Sie sind auf Seite 1von 249

Metamorfoses na luta por habitação:

o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)


2

Sonia Lúcio Rodrigues de Lima

Metamorfoses na luta por habitação:


o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Planejamento Urbano e Regional do Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito para a obtenção do título Doutora
em Planejamento Urbano e Regional.

Orientador (a): Prof.a. Dra. Ana Clara Torres Ribeiro.


Doutora em Ciências Humanas pelo
Departamento de Sociologia da USP

Rio de Janeiro
2004
3

FICHA CATALOGRÁFICA

L732m Lima, Sonia Lúcio Rodrigues de.


Metamorfoses na luta por habitação : o Movimento
dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) / Sonia Lúcio
Rodrigues de Lima. – 2004.
249 f.. ; 30 cm.

Orientador: Ana Clara Torres Ribeiro.


Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e
Regional) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2004.
Bibliografia: f. 238-249.

1. Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. 2.


Movimentos sociais – São Paulo, Região Metropolitana
de (SP). 3. Habitação - São Paulo, Região Metropolitana
de (SP). 4. São Paulo, Região Metropolitana de (SP) –
Condições sociais. I. Ribeiro, Ana Clara Torres. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. III. Título.

CDD: 303.484
4

BANCA EXAMINADORA

Autora:
Sonia Lúcio Rodrigues de Lima

Título:
Metamorfoses na luta por habitação: o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)

Tese submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e


Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Doutora.

Aprovado por:

_______________________________________
Prof. Dr. Ana Clara Torres Ribeiro - Orientadora
(Doutora em Ciências Humanas pelo Departamento de Sociologia / USP)

_______________________________________
Prof. Dr. Adauto Lúcio Cardoso
(Doutor em Estruturas Ambientais Urbanas / USP)
_______________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto Curvelo Lopes
(Doutor em Educação / PUC-RJ)

_______________________________________
Prof. Dr. Maria Lídia Sousa da Silveira
(Doutora em Ciências Sociais / UNICAMP)

_______________________________________
Prof. Dr. Luciana Corrêa do Lago
(Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas / USP)

Rio de Janeiro
2004
5

Aos meus filhos Jordani e Lúcio e ao meu pai, Ezequias, com gratidão.
6

AGRADECIMENTOS

Aos ocupantes do acampamento Anita Garibaldi, pelo exemplo de vida.

Aos amigos e amigas, Cida, Cristina, José Carlos, Lídia, Maria Auxiliadora, Kátia Lima,
Maria Fernanda, Marina, Wanda e Sara pela solidariedade, acolhimento e estímulo.

À professora Ana Clara Torres Ribeiro – orientadora desta tese –, com quem tenho procurado
aprender sobre a essência do ofício de ensinar.

Aos meus queridos irmãos Samuca e Dado, pelo afeto.

Às minhas queridas noras, Maíra e Estela, pelo apoio e compreensão.

Aos professores que participaram deste trabalho, com críticas e sugestões: Adauto Lúcio
Cardoso, Aluísio Teixeira, Maria Aparecida Tardim Cassab, Maria Lídia Sousa da Silveira,
Maria Cristina Miranda, Marilda Villela Iamamoto, Marina Barbosa Pinto, Sara Granemann e
Sonia Maria Taddei Ferraz.

Aos meus alunos da Escola de Serviço Social da UFF-Niterói, pela rica interlocução que têm
me proporcionado.

Aos meus amigos e companheiros do movimento sindical e do partido: Agnaldo Fernandes,


Marcelo Badaró e Juarez Duayer – referências para continuar na luta pela universidade
pública e pelo socialismo.

À Clarice Cassab, pela parceria no trabalho de pesquisa de campo, pela ajuda na revisão do
trabalho e, especialmente, pela troca, sempre franca e generosa.

Às minhas queridas colegas de turma de doutorado, Lenise, Ana Isabel, Regina, Alice, Ângela
e Andréa pelo imenso companheirismo.
7

RESUMO

O crescimento urbano brasileiro ocorreu, historicamente, com base numa profunda

desigualdade social. Desde a emergência do trabalhador livre na sociedade brasileira, quando

as cidades tendem a ganhar nova dimensão, tem início a questão da habitação. Ela é um

componente das relações sociais estabelecidas pela ordem capitalista, expressivas de

processos sócio-culturais e políticos de uma civilização moderna que se nutre do atraso e do

pauperismo.

A forma de produção do espaço urbano na Região Metropolitana de São Paulo,

geradora de imensa disparidade social, pode ser considerada um exemplo emblemático da

natureza desta sociedade. Nela, é possível constatar, de maneira contundente, as marcas

históricas da segregação social e as agruras de uma época que pode ser caracterizada como

um tempo no qual ganha maior nitidez a impossibilidade de compatibilizar acumulação com

eqüidade social. É neste contexto que emerge o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

Suas singularidades, possibilidades e limites são o objeto desta tese.


8

ABSTRACT

The brazilian urban growth occurred, historically, based on a deep social inequality.

Since the appearance of the free work on the brazilian society, when the cities tend to get new

dimensions the dwelling question begins. This is a component of the social relations

established by the capitalist order, symbols of social, cultural and political processes of a

modern civilization that is mantained by lateness and pauperism.

