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1. A associação entre gênio e loucura, ainda que não exatamente nestes termos,
pode ser vista em diversos autores, não apenas modernos, mas também antigos.
Em que pese a diferenças, por exemplo, entre o conceito de gênio na Antiguidade
Clássica e o conceito de gênio após o Iluminismo, tomando-se estes dois momentos
como balizas importantes, certas conexões autorizam a pensar em uma tradição de
longa duração, aproximando as ideias em questão. Apenas para ficar com algumas
passagens de relevo, falarei um pouco sobre traços da relação entre gênio e loucura
em autores anteriores a Fernando Pessoa e Artaud, representantes de posições
modernistas a respeito do problema, os quais, sobretudo, o primeiro, merecerão uma
atenção especial. Entre os outros autores estarão, de um lado, Platão e o enciclopedista
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2. Começo com um breve comentário sobre o Íon, de Platão. Neste diálogo, cuja
redação pode ser situada no século IV a. C., Sócrates, interrogando o rapsodo que
dá nome ao texto, discute o caráter divino do poeta, afirmando ser ele, na tradução
portuguesa de Victor Jabouille, «uma coisa leve, alada, sagrada» (PLATÃO, 1988: 51),
que «não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da
razão» (ibid.). A formulação é bastante atraente, sobretudo para os próprios poetas,
além de ser de remota tradição, associada a antigos mitos, a crenças sobre quem seriam
os portadores das palavras essenciais de uma comunidade, intermediários entre os
homens e os deuses. Segundo ela, o poeta, para alçar o voo que o faz ser mais do que
os homens comuns, aproximando-se das divindades, precisa perder a razão. Tomado
por um poder alheio a si mesmo, um sopro que o habita, sem que saiba como, tem ele
a função de dar a conhecer à sua comunidade mistérios de ordem sobrenatural.
Embora desprovido de arte, de ciência, o poeta se apresentaria, em mais de um texto
de Platão, efetivamente, como um ser especial, dotado de uma origem divina. Ainda que
esta não tenha sido suficiente para defender a presença do poeta na República, na obra
mais expressiva do filósofo grego, a ideia permaneceria. Acompanhando o raciocínio
de Ernst Robert Curtius sobre o Fedro, ter-se-ia, em Platão, com efeito, a exposição
pioneira da «teoria da loucura divina do poeta» (CURTIUS, E., 1979: 505), a qual, com
«outros atributos da mitologia antiga» (ibid.), chegaria à Idade Média e a atravessaria.
Saltando algumas porções de centenas de anos, mas não esquecendo a recuperação
humanista ou renascentista de muitas das obras mais conhecidas dos autores gregos
e latinos, bastante influentes nos séculos XVI e XVII, uma sorte de teoria do gênio
se encontra já relativamente sistematizada entre os iluministas franceses, com o
verbete da Enciclopédia dedicado ao assunto. Nele, hoje atribuído a Jean-François de
Saint-Lambert, relaciona-se o termo a uma forma de talento singular, mais ligado à
criação do que à compreensão e não reduzível às normas do bom gosto, que regem
ou deveriam reger a conduta dos demais indivíduos. Sublinha-se, então, uma clara
tendência de cisão entre a pessoa que se julga ter um talento superior e a ordem
estabelecida, destacando-se um necessário desconcerto, assim como a incompreensão
dos contemporâneos. Sugere-se a existência de singularidades irredutíveis, não
integráveis pacificamente ao conjunto da sociedade, marcadas pela recusa ou pela
dissonância em relação às instituições e práticas representativas da ordem, pilares
da normalidade. Fala-se, ainda, significativamente, no poder do excesso, associado à
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1 A tradução, desta e de outras passagens, seja em francês, seja em inglês, corre por minha conta. No rodapé,
apresento os originais: Eis o texto da Enciclopédia: «Les hommes de génie forcés de sentir, [...] portant à l’excès
leurs desirs, leurs esperances, [...] me paraissent plus fait pour renverser ou pour fonder les états que pour les
maintenir».
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2 É em um trecho do poema «Adieu», fechando Une saison en enfer, que se diz: «Il faut être absolument
moderne».
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autor)3, defendendo o desvio em relação ao «bom caminho» (id.: 83)4, assim como
a execração dos ancestrais5, julgados versificadores, mas não verdadeiros artistas.
Fazendo jus ao epíteto de poeta maldito, sem recuar diante da extravagância, com
postura provocativa, afim ao desejo de chocar, o autor se propõe a transformar a
própria alma em algo monstruoso6, a se tornar um crápula, avesso às leis de seu tempo
e de sua civilização. Somente forçando os limites de si mesmo, tornando-se «o grande
doente, o grande criminoso, o grande maldito» (id.: 89)7, o poeta acredita poder
chegar ao contato com «as coisas inauditas e inomináveis» (ibid.)8, meta última para
todos aqueles que se queiram, em sua perspectiva, «poetas do novo» (RIMBAUD, A.,
1999: 92)9 (grifos do autor), suficientemente fortes para «descobrir uma linguagem»
(id.: 91)10.
