As amostras devem ser recolhidas através de método não invasivo (10),
respeitando a integridade física e moral do indivíduo através da colheita
de zaragatoa bocal (artigo 10.º) e recolhida em quantidade suficiente de
forma a garantir o princípio do contraditório que permita a realização de
uma contra-análise (11). Os perfis resultantes desta recolha apenas podem
ser introduzidos na base de dados após consentimento livre, informado
e escrito por parte do seu titular (12) (artigo 18.º, n.º 1) e despacho do
juiz (artigo 18.º, n.º 2), constituindo ainda “(…) pressuposto obrigatório
para a inserção dos dados a manutenção da cadeia de custódia (13) da
amostra respetiva” (artigo 18.º, n.º 4). Verificados estes procedimentos,
cabe ao INML comunicar ao juiz competente do processo os dados
obtidos, mediante requerimento fundamentado (artigo 18.º, n.º 1, al. a)),

(10)
A este propósito cf. Oliveira, 1999.
(11)
Artigo 11.º: “1 — Salvo em casos de manifesta impossibilidade, é preser-
vada uma parte bastante e suficiente da amostra para a realização de contra-análise.
2 — Quando a quantidade da amostra for diminuta deve ser manuseada de tal modo
que não impossibilite a contra-análise” (Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.
(12)
Refere o artigo 2.º, al. n), que este é a “manifestação de vontade livre e
informada, sob a forma escrita, nos termos da qual o titular aceita que os seus dados
pessoais sejam objecto de tratamento” (Lei n.º 5/208, de 12 de fevereiro). Esta noção
de consentimento livre, informado e irrevogável é “(…) diferente da noção de volun-
tário no Reino Unido, em que a recolha de amostras pode ser feita em massa no decurso
de uma investigação a um grupo específico de indivíduos (intelligence mass screening)”
(Machado et al., 2008: 152). Cf. também Kaye, 2006; Williams et al., 2004).
(13)
“Processo usado para documentar o seu trajecto cronológico, a fim de ser
atestado e acautelado a sua autenticidade em processo judicial” (Pinheiro, 2011: 60).
Cf. tb. definição dada por Barra da Costa, 2008: 221 ss.).

Investigação criminal Coimbra Editora ®


234 Susana Costa

ao qual, por sua vez, cabe comunicar ao Ministério Público e/ou aos OPC
competentes esses mesmos dados, através de despacho fundamentado
(artigo 18.º, n.º 1, al. b)).
De forma a poder ser executada uma interconexão dos dados constan-
tes na base de dados com novos dados inseridos, a lei prevê que os perfis
de ADN (14) de arguidos possam ser cruzados com amostras problema (15)
de local de crime, amostras de cadáver ou parte de cadáver ou em local
onde se proceda a recolha, e ficheiro de profissionais. No que respeita aos
perfis de ADN de voluntários, estes podem ser cruzados com todos os
perfis inseridos nos diversos ficheiros previstos na lei (artigo 20.º, n.º 3).
Os perfis de ADN de amostras problema provenientes de locais de crime
ou de pessoas condenadas a pena concreta superior a 3 anos podem ser
cruzados com o ficheiro dos voluntários, com o ficheiro das amostras pro-
blema recolhidas no local do crime, com o ficheiro de outros indivíduos
condenados e com o ficheiro que congrega os perfis dos profissionais que
lidam com o manuseamento das amostras (artigo 20, n.º 3 e 4). Porém,
fica fora deste leque o cruzamento da informação obtida com o ficheiro
que detêm as amostras referência de pessoas desaparecidas ou familiares,
sendo apenas permitido, em casos excecionais, mediante requerimento
fundamentado, prévia autorização da Comissão Nacional de Proteção de
Dados Pessoais (CNPD) e parecer prévio, quer desta entidade, quer ainda
do Conselho de Fiscalização, a possibilidade de outros cruzamentos entre
ficheiros que não estes expressos na lei (artigo 20.º, n.º 5).
Se estas são as prerrogativas no que respeita à interconexão de dados
no domínio nacional, o artigo 21.º considera que estas não podem colidir
com as obrigações internacionais assumidas por Portugal no que toca a
cooperação internacional transfronteiriça (artigo 21.º, n.º 2) ao abrigo do

(14)
Segundo a al. f ) do artigo 2.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, o
perfil de ADN é “(…) o resultado de uma análise da amostra por meio de um mar-
cador de ADN obtido segundo as técnicas cientificamente validadas e recomendadas
a nível internacional”.
(15)
“(…) a amostra, sob investigação, cuja identificação se pretende estabelecer”
(artigo 2.º, al. c)), da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 235

Tratado de Prüm, de 27 de maio de 2005 (16). Como tal, embora não


permitindo a transferência de amostras biológicas para nenhum outro país
(artigo 21.º, n.º 2), a lei prevê a possibilidade de entidades de outros países
que detêm a custódia da base de dados no seu próprio país, possam ter
acesso aos dados registados na base de dados de perfis de ADN portuguesa.
Quanto ao período de tempo que os dados ficam armazenados a lei
portuguesa, no seu artigo 26.º, prevê que o ficheiro de perfis de ADN de
voluntários deve permanecer indefinidamente na base, salvo revogação por
parte do indivíduo. Relativamente às amostras referência de indivíduos
desaparecidos ou seus familiares, a remoção do perfil deverá ser efetuada
após identificação bem sucedida ou quando os familiares solicitem a
remoção do seu perfil da base de dados. No que respeita às amostras
problema referentes a colheitas na cena de crime, o perfil deve permanecer
na base de dados até ao término do procedimento criminal e eliminado
20 anos após a sua introdução sem que tenha havido coincidência entre
estas e o arguido. No que concerne ao arguido, cujo perfil tenha sido
introduzido na base, este deve ser removido na data em que finda o registo
criminal. E, por último, no caso dos profissionais, o seu perfil deverá ser
removido da base 20 anos após terminarem as suas funções.
Obtido um perfil de ADN devem as amostras ser destruídas no caso
do ficheiro de voluntários e arguidos sendo que, no que toca a estes últi-
mos, essas amostras recolhidas só podem ser usadas como prova no processo
em concreto em que o indivíduo está a ser julgado (artigo 34.º, n.os 1 e 2).
A lei faz ainda alusão à proteção das amostras no seu artigo 33.º,
reiterando a obrigatoriedade de as amostras colhidas para efeito de intro-
dução de perfil na base de dados de ADN ter que ser realizada pelas

(16)
“O Tratado define um quadro legal que visa o desenvolvimento da coo-
peração entre os Estados-Membros no domínio da luta contra o terrorismo, a cri-
minalidade transfronteiras e a imigração ilegal. Mais especificamente, regula o
intercâmbio de informações sobre ADN, impressões digitais, registo de veículos e
dados pessoais e não pessoais no âmbito da cooperação policial transfronteiriça entre
as partes contratantes” http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2004_2009/documents/
dt/660/660824/660824pt.pdf [consultado em 30 de abril de 2013].

Investigação criminal Coimbra Editora ®


236 Susana Costa

entidades para tal competentes e plasmadas no artigo 5.º, isto é, o INML


e o LPC. E, refere ainda o n.º 2 do mesmo artigo que:

As entidades responsáveis pelas amostras devem tomar as medi-


das adequadas para: a) Impedir o acesso de pessoas não autorizadas
às instalações; b) Permitir o correcto e seguro armazenamento das
amostras; c) Permitir o seguro e correcto transporte das amostras
para as instalações das entidades referidas no artigo 31.º (artigo 33.º,
n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro).

Neste contexto o juiz surge como o detentor do poder legal, único e


exclusivo, para ordenar a recolha de amostras, ordenar a inserção e a
remoção do perfil da base de dados (artigo 8.º, n.º 2), onde “[o] acesso
da polícia à informação genética no curso de uma investigação criminal é
assim profundamente limitado, hierarquizado e burocratizado” (Machado
e Santos, 2012: 159)
Resulta daqui que ao dotar o sistema judicial de ferramentas cien-
tíficas que permitem a introdução de perfis de ADN em ficheiros auto-
matizados, aumentou-se o potencial para fazer identificações e, com mais
certezas, fazer coincidir perfis de indivíduos condenados com cenas de
crime onde estiveram envolvidos, aumentando, em teoria, a eficácia,
diminuindo o tempo da investigação e, consequentemente, onerando
menos o sistema (17). Consequentemente, ao permitir mais certezas na
obtenção da prova, conduz ao aumento da confiança dos cidadãos na
tecnologia e, desse modo, pode contribuir para dissuadir a prática de
crime, levando a que os próprios governantes reforcem a importância
do seu uso e, logo, legitimando as suas opções como forma de governar
os cidadãos e da necessidade de os vigiar.
Feito um breve resumo dos principais aspetos contemplados na lei,
no que se refere às entidades que detêm a competência de análise e manu-

(17)
Não porque este tipo de tecnologia seja dispendiosa, mas porque ao per-
mitir respostas mais céleres, diminui o tempo da investigação, logo tornando-a mais
financeiramente mais acessível.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 237

seamento das amostras, critérios de introdução de perfis, critérios de


remoção de perfis e tipos de ficheiros possíveis, importa ter em conta um
aspeto de crucial importância quando pensamos, não apenas, no potencial
que esta lei encerra ao nível português, como também os riscos que apre-
senta quando a analisamos à luz da Lei de Organização da Investigação
Criminal portuguesa (a Lei n.º 49/2008, de 24 de agosto) — LOIC.
É precisamente na confluência destas duas Leis (Lei n.º 5 /2008 e
LOIC) que este capítulo pretende focar-se, tentando evidenciar de que
forma é que os problemas associados à preservação da prova, funda-
mental para manter a cadeia de custódia intacta, podem ser enquadra-
dos à luz da Lei n.º 5/2008; como é que os OPC que intercedem
diretamente na cena do crime avaliam o alcance desta lei, e, por último,
de que forma é que em termos práticos esta lei veio contribuir e auxiliar
o trabalho realizado.

3. A CIENTIFIZAÇÃO DO TRABALHO POLICIAL

A credibilização do trabalho policial depende, em grande medida,


da sua capacidade de integrar as novas tecnologias de identificação gené-
tica no seu trabalho (Williams e Johnson, 2008) (18).
Em muitos países o avanço desta tecnologia de identificação levou
ao aumento dos poderes das polícias (Kaye, 2006), permitindo, em mui-
tos casos, que estes façam o trabalho crucial da investigação criminal. No
caso inglês, por exemplo, são as próprias polícias que detêm a autorização
para proceder a recolhas de perfis de ADN para introdução na base de
dados. “Em nenhum país do mundo a polícia tem poderes tão amplos
como no Reino Unido no que toca a recolha de amostras biológicas e
armazenamento e processamento de informação genética” (Machado e
Santos, 2012: 158).
Em Portugal, porém, para além de a polícia, como já referido, ter
um acesso muito limitado, hierarquizado e burocrático ao processo

(18)
Os polícias surgem, deste modo, como “agentes técnicos da racionalidade
científica” (Williams e Johnson, 2004).

Investigação criminal Coimbra Editora ®


238 Susana Costa

judicial e às bases de dados, e de apenas o juiz ser autorizado a ordenar


a inserção e remoção de perfis da base de dados (artigo 8.º, n.º 2), tam-
bém a própria LOIC se rege por certas peculiaridades.
Deste modo, embora a Polícia Judiciária (PJ) seja, por excelência, a
entidade que detém a gestão da investigação criminal, a Polícia de Segu-
rança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR) são
também órgãos de polícia criminal, cada uma com funções específicas
atribuídas (artigo 3.º, n.º 1, da LOIC). E, não obstante, a lei portuguesa
estabelecer que a primeira diligência a tomar pela polícia após conheci-
mento de um crime é comunicá-lo ao Ministério Público (artigo 44.º
do Código de Processo Penal (19), e artigo 2.º, n.º 3, da LOIC), os OPC
(seja a PJ, GNR ou PSP), mesmo antes de receberem ordens da autori-
dade judiciária competente, podem proceder aos atos necessários e
urgentes para assegurar os meios de prova, podendo de igual modo, e
após a intervenção do MP, desenvolver diligências para assegurar novos
meios de prova de que venham a ter conhecimento (respetivamente,
n.os 1 e 3 do artigo 249.º do Código de Processo Penal (20) e artigo 2.º,
n.º 3, da LOIC).
Este articulado tem implícito que todos os OPC estão preparados
para uma intervenção célere e eficiente no local do crime e que o pri-
meiro OPC a ter conhecimento do crime, deverá deslocar-se ao local,
desenvolver os primeiros atos cautelares, tão importantes para a futura
investigação e proceder às primeiras diligências com vista à preservação

(19)
Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher
notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus
agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios
de prova.
(20)
O n.º 2 do art. 249.º do Código de Processo Penal indica os atos e dili-
gências que podem ser tomadas pelos OPC: “a) Proceder a exames de vestígios do
crime, em especial as diligências previstas no artigo 171.º, n.º 2, e no artigo 173.º,
assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; b) Colher informações
das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; c)
Proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou
perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à inserção ou
manutenção dos objetos apreendidos”.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 239

da cena do crime. Esta situação pode colocar em risco todo o proce-


dimento subsequente, consequência da falta de conhecimentos, falta de
meios, má interpretação da lei, ou, simplesmente, os conflitos que se
geram em torno dos diferentes OPC e que podem condicionar o tra-
balho futuro.
Nesse sentido, importa perceber de que forma as tecnologias estão
a ser incorporadas na atuação policial em Portugal e de que forma é que
a base de dados de perfis de ADN está ou não a contribuir eficazmente
para os seus desígnios atendendo, não só às limitações impostas à polícia
em termos de recolha e acesso à informação de ADN, a escassez de
recursos humanos e tecnológicos existentes na polícia de investigação
criminal, mas também os aspetos de pendor ético e legislativo que têm
criado entraves à eficácia da base de dados em Portugal.
Com base em 12 entrevistas semiestruturadas realizadas entre 2011
e 2012 (21) aos três OPC portugueses que maioritariamente intercedem
na cena de crime (PJ, PSP e GNR) argumentamos que a relação entre
a crença no potencial do ADN e a sua aplicabilidade na Lei n.º 5/2008
é inversamente proporcional. Isto é, se o seu otimismo é manifesto
relativamente ao potencial desta nova tecnologia ao serviço da verdade,
o pessimismo instala-se quando se analisa na prática a eficácia da Lei
n.º 5/2008. E, pese embora os entrevistados identifiquem com clareza
os constrangimentos associados às práticas quotidianas da investigação
criminal em Portugal, esse reconhecimento acaba por não ter peso na
avaliação que tecem ao que, para eles, se constituem como os grandes
entraves à eficácia da base de dados portuguesa.
Desta forma, começaremos por analisar os constrangimentos iden-
tificados pelos entrevistados no que se refere aos procedimentos de
investigação criminal e que traduzem os saberes e práticas em cenário
de crime dos diferentes OPC portugueses para, numa segunda fase,
analisarmos os seus discursos no que se refere à atual lei que regulamenta
as bases de dados de perfis de ADN em Portugal.

(21)
No âmbito deste estudo foram realizadas um total de 17 entrevistas, 5 das
quais no Reino Unido, mas não contempladas para este capítulo.

Investigação criminal Coimbra Editora ®


240 Susana Costa

3.1. Os constrangimentos da investigação criminal em Portugal

Formação específica em cenário de crime

Embora, como já referido, os crimes de cenário sejam da compe-


tência exclusiva da Polícia Judiciária (22), as polícias de proximidade (PSP
e GNR) são as primeiras a abordar o local, com implicações e encadea-
mentos sucessivos na investigação criminal.
Assim, podem ser identificadas discrepâncias notórias ao nível de
formação que os diferentes OPC recebem, evidenciando saberes e
práticas distintas das polícias que intervêm na cena do crime, com
fragilidades na formação de elementos das polícias de proximidade,
que podem comprometer o sucesso da investigação criminal, já que
nas palavras de um inspetor da PJ “(…) uma coisa com que nos depa-
ramos é o facto de haver outras polícias que não estão … ou alguns
elementos das outras polícias que não estão bem sensibilizados para
aquilo que há a fazer” (E2, PJ). No entanto, e independentemente da
lei lhes atribuir essa competência ou não, e de ser assumido pelos
próprios atores da investigação criminal a impreparação das “outras”
polícias para uma abordagem eficaz no terreno, é também assumido
que a própria lei determina que tenham que se deslocar ao local e,
inclusivamente, proceder aos primeiros atos cautelares (artigo 2.º, n.º 2,
da LOIC).
E, muito embora, esta intervenção seja considerada parte natural e
muito importante das funções da polícia de proximidade, eles próprios
têm consciência de que a sua intervenção vai para além do mero acau-
telamento dos vestígios, reconhecendo que “(…) ainda se consegue ver
que muita coisa é inviabilizada por ter havido uma má gestão do local”
(E9, UPT (23), PSP). Perceção idêntica têm os elementos da PJ que,
igualmente confirmando o papel relevante que as polícias de proximidade

(22)
Cf. artigo 7.º da LOIC sobre a competência da Polícia Judiciária em maté-
ria de investigação criminal.
(23)
Unidade de Polícia Técnica

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 241

têm, consideram que a escassa formação dada a estes profissionais pode


condicionar as etapas seguintes da investigação (24).

A impreparação, se quiser, da polícia de proximidade que (…)


na sua esmagadora maioria não está preparada para saber trabalhar
no local do crime ou saber estar no local do crime. Não está, não
tem formação para isso. (E7, PJ).

Esta presença da polícia de proximidade no local, de extrema relevân-


cia no sentido de identificar prontamente a situação pode acabar, por vezes,
a uma má tipificação e interpretação do crime em causa, o que terá con-
sequências para o delinear de uma estratégia de gestão do local do crime.

Dotação de recursos humanos

Uma intervenção adequada no local do crime pressupõe ainda que


os atores estejam bem equipados, sendo espectável que façam uso de
alguns instrumentos básicos, face às imposições que a cientifização do
trabalho policial e a utilização de novas metodologias com vista à reco-
lha de vestígios biológicos implicam, de forma a minimizar ao máximo
a possibilidade de contaminação (25).
Porém, a análise das entrevistas realizadas permitiu concluir também
que a escassez de recursos materiais constitui outro dos entraves a uma boa
intervenção em cenário de crime em Portugal, já que não só são as polícias
de proximidade, com pouca formação, que primeiro abordam o local, como
ainda o fazem com nítida falta de recursos materiais. Argumentam que “

(24)
Embora a LOIC no seu artigo 15.º, n.º 2, al. b), faça menção explícita a
que se garanta “(…) a partilha de meios e serviços de apoio de acordo com as neces-
sidades de cada órgão de polícia criminal”.
(25)
“(…) luvas, suportes auxiliares de colheita de vestígios (quadrados de tecido
100% algodão), zaragatoas pequenas; zaragatoas (cotonetes, pinças e tesouras; água
destilada; caixas de plástico para recolher o material; envelopes de papel; zaragatoas
bocais, faca ou bisturi; pipetas de plástico descartável; papel higiénico; álcool; e sacos
para o lixo” (Barra da Costa, 2008: 160).

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242 Susana Costa

(…) o fato teria que ter outros melhoramentos, mas é o que nos dão…
É um fato simples que, numa primeira abordagem, serve perfeitamente para
não contaminar (…) a patrulha não. A patrulha não tem rigorosamente
nada” (E9, UPT, PSP). Para além disso, embora o fato exista em algumas
unidades de polícia técnica da PSP, por exemplo, é diferente do que é for-
necido aos elementos da PJ. O uso de luvas, instrumento mínimo indis-
pensável a qualquer agente policial, independentemente das suas compe-
tências, é quase inexistente, assumindo um dos elementos da UPT que “[n]
em luvas. Às vezes têm mas, se calhar, é por bondade de fulano e sicrano
que tem uma amiga enfermeira e que vai fornecendo” (E9, UPT PSP).

Acondicionamento dos vestígios

Porém, mesmo em situações em que os recursos materiais estão


disponíveis, as práticas relatadas conduzem para situações incorretas de
processamento do local.

Nós temos uns envelopes específicos para fazer o transporte de


um vestígio biológico, por exemplo. Mas, se na altura, uma equipa,
por acaso, for a um cenário e gastar esses envelopes … eles escasseiam
… tem duas opções: ou chama uma equipa e a equipa vai reforçar
o stock, ou vê que no envelope de papel (…), por exemplo este
[apontando para um envelope timbrado da PSP], se colocar aqui
uma … uma calça … um calcinha com esperma ou uma camisola
com sangue … se eu colocar aqui até à sede o sangue não se vai
deteriorar, porque a base fundamental do acondicionamento é o
papel (…). Depois, na sede, é colocado no envelope que deve ser e
que deve seguir. Mas são situações muito pontuais! (E8, UPT, PSP)

A forma como são preservados os vestígios de cena de crime revela,


de novo, os distintos saberes e práticas dos atores em processo de cien-
tifização da atividade policial.

(…) a regra do bom acondicionamento prevê hoje um conjunto


de sacos de prova para cada um dos objetos adequados à sua natu-
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 243

reza e à sua dimensão, que obedecem a dois princípios (…): pri-


meiro, o que é vivo, embrulha-se (…) em saco de papel, o que é
volátil recolhe-se em saco hermético. Às vezes, na prática confron-
tamo-nos com coisas exatamente ao contrário! (E3, LPC) (26).

Esta situação é assumida pelo lado de quem tem competência para


manusear o local. No entanto, também a UPT da PSP tem a perceção
desta situação, argumentando que, quando os recursos são escassos há
necessidade de contornar essas contingências através de algumas práticas
assumidas. Destaquem-se os improvisos que o momento pós-crime os
leva a realizar, não se limitando às medidas cautelares e à salvaguarda dos
vestígios encontrados, procurando também preservá-los e, até, acondi-
cioná-los, parecendo partirem do pressuposto de que mais vale acondicio-
nar com os instrumentos disponíveis do que correr o risco de os perder.
Para além da possibilidade de danificar e contaminar vestígios, con-
siderados como a informação física mais básica e a evidência remanescente
do acontecimento (Robertson e Roux, 2010) através da pró-atividade dos
OPC de proximidade, as entrevistas realizadas permitiram perceber que,
em determinadas situações, quando têm consciência de que poderão ter
realizado procedimentos que extravasam as suas competências e/ou que
realizaram procedimentos incorretos acabam por ocultar essa informação.

Quase sempre não é dado seguimento ao vestígio que foi colo-


cado nesse … Porque aquilo inviabiliza, ou pode inviabilizar. E o
facto de poder inviabilizar, nós estamos a quebrar a cadeia da prova.
Portanto, (…) não faz sentido enviar para o laboratório um vestígio
que já foi contaminado! (E8, UPT).

Embora as polícias de proximidade tenham consciência da impor-


tância da preservação da cadeia de custódia, muitas vezes optam por

(26)
Segundo explicação dada por Barra da Costa (2008: 160) “[n]unca devem
ser preservados vestígios hemáticos em fitas autocolantes e as palavras-chave são luvas
e papel que permite trocas gasosas, por exemplo, algo molhado seca no papel, mas se
for em plástico não seca”.

Investigação criminal Coimbra Editora ®


244 Susana Costa

uma atitude dinâmica que pode danificar irreversivelmente a investiga-


ção. Não deixa de ser curioso que, na consciência de que podem que-
brar a cadeia de custódia, são ele próprios que a quebram ao ocultar
procedimentos. No entanto, não são apenas os OPC de proximidade
que cometem erros na cadeia de custódia da prova. Mesmo os órgãos
com competência para intervir neste tipo de contexto, embora com
uma maior dotação de recursos, melhor formação e maior consciencia-
lização para a importância da cadeia de custódia, ao longo de uma vida,
habituaram-se a intervir num cenário de crime de determinada forma.
Desse modo, torna-se complexo fazê-los perceber que as práticas a
utilizar nos dias de hoje têm que ser diferentes, sob pena de destruição
de provas que possam ser importantes para o deslindamento de deter-
minado caso. Assim, a resistência à mudança, por parte de alguns
elementos da “velha guarda” poderá também ser considerado um fator
que vem contribuir para que os procedimentos não sejam cumpridos
segundo a letra da lei. É o caso do uso do fato apropriado para inter-
vir na cena de crime que, sendo um instrumento fundamental para
evitar a contaminação, mesmo dentro da PJ tem um uso restrito, jus-
tificado ora porque a situação pode não o exigir: “ (…) são aqueles
indivíduos que vestem um fatinho branco, quando vestem!” (Entre-
vista 10, GNR), ora pela resistência à mudança:

As pessoas não estão muito motivadas para ao fim de 20 anos


de carreira a fazer as coisas sempre da mesma maneira, de repente
agora aparece um indivíduo e diz que tenho que vestir um [fato]
macaco destes. As pessoas resistem a isto, isto é válido para esta
casa como para outras (E7, PJ).