The way of production of the urban area on the metropolitan region of São Paulo,

cause of a huge social disparity, can be considered an emblematic example of the nature of

this society. On it, it is posible to verify, in a strongn way, the historical signs of the social

segregation and the roughnesses of a period that can be characterized as a time in which the

impossibility of a compatibility between accumulation and social equality increases. It is on

this context that “o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto” appears. Its particularities,

possibilities and limits are the aims of the analysis purposed on this thesis.
9

Sumário
Introdução 15

Capítulo 1: A questão habitacional no Brasil contemporâneo 24

1.1 A crise social contemporânea e sua repercussão sobre a vida dos pobres nas
grandes cidades 26

1.1.1 Moradia e trabalho nas metrópoles brasileiras contemporâneas 41


1.2 A questão da habitação como expressão da produção/reprodução das relações
sociais 55
1.3 Particularidades das lutas urbanas no Brasil 70

Capítulo 2: A questão habitacional na Região Metropolitana

de São Paulo 82

2.1 Particularidades da urbanização brasileira: breve histórico 83

2.2 A Região Metropolitana de São Paulo 89


2.2.1 RMSP: Características Principais 89

2.2.2 A RMSP no Contexto da Crise 95

2.3 A questão habitacional na Grande São Paulo no momento atual 107

2.3.1 Luta por moradia na Região Metropolitana de São Paulo 123

2.4 A questão da habitação na RMSP: considerações finais 134

CAPÍTULO 3: A emergência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na


Região Metropolitana de São Paulo 137

3.1 A gênese do MTST em diferentes versões e interpretações 139


3.2 Raízes históricas e sociais da formação do MTST 145

3.3 Transformando o limite em possibilidade: síntese dos principais determinantes


sociais da formação do MTST 161

Capítulo 4: O acampamento Anita Garibaldi: singularidades, possibilidades e


limites de uma experiência do MTST 168

4.1 Acampamento Anita Garibaldi 171


10

4.1.1 Localização 171


4.1.2 A preparação da ocupação 179

4.1.3 A ocupação 182

4.1.4 A consolidação da ocupação 185

4.1.5 Os acampados do Anita Garibaldi 185

4.1.6 A reestruturação espacial 187

4.1.7 Situação jurídica do Anita Garibaldi 189

4.2 Os métodos de luta e o formato organizativo do Movimento 190

4.3 Singularidades da emergência e da constituição do Movimento 192

4.4 Razões da permanência e da consolidação do Movimento em Guarulhos 193

4.5 Processo constitutivo do Movimento e suas contradições 195

4.6 Principais obstáculos à atuação do MTST 207

4.7 A dissociação entre lutas urbanas e lutas sindicais 221


4.8 Sentido da ação do MTST na conjuntura atual 225

Considerações Finais 228

Referências 238
11

LISTA DE SIGLAS

CEBs - Comunidades Eclesiais de base


CESP- Companhia Energética do Estado de São Paulo
COCAMP- Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados de
Reforma Agrária do Pontal
CPT - Comissão Pastoral da Terra

CUT - Central Única dos Trabalhadores


IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
FASE - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FAU- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
FINEP-GAP - Financiadora de Estudos e Projetos – Grupo de Apoio de Pesquisa
FIPE-SEHAB- Funde ação Instituto de Pesquisas Econômicas – Secretaria Municipal de
Habitação
FMI - Fundo Monetário Internacional
MP - Ministério Público
MST- Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MSTC- Movimento dos Sem Teto do Centro
MTST- Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
OAB- Ordem dos Advogados do Brasil
ONG- Organização Não Governamental
PCV- Pesquisa de Condição de Vida
PEA- População Economicamente Ativa
PIB- Produto Interno Bruto
PMDB- Partido do Movimento Democrático Brasileiro
RMSP- Região Metropolitana de São Paulo
SEADE- Funde ação Sistema Estadual de Análise de Dados do Estado de São Paulo
SISE- Sistemas Integrados de Gestão
SGGE- Secretaria do Governo e Gestão Estratégica
UDR- União Democrática Ruralista
UNM- União dos Movimentos de Moradia
UFF- Universidade Federal Fluminense
12

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Distribuição das famílias, segundo formas de apropriação da moradia estado de


São Paulo, RMSP e interior 1994 – 1998 ( Em %) ........................................................p. 111

Tabela 2 - Distribuição dos Domicílios, segundo Necessidades Habitacionais - Estado de São


Paulo e Interior – 1988 (Em ....................................................................................p. 113
13

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1- RMSP- Estrutura do emprego, por gênero e grau de instrução –1990 e 2002. p. 99

Gráfico 2 – Guarulhos - migrantes região Nordeste - período 1991-1996. p. 175

Gráfico 3 – Guarulhos – migrantes região Sudeste – período de 1991- 1996. p. 176


14

LISTA DE IMAGENS E PLANTAS

Imagem 1 - Foto do acampamento Anita Garibaldi – primeiras semanas de ocupação. p.184


Planta 1 - Reestruturação espacial do acampamento Anita Garibaldi. p. 202
15

INTRODUÇÃO

A experiência como assistente social na área de formação política de operários

que realizavam cursos profissionalizantes do Centro da Providência e, anos mais tarde, no

desenvolvimento de ações sócio-educativas junto à clientela de Centros de Saúde Pública do

Município do Rio de Janeiro, somada à experiência como docente de Serviço Social e

militante do movimento sindical e do movimento socialista, dá origem às preocupações deste

estudo. Trata-se de inquietações relacionadas à agudização das contradições sociais na

realidade brasileira atual e ao ceticismo, presente tanto no debate político quanto no debate

teórico, acerca das possibilidades de transformação desta realidade.

