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Rio de Janeiro
2004
3
FICHA CATALOGRÁFICA
CDD: 303.484
4
BANCA EXAMINADORA
Autora:
Sonia Lúcio Rodrigues de Lima
Título:
Metamorfoses na luta por habitação: o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Aprovado por:
_______________________________________
Prof. Dr. Ana Clara Torres Ribeiro - Orientadora
(Doutora em Ciências Humanas pelo Departamento de Sociologia / USP)
_______________________________________
Prof. Dr. Adauto Lúcio Cardoso
(Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas / USP)
_______________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Curvelo Lopes
(Doutor em Educação / PUC-RJ)
_______________________________________
Prof. Dr. Maria Lídia Sousa da Silveira
(Doutora em Ciências Sociais / UNICAMP)
_______________________________________
Prof. Dr. Luciana Corrêa do Lago
(Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas / USP)
Rio de Janeiro
2004
5
Aos meus filhos Jordani e Lúcio e ao meu pai, Ezequias, com gratidão.
6
AGRADECIMENTOS
Aos amigos e amigas, Cida, Cristina, José Carlos, Lídia, Maria Auxiliadora, Kátia Lima,
Maria Fernanda, Marina, Wanda e Sara pela solidariedade, acolhimento e estímulo.
À professora Ana Clara Torres Ribeiro – orientadora desta tese –, com quem tenho procurado
aprender sobre a essência do ofício de ensinar.
Aos professores que participaram deste trabalho, com críticas e sugestões: Adauto Lúcio
Cardoso, Aluísio Teixeira, Maria Aparecida Tardim Cassab, Maria Lídia Sousa da Silveira,
Maria Cristina Miranda, Marilda Villela Iamamoto, Marina Barbosa Pinto, Sara Granemann e
Sonia Maria Taddei Ferraz.
Aos meus alunos da Escola de Serviço Social da UFF-Niterói, pela rica interlocução que têm
me proporcionado.
À Clarice Cassab, pela parceria no trabalho de pesquisa de campo, pela ajuda na revisão do
trabalho e, especialmente, pela troca, sempre franca e generosa.
Às minhas queridas colegas de turma de doutorado, Lenise, Ana Isabel, Regina, Alice, Ângela
e Andréa pelo imenso companheirismo.
7
RESUMO
as cidades tendem a ganhar nova dimensão, tem início a questão da habitação. Ela é um
pauperismo.
históricas da segregação social e as agruras de uma época que pode ser caracterizada como
eqüidade social. É neste contexto que emerge o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.
ABSTRACT
The brazilian urban growth occurred, historically, based on a deep social inequality.
Since the appearance of the free work on the brazilian society, when the cities tend to get new
dimensions the dwelling question begins. This is a component of the social relations
established by the capitalist order, symbols of social, cultural and political processes of a
The way of production of the urban area on the metropolitan region of São Paulo,
cause of a huge social disparity, can be considered an emblematic example of the nature of
this society. On it, it is posible to verify, in a strongn way, the historical signs of the social
segregation and the roughnesses of a period that can be characterized as a time in which the
this context that “o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto” appears. Its particularities,
possibilities and limits are the aims of the analysis purposed on this thesis.
9
Sumário
Introdução 15
1.1 A crise social contemporânea e sua repercussão sobre a vida dos pobres nas
grandes cidades 26
de São Paulo 82
Referências 238
11
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE TABELAS
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1- RMSP- Estrutura do emprego, por gênero e grau de instrução –1990 e 2002. p. 99
INTRODUÇÃO
realidade brasileira atual e ao ceticismo, presente tanto no debate político quanto no debate
recurso público e, aos poucos, foi surgindo o desejo de investigar processos referentes às
sociais que acionam a via da ação direta, como meio para se impor como sujeito na disputa
pelo solo urbano e pelo recurso público, tornou-se instigante, dado que tais movimentos
demonstram, com suas práticas, uma postura de negação das concepções políticas
como estratégia da ação política. Descobrir o significado deste ‘fazer político’ na luta por
habitação passou, então, a ser a questão que movia o interesse pela pesquisa.
com as quais defrontam-se todos aqueles que lutam contra a repartição desigual dos bens e
recursos sociais e refletir sobre as possibilidades de sua superação, torna-se necessário tentar
cotidiano da ação profissional e da prática militante, a partir de uma perspectiva que defende
Este intento tem por referência, mais ampla e profunda, a crença na possibilidade
da transformação social e a compreensão de que o recurso à teoria social marxista, como fonte
Nessa busca, considera-se importante tentar escapar das armadilhas dos discursos
excessivamente abstratos e genéricos nos quais, muitas vezes, acaba-se caindo ao tentar
por meio do esforço de superação do formalismo teórico que impregnou parte das elaborações
do Serviço Social por ocasião do processo de renovação intelectual, realizado pela categoria,
crítica ao formalismo, por este ser desprovido do conteúdo das práticas e dos sentidos da ação
17
dinâmica social de forma mais íntegra e concreta e, ao mesmo tempo, tem contribuído para
redemocratização, para a qual contribuíram os movimentos sociais do final dos anos 70.
sociedade erigida pela racionalidade do capital. Este trabalho é parte deste esforço de
participação dos profissionais de Serviço Social neste campo teórico e político e sua intenção
A partir do final dos anos 80 e durante a década de 90, foram constatadas algumas
Brasil e México. Estas modificações expressaram-se por meio da aparição de novas formas de
atuação, novos atores e lutas e pela retração das reivindicações sindicais, especialmente
e, anos depois, a emergência e expansão do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
18
escalas de intervenção distintas daquelas expressas pelos movimentos sociais urbanos dos
Trabalhadores Sem Teto e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e a ação dos
chamados novos movimentos sociais dos anos 70/80. Para os primeiros, a luta por moradia
por meio da ocupação de imóveis públicos e privados, como forma de forçar a negociação, é
parte central do conjunto dos princípios organizativos que orientam a ação; já para os
movimentos sociais urbanos dos anos 70/80, a participação na formulação das políticas
Estas mutações nas práticas e na cultura política dos movimentos sociais têm
ocorrido num contexto marcado pelo aprofundamento das contradições sociais, que se
pesado da América Latina e de multidões que não têm onde trabalhar, não têm o que comer e,
A escolha do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Grande São Paulo como
referência empírica deveu-se ao fato da organização estar mais consolidada nesta região.
história da sua atuação, neste município, mostraram que o Movimento viveu um processo de
na sua condução, da cooptação de parcela dos assentados praticada pelo governo estadual e
procuramos reconstruir os processos sociais nos quais se insere a problemática estudada. Por
das carências sociais enfrentadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, visando
teleologia; a concepção que apreenda sociedade capitalista como uma organização que tem no
trabalho em geral sua base histórica e material e a decorrente afirmação desta categoria como
trabalho.
20
brasileira, notadamente, do segmento de classe que compõe, em grande parte, a base social do
uma das fontes do pauperismo nas sociedades capitalistas; deriva daí a necessidade de
apreendido, tanto quanto a riqueza, como resultado do desenvolvimento das forças produtivas
fundada no capital.
de constituição das classes sociais nas sociedades periféricas e de industrialização tardia como
excedente.
periférica da Região Metropolitana de São Paulo. Conforme analisa Martins (2002), este
conhecimento empírico das formas de inserção, mesmo que indiretas, dos participantes do
corrente do termo exclusão, por obscurecer a raiz estrutural e estruturante das perversas
condições sociais vividas pelos segmentos que compõem a base social do Movimento. De
movimento social.
maneira em todas as formações sociais, o que exige o exame das suas formas particulares.
como questão concreta e particular e, ao mesmo tempo, parte constitutiva do conjunto das
madura.
primeiro capítulo, tratamos a questão habitacional na sociedade brasileira atual. Nosso intuito
central com esta exposição é demonstrar que a elucide ação desta questão requer concebê-la
como uma síntese de múltiplas determinações, uma vez que expressa, em sua especificidade,
tardia.
curso e suas conseqüências para as condições de vida da classe trabalhadora, em seus vínculos
com as lutas que vêm sendo implementadas coletivamente pelos seus segmentos mais
atual conjuntura.
24
CAPÍTULO 1
questão habitacional na sociedade brasileira atual. Seu objetivo é demonstrar que a questão
pelos diferentes segmentos e frações de classe, é expressão dos conflitos sociais resultantes da
estruturação do urbano consoante a lógica da acumulação capitalista. Por ser parte integrante
pois, sua existência e agudização fazem transparecer a unidade, tensa e contraditória, entre os
interesses dos proprietários do solo, dos empresários capitalistas de diversos setores e ramos
trabalhadora.
todos aqueles que lutam pelo direito à moradia, tão relevante na garantia da reprodução;
- a compreensão de que a questão social mais ampla, muito embora se revele por
meio de múltiplas formas e expressões, não pode ser inteiramente compreendida com base na
apreensão de uma ou outra manifestação dos conflitos que a expressam, o que torna
mostrar de que forma a sociedade brasileira se inscreve neste processo associado, a atual fase
determinantes históricos de seus segmentos mais pauperizados. Por fim, apresentaremos uma
implicações, enquanto parte das lutas empreendidas pelas classes trabalhadoras urbanas na
sociedade brasileira. Visamos com esta exposição, sobretudo, demonstrar que esta questão
não deve ser apreendida como um fenômeno transitório ou conjuntural, posto que expressa,
além de acarretar o aumento das distâncias sociais entre ricos e pobres, tem fortalecido a
percepção de que esse fosso entre condições de vida é natural, destituído da ação dos homens
alcançado pela humanidade, proporcionar condições de extremo bem estar para poucos e uma
terrível privação, não só econômica, mas também social, política e cultural, para a imensa
de ser e pensar dos homens. Lessa (2001) assinala, como decorrência desta crise, o
sentimento de impotência diante da miséria e da violência, hoje cada vez mais visível nas ruas
determinantes da crise social. Para estes, vive-se o esgotamento deste modelo de gestão das
social. Outros consideram que a crise é de natureza fiscal e propõem a redução dos gastos
sociais públicos.
2001, p. 21). Partem da compreensão de que as fases de depressão e de recessão não resultam,
do sistema capitalista1. Para os autores que analisam a vida social com base neste prisma
analítico, o deslindamento dos determinantes deste abismo crescente entre as classes sociais é
uma das condições para o alcance da transformação radical dos pilares que as sustentam.
conceitua a sociedade regida pelo capital como um controle social metabólico, refratário a
qualquer regulação inibidora de sua expansão. Esta é uma condição estrutural necessária à
econômico não atinge as suas determinações causais porque, de acordo com a ótica destes
[...] razão pela qual o capital é estruturalmente incapaz de tratar causas como
causas [...] é porque ele [...] é a sua própria funde ação causal, uma real e
perversa ‘causa sui’. Qualquer coisa que possa aspirar a legitimidade e
viabilidade sócio-econômica deve ser acomodada dentro de sua moldura
estrutural pré-determinada. Porque, enquanto modo de controle social
metabólico, o capital não pode tolerar a intrusão de nenhum princípio de
regulamentação sócio-econômico que possa limitar sua dinâmica
expansionista. De fato, a expansão como tal, não é simplesmente uma função
econômica relativa [...], mas, uma maneira absolutamente necessária de
deslocar os problemas e contradições emergentes do sistema de Capital, de
acordo com o imperativo de evitar suas causas subjacentes. (MÉZÁROS,
1995, p.6).
1
Ver a respeito em Ernest Mandel (1990).
28
capitalismo tem por objetivo criar a ilusão de que as crises recessivas são desvios passageiros
de uma rota que tende para um curso saudável, na direção do desenvolvimento e do progresso
do conjunto da população.
Provavelmente por isto, usou-se de um forte poder mistificador para fazer com
que a crise de valorização do capital crescente, a partir dos anos 70, aparecesse como crise
alternativa radical à divisão social do trabalho própria da sociedade capitalista, posto que, ao
invés da “[...] associação livre dos trabalhadores [...] vivenciou-se a crescente subordinação
que pesem os avanços sociais por ela alcançados nos campos da saúde e da educação, abalou
Bem Estar e o denominado socialismo real -, desnudaram a existência de uma crise societária
de a acumulação iniciada nos anos 70. Ao diagnosticar como engessamento das condições de
2
O Estado de Bem-Estar Social é, de acordo com a conceituação de Netto, um modelo criado para fazer frente à
crise depressiva dos anos 30 e também, como alternativa à revolução comunista de 1917 através do qual buscou-
se conciliar acumulação com direitos sociais e políticos. O fracasso deste ordenamento fez ruir a ideologia
dominante acerca da busca de benefícios universais de bem-estar. Ver em Netto (1993).
29
transnacionais e do capitalismo financeiro deram início a um combate sem tréguas que visa
suprimir restrições sociais e políticas à autonomia do capital impostas pelas lutas operárias e
organicamente articulada e projetada. Ainda que cada um destes momentos guarde em si certa
garantia de lucro.
Por isto, nestes tempos em que o planeta parece configurar-se como espaço social
capital, sofre um duro ataque. Na nova ordem social, aprofundam-se as constrições que a
construídos ao longo do século XX pelas lutas sociais. As conquistas obtidas pela classe
Nesta conjuntura, o discurso da plena integração social tenda se desvanecer por completo. O
enfrentamento da crise gera uma busca incessante pela redução de custos de produção e pelo
3
O conceito de globalização insere-se em um intenso debate acadêmico. Nesse debate há, segundo Gomes, "dois
eixos maiores que [...] funcionam como separadores de água. De um lado, [...] estão aqueles que centram a
análise em fatores causais [...]. De outro, há os que focalizam a questão da continuidade ou mudança. Os
transformacionistas sustentam que a fase atual representa um corte [...] com o passado. Enquanto posições
opostas afirmam sua continuidade histórica [...]". GOMES, J.M. "Globalização, Estado-Nação e Cidadania”. In:
Contexto Internacional, vol. 20, n.1, RJ: jan./jun. 98.
30
redução da demanda por trabalho vivo frente ao aumento da demanda por trabalho morto,
incorporado aos meios de produção, o que acarreta desemprego e precarização das condições
de trabalho.
Nesta sociedade que se assenta sobre o desemprego estrutural, mas que, conforme
desempregado potencial” (CHAUÍ, 1997, p.18), os membros da classe que vive do trabalho se
confrontam com um
4
Somam-se ao desemprego estrutural e à precarização do trabalho, as perdas de
capital sobre o mundo do trabalho têm provocado a quebra das formas de solidariedade e o
4
“O desemprego deixa de ser acidental ou expressão de uma crise conjuntural porque a forma contemporânea do
capitalismo não prevê mais a incorporação de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo”. (CHAUÍ,
1999).
31
temos uma ordem societária na qual o capital recria o ideal do livre mercado, desenvolvendo
orientar diagnósticos e decisões sobre a vida em sociedade (IAMAMOTO, 2001, p.15), o que
voltada, não para a satisfação das necessidades sociais, mas para a criação e expansão do
valor. Por esta razão, ao invés de eliminar a fome, despende-se enormes volumes de recursos
economia, cedeu lugar ao pragmatismo daqueles que dizem estar a serviço do livre
acumulação.
necessária da consolide ação da ideologia do mercado que, segundo esta concepção, seria
uma relação social não superável e que, segundo os neoliberais, não deveria ser, sequer,
controlada8.
5
Ver a respeito Netto (2001).
6
Ver em Martins (2002).
7
Ver a respeito Lessa (2000)
8
Ver em Duayer (1996).
33
social, mas que refutam a concepção de que o mercado é uma instância supra-pessoal,
alarmam-se, segundo Duayer, com o fato de que a drástica redução do poder de intervenção
do Estado deixa a economia cada vez mais submetida à irracionalidade dos mercados
financeiros, atirando milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, o que gera, como
tão propalada exclusão, mas sim, à inclusão perversa de grande parte dos trabalhadores.
transnacionais objetivam a “[...] liquide ação dos direitos sociais, como o assalto ao
patrimônio e ao fundo público” (NETTO, 1996, p. 100). Ademais, neste cenário de forte
34
A quebra do pacto que possibilitou o arranjo político do Estado de Bem Estar faz
com que o Estado diminua suas responsabilidades com a garantia dos direitos sociais. Tal
que acontece é uma diminuição de sua ação reguladora da economia. É importante ressaltar
que esta crise tem dado mostras de que tenda afirmar-se como crise de realização, ou seja;
trata-se de uma crise expressiva da erosão dos pilares de sustentação e dos fins aos quais se
“[...] à produção de bens sociais públicos e menos à presença dos fundos públicos na
essa falácia, argumentando que a crise do Welfare tem acarretado a “[...] crise fiscal do
Estado, devido à disputa entre fundos públicos destinados a reprodução do Capital e fundos
que financiam a produção de bens e serviços sociais públicos” (OLIVEIRA, 1988, p.11).
capitalista. Segundo Netto (1993), a burguesia financia esta ofensiva, não porque acredite no
9
Ver Netto (1993)
35
livre mercado, mas porque o Estado, além de continuar intervindo para assegurar a taxa
acumulação.
demonstra que a ação estatal desdobra-se em dois planos, a saber: "[...] um sobre o conjunto
do território e o outro sobre suas partes" (FARIAS, 2000, p.44). Estas escalas de atuação
econômica e social. O autor destaca que a articulação entre espaços não conduz à superação
trabalhadores das economias periféricas aos processos de valorização do capital dos países
centrais.
capital dominante no mercado mundial, o que tem contribuído às outras estratégias descritas,
e o atrasado são faces de uma mesma racionalidade que tem por fim precípuo a busca do
lucro.
desigual do lucro, da propriedade e da renda, entre as classes sociais e entre países e regiões.
da nova ordem. Soja (1993) analisa as mudanças em curso na ordenação espacial das cidades,
A autora não formula uma visão ingênua, a-crítica, que leve a perceber a cidade
como uma realidade estruturada por si mesma, possuidora de suas próprias regras de
estruturas societárias bem mais amplas e mais profundas, que necessitam ser decifradas para
que se torne possível identificar as funções que lhe é atribuída em distintos contextos
históricos e sociais.
compreensão de que as cidades modernas, ao contrário das atuais, foram estruturadas para a
aproximação de homens e mulheres e para a sua libertação dos grilhões próprios da época
anterior, mas sim, de que diferentemente da cidade que serviu de sustentáculo à produção
industrial, a cidade atual cumpre papel decisivo no processo de modernização, pela via da
internacionalização, dirigido não mais pelo capitalismo industrial, mas pela financeirização
pela instauração de uma nova ordem espacial que se torna meio e resultado de uma nova
acumulação.
Estima-se que existem hoje, na escala mundial, cerca de 300 centros com mais de
um milhão de habitantes, entre os quais, pelo menos, vinte com mais de 10 milhões de
Muito embora exista consenso, entre diversos autores, de que a reestruturação das
contemporâneo.
capitalismo financeiro – que resulta da mútua e íntima relação entre o capital bancário e
capitalismo industrial.
10
Consultar Davidovich (2002).
39
mais avançado de organização sindical, em virtude das alterações no processo produtivo, tem
redução salarial e à queda brutal da qualidade de vida, surge um segmento de classe, uma
elite transnacional que, por possuir acesso ilimitado ao consumo, impõe um novo estilo de
vida, que inclui, por exemplo, a pressão pela expansão da oferta de bens relacionados à
grande interesse do capital na difusão/imposição deste estilo de vida, o que propicia uma
de comércio.
renda, da segregação e a auto-segregação das elites nos espaços metropolitanos, assim como
condomínios de classe média alta. Nos dois ‘habitats’, nos aglomerados de exclusão e nos
enclaves, ocorre, segundo Cassab (2001), a partilha de valores, idéias e modos de vida, que
Também se aglomera, cada vez em maior número, aqueles que não moram,
vivem sem teto, embaixo dos viadutos e nos bancos das praças, imersos na voragem da
como caos, desordem e crise, diante de uma pretensa ordem que precisaria ser (re) criada.
social, ao mesmo tempo em que se propaga a necessidade do uso, cada vez mais intenso,
capital e para os que usufruem e se incorporam aos circuitos que garantem a acumulação.
Por fim, se para os trabalhadores que tentavam alojar-se nas primeiras cidades
industriais estava gestando, não apenas um novo mundo, prenhe das promessas do
condições gerais de produção; para os trabalhadores das grandes cidades do presente, nas
quais e por meio das quais se busca a articulação global da economia de modo desigual e
história.
41
político, por meio dações que mobilizam milhares e, até mesmo, milhões de pessoas,
lógica econômica e espacial imposta pelos países centrais e pelas corporações transnacionais.
nos dias atuais, e seus efeitos nas condições de moradia e trabalho dos segmentos mais
pauperizados da população.
integrante, possui traços universais, mas revela, em cada formação social, especificidades
que, uma vez compreendidas, tornam possível recuperar o que é característico do lugar: a
que passou de 30% do total em 1980, para 38%, em 2000, correspondendo a 64 milhões e
PIB nacional ser produzido em 111 centros urbanos e à elevada proporção do PIB estadual
42
nas regiões metropolitanas (88% na de São Paulo, 75% no Recife)11, constituem dados
Censo 2000, de que esse número havia saltado para 11,4 milhões de pessoas, representando
importante observar que, em dez anos (entre 1991 e 2000) houve acréscimo de 21,7% e um
crescimento de 2,2% ao ano do déficit habitacional e que 83,2% do déficit urbano concentra-
se nas famílias de baixa renda. No Nordeste, falta moradia para 2.631.790 famílias, e no
coletivo em áreas onda renda efetiva e a capacidade de pressão dos segmentos sociais são
mais elevadas.
11
Consultar Davidovich (2002).
12
Fonte: Dados extraídos do artigo” Dez visitas aos sem -teto”, Revista Carta Capital, ano X, n.261.
43
2,7 milhões de jovens com menos de 16 anos que desempenham atividades remuneradas,
aprofundamento dessas tendências no contexto atual têm, a nosso ver, como principal
Ao longo das duas últimas décadas, a economia brasileira tem sofrido uma
profunda reestruturação que tem por fim efetivar uma mais intensa inserção do país no
políticos.
em comparação com outros países da periferia, é decisiva para que ocorra a afirmação da
consoante tal projeto, que aqui se consolide, de forma urgente e acelerada, as requeridas
13
Fonte: Censo Demográfico de 2000, IBGE.
