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1. Aspetos comuns:
a) Regras e linguagem
Para criarem uma imagem na nossa mente, nos basta lembrar que cada povo ou, num
grau mais diminuto, cada comunidade, utiliza um determinado código de
comunicação, atribuindo significados às palavras e aos símbolos, pelo que, quando
quisermos nos relacionar com outrem, utilizamos a comunicação (verbal, escrita ou
outras formas). Assim, temos consciência que qualquer relacionamento só é possível
através da utilização da linguagem, razão pela qual a seguinte afirmação é verdadeira
ou tem o seu quê de válido: “Não há direito sem linguagem nem fora dela 1”.
1
Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 301.
2
Idem, pág. 302.
Alcides Gomes 1
Sumários sobre a interpretação da lei
Quando se recorre aos conceitos jurídicos, pode-se lançar mão quer dos conceitos
determinados, também designados de descritivos, como de indeterminados.
Diz-se que estamos perante um conceito determinado, sempre que esteja definida com
a extensão do conceito utilizado, a sua referência, isto é, se soubermos com exatidão o
que quer significar um dado conceito.
3
Ibidem, pág. 302
Alcides Gomes
2
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
têm um sentido próprio atribuído pela ordem jurídica não obstante terem também
significação extrajurídica, (sinal, documento, prova).
No que toca aos tipos legais, Miguel Teixeira de Sousa dá o seguinte conceito:
“designa um arquétipo ou uma entelequia ou algo de paradigmático, de exemplar ou
de modelar4, com isso se quer dizer que ao se falar de tipo pensamos em um modelo,
no sentido de algo que existe de comum entre vários objetos, bens ou pessoas ou em
algo que se repete ou se sucede com regularidade.
Pode dividir-se entre tipo médio ou de frequência que é aquele que descreve o que se
verifica com maior frequência, o que é mais comum e tipo constitutivo ou de
totalidade é o que descreve uma realidade de acordo com os seus traços caraterísticos
ou elementos essenciais 5.
4
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 307.
5
Idem, pág. 308.
Alcides Gomes 3
Sumários sobre a interpretação da lei
Se pararem para olhar, o que vão constatar com alguma facilidade é que as palavras
não têm sentido preciso em si ou, mesmo tendo, mas porque podem ser utilizadas em
vários contextos, esses contextos modificam-lhe o sentido e ele também ajuda a
modificar o sentido do todo. Esta situação, como é óbvia, origina dúvidas, põe-nos a
pensar que perante cada texto legislativo devemos apurar o sentido e alcance nele
ínsitos6.
Portanto, não há texto de lei que não precisa de ser interpretada, uma vez que até a
tarefa de dizer que um texto é simples ou claro pressupõe a sua prévia interpretação
para que a esta conclusão se possa chegar. Então não é correta a regra in claris non fit
interpretatio7
Devo, portanto, dizer-vos que a interpretação faz-se com recurso à hermenêutica, isto
é, às técnicas e métodos para a correta interpretação das normas jurídicas 8.
Isto é importante. Como disse antes, as palavras são o que são e, por isso, devem ser
entendidas. Deve o intérprete perceber o significado do texto que tem “nas mãos”.
Acima de tudo, quero vos lembrar que atribui-se significados a palavras, elas não têm
significado próprio9.
6
No mesmo sentido, A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 6ª edição, Coimbra, Coimbra
Editora, 2012, pág. 323.
7
Não carece de interpretação uma lei clara.
8
Ver Maria Luísa Duarte, Introdução ao Estudo do Direito. Sumários desenvolvidos, Lisboa, AAFDL,
2010, pág. 208.
9
Segundo explica Miguel Teixeira de Sousa, cit., «Com a designação de hermenêutica normativa
pretende expressar-se uma orientação cuja premissa essencial é a de que não há significados, mas antes
atribuições de significados com base em certas regras.», pág. 315.
Alcides Gomes
4
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
Esta afirmação quer dizer que os textos de lei necessitam de ser interpretados com
recurso a certas regras de forma a fixar o sentido e alcance, dito de outro modo, é
preciso terem presente que perante uma fonte devem procurar por determinar o
significado respetivo, que é o mesmo que dizer que devem determinar a que casos a
fonte é aplicável.
ii. Esta compreensão da fonte é prática e não teórica, na medida em que deva
permitir que o intérprete/aplicador entenda o que aquela fonte lhe permite ou lhe
veda;
10
Ver Miguel Teixeira de Sousa, cit., que nos explica que «a hermenêutica jurídica é “aplicativa e
nunca apenas reconstrutiva”, pág. 321. Com isso se demonstra que não se determina o sentido da lei
apenas a partir do seu texto, sendo preciso ter em conta os casos concretos. Conclusão a que podemos
chegar através de Luis Legaz Y Lacambra, que sustenta que “aplicar el Derecho es fundamentalmente
interpretarlo”, in Filosofia del Derecho, Bosch, Casa Editorial, S.A., Barcelona, 1979, pág. 541 apud
A. Santos Justo, cit., pág. 324.
Alcides Gomes 5
Sumários sobre a interpretação da lei
c) Explicação
Devo dizer-vos, e insisto nisso para que não haja dúvidas, que interpretar é aplicar,
isto é, saber interpretar é saber aplicar as regras, ninguém consegue dizer que sabe
interpretar se não poder aplicar a mesma regra às situações de vida (concretas ou
hipotéticas)12.