A escolha do tema: o sentido da ação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto

na sociedade brasileira atual vincula-se, não só ao interesse despertado pela leitura e

discussões mantidas ao longo das disciplinas cursadas no IPPUR/UFRJ como, também, ao

acúmulo de questões e reflexões oriundas das experiências anteriores. Pretendia-se,

inicialmente, pesquisar os limites e possibilidades da participação popular na disputa do

recurso público e, aos poucos, foi surgindo o desejo de investigar processos referentes às

manifestações externas aos espaços institucionalizados da sociedade que surgem na

contramão do “consenso”, idealizado pelo pensamento neoliberal. O estudo de movimentos

sociais que acionam a via da ação direta, como meio para se impor como sujeito na disputa

pelo solo urbano e pelo recurso público, tornou-se instigante, dado que tais movimentos

demonstram, com suas práticas, uma postura de negação das concepções políticas

privilegiadoras da via da institucionalização das lutas sociais, afirmando, assim, o dissenso


16

como estratégia da ação política. Descobrir o significado deste ‘fazer político’ na luta por

habitação passou, então, a ser a questão que movia o interesse pela pesquisa.

Os dois momentos do processo de escolha do tema da tese serviram para

fortalecer o entendimento de que, para apreender os determinantes das contradições sociais

com as quais defrontam-se todos aqueles que lutam contra a repartição desigual dos bens e

recursos sociais e refletir sobre as possibilidades de sua superação, torna-se necessário tentar

reconhecer, na dinâmica da realidade, os momentos de negação e os momentos de

conservação de determinantes estruturais da experiência social, e ainda, os momentos em que

as contradições assumem a fisionomia de aparência e de essência. Daí a importância atribuída

à busca de aprofundamento teórico como meio de deslindamento das questões suscitadas no

cotidiano da ação profissional e da prática militante, a partir de uma perspectiva que defende

o caráter totalizante do conhecimento.

Este intento tem por referência, mais ampla e profunda, a crença na possibilidade

da transformação social e a compreensão de que o recurso à teoria social marxista, como fonte

de interpretação da sociedade, somada a condições construídas pela luta política, constitui um

dos pilares para a realização desta possibilidade.

Nessa busca, considera-se importante tentar escapar das armadilhas dos discursos

excessivamente abstratos e genéricos nos quais, muitas vezes, acaba-se caindo ao tentar

superar o pragmatismo que caracteriza as concepções tradicionais orientadoras da prática

profissional de Serviço Social.

É, portanto, parte integrante e fundamental da pesquisa construir conhecimento

por meio do esforço de superação do formalismo teórico que impregnou parte das elaborações

do Serviço Social por ocasião do processo de renovação intelectual, realizado pela categoria,

em direção à apreensão da teoria marxista como fonte de explicação da realidade social. A

crítica ao formalismo, por este ser desprovido do conteúdo das práticas e dos sentidos da ação
17

dos sujeitos sociais, tem propiciado a elaboração de conhecimentos que apreendem a

dinâmica social de forma mais íntegra e concreta e, ao mesmo tempo, tem contribuído para

revelar os vínculos entre o pesquisador e o objeto pesquisado, por meio da identificação do

lugar de onde o pesquisador se expressa.

A aproximação do Serviço Social à problemática urbana ocorreu sob a influência

do estrutural-funcionalismo. O caráter higienista e moralizante desta abordagem da

denominada questão social foi profundamente combatido ao longo da renovação intelectual da

categoria, ocorrida na transição da conjuntura política de forte repressão para a conjuntura de

redemocratização, para a qual contribuíram os movimentos sociais do final dos anos 70.

Como decorrência desta renovação, passou-se a apreender o urbano como

expressão social do contraditório processo de reprodução do capital e da força de trabalho. A

concepção do urbano, concretizada na cidade capitalista, como lócus do confronto entre

sujeitos sociais aproximou os profissionais de Serviço Social a outros profissionais que

intervém na problemática urbana na perspectiva da transformação dos fundamentos da

sociedade erigida pela racionalidade do capital. Este trabalho é parte deste esforço de

participação dos profissionais de Serviço Social neste campo teórico e político e sua intenção

é contribuir para dar visibilidade às manifestações políticas de segmentos da classe

trabalhadora apartados do direito ao trabalho e do direito à cidade.

