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Cristina Buarque de Hollanda

A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA NA

DOSSIÊ
PRIMEIRA REPÚBLICA

Cristina Buarque de Hollanda*

APRESENTAÇÃO instáveis negociações entre as oligarquias locais e


os governos estaduais e federal. Embora o federa-
A narrativa usual a respeito da Primeira Re- lismo da Carta de 1891 estivesse perfeitamente afi-
pública brasileira funda-se na idéia de ausência. nado com a demanda e o modo de vida federalistas
Trata-se de um tempo que ocupa o lugar do equívo- da sociedade recém ingressa na República (Souza,
co na memória do país. Não obstante o desacordo 1969), a definição de novos padrões e persona-
sobre os futuros possíveis para a Nação, entre a pri- gens de sustentação política não constituiu tarefa
meira geração de homens públicos da República trivial. À diferença da relativa unidade imperial
havia notável convergência no diagnóstico da cena em torno da figura do Rei, a República trazia as

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política observada: experimentava-se no Brasil a marcas da dispersão política e da desordem soci-
antítese da República; o avesso da ordem anuncia- al. Desta indeterminação original resultou a grave
da pela propaganda republicana. Se a historiografia instabilidade das origens republicanas no país.
abriga raros consensos, a falência deste ensaio da Foi o arranjo institucional de Campos Sales
República – ou a profunda inadequação a seus prin- que instituiu rotina política na República (Lessa,
cípios de fundação – tende a ser um deles. 1999) e retirou-a da órbita da absoluta
Incontáveis episódios de tormento social e imprevisibilidade. Para o político paulista, um
instabilidade política marcaram, de fato, os primei- “parlamento com substância liberal, formado a
ros anos da República. As tensões em torno da partir de escolhas individuais dos cidadãos e seg-
reconfiguração dos poderes implicaram duras e mentado segundo as clássicas divisões político-
partidárias” (p.6) seria incompatível com os pro-
* Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ. Professora do pósitos de consolidação do regime republicano.
Departamento de Ciência Política da UFRJ, colaboradora
do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Os parâmetros formais da Constituição eram, afi-
Universidade Federal Fluminense. nal, incapazes de organizar o cotidiano real da vida
Largo de São Francisco, n. 1. Centro - Rio de Janeiro -
Brasil. cbuarque@iuperj.br pública. A principal motivação política de Cam-

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pos Sales foi, portanto, a de opor um princípio de próprio Poder Legislativo na figura das comissões
vertebração social a este ambiente desordenado. de verificação de poderes do Congresso. Cada plei-
As instituições do liberalismo político constituí- to oferecia ao país um espetáculo de comédia elei-
am, nesta perspectiva, um obstáculo ao andamen- toral, conforme expressão da época. Os mandatos
to desejável da vida pública. de deputados, senadores e governadores de esta-
O modelo de representação política que do eram sabidamente produto de arranjos políti-
estruturou a cena republicana original baseou-se, cos informais.
portanto, num fundamento claramente anti-libe- O sacrifício dos princípios elementares da
ral, avesso ao sistema partidário e aos demais ins- representação liberal era, portanto, o custo da
trumentos da democracia representativa liberal. previsibilidade na política. A condição da relativa
Nesta matriz política, o objeto da representação estabilidade instituída por Campos Sales era a ga-
eram as unidades federativas, e não o indivíduo rantia da fraude nos processos formais de produ-
ou o povo. Segundo Renato Lessa, o sistema de ção da política. A despeito do novo equilíbrio de
Campos Sales teria reeditado a prescrição poderes, a República não provocara, portanto, em
mandeviliana dos vícios privados e virtudes pú- matéria eleitoral, rompimento substantivo com as
blicas para a formulação oligárquica do rotinas do Império. Os rituais da representação
particularismo estadual e da unidade nacional política permaneciam inscritos num universo
(Lessa, 1999, p.6). O ajuste eleitoral baseado nos ficcional fundado no divórcio entre normas e prá-
estados resultaria na constituição de um corpo ticas da política.
nacional único e ordenado. Este seria o caminho É fundamental notar, contudo, que, a des-
da conversão do particular em universal. peito do inequívoco predomínio político do mo-
O protagonismo dos estados não era, con- delo Campos Sales durante a Primeira República,
tudo, auto-suficiente. As oligarquias locais foram a reflexão sobre representação política não se res-
elementos centrais na configuração da simbiose tringiu a seus limites. Liberais, positivistas e rea-
política que perdurou, a despeito de importantes listas representam três importantes matrizes da
contratempos, por toda a Primeira República. A crítica aos caminhos reais da política. A compre-
praxe política inventada por Campos Sales visava ensão sobre o tema da representação na Primeira
contornar a excessiva carga contenciosa dos gover- República não pode passar ao largo de um olhar
nos da primeira década republicana. No seu mo- mais detido sobre essas tradições do pensamento
delo político, o presidente da República concedia político brasileiro. O objetivo deste artigo é justa-
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apoio irrestrito aos estados em troca da garantia, mente o de investigar as reflexões liberal, positivista
por parte dos governadores, de bancadas e realista sobre representação política – caracteri-
legislativas afinadas com suas diretrizes. A ação zadas, a despeito das distâncias importantes entre
política dos presidentes de estado fundava-se, por si, pela recusa do modelo de alternância de pode-
sua vez, num modelo de reciprocidade com as oli- res. Dito de outro modo, trata-se de enxergar o tema
garquias. Os coronéis, importantes operadores da representação política na Primeira República
deste modelo político, zelavam pela fidelidade das pela marca das presenças, e não pela imagem habi-
eleições ao resultado esperado pelos governos es- tual da ausência.
tadual e federal. Em troca disto, faziam-se verda-
deiros soberanos locais.
Esta delicada arquitetura de personagens LIBERAIS, POSITIVISTAS, REALISTAS E A
políticos fundava-se na adulteração de cada uma QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
das etapas do processo de constituição de pode-
res – isto é, alistamento, votação, contagem dos A insatisfação de liberais, positivistas e rea-
votos e verificação final dos diplomas, entregue ao listas com a relação simbiótica e extra-formal entre

