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Título original:

La notion de "formule"en analyse du discours - cadre théorique et méthodologique


© Presses Universitaires de Franche-Compté,2009
ISBN: 978-2-84867-255-7

EDIÇÃO BRASILEIRA:
C apa e projeto gráfico : Andréia Custódio
T radução : Luciana Salazar Salgado, Sírio Possenti
E ditor: Marcos Marcionilo
C onselho E ditorial: Ana Stahl Zilles [Unisinos]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC, Ipol]
Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
Rachel Gazolla de Andrade [PUC-SP]
SalmaTannus Muchail [PUCSP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]

CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

K93n
Krieg-Planque, Alice
A noção de "fórmula" em análise do discurso: quadro teórico
e metodológico / Alice Krieg-Planque;tradução Luciana Salazar
Salgado, Sírio Possenti. - São Paulo : Parábola Editorial, 2010.
-(Lingua[gem] ;39)
Tradução de: La notion de"formule en analyse du discours
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7934-009-3
1. Análise do discurso. 2. Sociolinguística.3.Comunicação
de massa e linguagem.4. Linguagem e línguas. I.Título. II. Série.

10-2870. CDD: 401.41


CDU 81 '42

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Parábola Editorial
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por escrito da Parábola Editorial Ltda.

ISBN: 978-85-7934-009-3

© da edição brasileira: Parábola Editorial, São Paulo, julho de 2010


Sumário

Nota do Editor.........................................................................................7

Introdução geral.......................................................................................9
Capítulo 1: “Da análise do vocabulário sociopolítico à
delimitação de fórmulas” .............................................. 14
Capítulo 2: “O trabalho heurístico de Jean-Pierre Faye:
a fórmula ‘Estado total’” ............................................... 15
Capítulo 3: “A análise de Marianne Ebel e Pierre Fiala”................ 15
Capítulo 4: “Propostas: aspropriedades dafórmula” .........................15
Capítulo 5: “Sobre a noção de fórm ula: síntese, deslocamentos,
questões”........................................................................ 16

CAPÍTULO 1
Da análise do vocabulário sociopolítico à delimitação de fórmulas....17

CAPÍTULO 2

O trabalho heurístico de Jean-Pierre Faye: a fórmula “Estado total” ..33


A. Observações sobre o trabalho de Jean-Pierre Faye...................... 33
B. A gênese.....................................................................................38
C. A circulação................................................................................ 40
D. A cristalização ........................................................................... 43
E. O processo de aceitabilidade.......................................................45

CAPÍTULO 3

A análise de Marianne Ebel e Pierre F iala.......................................... 51


A. As fórmulas“Überfremdung” e“xenofobia”..................................51
B. A fórmula como referente social..................................................53
C. A fórmula como objeto polêmico .............................................. 55

CAPÍTULO 4

Propostas: as propriedades da fórmula................................ .................61


A. O caráter cristalizado da fórmula................................................ 61
B. O caráter discursivo da fórmula...................................................81
C. O caráter de referente social da fórmula..................................... 90
D. O caráter polêmico da fórmula................................................... 99
CAPÍTULO 5
Sobre a noção de formula: síntese, deslocamentos, questões.............. 109
A. Sobre a escolha do termo “fórmula”......................................... 109
B. A fórmula: umacategoria gradual................................................111
C. Do referente social aoespaço público.......................................... 112
D. Do papel das mídias na criação e na circulação das fórmulas... 117

Bibliografia........................................................................................... 123

índice de nom es................................................................................... 139


Nota do Editor

uando você trabalha há mais de trinta anos com edição de livros,


O sua alegria é descobrir um novo título que represente originalida­
de, que enriqueça sua leitura cotidiana e lhe dê a esperança de, mais
uma vez, produzir um livro rico de consequências para a reflexão de
seus leitores.
E esse o sentimento que me move ao entregar aos leitores A noção
de “fórm ula” em análise do discurso - quadro teórico e metodológico, de Alice
Krieg-Planque. A simples leitura, vê-se imediatamente que a autora
lança uma nova luz, por meio da noção de fórmula, sobre a circulação
do discurso, num livro que investiga a razão de algumas palavras e
expressões surgirem e se estabelecerem no discurso público, a ponto de
se tornarem onipresentes, incontornáveis, verdadeiras “fórmulas”.
O resultado é um livro que propõe e estabelece uma nova categoria
em análise do discurso, as “fórmulas”, cujas propriedades e modo de
ação são aqui analisados de maneira esclarecedora.
A noção de “fórm ula” em análise do discurso - quadro teórico e metodológico
é um título que interessará a pesquisadores dedicados a investigações
situadas além do campo das ciências da linguagem, porque também ele­
ge como interlocutores os pesquisadores em história, sociologia, ciência
política, ciências da informação e da comunicação.

Vai aqui uma palavra de agradecimento a Sírio Possenti, que fez


a indicação editorial do livro, originalmente publicado em 2009. Além
de fazer a indicação, ele ainda nos emprestou seu exemplar para que
pudéssemos decidir se contrataríamos o livro. Aqui está o resultado da
indicação e do empréstimo.
Depois de termos adquirido os direitos do livro para o português
junto às Presses Universitaires de Franche-Compté, interessado em que
a edição brasileira chegasse o mais rapidamente possível às mãos de
A NOÇÃO DE “ FO RM U LA” EM ANÁLISE DO DISÛURSG
pesquisadores, professores e estudantes de ciências da linguagem inte­
ressados em análise do discurso, Sírio Possenti assumiu, em colaboração
com Luciana Salazar Salgado, a tradução da obra. Nosso agradecimen­
to, então, a Sírio Possenti [IEL-Unicamp] e a Luciana Salazar Salgado
[UFSCar] pela elegante tradução de uma obra tão técnica, plena de
consequências para a pesquisa que se faz no Brasil, e pelo rigor no
estabelecimento do texto.

A -x? -V -VS-X?

Esperemos que os leitores possam se beneficiar de nossas ações e


colaborações, nesse caso específico, voltadas para uma melhor compre­
ensão do quadro teórico e metodológico no qual as fórmulas se tornam
presentes na construção dos problemas públicos e na estruturação dos
discursos políticos, midiáticos e institucionais.

8
Introdução geral

sta obra é dedicada à noção de fórm ula, tanto do ponto de vista teó­
E rico quanto do metodológico. Por fórmula, designamos um conjunto
de formulações que, pelo fato de serem empregadas em um momento e
em um espaço público dados, cristalizam questões políticas e sociais que
essas expressões contribuem, ao mesmo tempo, para construir. Assim,
por exemplo, podemos considerar que formulações como “mundialização/
globalização”, “mundializar/globalizar”, “antimundialização, “antimun-
dialistas”, “altermundialização”, “altermundialistas” etc. constituem as
variantes de uma mesma fórmula — “mundialização” — , cujo estudo
seria útil para compreender o modo pelo qual os debates sobre o estado
das relações sociais se desenvolveram na virada do século XX para o
século XXI.
Como sugere o exemplo acima, a noção de fórmula deriva principal­
mente da análise do discurso. Essa contextualização, como consequência,
implica certos posicionamentos em relação aos termos utilizados em
diferentes ramificações das ciências da linguagem {léxico, cristalização,
colocação, neologia, atestação, ocorrência, nominalização, emprego, uso, reformu­
lação, paráfrase, produção discursiva, discurso, performatividade, sloganização...).
Voltaremos a isso ao longo destas páginas. A perspectiva pluridisciplinar
na qual este trabalho se situa impõe, igualmente, o recurso a termos
que provêm de diversos horizontes das ciências humanas e sociais. Es­
clareceremos essas escolhas no decorrer dos capítulos.
Além da própria noção de fórmula, o trabalho aqui proposto permite
pensar e analisar outros fenômenos de retomada e de circulação discursi­
vos, como as pequenas frases ou os slogans, por exemplo. Ele permite, ainda,
compreender a forma como diversos atores sociais (homens e mulheres
políticos, militantes de associações, representantes sindicais, dirigentes
de empresas, comunicadores, jornalistas profissionais, intelectuais...)
organizam, por meio dos discursos, as relações de poder e de opinião.
ûsattïfl m asnwif m mmmk, m
O volume que o leitor vai 1er agora resulta, ao mesmo tempo, de
um trabalho anterior, de demandas sobre esse trabalho e de uma von­
tade editorial coletiva.
Antes de qualquer coisa, um trabalho já realizado. Em 2000,
defendemos uma tese de doutorado intitulada Émergence et emplois de
la form ule “purification éthnique” dans la presse française (1980-1994). Une
analyse du discours (Krieg, 2000). Esse trabalho era, de certa maneira,
uma história de palavras: a das quatro palavras que são “purificação”,
“limpeza”, “depuração” e “étnica”. Mais precisamente, tratava-se de
estudar os momentos, na história dos discursos, em que essas palavras
om on

entram em conjunção para formar os sintagmas neológicos “purificação


w

étnica”, “limpeza étnica” e “depuração étnica”. Tratava-se, igualmente,


de ver como, no prisma dessas formulações, a guerra da ex-Iugoslávia
havia sido interpretada nas mídias francesas e internacionais: em outras
palavras, buscávamos apreender em que medida a fórmula “purificação
étnica” tinha podido funcionar como interprétante para alguns dos co­
mentadores das guerras iugoslavas. A apresentação dos resultados desse
estudo e sua análise em contexto foram objeto de uma edição adaptada
pouco tempo depois, pela editora do CNRS, com o título: “Purification
éthnique1’. Une form ule et son histoire (Krieg-Planque, 2003). Essa publi­
cação foi bem recebida tanto em análise do discurso, em lexicologia
sociopolítica, em ciências da informação e da comunicação, em ciência
política, em história contemporânea e imediata, em antropologia, em
sociologia, quanto nos subcampos da pesquisa frequentemente marcados
pela pluridisciplinaridade (por exemplo, os estudos balcânicos ou até
mesmo as pesquisas sobre as violências em massa e sobre as crises ex­
tremas). Contudo, o fundamento teórico e a determinação dos contornos
do objeto — que são francamente constitutivos dos resultados obtidos
por uma comunidade científica — careciam de visibilidade. Apareciam
bastante, mas apenas nas entrelinhas, sem necessariamente dar-se a 1er
de modo explícito. Ora, essa pesquisa visava também apreender essas
formulações na medida em que elas constituem uma fórmula. Tratava-se
de fazer o balanço das propostas desenvolvidas por outros autores em
torno dessa noção e de sugerir nossos próprios elementos de recorte,
10 ao mesmo tempo teóricos e metodológicos. Esse aspecto da pesquisa
INTRODUÇÃO G ER AL
correspondia ao primeiro capítulo da tese (Krieg, 2000c: 15-85), que
se chamava “La notion de formule: circonscription de l’objet e repères
théoriques”. Não tinha sido, até hoje, objeto de publicação. E esse pri­
meiro capítulo que o leitor vai poder encontrar agora, em uma forma
editorial adaptada1.
Em segundo lugar, este volume é editado pelo impulso de necessi­
dades e de demandas. Há alguns anos, de fato, estudantes de formações
diversas e também colegas provenientes de horizontes disciplinares di­
versos reivindicavam que lhes fosse disponibilizado o capítulo inicial da
tese que “Purification éthnique”. Une form ule et son histoire deixava entrever
sem, no entanto, oferecer à leitura. Ou, mais amplamente, eles nos soli­
citavam ajuda para estabelecer um plano prévio teórico e/ou ajuda para
colocar em prática um trabalho de análise de um corpus. Esses estudantes
ou colegas se apoiavam na obra publicada pela editora do CNRS para
empreender ou reconsiderar o estudo de uma série de expressões em
relação às quais tinham a intuição de que poderíam ser apreendidas
como fórmulas. De fato, pistas de trabalho não faltam. São numerosas
as formulações que merecem ser vistas como fórm ulas: “perestroika”,
“glasnost”, “direito de ingerência”, “dever de ingerência”, “mundializa-
ção”, “globalização”, “nova ordem mundial”, “choque de civilizações”,
“guerra contra o terrorismo”, “nova economia”, “exclusão”, “fratura
social”, “exceção cultural”, “discriminação positiva”, “maioria plural”,
“democracia participativa”, “poder de compra”, “os sem-documento”,
“dever de memória”, “problema das periferias”, “integração”, “patrio­
tismo econômico”, “aquecimento global”, “biodiversidade”, “distúrbio
alimentar”, “comércio justo”, “empresa cidadã”, “desenvolvimento sus­
tentável”, “princípio de precaução”, “empresa socialmente responsável”,
“crescimento verde”, “governança mundial”... — e tantas outras. O
presente volume pretende, assim, responder a necessidades imediatas de
pesquisadores jovens ou mais experientes, e propor a noção de fórmula

1 O plano geral da tese defendida em 2000 era: “Capítulo I. A noção de fórmula: circunscri-
ção do objeto e referências teóricas”, “Capítulo II. Apresentação do corpus estudado”, “Capítulo
III. O discurso sobre a guerra iugoslava: a fórmula e seus contextos”, “Capítulo IV. Unidades
lexicais em ato: a fórmula, seus falsos gêmeos, seus concorrentes”, “Capítulo V. Análise das
características notáveis da fórmula ‘purificação étnica’”, “Capítulo VI. Construir e desconstruir
a fórmula: empregos e problematizações da fórmula ‘purificação étnica’ (1980-1994)”. it
A NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” E l ANÁLISE DO DISCURSO
tal como nós a entendemos: como um recurso fecundo para a análise
dos discursos políticos, midiáticos e institucionais.
Enfim, este livro é o resultado de uma vontade editorial coletiva.
De fato, este volume é fruto de trocas feitas desde há alguns anos en­
tre diferentes membros de duas equipes: o LaSeLDi2, da Université de
Franche-Comté, e o Céditec3, da Université Paris-Est. De um lado e de
outro, em meio a conversações, e-mails, jornadas de estudo, colóquios,
cursos em Besançon ou em Créteil, obras coletivas ou números de revistas
que permitiram a colaboração de alguns de seus membros, firmou-se
uma convergência de pontos de vista. Essas afinidades dizem respeito
a um modo de pensar e de praticar a análise do discurso, mas também
a um modo de partilhá-la com públicos de estudantes e de colegas. A
presente publicação inscreve-se na confluência de determinada concepção
do trabalho científico e de opções relativas a seu compartilhamento4.
A natureza do projeto editorial escolhido determinou duas caracte­
rísticas da obra. De um lado, quisemos editar um volume breve: tratava-
se deliberadamente de produzir um fascículo eficaz, um resumo — em
todos os sentidos do termo — que pudesse ser útil tanto à compreensão
do substrato teórico da noção de fórmula, quanto a suas possibilidades
de análise concreta de um corpus. Por outro lado, quisemos deixar a bi­
bliografia tal como registrada na pesquisa de origem, exceto por alguns

2 Laboratoire de Sémio-Linguistique, Didactique et Informatique, EA 2281. O LaSeLDi foi


criado em 2000 com o agrupamento das equipes de pesquisa em ciências da linguagem da
Universidade de Franche-Comté. Essa equipe articula as ciências da linguagem e as ciências da
informação e da comunicação, em relação com a didática e em diálogo com as ciências humanas
e as letras.
3 Centre d’Etudes des Discours, Images, Textes, Écrits, Communications, EA 3119. Criado
em 1999 por iniciativa de Simone Bonnafous, o Céditec se dedica ao estudo dos discursos, suas
formas, suas condições de produção, seus usos e suas interpretações. A abordagem dos discur­
sos privilegiados pela equipe enfatiza conjuntamente as dimensões linguística e institucional
das produções linguageiras. O Céditec articula, assim, estreitamente, ciências da linguagem e
ciências da informação e da comunicação, duas disciplinas cujas relações poderão ser mais bem
conhecidas em Krieg-Planque, 2007a e Krieg-Planque e Oger, 2008.
4 Registrem-se agradecimentos especiais a Philippe Schepens, amigo e colega membro do LaSeLDi,
pela releitura crítica do texto inicial, sem a qual o projeto desta publicação não teria sido levado a
cabo. E também sinceros agradecimentos aos preciosos amigos e colegas cujo interesse, paciência,

P B confiança, generosidade, questionamentos e encorajamentos foram determinantes para a conclusão


do trabalho, em particular Isabelle Laborde-Milaa, Claire Oger, Pierre Fiala, Michelle Lecolle.
INTRODUÇÃO G ER AL
acréscimos necessários à nova introdução geral5. De fato, como explicamos
em uma entrevista publicada na revista Semen (Krieg-Planque, 2006a),
o quadro teórico global no qual nos inscrevemos se alimenta de refle­
xões políticas, intelectuais e científicas dos anos 1975-1985. Tal quadro
teórico permanece. Assim como os trabalhos que formam sua estrutura.
Eles correspondem — para dizê-lo brevemente — à “escola francesa de
análise do discurso”, à qual muitas apresentações foram consagradas6.
Os canteiros da pesquisa, em compensação, continuam abertos, e
a reflexão faz nascerem ramificações que evocamos aqui brevemente.
Em primeiro lugar, os trabalhos realizados depois da defesa de nossa
tese em 2000 reforçam a convicção de uma necessária pluridisciplinaridade
(Krieg-Planque, 2007b), que não é uma petição de princípio, mas uma
“maneira de fazer” que pode ser ilustrada, por exemplo, pelo estudo dos
nomes próprios de acontecimentos, tais como empregados nas mídias
(Krieg-Planque, 2009), ou ainda pelo estudo das relações dos jornalistas
com suas fontes de informação, bem como com as ocorrências do mun­
do fenomenal, cuja “colocação em narrativa” é operacionalizada pelos
profissionais das mídias (Krieg-Planque, 2008). Uma análise institucional
(Krieg-Planque, 2007a) e uma análise epistemológica (Oger, 2007) das
relações entre disciplinas, pondo em evidência alguns mal-entendidos
e certo número de incompatibilidades insuperáveis, também permitem
desenhar o perímetro das cooperações.
Em segundo lugar, a reflexão sobre a noção de fórmula que vamos
1er inscreve-se mais amplamente no quadro de nossas pesquisas, que
incidem sobre os discursos políticos, midiáticos e institucionais contem­
porâneos. Essas pesquisas visam mostrar como esses discursos são, ao
mesmo tempo, o instrumento e o lugar (e não apenas a origem ou a
consequência) das divisões e das junções que fundam o espaço público.
Englobando a noção de fórm ula, a de lugar discursivo (Krieg-Planque, 2006a
e 2006b) constitui um conjunto de proposições para qualquer pesquisador

5 Para uma visada global dos trabalhos recentes em análise do discurso, em particular numa
perspectiva crítica, podem-se retomar: Simone Bonnafous, 2006; Simone Bonnafous e Malika
Temmar (orgs.), 2007; Krieg, 2000b; Maingueneau, 2005; Schepens (org.), 2006.
6 Ver, por exemplo, Dominique Maingueneau, 1991, 1992 e 1995; Francine Mazière, 2007. 13
A NÛÇAÛ DE “ FO R M U LA” i l ANALISE 00 DISCURSO
que aspira compreender os discursos por meio das diferentes formas de
cristalização que esses mesmos discursos modelam e fazem circular.
Enfim, nas articulações das ciências da linguagem com as ciências
da informação e da comunicação, o trabalho aqui apresentado mostra
o interesse que um ponto de vista discursivo pode ter sobre a comu­
nicação. Se, como propomos (2006a: 34), definirmos a comunicação
como um conjunto de habilidades relativas à antecipação das práticas
de retomada, de transformação e de reformulação dos enunciados e de
seus conteúdos, então a análise do discurso deve ser situada entre as
abordagens disciplinares centrais para o estudo dos fatos de comunica­
ção. A compreensão do trabalho dos comunicadores (ou daqueles que,
sem estar formalmente investidos de tal missão, devem integrar uma
função comunicacional em uma de suas atividades, seja ela profissio­
nal e/ou amadora) passa necessariamente, em parte, por uma análise
discursiva: as noções de fórm ula, mas também as de pequena frase, de
elemento de linguagem, de argumento ou ainda de slogan contribuem para
essa compreensão.
O plano adotado na presente obra retoma aquele que havia per­
mitido explicitar os fundamentos teóricos e metodológicos da noção de
fórmula, graças aos quais havíamos alcançado os resultados publicados
em 2003. Esse plano se apresenta assim:

Capítulo i : “ Da análise do vocabulário sociopolítico à delimitação


de fórmulas”
O primeiro capítulo faz um balanço seletivo dos trabalhos dedicados
aos usos sociopolíticos do léxico, na linha dos quais o estudo das fórmulas
se inscreve parcialmente. Com efeito, a noção de uso é determinante
no estudo de uma fórmula, no sentido de que não existe fórmula “em
si”, mas, antes, um conjunto de práticas linguageiras e de relações de
poder e de opinião, em um momento dado, em um espaço público dado,
que gera o destino “formulaico” — se assim se pode dizer — de uma
sequência verbal (podendo ela estar presente, eventualmente, por meio
de diferentes variantes, todas formalmente delimitáveis e relativamente
estáveis do ponto de vista da descrição linguística que delas se pode fazer).
INTRODUÇÃO G ER AL
Capitule 2: “ 0 trabalho heurístico de Jean-Pierre P a p ; a formula
‘ Estado total” 5
O segundo capítulo propõe uma exegese minuciosa dos escritos e
reflexões do filósofo Jean-Pierre Faye, em particular em torno da fórmula
“Estado total”. O caráter talvez mais poético do que científico da obra
fayana impõe limites ao analista do discurso. Para este último, de fato,
as noções de corpus, de textualidade, ou ainda de atestação, por exemplo,
são instrumentos fundamentais. Mas a obra fayana é também profunda­
mente heurística e estimulante, na medida em que permite pensar que
as fórmulas têm uma gênese, que elas podem ser apreendidas por meio
de suas modalidades de circulação em discurso e quanto o caráter de
cristalização é constitutivo delas. Essa obra também ajuda a compre­
ender, talvez até mesmo antes de tudo, como as fórmulas contribuem
para um processo de aceitabilidade conduzido por seus narradores, que,
em sua contemporaneidade imediata, retransmitem-na de modos mais
ou menos organizados, mais ou menos profissionais, mais ou menos
hierarquizados, mais ou menos burocráticos, mais ou menos conscientes,
dóceis, devotados, servis, cínicos, submissos, iníquos.

Capítulo 3: “A análise de Marianne Ebel e Pierre Fiafa”


O terceiro capítulo sintetiza, reorganizando-as, as análises de Ma­
rianne Ebel e Pierre Fiala sobre a noção de fórmula. De fato, ambos —
inscrevendo-se completamente numa certa continuidade fayana — puseram
em funcionamento instrumentos de descrição e de interpretação rigorosos,
graças aos quais procederam ao estudo de corpus de duas fórmulas em
particular: “Überfremdung” (“influência e superpopulação estrangeira”)
e “xenofobia”. Exigentes tanto no plano teórico quanto na postura críti­
ca, mas linguisticamente mais instruídas e construídas do que eram as
propostas fayanas, as análises de Ebel e Fiala nos permitem avançar em
nossas próprias proposições relativas às propriedades de uma fórmula.

Capítulo 4: “ Propostas: as propriedades da fórmula”


O quarto capítulo, então, descreve o que pensamos serem as proprie­
dades essenciais de uma fórmula: seu caráter cristalizado, sua inscrição 15
A NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA55 E l ANÁLISE DO DISCURSO

discursiva, seu funcionamento como referente social, sua dimensão po­


lêmica. Esse desenvolvimento se detém em trabalhos que, em linguística
e em análise do discurso, nos permitem pensar essas propriedades. E
também pretende ser diretamente útil, pelas categorias que propõe e jus­
tifica, aos pesquisadores que querem apreender sob o ângulo formulaico
um conjunto de discursos políticos, midiáticos e institucionais.

Capítulo 5 : “ Sobre a noção de fórmula: síntese, deslocamentos,


questões”
O quinto e último capítulo reúne e comenta o trabalho dos capítulos
precedentes, atendo-se mais particularmente a quatro pontos: a justifica­
ção do termo fórm ula; as precauções no emprego da noção, ligadas em
particular ao fato de que ela corresponde a uma categoria gradual; o
laço entre a noção de fórmula e a de espaço público] um questionamento
do papel das mídias na criação e na circulação das fórmulas. A lista
das questões a propor segue aberta, bem entendido, e os deslocamentos
progressivos e minuciosos que se devem operar constituem as tantas
etapas do caminho que se tem pela frente.

k k k

Esperamos que, tendo lido e percorrido esses cinco capítulos, o


leitor parta mais solidamente equipado para aventurar-se na exploração
de corpora diversificados ligados aos discursos políticos, midiáticos e ins­
titucionais. E, igualmente, que — pelo menos é o que esperamos — ele
se sinta menos só e menos desarmado, na teoria e na prática, em seu
trabalho crítico da política.
C A P Í T U L O 1

Da análise do vocabulário
sociopolítico à delimitação de
fórmulas

esmo não se detendo estritamente na lexicologia, que acompanha


M as palavras na longa duração de seus usos, este trabalho, em
alguma medida, identifica-se com ela. O que apresentamos aqui é, efe­
tivamente, a apreensão de um instante dessa longa duração: propomos
a delimitação e a análise de um momento em que a “vida da palavra”
— para retomar as metáforas biologizantes do século XIX — entra em
um período particularmente denso. Esse período de exceção se configura
no decurso de um tempo durante o qual uma palavra (ou um sintagma,
ou qualquer outra sequência verbal identificável) se põe a funcionar no
espaço público como uma fórmula. Porque a noção de fórmula baseia-se
na noção de usos e porque a fórmula, enquanto fenômeno discursivo, é
constitutiva do discurso sociopolítico, a análise das fórmulas poderia ser
entendida como um domínio conexo à lexicologia sociopolítica.
Os trabalhos de lexicologia sociopolítica ou, dito de outro modo,
as análises de usos sociopolíticos do léxico são numerosas. Como frisa
Marie-France Piguet (1996: 5), a “história das palavras que governam
nossa maneira contemporânea de pensar o mundo”, vislumbrada por
Benveniste já em 1954 (1966), tem hoje lugar mais do que garantido. E é
alimentada por trabalhos bastante consistentes. Muitos deles se inscrevem
na linhagem de Méthode en lexicologie de Georges Matoré, publicado em
1953, ou na da pesquisa de Jean Dubois, publicada dez anos mais tarde
em Le vocabulaire politique et social en France de 1869 à 1872. Uma parte im­
portante desses trabalhos deve muito à informática, cuja utilização hoje
vai da simples exploração de bases de dados textuais para uma rápida
delimitação de ocorrências em um corpus até o emprego de programas de 17
A NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” E U ANÁLISE DO OISSURSO
processamento estatístico das formas lexicais e/ou de conteúdos (Léxico
3, Hyperbase, Astartex, Weblex, Alceste, Cordial, Tropes, Prospéro...)1.
Na França, o Dictionnaire des usages socio-poliques du français sous
la Révolution, publicado em fascículos desde 1985 pela equipe “18e et
Révolution”2, do laboratório Lexicométrie et textes politiques de Saint-
Cloud3, representa um projeto sistemático de descrição do vocabulário
sociopolítico de dado período histórico4. Alguns projetos são mais am­
biciosos ainda, visto que abrangem vários períodos históricos. É o caso,
também na França, do projeto de dicionário dos usos sociopolíticos
elaborado pelo mesmo laboratório Lexicométrie et textes politiques, cuja
publicação começou com um volume experimental consagrado ao léxi­
co do paradigma “égalité/inégalité” [igualdade /desigualdade] e a seus
usos do século XVIII ao século XX5. É o caso também de um projeto
internacional de dicionário de história dos conceitos sociopolíticos e seus
usos, coordenado pelo norte-americano Melvin Richter e pelo finlandês
Kari Palonen. Esses dois projetos se alimentam, sem segui-la em todos
os pontos, da história dos conceitos (Begriffsgeschichte) desenvolvida na
Alemanha por Reinhart Koselleck, especificamente em seu dicionário de
conceitos de base da história67
, assim como por Hans-Jürgen Lüsebrink
e Rolf Reichardt em seu Handbuch1.
Ao lado desses projetos coletivos, muitas análises de lexicologia
sociopolítica têm sido regularmente publicadas, como a de Alain Rey

1 Sobre esses programas, ver, por exemplo, a base Textopol alimentada por Pierre Fiala e
Jean-Marc Leblanc, http://textopol.free.fr.
2 Que se tornou, em 1999, “Pratiques du langage au 18e: histoires, usages”.
3 Em 1998, depois de uma fusão com a equipe “Linguistique et informatique” da ENS Fontenay
Saint-Cloud, o laboratório “Lexicométrie et textes politiques” (UMR 9952) tornou-se o laboratório
Analyses de corpus linguistiques, usages e traitements (UMR 8503). Neste trabalho, utilizamos a
antiga denominação, porque os trabalhos aqui citados foram levados a cabo fundamentalmente
pelas equipes que compunham, até 1998, o “Lexicologie et textes politiques”, de 1965 a 1987, e
depois o “Lexicométrie et textes politiques”, de 1988 a 1998.
4 Ver os oitos fascículos publicados pela equipe “18e et Révolution”, 1985, 1987, 1988, 1989,
1991,1999, 2003 e 2006.
5 Fiala (org.), 1999.
6 Otto Brunner, Werner Conze, Reinhart Koselleck (1972-1984).
7 Hans-Jürgen Lüsebrink e Rolf Reichardt (orgs.), (1985 -...). Ver também Hans-Jürgen Lüsebrink
e Rolf Reichardt (1990). Os leitores francófonos podem, ainda, 1er o artigo de Rolf Reichardt
(1982).
(1989) sobre a palavra “révolution” [revolução], a de Marie-France Piguet

M ANÁLISE DO VOCABULÁRIO SOCIOPOLÍTICO À DELIM ITAÇÃO DE FO RM ULAS


(1996) sobre a palavra “classe” [classe]8, a de Marc Deleplace (1994; 1995;
1998) sobre a palavra “anarchie” [anarquia], ou as de Maurice Tournier,
bastante mais sintéticas e voltadas, sobretudo em dado período (18489),
para as palavras “grève” [greve]10, “travailleur” [trabalhador]11 ou “jau­
ne” [fura-greve]12. Com o nome “etimologia social”13, Maurice Tournier
enfoca uma história das formas lexicais que entram na política, de suas
significações e usos, não na perspectiva aparentemente consensual do
dicionário de língua, mas na perspectiva conflituosa que caracteriza o
vocabulário político, no qual os termos são portadores de representações
sociais e o sentido das palavras se acumula conforme “as necessidades
sociais de consenso ou de dominância” (Tournier, 1992: 280).
Há mais de vinte anos, Maurice Tournier (1982) mapeou as aná­
lises do vocabulário sociopolítico: já se notava, então, a abundância de
monografias consagradas às palavras do campo político. Essas análises
dos usos sociopolíticos não são propriamente trabalhos sobre o que
chamamos fórmulas. Lembramos isso porque a noção de fórmula está
ligada à de uso: a fórmula corresponde a uma utilização particular da
“palavra” (por enquanto, vamos chamá-la assim). Dito de outro modo:
o acesso de uma palavra à condição de fórmula é parte integrante da
história dos usos dessa palavra. Lendo as monografias consagradas a
essa ou àquela palavra, podemos apreender os momentos em que dada
palavra é objeto de um uso particular. Seguindo o caminho dos usos de
uma unidade lexical, frequentemente verificamos desvios de percurso: é
nesse episódio particularmente movimentado da “vida de uma palavra”
que a fórmula pode ganhar consistência. A seguir, comentaremos dois

8 O livro de Marie-France Piguet resulta de sua tese de doutorado (Piguet 1993). Ver em Piguet
(1996) uma resenha desse livro feita por Fiala (1997). Sobre “classe”, ver, ainda, Piguet (1997) e
(1998).
9 A predileção por esse período se explica pela investigação aprofundada de que ela foi objeto
em Tournier (1975).
10 Tournier ([1979] 1992); Tournier ([1982] 1992); Tournier, “Petit aparté prototypique sur la
grève”, in Tournier (1992: 273-277).
11 Tournier, “Travailleur aux prises avec l’histoire”, in Tournier (1992: 127-133).
12 Tournier ([1984] 1992).
13 Ver em particular “Aux sources du sens, l’étymologie sociale” in Tournier (1992: 279-291) e
“Des mots en histoire”, in Tournier (1997: 287-298). 19
osunosiQ oa isnvNv w i «y i d n d o j ,, m o võ o n v

exemplos de trabalhos recentes, ilustrativos desses “desvios de percurso”


e suscetíveis de corresponder ao estatuto “formulaico” de um termo.
Em “Révolution", histoire d ’un mot, Alain Rey observa, na longa história
de suas alterações semânticas, a evolução do signo lexical “révolution”
[revolução] e do conceito que ele exprime, desde seu surgimento no século
XII até seus usos contemporâneos, passando pela migração desse termo
pelo domínio da psicologia no início do século XVIII, e, ainda, pelo que
Rey (1989: 342) chama de a “dévergondage” [falta de vergonha] de 1940,
no sintagma “révolution nationale” [revolução nacional] cunhado por
Pétain numa chave reacionária. Sobre esse percurso de usos, finamente
descrito, Rey delineia o que chama de “la grande explosion de 1789” [a
grande explosão de 1789] (ibid.: 54). Nesse ano, aconteceu alguma coisa
não só na história da França, mas também algo na própria história da
palavra “révolution”. Não se trata de resumir aqui o trabalho de Rey.
Nós nos contentaremos em destacar algumas características da grande
explosão de 1789. A explosão do termo “révolution” começa com uma
disseminação do sentido no período dos Estados Gerais. Nesse momen­
to, a palavra cristaliza um conjunto de esperanças e de expectativas, ao
mesmo tempo em que seus sentidos se multiplicam. Escreve Rey:

Instala-se um cacoete otimista de linguagem: a feliz revolução que se


prepara. Cada um atribui a essa expressão aquilo com que sonha:
reformas, mudanças constitucionais, esboço do parlamentarismo, e
também novas instituições, reforma econômica, financeira, jurídica,
penal, luta contra a miséria, limitação dos privilégios (1989: 94).

A explosão da palavra “révolution” coincide, segundo as obser­


vações de Rey, com três fenômenos lexicais ou discursivos. Primeiro,
“révolution” ganha uma larga difusão, é conhecida e usada por todo
mundo: “A palavra, em 1789, está na boca dos oradores que fazem a
história e na boca do povo” (ibid.: 110). Além do mais, ela simboliza,
para seus usuários, certo jogo que há em suas existências cotidianas:
“Ela se reveste de uma virtude emblemática, antes de mais nada, feita
de esperanças e de temores; depois, de entusiasmo e de terror, de furor e
de ódio; finalmente, de nostalgias” (ibid.). Enfim, a palavra “révolution”
23 logo dá origem a uma série abundante de derivados e de compostos,
DA ANÁLISE DO VOCABULÁRIO SOCIOPOLÍTICO À DELIM ITAÇÃO DE FÓ RM ULAS
fenômeno que pode ser relacionado à produtividade lexicológica de que
fala Pierre Fiala, ao tratar de outras palavras de que falaremos mais
adiante. De fato, diz Rey,

em dois ou três anos [a partir de 1789] e talvez em alguns meses [...]


vemos surgir o adjetivo révolutionnaire [revolucionário], que se torna­
rá um substantivo e levará ao advérbio révolutionnairement [revolucio-
nariamente]. Depois, será a vez do verbo révolutionner [revolucionar],
que se encontra frequentemente em Babeuf com seu derivado revo-
lutionnement [*revolucionamento]. Igualmente significativos são os
compostos prefixados contre-révolution [contrarrevolução] e contre-
révolutionnaire [contrarrevolucionário] (1790, em Mirabeau) e anti­
révolutionnaire [antirrevolucionário] (carta de Mme. Roland, 1790). A
lista ainda não está encerrada. Outras formações ocasionais, como
dérévolutionner [*desrevolucionar] (Babeuf, 1795) ou contrerévolution-
ner [contrarrevolucionar] (1794) aparecem lá e cá (ibid.: 117-118)14.