A partir do final dos anos 80 e durante a década de 90, foram constatadas algumas

modificações significativas no protesto social em países latino-americanos, como Argentina,

Brasil e México. Estas modificações expressaram-se por meio da aparição de novas formas de

atuação, novos atores e lutas e pela retração das reivindicações sindicais, especialmente

aquelas empreendidas por trabalhadores do setor privado da economia.

No Brasil, a expansão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

e, anos depois, a emergência e expansão do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
18

permitem a conquista da visibilidade, na cena pública, para temáticas, estratégias, demandas e

escalas de intervenção distintas daquelas expressas pelos movimentos sociais urbanos dos

anos 70 e início dos anos 80.

No percurso de elaboração do objeto de investigação desta Tese, partimos,

inicialmente, da constatação de que há diferenças entre a ação do Movimento dos

Trabalhadores Sem Teto e do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e a ação dos

chamados novos movimentos sociais dos anos 70/80. Para os primeiros, a luta por moradia

por meio da ocupação de imóveis públicos e privados, como forma de forçar a negociação, é

parte central do conjunto dos princípios organizativos que orientam a ação; já para os

movimentos sociais urbanos dos anos 70/80, a participação na formulação das políticas

públicas e o controle social do Estado representavam os objetivos centrais da atuação política.

Estas mutações nas práticas e na cultura política dos movimentos sociais têm

ocorrido num contexto marcado pelo aprofundamento das contradições sociais, que se

manifestam, também, na paisagem urbana. O aparente caos urbano e sua intensificação,

sobretudo nas metrópoles, revelam algumas das conseqüências do ordenamento

contemporâneo do capital e do recuo do Estado na implementação de políticas públicas. Nas

cidades brasileiras, esses processos articulam-se à migração da população expulsa pelo

latifúndio improdutivo, ao aumento do desemprego, à existência do arrocho salarial mais

pesado da América Latina e de multidões que não têm onde trabalhar, não têm o que comer e,

finalmente, não têm onde morar.

Contribuir para o conhecimento dos processos sociais geradores de alterações nas

reivindicações urbanas, a fim de apreender os sentidos da ação desses movimentos e refletir

sobre as potencialidades e limites de sua ação na sociedade brasileira atual, constituiu o

objetivo maior deste estudo.


19

A escolha do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto da Grande São Paulo como

referência empírica deveu-se ao fato da organização estar mais consolidada nesta região.

Pretendíamos, inicialmente, fazer a pesquisa no município do Rio de Janeiro. Contudo, os

contatos mantidos com a coordenação estadual do MTST e a leitura de documentos relativos à

história da sua atuação, neste município, mostraram que o Movimento viveu um processo de

perda do vínculo com a população assentada, devido a dificuldades oriundas de divergências

na sua condução, da cooptação de parcela dos assentados praticada pelo governo estadual e

da interferência do tráfico de drogas nos assentamentos.

Com o intuito de alcançar o objetivo citado, elaboramos um percurso de

conhecimento que teve início na delimitação da orientação teórico-metodológica da pesquisa.

Em seguida, estabelecemos um caminho para a operacionalização da coleta de informações e

sistematização do material empírico. Nesses dois momentos, intimamente relacionados,

procuramos reconstruir os processos sociais nos quais se insere a problemática estudada. Por

meio da elaboração do referencial teórico da pesquisa, procuramos desvelar os seguintes

processos sociais: as raízes da produção e da reprodução das desigualdades sociais geradoras

das carências sociais enfrentadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, visando

apreender, especialmente, as mediações históricas de sua atualização e os determinantes

sociais da constituição e desenvolvimento do Movimento, incluindo as influências políticas e

culturais norteadoras de sua ação.

Para tal, adotamos como orientação teórico-analítica os seguintes eixos: a relação

de unidade entre estrutura e ação na constituição da vida social ou entre causalidade e

teleologia; a concepção que apreenda sociedade capitalista como uma organização que tem no

trabalho em geral sua base histórica e material e a decorrente afirmação desta categoria como

fonte de interpretação das relações sociais; a concepção que articula o pauperismo ao

trabalho.
20

A afirmação do trabalho como fonte de interpretação das relações sociais não

pretende negar, contudo, a necessidade da elaboração de mediações que auxiliam na

identificação das peculiaridades das atuais metamorfoses do mundo do trabalho em países

periféricos e suas repercussões na configuração da vida da classe trabalhadora na sociedade

brasileira, notadamente, do segmento de classe que compõe, em grande parte, a base social do

MTST: a população sobrante para as necessidades médias do Capital.

Na existência e atual crescimento deste segmento da classe trabalhadora tem-se

uma das fontes do pauperismo nas sociedades capitalistas; deriva daí a necessidade de

articular pauperismo e trabalho. O pauperismo, a partir da perspectiva teórica adotada, é

apreendido, tanto quanto a riqueza, como resultado do desenvolvimento das forças produtivas

e das relações de produção, constituindo, portanto, uma especificidade da forma de produção

fundada no capital.

Em face desta angulação teórico-analítica, tornou-se relevante considerar a forma

de constituição das classes sociais nas sociedades periféricas e de industrialização tardia como

a brasileira, em seus vínculos com a constituição da dimensão alcançada pela população

excedente.