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estados e oligarquias, embora devida a motivos Irineu Machado no Senado, esta perspectiva é
diversos, convergia no reconhecimento do povo enunciada de modo claro: “Todos os povos são
como inspiração necessária da representação polí- feitos da mesma massa, é necessário que mãos va-
tica. Seja como operadores e/ ou meros receptores lorosas venham plasmar o organismo de uma Na-
da política, os men in the street, conforme expres- ção, tirando-a dos caos da sua origem.” (Anais
são de Azevedo Amaral, eram descritos como eixo Senado, 1921, p.558) Longe de legar aos homens
fundamental da política. As importantes distânci- desordenados a responsabilidade por sua desor-
as entre os modos de interpretar a realidade social dem, o senador identifica nos usos inoportunos
não tinham nenhuma relação, portanto, com o aceite da política o foco da grave dissipação social.
ou a recusa dos sujeitos ordinários como objeto Diante do déficit educacional do povo, os su-
da ação política, mas com as diferentes concep- jeitos ilustrados pelo privilégio da cultura teriam uma
ções sobre o que fazer de uma realidade social pro- missão social a desempenhar. A falha em atender a
fundamente fragmentada e dispersa. esta designação marcaria a trajetória equívoca de de-
Antes, contudo, de avançar no tratamento putados e senadores apartados do ideal republica-
das diferenças normativas, vale ainda reforçar os no. Nesta perspectiva, os principais operadores do
pontos de afinidade entre as três principais matri- Estado eram tidos como perpetuadores das condi-
zes de reflexão sobre o problema da representação ções de desventura das massas, inaptas a redefinir,
política na Primeira República. Havia um acordo por si sós, os seus caminhos. No mesmo discurso, o
largo em torno da existência de uma política frágil senador contrasta a impotência do povo deseducado
e incipiente como conseqüência necessária da de- com a potência dos homens ilustrados:
ficiência sociológica crônica observada. Nesta pers-
pectiva, o ambiente povoado por átomos O povo brasileiro é um povo que ainda não está
educado, conscientemente de seus deveres, e,
desordenados não era tido como favorável à con- neste caso, àqueles dos mais cultos e felizes a
solidação do interesse público, por definição, in- quem Deus concedeu a fortuna de poder desen-
volver a sua inteligência e a sua cultura, a esses
teiro e indivisível. Os críticos de Campos Sales cabe o sagrado dever de coração de pôr a sua
alma ao serviço dos mais desventurados nesse
não lidavam, portanto, com o problema da repre- profuso amor, neste sentimento de bondade, de
sentação política em abstrato, mas em alusão à re- altruísmo que é uma forma da perfeição huma-
na, do dever patriótico (Anais Senado, 1921,
alidade concreta na qual se inscrevia. Era o tema p.562).
da amorfia popular que moldava, enfim, o olhar
dos políticos para o desafio da representação. Deste diagnóstico das capacidades diferen-

