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NO BARRO BRANCO De que valem mil mortos por dia? Morre de vez, em paz encerra tua agonia HN. Bialik K. conhece 0 quartel ha mais de cinquenta anos. Nunca imaginou que um dia ali entr: pacotes de cigarros para presos p chegou ao Brasil, era uma guarnicdo pequena, en- carregada da invernada na qual a Forga Publica criava seus garbosos cavalos alazio. Quase diariamente K. percorria com sua charrete de mascate a estrada de terra que atingia a invernada pelo lado oposto ao da guarnicao. Conhecera alguns pracas ¢ o comandante, tenente ‘ Nao havia, entio, para o centro sé passavam pela avenida Cantareira, @ ‘inica asfaltada. As mulheres apreciavam as visitas do mascate, com seus panos bonitos, blusas.e camisolas, que vendia a prestagao. Fascinava-o essa freguest 0s quintais com jabuticabeiras, as portuguesas em suas hortas de couve, as mulatas; na Polonia nunca € 0s 6nibus x70 havia visto uma mulata. Ouvia suas hist6rias sem se importar se nada compravam. Voltava regalado de magos de couve e cachos de banana, Mal desatrelava a égua, repassava com o ir- mio mais velho, na casa vizinha, as peripécias do dia, 08 tipos que conhecera e suas histérias. Depois escre- via, tudo em ifdiche, e publicava nos jornais ifdiche de Siio Paulo, de’Buenos Aires, até de Nova York. As- sim se tornou conhecido pelos judeus do Bom Retiro. ‘Um deles lhe arranjou o sécio com capital para mon- K. entrou com a freguesia. Je ento havia mais ruas asfaltadas, Eram os fre gueses que iam & loja. Comparavam 0 K. de antes do sumigo da filha com o K. de depois e se condofam. Antes, K. queria ouvir suas historias, Agora eram eles tinham que ouvir seu lamento. Um deles, 0 sargento Ademir, de familia de fregueses antigos, revelou a vinda dos presos’politicos a0 Barro Branco. Eram quase trinta, disse. Quem sabe algum deles sabe o que aconteceu? © comandante, o coronel Aristides, era seu cunhado, talvez deixasse o velho visitar os presos, conversar com eles. © comandante autorizou, embora o regulamento no permitisse, porque K. ndo era parente de ne~ nhum deles. Eali estava K., ansioso, num sébado de sol quente, com seus pacotes de cigarros e barras de chocolate. Construcées grandes, que ele nao conhe- cia, ocupavam parte da antiga invernada. Ali éo Hos~ pital da pa, explicou o sargento Ademir, que o acompanhava, apontando para 0 edificio maior, de dois pavimentos im O presidio ficava adiante, quase no limite do grande patio, Era a priséo da prépria PM - explicou o sar gento -, onde encarceravam policiais infratores. Uma ala, semi-isolada, fora separada para os presos pol ‘A cada passo em directo a essa ala K. retrocedia na ‘memiéria aos tempos de sua prépria prisao na Pold- nia. Lembrou-se novamente de quando o arrastaram acorrentado pelas ruas de Wloclawek para humilh-lo perante os comerciantes. Agora também se arrastava, alquebrado, embora sem correntes. Sentia-se muito cansado. Haviam se passado catorze meses da impen- sfvel desaparicao da filha. jara-se ao mesmo partido sionista de esquerda que ajudara a fundar na Polonia - motivo de suas duas prisdes na juventude - mas ocupava-se quase que sé das atividades culturais, do cultivo da Iingua ifdiche. Tudo o que fizera nesses cinquenta anos nio passou de um autoengano, assim ele agora avaliava, Seus livros, suas novelas, seus contos, seu fascinio por esse fim de mundo que acabou por en- golir sua filha, : Sentia a perda prematura da filha como punigdo, por seu coragao estar sempre na literatura, nos amigos escritores. O filho mais velho logo 0 repudiou. Partiu ressentido e nunca se reconciliou com o pai. K. no soubera lidar com sua rebeldia, suas molecagens na escola. 0 outro filho era bem-comportado, mas en- simesmado, falava pouco e também se foi. K. se apegara a filha. Tudo o que nfo dera aos: filhos homens e a mulher doente de céncer, passou ‘a. compensar com a filha. Mas agora ele vé que essa m devogio a filha jé era uma armadilha do destino, a tragédia em andamento, primeiro fazendo-o ligar-se ainda mais a ela para s6 depois a sacrificar. K. agarra com forca a sacola com as caixas de ci- garros e as barras de chocolate. Estilo se aproximando daala semi-isolada dos presos politicos. 