11
Não tem razão, por isso, José de Oliveira Ascensão quando diz que “A aplicação da regra confunde-
se por vezes com esta operação [interpretação], mas indevidamente. Para haver aplicação têm de se
pressupor conhecidas as regras. Logo, a aplicação é logicamente posterior à determinação da regra.”, in
O Direito. Introdução e Teoria Geral, 3ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 303.
12
Cfr. Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao estudo do Direito, 2ª ed., revista, Lisboa, AAFDL,
2018, pág. 166.
Alcides Gomes
6
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
Ao falarmos do sentido amplo da interpretação, estamos a dizer que ela abrange quer
a determinação do sentido e alcance da fonte (já sobejamente referido atrás) como
ainda a integração de lacunas, que consiste naqueles casos em que falta norma
reguladora de uma situação que o Direito devia regular e que obriga o intérprete a
“criar solução” para decidir o caso.
No seu sentido restrito, corresponde ao que temos vindo a dizer, a interpretação tem a
ver com a tarefa de fixar o sentido da lei, de determinar o seu significado e alcance.
A expressão vai ser utilizada no sentido restrito nestas aulas (aliás, por tendência,
quando se fala em interpretação, pensa-se no seu sentido restrito), o que quer dizer
que quando falamos em interpretar estamos a falar de uma realidade distinta da
integração de lacunas 14.
A afirmação feita nos quer demonstrar que ainda também se trata de uma realidade
única, embora cindível por questões de efeitos práticos ligados à sua
compreensibilidade.
13
Maria Luísa Duarte, cit., pág. 207. Num sentido igual, ver A. Santos Justo: «A interpretação é a
actividade intelectual que procura retirar de uma “fonte” do direito o sentido normativo (a regra ou
norma jurídica) que permita resolver um caso prático que reclama uma solução jurídica», Introdução
ao Estudo do Direito, 6ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pág. 323
14
Ver Maria Luísa Duarte, Introdução ao Estudo do Direito. Sumários Desenvolvidos, Lisboa,
AAFDL, 2010, pág. 223 e ss.
Alcides Gomes 7
Sumários sobre a interpretação da lei
Interpretação da lei
a) Objeto da interpretação
O que se interpreta? Esta é a questão com que abrimos para perceber o objeto sobre o
qual deve a interpretação incidir.
Para entender o que está em causa, antes de responder, recordo-vos sobre o que
dissemos em momentos anteriores do nosso curso... Estou a pensar na abordagem
feita a propósito da estrutura das regras jurídicas, em que vimos que estas são
compostas de uma previsão e de uma estatuição.
15
Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 328-329.
Alcides Gomes
8
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
quer dizer que para entendermos o alcance e sentido da previsão temos que partir do
que se estabelece como consequência, o que leva a concluir que duas leis com
previsões iguais mas estatuições diferentes terão ou podem ter significado diferente.
No exemplo dado por Miguel Teixeira de Sousa, a lei estabelece que “É proibida a
entrada de animais nos jardins públicos”. O significado da estatuição é a proibição de
entrada em jardins públicos e é claro, inequívoco. Quanto a previsão, pode-se
questionar se a entrada de animais é sempre proibida, independentemente do animal
que seja (papagaio na gaiola ou um cão pequeno transportado ao colo), ou das
circunstâncias em que deva entrar (cães-polícia)16?
Para demonstrar que a resposta depende da estatuição, põe a mesma hipótese mas com
uma previsão diferente que é “É proibida a entrada de animais nos hospitais”.
Pensando nestas duas hipóteses, o que se percebe é que sendo diferente as estatuições
- proibição de entrada nos jardins públicos - cujo objetivo seria evitar a danificação do
bem - e proibição de entrada nos hospitais - cujo objetivo é impedir que se aumente o
risco de infeção dos doentes, a proibição seria mais abrangente e categórica no
segundo caso que no primeiro.
16
Idem, cit., pág. 328-329.
Alcides Gomes 9
Sumários sobre a interpretação da lei
significação textual. Isto porque qualquer interpretação apenas pode incidir sobre o
texto da lei17.
Esta forma de encarar a interpretação é criticada por não ter em conta a importância
do caso concreto18.
Por exemplo, Hart, ao abordar a questão, referiu que “Em todos os campos da
experiência, e não só no das regras, há um limite, inerente à natureza da linguagem,
quanto à orientação que a linguagem geral pode oferecer. Haverá... casos simples...
aos quais as expressões gerais são claramente aplicáveis... mas haverá também casos
em que não é claro se se aplicam ou não...”. E continua a sua explicação dizendo que
“Os cânones de «interpretação » não podem eliminar estas incertezas, embora
possam diminui-las; porque estes cânones são eles próprios regras gerais sobre o uso
da linguagem e utilizam termos gerais que, eles próprios, exigem interpretação”19.