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Além desta importante afinidade no diag- ciadas Irineu Machado deriva grave acusação aos
nóstico da realidade social, a especulação sobre as colegas de legislatura:
causas deste cenário também aproximava os insa-
tisfeitos com a rotina política original da Repúbli- Vós outros não tendes a coragem, vós outros, que
tendes diante de vós a força que a natureza vos
ca. Em linhas gerais, acordava-se que a sociologia deu, multiplicadas pelo vigor da inteligência,
fragmentada tinha origem extrínseca aos indivídu- pela fortuna, pelas aspirações da glória, em vez
de serdes os servidores da Nação, sois os seus
os que padeciam da dispersão. Vítimas de uma traidores, deixando-a mergulhada nessa vida
ordem política profundamente excludente e infecta de humilhações, de servilismo e de sub-
serviência. Não foi essa a promessa exarada no
autárquica, as massas não eram tidas como sujeito tribunal da consciência publica, jurada no altar
de seu próprio infortúnio. Mesmo entre os libe- da religião republicana, que os apóstolos da de-
mocracia fizeram. Não! Não foi essa, eles menti-
rais, que concebem patamares mínimos de ação ram (1921, p.562).
do governo, o rompimento com essa situação in-
desejável não era esperado dos cidadãos comuns, À definição clara de algozes e vítimas do
mas dos homens públicos e do Estado. infortúnio social corresponde igual nitidez a res-
Em fragmento de discurso pronunciado por peito do lugar e do modo de superar o equívoco

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da vida política. Se o povo não estava inteiramen- um valioso experimento de pedagogia política. As
te isento de responsabilidades sobre seu destino, semelhanças entre as matrizes interpretativas des-
sem dúvida ocupava um papel coadjuvante dian- tacadas detém-se, portanto, no plano dos diagnós-
te da potência de metamorfose social identificada ticos e não avançam nas formulações positivas
no Estado. sobre como a sociedade e a política devem ser. As
As distintas reações normativas ao diagnós- normas abrigam as diferenças, embora igualmente
tico de uma massa amorfa e impotente diante das inscritas na suposição comum da política como
causas de seu infortúnio convergem num duplo e lugar de criação.
necessário fundamento político do governo, o de
criação e unidade do povo. Esta inscrição comum
tem importante afinidade com a dotação política Rui Barbosa e Assis Brasil: origens do libera-
do soberano de Hobbes, dotado da faculdade de lismo republicano
invenção do sujeito representado (Jaume, 1986).
Na teoria hobbesiana, os homens padecem dos Legado à história como o principal ícone da
males da desordem quando dispersos numa multi- tradição liberal no Brasil, Rui Barbosa também acu-
dão destituída de forma, que precede o próprio mulou o estigma de um intelectual divorciado da
conceito de povo. Na fábula política daquele au- realidade do país. Em sintonia com a reflexão libe-
tor, o medo da morte violenta só é suprimido quan- ral de gestação estrangeira, Rui Barbosa passaria
do, através do uso da razão, os indivíduos consti- ao largo das idiossincrasias nacionais.
tuem-se num pacto e submetem-se coletivamente Dos discursos pronunciados na Campanha
a um poder de enormes proporções (Hobbes, 1989). Civilista, de 1909, e na campanha pelo governo da
A conversão da dissipação em unidade é o princi- Bahia, de 1919, depreende-se, contudo, uma clara
pal movimento da passagem fundamental do caos preocupação do político com as particularidades
originário à civilização. Há de se notar, contudo, de nossa formação social. À diferença do clássico
nesta formulação hobbesiana, um importante pa- discurso liberal, que define a ação estatal em pata-
radoxo: os homens dispersos que instituem o pac- mares mínimos, Rui Barbosa evoca o Estado e os
to não constituem o objeto da representação na homens públicos como importantes personagens
nova ordem. Estes indivíduos são reinventados da vida política. O despreparo cívico do povo é
pelo soberano e esta é a condição da sua existência tido como resultado da negligência dos governos.
como um coletivo ordenado. A ação representati- Segundo ele,
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va é dotada, portanto, de uma vocação criativa,


voltada sobretudo para a unificação das células Se os nossos homens públicos amassem o seu
contacto, e lhe cultivassem a companhia [refe-
isoladas na idéia comum de povo. A possibilida- rência ao povo], (...) a nossa nacionalidade teria
de da ordem política, preocupação fundamental desenvolvido os costumes do governo represen-
tativo, o povo não se retrairia, como se retrai, ao
de Hobbes, reside, portanto, na supressão das trato dos homens de Estado, e as agitações políti-
cas, tão ordinárias e essenciais nas democracias,
partes e na constituição de um todo indistinto. não dariam ensejo, aqui, aos maus governos e
Longe de confinada à tradição política au- seus sequazes, de as criminarem como obra de
conspiradores, ou manejo de revolucionários (Bar-
toritária, como poderia sugerir a analogia com a bosa, 1967, p.51).
teoria hobbesiana, a suposição de uma natureza
criativa do representante esteve claramente presente A idéia do povo como objeto de uma classe
na teoria política de dois importantes símbolos do política vilanizada perpassa seus discursos de cam-
liberalismo brasileiro na Primeira República: Rui panha na Bahia, nos moldes do fragmento a seguir:
Barbosa e Assis Brasil. Para ambos, as rotinas for-
mais da política não configuravam mero procedi- A política, entendida como a ciência de gover-
nar bem os homens, as devia acendrar e melho-
mento, mas a possibilidade de o Estado conduzir rar [referência às qualidades dos homens], gui-