44
análise de Mandel, podemos afirmar que esta forma de integração tem sido adotada por "[...]
razões de preferência sócio-política, cuja natureza de classe deve ser posta a nu” (MANDEL,
excludentes e injustas, como a brasileira, convivem com uma progressiva deterioração das
referido, na paisagem urbana. O aparente caos urbano e a sua intensificação, sobretudo nos
Essas mudanças têm gerado conseqüências profundamente agudas nas condições de vida da
neoliberais têm ocorrido sem que o Estado desenvolvimentista tenha, antes, garantido a
expulsa pelo latifúndio improdutivo, pela modificação da agricultura, pelo arrocho salarial
mais pesado da América Latina e à existência de multidões que não têm onde trabalhar, não
sociais, na sociedade brasileira, tem se dado de uma forma bastante peculiar, decorrente da
45
forma historicamente assumida por esta intervenção, que lhe confere bases muito frágeis,
centrais, onda intervenção social do Estado emergiu, após a década de 30, num contexto de
pressão e organização da classe trabalhadora, o que contribuiu para que houvesse uma
certa distribuição de renda, na sociedade brasileira, esta intervenção surgiu em meio a uma
ocorreu a partir do início da década de 80, com a denominada crise da dívida. Nas décadas
renda. Farias (1991) ressalta que este encarecimento da habitação já vinha sendo produzido
desde a implantação da política habitacional, levada a efeito pelo BNH. Segundo o autor, os
14
Consultar em Fernandes (1993) e Oliveira (1982).
46
distorções sociais. Por serem dirigidos, especialmente, para segmentos sociais de alta renda,
trabalhadores sofreu fortíssima redução. Lago (1996) esclarece que essa incapacidade não se
graves conseqüências quanto ao acesso à casa própria, visto que os compradores das casas
populares tinham como principal estratégia de compra o endividamento a longo prazo, uma
vez que não possuíam condições de poupança. Com o colapso do BNH e, conseqüentemente,
o fim da construção de conjuntos habitacionais por parte do poder público16, teria aumentado
princípios do neoliberalismo, a partir do final dos anos 80, foram aprofundadas e atualizadas
em favor desta última, o autoritarismo, a injustiça e a exclusão social. Daí seu caráter,
15
Ver sobre o novo sindicalismo Mattos (1988).
16
A partir de 1973 o BNH inicia a construção de conjuntos habitacionais que visavam atender a população com
renda na faixa de 3 a 5 salários mínimos. Em São Paulo, através da COHAB, o BNH financia 84 mil habitações
de 1975 a 1978. Contudo, esses conjuntos acabaram sendo ocupados por famílias de renda superior a
inicialmente considerada como alvo.
17
Ver SILVA (1999).
47
do Estado brasileiro.
desemprego nos anos 90, e frente aos rígidos obstáculos para que o país ingresse num novo
existência de problemas internos nas duas últimas décadas, tende-se a concordar com a
hipótese da impossibilidade de, neste contexto, haver “retomada das atividades imobiliárias de
Habitação. Visto por esta perspectiva, pode-se dizer que [...] o sonho de casa própria termina
médios, aumentaram. Isso porque, ao contrário do BNH, que possuía como orientação
habitação a partir dos parâmetros de mercado e, portanto, praticamente, sem nenhum subsídio
aos trabalhadores mais pobres. Agrega-se a estes fatos, a redução dos programas alternativos
populações de baixa renda – que exigem maior investimento público. Este conjunto de
processos contribui para a intensificação da carência habitacional, vivida por grande parte da
desativação dos gastos sociais, um crescente desprestígio das instituições públicas e uma
importante modificação no trato do Estado com a questão social. A resposta à questão social,
este ajustamento ocorra a partir de vetores culturais próprios à sociedade brasileira. Todavia,
é mister, também, enfatizar que a crise fiscal dos Estados latino-americanos foi fruto,
basicamente, do aumento dos juros da dívida externa18, que tem, como conseqüência, uma
de ajustes estruturais, cujo objetivo mais claramente exposto era tornar o Brasil um país
novas fontes de poder” (DINIZ, 2000, p.5), contribuíram para esta forma de adesão aos
pressupostos dominantes, 19 o que permite afirmar que a integração do país aos comandos da
inteiramente passiva.
A partir da abertura iniciada no governo Collor, cujo intuito era criar facilidades
redução dos custos. Com este fim, têm sido utilizados os mecanismos da terceirização, da
18
Entre 2001 e 2002 a dívida externa chegou a casa dos 300 bilhões de dólares. Enquanto os gastos com saúde,
educação, agricultura, desenvolvimento agrário, ciência e tecnologia, minas e energia, meio ambiente e cultura
totalizaram, aproximadamente, 60 bilhões de reais, os gastos com juros e encargos da dívida e amortização do
total da dívida pública alcançaram a soma de 142 bilhões de reais.
19
Convém ressaltar que esta concepção busca refutar a lógica da inexorabilidade do paradigma dominante que
orienta a integração das economias nacionais aos mercados globais, muito embora sejam reconhecidas as
49
abertura comercial, num contexto de forte sobrevalorização das taxas de câmbio e de juros
higiene e limpeza e autopeças, entre outros21, o que provocou fortes impactos negativos sobre
o emprego.
parte do capital, antes empregada na produção, foi aplicada no mercado financeiro, o que
dirigiu o interesse das elites dominantes para a redução da inflação, e não para o aumento do
emprego e da produção.
efeitos da guerra fiscal entre os estados da federação e das disparidades salariais entre
espacial das indústrias. Sabóia demonstra que, na década de 90, o maior deslocamento das
plantas industriais ocorreu da região Sudeste para a região Sul. Muito embora a primeira
continue tendo a maior concentração de mão de obra industrial do país, houve queda da
participação acirrada na guerra fiscal fizeram da região Sul o destino de setores desenvolvidos
estado do Ceará. Esta reestruturação espacial tem provocado mudanças que incidem no
aquisição, fusão ou associação com grupos empresariais estrangeiros. Segundo a autora, esta
intensa reorganização do setor industrial foi acompanhada do aumento da presença dos grupos
concentração do capital.
organizacionais têm prevalecido sobre as inovações tecnológicas. Teixeira conclui, com base
numa pesquisa sobre reestruturação produtiva realizada numa indústria do Ceará, que a
51
quaisquer estímulos salariais (vale transporte, sistema de condução própria, vale refeição,
cesta básica, etc.) funcionam como um grande amortecedor de choques entre a gerência e os
relacionado, não apenas ao desemprego, mas, também, ao precário acesso a serviços públicos
mesmos, não sejam capazes de incidir sobre determinantes estruturais da pobreza, sua
ausência ou precariedade deteriora ainda mais as condições de vida dos segmentos mais
empurrado as populações mais pobres para locais de moradia com péssima infra-estrutura e
qualidade habitacional.
espacial expresso, inclusive, nas formas de habitat urbano, com ênfase na moradia. A
bairros inteiros em que o próprio morador e sua família constroem suas casas sobre terrenos
precariedade, o tamanho (do lote e da casa), não raro pequeno para o número de moradores, a
22
Ver a respeito Raichelis (1998).
52
localização da casa em áreas inadequadas à construção, são fatos recorrentes na rede urbana
localização dos grandes conjuntos na periferia, como resultado dos preços mais baixos da
terra, apesar de representar um custo mais baixo por unidade, obriga a outras inversões, pela
dificuldades relativas aos transportes coletivos e, portanto, por falta de acesso ao mercado de
trabalho.
ambiental – onde muitas vezes não há fiscalização – já que os investimentos públicos são
contra o restante dos habitantes da cidade, sobretudo os mais pobres, aos quais só é facultada
23
Resultados do Censo Demográfico referentes à população dos municípios que compõem a Região
Metropolitana indicam transformação no padrão de crescimento. Ora, se na década de 60/70 houve crescimento,
na década de 80, verifica-se uma queda geral das taxas de crescimento em todas as regiões metropolitanas, sendo
53
populações pauperizadas, também no centro da cidade, nas ruas e nos interstícios da malha
urbana consolidada.
com segmentos sociais de maior poder aquisitivo, que podem consumir serviços intermitentes
e produtos.
constatar que 41,44% dos inquilinos na faixa de renda mais baixa gastavam, no pagamento de
aluguel, no mínimo 50% de sua renda, e que 8,6% destes inquilinos despendiam, com aluguel,
uma quantia superior à sua própria renda. Nestas circunstâncias, cresceu o número de
não atendiam à demanda de moradia dos pobres e a procura por terra passou a assumir
enorme proporção, visto que fugir do aluguel tornava-se uma necessidade imperiosa para um
societárias tem conseqüências sociais, políticas, culturais e ideológicas que, na maioria das
vezes, não são percebidas. Esta ausência de apreensão da cidade em sua totalidade pode ser
creditada ao fato de que as diferentes frações e classes sociais, por apropriarem-se de forma
esta mais acentuada nas periferias. Enquanto nas metrópoles a queda é, em média, de 1,78 pontos percentuais ao
ano, nas periferias ela chega a 2,54 pontos.
24
Dados extraídos de Bonduki (1992).
54
interesse das elites econômicas e do poder público em escamotear a cidade real. Para tanto,
difundem a existência de uma cidade virtual que é oferecida como mercadoria. Ao lado do
conforme proposto por Cassab (2001), a sensação de desenraizamento vivida por aqueles que
não têm direito à cidade. No exame sobre condições de vida de moradores dos aglomerados
nenhum – estão sujeitos a ter que, não só morar em favelas, mas morar noutros espaços
irregulares criados pelo poder público; conjuntos habitacionais irregulares implantados por
velhos e deteriorados, adaptados para serem alugados a famílias de baixa renda. Sem dúvida,
esses segmentos sociais expõem, por meio do seu habitat, a face concentradora e desigual da
urbanização brasileira.
55
Ferraz, em sua análise sobre as relações entre moradia e cotidiano, afirma que
sentido amplo, não restrito ao objeto, mas incorporado ao entorno, ao caminho, ao acesso, à
Em seu trabalho, esclarece que, pelo fato da habitação não possuir apenas valor de
uso, mas também valor de troca, o acesso a casa será determinado pelo nível de renda da
capitalistas privados, por não ser considerada como suficientemente rentável, o que contribui,
[...] a cidade capitalista não tem lugar para os pobres. A propriedade privada
do solo urbano faz com que a posse de uma renda monetária seja requisito
indispensável à ocupação do espaço urbano. Mas, o funcionamento normal
da economia capitalista não assegura um mínimo de renda a todos. Antes,
pelo contrário, este funcionamento visa manter uma parte da força de
trabalho em reserva, o que significa que uma parte correspondente da
população não tem meios para pagar pelo direito de ocupar um pedaço de
solo urbano. (SINGER, 1982, p.12)
relação entre oferta e demanda na produção da escassez de moradia, chama a atenção para a
25
A Lei Geral da Acumulação Capitalista é sintetizada por Marx da seguinte maneira: "Quanto maiores a riqueza
social, o capital em funcionamento, o volume e energia de seu crescimento, portanto também a grandeza
absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força
de trabalho disponível é desenvolvida pelas mesmas causas que as forças expansivas do capital. A grandeza
proporcional do exército de reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza. Mais quanto maior esse
exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais maciça a superpopulação
consolidada, cuja miséria está em razão inversa do suplício de seu trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada
lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei
absoluta geral da acumulação capitalista”. (MARX, 1987, p.747).
57
terra urbana e o pauperismo. Tal análise demonstra que as disputas pelo direito à habitação
envolvem relações bem mais complexas, cuja aparência precisa ser desvendada.
peculiaridades:
mercadoria, e o possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor de uso que
mesmo tempo em que o trabalhador cria valor, ele o conserva ao transferi-lo ao novo produto.
A mais valia - excedente criado pelos trabalhadores acima do valor de sua força de trabalho -
produtivo o trabalho que cria mais valia. No processo de produção, portanto, o operário
reproduz, no produto, o capital investido e acrescenta-lhe valor novo. Este valor novo,
acrescentado ao produto, não advém do conteúdo da atividade, mas do fato de este trabalho
diferentes acerca da origem da mais valia. Marx ressalta o avanço destas teorias na busca de
solução para o problema da troca entre trabalho e capital e mostra suas debilidades
Entre os economistas políticos, Adam Smith foi quem mais contribuiu para o
processo de construção da categoria mais valia, posto que reconheceu ser o trabalho a fonte de
todo valor, independentemente dos valores de uso por ele produzido. Mas, por não ter
concebido a própria força de trabalho como mercadoria, Adam Smith não teria alcançado
vendida pelo operário é a força de trabalho e, não, o próprio trabalho. Segundo este autor, no
ainda não estava despojado dos meios de produção. Derivou daí a necessidade de tornar o
trabalhador "livre" - não mais pertencente a um senhor e destituído da propriedade dos meios
de produção.
meios de produção, estará também privado dos meios de subsistência e, ao ser privado destes
meios, não poderá criar nenhum meio de produção. Assim, foram estabelecidas as condições
do capital. Por ser a capacidade de trabalho apenas potencial, o trabalhador só pode vir a
portanto, todos aqueles que dependem da venda de sua força de trabalho para sua reprodução,
59
estejam ou não empregados. A superpopulação relativa está incluída nesta noção, dado que o
necessidade da superpopulação relativa advêm de sua dupla função para o capital: 1ª- reduzir
Neste sentido,
necessário das leis do movimento do capital e não algo fortuito ou uma manifestação
solução para o problema habitacional reside na implantação de políticas sociais voltadas para
as populações de baixa renda. Ainda que tais propostas possam minorar carências de parcela
produção, terminam por não apreender a questão da pobreza como outra face da riqueza, o
permite que a sua aparência seja superada. Neste sentido, torna-se necessário acrescentar a
esta análise, o debate sobre os mecanismos de formação do preço do solo urbano e sua
teóricos concebem a formação do preço dos terrenos por suas características e situação
locativa. Outras análises, porém, superam esta concepção, que apenas considera a aparência,
com base na análise de Marx a respeito da renda fundiária, auxiliam na compreensão desta
produto com valor de troca, por meio da incorporação do trabalho social contido nos
investimentos públicos. Porém, ainda que a transformação da terra em produto urbano resulte
de longos anos de maturação, e que esta carregue potencialmente valor de uso extensivo a
toda população, a sua apropriação é feita de forma privada, consoante a lógica do valor de
troca26. Esta transformação faz com que a terra se torne, ao mesmo tempo, condição de
26
Harvey afirma: "O solo e suas benfeitorias não são mercadorias quaisquer: assim, os conceitos de valor de uso
e valor de troca assumem significado em uma situação mais do que especial. O solo e as benfeitorias não podem
deslocar-se livremente, e isso os diferencia de outras mercadorias, [...]. O solo e as benfeitorias têm localização
fixa. A localização absoluta confere privilégios de monopólio à pessoa que tem o direito de determinar o uso
nessa localização. O solo e as benfeitorias são mercadorias das quais nenhum indivíduo pode dispensar"
(HARVEY, 1980, p.135).
61
mercadorias, já que a terra não pode ser reproduzida pelo capital e não tem por fim a
valia, sem concorrer para sua geração e realização. Com o desenvolvimento da sociedade
rendimento do seu direito de propriedade quando o uso do solo permite a geração de um lucro
[...] acima do lucro médio" (RIBEIRO; PECHMAN, 1983, p. 32). Todavia, é mister ressaltar
que, muito embora a terra tenha perdido força enquanto elemento capaz de interferir,
suporte necessário à expansão do ciclo do capital; tanto que a necessidade de solo, cuja oferta
não significa, entretanto, que tal subordinação ocorra na mesma intensidade no setor de
moradia. Neste ramo da produção, o capital se depara, de fato, com dificuldades para
grande indústria auxilia no desvelamento desta questão, pois contribui para concebê-la a partir
urbano, já que este deveria ser adaptado às exigências da produção capitalista de mercadorias.
Esta intensa renovação foi realizada, tanto pelas próprias empresas, quanto pelo Estado.
62
consciência política. Do ponto de vista da burguesia, este processo representou uma dupla
renovação urbana, que incluía a demolição de imóveis que serviriam de abrigo à classe
para o seu parcelamento em cubículos. Este mecanismo reproduz a crise de moradias, pois os
lugares habitados pelos trabalhadores são destruídos e pequenas vilas são construídas em
lugares distantes, o que provoca o deslocamento espacial dos alojamentos precários e, não, a
sua eliminação.
portanto, condições para a superação da crise de moradia. Segundo Engels (1984), não existia
interesse das classes dominantes em sua solução. Tal desinteresse, segundo o autor,
necessidade contínua de vender sua força de trabalho para ter acesso à moradia e, ao mesmo
tempo, submetido às iniciativas patronais de construção de vilas operárias. Com base nestes
argumentos, o autor polemiza com Proudhom, para quem era possível solucionar a
27
Engels (1975) descreve as condições habitacionais da classe operária no momento da revolução industrial.
28
Ver a respeito em Ribeiro (1997).
63
casa. Engels (1984) mostra a impossibilidade de esta questão ser superada nos limites da
que então se operavam, isto é, como território que nasce sobre as ruínas do mundo feudal,
lucro.
capitalista. Neste sentido, afirma: “[...] como acontece em outros setores da produção de
mercadorias, a penúria de moradias deveria existir, até o momento em que passasse a ser
Esta mudança, de acordo com o autor, não ocorre, todavia, unicamente pelas
razões apontadas por Engels (1984), mas, sobretudo, por empecilhos existentes para que o
setor em relação aos outros ramos de produção. Estes obstáculos específicos enfrentados pelo
setor imobiliário não possuem, tal qual ocorre com os outros setores, sua superação
moradia, na medida em que a renda predomina sobre o lucro” (RIBEIRO, 1997, p. 146). Ora,
ainda que as transformações econômicas tenham feito com que a terra se transformasse de
bem patrimonial em mercadoria que circula para proporcionar renda e que esta transformação
outras mercadorias de consumo privado, pois se trata de mercadoria que requer demorado
financiamento prévio à produção e ao consumo, já que, via de regra, seus consumidores não a
podem comprar à vista, em decorrência do desequilíbrio entre seu valor e o poder aquisitivo
dos trabalhadores.
impasses”, Ribeiro aprofunda essa análise ao demonstrar os limites à expansão capital ista no
setor imobiliário, o que permite compreender que existe, além das decisões macroeconômicas
mecanismos que regulam o solo urbano e os que regulam a produção de moradia, o que
Contrapondo-se a estas explicações, Ribeiro (1997) argumenta, com base na sua pesquisa
sobre o Rio de Janeiro, que as razões adjacentes a esta dinâmica especulativa vinculam-se a:
do espaço urbano.
para o financiamento de uma mercadoria de valor alto, em uma sociedade que mantém o nível
salarial no plano do precário custeio das necessidades mais imediatas de reprodução da força
públicas, os serviços privados e a prestação direta ou indireta, pelo poder público,de alguns
serviços urbanos.
relação social que se materializa na forma capital de incorporação” (RIBEIRO, 1996, p. 114).
66
produto e, ainda, seu preço. Sua atuação articula o proprietário original da terra, o financiador
imobiliário. A intervenção deste agente demonstra, segundo palavras do autor, “[...] que
Por fim, Ribeiro (1996) enfatiza que o mercado imobiliário funciona como um
mecanismo de seleção e de segregação social, gerado na disputa pelo acesso aos espaços nos
quais as condições urbanas são mais propícias. Como a produção é dirigida para quem tem
maior poder de compra e se baseia na escassez do produto, visto existir um mercado estreito
contrário do que ocorre na indústria ou na agricultura, essa fração do capital não se valoriza
porque domina ou organiza o processo social de produção, mas porque detém o monopólio do
transformações do uso do solo são sua fonte de lucro. Para concretizar seu objetivo, compra
solo com baixa densidade de ocupação e vende, o mesmo solo, com potencial para abrigar alta
densidade demográfica. Assim, compra solos ocupados por casas, vende solos com edifícios;
compra solo de uso residencial e vende solo transformado para uso comercial; compra solos
onde residem camadas populares e o vende para segmentos com alto poder aquisitivo. Para
construtiva e, sim, da comercialização do solo com seu uso transformado. Por isso, pode-se
afirmar que esse ramo da atividade empresarial cria uma frente de valorização parcialmente
Em todo e qualquer recanto seus agentes instalam-se e definem uma forma diferenciada de
auferir rentabilidade, submetendo aos seus objetivos, até mesmo os terrenos pessimamente
localizados, que são transformados em mercadoria vendável ao trabalhador com menor poder
aquisitivo.
recursos próprios, multiplicar seu capital com base no trabalho social, o que reforça a lógica
Estado na reprodução ampliada do capital, em especial após a consolide ação de sua fase
obscurecimento da sociedade civil e impede apreender, como nos diz Lefebvre (1974), que a
“verdade do político” (e, conseqüentemente, do estatal), está no social. Tendo em vista que o
Estado é uma expressão das relações sociais, são essas relações que permitem compreender
as formas políticas e, não, o contrário. O que queremos enfatizar com esta ressalva é que o
Estado, por ser um órgão de uma sociedade estruturada em classes, tem sua ação direcionada
conjunto da sociedade. Muito embora o caráter de classe do Estado não se restrinja à ordem
burguesa, na sociedade capitalista este caráter aparece, de forma mais nítida, ainda que
travestido da aparência de um órgão independente das classes, cujo objetivo maior é o bem
comum, aparência que torna possível sua atuação como mediador dos interesses de classe.
que possuem interesses complementares ou antagônicos entre si. Além do Estado e das
o solo urbano [...] traduz a existência de uma luta social por usos
diferenciados, que ganha contornos mais claros quando se considera que
possa ser também esse solo terra de habitação, os mecanismos econômicos e
jurídicos que geram remoção, localização diferencial e controle implicam a
segregação social e espacial de amplos segmentos da população
metropolitana (RIBEIRO, 2001, p.46).
a pequena oferta de imóveis e uma vasta população consumidora, Por envolver não apenas
relevância para a reprodução diária dos trabalhadores. A obtenção deste meio de vida está
sujeita a um complexo conjunto de mediações sociais, entre elas as regras que determinam a
troca de mercadorias. Como o intercâmbio de mercadorias não está sob o controle dos
indivíduos produtores, mas sim, alheio ao seu domínio, o trabalhador só poderá vir a adquiri-
las caso se insira no mercado de trabalho, isto é, quando demandado pelo empresariado e,
portanto, com possibilidade de obtenção de renda suficiente para pagar pelo preço da moradia.
capitalista29. Faz parte integrante, e a nosso ver, de maneira fundamental destas contradições,
detentores deste direito a cobrança e, até mesmo, o despejo dos que não possuem condições
de pagamento. O fato de o acesso à habitação ser determinado pelo nível de renda ou pelo
reprodução diária.
da habitação como uma questão concreta e particular e, ao mesmo tempo, como integrante do
capitalista madura.
produção e a apropriação privada das condições de realização do trabalho, bem como de seus
29
Ver Gohn (1982).