3 Tal desregramento se apresenta como condição para se chegar ao desconhecido: «Il s’agit d’arriver à l’inconnu
par le dérèglement de tous les sens».
4 No idioma de Rimbaud: «la bonne ornière».
5 Reivindica-se a liberdade, para os novos poetas, de execrar os ancestrais: «[...] libre aux nouveaux! d’execrer
les ancêtres [...]» (RIMBAUD, A., 1999: 87) (grifo do autor).
6 É o que afirma o poeta, na segunda das cartas ditas do vidente, em maio de 1871: «Il s’agit de faire l’âme
monstruese» (id.: 88).
7 Em francês, no original: «le grand malade, le grand criminel, le grand maudit».
8 Em francês: «les choses inouïes et innommables».
9 No texto original: «poètes du nouveau».
10 Na língua de Rimbaud: «Trouver une langue».
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11 O texto original é escrito em inglês: «thinks more accurately, feels more deeply, wills more instantly».
12 Em inglês: «imaginative».
13 No original: «strongly creative».
14 No inglês de Pessoa: «profoundly original».
15 No texto de Pessoa: «simply incapable of adaptation».
16 Veja-se o original: «Men of genius both see more clear and dream more than common men».
17 No inglês de Pessoa: «a greater desire to comprehend».
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Em alguns textos, exploram-se sintomas como uma certa «mania de dúvida» (id.: 48)18,
da qual se observariam vários traços presentes na constituição do gênio. Dá-se
realce, neste ponto, a características como a hesitação e a indecisão, consequências
de um constante interrogar a si mesmo, um «colocar a si mesmo muitas questões»
(id.: 51)19, as quais se acompanham da «ansiedade para achar [...] resposta» (ibid.)20.
Na perspectiva do autor, são comuns, entre os homens de gênio, assim como entre
indivíduos que apenas sofrem da mania de dúvida, mas sem a contrapartida criativa
que caracteriza os primeiros, elementos como a insanidade e o nervosismo, os quais
resultam, entretanto, não da falta de um intelecto privilegiado, mas de um «abuso
dos poderes de raciocínio» (ibid.)21, do «exaggero de uma faculdade» (PESSOA, F.,
2006: 137).
Com estas colocações, volta-se à natureza da ligação, no homem de gênio, entre
a consciência e a imaginação, a primeira sendo responsável pela clareza de visão,
conquistada, não raro, a duras penas, com a insistência do pensamento, a segunda
mais relacionada à parte criadora do fenômeno, à «invenção»22 (id.: 153) (grifo do
autor). O gênio, nesta perspectiva, que inclui a importância da ideia de originalidade,
não poderia existir sem a atividade que torna manifesta a criação23, a qual, por sua
vez, remete, novamente, à loucura24. Pessoa, mencionando Carlyle e Blake, afirma que
a «parte creadora do genio é a parte de loucura» (id.: 65) (grifo do autor). Em outro
fragmento, este já apontando para a ação dos homens de gênio sobre a sociedade
de seu tempo, implicando uma abertura ao futuro, afirma-se que «os creadores de
impulsos sociaes são os creadores da sem-razão» (id.: 64).
Aos homens de gênio, com efeito, é atribuída a ligação com o futuro, sendo eles vistos
mesmo como homens «do futuro» (id.: 61). Segundo Pessoa, estas figuras sentiriam
«antes dos outros homens a direcção de uma sociedade» (id.: 71) (grifo do autor),
5. Resta-me, pois, agora, amarrar alguns fios de contato entre Fernando Pessoa e
os autores de quem falei alguma coisa, ao longo do texto. As afinidades com Artaud,
para começar, são bastante evidentes, confirmando a ideia de que fazem os dois
parte de um mesmo universo de valores e posições, próprios dos modernistas da
primeira metade do século XX, os quais prolongam ainda formas de pensar advindas
da centúria anterior. Não apenas ambos os autores, efetivamente, discorrem sobre os
perigos que o gênio representaria para a sociedade de seu tempo, como concebem
a positividade deste perigo, a importância de uma ação convulsionante, sem a qual
o mundo, necessitando de transformação, não deixaria de ser o que é. Em ambos,
de modo significativo, ressalta a ideia de uma lucidez própria do homem de gênio,
superior, em muitos sentidos, à inteligência do homem comum, menosprezado tanto
em um quanto no outro autor, os quais, não raro, identificam-no com o burguês,
senhor dos negócios do mundo moderno, marcado, segundo Artaud, pela «inércia
burguesa» (id.: 9), pelo «conformismo larvar da burguesia» (id.: 10).
Pessoa, entretanto, repare-se, mostra-se mais meticuloso do que Artaud, no
conjunto dos seus raciocínios, fazendo distinções que este último não explora, seja
a que respeita à diferença entre o gênio e a simples loucura, seja aquela atinente à
separação entre o gênio e o criminoso, próximos, em sua conduta antissocial,
mas distintos no que tange ao poder de criação e à sua manifestação, de caráter
positivamente social, presente em um, e ausente no outro. Neste caso, as afinidades de
Artaud parecem ser mais evidentes com Rimbaud, e não, propriamente, com Pessoa,
cuja análise da constituição do homem de gênio, informada mesmo por referências
médicas e filosóficas, vai mais além.