O que um trabalho como o de Rey mostra é que, no movimento


perpétuo dos usos, nas mudanças contínuas dos sentidos e das formas
das palavras, há momentos em que, digamos, o movimento se acelera,
e essa aceleração tem propriedades que um analista do discurso pode
descrever como enunciados atestados.
Marie-France Piguet inscreve seu trabalho explicitamente na linha
das reflexões de Alain Rey. Seguindo a palavra “classe” [classe] desde
suas primeiras atestações no século XIY até os anos 1840, Piguet des­
creve as mudanças nos usos dessa palavra e também as evoluções das
concepções políticas e sociais que as acompanham. Sua análise lexico­
lógica é particularmente atenta aos momentos que testemunham uma
virada na história da palavra “classe”. Ela escreve:

Não se trata, ou não se trata apenas, de fornecer uma história da


palavra através da sucessão de suas diferentes acepções, mas de
procurar os momentos e os lugares textuais em que se produzem
deslocamentos linguísticos, passagens de um registro de uso a outro,

14 A produtividade lexicológica da palavra “révolution” depois de 1789 é também sublinhada


por Hans-Jürgen Lüsebrink e Rolf Reichardt (1988: 38). 21
A NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” i l ANÁLISE DO DISCURSO

nas quais se afirmam coisas novas com o mesmo termo, com vistas a
investigar a origem dessas mutações nos próprios textos em que elas
acontecem, e prosseguir na direção da novidade (Piguet, 1996: 6).

Entre esses momentos, Piguet analisa a concorrência entre a pa­


lavra “classe” e a palavra “ordem” (constatando, afinal, a prevalência
da primeira, que é mais amplamente usada), e também a entrada da
palavra “classe” no registro histórico e da filosofia política, na pena de
Saint-Simon. De nossa perspectiva, que é a da análise de fórmulas, ou­
tro desses momentos atrai mais particularmente nossa atenção. É o da
polêmica em torno do substantivo “classe” quando se dá sua conjunção
com o adjetivo “stérile” [estéril]. Veremos que uma das propriedades
da fórmula é ser problemática no que diz respeito a sua condição de
“palavra” (ou sintagma, ou sequência mais ampla — voltaremos a essa
questão terminológica). Ora, é precisamente isso o que acontece com a
expressão “classe stérile” [classe estéril],
E com Quesnay que o escândalo se dá. Ele propõe, seguido pela
maioria dos fisiocratas, uma divisão da sociedade em três classes: a “classe
productive” [classe produtiva] (expressão que designa os agricultores), a
“classe des propriétaires” [classe dos proprietários] (que designa os pro­
prietários) e a “classe stérile” [classe estéril] (que designa os industriais
e os comerciantes). Este último sintagma não passa despercebido. Ele
acaba sendo objeto de uma polêmica, que incide sobre a questão da
(in)adequação da expressão à coisa que ela designa. A palavra “stérile”
[estéril], escreve Piguet, era, à época, um adjetivo bem atestado, cujos
usos eram diversos, mas

se caracterizavam sempre pela negação. É estéril aquilo que não con­


duz a nada, não produz nada, não concebe nada... Ligado a “dépen­
ses” [despesas, consumo], seu emprego não põe nenhum problema,
mas como epíteto de “classe”, ou seja, de um grupo de pessoas, tor-
na-se pejorativo” (ibid.: 54).

O substantivo “classe”, que por si só não suscita nenhum proble­


ma nesse contexto, é levado de rodo em sua associação com o adjetivo
22 “stérile”.
DA ANÁLISE DO VOCABULÁRIO S 0GÏ 0P 0LÎTIC 0 À DELIM ITAÇÃO D l FÓ RM ULAS
Podemos tirar proveito dos enunciados que Piguet põe à dispo­
sição de seu leitor para observar o modo como, através de operações
metadiscursivas diversas, eles carregam os traços da polêmica de que a
expressão “classe stérile” é objeto. Os adversários da expressão repro­
vam o desprezo dos fisiocratas pela conotação pejorativa de “stérile”, e
denunciam o uso inconsequente que eles fazem dela. Assim se exprime
Turgot, numa carta endereçada a Pierre-Samuel Dupont de Nemours,
amigo de Quesnay em fevereiro de 1766:

Os senhores são os protetores da indústria e do comércio e ficaram


parecendo seus inimigos... Nisso é que dá a falta de explicações e
a má escolha de termos. [...] Essa pobre classe vilipendiada, à qual
lhes apeteceu dar o nome de estéril... essa classe e as pessoas de bem
que a compõem, entendendo, com isso, que lhes põem em questão a
honra de serem considerados cidadãos úteis, indignam-se diante des­
se rebaixamento injurioso... eles lhes desejam um mal infinito pelos
esforços a que os senhores se têm dedicado15.

Explicar-se sobre as palavras usadas é suficiente quando o uso em


questão vai ao encontro de usos majoritários? Sem dúvida que não.
Mas os fisiocratas partidários da expressão “classe stérile”, testemunhas
de um século que quer dobrar a língua às exigências da razão, tentam
fazê-lo. Ainda em 1776, para defender sua acepção da expressão “classe
stérile”, François Quesnay escreve:

Não cabe à ordem natural das coisas se conformar a uma linguagem


que só exprime idéias confusas e equívocas; cabe às expressões se
conformarem ao conhecimento exato da ordem natural, com as dis­
tinções rigorosas assujeitadas à realidade16.

Para promover o termo “stérile”, o abade Nicolas Baudeau publica


um artigo cujo belo título de caráter autonímico é, em si, um programa
de etimologia, no sentido da época17. O artigo se intitula “Explication du

15 Turgot citado por Piguet (1996: 55).


16 Quesnay citado por Piguet (1996: 58-59).
17 No artigo “Grammaire” que assinam para a enciclopédia de Diderot e d’Alembert (1757),
Douchet e Bauzée escrevem: “O segundo objeto da etimologia é remontar à fonte de uma palavra 23
A NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” E li ANÁLISE DO DISCURSO
vrai sens du mot stérile appliqué à l’industrie” [Explicação do verdadeiro
sentido da palavra estéril aplicada à indústria] (1767). Os fisiocratas terão
de lutar muito por isso, mas, como esclarece Piguet, não lograrão êxito
em impor a expressão “classe stérile”, que desaparecerá rapidamente18.
Não saberiamos dizer exatamente se a palavra “révolution”, nos
anos 1789-1795, e a expressão “classe stérile”, nos anos 1760-1770, são
propriamente fórm ulas no sentido em que as entendemos. Tenderiamos
a dizer que sim. Mas seria o caso, para ter certeza, de dispor de outros
elementos que Rey e Piguet não oferecem em sua perspectiva de traba­
lho, que é, antes de mais nada, a de uma descrição dos usos na longa
duração, e não o esclarecimento de pontos nevrálgicos observáveis nas
práticas linguageiras.
Em nossa perspectiva, o interesse desses trabalhos reside em mostra­
rem como as palavras, no longo tempo de seus usos, atravessam zonas de
turbulência que podemos circunscrever, entram em fases críticas de sua
existência que podemos delinear. No que diz respeito à palavra “révolu­
tion”, delineamos a fase crítica de uma difusão acentuada do termo, das
expectativas e apreensões de que ele se investiu, de uma produtividade
lexicológica particularmente forte. No que se refere à expressão “classe
stérile”, a zona de turbulência pode ser delimitada pela existência de
operações metadiscursivas que questionam o próprio sintagma, fazem
dele um objeto polêmico e, no caso em questão, põem em causa sua uti­
lização imprópria ou, ao contrário, afirmam a adequação de seu caráter.
Ao lado desses trabalhos de lexicologia diacrônica que analisam
uma palavra “de cabo a rabo” na longa duração, muitos estudos se
ocupam, sobretudo, de captar os instantes nos quais, de modos diversos,
a “vida de uma palavra” se intensifica. Partindo da intuição de que
uma “palavra” (noção empírica e pré-teórica, como diz Irène Tamba19,
com a qual vamos continuar nos contentando) é, num dado momento,
usada de maneira particularmente crítica, esses estudos visam descrever

para estabelecer seu verdadeiro sentido” (seu primeiro objeto, dizem eles, é o estudo da “forma­
ção” das palavras). Citado por Rey (1970: 42).
18 Ver Piguet (1996: 54, 56 e 59).
19 Tamba (2009: 64). Ver também Sonia Branca-Rosoff (1998a), em particular Sonia Branca-
Rosoff (1998b) e Christian Touratier (1998). Ver, ainda, Robert Lafont (1987).
e caracterizar a “zona de turbulência” que essa palavra atravessa. A

DA ANÁLISE DO VOCABULÁRIO SOCIOPOLÍTIC0 À DELIM ITAÇÃO DE FORM ULAS


unidade lexical, simples ou complexa, serve como um fio condutor na
exploração do corpus, que se constitui de discursos produzidos no centro
do espaço público ou em sua periferia, quer se trate de uma coleta em
todas as direções, visando à apreensão dos discursos de uma dada época
em sua densidade máxima (avisos, tratados, periódicos impressos de
todos os gêneros, livros, panfletos, relatórios policiais, correspondência
manuscrita, petições...), quer se trate de focalizar artigos da imprensa
ou falas políticas (debates parlamentares, por exemplo). A considerável
quantidade de “monografias sobre a curta duração”, como as chama
Maurice Tournier (1982: 85), impede que ofereçamos aqui sua lista.
Ao inventário (não exaustivo) levado a cabo por Tournier há mais de
vinte anos, ao qual remetemos, poderiamos hoje acrescentar dezenas de
outras monografias20. Aqui mencionaremos duas, a título de ilustração.
Apoiando-se num levantamento exaustivo das ocorrências da pa­
lavra “intégration” [integração] no jornal Le Monde entre novembro de
1989 e abril de 1990, Simone Bonnafous21 mostra como essa palavra
assume, num dado momento, um lugar de destaque no debate público.
Esse momento coincide com o “affaire du collège de Creil” [o caso do
colégio de Creil], que estourou em outubro de 1989 e logo se tornou
o “affaire du foulard” [o caso dos lenços]22. A palavra “intégration”
torna-se rapidamente um termo de consenso utilizado pelo conjunto da
classe política, pelos dirigentes de associações, pelos jornalistas etc., ao
mesmo tempo em que seu sentido se dilui, ficando difícil apreendê-lo:
“a generalização do termo ‘intégration’ [...] se fez acompanhar de uma
semantização bastante heterogênea”, escreve Bonnafous (1992: 24). A
palavra “intégration” “torna-se um slogan” (ibid.: 28), “uma palavra de

20 Podemos completar esse inventário especialmente ao consultar a “Bibliographie de lexicologie


socio-politique” publicada em cada edição de Mots. Les langages du politique, revista disponível
on-line, no portal Revue.org.
21 Simone Bonnafous (1992). Ver também Bonnafous (1991).
22 Sobre as diferentes denominações desse “caso” na imprensa e sobre as diferentes denomi­
nações do próprio objeto “foulard”, ver Geneviève Petiot (1995), Henri Boyer (1993), Paul Siblot
(1992), Claire Oger (1999). N.T.: trata-se de um escândalo havido em torno do uso do foulard
[“lenço”] por alunas muçulmanas — obrigatoriedade ou uso voluntário? ícone de identidade ou
de exclusão? Famílias e professores divergiam, houve mudanças na grade curricular de certas
escolas e uma série de debates acirrados por toda a França. 25
â NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” i l ANÁLISE DO DISCURSO

ordem” (ibid.: 29), uma palavra que adquire, em sentido amplo, uma
“função ‘performativa’” (idem). Impulsionada por um acontecimento,
uma palavra se impõe. E se impõe a todos como um remédio (a quase
todos, na realidade, com destaque para a extrema-direita). Ela simboliza
uma solução. Mas, paralelamente a essa retomada massiva na superfície
dos enunciados, a palavra vê seu sentido se dispersar.
Geneviève Petiot (1990) explora o campo lexical de “liberté(s)”
[liberdade(s)] tal como aparece em textos legislativos e parlamentares
de maio de 1984, durante os debates sobre o projeto conhecido como
“projet Savary”23. O contexto do debate é polêmico:

Os slogans, propagados na imprensa, confrontam-se: “A única escola


livre é a escola pública”/ “A escola privada é a liberdade”, que se
torna “A escola livre é a liberdade” (Petiot, 1990: 217).

A polêmica não se deu apenas nas ruas, mas também na Assem­


bléia. E, se de fato foi sobre liberdade(s) que “os deputados discutiram”
(ibid.: 218), num consenso sobre o significante em jogo, a polêmica se
operou sobre os significados atribuíveis ao signo “liberté(s)”. Ao longo dos
debates, os múltiplos empregos de “liberté(s)” produziram o que Petiot
chama de uma “evaporação da significação”, na qual a palavra se dilui
numa polissemia generalizada sem, no entanto, explodir em homônimos.
E de fato em torno de um mesmo signo que o debate se dá, mas

tudo se passa como se funcionasse apenas como uma etiqueta vazia,


um significante reivindicado por todos, cujo(s) significado(s) seria(m)
indefinível(is), pois inacessível(is). [...] Petiot prossegue dizendo que o
abortamento do processo enunciativo, ou seja, a impossibilidade de pro­
mulgar um texto de lei sanciona essa fuga da significação (ibid.: 225).

No caso de “liberté(s)”, como em outros semelhantes, o denomina­


dor comum, que é a unidade lexical, torna possível o debate, enquanto
a diversidade de significações atribuídas a essa unidade torna possível
e mesmo facilita a polêmica.

Projeto de lei “referente às relações entre o Estado, as comunas, os departamentos, as regiões


26 [divisões territoriais administrativas] e os estabelecimentos de ensino privados”.
l i ANÁLISE DO VOCABULÁRIO S 0 C Ï0 F0 LIT IC 0 1 DELIM ITAÇÃO DE FO RM ULAS
Ao lado dessas análises, que tomam como ponto de partida uma
unidade lexical, das quais os estudos de Bonnafous e de Petiot são
dois exemplos entre dezenas, outras pesquisas contribuem para assentar
a tese de um poder social do discurso e, de modos bastante diversos,
contribuem com a reflexão sobre a palavra como questão política.
É o caso das reflexões documentadas por Pierre-André Taguieff
sobre palavras como “exclusion” [exclusão]24, “racisme” [racismo]25 e,
ainda, “crise” [crise]26, com base nas quais se destaca o caráter fluido e,
ao mesmo tempo, conjuratório (ou imprecatório) do vocabulário político.
É o caso também das observações perspicazes da testemunha alemã
Victor Klemperer ([1947] 1996)27 sobre o vocabulário do Terceiro Reich,
onde aparece o desvio de certas palavras da língua alemã na tomada da
palavra — e, por meio dela, na tomada de poder — nazista. E o caso,
ainda, do Dictionnaire historique da testemunha francesa Jacques Rossi
([1987] 1997), no qual esse antigo prisioneiro do gulag soviético comenta
o vocabulário enganoso do sistema da Kolyma (vocabulário dos políticos,
vocabulário dos carcereiros, vocabulário dos internos do gulag).
É também o caso das reflexões empíricas de Andréas Freund (1991)
sobre o que ele chama, de maneira muito problemática e sem teorização,
de “palavras-armadilha”28, entre as quais as que ele chama, também de
modo problemático, “palavras ambíguas”, “palavras de sentido muito geral
para serem efetivamente honestas”29 (“liberté” [liberdade], “solidarité”
[solidariedade], “consensus” [consenso], “insécurité” [insegurança]...). E
o caso, ainda, de algumas das crônicas de Tournier, que, da perspectiva
da etimologia social que ele projeta, remetem à sua densidade histórica
palavras cujo uso é pressentido como particularmente crucial num dado
momento (“casseurs” [vândalos/depredadores] na época dos motins que
aconteceram em 1991 na ilha da Reunião30; “otages” [reféns] a propósito

24 Ver, por exemplo, Taguieff (1992); Taguieff (1996).


25 Ver, por exemplo, Taguieff (1987: 108, 176 e 179); Taguieff (1989).
26 Ver, por exemplo, Taguieff (1987).
27 Ver também nossa resenha (Krieg, 1997) e, em complemento, Krieg, 1999.
28 Freund (1991: em particular 151-190).
29 Freund (1991: 175).
30 Tournier ([1991] 1992). 27
h NOÇÂO DE “ FO RM U LA” E li ANÁLISE DO DISCURSO

dos reféns norte-americanos de Saddam Hussein durante a guerra do


Golfo31; “union sacrée” [união sagrada], na mesma guerra do Golfo32...).
É também o caso da abordagem controversa33 de Jean-Claude Milner34
por meio das noções de “maîtres-mots” [palavras soberanas] e de “noms
indistincts” [nomes indistintos], através das quais se denuncia o encan­
tamento repetitivo de significantes bem acabados (a Saúde, o Mercado,
o Povo, a Nação, a Ciência...).
Há outra abordagem particularmente original da qual devemos
falar: a de Jacques Guilhaumou e Denise Maldidier em suas pesquisas
sobre a estrutura “du pain et X” [pão e X], que constitui, segundo os
autores, uma “coordination-enjeu” [coordenação-desafio] (Guilhaumou
e Maldidier, 1990: 235). A entrada no corpus, nesse caso, não é mais
uma unidade lexical simples ou complexa, mas uma invariante léxico-
sintática: “Uma coordenação de dois grupos nominais na qual um
dos termos é du pain”35. Apesar do que o distingue das monografias
comentadas acima, o trabalho de Guilhaumou e Maldidier constitui,
também, a delimitação de um momento em que dada palavra passa por
uma reviravolta particular.
Essa reviravolta é, nas jornadas de outubro de 1789, a politização
da expressão “du pain”, que passa da simples demanda por subsistência à
exigência de direitos políticos novos: a partir de outubro de 1789, “o grito
tradicional do povo ‘du pain’ se inscreve no espaço político”36. Então,

a palavra pão, de certo modo, muda de estatuto. Não é mais apenas


uma expressão de necessidades imediatas, como foi outrora; [...] ela
assume um valor simbólico com o qual se inscreve nos limites do
campo político37.

31 Tournier ([1990] 1997).


32 Tournier ([1991] 1997).
33 Ver a resenha crítica de Maurice Tournier (1985b) e a de Annie Geoffroy (1985b) e a de
Annie Geffroy (1985b).
34 Jean-Claude Milner (1983). Ver em particular os capítulos “Les maîtres-mots”(pp. 70-79),
“La vision politique du monde” (pp. 80-93) e “Les rassemblements” (pp. 105-115).
35 Guilhaumou e Maldidier (1984: 98). Ver também Guilhaumou e Maldidier (1981).
36 Guilhaumou e Maldidier (1984: 98).
37 Ibid.: 102.
DA ANÁLISE DO VOCABULÁRIO S0CI0P0LÍTIC0 À DELIM ITAÇÃO DE FÓ RM ULAS
Guilhaumou e Maldidier delimitam essa virada, essa politização,
por meio da estrutura que é a coordenação do grito “du pain” com
“termos abstratos como liberdade ou político-jurídicos como uma consti­
tuição ou um decreto”3S:

Du pain et à Versailles! [Pão e rumo a Versailles!], gritam as mulheres


em 5 de outubro de 1789; Du pain et de la liberté! [Pão e liberdade!]
apontam os jacobinos face ao acirramento revolucionário em 1793;
Du pain et dufe r [Pão e ferros], reivindicam os partidários do Maximum
(1793-1794)39; Du pain et la constitution de 1793 [Pão e a constituição de
1973], clamam os sans-culottes parisienses diante dos deputados ter-
midorianos de 179540.

Guilhaumou e Maldidier propõem esta análise:

A junção efetuada pela conjunção de um termo do concreto social


imediato e cotidiano com termos abstratos políticos ou com designa­
ções de objetos políticos produz um efeito de metaforização: a gra­
mática é diretamente responsável, parece, pela novidade simbólica
conquistada por pão41.

Os autores concluem sua análise da mudança operada na palavra


“pão” com esta frase: “O trabalho da gramática produz diretamente
efeitos discursivos”42. E, de fato — pelo menos é o que pensamos — , o
que se passa na morfossintaxe é, se não sempre diretamente responsável,
pelo menos sempre parte pregnante da expressão dos acontecimentos e
dos discursos que fazem sua narrativa.
Num texto publicado recentemente (Krieg-Planque, 2007: 67-68),
também sublinhamos o quanto um estudo sobre a iniciativa governamen­
tal de revisão da legislação sobre a jornada de trabalho poder ia passar 3
2
1
0
4
9
8

38 Guilhaumou e Maldidier (1986a: 47).


39 N.T. Taxação proposta pelos enragés (“enraivecidos”) de Paris, que padeciam dos males da
crise econômica.
40 Guilhaumou e Maldidier (1984: 98).
41 Ibid.: 103.
42 Ibid.: 112. 29
A NOÇÃO DE “ FÓ RM U LA” 1 1 A 1Á L IS E DO DISCURSO pela análise da associação léxico-sintática “trabalhar mais para ganhar
mais” (associação cujos usos são observáveis em diversas produções dis­
cursivas do governo Raffarin em 2005, antes que “trabalhar mais para
ganhar mais” se tornasse um slogan de Nicolas Sarkozy no contexto das
eleições presidenciais de 2007). Ou, ainda, em trabalhos que ainda estão
em curso, propusemos que uma análise dos discursos que remetem à fór­
mula “développement durable” [desenvolvimento sustentável] se organize
em torno da concessão: de fato, é possível observar que as concessivas43
constituem, ao mesmo tempo, a camuflagem e o sintoma de que “de­
senvolvimento sustentável” é um instrumento do modelo produtivista
e ideologema do crescimento econômico e industrial. Sobre esses dois
exemplos que acabamos de citar, realidades lexicais, morfossintáticas,
sintáticas e/ou léxico-sintáticas muito diretamente observáveis parecem
ser uma forma de acesso às materialidades discursivas que estruturam
as relações de poder e de opinião.
No fecho de seu inventário das monografias consagradas às palavras
do campo político, Tournier observava: “Logo percebemos que esses
termos [objetos dessas monografias] constituem variados instrumentos
políticos, marcadores sociais ou objetos de discurso” (1982: 87). Expres­
sões como “mot comme enjeu” [palavra como questão], “politisation du
lexique” [politização do léxico], “mot-clé”44 [palavra-chave], “mot-phare”
[palavra-guia], “mot-slogan” [palavra-slogan], “mot-étendard” [palavra-
estandarte], “mot-valeur” [palavra-valor], “mot-choc” [palavra-choque],
“mot-tabou” [palavra-tabu]... aparecem o tempo todo na escrita desses
autores e exprimem tanto a centralidade quanto o caráter problemático
de dada unidade lexical em dado momento. Através desses estudos,
aparece o fato de que o léxico é, em seus empregos políticos e sociais,
portador de valores, de argumentos, de engajamentos45. Henri Boyer,

43 Por exemplo, quando se define o “desenvolvimento sustentável” como uma maneira de


“responder às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de
responderem às delas”.
44 Seja o termo emprestado ou não de Matoré (1953: 68), que assim designava uma palavra que
exprime de modo sintético uma noção de caráter social dominante num texto ou numa série de
textos.
45 Ver um exemplo de análise também em Krieg (2000a).
DA AN Á LISE DO VOCABULÁRIO SOCIOPOLÍTICO À DELIM ITAÇÃO DE FÓ RM ULAS
numa perspectiva mais sociolinguística, fala de “focalização léxico-
pragmática”46 para designar esse fenômeno em que uma unidade lexical
está no coração de um debate público.
Todas essas noções recobrem, às vezes apenas em alguns aspectos
e às vezes até de maneira mais ampla, a noção de fórmula. E é dela que
trataremos logo depois de apresentar o trabalho de Marianne Ebel e de
Pierre Fiala, no qual essa noção é objeto de uma reflexão aprofundada
e de uma análise de um corpus extenso e cuidadosamente delimitado.
Esses dois autores emprestam a noção de fórmula de Jean-Pierre Faye.
Por isso apresentaremos, nas próximas páginas, um comentário do
trabalho de Faye, do qual destacaremos, como fizeram Ebel e Fiala, o
caráter heurístico.

46 Boyer (1987d). Esse estudo, assim como análises sobre outras “palavras-s/oga/?” do primeiro
centenário miterraniano (“solidarité” [solidariedade], “rigueur” [rigor], “ouverture” [abertura],
“rassemblement” [reunião]...), foram retomadas por Henri Boyer em Boyer (1991). Sobre a foca­
lização léxico-pragmática, ver também Boyer (1987a) e Boyer (1987c). 31
C A P Í T U L O 2

0 trabalho heurístico de Jean-Pierre


Faye: a fórmula “Estado total”

A . Observações sobre o trabalho de Jean-Pierre Faye

O percurso de Jean-Pierre Faye, escreve Marianne Ebel,

não é de forma alguma um percurso de tipo hipotético-dedutivo,


no qual seria possível encontrar um número limitado de definições,
postulados, regras simples sobre cuja base se construiría de maneira
“lógica” sua pesquisa (1979: 9).

De fato, a obra de Faye é a de um filósofo que tem na mão a pena


do poeta que ele também é nas horas vagas1. A própria diagramação e as
características tipográficas são partes integrantes de uma obra singular, da
qual Langages totalitaires (Faye 1972a) é a pedra angular. É sobretudo desse
livro que se tratará aqui, já que nele a fórmula “Estado total” é analisada.
Nós nos autorizaremos também a aproveitar o esclarecimento que forne­
cem outros escritos fayanos, notadamente Théorie du récit. Introduction aux
langages totalitaires (1972b), La critique du langage et son économie (1973), Le
siècle des idéologies (1996b) e Le langage meurtrier (1996a), que é uma versão
abreviada e modificada de Langages totalitaires e que dá testemunho, ao
mesmo tempo, da escrita de Faye como estética da repetição e da reto­
mada e de sua dificuldade de avançar em algumas de suas proposições.
Faye tem como projeto pôr “a descoberto as condições da produção
e da circulação das narrativas, e seu poder próprio”2 por meio do que

1 Jean-Pierre Faye é também autor de poemas reunidos em diversas antologias: Faye 1960;
1965; 1977; 1984; 1992.
2 Faye, 1972b: 11.
ele chama de “supernarrativa”, isto é, uma “narrativa das narrativas”
(no caso, trata-se das narrativas produzidas pelos ideólogos e atores do
espaço político no período entre as duas grandes guerras, na Itália e
li', 23 LvÀl! JLiFk, . ;A>

principalmente na Alemanha). A supernarrativa, escreve Faye, é um


“processo de conhecimento”3 “que leva em conta os ‘fragmentos de
narrativa’ e os desarticula, rearticulando-os, porém, em outro nível”4.
Esse projeto de “supernarrativa” não é uma afirmação de princípio: ele
j «'v

tem repercussões muito concretas sobre a escrita. Essa escrita se impõe


ao leitor, parece, com duas consequências aparentemente paradoxais:
de um lado, a supernarrativa facilita a leitura (desse ponto de vista, o
trabalho de Faye pode ser lido como um romance); de outro, ele bloqueia
qualquer reemprego possível.
Observe-se que, tal como é, isto é, plenamente realizado, esse
projeto de supernarrativa implica que Faye utiliza como metalingua-
gem os próprios termos de sua linguagem-objeto. Porque o projeto de
supernarrativa implica a ideia de que a história produz seus próprios
conceitos e de que, por consequência, ela é sua própria metalinguagem:
as palavras que pertencem às narrativas produzidas na história serão
também as palavras utilizadas pelo historiador que fará a narrativa des­
sas narrativas. O livro I de Langages totalitaires se chama “La périphérie”
[A periferia], e essa palavra é o nome que Faye dá, ao longo de toda a
sua obra, aos clubes e grupos que estão à margem do partido nazista.
Ora, “periferia” é também o nome pelo qual Goebbels os designa5.
Outro exemplo: Faye desenha a topografia simbólica dos partidos e
movimentos políticos alemães do período entre as duas guerras com o
nome de “ferradura dos partidos”. Ora, essa palavra lhe vem precisa­
mente do nacional-revolucionário Friedrich Hielscher e de Adolf Ehrt,
membro do Deutschnationale Volkspartei (Partido Nacional-Alemão)6.
Ou ainda: o termo utilizado por Faye para designar a expressão “re­
volução conservadora” é “antítese”. “Antítese”: é assim que o próprio
fascista Alfred Rocco qualifica a expressão “revolução conservadora”,

3 Faye, 1973: 38.


4 Faye, 1973: 27.
5 Faye, 1973: 47.
6 Faye, 1972a: 401-402 e Faye 1996a: 111.
quando a utiliza em 19277. E assim por diante. Falando da maneira

total *
pela qual seria possível estudar conjuntamente o regime hitlerista e o

ommmm heurístico m je a n - pierre pme»a fó rm ula e s t a d o


regime stalinista, Faye escreve que tal estudo não pode ser feito, a não
ser com “a condição de prestar atenção a como eles se nomearam a si
mesmos”8. Em outras palavras, a supernarrativa impede o recurso a uma
metalinguagem que, do exterior, dê às coisas um nome que até mesmo
os que as batizaram não empregam para designá-las. De onde a recusa
de Faye a qualificar o regime stalinista de “totalitário”9, porque esse
regime nunca se classificou com esse nome.
Para Faye, comenta Ebel, “não existe metalíngua distinta da língua
da narrativa que permita descrever a prática da narrativa que se refere
ao real” (1979: 28). Mais tarde, no colóquio “Matérialités discursives”, de
1980, Faye se explica. A propósito da metáfora da “ferradura”, ele diz:

O que importa é que essas metáforas sejam as dos native-speakers.


(...) Há espécies “autóctones” da ideologia, que devemos procurar lá
onde estão. O que fiz foi um esforço para captar esses enunciados
metafóricos tal como foram pronunciados, sem substituí-los por me­
táforas improvisadas ou arbitrárias (Faye, in Conein et al., 1981:182).

Langages totalitaires inteiro se encontra, assim, tecido pelas palavras


dos atores, tecido pelas palavras utilizadas justamente pelos “narradores”
cujas narrativas Faye analisa, e essas palavras passam insensivelmente da
linguagem-objeto à metalinguagem. A tessitura da escrita fayana pelas
palavras dos atores passa também pelo código linguageiro: as palavras
da linguagem-objeto, às vezes, são conservadas em sua língua de origem
e se integram à sintaxe francesa. Frases inteiras permanecem em língua
alemã, muitas vezes sem serem traduzidas. Quando uma tradução é pro­
posta, algumas palavras resistem, apesar disso, à passagem de uma língua
à outra, e permanecem bloqueadas como coágulos em itálico na cadeia
reescrita em francês. Esse modo de dizer todo particular, belo exemplo
do que Jacqueline Authier-Revuz caracteriza como um modo de dizer

“A revolução tornou-se — que me permitam a antítese — conservadora”, disse Alfred Rocco


(ver Faye, 1972b: 63).
8 Faye, 1996b: 118.
«Mg;
9 Faye, 1972a: 590 e Faye, 1972b: 131. 35
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA” EM ANÁLISE DO D iS C U iSO
com um “discurso outro apropriado”10, está nos antípodas dos cânones
do discurso dito científico, que se esforça para “descolar” seu vocabulário
do objeto estudado. Quando ocorre de Faye utilizar termos da metalin-
guagem científica, por exemplo, a dos linguistas, é geralmente ou com
culpa11 ou sem poder separar claramente uma ou outra terminologia12, ou
para sublinhar que Faye, ele próprio, não é de forma alguma linguista13.
Essa forma de escrita, constantemente pontuada por reivindicações de
amadorismo esclarecido (“não sou linguista, mas, pelo menos, conheço um
pouco do assunto”, posição coquete, irritante e patética, já observada em
Roland Barthes por Jacqueline Authier-Revuz14*), impede o leitor de asso­
ciar diretamente ao trabalho de Faye qualquer uma das teorias disponíveis
em linguística e/ou análise do discurso. Faye, que não aspira, segundo
seus próprios termos, a fornecer um modelo que entraria no quadro das
“ciências rigorosas”1', atinge assim seu objetivo com sua própria escrita.
O caráter relativamente “solitário” da pesquisa de Faye, já obser­
vado por Dominique Maingueneau (1991: 13), encontra talvez uma de
suas explicações naquilo que o próprio projeto de supernarrativa impli­
ca. Pode-se, de fato, dizer que o trabalho de Faye permanece, por sua
natureza, e não apenas por causa dos talentos estilísticos de seu autor,
irreproduzível (cada mudança de objeto estudado — de “narrativa” —
implica, uma mudança de meía/inguagemj.
Faye não diz explicitamente por que emprega o termo “fórmula”.
Observa-se, no entanto, que também esta palavra é tomada de empréstimo

10 Jacqueline Authier-Revuz, 1995: 316-345 (“L’autre discours ‘approprié’ ou ‘associé’: celui de


l'objet du dire, ou un des discours de l’interdiscours”). Authier-Revuz distingue o discurso outro
apropriado (ao objeto de que se fala) do discurso outro associado (isto é, associado — por razões
diversas — ao objeto de que se fala). Decorrem, respectivamente, do primeiro e do segundo modo
de representação do discurso outro: “Ele está quase ‘ficando’ com a garota, como ele mesmo
diz” / “Ele está ‘fazendo a corte’, como diria minha avó”.
11 Exemplo: “Em outras palavras, toda a constelação de associações, para falar como Saussure,
o paradigma inteiro do Movimento nacional se põe diante de seus olhos” (Faye, 1972a: 470).
12 Exemplo: “A significação é a cadeia de correspondências entre o conjunto de significantes e
o dos significados — para falar como Saussure ou Crisipo — ou das expressões e dos conteúdos,
para retomar os equivalentes de Hjelmslev” (Faye, 1972 a: 274).
13 Exemplo: “Essa linguagem é ao mesmo tempo ‘neutra’ e ‘complexa’, para falar como os
linguistas” (Faye, 1972a: 469).
14 Authier-Revuz, 1995: 463-464.
1 36 15
Faye, 1973: 39.
0 TR ABALHO HEURÍSTICO D i JE A N -P IE R R E FAYE: A FÓ R M U LA “ ESTADO TOTAL5
aos discursos dos atores. Em um artigo consagrado a uma apresentação
do percurso teórico de Faye, Ebel se pergunta de onde vem essa noção
de fórmula. E responde:

Ela não sai pronta de uma teoria da linguagem; Faye a toma dos
próprios materiais, dos textos, narrações e discursos que, desde 1929,
esboçam os contornos de um novo tipo de Estado. Ele a encontra em
Cari Schmitt16, que a chama ora de “fórmula”, ora de “conceito”, e
também em Ernst Forsthoff17: “Der totale Staat ist eine Formel” [O
Estado total é uma fórmula] (Ebel, 1979: 18).