70
classe operária e a sua inserção na cena política, por meio de lutas em favor dos direitos
associados ao trabalho. Foram estas lutas que romperam o domínio privado nas relações entre
capital e trabalho, permitindo que a questão social penetrasse na esfera pública, sendo exigida
nos países cêntricos, foram expressão do Estado de Bem-Estar. (IAMAMOTO, 2001, p. 17).
bastante diferente e particular. No próximo item, a nossa exposição estará dirigida aos
principais determinantes das características assumidas pela relação entre o Estado e as lutas
conseqüências sociais, especialmente no tocante à luta por moradia nos dias atuais.
cidades dos países de capitalismo avançado, veremos que as lutas urbanas no Brasil exibem
nos países euro-ocidentais (NETTO, 1998). Na realidade brasileira, tais conquistas adquiriram
um caráter restrito e formal, posto que a burguesia encontrasse condições de fazer com que
acarretou uma forma de regulação que não leva em conta a perspectiva de universalização dos
imperialismo, e seu decorrente caráter não heróico, constituem-se em razões essenciais da não
como o Brasil30. Diferentemente dos países centrais, nos quais a intervenção do Estado
emergiu num contexto de pressão e organização da classe trabalhadora, o que contribuiu para
determinar certa distribuição de renda, no Brasil a intervenção estatal sobre a vida econômica
e social surgiu em meio a uma correlação de forças sociais e econômicas bastante distinta,
direitos sociais. A relação entre a burguesia e a classe trabalhadora no país tem, de acordo
burguesia associada ao capital internacional, gerador de exclusão, por vezes total, dos não–
30
Em Fernandes (1975) encontra-se uma análise aprofundada deste traço peculiar da burguesia brasileira.
72
lugar, reafirmar que o desenvolvimento capitalista no Brasil ocorreu sem ruptura com as
redimensionassem segundo seus fins. Em segundo lugar, porque em momentos nos quais a
certos países periféricos como o Brasil, que já possuíam alguma acumulação interna e cujos
padrão dominante da relação entre o Estado e as “classes que vivem do trabalho”, qual seja: a
Segundo O'Donnel,
estratégias de modernização conservadora, reguladas por meio de acordos pactuados pelo alto,
Esta relação entre Estado e classe trabalhadora, pode ser refletida como proposto
por Florestan Fernandes (1987), com base nos seus componentes estruturais. Tais
seja: a democracia nesta sociedade é “[...] uma democracia restrita, aberta e funcional só para
particular que se move, historicamente, sobre o seguinte eixo: "um capitalismo sem reformas
Coutinho (1974) demonstra que este alijamento das forças populares dos ganhos do
74
subjetivas.
Ao longo das lutas sociais, tem sido procurada a reversão deste traço histórico,
ampliação da participação social numa perspectiva que não se limita à reivindicação dos
direitos sociais, muito embora os inclua, quando a consideração de interesses e agentes das
Ainda que esta participação não possa "ferir o caráter de classes do Estado
organizada de baixo para cima e capaz de articular a intervenção instituída com as forças
instituintes, acaba provocando, conforme salienta Netto, uma forte reação de amplos setores
da burguesia e das elites dirigentes, o que não só denuncia a ausência de uma cultura política
vir a ser efetivado por meio da ação dos trabalhadores organizados. Esta ação, na sociedade
que mesmo as conquistas nos marcos liberais obtidas nas formações que realizaram o Estado
75
de bem estar só foram alcançadas como resultado da ação e da pressão dos trabalhadores e
pressupostos ídeo-teóricos, a partir dos quais este projeto se efetivou, como também auxilia na
manifesta a seguinte contradição central: por ter sido um regime ditatorial modernizador
serviu para “[...] desenvolver os pressupostos de uma sociedade civil que, progressivamente
escapou à sua tutela” (COUTINHO, 2000, p. 90). Convém notar, também, que a violência do
Estado ditatorial burguês impediu a organização da sociedade civil nas suas instituições, mas
Algumas destas formas, definidas por Frederico (1990) como moleculares, desencadearam
esgotamento do milagre econômico, dado que este representava, à época, a única fonte de
31
No discurso liberal a noção de igualdade refere-se, estritamente, à esfera política, uma vez que a noção de
igualdade econômica é estranha a esta forma de pensamento.
76
política.
das características deste processo de transição. São eles: a estruturação do Estado sob a tutela
Este segundo componente é também analisado por Sader (1998). Diz o autor: "[...]
quando a transição política do país se consuma, o que era promessa tornou-se história. Difusas
aspirações de justiça social e de democracia foram recolhidas e elaboradas de outro modo pela
político do país.
fraca".
32
Ver DINIZ (1997).
77
transformistas, ou seja, a tentativa permanente de obter apoio para o governo por meio da
por intermédio do vínculo direto entre líder e massa atomizada, sem a mediação da sociedade
civil e, em particular, dos partidos; 4) a tutela militar, vale dizer, a atribuição de um peso
político às forças armadas, sem relação com o balanço de forças efetivamente presentes na
sociedade civil.
Ocorre, assim, uma ruptura com a ditadura implantada em 64, mas, não com os
do setor público que incluía a ampliação dos direitos sociais e a participação da sociedade,
participação esta concebida, por alguns movimentos sociais, como “interferência decisória na
2001, p. 265).
ao voto e alcançou conquistas, cuja pretensão principal era romper com o poderio das forças
conservadoras sobre a "coisa pública". Não resta dúvida de que as lutas travadas pelos
Enquanto nos países da Europa ocidental vinha à tona a chamada crise do Estado de Bem
e de controle social sobre a "coisa pública". Fiori salienta o fato de que estas alterações foram
encaminhadas num contexto extremamente adverso, posto que trovejado pela "aceleração dos
denominado de resgate da dívida social, assentou-se sob o impulso de uma transição fraca e,
Deste modo, grande parte das propostas defendidas pelos diferentes atores sociais,
se tornou viável a partir da eleição de prefeituras do campo democrático popular. Este evento
mudanças no papel dos Estados nacionais, com graves conseqüências para o desempenho das
agudização da crise do capital, tais mudanças têm provocado uma tendência à redução, ainda
maior, da relevância dos controles sociais democráticos, inclusive daqueles construídos sob o
impulso das lutas sociais do final dos anos 70 e início dos anos 80.
projetos que expressam a interação entre forças sociopolíticas que operam no plano do
79
conjuntura.
clandestinos e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, bem como, as ocupações de
terrenos e prédios públicos, além de dar visibilidade ao caráter classista do Estado, expressam
Evidentemente, este contexto poderá vir a ser alterado por meio de uma profunda
Malgrado as resistências a este processo, vive-se, hoje, uma nova fase, também
extremamente preocupantes. Bonduki (1988) é um dos autores que chama a atenção para
este fato. O autor, a partir da reconstituição histórica dos movimentos sociais pelo direito à
habitação em São Paulo, convida o leitor a refletir a respeito do significado das recentes
80
posse de terra passou, a partir dos anos 80, a ser central para todos os movimentos de
Bonduki afirma que a “ luta pela terra é o último patamar a que pode chegar o
afirmação, o autor conclui sua análise ressaltando que a questão deve ser enfrentada por
destacar que a centralização da luta por moradia, na reivindicação do pedaço de chão para
morar, e sua efetivação pela via da ação direta, expressam a radicalização das lutas por
que a forma de acesso a este bem é, ao mesmo tempo, reveladora da questão social no
urbano e por ela determinada. Seu enfrentamento demanda apreendê-la em intima conexão
imersos. Frente a esta, têm surgido sujeitos individuais e coletivos que reivindicam, não só
para além de sua aparência e imediatismo, requer inseri-la no contexto da questão social, da
qual é parte. Para tanto, discorremos acerca de seus determinantes históricos e estruturais e
81
contradições sociais, têm ocorrido diversas lutas sociais que expressam, com intensidade e
qualidade diversas, as práticas acionadas pelos trabalhadores para opor resistência material e
luta por moradia, inclusive do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que constitui o
CAPÍTULO 2
que imprime à questão habitacional uma complexidade e uma particularidade que, para serem
transformações estruturais democráticas, entre elas, o acesso universal aos direitos sociais e a
reforma agrária, a questão social apresenta faces particulares, cujas marcas podem ser
tratar-se da região que exerce o comando da rede urbana brasileira, a Região Metropolitana de
ocorridas nessa região. Seu objetivo principal é contextualizar, histórica e socialmente, estas
concerne às reivindicações sociais, associadas às lutas pelo direito à habitação, posto que a
RMSP configura-se como cenário de intensos conflitos, desde a década de trinta do século
reivindicatórios urbanos que deram origem, mais tarde, às Sociedades de amigos de Bairros.
desenvolvimento capitalista, mas sim, parte constitutiva deste, posto que subordinado às
sob o impulso deste processo, sofre um grande redimensionamento dirigido à consolide ação
capital.
elites brasileiras, em 1930, demarca o início desse novo período urbano-industrial na história
do país.
brasileira no cenário internacional, não apenas como produtor agrícola, mas também, de bens
industrial, como força econômica e política, e para a conformação de uma relevante mudança
posterior à fase do capitalismo concorrente nos países centrais. A plena integração do país ao
capital, e contribuindo para conformar a fisionomia e o teor específico das relações entre
sociedade brasileira possui características peculiares e que, por esta razão, sua emergência não
pode ser reduzida à forte intensificação da economia industrial, ocorrida após 1930. Antes, as
33
Ver Fausto (1970).
34
Conforme analisa Netto "a viabilização do objetivo primário da organização monopólica, qual seja, o
acréscimo dos lucros capitalistas por meio do controle dos mercados, além de ter introduzido na dinâmica
capitalista um conjunto de fenômenos, potencializou a contradição entre a socialização da produção e a
apropriação privada: internacionalizada a produção, grupos de monopólios controlaram-na por cima de povos e
Estados” (NETTO, 1992, p.16).
85
de urbanização existente, mesmo que de forma embrionária, desde a Colônia. Este padrão,
Essa urbanização preceda nova urbanização, que se define quando a cidade passa
capitalista nos países centrais, onda industrialização expressa a divisão social do trabalho
urbana porque não pode apoiar-se em nenhuma pretérita divisão social do trabalho no interior
atuação se dirigiu, não só para a regulamentação do mercado de trabalho por meio das leis
como também, para a transferência de excedentes entre frações das classes dominantes e o
86
que antes lhe eram vedados. Esta redefinição foi determinada pela conjugação dos seguintes
processos:
- ampliação das conquistas democráticas nos países centrais, sob pressão das
lutas dos trabalhadores, que obrigaram o Estado a assumir parcela dos custos da reprodução
Esta estrutura foi composta assim, conforme já dito, por um enorme exército
capital; por uma fração operária relativamente pequena e uma significativa fração da classe
média.
35
Oliveira (1982).
87
Por fim, Oliveira (1982) afirma que a ação do Estado como agente potencializador
grandes corporações. Esta atuação provocou o acirramento das disputas entre as classes
sociais e frações de classe pela apropriação dos recursos públicos e outros benefícios
entendimento de que as contradições sociais urbanas não estão inscritas apenas no âmago do
mundial, cujas marcas históricas tendem a se aprofundar na conjuntura atual. Entre estas
organizativas são algumas das resultantes dessas marcas históricas. À combinação destes
88
processos, pode ser atribuído o fato de os trabalhadores não conseguirem garantir, frente à
metrópoles. Criou e concentrou riquezas, mas não levou à plena institucionalização das
Com isso, foi gerada uma constante população excedente, sujeita a acintosos processos de
espoliação urbana36 e, ao mesmo tempo e pelo mesmo processo, produziu-se uma enorme
mobilizações sociais que denotam a luta dos segmentos sociais não incluídos pela imposição
36
Espoliação urbana é conceituada por como “o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou
precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos
níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapide ação que se realiza no âmbito das relações de
trabalho” (KOWARICK, p. 59, 1980).
89
Uma expressão desta desigualdade encontra-se no fato de que parte relevante da economia
pelo estado de São Paulo, na dinâmica da economia nacional deve ser compreendida à luz da
apreensão das relações entre o Estado e o urbano no Brasil, posto que o Estado brasileiro foi,
fortalecido durante o primeiro surto de industrialização ocorrido no pós trinta, até o ciclo
expansivo promovido pelo regime militar, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70.
concentração industrial faz com que o PIB por habitante na RMSP38 seja maior do que o
37
Fonte: EMPLASA / Secretaria de Estado Economia e Planejamento do Estado de São Paulo.
www.emplasa.sp.gov.br
38
De acordo com a EMPLASA (2000), o Produto Interno Bruto (PIB) da região atingiu, em 2000, algo em torno
de US$ 99,1 bilhões, o que corresponda cerca de 16,7% do total brasileiro. A renda per capita atingiu US$ 5
545.
39
Ver Campário e Kowarick (1988).
90
estados nordestinos somados aos três estados da região Sul” (NETO, 1995, p.23).
Paulo (RMSP) consolidou-se, particularmente, após os anos 30, como o pólo mais dinâmico
do país, em decorrência da forte concentração industrial, uma vez que nela se localizam as
sedes brasileiras dos mais importantes complexos industriais, comerciais e financeiros, bem
como, uma série de serviços necessários à agilização da circulação das mercadorias, tais
17.879 habitantes. Destes, 61% moram no município de São Paulo40. Em quinze anos, a
Paulo, com destaque para o crescimento industrial na área metropolitana, só veio a ocorrer a
partir de 1930.
40
Fonte: IBGE, Censo Demográfico.
91
Com a crise mundial, a partir da década de 30, e suas repercussões sobre o setor
devido ao êxodo provocado pela desagregação das relações de trabalho, organizadas à época
no final do século pelo trabalhador imigrante, que contribuiu, decisivamente, para o rápido
não só para a consolide ação da posição ocupada pela região metropolitana paulista na
Paulo podem ser encontradas, de acordo com a autora, nas condições criadas pela produção
fabril.
41
Ver Bógus (1992).
92
produtos de indústrias nacionais, apesar de estes produtos serem mais caros do que os
investimentos em diversos setores da economia – que entre os seus objetivos visou tornar o
externo, ocorrido no período, foi responsável por grande crescimento da produção industrial
Região Metropolitana de São Paulo, profundas alterações nos processos e nas relações de
migratórios, o que a erigiu como a mais importante área metropolitana da América Latina.
implantado no país, a partir do período conhecido como milagre econômico, pela existência,
crucial importância para fazer girar um sistema produtivo que avançava no sentido de
que os ramos tradicionais foram perdendo peso relativo. Neste contexto, intensificou-se o
Região, uma vasta classe média, que desenvolveu novos padrões culturais e hábitos de
população migrante, pois contribuiu para a sua retenção no interior do estado e, portanto, para
Nordeste, passaram a ocupar loteamentos periféricos ainda mais distantes do centro da capital
paulista. O preço da moradia nas zonas centrais e a atuação do Estado, em benefício dos
dormitórios. Bógus (1992) ressalta que grande parte das famílias da Região Metropolitana de
estado42.
exceção dos poucos anos de crescimento sob a influência do Plano Cruzado, o que fez com
que o processo de redemocratização da sociedade brasileira tenha convivido com uma penosa
financiamento público, devido à crise aberta pelo crescimento da dívida externa, em meio a
produção industrial, com graves repercussões sociais43. Ao final da década de 80, iniciou-se o
42 A autora, com base na análise dos dados do censo de 1991, refuta a opinião dautores que apontavam para a
tendência ao esgotamento do padrão periférico da expansão urbana e para o retorno da população pobre para
cortiços no centro, mostrando que este padrão se mantém, assim como permanece, também, o padrão segregador
de expansão da metrópole.
43
A taxa média de crescimento do PIB caiu, durante a década, para 2,1% e o PIB industrial para 1%. Ver Cano
(1993).
95
próximo item, analisaremos este processo, com vistas à apreensão de suas determinações
mercado, cada vez mais mundializado. Devido a essas exigências, foram promovidas
internacional nos anos 70 e 80, especialmente, nos Estados Unidos e na Europa. Estas
à acumulação flexível e à internacionalização maciça, o que só veio a ser sentido com mais
pobreza. Considerada a metrópole brasileira que integra a cadeia das cidades globais – por
meio das quais se realiza o comando e o controle do mercado capitalista em âmbito mundial –
centralização tem sido possibilitada, sobretudo, pela expansão das redes de telecomunicações,
SEADE, podem ser observadas na região, em meados dos anos 90, mais permanências que
rupturas. Prevalece a alta concentração do valor de produção nas grandes empresas dos
brasileira.
mais tradicionais, como têxtil e de alimentos. Por outro lado, os setores extrativos, de
região44.
anos 90, não descaracterizou a Região Metropolitana como epicentro da economia do país. A
geográfica com a metrópole. Outras, deslocadas para outros estados, pela busca de vantagens
fiscais e do barateamento dos custos de produção, ainda mantêm seus centros de gestão e
Metropolitana, 46% no interior do Estado (concentradas num raio de 100 km de São Paulo),
década de 90, a região não deixou de ser o principal pólo de concentração dos investimentos
44
A RMSP ainda concentra fatia importante da produção industrial estadual. A estrutura industrial da região, em
função de seu alto grau de concentração, acompanha a hierarquia existente entre as principais divisões da
indústria de transformação do Estado. Destacam-se, quer pelo valor adicionado, quer pelo montante de pessoal
ocupado, os setores: químico (15,3% do VA e 8,2% do PO regional); montagens de veículos automotores
(12,6% do VA e 9,7% do PO regional); máquinas e equipamentos (10,5% do VA e 9,5% do PO regional);
edição, impressão e reprodução de gravações (9,8% do VA e 6,1% do PO regional); e alimentos e bebidas (7,7%
do VA e 7,5% do PO regional). Somados, estes setores representam 55,9% do valor adicionado, 41% do pessoal
ocupado e 31,6% das unidades locais existentes na RMSP. Fonte: Funde ação Seade. Pesquisa da Atividade
Econômica Paulista - Paep. 1996.
45
Ver em Branco (2000).
46
Para analisar as mudanças espaciais da indústria brasileira no Brasil nos anos noventa consultar Sabóia
(1999), Andrade e Serra (1999) e Cano (1997).
98
industriais. De fato, o que ocorreu foi uma drástica redução do emprego industrial. Só no
Sabóia (1999), por exemplo, afirma que a redução do emprego na indústria não
deve ser compreendida como sinônimo de perda de dinamismo industrial. Ao contrário, entre
aumento de produtividade e parco crescimento econômico foi responsável pela grande queda
do emprego na região.
conforme referido, conseqüências sociais dramáticas, que atingem a maioria dos habitantes da
observados; a principal redução dos postos de trabalho se deu, conforme mencionado, no setor
47
Em 1989, a população empregada na indústria da RMSP representava 33% da PEA; em 1999 a proporção caiu
para 19% e essa queda foi mais acentuada no setor metal-mecânico, que passa de 14% a 7% nesse período. Os
serviços representam cerca de 53% dos empregos em 1999, contra 41% em 1989. O aumento se concentrou nos
serviços especializados. Em 2000, para o Município de São Paulo, os serviços mais especializados
representavam cerca de 60% dos empregos, particularmente nas zonas sudoeste, sudeste e norte. Na capital, a
indústria representa 18,2% dos empregos e o comércio soma 16,7% (dados da Funde ação Seade/Dieese, 2000).
99
que, conjugado aos fatores citados, contribui para o empobrecimento, o aumento do trabalho
feminino, inclusive, o aumento do número de mulheres chefes de família50, bem como para a
Gráfico 1
Fonte: SISE/SGGE/Fundap
48
Ver Pesquisa de atividade Econômica (1996).
49
As ocupações do setor terciário, que respondiam por cerca de 60% da estrutura ocupacional metropolitana, em
1988, atingiram cerca de 79 %, em 1999.
50
“[...] A expansão da ocupação nos serviços, inclusive no âmbito doméstico e no comércio, possibilitou uma
maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, por serem setores em que elas tradicionalmente atuam.
Mas a participação da mulher também cresceu e se tornou majoritária em ocupações tradicionalmente ocupadas
por homens, tais como cirurgia dentária (58%), matemática (57%), estatística (55%), biologia (51%) e escritores
e redatores (51%). A participação das mulheres cresceu principalmente na faixa etária inferior a 40 anos e em
ocupações que exigem maior grau de escolaridade. Entre os homens, a redução do emprego dá-se principalmente
entre os trabalhadores jovens com menor grau de escolaridade” . SISE/ SGGE/Fundap (2002).
100
termos absolutos, as ocupações que mais cresceram na região foram: serviço doméstico,
vigilância privada, atendente de serviços, atendente balconista, motorista. Por outro lado, a
introdução das novas tecnologias nos processos de trabalho em diversos setores industriais51
Entre seus efeitos principais, dois chamam mais a nossa atenção: o aumento da segmentação e
pauperizados.
do número de pobres ocorre no centro mais dinâmico do país – na RMSP. Este crescimento
ainda mais precisa, a análise destes processos. Estes autores, ao demonstrarem os efeitos do
Primeiro: as famílias mais afetadas pela redução de renda foram as que, em 1990, possuíam os
51
Fonte: SISE/ SGGE/Fundap (2002).
52
A autora exemplifica esta situação com a RMSP, onde, com o salário mínimo de R$151,00 e a linha de
pobreza per capita mensal estimada para a região na ordem de R$167,00 (set. 1999), um indivíduo que receba
dois salários mínimos e tenha um filho estará situado abaixo da linha de pobreza.
101
rendimentos auferidos pelas famílias situadas nos extremos da distribuição de renda, o que
indica que houve crescimento do número de famílias posicionadas abaixo da linha de pobreza.
Enquanto que os 5% mais ricos conseguiram obter aumento de 1% no valor real de sua renda
per capta, entre os mais pobres, o decréscimo da renda per capta média atingiu 42%, passando
década de 90, a renda familiar continuou a trajetória descendente iniciada em 1996. Em 1998,
a renda familiar total era estimada em 1.693 reais, tendo passado para pouco mais de 1.500
reais em setembro de 2000. Esta queda de cerca de 11% na renda familiar deu-se em
decorrência da diminuição do valor real dos rendimentos do trabalho, já que estes respondem
por quase 80% do total auferido pelas famílias residentes na metrópole paulista. Além da
queda de 10% da renda do trabalho, também contribuíram para a diminuição da renda familiar
redução do nível médio do conjunto das rendas provenientes de outras fontes (poupança,
houve queda da taxa de desemprego – de 19% para 17% da população economicamente ativa
no período –, o que interrompeu a trajetória ascendente do indicador, desde 1994. Este foi,
segundo os autores, um dos poucos fatores a atuar contra a diminuição do nível médio da
renda familiar.