Posicionamento face ao local

Constatando-se a falta de formação e de recursos materiais para uma


intervenção eficaz no local e atendendo às competências que aos first
attenders (UNODOC, 2010) estão destinadas, então seria de esperar que
estando no local se limitassem a salvaguardá-lo. Porém, a análise das
entrevistas não aponta nesse sentido, permitindo aqui fazer uma clara
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 245

distinção entre aquilo que pode ser entendido como uma atitude passiva
ou estática que, não obstante poder deixar a ideia de incompetência tem
o intuito de salvaguardar a prova; e uma atitude dinâmica ou pró-ativa
por parte dos OPC que, ao excederem o âmbito das suas competências
no sentido de apresentar trabalho e tentar auxiliar o órgão competente,
podem estar a enviesar o local do crime (27).
Uma atitude dinâmica é entendida neste contexto como uma ação
que tem como objetivo prestar auxílio, levando a que o agente de patru-
lha acabe, muitas vezes, por fazer mais do que as suas competências lhe
permitem, danificando, ou podendo danificar, os vestígios encontrados,
como relatado por um agente da GNR:

Imagine que há um homicídio. A gente tem que preservar o


corpo. Começa a chover, nós devíamos tapar aquilo, montar ali
qualquer coisa para não cair água. A nós o que nos dizem (…)
seria colocar um jipe da guarda por cima da vítima. Parece um
bocado fora do contexto, mas é-nos sugerido isso. (…) é óbvio
que se for um carro baixo não dá, mas se for um jipe da Guarda,
se tenho um homicídio, prefiro tapar a vítima com o carro, não
calcando a vítima obviamente, portanto, a água já não [lhe] vai cair
em cima. (E11, GNR) (28)

Diferentes perspetivas de gestão da cena de crime

As diferentes abordagens à cena do crime, como já referido, podem


estar associadas às distintas interpretações que cada OPC faz da própria
legislação no que respeita à competência da gestão da cena do crime.
Assim, se as polícias estão hoje mais sensibilizadas para o cenário do
crime, as dificuldades associadas à transferência de competências de umas
polícias para outras à medida que o cenário se vai alterando pode con-
tinuar a trazer dificuldades na resolução dos casos.

(27)
A este propósito cf. Robertson e Roux, 2010.
(28)
A este propósito cf. Palmer e Polwarth, 2011.

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246 Susana Costa

A “passagem de testemunho” de uns para outros em função das


situações concretas pode criar alguns constrangimentos adicionais, nome-
adamente a quem compete a gestão da investigação (29). Esta situação
porém, é potenciada pela própria LOIC que no seu artigo 8.º, sobre a
competência deferida para a investigação criminal, possibilita que, “(…)
desde que tal se afigure, em concreto, mais adequado ao bom andamento
da investigação e, designadamente quando a) Existam provas simples e
evidentes, na aceção do Código do Processo Penal (…) d) A investigação
não exija especial mobilidade de atuação ou meios de elevada especialidade
técnica” (LOIC, artigo 8.º, n.º 1, als. a) e b)). Assim, na ótica da PSP,

[p]or exemplo, tudo o que for assalto à mão armada que não
seja com arma de fogo é da competência da PSP e da GNR. Se for
com arma de fogo passa automaticamente para a competência da
Polícia Judiciária. Tudo o que escape a isso: crime violento, viola-
ções de todo o género é tudo com a Polícia Judiciária. (E7, PSP) (30)

Estas distintas interpretações que cada OPC faz da LOIC e do âmbito


das suas competências, associado ao facto de muitos casos não poderem
ser tipificados no momento inicial leva a que surjam dúvidas quanto à
competência de investigação (31). De facto, “(…) 90% das situações
tratam de dúvidas, não que sejam muito difíceis, mas porque a formação
que têm não lhes permite averiguarem essas questões”. (E8, UPT, PSP)
Estas dúvidas acabam por potenciar conflitos (32) entre os diferentes
OPC permitindo identificar as diferentes conceções que as distintas

(29)
Cf. artigo. 238.º do CPP, Detenção em flagrante delito; artigo 239.º do
CPP, Flagrante delito; artigo 240.º do CPP, Detenção fora de flagrante delito.
(30)
Cf. a este propósito o artigo 7.º da LOIC.
(31)
Note-se que, segundo o artigo 10.º, n.º 2 “(…) os órgãos de polícia crimi-
nal devem comunicar à entidade competente, no mais curto prazo, que não pode
exceder vinte e quatro horas (…)” (artigo 10.º, n.º 2, da LOIC).
(32)
Refere o artigo 15.º, n.º 2, al. a), que compete aos sistemas de coordenação
“[v]elar pelo cumprimento da repartição de competências entre órgãos de polícia cri-
minal de modo a evitar conflitos” (artigo 5.º, n.º 2, al. a), da LOIC).

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 247

entidades fazem da abordagem ao crime. Assim, para a GNR a questão


reside na lei que impõe limites à sua atuação: “Mas a legislação se fosse
feita com mais calma, se fosse pensada na nossa ótica, na ótica de quem
anda na rua, fazíamos as coisas, isso sim!” (E4, GNR) Deste modo, para
estes agentes a lei deveria estar coadunada com o que se passa na reali-
dade. E, sendo que estes agentes andam na rua e mais rapidamente
chegam ao local, deveriam ter mais competências de intervenção,
considerando-se aptos a desenvolver determinadas tarefas de forma
idêntica à PJ. Argumentam ainda que essa transferência de competências
e as burocracias (33) que lhe estão associadas, pode levar a que elementos
de prova importantes se percam, quando se tivessem a possibilidade de
dar seguimento aos primeiros atos, tal talvez não acontecesse.

(…) nós não podemos fazer recolha de provas sem haver um


indício óbvio de que foi aquela pessoa que o fez e a polícia tem que
ter um mandado judicial. Ou seja, há situações em que quanto
mais depressa se atuar, mais depressa as coisas se resolvem. Obri-
gam-nos no tempo a ir, a fazer o processo, vai para tribunal, depois
o juiz é que ordena: “sim senhor, podem fazer as coisas”. E, entre-
tanto, as coisas já desapareceram, já foram (E4, GNR).

Em sentido inverso vai a posição da PJ para quem os outros OPC


devem apenas preservar e nada mais.

O facto de a polícia de proximidade por vezes recolher vestígios


no local, nomeadamente objetos com o argumento que é para pre-
servar está a alterar a cena do crime. Portanto, não deve tocar.
Guardar, preservar… guardar é proteger, mas que permita uma
leitura por quem vai ter que investigar, que permita uma leitura do
todo e do particular (…) (E17, PJ).

(33)
Também Machado e Santos (2012: 155) abordaram esta questão evidenciando
que um dos constrangimentos relacionados com a atividade policial respeita à “(…) a
existência de legislação que faz depender de uma ordem de um juiz a atuação policial
em matéria de recolha de amostra biológica em suspeitos de prática de crime”.

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248 Susana Costa

Atendendo à função que lhes compete, e não sendo da competência


dos outros OPC a investigação, consideram os elementos da PJ que os
meios de que aqueles dispõem são suficientes. Porém, na prática, não
só intervêm como podem corromper o local.

Não pode acontecer como já aconteceu um dia de se chegar ao


local e estarem 12 elementos da PSP presentes, mais as três pessoas
que coabitavam com a vítima, mais dois do INEM. Isto não pode
acontecer no local do crime, porque senão que garantias temos nós
que estamos a processar o local conforme ele está? Este local de
certeza que foi corrompido (E17, PJ).

A realidade encontrada leva a que em inúmeras situações, não ape-


nas os inspetores da PJ quando entram na cena de crime se deparem,
como vimos, com várias pessoas no local, como ainda se verifica que os
outros OPC circulam e manuseiam o local.

(…) o que é certo é que, por regra, [os outros OPC] mexem
no cadáver, entram no local, fazem fotografia de pormenor, o que
significa que estiveram muito próximos dos vestígios, andam pelo
local do crime, não se sabe muito bem como, mas pelo ar não é!
De certeza que introduzem alterações e contaminam o local.
E depois quando concluem que é crime, contactam a Polícia Judi-
ciária para ir ao local (E17, PJ).

De novo, as ambiguidades da própria LOIC e o facto de a priori,


ser difícil tipificar um crime, pode gerar situações de incerteza e, conse-
quentemente, permitir alguns atropelos às competências de cada OPC.
Umas, devido simplesmente a dúvidas quanto ao cenário que presenciam,
outras em que os primeiros elementos a chegar ao local pensam tratar-se
de uma situação, vindo-se a revelar outra:

Mas então, aparece um cadáver e a PSP ou a GNR, a polícia


de proximidade vai ao local, chama os seus investigadores e eles
fazem ali um exame, que eu digo ad hoc, sem grandes regras, sem
grandes cuidados e concluem: isto é um suicídio. Pronto, é um
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 249

suicídio, não comunicam à PJ! O cadáver segue para o necrotério,


é feita autópsia, são feitos exames complementares, e às tantas
chega-se à conclusão que não era suicídio, era homicídio. (…) E a
PJ fica com quê? Fica com um homicídio nas mãos, não houve
inspeção ao local, a inspeção nunca mais se pode fazer, a inspeção
faz-se na hora, não se faz depois (…) (E17, PJ).

Outras, ainda, em que a PSP ou a GNR fazem um entendimento dife-


rente e atuam sem dar conhecimento ao órgão competente. E, saliente-se,
ainda, que dadas as dúvidas geradas pela própria LOIC, casos há em que,
no limite, a PJ nem sequer é chamada, apenas havendo intervenção das
polícias de proximidade, muitas vezes sem que a própria PJ tenha consci-
ência dessa situação. “Então eu estava de prevenção, houve um homicídio
em Sacavém e eu não sou chamado? O que é que se passa? Só tomamos
conta da história pelo ponto de vista do jornal no dia seguinte” (E7, PJ).
Assim, se estamos longe da investigação criminal que se fazia na era
pré-ADN parece, porém, que a introdução de novas tecnologias no
auxílio à investigação criminal, embora sendo já uma realidade no nosso
país, continua a reger-se por certos particularismos (Costa, 2003). Num
contexto de cientifização de trabalho policial pobre e procedimento
frouxo (Palmer e Polwarth, 2011), importa perceber de que forma é que
as especificidades da investigação criminal portuguesa se coadunam com
a Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.

4. A BASE DE DADOS DE PERFIS DE ADN NO TERRENO

Para além de as entrevistas se terem centrado com grande ênfase nos


procedimentos realizados na investigação criminal, seria incontornável
não abordar a questão da lei das bases de dados de perfis de ADN e de
que forma é que os agentes de terreno a percecionam.
Da análise dos extratos dessas mesmas entrevistas encontram-se duas
posições de certo modo conflituantes: quando questionados sobre as
potencialidades da identificação por ADN e recurso às bases de dados o
otimismo é notório, porém, quando confrontados com a atual legislação
em vigor, a descrença instala-se.
Investigação criminal Coimbra Editora ®
250 Susana Costa

4.1. O potencial da identificação por ADN contexto português

Não obstante o reconhecimento de que a tecnologia de identificação


por perfis de ADN “[é] extremamente importante” (E17, PJ), é igualmente
dada particular relevância ao facto de a prova de ADN se constituir como
um meio de prova adicional ao conjunto das outras provas à disposição
da justiça e que possibilita um grau de certeza maior, sendo considerado
que “[o] ADN é mais uma prova (E6, PJ) “(…) mas que (…) pesa muito
mais porque o ADN é uma prova identificativa a 100%” (E6, PJ).
Esta visão é partilhada também pelas polícias de proximidade, para
quem “[n]esse tipo de crimes [homicídios] tenho a certeza absoluta que é
essencial o ADN” (E4, GNR), porém, revelando algumas dúvidas quanto
ao potencial deste novo instrumento para a sua atividade quotidiana e no
auxílio à investigação, tendo em conta a legislação que a enquadra.
Os entrevistados destacam ainda o poder da prova de ADN relati-
vamente às suas antecessoras, ressaltando a cientificidade deste novo meio
de prova que veio alterar a forma como o crime é investigado, tendo a
confissão do autor dado lugar à prova de ADN.

(…) o investigador passou a ter uma ferramenta que facilita


muito o seu trabalho. Eu não preciso que o autor confesse coisíssima
nenhuma, não é? O seu corpo coloca-o nos locais. Ou seja, a prova
rainha deixou de ser a confissão, passou a ser a prova científica. Nós,
investigadores da PJ, temos perfeita consciência disto! Eu preciso é
de colocar o indivíduo no local. E depois os vestígios falam por si,
não é? (E17, PJ).

Outra alteração de monta verificada com a introdução do ADN


respeita à perceção transmitida de infalibilidade da ciência.

Encontrávamos uma ponta de cigarro no local do crime, a ponta


de cigarro era valorizada, mas o que é que nos dava? Só nos dava se
o tipo que a fumou, se o homem que o fumou … se era do grupo
ORH positivo ou ORH negativo. (…) Atualmente essa mesma ponta
de cigarro diz-nos quem foi exatamente (E7, PJ).
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 251

Esta certeza que o ADN veio trazer à investigação é considerada


pelos entrevistados como crucial tendo proporcionado “ (…) uma
revolução completa” comparável apenas à introdução das impressões
digitais (E7, PJ).

Esta revolução de que fala o entrevistado, na verdade, refere-se à


introdução do ADN na investigação criminal mas com a base de dados
de perfis genéticos no horizonte. E aqui coloca-se então a questão de
perceber de que forma é que as práticas policiais se ajustaram à evolu-
ção da ciência ou, melhor, de que forma é que a cientifização do tra-
balho policial com vista à eficácia que, alegadamente, esta tecnologia
ao serviço da justiça acarreta, contribuiu para a melhoria da investigação
criminal. E, a este nível, o discurso de euforismo anteriormente consta-
tado perde ímpeto.

É assim, olhe, eu gostaria muito de lhe dizer que passamos a


ter uma taxa de sucesso muito maior, mas não, mas não. A taxa de
sucesso tem vindo a decrescer não obstante o ADN. Agora quanto
é que ela não desceria mais se não tivéssemos o ADN? (E7, PJ).

Assim, se a introdução do ADN nos procedimentos policiais é


entendido como tendo provocado uma revolução na investigação crimi-
nal que veio conferir mais certeza e economia de tempo e de custos à
investigação, a introdução da base de dados deveria ser considerada como
o culminar de um processo tendente à maximização da eficácia deste
instrumento. No entanto, parece que não é isso que se tem verificado,
como analisaremos de seguida.

4.2. Descrença na eficácia da base de dados genéticos forense


no contexto português

A euforia manifestada em relação às possibilidades trazidas com a


introdução do ADN na investigação criminal parece não ter correspon-
dência quando se passa para uma discussão mais centrada na lei que
regula o funcionamento das bases de dados de perfis de ADN em Por-
Investigação criminal Coimbra Editora ®
252 Susana Costa

tugal, podendo mesmo considerar-se que a relação entre a crença no


potencial do ADN e a sua aplicabilidade na Lei n.º 5/2008 é inversa-
mente proporcional, sendo vários os fatores que contribuem para a
descrença na eficácia da atual legislação.
A posição dos entrevistados revela-se assaz crítica, sendo a tónica colo-
cada na maior parte das vezes, no escasso número de perfis de ADN que
comportam a base de dados e que, consequentemente a tornam ineficaz:

(…) eu não sei porque é que esta base tem sido um sucesso!
Não, não compreendo! Quer dizer, ouço queixas de todos os lados.
Acho que também fizeram mal os cálculos, fizeram mal os cálculos.
Contabilizavam como seis mil loads todos os anos… (E1, PJ).

E, embora as previsões fossem mais otimistas (34), na realidade,


os números reais surgem bastante aquém — “[n]ão chegamos à
centena! E há muita nebulosidade à volta disto! (E3, LPC).

O escasso número de perfis de ADN já inseridos na base, embora sendo


a questão que mais ênfase tem nos discursos, tem múltiplas causas que foram
igualmente identificadas pelos entrevistados, destacando alguns aspetos da
lei que mitigam essa mesma eficácia. Em particular, a questão da: a) recolha
de amostras; b) ordem de introdução; c) o consentimento; d) suspeito vs
condenado; e) permanência dos perfis na base de dados; f) compressão de
direitos; e, por último, g) o ADN como prova rainha.

a) Recolha de amostras

O n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 5/2008 refere-se à recolha de amos-


tras para efeitos de investigação criminal estipulando que esta, em pro-
cesso-crime, “(…) é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficio-
samente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição

(34)
Para uma análise dos países mais otimistas (permissivos) e mais pessimistas
(restritivos) cf. Machado et al., 2008; Machado e Santos, 2012, Parry, 2008.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 253

de arguido (…)”. Este é um dos artigos que mais celeuma tem provocado
junto dos atores que intervêm na investigação criminal, dando a possibi-
lidade ao arguido de pedir a recolha o que, na opinião dos entrevistados,
parece não fazer sentido. Por outro lado, embora se entenda que esta
possa ser uma forma de salvaguardar os interesses do arguido, será difícil
perceber as motivações de um arguido para desejar ver o seu perfil inserido
na base de dados.

Mas alguém acredita que um arguido vai pedir que o seu per-
fil conste de uma base de dados? Que vai ficar ali, que vai estar
disponível para comparar com todos os vestígios que venham a apa-
recer no resto da vida dele? Mas alguém acredita nisto? Só se eu for
ingénuo! (E17, PJ).

b) Ordem de introdução

Coloca-se ainda neste ponto a questão da ordem de introdução.


Sendo que a lei refere expressamente no seu artigo 8.º que a ordem de
introdução cabe “oficiosamente ou a requerimento, por despacho do
juiz”, parece que têm surgido resistências por parte deste ator à introdu-
ção do perfil na base de dados de ADN, ora por desconhecimento da
lei (Machado e Prainsack, 2012) (35), ora por entendimento diferente de
que terá que realizar um despacho para recolha de ADN e outro despa-
cho para introdução do perfil, ora, ainda por questões de ordem finan-
ceira (36) que uma tal decisão implica.

Depois temos ordenada por despacho do juiz … Pois, mas isto


tem custos! Quem é que paga? Os tribunais não têm dinheiro!

(35)
“The fact that judges do typically not order the inclusion of DNA profiles of
individuals receiving prison sentences of three years or more, apparently due to insufficient
information on how the forensic DNA database operates, was reported by the press as the
main cause of this delay” (Machado e Prainsack, 2012: 48).
(36)
Segundo Machado e Prainsack (2012) um teste de ADN para inclusão na
base de dados pode custar entre 204 e 714 euros

Investigação criminal Coimbra Editora ®


254 Susana Costa

O juiz vai ordenar, mas quê? A partir do momento em que condena?


Porque até lá, até trânsito em julgado presume-se a inocência do
indivíduo! Então, pode-se recolher mas não se pode meter na base
de dados (E17, PJ).

c) O consentimento

Outro entrave mencionado pelos entrevistados respeita à necessi-


dade de consentimento livre, expresso e informado por parte do indi-
víduo, argumentando que, tratando-se de um procedimento simples, a
autorização do indivíduo pode constituir-se como mais um obstáculo ao
bom andamento do processo. “(…) a recolha de ADN é muito simples
— faz-se com uma zaragatoa bocal, parece que estamos a escovar os
dentes… É uma coisa natural, mas carece de autorização da pessoa.
Outro empecilho legal!” (E5, PSP).

d) Suspeito vs Condenado

Os entrevistados deste estudo referem-se também à distinção entre


suspeito e arguido como mais uma limitação ao bom funcionamento
da lei. Enquanto em Portugal apenas os indivíduos condenados a
uma pena efetiva superior a três anos podem ser incluídos na base de
dados, a legislação de outros países (como a da Irlanda ou Inglaterra)
contempla a introdução de suspeitos (McCartney, 2004; Kaye, 2006;
Pereira, 2008). Desta forma, esta restrição da lei portuguesa ajuda
igualmente a limitar o escopo de indivíduos inseridos na base de dados
e, consequentemente, limitando o trabalho dos investigadores crimi-
nais. Para além disso, ao não contemplar os suspeitos, de novo,
garantindo a salvaguarda dos direitos de cidadania, segundo os entre-
vistados, acaba por colocar em desigualdade as vítimas, os suspeitos e
os agressores protegendo mais, nesta ótica, os agressores e os suspeitos
do que as vítimas.
Denota-se, igualmente, alguma nebulosidade relativamente aos
critérios de inserção na base de dados, suscitando muitas dúvidas, não
só relativamente à ordem para inserção do perfil, já referida, mas que
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 255

tipo de amostra pode ser inserida, em particular, as amostras-referência


e as amostras-problema.

Então, se eu tiver aqui um vestígio, se tiver aqui um termo de


comparação e se tiver aqui a amostra-problema e tiver já a amostra,
posso comparar diretamente, ou tenho que esperar que a amos-
tra-problema seja ordenada pelo juiz? A amostra-problema, não, a
amostra-referência (37) seja ordenada pelo juiz, tenha o estatuto de
arguido, ou posso fazer comparação imediata? E dizem alguns: Não,
não! Pode fazer comparação direta (…) à base de dados! Ok, não
se aplica, mas o que é que eu faço a um perfil quando o determinei?
Estou logo no mesmo dia a comparar? E se não for no mesmo dia?
Retenho o perfil, mas retenho o perfil em que base ilegal? Na minha
memória? Num apontamento que foi … num papel? No meu
computador? (E3, LPC).

A tecnologia de identificação por perfis de ADN sendo já usada


há alguns anos no nosso país, permitia identificar alguns hits que, agora
com a introdução da Lei n.º 5/2008 veio de novo trazer dúvidas acres-
cidas acerca do que fazer com as amostras problema recolhidas em cena
de crime. Estas, que segundo a lei, não podem ser introduzidas na
base de dados, poderiam vir engrossar o número de perfis inseridos,
no entanto, à luz da atual lei, não é possível dar-lhes um enquadra-
mento legal claro. Apenas com uma alteração legislativa, estes perfis
poderiam vir alimentar a base de dados, permitindo aumentar também
a sua eficácia.

e) Permanência dos perfis na base de dados

Outro entrave assinalado diz respeito ao tempo de permanência dos


perfis na base de dados que, segundo um dos entrevistados, uma vez

(37)
“(…) a amostra utilizada para comparação” (artigo 2.º, al. d), da Lei
n.º 5/2008, de 12 de fevereiro.

Investigação criminal Coimbra Editora ®


256 Susana Costa

mais, deve-se ao excesso de garantismo da lei e que, ao querer limitar o


tempo de permanência desse registo na base de dados, ajuda a restringir
o número de perfis possíveis de aí constar, considerando que “[s]e nós
tivéssemos nas impressões digitais regras dessas, as nossas bases eram
praticamente ineficazes também!”(E3, LPC)

f) Compressão de direitos

Na parte inicial deste capítulo referimos que, não obstante o poten-


cial desta tecnologia ao serviço da justiça, a sua operacionalização implica
riscos, e, em particular, riscos para os cidadãos e para os direitos de
biocidadania (38). Nas palavras de Machado e colegas:

As bases de dados genéticos por perfis de ADN representam o


reforço dos poderes do Estado, em nome do bem colectivo — a segu-
rança e a tranquilidade; mas essa necessidade pode significar a com-
pressão e limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos
(Machado et al., 2011: 11).

De facto, as conquistas efetuadas ao nível das tecnologias, se pro-


porcionam mais segurança, acarretam perda de direitos e, em particular,
da liberdade dos indivíduos. Como refere McCartney (2004: 165),
“[a] provisão de segurança sempre foi negociada com a perda de liberdade
para os cidadãos (…)”. Deste modo, quanto mais se alarga a vigilância
no combate ao crime, através do aumento da base de dados, mais se
restringem os direitos dos cidadãos. E, se uns a entendem como uma
forma de mitigar os direitos e de certa forma, uma violação dos direitos
de cidadania, outros consideram que esse é o preço a pagar para uma
sociedade mais segura. A Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro, tentou, de

(38)
O conceito de biocidadania ou cidadania genética foi proposto por Rose e
Novas (2005) no sentido de descrever os processos pelos quais os indivíduos vão cons-
truindo e reconstruindo a sua identidade em função do avanço do conhecimento
científico e tecnológico associado aos genes e à biotecnologia.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 257

certa forma, encontrar um equilíbrio entre a necessidade de gerar segu-


rança e combater eficazmente o crime, mas não descurando direitos
básicos de cidadania. Porém, ao balançar estes dois elementos, segundo
os entrevistados, acabou por retirar, mais uma vez, potencial de eficácia
à base de dados, sob a capa de “velhos fantasmas” e falácias de que os
marcadores utilizados podem permitir o conhecimento de outras infor-
mações acerca dos indivíduos inseridos (39) (40).

Aquele perfil genético não é uma parte da pessoa, é uma marca


que a pessoa deixou! Eu não tenho que tratar um vestígio de ADN
da mesma maneira como trato uma parte da pessoa! Não tenho
que tratar como se fosse uma peça do corpo da pessoa! Não tenho
que lhe dar uma dignidade pessoal! Ela deixou ali uma marca, que
ficou lá! Ela marcou através da sua biologia, ela marcou a sua pas-
sagem, mas não comprimiu a sua personalidade! (E3, LPC) (41).

g) ADN como prova rainha

Por último, refere claramente o artigo 38.º da Lei n.º 5/2008 que
não pode haver condenação com base numa única prova levando a que,

(39)
O artigo 2.º, al. e), da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro define o marcador
de ADN com “a região específica do genoma que tipicamente contém informações
diferentes em indivíduos diferentes, que segundo os conhecimentos científicos existen-
tes não permite a obtenção de informação de saúde ou de características hereditárias
específicas, abreviadamente ADN não codificante”.
(40)
Machado et al. (2008: 123), consideram que “(…) o crescente processa-
mento e armazenamento de informação de carácter individual tem vindo a despoletar
inquietudes e incertezas, acompanhadas pela expansão sobre o potencial poder infor-
mativo do ADN e por receios de que tais dados possam ser usados de modo indesejá-
vel, tanto por agentes estatais como privados”. A propósito de outros usos que podem
ser feitos cf. McCartney, 2004; Dahl e Saetnan, 2009; Williams et al., 2004, Palmer e
Polwarth, 2011.
(41)
A este propósito cf. Oliveira, 1999 e a distinção realizada entre partes
íntimas (sangue ou sémen) e não íntimas (como os cabelos, unhas ou saliva) do corpo
humano. Cf. também Kaye, 2006.