Falar, como o faremos nesta obra, da fórmula “purificação étnica”,


por exemplo, ou como o fazem Ebel e Fiala, das fórmulas “Überfremdung”
e “xenofobia”, dizendo que o termo “fórmula” é emprestado de Faye é,
portanto, resultado de um descolamento referencial.
O termo “fórmula” designa em Faye a expressão “Estado totalitá­
rio”, em italiano (“Stato totalitário”) e a expressão “Estado total” em
alemão (“totale Staat”), bem como as diferentes expressões que são suas
“vizinhanças”18, diz Faye, como “totale Mobilmachung” (“mobilização
total”), “totaler Krieg” (“guerra total”), “Vollstaat” (outra formulação de
“Estado total”) ou “totale Volk” (literalmente, “povo total”), ou “povo-
como-raça total”, como tradução possível de um termo eminentemente
polissêmico19. Faye também utiliza o termo “fórmula”, ocasionalmente, para
designar expressões como “Volksgemeinschaft”20 (“comunidade do povo”),
“realismo heróico”21, “o SA desconhecido”22 ou “segunda revolução”23.
Essa relativa flutuação terminológica não significa que o objeto de Faye

16 Professor em Berlim entre 1933 e 1945.


17 Discípulo de Carl Schmitt, professor de direito público e administrativo, nomeado para
Frankfurt em 1933.
18 Faye, 1973: 82.
19 Sobre a palavra "Volk”, ver também Jean-Pierre Faye, Louis Dumont, "La maladie totalitaire.
Individualisme et racisme chez Adolf Hitler”, in Dumont (1983: 132-164); Geoffroy Rémi (1996);
André Tabouret-Keller (1996).
20 Ver, por exemplo, Faye (1972a: 472).
21 Ver, por exemplo, Faye (1972a: 494).
22 Ver, por exemplo, Faye (1972a: 555); Faye (1996a: 82).
23 Ver, por exemplo, Faye (1972a: 622 e 625); Faye (1996a: 166). 37
i l í J Ç â i B I “ FÓ RM U LA” I I i l I U S E m DISCURSO
seja impreciso. É um objeto lexical, retomável na cadeia, descritível no
sistema da língua: é a palavra “totalitário” e suas diversas traduções24.
Faye não dá nunca uma “definição”, no sentido “científico” do
termo, do que seja uma fórmula. Entretanto, seguindo página a página
e muito pacientemente sua supernarrativa, e baseando-nos na reiteração
de certos temas em sua pena, podemos propor separar as principais
propriedades da fórmula estudada por Faye: a fórmula “totale Staat”.

P. Ã gSíífiSP
A fórmula “totale Staat” não chega de repente aos escritos daquele
que é seu promotor inicial, o jurista e politólogo alemão Carl Schmitt:
ela tem uma gênese. Faye vê o início dessa gênese no que ele chama “o
enunciado totalitário primitivo”25, isto é, no discurso que Mussolini pro­
nuncia por ocasião do congresso fundador do Partido Nacional Fascista,
em 22 de junho de 1925. Nessa noite, Mussolini afirma a vontade de
dominação do fascismo sobre o Estado italiano e diz isso (ou qualquer
coisa semelhante a isso, pois imediatamente o enunciado de Mussolini
torna-se um enunciado polimorfo26*):

Se o fascismo é uma associação de malfeitores, eu sou o chefe dessa


associação de malfeitores. [...] Nós levamos a luta a um terreno tão
nítido, que é necessário de agora em diante colocar-se de um lado
ou de outro. [...] Ou mais que isso: o que se chamou de nossa ávida
vontade totalitária seguirá sua ação com uma força ainda maior.

24 Ver, por exemplo, Faye (1973: 73-74).


25 Ver, por exemplo, Faye (1973: 32).
26 Há, de fato, três versões italianas da terceira frase desse excerto. A primeira aparece em 23
de junho de 1925 no jornal do partido socialista-democrático II lavoro. Outra aparece no mesmo
dia no jornal fundado por Mussolini, Il popolo dltalia. A terceira versão aparece nas obras com­
pletas de Mussolini publicadas em Florença em 1956. A frase que citamos aqui é extraída da
tradução francesa publicada pela Flammarion no período entre guerras. Para maiores detalhes
sobre essas diferentes versões, ver Faye (1972a: 59-60).
Observação: em 1996, em seu livro O século das ideologias (1996b: 65), Jean-Pierre Faye gera,
ele também, uma quarta versão italiana do enunciado mussoliniano, por engano sem dúvida,
mas isso não importa. Faye não fala mais de “nossa ávida vontade totalitária” (“la nostra feroce
volontà totalitaria”), mas de “minha feroz vontade totalitaria” (“la mia feroce volontà totalitaria”).
Quanto à passagem “com uma ferocidade ainda maior” (“con ancora maggiore ferocia”), ela se

* 38 torna “com ainda mais ferocidade” (“con ancora piú ferocia”).


Esse discurso, escreve Faye, está destinado a encobrir um ato que
teve lugar um ano antes: o assassinato, pela polícia paralela, de Giacomo
Matteotti, deputado e secretário-geral do Partido Socialista. Só o adjetivo
“totalitária” aparece no discurso de 1925. Mas, pela primeira vez, essa
palavra se torna objeto de um uso político27, e Faye vê na proclamação
desse adjetivo sozinho a primeira autodesignação do Estado fascista
mussoliniano como “Stato totalitário”28, ato que préfigura, segundo
Faye, o “totale Staat” nazista. Escreve Faye:

Depois dos grandes extermínios, o fenômeno italiano do “Estado


totalitário” pode parecer quase anódino. No entanto, é aí, aí e não
alhures, que ele surge na linguagem. [...] O Stato totalitário italiano é
exatamente o protótipo do totale Staat (1972b; 131).

Mais ao norte da Europa, a fórmula “totale Staat” conhece uma


gênese paralela através da expressão “totale Mobilmachung” (“mobili­
zação total”), que exprime a mobilização sem limite de todas as forças
da sociedade a serviço do Estado e de sua defesa. A fórmula “totale
Staat” é, então, se se quiser, poligenista. A “mobilização total” é enun­
ciada e teorizada em 1930 pelo escritor Ernst Jünger, que faz dela o
título de um ensaio em 1931 (Die Totale Mobilmachung29). Se acreditamos
em Ernst Forsthoff, é apoiando-se explicitamente na expressão “totale
Mobilmachung” desenvolvida por Ernst Jünger que Carl Schmitt, o
ideólogo do Estado total, forja a fórmula “totale Staat”. Seguindo Carl
Schmitt, seus discípulos e amigos Ernst Forsthoff, Ernst Rudolf Huber,
Gerhard Günther e Ernst Krieck30 retomarão a formula “totale Staat”:
“Todos se referem à formula da totale Mobilmachung, desenvolvida por
Ernst Jünger”31. Entretanto, essa gênese da fórmula “totale Staat” em
“totale Mobilmachung” de Jünger se desdobra em uma gênese no “Stato

Ver Faye (1972a: 356); Faye (1972b: 88); Faye (1973: 132).
:s Faye (1973: 65).
29 Traduzido para o francês em 1990 como: Ernst Jünger, L’É tat universel, seguido de La mobi­
lisation totale. Trad.: Henri Plard e Marc de Launay. Paris: Gallimard.
30 O filósofo Ernst Krieck, rival ciumento de Heidegger por sua qualidade de “filósofo do nacional-
socialismo”, é reitor da Universidade de Frankfurt e depois tenente-coronel da SS sob o regime
nazista. Morre em 1946, no que Faye chama de um “campo de desnazificação” (1996b: 107).
31 Faye (1973: 47).
A NQÇÃO Di “FORMULA” EM ANÁLISE DO DÏSCÜBSO totalitário” fascista. De fato, diz Cari Schmitt ao final de 1932, por
“totale Staat” deve-se compreender

total no sentido da qualidade e da energia, do modo como o Estado


italiano se nomeia a si mesmo um “stato totalitário”, com o que quer
dizer, antes de tudo, que os novos meios de poder pertencem exclusi­
vamente ao Estado e servem para aumentar seu poder32.

A dupla gênese da fórmula “totale Staat” é o começo, se se pode


dizer, de sua circulação. Sua análise mostra todo o interesse que há
em remontar ao fio condutor dos significantes que carregam a fórmula,
levando em conta também o fio condutor de cada significante tomado
individualmente: se tivesse levado em conta apenas os sintagmas “totale
Staat” e “Stato totalitário” em sua integralidade, Faye teria passado
ao lado do enunciado mussoliniano, no qual só um componente do
sintagma aparece.

C. A circulação
O “modo de apreensão” escolhido por Faye para seu estudo da
fórmula “se liga a um enunciado e [...] o segue em sua circulação”33. A
circulação da fórmula “totale Staat” começa no enunciado de Mussolini,
com o qual o adjetivo “totalitário” entra na política. A circulação da
fórmula é então uma mudança de língua, em que a fórmula, em sua
“passagem pelos Alpes”, como diz Faye (1973: 81), passa do italiano ao
alemão. Outra circulação da fórmula de língua a língua se operará nos
apelos da Falange Espanhola a um “Estado totalitário”. Circulando de
uma língua a outra, a fórmula muda também de lugar de emergência
nas formações políticas: do centro como lugar de emergência, na Itália,
a fórmula emerge na periferia, na Alemanha. Pois se “Stato totalitário”
surge no próprio coração do partido fascista italiano e permanecerá
uma expressão reivindicada pelo regime, a fórmula “totale Staat” é, ao
contrário, “produzida, forjada ou estampilhada [...] não pelos próprios

Citado por Faye (1972a: 702).


Faye (1972b: 41). Sublinhado por Faye.

J
total*
nazistas, mas por mensageiros situados em sua periferia”34, e não fará
mais que uma passagem relâmpago na fala do próprio Hitler, em 3 de

“ estad o
outubro de 193335. Mudando de língua, a fórmula muda, então, de lugar
naquilo que os cientistas políticos chamariam hoje de “tabuleiro político”.

heurístico de jean - pierre f a y e : i formula


A circulação da fórmula é também, no interior de uma mesma lín­
gua, sua produtividade lexicológica. O sintagma “totale Staat” prolifera
em uma série de compostos: o Manifesto do Fronte Negro36 e Goeb-
bels, em seguida, exigem a “totale Révolution”; Hans Zehrer descreve
o nacional-socialismo como um movimento que visa à realização de
uma “totale Volksgemeinschaft”37; Ernst Jünger escreve que “a vonta­
de de Ditadura total se reconhece na Ordem nova como vontade de
Mobilização total”38; e que “um Estado total pressupõe ao menos um
só Homem total”39; Adolf Ehrt publica um livro intitulado Totale Krise,
Totale Révolution?4". Durante a guerra, o filólogo Victor Klemperer, filho

o im m im
de rabino convertido ao protestantismo, observador atento da língua do
Terceiro Reich — que ele chama de LTI — observava:

Na LTI, o “total” está por toda parte, mesmo fora do domínio da


guerra: um artigo do Reich elogiava a “situação de educação total”
em uma escola de meninas estritamente nazista; em uma vitrine, vi
um tabuleiro de jogo de damas que se chamava “O Jogo Total”.

A palavra “total”, caracterizada por Klemperer como “pretensão


fundamental e palavra-chave do nazismo”41, é utilizada exatamente para

34 Faye (1973: 47). Sublinhado por Faye.


35 Ver Faye (1972b: 51 e 57) e Faye (1973: 47).
36 Manisfest der Schwarzen Front und Aktionsprogramm des 2. Reichskongress, outubro de 1931. Ver
Faye (1972a: 457).
37 Hans Zehrer, ‘‘Révolution oder Restauration”, in Die Tat, agosto de 1932. Citado por Faye
(1972a: 487).
38 Ernst Jünger, in Der Arbeiter, 1932. Citado por Faye (1972a: 688). Uma primeira tradução fran­
cesa de Der Arbeiter saiu em 1989: Le Travailleur. Trad.: Julien Hervier. Paris: Christian Bourgois.
39 Citado por Faye (1972a: 503).
40 Adolf Hert, Totale Krise, Totale Révolution? Die Schwarze Front des volkischen Nationalismus
(Crise total, revolução total? O Fronte Negro do nacionalismo võlkische) Berlin, 1933. Ver Faye
(1972a: 740).
41
Klemperer ([1947] 1966: 281). 41
tudo. É necessário sublinhar, entretanto, que utilizar a fórmula não sig­
nifica que alguém se acomode a ela: esse uso significa que a fórmula se
tornou uma passagem obrigatória. Quando os nazistas, em 1934, começam
a repudiar a fórmula “totale Staat” em benefício de outras expressões,
tais como “võlkische Staat” ou “Führerstaat”, isso ocorre de um modo
eminentemente dialógico, o que é o índice do caráter ainda dominante
da fórmula “totale Staat”. Um exemplo de enunciado dialógico nos é
dado pelo título de um artigo do doutrinador nazista Roland Freisler:
“Totale Staat? National-sozialistischer Staat!”42 (“Estado total? Estado
Nacional-socialista!”).
A circulação da fórmula é, enfim, sua circulação de uma “formação
discursiva” a outra, ou ainda de um lugar a outro da “ferradura dos
partidos”, já que Faye não emprega a primeira terminologia (de fato,
Langages totalitaires foi publicado apenas três anos após Arqueologia do
sabeA3, e menos de um após a introdução do conceito de “formação
discursiva” em análise do discurso44). A palavra “Volksrevolution”
(“revolução do povo”), por exemplo, circula do polo direito ao polo
esquerdo da ferradura dos partidos: utilizada no início como slogan
nazista, essa palavra é retomada em 1931 pelo comunista alemão
Heinz Neumann. O sintagma “totale Révolution” (“revolução total”),
por sua vez, circula no conjunto das formações políticas. Ele constitui
um denominador comum. E

uma palavra comum a quase todos os grandes parceiros do campo


de forças: encontra-se nessa “esquerda” do grupo hitlerista que Goe-
bbels representa, reencontra-se em seu inimigo Otto Strasser; e em
Richard Scheringer, do outro lado da linha de demarcação entre a
extrema-esquerda e a extrema-direita (Faye, 1973: 159).

42 Artigo publicado na revista Deutsche Justiz de 12 de janeiro de 1934.


43 Michel Foucault (1969: 44-55, capítulo “As formações discursivas”).
44 Essa introdução é operada por Michel Pêcheux, Claudine Haroche e Paul Henry (1971).
Sobre a noção de “formação discursiva”, ver especialmente Dominique Maingueneau (2005) e
Claire Oger (2005). Para essa noção, bem como para outras correntes em análise do discurso
(“cristalização”, “dialogismo”, “pré-construído”...), o leitor poderá reportar-se às respectivas
entradas no Dicionário de análise do discurso, organizado por Patrick Charaudeau e Dominique
Maingueneau (2002).
0 T i l B I L H i HEURÍSTICO l i JE A N -P IE R R E F U IE : A FÓ R M U LA “ ESTADO TOTAL5
A noção de “circulação”, pode-se dizer seguindo Antoine Culioli,
não deve deixar supor “que uma vez que as peças estão aí e que as
regras estão dadas, isso vá funcionar”45. Porque as “regras”, se qui­
sermos manter essa metáfora lúdica que o próprio Culioli rejeita, não
são todas conhecidas previamente, e algumas dentre elas se criam no
decorrer do “jogo”. Não existe predestinação em matéria de discurso (o
que não significa, muito pelo contrário, que as restrições não existam).
A fórmula não circula completamente só, em uma espécie de “física
da ideologia” ou de “física de um efeito das palavras”, criticada por
Jacques Rancière46. A circulação, parte pregnante de uma “sociologia
das linguagens”47 pretendida por Faye, não resulta de uma mecânica
do linguístico, mas de práticas linguageiras e de relações de poder e de
opinião que se observam na discursividade.
A fórmula circula com o apoio de certos usos que lhe dão um
caráter conflituoso ou problemático, e com o apoio de acontecimentos
ou de outros discursos que motivam sua utilização, que dão razões aos
locutores para recorrerem a ela de uma maneira ou de outra. A ideia
de que uma palavra possa “cair de paraquedas” nos discursos só pode­
ría ser mantida se se admitisse que existe também, em terra firme, no
universo discursivo e axiológico do momento, um dispositivo pronto a
acolhê-la e, se se pode dizer, a sua espera.

O termo “cristalização” não aparece no trabalho de Faye, e a


própria noção ocupa nele um lugar muito marginal. Importa, contudo,
observar o lugar que Faye estabelece entre o que identificamos como
decorrência da “cristalização” e a noção de fórmula, porque esse laço
assumirá grande importância na sequência de nossas proposições.
Faye constata que algumas palavras se amalgamam por ação da
soldadura que a língua alemã acolhe tão prontamente, enquanto a francesa

45 Antoine Culioli, na mesa-redonda do colóquio “Matérialités discursives”. Retomado em


Conein et al. (1981: 185).
46 Jacques Rancière, na mesa-redonda do colóquio “Matérialités discursives”. Retomado em
Conein et al. (1981: 180-181).
47 Faye (1972b: 41).
o faz com tanta parcimônia48. Da não soldadura do sintagma, Faye tira
A iO Ç Ã O DE “ FÓ RM U LA” i l AN Á LISE DO iïS C U iS Û
a conclusão de que ele está ainda nas primeiras horas após seu nasci­
mento. Da soldadura do sintagma, Faye tira a conclusão de que estamos
em presença de uma denominação relativamente estável. Sem dúvida,
ninguém contestará essa observação. Mais interessante é o fato de que,
para Faye, a soldadura dá testemunho da existência da fórmula. Assim
Faye comenta o aparecimento da palavra “Nationalbolschewismus”: a
palavra “nacional-bolchevismo” nasceu em 1919,

mas demora algum tempo até se saber, ou dar a entender, que ela
nasceu. A distância entre esse nascimento e esse reconhecimento é
medida pelo desaparecimento final de toda distância entre os dois
componentes: no ano de [19] 19, é “nationale Bolschewismus”49,
em [19]20, na coletânea de textos que abre o artigo de Radek, já é
“Nationalbolschewismus” (“Gegen den Nationalbolschewismus”).
Passou do estado de achado literário e fortuito ao de ideologema
durável50.

Para Faye, para quem “ideologema” é um sinônimo ocasional de


“fórmula”, a cristalização atesta, assim, a existência de uma fórmula.
Melhor: é pela cristalização que a fórmula adquire seu caráter
“ativo”. E o que propõe implicitamente Faye em sua observação sobre
o aparecimento dessa outra fórmula que é “Volksgemeinschaft” (“co­
munidade do povo”):

Tem-se a impressão, nesse texto51, de ver nascer a expressão [Volks­


gemeinschaft]. [...] [No] final, enuncia Kurella, ele se nomeia Deuts­
che Volks-Gemeinschaft. Como para o nacional-bolchevismo com o
discurso de Radek sobre a Oposição de Hamburgo, o nascimento do

48 O “equivalente” da soldadura alemã seria, talvez, em língua francesa, o hífen ou, mais
frequentemente, características semânticas específicas e um comportamento sintático particular
que devem, ambos, ser identificados caso a caso.
49 Trata-se de um artigo de Karl Radek publicado em 1919. Karl Radek era, então, delegado
do Partido Comunista (bolchevique) russo. De origem judaica, Radek será vítima dos expurgos
stalinistas em meados dos anos 1930. Ver Raul Hilberg ([1942] 1994: 227 e 341).
50 Faye (1972a: 82).
44
* 51 Trata-se de um texto de Alfred Kurella.
0 TRABALHO HEURÍSTICO DE JE A N -P IE R R E FAYE: A FÓ R M U LA “ ESTADO TOTAL5
sintagma aqui parece atestado pelo simples fato de que é ainda disjun-
to: o hífen, essa membrana linguística, ainda não foi absorvida52.

Mais adiante, comentando a soldadura pela qual “Volks-Gemeins-


chaft” torna-se “Volksgemeinschaft”, palavra que será uma das expressões
centrais do nacional-socialismo, Faye escreve: “Lá onde a combinatória
das linguagens se destruiu, a língua é aquilo que se torna imediatamente
a ação mais simplificada”53. Em outros termos, a língua é atuante por
sua cristalização. É na interrupção da extensão da combinatória ou, em
outras palavras, na cristalização, que o discurso é ação, que o achado
literário e fortuito se torna fórmula.

E. 0 processo de aceitesdícaSe
A fórmula, segundo Faye, é atuante: ela tem uma eficácia, ela
gera um processo de aceitabilidade, ela tem como efeito tornar alguma
coisa aceitável. No caso, a fórmula “totale Staat” tem como efeito tornar
aceitável a destruição dos judeus da Europa:

a primeira ocorrência [da fórmula “totale Staat”] tende a tornar


“aceitável”, antecipadamente, a chegada ao poder total daqueles que
o preconizam — e a prática, imediatamente, de uma “Solução Final”
da questão para a qual essa língua construiu enunciados perigosos54.

A ideia de um processo de aceitabilidade efetuado pela fórmula se


inscreve na concepção fayana de história, segundo a qual a história é
narrativa55 e a narrativa é atuante.
Como sublinha Louis Guespin (que não visava particularmente a
Faye), a ideia segundo a qual “o discurso é ação” é uma “verdade a ser
debatida e trabalhada”56. Que o discurso faça alguma coisa, ninguém

52 Faye (1972a: 473).


53 Faye (1972a: 634).
54 Faye (1972a: 7).
55 Como o exprime claramente essa frase frequentemente citada: “A narração é a função fun­
damental e como que primitiva da linguagem, que, sustentada pela base material das sociedades,
não somente toca a história, como efetivamente a engendra” (Faye, 1972b: 107).
56 Louis Guespin (1976: 5). 45 ,
ou quase ninguém duvida, e qualquer um, em um ou outro momento,
i NOÇÃO DE “ FÓ RM U LA” E l ANÁLISE DÛ iIS C ü iS O
espera por isso secretamente. Que a língua faça alguma coisa, eis algo
mais difícil de aceitar. Há, contudo, alguns provocadores espertos que
dizem esta verdade: sem a língua, nada aconteceria. Cada um ainda
deverá deixar claro do que está falando. Faye, não se pode duvidar, não
se inscreve nessa visada “psicologizante”57 que Guespin denuncia. Para
Faye, é pelas próprias palavras que se opera o processo de aceitabilida­
de. A noção de aceitabilidade se aproxima da noção de desempenho,
sem haver necessidade, previne Faye, de “revestir as formas gramaticais
particulares do que se chamou ‘performativo’ (no sentido de Austin)”58.
Escreve Faye: “O termo aceitabilidade articula, para nós, um conceito
que funciona de outra forma para os linguistas, na articulação entre
sintaxe e estilística (ou ‘desempenho)”59. E o processo de aceitabilidade
efetuado pela fórmula que anuncia a consagração da palavra como
questão política: é ele que dá às palavras um de seus poderes mais es­
pantosos — agir. Esse poder parece de fato mais espantoso que natural
quando é expresso por um desses atalhos de que Faye detém o segredo:

Uma só morte, a de Matteotti, contada e justificada por meio da


apologia do “Estado totalitário” [o discurso mussoliniano de junho
de 1925], prepara e torna possível os dois milhões de mortos de Aus­
chwitz, os seis milhões de judeus assassinados60.

A noção de “aceitabilidade” permanece no domínio da interpreta­


ção, o que não significa que seja necessário rejeitar a descrição dos fatos
humanos, com a condição de que se queira distinguir claramente “inter­
pretação” e “hermenêutica livre”61. Há interpretações mais justas (plausí­
veis, verossímeis, justificadas, convincentes...) que outras. Mas o processo
de aceitabilidade, em sentido estrito, não se “demonstra”. O processo de

57 ' Idem.
58 Faye (1972b: 64).
59 Faye (1972a: 659) e Faye (1996a: 216).
60 Faye (1973: 67).
61 “Hermenêutica livre” que é o domínio das “interpretações selvagens, incontroladas, empi-
ricamente não restringidas”, segundo a formulação de Bernard Lahire (1996: 62). Pondo-se em
guarda contra os perigos a que se expõe a análise do discurso, Dominique Maingueneau (1999:
180) evoca, por sua vez, o risco de uma hermenêutica incontrolada (“uncontrolled hermeneutics”).
aceitabilidade é simplesmente mais ou menos verossímil. Verossímil, por
exemplo, é o processo de aceitabilidade cumprido pela palavra “võlkisch”62.
“Substituindo a palavra totalmente negativa que é antisemitisch pela palavra
‘positiva’ por excelência na língua do nacionalismo alemão: võlkisch”63, é
a plena “aceitabilidade do discurso nazista”64 que se prepara. Fazer com
que “nacional” possa significar também “racista”, eis um passe de mágica
que torna possível muitos raciocínios e as ações que eles justificam.
O processo de aceitabilidade pelo qual passam as fórmulas opera-se
especialmente pelo seguinte tipo de procedimento: joga com a polissemia
dos termos ou com a ambiguidade de certas categorias, como aqui, com
“võlkisch”, a do adjetivo dito relacionai65. O processo de aceitabilidade
pode, igualmente, realizar-se por meio da circulação, noção cara a Faye
e sobre a qual é necessário voltar aqui. Porque a circulação, que é mu­
dança de língua, mudança de formação discursiva, mudança de sentido,
mudança por derivação ou composição, é para Faye produtora de efeitos66.
Apesar de podermos desconfiar de qualquer um — Hannah Arendt —
que não trabalhe exclusivamente com o texto67, e apesar de haver alguma O
provocação em evocar essa filósofa ao lado de Faye68, é preciso notar
que os raciocínios de um e de outro se encontram em certos pontos.

62 O adjetivo “võlkisch”, geralmente considerado e, para dizer a verdade, intraduzível, significa


ao mesmo tempo “racista” e “nacional”. Segundo Edouard Conte e Cornelia Essner (1995: 378,
nota 13), essa palavra “conota as idéias de povo (alemão, bem entendido...) e de comunidade
descendente”. Sobre “võlkisch”, ver também Faye (1972a: 151-199) e Faye (1998: 23-26).
63 Faye (1972a: 199).
64 Idem.
65 Sobre o adjetivo relacionai, ver Krieg, 2002.
66 Ver especialmente Faye (1972b:46)
67 Ver as críticas formuladas em relação ao trabalho de Hannah Arendt por Raul Hilberg ([1994]
1996: 141-150). Para uma crítica das críticas ao trabalho de Hannah Arendt, ver especialmente
Alain Brossât (1996: 45-58).
68 No momento em que aparecia na França a tradução das duas últimas partes de Origens
do totalitarismo (2. Imperialismo e 3. Sistema totalitário), Jean-Pierre Faye (1973: 63) escreveu a
respeito: “Penso [...] que a lamentável ausência de rigor quanto a noções das mais decisivas e
a questões das mais graves é flagrante nesse livro”. A crítica de Faye recaía principalmente na
falta de questionamento, por parte de Arendt, da própria palavra “totalitário”: “Esse livro nunca
se pergunta de ‘quê’ mesmo ele fala, e qual é o nome estranho que ele impinge a essa ‘coisa’
monstruosa” (Faye, 1973: 65). Faye também considera infundado o princípio de análise utilizado
por Arendt, que consiste em enquadrar o hitlerismo e o stalinismo “por assim dizer, em duas
colunas” sob o conceito comum e coerente que seria o “totalitarismo” (ver Faye, 1996b: 94-96,
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA” E l ANÁLISE DO DISCURSO
No livro do qual Faye gostaria justam ente de “não falar”69, a
saber, Origens do totalitarismo, H annah A rendt tam bém estabelece
um vínculo entre circulação dos enunciados e eficácia na política.
Para Arendt, o im perialism o é o resultado da dom inação política da
burguesia, e não, como dizia Lênin, o estado últim o do capitalismo.
Ora, precisam ente, segundo Arendt, o im perialism o se encontra
justificado pela circulação, do dom ínio privado e com ercial para
o dom ínio dos negócios públicos, de algumas palavras de ordem.
A burguesia, segundo A rendt ([1951] 1982: 35), adota alguns slo­
gans que “nascem fatalm ente da experiência de uma sociedade de
concorrência”, e que exprim em provérbios tais como “sucesso atrai
sucesso”, “o mais forte tem sempre razão” ou “quem quer o fim quer
os m eios”. É quando a linguagem dos negócios se torna dominante
ou, dito de outro modo, quando os negócios públicos passam a ser
conduzidos pelos slogans dos negócios privados da burguesia, que
as palavras encontrarão sua eficácia na política, pela realização do
im perialism o. Escreve Arendt:

Quando, na era do imperialismo, os homens de negócios se tornarem


políticos e se virem aclamados como homens de Estado, sendo que
os homens de Estado só seriam levados a sério se falassem a lingua­
gem dos homens de negócios coroados pelo sucesso e “pensassem
grande”, essas práticas e esses procedimentos, que eram da esfera
privada, se transformarão pouco a pouco em regras e em princípios
aplicáveis à conduta dos negócios públicos (idem).

A circulação dos discursos produziu seus efeitos na política.

O trabalho de Faye é um apoio heurístico forte para nossa análise


das fórmulas. As noções de circulação e de cristalização, em particular,

118-119, 185-186). Essa crítica de Faye advém de sua recusa em elaborar uma metalinguagem
distinta da linguagem-objeto (ver Krieg, 2000c: 26-28 e aqui, neste capítulo, passagens em que
já abordamos essa problemática).
J j K l 69 Faye (1973: 63).
F"
0 TRABALHO HEURÍSTICO i l JE A N -P IE R R E FAYE: A FO R M U LA “ ESTADO TOTAL5
voltarão nestas páginas. Entretanto, nosso trabalho difere do de Faye em
certos pontos. Notadamente, Faye tem a seu favor o que se chama “a
perspectiva histórica”. Langages totalitaires foi publicado vinte e sete anos
depois do fim da Segunda Guerra Mundial e mais de quarenta depois
das narrativas e dos atos ali reportados. Se Faye pode dizer que um
discurso de Mussolini proferido em junho 1925 torna possível “os seis
milhões de judeus assassinados”, é porque os historiadores demonstra­
ram como esses milhões foram assassinados, como foram assassinados
e por quem. Essa “página de glória” da história alemã, dizia Himmler,
“jamais fora escrita e jamais o será”70. A essa página destinada a ficar
em branco, historiadores puderam, no entanto, acrescentar o peso da
prova de milhões de linhas.
Contrariamente à obra de Faye, nosso trabalho de pesquisa de
doutorado71 foi contemporâneo dos discursos que analisava. Quando,
na perspectiva de nossa tese, começamos a nos interessar pelos usos das
expressões “purificação étnica”, “limpeza étnica” e “depuração étnica”,
em março de 1994, os nacionalistas sérvios continuavam a sitiar Sarajevo
e Gorazde. Ninguém poderia dizer, naquele momento, quando e como
a guerra teria fim, nem se outros países iriam entrar mais amplamente
no conflito armado, nem sob quais modalidades e com quais consequên­
cias. Hoje, a página de miséria da história iugoslava ainda está por ser
escrita. Ela não tem milhares e milhares de linhas. A guerra iugoslava
é objeto de pesquisas; ela se torna aos poucos um objeto de justiça; ela
mal começa a ser objeto da história. Mas a guerra iugoslava foi, em sua
imediaticidade, um objeto de discurso, e esse discurso foi, por sua vez,
nosso objeto. Tratou-se, para nós, de fazer uma análise contemporânea
dos discursos que se referiam, eles próprios, aos fatos que lhes eram
contemporâneos.
A contemporaneidade é frequentemente apresentada como uma
desvantagem para a pesquisa. Não acreditamos nisso, e pensamos, como
Arlette Farge, que “um dos lugares-comuns do saber histórico” consis­
te em acreditar que “quanto mais alguém remonta ao tempo passado,

70 Discurso de Heinrich Himmler aos principais responsáveis pela SS e pela polícia, em 4 de


outubro de 1943. Citado por Raul Hilberg ([1985] 1988: 871).
71
Krieg, 2000 e Krieg-Planque, 2003. 49
mais as coisas contadas são seguras, desapaixonadas” (1997: 141-142).
Na França, as polêmicas apaixonadas a respeito de Clóvis, que tiveram
lugar em 1996 — quer dizer, 1.485 anos após a morte do rei dos francos
— , mostraram muito bem que o distanciamento dos anos não implica
nenhuma ausência de paixão no debate e na análise. Ao contrário,
uma obra de Cario Ginzburg ([1991] 1997) mostra que a ausência de
distância temporal — duplicada pela ausência de distância afetiva —
não impede a distância crítica de entrar em ação. Quando Ginzburg, o
historiador dos processos por feitiçaria dos séculos XVI e XVII, desloca
sua atenção para quatro séculos mais tarde, para outro processo, o dos
velhos membros da organização Lotta Continua, é sempre a ciência
histórica que está operando72. Escrito “no calor da hora”, e escrito para
inocentar um amigo, o livro de Ginzburg poderia ter sido uma diatribe,
um panfleto, um grito. E, no entanto, é um trabalho científico — que
grita mais justamente na medida em que nunca eleva o tom. É um
trabalho científico com sua análise rigorosa dos interrogatórios e das
“confissões”, sua crítica da evidência da prova, sua explicitação dos não
ditos, das insinuações, das contradições e da maneira como os juizes
estão cegos a elas. Não nos parece, pois, que a contemporaneidade
seja a priori prejudicial à reflexão. Talvez, por mais desconfortável que
seja, ela tenha suas vantagens. Ela limita as interpretações rápidas e as
afirmações peremptórias. E uma garantia sólida contra essa “espécie
de profetismo ao inverso” que Farge (1997: 36) aponta como uma das
tentações do historiador que “conhece o fim da história”. Em suma, ela
obriga a ser prudente quanto ao sentido a ser dado ao que é dito. Essa
contemporaneidade permite também compreender em toda a sua fragi­
lidade enunciados produzidos na imediaticidade, que são, por definição,
os enunciados midiáticos, enunciados produzidos sem quase nenhuma
caução da ciência histórica.