As palavras de Hart servem para nos elucidar sobre a insuficiência do texto para
completar o quadro interpretativo, ou seja, como explica Fernando Bronze “o objeto
da interpretação não é a norma-texto, mas a norma-problema20”, razão pela qual
seguimos Castanheira Neves, quem defende que não está em causa, na interpretação
jurídica, o texto das normas jurídicas, na sua qualidade de expressão de um
significado a compreender e a analisar, mas a normatividade que essas normas,
enquanto critérios jurídicos, constituem e possam oferecer 21.
17
Para melhores desenvolvimentos, ver Miguel Nogueira de Brito, cit., pág. 172 e ss.
18
Cfr. Fernando José Bronze, Lições de Introdução ao Direito, 2ª edição. Coimbra, Wolters Kluwer
Portugal (Coimbra Editora), 2006, pág. 892-894.
19
Herbert L. A. Hart, O conceito de Direito, (tradução de A. Ribeiro Mendes), 3ª edição, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 139.
20
Fernando José Bronze, cit., pág. 892.
21
Castanheira Neves, cit., pág. 143.
Alcides Gomes
10
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
22
Miguel Nogueira de Brito, cit., pág. 177.
23
Ver Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 331 e ss.
Alcides Gomes 11
Sumários sobre a interpretação da lei
Ainda falta um último aspeto ligado à linguagem em geral e que tem a ver com a
modificabilidade das palavras. As palavras mudam de significado com o tempo e
também consoante os lugares, o que produz efeitos na interpretação do texto.
A proliferação legislativa é uma delas. Mais adiante vamos falar dos elementos da
interpretação e vamos abordar a interpretação sistemática, que pressupõe que qualquer
norma a ser interpretada o deva ser dentro do espírito do sistema, tendo em conta o
ordenamento jurídico enquanto um todo. Pensem na proliferação legislativa - vários
textos dispersos em vários atos normativos de cuja existência os intérpretes às vezes
nem têm conhecimento, o que leva à possibilidade de não se tomar em conta, na
interpretação de uma lei, outras existentes e, quiçá, fundamentais para a sua melhor
perceção.
Outra dificuldade específica tem a ver com o hermetismo da linguagem jurídica, isso
significa que o Direito utiliza linguagem que são próprias, às vezes até com sentido
diferente do usado na linguagem social, o que dificulta o entendimento aos
destinatários das normas - os cidadãos.
Houve duas posições tradicionais acerca do problema que se dividem entre teoria
subjetivista ou da vontade e teoria objetivista. A primeira defende que a interpretação
tem como finalidade “a indagação da vontade histórico-psicológica do legislador 24”,
ou, dito de outro modo, visa encontrar no texto, o sentido saído da vontade do
legislador.
24
Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito (tradução de José Lamego), 2ª edição, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 380.
Alcides Gomes
12
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
A favor da teoria subjetivista pode argumentar-se que “a lei jurídica, ao invés da lei
natural, é feita por homens e para homens, é expressão de uma vontade dirigida à
criação de uma ordem tanto quanto possível justa e adequada às necessidades da
sociedade. Por detrás da lei está uma determinada intenção reguladora, estão
valorações, aspirações e reflexões substantivas, que nela acharam expressão mais ou
menos clara26”.
Os argumentos da teoria objetivista consistem em que “... uma lei... transcende aquilo
que o legislador tinha intentado... intervém em relações da vida diversas e em
mutação, cujo conjunto o legislador não podia ter abrangido e dá respostas a questões
que o legislador ainda não tinha colocado a si próprio. Adquire, com o decurso de
tempo, ... uma vida própria e afasta-se... das ideias dos seus autores27”.
Pode-se afirmar que atualmente a doutrina dominante é a objetivista 28, embora já não
seja na sua formulação inicial, mas eclética, isto é, na medida em que se reconhece ser
criticável quer a doutrina subjetivista como a objetivista, o estado atual da doutrina dá
uma primazia á teoria objetivista, embora incorporando aspetos positivos da teoria
subjetivista e eliminando aspetos negativos da teoria objetivista.
25
Idem, cit., pág. 10.
26
Ibidem, cit., pág. 381. Ver ainda o que diz a propósito dos argumentos a favor da teoria subjetivista,
muito em linha com o que se apresentou, cit., pág. 190.
27
Karl Larenz, cit., pág. 381.
28
Angel Latorre, Introdução ao Direitoi, Coimbra, Almedina, 2002,pág. 108.
Alcides Gomes 13
Sumários sobre a interpretação da lei
As críticas que se fazem a estas doutrinas são várias e podem ser sintetizadas da
seguinte forma29:
Não se pode deixar de frisar que por regra o subjetivismo é histórico e o objetivismo
atualista.
29
Para melhor aprofundamento sobre as críticas às teorias, ver António Menezes Cordeiro, Tratado de
Direito Civil, I, 4ª edição (reformulada e atualizada), Coimbra, Almedina, 2017, pág. 685. E ainda,
Fernando José Bronze, cit., pág. 895 e ss-
30
Ver Nogueira de Brito, cit., pág. 190.
31
Maria Luísa Duarte, cit. Pág. 209-210.
Alcides Gomes
14
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
O artigo 9.º n.º 1 determina que a interpretação tem por finalidade a reconstituição do
pensamento legislativo a partir do texto da lei.