Investigação criminal Coimbra Editora ®


258 Susana Costa

em inúmeras situações em que os vestígios são escassos, mas havendo


um que poderia levar à condenação de um indivíduo, acabem por não
permitir uma condenação. Consequentemente, embora podendo haver
vestígios recolhidos no local do crime, no suspeito ou na vítima que,
eventualmente, poderiam vir auxiliar na descoberta da verdade, aten-
dendo aos condicionalismos e cautelas da lei, acabam por ter uma uti-
lidade, em muitas situações, nula.

É que nós temos o raio de um artigo 38.º, se não estou em


erro, dessa base de dados que vai deitar tudo por terra! Ou seja,
nós até aqui, tínhamos um crime, por exemplo, um abuso sexual.
A senhora não era capaz de reconhecer o fulano. Mas nós tínhamos
uma suspeita relativamente a um fulano. Fomos fazer comparação
de teste de ADN com aquele fulano. Ele ia dentro, era condenado,
sem apelo nem agravo (E7, PJ).

Assim, a introdução da Lei n.º 5/2008 em vez de ter possibilitado


uma maior abertura do sistema e um acesso mais fácil da identificação
dos autores de crimes, ao não permitir que a prova de ADN se constitua
como prova única num processo acaba, mais uma vez, por limitar o
trabalho de investigação criminal.

4.3. Um balanço preliminar da lei em vigor

Desta forma, concluem os entrevistados que esta base de dados é


marcada pela resistência e medo de quem a desenhou, implementou e
legislou sendo que “[o]s medos levaram a melhor!” (E2, PJ)

Eu acho que o legislador português continua a viver com o


fantasma da velha senhora e então tudo serve para … repare que se
falou da base de dados … a base de dados de perfis de ADN. Isto
vai ser utilizado para determinar quem tem doenças infeciosas, quem
tem tendências homossexuais, quem tem não sei o quê! Quem é
filho de preto, quem é filho de branco! Isto chega a raiar o ridículo,
não é? (E17, PJ).
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 259

Não obstante as críticas feitas a esta lei nenhum dos entrevistados


propõe outro modelo. Reconhecem, aliás, que não existe um modelo
ideal, embora conscientes de que o modelo encontrado para Portugal
tem sido inoperante. E, independentemente de haver modelos mais
expansivos ou mais restritivos (Machado et al., 2008; Machado e San-
tos, 2012; Parry, 2008), consideram que o modelo adotado em Portu-
gal fracassou, sobretudo por não ter permitido atingir a eficácia a que
se propôs.

A conclusão natural a que chego também é que não existe um


modelo único de importação. Não vale a pena dizer que vamos fazer
como os ingleses, ou como os franceses ou como os espanhóis! Quer
dizer, cada um encontrou o seu próprio modelo. Ehhh… Mas todos
se organizaram para uma perspetiva de eficácia. (E3, LPC).

Esta perspetiva da eficácia parece, de facto, ter fracassado em Portu-


gal, argumentando um dos entrevistados que, em parte, essa responsabi-
lidade se deve aos políticos e à falta de vontade da Comissão Nacional
de Proteção de Dados Pessoais (CNPDP) que, não sendo apologista da
sua implementação, criou muitos obstáculos. “A culpa disto é dos polí-
ticos, da Comissão de Proteção de Dados, é de quem fez a Lei” (E7, PJ).
E enfatiza também as cedências que foram necessárias para se conseguir
ter uma legislação desta natureza, em que “(…) para conseguirem essa
base de dados foi uma cedência brutal face àquilo que queríamos inicial-
mente” (E7, PJ).
São precisamente as cautelas criadas pela própria lei que, ao limita-
rem o tipo de crimes e de perfis que podem ser inseridos na base, de
novo, limitam a sua eficácia. Assim, os entrevistados questionam se uma
base de dados universal não permitiria maior eficácia e de que forma é
que uma tal decisão poderia limitar os direitos dos cidadãos.

Porque é que nós temos que ter uma Comissão de Proteção de


Dados com mais poderes ao nível da Europa? Somos assim um país
assim tão respeitador dos Direitos Humanos? Claro que somos,
obviamente que somos. Mas temos que ter, de facto, temos que ser
Investigação criminal Coimbra Editora ®
260 Susana Costa

nós o país com uma Comissão de Proteção de Dados que tem mais
poderes que em todo o lado a nível europeu? (E7, PJ).

Para além disso, sustentam existir há muito em Portugal uma base de


dados de impressões digitais e que ninguém questiona o seu uso e com a
qual todos convivemos pacificamente há várias décadas (Frois, 2012). “Para
não irmos ao exemplo do DNA, mas um outro que é muito mais antigo
— todos temos as nossas impressões digitais no Bilhete de Identidade,
todos” (E2, PJ). Sendo idêntico argumento usado também pela PSP.

Uma recolha de uma impressão digital é a mesma coisa! (…)


Os bebés tiram o cartão de cidadão já em bebés! E vão deixar lá a
sua identificação lofoscópica, como também deixam a sua identifi-
cação biológica quando lhe é feito o registo. Isto é uma falsa ques-
tão! (E8, UPT, PSP).

Por que não, quando as pessoas nascem, ser logo coaxados na


base de ADN? Porquê? Porque é que havemos de estar só a com-
parar com suspeitos? Todos somos suspeitos! (E5, PSP).

E, se em relação às impressões digitais tradicionais a polícia pode


aceder sem reservas, já o mesmo não se passa em relação às impressões
genéticas, já que à polícia está interdito o acesso à informação constante
nos dados inseridos na base de dados.
Atendendo aos baixos níveis de eficácia e o número insatisfatório
de perfis inseridos na base de dados de ADN em Portugal até ao
momento relativamente às pretensões iniciais, é sustentado pelos entre-
vistados a necessidade imperiosa de fazer um balanço e analisar com
seriedade o que falhou, permitindo propor alterações à lei vigente.

Não é para se andar aqui dois, três anos a olhar para as coisas!
Um grupo de reflexão que em dois, três meses possa produzir um
documento de análise, seja ele feito por pessoas do Ministério da
Justiça, seja ele feito por pessoas … académicos, seja ele feito por
magistrados, seja ele feito por quem entenderem! Mas em que se
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 261

tente fazer uma análise muito objetiva do ponto, do estado a que


chegámos e de quais sejam os estrangulamentos, para se poder propor
um upgrade, para se poder propor uma retoma do modelo e não tem
com isto que se cobrar a quem fez este modelo! (E3, LPC).

E se uns apresentam uma visão mais moderada, propondo uma


reflexão interdisciplinar com vista a alterar a lei, outros atores, porém,
apresentam uma visão mais expansionista, argumentando pela necessidade
de alargar o âmbito da lei a todos os suspeitos e tipos de amostras.

Portanto, para mim é uma coisa simples, é assim: há o suspeito,


há alguém que é arguido, há indícios que seja autor, faz-se uma
recolha de ADN e fica na base de dados. Logicamente que estava
lá, depois a identidade dele. Alguém que tivesse cometido um delito
se tivesse deixado um vestígio de ADN naquele local, em detrimento
da base de dados, e se batesse com alguma das pessoas que já estavam
lá identificadas, então era identificada (E6, PJ).

No entanto, e independentemente de, futuramente, esta lei poder vir


a ser alterada no sentido de alargar o leque de situações a serem incluídas
na base de dados, o sentimento geral no conjunto dos indivíduos entre-
vistados é de manifesto desagrado com um instrumento de grande poten-
cial, mas muito limitado na prática, e, consequentemente, sem utilidade.

(…) perante a recolha de um vestígio, nós temos … vai ter que


ser comparado com alguma coisa, não é? Com um dador. Se a
investigação criminal nunca chega a um suspeito, aquele vestígio não
serve de nada. Se, à imagem do que acontece noutros países, poucos,
pelos vistos, mas existe, houvesse uma base de dados … suficiente-
mente … alimentada … seria … tipo CSI! Mete-se o perfil no
computador e ele diz-nos: o indivíduo é este! (E17, PJ).

Desta forma, sustentam, ao ser cauteloso e garantista na formulação


encontrada para a lei em vigor, o legislador acabou por limitar de tal forma
as situações passíveis de constar numa base de dados que a tornam obsoleta.
Investigação criminal Coimbra Editora ®
262 Susana Costa

“Mas se apertarmos tanto a malha do filtro daqui a pouco não passa nada!
Passam aqueles que voluntariamente, ou melhor, voluntariamente não, a
pedido… pretendem que o seu perfil conste da base de dados” (E17, PJ).
A situação de auto-esvaziamento a que o próprio legislador condu-
ziu esta base de dados, garante assim, a permanência de perfis de volun-
tários, carecendo de medidas adicionais que permitam repensar formas
de a alimentar e, consequentemente, dar-lhe utilidade, preenchendo de
forma efetiva os fins a que se propôs. Desta forma, “(…) se nós tivermos
capacidade para ‘encher’ essa base de dados do ADN, obviamente que
no futuro, ajudará com certeza a resolver algumas situações” (E9, UPT,
PSP). E esse engrossar de perfis da base de dados passa, simultaneamente,
por lá poder inserir perfis de voluntários, mas igualmente de arguidos,
de suspeitos e de vestígios de cenas de crime. Só desta forma, segundo
os entrevistados, as comparações serão possíveis e, produzir resultados
positivos que permitam que a ciência auxilie a justiça.

(…) é tão importante ter uma base de dados dos autores, dos
que mataram, dos que violaram, como ter uma base de dados dos
elementos que foram recolhidos na cena do crime. Até para com-
parar! Por exemplo, temos este perfil, recolhido nesta cena do crime.
Não sabemos a quem pertence! Não é? Desenhámos o perfil. Está
desenhado, está lá arquivado. Há outro crime — eh pá, descobre-se
o novo perfil … (E1, PJ).

É pois notório o pessimismo evidenciado pelos operadores da inves-


tigação criminal em contexto de entrevista quanto à operacionalidade da
base de dados em funcionamento em Portugal e a forma como pode
auxiliar a investigação criminal na busca da verdade. Esta descrença
leva-os mesmo a considerar que a atual lei não passará de “(…) um bonito
projeto …” (E2, PJ), ou “à boa moda portuguesa!” (E2, PJ), uma base
de dados “muito debilzinha” (E7, PJ) que, ao invés de ter vindo dar um
contributo para a cientifização do trabalho policial acabou por ser “uma
experiência” e uma “opção política”. Os preconceitos que a nortearam,
não permitiu, segundo os entrevistados, o aprofundamento da sua eficá-
cia, “[n]inguém quer[endo] assumir que o rei vai nu!” (E3, LPC).
Coimbra Editora ® Parte III
Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 263

5. CONCLUSÃO

Defendi em 2003 que a adoção de novas tecnologias de identifica-


ção por perfis genéticos em Portugal “(…)está sujeita a uma imensidade
de problemas de ordem técnica e prática que a podem tornar controversa
e fonte de abusos e de erros judiciais, podendo pôr em causa princípios
fundamentais da cidadania e da vida democrática” (Costa, 2003: 19).
Alguns desses problemas, então identificados, referiam-se a contingências
ligadas à recolha, acomodação e circulação de material entre a cena do
crime e o laboratório. Passada uma década, verifica-se que, não obstante
os desenvolvimentos verificados nesta matéria, onde se inclui uma maior
consciencialização da necessidade de preservação da cadeia de custódia
e o melhor apetrechamento dos atores para a recolha de vestígios em
cena de crime, continuamos a assistir a um desfasamento entre a globa-
lização da técnica e os localismos associados à sua concretização.
Num mundo em que as tecnologias de identificação genética avan-
çam a um ritmo galopante e estas servem de forma crescente para uma
sociedade vigiada, parece que em Portugal a introdução de uma base de
dados de perfis genéticos em 2008 andou de forma dessincronizada com
um elemento crucial para a sua credibilidade e implementação no seio
da justiça criminal. A preservação da cadeia de custódia, cuja integridade
se encontra permanentemente ameaçada pelas práticas rotineiras dos
atores da investigação criminal e os constrangimentos que norteiam a
sua atividade quotidiana resultante, em grande medida, do choque entre
diferentes culturas policiais, modos de saber e práticas distintas que,
juntamente com a escassez de recursos humanos e materiais, contribuem
de forma negativa para a cientifização do trabalho policial e o rigor que
lhe está associado (Machado e Costa, 2012).
Não basta, portanto, dotar o sistema judicial de ferramentas que,
em teoria, garantem maior cientificidade quer à atividade policial, quer
à justiça, se o acionamento desses instrumentos esbarra na fase inicial da
investigação com procedimentos incorretos por deficiente formação de
quem primeiro entra no terreno.
Em última análise, o não cumprimento rigoroso deste pressuposto
fundamental da legislação que enquadra as bases de dados em Portugal
Investigação criminal Coimbra Editora ®
264 Susana Costa

(o artigo 18.º, n.º 4, da Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro), acaba por


colocar a descoberto os potenciais riscos que esta tecnologia acarreta para
os direitos de cidadania. E, se a base de dados tem como intuito vigiar
e controlar os cidadãos, permitindo selecionar de entre eles os potencial-
mente perigosos, trazendo assim mais segurança, parece que em Portugal
as bases de dados não estão a cumprir eficazmente esse desígnio, pelo
excesso de garantismo que a própria lei encerra. Ao restringir o leque
de potenciais suspeitos acaba por poucos poder incluir. Por outro lado,
se pensarmos no seu alargamento, como preconizado por muitos, talvez
não estejam reunidas as condições necessárias para garantir que, com os
procedimentos reais (42) da polícia, qualquer cidadão que se veja refém
da base de dados, esteja devidamente catalogado.
Resulta assim desta análise o claro descontentamento dos opera-
dores policiais quanto a este Lei n.º 5/2008 que não permite alcançar
a eficácia. No entanto, este descontentamento não parece transparecer
nas práticas quotidianas da investigação criminal, passando à margem
dos discursos os próprios constrangimentos da investigação criminal
em Portugal e que está a montante da possibilidade de introdução na
base de dados.
Tendo em consideração os constrangimentos identificados à inves-
tigação criminal em Portugal e as suas especificidades seria de esperar
que os problemas associados à preservação da prova, fundamental para
manter a cadeia de custódia intacta, pudessem ter sido devidamente
acautelados numa fase prévia à introdução da Lei n.º 5/2008, sob pena
de, por essa via, não haver perfis de ADN que assegurem a cadeia de
custódia da prova. Por outro lado, ao ter-se avançado desta forma e, até
ao momento se verificar que não se está a dar resposta cabal às boas
práticas inerentes à cadeia de custódia da prova, em última análise,
poderemos estar a colocar os cidadãos duplamente reféns da tecnologia:
pela via da atuação policial em contexto de investigação criminal e pela
via da Lei n.º 5/2008.

(42)
A este propósito cf. Machado e Santos (2012) em que abordam a polícia real
por contraposição à polícia ficcional, transmitida pelas séries televisivas do género CSI.

Coimbra Editora ® Parte III


Os constrangimentos práticos da investigação criminal em Portugal… 265

A expansão da base de dados, apenas fará sentido se primeiramente


houver um trabalho prévio de munir os atores da investigação criminal
de instrumentos e conhecimentos que permitam atuar com rigor em
cenário do crime.

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Investigação criminal Coimbra Editora ®


PARTE IV

TECNOLOGIAS NO PRESENTE,
PASSADO E FUTURO
NOVAS FERRAMENTAS DA INVESTIGAÇÃO
CRIMINAL — POTENCIALIDADES E LIMITES
DA PREVISÃO DE CARATERÍSTICAS FÍSICAS
ATRAVÉS DA ANÁLISE DE ADN

HELENA COSTA
LUÍS MIRANDA

1. INTRODUÇÃO

Quando uma amostra cujo dador é desconhecido (amostra problema)


dá entrada num serviço de genética forense, o seu perfil de identificação
é determinado e posteriormente comparado com amostras referência (1)
e/ou perfis que constam numa base de dados de ADN nacional ou inter-
nacional. Esta comparação tem como objetivo identificar o dador da
amostra problema. No entanto, muitos são os casos em que a identifi-
cação não é estabelecida por não haver correspondência entre o perfil da
amostra problema e qualquer perfil das amostras referência ou perfis da
base de dados. Nesses casos, outras informações sobre o dador da amos-
tra problema, nomeadamente, informações sobre o seu aspeto físico
(fenótipo), podem ser importantes para a sua identificação.
Muitas caraterísticas físicas (por exemplo, cor dos olhos, do cabelo
e da pele, altura e traços faciais) têm por base fatores genéticos que,
quando conhecidos, podem ser utilizados para prever essas mesmas
caraterísticas a partir da análise de ADN. Para além disso, existindo

(1)
Amostras referência são amostras cujo dador é conhecido.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


272 Helena Costa / Luís Miranda

um padrão geográfico de variação (como no tom de pele), a previsão


pode ser realizada de forma indireta com base na informação relativa à
origem biogeográfica do indivíduo (ancestralidade biogeográfica). Esta
informação foi utilizada pela primeira vez em 2002 no Louisiana, Esta-
dos Unidos da América, na investigação de um caso de violações e
homicídios em série (Frudakis, 2008). Contrariando as alegações de
testemunhas oculares que afirmavam ter visto sair de um dos locais do
crime um indivíduo caucasiano, o perfil de ancestralidade biogeográfica
determinado com base na análise de amostras do local de crime (DNA-
WitnessTM 1.0 da DNAPrint Genomics) determinou que o dador das
amostras apresentava caraterísticas de ancestralidade 85% africana sub-
sariana e 15% nativo-americana. Com base nestes dados, foi apontada
a probabilidade de que o suspeito teria pele escura, o que levou a uma
total mudança de rumo da investigação. Um mês depois da aplicação
do teste de ancestralidade e após a reconsideração de suspeitos que
haviam sido excluídos por não corresponderem às caraterísticas físicas
apontadas pelas testemunhas, foi capturado o perpetrador das violações
e homicídios.
Também no Canadá foi noticiada em 2005 a utilização do método
indireto de previsão, à data disponibilizado pela ADNPrint Genomics
(Abraham, 2005). Em Espanha a determinação da origem biogeográfica
de indivíduos alegadamente envolvidos nos atentados de 11 de março
de 2004 ajudou a restringir o número de suspeitos a considerar na
investigação bem como a sua eventual afiliação a organizações terroristas
que poderiam estar envolvidas no atentado (Phillips et al., 2009).
Os casos apresentados revelam a utilidade dos métodos de previsão
de caraterísticas fenotípicas na análise de amostras de local de crime ou
até de corpos em avançado estado de decomposição, permitindo a pou-
pança de tempo e outros recursos importantes para as investigações.
É, no entanto, importante salientar que a previsão de caraterísticas físi-
cas do dador de uma amostra a partir da análise do ADN, ao contrário
da determinação e comparação de perfis de identificação, não tem por
objetivo identificar inequivocamente o dador da amostra, mas sim limi-
tar as possibilidades a considerar no âmbito de uma identificação. Outra
diferença significativa entre os métodos de previsão de caraterísticas
Coimbra Editora ® Parte IV
Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 273

físicas e os métodos de determinação e comparação de perfis de identi-


ficação diz respeito ao tipo de marcadores genéticos utilizados, como
adiante será explicado.

2. MARCADORES POLIMÓRFICOS DE ADN

O genoma humano contém a informação sobre como o organismo


deve crescer, configurar-se e funcionar, informação essa que se encontra
armazenada no ADN sob a forma de um código — o código genético.
Este código está “escrito” em quatro letras (A, G, C e T) cuja ordem (ou
sequência) determina, em parte, a diferença entre ser alto ou baixo, ter
olhos castanhos, azuis ou verdes, ter ou não predisposição para desen-
volver cancro, Alzheimer, etc. Estas informações encontram-se em locais
específicos do genoma (designados de loci; singular — locus). Existem
também loci que apresentam uma enorme variação entre indivíduos mas
que não estão relacionados com qualquer característica física, patológica
ou comportamental, sendo utilizados na distinção individual ou identi-
ficação. Assim, quando se pretende estudar determinadas caraterísticas
com base genética ou identificar indivíduos com base em amostras bio-
lógicas, recorre-se à análise de marcadores genéticos.
Os marcadores genéticos são segmentos de ADN cuja sequência e
posição no genoma é conhecida. Tem sido proposta a distinção entre
marcadores distintivos e marcadores preditivos. Os marcadores distintivos
são usados na determinação de perfis de ADN, sendo que esta informa-
ção pode ser armazenada em bases de dados nacionais, enquanto os
marcadores preditivos são usados na previsão de caraterísticas físicas
(Kayser e Schneider, 2009).
Tanto os marcadores distintivos como os preditivos apresentam uma
caraterística comum: são polimórficos, ou seja, no local do genoma (locus)
onde se situa o marcador, observam-se diferentes configurações da sequên-
cia de ADN (diferentes alelos) em diferentes indivíduos. As diferentes
configurações observáveis ao nível da sequência de ADN variam entre
uma simples substituição de um único nucleótido na sequência até alte-
rações de maiores dimensões que envolvem longos fragmentos de ADN,
pelo que existem vários tipos de polimorfismos de ADN.
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
274 Helena Costa / Luís Miranda

No âmbito da análise de ADN em contexto forense destacam-se


dois tipos de polimorfismos: os STRs (Short Tandem Repeats — curtas
repetições em tandem) e os SNPs (Single Nucleotide Polymorphisms —
polimorfismos de um único nucleótido) que se encontram esquemati-
zados na Figura 1.

Figura 1 — Esquema ilustrativo dos polimorfismos STR e SNP. Os STRs (em cima
na figura) são polimorfismos nos quais se observa um número variável de repetições.
Neste caso, o STR TPOX apresenta dois alelos com 7 e 8 repetições da sequência
AATG. Nos SNPs (em baixo na figura) o polimorfismo reside na alteração de um
único nucleótido na sequência de ADN

Os STRs, também designados microssatélites, consistem em sequên-


cias em que se observa um padrão (de um a seis nucleótidos) que se repete
um número variável. Assim, a título de exemplo, no STR TPOX (esque-
matizado na Figura 1), usado na identificação forense, o tetranucleótido
(sequência de 4 nucleótidos) (AATG)n é repetido “n” vezes (com “n” a
variar entre 5 e 16) (2).

(2)
De acordo com os dados disponíveis no sítio “ALFRED — The ALlele-
FREquancy Database”, que disponibiliza dados de frequências genéticas em populações
humanas e é apoiado pela Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos (http://
alfred.med.yale.edu/ consultado a 09.01.2013).

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 275

Entre as principais caraterísticas dos STRs destacam-se o seu elevado


poder informativo como marcadores genéticos (uma vez que apresentam
vários alelos), a possibilidade de serem testados (ou genotipados (3)) por
métodos baseados em PCR (técnica laboratorial que permite aumentar
de forma exponencial o número de cópias de um segmento genético de
interesse) e a facilidade de partilha de informação sobre os marcadores.
Estas caraterísticas fazem dos STRs os marcadores de eleição na identi-
ficação forense. Os mais recentes kits multiplex (painéis com vários
marcadores) usados na identificação forense permitem a obtenção de
perfis com probabilidades de correspondência aleatória de 1,36x1028
(cerca de um em dez mil quatriliões de indivíduos (4)). O desenvolvi-
mento desses painéis em conjunto com os avanços técnicos, nomeada-
mente ao nível das tecnologias de análise de genomas (em particular a
eletroforese capilar), tornou possível o desenvolvimento de bases de dados
de ADN nacionais que constituem importantes ferramentas na investi-
gação criminal.
Por seu turno, os SNPs correspondem a polimorfismos nos quais se
observa a alteração de um único nucleótido na sequência de ADN
(Figura 1). Trata-se do tipo de polimorfismos mais frequente no genoma
humano representando cerca de 85% das variações ao nível da sequência
de ADN, encontrando-se distribuídos por todo o genoma.
A maioria dos SNPs apresenta apenas dois alelos (são bialélicos), o
que os torna menos informativos do que os STRs, que tipicamente
apresentam entre 5 e 20 alelos, pelo que a substituição dos STRs pelos
SNPs ao nível da identificação implica a análise de um conjunto mais
alargado de marcadores para que o mesmo nível de distinção seja atin-
gido. Na prática, para se obter o mesmo nível de distinção obtido com
13 STRs são necessários cerca de 50 SNPs, em ambos os casos, loci
especialmente selecionados para o efeito (Budowle e Daal, 2008). Esta

(3)
O processo de genotipagem corresponde à determinação do(s) alelo(s)
presente(s) numa amostra, num determinado locus ou em vários loci.
(4)
Dados relativos ao PowerPlex® Fusion System da Promega disponíveis em:
http://www.promega.com/products/pm/genetic-identity/powerplex-fusion/ consultados
a 21.01.2013.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


276 Helena Costa / Luís Miranda

limitação tem vindo a ser ultrapassada com o desenvolvimento de novas


tecnologias de genotipagem que permitem a análise de milhares de SNPs
em cada teste; para além disso, a reduzida dimensão dos fragmentos de
ADN que é necessário amplificar por PCR na genotipagem de SNPs
torna-os vantajosos na análise de amostras degradadas o que constitui
uma vantagem importante no campo forense.
Sendo frequentes em regiões codificantes (5) ou próximo das mesmas,
e uma vez que estas regiões influenciam de forma direta as caraterísticas
fenotípicas, os SNPs assumem um papel relevante na sua previsão. Em
contraste, os STRs apresentam uma relativamente baixa prevalência no
genoma e apenas alguns destes polimorfismos se encontram associados a
efeitos funcionais, como, por exemplo, na doença de Huntington (Orr e
Zoghbi, 2007).
A menor taxa de mutação associada aos SNPs (comparativamente
com os STRs) contribui para efeitos de subestruturação da população.
Este efeito é fruto da influência das forças evolutivas (mutação, deriva
genética, mistura e seleção natural) que faz com que em determina-
dos loci se observem diferentes frequências alélicas em diferentes
grupos de seres humanos. Em termos práticos, um conjunto de 10
SNPs permite obter uma informação sobre a ancestralidade biogeo-
gráfica de um indivíduo semelhante à obtida recorrendo à análise de
377 STRs (Lao et al., 2006). Assim, apesar de ambos os tipos de
polimorfismo (SNPs e STRs) poderem ser usados para determinar a
ancestralidade biogeográfica de um indivíduo, os SNPs são os poli-
morfismos de eleição.
Em suma pode então dizer-se que, apesar de ambos os tipos de
polimorfismos poderem ser usados como marcadores distintivos e pre-
ditivos, os STRs são mais vantajosos do que os SNPs no campo da
identificação mas que no campo da previsão os SNPs são os polimorfis-
mos de eleição.