Considerando-se que as formas de pertencimento na classe tecem experiências de

vida diversificadas, tornou-se necessário, também, aprofundar no percurso da pesquisa, os

determinantes das condições de vida do segmento da população excedente na atual conjuntura

brasileira e no contexto escolhido para a pesquisa: a cidade de Guarulhos, situada na área

periférica da Região Metropolitana de São Paulo. Conforme analisa Martins (2002), este

contingente, excluído do processo de trabalho capitalista, encontra-se incluído no processo de

valorização do capital por meio de formas indiretas de subordinação.

A noção de exclusão-integrativa, proposta pelo autor, contribuiu no

reconhecimento da relevância que precisávamos atribuir ao exame da forma de inclusão,


21

desse segmento da classe trabalhadora no circuito de valorização do capital e, também, à

reflexão de suas reais condições e possibilidades de intervir ativamente na dinâmica social.

De fato, na atualidade, sob novas condições sociais e históricas, aprofundam-se as

contradições sociais decorrentes do aumento progressivo da população excedente face às

necessidades médias do capital.

Com base nesta orientação analítica, compreendemos a importância do

conhecimento empírico das formas de inserção, mesmo que indiretas, dos participantes do

Movimento no "mundo do trabalho" e, principalmente, fomos capazes de criticar o uso

corrente do termo exclusão, por obscurecer a raiz estrutural e estruturante das perversas

condições sociais vividas pelos segmentos que compõem a base social do Movimento. De

posse deste referencial, tornou-se possível reconhecer, analiticamente, o caráter de classe do

movimento social.

Na realidade, o que vem se processando na atual reestruturação da economia na

sociedade brasileira é a atualização de perversas marcas históricas. Permanece a convivência,

de forma articulada, do moderno e do arcaico, o que deixa nítido que as determinações

estruturantes do capitalismo não se manifestam no mesmo tempo histórico e nem da mesma

maneira em todas as formações sociais, o que exige o exame das suas formas particulares.

Ao reconhecimento teórico-empírico da base social do Movimento articulamos o

exame da especificidade e das peculiaridades da questão da habitação. A análise crítica das

contribuições teóricas de diversos autores permitiu conceber a problemática da habitação

como questão concreta e particular e, ao mesmo tempo, parte constitutiva do conjunto das

manifestações das desigualdades entre as classes sociais geradas na sociedade capitalista

madura.

No atual contexto de acirramento da ofensiva capitalista em direção ao aumento

da exploração e da opressão dos trabalhadores, alguns movimentos sociais têm buscado


22

ressignificar sua atuação política na busca da construção de uma nova sociabilidade.

Destacamos, na observação destas lutas, as novas formas e arenas de confrontação acionadas

por seus protagonistas.

A expansão dos movimentos de luta por terra e moradia na nossa sociedade

demonstra, assim, não só o profundo agravamento da questão social na realidade brasileira

atual, como também revela a capacidade de resistência e organização de segmentos da classe

trabalhadora extremamente pauperizados.

O interesse em apreender as determinações e os sentidos destas mudanças

constituiu, conforme mencionado, o norte da pesquisa. Nesta direção, incluímos no percurso

investigativo, a apreensão das condições subjetivas elaboradas pelos sujeitos na busca da

materialização de seus projetos.

O resultado do processo investigativo está exposto da seguinte maneira: no

primeiro capítulo, tratamos a questão habitacional na sociedade brasileira atual. Nosso intuito

central com esta exposição é demonstrar que a elucide ação desta questão requer concebê-la

como uma síntese de múltiplas determinações, uma vez que expressa, em sua especificidade,

a atualização da histórica relação entre acumulação e miséria na sociedade capitalista e sua

realização na particularidade de uma sociedade de capitalismo periférico e industrialização

tardia.

No segundo capítulo, procuramos contextualizar a questão habitacional na Região

Metropolitana de São Paulo. O foco da exposição dirige-se para as transformações sociais em

curso e suas conseqüências para as condições de vida da classe trabalhadora, em seus vínculos

com as lutas que vêm sendo implementadas coletivamente pelos seus segmentos mais

pauperizados em resposta a agudização das contradições sociais.

No terceiro capítulo, nosso intento é apresentar os determinantes sociais e

históricos da constituição do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e, no último capítulo,


23

analisamos o sentido da ação do Movimento, suas singularidades, limites e possibilidades na

atual conjuntura.
24

CAPÍTULO 1

A QUESTÃO HABITACIONAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Este capítulo trata dos determinantes históricos e conjunturais da denominada

questão habitacional na sociedade brasileira atual. Seu objetivo é demonstrar que a questão

habitacional é uma expressão da questão social e, portanto, referida à produção e reprodução

da totalidade da vida social.

Partimos do pressuposto de que a existência de segmentos extremamente

pauperizados da classe trabalhadora, desprovida do direito à moradia e ao trabalho, constitui

uma dimensão estrutural da realização do capitalismo. Esta dimensão aprofunda-se na

periferia do sistema e tenda se agudizar no atual período histórico, devido às transformações

que têm ocorrido na organização da produção, do consumo e no papel do Estado.