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ando-lhes a educação e a cultura. Bem fora daí, tica não prescindia de um movimento que se pro-
porém, a política, em cujas mãos caiu o sertão
baiano, é a que tem por objeto estimular, no ho- jetasse de cima para baixo, moldando a cena dissi-
mem, os instintos subalternos, asselvajá-lo e pada conforme a índole unitarista do interesse
animalizá-lo (p.98).
público. Nesta perspectiva, o povo era tido, simul-
Nesta perspectiva, a política é tida como taneamente, como sujeito e objeto da criação polí-
instrumento passível de bons e maus usos. Na tica. Isto é, a condição de sua identidade ativa se-
cena política observada, não restariam dúvidas ria justamente a intervenção modeladora do Esta-
quanto à impertinência das ações dos homens de do ou dos personagens da vida pública, destinada
Estado. Os sertanejos, personagens a que se dirige à garantia da lisura dos processos eleitorais e tam-
a campanha política de Rui Barbosa, estariam con- bém a uma certa pedagogia cívica. Não fosse a in-
denados a uma “vida estagnada e coagulada” (Bar- terferência de um ator externo, a massa desagregada
bosa, 1967, p.36), a uma existência marcada pelo seguiria entregue às condições de reprodução de
imperativo da sobrevivência e aprisionada pelas seu infortúnio. Não haveria propósito em crer que,
exigências materiais imediatas, fato incompatível deixados a si mesmos, como estavam desde sem-
com as demandas da vida pública. A causa deste pre, os homens comuns iriam organizar-se por si
infortúnio era claramente política. sós e, deste modo, configurar, à sua imagem e se-
Para Rui Barbosa, a distinção fundamental melhança, uma Nação ilustrada pela boa política.
entre sertanejos e litorâneos era apenas devida ao Todo mimetismo da política com a sociedade esta-
acaso, relativa ao abismo entre seus respectivos va fadado à reprodução do atraso. A perspectiva
ambientes de socialização. Os processos de grave mais verossímil, se abolida uma ação incisiva e
espoliação que se abateram sobre a população do renovadora por parte do Estado, era, portanto, a
sertão ter-lhe-iam extinto todo vigor cívico. O acento de perpetuação do desalento. Considerada a grave
na idéia de uma “raça inteligente, de grande vitali- apatia política do povo, a cena política não pode-
dade”, investida de um “brônzeo heroísmo”, loca- ria configurar-se como espelho da realidade soci-
lizava a responsabilidade pelos desacertos políti- al, típica metáfora liberal. Se não havia um povo
cos nos algozes do povo desfrutado. Eram as clas- claramente constituído, não havia a possibilidade
ses políticas locais, extremamente oportunistas, os de a representação política simplesmente repro-
sujeitos por excelência da degradação do sertane- duzir uma cena social já existente.
jo. O fato da profunda desagregação cívica tinha, A possibilidade de rompimento com esta
portanto, uma genealogia social muito evidente. inércia degenerativa estaria localizada, portanto e

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Nesta perspectiva, o povo, a despeito de sua sobretudo, no campo estatal. Ao imprimir movi-
existência desordenada e amorfa, não constituía um mento a um universo estagnado, o Estado poderia
obstáculo ao aprimoramento da vida pública. O ativar um círculo virtuoso, em substituição ao cír-
Estado, os homens públicos e o próprio ritual elei- culo vicioso perpetuador das condições do atraso.
toral acumulavam a possibilidade de superação deste No discurso liberal em evidência, os recursos for-
grave problema da dispersão. A correção dos meios mais da política são investidos de notável força
de constituição dos poderes, por si só, não seria transformadora ou, ao menos, originadora da trans-
capaz de conduzir essa transformação. A expectati- formação.
va de metamorfose cívica, embora não anulasse a Esta leitura da política não está confinada
ação política do povo, não se limitava à expectativa ao liberalismo ruiano. O argumento de Rui Barbo-
de um espontaneísmo qualificado dos homens co- sa tem clara afinidade com a teoria política de As-
muns, isto é, de um espontaneísmo incrementado sis Brasil, outra personagem do liberalismo na Pri-
pela correção dos procedimentos eleitorais. meira República com importante projeção na cena
Se o voto era tido por Rui Barbosa como política do Rio Grande do Sul. Assis Brasil mani-
direito inalienável dos indivíduos, sua teoria polí- festa forte crença na capacidade de os meios políti-