(5)
Regiões codificantes são segmentos do genoma que contêm as instruções
para sequências de aminoácidos que compõem as proteínas. Este tema será desen-
volvido adiante.

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 277

Recapitulando, marcadores distintivos e marcadores preditivos


distinguem-se ao nível dos polimorfismos analisados (tipo de variação
ao nível da sequência de ADN) e nível de variação com que se rela-
cionam: com a variação interindividual, interpopulacional, ou feno-
típica (caraterísticas físicas), como se encontra esquematizado na Tabela
1. Por outras palavras, analisando marcadores distintivos identificamos
indivíduos, pois estes marcadores apresentam um elevado grau de
variação intrapopulacional ou interindividual, enquanto com marca-
dores preditivos pelo método indireto prevemos a população biogeo-
gráfica de origem e pelo método direto prevemos caraterísticas físicas
(ou fenótipos).

Tabela 1
Caraterísticas dos marcadores distintivos
e dos marcadores preditivos

Marcadores preditivos
Marcadores Marcadores
Variação distintivos
Método indireto Método direto

Tipo de polimorfismo
STR SNP
mais utilizado
Tipo de variação
Interindividual Interpopulacional Fenotípica
observado

3. PREVISÃO DO ASPETO FÍSICO A PARTIR DA ANÁLISE DE ADN

Como foi anteriormente referido, a previsão de fenótipos é útil


quando o dador de uma amostra não pode ser identificado pela corres-
pondência de perfis de identificação e pode ser realizada de duas formas
— indireta (através da determinação da ancestralidade biogeográfica) e
direta (através do estudo de marcadores genéticos diretamente relacio-
nados com as caraterísticas fenotípicas). Os métodos de previsão per-
mitem obter informações acerca da aparência do dador da amostra que
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
278 Helena Costa / Luís Miranda

se pretende identificar, mas não a sua identidade, funcionando como


uma espécie de testemunha ocular.

3.1. Previsão pelo método direto

O método direto de previsão de caraterísticas fenotípicas baseia-se na


determinação da probabilidade de que num indivíduo se observe uma
determinada caraterística com base na análise do seu ADN. A aplicação
deste método é apenas possível quando são conhecidas as bases genéticas
da caraterística em causa, o que muitas vezes não se verifica relativamente
aos traços físicos. A maioria das caraterísticas físicas como a altura, os
traços faciais e a cor dos olhos, do cabelo e da pele, são determinadas por
vários genes o que torna complexa a tarefa de prever estas caraterísticas pelo
método direto. No entanto, nos últimos anos têm vindo a ser criadas bases
de dados com informações relativas a milhares de marcadores em diversas
populações (6), o que, em paralelo com o número crescente de estudos de
associação que envolvem todo o genoma (GWAS) (7), têm avolumado o
conhecimento relativo às determinantes genéticas dos traços complexos.

3.2. Género ou sexo

No âmbito forense, a dedução do género ou sexo é geralmente rea-


lizada através da análise do gene da amelogenina que está presente em
ambos os cromossomas sexuais. Na cópia deste gene presente no cro-
mossoma X observa-se a ocorrência de uma deleção de 6 pares de bases (8),

(6)
Exemplos: Human Genome Diversity Cell Line Panel (HGDP, CEPH), the allele
frequency database (ALFRED), Database of single nucleotide polymorphisms of the National
Centre for Biotechnology Information (NCBI dbSNP), HapMap e 1000 Genomes.
(7)
Os estudos de associação que envolvem todo o genoma (GWAS — do
inglês Genome-Wide Association Studies) são utilizados para identificar os fatores
genéticos que influenciam as caraterísticas fenotípicas, sejam elas morfológicas, bio-
químicas ou patológicas.
(8)
Ocorrência de uma deleção de 6 pares de bases — nesta região observam-se
menos 6 pares de bases do que na região correspondente do cromossoma Y.

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 279

pelo que a deteção dessa diferença permite prever o sexo do dador da


amostra (Figura 2).

Figura 2 — Determinação do sexo pelo marcador da amelogenina. Através da amplificação


por PCR obtêm-se fragmentos de tamanho diferente nos cromossomas X e Y, consoante a
presença ou ausência de deleção (à esquerda na figura). Em eletroforese capilar (9) (à direita na
figura), os fragmentos de diferente dimensão originam 2 picos (em cima — X, Y) enquanto os
fragmentos de igual dimensão (ausência de deleção) originam um só pico (em baixo — X, X)

O marcador descrito está incluído na maioria dos testes de identi-


ficação forense, não estando, no entanto, livre de erro. Existem outras
metodologias que permitem identificar o sexo do dador da amostra,
como, por exemplo, uma abordagem recentemente proposta (Keating
et al., 2012) que integra SNPs da região não recombinante do cromos-
soma Y (NRY) e do cromossoma X.

3.3. Traços relacionados com a pigmentação

Tratando-se de um conjunto de caraterísticas com forte componente


hereditária, os traços relacionados com a pigmentação tornaram-se um
alvo preferencial de pesquisa genética ao longo das últimas décadas.
O tom de pele, a cor dos olhos e a cor do cabelo partilham o facto de
serem traços influenciados principalmente pela quantidade e tipo de
melanina presente nessas mesmas estruturas.

(9)
Eletroforese capilar — método de análise que permite a separação dos
fragmentos de DNA consoante o seu tamanho.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


280 Helena Costa / Luís Miranda

A investigação sobre as bases genéticas da pigmentação humana


permitiu já identificar uma série de genes com influência nestas caracte-
rísticas (destacando-se o HERC2, OCA2, e o MC1R). Trata-se, porém,
de um conjunto de características nas quais se observa uma variação
gradual e não discreta, o que levanta problemas no que toca à sua classi-
ficação (fenotipagem). Por exemplo, a cor dos olhos varia entre o azul e
o castanho escuro/preto, mas entre os tons extremos observa-se um grande
conjunto de tons que variam de forma gradual, sendo difíceis de classi-
ficar e distinguir. Estas dificuldades são também observadas ao nível da
classificação do tom da pele e da cor do cabelo. Neste sentido, a opção
por classificar estas características de forma mais objetiva (métodos quan-
titativos de análise de fotografia, por exemplo) é defendida por alguns
investigadores (Edwards et al., 2012; Frudakis, 2008; Liu et al., 2010).
Por outro lado, outros (Branicki et al., 2011; Mengel-From et al., 2010)
defendem que, para além de não existirem evidências de que os métodos
de avaliação quantitativa sejam melhores do que os métodos baseados em
auto e heterodescrição, a aplicação da previsão da cor dos olhos na prática
forense implica a classificação dessa caraterística com base na interpreta-
ção humana das cores e não em medições objetivas. Há ainda quem
defenda o recurso a um especialista (no caso, um dermatologista) como
método mais fiável do que a autodescrição (Pośpiech et al., 2012).
Importa ainda referir em relação às caraterísticas relacionadas com
a pigmentação que estas sofrem uma grande influência de fatores ambien-
tais e da idade. A cor do cabelo, por exemplo, pode mudar ao longo da
vida, sendo que indivíduos loiros durante a infância vêm a sua cor de
cabelo escurecer na adolescência devido à ação das hormonas sexuais,
assim como o cabelo grisalho ou branco são típicos de idades avançadas
devido à drástica redução da melanina, quer seja resultante da menor
capacidade de produção de melanina pelos melanócitos (10), ou devido à
perda desses mesmos melanócitos. A cor do cabelo pode também ser
alterada pelo uso de tintas de coloração. Também a cor dos olhos sofre

(10)
Os melanócitos são células produtoras de melanina que se localizam ano
nível da pele, bolbo capilar e íris (no olho).

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 281

alterações, sobretudo ao nível da saturação (Liu et al., 2010), podendo


até ser mascarada de forma voluntária (por exemplo, o uso de lentes de
contacto coloridas) ou até alterada por cirurgia laser (Strōma Medical
Corporation, 2012). Também o nível de pigmentação constitutiva (cor
natural da pele) bem como a capacidade de pigmentação facultativa
(bronzeado) variam ao longo da vida do indivíduo.
Apesar das limitações referidas, encontram-se já disponíveis con-
juntos (ou painéis) de marcadores genéticos para a previsão da cor dos
olhos e cabelo com níveis de precisão de previsão bastante elevados.

3.4. Cor dos olhos

A cor dos olhos é uma caraterística que apresenta maior variação na


população europeia do que em qualquer outra população. A ocorrência
de olhos azuis, por exemplo, encontra-se segundo Frudakis (2008) quase
exclusivamente limitada a indivíduos com elevada proporção de ances-
tralidade europeia. Assim, o primeiro painel de previsão da cor dos olhos
surgiu em 2004 (RETINOMETM) mas era exclusivamente aplicável a
indivíduos com uma proporção de ancestralidade europeia superior a
80% (DNAPrint Genomics, 2004).
Recentemente surgiu o sistema IrisPlex que inclui um painel de mar-
cadores de previsão da cor dos olhos de aplicação forense patenteado
(Kayser et al., 2011). Foram realizados vários estudos aplicando este sistema
de previsão a amostras de indivíduos holandeses (Liu et al., 2009), indiví-
duos europeus (Walsh et al., 2012) e indivíduos de diversas populações
(Walsh et al., 2011), observando-se, em todos estes trabalhos, taxas de
precisão da previsão a rondar os 90% para os tons extremos azul e castanho
e cerca de 70% para tons intermédios. A precisão da previsão pode subir
para valores acima de 90% caso a classificação dos olhos (fenotipagem)
inclua apenas duas categorias — claro e escuro (Pośpiech et al., 2012).

3.5. Cor do cabelo

A cor do cabelo é outro traço relacionado com a pigmentação que


apresenta uma variação contínua entre preto e o loiro, passando pelo ruivo.
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
282 Helena Costa / Luís Miranda

À semelhança do que se verifica no caso da cor dos olhos, também


a variação na cor do cabelo é maior na população europeia. Exemplo
disso é a ocorrência de indivíduos ruivos ser praticamente restrita à
Europa. O fenótipo ruivo está também associado à presença de sardas
e pele clara e risco aumentado de cancro de pele (Palmer et al., 2000;
Sulem et al., 2008).
A associação entre o fenótipo cabelo ruivo e o gene MC1R (mela-
nocortin 1 receptor) foi já demonstrada em vários estudos, tendo este
conhecimento sido transposto para a prática forense em 2001 (Grimes
et al., 2001).
A adição de marcadores de outros genes em estudos mais recentes
veio permitir prever outros fenótipos do cabelo com taxas de precisão
superiores a 80% (Branicki et al., 2011). Também o grupo de investiga-
dores que desenvolveu o sistema IrisPlex publicou recentemente um tra-
balho (Walsh et al., 2013) sobre um novo sistema de previsão — o sistema
HIrisPlex — que permite prever a cor dos olhos e do cabelo com base na
análise de 24 marcadores genéticos. Os valores de precisão de previsão da
cor do cabelo com a aplicação deste sistema variam entre 69,5 e 87,5%.

3.6. Cor da pele

Na previsão da cor da pele através da análise de marcadores genéti-


cos destaca-se o trabalho de Spichenok et al. (2011), que reporta uma
taxa de erro de 2% para a previsão deste traço fenotípico. No entanto,
o facto de a previsão ser realizada por exclusão (não-branco e não-negro)
e não ter sido possível em 28% dos casos de amostras testadas devido
ao tipo de abordagem utilizado é indicativo de sérias limitações desta
metodologia.
A possibilidade de prever a cor dos olhos, cabelo e pele de um
indivíduo a partir de uma amostra de ADN apresenta potencialmente
uma enorme utilidade em casos forenses. As limitações referidas, nome-
adamente o facto de não existir um método de fenotipagem de traços
relacionados com a pigmentação universalmente aceite (o que pode
afetar a reprodutibilidade dos estudos e a interpretação dos resultados),
a influência dos fatores ambientais e idade, não permitem ainda atingir
Coimbra Editora ® Parte IV
Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 283

níveis de precisão de previsão muito elevados, como seria de desejar


(exceto para a cor dos olhos). Neste sentido, a previsão dos traços de
pigmentação pode ser complementada com a previsão da idade, o que
poderá ajudar a melhorar os resultados da previsão desses mesmos traços
fenotípicos. Por outro lado, por exemplo a precisão na previsão dos tons
intermédios poderá ser melhorada num futuro próximo dados os avan-
ços nos estudos sobre interações epistáticas — fenómenos nos quais a
ação de um gene é influenciada pela ação de outros genes (Branicki et al.,
2009; Pośpiech et al., 2011; Ruiz et al., 2013).

3.7. Altura

A altura ou estatura do adulto é uma caraterística fenotípica que


apresenta uma forte componente hereditária, variando entre 80 a 90%.
Apesar disso, os resultados dos diversos estudos publicados relativos às
bases genéticas deste fenótipo têm demonstrado resultados muito limitados.
A utilização de um número crescente de marcadores na previsão do
fenótipo altura não melhora significativamente a precisão da sua deter-
minação (Tabela 2). Assim, é esperado que nos próximos anos iniciati-
vas como a criação do consórcio Genetic Investigation of Anthropometric
Traits (GIANT) venham a revelar mais informações sobre esta caraterística.

Tabela 2

Referência N.º de marcadores R2


Weedon et al. (2008) 20 3%
Lettre (2009) 47 5%
Lango Allen et al. (2010) 180 10%
Yang et al. (2010) 294 831 45%

Dados relativos ao número de marcadores utilizados e percentagem da variação feno-


típica explicada pela variação dos marcadores genéticos analisados (R2) em estudos
relativos às bases genéticas da altura. Por exemplo, os resultados do trabalho de Wee-
don et al. (2008) sugerem que a análise de 20 marcadores relacionados com a altura
explicam apenas 3% da variação observada

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


284 Helena Costa / Luís Miranda

3.8. Traços faciais

É possível perceber, através de simples observação, que indivíduos


da mesma família (em particular os gémeos homozigóticos), apresen-
tam mais semelhanças, no que toca a traços faciais, do que indivíduos
sem parentesco.
Algumas caraterísticas faciais são tidas como monogénicas e constam
na base de dados Online Mendelian Inheritance in Man® (OMIM): pre-
sença ou ausência de covinhas na face (OMIM 126100), presença ou
ausência de covinha no queixo (OMIM 119000), linha frontal do cabelo
com bico saliente na parte central da testa (“pico da viúva”) ou linear
(OMIM 194000), presença ou ausência de pelos nas orelhas (OMIM
139500), lóbulo da orelha preso ou solto (OMIM 128900).
Relativamente a outros traços faciais (Figura 3), os poucos estudos
publicados são bastante recentes e apresentam resultados muito limitados:
foram identificados dois genes (GREM1 e CCDC26) como estando
associados à variação da largura bizigomática (largura da face) e largura
do nariz (Boehringer et al., 2011) e foi também reportada a associação
entre um marcador do gene PAX3 e a posição do násio, ou ponto nasal
(Paternoster et al., 2012). Um outro estudo reportou a associação entre
5 genes (PRDM16, PAX3, TP63, C5orf50 e COL17A1) e a determi-
nação dos traços faciais (Liu et al., 2012).

Figura 3

Representação esquemática do násio (1), distância bizigomática (2) e largura do nariz (3)

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 285

O limitado conhecimento relativo às bases genéticas dos traços faciais


deve-se, à semelhança do que se verifica em relação à altura, ao facto de
estes serem determinados por um grande conjunto de genes, a maioria
dos quais ainda não identificados.

3.9. Idade

O envelhecimento é um processo natural que leva à ocorrência de


alterações ao nível molecular, salientando-se três fenómenos ao nível do
ADN: a acumulação de deleções no mtADN (ADN mitocondrial), a
diminuição do tamanho dos telómeros (11) e a diminuição do número
de moléculas de ADN circular nas células T (12).
A acumulação de danos no ADN em particular a ocorrência de deleções
ao nível do mtADN ocorre de forma aleatória em células únicas que, à
medida que se replicam, promovem a expansão clonal dessas mesmas deleções.
Por ter já sido alvo de extensa pesquisa em vários tecidos diferentes,
o método de quantificação da deleção 4.977 bp ou “deleção comum” é
tido como método potencialmente útil na previsão da idade de um indi-
víduo. No entanto, este método apresenta algumas limitações importan-
tes, nomeadamente no que toca à exigência técnica e de amostragem, à
grande heterogeneidade de resultados obtidos em diferentes tecidos, ao
desconhecimento do processo que leva à formação das deleções e das
variáveis influentes no processo e, por último, a margem de erro signifi-
cativa de cerca de 40 anos (Meissner e Ritz-Timme, 2010).
Outro processo decorrente do envelhecimento é a diminuição do
comprimento dos telómeros. Ao longo do tempo, o comprimento des-
tas estruturas diminui como consequência do problema da finalização

(11)
Os telómeros são estruturas constituídas por milhares de repetições em
tandem (TTAGGG/CCCTAA)n associadas a proteínas, localizadas nas extremidades
dos cromossomas. São essenciais à sobrevivência e capacidade replicativa das células
somáticas com capacidade de divisão.
(12)
As células T ou linfócitos T correspondem a um tipo de glóbulos brancos
que sofrem maturação ao nível do timo e têm um papel preponderante na resposta
imunitária mediada por células. Os linfócitos T apresentam na sua superfície recetores
específicos — recetores das células C ou TCR (do inglês T-cell receptor).

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


286 Helena Costa / Luís Miranda

da replicação pela ADN polimerase, processamento dos telómeros a cada


ciclo celular e exposição a stress oxidativo. Por outro lado as células
possuem mecanismos de reparação que permitem adicionar sequências
repetitivas na extremidade dos telómeros pela enzima telomerase, meca-
nismos esses que se vão tornando menos eficazes ao longo do tempo.
As desvantagens da previsão da idade pelo comprimento dos teló-
meros residem na elevada exigência técnica, na grande influência dos
processos da degradação nos resultados obtidos e na heterogeneidade
observada nos comprimentos de telómeros, quer a nível tecidular, quer
a nível dos cromossomas dentro da mesma célula (Meissner e Ritz-Timme
2010). Estas limitações traduzem-se na existência de casos de indivíduos
com 40-50 anos de diferença que apresentaram comprimentos de teló-
meros semelhantes (Takasaki et al., 2003; Tsuji et al., 2002).
Um grupo de especialistas norte-americano considera, no entanto,
que a avaliação do tamanho dos telómeros constitui a abordagem mais
promissora no que toca à previsão da idade, sendo sugerido que a ava-
liação de um único cromossoma como método alternativo à avaliação
do tamanho médio dos telómeros (método que tem sido utilizado nesta
abordagem) poderá melhorar os resultados (Saeed et al., 2012).
O último fenómeno referido de alteração genética decorrente do
envelhecimento (diminuição do número de moléculas de ADN circular
nas células T) tem por base o rearranjo de genes que codificam os rece-
tores dos linfócitos T (T-cell receptors — TCR) como consequência da
diminuição do tamanho do timo ao longo da vida de um indivíduo.
O número de círculos de excisão de TCR de sinal repartido
(sjTRECs (13)), moléculas de ADN circular presentes nas células T, varia de
forma inversamente proporcional à idade, refletindo o processo de involução
do timo, pelo que a quantificação dessas mesmas moléculas permite prever
a idade de um dador de uma amostra que contenha essas mesmas células
(amostras de sangue, por exemplo). Este método não é muito exigente sob
o ponto de vista técnico (Lang et al., 2011; Zubakov et al., 2010), não requer
grandes quantidades de ADN (a quantidade mínima necessária é 5 ng) e

(13)
sjTRECs — do inglês signal joint T-cell receptor rearrangement excision circles.

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 287

apresenta bons resultados em amostras com algum grau de degradação (Ou


et al., 2012; Zubakov et al. 2010). Existem, no entanto, vários fatores (sexo,
estado de saúde do sistema imunitário, incluindo doenças infeciosas como
a SIDA, leucemia, ou ancestralidade biogeográfica) cuja influência nos
resultados não foi ainda devidamente apurada, tendo sido apontado um
desvio padrão deste método de ± 9 anos (Zubakov et al., 2010) o que,
apesar de representar um intervalo menor do que os reportados para os
métodos anteriormente referidos, é ainda um valor considerável.
Outras abordagens têm sido sugeridas relativamente à previsão da
idade com base na análise de material biológico que vão além do estudo
da sequência e estrutura do ADN, nomeadamente a análise das alterações
da expressão génica (Lu et al., 2004) e dos padrões de metilação
(Bocklandt et al., 2011; Koch e Wagner, 2011; Teschendorff et al., 2010),
abordagens que se espera virem a permitir o desenvolvimento de novos
e mais precisos sistemas de previsão da idade.

4. PREVISÃO PELO MÉTODO INDIRETO

Algumas caraterísticas físicas apresentam um padrão geográfico de


variação que está diretamente relacionado com a adaptação da espécie aos
vários ambientes aos quais os seres humanos estiveram sujeitos. A adap-
tação a novos ambientes fez com que determinadas caraterísticas conferis-
sem maior adaptabilidade a determinados indivíduos, facto que levou a
que esses indivíduos sobrevivessem e transmitissem os seus genes à des-
cendência em detrimento de outros (seleção natural). Desta forma, essas
caraterísticas tornaram-se mais frequentes em determinadas populações.
São exemplos de caraterísticas físicas com variabilidade fenotípica
observada em função da localização geográfica da população a altura, o
índice de massa corporal, a pilosidade excessiva, a calvície, a dobra epi-
cântica dos olhos, a arquitetura craniofacial, dimensões do crânio e dos
dentes e as caraterísticas associadas à pigmentação como a cor dos olhos,
cabelo e pele (Frudakis, 2008; Kayser e Schneider, 2009).
Essas alterações também se fizeram sentir a nível molecular obser-
vando-se variações ao nível das frequências alélicas em determinados loci
entre as diversas populações, como se encontra esquematizado na Figura 4.
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
288 Helena Costa / Luís Miranda

Estes loci correspondem aos marcadores informativos de ancestralidade


(AIMs (14)), que, como foi anteriormente referido, são os marcadores
genéticos usados na determinação da ancestralidade biogeográfica.

Figura 4

Distribuição das frequências alélicas em africanos (AFR), europeus (EUR) e asiáticos


orientais (EAS) das populações do 1000 Genomes e HapMap para o SNP rs3827760;
pode dizer-se que a frequência do alelo G é 0% na população africana, inferior a 5% na
população europeia e cerca de 90% na população asiática oriental, o que significa que
uma amostra que apresente este alelo terá maior probabilidade de pertencer a um indiví-
duo com ancestralidade biogeográfica asiática (pelo menos parcial). A determinação da
ancestralidade biogeográfica é sempre realizada com base em vários marcadores distribu-
ídos pelo genoma possibilitando, inclusivamente, a determinação de proporções de ances-
tralidade de diferentes populações. Figura adaptada de Fondevila et al. (2013).

A determinação da ancestralidade biogeográfica de um indivíduo


sob a forma de percentagem de pertença aos grupos considerados (gru-
pos continentais ou intracontinentais) pode fornecer algumas informa-
ções limitadas e de forma indireta sobre algumas caraterísticas físicas do
dador de uma amostra biológica, o que pode representar uma pista
importante para a investigação quando a aplicação de métodos de iden-
tificação não produz resultados.
A localização genómica dos AIMs é importante na fase de interpre-
tação de resultados, uma vez que marcadores autossómicos e marcadores
de linhagem (NRY e mtADN) produzem diferentes tipos de informação.

(14)
AIMs (do inglês Ancestry Informative Markers) são marcadores informativos
de ancestralidade. Estes marcadores exibem diferenças ao nível das frequências alélicas
em diferentes populações.