72 Três homens foram acusados de ter participado do assassinato de um comissário da polícia,


em Milão, em 1972. Entre eles, Adriano Sofri, que foi condenado, em 1990, a vinte anos de
prisão. Carlo Ginzburg acredita que Sofri é inocente. O militante revolucionário é um amigo do
historiador — “Um de meus amigos mais queridos”, escreve Ginzburg (ibid.: 7). É esse amigo
que Ginzburg pretende defender em seu livro, submetendo as peças do processo à análise crítica.
O trabalho se faz aqui sobre o arquivo recente: Ginzburg publica seu livro nos primeiros meses
do ano de 1991, e a condenação de Sofri foi proferida em 1990.
CAPITO 3

A análise de Marianne Ebel


e Pierre Raia

A . As formulas “ Uberfremdung” e “ leeofobîa”

ean-Pierre Faye considerava que suas propostas teóricas servem para


J a exploração de outros terrenos além da Alemanha no período entre
as duas grandes guerras. Ele pensava especialmente na Revolução Russa
de 1917 (Faye, 1972b: 116). Mas é um pouco mais a oeste e um pouco
mais ao sul que Fiala e Ebel dirigem seus passos quando propõem
prolongar o trabalho de Faye: na Suíça. E também num recorte mais
contemporâneo da história que eles trabalham: as décadas de 1960 e de
1970. As fórmulas analisadas, desta vez, são duas: “Überfremdung” (ou
“influência e superpopulação estrangeiras”) e “xenofobia”.
O material sobre o qual trabalham Fiala e Ebel é propositalmente
heterogêneo: textos legislativos, artigos publicados em dois jornais suíços
francófonos (La Suisse e La Feuille d'Avis de Lausanne / 24 Heures), cartas
de leitores dirigidas a esses mesmos jornais (publicadas ou não), textos
sindicais, entrevistas com atores e testemunhas da história política, como
Fritz Meier (fundador do movimento nacionalista Action Nationale)
e James Schwarzenbach (porta-voz do movimento antiestrangeiros e
fundador do Movimento Nacional de Ação republicana e social)1. A
análise de Fiala e Ebel é particularmente centrada nas três campanhas
de “votação” (plebiscito) que, em 1970, 1974 e 1977, pedem aos cidadãos
suíços que se pronunciem pelo “sim” ou pelo “não” sobre uma proposta
de limitação da imigração (por três vezes a proposta será rechaçada). O
objetivo dos autores é analisar, para além da diversidade das práticas
linguageiras, as unidades lexicais “Überfremdung” e “xenofobia” na

1 Sobre Fritz Meier e James Schwarzenbach, ver também Pierre Fiala (1984).
â NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” EM ANÁLISE DO DISCURSO

medida em que elas cristalizam certos temas sociopolíticos e se carac­


terizam por um funcionamento polêmico.
A expressão “Überfremdung” (e suas diversas traduções) aparece
bem antes das votações dos anos 1970. Pode ser encontrada com todas
as letras nos textos legislativos sobre a polícia dos estrangeiros2 de 1917,
1919, 1921 e 1931 (Fiala e Ebel, 1983a: 12 e 73). Mas é apenas nos anos
1960 que a expressão começa a se constituir como fórmula, isto é, a ser
uma unidade que significa alguma coisa para todos, ao mesmo tempo
que se torna objeto de polêmicas. Um fato testemunha essa virada que
ocorreu, então, com a expressão “Überfremdung”: algumas pessoas atri­
buem, sem razão, a paternidade dessa palavra apenas ao movimento de
James Schwarzenbach3. Em outras palavras, é apenas nos anos 1960 que
a expressão se tornou notável. Os debates que acompanham as votações
dos anos 1970 marcam uma reativação, sob a forma de slogan, dessa
expressão que remonta à Primeira Guerra Mundial. Os movimentos
antiestrangeiros enaltecem a “luta contra a Überfremdung”. Reivindica-se
o termo. Tenta-se defini-lo, para concluir disso que a “superpopulação
estrangeira” existe ou então que ela não existe. E em relação a essa
primeira fórmula que se constitui a fórmula “xenofobia”.
“Xenofobia” e “xenófobo” são de fato utilizados como termos de
acusação em relação aos partidários da luta contra a “superpopulação
estrangeira”. Eles visam “etiquetar os partidários das iniciativas anties­
trangeiros, circunscrevê-los, condená-los de um ponto de vista moral,
isolá-los politicamente”4. Nos debates que acompanham as votações, a
acusação de xenofobia constituiu-se, escrevem Fiala e Ebel (1983a: 206),

como referente social dominante, o que constrangeu qualquer locu­


tor, partidário ou adversário da iniciativa, a posicionar-se em relação
a ela. Nesse quadro, os partidários da iniciativa encontram-se em po­
sição de “resposta” à acusação, e os discursos produzidos por eles só

2 N.T.: Divisão específica do sistema de segurança em vários países europeus, encarregada de


cuidar de tudo o que concerne aos estrangeiros.
3 Observação de Délia Castelnuovo-Friguessi, La condition immigrée. Les ouvriers italiens en Suisse.
Lausanne: Éditions d’en bas, 1978. Citado por Fiala e Ebel (1983a: 75).
52 4 Fiala e Ebel (1983a: 14).
A lif t L I S E 0 1 M ARIANNE E B E L E P IER R E FIALA
podem se construir em torno da rejeição da fórmula. De fato, os ad­
versários da iniciativa impuseram a asserção “vocês são xenófobos”,
que, designando-interpelando seus interlocutores, assumiu a forma
de uma acusação. Os partidários da iniciativa foram, assim, postos
na situação de ter que se defender.

Essa situação encontra sua resposta nos enunciados dialógicos do


tipo: “Xenofobia? Não! Mas votarei sim porque...”5.

B. A fórmula como referente social


É fazendo referência a Jean-Pierre Faye que Fiala e Ebel utilizam
a noção de fórmula, noção que eles precisam e definem. Bem mais tar­
de, é Fiala que será encarregado da redação do verbete “fórmula” no
Dicionário de análise do discurso coordenado por Patrick Charaudeau e
Dominique Maingueneau (2002: 274-275). Uma fórmula, escrevem Fiala
e Ebel, assemelha-se a um referente social, isto é, um signo que significa
alguma coisa para todos em um momento dado. Ao dizer que “Über-
fremdung” e “xenofobia” são referentes sociais, escrevem os autores,
“entendemos que, nos anos 1960-1980, qualquer locutor, individual ou
coletivo, sabia ou pretendia saber o que ‘significavam’ essas fórmulas”
(1983a: 174). Fiala e Ebel encontram as manifestações desse caráter de
referente social da fórmula na paráfrase e na circulação. Enunciados
parafrásticos como “Os estrangeiros são uma carga pesada para nossas
instituições sociais” ou “Eles sobrecarregam nosso sistema habitacional”6
atestam, por exemplo, a existência de um tema que cristaliza a fórmula
“Überfremdung” (“influência e superpopulação estrangeiras”). Assim,
durante as campanhas plebiscitárias, os termos “Überfremdung” e “xe­
nofobia”, segundo os autores,

condensaram em si uma massa considerável de discursos, para os


quais serviam de equivalentes semânticos. Enunciar um ou outro
era colocar em circulação significações múltiplas, contraditórias,

5 Carta de leitor. Citada por Pierre Fiala, Josiane Boutet e Marianne Ebel (1982: 63-65) .
6 Fiala e Ebel (1983a: 173). 53
A NOÇÃO i l “ FÓ R M U LA” E i ANÁLISE DO DISCURSO

remetendo à existência de séries de enunciados parafrásticos, bem


atestados, pelos quais os dois termos eram definidos7.

Dizer que as fórmulas circulam é dizer que as pessoas falam delas,


que seus lugares de surgimento se diversificam, que se tornam um objeto
partilhado de debate. Ao lado da paráfrase, outro fenômeno chama a
atenção dos autores: é, dizem eles, a “produtividade lexicológica” da
fórmula. A palavra “xenófobo” dá lugar, de fato, a neologismos por
derivação como “xénophomatique” [*xenofomático] ou “antixénophobes”
[antixenófobos]. Esses fatos de neologia, escreve Fiala, “são significativos
da circulação social da fórmula”8. Neologismos produzidos por lapso,
como a palavra atestada “xénophone” [*xenófono], também são índices
de que a fórmula se tornou uma passagem obrigatória dos discursos:
“O locutor, em uma situação de polêmica, é levado a apossar-se de um
lexema que não lhe é familiar, quem sabe a criar um, com base em um
esquema familiar”9. Criações voluntárias ou não, as proliferações lexicais
da fórmula testemunham sua entrada em circulação no corpo social.
A importância dada por Fiala e Ebel à noção de circulação, em
detrimento (o que não significa exclusão) da noção de produção, não é
o aspecto de menor interesse em seu trabalho. Ao mostrar que, além da
diversidade das práticas linguageiras, e a despeito da heterogeneidade
dos discursos em ato, fórmulas circulam e se impõem a todos com um
sentido que é determinado por outros, eles invalidam a ideia segundo
a qual os discursos seriam fechados sobre si mesmos. Colocar a ênfase
na circulação das fórmulas é sublinhar a abertura necessária de qual­
quer fala, dizer que ninguém pode ser totalmente surdo aos outros (e
não em virtude de um humanismo qualquer que veria na abertura ao
outro um valor a defender e, no acolhimento, um comportamento a
promover, mas simplesmente porque o dialogismo é um fato constitutivo
da fala humana).
Por meio das noções de referente social e de circulação, Fiala e Ebel
contribuem com aquilo que Régine Robin (1986: 126) chama de “um

Idem.
Ibid.: 177.
Ibid.: 176.
i piiüi fiili
dos grandes deslocamentos da análise do discurso”, deslocamento que
começa a se operar suavemente no mês de novembro de 1977 (segundo
o testemunho de Jacques Guilhaumou, que assistia ao acontecimento10):
o deslocamento que consistiu “em descompactar as formações discursi­

mmimm a a
vas”, segundo a expressão de Robin (idem), a pensá-las como abertas,
permeáveis, heterogêneas. Nesse contexto, um dos responsáveis pelo
grande deslocamento realizado, Jean-Jacques Courtine, destacou antes
de nós a importância das proposições de Fiala e Ebel. Comentando um

i liâiJii il
trabalho anterior de Fiala e Ebel (1977), Courtine escrevia que as noções
de “circulação”, de “fórmula” e de “referente social”

têm o interesse de lembrar que os discursos produzidos a partir de


posições ideológicas contraditórias não constituem de forma alguma
entidades separadas, mas permanecem em contato pela circulação
da troca de “fórmulas”, cujas condições é necessário definir a partir
de uma pluralidade heterogênea de condições de produção (Courti­
ne, 1981: 32).

C. A fórmula coma objeto polêmico


Se Courtine via uma “vantagem” nas noções propostas por Fiala
e Ebel, também via nelas um “risco”. Mas os autores, depois, neutra­
lizaram esse risco. Courtine temia, com efeito, que o postulado da
homogeneidade, eliminado com a noção de circulação, reaparecesse a
despeito da vontade dos autores por meio da noção de referente social,
sucetível, segundo Courtine, de induzir

uma concepção hegemônica da circulação das fórmulas no seio de um


“mercado da troca discursiva” que se confunde com o mercado da
troca monetária e no qual as “fórmulas”, como moedas passando de
mão em mão, receberiam o mesmo valor (1981: 32).

10 O acontecimento em questão é o simpósio “Le discours politique: théories et analyses”,


organizado em 1977 pela Universidade Autônoma do México e cujas atas foram publicadas em
1980 (Universidade Autônoma do México, 1980). Além de Jacques Guilhaumou, participaram
do encontro: Michel Pêcheux, Louis Guespin, Jean-Baptiste Marcellesi, Régine Robin. Ver, a
esse respeito, Guilhaumou e Maldidier (1986b: 235-237). §5
A NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” E l ANÁLISE DO DISCURSO

É um fato que o que se atira pela porta tem frequentemente suas


razões para voltar pela janela. Mas Fiala e Ebel sustentam uma concep­
ção contextual do sentido, e insistem: se há um significante comum em
circulação (lado coroa da “moeda”, para retomar a metáfora de Courtine),
o significado, o lado cara, está em perpétua redefinição, pelo próprio
fato de sua circulação. Nem todos inscrevem a mesma coisa no lado
cara da fórmula, e é exatamente por essa razão que ela é uma questão
central nos debates. O que caracteriza a fórmula como referente social
não é que ela obtenha unanimidade (pelo contrário), mas o fato de que
ela constitui, num momento dado, uma passagem obrigatória. A noção
de referente social, é o que explicam Fiala e Ebel,

não exprime de forma alguma a homogeneidade. Ela exprime o fato


de que, em certo estado das relações de força sociais, surgem fórmu­
las na linguagem em relação às quais o conjunto das forças sociais e
o conjunto dos locutores são coagidos a tomar posição, a defini-las, a
combatê-las ou a aprová-las, mas, em qualquer dos casos, a fazê-las
circular de uma maneira ou de outra (1983a: 174).

A fórmula é constitutivamente polêmica. É porque se põe como


dominante que ela não é aceita por todos, é porque se impõe que ela
faz tanto barulho. A distinção “referente social”/“polêmica” pode, então,
ser vista como um artifício a serviço da análise, permitindo descobrir
os lugares de instalação ou, ao contrário, de fragilização da fórmula.
Mas, na massa de discursos que se respondem, construção da fórmula
como referente social e construção da fórmula como objeto polêmico são
indissociáveis.
O modo de análise escolhido pelos autores para colocar em evi­
dência o caráter polêmico da fórmula “xenofobia” merece toda a nossa
atenção. Com base num corpus de cartas de leitores, Fiala e Ebel extraem
os enunciados que contêm as palavras “xenófobo” e “xenofobia” (bem
como algumas expressões consideradas equivalentes nesse contexto, tais
como “racista” e “ser contra os estrangeiros”), e as classificam em duas
séries: a série dos enunciados que podem ser interpretados como tendo
um valor de re t a dos enunciados que podem ser interpretados como
56 tendo um valor de dicto.
A ANALISE DE M A11AIINE EB EL E PIER RE FIALA
Na primeira série, estão enunciados como: “Nem todos os partidários
da iniciativa Schwarzenbach são necessariamente xenófobos”, ou: “Eu
os acho todos encantadores [os estrangeiros] e não sou xenófobo”11. A
resposta à acusação de “xenofobia” se dá, então, na forma da rejeição
da predicação.
Na segunda série (de dictó), estão enunciados como: “A palavra da
moda para catalogar todos os que atacam os estrangeiros de uma forma
ou de outra, virulenta ou não, é ‘xenófobo’. Eu não estou de acordo
com esta caracterização”, ou: “Não temos mais o direito de emitir a
menor crítica sem ser tachados de racistas e de xenófobos”12. A resposta
à acusação de “xenofobia” é dada aqui na forma de uma contestação
da própria palavra, e especialmente de uma contestação do sentido que
lhe é dado pelos “antixenófobos”.
As categorias de re/de dicto, versões medievais da transparência e da
opacidade, têm o inconveniente de ser muito rudimentares do ponto de
vista da análise do discurso. Provindas da tradição filosófico-lógica, são
destinadas a descrever as ambiguidades referenciais e certos paradoxos
(“Felipe acha que a capital de Honduras fica na Nicarágua”13), e depois
para dar conta da ambiguidade do discurso indireto (“Édipo dizia que
sua mãe era bela”14). Mas essas categorias estão longe de esgotar a relação
do enunciador com as palavras que ele utiliza. Ora, é precisamente essa
relação complexa que se trata de desvendar quando se tenta compreender
a maneira pela qual os locutores tomam posição em relação às palavras
que são postas no centro do debate público.
Retomemos o enunciado: “A palavra da moda para catalogar todos
os que atacam os estrangeiros de uma forma ou de outra, virulenta ou
não, é ‘xenófobo’. Eu não estou de acordo com esta caracterização”. Se
é verdade que ele decorre totalmente do de dicto, esse enunciado merece
ser analisado com mais detalhe, porque ele constitui, ao mesmo tempo,

11 Cartas de leitores. Citadas por Fiala, Boutet e Ebel (1982: 65).


12 Cartas de leitores. Citadas por Fiala, Boutet e Ebel (1982: 69-70).
13 Ver especialmente François Récanati (1979: especialmente 31-47); Georges Kleiber (1979);
Michel Galmiche (1983); Georges Kleiber (1981: 243-248 e 267-293).
14 Ver especialmente Judith Milner e Jean-Claude Milner (1975); Ann Banfield ([1982] 1995:
59-60).
uma denúncia do caráter estereotípico e prolífico da palavra “xenófobo”
(é uma palavra que está na moda), e por isso testemunha o caráter central
da fórmula em um momento dado e um questionamento da adequa­
ção dessa palavra ao que ela designa (é uma palavra que simplifica a
complexidade do real e, por essa razão, não se poderia aceitá-la), e por
isso testemunha um dos aspectos do caráter problemático da fórmula.
Enunciados realçados por Ebel e Fiala alimentariam tais registros. Para
o primeiro (palavra prolífica): “O adjetivo xenófobo, que há quatro anos
se empregava com alguma prudência, agora [em 1974] se impôs”15. Para
o segundo (palavra inadequada): “O problema é complexo. Então, que
não se empregue o nome xenófobo para aqueles que veem na iniciativa
uma tentativa de corrigir a situação”16.
Considerar tais enunciados para tirar deles conclusões sobre certo
estado de tensão do vocabulário no corpo social supõe, bem entendido,
que se leve a sério o que dizem esses locutores. Nós também propuse­
mos, apoiando-nos em particular nos trabalhos de Jacqueline Authier-
Revuz17 — que prolongam, enriquecendo-os, os de Josette Rey-Debove18
— detalhar os diferentes modos pelos quais os locutores “apostrofam”
a fórmula. Diante dessa análise linguisticamente fundada, o terreno da
lógica se encontra definitivamente abandonado em favor do território
da enunciação e do que dizem realmente, em uma diversidade im­
previsível, diferentes categorias de locutores às voltas com o universo
discursivo. No caso de nosso estudo sobre a fórmula “purificação étni­
ca”, explicitamos cinco registros de problematizações: a fórmula como
acontecimento de discurso; a fórmula confrontada com a pluralidade
de suas expressões: deixar de lado ou levar a sério a distância entre as
variantes; uma fórmula relacionada a um exterior discursivo; a fórmula
confrontada com a nomeação do real: sucessos e fracassos; a fórmula
como denominação: nome próprio de acontecimento ou nova categoria
denominativa? (ver Krieg-Planque, 2003: 305-450). Mas, bem entendido,
o princípio da adaptação das categorias de análise ao objeto analisado

15 Artigo do jornal 24 Heures. Citado por Fiala e Ebel (1983a: 386).


16 Carta de leitor. Citada por Fiala, Boutet e Ebel (1982: 70).
17 Ver em particular 1992a e 1995. Ver também 1978, 1992b, 1992c.
18 Ver principalmente 1976 e [1978] 1997.
1 ANÁLISE i l M ARIANNE l i l L I PIER RE FIALA
deve conduzir a remanejar as fronteiras desses registros, em função da
fórmula particular analisada e dos enunciados efetivamente encontrados
no corpus. “Desenvolvimento sustentável”, “choque de civilizações” ou
ainda “dever de memória” prestam-se, cada uma de maneira particular,
ao comentário discursivo.
Assim, a proposta de Fiala e Ebel de centrar a análise em uma
distinção entre “enunciados de valor de re” e “enunciados de valor de
dicto” é insuficiente para uma descrição fina do que dizem os locuto­
res. Mas ela abre uma pista interessante. Os enunciados com valor de
re se relacionam ao conteúdo e ao referencial. Eles testemunham um
“postulado de significância”, poderiamos dizer, feito pelos locutores:
supõe-se que as palavras são conhecidas e que remetem a certo senti­
do partilhado. Os enunciados com valor de re atestam, nesse sentido,
o caráter de referente social da fórmula. Os enunciados com valor de
dicto, por sua vez, relacionam-se com o próprio termo, com o modo de
dizer. Eles testemunham o caráter polêmico ou, ainda, “conflituoso”,
se nos ativermos às metáforas do combate, ou melhor, do caráter “pro­
blemático” da fórmula. Para Fiala e Ebel, a noção de fórmula mantém
um laço necessário com a existência de enunciados de valor de dicto:
com o desenvolvimento da fórmula, os enunciados com valor de dicto
se multiplicam, e os atores do espaço público começam a discutir sobre
a própria palavra. Podemos propor a hipótese de que a análise dessas
“discussões” sobre a própria palavra é um meio privilegiado de compre­
ender por que e como uma sequência verbal chega ao nível de fórmula.
Nesse sentido, o estudo do metadiscurso que recai sobre a fórmula é
indissociável do estudo do corpus dessa mesma fórmula.

59
C A P Í T U L O 4

Propostas:
as propriedades da fórmula

D
ando continuidade ao trabalho de Jean-Pierre Faye e aos estudos
de Marianne Ebel e Pierre Fiala, propomo-nos, agora, a circuns­
crever o objeto fórmula por meio de suas principais propriedades. Essas
propriedades determinam certas tomadas de posição no método de
apreensão do objeto, tanto do ponto de vista da construção do corpus
(por exemplo, a necessidade de certa densidade temporal que permita
apreender a fórmula em sua historicidade discursiva), quanto no que
diz respeito às orientações metodológicas (por exemplo, o recurso a um
tratamento não automatizado do corpus, com vistas a delimitar alguns
tipos de descristalizações). Com base nisso, apresentaremos, ao longo
destas reflexões, as restrições que pesam sobre o estudo de uma fórmula,
na medida em que ela:
- tem um caráter cristalizado;
- se inscreve numa dimensão discursiva;
- funciona como um referente social;
- comporta um aspecto polêmico.

A , 0 caráter cristalizado da fórmula


A fórmula tem um caráter cristalizado. Entendemos com isso que
ela é sustentada por uma forma significante relativamente estável. Deve
ser possível seguir uma fórmula pelos rastros de sua forma ou, para falar
como Jean-Pierre Faye (1972b: 41), “capturar ao vivo a circulação dos
significantes” (que ele opõe aos “conteúdos”). Assim, a sequência iden­
tificada como fórmula pode ser — eis aí o que parece fundamental —
uma unidade lexical simples (“humanitaire” [humanitário]; “perestroïka”
m áâkm m míumn:
[perestróica]; “immigration” [imigração]), cujo caráter de cristalização é
tautológico. Mas ela também pode ser uma unidade lexical complexa,
uma unidade léxico-sintática ou uma sequência autônoma (“frase”),
tendendo à cristalização nos três casos.
Por unidade lexical complexa, é preciso entender o que é diversa­
mente chamado de “lexia complexa”, “palavra polilexical”, “sintagma
cristalizado” ou “sintagma lexicalizado”, conjunto no qual tomarão
posição unidades como “direitos humanos”, “preferência nacional” ou
“purificação étnica”. Por unidade léxico-sintática, devemos entender a
K

copresença de um elemento lexical (ou vários) e de uma operação sintática


íílçJj

particular como, por exemplo, a coordenação (em “du pain et X” [pão


i

e X], estudado por Guilhaumou e Maldidier1), a complementação (em


“ajouter la guerra à la guerre” [acrescentar mais guerra à guerra]2) ou,
ainda, a negação (duplamente presente em “ne pas pouvoir dire que ne
pas savoir” [não poder dizer que não se sabe] tal como materializada em
“nous ne pourrons pas dire que nous ne savions pas” [não poderemos
dizer que não sabíamos]3). As sequências autônomas correspondem
os slogans (“La France aux français” [A França para os franceses]), o
que chamamos de pequenas frases (“La France ne peut accueillir toute
la misère du monde” [A França não pode acolher toda a miséria do
mundo]), ou toda e qualquer outra frase registrada na memória coletiva
(por exemplo, “Plus jamais ça!” [Nunca mais!]4).
Embora a questão da permanência do significante seja fácil de
tratar no caso das unidades lexicais simples, ela é bem mais complica­
da quando nos interessamos por essas sequências morfossintaticamente
mais complexas, que são as unidades lexicais complexas, as unidades
léxico-sintáticas e as sequências autônomas, cuja estabilidade formal é
assegurada pela cristalização. A grande diversidade terminológica que
impera na comunidade científica confunde as pistas reunidas pelos es­
forços de todos os que se aventuram pelo terreno da cristalização. Em

1 Ver Krieg, 2000c: 23-24 e no capítulo 2 da presente obra (p. 28-29).


2 Sobre essa sequência, ver Krieg, 2000c: 200-206 e Krieg-Planque, 2003: 133-142.
3 Sobre essa sequência, ver Krieg-Planque, 2003: 146-151 e Krieg-Planque a ser publicado em
2010.
62 4 Sobre essa sequência, ver Krieg, 2000c: 206-210 e Krieg-Planque, 2003: 142-146.
1987, Georges Misri (1987: 81) achava que podia escrever: “Os estudos


W ]
recentes sobre a cristalização não são muitos”. Hoje é bem diferente.

-ó»
Mas a quantidade de produções mais ilustra o grau de dispersão dos
fatos observados do que joga luz sobre a situação. Por exemplo, o caráter
heterogêneo das contribuições formuladas em 1994, por ocasião de um
colóquio dedicado à noção de “locução”, dá uma ideia da diversidade do

ICFJC
fenômeno assim chamado5. “Para o usuário da língua dito ordinário, a
locução é um momento de sossego na atividade linguageira”, como tão

a
'FM ' '> ,
bem diz Blanche-Noëlle Grunig (1997: 13). Para o pesquisador que se lança
à análise de um objeto, ela é mais um momento de angústia. Em 1995,
Danielle Candel fez um rigoroso inventário das diferentes acepções dos
termos “locução”, “expressão”, “sintagma”, “colocação” e “fraseologia”
tais como aparecem nos usos da comunidade de linguistas6: constata-se
que a terminologia de uns se sobrepõe à de outros. “Da locução crista­
lizada à simples expressão fraseológica, os limites são fluidos”, conclui
Candel (1995: 155), com grande clemência. “Estamos em presença de
uma grande cacofonia”, escreve mais energicamente Gaston Gross (1996:
5), depois de ter observado que “o fato linguístico da cristalização foi
obscurecido por denominações frouxas e muito heterogêneas, de modo que
se verificam estratos definicionais frequentemente incompatíveis” (ibid.:
3). A isso se pode acrescentar o fato de a noção de “estereotipia”, que dá
suporte à de cristalização, ser um objeto de investigação de disciplinas
não linguísticas, cada uma delas atravessada por suas divisões internas.
“O compartilhamento de palavras e noções não é claro”, advertem Ruth
Amossy e Anne Herschberg-Pierrot (1997: 5) na abertura de uma obra
dedicada a uma abordagem didática do estereótipo.
Já no campo das ciências da linguagem, a diversidade terminológi­
ca se deve, em parte — no que diz respeito tanto à cristalização como

5 Colóquio “La locution: entre lexique, syntaxe et pragmatique. Identification en corpus,


traitement, apprentissage”, Saint-Cloud 24-26 de novembro de 1994. Os textos das comunicações
foram publicados em três volumes: Martins-Baltar, org. (1995); Fiala, Lafon, Piguet, orgs. (1997);
Martins-Baltar, org. (1997a).
6 Danielle Candel (1995). Para uma síntese do estado das pesquisas (extensão do domínio
da locução e expansão terminológica), ver também Michel Martins-Baltar (1997b). O balanço
mais antigo estabelecido por Pierre Fiala (1989) já mostrava essa diversidade de abordagens e de
terminologia. Os trabalhos produzidos desde então, parece, só fazem confirmar tal variedade de
abordagens.
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA” IM ANÁLISE DO DISCURSO
também a outros objetos — às escolhas teóricas e às escolas; mas ela
tem a ver também com o caráter diverso do próprio objeto. Há pelo
menos dois modos de cristalização.
O primeiro está ligado à natureza da cristalização. Podemos,
como propõem Benoît Habert e Pierre Fiala num artigo que fez história
(1989), distinguir as cristalizações de ordem estrutural (ou formal) das
cristalizações de ordem memorial. A primeira ordem “remete a uma
análise sistemática das expressões cristalizadas nos termos da língua
e nas categorias da gramática” (Habert e Fiala, 1989: 87). Os autores
citam como exemplo “chercher des crosses” [procurando sarna pra se
coçar] e “en flagrant délit” [em flagrante delito]. A segunda ordem de
cristalizações “remete ao conjunto de enunciados ou fragmentos de enun­
ciados que circulam ‘em bloco’ num dado momento e que são percebidos
como formando um todo cuja origem é, ou não é, recuperável” (ibid.:
88), como “le vin nouveau est arrivé” [saiu a nova safra (de vinho)] ou
“Ariel lave plus blanc” [Ariel lava mais branco].
A distinção entre cristalização estrutural e cristalização memorial
parece adequada, desde que levemos em conta o fato de que existe um
continuum entre as duas ordens de cristalização e que ele está ligado ao
engendramento mútuo da língua e do discurso. Ao polo das cristaliza­
ções de ordem estrutural correspondem, tendencialmente, a “palavra”
da experiência comum, a “sinapsia” proposta por Émile Benveniste7, a
“lexia” proposta por Bernard Pottier8, ou a “unidade polilexemática”
proposta “em caráter provisório” por Danielle Corbin (1997). Ao polo
das cristalizações de ordem memorial correspondem, tendencialmente,
as “frases feitas” da experiência comum, a “sloganização” de que nos
fala Maurice Tournier (1985a e 1996) ou, ainda, num ponto extremo
— se é que é possível representar um ponto extremo de um polo — a
“combinação transmitida” proposta por Blanche-Noëlle Grunig e Roland
Grunig (1985: 232). Algumas sequências efetivam muito claramente um
ou outro polo: “mot de passe” [santo e senha] ou “prendre la porte”

7 Émile Benveniste ([1966] 1974) e ([1967a] 1974).


8 Bernard Pottier (1974: 33-34 e 326) e (1992: 17). Georges Misri (1987: 78) assinala que Pottier
propôs a noção de “lexia” com essa acepção já em 1962 (Pottier, 1962).
PROPOSTAS: AS PR O PR IED AD ES DA FORMULA
[cair fora] no caso do primeiro polo; “il faut terroriser les terroristes”
[é preciso aterrorizar os terroristas] ou “ajouter la guerre à la guerre ne
résoudra rien” [acrescentar mais guerra à guerra não vai resolver nada],
no caso do segundo polo. Outras sequências estão, por assim dizer, entre
duas margens, como “lutte de classes” [luta de classes], “mieux-disant
culturel” [guia cultural] ou “droit d’ingérence” [direito de ingerência].
“Purification ethnique” [purificação étnica], “nettoyage ethnique” [lim­
peza étnica] e “épuration ethnique” [depuração étnica] também estão
nesse caso, se entendermos como um critério de pertença relativa ao
léxico os testemunhos particulares que são os dicionários monolingues,
os índices remissivos que figuram no fim dos livros ou ainda os glossá­
rios publicados em obras ou jornais em forma de anexo ou de boxes9.
A diversidade da cristalização também está ligada a seu grau.
A maior parte dos autores concorda em dizer que uma sequência
cristalizada responde mais ou menos bem aos testes que permitem
caracterizá-la como tal, quer se trate de testes com critérios semânticos
(não composicionalidade do sentido), quer se trate de critérios sintá­
ticos (inseparabilidade, comutação, repetição parcial, explicitação de
um denominador comum...), e que, consequentemente, uma sequência
cristalizada é, de fato, menos ou mais cristalizada. No que diz respeito
aos critérios sintáticos da cristalização, Jacqueline Picoche ([1977] 1992:
16) registra que eles “constituem antes indicações que provas”, o que
Charles Bally já dissera ao escrever que nessa matéria não há “‘receitas’
infalíveis”10. Laurence Danlos (1988: 5) observa, por sua vez, que “às
vezes é difícil delimitar a noção de cristalização”. Maurice Gross (1988:
22) tira de suas análises sobre frases cristalizadas a conclusão de que
elas “só excepcionalmente são cristalizadas”. Por fim, Gaston Gross, em
um estudo sobre nomes compostos, conclui que devemos “considerar a
composição [nominal] como uma escala de cristalização cujos valores
limite não devem formar entidades específicas”, depois de ter observado
que “os casos intermediários entre os cristalizados e os grupos ordinários
[...] são de longe os mais numerosos” (G. Gross, 1988: 70 e 63). Dito de

Ver nossa análise em Krieg-Planque, 2003: 335-342.


Charles Bally ([1909] 1951: 77).
outro modo, a cristalização se inscreve em um continuum cujos limites
(sequência totalmente livre e sequência totalmente cristalizada) são menos
bem servidos do que as zonas intermediárias. Segundo Pierre Achard e
Pierre Fiala (1997: 274), convém acrescentar “que a cristalização não é
só um fenômeno intrínseco, mas que resulta de um julgamento atribuído
pelos locutores a certas sequências discursivas”. Dizer que há julgamento
é dizer que existe uma subjetividade dos locutores que se exerce numa
dada situação de discurso11. Diga-se, ainda, que uma mesma construção
poderá ser percebida como cristalizada por certos interprétantes num
dado contexto, mas percebida como livre por outros interprétantes nesse
mesmo contexto (ou pelos mesmos interprétantes em um contexto di­
ferente). Por exemplo, é bem provável que a sequência “produit actif”
[princípio ativo] seja entendida como um sintagma cristalizado por um
farmacêutico ou por um toxicologista quando esse sintagma figura nas
indicações de uso de um produto medicamentoso. Mas é possível que o
usuário ordinário dessa indicação entenda “produit actif” [literalmente,
produto ativo] como uma composição livre, e é possível que o mesmo far­
macêutico entenda “produit actif” como uma sequência livre em outros
contextos (“Tu ferais mieux d’utiliser ce débouche-évier, c’est un produit
actif” [Você devia usar esse desentupidor de pia, que é um produto ativo
(forte/eficaz)], enunciado em que o sintagma “produit actif” não está
sujeito às mesmas restrições do que o cristalizado, podendo aparecer em
construções como “c’est un produit (très, vraiment) actif” [“é um produto
(muito/bastante) ativo/forte/eficaz]). A percepção do caráter cristalizado
das palavras compostas, supunha Arsène Darmesteter, há cerca de cento
e quarenta anos ([1874] 1967: 13), depende, em parte, de “avaliações
pessoais”. Segundo Darmesteter, “para os jornalistas, o fa it divers12 tem
de apresentar uma ideia tão simples quanto soa simples Hautes Études

11 As abordagens estritamente distribucionalistas levam pouco em conta esses fatores inter-


pretativos, ligados à subjetividade de um interprétante confrontado com um gênero de discurso
particular. Além de Achard e Fiala, insistem sobre esses fatores: Sonia Branca-Rosoff (1997);
Pierre Lafon e Josette Lefèvre (1997); Robert Galisson (1995); Anne-Marie Loffler-Laurian (1995).
12 N.T. Trata-se de jargão jornalístico para designar temas não categorizáveis conforme as
divisões tradicionais — política, cidade, economia, internacional, esportes etc. — , que são tra-
% tados sinteticamente, como narrativa curta. Em geral, fatos inusitados, pitorescos, prosaicos ou
í ^ v í , ' eventualmente trágicos.
mmmm
para os alunos da escola que tem esse nome”. Acrescentando fatores
situacionais a esses fatores individuais e sociológicos, pode-se pensar
que o que Darmesteter escreve sobre a palavra composta vale para as

m s iíw íiiím íím


sequências cristalizadas em geral.
A fórmula tem um caráter cristalizado pelo qual ela se identifica
com uma materialidade linguística particular. Assim sendo, a atitude que
preside à análise de uma fórmula não deve ser de formalismo absoluto.