A renda familiar per capita apresentou uma queda de 5%, o que representa uma
redução menor, com relação à observada em períodos anteriores. Segundo os autores, esta
Metropolitana de São Paulo, seja pela queda da fecundidade, seja pelo crescimento de
102
indicador, segundo percentis de renda, evidencia que as famílias de maior poder aquisitivo
conseguiram escapar à queda de rendimentos apontada, mantendo o valor real da renda frente
à inflação do período (16,1% acumulada nos dois anos). Entre os 10% das famílias mais
pobres, à redução da renda per capita foi da ordem de 5%, provocando uma forte pressão
renda média das 25% mais ricas e 25% mais pobres, as famílias situadas nos percentis
intermediários é que vieram a sofrer maior queda dos níveis de rendimento, certamente
passaram a responder por 38% da massa de renda familiar, quando, ainda em 1998,
apropriavam-se de cerca de 36%. Para as famílias mais pobres, considerando-se os 10% com
renda mais baixa, coube 1% da massa de renda total no período. Quando se toma segmentos
numericamente mais expressivos, constata-se que para a metade das famílias mais pobres da
região, não coube mais do que 18% do total da renda, ao final dos anos 90.
a seguir, demonstram que a interrupção do crescimento populacional, que teve na redução dos
fluxos migratórios um fator decisivo, representa, sem dúvida, uma forte expressão da natureza
crescimento atingiu a taxa de 1,87% ao ano, e entre os anos 1991 e 1996, a taxa de
53
Dados de Taschner (1986).
103
crescimento populacional, que passou de taxas de 6,1% a.a., nos anos 50 e 60, a taxas de 1,2%
municípios da região tiveram crescimento de 3,08% ao ano, entre 91 e 96, e de 3,20% ao ano,
na década de 80. Ou seja: ocorre desde a década de 80 uma forte redução do saldo migratório
populacional, elevando para cerca de 40% seu peso na população total da metrópole, enquanto
o Município de São Paulo, que já representou 72% em 1970, hoje concentra cerca de 60% dos
Por outro lado, a RMSP retém cada vez menos a população que recebe. Muito
embora esta seja ainda a principal porta de entrada dos migrantes que se dirigem para o estado
de São Paulo, esse papel tem sido, atualmente, compartilhado com outras áreas.
emigração, marcada, em especial, por movimentos de retorno dos migrantes, aos seus estados
de origem. De acordo com suas análises, estas novas características se vinculam à perda da
trabalho54.
Os autores refutam a noção de que a migração possa ser tomada como raiz da
54
A análise por regiões mostra que o crescimento do desemprego no Brasil teve uma distribuição desigual,
tendendo a concentrar-se nos principais centros industriais. Ver Sabóia (2001).
104
periferias e, também, para as posições mais precárias do mercado de trabalho local. Além do
que,
trabalho formal. Assim, as chances de inserção do trabalhador migrante acabam restritas aos
estratos mais precários do mercado, o que não significa que estes trabalhadores não sejam
consolide ação da principal metrópole do país, desde a expansão industrial do pós 30, quando
baixo preço.
demográfica que vem acontecendo na região. A autora demonstra que o fato de muitas
indústrias repassarem suas plantas industriais para outros núcleos urbanos do estado,
interior. De acordo com a autora, a região do estado que mais cresceu no início da década de
55
“De fato, a sensação de serem "pau pra toda obra" é o que fica evidente nos dados analisados para os
migrantes metropolitanos e que, portanto, não se poda eles imputar a responsabilidade da desestabilização do
mercado de trabalho local”. (CUNHA; DEDECA, p.2, 2001).
105
90 foi aquela composta pelos municípios da Grande São Paulo, atingindo um saldo migratório
de 440 mil pessoas. A capital do estado cresce, portanto, a um ritmo menor do que aquele do
seu entorno.
Trabalhadores Sem Teto, estudado nesta tese, foi a cidade paulista com maior crescimento
capacidade ressocializadora das grandes cidades. De acordo com o autor, nas grandes
metrópoles “[...] a excludência vem se transformando num modo de vida” (MARTINS, 2002,
p.149), porque o que era antes vivido como transitório, hoje perde o sentido da esperança
“dessocializam, mas não ressocializam, não preparam [...] para uma nova sociabilidade mais
representar, não a possibilidade de alcance de uma nova vida, mas a tentativa, em geral
movida pelo desalento, e não pela esperança de arranjar algum emprego na grande cidade.
Boa parte das vezes, porém, encontra-se, não um emprego, mas alguma estratégia de
sobrevivência, o que faz com que o migrante se sujeite a situações de “[...] anomia, de
que se destina esta pesquisa, que os fenômenos em curso na RMSP expressam, de forma
sociedade brasileira, particularmente nos últimos vinte anos. Fruto deste modelo
concentracionista, a pobreza no país tenda, cada vez mais, urbanizar-se, o que demonstra a
106
de trabalho, no período atual, uma vez que a posição que os indivíduos ocupam na estrutura
larga medida, seu nível de renda e suas possibilidades de acesso aos bens e equipamentos
urbanos. Todavia, há que se levar em conta que o ajuste fiscal praticado pelos últimos
sem garantias de reprodução de sua força de trabalho, daí a importância de estudos que
agravamento atual da questão social na sociedade capitalista, cujos determinantes podem ser
assim sintetizados:
burguesa.
107
constituem o lugar privilegiado das expressões e conseqüências mais intensas dos processos
urbano se dão de modo contínuo e cumulativo, cada fase carrega resquícios, memórias das
ambientes cada vez mais degradados e violentos. Esses rearranjos espaciais espelham e, ao
O que tem sido constatado nos estudos citados é que as alterações em curso
Metropolitana de São Paulo, como também se espraiam no conjunto da vida social da grande
metrópole e seu núcleo. Entre as características principais destas mudanças, realçamos, não
ATUAL
No item anterior, vimos que uma das principais contradições abertas pela atual
acumulação. A agudização desta contradição social tem condenado parcelas significativas dos
56
Ver Carlos (2003).
108
trabalhadores aos efeitos da barbárie social, neste momento da história em que o capitalismo
próprias leis57.
contribuição importante a esta reflexão, uma vez que põe em relevo uma das características
que empurram para a cidade numerosos habitantes do campo e de cidades menores, que se
abrigam precariamente, e via de regra, acabam se aglomerando nos locais periféricos privados
de recursos. Nestes lugares, o custeio da sobrevivência diária, exceto os gastos com habitação,
é mais elevado do que nas áreas centrais, o que expressa a existência de uma íntima
é altamente seletiva, grande parte da população é excluída do acesso aos bens mais básicos
(água, luz, esgoto, transportes, escolas e hospitais), sendo este um dos aspectos mais
importantes dos contrastes entre centro e periferia. A este respeito, Santos observa que, a
[...] forma como a cidade é geograficamente organizada faz com que ela não
apenas atraia gente pobre, mas ela própria cria ainda mais gente pobre. O
espaço é desse modo, instrumental à produção de pobres e da pobreza; um
argumento a mais para considerarmos o espaço geográfico não apenas um
dado um reflexo, mas como um fator ativo, uma instância da sociedade,
como a economia, a cultura e as instituições (SANTOS, p. 59, 1990).
57
Ver Fiori (2004).
109
ser concebido como um mero reflexo, uma vez que impõe restrições e possibilidades aos
suas mudanças deve levar em conta o exame do processo de produção e reprodução social e,
logo, deve se radicar em processos históricos e sociais, que engendram uma estreita
interligação dialética entre espaço e tempo e entre sujeitos e circunstâncias. Trata-se, a nosso
ver, de relação social materializada no espaço, cuja produção e transformação resultam, não
das características particulares que esta interligação assume na capital paulista e no seu
preço dos aluguéis, fizeram com que a moradia de aluguel deixasse de representar a única
110
opção para a população de baixa renda. Esta população buscou as suas próprias alternativas
sobrevivência. Esta foi, de acordo com uma bela reflexão de Bonduki, a forma possível de
ainda que em condições irregulares e clandestinas Atualmente, esta forma de acesso à cidade
periferização.
Região Metropolitana de São Paulo, permitiu afirmar que 41,44% dos inquilinos na faixa de
renda mais baixa gastavam, no pagamento de aluguel, no mínimo, 50% de sua renda,
enquanto 8,6% destes inquilinos despendiam, com aluguel, uma quantia superior à sua própria
à demanda por habitação e a procura por terra assumiu grande dimensão, visto que fugir do
trabalhadora58.
Condições de Vida (PCV). Segundo análise da PCV, embora o número de casas na RMSP
tenha aumentado, houve crescimento acentuado das denominadas invasões. Calcula-se que o
número de domicílios “invadidos” na RMSP tenha crescido, entre 1994 e 1998, 40%. É
1990, quando representava 4,3%, posto que em 1994 atingiu o percentual de 6,5% do total dos
domicílios e, em 98, representou 9,1% deste total, segundo a Funde ação Seade (2001). Os
autores da pesquisa observam que este crescimento das ocupações ocorreu simultaneamente à
Tabela 1
Distribuição das famílias, segundo formas de apropriação da moradia estado de São
Paulo, RMSP e interior 1994 – 1998 (%)
Formas de apropriação da Estado de São Paulo RMSP Interior
Moradia
1994 1998 1994 1998 1994 1998
58
Dados e análise extraídos de Bonduki (1992).
112
proprietárias no interior cresceu cinco pontos percentuais, ao mesmo tempo em que ocorre a
crescimento desta forma de apropriação no período foi de 2,6 pontos percentuais, o que
Ainda de acordo com a PCV, podemos ver que é na RMSP que se avolumam as
questões referentes, não apenas à ausência de moradia, mas também, às questões relativas à
ainda de acordo com a Funde ação Seade (2001), é a região do estado na qual o déficit é mais
acentuado, 3,6%, contra 2,4% no interior paulista, conforme mostra a tabela a seguir. Já no
59
De acordo com a PCV, o déficit habitacional agrupa as moradias que devem ser substituídas porque não
oferecem as condições de segurança indispensáveis a seus ocupantes. As edificações identificadas que não
garantem segurança são os barracos. As outras edificações consideradas precárias entraram no critério
inadequação.
113
Tabela 2
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
Déficit 3,1 3,6 3,2 2,4 (3,4) ... 9,0 ... ... ...
Inadeq. 37,6 45,2 43,4 24,7 21,0 29,3 31,9 17,7 20,9 22,3
Adeq. 59,3 51,3 53,4 73,0 75,6 70,3 59,0 81,9 76,7 76,4
constatação, porém, não é suficiente para permitir a apreensão dos determinantes sócio-
da distribuição de renda, posto que a histórica articulação entre propriedade privada do solo,
porém, o que pode ser constatado é que a articulação entre estes processos obstaculiza, não só
a aquisição da moradia neste mercado, conforme já referido, mas também, o acesso à moradia
Região.
114
interesse desta pesquisa, o fato de que as alterações na forma de morar são, também,
sociais em curso. O autor, em seu estudo sobre a produção social dos espaços periféricos60 da
RMSP a partir dos anos 90, ressalta que tem havido melhoria nas condições de vida de uma
que indicaria existência de grande diferenciação e heterogeneidade social, mesmo nos espaços
As áreas ainda mais precárias devem ser tratadas, segundo Torres (2001), como
riscos sociais, residenciais e ambientais de diversas origens. Estes são espaços habitados por
segmentos sociais, que não se assemelham à população operária ou, até mesmo, ao exército
industrial de reserva, típicos das periferias dos anos 70. Trata-se, conforme palavras do autor,
Para explicitar melhor sua análise, Torres (2001) argumenta que existiam na
Região Metropolitana de São Paulo, em 1998, aproximadamente 1,7 milhões de pessoas (10%
acordo com a PNAD-IBGE, o que corresponderia a uma renda per capita inferior a R$ 2,50
por dia, para uma família com quatro pessoas. As áreas de periferia mais tradicional, e mesmo
60
A análise de Torres e Marques (2001) se baseia no relatório sobre os indicadores sociais referentes ao Censo
de 1991.
115
mobilidade social ascendente são praticamente inexistentes. Esta imensa parcela da população
é obrigada a habitar em locais ainda mais precários, tais como as áreas de risco ambiental ou
Essas condições, talvez ainda mais precárias do que as descritas para as periferias
dos anos da expansão industrial, indicam um padrão de segregação mais complexo e, ainda,
[...] (à ação do) mercado de terras que torna as áreas de risco ambiental as
únicas acessíveis a grupos de baixíssima renda, [...] as ações do poder
público e de produtores privados do urbano, passando pelos padrões mais
gerais de transformação dos mercados de trabalho (TORRES; MARQUES,
p.32, 2001).
mesmo naqueles momentos em que a renda média apresenta algum crescimento, como o
hiperperiferização.
investimento público resultante, tanto das pressões do capital imobiliário, quanto das pressões
oriundas dos movimentos sociais, estas não foram capazes de, por si só, alterar o padrão de
desenvolvimento urbano estruturado para servir a uma divisão territorial do trabalho baseada
116
trabalho61.
como também, esta desigualdade sofre terrível agravamento. O empobrecimento agudo tem
da classe trabalhadora tem sido obrigada a se concentrar em áreas cada vez mais distantes do
núcleo metropolitano, onda disputa por condições materiais de vida urbana é menos intensa e
reserva ou do operariado dos anos 70, uma vez que a relação deste segmento com o mercado
de trabalho não só é absolutamente frágil, conforme palavras do autor, mas, sobretudo, sem
perspectivas.
que os moradores dessas áreas são parte de um segmento em expansão, que vivencia uma
experiência de classe distinta daquela do operariado dos anos 70. A sua relação com o
mercado de trabalho é, via de regra, não só informal, mas também, intermitente e instável.
Com efeito, esse segmento da classe trabalhadora se distingue, também, daquela fração do
exército de reserva com alguma possibilidade, ainda que muitas vezes pequena, de
no mercado de trabalho são praticamente nulas, tendendo a se constituir, assim, ao que tudo
61
Ver Marx (1985) e Santos (1990b).
62
Ver Ribeiro (1997).
117
segundo Marx “[...] vegeta no inferno da indigência, do pauperismo” (MARX, p. 7 46, 1985)
proletariado, bem como na constituição de uma classe média, com poder de compra, e na
brasileira. Ainda que a segregação seja recorrente nas grandes cidades contemporâneas,
especialmente naquelas que foram, ou são centro da expansão industrial, nas cidades
todavia, exclusivamente aos espaços periféricos. Dados recentes indicam que estas mudanças,
conforme já referido, podem ser contatadas, também, no centro da grande metrópole. De fato,
da RMSP.
118
década de 70, até o final dos anos 90, a migração de empresas para os municípios do interior
acarretou aumento do pauperismo na capital paulista, o que fez com que a chamada cidade
informal tenha crescido mais intensamente do que a regular. Os novos domicílios em favelas,
manifestaram-se, com maior intensidade, “invasões” de terra urbana, tanto que, em 1993,
somente 41% dos chefes de família declararam ter pago por seu lote, contra 4,3% em 1987.
distintamente do que acontecia no início do século XX, a moradia precária de aluguel não
mais se situa, predominantemente, nas zonas centrais melhor equipadas e mais próximas ao
mercado de trabalho. O cortiço de periferia tem se tornado uma das expressões destas tristes
retornou, nas últimas décadas, de forma mais aguda, sobretudo nas áreas de proteção aos
mananciais. Entre 1984 e 1990, foram identificados 105 loteamentos clandestinos nessas
63
Na cidade de São Paulo, o fenômeno favela, embora presente nos anos 40, só vai se desenvolver em larga
escala nos anos 70. "Em 1957, apurava-se na capital de São Paulo um total de 141 núcleos, com 8.488 barracos e
cerca de 50 mil favelados” (FINEP -GAP,1983,p 6). Em 1973, os aglomerados favelados já somavam 542, com
14.650 domicílios e quase 72 mil pessoas (1,09% da população municipal). Em 1980, eram 80.535 moradias,
com 440 mil pessoas (5,18% da população da cidade). Segundo o Censo de favelas de 1987, o total
dassentamentos favelados em São Paulo chegou a 1592, com 150 mil casas, abrigando 813 mil pessoas (8,92%
da população da capital). Em 1993, data da última pesquisa, o número das moradias faveladas atingiu 378,6 mil,
com 1,9 milhões de pessoas, 19,8% da população municipal.
119
drasticamente. No início do ano 2000, a capital de São Paulo abrigava 900 mil pessoas
morando em cortiços; em 1.500 favelas residiam 1 milhão e 300 mil pessoas, e mais de 10mil
moravam na rua. Em contraste, cabe registrar que a concentração de renda na cidade é a maior
do país. Durante o período do Plano Real, a renda da elite, que era em 1994, 41,2 vezes
superior à dos segmentos pauperizados, passou a ser 45,5 vezes superior, em 1998.
Observando a pirâmide social, verifica-se que os 5% mais pobres detinham 0,6% da riqueza
início do ano 2001, o Brasil tinha 960 mil moradias tidas como inadequadas. Dessas, 402.551,
ou seja, aproximadamente 40%, situavam-se na cidade de São Paulo65. Estes estudos mostram
que o número de pessoas que vivem em favelas, nas ruas, em cortiços ou em "mocós", em São
Paulo, já supera a população de 15 das 26 capitais do país. São, pelo menos, 1,077 milhão, ou
meio da comparação dos dados dos últimos censos. No Censo de 1991, 743.468 pessoas
viviam na capital em imóveis ou espaços não adequados à habitação. Em 2000, este segmento
já havia crescido 45%. No mesmo período, porém, a população total cidade aumentou apenas
8%. A explosão populacional aconteceu, portanto, entre os sem-teto e as pessoas que vivem
no que o IBGE define como aglomerado subnormal, cômodo (cortiço), domicílio improvisado
("mocó") e favela67.
64
Dados extraídos de Gutemberg (2000).
65
Jornal O Estado de S. Paulo, 19 de maio de 2001.
66
Este levantamento foi feito pela Folha de São Paulo com base em dados do Censo Demográfico 2000 e no
último levantamento realizado pela administração municipal, também em 2000, para apurar o número de
moradores de rua, que não são recenseados.
67
O domicílio improvisado, pelo conceito do instituto, é toda instalação fixa que não deveria servir de moradia –
como prédios em construção, postos de saúde, vagões de trem, buracos, carroças, tendas, grutas entre outros.
120
habitantes de São Paulo morava em habitações consideradas irregulares. Dos 5,5 milhões de
habitantes, 3 milhões viviam em loteamentos clandestinos; 1,9 milhão em favelas (dos quais
13,8% pagavam pelo local) e 600 mil cortiços68. Este levantamento também mostra que 1,3
milhão de moradores dos loteamentos ilegais não têm acesso a infra-estrutura básica69.
entre 1980 e 2000, esta população cresceu 4,4% ao ano. Ou seja, numa intensidade 4 vezes
superior à média da metrópole, o que ratifica a degrade ação das condições de vida, neste
O volume dos moradores em domicílios precários foi o que mais aumentou nos
anos 90: (101%), seguido pela população de rua, (80%). O número de moradores de rua em
São Paulo era 8.704, em 2000 e em 2001, dez mil pessoas70. Parte dessas, provavelmente, faz
parte do segmento que dorme nas ruas da cidade, por não possuir condições de retornar,
Bógus (1998) este morador configura uma situação nova “a do desabrigado com teto”. Trata -
se do morador de rua que possui casa na periferia, mas que não consegue arcar com o tempo e
o custo das quatro horas de locomoção diárias, entre sua casa e o local de trabalho.
É importante salientar que, segundo pesquisa elaborada pela FIPE em 2000, 70%
da população de rua, de São Paulo, encontra-se no auge de sua capacidade produtiva. Estas
seqüência de perdas.
68
Em 1993, a pesquisa FIPE/SEHAB registrou 24 mil imóveis cortiçados em São Paulo, com 161 mil famílias
moradoras e uma população de 600 mil pessoas, 6% da população paulistana.
69
Fonte: reportagem do jornal Folha de S. Paulo (4/6/2000)
70
Fonte: IBGE.
121
lhes a inserção social, nos moldes do que Martins (2002) denomina de inclusão perversa, nas
estratégias de sobrevivência, antes praticadas por mendigos e tidas como iníquas ou, até
mesmo, repugnantes, como por exemplo: catar lixo, catar papel, catar latinhas. Martins
Martins (1989), a teoria da superpopulação relativa possui, como elemento central, a idéia de
que são criados excedentes populacionais úteis. A utilidade dos trabalhadores, excluídos do
processo de trabalho capitalista, reside no fato de que, na maioria das vezes, encontram-se
Esta arguta reflexão do autor nos leva a concluir que se, por um lado, o trabalho
formal, estável por tempo determinado e socialmente protegido tenda ser uma realidade do
impõem atualização do conceito marxista de "exército industrial", ainda que com nova
interpretação.
71
Ver a este respeito em Iamamoto(2001)
122
radicalidade.
amplos segmentos da classe trabalhadora, constatado a partir dos dados e análises relativos à
capitalismo não correspondem no mesmo tempo histórico, e nem da mesma maneira em todas
Metropolitana de São Paulo, não constitui um dado apenas do presente. Ao longo dos anos, os
vezes, extremamente violentas. Após ter sido empurrada para as periferias, hoje, devido ao
processo de valorização destas áreas, a classe trabalhadora tem sido expulsa para locais ainda
72
Ver Martins (1989) e Iamamoto (2001).
123
que não tem por determinante, unicamente, o atual padrão de a acumulação. Na verdade, este
retrocesso é fruto de expropriações cumulativas, que fazem cair por terra as expectativas e as
análise das implicações sociais da atual metamorfose estrutural da economia e de sua forma
pauperizado, tanto no que se refere às suas condições objetivas de existência, quanto no que
diz respeito às suas condições subjetivas, o que inclui a consideração de valores e práticas.
pertencimento à classe trabalhadora tecem experiências de vida diversificadas. Por esta razão,
torna-se necessário, para os fins a que se destina este trabalho, apreender as condições
em que vive a sociedade urbana brasileira, constituindo parte essencial e visível de uma
sociedade, assim, a falta de habitação não é nenhum acaso, é uma instituição necessária e,
juntamente com suas repercussões sobre a saúde, [...] só poderá ser eliminada quando toda a
ordem social de que resulta for revolucionada pela base”. (ENGELS, p.51,1984)
investimento nas áreas que constituem o cenário da cidade hegemônica ou oficial, com a
equipamentos é apropriado de forma distinta pelas classes [...]” (BIENSTEIN, p. 19, 2002).
equipadas, frações da classe média e, em áreas bem melhor servidas, fortificadas e afastadas,
(2000), ocorre a privatização de espaços públicos, com vistas à garantia da segurança dos
segmentos sociais de alta renda, que se sentem ameaçados pela proximidade física daqueles
“classes perigosas”.
segregacionista, confirma a forte tendência da burguesia brasileira a ser avessa a qualquer tipo
mantido sem objeções e resistências, protagonizadas por movimentos sociais, que impuseram
sua presença e demandas no cenário político paulistano, desde as primeiras décadas do século
passado.
monopolista da propriedade privada. Para isto, iremos traçar um panorama dos movimentos
sociais de luta por moradia na Região Metropolitana de São Paulo, a partir década de 70 do
século passado, até o ano 2000. Decidimos limitar a análise a partir da década de 70 porque,
mobilização.
diferenças entre os movimentos que alcançaram forte presença na cena pública, a partir da
73
Ver Harvey (1982).