Objetivamos demonstrar que, muito embora a moradia seja uma necessidade de

todos, a desigualdade no acesso e na qualidade habitacional, que inclui a localização usufruída

pelos diferentes segmentos e frações de classe, é expressão dos conflitos sociais resultantes da

estruturação do urbano consoante a lógica da acumulação capitalista. Por ser parte integrante

da chamada questão social, a questão da habitação expressa, contudo, caracteres particulares,

pois, sua existência e agudização fazem transparecer a unidade, tensa e contraditória, entre os

interesses dos proprietários do solo, dos empresários capitalistas de diversos setores e ramos

da produção, dos representantes de segmentos da classe dominante no Estado e da classe

trabalhadora.

A preocupação em ressaltar o caráter particular da questão da habitação orienta-se

pela seguinte diretriz analítica:


25

- o entendimento de que o exame desta particularidade é indispensável não só à

identificação das interconexões entre a questão habitacional e o conjunto da realidade social,

como também, necessário ao reconhecimento dos obstáculos específicos enfrentados por

todos aqueles que lutam pelo direito à moradia, tão relevante na garantia da reprodução;

- a compreensão de que a questão social mais ampla, muito embora se revele por

meio de múltiplas formas e expressões, não pode ser inteiramente compreendida com base na

apreensão de uma ou outra manifestação dos conflitos que a expressam, o que torna

imprescindível o resgate de sua origem e fundamentos estruturais.

Com base nesta perspectiva e nestes objetivos, trataremos, inicialmente, dos

principais determinantes das transformações sociais em curso. Em seguida, procuraremos

mostrar de que forma a sociedade brasileira se inscreve neste processo associado, a atual fase

do capitalismo e as conseqüências desta forma particular de inserção sobre as condições de

vida e, notadamente, sobre as condições de moradia da classe trabalhadora, em especial os

determinantes históricos de seus segmentos mais pauperizados. Por fim, apresentaremos uma

análise acerca dos determinantes históricos e estruturais da questão habitacional e de suas

implicações, enquanto parte das lutas empreendidas pelas classes trabalhadoras urbanas na

sociedade brasileira. Visamos com esta exposição, sobretudo, demonstrar que esta questão

não deve ser apreendida como um fenômeno transitório ou conjuntural, posto que expressa,

com nitidez, a histórica relação entre acumulação e miséria na sociedade capitalista.


26

1.1. A CRISE SOCIAL CONTEMPORÂNEA E SUA REPERCUSSÃO SOBRE A

VIDA DOS POBRES NAS GRANDES CIDADES

A complexidade, profundidade e duração da crise social, na qual estamos imersos,

além de acarretar o aumento das distâncias sociais entre ricos e pobres, tem fortalecido a

percepção de que esse fosso entre condições de vida é natural, destituído da ação dos homens

e, portanto, a-histórico. Tende-se, desse modo, a banalizar suas terríveis conseqüências e a

ver, de forma quase indiferente, os efeitos da crescente perda da alteridade, do sentido do

“outro”, nas relações sociais cotidianas.

O ímpeto do imperialismo na busca da integração monopolística global a qualquer

preço, demonstrado pelo fato do imenso progresso econômico, tecnológico e científico

alcançado pela humanidade, proporcionar condições de extremo bem estar para poucos e uma

terrível privação, não só econômica, mas também social, política e cultural, para a imensa

maioria da população, é expressivo da crise societária global e de suas repercussões na forma

de ser e pensar dos homens. Lessa (2001) assinala, como decorrência desta crise, o

aguçamento da cisão entre o indivíduo e o coletivo, o singular e o social.

O aprofundamento da crise social é responsável, salvo melhor juízo, pelo

sentimento de impotência diante da miséria e da violência, hoje cada vez mais visível nas ruas

das metrópoles de todos os países.

As interpretações deste momento particular da história vinculam-se a perspectivas

teóricas distintas e, até mesmo, antagônicas.

Há teóricos que atribuem à crise do Estado de Bem Estar os principais

determinantes da crise social. Para estes, vive-se o esgotamento deste modelo de gestão das

relações sociais, derivando daí a necessidade de reformular as modalidades de regulação


27

social. Outros consideram que a crise é de natureza fiscal e propõem a redução dos gastos

sociais públicos.

Outros ainda a atribuem a exponencial “[...] fratura entre o desenvolvimento das

forças produtivas do trabalho social e as relações sociais que o sustentam" (IAMAMOTO,

2001, p. 21). Partem da compreensão de que as fases de depressão e de recessão não resultam,

fundamentalmente, de elementos acidentais ou casuais, mas, correspondem à lógica imanente

do sistema capitalista1. Para os autores que analisam a vida social com base neste prisma

analítico, o deslindamento dos determinantes deste abismo crescente entre as classes sociais é

uma das condições para o alcance da transformação radical dos pilares que as sustentam.

As reflexões de Mézáros (1995) contribuem para este desvelamento. O autor

conceitua a sociedade regida pelo capital como um controle social metabólico, refratário a

qualquer regulação inibidora de sua expansão. Esta é uma condição estrutural necessária à

dinâmica de a acumulação capitalista em expansão. Nesta direção, afirma que o diagnóstico

realizado pelos representantes da burguesia sobre as falhas no crescimento e no avanço

econômico não atinge as suas determinações causais porque, de acordo com a ótica destes

representantes, não há nada que deva ser substancialmente modificado.