$wm m à m é
De fato, antes de mais nada, a fórmula existe também através de
múltiplas paráfrases de que ela é a cristalização, conforme os termos de
Ebel e Fiala ou, para retomar os termos do método transformacional
então empregado por Maldidier13, através das diferentes transformações
das quais a “fórmula estereotipada” ou o “enunciado mínimo”14 é o resul­
tado (no caso por ela estudado, trata-se de “l’Algérie, c’est la France” [a
Argélia é a França]). Entretanto, é preciso frisar que, se a formula existe
também através de suas paráfrases, ela não existe fora de uma sequência
cristalizada bem identificável que as condensa. Portanto não são fórmulas
aquilo que a psicologia social chama de “estereótipos” (as mulheres são
mais doces do que os homens; os negros têm ritmo no sangue...). Também
não são fórmulas o que Jean-Blaise Grize (1990: 30-31) chama de “pré-
construídos culturais”, em virtude dos quais cada grupo cultural atribui
a um objeto valores específicos, e o percebe numa cadeia de expectati­
vas particular (por exemplo, o gato ser associado ao sagrado no antigo
Egito). Tampouco são fórmulas os saberes e crenças partilhados como
conhecimentos prévios à comunicação verbal, que Marie-Anne Paveau
(2006) propõe apreender como elementos de “pré-discurso”, sendo este
definido como “um conjunto de quadros coletivos suscetíveis de organizar
cognitivamente a produção, a circulação e a transmissão de discursos”.
Também não são fórmulas o que Jean-Claude Anscombre e Oswald
Ducrot chamam de “topoi”15, isto é, princípios gerais, intralinguísticos,
mas culturalmente determinados, que servem de apoio ao raciocínio
sem que sejam asseverados pelo locutor, e que permitem a passagem de

3 Denise Maldidier (1969) e (1971).


:4 Idem.
Para uma síntese da teoria dos topoi, nascida da teoria da argumentação na língua proposta
pelos próprios Ducrot e Anscombre (1983), ver Anscombre (1995) e Anscombre et al. (1995).
SO
um argumento a uma conclusão (como o topos “Plus le prix est élevé,
U
ISC R

moins l’achat est justifié” [Quanto mais alto o preço, menos justificada é
â NOÇÃO il “ FO R M U LA” E l ANÁLISE DO D

a compra], conforme a ideologia capitalista). A noção de “ideologema”16


tal como proposta por Marc Angenot, se aproxima da noção de topos,
embora Angenot insista mais particularmente no caráter propriamente
ideológico desse tipo de pressuposto; ela não corresponde estritamente à
noção de fórmula. Também não são fórmulas o que Marie-Anne Mochet
e Iva Cintrât chamam de “aforismos” (como “la famille actuellement
n’est plus ce qu’elle était autrefois” [a família não é mais o que foi era
antes]), caracterizados pelo fato de que “a estereotipia que aí vemos se
exerce antes no conteúdo de pensamento, como ‘lugar-comum’, do que
na forma, cuja atualização permanece aberta” (Mochet e Cintrât, 1995:
128). Também não são formulas o que Blanche-Noëlle Grunig e Roland
Grunig17 chamam de “enunciados legislantes” (como “les Allemands
sont disciplinés” [os alemães são disciplinados] ou “les professeurs sont
tout le temps en vacance” [os professores estão de férias o tempo todo]).
Por mais que circulem e predominem, e por vezes sejam bem atuantes,
os estereótipos e os lugares-comuns não são formulas se não forem
coconstruídos por uma sequência verbal estável e repetida. Podemos
considerar como uma fórmula a expressão “mauvaise graisse” [gordura
pra queimar] utilizada na França por Alain Juppé, quando primeiro-
ministro18, uma fórmula que condensa ao mesmo tempo o enunciado
legislante segundo o qual “os professores estão de férias o tempo todo”
e aquele segundo o qual “le fonctionnaires sont à l’abri de l’effort alors
que les autres travaillent” [os funcionários públicos são poupados de
qualquer esforço enquanto os outros trabalham]. Retomando a tese do
processo de aceitabilidade proposta por Faye, podemos levantar a hipótese
de que essa fórmula visava justificar o anúncio feito pelo Conselho de
Ministros, menos de três meses depois do aparecimento do sintagma

16 Ver Angenot (1982: 169-189, “Presupposé/Topos/Idéologème”) e Angenot (1989: 894). Note-se,


ainda, para os devidos fins, que Marc Angenot não diz que emprestou a noção de “ideologema”
de Jean-Pierre Faye, ainda que ele cite os trabalhos deste último em outras ocasiões.
17 Grunig e Grunig (1985: 25-26, 106, 156-157, 199, 206-209, 232).
18 Em 14 de maio de 1996, na Assembléia Nacional, Alain Juppé declara: “Prefiro um fun­
cionalismo público menos numeroso, mais eficaz, mais ágil, a um funcionalismo público que
68 acumula gorduras”.
ASPRO PRIED AD ES DA FO RM ULA
nas propostas de Juppé de suprimir de 6.500 a 7.000 postos de trabalho
no funcionalismo público, mais de um terço deles no sistema nacional
de educação.
A segunda razão para não adotar uma atitude exclusivamente for-
malista decorre de que a sequência identificada como uma fórmula pode
ter variantes. Essas variantes podem corresponder, no interior de uma
mesma série lexical, a simples modificações morfológicas (“la banlieue”,
“les banlieues” [a periferia, as periferias] ou morfossintáticas (“les exclus”,

PROPOSTAS:
“l’exclusion” [os excluídos, a exclusão] ou, ainda, “excluant” [excludente],
como em “une société excluante”19 [uma sociedade excludente], Elas
podem, igualmente, corresponder, no caso de sequências superiores à
unidade lexical simples, a operações de comutação que conduzem a
sintagmas novos dos quais só a análise em contexto permite dizer se se
trata realmente de variantes de uma mesma fórmula (por exemplo, “pu­
rification ethnique” [purificação étnica], “nettoyage ethnique” [limpeza
étnica] e “épuration ethnique” [depuração étnica] aparecem na análise
como variantes de uma mesma fórmula20), formulações não concorrentes,
isto é, semanticamente e/ou lexicalmente próximas, mas com funciona­
mento discursivo distinto (como “cantonisation ethnique” [cantonização
étnica], “découpage ethnique” [segregação étnica], “dépeçage ethnique”
[desmobilização étnica], no caso que estudamos em detalhe), ou de
descristalizações (como “épuration artistique” [depuração artística],
“nettoyage ethnico-culinaire” [limpeza étnico-culinária], “purification
éthique” [purificação ética], Ainda que o fenômeno da descristalização
(também chamado de “desvio”21, “palimpseste verbal”22 ou “locução
neológica”23) e o fenômeno da palavra-valise24 sejam, em geral, estudados
separadamente pelos pesquisadores, podemos considerar que a palavra-

19 Expressão utilizada por Geneviève de Gaulle-Anthonioz, presidente da ATD Quart-Monde,


entrevistada por Elisabeth Mérogis em L’Humanité, 12/07/95, p. 5, com o título: “Que cada um
aceite ser mais solidário”(“Nós mesmos é que estamos em vias de fabricar uma sociedade exclu­
dente, que priva um grande número de pessoas dos direitos essenciais, que fundam a cidadania.
Temos fabricado essa exclusão em todos os níveis”).
20 Ver Krieg 2000c: 384-399 e Krieg-Planque, 2003.
21 Almuth Grésillon e Dominique Maingueneau (1984).
22 Robert Galisson (1995).
23 Jean-François Sablayrolles (1997).
24 Sobre palavra-valise, ver especialmente os trabalhos de Almuth Grésillon (1983a), (1983b),
(1984), (1985). 69
i NOÇÃO i l “ FÓ R M U LA” E l ANÁLISE 00 ilS C U R SO
valise está para a unidade lexical simples como a descristalização está
para as sequências que compreendem várias unidades lexicais25: suma­
riamente consideradas, ambas derivam de uma categoria de “monstros
de língua”26 criada por substituição ou por inserção (de uma unidade
lexical ou de um morfema) em uma associação sintagmática que estava
bloqueada. Podemos, então, considerar como um modo de descristaliza­
ção a “valisagem” por que passam algumas fórmulas (por exemplo, para
“perestroïka”, palavras-valise atestadas em enunciados da imprensa como
“catastroïka”27, “touristroïka”28, “lambadastroïka”29 ou “Paristroïka”30).
Enfim, uma abordagem que não seja puramente formalista permite
localizar, quando há, as formulações concorrentes da fórmula, isto é,
sequências que podem ser estranhas à fórmula de um ponto de vista
morfológico, mas que funcionam, em contexto, como alternativas (even­
tualmente como alternativas conflituosas). É o caso de “racista” por
“xenófobo”, conforme estudos de Fiala e Ebel, mas também de “geno­
cídio” ou de “servização”31, por exemplo, para a fórmula que estudamos
— “purification ethnique”32. Insistamos no fato de que as formulações
concorrentes não são “sinônimos em língua” da fórmula, de que uma
análise sêmica, por exemplo, daria conta, ou algo que os dicionários de
língua pudessem indicar; mas são sequências que funcionam de modo

25 Se a aproximação desses dois fenômenos raramente é feita, podemos citar como exceção a
afirmativa de François Rastier (1997: 322): “A diferença entre lexias simples e complexas não tem
nada de fundamental, e não surpreenderia constatar, no que tange às lexias simples, os mesmos
fenômenos que acontecem com as lexias complexas. Onde a descristalização das lexias complexas
conduz a uma análise em palavras, a descristalização das lexias simples conduz a sua análise
em morfemas ou, por diversos procedimentos semelhantes, a outras palavras”. Rastier cita como
exemplo de descristalização de uma lexia simples a substituição operada sobre um nome próprio
de país: “Yougoslamort” [N.T. Iugoslávia + morte, num jogo de contraste com Yougoslavie, em
que se pode entrever a palavra “vie”- vida] (Rastier, 1997: 323).
26 Judith Milner (1982).
27 Alain Bensaçon, “Catastroïka: le programme intérieur”, L’Express, 20/11/1987, p. 39.
28 René Backman, “Fidel lance la touristroïka”, Le Nouvel Observateur, 05/08/1988, p. 32/33.
29 Sophie Grassin, “Tout l’Est danse la lambadastroïka”, LExpress, 09/03/1990, p. 155.
30 Laurent Bijard, “Les dictateurs ‘francophones’ sont toujours là... — Afrique: photo de famille
avec taches”, Le Nouvel Observateur; 10/11/94, p. 58-59.
31 N.T. Trata-se de palavra corrente em francês — “serbisation” — , um termo que faz referência
a procedimentos condenáveis atribuídos aos sérvios na guerra dos Bálcãs.

\ét 32 Krieg-Planque, 2000c e 2003.


efetivo no discurso, como substitutos mais ou menos polêmicos, e mais

PROPOSTAS: AS P M P fflE B A B iS M F B i í ü L A
ou menos mutuamente exclusivos. Dito de outro modo, para retomar a
terminologia de Henri Boyer (1987b: 44), as formulações concorrentes
da fórmula não são “concorrentes linguísticos”, mas “concorrentes do
ponto de vista sociopragmático”.
O caráter cristalizado da sequência é uma condição necessária para
sua existência como fórmula. A cristalização implica certa concisão.
Decerto podemos dizer que, sob dado aspecto, Em busca do tempo perdido,
as Memórias de guerra do general de Gaulle ou o longo discurso pronun­
ciado por M artin Luther King em 28 de agosto de 1963, quando houve
a marcha dos negros sobre Washington, são blocos textuais cristalizados.
Mas dificilmente diriamos desses textos que são sequências cristalizadas.
Os modos de “descristalização” a que esse tipo de “cristalização” é sus­
cetível correspondem a gêneros muito particulares (pastiche, paródia),
cuja análise não pode ser feita com os mesmos métodos aplicados às
sequências cristalizadas (em contrapartida, há as sequências cristalizadas
“Longtemps je me suis couché de bonne heure” [“Durante muito tempo,
eu costumava deitar cedo”], “Toute ma vie, je me suis fait une certaine
idée de la France” [Por toda minha vida, fiz certa ideia da França] ou
“I hâve a dream” [“Eu tenho um sonho”]). Ora, é a concisão que per­
mite à formula circular, no sentido material do termo, é ela que permite
à sequência ser integrada a enunciados que a sustentam, a incluem, a
retomam, a reforçam, a reiteram ou a recusam. É a concisão que permite
à formula ser reafirmada ou recusada em bloco, tornar-se parte integrante
de uma argumentação. Donde a tendência dos textos que representam
questões sociopolíticas fortes circularem sob a forma condensada de
uma sequência que supostamente resume seu teor: a sequência “I have
a dream” — e suas versões francesas “Je fais un rêve” [Eu tenho um
sonho = eu sonho] ou, menos fielmente, “J’ai fait un rêve” [Eu tive um
sonho = eu sonhei] - faz circular com ela um conjunto complexo de
posições que ela condensa, cujo peso ela carrega sozinha, com base nas
quais ela ocupa lugares nos discursos que a retomam. Donde também
uma tendência das fórmulas a “reduzir” — como se diz de um molho
no domínio culinário — à medida que sua circulação aumenta e sua
estatura se fortalece. É o caso do “programa comum de governo do
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA” EM ANÁLISE 00 DISCURSO

Partido Comunista Francês e do Partido Socialista”, anunciado com


esse nome em 27 de junho de 1972 e publicado com esse título33, que
sofreu uma redução sintagmática ao circular com os nomes “programa
comum do Partido Comunista e do Partido Socialista”, “programa
comum de governo da esquerda”, “programa comum de governo” ou,
ainda, “programa comum”, nome com que afinal entrou para a história34.
E o caso também da expressão “droit d’ingérence humanitaire” [direito
de ingerência humanitária], proposta pelo jurista Mario Bettati numa
conferência em 198735, que perdeu rapidamente seu adjetivo (ou, pelo
menos, ele se tornou facultativo): nas resenhas de L’H umanité, quando do
encerramento dos debates, ela já era “direito de ingerência”36. O mesmo
se passa com o sintagma “solution finale” [solução final], redução sin­
tagmática em língua francesa de uma tradução da língua alemã para
a sequência “solution finale de la question juive en Europe” [solução
final da questão judaica na Europa]37, que às vezes sofre uma redução
mais amena, como na formulação “solution finale de la question juive”
[solução final da questão judaica]38.
Essas reduções explicam-se parcialmente por uma repetição da
sequência nos usos, seguindo a regra estabelecida por André M artinet
(1960: 194), segundo a qual “quando a frequência de uma unidade au­
menta, sua forma tende a se reduzir”, por siglação, por apagamento de
uma unidade lexical, ou por supressões que têm os nomes sofisticados de
aférese e apócope. Mas as reduções observadas nas fórmulas têm outra
razão de ser, menos “mecânica”. Essa razão de ser reside menos numa
lei do menor esforço ou numa regra da preguiça articulatória natural

33 Partido Comunista Francês, Partido Socialista, Programme commun de gouvernement du Parti


communiste français et du Parti socialiste. Paris: Éditions sociales, 1972. Prefácio de Georges Marchais.
34 Ver atestações em Bernard Gardin (1974).
35 Primeira Conferência Internacional de Direito e Moral Humanitária, Paris, 26, 27 e 28 de
janeiro de 1987, sob a égide da o n g Médecins du Monde e da Faculdade de Direito Paris-Sud.
Anais publicados por Mario Bettati e Bernard Kouchner sob o título Le droit d’ingérence. Peut-on
les laisser mourir? Paris: Denoël, 1987.
36 Ver Pierre Haski, “Les organisations internationales codifient le ‘droit d’ingérence”’, L’Humanité,
29/01/1987, p. 26.
37 Die Endlosung der Judenfrage in Europa. Ver, por exemplo, Raul Hilberg ([1985] 1988: 347).
i 72 38
Die Endlosung der Judenfrage. Ver, por exemplo, Raul Hilberg ([1985] 1988: 302).
SPROPRIED AD ES DA FO RM U LA
dos locutores do que nos benefícios discursivos que eles podem obter
de denominações assim reduzidas.
A redução apresenta a vantagem de permitir uma relativa evapo­
ração do sentido do segmento que desaparece, evaporação que leva a
certa flutuação semântica, na qual mergulham as polêmicas. A redução
também facilita a utilização de uma sequência assim reduzida para
designar outros objetos, emprego que qualificamos como “propagação”

PROPOSTAS: A
da fórmula para outros quadros. Por exemplo, a redução sofrida por
“direito de ingerência humanitária” facilita a utilização da expressão
assim reduzida (“direito de ingerência”) num contexto não mais “huma­
nitário”, mas “político”, como fez um jornalista do Nouvel Observateur29.
Ou, ainda, a redução sofrida por “solução final da questão judaica na
Europa” torna possível a utilização da sequência reduzida em um contexto
do “mundo animal” (“Elefantes: a solução final”, manchete no mesmo
semanário3
40), ou sua utilização para um referente próximo, por sua
9
natureza, a um referente já designado, mas diferente do ponto de vista
do contexto geo-histórico (um ano depois do genocídio ruandês, escreve
um pesquisador: “Fim de 1993, tudo está pronto para a implantação da
solução final, elaborada pelos quadros do exército e a família da esposa
do presidente Habyarimana”41). Só o desaparecimento de uma parte
da sequência torna possível esse tipo de propagação: a sobrevivência
do complemento do nome “da questão judaica na Europa” impediría

39 Robert Schneider, “La candidature qui inquiète Rocard — Kouchner au secours des eu­
ropéennes”, Le Nouvel Observateur, 07/10/1993, p. 56-57. (Ele [B. Kouchner] é considerado um
desertor da sociedade civil. E se ele fosse, na verdade, um dissidente da política? Seguro de sua
experiência e de sua popularidade, ei-lo decidido a fazer valer... seu direito de ingerência”).
40 Caroline Brizard, “Éléphants: la solution finale”, Le Nouvel Observateur; 17/06/1988, p. 48-49.
O título do artigo é resultado da retomada da expressão usada por um pesquisador, no corpo do
artigo, com apenas uma repetição, para designar o massacre dos elefantes na África (“Reconstruir
Notre-Dame ou Versailles é sempre possível, mas reconstituir uma espécie animal extinta, isso,
jamais”, salienta Pierre Pfeffer, diretor de pesquisa no CNRS. [...]. Em 1985, entre 800 e 1.000
toneladas de marfim deixaram a África, 600 toneladas foram recolhidas em 1987, ou seja, 60.000
elefantes mortos, redução devida mais à diminuição da população total do que a alguma tomada
de consciência. Os caçadores, na sua urgência, abatem indivíduos cada vez mais jovens. ‘É a
solução final’, diz Pfeffer”). Essa retomada ilustra de modo característico a função dramatizante
dos títulos e manchetes.
41 Jean-Pierre Gouteux, “Idéologies et massacres inter-ethniques au Rwanda-Burundi”, Golias
Magazine, n. 43, jul-ago 1995, p. 22-27.
o uso da sequência conservada em sua totalidade para designar esses
sunosia

referentes tão heterogêneos quanto o massacre de elefantes na África e


o genocídio dos tutsis em 1994.
oi is iifif

O fato de a fórmula ser coconstruída por um material linguageiro


relativamente estável é igualmente necessário a seu funcionamento
m «n fíiiij^ is o v ú o n w

como lugar-comum do debate, como significante partilhado. Por seu


caráter cristalizado, a fórmula se torna identificável, reconhecível e,
consequentemente, pode funcionar como índice de reconhecimento
que perm ite “estigm atizar” — positiva ou negativamente — seus
usuários (o que não impede que certos locutores sejam vítimas ou
beneficiários de um equívoco sempre possível na identificação da
sequência). É porque ela se condensa na sequência bem identificada
“direito/dever de ingerência (hum anitária)” que a fórmula funciona
como denominador comum de discursos, a despeito das formulações
flutuantes propostas concorrentemente, como em “droit de chaque
médecin d’aller soigner là où il veut partout où les gens souffrent”
[direito de cada médico de ir clinicar onde quiser, em todos os lugares
onde houver gente sofrendo], proferida por Lech Walesa42, ou “droit
pour toutes les victimes à l’assistance hum anitaire” [direito de todas
as vítimas à assistência humanitária], de Jacques Chirac43, ou “de­
voir hum anitaire qui oblige les Etats à assurer la sauvegarde de leurs
ressortissants” [dever humanitário que obriga os Estados a garantir
a salvaguarda de seus residentes] de Simone Weil44, ou, ainda, “droit
des victimes à l’assistance hum anitaire et l’obligation des États d’y
apporter leur contribution” [direito das vítim as à assistência huma­
nitária e obrigação dos Estados de contribuir para isso], adotada na
resolução final da conferência45.

42 Declaração de Lech Walesa na Primeira Conferência Internacional de Direito e Moral Hu­


manitária, Paris, 26-28 de janeiro de 1987 (publicada em Bettati e Kouchner, op. cit., p. 13).
43 “Morale humanitaire e action politique”, comunicação de Jacques Chirac na mesma confe­
rência (publicada em Bettati e Kouchner, op. cit., p. 285).
44 “Terrorisme et démocracie”, comunicação de Simone Weil na mesma conferência (publicada
em Bettati e Kouchner, op. cit., p. 103).
45 “Resolução sobre o reconhecimento do dever de assistência humanitária e do direito a essa
assistência”, aprovada pela Primeira Conferência Internacional de Direito e Moral Humanitária,
74 Paris, 28 de janeiro de 1987 (publicada em Bettati e Kouchner, op. cit., p. 1291).
Dizer que a formula tem como suporte uma sequência verbal par­
ticular, que ela se cristaliza em uma forma de língua bem identificada,
implica que o pesquisador leve em conta essa forma, pois, se a fórmula
está ligada aos usos, se ela tem um caráter discursivo, como insistimos
acima, evidentemente esse discursivo se opera na língua, com ela, por
meio dela, graças a ela ou apesar dela — conforme ela soe dócil aqui,
irascível ali. Uma língua que só pode passar pelo computo dos “ganhos
e perdas”, para usar a feliz expressão de Françoise Kerleroux (1984)
em resposta aos escritos de Bourdieu46. Dizer que é preciso levar em
conta a língua como “condição de possibilidade” do discurso, como
tão justamente escreve Michel Pêcheux (1975: 3), é também dizer que
é preciso levar em conta uma língua, com o que ela permite e com o
que ela interdita. “Eu não conheço nenhum texto que seja escrito em
uma linguagem, na linguagem. Só conheço textos que são escritos em
francês, em japonês etc.”, diz Culioli474
. O estudo minucioso de um cor-
8
p u ^ %oferece mais de uma chance de confirmar a tese segundo a qual
uma língua — entendida ao mesmo tempo como sistema autorreflexivo
dotado de uma dupla significância49 e como “modo singular de produzir
equívoco”50, ambiguidade, polissemia — não equivale a nenhuma outra.
Um estudo como esse permite também observar que a singularidade
de cada língua determina, em parte, o que se diz nos discursos, como
questões políticas e sociais.
Podemos levantar a hipótese de que existem tipos de formas da
fórmula que são privilegiados. As sequências “atômicas”, compostas de
um só morfema lexical (“crise” [crise], “rigueur” [rigor], “emploi” [em­
prego]) não devem ser excluídas. Nesse caso, a polissemia do morfema
é certamente o que ele tem de melhor: a propósito disso é que Marc
Angenot (1982: 134) fala de “o axiologema ‘liberté’ [liberdade]”, pondo
em relevo que “sua maleabilidade, a imprecisão de seu contorno, sua

46 Em especial, Pierre Bourdieu (1982).


47 Antoine Culioli, mesa-redonda do colóquio “Matérialités discursives”. Retomada em Conein
et al. (1981: 185).
48 Ver Krieg, 2000c e Krieg-Planque, 2003.
49 No sentido de Émile Benveniste. Ver Benveniste ([1969] 1974) e ([1967b] 1974).
50 Segundo a expressão de Jean-Claude Milner (1978: 22). Sobre a língua como ordem própria,
ver também as considerações e posições de Patrick Sériot (1989).
A NOÇÃO D i “ FÓ R M U LA” IM ANÁLISE 00 DISCURSO

polissemia” é que lhe permitem “inumeráveis passagens sub-reptícias de


um campo de pertinência a outro, de uma acepção a outra”. A polissemia,
de modo geral, facilita o regime “formulaico” do léxico, na medida em
que ela faz crescerem as faculdades de circular e de se tornar polêmica.
Contudo, levantamos a hipótese de que as formas privilegiadas da
fórmula têm um caráter relacionai. Pôr em relação diferentes “termos”
de fato provoca escândalos, cria significações novas, sugere correspon­
dências que cabe aos locutores acolher ou descartar. George Orwell o
exprimiu intuitivamente: na “novilíngua” imaginada por esse escritor,
as palavras do vocabulário político “eram sempre palavras compostas.
[...] Eram formadas por duas palavras ou mais, ou porções de palavras,
agrupadas de uma forma que ficava fácil pronunciar”51. A morfossintaxe
das palavras políticas teria tendência a gerar e a aceitar sequências de
caráter relacionai.
O caráter relacionai pode se manifestar na superfície da sequência,
em nomes compostos (“sans-abri” [sem-teto], “sans-papiers” [sem-docu-
mento]) ou, preferencialmente, em sintagmas do tipo “N + preposição +
(artigo) + N ” (“droits de 1’homme” [direitos humanos], “crise des valeurs”
[crise de valores], “problème des banlieues” [problema das periferias
(dos subúrbios ou arredores de Paris)], “seuil de tólerance” [zona de
tolerância], “rideau de fer” [cortina de ferro], “théologie de la libération”
[teologia da libertação], “amour de la patrie” [amor à pátria], “devoir de
mémoire” [dever de memória]). O caráter relacionai pode também residir
nas profundezas da sequência, como nas unidades lexicais simples que
comportam vários morfemas lexicais (como “dialogue” [diálogo], que é
sempre possível tomar como falha de adequação ao real, se for oposto
a “monologue” [monólogo]).
Mas aqui nós pensamos, sobretudo, em duas estruturas privilegiadas:
de um lado, os sintagmas nominais com adjetivos denominais (“fracture
sociale” [fratura social], “ségrégation raciale” [segregação racial], “entre­
prise citoyenne” [empresa cidadã], “pacte républicain” [pacto republicano],

51 George Orwell ([1948] 1950: 427, “Apêndice. Os princípios da novilíngua”). Assim, o termo
“bempensado” significa “pensar de maneira ortodoxa”, “crimepensado” significa “crime cometido
em pensamento”, “pensarpol” significa polícia do pensamento, “crimessexo” significa imoralidade
76 sexual.
LA
“parti ouvrier” [partido operário], “salaire parental” [salário-família],

RMU
“préférence nationale” [preferência nacional], “sélection naturelle” [se­

Sil FO
leção natural], “solidarité internationale” [solidariedade internacional])

E
e, de outro lado, as nominalizações52 (“modernisation” [moderniza­

D D
A
ção], “nationalisation” [nacionalização], “réunification” [reunificação],

PRIE
“intégration” [integração], “exclusion” [exclusão], “reprise” [retomada],

R
PROPOSTAS: IS P O
“mondialisation” [mundialização/globalização], “réforme” [reforma]). O
adjetivo denominai53 é o lugar de uma ambiguidade por meio da qual se
deixa à apreciação de interpretações diversas a natureza da relação que
se estabelece (ou então que, exatamente, não se estabelece) entre o nome

52 Utilizamos o termo “nominalização” especificamente para designar as nominalizações ativas


e/ou resultantes do verbo (diferenciando-as das nominalizações qualitativas do adjetivo etc.).
Noutros trabalhos, empregamos “nominalização” numa acepção que não é nem derivacional
(no sentido de que o nome seria, necessariamente, historicamente derivado de um verbo), nem
transformacional (no sentido de o nome se apresentar, necessariamente, no interior do texto,
como a transformação de um enunciado verbal presente acima e abaixo do texto e em relação
ao qual o nome constituiria uma endófora). Para dizer as coisas globalmente, empregamos “no­
minalização” numa acepção semântica: consideramos que constitui nominalização um nome
que produz um efeito de sentido tal que esse nome se apresenta como se fosse o resultado da
transformação de um enunciado verbal (o nome é formado de maneira a, semanticamente, ele
pressupor a existência de um verbo).
Assim, consideramos que são nominalizações não somente “nettoyage” [limpeza], “démocrati­
sation” [democratização], “élargissement” [alargamento], mas também “copinisation” [a “moçada”
se impondo] ou “footballisation” [futebolização]. Este último termo foi utilizado pelo etnólogo
do esporte Christian Bromberger, quando se preparava a Copa do Mundo na França: “Há uma
futebolização da sociedade. Pensa-se o mundo social de um modo futebolístico, sendo que an­
tes se pensava o futebol de um modo social” (Christian Bromberger entrevistado por Christina
Losson e Olivier Villepreux, “Il y a une footballisation de la société”, Libération, 12/05/1998, p.
22). O outro neologismo é utilizado por Edgar Morin num artigo publicado em 1963, no auge do
sucesso do programa “Salut les copains” e de seus concertos de yé-yé [iê-iê-iê, no Brasil]: “Com
uma vontade de indiferença, que é talvez sua grande ilusão, o mundo ‘copain’ [‘o mundo da
moçada’] se encerra em um ‘nós, os jovens, não queremos saber do que é velharia e ruína’ [...].
Do mesmo modo, dá-se a ‘copinisation’ geral, isto é, a eliminação dos aspectos desagradáveis
da existência reflete uma frivolidade imbecil ou o desejo de ganhar tempo em relação a tudo
aquilo que é inexoravelmente sério, sobre os conflitos e tragédias reais do homem e da sociedade"
(Edgar Morin, “Le yé-yé”, Le Monde, 07-08/07/1963, p. 12).
Decerto os verbos “copiniser” [comportar-se como “moçada” (copins)] e “footballiser” [aplicar
os modos de ser do universo futebolístico] não existem. Entretanto, os nomes “copinisation” e
“footballisation” se apresentam como se esses verbos existissem — o que não significa que seja
fácil atribuir sentidos precisos a esses verbos inexistentes (“copiniser”: “estabelecer uma relação
com o mundo e com os outros pautada pela leveza de relações que constitui as turmas jovens,
a “moçada”?; “footballiser”: “ser afetado pelos valores do futebol”...?).
53 Para mais detalhes sobre o adjetivo denominai, ver Krieg, 2002. 77
DISCURSO

subjacente ao adjetivo e o nome regente. A nominalização, por meio


da qual se apagam as estruturas da predicação, deixa subdeterminada
a identidade dos atores do processo no qual, apesar disso, ela se dá.
ANÁLISE DO

Os sintagmas com adjetivos denominais e as nominalizações, por sua


ambiguidade e subdeterminação, favorecem os conflitos de interpretação
ou, mais exatamente, os conflitos sem interpretação para palavras que
il“ FÓ R M U LA ”

permanecem abertas, e as paráfrases que se fazem delas não conseguem


fechar, a não ser no exato instante de sua enunciação.
A criação neológica de nominalizações em momentos críticos do
i NOÇÃO li

debate pode ser creditada a uma cristalização privilegiada da fórmula


nesse tipo de forma: é o caso de “banlieurisation”54 [periferização],
nominalização que tende a fazer crer na existência de um “problema
crescente das periferias”, cuja existência e natureza caberia justamente
discutir, ou de “clandestinisation”55 [clandestinização], nominalização
que tende a fazer funcionar como pré-construído a passagem de alguns
estrangeiros a um estatuto de ilegalidade decorrente das chamadas leis
de Pasqua56 e, em seguida, à necessidade de modificar essas leis ou
de revogá-las. Algumas fórmulas acumulam ambiguidades associando
nominalização e adjetivo denominai, como “réconciliation nationale”
[reconciliação nacional], “insertion sociale” [inserção social], “régulation
marchande” [regulação de mercado], “regroupement familial” [reagrupa-
mento familiar] ou “rétention administrative” [detenção administrativa],
Como “purification ethnique”, “nettoyage ethnique” e “épuration eth­
nique” também, por meio das quais se criam múltiplas ambiguidades,
subdeterminações e sobredeterminações do sentido.

54 Termo usado num artigo de Alain Finkielkraut, “Le rêve ridicule dTsaac Bashevis Singer”,
Le Monde, 21/08/1996, p. 10. (“Se, de fato, o campo desaparece com o golpe de uma técnica de
cada vez melhor desempenho, numa submissão cada vez maior aos princípios econômicos de
rentabilidade, inexoravelmente a 'periferização’ matará também as cidades. A racionalidade que
nos governa revela-se cada vez menos razoável”).
55 Termo utilizado por militantes de organizações civis e personalidades políticas de esquerda
no momento do “caso dos sem-documentos da igreja Saint-Ambroise” (18 a 24 de março de
1996), depois “da igreja Saint-Bernard” (28 de junho a 23 de agosto de 1996), “caso” que teve
um desfecho violento e provisório, com a evacuação de 300 africanos que ocupavam a igreja
Saint-Bernard, em Paris, promovida por 1.500 homens das polícias civil e militar. Para um resumo
dos fatos, ver Weydert (1996). Sobre a gênese dos fatos, ver Siméant (1995) e (1998).
56 Leis que “fabricam clandestinos”, conforme pudemos 1er e ouvir à época. Veja-se, por exemplo,
78 o artigo não assinado “Como as leis Pasqua criam clandestinos”, L’Humanité, 09/08/1996, p. 5.
mmmà m
Ao dizer que a fórmula se cristaliza numa forma da língua bem
identificada e que a análise deve levar em conta essa forma, fazemos
escolhas.
Antes de mais nada, no que se refere à análise morfossintática,
estimamos que seja necessário considerar as formas tal como elas se
apresentam nos enunciados, sem recorrer a métodos transformacionais.
Eles certamente oferecem vantagens locais efetivas, ao porem em evi­

sw
wisoémd
dência a recorrência de certas predicações para além da diversidade
das formulações (Maldidier, 1969), ou o método “énoncés-vedettes”
[enunciados-vedete] estereotipados (Marcellesi, 1969). Mas sua aplicação
inicial e sistemática a um corpus tem como consequência “desambiguizar”
uma ambiguidade que é exatamente constitutiva do que se está dizendo,
de impor o homogêneo justamente onde o heterogêneo é que deveria ser
captado. “Transformar certas frases do texto em frases gramaticalmente
equivalentes”, como preconizava Harris ([1952] 1969: 12), é puxar o
tapete do que o enunciador diz, porque o que é dito se diz no modo
como é dito. Esses efeitos perversos do método transformacional, por
meio do qual a enunciação — mas também o sentido — “é esquivado”57,
foram amplamente sublinhados antes de nós: por Jean-Jacques Courtine,
a propósito da redução da ênfase58, por Patrick Sériot, a propósito da
transformação da nominalização em enunciado verbal59 e, indiretamen­
te, pela invalidação da proposta harrissiana, por Ann Banfield60 e por
Jacqueline Authier-Revuz61, a propósito da equivalência entre discurso
direto e discurso indireto. Seguimos as trilhas de todos esses autores.
Essas críticas já são antigas e bem conhecidas. Mas será bom voltar
a elas, pois é observando as falhas do transformacionalismo que percebe­
mos na justa medida todas as preciosas ambiguidades que se enovelam
até mesmo na mais sumária das palavras. No caso que estudamos, o
da fórmula “purification ethnique” [purificação étnica] (Krieg-Planque,
2003), reduzir “os complementos do nome a adjetivos ou o inverso”, como

57 Catherine Fuchs (1986). Ver também Paul Henry (1977).


58 Courtine (1981: 82).
59 Sériot (1986a: 16, 21, 24) e (1986b: 30).
60 Banfield (1973) e ([1982] 1995).
61 Authier e Meunier (1977); Authier (1978), (1992b), (1992c).
A NOÇÂO DE “ FÓ R M U LA” E l ANÁLISE DO DISCURSO

recomendava Jean Dubois (1969: 122), seguindo Harris e na conjuntura


da época, teria consequências catastróficas. Por exemplo, “purification
ethnique” seria o “equivalente” transformacional de quê? De “purification
d’une ethnie” [purificação de uma etnia], de “purification de Fethnie”
[purificação da etnia], de “purification des ethnies” [purificação das
etnias], de “purification par une ethnie” [purificação por uma etnia],
de “purification par 1’ethnie” [purificação pela etnia]... (ou de que outra
coisa)? “Purification ethnique” não é já a copresença confusa e jamais
enunciada de todas essas formulações de uma só vez ? A esta última
questão, respondemos afirmativamente. “Purification ethnique”, para
além de seus múltiplos empregos, é exatamente “purification ethnique”:
esse sintagma suporta um conjunto não inventariável de “equivalentes”
transformacionais, e nada autoriza o analista a recortar o que, nessa lista
não finita, seria, segundo ele, o único “equivalente” autêntico e fiel62.
Levar em conta a forma da fórmula (e levar em conta as formas que
suas variantes assumem) é também fazer uma escolha no que concerne
à análise lexical. E levar a sério cada lexema, considerando-o como um
corpo singular irredutível, considerando que esse corpo se parece com
outros corpos que fazem pensar nele. É o caso de “nettoyage” [limpeza],
termo militar que refere uma tática, de “nettoyage ethnique” [limpeza
étnica], expressão à qual se atribui um conteúdo doutrinário, marca de
uma nova ignomínia. E o caso de “purification ethnique” [purificação
étnica] que, sem se confundir com ela, carrega consigo a “pureté fran­
çaise” [pureza francesa] proclamada sob o regime de Vichy63, evoca-a.
Aqui ainda, o ponto de vista não é exclusivamente formal. Não é só
por semelhança formal, como “efeitos de tradução” dos quais conviría
desconfiar, que o sintagma “purification ethnique” é chamado a ser
visto como um avatar do termo “judenrein” (termo do vocabulário nazista
que traduziremos, por falta de melhor expressão, como “pur de ju if”
[purificado de judeu]), mas pelo parentesco nocional e referencial que
essas ànas sequências têm aos oVnos úe certos iocutores. Trata-se àe um a
memória discursiva, mais ou menos partilhada, que opera nas formas

62 Especificamente sobre esses fenômenos de ambiguidade relacionai, aos quais se somam os


fenômenos de subdeterminação enunciativa, ver Krieg, 2002.
I 83 63 Ver Krieg, 2000c: 592-593, e também Krieg-Planque, 2005.
PROPOSTAS: AS PRO PRIED AD ES DA FO R M U LA
do léxico, mas também à revelia delas, e se põe a trabalhar. Não é
por parentesco lexical — uma vez que não há — que “ethnique” é
aproximado de “racial”, mas por recobrimento nos usos do primeiro
termo pelo segundo64. É por meio do complexo trabalho da polissemia
e da sinonímia que um chargista do jornal Monde representa o general
sérvio Mladic como um lixeiro, descarregando as latas de lixo dos
civis num caminhão onde se lê “Propreté de la Serbie” [Limpeza da
Sérvia], em uma imagem colocada logo abaixo da manchete principal
daquele dia: “Os sérvios lançaram uma vasta operação de purificação
étnica na Bósnia”65.
O pertencimento morfossintático e lexical das fórmulas enquadra
e autoriza o que podemos fazê-las dizer. E, no entanto, é também
pelo fato de podermos ir além dessa materialidade que se constroem
sentidos, nessa “instabilidade fundamental dos significados” que se
opõe, conforme Irène Tamba escreve (1991: 50), à “rigidez fundamental
dos significantes”.