A tendência subjetivista vê-se no n.º 2 do artigo 9.º quando se dita que “Não pode ser
considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um
mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Exprimir
(perfeita ou imperfeitamente) é uma ação humana e, por isso, parece conduzir-nos à
vontade do legislador.
No art. 9.º, n.º 1, ao remeter-se para as “as condições específicas do tempo em que é
aplicada” temos uma manifestação objetivista e atualista.
32
Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, 4ª edição (reformulada e atualizada),
Coimbra, Almedina, 2017, pág. 680. Sustenta Fernando José Bronze que o artigo 9.º opta, à cautela,
por uma transação entre as duas teorias e assume uma posição gradualista ou até, pose-se dizer, mista,
cit., pág. 896. Conforme explica A. Santos Justo, a teoria gradualista ou mista vem “aproveitar” as
verdades existentes nas duas teorias. Na teoria subjetivista, «o entendimento de que a lei é feita por
homens e para homens, ou seja, é a expressão da vontade do legislador dirigida à criação duma ordem
justa e, enquanto possível, adequada às necessidades da sociedade. Na teoria objetivista “a ideia de
que a lei vai além da intenção do legislador, respondendo a questões que não lhe foram postas e,
portanto, adquiriu, com o decurso do tempo, uma vida própria. Deste modo, o sentido da lei não se
identifica com a mens ou voluntas legislatoris, mas também não a dispensa: é o resultado dum
processo de pensamento que considera todos os momentos subjetivos e objetivos», defendendo que foi
esta a teoria acolhida pelo nosso (português [e por razões evidentes, o guineense]) legislador, cit., pág.
333.
Alcides Gomes 15
Sumários sobre a interpretação da lei
Da leitura do art. 9.º, n.º 1, impõe-se ao intérprete da lei a ter em conta as condições
específicas do tempo em que a lei é aplicada - orientação atualista prospetivo
(prospeção da vontade atual do legislador ou do significado objetivo atual) e não
projetivo (que projeta a vontade do legislador histórico ao momento atual ou que
projeta na atualidade o significado objetivo histórico 33).
i. Ideia geral
De acordo com o nosso Direito, por causa do artigo 9.º, a interpretação tem um caráter
normativo, isto é, há uma imposição legal sobre os cânones interpretativos a seguir,
ainda que os mesmos não sejam rígidos e deixam margem ao intérprete/aplicador
devido à incerteza sobre a melhor doutrina a seguir e o reconhecimento, como se
referiu, de que ambas as teorias terão aspetos positivos e negativos.
A interpretação faz-se a partir da letra da lei, art. 9.º, n.º 1 e 2, com base nas
circunstâncias em que a lei foi elaborada, art. 9.º, n.º 1, na unidade do sistema
jurídico, art. 9.º, n.º 1, e nas condições específicas do tempo em que a lei é aplicada,
art. 9.º, n.º 1.
33
Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 346.
Alcides Gomes
16
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
34
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 349.
35
O CC da Guiné-Bissau foi herdado da colonização portuguesa, através da Lei N.º 1/75 que acolhe o
direito português vigente à data da independência do país que não contrariassem a CRGB e os
princípios do PAIGC, pelo que entra em vigor o CC de que o art. 9.º faz parte e, que nos leva, por isso,
aos mesmos resultados de interpretação.
36
Cfr. António Menezes Cordeiro, cit., pág. 696: «Na citada frase bíblica, no princípio era o verbo.
Passando para o Direito, ela significa que, na interpretação da lei, o primeiro elemento a atender é o seu
teor significativo ou, na expressão tradicional. A sua “letra”. Quer prática, quer hermeneuticamente,
não será assim: quando se procura uma lei - aquela, por hipótese, de cuja interpretação se irá curar - já
Alcides Gomes 17
Sumários sobre a interpretação da lei
Para a compreensão da letra da lei é preciso ter em conta quer a dimensão sintática -
respeitante à estrutura gramatical, como a semântica - significado das palavras. Deve-
se ter em conta que todas as palavras contam e não se pode, à partida, determinar que
uma seja inútil ou redundante.
A letra da lei impõe dois limites. O constante do n.º 3 do artigo 9.º que presume que o
legislador consagrou as soluções mais acertadas e de que soube exprimir o seu
pensamento em termos adequados - portanto, o limite consiste em que todo o
significado que corresponde à letra da lei tem de ser um significado possível.
se havia iniciado o processo: o arranque dá-se com o caso ou com o problema e não com a letra. Mas
dentro do universo de “uma lei”, o primeiro fator a atender será, de facto, a sua “letra”».
37
Cfr. Miguel Nogueira de Brito, cit., pág. 221 e ss.
Alcides Gomes
18
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
Em resumo, deve-se ter em conta o que motivou a produção da fonte, que factos
levaram o legislador a produzir uma lei sobre determinada matéria e quais as
necessidades eram satisfeitas pela fonte no momento da sua produção.
Além desses também se deve tomar em conta os trabalhos preparatórios, as atas das
comissões, os debates parlamentares, as exposições de motivos.
v. Elemento sistemático
Este critério diz-nos por exemplo que se a letra for passível de mais de que uma
interpretação, deve-se adotar a que é mais adequada ao contexto em que se insere.