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cos modificarem e moldarem a índole do povo tância da política. Isto é, a garantia da forma incide
conforme o imperativo da vida cívica. O lugar da de modo determinante na produção da substância
política é definido em franca sintonia com a pre- política e vice-versa. Embora não destituído de ten-
missa progressiva e cumulativa da pedagogia. Tal sões, o laço estreito entre forma e conteúdo ilustra
como o aprendizado do andar, quando “a criança a crença do liberalismo brasileiro na potência cria-
hesita, cai e por vezes quebra até o narizinho” (As- tiva da política, e não meramente na sua capacida-
sis Brasil, 1934), o exercício político implica tenta- de de reproduzir, como uma imagem especular,
tivas e erros sucessivos até o alcance de uma situ- uma realidade já constituída. Isto é, o universo
ação mais estável e dificilmente suscetível à que- formal é tido, nesta tradição de pensamento, como
da. Embora Assis Brasil não identifique, como Rui instrumento para a metamorfose dos usos e hábi-
Barbosa, uma natureza heróica no brasileiro, tos políticos.
tampouco deriva qualquer sorte de fatalismo polí- À semelhança da formulação política de
tico da observação da realidade social. Hobbes, portanto, a percepção do liberalismo re-
Para Assis Brasil, portanto, a experimenta- publicano original era a de que o povo não pré-
ção é a condição do aperfeiçoamento; o acerto po- existia ao momento da representação. À diferença,
lítico é o corolário dos desacertos. Ainda que o contudo, do extremo hobbesiano de supressão dos
mau governo seja o destino inexorável dos homens direitos políticos, o sufrágio universal era tido como
que empreendem o voto desqualificado, é a expo- uma realidade da qual não era possível retroceder.
sição a este infortúnio que abriga a possibilidade Sendo um dos imperativos da vida moderna, res-
de conversão moral dos eleitores e seus governos. tava aos políticos a educação deste meio. Nesta
Essa perspectiva de uma pedagogia eleitoral desti- versão mitigada do princípio hobbesiano de re-
nada ao melhoramento da vida pública está clara presentação, a qualificação política dos cidadãos
no seguinte fragmento de discurso: teria um duplo fundamento: a ação do represen-
tante instituído e o próprio processo de constitui-
A nação também se corrige, tem também as suas ção de poderes.
neuroses, os seus momentos, suas hesitações, seus
emportements, mas é preciso deixar que ela viva, Nesta perspectiva, a transição da massa ao
segundo deva viver. O caso da nação é o mesmo povo – isto é, do aglomerado desordenado ao con-
de cada um de nós: (...) na água é que se aprende
a nadar. É no exercício da função que o indivíduo junto ordenado de almas populares – resultaria
adquire idoneidade para essa mesma função. É,
pois, preciso que a nação tenha liberdade, não da intervenção criativa do Estado e também das
como querem os nefelibatas e sonhadores, para incursões diretas dos eleitores ainda não qualifi-
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fazer os seus governos de anjos. Quero que a na-


ção tenha liberdade para fazer os seus maus go- cados à vida pública. Os homens comuns seriam,
vernos, porque é pelo preço de fazer os maus a um só tempo, produtores e produto da represen-
negócios e de dar os maus passos que os homens
e os povos aprendem a dar bons e a ser dignos de tação política. Este modelo híbrido, a despeito das
sua liberdade. A representação ver-dadeira é uma concessões aos fundamentos do liberalismo clás-
necessidade; não para fazer bom governo, mas
para tornar o povo apto a fazer um bom governo sico, guarda importante semelhança com a matriz
(Assis Brasil, 1933). hobbesiana de unidade e criação do povo. A con-
cepção de representação política na Primeira Re-
Para o político gaúcho, a qualidade do go-
pública brasileira, a despeito das nuances que par-
verno evoluirá, portanto, na medida da prática elei-
ticularizam seus diferentes matizes, está claramen-
toral, desde que garantidas as condições corretas
te pautada, portanto, numa dupla expectativa de
para sua execução. Assim como em Rui Barbosa, e
iniciativa política dos cidadãos e ação modeladora
de um modo ainda mais contundente, os procedi-
do Estado.
mentos e o conteúdo da política são percebidos
por Assis Brasil como um contínuo. Nesta pers-
pectiva, não há rompimento entre a forma e a subs-