B. 0 caráter discursivo da fórmula


Conforme acabamos de ver, uma materialidade linguística relati­
vamente estável, localizável na cadeia do enunciado e linguisticamente
descritível, dá suporte à fórmula. Mesmo assim, a noção de fórmula não
é uma noção linguística. Ela é, e antes de mais nada, uma noção dis­
cursiva. A fórmula não existe sem os usos que a tornam uma fórmula.
Ainda que, como acabamos de supor, algumas formas tenham uma
aptidão particular para se transformar em fórmulas, nenhuma sequência
é, se podemos dizer, “pré-programada” para assumir esse destino (e,
inversamente, nenhuma sequência está, a priori, totalmente excluída da
possibilidade de chegar à condição de fórmula).
Acontece que o acesso da sequência ao status de fórmula coincide
com suas primeiras aparições materiais; dito de outro modo, trata-se sem­
pre da fórmula como um neologismo de forma. E o caso dos sintagmas

64 Ver Krieg, 2000c: 436-440 e também Krieg-Planque, 2005.


65 Desenho de Pancho, Le Monde, 14/07/1995, p. 1. Há uma reprodução dessa caricatura em
Krieg-Planque, 2003: 510. 81
* NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” EM ANÁLISE DO DISCURSO

neológicos “classe stérile” [classe estéril]66 e “purification ethnique”


[purificação étnica]67, cujo caráter problemático se manifesta desde suas
primeiras aparições. E também o caso de empréstimos como “glasnost”
(transparência) e “perestroïka” (reconstrução), que, mal haviam chegado
aos discursos produzidos em língua francesa no decorrer de 1986, já
eram vistos como palavras que cristalizavam os acontecimentos mundiais
que viriamos a chamar, mais tarde, de “as reviravoltas do Leste”. Em
janeiro de 1987, um jornalista, duvidando ainda da existência de tais
reviravoltas, via no termo “glasnost” o que seria um truque típico do
regime soviético: “Nada do que se passa em Moscou permite pensar que
a URSS tenha decidido, de repente, mudar o regime político. E com
base nesta simples constatação que deve ser medida a reviravolta mais
espetacular do reino de Mikhail Gorbatchev, toda ela contida no termo
glasnost, ‘transparência’”68. Quando esse jornalista escreve, ele já o faz,
dialogicamente, em resposta aos que viram nesse mesmo termo “glasnost”
a marca de uma mudança bem real, em relação aos quais ele é levado
a tomar posição. E a cristalização de certo número de acontecimentos
no termo “glasnost”, cristalização construída e reconstruída por outros
antes dele, que esse jornalista tenta desfazer. É uma palavra já investida
que ele procura desinvestir.
Na maior parte das vezes, a sequência préexiste formalmente a sua
chegada à condição de fórmula. Não é, então, uma forma nova que o
analista deve buscar, mas um uso particular, ou uma série de usos parti­
culares, por meio dos quais a sequência assume um movimento, torna-se
um jogo de posições, é retomada, comentada, para de funcionar no modo
“normal” das sequências que nomeiam pacificamente e que usamos sem
nem mesmo nos dar conta delas. É o caso das palavras “concertation”
[concertação], “négociation” [negociação] e “dialogue” [diálogo], com as
quais se deu uma aventura bem peculiar em 1995, quando se passava o
que os comentaristas nomeariam mais tarde, depois das investigações,
com as expressões mais diversas: “les grèves” [as greves]69, “la grève de

66 Ver, nesta obra, capítulo 1.


67 Ver: Krieg, 2000c; Krieg-Planque, 2003: 12 e 375; Krieg-Planque, 2005; Krieg-Planque, 2008.
68 Bernard Lecomte, “Le pari de la ‘glasnost’”, L'Express, 16/01/1987, p. 31-32.
69 “Grèves, automne 1995”, este é o título de um número temático da revista Sociologie du travail
82 (Paris: Dunod), 39/4, 1997).
PRQPÛSTIS» AS P R O P il E iâ iE S iâ FÓ R M U LA
décembre” [a greve de dezembro]70, “le tournant de décembre” [a virada
de dezembro]71, “le souffle de décembre” [o sopro de dezembro]72, “le
décembre” [“dezembro”] simplesmente, e entre aspas73, “le mouvement
de décembre” [o movimento de dezembro]74, “le mouvement social de
décembre” [o movimento social de dezembro]75, “le quasi-mouvement” [o
quase-movimento]76, “le mouvement immobile” [o movimento imóvel]77,
“les luttes de novembre-décembre” [as lutas de novembro-dezembro]78,
“la lutte” [a luta], numa só palavra79, “le mouvement polysémique” [o
movimento polissêmico]80 ou la “‘colère’ monosémique” [a “cólera”
monossêmica]81. Essa “cólera” são as greves e manifestações de novem­
bro e dezembro de 1995, provocadas, inicialmente, pela apresentação
de um plano de reforma da Seguridade Social pelo primeiro-ministro
Alain Juppé, em 15 de novembro, e o anúncio, no mesmo dia, de medi­
das relativas ao regime de aposentadoria do funcionalismo público. As
palavras “concertation”, “négociation” e “dialogue” funcionavam, antes,
como palavras “normais” do vocabulário sociopolítico, regularmente
utilizadas pelos sindicatos como uma exigência82, regularmente utilizadas

70 Alain Touraine et. al. Le grand refus. Réflexions sur la grève de décembre 1995. Paris: Fayard,
1996.
71 Alain Caillé e Jean-Pierre Le Goff, Le tournant de décembre. Paris: La Découverte, 1996.
72 René Mouriaux et al. Le souffle de décembre. Paris: Éditions Syllepse, 1997.
73 Julien Duval et al. Le “décembre” des intellectuels français. Paris: Liber éditions, 1998.
74 Emmanuel Terray, “Sur le mouvement de décembre”, Journal des Anthropologues (Paris: Asso­
ciation Française des Anthropologues), n. 64-65, primavera-verão de 1996, p. 191-209.
75 “Mouvement social de décembre”, número temático da revista La revue M. Mensuel, Marxisme,
Mouvement (Paris), n. 83, julho de 1996. Sobre a expressão “mouvement social”, ver o artigo de
René Mouriaux (1996).
76 Farah Khosrokhavar, “Les nouvelles formes de mobilisation sociale”, in Alain Touraine et
al., op. cit., p. 195-246; p. 198.
77 Alain Touraine, “L’ombre d’un mouvement”, in Alain Touraine et al., op. cit., p. 11-102; p.
90.
78 “Tous ensemble! Réflexions sur les luttes de novembre-décembre”, dossier de Futur antérieur
(Paris: L’Harmattan), n. 33-34, 1996.
79 Michel Wieviorka, “Le sens d’une lutte”, in Alain Touraine et al., op. cit., p. 247-296.
80 Jean Dubois, “Décembre 1995: un mouvement polysémique”, Projet (Paris), n. 245, primavera
de 1996, p. 95-106.
81 Henri Vacquin e Yvon Minvielle, Le sens d ’une colère, chances et perspectives. Novembre /décembre
1995. Paris: Stock, 1996 e CGT, L’hiver de la colère, le livre des grévistes de novembre-décembre. Paris:
La Vie Ouvrière Éditions, 1996.
82 Ver Hetzel, Lefèvre, Mouriaux e Tournier (1998: 197-199). 83
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA ” EM AN Á LISE DO DISCURSO

pelo patronato ou pelos governos como uma resposta. No outono de


1995, com o anúncio do que seria chamado de “o plano Juppé”, essas
três palavras foram postas no centro do universo discursivo e entraram
numa fase polêmica. Seus funcionamentos se desatrelaram, o sentido
de cada uma delas se descolou dos das outras duas, sua proferição ou
sua não proferição tornaram-se objeto de comentário — e motivo para
a ação. Os sindicatos esperavam do primeiro-ministro Alain Juppé e
do ministro do Trabalho e dos Assuntos Sociais, Jacques Barrot, que
utilizassem a palavra “négociation”. Mas essa palavra não aparecia.
Apenas “dialogue” e “concertation” saíam da boca dos membros do
governo. Um jornal francês comenta:

Como na véspera, o governo jogou com as palavras, girando em tor­


no do termo “négociation” sem jamais acionar a engrenagem que o
obrigaria a rever certos pontos da reforma de Seguridade Social ou o
estabelecimento do plano Etat-SNCF. Assim, ele multiplica os apelos
ao “diálogo”, à “concertação”, às “reuniões de trabalho”. [...] Mas,
negociação que é bom, nada83.

Em 10 de dezembro, enfim, depois de um milhão de pessoas terem


se manifestado publicamente nas ruas da França no dia 7 de dezembro,
a palavra foi pronunciada pelo primeiro-ministro em uma entrevista
televisionada. No dia seguinte, escreve um cronista:

E Alain Juppé? Como se sairá do joguinho da palavra proibida que


até aqui se impôs? Ele pôde dizê-la! A palavra ‘négociation’ saiu de
sua boca como uma batata bem quente, é verdade, mas pelo menos
saiu84.

O episódio de tensão vivido pelas palavras “concertation”, “né­


gociation” e “dialogue” vai continuar fazendo parte de sua história.
Quase um ano após sua passagem, a tormenta ainda deixa traços
nas memórias, e a fórmula volta à tona: “A palavra ‘négociation’ está

83 Récit du service France, “Le gouvernement et les syndicats jouent à cache-cache”, Le Monde,
09/12/1995, p. 5.
84 84 Luc Rosenzweig, “Il peut le dire!”, Le Monde, 12/12/1995, p. 33.
m m m i m m m m m èm ê s i «swisodoid
fadada a desaparecer do vocabulário governamental?”, pergunta-se um
editorialista, dessa vez a propósito da política governamental de Juppé
em matéria de imigração. “Já à época das grandes greves de novembro
e dezembro, o primeiro-ministro se recusara a pronunciar a palavra.”85
Unidades lexicais descritíveis nas categorias da língua, “concertation”,
“négociation” e “dialogue” são também fórmulas no quadro do universo
discursivo que evocamos há pouco. Fórmulas que, nesse sentido, não
podem ser descritas senão depois de seus usos.
A preexistência formal da sequência em relação a seu estatuto
“formulaico” não vale apenas para as unidades lexicais simples. Ela
vale também para nomes compostos. O nome composto “sans-papiers”
[sem-documento], por exemplo, parece ter se tornado uma fórmula na
segunda metade de 1996, no contexto do que será chamado por todo
mundo precisamente de “l’affaire des sans-papiers de 1’église Saint-Ber-
nard” [o caso dos sem-documento da igreja Saint-Bernard] (todo mundo,
ou quase todo mundo, uma vez que o caso figurará para o partido do
Front National genericamente como “l’affaire des étrangers de 1’église
Saint-Bernard” [o caso dos estrangeiros da igreja Saint-Bernard])86. Nesse
período de 1996, o nome composto “sans-papiers” [sem-documento] se
tornou uma fórmula. Sua aparição é contundente. Ele é comentado,
questionado. Frequentemente, a palavra é percebida como uma vitória
dos que lutam pela regularização de sua situação administrativa. Para
muitos comentadores, “sans-papiers” vem oportunamente substituir um
termo julgado impróprio, “clandestins” [clandestinos], Podemos 1er no
Jornal du Dimanche que “‘clandestins’ é uma categoria que reúne tudo e
nada, e tem um apelo pejorativo”87, na qual os “sans-papiers” não devem
ser jogados. Num outro semanário, a “lição dos ‘sans-papiers’” é, antes
de mais nada, uma aula de vocabulário: os “sans-papiers”

85 Alain Genestar, “Fermeture”, Le Journal du Dimanche, 18/08/1996, p. 1. (A propósito da


recusa do ministro do Interior, Jean-Louis Debré, de negociar com os africanos que ocuparam
a igreja Saint-Bernard reivindicando a regularização de sua situação em território francês.)
86 Por exemplo: “Jean-Louis Debré felicitou-se por seu pulso firme no caso dos estrangeiros da
igreja Saint-Bernard. De 290 malineses, só 15 foram expulsos! Incapaz de regulamentar o problema
da imigração, o governo Juppé pretende comprar a paz civil na periferia” (Français d'abord. La
lettre de Jean-Marie Le Pen, bimestral, n. 257, Ia quinzena de maio de 1997, número especial sobre
; Leições legislativas antecipadas, p. 2, texto não assinado intitulado “Stop ou encore?”).
Editorial de Alain Genestar, “Fermeture”, Le Journal du Dimanche, 18/08/1996, p. 1. E5
A NOÇÃO DE “ F O R M U i r 11 ANÁLISE DO DISCURSO

conseguiram reabrir o debate sobre a imigração. [...] De saída, o


vocabulário. O peso das palavras. Importantíssimo, pois alimenta
ou modifica o racismo de plantão. Não se fala mais de “clandes­
tins”, mas de “sans-papiers”. É simbólico, mas é, sobretudo, justo:
esses homens e mulheres não entraram à força na França, saídos
do porão de um navio. Eles todos tiveram em suas mãos os vistos
provisórios88.

A palavra “sans-papiers” é percebida como um acontecimento: sua


irrupção nos discursos públicos deveria mudar o curso das coisas. A
palavra “sans-papiers” também é comentada na medida em que viria
a ser sintoma de uma proliferação da categoria dos “sem” no seio da
sociedade francesa (“sem-emprego”, “sem-teto”, “sem-direitos”, “sem do­
micílio fixo”...). O editorialista Serge July diz que “o que os ‘sans-papiers’
mudaram” foi justamente isto: eles fizeram (rejemergir89 a categoria
dos “sem”: “É uma pequena revolução semântica, mas, como costuma
acontecer, ela é o sinal de uma grande reviravolta. Estamos de novo
imersos na era dos ‘sem’”90. Outro jornalista do Libération escreveu: “...
é como se Saint-Bernard fosse a gota d’àgua que fez transbordar o copo
dos ‘sem’”91. Antes de sua aventura de 1996, porém, o nome composto
“sans-papiers” não era desconhecido em língua francesa: procurando
bem, encontramos atestações. Podemos encontrá-lo, por exemplo, na
primeira página do jornal Libération em dezembro de 1975: “Os ‘sans-
papiers’: a face oculta da imigração”92, manchete de capa. O termo se
referia aos “travailleurs arabes” [trabalhadores árabes] em greve de fome
pela obtenção de uma “carte de séjour et de travail” [visto de perma­
nência e visto de trabalho]. Encontrava-se a palavra também em 1992,

88 Valérie Hunier e Thierry Leclère, “La leçon des sans-papiers”, Télérama, 28/08/1996, p. 7.
89 Sobre a categoria dos “sans” [sem] no espaço sociopolítico europeu desde os “sans-culottes”
do período revolucionário, ver a obra de Jacques Guilhaumou (1998). Especificamente sobre os
“sans-culottes” de 1790-1792, ver Annie Geoffroy (1985a). Especificamente sobre a denominação
“sans-papiers”, ver Salih Akin (1999) e também Johanna Siméant (1995 e 1998).
90 Serge July, “Ce que les sans-papiers ont changé”, Libération, 30/08/1996, caderno especial
“Saint-Bernard”, p. I, II, III.
91 Gérard Desportes, “Le pays redécouvre le mot ‘asile’”, Libération, 30/08/1996, caderno especial
“Saint-Bernard”, p. VII.
92 Libération, 13/012/1975, p. 1, manchete de capa de Une.
w

quando a expressão “sans-papiers du sexe” designava os(as) prostitutos(as)

fó r m u la
estrangeiros(as) em situação irregular93.

mmmmmm m
A preexistência formal da sequência em relação a seu estatuto
íormulaico é um fenômeno observável em unidades lexicais simples e
em nomes compostos. E também em sintagmas. Podemos considerar
que o sintagma “extrême droite” [extrema-direita], mais do que atesta­
do depois de um século e meio de circulação, é alçado à condição de

PROPiSTis: is
fórmula no momento em que — possivelmente não pela primeira vez
na sua vida — , em junho e julho de 1996, ele se torna objeto de um
debate público. Esse debate tem origem em dois direitos de resposta que
o jornal Libération, por decisão judicial, é obrigado a publicar em 11 de
junho de 199694. O primeiro direito de resposta foi obtido pelo Club de
.'Horloge95 porque o Libération tratara das atividades dessa associação sob
a rubrica “Extrême droite”96. O segundo foi obtido pelo jornal Présent
porque o Libération qualificara o periódico de “quotidien d’extrême droite”
[diário de extrema-direita]97. Desde então, o sintagma “extrême droite”
se põe a circular no espaço público como objeto de questionamentos.
Todas as personalidades ou quase todas as que foram entrevistadas no
rádio, na televisão e nos jornais foram chamadas a responder a esta
pergunta: “Devemos continuar usando a expressão “extrême droite” para
qualificar o Front National?” Um florilégio de respostas de políticos
a esta pergunta foi publicado num diário nacional98. “Extrême droite”
como expressão se torna objeto de debate. Aparece nas pesquisas de

93 Frédéric Ploquin, “France: les sans-papiers du sexe”, L’Évenemnt du jeudi, 06/08/1992, p. 28-29.
;4 A importância desses dois direitos de resposta foi amplificada pela publicação, três dias an­
tes, de outro direito de resposta, obtido também por decisão judicial, pelo presidente do partido
Front National contra o Monde (ver o texto de Jean-Marie Le Pen e o comentário de Jean-Marie
Colombani na edição de 09-10/06/1996, p. 26). Não se tratava de uma palavra sendo posta em
causa, mas de sua relação com um acontecimento. Jean-Marie Le Pen condenava Pierre Georges
por ter feito, numa de suas crônicas (“Les squatters du racisme”, Le Monde, 12/05/1995, p. 36),
uma aproximação entre a manifestação do Front National no dia Io de maio de 1995 e um crime
racista que aconteceu no mesmo dia.
95 N.T.: que se apresenta como “um reservatório de idéias da direita”.
96 Michel Sousse, “Le Club de l’Horloge ne mégote pas sur le cachet de ses orateurs”, Libération,
23-24/10/1993, p. 7.
97 Bernard Fromentin, “‘La loi de Dieu transcende les lois”, Libération, 19/07/1995, p. 4.
98 “Le FN est bien d’extrême droite — Quarante hommes politiques affirment qu’ils continueront
d’utiliser cet épithète”, Libération, 10/06/1996, p. 14-15. 87
I Ü Ç l Q DE “ FÓ R M U LA” E l ANALISE D i OISCURSO

opinião". Os dirigentes do Front National são levados a responder9


100 não
9
mais sobre seu programa, mas sobre a qualificação que carregam. Ou,
antes, como dizem esses dirigentes sobre o rótulo de “extrema-direita”
com que foram travestidos101, e que dissimuladamente se faz com que
carreguem, pelo fato de que, nos termos de Jean-Marie Le Pen, “essa
palavra permanece subliminarmente ligada a uma certa violência”102.
“Extrême droite”, uma unidade que funciona no vocabulário político
francês desde os anos 1820103, chega, assim, à condição de fórmula no
debate do verão de 1996.
A expressão “fracture sociale” [fratura social] também préexiste
formalmente a seu estatuto de fórmula. Foi só no inverno de 1995 que
ela chegou a essa condição, na sua utilização recorrente por Jacques
Chirac, quando de sua candidatura à eleição presidencial. Foi clara­
mente aí que a expressão ganhou lugar nas memórias. Assim ela foi
percebida, por exemplo, pelo colunista que descreve a “fracture sociale”
como “um slogan de campanha eleitoral”104 de Jacques Chirac. Meses
mais tarde, eleito o candidato, a “fracture sociale” se mantém como “a
fratura social em nome da qual o chefe de Estado conduziu sua cam­
panha”, conforme lemos no Le Figaro105. Em 1998, a “fracture sociale”
é ainda “a ‘fracture sociale’ evocada por Jacques Chirac durante uma

99 “Analistas e comentaristas da vida política qualificam o Front National como de formação


de extrema-direita. Pessoalmente, o senhor ... concorda totalmente / concorda/ concorda até
certo ponto/ não concorda?”, essa era a pergunta proposta em uma pesquisa de CSA/La Vie
(Béatrice Houchard, “70% des Français: le FN est d’extrême droite”, La Vie, 04/07/1996, p. 24).
Outra pesquisa de mesma natureza: Nonna Mayer, “Le FN est d’extrême droite: ce sont ces
électeurs qui le disent”, Libération, 22/07/96, p. 13.
100 Ver, por exemplo, a coluna de Bruno Gollnisch, “Le Front national et la sémantique”, Le
Figaro, 21/06/1996, p. 2.
101 Jean-Marie Le Pen, entrevistado por Muriel Plat em National Hebdo em 02/02/1998, p. 5.
Com o título “Le Pen: ‘Chirac piétine la Constitution et casse l’unité française’ (“Em nossos
dias, tudo o que é mau é sistematicamente travestido com o qualificativo de extrema-direita, as
duas palavras conotando negativamente no subconsciente de nossos contemporâneos”).
102 Jean-Marie Le Pen, coletiva à imprensa, 18/06/1996.
103 Encontramos essa expressão no Journal des débats, de 29 de junho de 1821: “A emenda da
comissão ganha voz: a extrema-esquerda e a extrema-direita se levantam pelo sim”. Agradeço a
Maurice Tournier por ter gentilmente oferecido essa ocorrência. Sobre a formação do sintagma
“extrême droite”, ver Uwe Backes (1998).
104 Alain Rémond, “Boîtes d’ennui”, Télérama, 31/05/1995, p. 98.
88 105 Anne Fulda, “Chirac: le retour au terrain”, Le Figaro, 08/01/1996, p. 1 e 7.
PROPOSTAS: AS PROPRIED AD ES DA FÓ R M U LA
campanha eleitoral”1061
. Entretanto, a expressão preexistia como tal a esse
7
0
momento que a tornou famosa. Eis aí o que descobrimos por acaso e
contra todas as expectativas: em 16 de maio de 1992, ou seja, três anos
antes da eleição de Jacques Chirac à presidência da República, o Club
République moderne, liderado por Jean-Pierre Chevènement, organiza­
va na Maison de la Chimie, em Paris, uma jornada sobre o tema “La
fracture sociale”. O sintagma é, aqui, atestado. Mas devemos crer que
na época não foi julgado relevante pelos comentadores: nesse momento,
ele foi notado apenas pela revista L‘H umanitéwl.
A consequência do caráter discursivo das fórmulas é que elas só
podem ser analisadas se estiverem apoiadas em um corpus saturado de
enunciados atestados108. O que quer dizer, por sinal, que as sequências
assinaladas aqui como fórmulas só são assim consideradas sob o rigor
de uma análise bastante metódica — ainda que para cada uma delas
tenhamos à disposição informações e enunciados atestados relativa­
mente numerosos.
A seleção de “candidatos” ao estatuto de fórmula é feita diferen­
temente conforme o analista seja ou não contemporâneo à emergência
da suposta fórmula. Para trabalhar com um período estritamente con­
temporâneo ao analista, o fato de estar com os ouvidos plugados nas
fontes de informação e os olhos pregados nos jornais deve ser suficiente
para colher candidatos a fórmulas (cujo caráter formulaico não pode
ser propriamente confirmado ou infirmado, e sobretudo descrito em
sua dinâmica própria, senão por uma análise rigorosa). Haveria razão
para nos inquietar se um ouvido atento ao que se diz no espaço público
não retivesse uma sequência que é precisamente definida como notável
nos debates públicos do momento. Seria também lamentável utilizar
procedimentos onerosos cujos resultados correm o risco, numa dada
circunstância, de confirm ar a intuição, sem necessariamente reunir

106 Jacques Fontenoy, “Loi contre réxclusion: loin du compte!”, Lutte Ouvrière, 06/03/1998, p. 7.
107 Ver Pierre Agudo, “La fracture sociale”, L’Humanité, 18/05/1992, p. 7.
108 Lembremos que um corpus é considerado “saturado” quando seu enriquecimento por novos
enunciados não traz mais dados novos do ponto de vista da problemática adotada, pelo menos
não mais dados novos suscetíveis de modificar os resultados de maneira substancial. Para con­
siderações metodológicas em matéria de análise de discurso, pode-se examinar Krieg, 2000b.
informações novas bastante consistentes109. A lexicometria, pois é dela
que de fato se trata, pode, ao contrário, mostrar-se muito útil na coleta
de candidatos a fórmulas, quando o analista não é contemporâneo do
período estudado: ela pode ser um meio, estabelecendo frequências e
evidenciando os “segmentos repetidos”110, tal como os estudados na
perspectiva do ex-laboratório de Lexicométrie et textes politiques de
Saint-Cloud111, para selecionar sequências cuja utilização recorrente,
num dado momento, as torna suscetíveis — mas apenas suscetíveis —
de serem fórmulas.
O caráter discursivo da fórmula é o que resulta, na sequência, de
uma certa utilização, seja ela concomitante ou posterior ao aparecimento
dessa sequência na língua. Essa utilização varia de uma fórmula a outra.
Ela deve, no entanto, reunir duas propriedades constitutivas da fórmula:
seu caráter de referente social e seu caráter polêmico, duas propriedades
que apreendemos como interdependentes.

C, 0 caráter de référent® social da fórmula


A fórmula se constitui como um referente social. Essa noção, que
emprestamos do trabalho de Pierre Fiala e Marianne Ebel, foi positiva­
mente acolhida112. Ela se mostra pertinente por menos que nos lembre­
mos113 de que ela não implica que a significação de que a fórmula se
investe seja homogênea: ao contrário, suas significações são múltiplas,
às vezes contraditórias.
O caráter de referente social da fórmula traduz seu aspecto domi­
nante, num dado momento e num dado espaço sociopolítico. Fiala e Ebel
(1983a: 174) designavam a expressão “programme commun” [programa
comum] como um dos referentes sociais específicos do espaço político
francês dos anos 1973-1981. Quanto às sequências “emprise et surpopu­
lation étrangère” [influência e superpopulação estrangeira] (“Überfrem-
dung”) e “xénophobie” [xenofobia], elas funcionavam como referentes

109 Ver, sobre esse ponto particular, a crítica de Benoît Habert (1985).
110 Ver Lafon et Salem (1983); Salem (1987); Fiala, Habert, Pineira (1987).
111 Sobre esse laboratório, ver introdução desta obra.
112 Notadamente: Courtine (1981); Habert (1984); Maingueneau (1991: 85-87).
113 Ver Krieg, 2000c: 42 e aqui, no capítulo 3.
PROPOSTAS: AS PROPRIED AD ES OA FO R M U LA
sociais na Suíça francesa dos anos 1960-1980. Quando, na França, em
1996, uma antiga estrela do cinema denuncia o drama vivido pelos car­
neiros sacrificados nas cerimônias de Aid el-Kebir e, ao mesmo tempo,
a invasão da França por uma “superpopulação estrangeira”114, estamos
diante de uma comunidade de formas com referentes sociais diversos.
Para delimitar esse referente social, não é preciso recorrer às múltiplas
expressões da “emprise et la surpopulation étrangère” enunciadas na
Suíça, mas às formulações postas no coração do espaço público francês
dos anos 1990. Para citar apenas três dos presidentes da República fran­
cesa (de diferentes filiações políticas), encontramos estas formulações: na
“zona de tolerância”115 que, segundo François Mitterand, caracteriza a
França em matéria de emigração; na “invasão”116 lamentada por Valéry
Giscard d’Estaing num penoso circunlóquio verborrágico e com recurso
ao dicionário; e, enfim, na “overdose”117 de estrangeiros, como disse

14 Brigitte Bardot, “Mon cri de colère”, Le Figaro, 26/04/1996, p. 2. (“Eis que meu pais, a
França, minha pátria, minha terra, é de novo invadida, com a bênção de nossos sucessivos go­
vernos, por uma superpopulação estrangeira, notadamente muçulmana, com a qual nós somos
coniventes! Diante desse transbordamento islâmico, devemos estar prontos para defender com
nossos corpos, na linha de frente, nossas tradições. A cada ano, vemos florescerem mesquitas
por toda a França, enquanto os grandes sinos de nossas igrejas se calam por falta de padres”).
Cinco meses mais tarde, numa revista feminina, Brigitte Bardot diz: “E preciso reconhecer que
há uma invasão muçulmana na França nos últimos anos” (Elle, 23/09/1996, p. 88-95, entrevista
concedida a Fabrice Gaignault e publicada sob o título “Bardot la scandaleuse”.)
:i5 Em 10 de dezembro de 1989, numa entrevista para rádio e tevê difundida ao vivo pela An­
tenne 2 e pela Europe 1, François Mitterand assim responde a uma pergunta sobre imigração
proposta por um dos jornalistas: “Não me peça para dar uma opinião de caráter moral, embora
eu tenha, claro, uma opinião. Mas a zona de tolerância foi atingida desde os anos 1970, e já
havia quase quatro milhões e duzentas mil ‘cartes de séjour’ [permissão oficial de estadia] em
1982. [...] Tanto quanto possível, não devemos ultrapassar essa cifra, mas temos controlado isso
há anos e anos” (citado por Le Monde, 12/12/1989, p. 2-4, “Les déclarations de Mitterand”.)
116 Valéry Giscard d’Estaing, “Immigration ou invasion?”, Le Figaro Magazine, 21/09/1991, p.
48-57: “Ainda que sobre esse tema sensível seja necessário manejar as palavras com precaução,
em razão da carga emocional ou histórica de que elas se revestem, o tipo de problema ao qual
teremos de fazer face está se transferindo da questão da imigração (‘chegada de estrangeiros de­
sejosos de se instalar no país’) para a questão da invasão (‘ação de entrar, de tomar subitamente,
segundo a definição dada pelo Littré’)”. Sobre a expressão “invasão”, como utilizada por Valéry
Giscard d’Estaing, ver as propostas de Catherine Lavergne (1997).
117 Em 19 de junho de 1991, por ocasião de um jantar-debate em Orléans, Jacques Chirac diz:
“Nós não rejeitamos os estrangeiros. Ocorre apenas que hoje em dia há muitos deles. Nosso
problema não são os estrangeiros, mas o fato de haver uma overdose. [...] O trabalhador que
mora na Goutte D’Or, que trabalha com sua mulher para ganhar em torno de 15.000 francos,
vê, de seu conjunto habitacional, uma família amontoada — pai, três ou quatro esposas e umas
I NOÇÃO Dl “ F ÍR M U i ” El ANÁLISE DO DISCURSO

Jacques Chirac, que atrapalham o “trabalhador francês” por causa “do


barulho e do cheiro” que atravessam o andar do conjunto habitacional
— todos conteúdos e expressões desenvolvidos antes e paralelamente
pela extrema-direita na França.
Como referente social, a fórmula é um signo que evoca alguma
coisa para todos num dado momento. Consideremos o óbvio: para que
esse signo evoque alguma coisa para todos, é necessário que ele seja
conhecido por todos. A “notoriedade” do signo, para falar como os
profissionais de marketing, é, assim, uma condição necessária para a
existência “formulaica” desse signo (ou “palavra”, ou “sequência”). Os
critérios que permitem dizer que um signo é notório são numerosos, e
nenhum deles sozinho dá uma resposta definitiva. Para alguns, esses
critérios se assemelham aos que os lexicógrafos dos discursos especiali­
zados usam para determinar a “recorrência” de uma unidade lexical no
vocabulário científico e técnico, caracterizada pela frequência, o consenso
e a reformulação118. O único instrumento de medida que poderiamos
desconsiderar de início para avaliar o caráter de referente social de um
signo seria a pesquisa por amostragem, em que o analista do discurso,
transformado em entrevistador, perguntaria a pessoas comuns: “Você
conhece a palavra ‘mondialisation’ [mundialização/globalização]?” (ou
“fracture sociale” [fratura social] ou “commerce équitable” [comércio
justo/solidário]...). Na análise das fórmulas, como noutras, não podemos
deduzir grande coisa de respostas a uma pergunta que os pesquisados
talvez não tenham nunca se posto, sendo então as respostas sempre
suscetíveis de ser um “simples efeito de imposição de problemática”, con­
forme escreveu Pierre Bourdieu ([1973] 1984: 226) em um célebre artigo.
Um índice do caráter notório do signo pode ser encontrado no
aumento da frequência desse signo, observado ao longo do tempo num
corpus estável. O aumento da frequência da palavra “intégration” [inte­
gração] apontado por Simone Bonnafous no jornal Le Monde na época

vinte crianças — que tem 50.000 francos de ajuda social, naturalmente sem trabalhar. Se você
somar a isso o barulho e o cheiro, o trabalhador francês fica louco. Dizer isso não é ser racista.
[...] O primeiro racismo não acontece entre os franceses de origem e os imigrantes, mas entre os
árabes e os negros” (citado por Régis Guyotat, “Le maire de Paris: 11 y a overdose’”, Le Monde,
21/06/1991, p. 40.)
92 118 Ver as explicações de Danielle Candel (1995: 163-164).
w

PROPOSTAS: AS PRO PRIED AD ES DA FO R M U LA


do “affaire du foulard” [o caso dos lenços, conforme nota explicativa no
capítulo 1] testemunha o fato de que a palavra ganha notoriedade119. A
observação diacrônica das frequências de palavras como “mondialisation”
ou “exclusion” num corpus estável (por exemplo, utilizando as bases de
dados anuais do próprio Le Monde) testemunharia o fortalecimento da
presença dessas palavras no universo discursivo. Os instrumentos de
base da “demografia discursiva”, como Courtine (1981: 81) chamava
ironicamente a lexicografia, são aqui de uma utilidade evidente: eles
medem acuradamente a aceleração do ritmo com que um signo é
martelado. O índice de frequência é, contudo, um entre outros, pois
podemos considerar seriamente que o aumento da frequência de certas
palavras em certos momentos não atesta de nenhum modo a presença
de fórmulas. É o caso, a título de exemplo, do aumento da frequência
da palavra “avalanche” nas semanas que se seguiram a 23 de janeiro
de 1998, depois de uma estrondosa avalanche que deixou onze mortos,
dos quais nove estudantes, numa estação de esqui nos Alpes. Aqui, o
aumento da frequência resulta de um acontecimento mundano120 e não
é o sintoma de um acontecimento discursivo e nocional.
A produtividade lexicológica, na qual podemos incluir as descris-
talizações e as palavras-valise, é um índice crível do caráter notório do
signo. Produzir derivados e compostos, descristalizar expressões ou,
ainda, “valisar” palavras consiste, de fato, para o locutor, em fazer uma
aposta no reconhecimento de sua criação lexical e, por isso, em fazer
a hipótese de que o “signo de base” é suficientemente conhecido para
ser reconhecido pelo leitor-interlocutor, mesmo quando esse signo de
base aparece maquiado ou mascarado. Pudemos ver o funcionamento