38
Miguel Nogueira de Brito, cit., pág. 215.
Alcides Gomes 19
Sumários sobre a interpretação da lei
conteúdo semântico duma norma de forma a que se suprima toda a contradição com
outras disposições que apresentem conexão material com aquela.
Tem a ver com a finalidade ou propósito da lei (ratio legis). Qualquer lei, quando é
adotada visa prosseguir objetivos, só que neste critério, ao contrário do histórico, visa
buscar o objetivo por que se mantém a lei em vigor, é a isso que se alude no artigo
9.º/1 quando se diz que se deve, na interpretação, ter em conta as condições
específicas do tempo em que é aplicada.
d) Resultados da interpretação
i. Generalidades
Ao longo das aulas passadas, deixamos claro que a interpretação da lei vai ou pode ir
além do significado literal respetivo.
Nos casos em que o significado dado pelo elemento literal coincidir com o significado
extraído dos outros elementos falamos em interpretação declarativa.
Pode suceder igualmente que o entendimento que se estrai do elemento literal não
coincida com o dos outros elementos. E quando falta esta coincidência, fala-se
Alcides Gomes
20
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
Já referimos atrás que o sentido semântico pode não coincidir com o pragmático,
situação em que se diz que a interpretação é reconstrutiva, isto é, aquela em que o
significado da lei é reconstruído pelo intérprete a partir do significado literal.
Com isso se quer dizer que se a letra da lei tenha um sentido restrito e o espírito leva a
um sentido mais amplo, acaba-se por dizer que a letra quis dizer menos do que disse,
ampliamos assim o seu sentido.
Um exemplo disso seria o caso da proibição de venda a filhos ou netos (artigo 877.º
CC). Segundo este preceito os pais e avôs não podem vender a seus filhos e netos,
respetivamente. Ora, pela finalidade do artigo, verifica-se que a proibição é aplicável
39
AAVV, Introdução ao Direito, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 308.
Alcides Gomes 21
Sumários sobre a interpretação da lei
Se repararem, o artigo (a letra) apenas fala em pais e avôs (âmbito restrito), mas os
outros elementos interpretativos encaminham-nos para incluir os bisavôs e outros
ascendentes (âmbito amplo), assim, diz-se que se ampliou a letra, logo a interpretação
é extensiva.
Pensemos agora na proibição de celebrar negócio consigo mesmo (artigo 261.º CC).
Não se admite àquele que tem poderes representativos de agir em nome de outrem de
o fazer celebrando um contrato em que age como representante e ao mesmo tempo
como contraparte. Suponhamos que A é pai de B (menor de 12 anos). A é o
representante de B, ou seja, ele é que celebra os negócios em nome e por conta de B.
Ao A é, por isso, vedado comprar alguma coisa que pertença ao B enquanto seu
representante, senão estaria ele mesmo a comprar e a vender e colocaria (ou poderia)
em causa os interesses do representado.
Por isso, o que diz o artigo 261.º/1 é que se é representante não pode ele adquirir ou
vender algo ao seu representado no exercício da representação.
Este preceito visto desta forma proibiria todo o tipo de negócio celebrado pelo
representante consigo mesmo. Porém, o âmbito é menos amplo e exclui por exemplo
a doação desde que o representante é que é o doador.
No exemplo dado, o que a letra de lei nos dá a entender é que A (pai) não pode
celebrar negócio com B (filho menor) por ser representante legal deste. No entanto, o
que o espírito nos diz é que só não pode naqueles casos em que isto leva a prejudicar
o representado. Ora, sendo assim, A pode doar a B, pois, embora age em seu nome e
Alcides Gomes
22
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
também em nome do filho, este só tem benefícios e portanto a lei não quis vedar a
possibilidade.
A conclusão a que chegamos é que a lei (artigo 261.º) proíbe mais do que pretende,
pelo que o seu sentido deve ser reduzido.
Uma outra possibilidade aberta pela interpretação no que tem a ver com o seu
resultado diz respeito à perspetiva de desconsideração da lei, isto é, da possibilidade
de o juiz (ou intérprete) não aplicar a regra jurídica resultante da interpretação.
Há várias razões para isso, como a existência de uma contradição insanável entre o
significado literal e o espírito da lei, isto é, quando o preceito seja indecifrável ou
conduz a uma aplicação objetivamente inviável 40-41; igualmente se houver contradição
entre regras jurídicas, o que sucederia sempre que não fosse possível afastar nenhuma
delas de acordo com os critérios existentes para solucionar conflitos normativos,
afastando ambas as normas.
Alcides Gomes 23
Sumários sobre a interpretação da lei
sempre solução, ainda que seja por via de ponderação de interesses para invalidar uma
das normas42.
Existe um defeito da lei e esse defeito deve ser corrigido pelo intérprete, permitindo
obter a moralização e a justiça da lei. A ideia subjacente é a de que o legislador criou
uma norma que leva a um resultado que ele (legislador) não quereria, caso tivesse
42
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 381-382; Maria Luísa Duarte, cit., pág. 216.
43
José de Oliveira Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 3ª edição, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, pág. 333.