74
O termo pensamento único foi utilizado, pela primeira vez, por Ignacio Ramonet, no Le Monde Diplomatique,
em 1995. O jornalista usou o termo para alertar para a hegemonia de um instrumental ideológico que objetiva
impor universalmente o domínio absoluto do mercado e da economia sobre os rumos políticos e sociais do
mundo, cada vez mais internacionalizado, pós derrota do socialismo real.
126
p.59, 1998).
à tona os saberes e as práticas dos sujeitos individuais, ou coletivos, que constroem estratégias
de confronto com a ordem vigente, e não circunscrever-se, unicamente, à apreensão das leis
dominantes.
totalidade social. Esta compreensão tem sido menosprezada, tanto nos estudos que tendem a
enfatizar a ação dos sujeitos na estruturação da vida social, como naqueles que analisam as
circunstâncias objetivas da experiência social, sem considerar a ação. Cabe, contudo, ressaltar
que, na reflexão da totalidade, os processos singulares vivenciados pelos sujeitos sociais, não
são tomados de modo abstrato. Tais processos são refletidos à luz de seu enraizamento na
história dos homens, em geral, e dos homens e mulheres, em particular. Por esta razão,
constitui-se uma exigência desta perspectiva teórica, a contextualização histórica e social dos
movimentos sociais.
direcionaram suas lutas para o enfrentamento das contradições decorrentes do modelo político
a partir de meados da década de 70, sob o impulso das lutas operárias, que deram origem ao
novo sindicalismo. A partir deste momento foi retomada a articulação democrática pelo
“direito dos de baixo” (FERNANDES, 1986) à organiz ação e manifestação políticas. A partir
127
Este foi um momento marcado, também, pela luta por ideais democráticos
Anistia dos Presos Políticos, a campanha das “Diretas Já” e o processo Constituinte. Outros
hierarquizadas estruturas, conservavam o poder concentrado nas mãos dos dirigentes, por
movimentos sociais se confrontaram com fortes tradições culturais dos movimentos populares
movimentos sociais, neste período. A influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)
sobre a ação dos movimentos sociais de São Paulo, à esta época, é interpretada por Singer
(1980) como a marca de um novo período na história das lutas urbanas. A atuação das CEBs
contribuiu para o alcance de maior autonomia organizativa dos movimentos, diante do Estado
128
e dos partidos políticos, e para a afirmação de uma nova postura frente ao direito,
passam, a partir dessa influência, a compreender a luta por meios de consumo coletivo, como
luta por direitos associados à vida urbana e, não mais como concessões, ou dádivas, a serem
para Assistência Social e Educacional (FASE)75, a partir da metade da década de 70, duas
movimento de loteamentos periféricos. Ao final dos anos 80, ganha visibilidade pública,
Paulo, no ano de 2000, confirmam esta tendência. A partir dos anos 90, intensificaram-se os
movimentos de luta por moradia, que atuam no centro da capital, envolvendo, principalmente,
o movimento dos encortiçados e dos sem teto. Evidentemente, esses dados não são adequados
porém avaliamos que por se tratar de fenômeno recente e crescente, com grande repercussão
pública e, localizado na maior e mais desenvolvida cidade do país, estas informações podem
Cassab (2000) aponta as seguintes causas desta intensificação: nos últimos anos
ao afluxo de pessoas, em busca de moradia mais próxima aos locais de trabalho e que não
75
Fase - SP, junho de 1995.
76
Cabe justificar, também, que por não dispormos de dados a respeito da dinâmica das lutas por moradia no
conjunto da região, por não ser este nosso objeto de estudo e, devido à relevância destas lutas na capital, optamos
por centrar a exposição e análise nas lutas por moradia na metrópole paulista.
129
podiam arcar com os custos de deslocamento da periferia, e nem com o pagamento de aluguel
sucessivas ameaças de despejo dos moradores. Estes atos, segundo relatado na pesquisa,
incluindo a articulação entre bens culturais e turismo. Para concretizar a propalada renovação
lideram, atualmente, as lutas no centro de São Paulo: a União das Lutas de Cortiço, o Fórum
Todos integram a União dos Movimentos de Moradia (UMM) que, além dos movimentos do
Centro, reúne movimentos em defesa de favelas das diversas regiões da capital. A UMM atua,
também, em nível estadual, no ABC e interior, e integra a União Nacional, presente em sete
estados: Pará, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Ceará e Paraíba.
77
Ver Seabra (2000).
130
tanto aos poderes públicos, em diferentes níveis (municipal, estadual e federal) e âmbitos de
internacional.
A relação dos movimentos de luta por moradia com o atual governo municipal,
quando da realização da pesquisa de Cassab, no ano 2000, ainda estava em fase de definição.
Boa parte dos representantes dos movimentos fez campanha para a prefeita Marta Suplicy, do
Partido dos Trabalhadores e alguns assumiram postos no governo municipal. Alguns desses
representantes começaram, após poucos meses de governo, a tecer críticas à prefeitura, pela
referentes à questão da moradia. O projeto intitulado “Morar perto do Centro”, cujo objetivo é
garantir a permanência na área central do município, por exemplo, foi apresentado pelos
histórico e geração de renda, para as famílias moradoras de cortiços. O seu objetivo é evitar a
expulsão das famílias de baixa renda da área central de São Paulo. Na formulação desta
representantes do Movimento dos Sem Teto do Centro, por exemplo, defendem uma Reforma
Habitacional e Urbana capaz de criar novas condições de vida urbana, que atendam às
capital financeiro.
78
Tese do MSTC para a 1ª Conferência Municipal de Habitação de São Paulo, São Paulo, setembro, 2001
132
(...)
3.4. Que os imóveis fechados, por mais de três anos, só possam ser
reutilizados para moradia popular;
79
Observação constante do documento: “(o substitutivo aprovado não contem pla as propostas do original), cujas
diretrizes devem orientar a utilização do estoque de propriedades imóveis, destinando-as para fins sociais.” (tese
do MTST, 2001).
133
e serviços que envolvem o habitar como prevê, também, de modo articulado, a necessidade de
reorganizar a própria lógica que presida constituição da cidade, uma vez que postula a ação
80
Tese do MSTC para a 1ª Conferência Municipal de Habitação de São Paulo, São Paulo, setembro, 2001.
134
Região Metropolitana de São Paulo, permite concluir que, nesta conjuntura de ofensiva
economia brasileira aos comandos centrais do capitalismo, cada vez mais internacionalizado,
restritos.
como no início do século passado, aberta a responder, por meio da adoção do novo, a todo e
qualquer movimento renovador das economias centrais81. Por ser a metrópole brasileira em
nítida e contundente.
81
Ver Santos (1990).
135
vez que o destino de amplos e crescentes segmentos sociais são as soluções habitacionais
referência esta análise de Santos, podemos supor que a concentração de trabalhadores é hoje,
de certa forma, ameaçada pela dispersão resultante do desemprego, o que parece conferir aos
Por fim, é nosso intuito sublinhar que este perfil da questão habitacional na
trabalhadora na sociedade brasileira atual. Estas mudanças têm acarretado, conforme afirma
82
Ver a respeito da concepção subjacente às políticas habitacionais no Brasil em Bonduki (1998).
136
principais determinantes da agudização das contradições sociais, como também apontam para
historicamente, como menos capazes de intervir na luta política – requer, à luz das novas
experiências desenvolvidas por estes segmentos, a análise crítica dos pressupostos teóricos
norteadores da reflexão sobre movimentos sociais. A questão é: até que ponto os movimentos
capítulo, tomando por base a experiência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto,
CAPÍTULO 3
concentrar a vida social na cidade. Reafirmamos, todavia, que a materialização desse processo
expansivo não se realiza de modo linear, evolutivo e nem, muito menos, homogêneo. Ao
a concretização desse desenvolvimento desigual em suas distintas faces. Uma delas é, sem
com pesos distintos, para a consolide ação da desigualdade sócio-espacial, na escala intra-
metropolitana.
uma relação de apoio recíproco, porém hierárquica e desigual, dada à operação dos
da metrópole.
Esta marca da expansão social e espacial da metrópole tem se acentuado nos anos
recentes, especificamente entre os anos 80 e 90, quando o fluxo migratório passa a direcionar-
se, com mais intensidade, para o entorno urbano, do que para o núcleo da metrópole. A partir
segmentos mais pauperizados das classes trabalhadoras passam a residir em áreas ainda mais
habitabilidade. Trata-se de um macro processo que, com alguma ousadia, poderia ser
aumento das lutas por moradia, serviços urbanos e equipamentos sociais, nestas cidades, pode
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na Região Metropolitana de São Paulo (MTST). O
Garibaldi. É nosso objetivo extrair da dinâmica desta experiência do MTST, elementos que
na atual conjuntura. Com este intuito, trataremos, neste capítulo, do processo de constituição
Movimento. Não é nossa intenção precípua conferir um ordenamento rígido a estes relatos,
mas sim, resgatá-los (nos limites do que nos foi possível recolher), visando demonstrar a
social, neste período da história do país e no contexto particular do estado de São Paulo.
Sem Terra (MST) no Estado de São Paulo, relatou que ao longo do processo de preparação de
possuíam mais o perfil do campesinato, do ex-pequeno proprietário rural, sem acesso à terra.
Tratavam-se de famílias moradoras na cidade que, segundo suas palavras, “[...] queri am lutar
mas não queriam sair da cidade [...] Precisavam [...] dalguma forma de luta para [...]
sobreviver na cidade,[...] não iam voltar pro campo, por ter vivido algum tempo na vida
da vida nas cidades, este fortalecimento pudesse ser realizado com a participação dos
83
Depoimento dado na palestra “Novas Práticas na Luta pela Reforma Urbana” promovida pelo LASTRO -
IPPUR/UFRJ, em 2000.
140
marcha popular nacional organizada pelo MST, em 1997, foi o fator impulsionador da criação
do MTST. Um dos objetivos do MST, com a marcha, era estimular o retorno de famílias da
cidade para o campo, “[...] mas, no percurso [...] se começou a ver melhor a cidade, como
funcionava, qual era o papel dela dentro do modelo que nós temos. Já antes, militantes se
deslocavam para a cidade em eventuais trabalhos, trazendo gente da cidade para o campo, se
viu a necessidade de tentar criar dentro das próprias cidades focos de organização” (BENOIT,
2002,p.135).
1997, tem por objetivo a luta por moradia, pela reforma urbana e pela transformação social.
Seus organizadores compreendem que as lutas por reforma agrária e por reforma urbana
devem ser travadas de modo articulado, pois, na sua concepção, o alcance das metas da
Outro relato nos foi oferecido por Jota, membro da coordenação estadual do
Movimento, residente no acampamento Anita Garibaldi. Jota foi um dos militantes deslocados
pelo MST para iniciar a organização do MTST. No seu depoimento, o MTST é apresentado
como uma alternativa para assegurar a continuidade da luta pela reforma agrária, num
contexto de drástica redução da população rural e, especialmente, dos segmentos que formam
84
A base social do Movimento era formada, principalmente, por pequenos proprietários rurais, arrendatários,
meeiros, posseiros (no Sul e Sudeste do país) e bóias-frias (no Nordeste).
141
lá no Pontal tinha uma situação muito complexa, porque por ser uma região
onde a maior parte dos camponeses não se fixou na região pelo êxodo rural
do grande centro, ficou todo mundo por ali. E ali, de fato, a produção
agrícola de grandes empreendimentos agrícolas gerava umas sobras e essas
sobras o povo, de uma forma ou de outra, o povo acabou tendo acesso e
então se fixava na região. A maior parte das terras é da União e do estado de
São Paulo. Portanto são terras públicas que foram griladas, que estão sobre a
posse, a propriedade de fato, de uma pequena burguesia agrária que se
organizaram na UDR. [...] É uma situação bem militarizada. Durante o ano
de 1996, o MST fez um acordo com o Governo Mário Covas, porque era
uma região conflitiva. De um lado, muita gente sem terra e que dependia da
terra. De outro lado, uma burguesia latifundiária armada [...].
Sabendo disso, o MST fez várias lutas. O governo Mário Covas era um
governo mais negociador, e fez um acordo com o MST, cedendo 40% das
terras no Pontal. [...]. É um acordo que se constitui como uma faca de dois
gumes: ele (o movimento) pode ficar com a propriedade de 40% das terras,
mas não (pode avançar para o restante) 85 [...] das terras, que eram as dos
latifundiários.
conflitos entre posseiros, grileiros e o estado e a demanda dos participantes do Movimento por
terra, para morar e trabalhar. Seu depoimento prossegue com o relato da decisão tomada pela
coordenação.
[...] Então qual era o jeito do Movimento? Pensar uma saída que não fosse
fazer luta na região. E ali mesmo foi discutido, entre os dirigentes do Sem
Terra, a possibilidade de construção de um movimento urbano que atuasse
na cidade, mas que partisse de um plano de aumento da correlação de forças
entre o MST e as cidades de uma maneira geral. Que esse movimento fosse
unificador dos movimentos que já existiam nas cidades e que canalizassem
para uma pressão sobre o governo, toda essa força social pressionando [...],
para que ,em conseqüência dessa pressão, tivesse conquistas no campo.
teria nascido da busca de uma alternativa diante da necessidade de redefinir a linha de ação do
85
As palavras entre parêntesis são nossas.
86
Vale observar que a região do Pontal de Paranapanema concentrou, entre 1964 e 1981, o segundo maior
número de conflitos no estado. Ver a respeito em Fernandes (1996).
142
[...] A idéia que dava base a essa tática era de que só vai fazer reforma
urbana, quando fizer uma política agrícola que reduza as contradições entre
campo e cidade e faça com que o camponês se fixe no campo e não faça o
movimento de êxodo rural, que ainda acontece. Que a economia agrícola
seja fortalecida no plano da subsistência, no plano da auto-gestão, e não no
plano do capital agrícola, da produção em larga escala, da monocultura. E a
monocultura exerce o movimento natural do êxodo. Há dados que analisam
isso [...]. A idéia é exterminar a agricultura. Então, contra esse movimento,
essa idéia. Agora, a realidade urbana é muito complexa. Não é só essa idéia.
Tem toda uma forma de racionalismo urbano que não permite que a cidade
esteja lá na cidade, saia da cidade e volte para o campo. Já construiu
vínculos sociais. Já tem uma relação com a economia. Ele já está preso à
economia urbana, de modo a que fica mais fácil satisfazer uma distribuição
eqüitativa de toda a riqueza, tanto rural quanto urbana, fica mais fácil fazer
pela via ‘urbanina’, mais do que a via campesina.
maior, que visa a articulação entre movimentos urbanos e o MST e, por vezes, como processo
organização, no Rio de Janeiro, registra que a organização do Movimento teria tido início em
Campinas-SP, em agosto de 1996. A escolha desta cidade teria decorrido da existência das
fato de que, na época, estavam acontecendo, na cidade, lutas desarticuladas por moradia,
com os participantes das ocupações em curso na cidade. Este trabalho resultou na realização
de outras três ocupações que reuniram, aproximadamente, três mil famílias e, ainda, na
143
organização de uma marcha estadual em defesa da Reforma Agrária, de Campinas até São
mas, segundo Oliveira, "[...] esta expressividade que o Movimento ganhou num primeiro
Entretanto, desta luta, teriam surgido militantes que se dispuseram a contribuir na organização
ocupação. Como não houve dispersão dos participantes, o movimento realizou, a seguir, outra
ocupação. Esta ocupação também foi alvo de despejo, resultando, contudo, num acampamento
de 350 famílias. Um ano depois, foi realizada outra ocupação em Campo Grande, que reuniu
que restaram organizaram um acampamento na Avenida Brasil, que durou 15 dias, quando,
Em agosto de 1999, dois militantes do MTST de São Paulo foram deslocados para
Região Metropolitana do Rio de Janeiro, chegou a ter 2.001 famílias assentadas em três
regiões: 1.600, em Sepetiba; 360, em Nova Iguaçu e 41, em Bangu. Entretanto, de acordo com
a avaliação de Oliveira, não foi possível difundir as propostas do Movimento para o conjunto
cooptação utilizado pelo governo estadual. Assim, o MTST acabou por perder o controle e a
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no estado do Rio de Janeiro. Há, por parte
do Rio de Janeiro. Estas lideranças avaliam que as dificuldades enfrentadas, neste estado,
podem ser superadas por meio de uma ação mais adequada às condições de vida e à cultura
locais.
não possui uma coordenação nacional, mas, mantém alguma interlocução com movimentos
análogos em Sergipe, Rio Grande do Norte e em Minas Gerais. Em São Paulo, o Movimento
chegou a reunir quatro ocupações: Parque Oziel, em Campinas; Carlos Lamarca, em Osasco;
Osasco e de São Bernardo foram despejados, mas parte das famílias está alojada e recebendo
forma privilegiada, em contextos que são mais que urbanos, são efetivamente metropolitanos.
145
decisão foi provocada pela constatação da progressiva redução dos números de interessados
em retornar ao campo e se fixar no meio rural. Este fato sinaliza para o movimento, a
necessidade de reconhecimento de um limite objetivo à luta por terra e por reforma agrária.
Sem Teto como uma alternativa, um meio para o enfrentamento desse limite, cujo objetivo é
ampliar a correlação de forças na luta pela reforma agrária, articulando-a à luta por reforma
urbana.
experiência no Pontal de Paranapanema e a realização das marchas. Não temos dúvida sobre a
relevância das marchas na luta por reforma agrária. As marchas apóiam o fortalecimento da
luta por reforma agrária, por permitirem a difusão e a ampliação sócio-territorial da adesão a
esta causa. Entretanto, avaliamos que o fato do MTST ter nascido da experiência do Pontal e
geral, que devem ser decifradas à luz da análise dos processos sociais e históricos,
146
responsáveis pela expulsão da população trabalhadora rural e sua vinda maciça para as
grandes cidades, onde terminam por engrossar as fileiras da população sobrante, face às
para a apreensão das determinações que singularizam o MTST como movimento social. Para
tal, vamos iniciar a análise pelo resgate, ainda que de modo sucinto, das recentes
classes no campo. O foco desta análise se dirige para a apreensão da questão social, no que
para onde tem migrado, nas décadas recentes, parte dos trabalhadores expulsos do campo e do
núcleo metropolitano.
conseqüências de fortes alterações nas relações sociais no campo, em seus efeitos nas grandes
nos isola para sempre do mundo passado. Trata-se, neste verdadeiro divisor de águas, da “[...]
morte do campesinato: [...] a mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da
segunda metade do século XX” (HOBSBAWN, 1996:284). É nosso intuito, todavia, mostrar
como essas tendências mais amplas do capitalismo têm se inscrito em relações sociais que
madura87.
crises inerentes à natureza e à dinâmica do modo de produção. Crises que tendem a aumentar,
mãos dos governos militares, após o golpe de 1964. A partir deste período, toda a vida social
e não mais, apenas, a atuação das instituições estatais, passou a ser determinada “[...] pela
até mesmo socialista, em afirmação nos primeiros anos da década de 60 do século passado. As
forças do grande capital saíram vencedoras dos embates sócio-políticos deste período e
realizado num contexto de ascensão e hegemonia do grande capital, especialmente após 1968.
87
Ver a respeito Netto (1992).
148
Estado não modificou, apenas, o mundo urbano, mas também, as relações sociais no campo.
país. Como parte desta política, foi realizada a modernização e a mecanização da agricultura,
88
Ver a respeito em BOSCHI (1987).
149
Este não era um dilema menor naquela conjuntura, pois o aprendizado da luta
acumulada pelos trabalhadores do campo, ainda que enfrentada por meio de dura repressão,
resultante histórica da dominação e da exploração empreendida pelo latifúndio – era cada vez
mais intensa, o que exigia algum tipo de intervenção, que evitasse por em risco o projeto de
algumas das respostas do regime ao acirramento das lutas do campo no período anterior ao
golpe. Por meio do Estatuto, conforme Martins (1986) demonstra, a reforma agrária é
novas. De fato, a finalidade deste instrumento era esmorecer a luta dos trabalhadores, por
efetivamente, impulsionada pelo Estado. Coube a este, não só assumir o papel de financiador
89
Ver a respeito em Martins (1986).
150
tecnificam” (SILVA, 1999:17) para se adequar aos novos padrões competitivos, presentes na
forças dominantes no agrobrasileiro – que agregam, segundo Martins (1980), aos seus
todavia, na superação das históricas desigualdades entre estados ou, mesmo, entre regiões,
uma vez que o crescimento econômico se materializou de maneira diferenciada. Além disto,
desagregação da produção existente90. Desse modo, constituiu-se, ao longo dos últimos anos,
90
Ver Martine (1987).
151
traduzido em divergências mais profundas entre as frações das classes dominantes, posto que,
particularmente, quando se trata de barrar propostas que realmente efetivam a reforma agrária.
agroindustriais e empresários rurais, têm sido contornadas, ainda que transitoriamente, através
valorização do capital. Neste contexto, perde relevância a idéia de que existe uma burguesia
agrária com interesses opostos aos do restante das frações da burguesia, visto que o grande
capital industrial passou a ter também uma face agrária, decorrente do fato de que o mercado
empresariais com a propriedade da terra, o Estado reforçou, na burguesia como um todo, seu
campo passaram a ter a marca da indústria, do grande intermediário, e, com especial força, do
capital bancário-financeiro.
152
É neste contexto que surge o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). A
agricultores. Parte dos trabalhadores expulsos buscou, nas cidades, oportunidades de emprego
e de acesso à renda. A crise econômica dos anos 80, porém, provocou o aumento do
trabalhadora.