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 289

Como foi referido atrás, um exemplo prático de aplicação deste


método foi a análise de amostras biológicas no âmbito da investigação do
atentado de 11 de Março de 2004 em Madrid. Neste caso, o objetivo
da análise era determinar se os vestígios biológicos encontrados, por
exemplo, numa mala com explosivos que não foram detonados, seriam
de indivíduos com origem europeia ou do norte de África. O recurso a
AIMs da NRY e mtADN poderia não ser conclusivo por duas razões: em
primeiro lugar, Europa e norte de África são regiões geográficas muito
próximas nas quais se observa a partilha de algumas linhagens resultante
do fluxo genético (transferência de genes entre populações) ocorrido no
passado nestas regiões. Em segundo lugar, mtADN e NRY correspondem
a duas regiões do genoma humano que são transmitidas de forma inde-
pendente e não sofrem recombinação, ou seja, o mtADN é transmitido
de mãe para filho e filha sem alterações assim como a NRY é transmitida
de pai para filho sem alterações. Isto significa que estas regiões incorpo-
ram apenas uma fração da informação sobre os antepassados do dador
da amostra. Assim, a análise de AIMs distribuídos pelos autossomas
(neste caso em concreto um painel com 34 marcadores, o 34-plex), regi-
ões do genoma que sofrem recombinação (15), permite obter informações
relativas à origem biogeográfica do dador da amostra mais rigorosas e
abrangentes, por refletirem (potencialmente) a origem de todos os ante-
passados do indivíduo e não apenas os da linhagem materna ou paterna.
Foram já publicados e/ou comercializados para uso forense vários
painéis de AIMs autossómicos que permitem prever a ancestralidade
biogeográfica (sob a forma de proporções dos grupos considerados) a
nível continental (Frudakis, 2008; Halder et al., 2008; Lao et al., 2006;
Pereira et al., 2012; Phillips et al., 2007) e intracontinental (Bauchet

(15)
A recombinação genética corresponde à troca aleatória de material genético
durante a meiose. A meiose corresponde a um fenómeno de divisão celular que ocorre
na produção de espermatozoides e óvulos que permite a obtenção de células com metade
dos cromossomas da célula inicial; esta redução faz com que a célula resultante da
fecundação (fusão do óvulo e espermatozoide) apresente uma quantidade de informação
genética igual à das células dos progenitores.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


290 Helena Costa / Luís Miranda

et al., 2007; Novembre et al., 2008) recorrendo a um número variável


de marcadores (entre 34 e 197 146).
A análise de AIMs permite prever a ancestralidade biogeográfica do
dador de uma amostra, mas a questão que se coloca é: como converter
essa informação em dados sobre a aparência?
Eis uma questão que não reúne consenso: alguns especialistas em
bioética e direito defendem que o processo envolve a inferência de um
perfil racial ou étnico a partir dos dados genéticos e que é através desse
perfil que é realizada a previsão das caraterísticas físicas. Nesse sentido,
consideram a metodologia “frágil e falível” por se basear na complexa
relação entre ancestralidade, raça e morfologia (Ossorio, 2006).
Por seu turno, os especialistas forenses consideram desnecessária a
elaboração de um perfil racial. Frudakis (2008) defende que “o objetivo
primário da medição da ancestralidade genómica não é classificar pessoas
por raça e etnia, mas sim, através da estimativa da mistura, obter infor-
mações acerca da provável aparência física” (16). O autor sugere, no entanto,
o recurso a uma base de dados alargada de informações relativas às amos-
tras e respetivos dadores, (incluindo, por exemplo, perfis genéticos; dados
biométricos como a altura e medidas cefalométricas; cor dos olhos, cor
do cabelo e cor da pele e até local de nascimento; língua materna, religião
e autodescrição de raça e etnia (Frudakis, 2008: 443-470). Esta aborda-
gem permite identificar a existência ou não de associações estatisticamente
significativas entre os diversos dados colhidos e, consequentemente, cons-
titui uma abordagem mais objetiva do que a que tem por base os estere-
ótipos que povoam o senso comum.
A principal limitação do método indireto de previsão prende-se com
a existência de variação intrapopulacional, ou seja, indivíduos da mesma
população podem apresentar diferentes caraterísticas físicas. No entanto
este método é apontado como a melhor abordagem para a previsão de
caraterísticas que apresentam variação interpopulacional e para as quais

(16)
“(…) the primary purpose of measuring genomic ancestry is not to classify
people by race and ethnicity, but rather, through an appreciation of admixture, to learn
something about likely physical appearance” (Frudakis, 2008: 616).

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 291

o método direto de previsão não é ainda aplicável, quer porque não


foram ainda identificados fatores genéticos em número suficiente, quer
por se tratar de caraterísticas determinadas por um número muito elevado
de genes, como a morfologia capilar, índice de massa corporal e traços
faciais, por exemplo (Frudakis, 2008).
Há ainda que referir outra modalidade de painéis de marcadores
genéticos, que consiste na análise combinada de AIMs e marcadores de
previsão direta (traços relacionados com a pigmentação) (Bulbul et al.,
2011; Castel e Piper, 2011; Daniel et al., 2008).
Recentemente foi apresentada uma ferramenta “all-in-one”, o Iden-
titas v1 Forensic Chip (Keating et al., 2012), que permite a previsão de
ancestralidade biogeográfica, sexo, cor dos olhos e cabelo e a determi-
nação de parentesco a partir da análise de 201173 marcadores. Esta
ferramenta faz uso de uma metodologia de genotipagem recentemente
desenvolvida (chip de DNA) que permite genotipar uma grande quan-
tidade de SNPs (na ordem das centenas de milhares) a partir de uma
reduzida quantidade de ADN inicial (menos de 2ng) e com alguma
degradação. Esta tecnologia implica, no entanto, a aquisição de equi-
pamento específico que não é indicado para a genotipagem da STRs o
que constitui uma desvantagem. Comparativamente, um método cor-
rentemente usado na genotipagem de SNPs (a minissequenciação) requer
os mesmos equipamentos usados na genotipagem de STRs (termocicla-
dor para a amplificação dos fragmentos de interesse e sequenciador
automático para a posterior deteção e identificação do alelos presentes
na amostra), equipamentos esses que são já utilizados há vários anos nos
laboratórios de genética forense por todo o mundo. O método de
minissequenciação permite, no entanto, a análise de um número bastante
inferior de marcadores em simultâneo (recomenda-se até 10 SNPs) e
quantidade mínima inicial de ADN ligeiramente superior (3ng) compa-
rativamente ao método de genotipagem em chip (Edenberg e Liu, 2009).
Os resultados do trabalho de Keating et al. (2012) apontam para a
possibilidade de prever o sexo do dador de uma amostra com elevada
taxa de precisão, bem como a correspondência direta (identificação),
parentesco entre primeiro e terceiro graus e previsão da ancestralidade
biogeográfica (entre 88 e 100%). Outras caraterísticas apresentam resul-
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
292 Helena Costa / Luís Miranda

tados mais limitados, tendo sido reportadas taxas de precisão mais baixas
para a previsão da cor dos olhos (70-85%) e da cor do cabelo (48-72%),
facto que deverá mudar nas próximas versões da ferramenta com a adi-
ção de novos marcadores.

5. QUESTÕES ÉTICAS E LEGAIS RELACIONADAS COM A APLI-


CAÇÃO DOS MARCADORES DE PREVISÃO

Pese embora o seu potencial de fornecer pistas importantes, a apli-


cação dos métodos de previsão levanta questões relevantes de ordem ética
e legal que têm sido discutidas por especialistas de diversas áreas. Segue-se
a revisão dos principais pontos de discussão e argumentos.

5.1. Direito de privacidade

Um dos assuntos em discussão diz respeito à eventual violação do


direito de privacidade. Neste sentido, especialistas das ciências forenses
(Kayser e Schneider, 2009) argumentam que as caraterísticas físicas como
a cor dos olhos, cabelo e pele, traços faciais, altura entre outros, são
visíveis para todos pelo que a sua previsão pelo estudo de marcadores
genéticos não constitui uma violação do direito de privacidade. Por
outro lado os mesmo autores admitem que em relação à ancestralidade
biogeográfica a questão assume contornos diferentes, visto que esta
caraterística nem sempre é totalmente percetível, ou seja, nem todas as
pessoas saberão a sua origem biogeográfica. Assim, os autores admitem
que a determinação desta caraterística com base na análise de ADN
poderá constituir uma ameaça ao direito que o indivíduo tem de não
saber a sua origem biogeográfica.

5.2. Discriminação étnica e/ou racial

Outra questão em debate corresponde à possibilidade de que per-


fis de ancestralidade biogeográfica que reflitam afiliação étnica sirvam
de desculpa para que todos os indivíduos que correspondam ao perfil
e que habitem em regiões próximas ao local de crime sejam considera-
Coimbra Editora ® Parte IV
Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 293

dos suspeitos e obrigados a ceder amostra de ADN, facto que compro-


mete a presunção de inocência e direito à integridade física e privacidade
(M’charek et al., 2012; Quan, 2010). Quanto a este assunto os especia-
listas forenses defendem que a análise dos dados fornecidos de previsão
deve ser cuidadosa e que todo o processo de implementação dos métodos
de previsão deve ser acompanhado de avaliações de preconceitos e este-
reótipos que possam existir no seio das forças policiais e eventuais corre-
ções através de campanhas educacionais (Frudakis, 2008; Kayser e Sch-
neider, 2009).

5.3. Informação genética vs testemunhas oculares

Um dos assuntos que gera maior discórdia corresponde ao signifi-


cado da informação obtida através dos métodos de previsão em compa-
ração com os dados fornecidos por testemunhas. Nesta matéria, espe-
cialistas das ciências sociais atribuem às testemunhas oculares um papel
de destaque na investigação, afirmando que, em muitos casos, a solução
de um crime pode depender das testemunhas (M’charek et al., 2012).
Por seu turno, os especialistas forenses consideram que os métodos de
previsão com base na análise de marcadores genéticos poderão vir a
substituir as testemunhas oculares por assentar em dados objetivos (pro-
babilidades) sendo, por isso, uma abordagem neutra e, dependendo da
caraterística em análise, esta abordagem permite obter informações tão
ou mais fiáveis do que as fornecidas pelas testemunhas (Frudakis, 2008;
Kayser e Schneider, 2009). De facto, segundo um trabalho publicado
em 2010 nos Estados Unidos da América relativo a 250 exonerações de
indivíduos condenados com base em análises de ADN (Innocence Pro-
ject, 2010), 76% desses indivíduos foram condenados com base, pelo
menos em parte, em identificações erradas de testemunhas oculares,
sendo que 53% dessas identificações erradas foram relativas a indivíduos
de outras raças (na maioria dos casos uma pessoa branca identificando
uma pessoa negra).
Por outro lado, os especialistas das ciências sociais defendem
que, ao contrário do que se observa quando um indivíduo corres-
ponde à descrição de uma testemunha tornando-se por isso suspeito,
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
294 Helena Costa / Luís Miranda

na previsão de caraterísticas físicas com base no ADN (em particu-


lar pelo método indireto), a “incriminação é conseguida através da
genética populacional em vez de pistas relacionadas com o crime” (17).
Neste sentido poder-se-á dizer que uma identificação será também
uma forma de incriminação através da genética populacional tendo
em conta que o cálculo das probabilidades de identidade se baseiam
em dados populacionais?
Ainda segundo os autores esta forma de incriminação (através da
genética populacional) poderá não ser muito benéfica tendo em conta
o facto de as “tecnologias de ADN serem vistas por muitas partes
interessadas como ‘máquinas da verdade’ infalíveis (…), e o conheci-
mento das ciências forenses entre as forças policiais ser de um modo
geral escasso” (18). Um dos factos relativos à utilização de marcadores
preditivos que foi já referido e várias vezes enfatizado é a margem de
erro associada aos mesmos. Ao contrário do que se observa na iden-
tificação, os métodos de previsão de caraterísticas físicas possuem
limitações ao nível da precisão que residem no ainda limitado conhe-
cimento sobre as bases genéticas da aparência (no caso do método
direto) e na variabilidade intrapopulacional (no caso do método indi-
reto). No entanto, e como foi também enfatizado, pretende-se com a
sua aplicação limitar o número de suspeitos a considerar no âmbito
das investigações e não identificar o suspeito — para isso recorre-se
aos marcadores distintivos.

5.4. Relevância da informação obtida

Quando se prevê pela análise de ADN que o dador de uma amostra


de local de crime apresenta caraterísticas físicas ou a sua ancestralidade
biogeográfica é comum à maioria da população, esta informação é muito

(17)
“(…) the case of ADN-based EVC is different as incrimination here is achieved
through population genetics instead of crime-related leads and clues” (M’chareck et al., 2012).
(18)
“(…) DNA-technologies are seen by many stake holders as infallible ‘truth
machines’ (…), and knowledge of forensic science in the police force is generally low”
(M’chareck et al., 2012).

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 295

menos útil do que quando apresenta caraterísticas mais invulgares ou


tem origem biogeográfica correspondente a um grupo minoritário (Osso-
rio, 2006). Por exemplo, se um crime ocorre em Portugal e se prevê,
através da análise de uma amostra colhida no local de crime, que o
indivíduo é do sexo masculino, de origem europeia e tem olhos castanhos
e cabelo escuro, esta informação servirá no máximo para excluir as
mulheres e mais alguns suspeitos visto que a maioria da população por-
tuguesa corresponde a este perfil; no entanto, se a análise indicar que o
indivíduo tem ancestralidade asiática oriental, as atenções dos investiga-
dores voltar-se-ão para indivíduos de origem asiática que habitem na
zona, o que poderá ser entendido como uma forma de discriminação
racial. Mas, e se for uma testemunha a dizer que viu um asiático a fugir
do local do crime, não será considerado o seu testemunho? O caso do
assassino em série do Louisiana (referido na Introdução) é um exemplo
prático de que a análise de ADN pode ser muito útil na restrição de
suspeitos a considerar numa investigação, constituindo um método que
apesar de apresentar limitações, é objetivo.

5.5. Limites de análise

É também levantada a possibilidade de serem testadas regiões do


genoma associadas a propensões genéticas ao desenvolvimento de per-
turbações mentais ou patologias físicas, traços de personalidade ou
capacidades cognitivas, ou seja, teme-se que o espectro de análise seja
alargado de forma descontrolada.
Neste ponto é importante referir que as amostras forenses (em parti-
cular as amostras de locais de crime) apresentam, geralmente caraterísticas
bastante particulares. Devido ao facto de estarem expostas às condições
ambientais, estas amostras apresentam normalmente degradação e reduzida
quantidade de ADN, o que faz com que muitas vezes, seja até difícil obter
o perfil de identificação. Isto significa que, quanto mais não seja por estas
limitações (já para não falar de outras como o tempo e os recursos mate-
riais e humanos), as análises realizadas têm sempre por objetivo obter
informação relevante para o caso. No entanto, saber que o dador de uma
amostra de local de crime é diabético, por exemplo, poderá ser interessante
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
296 Helena Costa / Luís Miranda

para os investigadores, visto que isso poderá significar que compra insulina
e que as pessoas que o conhecem sabem disso, o que pode ajudar a limitar
o número de suspeitos a considerar. Mas será isto considerado como uma
forma de discriminação eticamente aceitável?
A informação relativa a patologias pode, no entanto, ser obtida
através da análise de alguns marcadores, inclusivamente marcadores de
identificação, de forma inadvertida. Determinadas patologias cromos-
sómicas como a trissomia 21 (síndrome de Down) e trissomias dos
cromossomas sexuais podem ser detetadas com a análise de marcadores
situados nesses mesmos cromossomas (D21S11, no cromossoma 21 e
Amelogenina, nos cromossomas sexuais) (Semikhodskii, 2007).
Ainda na linha daquilo que poderá ser entendido como uso abusivo
ou distorcido da informação obtida através da análise de DNA, um projeto
do governo do Reino Unido, o Human Provenance Pilot Project (Projeto
Piloto de Proveniência Humana), veio gerar controvérsia por recorrer a
dados genéticos (ancestralidade biogeográfica) em conjunto com a análise
de isótopos como prova da origem de refugiados em busca de asilo (Aspi-
nall e Chinouya, 2011; Verma, 2010). O programa foi suspenso menos
de um mês após o seu início devido à enorme controvérsia gerada em torno
da validade dos métodos utilizados, de acordo com a página web Human
Provenance Pilot Project: Resource Page (19).
Outro aspeto importante em relação aos limites de análise impostos
no estudo de ADN no âmbito forense, é a questão da análise de marcado-
res de regiões codificantes e não-codificantes. As regiões codificantes cor-
respondem a segmentos de ADN que codificam proteínas correspondendo
a aproximadamente 2% do genoma. Os restantes 98% correspondem a
ADN não-codificante, que, apesar de não codificar proteínas, poderá, em
alguns casos, ter um papel funcional, por exemplo, ao nível da regulação
da expressão génica, promovendo, inibindo, aumentando ou diminuindo
a produção de proteínas a partir das regiões codificantes. As porções codi-

(19)
Human Provenance Pilot Project: Resource Page: http://www.genomicsnetwork.
ac.uk/cesagen/events/pastevents/genomicsandidentitypoliticsworkstream/title,22319,en.
html, consultada a 23.05.2013.

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 297

ficantes não estão, todavia, concentradas e distintamente separadas das


porções não-codificantes. Assim, ao nível da estrutura dos genes (20)
observa-se a coexistência de segmentos codificantes (exões) e segmentos
não-codificantes (intrões e região promotora), de forma intercalada.
Por se localizarem fisicamente próximos uns dos outros, alguns
marcadores são tendencialmente transmitidos em bloco, o que significa
que à presença de um alelo num determinado locus está associada a
presença de um alelo específico noutro locus próximo — fenómeno
designado de desequilíbrio de ligação. Isto significa que, considerando
dois marcadores, um numa região não-codificante (A) e o outro numa
região codificante próxima (B) e estes se encontrarem em desequilíbrio
de ligação, analisando o marcador A acedemos à informação do marca-
dor B. Neste sentido, a regra de “testar apenas ADN de regiões não-codi-
ficantes” pode, em muitos casos, não ter significado prático.

6. LEGISLAÇÃO E BASE DE DADOS PORTUGUESA

A Holanda é o único país no mundo no qual é, em termos legais,


explicitamente permitida e regulamentada a prática da fenotipagem de
ADN em contexto forense. Em Portugal não são realizadas análises de
ADN no contexto de previsão de caraterísticas fenotípicas, segundo as
informações obtidas junto do Instituto Nacional de Medicina Legal e
Ciências Forenses, I. P. (INMLCF, I. P.) e Laboratório da Polícia Cientí-
fica da Polícia Judiciária (LPC). Fontes do LPC revelam ainda que a não
utilização destes métodos de análise se deve, por um lado, a limitações
de meios técnicos e, por outro, a restrições legais.
De facto, não existe legislação específica que proíba, permita ou
regulamente a utilização de marcadores de previsão de fenótipo e ances-
tralidade com aplicação forense a nível nacional. A legislação portuguesa
regulamenta apenas, no âmbito da análise forense de ADN, a utilização

(20)
O conceito simplificado de gene corresponde a um segmento de ADN que
contém a informação necessária para a produção de uma proteína que, por sua vez, determina
ou influencia um ou mais fenótipos.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


298 Helena Costa / Luís Miranda

de marcadores genéticos de identificação civil e criminal a incluir na


base de dados nacional (Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, e Portaria
n.º 270/2009, de 17 de Março).
A base de dados de ADN nacional foi criada em 2008, sendo à data
de 21/11/2012 composta por 939 perfis classificados em 6 ficheiros
diferentes. Tendo em conta que, sendo a população portuguesa consti-
tuída por pouco mais de dez milhões e meio de pessoas (21), apenas cerca
de 0,009% da população nacional está representada na base de dados.
O facto de a base de dados ter iniciado o seu funcionamento efetivo em
fevereiro de 2010 juntamente com as restrições observadas nos critérios
de inclusão (que implicam ordem judicial) explicam a baixa representa-
ção da população portuguesa na mesma. Este cenário torna ainda mais
importante o desenvolvimento de outros métodos que auxiliem a inves-
tigação como é o caso dos métodos de previsão de caraterísticas físicas,
mesmo que estes sejam apenas usados em último recurso (Koops e
Schellekens, 2008). Além disso, um estudo recente (Candille et al.,
2012) revela que a população portuguesa apresenta um nível de variação
fenotípica considerável ao nível dos traços de pigmentação comparati-
vamente a outros países europeus (Itália, Irlanda e Polónia), o que cons-
titui um indicador da elevada importância que a previsão destes traços
a partir da análise de marcadores genéticos poderá representar em con-
texto forense.
É importante, no entanto, enfatizar o facto de que os marcadores
de previsão não substituem os marcadores de identificação em nenhuma
circunstância, constituindo somente uma forma de extrair informação
relativa à aparência do dador de uma amostra que contenha ADN de
forma a restringir o número de indivíduos a considerar nas investigações.
A posterior utilização de marcadores distintivos continuará a ser essencial
para que seja possível determinar que a amostra pertence de facto a um
determinado indivíduo, ou seja, identificar o dador da amostra.

(21)
Dados dos Censos 2011 disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística:
http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_
boui=122103956&PUBLICACOESmodo=2 consultado a 08.01.2013.

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 299

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPETIVAS FUTURAS

Os progressos técnicos e científicos permitem atualmente prever


algumas caraterísticas físicas a partir da análise de marcadores genéticos
e essas informações já se revelaram bastante úteis na restrição do número
de indivíduos a considerar no âmbito da investigação de crimes ou até
identificação de cadáveres em avançado estado de decomposição. É atu-
almente possível prever pelo método direto com elevada precisão o sexo
e a cor dos olhos e do cabelo. O mesmo não se verifica em relação à
altura e traços faciais, devido ao elevado número de loci envolvidos na
determinação dessas mesmas caraterísticas. Para o tom de pele, a melhor
abordagem é o método indireto visto que esta apresenta uma grande
variação interpopulacional e o conhecimento relativo às bases genéticas
desta caraterística é ainda escasso.
As limitações observadas ao nível da precisão de traços complexos
(como a altura e os traços faciais) estão relacionadas com algumas
limitações dos sistemas de previsão, nomeadamente ao nível dos
modelos genéticos e análise estatística dos resultados. Por outro lado
há que ter em conta o facto de que estes sistemas não captam toda a
diversidade observada ao nível da variação genética e epigenética (22)
subjacente à determinação de caraterísticas complexas. Por exemplo,
a variação no número de cópias (copy number variation — CNV) e as
alterações epigenéticas (alterações não sequenciais da molécula de
ADN) não são avaliadas nos modelos de previsão atuais, apesar de se
saber que influenciam a forma como o ADN é expresso e, inevitavel-
mente, o fenótipo observado.
Tendo em conta que as caraterísticas físicas correspondem a traços
complexos, torna-se necessária a análise de um número considerável de
marcadores na sua previsão. As novas tecnologias de sequenciação per-

(22)
A variação epigenética corresponde às alterações observáveis ao nível da
estrutura do ADN que influenciam a forma como este é expresso, não incluindo alte-
rações na sequência de nucleótidos; exemplos de mecanismos epigenéticos são as
metilações, que impedem a “leitura” de segmentos de ADN, influenciando assim a
expressão genética.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


300 Helena Costa / Luís Miranda

mitirão ampliar o conhecimento relativo às componentes genéticas


subjacentes às caraterísticas físicas, através da identificação de novos
marcadores e até alterações epigenéticas associadas a variações fenotípicas.
Por outro lado, a possibilidade de obter resultados mesmo em amostras
com reduzida quantidade de ADN e alguma degradação (como é fre-
quentemente o caso das amostras forenses) potencia a utilização destas
novas tecnologias na rotina forense.
A previsão de caraterísticas físicas no âmbito forense coloca várias
questões éticas e legais. Desde a violação da privacidade, descriminação
étnica e/ou racial até ao potencial uso indevido destes métodos, a dis-
cussão sobre se se deve ou não fazer uso destas novas ferramentas na
investigação criminal tem dado azo a manifestações de várias áreas do
saber, desde a genética forense à sociologia passando pela bioética.
São importantes as preocupações dos especialistas das ciências
sociais relativamente às potenciais ameaças que a previsão de caraterís-
ticas físicas poderá colocar em especial às minorias étnicas. Mas deve-
remos prescindir do conhecimento que está potencialmente à nossa
disposição nas amostras de locais de crime sobre a aparência do per-
petrador do crime? Há a possibilidade de os resultados da análise de
marcadores preditivos apontarem para caraterísticas pouco comuns ou
grupos minoritários, mas deveremos prescindir dessa informação? Se
essa mesma informação fosse proveniente de uma testemunha ocular,
não seria investigada? Então porquê tratar dados objetivos com mar-
gens de erro estatisticamente estabelecidas como “pistas de segunda
categoria”?
É importante realçar que a noção generalizada de que o ADN é
uma ‘máquina da verdade’ corresponde a uma noção errada, em parti-
cular no que diz respeito à previsão de caraterísticas físicas, facto que se
deve às diversas limitações que foram apontadas (em suma: influência
de fatores ambientais e idade e desconhecimento de grande parte dos
fatores genéticos subjacentes a várias caraterísticas). Para além disso, a
prova biológica, tal como todas as restantes evidências, tem sempre de
ser apreciada no contexto, sendo que a própria Lei 5/2008, de 12 de
Fevereiro, no Art. 38.º refere: “Em caso algum é permitida uma decisão
que produza efeitos na esfera jurídica de uma pessoa ou que a afete de
Coimbra Editora ® Parte IV
Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 301

modo significativo, tomada exclusivamente com base no tratamento de


dados pessoais ou de perfis de ADN”. Este artigo realça a necessidade
de ponderação da prova baseada na identificação biológica e existência
de outros elementos para que haja uma condenação. Neste sentido é
importante voltar a reforçar que a previsão de caraterísticas físicas não
poderá nunca ser usada para condenar ninguém, apenas para restringir
o número de suspeitos a considerar.
Para finalizar, a aplicação dos métodos de previsão de caraterísticas
físicas em Portugal carece de legislação específica que só poderá ser criada
quando forem acauteladas as questões éticas, legais e técnicas subjacen-
tes ao uso destas metodologias. Pretende-se que este texto contribua
para a discussão dessas mesmas questões no nosso país, constituindo uma
revisão dos aspetos fundamentais do tema, para que se venha a conside-
rar num futuro próximo a aplicação destas metodologias na investigação
criminal em Portugal.

GLOSSÁRIO

ADN (ou DNA) — Ácido desoxirribonucleico; grande molécula constituída por


unidades mais pequenas, os nucleótidos que são representados nas sequências
de ADN pelas referidas letras correspondentes às bases azotadas.
AIMs — do inglês Ancestry Informative Markers: marcadores informativos de ancestra-
lidade; marcadores genéticos que exibem diferenças ao nível das frequências
alélicas em diferentes populações.
Alelos — configurações alternativas que a sequência de ADN pode assumir num
determinado locus.
Amostra problema — amostra sob investigação cuja identificação se pretende estabe-
lecer, proveniente, por exemplo, de um local de crime ou de um cadáver.
Amostra referência — amostra considerada no âmbito de uma investigação (por
exemplo, amostra de suspeito ou de pessoas desaparecidas) relativamente à qual
se conhece a identidade do dador.
Amplificação (de ADN) — processo de seleção e multiplicação de segmentos de ADN
a partir de uma amostra conseguido através da reação de PCR.
Ancestralidade Biogeográfica — caraterística estritamente biológica (genética) que
reflete a população ou as populações de origem dos antepassados de um indi-
víduo a partir da análise de AIMs.
Codificantes (regiões) — segmentos do genoma que contêm instruções para sequên-
cias de aminoácidos que compõem as proteínas.