44
A. Santos Justo, cit., pág. 345. Para Oliveira Ascensão não é admissível em nenhuma circunstância a
interpretação ab-rogante valorativa, pois, segundo ele “Se o legislador pôs simultaneamente em vigor
duas regras, a valoração do intérprete não se pode substituir à do legislador, preferindo uma, ou
considerando as duas liquidadas”, cit., pág. 334.
45
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 381-382; A. Santos Justo, cit., pág. 346.
Alcides Gomes
24
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
v. Interpretação enunciativa
No entanto, devo dizer-vos que a expressão interpretação enunciativa vai além do que
é designado de interpretação reconstrutiva/extensiva e até deve ser entendida de forma
diferente, abrangendo apenas os casos, como lhe chama Santos Justo, “de exploração
das virtualidades da lei através do raciocínio e da intuição 48”. O mesmo que dizer por
via da argumentação ou de utilização de processos lógicos.
46
Menezes Cordeiro fala a propósito da interpretação corretiva em erros ou lapsos contidos na letra da
lei e defende que não está em causa a questão de corrigir a lei, pois isso levaria à interpretação criativa.
Aliás, vai mais longe e defende que as interpretações extensiva e restritiva têm já alguma coisa de
corretiva, embora conclua pela reserva da expressão «corretiva» para adequações que não consistam
em simples extensões ou restrições do âmbito da regra, mas a modificações de entendimento, cit., I,
pág. 731.
Dias Marques fala igualmente em interpretação corretiva, a propósito das interpretações extensiva e
restritiva, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª edição, Lisboa, Pedro Ferreira, Artes Gráficas, 1994,
pág. 146-147.
47
Ver Carlos José Batalhão, Direito - Noções Fundamentais, 2ª edição, Porto, Porto Editora, 2017, pág.
77.
48
A. Santos Justo, cit., pág. 346.
Alcides Gomes 25
Sumários sobre a interpretação da lei
Por via deste argumento, chegamos a dois esquemas diversos que são: “a minori ad
maius”, aplicável às proibições legais e defende que quem não pode o menos não
pode o mais, e “a maiori ad minus”, aplicável as permissões normativas - direitos e
autorizações, sustentando que a norma que permite o mais também permite o menos.
49
Oliveira Ascensão, cit., pág. 339.
Alcides Gomes
26
Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
1. Integração de lacunas
a) Determinação de lacunas
A perceção da questão, contudo, impõe-nos começar por explicar o que é uma lacuna,
em que circunstâncias existem, o que leva ao seu surgimento e para finalmente
vermos as soluções que devem ser dadas quando se constata a existência de uma
lacuna.
Iniciando pelo conceito da lacuna, deve-se dizer que consiste na situação em que não
existe regra no ordenamento jurídico para regular um caso jurídico (toda a situação de
vida que deve ser objeto de regulação pelo Direito).
Com a noção dada, reparem que se está a assumir-se que não basta uma ausência de
norma para concluirmos que há lacuna; para haver lacuna, é preciso que a questão
seja suscetível e esteja necessitada de regulação jurídica que não existe. Assim, se
estiver em causa uma questão que é do âmbito extrajurídico (pertencente a outra
ordem normativa), de um espaço livre de Direito, não se pode falar de lacunas.
Alcides Gomes 27
Sumários sobre a interpretação da lei
i. O legislador pode decidir não regular uma certa matéria quando a solução não
esteja amadurecida, isto é, o nível de estudo e consenso sobre aquela matéria e a
forma como é regulada pode estar a um nível incipiente ou gerar demasiadas
controvérsias que não permitem uma tomada de posição ajuizada e benéfica;
ii. Às vezes é a própria técnica legislativa utilizada que é deficiente, pelo que se
descura na previsão situações que deveriam ser previstas;
iii. Outras vezes faltar valor jurídico à fonte, isto é, se suceder que no ato da
adoção da fonte esta tenha padecido de vícios que a tornam inexistente ou inválido ou
de irregularidade que levam à sua ineficácia, não obstante ter havido uma aprovação
da norma, esta não produz efeitos e acaba por levar a um vazio; e
iv. Por fim, é a evolução social ou tecnológica que determina a lacuna, ou seja,
o mundo é dinâmico e o legislador não tem “capacidade” para acompanhar as
evoluções sociais e tecnológicas ao ritmo que esta vai surgindo, o que faz com que
surjam nas relações sociais e no mundo tecnológico (com implicação nas relações
intersubjetivas) questões que merecem ser reguladas e não conseguem porque o
Direito ainda não se encontra preparado para o efeito.
b) Classificação de lacunas
50
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 386.
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Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
ii. As lacunas normativas (da lei) correspondem à falta de uma regra jurídica ou
a uma incompletude numa regra jurídica e as de regulação (do direito) decorrem da
falta de todo um regime jurídico (por exemplo, de transporte de mercadorias e
produtos pelo carinho de mão e moto-carros).
O que está em causa é o momento em que surgiu a lacuna, com a adoção da lei ou
posteriormente à mesma adoção. Se no momento em que se adotou a lei, ela já era
incompleta, deixava de fora aspetos que devia regular, então a lacuna é inicial. Se
pelo contrário, a incompletude vem a surgir por causa da dinâmica da sociedade e da
vida, a lacuna é subsequente.