Mézáros argumenta que a:

[...] razão pela qual o capital é estruturalmente incapaz de tratar causas como
causas [...] é porque ele [...] é a sua própria funde ação causal, uma real e
perversa ‘causa sui’. Qualquer coisa que possa aspirar a legitimidade e
viabilidade sócio-econômica deve ser acomodada dentro de sua moldura
estrutural pré-determinada. Porque, enquanto modo de controle social
metabólico, o capital não pode tolerar a intrusão de nenhum princípio de
regulamentação sócio-econômico que possa limitar sua dinâmica
expansionista. De fato, a expansão como tal, não é simplesmente uma função
econômica relativa [...], mas, uma maneira absolutamente necessária de
deslocar os problemas e contradições emergentes do sistema de Capital, de
acordo com o imperativo de evitar suas causas subjacentes. (MÉZÁROS,
1995, p.6).

1
Ver a respeito em Ernest Mandel (1990).
28

Esta forma de lidar com os problemas decorrentes do processo de expansão do

capitalismo tem por objetivo criar a ilusão de que as crises recessivas são desvios passageiros

de uma rota que tende para um curso saudável, na direção do desenvolvimento e do progresso

do conjunto da população.

Provavelmente por isto, usou-se de um forte poder mistificador para fazer com

que a crise de valorização do capital crescente, a partir dos anos 70, aparecesse como crise

fiscal, provocada pelos gastos excessivos do Estado de Bem-Estar 2.

As últimas décadas do século passado serviram, contudo, para descortinar os

limites de uma outra crença: a irreversibilidade da vitória do socialismo real.

O estatismo antidemocrático do bloco soviético não se constituiu em uma

alternativa radical à divisão social do trabalho própria da sociedade capitalista, posto que, ao

invés da “[...] associação livre dos trabalhadores [...] vivenciou-se a crescente subordinação

dos países pós-capitalistas ou de ‘socialismo real’ às regras do sistema produtor de

mercadorias” (ANTUNES, 1995, p.118). A derrocada desta experiência na década de 80, em

que pesem os avanços sociais por ela alcançados nos campos da saúde e da educação, abalou

as esperanças de militantes e ativistas de esquerda na superação da ordem do capital.

O desmoronamento das duas tentativas de controle sobre o capital, - o Estado de

Bem Estar e o denominado socialismo real -, desnudaram a existência de uma crise societária

global, com fortíssimas repercussões sobre as condições e possibilidades de desenvolvimento

material e espiritual de indivíduos e nações.

A burguesia internacional reagiu de maneira ágil e, em certa medida, eficaz à crise

de a acumulação iniciada nos anos 70. Ao diagnosticar como engessamento das condições de

produção, os mecanismos que asseguraram ao capital a prosperidade ao longo de trinta anos

2
O Estado de Bem-Estar Social é, de acordo com a conceituação de Netto, um modelo criado para fazer frente à
crise depressiva dos anos 30 e também, como alternativa à revolução comunista de 1917 através do qual buscou-
se conciliar acumulação com direitos sociais e políticos. O fracasso deste ordenamento fez ruir a ideologia
dominante acerca da busca de benefícios universais de bem-estar. Ver em Netto (1993).
29

de vigência do pacto keynesiano/marshalliano, os representantes das grandes empresas

transnacionais e do capitalismo financeiro deram início a um combate sem tréguas que visa

suprimir restrições sociais e políticas à autonomia do capital impostas pelas lutas operárias e

sindicais e por políticas de cunho nacionalista.

A denominada globalização3 ou mundialização, a reconversão produtiva e o

neoliberalismo constituem reações burguesas à crise, conformando uma totalidade

organicamente articulada e projetada. Ainda que cada um destes momentos guarde em si certa

lógica, seu fim precípuo é a eliminação de todos os óbices à expansão da acumulação e a

garantia de lucro.

Por isto, nestes tempos em que o planeta parece configurar-se como espaço social

unificado, porém desigualmente dividido, a concepção de que só o poder controla o poder, ou

seja, de que só a sociedade organizada e o Estado podem tentar controlar os interesses do

capital, sofre um duro ataque. Na nova ordem social, aprofundam-se as constrições que a

dominância capitalista impõe sobre os mecanismos de controle social democrático

construídos ao longo do século XX pelas lutas sociais. As conquistas obtidas pela classe

operária em diversos países capitalistas, sob a pressão representada pela existência do

socialismo real, que pareciam anunciar a possibilidade da efetivação do projeto da

modernidade – oportunidades iguais de inserção política e social para todos – incluindo o

direito ao trabalho, encontram-se sob severa ameaça.

Com a crise de valorização do capital, acirra-se a concorrência intercapitalista.