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302 Helena Costa / Luís Miranda

Deleção — perda de material genético que pode variar entre um par de bases e gran-
des porções de um cromossoma.
Fenotipagem — classificação de fenótipos.
Fenótipo — caraterísticas morfológicas (físicas), bioquímicas ou comportamentais
observáveis num organismo.
Genoma — conjunto completo de informação genética de um organismo.
Genotipagem — determinação do(s) alelo(s) presente(s) numa amostra num determi-
nado locus ou em vários loci.
Loci — vários locais do genoma; plural de locus.
Locus — local do genoma.
Marcador genético — segmento de ADN cuja sequência e posição no genoma é
conhecida.
Marcadores distintivos — marcadores genéticos usados na determinação de perfis de
ADN cuja informação pode, posteriormente, ser armazenada em bases de dados
nacionais.
Marcadores preditivos — marcadores genéticos usados na previsão de caraterísticas físicas.
Meiose — fenómeno de divisão celular que ocorre na produção de espermatozoides e
óvulos que permite a obtenção de células com metade dos cromossomas da
célula inicial; esta redução faz com que a célula resultante da fecundação (fusão
do óvulo e espermatozoide) apresente uma quantidade de informação genética
igual à das células dos progenitores.
Melanócitos — células produtoras de melanina que se localizam ao nível da pele,
bolbo capilar e íris (no olho).
Nucleótidos — unidades estruturais da sequência de ADN simbolizados por letras (A,
G, T e C) que correspondem às bases azotadas que entram na sua composição
(adenina, guanina, timina e citosina, respetivamente).
PCR (Polymerase Chain Reaction) — reação bioquímica que permite obter um
elevado número de cópias (amplificação) das regiões de interesse a partir de uma
reduzida quantidade inicial de ADN.
Polimorfismo de DNA — alteração ao nível da sequência de ADN que pode variar
entre uma simples substituição de um nucleótido até alterações que envolvem
longos segmentos da molécula. Os polimorfismos distinguem-se das mutações
por apresentarem, na população considerada, uma frequência superior a 1%.
Recombinação genética — troca aleatória de material genético durante a meiose.
STR — do inglês “Short Tandem Repeat”; tipo de polimorfismo de ADN no qual se
observa a repetição de unidades de um a seis nucleótidos num número de
vezes variável.
SNP — do inglês “Single Nucleotide Polymorphism”; tipo de polimorfismo de ADN
no qual se observa a substituição de um único nucleótido na sequência.
Variação Fenotípica — variação observada num determinado fenótipo.
Variação Interpopulacional — variação observada entre populações ou entre indiví-
duos de diferentes populações

Coimbra Editora ® Parte IV


Novas ferramentas da investigação criminal — potencialidades e limites… 303

Variação Intrapopulacional ou interindividual — variação observada entre indivíduos


da mesma população.

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Coimbra Editora ® Parte IV


O TRAJETO HISTÓRICO DOS MÉTODOS
DE IDENTIFICAÇÃO CRIMINAL EM PORTUGAL (1)

DIANA MIRANDA

1. INTRODUÇÃO

A necessidade de identificar os autores de crime tem-se verificado


ao longo da história e, para tal, servem de exemplo algumas formas
arcaicas de identificação criminal como o cabelo rapado, as marcas ou
até as mutilações corporais. As letras marcadas com ferro quente na pele
dos criminosos eram uma prática habitual em Portugal e apenas no
século XVI, no reinado de D. João III, foi ordenada a extinção deste
costume (Pina, 1938).
A partir do século XIX as práticas de recolha e sistematização de
informação sobre os suspeitos e/ou condenados pela prática de crime têm
vindo a desenvolver-se com o recurso à ciência e à tecnologia. Tem-se

(1)
Gostaria de agradecer à Fundação para a Ciência e Tecnologia (Ministério
da Educação e Ciência) pelo apoio concedido no âmbito da bolsa de doutoramento
“A identificação criminal e a identidade do criminoso: percepções de reclusos e agentes
de controlo sobre as práticas de vigilância e classificação do corpo delinquente” (SFRH/
BD/70055/2010) com orientação da Professora Doutora Helena Machado. Agradeço
ainda aos funcionários do Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais — norte e à
Direção-Geral dos Serviços Prisionais pela autorização e cooperação na pesquisa.
Sinto-me ainda grata pela disponibilidade dos funcionários da Polícia Judiciária, nome-
adamente do Gabinete de Perícia Criminalística, por demonstrarem como decorrem
as práticas atuais de identificação criminal nesta instituição.

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


308 Diana Miranda

assistido à recolha, armazenamento e classificação de informação de cará-


ter físico, visual e biológico. Se dado corpo é identificado e classificado
como suspeito ou mesmo criminoso, o Estado torna essa identidade suspeita
visível e sujeita-a a práticas de vigilância, monitorização e controlo.
Inicialmente recorreu-se à antropometria para medir os corpos de
indivíduos condenados a pena de prisão e registar sinaléticas particulares.
O sistema antropométrico implementado no início do século XX em
Portugal assumiu-se como método oficial na identificação de condenados
por crime até se popularizar o uso da impressão digital. A datiloscopia
teve um desenvolvimento mais rápido do que a antropometria e o recurso
às impressões digitais foi rapidamente incorporado nas práticas policiais,
sendo que o seu uso perdura até à atualidade.
Na passagem do século XX para o século XXI surgem os métodos
de identificação baseados na genética, nomeadamente a identificação de
indivíduos por perfis de DNA. Apesar destas sucessivas transformações
em termos científicos e tecnológicos, estas práticas procuraram sempre
inscrever, codificar e documentar os suspeitos e/ou condenados pela prá-
tica de crime.
Para analisar este trajeto dos processos de identificação criminal em
Portugal foi consultada legislação e outra documentação relevante. É de
realçar a consulta de registos e processos individuais de reclusos no
Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais — Norte (Direção-Geral dos
Serviços Prisionais) no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo
entre fevereiro e março de 2012.

2. SÉCULO XIX — SÉCULO XX

No século XIX surge uma valorização das ações de vigilância e


controlo das “populações perigosas” por parte do Estado. Os saberes
científicos têm impacto nestas ações e verifica-se, no final do século XIX
e início do século XX, um desenvolvimento no registo das característi-
cas físicas dos presos. Começam a ser efetuadas medições antropomé-
tricas e são tiradas fotografias e impressões digitais aos indivíduos
condenados por crime. A identificação pressupõe a procura das singu-
laridades individuais e, como refere Tiago Pires Marques, a importância
Coimbra Editora ® Parte IV
O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 309

do conhecimento em torno do preso passa a ter “expressão prática mais


evidente na prioridade atribuída ao desenvolvimento das técnicas de
registo [e] identificação dos criminosos” (Marques, 2005: 130).

2.1. A descrição física e o surgimento da antropometria

Surgiu, em finais do século XIX, por influência da Escola Positi-


vista Italiana (Lombroso, 1924), uma série de estudos estatísticos em
torno dos carateres físicos do criminoso que o associavam a um conjunto
de características patológicas e o diferenciavam da população “normal”
(Becker, 2006; Fernandes, 1896; Madureira, 2003, 2005; Marques,
2003, 2005, 2007; Serén, 1997; Vaz, 1998). A criminalidade era enca-
rada como tendo uma causa biológica e poderia assim manifestar-se
fisicamente no corpo (Branco, 1888; Lombroso, 1924; Freire, 1889;
Frias, 1880). O método das ciências naturais foi aplicado no saber
jurídico e no estudo do crime, suscitando a demanda por um “retrato
científico” dos criminosos através da antropometria. Esta consiste “na
mensuração de determinados ossos para auxiliar o reconhecimento da
identidade dos reincidentes e dos frequentadores habituaes das prisões”
(Sousa, 1903: 340).
Em finais do século XIX, Alphonse Bertillon criou o primeiro sis-
tema moderno que permitia às autoridades policiais identificarem indi-
víduos e cientificizar os seus arquivos. A tese que serve de base ao seu
sistema de identificação é a de que o esqueleto humano varia de pessoa
para pessoa e não sofre alterações a partir de determinada idade.
A identificação por sinais antropométricos processava-se pelo que
Bertillon denominou de portrait parlé. Neste processo pretendia-se a
individualização do criminoso, transformando-se a sua identidade e corpo
em linguagem. Para tal, eram registadas onze medidas antropométricas
num boletim, juntamente com a classificação da orelha direita, o registo
de marcas peculiares, cor dos olhos, cabelo, pele e fotografias de cara e
perfil (Cole, 2001; Domingues, 1963; Finn, 2005; Locard, 1932; Malhado,
2001; Sainz, 1893).
Em Portugal, a preceder as medições antropométricas estipuladas
por Bertillon, os agentes policiais responsáveis pela investigação crimi-
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
310 Diana Miranda

nal (2) procuravam identificar o criminoso através da elaboração de um


cadastro, onde constavam os sinais característicos, a identificação (desde
o nome, idade, estado civil, profissão, antecedentes, entre outros) e uma
fotografia caso o juiz a mandasse anexar (Vaz, 1998).
A este respeito é de salientar o registo policial organizado em 1825
pelo decreto de 25 de maio. Este decreto centraliza o primeiro serviço
estruturado de registo policial (3) que pretendia reunir conhecimento
dos antecedentes criminais dos indivíduos (Costa, 1984). Nesta altura
mencionava-se o nome, sinais característicos, moradas, profissões, natu-
ralidades e havia um livro em que se escreviam os nomes dos suspeitos
ou criminosos e pronunciados.
Além destas práticas policiais, estava previsto no Regulamento Pro-
visório da Polícia das Cadeias de 1843 (4) a recolha e registo de infor-
mações como, por exemplo, os sinais, as marcas, altura, feições do rosto,
deformidades, vestuário, alcunhas e a cor de olhos, barba e cabelo dos
presos (5) (Marques, 2005). O decreto de 24 de agosto de 1863 também
remetia para a obrigatoriedade da recolha de sinais físicos e uso da foto-
grafia na identificação do delinquente (Pina, 1939b). Em 1884, o
regulamento provisório da Cadeia Central Penitenciária de 20 de novem-
bro referia igualmente a obrigatoriedade de recolha dos sinais físicos dos
criminosos (Pina, 1936): “logo que entre algum preso será conduzido à

(2)
Em 1867 foi criada a Polícia Civil pela Carta de Lei de 2 de Julho. A inves-
tigação criminal não tinha ainda nesta altura a autonomia necessária e só com a reforma
dos corpos da Polícia Civil de 1893 há uma separação dos serviços de investigação
criminal das outras áreas da Polícia Civil (Gonçalves, 2007; Pereira e Silva, 2012),
passando a sua responsabilidade a pertencer à Polícia de Investigação Judiciária e Pre-
ventiva, sob a dependência do juiz de instrução criminal.
(3)
Este registo policial surge na Intendência Geral da Polícia, a primeira organi-
zação com funções policiais em Portugal relativamente moderna (Pereira e Silva, 2012).
(4)
Este Regulamento definiu as bases da administração interna das prisões até
ao início do século XX (Marques, 2005).
(5)
Convém referir, contudo, que já desde o século XVIII é possível encontrar
nos livros de registo de entrada dos presos nas cadeias termos rudimentares de identi-
ficação, como o nome, a estatura (baixa, ordinária…), cara (comprida ou não, por
exemplo), cor de olhos, barba e cabelo.

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 311

secretária, para se tomar nota dos seus sinais e proceder-se à inscrição


no registo de entrada” (artigo 150.º).
O decreto de 7 de novembro de 1872 criou um sistema de registo
criminal (6) nas comarcas que pretendia organizar os boletins individuais
onde deveriam constar informações de caráter biográfico e os sinais
característicos (Marques, 2005; Pina, 1936, 1939b). Contudo, convém
realçar que estas informações relativas aos condenados por crime apenas
circulavam de modo eficiente ao nível local e não tanto ao nível nacio-
nal (Vaz, 1998).
Na consulta de documentação do Arquivo Histórico dos Serviços
Prisionais foi possível averiguar o registo rotineiro deste tipo de informações
relativas aos criminosos. Foram consultados, por exemplo, registos de
presos entre 1890 e 1899 do Fundo da Cadeia Civil do Porto e consta-
tou-se a referência constante nos manuscritos a uma descrição sumária
sobre a altura, rosto, vestuário e declarações sobre nunca antes terem estado
presos. De modo a exemplificar estas descrições, segue de seguida a trans-
crição de parte de um desses registos datado de 1893:

Estatura 1,62, rosto redondo, nariz e bocca regular, olhos cas-


tanhos, cabello e barba grisalha. Vestido com calça, collete e jaqueta
de picotilho. Declarou que nunca aqui estivera preso e hoje vem
reenviado d’aquella comarca onde foi condemnado na pena de 8
annos de prisão celular seguida de degredo…

No caso dos livros de registo dos presos de Santa Cruz de 1895


também eram vulgarmente mencionados na secção dos sinais a altura,
cor de cabelos e olhos, tipo de nariz, boca, rosto, bigode, vestuário,
declaração de saber ou não ler/escrever e ser ou não a primeira vez que
estivera preso. No registo dos presos da Cadeia da Comarca de Estarreja
do final do século XIX consta informação semelhante, sendo de destacar
a existência de uma coluna para registar os sinais (N’esta casa se devem

(6)
No século XIII havia já um esboço de registo criminal designado por o
Livro dos Culpados (Oliveira, 2012).

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312 Diana Miranda

pôr todos os signaes do preso, que roupa leva vestida, etc…). Nesta altura
ainda não estava implementada a antropometria em Portugal e estes
dados descritivos (os sinais, os traços físicos e o vestuário) eram os úni-
cos elementos de identificação disponíveis.

Na antiga identificação (…) primitiva, aproveitavam-se muitas


particularidades individuais: estatura, corpulência, manchas da
pele (…), tatuagens, cicatrizes de variada origem, aleijões e anoma-
lias, assimetrias, côr da pele, dos íris e dos cabelos, gesto, voz, etc.
(…) Êste primitivo sistema adoptava-se (…) no registo de conde-
nados, (…), o que se prova com inúmeros documentos existentes
nos Arquivos Históricos do país (Pina, 1939b: 35).

Além destes elementos era constante a referência às declarações do


preso quanto a ser ou não a primeira vez que entra na cadeia. Tal como
diz Maria João Vaz, “geralmente fazia-se fé nos dados” (1998: 104)
que os presos relatavam, uma vez que não havia qualquer tipo de
registo eficaz.
António Ferreira Augusto (1902a, 1902b), a quem se deve a inicia-
tiva de instalar os postos antropométricos em Portugal (Sousa, 1903; Pina,
1938, 1940), referia que era necessária a vulgarização do sistema de Ber-
tillon e a instalação de postos antropométricos nas cadeias de modo a
verificar a identidade do preso e a sua situação jurídico-criminal. Isto
permitiria solucionar o problema da identidade do criminoso de forma a
que não fosse possível aos reincidentes ocultarem a sua verdadeira iden-
tidade (Augusto, 1902a; Branco, 1888; Costa, 1895; Pessoa, 1940; Sousa,
1903). Seria assim possível interditar a metamorfose e atribuir “a cada
indivíduo uma identidade invariável e facilmente passível de demonstra-
ção” (Corbin, 1990: 432).

Chegará uma época em que vulgarisado o systema de Bertillon,


conhecidas as suas vantagens, o seu nome será abençoado e nos
postos anthropometricos inscrever-se-hão as palavras que os antigos
mandavão gravar nas portas dos seus tribunaes: Vigilat ut quies-
cant… (Augusto, 1902a: 9).
Coimbra Editora ® Parte IV
O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 313

No final do século XIX surgiram os primeiros postos rudimentares


de medição antropométrica na Penitenciária Central e na Cadeia do
Limoeiro em Lisboa e na Cadeia da Relação do Porto (Pessoa, 1940;
Pina, 1939a, 1939b, 1940; Santos, 1999). Também no Comissariado
Geral da Polícia do Porto se procurava trabalhar com a antropometria e
se tentava criar um posto antropométrico policial (Pessoa, 1940; Madu-
reira, 2003).
Há referências que indicam que a sinalética antropométrica já era
praticada em Portugal desde 1885 (Santos e Mendes, 1961). Em Lisboa,
o funcionamento dos serviços antropométricos na Penitenciária Central
é evidenciado pelas referências em relatórios e pela existência de álbuns
de fotografia judiciária (Marques, 2005; Pina, 1938). No Porto existe
um ofício de 30 de março de 1886 para o Governador Civil, da parte
do Diretor da Cadeia da Relação, que solicita à polícia o envio de retra-
tos dos “gatunos mais conhecidos”, evidenciando o uso da fotografia já
nesta altura (Santos, 1999) (7).

2.2. As sinaléticas descritiva, antropométrica, fotográfica e dati-


loscópica

A sinalética pode ser definida como a descrição de certo indivíduo


com o fim de ser reconhecido e identificado (Domingues, 1963; Malhado,
2001; Zbinden, 1957), sendo indicadas de modo sintético e metódico as
suas características visíveis. No início do século XX é possível averiguar
a existência de diversas sinaléticas: a antropométrica, descritiva, fotográfica
e datiloscópica. Tal como diz Luís de Pina, “podemos descrever os carac-
teres físicos do indivíduo que examinamos, reproduzi-lo por intermédio
da fotografia, medir-lhe algumas partes do corpo, [e] reproduzir os dese-
nhos papilares das suas polpas digitais” (1939b: 30).
A identificação dos criminosos foi regulada em 1899 pela Lei de 17
de agosto e pelo regulamento dos Serviços Médico-Legais aprovado pelo

(7)
Importa ainda referir que o artigo 7.º do decreto de 24 de agosto de 1863
já determinava o uso da fotografia para efeitos de identificação (Pina, 1939b).

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


314 Diana Miranda

decreto de 16 de novembro (Maldonado, 1968; Marques, 2005; Pina,


1936, 1938, 1939a, 1939b, 1940; Santos, 1999; Serén, 2006; Sousa,
1903). A antropometria judicial foi assim instituída e os postos antro-
pométricos oficialmente criados para “tomar as medidas antropométricas
de todos os presos que derem entrada na Cadeia Central ou que para
esse fim lhe fossem enviados pelos comissariados de polícia ou pelos
juízes de instrução criminal” (art. 81.º, n.º 2 da Lei de 17 de agosto de
1899). Para tal, é ordenado no artigo 99.º dessa mesma lei a compra
de instrumentos e livros para o estudo e exercício da antropometria (Pina,
1939a, 1939b; Sousa, 1903).
Augusto (1902a) alertava, contudo, para a necessidade da criação
real de postos antropométricos e não apenas de uma criação legal.
Dois anos após a promulgação da Lei de 17 de agosto surge o Regu-
lamento das Cadeias Civis (decreto de 21 de setembro de 1901) que
reorganiza os serviços das cadeias, regulamenta a instalação dos postos
antropométricos e lhes dá existência, estabelecendo procedimentos de
identificação criminal (Augusto, 1902a, 1902b; Oliveira, 2012; Pessoa,
1940; Pina, 1931, 1936, 1938, 1939a, 1939b, 1940; Rocha, 1985;
Sousa, 1903).
As medidas mais importantes para uma identificação antropomé-
trica precisa, segundo Bertillon, constam no artigo 87.º do decreto de
21 de setembro de 1901, sendo elas a estatura medida em pé, o com-
primento dos braços abertos em cruz, a altura do indivíduo sentado
(busto), o comprimento e largura da cabeça, a largura das arcadas
bysogmaticas e os comprimentos da orelha direita, do dedo médio e
anelar esquerdo, do pé esquerdo e do braço esquerdo desde o cotovelo
até à ponta do dedo médio.
Estas medições eram efetuadas através de procedimentos que exigiam
todo um conjunto de instrumentos e posições da parte do preso e do ope-
rador (Augusto, 1902a; Sousa, 1903). Tal como refere Simon Cole, “each
measurement was a meticulously choreographed set of gestures in which
the exact positioning and movement of both bodies — prisoner and ope-
rator — were dictated by Bertillon’s precise instructions” (2001: 34).
Convém ainda enaltecer que o preso a ser medido “para melhor exatidão
das operações [deveria] estar em mangas de camisa, descalço, com o cabello
Coimbra Editora ® Parte IV
O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 315

e as unhas bem aparadas tanto da mão como do pé esquerdo” (8) (Augusto,


1902a: 16).
Estas medições antropométricas eram registadas nos boletins,
bem como a sinalética descritiva, fotográfica e ainda a datiloscópica.
Deste modo, eram registadas as medições antropométricas, as fotogra-
fias (frente e perfil) (9) com o número de ordem do preso, as indicações
pessoais do registo de entrada (como por exemplo, o nome, a alcunha,
idade, naturalidade, filiação e profissão), os sinais particulares (desenhos,
cicatrizes, tatuagens), os carateres morfológicos do rosto (nariz, orelha
direita, cor da pele, barba e cabelo), as observações cromáticas (a cor
dos olhos pela classificação da íris) e até mesmo a pronúncia, a lingua-
gem, a gesticulação, o modo de andar, os sinais de beleza, o vestuário,
a assinatura, o registo criminal e ainda as impressões dos dedos (10). Em
suma, todos os elementos úteis na individualização do preso (Augusto,
1902a, 1902b, 1902c; Pina, 1938; Santos, 1999; Serén, 1997, 2006;
Sousa, 1903).
Os boletins depois de preenchidos eram arquivados num armário,
classificados segundo divisões que se baseavam no comprimento da cabeça,
entre outras divisões e subdivisões (Pina, 1938; Sousa, 1903).

Entrando um individuo na cadeia e tirados os signaes anthro-


pometricos e outros saber-se-ha em breves minutos se elle procurou

(8)
Para evidenciar isto é pertinente mencionar a consulta do inventário de
haveres do Posto Antropométrico do Porto no Arquivo Histórico dos Serviços Prisio-
nais. Entre diversos instrumentos e mobília constava precisamente a referência a tesou-
ras para cortar o cabelo e as unhas dos presos.
(9)
O uso da fotografia não era sistemático e apenas nos casos dos indivíduos
julgados mais perigosos se anexava uma fotografia ao cadastro (Vaz, 1998).
(10)
No modelo do primeiro boletim de identificação do posto antropométrico
da Cadeia da Relação do Porto constava, precisamente, uma secção para as duas foto-
grafias, para as observações antropométricas, para as observações cromáticas, indicações
pessoais, observações descritivas, sinais particulares e ainda o registo criminal. O verso
do boletim destinava-se a indicações diversas, sendo por vezes aí transcritas as tatuagens
do indivíduo ou as impressões digitais (Sousa, 1903).

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


316 Diana Miranda

dissimular a sua identidade, se entrou pela primeira vez na cadeia,


se já soffreu alguma condemnação, se é um reincidente, se um
frequentador habitual das prisões (Sousa, 1903: 348).

O posto antropométrico instalado numa dependência do edifício


da Cadeia da Relação do Porto é o primeiro a determinar a identidade
dos presos. É inaugurado e inicia atividades a 1 de março de 1902 (11)
(Marques, 2005; Pessoa, 1940; Pina, 1938, 1939a, 1940; Santos,
1999; Sousa, 1903) e só no decorrer do seu primeiro meio ano foram
efetuadas 1.402 observações de presos (Augusto, 1902c; Pina, 1938).
Em Lisboa também já funcionavam em 1903, junto da cadeia do
Limoeiro e da Penitenciária Central, postos antropométricos instala-
dos por Lima Duque e Manuel Valadares (Pina, 1936; Sousa, 1903).
Ao longo dos anos foram surgindo outros postos antropométricos,
nomeadamente o do Instituto de Antropologia de Coimbra (12), ofi-
cializado em 1911.
É interessante constatar que estes procedimentos de identificação
apenas eram aplicados junto dos indivíduos que dessem entrada na cadeia
e tal representou já na altura uma injustiça e desigualdade para muitos,
tendo sido diversas as reclamações por não se efetuarem medidas e foto-
grafias aos indivíduos que pagavam fiança (Augusto, 1902b). Segundo
António Ferreira Augusto, “só os pobres, os desvalidos se terão de sujei-
tar a estas exigencias!” (1902b: 9).

(11)
Em 1903 já estavam instalados outros postos antropométricos no distrito
judicial da Relação do Porto (nomeadamente em Vila do Conde, Santo Tirso, Bar-
celos, Guimarães, Paços de Ferreira, Viana do Castelo, Pinhel, Trancoso, Fafe e
Vila Pouca d’Aguiar) e aguardava-se a instalação de outros (Coimbra, Penafiel,
Arcos-de-Valdevez, Gouveia, Aveiro, Bragança, Vimioso e Viseu) (Sousa, 1903; Pina,
1936, 1939b, 1940).
(12)
O modelo do boletim de identificação deste Posto Antropométrico recorria
ao sistema de Bertillon, completado com o sistema de Vucetich (Rocha, 1985; Tamag-
nini e Serra, 1940). Trata-se de duas fichas, sendo que numa constam as indicações
pessoais, os sinais particulares, observações antropométricas e cromáticas e na outra
consta a identificação geral e as impressões digitais.