Alcides Gomes 29
Sumários sobre a interpretação da lei
interpretação é que se conclui que afinal o que estava aparentemente regulado, não
está51; e c) lacunas de colisão, de que já falamos anteriormente.
c) Integração de lacunas
1. Justificação
Detetada uma lacuna, teoricamente, pode o juiz adotar uma das duas soluções: ou
considera que não pode julgar o caso por falta de norma - é a chamada solução de non
liquet. A outra solução seria a de resolver o caso não obstante faltar norma ou regime
para o efeito52. É esta a solução consagrada legalmente, art. 8.º/1.
Então, já sabemos que não se pode negar solucionar um caso invocando a lacuna. O
juiz terá que integrar a lacuna para poder decidir. Para isso, é preciso que o juiz saiba
qual o “processo lógico-jurídico através do qual deve procurar a solução normativa
que preencha o vazio jurídico aberto pela identificação de uma lacuna 53”, enfim, deve
saber como é que deve integrar a lacuna, qual o caminho que deve seguir, os passos
que deve dar e tudo isso deve ser fornecido pela própria lei.
2. Critérios de integração
Sendo obrigatória integrar lacunas, uma vez que o juiz não pode abster-se de decidir
invocando falta da lei, o artigo 10.º vem dar a solução sobre a forma, os caminhos de
integração de lacunas. Segundo este preceito, a integração de lacunas deve se fazer
com recurso à analogia jurídica, n.º 1 e à regra hipotética, se a primeira não for
possível, n.º 3.
2.1. Analogia
i. Noção
51
A propósito desta espécie de lacunas, A. Santos Justo defende que está em causa uma situação de
relação entre lei geral e lei especial, isto é, a lei regula um regime geral e não considerou situações
especiais, razão pela qual, para estas situações, haveria um vazio, cit., pág. 349.
52
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 397.
53
Maria Luísa Duarte, cit., pág. 219.
Alcides Gomes
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Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
A analogia jurídica pressupõe, nos termos do n.º 2 do art. 10.º, a identidade de razões
da regulamentação legal entre o caso omisso e o caso previsto. Deve existir uma
comunhão de qualidades, ou seja, a razão que sustenta o caso previsto deve ser
adequada ao caso omisso, pelo que se conclui que são análogos os casos.
Lembrem-se que falamos da ratio legis, onde referimos que há sempre uma razão
porque se adota uma lei, um objetivo. Ora, recorre-se a analogia sempre que o caso
regulado e o caso omisso devam ter mesma consequência jurídica, por existir
comunhão de qualidades entre eles, por a solução do caso regulado ser adequada ao
caso omisso54.
ii. Espécies
54
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 405.
55
Como explica Oliveira Ascensão, as semelhanças devem ser mais fortes que as diferenças, cit., pág.
359-360.
Alcides Gomes 31
Sumários sobre a interpretação da lei
Na analogia legis, há um caso omisso cuja solução é encontrada numa outra norma
jurídica existente que regula um caso análogo. É a solução prevista no artigo 10.º/1 e é
a analogia em verdadeiro sentido.
A analogia juris assenta na procura de solução jurídica para o caso omisso com
recurso a princípios gerais. Parte-se de uma pluralidade de normas, a partir das quais
se retira o princípio comum aplicável ao caso omisso.
A doutrina portuguesa tem admitido como possível a analogia juris, referindo-se que
a sua diferença com a legis é apenas de grau, embora mais complexa56.
Miguel Teixeira de Sousa nega o recurso à analogia juris, porquanto entende que se
há um princípio aplicável ao caso em apreço não há lacuna, uma vez que os princípios
jurídicos são critérios de decisão de casos concretos 57.
Neste sentido, também Miguel Nogueira de Brito que sustenta que a analogia deve
passar pela indução de um caso particular a partir de outro caso particular. Ora, na
analogia juris, não é isso que sucede pois infere-se um caso particular a partir do
geral. Aliás, defende ainda que quanto mais o princípio obtido por indução se
encontrar estabelecido menos se terá de falar em lacuna58.
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Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
Em primeiro lugar, no Direito Penal, nega-se o recurso à analogia, art. 2.º/3 CP “A lei
que tipifique um facto como crime ou que determinar a sanção aplicável é
insuscetível de aplicação analógica mas admite interpretação extensiva”.
Esta proibição assenta no respeito pelo princípio nullum crimen sine lege (nulla poena
sine lege) de que falarão com pormenor e ênfase na disciplina de Direito Penal.
A proibição justifica-se no facto de uma exceção comportar sempre uma regra, pelo
que, tudo quanto não couber na exceção é reconduzido à regra 59. Seria o mesmo que
concluir que nunca haveria, portanto, lacuna nestas circunstâncias.
Mas esta conclusão não é absoluta, e até é enganadora, na medida em que pode (e há)
casos que têm mais semelhanças com a situação excecional, razão pela qual não se
justifica continuar a defender, sem mais, que pertencem à regra geral e que ali devem
ser enquadrados 60.