Sob outro aspecto, se Pessoa explora a ligação com o futuro que seria própria
do gênio, Artaud fala em suas «faculdades de adivinhação» (id.: 9), os dois, neste
sentido, aproximando-se também de figuras tão díspares quanto são Kant e Rimbaud.
Naturalmente, o filósofo alemão não aprovaria o desregramento ou a monstruosidade
de que fala o poeta francês, indícios de um necessário afastamento em relação ao
gosto, bem como de uma postura mais radical, excessiva, do que equilibrada.
Relembre-se, todavia, que já em Kant se destaca a importância assumida pela ideia
de originalidade, articulada à recusa das «regras ou [...] formas prontas da tradição»
(SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), conectada à oposição «ao espírito de imitação»
(KANT, I. apud SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado), da mesma forma que se realça
o caráter de exemplaridade daquilo que cria o homem de gênio, fornecendo modelos
para os que vêm depois, no futuro. Se, para Rimbaud, novos poetas, desde que se
disponham a enfrentar o tortuoso caminho da busca pelo desconhecido, começam
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«pelos horizontes onde outro foi abatido» (RIMBAUD, A., 1999: 89)26, para Kant, os
produtos do gênio, embora «inimitáveis», constituem «os únicos meios de orientação
para a posteridade» (SÜSSEKIND, P., 2009: não paginado).
Quanto a outros autores de que falei, é evidente a relação que existe entre Hegel e
Baudelaire, em particular, no que tange à posição que a fantasia assume, no processo
criativo, em ambos, como faculdade essencial. Para além disso, embora mais aberto à
articulação entre a produção poética e o mistério ou a magia, alijados de um mundo
controlado pela racionalidade, Baudelaire, como Hegel, não concebe a existência de
verdadeira poesia sem que o poeta tenha domínio do seu fazer, sem que se experimente
uma funda concentração do intelecto, voltado para o «trabalho» (FRIEDRICH, H.,
1991: 39), a «construção sistemática» (ibid.), a «construção formal» (ibid.) do poema.
Neste sentido, a afirmação de Hegel, de que seria «disparate acreditar que o autêntico
artista não sabe o que faz» (HEGEL, G., 1999: 283), refutando Platão, encontraria
ressonância na estética do poeta francês. Em particular, neste ponto, ambos também
se aproximariam de Pessoa, o qual não nega a importância do intelecto no processo de
composição poética, como quando, elogiando aquele que afirma ser o «maior homem
de génio» (PESSOA, F., 2006: 439) (grifos do autor) da Península Ibérica do século
XIX, Antero de Quental, claramente com ele se identificando, afirma se tratar de «um
dos mais conscientes, talvez o mais consciente poeta que jamais existiu» (id.: 438).
No que diz respeito ao iluminista Saint-Lambert, por sua vez, a oposição entre o
que se vê em seu verbete, na Enciclopédia, de um lado, e os alemães Kant e Hegel,
de outro, faz com que se possa dar relevo à posição intermediária de Pessoa.
Aproximando-se do francês, o poeta não pretende aderir às restrições da noção de
gosto, ainda associadas ao belo e à perfeição, adotando, ao mesmo tempo, a perspectiva
da cisão marcante entre o homem de gênio, em sua firme singularidade, e o vulgo,
incapaz de compreender aquele que estaria destinado a alterar o estado de coisas de
seu mundo, abrindo as portas para o futuro. As menções de Saint-Lambert a elementos
como a irregularidade ou o caráter «selvagem» (SAINT-LAMBERT, J.-F., 2013: não
paginado)27 dos produtos do gênio, a referência aos «edifícios atrevidos que a razão
não arriscaria habitar» (ibid.)28, de fato, parecem mais próximas de Pessoa, e mesmo
de Rimbaud, do que de Kant e Hegel, com os quais, entretanto, o enciclopedista, assim
como o poeta de Orpheu, não deixa de compartilhar algumas posições. Dentre estas,
vale destacar, por exemplo, a percepção da importância da imaginação, ou da fantasia,
BIBLIOGRAFIA
Bibliografia Ativa
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de Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim.
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Editorial Inquérito.
RIMBAUD, Arthur (1995). Poésies. Une saison en enfer. Illuminations. Edition de
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SAINT-LAMBERT, Jean-François de (2013). «Génie». In: DIDEROT, Denis;
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Raisonné des Sciences, des Arts et des Métiers, par une Societé de Gens de Lettres.
Bibliografia Passiva
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FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX
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SÜSSEKIND, Pedro (2009). «Considerações sobre a teoria filosófica do gênio».
In: VISO – Cadernos de estética aplicada, n. 7, jul.-dez. 2009. Não paginado.