No final dos anos 70, sob a organização da Comissão Pastoral da Terra, à qual
mais tarde se somaram representantes da Igreja Luterana, iniciou-se, nos estados do Sul, a
ano, a Comissão Pastoral da Terra iniciou a realização de encontros que resultaram na funde
ação do "[...] movimento de camponeses sem terra de alcance nacional voltado à luta por terra
regime militar e pela mobilização de diversos segmentos sociais, em direção à superação dos
no campo e na cidade93.
Como parte deste processo de ressignificação das lutas sociais, foi construída uma
91
Netto (1998).
92
Estamos nos referindo às lutas operárias ocorridas em fins dos anos 70,impulsionadas a partir do ABC
paulista, que sacudiram o país, por romper os estreitos limites da estrutura sindical oficial e impor ao processo de
abertura, horizontes políticos mais largos do que os projetados pelo discurso oficial.
153
sindicais, nos movimentos de saúde e outros. Assim, aos poucos, a tradicional subalternidade
política das bases, característica de alguns setores do sindicalismo, foi substituída por uma
diferenças, e até mesmo de divergências teóricas e políticas entre os defensores deste projeto,
estes tinham em comum a luta pela redemocratização da sociedade brasileira e pela afirmação
Terra: o novo sindicalismo, representado pela CUT e o Partido dos Trabalhadores. Estes, ao
trabalhadores rurais, que emergia naquele período. Vale lembrar, ainda, que o envolvimento
da Igreja Católica com a questão da luta pela terra, é anterior a este período.
Hoje, o MST está organizado em quase todo o país. Sua luta por terra e pela
capital.
93
Consultar a respeito em Singer e Brant (1981) e Sader (1988).
154
produtos agrícolas. Com este impulso, as empresas capitalistas, concentradas nas regiões de
Campinas, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, ampliaram exponencialmente a dimensão
de suas propriedades.
do estado. Conforme antes registrado, o Movimento, em sua gênese, contou com o apoio
efetivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT).94 A vitória dos posseiros da Fazenda Primavera,
articulação destas lutas promovida pela CPT, inicia-se, a partir da reunião de lideranças de
parlamentares de oposição, vinculados ao PMDB. A partir dos anos 80, este apoio foi
ampliado. O MST passou a contar com o apoio da Central Única dos Trabalhadores e
de terras desta região ocorreu por meio de grilagem de grandes áreas conquistadas e mantidas
ocupações no Pontal datam do início dos anos 80. Porém, as ocupações impulsionadas pelo
projeto da reforma agrária, sob a bandeira do MST, só tiveram início em 1984. Não
94
Ver a respeito em Fernandes (1996).
155
casualmente, em 1985, o Pontal torna-se berço da União Democrática Ruralista – forte núcleo
leite. O Pontal também abriga extensa área de floresta tropical, incluindo o Parque Estadual
Morro do Diabo, uma das maiores e mais importantes reservas de mata nativa do Estado.
Ltda) está localizada na cidade de Teodoro Sampaio, que tem cerca de 20.000 habitantes. A
CESP (Companhia Energética do Estado de São Paulo), quando da construção das usinas
se de terras devolutas, que estão na origem dos conflitos entre fazendeiros e integrantes do
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Em 1995, a região do Pontal era uma das
mostrou que 15% da terra total do estado poderia ser (re)incorporada ao patrimônio público.
No Pontal, porém, a incorporação de terras tem estado marcada pela lentidão. Segundo
de seis mil famílias, na região. Os últimos levantamentos indicam que, na grande maioria
destes assentamentos, permanecem casais com idade superior a 40 anos. Seus filhos, como os
jovens em geral, não permanecem nos lotes conquistados, já que, muito embora a política de
reforma agrária adotada tenha como princípio a divisão dos assentamentos em pequenos lotes,
para o exercício da agricultura familiar, não existe acesso a recursos financeiros, em volume
familiar disponível.
transferir o barraco para lotes sem qualquer infra-estrutura. Esta situação acaba gerando,
principalmente entre os mais jovens, a busca por emprego nas cidades próximas.
Em 1994, com a eleição de Mário Covas para o governo do estado de São Paulo, e
Cidadania, o advogado Belisário S. Júnior95, que contribuiu para dar início à negociação com
o Movimento. Após longo embate entre as partes envolvidas, o governo decidiu apresentar
um acordo que previa, dentre suas diversas cláusulas: a utilização, nas ações reivindicatórias,
de 500 hectares, ou até 30% do total da área em litígio, para assentamentos provisórios, sem
95
De acordo com Fernandes (1996), o advogado possuía, em sua trajetória profissional, ligação com a
Arquidiocese de São Paulo. Desse modo, sua nomeação para a Secretaria representava, em certa medida, um
157
Este acordo não foi considerado satisfatório, nem pelos coordenadores do MST,
nem pelos grileiros. Para os primeiros, a extensão de terras destinadas para assentamento, nas
fazendas ocupadas, era insuficiente para assentar todas as famílias acampadas. Já os grileiros,
não aceitaram a proposta, sobretudo por duas razões: o acordo não limitava o assentamento de
famílias, em apenas uma localidade, o que favorecia a ampliação territorial das ocupações, e,
segundo o relato de Fernandes (1996), a proposta atendeu aos interesses dos acampados, já
cansados dos constantes despejos, o que gerou grande tensão na relação entre a coordenação
do MST, e sua base. Neste contexto, acirrou-se o conflito, incluindo a prisão de líderes do
presidência da república. Por fim, em abril de 1996, o Superior Tribunal de Justiça, acatando
recurso da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, ordenou, para fins de reforma agrária,
Paulo quatorze acampamentos com três mil quatrocentos e noventa e nove famílias, fato que,
de acordo com o autor citado, demonstra que a reforma agrária no estado e no país vem sendo
Trabalhadores Sem Terra, acumulou uma larga experiência política, resultante da avaliação
luta por reforma agrária, além de ter reunido um conjunto de aliados políticos e simpatizantes,
país, o Movimento se depara com o terrível agravamento da questão social, cujas repercussões
tornam ainda mais difíceis as condições de vida da classe trabalhadora, no campo e na cidade.
especialmente dos setores de baixa renda, além de crescente sangria de recursos, dada a
97
Essa informação pode ser comprovada a partir do Censo Agropecuário de 1996, que revela os resultados de
onze anos de neoliberalismo no campo brasileiro. Os dados demonstram que as políticas adotadas,principalmente
durante o Governo FHC (1995-2002), intensificaram a concentração da propriedade da terra, levando milhões de
trabalhadores à perda do trabalho. Um balanço da situação da reforma agrária em 1996, realizado pelo MST,
demonstrou que, apesar de o presidente ter afirmado que não faltariam recursos, a realidade demonstrou a
ausência de priorização da questão. Dos 1,5 bilhões de reais aprovados no Orçamento da União para a reforma, o
governo liberou apenas 1,251 bilhão, ou seja, houve um corte de 264 milhões. Das famílias assentadas em 1996
pelo INCRA, de acordo com levantamento de meados de dezembro, 18 mil se referem às que receberam terras
em projetos já existentes. O MST, em seu relatório do ano de 1996, estimou que cerca de 25 mil famílias foram,
de fato, assentadas, em projetos de reforma agrária, enquanto o governo FHC informou ter assentado 62.000
famílias.
98
No período em questão, a Parmalat incorporou empresas no Brasil, Uruguai, Argentina, Venezuela, Canadá.
No Brasil, nos anos 90, após o Estado abandonar a ação reguladora do mercado, a Parmalat interveio,
maciçamente, no mercado do leite, levando à queda de renda e à penalização de pequenos produtores.
159
urbana.
como essas mudanças na conformação da base social afetaram as diversas lutas travadas pelo
99
Em recente trabalho de pesquisa sobre o trabalho escravo no Brasil, Eudoro Santana constatou que 43% dos
casos denunciados, no período de 86 e 91, ocorreram em agroindústrias do setor sucroalcooleiro. A agroindústria
sucroalcooleira, mesmo tendo recebido enormes subsídios do Pró-Álcool, continua mantendo, com seus
trabalhadores, relações de superexploração e de escravidão. O autor constata que, além do crescimento brutal do
número de trabalhadores escravizados, nos últimos anos, a geografia do trabalho escravo no Brasil aponta, como
área de concentração, exatamente as regiões de acelerado crescimento capitalista ou as fronteiras agrícolas,
ondas grandes empresas contam com amplo apoio estatal, através de incentivos fiscais. Dados da Comissão
Pastoral da Terra também demonstram o acelerado crescimento do número de trabalhadores escravos no Brasil.
Em 1990, foram registrados doze casos, envolvendo 1.559 pessoas escravizadas. Em 1991, foram 27 casos
envolvendo 4.883 pessoas; em 1992, dezoito casos e 16.442 pessoas. Ver a respeito Santana (2000).
100
Ver a este respeito em Fernandes (1987) e Iamamoto (2001).
160
A origem da luta pela terra em Sumaré é distinta das outras lutas no estado
pelo fato de emergir em uma realidade diferente [...]. Uma das diferenças é
que na luta de Andradina [...] os trabalhadores estavam no campo. Na luta de
Itapeva [...] havia a participação de arrendatários e meeiros. Na luta do
Pontal havia a participação mista de bóias-frias, desempregados das
construções das barragens e posseiros. Em Sumaré, todos os trabalhadores
que participaram das lutas estavam na cidade. Expropriados ou expulsos do
campo, haviam migrado em busca de condições de sobrevivência.
(FERNANDES, 1996:117)
circunstâncias foram, amplamente, debatidas. Com base nos resultados deste debate, o
Movimento deliberou ampliar suas bases sociais em área urbana. O slogan “R eforma Agrária
é uma luta de todos” indica o redimensionamento projetado pelo MST para esta fase de sua
ação. Esta palavra de ordem corresponde à compreensão de que a luta pela reforma agrária
não deveria ser assumida, apenas, pelos trabalhadores sem-terra. A análise das circunstâncias
vividas pelo movimento indicava que a “[...] luta pela reforma agrária iria se decidir nas
superação da falsa oposição entre campo e cidade, imposta pela divisão social e técnica do
trabalho; oposição já em parte rompida pelo próprio avanço das forças produtivas e pelo
Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, na Região Metropolitana de São Paulo. Não é nossa
intenção, com este procedimento, desassociar processos analíticos, mas afirmar, com base na
em qualquer espaço.
subjugar o trabalhador e controlar os meios de produção, o capital trava uma luta constante
contra os obstáculos à sua reprodução ampliada. Enfrenta a propriedade da terra para fazê-la
mercadoria e, por conseguinte, em produtora de mais valia, muito embora, sob a forma de
trabalhador e os meios de que necessita para trabalhar, transformando o anterior dono da terra
em trabalhador assalariado.
101
“[...] a propriedade fundiária, ainda que sob diversos códigos, foi incorporada pelo capitalismo, contradição
essa que se expressa na renda capitalista da terra. Tal renda nada mais tem a ver com o passado pré-capitalista,
não é mais um tributo individual e pessoal do servo ao senhor; agora é um pagamento que toda a sociedade faz
pelo fato de que uma classe preserva a propriedade da terra” (MARTINS, 1979:20).
162
próprio modo de produção que, para seu desenvolvimento, requer a apropriação privada da
força de trabalho alheio e, por conseguinte, a separação do produtor direto dos seus meios de
destino de grande parte dos assalariados oscila entre o desemprego e a indigência e/ou o
trabalho precário. Provavelmente por esta razão, a luta pela terra, no presente, possui um
acesso à terra surja como uma alternativa para o suprimento das necessidades básicas de
102
O termo clears significa, de acordo com a tradução do autor, despeja, libera.
163
No tocante à articulação entre lutas no campo e na cidade, cabe dizer, ainda, que o
expropriação, de forma violenta, das formas de acesso à terra alcançadas pelo trabalhador.
Esta expropriação tem sido efetivada pelo latifundiário tradicional, o empresariado moderno e
o próprio Estado que, de distintas maneiras, também destitui o trabalhador de suas condições
de vida e trabalho.
Apesar das diferenças entre estes agentes, a história tem mostrado, não só o
expropriação levada a efeito por órgãos de governo, em associação com as forças privadas do
latifúndio e das grandes empresas. Tal associação constitui um dos traços característicos do
Estado capitalista, especialmente em países nos quais a revolução burguesa ocorreu por meio
com forte dissociação entre desenvolvimento capitalista e regime democrático e, ainda, ter
sido concluída sem ruptura com o imperialismo e com o latifúndio, permitiu que a resposta à
103
A constituição da população sobrante pode ocorrer de diversas maneiras: a extração de mais trabalho de um
número menor de trabalhadores, por meio da introdução de inovações técnicas; a troca de força de trabalho
adulta pela infantil e da masculina pela feminina; a substituição da força de trabalho especializada pela não
especializada; a expropriação do trabalhador de sua base fundiária.
164
capítulo da história do país, uma vez que se arquiva a possibilidade de realização de uma
econômica é imposta de cima para baixo. Neste momento, a burguesia alcança sua maturidade
e assume o poder de forma plena. O Estado, por ela capturado, não só implementou a
como também, acionou todo o aparato repressivo para tentar conter e excluir as forças sociais
2001:109).
surgimento de novas forças sociais no campo, Martins afirma que o regime militar, ao
procurar sufocar o conflito que se espalhava pelo país, estava, na realidade, tentando “[...]
domesticar o demônio político que ele liberou com a sua política agrária e econômica”
(MARTINS, 1980:15).
104
Ver a este respeito Iamamoto (2001).
165
Trabalhadores Rurais Sem Terra só se dará, com vigor, em meados da década de 80, quando,
sob o impulso do clamor democrático e da transição política, o novo governo acena para a
experiência política que tem possibilitado a denúncia do poder, detido pelos proprietários da
Frente ao exposto, parece-nos possível afirmar que a luta pela reforma agrária,
embora seja caudatária das experiências construídas por mobilizações do passado – sobretudo
as ocorridas nos anos 1950-60, vinculadas à atuação das Ligas Camponesas, apresenta
num contexto marcado por urbanização ainda incipiente. Trata-se, agora, de uma luta entre
terra de trabalho e terra de negócio. Na terra de trabalho, segundo Martins (1980), os ganhos
a apropriação da terra é feita com o intuito do lucro direto ou indireto (MARTINS, 1980).
inclusive, no sentido da luta pela terra, protagonizada pelo MST. Esta alteração no contexto,
105
É necessário ressaltar que o compromisso da Nova República com o que foi denominado de resgate da dívida
social se assentou, sob o impulso de uma transição fraca, e em meio a uma grave crise econômica, o que
restringiu, em muito, as possibilidades de materialização do projeto elaborado pelos movimentos sociais. A
respeito do conceito de transição fraca consultar Coutinho (2000).
166
nos sujeitos e no conteúdo das lutas no campo – expressivas das alterações nas relações de
produção – inclusive impõe, a nosso ver, a necessidade de pensar a classe, não como uma
categoria estática, mas como uma totalidade histórica concreta, que se faz em movimento,
num contexto político no qual o regime ditatorial começava a entrar em declínio, por força,
contexto político, mas também, à consolide ação de relações assalariadas no campo; utilização
Sua emergência como movimento social vincula-se à vontade política de um sujeito coletivo,
já configurado, cujo projeto não se circunscreve à luta por terra e por reforma agrária, uma
amplas na estrutura social. A formação desta vontade política foi, a nosso ver, determinada
enfrentado os dilemas trazidos pelo inusitado, pelo imprevisível e também questões, postas
CAPÍTULO 4
brasileiro, o foco principal da análise se dirige agora, prioritariamente, para a dinâmica interna
desenvolve.
deste processo organizativo e de que esta apreensão só seria possível a partir de análise que
valorizasse o contexto. Nosso intuito, com esta abordagem, foi reconhecer elementos da
169
experiência que pudessem ser compartilhados com outros movimentos sociais e, a partir
deles, procurar detectar as particularidades das experiências de luta por moradia nesta
movimentos sociais, acesso a equipamentos urbanos. Esta coleta de informações foi feita em
dois momentos.
este período, de uma semana, contamos com a valiosa colaboração de Clarice Cassab, mestre
trabalho de coleta emergiram outros dados, não previstos, o que suscitou a necessidade de
106
As lideranças intermediárias integram a coordenação do acampamento, exercendo o papel de elo de ligação
entre os moradores dos acampamentos e a coordenação do MTST. No acampamento visitado são chamadas de
coordenadores de rua. Cada rua do acampamento possui dois coordenadores que são responsáveis por levar e
discutir as reivindicações dos moradores com os coordenadores estaduais do MTST.
170
situação jurídica atual da ocupação; a questão dos objetivos do Movimento e o seu processo
constitutivo.
ocupantes, visando reconhecer a composição da base social do MTST, o que incluiria: dados
aspirações e interesses que motivam a ação, bem como, gênero, faixa etária e etnia. Porém, o
deste objetivo. No entanto, foi possível entrevistar moradores não pertencentes à coordenação
investigação foi feita por meio da observação de dois processos: a tomada de decisão e a
efetivamente vivenciados.
Através da forma assumida pela tomada de decisão, tanto com relação às questões
do dia a dia, como com respeito à escolha das alternativas e táticas de luta, pretendíamos
concerne à sua relação com as lideranças. A escolha destes indicadores da cultura política
efetivamente praticada foi feita antes do início da pesquisa empírica. Sua justificativa decorre
4.1.1 Localização
Guarulhos, município contíguo à capital paulista. A escolha desta cidade se deveu, sobretudo,
projeto numa cidade menor, antes de realizar uma intervenção de maior fôlego no município
núcleo da metrópole.
Para esta cidade, conformada como pólo industrial, a partir da década de 40,
confluíram, até a década de 70, período de grande surto industrial, migrantes do interior de
assim, estar próxima ao mercado consumidor, favoreceu a adesão a uma aparente vocação:
“(...) ter nascido para a cidade de São Paulo”. Porém, outros fatores influenciaram, de modo
mais decisivo, para a posição ocupada pela cidade na dinâmica de expansão capitalista na
região metropolitana e para a relação estabelecida por ela, com o centro mais dinâmico da
economia nacional. Não é nossa pretensão discorrer sobre a totalidade destes fatores, mas
apenas citar, os que consideramos mais estreitamente relacionados com nosso objeto de
estudo, tais como: a existência de terrenos e mão-de-obra mais baratos do que os da capital,
da Via Dutra. Acresce-se a estes, outro importante fator: a isenção de impostos, oferecida às
empresas pelo governo municipal, durante os anos 50 e 60. Estes fatores propiciaram à cidade
período de substituição de importações. Ainda hoje, em que pese o êxodo industrial das
últimas décadas, o parque industrial de Guarulhos é, sem dúvida, um dos maiores do país. Em
1999, havia na cidade 2.000 empresas, com destaque para as indústrias metalúrgicas, de
do Trabalho no ano de 1999, dos mais variados ramos e portes, inclusive grandes redes de
tem concorrido para sustentar um modelo de a acumulação, cujo epicentro se situa na capital,
fato que pode ser explicado, através da análise mais aprofundada da divisão territorial do
107
Cortam o território do município, a Rodovia Presidente Dutra e a Rodovia Airton Senna da Silva, que ligam
os estados do Rio de Janeiro e São Paulo e a Rodovia Fernão Dias, que liga o município a Belo Horizonte, Minas
Gerais.
108
Ver Abreu (2002).
173
dissemos em capítulo anterior, baseia-se numa cooperação realizada por meio da associação
econômica da capital, num contexto em que as grandes diretrizes da política econômica são
impostas ao país, ainda que com base na aliança entre frações das classes dominantes dos
proporção de pessoas responsáveis por domicílios sem rendimentos: cerca de 13%. Esta
nacional. A proporção dos que ganham até um salário mínimo é equivalente à média da
RMSP, sendo bem menor do que a média nacional. Ora, nesta faixa, Guarulhos apresenta
109
Ver a respeito em Marx (1985) e Santos (1990).
110
Abreu et. all. (2002).
174
concerne ao valor relativo dos salários. Entre as razões apontadas para a existência das
Por outro lado, a maior diferença de Guarulhos face à Região Metropolitana, diz
respeito à faixa superior de rendimentos, isto é, entre aqueles que recebem mais de 20 salários
cidade, ocorrido nos últimos anos, permite avaliar a situação vivida pelos segmentos mais
Durante este período, de apenas cinco anos, houve um acréscimo de 184.331 pessoas. Deste
total, 67% são originárias das regiões Sudeste e Nordeste. De 1996 a 2000, o ritmo de
crescimento se manteve em ascensão, com uma taxa de crescimento anual de 2,46%. Este
1996 ocorreu, ainda de acordo com a pesquisa citada, principalmente nos bairros que
possuíam áreas rurais e nos bairros periféricos da porção leste do município, sendo os novos
111
Ver Abreu (2002).
175
sexo feminino. Assim, a migração de nordestinos foi muito seletiva por sexo e idade, uma vez
80 ou + 0,06 0,07
0,07 0,09
70 a 74 0,13 0,17
0,21 0,27
60 a 64 0,33 0,37
0,53 0,60
0,82 H M
50 a 54 0,90
1,26 1,21
40 a 44 1,96 1,54
3,07 2,53
30 a 34 5,26 4,42
8,24 7,17
20 a 24 12,74 10,31
6,84 8,25
10 a 14 4,51 5,29
5,40 5,36
4 Anos 0,00 0,00
14,00 12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 0,00 2,00 4,00 6,00 8,00 10,00 12,00 14,00
Fonte: Funde ação IBGE, Contagem da População 1996, apud Ricardo Antunes de Abreu e outros,
op.cit.,
176
(ver gráfico 2 apresentado a seguir), do sexo masculino, uma concentração na faixa de idade
hipótese de esta migração ter um importante componente familiar, ou seja, o fluxo migratório
80 ou + 0,11 0,25
0,17 0,25
70 a 74 0,28 0,42
0,46 0,61
60 a 64 0,65 0,84
0,89 0,99
50 a 54 1,37 1,37
2,27 1,95
H
40 a 44 3,70 3,22
M
5,26 4,93
30 a 34 6,85 6,39
6,71 6,96
20 a 24 5,41 6,14
4,47 4,97
10 a 14 5,39 5,46
5,74 5,53
4 Anos 0,00 0,00
12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 0,00 2,00 4,00 6,00 8,00 10,00 12,00
Fonte: Funde ação IBGE, Contagem da População 1996, apud Antunes, et. all (2002)
conforme sustenta Ribeiro et. all (1997), a crescente instabilidade a que estão sujeitos os
pesquisa informam que se projeta para Guarulhos, a expansão do setor de serviços. Esta
negócios. Além disto, com os novos investimentos imobiliários previstos para o município, o
1985 e com a 3ª pista em construção, prevista para ser inaugurada em 2005), Rodoanel,
elementos responsáveis pelo grande aumento do fluxo migratório que se dirige à cidade.
lado, esta integração à dinâmica metropolitana satisfaz frações da burguesia industrial ligadas
terra urbana, por outro, esta proximidade não tem representado oportunidade de integração
consistente aos rumos tomados pelo desenvolvimento urbano para a grande maioria da
população. Para os que vivem do trabalho, Guarulhos tem se transformado, cada vez mais, em
uma expressão agravada das questões sociais que atingem a capital paulista.