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O positivismo e a representação política como motivação primordial da ação política. Sem refe-
substância rência aos homens comuns, a moral e a ciência
constituem meios desprovidos de finalidade, cor-
Se a premissa do Estado como móvel es- pos carentes de alma. A técnica e o imperativo de
sencial da vida pública constitui marco importan- pureza dos espíritos, temas positivistas por exce-
te do pensamento liberal nas origens da Repúbli- lência, não se justificam por si mesmos, mas pela
ca, foi no castilhismo que este fundamento alcan- convicção de que conduzem a sociedade ao bem
çou expressão máxima. Nesta filosofia política, comum e, portanto, de que a representam. Se o
baseada no positivismo de Augusto Comte, o prin- argumento do saber conduz à definição de uma
cípio de impotência do povo é levado ao limite. A minoria privilegiada pelo conhecimento, não defi-
constituição estadual do Rio Grande do Sul, de 14 ne uma maioria indigna de representação. A von-
de julho de 1891, subordina toda ação legislativa tade do povo, inacessível a si próprio, é interpre-
ao corpo executivo, num claro rompimento com o tada pelo governante, dotado da faculdade e da
fundamento liberal da Carta Constitucional do país. oportunidade do conhecimento. À semelhança do
Para Assis Brasil, um dos críticos mais contun- Grande Legislador rousseauniano, o chefe políti-
dentes do castilhismo, no estado gaúcho “a Lei co é uma figura excepcional capaz de conhecer a
Fundamental confere exclusivamente ao déspota a consciência oculta que é de todos e de cada um,
faculdade de fazer as leis, de as regulamentar e sem ser da maioria ou da minoria dos homens. Os
aplicar, pondo-lhe apenas na mandíbula sujeitos ordinários e desconhecedores de sua pró-
pantagruélica uns freios irrisórios de manteiga, que pria vontade são descritos, nesta perspectiva, como
ele traga e digere” (Assis Brasil, 1925). Nesta or- objeto – e não sujeito – da representação.
dem política, o soberano goza, portanto, de larga Para Borges de Medeiros, principal opera-
concessão de poderes. dor do castilhismo, todos os homens produzem
A precedência da ciência sobre outros crité- desejo na medida em que experimentam a neces-
rios de organização da vida social é a principal sidade, mas poucos são capazes de refletir ade-
marca desta matriz de entendimento da represen- quadamente sobre esta condição comum e ascen-
tação política. Longe da fortuna incerta das opini- der à produção de saber. Sendo o desejo uma
ões, que configuram a política no paradigma libe- pulsão elementar, própria de uma “organização
ral clássico, a cena pública apurada pelo saber ci- cerebral ainda rudimentar” (Medeiros, 1933, p.47),
entífico não estaria fadada aos caprichos da forma, a experiência da opinião, que implica pensamento

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mas animada pela atribuição de substância opor- e conhecimento analítico, ocupa lugar superior e
tuna, que institui estabilidade e permanência na acessível a poucos.
política. O reconhecimento da opinião como faculda-
Nesta perspectiva, o entendimento da re- de restritiva sugere a existência de um sujeito
presentação política está menos referido à minúcia cognoscente privilegiado, descolado do reino da
dos mecanismos eleitorais do que ao princípio do escassez imediata e ilustrado pelo exercício da ra-
bem público, que não está disponível às consciên- zão, em rígido contraponto aos homens escraviza-
cias ordinárias e depende de um exercício criati- dos pelas restrições do mundo material e vulnerá-
vo, e não mimético, da representação por uma veis à imprevisibilidade dos desejos. No texto da
minoria esclarecida. Técnica, ciência, competên- plataforma do positivismo ilustrado, lê-se: “quanto
cia e saber constituem, enfim, o campo semântico aos meios de atingir o fim, compete exclusivamente
da idéia de representação no marco positivista. aos sábios em política escolhê-los. Seria absurdo
Embora prescinda do conceito de democra- que a massa quisesse raciocinar.” (Paim, 1981b, p.49)
cia – ou faça a ele concessões meramente formais – O uso do termo massa no lugar de povo não é casu-
, a representação positivista identifica no povo a al. Tal como em Hobbes, refere-se a um coletivo

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A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA...

amorfo, desprovido de identidade e incapaz, portan- Nesta perspectiva, o reconhecimento da pró-


to, de exprimir uma opinião acabada. pria alma libertaria o povo das angústias que não
Na política desprovida de ciência e consa- eram as suas, mas que colonizavam sua identidade
grada pelo uso ordinário reside, enfim, a dissipa- política. Não cabia a nós a agonia dos povos
ção, o estorvo das facções, a dominância das par- desordenados pela ruína de instituições seculares
tes em detrimento do todo. As rotinas eleitorais da e pelos descaminhos do liberalismo. Era outra a
Primeira República, marcadas pela fraude, eram natureza de nossos problemas, ainda obscuros e
tidas como sinal da decadência e imperativo da carentes de investigação. Neste ambiente, grave pre-
mudança. O espetáculo periódico dos pleitos elei- juízo causava a “influência mental da França”, que
torais revelaria o avesso do mundo desejado, a nos fazia repetir, “por símbolos da nossa psicose”
profusão dos interesses particularistas em lugar (p.76-77), um repertório alheio de preocupações.
de ações inspiradas pelo bem comum. Imbuído nesta mesma leitura, Oliveira Viana
A crítica contundente à rotina política da lamenta: “nenhum dos nossos constitucionalistas
República assentava-se, portanto, numa visão so- havia procurado cunhar as leis em metal brasileiro,
bre a representação política radicalmente alheia aos dentro dos moldes das nossas conveniências naci-
parâmetros da carta de 1891. O rigoroso centralismo onais” (Viana, 1930, p.22). Do abismo entre reali-
castilhista buscava contornar o equívoco da habi- dade e legalidade resultava a impossibilidade de
litação política direta do povo, deslocando o ho- uma organização política “viva e orgânica, feita de
mem ordinário de sujeito para objeto da política. músculos, nervos e sangue.” (p.17) Nossa existên-
À diferença da perspectiva liberal, que concebia o cia social, sem ossatura e sustentação, alicerçada
povo como autor e ator da política, o positivismo em rudimentar “patriotismo tribal”, não guardava
brasileiro não previa uma duplicidade de papéis semelhança com as virtudes cívicas de além-mar.
para o indivíduos comuns. A ação do Estado, de- Era preciso moldar a política de acordo com as ca-
votada ao bem público, deveria ser incontrastável, racterísticas particulares de nosso ambiente social.
única hipótese compatível com a expectativa de Nesta perspectiva, a sociologia era tida como
verdade da representação. poderoso determinante da política. A abstração das
normas, na visão realista, não era um instrumento
favorável à alteração da realidade. Para Oliveira
O realismo e a representação política como farsa Viana, haveria grave equívoco em conceber a “for-
ça lógica do raciocínio e da dialética como agentes
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Embora constitutivo da visão sobre represen- determinantes da conduta de multidões” (p.129).