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 317

2.3. As impressões digitais

A datiloscopia remete-nos para o processo de identificação pelas


impressões digitais. A impressão digital permite estabelecer a identi-
dade individual tendo por base a inalterabilidade, imutabilidade e
variabilidade dos desenhos papilares (Magalhães, 1910; Santos e Men-
des, 1961), sendo encarada como a “assinatura natural” de cada indi-
víduo (Pina, 1938) (13).
Inicialmente, a impressão digital era uma mera curiosidade e “apenas
mais um sinal a acrescentar às «observações antropométricas, cromáticas
e descritivas» que figuravam nos boletins ao lado das fotografias de frente
e perfil” (Pessoa, 1940: 717). Contudo, pelo facto de o processo ser
menos dispendioso e mais célere e por não exigir pessoal tão especiali-
zado, rapidamente a impressão digital se incorporou nas práticas policiais
e ultrapassou a antropometria como o sistema de identificação dominante
(Cole, 2001; Cole e Lynch, 2010; Domingues, 1963; Finn, 2005; Gar-
cia, 2008; Machado e Prainsack, 2012; Serén, 1997). Nas palavras de
Simon Cole:

Anthropometry looked like science, fingerprinting looked like


technology. Anthropometry was observational; fingerprinting was
mechanical. Anthropometry evoked the rigors of scientific obser-
vation; fingerprinting evoked the efficiencies of mass production…
(Cole, 2001: 166).

No início do século XX a antropometria foi implementada em


Portugal e foi tida como o método oficial na identificação criminal até
ser substituída pela datiloscopia. De facto, a impressão digital surgiu no
início do século e rapidamente se popularizou, tendo em Portugal um

(13)
A este respeito é interessante constatar que tal até pode ser entendido de
forma literal, tomando por exemplo o surgimento do cartão de identificação nacional
no século XX como prova de identidade. Cerca de 40% da população era analfabeta
e a impressão digital substituía a assinatura dos que não sabiam ler ou escrever, com-
provando a identidade do titular (Frois, 2008; Machado e Prainsack, 2012).

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318 Diana Miranda

desenvolvimento mais rápido do que a antropometria. Tal como refe-


riram Hernâni dos Santos e Alfredo Mendes:

À medida que a dactiloscopia alargava os seus horizontes no


campo da identificação, a sinalética antropométrica ia perdendo
pouco a pouco toda a sua importância, passando mesmo a ser igno-
rada, salvo raras excepções, nos departamentos que têm funções de
identificação criminal e policial (1961: 70).

A comunidade científica rapidamente se dividiu entre a datiloscopia


e a antropometria e os diversos países repartiram-se pelos dois sistemas de
identificação. Contudo, em Portugal mantiveram-se ambos e recorreu-se
a uma combinação de informações antropométricas e impressões digitais
com diversas variantes de classificação (Cole, 2001; Madureira, 2003).
O desenvolvimento dos sistemas de identificação por impressão
digital deve-se, essencialmente, a Henry Faulds e a Juan Vucetich (14).
Ambos criaram o seu sistema de classificação e esses sistemas expandi-
ram-se pelo mundo (Cole, 2001). Em Portugal, no início do século XX,
tal como noutros países, foram adotados diversos sistemas datiloscópicos
e estes foram sujeitos a modificações, sendo de realçar a emergência e
uso de diversos sistemas de classificação (15).
O posto antropométrico da Cadeia da Relação do Porto foi o pri-
meiro a incluir registos datiloscópicos nos boletins (Madureira, 2003).

(14)
Ambos foram influenciados pelos estudos de Francis Galton que serviram
de base para os sistemas de identificação por impressão digital que foram surgindo e
que ainda hoje se mantém (Galton, 1965).
(15)
Exemplo disso são os métodos de Valadares e de Alberto Pessoa que deri-
varam de outros sistemas, nomeadamente o Galton-Henry, Vucetich e Locard. Foram
usados outros métodos, como por exemplo o método de Gasti no extinto Posto Antro-
pométrico da Polícia Cívica de Lisboa em 1912 e no Arquivo Central de Registo
Criminal; o método de Galton-Henry no Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial;
e o método de Vucetich nos Institutos de Criminologia e nos Institutos de Medicina
Legal (Correia, 1914; Madureira, 2005; Malhado, 2001; Santos e Mendes, 1961;
Pessoa, 1940; Pina, 1939b).

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 319

Já desde 1902 que é possível encontrar registos datiloscópicos (impressões


dos dedos polegar, indicador, médio e anelar direitos) e impressões da
palma da mão nos boletins antropométricos da Cadeia da Relação do
Porto (Sousa, 1903; Pina, 1936, 1939b). Também em Lisboa, nos
boletins de identificação do Posto Antropométrico da Cadeia Central (16),
tal também já se verificava no ano de 1903 (Pina, 1936).

Ilustração 1

Exemplar do boletim de identificação do Posto Antropométrico da Cadeia Central


(Lisboa) datado de 1903 (Fonte: Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais)

(16)
De modo semelhante ao boletim da Cadeia da Relação do Porto, também
neste consta na parte da frente as fotografias, as indicações pessoais, as observações
antropométricas, cromáticas e descritivas. No verso há referências aos sinais par-
ticulares e indicações diversas, sendo de realçar o espaço reservado para as impres-
sões digitais.

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320 Diana Miranda

Contudo, foi apenas em 1904 que o uso da datiloscopia foi decre-


tado oficialmente. É neste ano que surge, a 5 de julho, uma portaria
que determina a identificação de presos do sexo feminino e menores de
25 anos apenas pela impressão digital (17) (Correia, 2008; Malhado,
2001; Pessoa, 1940; Pina, 1939b). No caso dos homens adultos as
medidas antropométricas continuariam a ser efetuadas.
Para se obterem as impressões digitais era necessário apoiar os dedos
numa placa de zinco polido, na qual era distribuída tinta vermelha ou
preta (Augusto, 1902a). O operador conduzia os dedos à placa, tingindo
a pele do indivíduo e o papel (Pina, 1939b), “ficando n’elle estampado
o filigranné das pontas dos quatros dedos” (Augusto, 1902c: 44).

Like anthropometry and photography, the recording of finger-


prints required a certain degree of cooperation from the subject: the
subject would have to relinquish control of his body, or at least his
hand, to the identification clerk, who, as with anthropometry, was
called an “operator” (Cole, 2001: 75).

Em 1906, com o decreto de 18 de janeiro, é publicado o Regulamento


dos Postos Antropométricos (Malhado, 2001; Pina, 1931, 1940) que veio
regular o sistema de identificação, estipulando o recurso conjunto ao sistema
antropométrico de Bertillon e ao sistema datiloscópico (Galton-Henry).
Quando se tratava de mulheres e homens menores de 25 e maiores de 45
anos apenas era aplicado o sistema datiloscópico; enquanto para os restan-
tes homens, entre os 25 e 45 anos, o sistema era misto (antropométrico e
datiloscópico). O regulamento refere a respeito dos postos locais que ape-
nas o processo datiloscópico era obrigatório (Pina, 1938, 1939b).
Até 1906, o modelo do boletim de identificação usado no posto
antropométrico da Cadeia da Relação do Porto continha a fotografia judi-
ciária de frente e perfil, indicações pessoais, observações descritivas, antro-
pométricas, cromáticas e de sensibilidade, sinais particulares, entre outros.

(17)
O recurso à antropometria no caso das mulheres era alvo de muitas críticas
pois havia uma variedade nos resultados mediante a observação (Pina, 1938).

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 321

No seu verso, além das indicações diversas e do registo criminal, havia um


local onde era registada a impressão palmo-digital da mão direita do preso.
No ano de 1906 este boletim foi substituído por dois boletins distintos,
um boletim antropossinalético e um outro datiloscópico (Pina, 1931).
Com o decreto 5.023 de 3 de dezembro de 1918, o posto antropo-
métrico da Cadeia da Relação do Porto passa a designar-se Repartição
de Antropologia Criminal, Psicologia Experimental e Identificação (Mal-
donado, 1968; Pina, 1939b). A partir de 1920 os serviços da Repartição
do Porto são regulamentados pelo decreto 6.916, de 10 de setembro
onde é estipulado que a identificação dos delinquentes tem de ser efe-
tuada pelo sistema datiloscópico e, apenas se conveniente, pela sinalética
antropométrica (art. 11.º). Poucos anos depois, em 1931, é referido
num manuscrito que na Repartição do Porto só se fazia a recolha das
impressões digitais e que praticamente já não era usado o boletim antro-
possinalético (Pina, 1931).
Inicialmente as impressões digitais eram apenas usadas de forma a
associar determinado corpo ao seu registo criminal e impossibilitando, assim,
que fossem assumidas identidades falsas em tribunal e se evitassem os dis-
farces quanto ao passado criminal. Tal como referiu Manoel Magalhães:

Nós pelos progressos da sciencia moderna temos meios inillu-


diveis que nos levam immediatamente á perfeita reconstituição do
verdadeiro criminoso. Não ha disfarces, não ha mutilações que
apaguem o brilho da verdade em presença d’esses pequenos desenhos
contidos numa pequena folha de papel… (1910: 72 e 73).

Só mais tarde a identificação por impressão digital passou a ser tida


como técnica forense (Cole, 2001). Em 1911, aquando do roubo da
ourivesaria da Guia em Lisboa, deu-se o primeiro caso de descoberta do
autor do crime pelas impressões latentes deixadas no local (Pina, 1939b).
Xavier da Silva foi o responsável por esta descoberta pioneira na identi-
ficação de um criminoso por impressões digitais (Oliveira, 2012). Nas
palavras do Inspetor-Adjunto da Polícia Judiciária Bento Garcia Domin-
gues, “a impressão digital deixada no local [tornara-se] (…) um cartão
de visita do criminoso” (1963: 68).
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
322 Diana Miranda

2.4. As práticas policiais

Com as práticas de mensuração, o saber científico deveria ser redu-


zido a técnicas instrumentais das autoridades e “a antropometria [seria]
despojada de implicações teóricas e das conotações com qualquer escola
de pensamento” (Madureira, 2003: 294). De facto, a Escola Positivista
Italiana entra em descrédito e ainda assim o exame antropométrico
perdura e apenas vai desaparecendo na prática quando surge uma outra
técnica capaz de o ultrapassar, a impressão digital (Pessoa, 1940).
Contudo, convém referir que a ambição partilhada por diversos
ilustres magistrados, representada pelas palavras de António d’Azevedo
Castello Branco, distanciava-se efetivamente das práticas policiais do
início do século XX.

O funccionario policial, guiando-se pelas observações anthro-


pologicas poderá adquirir por um processo experimental e scientifico
aquella penetracão e certeza de olhar, que alguns teem alcancado
empiricamente. Será mais um indicio valioso para a descoberta dos
criminosos (Branco, 1888: 210).

De facto, a cientificidade da investigação criminal era mais discursiva


do que prática (Gonçalves, 2007; Madureira, 2005) e a este propósito
Luís de Pina referiu, inclusive, que o posto antropométrico da Cadeia
da Relação do Porto “não deu resultados práticos na sua colaboração
com a Justiça” (1939a: 8).
No primeiro quarto do século XX era grande a rivalidade e desar-
ticulação entre a polícia e as instituições que estudavam o crime e até
entre os diversos serviços do corpo policial (18). Consequentemente, era

(18)
O corpo da polícia distribuía-se por 3 serviços, sendo eles a Polícia de
Segurança Pública, a Polícia Administrativa e a Polícia de Investigação Criminal (Madu-
reira, 2005; Vaz, 1998). Nesta última é criado o lugar de Chefe da Repartição e o
Diário do Governo n.º 124 de 29 de maio de 1911 refere que “a este ‘Chefe’ compe-
tia ‘dirigir os serviços de investigação policial, da prevenção do crime e da identificação
de delinquentes e criminosos…’” (Pereira e Silva, 2012: 25). Ainda assim, o comis-

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 323

difícil a incorporação dos conhecimentos e saberes provenientes de ins-


tituições como o Instituto Médico-Legal ou os postos antropométricos
nas práticas e métodos de investigação policial. A polícia não pretendia
colaborar e resistiu a partilhar as suas competências com os atores que
surgiam associados à ciência e à luta contra o crime (Madureira, 2005).
A polícia desejava preservar a sua autonomia e tal fez surgir a dupli-
cação de registos e a sobrevivência de antigas e tradicionais técnicas
policiais que nos remetem para a improvisação do agente no terreno (19).
Procuraram ainda, sem êxito, internalizar (20) os serviços científicos e até
imitá-los (21) (Madureira, 2005). Esta multiplicação de informação
recolhida deve ainda ser aliada à incapacidade do governo na estandar-
dização dos sistemas de identificação em vigor na época (Madureira,
2005) para que se perceba que na prática estes métodos não teriam assim
o impacto desejado.

3. SÉCULO XX — SÉCULO XXI

3.1. A era da datiloscopia

O desenvolvimento moderno da sinalética iniciou-se com o sistema


de medições antropométricas de Alphonse Bertillon. A fotografia cri-

sário da Polícia Cívica procurava interferir na atividade da investigação criminal, mesmo


não sendo da sua competência (Pereira e Silva, 2012).
(19)
Como por exemplo, desde a fabricação de provas para desorientar o suspeito
e assim confessar o crime, aos truques de intimidação psicológica (Afonso, 1973 apud
Madureira, 2005: 56).
(20)
Em 1906 são instalados Postos Antropométricos sob tutela da Polícia de
Segurança Pública (Madureira, 2005) mas com recursos muito limitados.
(21)
Em 1913 ocorreu uma situação que ilustra bem esta desarticulação. Um
comandante da Polícia Cívica ordena aos seus agentes a entrega de provas num posto
antropométrico de identificação criminal da polícia e não nos serviços do Instituto de
Medicina Legal, que possuíam na altura mais recursos e competência para realizar os
exames de polícia científica. Nesse posto policial apenas deveria ser efetuada a iden-
tificação de criminosos e não se previa segundo a legislação a realização de exames
(Madureira, 2005; Pereira e Silva, 2012).

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324 Diana Miranda

minalística e sobretudo a dactiloscopia caracterizam a fase atual da sua


evolução” (Zbinden, 1957: 57).

3.1.1. Entrada na prisão e identificação

Com o Decreto-Lei n.º 26.643, de 28 de maio de 1936 é promul-


gada a reorganização dos serviços prisionais e são tecidas algumas deter-
minações sobre o estabelecimento da identidade dos delinquentes que
entram nas cadeias (Pina, 1939b). O artigo 217.º menciona a existên-
cia de um livro de registo em todos os estabelecimentos prisionais e o
artigo 218.º refere-se ao boletim biográfico individual onde constam os
dados necessários à identificação do recluso, nomeadamente as fotogra-
fias, indicações antropométricas e datiloscópicas.
No Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais foram consultados
processos individuais de presos da Cadeia do Porto a datar desde 1937.
Nestes processos constam boletins biográficos cujo modelo apresenta
uma secção de identificação (art. 218.º do Decreto-Lei n.º 26.643, de
28 de maio de 1936). Esta secção divide-se em identificação civil
(nome e alcunha, naturalidade, última residência e filiação), judiciária
(crime cometido, datas, condenação definitiva), antropológica e dati-
loscópica. Em relação a estas duas últimas formas de identificação
verificou-se que em meados do século XX as medições antropométricas
ainda eram por vezes preenchidas, bem como a cor dos olhos, cabelo
e barba, tipo de nariz e boca, tatuagens, sinais particulares, a impressão
do dedo indicador direito e a fotografia autenticada com o selo branco
do estabelecimento (22).

(22)
Mais recentemente, surge em 2011 o Regulamento Geral dos Estabeleci-
mentos Prisionais (Decreto-Lei n.º 51, de 11 de abril) que estipula a necessidade de
verificar a identidade do recluso. Para tal é feito o registo de identificação, onde deve
constar a identificação pessoal, informações quanto ao que determinou o ingresso, data
e hora de ingresso, imagem facial, características ou sinais físicos particulares (art. 4.º).
Estes sinais mantiveram-se assim, ao longo do tempo, como um dos elementos que
sempre constaram nos registos de identificação.

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 325

3.2. Registos criminal e policial

Em 1906, pelo decreto de 17 de março, reorganizou-se em Portu-


gal o Registo Criminal e Policial, nomeadamente os serviços da identi-
ficação (Pina, 1939b). A impressão digital era tida como fundamental
e em todos os boletins de registo criminal deveriam constar as impres-
sões digitais.
Com o decreto n.º 4.166, de 27 de abril de 1918 ocorre uma reforma
dos serviços policiais que autonomiza a Polícia de Investigação como
“repartição” (Pereira e Silva, 2012) e estabelece no artigo 38.º que:

Junto das repartições de polícia cívica de Lisboa e na depen-


dência da polícia de investigação criminal haverá os necessários
gabinetes para a execução, expediente e registo dos serviços de
cadastro e identificação foto-antropométrica e dactiloscópica, pelos
quais se prestarão às diferentes secções de polícia e aos tribunais
todas as informações, boletins fichas e mais elementos necessários
para a descoberta dos criminosos e para a vigilância dos indivíduos
suspeitos e recidivistas.

Os serviços de polícia são reorganizados pelo Decreto n.º 8.435,


de 21 de outubro de 1922. Atendendo aos artigos 24.º e 26.º cons-
tata-se que apesar de a Polícia de Investigação Criminal (23) poder
recorrer aos postos antropométricos, havia ainda a possibilidade de
solicitar ao Instituto de Medicina Legal “exames directos e fotográficos
ou quaisquer outras diligências do mesmo instituto necessárias à inves-
tigação” (Pereira e Silva, 2012: 35).
O serviço de registo policial, destinado a arquivar o cadastro dos
indivíduos detidos à ordem das diversas polícias é organizado pelo

(23)
Com o Decreto n.º 14.657, de 5 de dezembro de 1927 a Polícia de Inves-
tigação Criminal (PIC) é finalmente separada da Polícia Cívica. É nesta progressiva
autonomia institucional que a PIC dá lugar à Polícia Judiciária em 1945 pelo Decre-
to-Lei n.º 35.042, de 20 de outubro (Pereira e Silva, 2012).

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326 Diana Miranda

Decreto n.º 14.731, de 15 de dezembro de 1927 (Oliveira, 2012). Nele


são assinaladas as vantagens de centralizar um cadastro dos detidos.
Em 1928, pelo Decreto n.º 15.963, de 18 de setembro, é determi-
nada a interdependência dos serviços do registo policial e criminal (Pina,
1936, 1939b). Os serviços de identificação e registo policial ficam a cargo
das autoridades policiais, estando centralizados no posto antropométrico
da Polícia de Lisboa. No Porto competia ao posto antropométrico da
Polícia de Segurança Pública assegurar estes serviços. A identificação seria
feita por um boletim individual de registo policial com referência ao
cadastro da ocorrência e caracterização do indivíduo (segundo o artigo 7.º,
o nome da pessoa, alcunha, filiação, data do nascimento, naturalidade,
residência, estado, profissão, impressões digitais, a altura, cor dos olhos,
aleijões ou deformidades, tatuagens e, sendo possível, a fotografia).
Em 1936, com o Decreto-Lei n.º 27.304, de 8 de dezembro, os
serviços de identificação e registo criminal e policial são reorganizados
novamente (24). Durante muito tempo o registo policial foi uma dupli-
cação do registo criminal e este decreto concentra ambos num só, criando
o Arquivo Geral do Registo Criminal e Policial (Costa, 1984).
O decreto refere a importância do registo para “fixar o reincidente”
e o seu papel fundamental na investigação criminal. Para um registo
perfeito seria necessária uma identificação rigorosa que iria desde a iden-
tificação antropométrica à datiloscópica. Segundo o artigo 13.º, todos
os boletins do registo criminal e policial deveriam conter, entre outros
elementos, a identidade da pessoa a quem dizem respeito, nomeadamente
os seus sinais característicos e impressões digitais.
Neste mesmo ano surge o Decreto-Lei n.º 27.305, de 8 de dezem-
bro, que refere a necessidade de recorrer a vários processos que vão desde
a sinalética, ao retrato, antropometria e datiloscopia para demonstrar a
identidade do indivíduo. Este decreto refere, contudo, que “só com a

(24)
O registo criminal encontrava-se associado com a intervenção dos tribunais,
contendo informação quanto às condenações e detenções. O registo policial relacio-
nava-se com as detenções das autoridades (Decreto-Lei n.º 27:304, 8 de dezembro de
1936), devendo ter informação quanto ao carácter, historial, hábitos, características
físicas e atividades suspeitas (Machado e Prainsack, 2012).

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O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 327

descoberta da datiloscopia foi possível obter um título que pudesse ser


meio seguro de identificação”.
Estamos perante a era da datiloscopia, assumindo-se esta como o
sistema de identificação dominante (Cole, 2001). Prosseguindo no
tempo e averiguando a legislação produzida em torno de questões de
identificação, é possível constatar que a impressão digital se assume
definitivamente como o sistema dominante não apenas na identificação
criminal como também na identificação civil.
Já desde 1936 que se almejava a unificação e centralização dos ser-
viços de registo criminal. Em 1976 tal já tinha sido alcançado e passa
a ser responsabilidade do Centro de Identificação Civil e Criminal
(CICC) organizar e manter os ficheiros centrais de identificação civil e
criminal (Decreto-Lei n.º 63/76, de 24 de janeiro). O CICC é regula-
mentado pelo Decreto-Lei n.º 64/76 de 24 de janeiro. Este regulamento
faz referência ao Bilhete de Identidade e os elementos que nele devem
constar, como por exemplo, a fotografia, impressão digital e altura.
É ainda referido o registo criminal e o modo como este é organizado em
cadastros individuais.
De acordo com o n.º 3 do artigo 33.º, “sempre que possível, por
cada cadastro será catalogado um boletim com impressões digitais, pela
ordem da respetiva fórmula, no arquivo dactiloscópico” (25) (Decreto-Lei
n.º 64/76, de 24 de janeiro). Em 1991 surge a Lei da Identificação
Civil e Criminal (Lei n.º 12, de 21 de maio). Esta lei refere que a
identificação criminal abrange não só a recolha e manuseamento dos
extratos das decisões criminais pelos tribunais de modo a conhecer os
antecedentes criminais, como também “são ainda objecto de recolha as
impressões digitais dos arguidos condenados nos tribunais portugueses
para organização do ficheiro datiloscópico” (art. 13.º da Lei n.º 12/91,
de 21 de maio).
O CICC é extinto pelo Decreto-Lei n.º 148/93, de 3 de maio, e a
identificação criminal passa a ser competência da Direção-Geral dos

(25)
O arquivo datiloscópico contava já com 700 000 fichas em 1958 classifi-
cadas no sistema de Galton (Malhado, 2001).

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328 Diana Miranda

Serviços Judiciários. Nesta é criada a Direção de Serviços de Identifica-


ção Criminal, de Contumazes e Objetores de Consciência, que passa, a
partir de 1993, a ser responsável pela recolha, classificação e arquivo das
impressões digitais dos arguidos condenados em Portugal (art. 3.º do
Decreto-Lei n.º 148/93, de 3 de maio).

3.3. Sistema automatizado de identificação por impressão digital

Baseado no sistema de Vucetich (26), Federico Olóriz Aguillera, um


professor de anatomia da Universidade de Madrid, desenvolveu o
principal sistema de classificação de impressões digitais usado em Por-
tugal e Espanha até ao recurso a sistemas automatizados de identifica-
ção lofoscópica (27) como o AFIS (28) (Oliveira, 2012; Triplett, 2012).
A lofoscopia (29) é implementada na Polícia Judiciária com a adoção
deste sistema de Olóriz em 1957 (30) (Correia, 2008; Malhado, 2001;
Oliveira, 2012).
No final do século XX começam a ser desenvolvidos sistemas auto-
máticos de identificação por impressão digital (AFIS) nos Estados Unidos
da América, Reino Unido, França e Japão. A pesquisa efetuada pelo FBI
(Federal Bureau of Investigation), em particular, resultou na criação de
software por diferentes empresas que permite armazenar impressões digi-

(26)
Juan Vucetich, argentino, desenvolveu o seu próprio sistema de classificação
de impressões digitais.
(27)
A lofoscopia pode ser definida como “a ciência que estuda os desenhos
formados pelas cristas dermopapilares das extremidades digitais, palmas das mãos e
plantas dos pés” (Correia, 2008: 143). Assim, a lofoscopia compreende a datiloscopia
(impressões digitais), quiroscopia (impressões palmares) e pelmatoscopia (desenhos
formados pelas plantas dos pés) (Correia, 2008; Malhado, 2001; Oliveira, 2012).
(28)
Automated Fingerprint Identification System.
(29)
A lofoscopia encontra-se na dependência do Laboratório de Polícia Cien-
tífica (LPC), integrada no Setor de Identificação Judiciária da Área de Criminalística
(Oliveira, 2012).
(30)
É neste ano que é fundado o Laboratório de Polícia Científica, o que leva
a que a Polícia Judiciária adquira uma certa autonomia em relação ao Instituto de
Medicina Legal (Decreto-Lei n.º 41.306, de 2 de outubro de 1957).

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O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 329

tais eletronicamente (Brotman e Pavel, 1991; Finn, 2005; Moses et al.,


2010). Esta revolução digital tem impactos na identificação criminal e os
digital digits passam a dominar (Cole, 2001). O recurso à representação
digital permite a conversão de uma estrutura em dígitos e o seu proces-
samento eletrónico (Mordini e Massari, 2008), triunfando assim o arma-
zenamento digital (Cole, 2001; Machado e Prainsack, 2012).