178
enfrentaram as questões geradas pelo agravamento das desigualdades sociais, a partir deste
Sem Teto é um dos movimentos mais recentes na cidade. No ano passado, foi iniciada, ainda,
desempregados.
das distâncias sociais entre os habitantes das áreas mais bem equipadas e os residentes na
periferia, próxima ao aeroporto, onde se situa o acampamento Anita Garibaldi. Alguns dos
moradores das áreas centrais, com os quais conversamos, declararam desconhecer a área do
acampamento, justificando este desconhecimento por sua distância e por ser considerada
“perigosa”.
Esta noção é amplamente reforçada pela mídia em geral e pela própria mídia
local, posto que, conforme ressalta Ferraz (2001), os lugares da pobreza são, "[...] enunciados
minutos do centro da cidade. Nos arredores, têm-se favelas ou loteamentos clandestinos com
habitações precariamente construídas pelos próprios moradores e sem coleta de esgoto, que
corre a céu aberto, poluindo córregos e gerando problemas de saúde; sem guias ou sarjetas,
179
sem pavimentação; com vias internas que mal permitem a circulação de veículos, o que
demonstrar, por si só, os nexos causais entre hiperperiferização e aumento da miséria, nos
situação social, tem pouco a perder. É esta resistência que pretendemos demonstrar a seguir.
movimentos sociais de Guarulhos, resulta de uma experiência precedida por um largo esforço
[...] os militantes do MST, que vieram do campo, não foram lá para intervir,
mas para contribuir com as pessoas que já vinham [...] tentando se organizar.
Mas, a partir daí, os companheiros do MST começaram a ver a dimensão das
contradições que existiam dentro da cidade e passaram por uma fase de
estudo e reflexão. [...] tentaram desenvolver lá a organização interna do
acampamento, mas não entendiam bem qual é o papel das forças políticas
dentro da cidade, como se organizar nesse meio, como se relacionar com os
partidos políticos, com o tráfico de drogas e com todas as facções que se
organizam no meio urbano (BENOIT, 2002:136).
180
capacitação para atuar no contexto urbano e, sobretudo, metropolitano. Com este intuito, entre
os anos de 1998 e 2000, alguns militantes do MST retornaram às suas bases para debater e
conceber uma metodologia mais apropriada ao trabalho, no contexto das grandes cidades.
condições físicas e jurídicas do terreno a ser ocupado. Esta avaliação levou a coordenação do
adiamentos da ocupação, por motivos que não eram divulgados, em razão da necessidade de
estadual do MTST, relembra este momento de preparação com muito entusiasmo. Antes de
fazerem a próxima reunião na sua casa, mas, como estes não localizaram a rua em que residia,
para ajudar uma irmã que estava doente. Quando a irmã e o marido decidiram voltar, ela se
numa empresa metalúrgica, onde conheceu seu marido. Na época da ocupação, estava
desempregada e o marido licenciado pelo INPS. Pagavam aluguel. Meire lembra que só
sobravam trinta reais por mês para as despesas. A ocupação representava uma possibilidade
de realizar o sonho de ter uma casa própria. Conta que antes da ocupação, quando via um
terreno, idealizava uma casa. Agora, com a ocupação, quando vê um latifúndio, idealiza uma
ocupação com inúmeras famílias, porque, com a experiência no Movimento, aprendeu a ser
familiar de moradia só pode ser alcançada, se for compreendida como necessidade coletiva.
Parece-nos interessante observar que, muito embora a luta seja por um bem individual, ela
de que a luta por habitação é, sobretudo, uma luta por necessidades de todos.
182
4.1.3 A ocupação
A ocupação teve início no dia 19 de maio de 2001, numa área de 250.000 m², no
bairro Ponte Alta, situado na periferia de Guarulhos. A área estava desocupada há cerca de 50
anos e o proprietário burlava a lei, de forma a tentar enquadrá-la como área rural para pagar
impostos mais baixos, que efetivamente não estavam sendo pagos. O acampamento Anita
à época da ocupação, estava sendo utilizado para despejo de lixo e como local onde grupos de
inadimplente, mas, ainda não sabia que o terreno tinha sido cadastrado no INCRA, de forma
irregular. A depoente, também, anota que por meio das ocupações, o Movimento denuncia o
fato da terra não estar cumprindo sua função social, mas, servindo à especulação imobiliária.
Ao fazer esta denúncia, o Movimento se aproxima, sem dúvida, da larga trajetória dos
início com, aproximadamente, 200 pessoas e, em apenas algumas semanas, chegou a reunir
em torno de 12.000 pessoas. Meire conta que, nesse período, a organização dos acampados
obedeceu à seguinte dinâmica: foram formadas seis brigadas, cada uma constituída por 50
grupos e, cada grupo, por 40 famílias. Cada grupo tinha um coordenador e um representante
das equipes de saúde, infra-estrutura, segurança e educação. Estas brigadas receberam nomes
que simbolizam a luta dos trabalhadores, por exemplo: Terra e Liberdade, Nossa Terra,
Antônio Conselheiro, Zumbi do Palmares, Chico Mendes. Durante este período, os ocupantes
participavam de duas reuniões por semana: uma para definir o funcionamento e a organização
183
cotidiana dos grupos e outra para formação política, na qual se realizava a análise da
enfrentamento de novas situações, sendo uma das principais metas desse formato
militantes que vinham apoiando sua luta. Foram homenageados, entre outros: o Sindicato dos
movimentos sociais, sindicatos e ONGs. A organização deste ato político visou, sobretudo,
dar visibilidade aos objetivos do Movimento e construir a aceitação social dos seus objetivos.
dispõe de fossas sanitárias; canalização de valetas; água e a luz elétrica estão em vias de
recurso fundamental contra o despejo dos ocupantes, posto que obriga os órgãos públicos a
local.
Fonte: www.anitamtst.cjb.net
185
realizado durante o período em que estavam sob as lonas, a seleção daqueles que deveriam
ocupantes obedeceu aos critérios de permanência e participação nas atividades exigidas pela
deixar claros os objetivos do Movimento e evitar sua utilização para outros fins, inclusive
mercantis.
acampamento. Uma equipe de moradores foi orientada pelos técnicos desta Secretaria para
ajudar na execução do levantamento. A estimativa feita pelos técnicos da Secretaria teve por
base uma amostra equivalente a 10% da ocupação. Esta estimativa permite traçar um perfil
crianças, na idade de zero a doze anos. Este número, somado ao de idosos, perfaz quase a
metade do total de moradores. Ainda, mais da metade dos moradores declarou não ter
rendimentos.
186
observações feitas durante a pesquisa para a tese, que grande parte dos moradores do Anita
exerciam a função de ajudantes de obras. A principal fonte de renda era o trabalho temporário,
moradores que desenvolvem pequenas atividades comercias nas suas casas. Muito embora
que não é possível coibi-las, visto que esta é a única forma de sobrevivência encontrada por
estes moradores.
moradores do Anita Garibaldi. Muitos desses jovens são chefes de família, sem experiência
também, bastante significativa. Elas formam a grande maioria “dos chefes de família”, e
frisar que o peso da participação feminina nestes processos se deve, sem dúvida, ao fato de
algumas reuniões com a coordenação do acampamento para discutir o teor de uma proposta
coordenação decidiu não aceitar a proposta apresentada pelos estudantes, porque demandava
Movimento.
laboratório da FAU/USP era mais importante elaborar um projeto orientado por propostas
distintas.
188
[..] não teria muros, seria tudo livre, e sobre o solo se implantariam blocos de
apartamento, [...]. No solo então teria espaço para plantações e para área
verde, de lazer e de circulação. E isso, é claro, não é uma idéia que nasceu
em nós, é uma idéia que já vem desde os modernos. Para fazer com as
próprias mãos, com o material construtivo que eles tinham, era aquilo
mesmo que eles fizeram. A partir desse primeiro momento que a gente
participava de reuniões apresentando essas idéias, o porque de liberar o solo,
verticalizar, a gente trabalhou essencialmente com a coordenação do
movimento, não fizemos oficina com a população acampada. Acho que a
gente tinha um diálogo legal, mas só que não tinha condições de viabilizar
grande parte do que a gente havia pensado (Diogo, depoimento à autora,
2003).
etapas de divisão dos lotes, na preparação do terreno e na coleta de madeiras para construir as
casas. O acampamento está dividido em 1.786 lotes, distribuídos em 23 quadras. Cada lote
possui 100 m² e a área social mede 74 mil metros quadrados. Na área social, há uma
biblioteca, um espaço para a secretaria, um salão para reuniões e um outro cômodo com
adultos e, ainda, ocorre a recreação para crianças, cursos de capoeira, missa, cultos
distribuição periódica de cesta básica de alimentos e roupas, doados para algumas famílias
cadastradas.
A impressão com que saíamos das visitas diárias ao acampamento era de que estas
atividades assumidas, boa parte das vezes, pelos próprios moradores, conferiam uma grande
reintegração de posse, que foi aceito pelo Juiz. A coordenação do Movimento acionou um
escritório de advogados, que trabalha para movimentos sociais, inclusive o MST. O advogado que
assumiu o processo contestou a decisão judicial, com base em diversos argumentos, entre eles o
mérito da função social da propriedade. Além disso, o Movimento pressionava a Prefeitura para
Prefeitura, através da Secretaria de Habitação, concordou em assumir este papel. Esta decisão
contribuiu para convencer o juiz dos riscos existentes na reintegração de posse. O juiz responsável
pelo processo decidiu, então, encaminhar o processo para o Ministério Público (MP), em primeira
instância.
havido negligência do proprietário, posto que este não fizesse uso de todos os recursos jurídicos
nitidamente, péssimas condições de vida. Além disso, o Ministério Público reconheceu que o
deveu, sobretudo, ao fato de que o poder judiciário, nem sempre se alinha com a violenta
estaduais, posto que alguns juízes temam ter que assumir a responsabilidade pela morte de
De fato, esta decisão se distingue de boa parte das decisões judiciais na região. Na
antiga ocupação do MTST em Osasco, por exemplo, o poder público determinou o uso da
112
Ver a planta atual do acampamento.
190
comuns, como exemplifica a luta contra a ALCA. Por meio das ocupações, o Movimento
objetiva alcançar, pela via da ação direta, uma mudança na correlação de forças e, assim,
alianças com diretores de escolas públicas próximas ao acampamento, por meio, não só do
sociais de luta por moradia da metrópole e, particularmente, de Guarulhos, assim como, com
Itália para divulgar o trabalho realizado e solicitar ajuda financeira para o desenvolvimento de
as ações desenvolvidas pelo Movimento no estado; uma coordenação regional que responde
pelo trabalho no acampamento e uma coordenação de rua, cuja tarefa principal, conforme
antes afirmado, é se reunir, semanalmente com os moradores, para conhecer e tomar decisões
MTST. Para tal, enfocaremos suas peculiaridades, aspectos singulares e seus limites e
MOVIMENTO
vez que ocupações organizadas nas cidades vizinhas acabaram sendo despejadas?
do Movimento?
c) Até que ponto o fato de o Movimento ter sido construído a partir de estratégias
ou sujeitos da ação. Por esta razão, direcionamos nosso esforço de interpretação no sentido de
GUARULHOS
Movimento, esta é a única das experiências, organizada pelo MTST, que não terminou em
despejo. Todas as outras sofreram uma duríssima repressão, incluindo o uso de violência
policial.
Este é um fato que nos intrigou durante boa parte do levantamento empírico
da proteção dada pela prefeitura petista, eleita no ano de 2000, e, sobretudo, pelo engajamento
permanência, ainda, pelo fato da sua campanha eleitoral ter tido, como um dos temas
baixo poder aquisitivo redundou em pressão social por emprego, equipamentos públicos e,
loteamentos clandestinos. Algumas das ocupações de terrenos foram lideradas pelo atual
194
prefeito, que se elegeu com base nos seus compromissos com as lutas populares. Entretanto,
mútuo, o que não corresponde aos interesses da coordenação do Movimento, muito embora
pressão política, mas ao fato de que condensa os efeitos sociais e políticos do aumento do
número de migrantes de baixa renda, nos últimos anos; a abertura do governo municipal às
como estamos procurando demonstrar, o seu próprio processo de formação. Este processo
demonstra, sem dúvida, que os representantes do MST defendem um projeto que não se limita
decorrência das formas assumidas pela modernização capitalista nas últimas décadas.
Desse modo, ao procurar fazer com que a luta pela reforma agrária seja assumida
estratégia. Com esta perspectiva, as lideranças buscam a adequação do seu projeto à dinâmica
da realidade, não para se sujeitar aos seus imperativos, mas, por meio da aceitação de seus
política, reside, a nosso ver, uma perspectiva de busca de superação de duas tendências, que
natural e perene, daí derivando a idéia de que nada, ou muito pouco, pode ser feito diante do
que é dado.
práticas, demonstra a aceitação, por grande parte destas lideranças, da ordem dominante.
momento sensível, imediato como todo o real, amplificam a aparência do real, o que dificulta
necessidade social pode, por si só, levar à criação de processos coletivos de resistência, o que
trabalhadores, com o qual pretende viver uma experiência que articula os objetivos imediatos
do acampamento.
Ao longo deste percurso, uma das preocupações centrais dos militantes que
coordenavam a ocupação, era procurar esclarecer aqueles com quem discutiam o projeto, que
este não se limitava, exclusivamente, à obtenção da moradia, mas sim, expressava a luta por
alianças com movimentos sociais e sindicais e todos os partidos do campo da esquerda. Além
preocupação com a eqüidade, com a disciplina, com o bem comum, incluindo a saúde e a
como moradores da cidade, em contraponto com a visão dominante, que os concebe de forma
preconceituosa e criminalizadora.
direção coletiva, à disciplina e à formação de quadros. Estes princípios, construídos com base
Sem Teto expressam uma concepção de ação política que possui, entre seus fundamentos, a
Esses dias são lembrados, por vários dos entrevistados, como momentos
extremamente marcantes.
organização coletiva, incluindo reuniões de formação. Por meio deste aprendizado, buscou-se
desta experiência de funde ação e defesa dos momentos iniciais do acampamento para a
formação da vontade coletiva, inclusive para a formação de novas lideranças. Porém, neste
depoimento, há uma ressalva que consideramos muito importante: o fato de que o processo de
formação da vontade coletiva não é homogêneo e, assim, não envolve a todos na mesma
intensidade.
Por mais óbvia que esta afirmação pareça ser, ela é, muitas vezes, de difícil
influencia a atuação dos seus militantes nos movimentos sociais. Dificuldades no exercício
exercício, reside, a nosso ver, uma possibilidade de criação efetiva de “(...) sujeitos de
Entretanto, como a efetivação deste exercício não depende, apenas, do desejo dos
envolvidos, mas de condições históricas concretas, torna-se importante, a nosso ver, destacar
social. Conforme já enfatizado, a luta por moradia, através da ocupação de imóveis públicos e
privados, como forma de forçar a negociação, é parte central dos métodos de ação do MTST.
Evidentemente, a conquista do lugar de moradia, pela via da ocupação, não é inaugurada com
MTST é parte de um projeto organizativo mais amplo, cujas raízes se encontram, inclusive,
noutra espacialidade.
de forças, pela via da apropriação do que é, por direito, da classe trabalhadora, pode ser
alijado do direito à cidade. Com esta ação confrontam-se com a “sacrossanta propriedade
privada” – um dos pilares de sustentação do modo de produção regido pela lógica do capital.
sido confrontadas, não só com forte violência física, mas também, com o uso de terrível
violência simbólica.
excedente:
113
Exemplo da Antigüidade da ocupação de terras urbanas é fornecido pelas favelas na cidade do Rio de Janeiro.
O início da ocupação da Favela da Rocinha ocorreu há mais de cem anos.
201
[...] Nós passamos seis meses morando na lona, não tinha teto. Na minha
casa não tinha. Algumas pessoas colocaram madeira do lado. Era bambu
amarrado com corda, não tinha porta. Não era essa segurança que é hoje. O
que a gente vai ter são ruas abertas. Porque eu trabalhei, eu cavei, arranquei
toco, tirei mato, limpei (Lenise, depoimento à autora, 2003).
a ter direito, obtido com base no esforço individual, inscrito no esforço coletivo e no território
conquistado.
orgulho pelo trabalho realizado, por seu resultado, inclusive físico. Para ela, a importância da
Movimento e assim mostrar a sua diferença em face de outras ocupações, que não são
lembrava abandono e sujeira, em espaço de abrigo e, mais do que isto, em espaço modificado
com a intenção de ordenar e orientar uma nova experiência social e política, o Movimento dá
visibilidade ao seu telos, ao sentido de sua ação. A sua forma de expressão manifesta,
claramente, não só uma radical contraposição ao projeto dominante de cidade, como também,
Tal contraposição se expressa nas ruas limpas; na amplitude dos espaços para a
equipamentos públicos e na divisão dos lotes – todos com exatamente o mesmo tamanho: 100
Estes foram momentos marcados pelo esforço da resistência, conforme compreendido pelos
materialização deste projeto, bem como as chances de que esta experiência venha a semear e
metas.
constituir como um movimento social, formado basicamente pela população excedente, que
vinculada à luta pela sobrevivência. Observamos que o direito à luta, nestas circunstâncias,
205
extrema nitidez. No direito a lutar pela sobrevivência dos filhos, residem os valores que
legitimam a sua participação no movimento. Provavelmente, por esta razão, sejam tão cruciais
como um todo. Muito embora grande parte dos porta–vozes do MTST sejam homens, a
policial nos despejos vividos noutras ocupações, denota uma clara distinção entre este
Movimento e boa parte do movimento sindical, em que grande parte da liderança é masculina.
reprodução, posto que a elas, tradicionalmente, cabe o cuidado e a proteção da família. Além
disto, cabe ressaltar a crescente presença de mulheres como chefe de família na classe
renda, através da venda de produtos das pequenas hortas, ou a oferta de serviços: manicura ou
soma-se o acesso aos recursos a equipamentos e serviços públicos, muitas vezes, só alcançado
114
Lembramos a importância da ação da Igreja, em especial do setor progressista da Igreja Católica, na
organização do MST. O ideário da Teologia da Libertação forneceu (e ainda fornece) os argumentos que
legitimam a luta pela terra e a luta pela reforma agrária. Em conformidade com o pensamento católico, todos os
homens, indistintamente, são possuidores do direito à vida e de vivê-la, em condições iguais. A este ideário, os
representantes da Teologia da Libertação acrescentaram a noção do compromisso da ação da Igreja com os
oprimidos, a opção pelos pobres, a forte crítica à exploração e à opressão capitalistas e a compreensão de que é
preciso haver profundas mudanças na sociedade brasileira, com vistas ao alcance da justiça social; mudanças,
que só poderão ser viabilizadas por intermédio da organização e da luta. Muito embora não haja influência direta
206
outros direitos sociais, como o direito à instrução, para si e para os filhos, tanto na rede
trabalhadora que sofre, mais diretamente, a ruptura das promessas de integração associadas à
por conseguinte, o alcance da moradia, pode significar o acesso a outros direitos negados pela
lugar na cidade, uma vez que esta disputa só pode vir a se concretizar no direito ao trabalho,
posto que o “trabalho é, [...], condição es sencial na construção das esferas de sociabilidade e
deste ideário na organização do MTST, há influência indireta, já que parte da coordenação do acampamento é
formada por dirigentes deslocados do MST.
207
O acesso ao trabalho e aos direitos a ele associados é, nestes tempos marcados por
forte redução do trabalho necessário, uma condição cada vez mais difícil de ser obtida. Com
Assim, enquanto que, em fins dos anos 70 e início dos 80, os operários
luta, com apoio no valor produzido por seu trabalho, vinte anos após, o segmento da classe
trabalhadora que forma a base social do MTST, constrói a legitimidade de sua luta com base
relevância de movimentos sociais que acabam por cumprir a função de evitar o descarte
Não obstante a extrema relevância social do MTST, especialmente por seu papel
Movimento se confronta com obstáculos e limites de origem, não só exógena, mas também
endógena, que podem, caso não sejam superados, vir a comprometer a realização do seu
115
Segundo Martins (2002:124), “[...] O que a sociedade capitalista propõe hoje aos chamados exclu ídos está
nas formas crescentemente perversas de inclusão, na degrade ação da pessoa e na desvalorização do trabalho
como meio de inserção digna na sociedade [...]. Esta é uma estratégia muito clara para esvaziar o potencial
político de reivindicação das classes trabalhadoras. O trabalhador que entra num processo demorado e
patológico de reinclusão, que não pode nem mesmo se concretizar se degrada como pessoa [...]. Ao mesmo
tempo, ele se degrada como ser político, como sujeito da história, porque perde o poder de exigir o
cumprimento das leis em relação a ele”.
208
(e do) Movimento.
legitimidade, a construção de uma outra condição que, segundo avaliamos, possui igual
Nesta separação, reside, de acordo com Chauí, uma das formas contemporâneas
ação e se espera da base que adote formas de comportamento que favoreçam o alcance destes
fins, cujo sentido lhe escapa. Esta heteronomia, segundo a autora, inicia-se na divisão do
trabalho e se espalha por toda a sociedade, e, de acordo com CHAUÍ (1990:306) “[...] é
idéia de que a consciência verdadeira deve vir de fora, “[...] de tal modo que a alienação seria
dirigentes e dirigidos, incluindo a distância entre modos de vida, tem sido duramente criticada
e em seu lugar se afirma o princípio de que o dirigente deve, não só viver sob as mesmas
MTST com a causa comum, a conquista da moradia. Observamos, entretanto, que esta busca
controle da militância, o que, no movimento sindical, acontece de forma bem menos incisiva.