tação política de liberais e positivistas, o desencan- Todo intuito normativo era estéril quando alheio
to com a República foi expresso de modo mais con- ao contexto específico que pretende modificar.
tundente por autores realistas como Oliveira Viana O profundo sentimento de inadequação era
e Alberto Torres, dedicados à crítica do desajuste expresso, entre outros modos, por forte nostalgia
entre norma e prática política. Para eles, o realismo do Império. Feita contraponto prático e moral ao
sociológico é condição elementar da arquitetura decadentismo republicano, a política imperial era
política; o mundo fenomênico é a única inspiração descrita como ação retificadora. A alusão saudosa
possível para a política. Nos termos de Alberto Tor- ao Poder Moderador valorizava sua potência de
res, “o senso nacional não pode ser idêntico para harmonização de uma cena social dispersa e ex-
todos os povos. O nosso país precisa, de uma vez cessivamente fragmentada. Nada na República as-
por todas, formar um espírito e uma diretriz práti- semelhava-se a este notável engenho de organiza-
ca, que o conduza” (Torres, 1938, p.46). O encanto ção da vida pública: “nossos costumes de
com “paradigmas forasteiros” seria um grave mal facciosismo e politicagem” (Viana, 1930, p.43) se-
de nossa constituição política. guiam curso livre, sem impedimentos de qualquer

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Cristina Buarque de Hollanda

ordem. Faltava um Estado forte que ordenasse os cional é rudimentar ou nula, não podem elevar-
vícios particularistas e operasse como “poderoso se, por si mesmos, ao culto do Estado e da sua
modificador sociológico” (p.48). autoridade.” (Viana, 1930, p.100) Desta incapaci-
Além da crítica ao federalismo da Carta de dade de superação espontânea o autor deriva forte
1891, Oliveira Viana critica, na República, os tem- associação entre princípio de Estado e realismo:
pos curtos dos mandatos políticos e as eleições
dos poderes Executivo e Legislativo. Aí estariam O Brasil precisa realizar desde já uma alta polí-
tica de caráter profundamente orgânico e nacio-
as origens da instabilidade e dos maus usos da nal. Esta política, porém, só pode ser feita por
política (Viana, 1930, p.27). O desejo de organiza- iniciativa do Estado. Ora, o Estado, pela maneira
por que está organizado na Constituição vigente,
ção da vida pública, bem como a gestação de um não pode eficazmente realizá-la. Logo, tudo de-
pende de uma reforma constitucional que orga-
“grande ideal coletivo” (p.314), de que ainda não nize o Estado num sentido que o capacite para
dispúnhamos, são formulados em outras bases: este fim superior e necessário (p.13).

Esse alto sentimento e essa clara e perfeita cons- Diante de uma sociologia extremamente frá-
ciência só serão realizados pela ação lenta e con-
tinua do Estado – um Estado soberano, gil e, ao mesmo tempo, poderosa para definir os
incontrastável, centralizado, unitário, capaz de rumos da política, o Estado concebido por Olivei-
impor-se a todo o país pelo prestigio fascinante
de uma grande missão nacional (p.315). ra Viana é descrito por sua capacidade de sobre-
por-se ao fato da profunda desagregação social.
Alberto Torres foi o precursor, entre os rea- Contra a potência de desordem implicada nas
listas, desta alusão ao Estado como fio condutor massas, deve-se opor uma força incontrastável. À
da política. Para ele, a principal carência nacional diferença do liberalismo de Rui Barbosa e Assis
era de “um governo consciente e forte, seguro dos Brasil, a condução da vida pública, na perspectiva
seus fins, dono da sua vontade, enérgico e sem realista, é claramente incompatível com concessões
contraste”. Em oposição à excentricidade liberal, à expressão política das massas. A habilitação po-
Torres concebia o chamado Poder Coordenador lítica de indivíduos inábeis configura o próprio
como protagonista da harmonia social. A peculia- avesso do princípio de representação, que supõe
ridade deste poder era seu caráter vitalício. Sua a figura metonímica da parte pelo todo. As massas
permanência constituiria valioso contraponto à desqualificadas não estão em condições de, efeti-
nociva instabilidade da ordem republicana, flutu- vamente, projetar-se na vida pública e indicar os
ante ao sabor do desvio faccioso da política. Trata- bons caminhos. O ceticismo realista com relação