Para elucidar o que se quer dizer, vamos aproveitar o exemplo dado por Miguel
Teixeira de Sousa a propósito desta questão analisando a seguinte regra: “É proibido
estacionar, exceto aos domingos”. Esta regra seria igual se fosse formulada deste
modo: “É permitido estacionar aos domingos”.
Pela última formulação da regra, nada impediria a respetiva aplicação analógica aos
feriados; então, a questão será porque razões para impedir a aplicação analógica da
primeira regra?
59
Ver Oliveira Ascensão, cit., pág. 361.
60
Idem, cit., pág. 361.
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Sumários sobre a interpretação da lei
Ora, quando se diz que é proibido estacionar, abrindo exceção aos domingos, à partida
a permissão é excecional e, por ser excecional, não comportaria, nos termos do artigo
11.º, exceção61. Porém, parece absurda esta hipótese.
Por este motivo, não se pode simplesmente dizer que as regras excecionais não são
passíveis de aplicação analógica. É preciso encontrar uma justificação e perceber se a
mesma é aplicável em todas as situações ou se se deve fazer uma interpretação
restritiva do artigo 11.º.
Referimos atrás que as regras excecionais são ius singulare, referindo que este
consiste no direito que visa uma utilidade particular e que consagra uma solução
contrária à razão geral.
Esta noção permite-nos ter uma ideia sobre se a proibição é ou não absoluta. Para
entendermos se a regra excecional proíbe ou não a analogia temos que encontrar o
critério justificativo da proibição e este assenta na distinção entre exceção formal e
substancial,
De tudo quanto se disse, chega-se à conclusão de que o artigo 11.º deve ser
interpretado num sentido mais restrito do que a letra deixa entender. Conclui-se que as
normas excecionais não comportam aplicação analógica apenas quando contêm ius
singulare.
61
Miguel Teixeira de Sousa, cit., pág. 400.
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Introdução ao Estudo do Direito e ao Direito Consuetudinário
Estabelece o n.º 3 do art. 11.º que, se não se encontrar direito análogo, a lacuna deve
ser preenchida com recurso a norma que o intérprete criaria se houvesse de legislar
dentro do espírito do sistema.
Oliveira Ascensão defende que este preceito afasta o arbítrio do intérprete, isto é, não
é a sensibilidade do juiz que se deve tomar em conta, mas os valores da comunidade,
pelo que se requer dele a maior objetividade, e afasta a equidade 62.
Se se construir uma regra, esta deve ser geral e abstrata. Além disso, deve o intérprete
tomar em consideração os princípios formais e materiais que devem orientar a criação
normativa. A unidade e coerência do sistema devem ser salvaguardados.
Cria-se uma norma que se aplica ao caso concreto, mas com valores da ordem jurídica
e não pensando nas particularidades daquela situação in concreto.
3.1. Legislativos
Tendo sido constatada uma lacuna, além dos processos sistemáticos analisados atrás,
pode-se recorrer outras vias (extra-sistemáticas) para a sua integração. Isto quer dizer
que há formas diversas de integrar lacunas, uma a partir do próprio sistema, ou seja,
sem sair da ordem jurídica existente (normas e princípios vigentes), a que se designa
de processo sistemático, que inclui a analogia e a regra hipotética (ou norma que o
intérprete criaria). Outra forma é o recurso a um processo extra-sistemático, que já
não tem a ver com o processo de aplicação (ou melhor, de interpretação) do direito.
62
Oliveira Ascensão, cit., pág. 373 e ss.
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Sumários sobre a interpretação da lei
A criação normativa passa por integrar a lacuna por via de elaboração de normas
criadas pelos órgãos legislativos. Haveria uma comunicação do juiz ao legislador
sempre que faltar norma e este se encarregaria de adotar uma, prevalecendo-se o
princípio da separação de poderes - em França esta foi a solução defendida pela
Escola de Exegese, através doinstituto do référé législatif, entretanto não adotada63.
É fácil perceber o recurso a este método, delineado desta forma, pois, colocaria em
causa a segurança e certeza jurídicas - as regras devem ser anteriores aos casos por
elas reguladas, pois só assim os destinatários sabem a conduta que se lhes espera.
Este método porém é válido para criação de normas para o futuro, pondo fim à lacuna
existente.
3.2. Discricionários
Pode ser também resolvido o problema de existência de lacuna, por via do poder
discricionário atribuído a uma entidade administrativa a quem se permite resolver
casos, segundo os critérios de oportunidade ou conveniência.
Não se pode falar com rigor em lacuna, porque é a própria lei (Legislador) que abriu
esta possibilidade, dando à Administração uma margem de livre decisão, isto é, não
lhe fixa com rigor e rigidez os termos de decisão.
3.3. Equitativos
Por fim, podia-se recorrer à equidade, que permitiria ao juiz resolver o caso com
critérios equitativos: que tem em conta as circunstâncias do caso que carece de
solução.
Devo dizer-vos que a equidade tem outras funções, de acordo com a doutrina
tradicional, além desta (integradora) que estamos a estudar, nomeadamente, função
corretiva da lei). é uma solução afastada no nosso ordenamento jurídico, como atrás (a
propósito da norma hipotética) foi referida, cfr. art. 10.º/3.
63
Para maiores esclarecimentos, ver Miguel Reale, cit., pág. 273 e ss.
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