Presumimos que a necessidade de acionar estes dois últimos métodos de ação, ou princípios
orientadores da ação, de acordo com a terminologia do MST, deve-se ao fato de que estes
movimentos lidam com questões que hoje não afetam mais o novo sindicalismo – a segurança
do acampamento no MTST, leva-nos a presumir que, muito embora esta busca de superação
de distâncias entre liderança e base constitua parte importante dos valores perseguidos pelo
[...] o processo (de reintegração de posse) hoje está parado. Então a gente
não tem muito informe sobre isso. Quem participa? O pessoal lá da
coordenação. Eles participam e falam com a gente. Mas, muitas vezes, eu
não fico sabendo de certas coisas. Teve-se uma reunião hoje, eles fazem
outra para ver como irão passar para a gente. Então, eu não vou dizer que
eles estão parados. Não. Mas se eles estão andando com alguma coisa, eu
também não sei (Moreno, depoimento à autora, 2003).
do processo de tomada de decisão. Esta crítica toma como referência o próprio chamado à
movimentos e ONGs, em âmbito internacional. Na medida em que estas diferenças não são
Deste modo, poderiam ser forjadas possibilidades concretas para que os integrantes do
experiência.
fato de que a ausência de debate democrático nos processos de tomada de decisão surge,
muitas vezes, envolta por ardis ideológicos, de difícil apreensão e, logo, superação.
Gramsci já apontava que a reprodução desta tendência pode ser camuflada, sob a
alegação da urgência; de ausência de tempo hábil, para que todos possam ter acesso a
211
encontradas para diferentes desafios e momentos, boa parte das vezes, resultam de discussões,
não apenas apressadas, mas centralizadas, o que faz com que, nem todos os integrantes do
processo coletivo possam “[..] dominar os termos exatos das questões e, portanto, ao seguirem
as diretrizes fixadas, fazem-no por espírito de disciplina e pela confiança que depositam em
encoberta pela intensa atividade. Muitas vezes, trata-se de mero ativismo, de uma ação
pela concepção de que alguns, por terem mais competência, possuem a consciência
verdadeira, que deve nortear o caminho a ser seguido. No discurso dos principais dirigentes
do MTST, o caminho a ser perseguido tem como horizonte o ideário da reforma urbana,
diferentemente de outras lutas por moradia, com presença na metrópole paulista116, orienta-se
urbano.
ter formação recente, o que lhe confere um grau menor de experiência, no que concerne ao
116
Lembramos que os movimentos de luta por moradia tiveram intensa participação na elaboração do projeto de
reforma urbana, defendido desde os primeiros anos da década de 80 do século passado. Projeto que alcançou
reconhecimento na Assembléia Nacional Constituinte, e que dá origem ao capítulo sobre direitos urbanos da
Constituição Federal.
212
enfrentamento das contradições urbanas. Além disso, parte de seus principais dirigentes
possuem vínculos com o MST e, por conseguinte, com a luta pela reforma agrária. O
[...] a [...] questão da reforma urbana do MTST é lutar, primeiro para tirar
dos latifundiários uma quantidade de terra improdutiva, nas áreas de cidade.
Porque você pode ver que, se a gente for levar em consideração, entre os
latifundiários existem varias áreas muito grandes, que não têm objetivo
nenhum, que não têm função para nada. Então, essa é uma das finalidades da
reforma urbana. É ocupar estas áreas de latifundiários. Ocupar essas áreas,
para que a gente faça uma reforma urbana para essas famílias pobres dos
mais pobres, porque, geralmente, a gente sabe: isso ai é fruto destas grandes
quantidades de terra no município, no urbano, nas grandes cidades, é só para
que elas valorizem. Então, aquelas terras ficam lá paradas, muitas vezes são
terras griladas, que não têm atividade nenhuma. [...] Então, a luta do MTST,
na reforma urbana, é ocupar as grandes áreas de latifúndio. Áreas que estão
improdutivas, que não estão servindo para nada, que nem capim eles estão
plantando para os animais (João, depoimento à autora, 2003).
mecânica da experiência alcançada no campo, para a cidade. Pelo que nos foi possível
constatar, não se trata de um depoimento isolado, pois como já dissemos, diferentemente dos
movimentos de luta por moradia da década de 80, e de outros movimentos por moradia, que
hoje atuam na Região Metropolitana de São Paulo, que alicerçam sua atuação na luta num
amplo projeto de reforma urbana, no MTST, a construção desta bandeira de luta se baseia.
117
O movimento parece se utilizar do termo latifúndio urbano como uma analogia da realidade rural, como uma
concepção emprestada. Segundo Ferreira (2003) “a expressão latifúndio urbano é uma concepção que [...] não se
refere à medida da propriedade rural”. [...] Não tomamos o sentido quantitativo da medida de um latifúndio
(acima de mil hectares), mas seu conteúdo qualitativo que quer dizer grande extensão de terra mal aproveitada”.
213
MTST a este respeito, já que a própria concepção de reforma urbana sugere a ausência de
análise das complexas relações exercidas pelo campo e pela cidade, na fase contemporânea do
capitalismo.
provocar alterações nesse quadro, uma vez que a inserção do Movimento, na cidade, exige
urbanas.
A ainda frágil análise da questão urbana combina com um ideário utópico acerca
do mundo rural. Segundo Jota, entre as diferenças entre o MTST e os outros movimentos de
luta por moradia, destaca-se a não ocupação de prédios públicos, porque a materialização do
seu projeto requer espaços horizontais, onde as pessoas possam pisar na terra, plantar uma
do espaço físico.
o mundo urbano. Presumimos que, subjacente a esta concepção, encontra-se, além da crítica
social, pode possibilitar a superação dos males do mundo urbano. Afinal, a concepção da
cidade como epicentro do Mal (pecados e vícios), tem uma longa presença no imaginário
social, inclusive através da influência exercida pelas religiões tradicionais e pelos primeiros
vida no campo. Como não é possível reconduzir os participantes da ocupação para a zona
rural, buscar-se-ia construir, por meio da influência exercida pelo Movimento, uma vivência
contrária ao modo de vida urbano, uma vez que a cidade constituiria o lócus privilegiado dos
Salvo melhor juízo, trata-se de uma concepção elaborada com base em valores do
articulado, uma vez que esta articulação corresponde à divisão social e técnica do trabalho.
constitua uma concepção que informa parcela dos dirigentes do Movimento – designados pelo
MST para cumprir a tarefa de organizar o MTST – ao articularmos esta forma de pensar à
uma mescla entre uma concepção passadista, restauradora da ordem anterior ao capitalismo, e
perspectivas marcadamente dirigidas ao futuro. Ainda que a construção deste futuro pareça
combinar a análise marxista dos fundamentos da exploração e da opressão com leituras que,
para a ocupação do terreno, afirmava aos participantes que a luta por moradia e por reforma
urbana deve estar articulada a uma luta maior por transformação social, orientada ao
futuros participantes e entre seus aliados, o caráter não imediatista do seu projeto, afirmando,
215
social vigente. Ao fazê-lo, marcam uma posição bastante distinta daquela dos movimentos
sociais urbanos dos anos 80. Para estes últimos, de forma predominante, a melhoria das
públicos.
casual.
MST. Contudo, o fato dessa bandeira apresentar características apenas figurativas, alegóricas,
este segmento reúne menores condições de constituir uma força social dirigida à
transformação radical das relações sociais de produção. Esta compreensão nos leva a afirmar
que as condições de vida experimentadas pelo segmento da classe trabalhadora que compõe a
216
(Martins, 2002).
movimentos sociais que aglutinam segmentos da população excedente que a “[...] condição de
ações mais ousadas, uma vez que esses segmentos sociais não têm mais nada a perder no
do MTST não abarca os interesses do conjunto da classe trabalhadora, que são representados
pelos partidos políticos. Sua esfera de elaboração política e intervenção vincula-se à questão
que aglutina e serve como elemento catalisador da identidade do Movimento – a luta por
moradia, a partir da qual são ensaiados os passos em direção a outras formas de contestação
da ordem dominante.
MTST. Importante observar, neste sentido, que o MST mantém com a direção do MTST uma
tanto pela indignação ética, própria da moral tradicional da Igreja Católica, como pelo
como afirma LÖWY (1995)118, não há na crítica ao presente, formulada pelos teólogos da
118
De acordo com o autor, “O romantismo revolucionário e/ou utópico para o qual a nostalgia do passado pré –
capitalista é, por assim dizer, investida na esperança de um futuro pré-capitalista. Recusando tanto a ilusão de
217
Com base na análise realizada por este autor, poderíamos afirmar que se, por um
MST, inclusive em membros deslocados para o MTST e militantes das CEBs, inspirou os
objetivos do MTST, por outro, há, no ideário do MST e do MTST, a presença de traços
concepção de futuro é construída pelo passado, pois, nela se articula a análise marxista dos
fundamentos da exploração e da opressão, com uma noção de que a transformação virá por
meio da ação redentora da Igreja, não concebida como instituição, mas como povo de Deus –
os oprimidos – que, uma vez organizados e sob o impulso da luta, forjarão o porvir.
Avaliamos que este ideário, embora tenha como horizonte o futuro, possui traços
passadistas, posto que nele se oblitera a reflexão em torno do papel da classe trabalhadora,
utilização da noção de povo oprimido, não permite discernir entre aqueles que, no interior da
mas utópico.
um retorno puro e simples às comunidades orgânicas do passado quanto a aceitação resignada do presente
burguês, aspira – de modo mais ou menos radical e explícito, conforme o caso – à abolição do capitalismo e ao
advento de uma utopia futura, na qual certos traços e valores das sociedades pré-capitalistas seriam
reencontrados”.
119
Esta afirmação se fundamenta na teoria social de Marx, para quem a classe operária, engajada em sua luta
contra a burguesia, é a força política capaz de realizar a destruição do capitalismo e uma transição para o
socialismo. Segundo o autor, esta é "a classe a qual pertence o futuro", como escreveu em seu prefácio à Enquête
Ouvrière, em 1880.
218
deste ideário e a ausência de formulação mais clara sobre a questão social no urbano brasileiro
atua como condição indispensável à definição dos objetivos, metas, estratégias de luta, tanto
como intrinsecamente vinculado à transformação ocorrida na questão social, uma vez que no
social, posta ao Movimento desde sua preparação, tende, por força dos imperativos das
condições dadas pela dinâmica da realidade, a se manifestar, a cada dia, de forma mais nítida,
tanto nas reivindicações da base, quanto nas negociações com o governo e o proprietário do
jocosamente denominam o Anita Garibaldi, residem pessoas cuja adesão ao Movimento não
foi construída pela experiência de trabalho, mas pela necessidade de ter um local seu para
morar.
Aventura, que não pode mais ser vivida como aventura individual ou, quando muito, restrita
Região Metropolitana, no período da expansão industrial, mas pode sim, ser vivida na
políticos.
movimentos sociais e vida cotidiana, o que demanda a elaboração de novas estratégias de luta
(1988), a possibilidade de se dar algo, além daquilo que já está determinado, uma vez que o
significado da construção do sujeito autônomo não se relaciona àquele que seria livre de todas
as determinações externas, mas àquele que é capaz de reelaborá-las em função do seu projeto,
da sua vontade.
Por fim, salientamos que as linhas de argumentação até aqui apresentadas, tiveram
por objetivo orientar a reflexão das potencialidades e dos limites do MTST se afirmar como
destacamos a relação entre dirigentes e base. Há uma outra questão, porém, que, a nosso ver
trabalho dos seus integrantes. Esta questão (de difícil enfrentamento), levantada pela
coordenação intermediária, parece não ter sido ainda suficientemente tratada, e talvez até
sustentação do Movimento, uma vez que seus integrantes podem vir a se tornar mais
venda da casa ou seu aluguel como forma de suprir carências alimentares imediatas.
direito ao trabalho, tanto pela via da formação de cooperativas de trabalho, como pela via da
acampamento em particular.
trabalhadora, exilado do mundo do trabalho, que reivindica pela ação direta um chão para
crescimento do desemprego.
luta por alternativas de sobrevivência, reivindicada por integrantes de sua base e coordenação
intermediária, mas especialmente, torna urgente a luta pelo emprego. Nesta perspectiva,
entre lutas urbanas e lutas sindicais, em contextos metropolitanos. Esta questão exige
conquistas e com a ampliação do seu raio de ação tomem todo o tempo do parco número de
militantes dos movimentos sociais, a tradicional dissociação entre lutas por moradia ou
melhorias urbanas e lutas na esfera do trabalho constitui, a nosso ver, a principal razão das
trabalhadores.
reprodução social. Mas, a que atribuir a desvinculação criticada por Ribeiro? Poderia estar
riqueza à gestão do mundo do trabalho, o que tende, muitas vezes, a circunscrever as lutas dos
destinada ao lucro?
estão garantidas. Cabe ressaltar, contudo, que a classe não é um todo homogêneo e que,
político-organizativos autônomos.
dissimulam o real e obliteram a compreensão dos nexos ontológicos que o compõem. Nesta
223
nosso ver, na compreensão de que a dominação do trabalho pelo capital, não se restringe ao
lócus da produção, mas se estende à totalidade do social, entendida não como soma das
partes, mas como um complexo conjunto de relações diferenciadas, hierarquizadas, visto que
teórica permite, ademais, conceber a realidade social, não como algo acabado, mas como um
A reprodução das relações de produção, segundo a perspectiva teórica marxista, não se limita
perspectiva teórica compreenda relação entre produção e reprodução, como unidade, o que
faz com que a dominação do trabalho pelo capital não se restrinja ao lócus da produção, mas
Com base nesta visão, é possível perceber que as concepções teórico-práticas que
O fato de que esta percepção seja aceita tão amplamente, requer a reflexão
aprofundada de seus determinantes sociais. Do nosso ponto de vista, sua aceitação deita raízes
120
Ver Pontes (1989).
121
Ver Kosik (1976).
224
desvinculadas entre si, acontece, em geral, a sua apreensão a partir de sua aparência
fenomênica.
apreensão de seu caráter transitório, faz com que se tomem as expressões do real como se
seguinte maneira:
reprodução das relações sociais é reprodução da totalidade do processo social [...] que envolve
122
Ver MARX e ENGELS (1983).
225
ordem burguesa, na direção da construção de uma nova sociabilidade. Este projeto, a nosso
Finalizando este capítulo, queremos explicitar a linha reflexiva que orientou sua
análise. Procuramos, depois, articular esta apreensão à análise das balizas sócio-históricas da
123
Diversos autores analisam o significado e efeitos da implantação da programática neoliberal no Brasil.
Citamos, a título de exemplo, os seguintes: TEIXEIRA (2000), RAICHELLIS (1998), SALAMA (1997)
TAVARES e FIORI (1993).
226
sua dinâmica interna. Esta análise crítica tem como referência, conforme já mencionado, a
Muito embora o MTST possua consideráveis limites, tendo em vista seu curto
que oferece condições bastante particulares. Estas condições fazem com que a vivência da
questão habitacional assuma características específicas. A histórica disputa por solo urbano e
reconhecido por seu engajamento nas ocupações urbanas. Observamos que a própria eleição
do prefeito decorreu do seu compromisso com a luta pela moradia popular e, evidentemente,
Por certo, a eleição deste prefeito, em 2000, mesmo que no cenário social
produzido pelo ajuste econômico da década de 90, representou, para os movimentos de luta
plena na cidade de Guarulhos, se deve também à postura política que vem sendo adotada pela
Prefeitura.
Por outro lado, o projeto do movimento e a sua concretização advêm, sem dúvida,
excluídos se tornam capazes de impor alguma perda a alguns dos principais agentes
número de ocupações, temem manter terrenos vazios. Esta é, do nosso ponto de vista, uma
perda imposta pela ação dos movimentos de luta por moradia, àqueles que detêm o monopólio
da propriedade privada da terra urbana, posto que, de alguma forma, o aumento das ocupações
Não é possível, evidentemente, afirmar que esta ação facultaria inibir o aumento
enfrentamento deste processo requer uma ação de maior vulto, que resulte na unificação dos
diversos movimentos sociais, inclusive o sindical. Mas, sem dúvida, trata-se de um processo
Guarulhos, tornou-se, conforme pudemos constatar, parte integrante da cidade, ainda que tal
integração se dê imersa no clima próprio dos tempos atuais, caracterizado, segundo palavras
CONSIDERAÇÕES FINAIS
retrospectiva das indagações e objetivos que nortearam a pesquisa, seguida pela síntese das
movimentos sociais que acionam a via da ação direta na disputa pelo recurso público e pelo
excedente social e sua produção cada vez mais socializada – permanece e se radicaliza na
124
No mundo urbano, esta contradição materializa-se, de acordo com Lojkine,
como contradição entre a parte dos recursos coletivos destinada ao financiamento dos meios
trabalhadora.
que serviram como instrumentos fundamentais para a resposta à questão que norteou o estudo.
teórico–metodológica que permita trazer à tona os nexos ontológicos que tornam possível
caracterizá-la como parte integrante da questão social geral e revelar, também, suas
analítica, orienta-se pela perspectiva da totalidade na análise das situações sociais e, por esta
razão, requer concebê-la a partir da forma como se organiza o trabalho nesta sociedade e a
marxista têm contribuído enormemente para o debate acerca desta questão; posto que
déficit habitacional. Com esta contribuição, desnudam o caráter estrutural desta questão e
desvendam a moradia nesta sociedade como direito dos proprietários e, não como direito
social público, uma vez que sua produção está subsumida à busca do lucro. Entretanto, ao não
124
Ver em LOJKINE, (1981).
230
pauperismo, estas concepções teóricas não valorizam um nexo ontológico fundante desta
da realidade, ainda que pervertido do seu significado abstrato, nas condições em que se realiza
isolada, decidimos apreendê-la como questão social plena. Nesta direção, procuramos
inscrever o trabalho como parte do complexo de processos que a produzem. Esta apreensão
questão social habitacional, mas da questão social, como um todo. A análise da questão
habitacional, a partir de seus vínculos com o trabalho, possibilitou assim, reconhecer que nela
distribuição é inteiramente determinada pela produção, [...] não só [...] porque é distribuído o
231
resultado da produção, mas também, porque ela determina a forma como o produtor
um resultado das leis objetivas do capital, e nem pode ser atribuída, unicamente, à
seletividade da ação do Estado na distribuição dos bens e recursos sociais, mas resulta de uma
síntese de múltiplas determinações. A busca dos nexos entre estas diversas determinações
vida social. No intuito de realizar esta demonstração, tratamos dos seus determinantes
alguns contextos espaciais; mas sim, do efeito da histórica repartição desigual da localização e
capital carrega consigo o misterioso poder de uniformizar, sob a forma mercadoria, todas as
múltiplas expressões da vida social e individual. O capital se mostra, assim, cada vez mais um
ente sem qualquer impedimento à sua sanha de reprodução. Obstáculos sociais ou naturais, ou
232
veleidades culturais, são rompidos ou ultrapassados à custa de um alto preço humano. Sem
adequados à expansão desta ordem. Sobretudo nas grandes cidades dos países periféricos, o
transformações estruturais democráticas, entre elas a reforma agrária e o acesso universal aos
direitos sociais, a questão social apresenta faces particulares, cujas marcas, inscritas no
processo de ocupação das grandes cidades destinadas a servir como território para a
pauperismo, analisado por Milton Santos (1990). Esta marca do processo de expansão social e
espacial da metrópole tem se intensificado nos anos recentes, especificamente entre os anos
80 e 90, quando o fluxo migratório passa a se voltar, cada vez mais, para a periferia
metropolitana.
233
trabalhadora.
com investimentos sociais, num quadro de refluxo de boa parte do movimento sindical, têm
eles o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Nosso intuito com a exposição realizada no
terceiro capítulo, foi revelar a íntima relação entre os movimentos de luta por moradia e a
divisão social e territorial do trabalho na metrópole e seu entorno e, ainda, a divisão social e
técnica da produção entre cidade e campo; relação esta recíproca, mas absolutamente
apreensão do fazer político de um movimento social deve partir do suposto de que sua
emergência constitui parte integrante das contradições sociais próprias de uma sociedade
assentada na exploração e na opressão. Desse modo, a experiência é lida como uma resposta
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numa dada formação social e num determinado contexto histórico. Neste sentido, o
aparecimento de um movimento social na cena política deve ser tomado como um sintoma de
uma ampla processualidade social e histórica, que determina as condições de sua afirmação.
Em resposta a estas condições, sujeitos intervêm, por meio de projetos e lutas concretas,
fazendo valer, assim, sua vontade, mesmo em circunstâncias que não alcançam transformar.
pressuposto de que por se tratar de um fato social pleno, não se auto-explica, já que a sua
alterações na estrutura das relações sociais e a ação do MST, em resposta à drástica redução
da população rural. Neste caminho, identificamos, também, a base social que dá sustentação
fração estagnada do exército de reserva, com perspectivas cada vez mais reduzidas de
desvendamento do seu fazer político, uma vez que, não só permitiu reconhecer a
com que as lutas adquiram um caráter multifacetado. Em se tratando dos segmentos mais
pauperizados, a resistência, cada vez mais radicalizada, parece expressar a urgência de suas
demandas, o descrédito nos poderes constituídos, além da profunda indignação dos que nada
têm a perder.
uma região periférica, próxima à grande capital, receptora de grande fluxo migratório
conformado pela população sobrante, e, ao mesmo tempo, ser uma região com fortes tradições
espacial para a territorialização do projeto do MTST foi de grande valia na busca de resposta
à nossa questão.
ocupação Anita Garibaldi. O exame do projeto ideal, proposto pela direção do Movimento, e
permite dizer que, diferentemente, do que tem sido, por vezes, afirmado na análise de
movimentos sociais, esta conjuntura não possui entre as suas marcas, única e exclusivamente,
movimentos sociais orientados por um projeto de classe. Com efeito, o que o surgimento do
MTST indica é que estamos diante da constituição, ainda seminal, de um novo sujeito
político, que se soma, com suas especificidades, à luta contra a distribuição desigual dos bens
modificar o lugar ocupado por este segmento nas formas de organização da classe
que o “Zé povinho sonhe com fome e tudo” (LISPECTOR, 1983: 157).
Neste contexto, em que parece anunciar-se o fim do pacto civilizador, sob o qual
opressora e opressiva, que empurra os trabalhadores para a luta imediata pela sobrevivência
diária e para sucumbir às estigmatizações que visam exilá-los do direito a lutar por seus
extremamente adversas, o MTST oferece uma possibilidade de que estes indivíduos – antes
Não é possível ainda presumir, dados os limites desta investigação, que estamos
em face de uma nova representação coletiva das condições de classe, conformada a partir da
análise de Sader (1988), ao longo da década de 70. Mas, estamos convencidos da necessidade
Enfim, a reflexão efetuada nos conduz a afirmar que a questão enfrentada pelo
MTST é resultante de uma formação social, em que a função de controle sobre a produção e
distribuição da riqueza não é exercida pelos reais produtores. Sua efetiva superação só poderá
ser alcançada, conforme afirmação de Engels (1984), caso sejam construídas as possibilidades
efetivas de superação dessa forma social de produção e reprodução da vida. E, esta alternativa
é tanto mais urgente e necessária, quanto mais se intensificam as contradições desse sistema
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