119 Ver capítulo 1.


120 É claro que empregamos aqui o adjetivo “mondain” [mundano] conforme seu uso na semio-
logia. O dicionário Le Nouveau Petit Robert (1993), por exemplo, assim define uma das acepções
de “mondain”: “Semiologia. Que pertence ao mundo (em oposição à linguagem)”. O adjetivo
“mondain” qualifica, se é que podemos dizer isso, as coisas do mundo, abstração feita da língua
que as nomeia e dos discursos que as comentam. A distinção entre “mundano” e “linguageiro”
é, então, propriamente semiótica, uma vez que a linguagem, acima de tudo, faz parte do mun­
do e seu emprego chega até a construir esse mundo e mesmo transformá-lo. Falaremos, então,
de “acontecimento mundano” para fazer uma diferença entre esse tipo de acontecimento e o
“acontecimento discursivo”, o “acontecimento de discurso”, o “acontecimento da enunciação”
ou o “acontecimento linguístico”. Ver também nossas notas em Krieg-Planque, 2009.
i NOÇÃO i i “ FÓ R M U LA” E l ANÁLISE W DISCURSO

dessa produtividade lexicológica que atesta a notoriedade de um signo


no caso das palavras “xénophobe”121 e “perestroïka”122. Nós vimos seu
funcionamento na Alemanha nazista, através da série de compostos
gerada a partir do sintagma “totale Staat”123. Nós a vimos também
funcionando na França dos anos 1789-1795, com a palavra “révolution”
estudada por Hans-Jürgen Lüsebrink e Rolf Reichardt124, posteriormente
Alain Rey125, e da qual resultam derivações e composições que testemu­
nham claramente sua “dinâmica social” (Lüsebrink e Reichardt, 1988:
38). Na França, os anos 1914-1918 viram florescer derivados da palavra
“boche”126, uma palavra atestada desde 1886, mas que parece chegar a
seu apogeu durante a guerra: a Primeira Guerra Mundial dá lugar ao
nascimento de palavras como “bochesse”, “bochimanes”, “bochimania-
ques”, “bochisant”, “bochisme”, “bochiand”, “philoboche”, “philobochie”
“proboches” e “bamboches” (palavra-valise formada de “bambin” [me­
nino, moleque] e “boche”)127.
Os nomes próprios não estão imunes a esse tipo de notoriedade
que, apoderando-se da própria forma dos nomes, deforma-os. É o caso
do nome de Jules Ferry, que está na origem de uma bela série deri-
vacional entre 1883 e 1885 (as leis chamadas “Jules Ferry” datam de
1881 e 1882), na qual vemos aparecerem os neologismos “ferrychon”,
“ferrychonesque”, “ferryque” e “ferryste”128. No ano de 1898, no início
do qual Émile Zola assina em L’A urore seu artigo de defesa do capitão
Dreyfus, vemos aparecerem as palavras “zoliste”, “zolatique” e “izolâtre”,
palavra-valise formada por “Zola” e “idolatre” [idólatra]129. No ano de
1997, desenvolve-se um debate sobre uma suposta “lepénisation des es-

121 Ver Krieg, 2000c: 41 e aqui, no capítulo 3.


122 Ver Krieg, 2000c: 50 e aqui, no início deste mesmo capítulo.
123 Ver Krieg, 2000c: 31 e aqui, no capítulo 2.
124 Hans-Jürgen Lüsebrink e Rolf Reichardt (1988: 38).
125 Ver Krieg, 2000c: 19 e aqui, no capítulo 1.
126 N.T. Trata-se de termo usado pelos opositores da Alemanha nas duas Guerras Mundiais. É
formado, inicialmente, por al, de allemand (alemão), e boche, de caboche (cabeça, cachola). Logo
passa a boche, sempre com caráter pejorativo.
127 Conforme atestam Arnold, Dougnac e Tournier (1995: 210).
prits” [“lepenização” dos espíritos]130. O projeto de lei sobre a imigração

i'SCVKîKS; ■"'S "W M W W 3 PA V K ’M


apresentado por Jean-Louis Debré e a vitória da candidata do Front
National, Catherine Mégret, nas eleições municipais de Vitrolles seriam
os sintomas mais visíveis disso. 1997 é também o ano em que (re?)apare-
cem neologismos forjados com base no nome “Le Pen”: os substantivos
“lepénisation”, “lepénite”, “lepénisme” e “antilepénisme”, os adjetivos
“postlepéniste” e “lepénique”, o verbo “lepéniser” e ainda o sintagma
nominal “homo lepenus”13'1 são índices contundentes do caráter notório
do patronímico do presidente do Front National durante esse período.
Dizer que a fórmula é um signo conhecido de todos implica também
que esse signo seja atestado em tipos variados de discurso, tanto orais
quanto escritos, especializados e leigos. Certas palavras e expressões dos
vocabulários especializados, mesmo partilhando algumas características
da fórmula (caráter polêmico e função de referente comum, mas só no
seio de uma comunidade de práticas de saber), só são fórmulas se saem
de seu domínio para invadir o corpo social. Pensemos, por exemplo,
no sintagma “économie informelle” [economia informal] que, para os
economistas dos anos 1980-1990, funciona como expressão imperativa
(“o uso da noção é uma obrigação para os que querem encontrar fi­
nanciamento para suas pesquisas”132, escreve um economista) e como
expressão a debater, definir, reivindicar, contestar, substituir, reforçar
ou suprimir... mas que não ultrapassa o discurso econômico e não faz
parte, pelo menos não atualmente, do vocabulário cotidiano. Para que
possamos dizer que a fórmula é um signo conhecido de todos, é preciso

130 Em 4 de fevereiro de 1997, no Senado, Robert Badinter denuncia o projeto de Jean-Louis


Debré, ministro do Interior, nestes termos: “O texto abre um muro de proteção para as vitórias
eleitorais do Front National [...] e os progressos incessantes de sua ideologia xenofóbica, a isso eu
chamo de lepenização dos espíritos” (citado por Béatrice Bantman e David Dufresne, “Le Sénat
se charge d’adoucir le projet de loi Debré sur l’immigration”, Libération, 05/02/1997, p. 2). Antes
de Robert Badinter, em 30 de janeiro, o socialista Guy Allouche tinha declarado que o Partido
Socialista pretendia travar um combate contra a “lepenização de uma parcela da maioria” (citado
por Jean-Baptiste de Montvalon, “Le Sénat veut modérer le projet Debré sur l’immigration”, Le
Monde, 31/01/1997, p. 6).
131 Para não sobrecarregar a leitura, não reproduziremos os enunciados em que essas expressões
ocorrem. Trata-se de enunciados recortados na imprensa, produzidos por jornalistas, políticos,
militantes políticos ou especialistas, entre fevereiro e dezembro de 1997.
132 Bruno Lautier, “Économie informelle: solution ou problème?”, Sciences humanines (Auxerre),
n. 50, maio de 1995, p. 26-29.
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA” E l ANÁLISE DO DISCURSO

que a encontremos nos mais variados tipos de discurso. É preciso que


os lugares de emergência da formula se diversifiquem. Se a formula é
originária de uma formação discursiva, deve sair dela. Ela é posta no
cadinho comum do universo discursivo para entrar em conflito com o
sentido que ela tem alhures ou com outros termos.
Dominique Maingueneau escreve, em seu comentário à noção de
referente social de Ebel e Fiala: “Num dado momento, todo mundo é
obrigado a se situar em relação a essas fórmulas, fazê-las circular de uma
maneira ou de outra, lutando para impor sua própria interpretação” (1991:
85). O fato de a fórmula ser um denominador comum dos discursos,
de ela ser uma passagem obrigatória, é constitutivo da fórmula como
referente social. Essa obrigação de tomar posição pode ser observada
em diferentes manifestações discursivas, que expomos a seguir.
O questionamento sobre a fórmula (tal como o observamos, por
exemplo, no caso da expressão “extrême droite” em junho e julho de
1996), por meio do qual um locutor demanda explicitamente que seu
interlocutor tome posição sobre ela, é uma dessas manifestações. Esse
tipo de questionamento sobre a fórmula é precisamente uma “imposição
de problemática”133 no sentido que Bourdieu dá a essa expressão no
texto já citado (mas ela é um fato produzido por atores ou comentado­
res, não pelo analista), na qual a pergunta diz tanto quanto a resposta,
como ocorre no sistema hospitalar analisado por Garfinkel134, em que
os prontuários clínicos revelam tanto sobre a organização do hospital
quanto sobre o estado do doente135.
Outra manifestação discursiva que testemunha o fato de que se é
obrigado a assumir uma posição diante de uma fórmula parece ser a
refutação, tal como é analisada por Courtine:

A descrição do funcionamento da refutação na reformulação no in­


terior da formação discursiva comunista faz aparecer, sobretudo,
que não temos, a partir de uma posição dominada por uma con­
tradição desigual, como escolher as armas, ou, mais exatamente,

133
Bourdieu ([1973] 1984: 226).
•134
Harold Garfinkel ([1967] 1984: 186-207), “Good organizational reasons for bad clinic records”).
135
Ver também Krieg-Planque, 2008.
PROPOSTAS: AS PRO PR IED AD ES DA FÓ R M U LA
como escolher as palavras: tanto faz que se trate de refutação por
denegação ou por reversão, os elementos a refutar se impõem à refu­
tação, dadas as posições ideológicas hegemônicas a partir das quais
eles são produzidos136.

Outras manifestações discursivas indicam ainda que, num dado


momento, a fórmula se tornou um ponto de passagem obrigatório, ela
se impôs com uma função de enquadramento do debate. Por exemplo,
quando dois enunciados de conteúdo semelhante são produzidos por um
mesmo locutor e no primeiro ele utiliza a fórmula (o enunciado passa por
ela), mas no segundo ele não a utiliza (simplesmente não a menciona),
estamos diante de um forte índice do caráter obrigatório da utilização
da fórmula no momento em que o primeiro enunciado foi produzido.
Vejamos um caso exemplar. Em agosto de 1993, em sua turnê pelos
Estados Unidos, o papa João Paulo II constata que “a cultura da morte
ameaça nosso século como nunca antes”. Em seguida, ele adverte a hu­
manidade sobre “as formas sociais, legais e institucionais que justificam
hoje os crimes mais terríveis: o genocídio, as operações de purificação
étnica e, o pior, o fato de tirar a vida de seres humanos antes mesmo de
seu nascimento ou antes de sua morte natural”137. No dia 26 de março
de 1995, o mesmo João Paulo II produz um enunciado de conteúdo
quase idêntico, mas no qual a fórmula “purificação étnica” não consta.
O papa, em seu discurso, convida a humanidade a ter cuidado “com
uma preocupante cultura de morte”, cujos testemunhos, segundo ele, são

não só as guerras fratricidas que ensanguentam muitas regiões do


mundo, as violências sobre os mais fracos, mas, sobretudo, os aten­
tados contra a vida nascente, contra a vida das pessoas idosas e a dos
doentes em fase terminal138.

136 Jean-Jacques Courtine (1981: 107, sublinhado por Courtine). A refutação por denegação se
exprime na estrutura “não é Y que P (e/ mas é X que P)”, e a refutação por reversão se exprime
na estrutura “é X que P (e/ mas não é Y que P)”.
137 Marie-Claude Decamps, reportagem em Denver, Colorado, “La fin de la visite du pape —
Jean-Paul II et ‘la bataille de la vie’”, Le Monde, 17/08/1993, p. 4. Para o enunciado de João Paulo
II em inglês, ver The New York Times, 16/08/1993, p. A12 ou The Washington Post, 16/08/1993.
138 Joseph Vandrisse, correspondente no Vaticano, “L’encyclique ‘Evangelium vitae’ sera publiée
jeudi — Jean-Paul II contre la ‘culture de la mort’”, Le Figaro, 27/03/1995, p. 10.
A NOÇÃO i l ssF Ó i l ü i r EM ANALISE DO DISCURSO

A expressão “purificação étnica” desapareceu. Entre agosto de 1993


e março de 1995, seu valor de referente social foi amenizado.
A fórmula, enquanto referente social, é um signo que evoca al­
guma coisa para todos em um dado momento. Ela é conhecida na
medida em que designa alguma coisa. A fórmula refere: ela remete
ao mundo. E seu valor de re. Os índices que permitem dizer que se
supõe que a fórmula refere a algo são muitos. Estão notadamente nas
diversas formas do pressuposto, por exemplo no artigo definido que
inscreve o sintagma no já sabido e já conhecido: “la mondialisation”,
“les sans-papiers”, “/'exclusion”. Nos enunciados da imprensa, encontra­
mos uma marca particular de remissão ao mundo: estamos pensando
nas manchetes de estrutura X dois pontos Y (“X: Y ”). Essa estrutura,
estudada por Maurice M ouillaud139, e também por Bernard Bosredon e
Irène Tamba (1992), com as mesmas conclusões, é reveladora do que o
jornal dá a 1er como existente, presumidamente conhecido. A parte da
esquerda (“X”) desse tipo de manchete, conforme escreve Mouillaud,
é um “enunciado referencial”: ela é seu pressuposto, remete a um
mundo supostamente conhecido pelo leitor. Esse mundo pode ser tanto
geográfico (“Irlanda do Norte: morticínio e represálias”140; “Argélia:
carnificina no ‘Triângulo da morte’”141) quanto nocional (“Imigração:
a aposta de Jospin”142; “Insegurança: Chevènement conseguirá?”143).
A parte da direita (“Y ”) constitui o “enunciado informacional” da
manchete: ela é o posto do enunciado, o novo, o presumidamente
desconhecido. E ela que, de certo ponto de vista, justifica a publicação
do artigo: o enunciado informacional “pertence ao mesmo gênero que
o artigo do qual ele representa um modelo reduzido”144. O enunciado
referencial “X” “mobiliza um suposto saber do leitor”145. Seu “estatuto

139 Ver em particular Mouillaud (1982). Esse artigo segue explicitamente a trilha do trabalho de
Jean-Pierre Sueur (1968). Ver também Mouillaud (1979: 220-228, “Titres à référence”); Mouillaud
e Têtu (1989: 115-128, “Le titre et les titres”); Mouillaud (1990).
140 Le Figaro, 29/12/1997, p. 3.
141 France-Soir, 24/09/1997, p. 9.
142 L’Express, 25/0919/97, p. 82.
143 Le Nouvel Observateur, 04/12/1997, p. 10.
144 Mouillaud (1982: 84).
145 Mouillaud (1990: 149).
PROPOSTAS: I l PROPRIED AD ES iâ FO R M U LA
é o das pressuposições”146, em que “o que é pressuposto é a presença
de certa ‘unidade cultural’ no entorno do jornal”147. As manchetes de
jornal em “X: Y ” são, assim, como um bloco de recibo, no qual se
escreve o que há de novo, a cada dia, na parte destacável, que retoma
de certo modo a parte fixa, supostamente conhecida pelo leitor. Nas
manchetes com estrutura “X: Y ”, o enunciado referencial “‘designa’
— e não ‘significa’”148: ele designa os acontecimentos, os objetos ou
processos exteriores ao jornal, que estão no mundo, e no mundo tal
como o leitor supostamente o representa. As reiterações de uma mesma
sequência na parte fixa da manchete contribuem para estabelecer uma
ordem do dia nos temas da vida pública. Manchetes como “Periferia:
a febre do sábado à tarde”149; “Periferia: a prevenção pelo esporte”150,
“Periferia: a política do talão de cheque”151; “Periferia: amanhã uma
Los Angeles?”152 e “Periferia: a constatação do fracasso”153 são, assim,
o índice de que “periferia” funciona como referente social num dado
momento no espaço público francês.

D, 0 caráter polêmsec ûz t f e d s :
A fórmula se assenta numa materialidade linguística relativamente
estável, ela tem um caráter discursivo e constitui um referente social.
Ela também é polêmica: eis a quarta de suas propriedades constitutivas,
da qual trataremos agora.
Fiala e Ebel escrevem, a respeito da expressão “Überfremdung”: “Ao
designá-la como fórmula, sublinhamos que ela é, antes de mais nada, um
objeto polêmico” (1983a: 35). Seguimos esses autores mais uma vez. Já
afirmamos e ressaltamos, concordando com eles, que o caráter polêmico

146 Idem.
147 Idem.
148 Mouillaud (1982: 82).
149 Título de um artigo de Sylvie Cottrant e Brigitte Vital-Durand no Libération, 27/05/1991, p. 28.
150 Título de um artigo de Marc Ambroise-Rendu em Le Monde, 01/08/1991, p. 1 e 8.
151 Título de um artigo de Juliette Nouel em Science & Vie Économie, n. 85, julho-agosto de 1992,
p. 40-43.
152 Título de um artigo de Gérard Petitjean em Le Nouvel Observateur, 10/09/1992, p. 86.
153 Título de um artigo de Emmanuel Schwartzenberg em Le Figaro, 17/09/1992, p. 30.
A NOÇÃO DE “ FO R M U LA” EM ANÁLISE DO DISCURSO

da formula é indissociável do fato de que ela constitui um referente


social: é porque há um denominador comum, um território partilhado,
que há polêmica. É porque existe uma mesma “arena”154, segundo uma
metáfora bakhtiniana já muito repisada, mas ainda muito adequada, que
o enfrentamento se torna possível. A fórmula é portadora de questões
sociopolíticas. Entendemos com isso que ela põe em jogo algo de grave.
“Grave” não necessariamente num sentido dramático, mas no sentido
de que ela põe em jogo a existência das pessoas: a fórmula põe em
jogo os modos de vida, os recursos materiais, a natureza e as decisões
do regime político do qual os indivíduos dependem, seus direitos, seus
deveres, as relações de igualdade ou de desigualdade entre cidadãos, a
solidariedade entre humanos, a ideia que as pessoas fazem da nação de
que se sentem membros. Às vezes, a fórmula põe em jogo sua própria
vida. É o caso, por exemplo, da fórmula “purification ethnique” no
contexto das guerras iugoslavas dos anos 1990 (Krieg-Planque, 2003).
As fórmulas participam do peso da história, esse peso que lastreia os
destinos individuais. E porque constitui um problema, porque põe em
jogo a existência das pessoas, porque é portadora de um valor de des­
crição dos fatos políticos e sociais, que a fórmula é objeto de polêmicas.
Polemizando em torno dela, os atores-locutores não polemizam “por
nada”: eles polemizam por uma descrição do real. Nisso, a fórmula se
distingue de outro tipo de enunciados, que Bonnafous propunha chamar
de “tics discursifs” [tiques discursivos]155 e que são os slogans publici­
tários, os títulos de filmes e de livros ou trechos célebres de obras de
ficção, que, por mais cristalizados e circulantes que sejam, não são na
sua maior parte portadores de problemas sociopolíticos e são objeto de
usos não conflituosos, frequentemente prazerosos. Antes de dizer que
o que diferencia esses tiques discursivos das fórmulas são “os ‘efeitos’
do discurso sobre as consciências e as crenças”156 — efeitos difíceis de
medir, diga-se de passagem — , é preciso sublinhar que as fórmulas, con-

154 Mikhail Bakhtin ([1929, sob o nome de Voloshinov] 1977: 67).


155 Intervenção de Simone Bonnafous na mesa-redonda “Les mots porteurs de valeur sociales,
d’imaginaires, d’idéologies”, retomado em MScope (1994: 86). Ver também os estereótipos verbais
característicos do discurso midiático tal como descritos por Michel-Antoine Burnier e Patrick
Rambaud (1997).
156 Intervenção de Simone Bonnafous, op. cit.
as p r o p r i e d a d e s d a formula
trariamente aos tiques discursivos em tela, estão investidas de questões
sociopolíticas, questões que têm como consequência usos polêmicos e
conflituosos da sequência. Os tiques discursivos passam; na melhor das
hipóteses, testemunham. As fórmulas ficam, e atuam sempre. As fórmulas
constituem um referente social em um espaço público dado e são objeto
de debates porque estão carregadas de questões: nesse sentido, elas têm
um caráter histórico. Elas fazem parte da história. Assim, podemos dizer
que uma história das relações sociais na França na última década do

m m m im i
século XX não teria como omitir a fórmula “exclusion”, ao mesmo tempo
como uma evidência da época e como um objeto questionado. Assim
também uma história do conflito iugoslavo não poderia desconsiderar
a fórmula “purification ethnique”, ao mesmo tempo como um referente
social e como objeto polêmico, conforme expusemos em nosso trabalho
“Purification ethnique”. Une form ule et son histoire (Krieg-Planque, 2003).
As questões que as formulas carregam são de natureza extrema­
mente variada, assim como são variadas as maneiras de os locutores
responderem a essas questões, de tomarem parte no debate. A questão
pode provir do fato de que a fórmula é monopolizada por uma formação
discursiva adversária (pode tratar-se, então, de se apropriar da fórmula,
eventualmente atribuindo a ela um sentido diferente, e de neutralizá-la,
fazendo uso do procedimento de retorção157); do fato de que a paternidade
de uma fórmula que gostaríamos de reclamar como nossa é reivindicada
pelo adversário (trata-se, nesse caso, de dizer que somos nós os seus
autores); do fato de que nos é atribuída pelo adversário — com ou sem
razão — a paternidade de uma fórmula que rejeitamos (trata-se, então,
de exprimir repúdio)... Todos os procedimentos discursivos e metadis-
cursivos são capazes de contribuir para que a fórmula sirva ao desígnio
político que cada qual se atribui: neologismo de sentido, neologismo de
forma, reivindicação, repúdio, retorção, reformulação...
A polêmica pode se efetuar ao modo da injunção de proferimento
e ao da recusa de enunciar. É esse, de acordo com o que pudemos
observar, o destino sofrido pela palavra “négociation” no outono de

157 Sobre o procedimento de retorção, ver particularmente Angenot (1982) e Taguieff (1987: 17).
Ver também uma ilustração do procedimento em Brauns (1990).
ÍSiH3S!fl Oi ISSlf!¥ 11 «W llltip» l i if Í M ¥

1995, quando os sindicatos instavam o governo a assumir esse termo,


e os representantes governamentais se recusavam a fazê-lo, até ela ser
pronunciada num enunciado que os sindicatos e alguns comentaristas
festejaram como uma vitória. A polêmica pode recair sobre a questão
da (in)adequação da fórmula à coisa que ela designa, como pudemos
notar a propósito do debate dos anos 1760-1770 sobre a expressão “classe
stérile” analisada por Marie-France Piguet. A polêmica pode se dar ao
modo da predicação e da rejeição da predicação, como Fiala e Ebel
observam a propósito da palavra “xénophobe”. A polêmica pode recair
sobre a realidade ou, ao contrário, sobre a inconsistência do referente
que a fórmula supostamente designa. Fiala e Ebel observaram esse tipo
de debate acontecendo na Suíça francesa dos anos 1960-1980, no qual
os locutores se opunham para decidir se a “superpopulação estrangeira”
existia ou não158. Esse tipo de debate, que incide sobre o caráter real ou
fantasmático do referente designado pela fórmula, passa frequentemente
por operações de definição, muitas vezes acrobáticas, como é o caso das
definições propostas por Valéry Giscard d’Estaing para os termos “im­
migration” e “invasion”. A polêmica pode recair sobre o reconhecimento
social da fórmula. A questão consiste, então, em impor ao conjunto do
espaço público o uso de uma palavra, geralmente em detrimento de uma
palavra concorrente. Foi o que tentaram fazer, no verão de 1996 — e
com sucesso — os militantes em favor de uma regularização dos estran­
geiros em situação irregular, impondo o uso da palavra “sans-papiers”
em detrimento do termo “clandestins”.
Como a fórmula frequentemente concentra uma pluralidade de
questões e também há diversas maneiras de tomar parte no debate, uma
fórmula raramente participa de um único processo discursivo e, então,
quase sempre entra em polêmicas variadas. É assim que a polêmica sobre
as palavras “libre(s)” [livre(s)] e “liberté(s)” [liberdade(s)], na época do
debate sobre a escola privada, em 1984, analisado por Geneviève Petiot159,
assentava-se duplamente numa reivindicação (nós somos a escola livre)
e sobre o sentido a ser atribuído às palavras do paradigma (liberdade é

158 Ver Fiala e Ebel (1983a: 82-85, 90).


159 Krieg, 2000c: 22 e aqui, no capítulo 1.
AS PROPRIEDADES M FÓRMULA
autorizar a existência de uma diversidade de estabelecimentos/ liberdade
é a laicidade assegurada pela escola pública). Cada uma procurava mo­
nopolizar a palavra como sendo a sua, imprimindo-lhe uma significação
específica. Esse tipo de polêmica testemunha a existência daquela “po-
lissemia social” de que fala Josiane Boutet (1986)160 em seu comentário
aos escritos de Bakhtin sobre a pluriacentuação do signo linguístico,
polissemia social de que se investe o vocabulário sociopolítico e, “por

PROPOSTAS:
meio da qual, a palavra é sede de uma pluralidade de ‘índices de valor’,
de uma pluralidade de ‘acentos contraditórios”161, conservando, graças
à permanência do significante, “uma estabilidade que pode, sozinha,
garantir o prosseguimento e o sucesso da comunicação”162. Esse tipo
de polêmica testemunha também o “caráter ‘regional’” das formações
ideológicas, segundo a formulação de Courtine, caráter regional “que
explica o fato de podermos, a partir de formações ideológicas antagônicas,
falar dos mesmos ‘objetos’ (a democracia, a liberdade, o pluralismo...) e
falar deles ‘diferentemente”’ (1981: 34-35).
Observando as manifestações discursivas dos diferentes tipos de
questões que as fórmulas carregam, poderiamos recorrer à metáfora do
combate que Courtine utiliza — embora ele a tenha recusado depois
(1981: 23-24) — , e dizer que o uso das fórmulas assume conjuntamente
a forma da guerra de posição e a da guerra de movimento. O discurso
político é, então, visto

como guerra ideológica de posição, em que a refutação se faz “pela


denegação” (demarcando suas palavras em relação às palavras dos
outros, opondo suas palavras às do outro, lutando palavra a palavra,
como se avança, passo a passo, numa guerra de trincheiras...), ou
como uma guerra ideológica de movimento, na qual os efeitos de po­
lêmica se produzem “pela reversão” (apoderando-se das palavras do
adversário, fazendo-as suas, voltando-as contra ele, lutar pegando o
outro pela palavra...) (Courtine, 1981: 107).

16° y er também Boutet (1982).


161 Boutet (1986: 48).
162 Ibid.: 49.
i NOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” I I ANÁLISE DO DISCURSO

Mas podemos, também, ver menos metaforicamente o discurso


sociopolítico como um discurso que elabora dicionários, nos quais as
fórmulas são construídas como novas entradas ou como novos sentidos.
Bernard Gardin, a propósito de uma análise dos discursos produzidos
nos anos 1970 no debate sobre o “programa comum” da esquerda, pro­
punha considerar um debate desse tipo como “o estabelecimento de um
dicionário”. De fato, diz Gardin, trata-se, nesse debate,

para cada grupo (1) de impor seus próprios significados aos signifi-
cantes que fazem parte do vocabulário político comum: liberdade,
igualdade, democracia, justiça... (esses termos que fazem crer que to­
dos os grupos dizem a mesma coisa) e de combater a mesma tentati­
va por parte do adversário: recusar a ele o emprego dessas unidades;
(2) de dar a verdadeira significação dos termos típicos do adversário,
denunciando seus significados ocultos: de impedir, portanto, que
esses signos do adversário se instalem na língua; (3) de impor seus
próprios signos linguísticos: significante e significado: participação,
programa comum... [...] Cada grupo político constrói, então, dois
dicionários: o seu, que ele quer ver transformado em dicionário da
língua, e o do adversário, que ele condena ao desaparecimento.

A metáfora subsiste na escrita de Bonnafous e Tournier (1995: 68)


quando eles afirmam que “o homem no poder brinca permanentemente
de dicionário”. Esse “jogo” não é, de fato, um jogo. E raramente é um
jogo de soma nula. Um homem no poder, ao falar, carrega consigo outros
homens para o real mundano, para as consequências de seus erros ou de
suas clarividências, de suas mentiras ou de suas verdades. A metáfora
do dicionário implica a vantagem de sublinhar que a polêmica de que a
fórmula é objeto se opera, em larga medida, num nível metadiscursivo,
nível ao qual daremos atenção particular.
O caráter polêmico da fórmula não é algo abstrato. Também não
é, tal como o consideramos, algo vago, isto é, algo que seria mais
ou menos associável a uma “tonalidade” geral do discurso ou a um
modo de enunciação globalmente rotulado de “polêmico”. Trata-se
exatamente do caráter polêmico da própria fórmula. Esse caráter po­
lêmico é, parcialmente, determinado, orientado pela morfossintaxe e
PROPOSTOS: AS PROPRIEDADES DA FO RM U LA
pelos componentes lexicais da sequência (não argumentamos e contra-
argumentamos do mesmo modo a respeito de um adjetivo ou de uma
nominalização de ação etc., porque essas diferentes categorias não se
deixam apreender da mesma maneira). Mas ele é, também e sobretudo,
determinado pelos usos que são feitos dessa sequência: não é porque ela
é um adjetivo ou uma nominalização de ação etc., que ela é polêmica,
mas porque ela é tomada nas práticas linguageiras.
O caráter polêmico da fórmula se manifesta particularmente nos
tropeços dos enunciadores durante a própria sequência, tropeços que são
reveladores de algumas das questões que a fórmula oculta. Pensemos,
por exemplo, na palavra “exclusion” e nas variantes morfossintáticas que
podemos, sem grande risco de engano, qualificar de fórmula no espaço
sociopolítico francês dos anos 1990. A palavra “exclusion” nomeia mal,
se acreditamos em diferentes locutores que a qualificam, ora de termo
vago, ora de eufemismo163 e que identificam regularmente nela uma
inadequação em relação ao real. “Exclusion” participa de um primei­
ro tipo de polêmica, que incide sobre a questão da (in)adequação da
palavra à coisa que ela designa. Marie-Noëlle Lienemann, ex-ministra
socialista do Logement164, qualifica a palavra “exclusion” como uma
“palavra tornada asséptica para esconder a miséria e a pobreza”165. O
sociólogo Robert Castel escreve que “‘exclusion’ é uma palavra-valise que
recobre realidades completamente díspares”166, enquanto um jornalista
do La Croix evoca a diversidade “dos fenômenos agrupados, na França,
sob o termo global da ‘exclusion’”167. Um jornalista do Monde descreve
o caráter proteiforme do significado vinculado ao termo “exclusion” e
explica que “os franceses põem nesse termo tanto a impossibilidade de
encontrar um emprego ou de retomar uma atividade profissional, quanto

163 Sobre o julgamento de eufemização, ver Krieg-Planque, 2004.


164 N.T: O Ministère du logement se encarrega, fundamentalmente, da problemática urbana
relativa a albergamento e moradia.
165 Artigo de Marie-Noëlle Lienemann, “Exlusion: en finir avec l’hypocrisie”, Libération,
01/11/1994, p. 15.
166 Entrevista de Robert Castel dada a François Ewald, “L’avènement d’un individualisme né­
gatif”, Magazine littérire, n. 334, julho-agosto de 1995, p. 18-22.
167 Robert Migliorini, “L’angoisse grandissante de la fracture sociale”, La Croix, 28/03/1995, p. 2. 105
a pobreza sem esperança e a ausência de formação”168. Um jornalista do
DE “FÓRMILft” IM ANÁLISE i O DISCURSO

France-Soir põe o termo “exclusion” na lista das palavras que, segundo


ele, não produzem nenhum esclarecimento no debate social:

As palavras podem muito bem mudar, fale-se de pobreza ou de nova


pobreza, de miséria ou de exclusão, a constatação se impõe a cada
ano com mais severidade. A precariedade das condições de vida que
afeta um número crescente de pessoas parece ter se tornado uma
constante incontornável da sociedade169.
A NOÇÃO

Para além da simples denúncia de “exclusion” como um termo


impróprio, alguns locutores tentam decifrar os motivos pelos quais “ex­
clusion” é uma palavra que nomeia mal. E o caso de Laurent Fabius,
que toma a seguinte posição:

O corte “exclus/inclus” [excluídos/incluídos] não dá conta do con­


junto da vida social. Tal simplificação revela um interesse... como di­
zer? ideológico. Se há, de um lado, os “exclus” e de outro os “inclus”,
estes últimos que se cuidem. Estamos esquecendo aí os verdadeiros
privilégios! A sociedade é bem mais complexa170.

Mas ainda que o termo pareça nomear mal e não convenha a


ninguém, “exclusion” é, de fato, objeto de um uso intenso no conjunto
do espaço público e funciona como um referente social. Alguns locuto­
res voltam-se, então, para um segundo tipo de polêmica, denunciando
os responsáveis ou os cúmplices por esse processo de nomeação falha.
Para o jornal de extrema-direita Présent, a responsabilidade pelo termo
é da esquerda: “Le Monde encontrou o verdadeiro representante dos mi­
seráveis. É o que a fraseologia da esquerda chama de os ‘excluídos’”171.
Para a representante da Luta Operária, Arlette Laguiller, é o discurso
do “on” [“se” impessoal], o discurso corrente e ambiente que se põe

168 Guy Herzlich, “Flexibilité et coût du travail sont au coeur des travaux, à Lille, du G7 sur
remploi”, Le Monde, 02/04/1996, p. 3.
169 Arnaud Levy, “La misère au pilori”, France-Soir; 17/10/1995, p. 6.
170 Entrevista concedida por Laurent Fabius a Sylvie Pierre-Brossolette e Jean-Pierre Séréni,
“Fabius: ‘Si ce n’est pas l’euro ce sera le dollar’”, L’Express, 01/02/1994.
171 Yves Daoudal, “Tapie chez lui ao Monde”, Présent, 22/12/1994, p. 3.
como transmissor de uma nomeação imprópria: “A sociedade capitalis­

fó r m u la
ta [...] produz a exclusão, como se diz hoje”172. Para Le Figaro, enfim,
“exclusion” é uma palavra de “todos os outros”, uma palavra da classe

m
política em seu conjunto:

p r o p r ie d a d e s
Uma parte da França está afundando, vítima do que os senhores Chi­
rac, Giscard d’Estaing, Barre, Hue e outros chamam de exclusão173.

■ m m m wã: i s
Paralelamente a essa designação do responsável, diante de uma
palavra que nomeia mal, alguns locutores tentam reencarnar uma pa­
lavra que lhes parece desencarnada. E o que faz o editorialista de La
Croix quando escreve:

A exclusão não é um conceito psicossocial. Não é uma categoria ad­


ministrativa. A exclusão é um desregramento da mecânica social, e
os excluídos são pessoas: homens, mulheres e crianças174.

Diante da palavra “exclusion” que nomeia mal e que é “uma palavra


dos outros”, outros locutores ainda propõem uma palavra que nomeie
bem. E o que faz a Fondation de France, segundo a qual existe uma
boa palavra que merecería ser posta contra as más:

exc lu sã o e fra tu ra s o c ia l tornaram-se as expressões mais usadas


por jornalistas e políticos. Mas o que significam exatamente? Por
trás desse vocabulário existe uma realidade: a p o b r e z a 175.