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va-se de opor o permanente ao transitório, com às possibilidades de a política configurar o mun-
vistas à estabilidade e unidade da vida pública. do social não é formulado indistintamente, mas
O problema central do revisionismo realista em relação aos usos observáveis da política.
era, portanto, o de instituir “um quarto poder, tal No realismo, portanto, não há propriamen-
como o antigo poder moderador, que, sendo judici- te uma concepção de representação política, mas
ário, também tenha o direito de iniciativa.” (Viana, de ação política. Isto é, se a representação supõe a
1930, p.48) A determinação de um centro de forças projeção virtual das massas ignorantes na configu-
que submetesse todas as células do governo consti- ração da política, deve ser abolida como categoria
tuía o contraponto necessário de uma “sociedade razoável de intervenção na vida social. Mais acerta-
sem fixidez, sem ossatura de classes” (p.92). do é conceber uma ação política estrito senso, que
Diante do fato incontornável de nosso atra- se projeta na cena social para moldar o desastre
so sociológico, o exercício forte da política confi- sociológico. Toda concepção contrária, que supõe a
gurava-se como imperativo social. Para Oliveira relação inversa de produção da política pelo povo,
Vianna: “os povos de fraco sentimento coletivo, é tida como falsa e estéril para pensar, realmente,
isto é, aqueles em que a consciência do grupo na- qualquer tipo de metamorfose social possível.

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A QUESTÃO DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA...

CONSIDERAÇÕES FINAIS mente coberto –, a extensão do direito de voto às


mulheres e, sobretudo, a invenção da justiça elei-
Embora a formulação realista seja expres- toral – que retirou do Legislativo o julgamento da
são limite da premissa de inabilidade política do matéria legislativa – foram marcas inequívocas de
povo, o suposto basilar do Estado como agente de alargamento do princípio representativo na dire-
modelação da sociologia teve notável permanência ção do liberalismo democrático. A preocupação em
nos diversos entendimentos sobre representação garantir condições reais para a ação substantiva de
política na Primeira República. Mesmo o pensa- governo – sem o obstáculo excessivo das minorias
mento liberal das primeiras décadas republicanas e da crítica – associou-se, portanto, com conteú-
afasta-se do princípio da representação como pro- dos clássicos do liberalismo, afinados com a pers-
cesso destituído de conteúdo finalístico e afeito pectiva da representação como espelho de uma
unicamente à expressão de vontades pré-constitu- cena política já constituída. O encerramento for-
ídas. A versão liberal brasileira imprimiu unidade mal da questão representativa na Primeira Repú-
e substância ao problema representativo. A habili- blica não escapou, portanto, ao hibridismo liberal
tação cívica do povo não dispensou a ação política da época, que enxergava o povo, simultaneamen-
marcadamente estatal. te, como sujeito e objeto da política.
A figura de um soberano resoluto, capaz de A conversão em lei desta curiosa formula-
imprimir direção à vida pública, não esteve confi- ção política baseou-se num paradoxo original: o
nada, portanto, aos marcos do positivismo. Sen- fato do avanço liberal ter-se inscrito no preâmbulo
do criador e criatura da política, o povo era dotado de um regime político autoritário. Embora não es-
de uma identidade híbrida, moldada em simbiose capassem ao campo liberal, os temas da unidade e
com a política sediada no Estado. A ação política da criação na política foram apenas possíveis, por-
dos homens comuns não era absolutizada e tanto, pelo fato de estarem inscritos numa ordem
tampouco suprimível da cena pública. que já se anunciava autoritária.
O Código Eleitoral de 1932, marco jurídico
de encerramento da Primeira República no que diz
respeito ao tema da representação, expressou cla- (Recebido para publicação em janeiro de 2008)
(Aceito em março de 2008)
ramente a preocupação liberal com a garantia de
bases consistentes para a ação do governo. Seu
principal autor foi Assis Brasil. Neste texto políti-
CADERNO CRH, Salvador, v. 21, n. 52, p. 25-35, Jan./Abr. 2008

co, a formulação de um modelo eleitoral híbrido, REFERÊNCIAS


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