Ilustração 2

Em Portugal, o AFIS é gerido pela Polícia Judiciária já desde 1990


e se inicialmente o seu uso apenas ocorria em Lisboa, na atualidade
ocorre um pouco por todo o território (Oliveira, 2012). No caso por-
Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®
330 Diana Miranda

tuguês há recurso ao sistema informático Omnitrak que permite o arma-


zenamento das impressões digitais como imagens digitais. Convém
referir que a recolha lofoscópica (Correia, 2008) inclui não só a recolha
de impressões digitais (datiloscopia) mas também a recolha de impressões
palmares (quiroscopia).
Atualmente, a Polícia Judiciária também recorre à fotografia do
arguido e o registo da cor dos olhos, altura e sinais particulares (cicatrizes
e tatuagens). A lofoscopia permite assim a “identificação judiciária, com
a feitura de resenhas e clichés a arguidos, a fim de se proceder a posterior
inserção no AFIS” (Oliveira, 2012: 117).
Foram surgindo novas tecnologias como o livescan (o scan direto
para o computador) que eliminam algumas das limitações de cariz técnico
da impressão digital (Cole, 2001; Machado e Prainsack, 2012). Con-
tudo, na maioria dos gabinetes de perícia criminalística da Polícia Judi-
ciária a recolha ainda se efetua com recurso a tinta. Apenas em Lisboa
e Porto a recolha se processa através dessa tecnologia que permite regis-
tar as impressões digitais por leitura ótica (Malhado, 2001).
Para haver uma identificação válida é necessário um determinado
número de pontos característicos. Estes pontos dizem respeito a um
conjunto de detalhes únicos. O número de pontos difere consoante os
países, sendo que em Portugal são 12 (31) os pontos característicos coin-
cidentes necessários para uma identificação (Correia, 2008; Malhado,
2001; Oliveira, 2012). De acordo com Pedro Correia:

As impressões digitais são individualizadas na base de dados pela


sua classificação e pela disposição espacial dos pontos característicos
que ela apresenta. Estes dois parâmetros são atribuídos pela aplica-
ção do sistema informático (OMNITRAK), mas sujeitos a controlo
por parte de um técnico de lofoscopia (2008: 146).

(31)
Tal como refere José Oliveira, “não existe (…) lei ou regulamentação ade-
quada à determinabilidade do valor dos datilogramas/quirogramas que acompanham
os relatórios periciais, ou seja, o número de pontos padrão baseia-se, mutatis mutandis,
numa espécie de costume como fonte do Direito…” (2012: 118).

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 331

Isto é, depois de revelados os vestígios latentes da cena de crime,


estes não são apenas arquivados em papel. Há uma introdução destes
vestígios no sistema informático Omnitrak através de câmara ou scanner
e são marcados os seus pontos característicos para se efetuar pesquisa nos
ficheiros datiloscópicos e quiroscópicos. Da pesquisa surgem vários
resultados prováveis e o perito tem de observar cada possibilidade apre-
sentada pelo sistema automatizado. Este sistema “estabelece uma com-
paração entre uma nova resenha, as resenhas já existentes e os vestígios
em memória, com vista à deteção de falsas/duplas identidades e de iden-
tificações” (Correia, 2008: 156).

3.4. Bases de dados de identificação criminal

Nesta tendência para a informatização destacam-se ainda as bases de


dados de gestão processual. Estas contêm o registo de elementos de iden-
tificação pessoal, de informação criminal e decisões processuais de natureza
penal (Malhado, 2001). As bases de dados de identificação criminal da
Direção-Geral da Administração da Justiça assumem-se assim como fun-
damentais, podendo os ficheiros do registo criminal conter informações
de todas as condenações (Machado e Prainsack, 2012). O registo criminal
pode então ser informatizado e organizado num ficheiro central (art. 4.º
da Lei n.º 57/98, de 18 de agosto).
A Lei n.º 57/98, de 18 de agosto, vem regular estas bases de dados
e o seu funcionamento, indicando como “meio complementar de iden-
tificação, as impressões digitais dos arguidos condenados nos tribunais
portugueses, que são arquivadas pela ordem da respetiva fórmula, para
organização do ficheiro datiloscópico” (art. 1.º, n.º 2). Segundo o
Decreto-Lei n.º 381/98, de 27 de novembro, é atribuído um número
sequencial a cada registo criminal. Este decreto refere-se ao ficheiro
datiloscópico, constando no artigo 17.º que “as impressões digitais dos
arguidos condenados remetidas pelos tribunais, depois de devidamente
classificadas, são objeto de arquivo pela ordem da respetiva fórmula, com
referência ao respetivo número de registo criminal”.
O boletim do registo criminal deve conter o extrato da decisão, no
qual seja identificado o arguido. Esta identificação implica que “as
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332 Diana Miranda

impressões digitais e a assinatura do arguido devem ser objeto de recolha


no boletim do registo criminal respetivo imediatamente após o encerra-
mento da audiência de julgamento” (art. 5.º do Decreto-Lei n.º 381/98,
de 27 de novembro). Convém referir, contudo, que por vezes os boletins
não contêm as impressões digitais ou por vezes estas têm fraca qualidade
(Malhado, 2001) (32).
O Decreto-Lei n.º 62/99, de 2 de março, regulamenta as bases de
dados do registo criminal, constituída pelos ficheiros informáticos rela-
tivos à identificação criminal e de contumazes da Direção-Geral dos
Serviços Judiciários. O ficheiro onomástico de identificação criminal e
de contumazes e o ficheiro central do registo de contumácia são alguns
desses ficheiros (art. 1.º), os quais permitem gerir e atualizar a informa-
ção sobre a identificação dos indivíduos com antecedentes criminais
(art. 2.º).

3.5. Sistema Integrado de Informação Criminal

O regime jurídico dos ficheiros informáticos da Polícia Judiciária é


estabelecido pelo decreto-lei n.º 352/99 (Oliveira, 2012). Destaque-se
ainda o Decreto-Lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro, onde consta
que “a Polícia Judiciária pode aceder, nos termos das normas e procedi-
mentos aplicáveis, a informação de interesse criminal contida nos fichei-
ros de outros organismos nacionais e internacionais” (n.º 2 do art. 9.º).
De facto, na Lei n.º 33/99, de 18 de maio, que regula a identifica-
ção civil e a emissão do bilhete de identidade de cidadão nacional, é
referida a possibilidade das entidades policiais e judiciárias terem acesso
à informação que consta na base de dados no âmbito da investigação ou
instrução criminal (art. 24.º da Lei n.º 33/99, de 18 de maio). É assim
possível que as impressões digitais recolhidas para o cartão de identifi-
cação nacional sejam utilizadas na investigação criminal, sendo compa-
radas com as que são encontradas nas cenas de crime.

(32)
Atualmente, no registo criminal é utilizado o sistema modificado de Gal-
ton-Henry (Malhado, 2001).

Coimbra Editora ® Parte IV


O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 333

O Decreto-Lei n.º 395/99, de 13 de outubro, refere-se também


ao Instituto de Medicina Legal e aos seus ficheiros de dados informa-
tizados. Estes dados destinam-se, entre outros, à elaboração de perí-
cias e relatórios médico-legais e à criação de um ficheiro datiloscópico.
Os dados que constam nestes ficheiros também podem ser acedidos
por autoridades judiciárias e policiais, tal como indica o artigo 10.º
do Decreto.
A Polícia Judiciária gere um sistema integrado de informação que
pretende centralizar a informação criminal (art. 8.º do Decreto-Lei
n.º 275-A/2000, de 9 de novembro). A centralização e gestão nacional
da informação criminal e a recolha, tratamento e registo de vestígios
identificadores é responsabilidade do Departamento Central de Informa-
ção Criminal e Polícia Técnica (art. 36.º, n.º 1, do Decreto-Lei
n.º 275-A/2000, de 9 de novembro). Este sistema integrado de infor-
mação criminal inclui bases de dados de investigação judiciária (33) e o
acesso a bases externas, como é o caso da identificação civil, registo cri-
minal e outras informações relevantes, como, por exemplo, as que são
comunicadas pela Direção-Geral dos Serviços Prisionais (Malhado, 2001).

3.6. A identificação criminal e a identificação civil

No início do século XX, António Ferreira Augusto reconhecia que


para maior eficácia do método de Bertillon deveriam ser registadas as
medidas antropométricas “em todos os documentos em que seja neces-
sário ficar bem constatada a identidade do individuo” (Augusto, 1902b:
10). Tal tornaria possível a associação de cada corpo a um registo e,
sempre que necessário, a identidade seria confirmada através das medições
ou impressão digital (Augusto, 1902b).
Cerca de dez anos depois é instituída pelo decreto D.R. n.º 228, de
27 de setembro de 1912 a carteira de identidade, o primeiro documento

(33)
No registo de dados pessoais destacam-se os dados nominativos (nome,
alcunha), a sinalética antropométrica (altura, sinais e características físicas como cicatri-
zes e tatuagens), fotográfica e lofoscópica, e os dados biológicos (Malhado, 2001).

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334 Diana Miranda

português oficial de caráter identificador. Este é inicialmente aplicado


junto de funcionários públicos, contendo as impressões digitais, fotogra-
fia (frente e perfil), elementos antropométricos e a descrição de marcas
particulares e cicatrizes (Pina, 1939b). No entanto, esta primeira ten-
tativa de criação de cartões de identidade acabou por ser um fracasso
(Machado e Prainsack, 2012; Madureira, 2003).
Em 1918, o Decreto n.º 4.837, de 25 de setembro, cria o Arquivo
de Identificação de Lisboa em substituição do Arquivo Central de
Identificação e Estatística Criminal. Com este arquivo pretende-se
“sujeitar todos os condenados, pronunciados e os presos ou afiançados
ao processo dactiloscópico, acompanhado ou não da sinalética antro-
pométrica” (Decreto-Lei n.º 27.305, 8 de dezembro de 1936). Este
decreto faz referência ao bilhete de identidade e associa à criação deste
documento a necessária identificação do delinquente para descobrir o
seu passado judiciário e combater a criminalidade. Há uma aproxima-
ção de critérios de identificação civil e criminal e são ampliados em
Portugal os serviços de identificação civil (Madureira, 2003; Oliveira,
2012; Pina, 1936, 1939a).
O Bilhete de Identidade civil é criado em 1919 pelo decreto n.º 5.266
de 19 de março (Pina, 1936, 1939b) e passa a ser meio de prova civil
para todos os cidadãos, entrando em funcionamento uma repartição
especializada para esse efeito, o Arquivo de Identificação de Lisboa (Madu-
reira, 2003; Pina, 1968).
A identificação seria efetuada pelo método datiloscópico (Gal-
ton-Henry) complementada ou não com sinalética antropométrica (Pina,
1939b). Novamente, tal como na identificação criminal, também na
civil houve recurso a quatro tipos de sinalética: a descritiva, fotográfica,
antropométrica e datiloscópica.
Na sinalética descritiva, se mencionam a côr dos olhos e sinais par-
ticulares (cicatrizes, anomalias, etc.); quanto à fotográfica, adiciona-se
ao Bilhete o retrato do identificado; no que respeita à antropométrica,
nêle se registram a estatura e a côr dos olhos; no que se refere à dacti-
loscópica, imprime-se no Bilhete a pele da polpa do dedo indicador
direito, isto é, a correspondente estampa (…) colhida em boletim des-
tacado, que se remete para um Arquivo central (Pina, 1938: 31).
Coimbra Editora ® Parte IV
O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 335

Em 1927, com o Decreto 13.254, de 9 de março, há uma reorga-


nização da Repartição do Porto, sendo-lhe anexado o serviço dos Bilhe-
tes de Identidade e passando a denominar-se de Repartição de Antro-
pologia Criminal, Psicologia Experimental e Identificação Civil (Pina,
1931, 1939b).
Além da Repartição do Porto, também o Instituto de Criminologia
de Coimbra (34) passa a ter competências na área civil, funcionando
ambos como arquivos de identificação regionais para fins criminais e
civis a partir de 1927 (Machado e Prainsack, 2012; Pina, 1931, 1938,
1939a, 1968). O sistema de identificação era ainda misto e abrangia as
observações antropométricas (altura, cor dos olhos, cicatrizes), impressões
digitais (indicador direito) e fotografia (Madureira, 2003).
Além destes arquivos regionais, convém referir o Instituto de Crimi-
nologia de Lisboa, criado pelo decreto n.º 5.609, de 10 de maio de 1919.
O Decreto n.º 12.202, de 26 de agosto de 1926 transfere para este Ins-
tituto os serviços de identificação criminal e é nele que fica a funcionar
o Arquivo Central de Identificação Criminal, segundo o Decreto
n.º 13.254, de 9 de março de 1927 (Pina, 1938, 1939a). É, portanto,
junto desses Institutos e Repartição do Porto que são colocados os servi-
ços de identificação e registo criminais (Maldonado, 1968). A Repartição
do Porto é transformada em Instituto de Criminologia apenas em 1936
com o Decreto de 8 de dezembro.
Em 1936, o Decreto n.º 27.304, de 8 de dezembro, torna obriga-
tória a remessa de boletins datiloscópicos criminais para a sede ou
Arquivo Geral de Registo Criminal e Policial. Nessa mesma data, o
decreto 27.305 reorganiza os serviços de Identificação Civil, centralizan-
do-os, com o objetivo de estabelecer um ficheiro datiloscópico único
(Pina, 1939b) (35). Adriano Moreira já referia as vantagens de uma base

(34)
O Instituto de Criminologia de Coimbra é criado pelo Decreto n.º 13:254,
de 9 de Março de 1927.
(35)
Na Portaria n.º 7.312, de 29 de março de 1932 previa-se a remessa de
boletins datiloscópicos (Registos Criminal e Policial). Também já no artigo 24.º do
Decreto n.º 13.254, de 9 de março de 1927 se pretendia o envio de boletins datilos-
cópicos para o Arquivo Criminal da respectiva área judicial (Pina, 1939b).

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336 Diana Miranda

datiloscópica para toda a população com fins de identificação civil e


criminal, sendo que tal seria, no seu entender, expectável no futuro
(Moreira, 1960 apud Machado e Prainsack, 2012).
No Decreto n.º 33.535, de 21 de fevereiro de 1944 é referido que
ainda não existia um arquivo completo de impressões digitais. O Arquivo
de Identificação não possuía à data nenhum serviço e o do Arquivo Geral
do Registo Criminal e Policial não bastava. Este decreto enaltece que
uma identificação para ser rigorosa requer o uso de métodos datiloscó-
picos e que é necessário um arquivo central. Para tal, é constituída a
Direção dos Serviços de Identificação, que terá a seu cargo a identifica-
ção civil e criminal. Estes serviços distribuem-se por duas secções que
se inserem na Direção dos Serviços de Identificação. A identificação
civil pelo Arquivo de Identificação e a criminal pelo Arquivo Geral do
Registo Criminal e Policial (art. 2.º).
O Decreto-Lei n.º 555/73, de 26 de outubro, regulamenta a Lei
n.º 2/73, de 10 de fevereiro, que instituiu o registo nacional de identi-
ficação, baseado na atribuição de um número nacional de identificação.
Esse registo de cada cidadão contém não apenas o seu número de iden-
tificação mas também os elementos de identificação civil que lhe corres-
pondem e outros elementos, nomeadamente a altura, fórmula datilos-
cópica, sinais particulares, alcunhas ou nomes usados em alternativa.
Tal como diz Nuno Madureira, “depois da antropometria, da dati-
loscopia e da fotografia bertilloniana terem dado provas no controlo de
subpopulações de risco, é chegada a vez de aplicar estas técnicas de
identificação a toda a sociedade” (2003: 298). Os procedimentos de
identificação criminal expandem-se à esfera da identificação civil e o
desejo de identificar e controlar os corpos “suspeitos” alarga-se cada vez
mais e passa a abranger também aqueles que são considerados cidadãos
“respeitáveis” (Cole, 2001).
Noutros países, como os Estados Unidos da América, Canadá ou
Reino Unido, as práticas de identificação remetem para a identificação
de criminosos, sendo a recolha e registo de impressões digitais um exem-
plo de como tal é encarado de modo pejorativo ou estigmatizante.
Convém realçar, contudo, que no caso português foi possível desenvol-
ver-se uma base de impressões digitais e efetuar o seu registo no Bilhete
Coimbra Editora ® Parte IV
O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 337

de Identidade e ainda no Cartão de Cidadão (36) sem praticamente qual-


quer oposição por parte dos cidadãos (Cole 2001; Cole e Lynch 2010;
Finn 2005; Frois, 2008; Machado e Prainsack, 2012).
Constata-se assim que quando são implementadas novas tecnologias
e técnicas de identificação criminal, a tendência é que estas depois sejam
ampliadas a todos os cidadãos. Ou seja, “o registo da diferença dos
criminosos é transformado na igualdade da identificação civil dos cida-
dãos” (Madureira, 2003: 302). Este duplo uso (Machado e Prainsack,
2012) que se tem registado em Portugal voltou a averiguar-se recente-
mente aquando da criação de uma base de dados de perfis de DNA para
fins de identificação civil e criminal.

4. CONCLUSÃO

A evolução das práticas de identificação criminal remete-nos para


um trajeto que vai desde a criação de registos com informações relativas
ao criminoso, descrições físicas, medições antropométricas e impressões
digitais, até às mais recentes tecnologias biométricas, como é o caso do
recurso ao DNA. Ao longo deste trajeto composto por diversos instru-
mentos de identificação criminal e formas de individualização, tem sido
essencial o uso do corpo aliado à tecnologia e conhecimento científico.
De facto, é a autoridade epistémica da ciência que legitima o desenvol-
vimento destes mecanismos de identificação, vigilância e controlo estatal.
Inicialmente apenas eram registadas as informações e sinaléticas
particulares dos presos, constando nesses registos elementos de identifi-
cação muito rudimentares que tinham por base a sinalética descritiva.
Entretanto foi adotado o método de Bertillon e os presos passam a ser
medidos nos postos antropométricos criados para o efeito. Estas práti-
cas são complementadas com a fotografia e, entretanto, desenvolve-se a

(36)
A Lei n.º 7/2007 de 5 de fevereiro, cria o Cartão de Cidadão em substi-
tuição do BI. Além dos elementos que já constavam no BI, este novo cartão passa a
incluir a morada, a assinatura digital e a impressão digital do indicador esquerdo (no
BI apenas constava a do direito).

Tecnologias no presente, passado e futuro Coimbra Editora ®


338 Diana Miranda

datiloscopia. Em suma, no início do século XX a identificação criminal


socorria-se de diversas sinaléticas, desde a descritiva, antropométrica,
fotográfica e datiloscópica.
Ao longo do século vai sendo organizado o sistema de registo poli-
cial e criminal, e a datiloscopia assume-se como o método dominante
de identificação. O recurso às aplicações informáticas afigura-se como
fundamental para a modernização do aparelho judicial e surgem, com
o aproximar do século XXI, os sistemas automatizados, nomeadamente
as bases de dados de identificação criminal e o AFIS.
Esta informação que se tem vindo a recolher, armazenar e analisar
para efeitos de identificação criminal não é apenas de caráter físico e
visual, mas também de caráter biológico, sendo de realçar o impacto da
biologia molecular nas práticas de identificação. Os métodos de iden-
tificação criminal baseados na genética desenvolveram-se no final do
século XX, tendo como momento marcante em Portugal a criação de uma
base de dados de perfis de DNA em 2008 pela Lei n.º 5, de 12 de fevereiro.
Prevê-se assim o surgimento de uma nova era, a era da genética, em
que as bases de dados de perfis de DNA surgem como um poderoso
instrumento associado à promessa de uma identificação eficaz de crimi-
nosos. Em Portugal, no início do século XXI, iniciou-se um debate em
torno da proposta de criação de uma base de dados de perfis de DNA
(Botelho e Gomes, 2000; Oliveira, 2001) e em 2005 foi anunciada a
ambição política de criar uma base de dados universal (Boavida, 2005;
Machado e Prainsack, 2012). Mais uma vez tal não pareceu alarmar os
cidadãos nem gerou grande controvérsia. De facto, se o perfil de DNA
fosse inserido no cartão de identificação tudo indica que tal seria facil-
mente aceite pelo cidadão português, como aconteceu no caso do Bilhete
de Identidade e impressão digital (Ribeiro, 2011). Em Portugal cons-
tata-se precisamente esta tendência das técnicas de identificação indivi-
dual começarem por se aplicar no âmbito criminal para depois terem
aplicação na identificação civil.
Ao longo da história, os processos de identificação criminal têm-se
transformado em termos tecnológicos e científicos mas há aspetos que são
similares na sua essência. A impressão digital pretendia, através de uma
imagem visual, traduzir a identidade do criminoso em linguagem. Também
Coimbra Editora ® Parte IV
O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 339

o método de Bertillon tinha a pretensão de reduzir a identidade e o corpo


a uma linguagem passível de ser codificada para transformar o corpo cri-
minal em informação. O mesmo se passa, um século mais tarde, com o
recurso ao DNA. Todos estes instrumentos procuram assim identificar,
registar e controlar os “corpos suspeitos”, tornando-os visíveis.
Os discursos que legitimam a necessidade do método de Bertillon
e da datiloscopia em Portugal assemelham-se ao discurso da proposta de
lei para a criação de uma base de dados de perfis de DNA. Da mesma
forma que no início do século XX se encarava a antropometria e as
impressões digitais como a solução para a descoberta e identificação do
verdadeiro criminoso, é possível voltar a verificar este mesmo entusiasmo
e otimismo em alcançar a verdade com o recurso ao DNA. É ainda
interessante constatar como os argumentos aquando da implementação
destes instrumentos se prendem com o facto de no estrangeiro tal já ter
ocorrido e da necessidade de acompanhar ao nível tecnológico os países
mais evoluídos. Em Portugal, portanto, “o grande slogan” parece pren-
der-se com a modernização (Fróis, 2008).
Têm surgido ao longo do tempo novas técnicas e métodos de iden-
tificação e classificação, o que leva a que por vezes os sistemas se tornem
incompatíveis entre si. Isto já se verificava no início do século XX devido
à falta de cooperação e duplicação de registos e informação. É então
muito importante atender aos erros do passado de modo a ter presente
a necessidade de integração e cooperação das diversas instituições. A este
propósito, convém enaltecer que o sistema de identificação criminal é
todo um conjunto diversificado de registos de diversas entidades e ser-
viços que pretende identificar o autor do crime. Tal remete-nos não só
para a identificação judiciária, mas também para a identificação judicial
e registo criminal (Malhado, 2001).

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tério do Interior. Lisboa.
Decreto n.º 4.837/18, de 25 de setembro. Diário do Governo n.º 209/18 — I Série.
Secretaria de Estado da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto n.º 5.023/18, de 3 de dezembro. Diário do Governo n.º 261/18 — I Série.
Secretaria de Estado da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto n.º 5.266/19, de 19 de março. Diário do Governo n.º 56/19 — I Série. Minis-
tério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto n.º 5.609/19, de 10 de maio. Diário do Governo n.º 98/19 — I Série. Minis-
tério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 6.916/20, de 10 de setembro. Diário do Governo n.º 178/20 — I Série.
Ministério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto n.º 8.435/1922, de 21 de outubro. Diário do Governo n.º 220/22 — I Série.
Ministério do Interior. Lisboa.
Decreto n.º 12.202/26, de 26 de agosto. Diário do Governo n.º 188/26 — I Série.
Ministério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.

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Decreto n.º 13.254/27, de 9 de março. Diário do Governo n.º 48/27 — I Série. Minis-
tério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto n.º 14.731/27, de 15 de dezembro. Diário do Governo n.º 277/27 — I Série.
Ministério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.
Decreto n.º 15.963/28, de 18 de setembro. Diário do Governo n.º 215/28 — I Série.
Presidência do Ministério. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 26.643/36, de 28 de maio. Diário do Governo n.º 124/36 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-lei n.º 27.304/36, de 8 de dezembro. Diário do Governo n.º 287/36 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-lei n.º 27.305/36, de 8 de dezembro. Diário do Governo n.º 287/36 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto n.º 33.535/44, de 21 de fevereiro. Diário do Governo n.º 36/44 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-Lei n.o 555/73, de 26 de outubro. Diário do Governo n.º 251/73 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 63/76, de 24 de janeiro. Diário do Governo n.º 20/76 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 64/76, de 24 de janeiro. Diário do Governo n.º 20/76 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 148/93, de 3 de maio. Diário da República n.º 102/93 — I Série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 381/98, de 27 de novembro. Diário da República n.º 275/98 — I Série
A. Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-lei n.º 62/99, de 2 de março. Diário da República n.º 51/99 — I Série A.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-lei n.º 395/99, de 13 de outubro. Diário da República n.º 239/99 — I Série
A. Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-lei n.º 275-A/2000, de 9 de novembro. Diário da República n.º 259/2000
— I Série A. Ministério da Justiça. Lisboa.
Decreto-Lei n.º 51/2011, de 11 de abril. Diário da República n.º 71/2011 — I série.
Ministério da Justiça. Lisboa.
Lei n.o 12/91, de 21 de maio. Diário da República n.º 116/91 — I Série A. Assembleia
da República. Lisboa.
Lei n.o 57/98, de 18 de agosto. Diário da República n.º 189/98 — I Série A. Assembleia
da República. Lisboa.
Lei n.º 33/99, de 18 de maio. Diário da República n.º 115/99 — I Série A. Assembleia
da República. Lisboa.
Lei n.º 5/2008, de 12 de fevereiro. Diário da República n.º 30/2008 — I Série. Assem-
bleia da República. Lisboa.
Portaria n.º 7.312/32, de 29 de março. Diário do Governo n.º 74/32 — I Série. Minis-
tério da Justiça e dos Cultos. Lisboa.

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O trajeto histórico dos métodos de identificação criminal em Portugal 345

OUTRAS FONTES

Arquivo Histórico dos Serviços Prisionais (norte):

— Livros de registo de entrada de presos da Cadeia Civil do Porto — 1754-1972.


— Livros de registo de entrada de presos da Cadeia de Estarreja — 1876-1978.
— Livros de registo de entrada de presos de Santa Cruz — 1895.
— Processos individuais de presos — 1935 — 1972.

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