Abre-se aqui uma terceira polêmica, que toma forma de um en­


cerramento da primeira: substituir um processo de nomeação falho por
um processo de nomeação válido.
Logo vemos como as questões que incluem fórmulas afloram na
superfície dos enunciados — ou, antes, como os problemas são revelados
por esses enunciados — , por menos que nos disponhamos a coletá-los
e observá-los. Parece, então, que um dos meios privilegiados de estudar

172 Ariette Laguiller, encontro da Luta Operária em Argenteuil, Val-d’Oise, 4 de março de 1995,
173 Editorial de Fraz-Olivier Giesbert, “La stratégie du va-tout”, Le Figaro, 28/11/1995.
174 Editorial de Bruno Frappai, “Le grand dessein”, La Croix, 28/03/1995, p. 1.
175 Carta divulgada ao mailing da Fondation de France, janeiro 1996. As maiúsculas são originais.
A NOÇÃO DE “ FÓ RM U LA” 1 1 ANÁLISE DO DISCURSO
uma formula consiste em analisar os diversos tropeços dos locutores no
decorrer das sequências ou, dito de outro modo, consiste em analisar
as diferentes operações metadiscursivas opacificantes176 que incidem
sobre a fórmula. A título de exemplificação de uma análise de corpus
como essa, o leitor poderá reportar-se ao capítulo VI de nossa tese
(“Construire et déconstruire la formule: emplois et problématisation de
la formule ‘purification ethnique” (1980-1994)”, Krieg (2000c: 494-650),
ou à segunda parte de nosso livro sobre a formula “purificação étnica”
(“Utiliser et commenter la formule ‘purification ethnique’”, Krieg-Planque
2003: 255-450).

176 Ver Jacqueline Authier-Revuz, 1995.


C A P Í T U L O 5

Sobre a noção de fó rm u la :
síntese, deslocamentos, questões

A . Sobre a escolha do termo “fórmula”


omo explicamos antes, empregamos o termo e a noção de “fórmula”
C tendo como referência Marianne Ebel e Pierre Fiala, que, por sua
vez, emprestam-na explicitamente de Jean-Pierre Faye. Lembremo-nos
também de que a utilização dessa noção — dessa noção assim nomeada
— por Ebel e Fiala (e depois por mim, e por todos os que se vinculam a
Faye nessa questão) pressupõe o descolamento referencial já mencionado
(ver capítulo 2), descolamento referencial que trai fundamentalmente o
projeto de supernarrativa pretendida inicialmente por Faye: ele havia
escolhido o termo “fórmula” porque este termo não pertencia a uma
metalinguagem científica; ao contrário, era uma palavra da própria
linguagem-objeto. A fórmula ganhou esse nome porque Carl Schmitt
falara em “fórmula” e porque Ernest Forsthoff dissera: “O Estado total
é uma fórmula”.
Nossa justificativa para a escolha do termo “fórmula” exige tam­
bém um desvio por fora do vocabulário científico: não é conectando
o termo “fórmula” a trabalhos científicos que podemos nos desfazer
das diferentes acepções dessa palavra. Contrariamente a “desoxirri-
bose” e a “polipeptídico” ou, num domínio mais próximo do nosso,
a “epanalepse” e “fricativa”, o termo “fórmula” chega ao discurso
científico inevitavelmente com as significações que assume alhures, em
outros contextos. O termo “fórmula” traz as acepções que ele tem no
domínio da religião e do sagrado: a “fórmula” (mágica, sacramental,
encantatória, cabalística...) é um enunciado cristalizado (a ser recitado
na ordem exata) e eficaz (enquanto performativa, ela age). O termo
“fórmula” chega com sua acepção jurídica: a “fórmula” é um modelo
â NOÇÃO il “ FÓ RM U LA” El ANÁLISE i i OISCURSO de enunciado cuja validade só pode ser garantida pelo respeito formal
(a repetição textual das sequências). O termo “fórmula” também chega
com uma acepção matemática: a “fórmula” é uma expressão concisa e
simbólica (portanto, a ser decodificada) de regras a seguir para atingir
uma verdade matemática. O termo “fórmula” tem também uma acep­
ção jornalística, algo pejorativa: um enunciado conciso, supostamente
gerador de efeitos, frequentemente pronunciado com fins provocativos
ou polêmicos, talvez demagógicos, e fácil de ser memorizado, portanto
reproduzido, citado. O termo “fórmula” traz, enfim, uma multiplicidade
de acepções circunscritas: a “fórmula” é um enunciado bem talhado e
apto a chamar a atenção1; ela pode ser um adágio, um provérbio, um
ditado, uma sentença2; ela pode ser uma possibilidade, o elemento de
uma alternativa (a fórmula federalista, a fórmula centralizadora); a “fór­
mula” pode ser ainda uma forma, uma apresentação, talvez um modo
de enunciação (a nova fórmula de uma revista)...
E justamente porque a palavra “fórmula” é tocada, atingida por esse
feixe de acepções diversas, externas ao discurso científico das ciências da
linguagem, que alguns autores podem se permitir utilizá-la sem defini-
la. E o que faz Andréas Freund (1991: 104) quando fala da “fórmula”
“interesses vitais” utilizada pelos Estados Unidos para justificar suas
intervenções militares no exterior, ou Simone Bonnafous (1998), quando
fala da “fórmula” “campo de concentração”3 (também chamada pela au­
tora de “denominação”, “expressão”, “sintagma” ou “fórmula altamente
simbólica”). Assim como esses autores, utilizamos as múltiplas acepções
da palavra “fórmula” (aliás, diga-se, como não poderiamos fazer outra
coisa, é melhor, então, dizê-lo explicitamente). Mas, aproveitando essas
acepções, quisemos, neste livro, definir as propriedades da noção de
fórmula tal como a empregamos.

1 Por exemplo: “Você dá o tom da nossa revista e garante que os prazos sejam cumpridos,
desde a encomenda dos artigos até a diagramação do boneco. Além disso, assume uma função
de releitura, com seu senso de escrita e de fórmula, que lhe permite fisgar o interesse do leitor”
[(anúncio de oferta de emprego da revista Art & Décoration para um(a) secretário(a) de redação
(publicado em Libération, 05/07/1996, p. 24].
2 Por exemplo: “Parece que é mesmo panela velha que faz comida boa. Essa fórmula está
valendo para a organização da garden-party [de Jacques Chirac no Élysée, em 14 de julho de
1996]”. Artigo assinado N. G., “Comme Mitterand”, Libération, 13/14/07/1996, p. 8.
3 Sobre essa formulação, ver também Krieg, 2000a.
SOBRE A NOÇÃO DE FÓ R M U LA : S ÍNTES E, DES LO CAM ENTO S , QUESTÕES
B. A formula: uma categoria graduai
A noção de formula não é uma noção aproximativa: as propriedades
que a caracterizam, expostas neste volume, são precisas. Entretanto,
uma fórmula é em si um objeto que se situa num continuum: uma se­
quência é mais ou menos fórmula conforme preencha mais ou menos
cada uma das quatro propriedades que a caracterizam. A categoria
“fórmula” é, desse ponto de vista, uma “categoria fluida”, ou seja,
gradual, de tipo weberiano, e não uma “categoria de limites defini­
dos e nítidos”, de tipo aristotélico, para retomar os termos de Alban
Bouvier (1996: 203). Digamos o óbvio: para que uma sequência possa
ser caracterizada como fórmula, é preciso que ela atenda às quatro
propriedades da fórmula. Mas, de um lado, essas quatro propriedades
podem estar presentes de modo desigual (por exemplo, “cristalização”
forte, mas “caráter polêmico” fraco); e, de outro lado, cada propriedade
é mais ou menos bem preenchida. As propriedades de que falamos só
são de fato verificáveis em continua, e não mensuráveis em termos de
presença ou ausência.
A cristalização, como pudemos sublinhar seguindo diferentes
autores, é uma propriedade relativa: uma sequência é mais ou menos
cristalizada segundo ela preencha mais ou menos bem um certo número
de critérios e segundo seja percebida mais ou menos claramente como
formando um bloco, a partir de uma posição interpretativa razoável4.
O caráter discursivo da fórmula é mais ou menos forte na medi­
da em que os usos determinam mais ou menos o destino formulaico
da sequência. Por exemplo, foram sobretudo os usos que fizeram da
expressão “extrema-direita” uma fórmula no verão de 1996, usos em
que o partido Front National recusava esse qualificativo, alimentando,
assim, uma polêmica pública sobre a justeza ou a inadequação desse
rótulo. Outras sequências partem, por assim dizer, “armadas” de suas
características semânticas e morfossintáticas próprias para tornarem-se
fórmulas: o uso, ainda que determinante, é apenas o desencadeador do

4 Sobre a noção de “interprétante razoável”, ver Krieg-Planque, 2006a: 37-40. [Ver também
entrevista de Krieg-Planque “Fórmulas e lugares discursivos: propostas para a análise do discurso
político”, em Linguasagem, edição n. 6, UFSCar, mar. 2009, disponível em http://www.letras.
ufscar.br/linguasagem,]
acesso da sequência à condição de formula. É o caso, certamente, da
A N Q Ç iO i l “ FÓ RM U LA” I l ANÁLISE 00 ilS C ü iS D formula “purificação étnica”.
O caráter de referente social da formula também é relativo: a sequên­
cia se impõe, mais ou menos, como passagem obrigatória dos discursos
produzidos no espaço público. Algumas áreas locais do espaço público
e algumas categorias isoladas de locutores podem se manter refratárias
ao uso da fórmula, conseguindo contorná-la. A complementaridade dos
diferentes critérios que permitem dizer que uma fórmula funciona como
um referente social se mostra, então, particularmente importante.
Por fim, a fórmula é mais ou menos polêmica. O leque é farto:
de sequências pouco questionadas (como “a crise” ou “a retomada”),
a sequências altamente problemáticas (como “purificação étnica” ou
como “extrema-direita”, num momento bem circunscrito do debate),
passando por sequências medianamente polêmicas (como “exclusão” ou
“sem-documentos”) — até onde pudemos julgá-las.
O fato de a fórmula ser um objeto inscrito em um continuum não
faz dela, de modo algum, um objeto totalmente acientífico que resiste a
uma análise fundamentada. Ao contrário, o caráter contínuo do objeto
— e, consequentemente, a grande diversidade de silhuetas e figuras sob
as quais será possível encontrá-lo — faz da noção de fórmula uma noção
heurística, suscetível de ser sempre recolocada, revisitada, redefinida.

C. Do referente social ao espaço público


Pelo fato de os dois promotores da noção de “fórmula”, Fiala e
Ebel, terem mostrado sua utilidade, até aqui nós enfatizamos a noção
de “referente social”. Parece necessário, porém, articular essa noção a
uma outra, vinda de um horizonte teórico bem distinto. Trata-se da
noção de “espaço público” e daquilo que é seu princípio constitutivo: o
princípio de “publicidade” (ou de “publicização”, conforme a tradução
assumida principalmente por Louis Quéré (1992) de “Õffentlichkeit”,
elaborada por Kant e retomada por Habermas). Se dizer que a fórmula
é um referente social é dizer que ela é um signo que evoca alguma coisa
para todos num momento dado, então a fórmula é um signo que, por
processos de publicidade, entrou no espaço público.
SOBRE A NOÇÃO DE FÓ R M U LA : S ÍNTESE, DESLO CAM ENTO S, QUESTÕES
Não é o caso, aqui, de expor a noção de espaço público tal como
posta em foco por Jürgen Habermas em seu livro publicado na Alemanha
em 1962 e traduzido para o francês dezesseis anos mais tarde5. Também
não é o caso de debater as críticas de que o trabalho de Habermas foi
objeto. São conhecidas as críticas que acompanham de maneira este­
reotipada qualquer menção, ou quase toda, que se faz ao trabalho de
Habermas (mas, como escreveu Erik Neveu [1995: 43], doravante elas
“dão corpo a sua obra na forma de um ‘bom uso’ incorporado”)6. Em
1990, por ocasião de uma reedição de seu livro na Alemanha, Haber­
mas respondeu a algumas das críticas e ele mesmo reviu sua definição
de “espaço público”7. Tirando proveito das ressalvas que tinham sido
feitas a seu trabalho e apoiando-se em sua própria reflexão sobre o agir
comunicacional (Habermas [1981] 1987), o filósofo doravante passa a
ver o espaço público como plural e fragmentado: em vez de um espaço
público, existe uma rede de espaços públicos múltiplos e parcialmente
autônomos. Além disso, estimando ter avaliado “de modo pessimista a
capacidade de resistência, e sobretudo o potencial crítico de um públi­
co de massa pluralista e fartamente diferenciado”8, Habermas reavalia
radicalmente o caráter estritamente consensual do espaço público.
Em um “movimento de pluralização do conceito de espaço públi­
co”, segundo a formulação de Philippe Chanial (1992: 69), trabalhos
recentes seguem Habermas na trilha dessa redefinição. Observando a
evolução do espaço público desde o Iluminismo, Bernard Miège (1995:

5 Jürgen Habermas (Ia edição [1962] 1978) (2a edição [1990] 1993).
6 Lembremo-nos de que as críticas são principalmente as seguintes: Habermas idealiza uma idade
de ouro do espaço público no século XVIII. Ele caricatura demasiadamente o espaço público do
século XX, como refeudalizado e em plena deliquescência, onde o reino da crítica é substituído
pelo reino da opinião, e onde o espaço público emancipador do Iluminismo se transforma em
um espaço público aliénante das democracias ocidentais pós-industriais. As lacunas das pesquisas
históricas de Habermas levam-no a desconhecer o papel das classes populares, por um lado, e
o das mulheres, por outro, na formação do espaço público. Sua concepção de espaço público
é demasiado homogênea, unitária, consensual, não conflituosa: em sua obra, como em Rawls
([1941] 1987), a comunicação tem como horizonte muito mais o acordo do que o conflito, e os
sujeitos estão mais para sujeitos livres num espaço de liberdade do que para sujeitos constrangidos
num espaço de dominação.
7 A primeira tradução desse prefácio foi publicada em Quaderni (Habermas, [1990] 1992).
8 Habermas ([1990] 1992: 174). 113
©
m 50) considera que ele se perpetua até hoje, “alargando suas bases de
intervenção e se fragmentando”. Neveu convida a “pensar a existência
m de espaços públicos parciais e plurais”9 ou “mosaicos”10, e a levar em
conta “uma pluralidade de espaços em que se toma a palavra que vem
alimentar o espaço público central”11, enquanto Jean-François Tétu
(1995) sublinha a existência de espaços públicos locais, por meio dos
a quais foram estabelecidas instâncias de comunicação e de mediação
s*s específicas. Isabelle Paillart, explorando, por sua vez, as vantagens
da noção de “espaços públicos parciais”, considera que ela “permite
afastar-nos de uma visão ideal e normativa do espaço público. O
deslocamento da análise na direção de outras esferas nos faz lembrar
que o espaço público se constitui de relações de dominação. Estas se
põem, o mais frequentemente, em termos de conflitos entre interesses
políticos e econômicos contraditórios”12. Enfim, Dominique Wolton,
numa perspectiva um pouco diferenciada — otimista, e mesmo idealista,
das relações sociais, se não apaziguadas, pelo menos reconciliáveis — ,
crê observar a existência de um “espaço público ampliado”13 ou de um
“espaço público fracionado”14 que, aliás, entende como uma ameaça de
atomização social, diante da qual ele vê o apoio às mídias generalistas
como uma das soluções.
Definido como mais ou menos fragmentado e como mais ou
menos conflituoso, o espaço público não existe independentemente do
princípio de publicidade, por meio do qual os atores compartilham seus
pontos de vista, expõem suas opiniões em praça pública, tornando-as,
desse modo, visíveis a quaisquer outras pessoas, alimentando, assim, a
possibilidade de um debate público e contraditório de suas opiniões: “O
‘espaço público’, num sentido amplo, é o quadro ‘midiático’ graças ao
qual o dispositivo institucional e tecnológico próprio às sociedades pós-
industriais é capaz de apresentar a um público os múltiplos aspectos da

9 Neveu (1995: 52).


10 Bastien e Neveu (dir.) (1999).
11 Neveu (1995: 53).
12 Isabelle Paillart (1995: 200).
13 Wolton (1990: 313).
14 Wolton (1990: 112).
SUSSE I NOÇÃO SI FÓ R M U LA : SÍNTESE, DESLO CAM ENTO S, UUESTÔIS
vida social”15. O espaço público é configurado pelos procedimentos de
publicização que tornam possível o estado político, jurídico, sociológico
e técnico de determinada sociedade.
Desde os anos 1950-1960, nas sociedades democráticas europeias, o
princípio de publicização por muito tempo foi garantido principalmente
por meio das grandes mídias — imprensa, rádio e televisão: estes são os
principais meios pelos quais os atores acedem ao espaço público. Com
isso não queremos dizer que essas grandes mídias são todo o espaço
público. Principalmente, está claro que não são o lugar do discurso
de deliberação (que se dá preferencialmente em assembléias restritas,
em reuniões improvisadas, em conversações telefônicas, em lugares
privados reservados às redes de sociabilidade, nos corredores...). Além
disso, é incontestável que o desenvolvimento dos canais eletrônicos de
comunicação conduz essas grandes mídias a uma marginalização lenta,
mas inegável. Nós queremos simplesmente dizer que essas mídias foram
e serão ainda, por algum tempo, o lugar central do compartilhamento
das opiniões e das decisões: elas são o lugar ao qual se deve chegar,
de uma maneira ou de outra, para dar a maior publicização possível a
uma fala ou a um conteúdo de fala.
No entanto, os atores não chegam ao espaço público de modo direto
e transparente, nem mesmo quando seu poder político ou econômico
poderia fazer crer que sua força é grande o suficiente para coagir os
que dispõem dos meios de lhes dar a palavra: os políticos ou as direções
de grandes empresas e das administrações falam impulsionados pelos
consultores de marketing político e de comunicação, que os proveem de
conselhos e de receitas sobre os conteúdos, os momentos e as modalida­
des de tomada da palavra. Publicitários, comunicadores e “escritores”16
participam do quadro de produção de um discurso, que resulta de uma
prática ao mesmo tempo coletiva e profissional. Além do mais, de modo
geral, são os atores que sustentam um ponto de vista dominante, e que
confiam na dominação duradoura desse ponto de vista, que dispõem do

15 Jean-Marc Ferry (1991: 20). Registremos, em todo caso, que as aspas nos termos “espaço
público”, “midiático” e “público” não são sintoma de um emprego frouxo desses três termos,
posto que Jean-Marc Ferry, logo a seguir, dedica linhas e linhas a defini-los.
16 Sobre estes, ver Caroline Olivier-Yaniv, 2003. 115
A NOÇÃO DE “FÓRMULA” E l ANALISE DÛ DISCURSO

espaço máximo de expressão, não em virtude de uma censura praticada


nas redações ou em outros lugares, mas fundamentalmente pelo fato de
haver uma “espiral do silêncio”, apontada por Elisabeth Noëlle-Neumann,
pela qual, “para não se sentir isolado, um indivíduo pode renunciar a seu
próprio julgamento” ([1974] 1991: 181). Aliás, as falas midiatizadas, por
causa dessa própria midiatização, são objeto de uma seleção e de uma
formatação que favorecem certos conteúdos e certos modos de expres­
são, desembocando, em algumas ocasiões, numa “gramática imposta”,
para retomar a expressão de Jean-Marc Ferry, às vezes “extremamente
pobre e estereotipada, francamente refratária à complexidade de um
pensamento vivo e não trivial” (1991: 25).
Mas, mesmo que estejamos precavidos diante de qualquer idealismo
relativo à “tribuna livre” que as mídias ofereceríam, desconfiaremos de
um midiacentrismo que faria das grandes mídias tradicionais e generalistas
os únicos modos de acesso ao espaço público17. Cada um na sua escala e
com suas especificidades, são muitos os atos que constituem os procedi­
mentos de publicização, os meios de chegar ao espaço público, os modos
de dar visibilidade aos problemas públicos ou aos interesses privados:
distribuir folhetos aos participantes de uma passeata para explicar-lhes
as razões da manifestação e fazer crer admissíveis os motivos da ação;
colher assinaturas na rua para uma petição; postar uma mensagem num
fórum de discussão na internet; pendurar uma bandeira na fachada
dos locais ocupados por “sem-teto”, com vistas a apresentar e justificar
sua ação junto aos moradores do bairro; criar um site na internet para
promover um tema de debate ou um ponto de vista; infiltrar-se em um
blog, de modo a valorizar um produto ou serviço; participar de alguma
rede social via internet; disponibilizar um documento numa plataforma
de compartilhamento de vídeo...
Sendo assim, para constituir-se como referente social, a fórmula
precisa ser posta em circulação no espaço público por meio de uma
publicização que é assegurada, em boa medida, pela imprensa, pelo
rádio e pela televisão generalistas. O estudo dos discursos produzidos
e reproduzidos por essas mídias é, então, uma passagem obrigatória

MED 17 Ver, sobre isso, a advertência de Bernard Delforce e Jacques Noyer (1999: 35).
SOBRE A N0ÇÃ0 i l FÓ R M U LA : S ÍN TES E, O iS LO Û A M EN TÛ S , QUESTÕES
em uma análise que visa precisamente atestar a existência da fórmula
como referente social.

D, Do papel das mídias na criação e na circulação das fórmulas


Neste volume, não nos derivemos muito nas mídias. No entanto, uma
questão se põe. Uma questão que frequentemente é posta por pesquisa­
dores ou, ainda mais, por comentadores, atores sociopolíticos, cidadãos.
E a questão relativa à responsabilidade das mídias na construção das
fórmulas. A propósito do que chama de “palavras-armadilha”, Andréas
Freund escreve que elas são “o produto da colaboração ativa entre todos
os seus usuários” (1991: 151). E, logo a seguir, acrescenta que as mídias
podem, às vezes, ser as criadoras desse tipo de palavra: “Vinda de outras
fontes ou inventada pela imprensa, a palavra-armadilha será retomada
pelo público, adotada por ele, e finalmente incorporada na linguagem
corrente” (idem). As mídias, então, poderíam ser inventoras de fórmulas.
Não são poucas as vozes que consideram as mídias como respon­
sáveis pela promoção, amplificação, circulação — leia-se criação — de
palavras do vocabulário dominante, expressões de sucesso, pequenas
frases e fórmulas que tomam as pessoas (isto é, que as fazem deba­
ter e falar). Essas vozes em geral se elevam para sublinhar, como fez
Bonnafous (1998: 45) por exemplo, a responsabilidade das mídias pela
circulação, no espaço público, de palavras e fórmulas cujos efeitos são
altamente simbólicos. Muito frequentemente, essas vozes se apoiam na
suposição de um “aumento do poderio do poder midiático”18, como
sublinha Gérard Leblanc por exemplo, e se aventuram a proclamar o
advento de uma “midiocracia”, por meio da qual os poderes “não estão
mais onde a lei e o tempo os instalaram”19, ou seja, nas assembléias, nos
governos e nos tribunais, mas em novas mãos: nas mãos das mídias.
Paul Siblot observou em sua pesquisa a “proliferação de empregos”20
da palavra “alienação” no decurso dos anos 1960-1970, proliferação que

18 Leblanc (1995: 65). Ver também pontos de vista similares em Pierre Bourdieu (1994); Patrick
Champagne (1995); Serge Halimi (1997).
19 François-Henri Virieu (1990: 10).
20 Siblot (1987: 84). Sobre “aliénation”, ver também Françoise Gardes-Madray e Paul Siblot
(1989). 117
ele considera como “um perfeito exemplo dessas devastadoras inflações
â MOÇÃO DE “ FÓ R M U LA” El ANÁLISE DO DISCURSO

terminológicas”21 por que passam as fórmulas. Siblot atribuía às mídias


o papel de serem o fator central da inflação do “praxema” em questão:

As práticas linguageiras atestam continuamente a fortuna repenti­


na e muitas vezes efêmera de palavras de emprego raro ou até então
circunscrito. Primeiro aparecem de maneira hesitante e sub-reptí­
cia, depois se acomodam e, então, exibem-se com ostentação em
algum tipo de discurso, para tornarem-se, afinal, uma espécie de
referência obrigatória. Vê-se, a seguir, expandirem seus domínios,
invadirem o discurso cotidiano, no qual, vítimas de seu próprio su­
cesso, erodidas por um uso intenso e desenfreado, acabam por se
banalizar e desaparecer de novo. As mídias são hoje, pela amplitude
e celeridade que imprimem a tais fenômenos, um campo de obser­
vação privilegiado (ibid.: 83).

De fato, há fundamento objetivo em considerar as mídias como


agentes de circulação das fórmulas. Para nós, essa ideia é mesmo de­
finidora da fórmula, uma vez que as mídias estão entre os principais
atores aptos a garantir a difusão da sequência em vastas áreas do espaço
público. Em compensação, pensamos que seria um erro superestimar a
importância das mídias nos processos de construção das fórmulas em
seu conjunto. A observação indica que as mídias raramente são criadoras
de fórmulas. Dito de outro modo, se as mídias constituem plataformas
de lançamento privilegiadas das fórmulas, não são elas necessariamente
que as lançam. De fato, raramente são. A noção de interdependência,
fundamental para a compreensão dos fatos sociais, mostra aqui toda a
sua pertinência.
Observando com precisão o modo como as fórmulas chegam às
mídias, constata-se que chegam frequentemente pela periferia e impul­
sionadas por atores que não são os jornalistas. De fato, o trabalho de
criação neológica, e também o trabalho de ontologização e o de referen-
ciação, que são necessários para dar consistência a toda fórmula, não
pertencem aos jornalistas propriamente: políticos e outros atores sociais

118 21 Siblot (1987: 84).


também se dedicam a isso. Tal como o exemplo que mostramos em
detalhe, as primeiras ocorrências de “purificação étnica” (ou “limpeza
étnica” ou “depuração étnica”) na imprensa escrita francesa não foram
feitas especificamente por detentores de um registro de jornalista, são
também de responsabilidade dos políticos, pesquisadores, intelectuais, de
ü
gente das letras...22 Com apoio em nossas próprias observações, podemos il
evocar, aqui, o percurso seguido pela palavra “autogestão”: essa palavra,
como a descreve Geneviève Petiot (1993), é lançada pelas organizações
políticas e sindicais em 1968, antes de ser retomada e difundida pela
imprensa. Sempre corroborando as mesmas conclusões, podemos dar
m
ainda outro exemplo: o da fórmula “direito de ingerência”.
Essa expressão, tudo indica, surge pela primeira vez em língua fran­
cesa por ocasião de um colóquio que aconteceu em Paris, em janeiro de
198723. No quadro de uma pesquisa anterior, havíamos destacado todas
ii
as ocorrências de “direito de ingerência”, de “dever de ingerência” e de m
formulações concorrentes no Le Nouvel Observateur, de janeiro de 1987 a
junho de 1994. Ora, parece que a primeiríssima ocorrência de “direito
de ingerência” nesse semanário dá-se numa coluna assinada por Rony
Brauman, então presidente dos Médicos Sem Fronteiras, no dia 28 de
outubro de 198824: a primeira ocorrência aparece, assim, pelas mãos de
uma pessoa que não é jornalista e num gênero de artigo — reservado a
articulistas — destinado a pôr em público as palavras de atores externos
à profissão jornalística. O segundo aparecimento de “direito de ingerên­
cia” na mesma publicação generalista se dá bem mais tarde, em 11 de
abril de 1991, pela pena do editorialista Jean Daniel, que a apresenta
explicitamente como uma criação lexical do colóquio de janeiro de 198725.
No mesmo dia, “direito de ingerência” aparece numa coluna assinada

22 Ver Krieg-Planque, 2008.


23 Ver Krieg, 2000c: 51 e aqui, no capítulo 4.
24 Artigo de Rony Brauman, “Sauvons les Dinkas!”, Le Nouvel Observateur, 28/10/1988, p. 49.
25 Editorial de Jean Daniel, “La faute”, Le Nouvel Observateur, 11/04/1991, p. 45-55. (“No decurso
de um colóquio internacional organizado em dezembro [sic; AKP] de 1987 na Sorbonne, com
participação de François Mitterand e Jacques Chirac, muitos juristas e médicos chegaram à con­
clusão de que não houve assistência da Cruz Vermelha, de 1942 a 1945, às vítimas do nazismo.
Um professor de direito, M. Mario Bettati, preconizava, então, o uso de um novo conceito: o
de ‘direito de ingerência’”).
â NOÇÃO DE “ FÓ RM U LA” E l i ANÁLISE DO DISCURSO pelo jurista Mario Bettati, publicada em L’E xpress26. Nas semanas que se
seguem, a frequência da sequência aumenta bruscamente, impulsionada
por discursos institucionais que, devido ao massacre dos curdos iraquia­
nos, utilizam — ou contornam — a fórmula: em 2 de abril de 1991, em
nome do dever de ingerência humanitária, a França tinha convocado o
Conselho de Segurança da ONU a propósito dos curdos iraquianos. Três
dias mais tarde, o Conselho de Segurança adota a resolução 688, na qual
ele “insiste para que o Iraque permita acesso imediato das organizações
humanitárias internacionais a todos os que precisam de assistência em
todas as partes do Iraque, e que ponha à disposição todos os meios ne­
cessários à ação dessas organizações”27. Não se fala formalmente de um
“direito de ingerência” nesse texto. Mitterand tenta explicar essa situação
ao Conselho de Ministros: “O direito de ingerência não é tão simples
assim. 140 países vão se opor a isso, pois eles abrigam diversas etnias.
Mas é preciso seguir adiante”28. Os promotores do direito de ingerência
ficam furiosos. Quando um jornalista lhe pergunta se “há, agora, um
direito de ingerência humanitária”, Brauman responde: “Eu não sei do
que estamos falando. Não há nada disso na Resolução 688 da ONU,
que, ao contrário, trata reiteradamente da ‘ameaça contra a paz e a se­
gurança’, e que permanece totalmente ligada ao princípio da soberania
dos Estados”29. A fórmula entra no debate público, e uma breve obser­
vação de diferentes jornais publicados em abril e maio de 1991 mostra
que seu uso já não é mais monopólio de locutores institucionais. Vemos
claramente, observando as primeiras aparições das sequências “direito
de ingerência” e “dever de ingerência”, que são especialistas (juristas,
neste caso), representantes de organizações humanitárias e políticos, e
não jornalistas, que são os criadores da fórmula e os responsáveis por
seu lançamento no espaço público.
As mídias têm, na fabricação das fórmulas, o papel de publicização,
mas aparecem mais frequentemente como operadoras da circulação do

26 Mario Bettati, “Le droit nouveau”, L’Express, 11/04/1991, p. 11.


27 Nações Unidas. Conselho de Segurança, resolução 688, 05/04/1991, § 3.
28 François Mitterand, Conselho de Ministros, 10/04/1991. Citado por Le Nouvel Observateur,
18/04/1991, p. 92, “Mitterand et Fingérence”.
M ! 29 Entrevista de Rony Brauman concedida a François Schlosser, sob o título “Ce sera le scandale
SOBRE â NOÇÃO Di FO R M U LA : SÍNTESE, DESLO CAM ENTO S, QUESTÕES
que como criadoras ou iniciadoras. O desenvolvimento contemporâneo
de diferentes dispositivos e formatos de comunicação eletrônica que
favorecem a desconcentração da iniciativa e a intervenção dispersa dos
usuários (em listas de divulgação, e-groups, redes sociais, plataformas
de partilha de vídeo, blogs, fóruns, sites participativos, instrumentos de
consulta e de deliberação midiatizados, abaixo-assinados on line..) leva
a relativizar mais ainda a contribuição das grandes mídias de massa
para a produção e a circulação das fórmulas. As práticas amadoras e
leigas de comunicação, assim organizadas, aqui também só levam a
minimizar a importância dos jornalistas e das mídias, no que se refere
aos fenômenos formulaicos que estruturam e animam o espaço público.
Enquanto operadores da circulação, as mídias aparecem como
operadores ativos, como “varejistas”30, e não como fabricantes de emba­
lagens. As mídias são ativas em dois sentidos: em parte, no sentido de
que, de forma geral, operam uma seleção e uma filtragem31 (filtragem
que operam sobre um material já bastante filtrado antes); e, em parte,
no sentido de que a circulação a que submetem a fórmula — como diz
Louis Quéré (1982: 121), que recusa um ponto de vista sistêmico e a
ideologia do desempenho que o sustenta — “não pode ser reduzida a
uma tecnologia do empacotamento e da transmissão de mensagens”. Ao
contrário, deve ser vista como uma operação de transformação.
Em 1911, o antidreyfusista32 Arthur Meyer escrevia, a propósito de
Arthur Ranc, um dreyfusista e senador radical: “Era ele quem punha
em circulação, quando não as criava, estas palavras sonoras: ‘justiça’,
‘verdade’, ‘hipocrisia do Estado-maior’, ‘senhores padres’, ‘a verdade está
em marcha’, ‘a facção romana’”33 . Vendo que os atores sociopolíticos,

30 Do nome dado ao número de Langage et Société coordenado por Pierre Fiala (1993): “Les
tailleurs de l’information”.
31 Sobre a teoria do filtro, poderemos ver, numa perspectiva sistemista, as proposições de
Abraham Moles (1971) e as de Michel Mathien (1989), que se inspiram nas teorias do “gate-
keeper” desenvolvidas por David White, Wright Mills e Paul Lazarsfeld, assim como a noção
de “porteiros” importada da psicossociologia de Kurt Lewin. Mas veremos, sobretudo, numa
perspectiva crítica, as proposições de Edward S. Herman e Noam Chomsky (1988, tradução
francesa 2008).
32 N.T.: referência ao caso conhecido como L’affaire Dreyfus (1894-1906).
33 Arthur Meyer, Ce que mes yeux ont vu. Paris: Plon, 1911. Citado por Thomas Ferenczi ([1993]
1996: 195). 121
mais do que os jornalistas, são os iniciadores das fórmulas, e partindo
m
do fato de que as fórmulas são questões, podemos nos perguntar sobre
o caráter necessário das fórmulas no espaço público e para a política.
Existe um “esforço da política para tomar a língua”, escreve Maurice
Tournier (1997: 292), e porque a língua — ainda que seja necessário, aqui,
falar antes em discurso — é um lugar e um meio de poder, e tal esforço
é sem dúvida mais forte quando fornecido pela política do que pelas
mídias propriamente. Alguns atores — Michel Rocard34, por exemplo,
ou ainda Pierre Bourdieu35, de um modo totalmente distinto — veem
com maus olhos a circulação acelerada, e de certo modo não controlada,
de palavras e expressões que, segundo eles, impedem de pensar e empo­
brecem o debate democrático. Com isso, eles reforçam as bases para o
estabelecimento do lugar-comum segundo o qual o discurso político, no
espaço público contemporâneo, sofreria certas formas de “decadência”
ou de “degenerescência”36.
Para além desses pontos de vista, é ainda mais o caráter atuante
dos discursos políticos e da construção de uma narrativa deles que
gostaríamos de sublinhar, para encerrar. É assim que retomamos a tese
exposta na introdução, segundo a qual as fórmulas participam, nas
complexas relações de dominação que os discursos organizam, de um
processo de aceitabilidade.

34 Ver, por exemplo, Michel Rocard, Le coeur à l’ouvrage. Paris: Odile Jacob, 1987, ou ainda as
propostas de Michel Rocard reunidas por Jean-Claude Raspiengeas em Télérama, 15/11/95, p.
14-24 (“Les médias: un pouvoir sans contre-pouvoir”).
35 Ver os protestos expressos por Pierre Bourdieu depois de sua aparição no programa Arrêt sur
images no dia 23 de janeiro de 1996, na emissora France-5 (Pierre Bourdieu, “Analyse d’un passage
à l’antenne”, Le Monde Diplomatique, abril, 1996, p. 25). Ver as respostas de Daniel Schneidermann,
diretor do programa acusado (Daniel Schneidermann, “Response à Pierre Bourdieu”, Le Monde
Diplomatique, maio 1996, p. 21). Ver também a entrevista de Bourdieu feita por Philippe Royer
para La Croix, “Intellectuels et médias, modes d’emploi”, 22/02/1994, p. 10, e ainda Bourdieu,
Sur la télévision, seguido de L’emprise du journalisme. Paris: Liber éditions, 1996 (em particular p.
10-42).
36 Ver análise desse lugar-comum feita por Simone Bonnafous (2003).
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