0 sol o ineo- moda. Transpira profusamente pela testa, pelo rosto todo, Tira do bolso um lenco com a mao esquerda e ‘enxuga-se. Entdo se lembra da primavera quente po- onesa em que a mie Ihe foi levar na prisio as comi- das do Pessach. Eram dez irmos, vivendo no da miséria, mas a mie, infatigvel, nunca deixou de Ihe levar nos dias de visita um po ou um ovo cozido enos dias de festa uma comida especial. Naquela prisio polonesa ele descobriu a impor- tancia dos cigarros e barras de chocolate. Era 0 que ele trazia agora, aos presos do Barto Banco. Levava na sacola a sua identificag2o, a sua memoria, a sua pres- tagdo de contas; um ciclo de vida se completava, o fim cio e no meio nada, cinquenta anos de nada. K, sentia-se muito cansado, As pernas fraque- jando, unia seiisago de tontura. Chegou ao pavilhdo ainparado pelo sargeito. (Os presos jo esperavam; todos homens e a maio- wens. Estavam bem-vestidos, barbeados. Mas K. adivinhou pela dureza dos semblantes que estavam. encarcerados havia muito tempo. Conhecia esse olhar, que nao se confunde com nenhum outro. Era o seu olhar de cinquenta anos atris. O sargento explicou que depois de uma greve de fome os presos conseguiram um tratamento melhor, 13 podiam circular pelo pavilhio, haviam organizado uma cantina coletiva, tinham aulas de um monte de coisas. Muitos deles eram professores. Depois dessa explicagdo, o sargento se foi. ‘Armaram uma roda de cadeiras, K. sentou-se & frente. Depositou no piso a sacola e comecou logo a contar a histéria que jé havia repetido tantas vezes. Mas era como se a contasse pela primeira vez. Fitava ‘um preso, depois outro. Tropegava nas palavras. No meio da fala safam palavras do ifdiche. Repetia como um reftéo, mein tiere techeterl, minha filhinha querida. Sentia de volta o sotaque dos primeiros dias de Brasil Os presos ouviam em siléncio, de olhos fixos no rosto afogueado de K., como que hipnotizados pe- Jas drbitas intumescidas de seus olhos vermelhos € timidos. Muitos nunca mais esqueceriam aquele mo- mento. O sofrimento do velho os impressionava. Um deles, Hamilton Pereira, descreverid décadas depois “o corpo devastado de um ancio;’sustentado por dois olhos - duas chamas ~ que eram a encamnagio do desespero”." Alguns conheceram sua filha e 0 ma- rido, eram da mesma organizagio clandestina; todos conheciam a histéria, inclusive quem os havia dela~ tado. Sabiam que jé estava morta havia muito tempo. Derepente, K. comecoit a solucar. Os presos man- tiveram siléncio. Os olhos de alguns deles se umede- ceram. K. curvouo dorso para a frente e levou as maos 41 Pedro Tierra, Poemas do povo da note. So Paulo: Fditora Funda~ ‘90 Perseu Abramo, 2009. 14 a0 rosto. Nao conseguia estancar os solugos. Nao tinha forga para nada, Sentia-se muito cansado. Ento se curvou um pouco mais e tentou distribuir os pacotes de cigarros, as barras de chocolates, que estavam no chao, talvez para dissipar o choro. Nesse momento ele caiu. Os presos da frente acorreram assustados. Sem largar o pacote de cigarros, que agora agarrava teimo- samente com a mio esquerda, K. estirou-se no cho, respirando pesado. Trés deles o ergueram bem devagar por baixo do dorso, e assim, na horizontal, o levaram para a cela adjacente, deitando-o num dos beliches. K, manteve os olhos fechados por quase dez mi- nutos, sempre respirando fundo, 0 peito arfando. Depois suas pélpebras se abriram e ele percebeu 20 seu redor os presos politicos; avistou atris deles, no alto da parede dos fundos, a familiar janelinha gra~ deada da cela trazendo de fora promessas de sol ¢ li- berdade. Sentiu-se em paz. Muito cansado, mas em paz. Estendeu aos presos o pacote de cigarros. Depois, ‘suas mos se abriram e seus olhos se cerraram. 15

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