Nesta conjuntura, o discurso da plena integração social tenda se desvanecer por completo. O

enfrentamento da crise gera uma busca incessante pela redução de custos de produção e pelo

3
O conceito de globalização insere-se em um intenso debate acadêmico. Nesse debate há, segundo Gomes, "dois
eixos maiores que [...] funcionam como separadores de água. De um lado, [...] estão aqueles que centram a
análise em fatores causais [...]. De outro, há os que focalizam a questão da continuidade ou mudança. Os
transformacionistas sustentam que a fase atual representa um corte [...] com o passado. Enquanto posições
opostas afirmam sua continuidade histórica [...]". GOMES, J.M. "Globalização, Estado-Nação e Cidadania”. In:
Contexto Internacional, vol. 20, n.1, RJ: jan./jun. 98.
30

aumento da lucratividade. Acelera-se o desenvolvimento técnico, revolucionando a produção

de bens e serviços. Resultam destas estratégias, amplamente utilizadas pelas corporações, a

redução da demanda por trabalho vivo frente ao aumento da demanda por trabalho morto,

incorporado aos meios de produção, o que acarreta desemprego e precarização das condições

de trabalho.

Nesta sociedade que se assenta sobre o desemprego estrutural, mas que, conforme

problematiza Chauí: “[...] continua valorizando moralmente o trabalho e por isso,

desmoraliza, humilha e degrada o desempregado e [...] julga todo trabalhador um

desempregado potencial” (CHAUÍ, 1997, p.18), os membros da classe que vive do trabalho se

confrontam com um

[...] duplo tormento: ser trabalhador livre dependente do trabalho para se


reproduzir e não encontrar oportunidade de trocar sua força de trabalho por
meios de vida, seja via relação típica salarial ou outras formas de venda de
seus serviços, que fogem aos critérios da lucratividade porquanto voltadas
para a reprodução dos meios de vida. A radicalidade do dilema é que
atualiza-se a condição de trabalhador livre, despossuído, sem que se
atualizem as possibilidades de transformar-se em trabalhador assalariado. A
condição de trabalhador livre ‘desvincula-se’ da condição de trabalhador
assalariado, mais além da vontade individual do sujeito, uma vez que vem
crescendo, em um ritmo cada vez mais acelerado, o contingente
populacional efetivamente sobrante para as necessidades médias do capital
no atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas (IAMAMOTO,
1998, p.88).

4
Somam-se ao desemprego estrutural e à precarização do trabalho, as perdas de

direitos sociais e trabalhistas e a segmentação, a heterogeneidade e a dispersão dos que se

encontram inseridos no mercado formal de trabalho. Os impactos desta nova sociabilidade do

capital sobre o mundo do trabalho têm provocado a quebra das formas de solidariedade e o

enfraquecimento da organização da classe trabalhadora, além da ampliação exponencial do

pauperismo e da desigualdade social.

4
“O desemprego deixa de ser acidental ou expressão de uma crise conjuntural porque a forma contemporânea do
capitalismo não prevê mais a incorporação de toda a sociedade no mercado de trabalho e de consumo”. (CHAUÍ,
1999).
31

Ao analisar a agudização da crise social contemporânea, Mandel afirma que:

Nada ilustra melhor o caráter capitalista dessa famosa economia de mercado


e suas conseqüências injustas e desumanas do que o espetáculo aflitivo de
metade da humanidade passar fome não porque o mundo careça de produtos
alimentares, mas porque a demanda solúvel não pode seguir a física. Apesar
da abundância de valores de uso, os valores de troca são inacessíveis, e
algumas vezes até destruídos condenando milhões de seres humanos a uma
existência infra-humana. (MANDEL, 1990, p. 117)

Diferentemente das sociedades anteriores à sociedade burguesa, nas quais as

privações e a ausência do necessário à sobrevivência derivavam do baixo nível de

desenvolvimento das forças produtivas (e que possuíam como correlato um ideário

legitimador das desigualdades), na ordem burguesa madura, a escassez é socialmente

produzida 5 e o ideário de igualdade simultaneamente negado e estimulado.

Hoje, portanto, ao contrário da sociedade baseada na promessa da integração,

temos uma ordem societária na qual o capital recria o ideal do livre mercado, desenvolvendo

novas formas de exploração do trabalho, através da expansão dos princípios da produção

denominada flexível que implica, fundamentalmente, no aumento da insegurança e da

incerteza diante da vida.

Martins demonstra que, por causa da intensificação da exploração do trabalho em

âmbito mundial e da fragilidade das concepções de vida, modalidades do processo de

subordinação próprias de fases anteriores à acumulação primitiva, ressurgem adaptadas à

racionalidade da economia, crescentemente globalizada. O ressurgimento de traços de

relações sociais escravistas é um exemplo emblemático do aumento do poder destrutivo do

capital nestes novos tempos.6

Tais processos afetam, conforme já referido, não só a política e a economia.

Atingem, também, as formas de sociabilidade. Uma racionalidade de caráter produtivista alça

a competitividade, a eficiência e a rentabilidade ao patamar de únicos critérios válidos para


32

orientar diagnósticos e decisões sobre a vida em sociedade (IAMAMOTO, 2001, p.15), o que

contribui para acarretar forte (des) solidarização, expressa no culto ao individualismo, na

adesão ao consumismo, no cultivo da concepção fragmentária do social, na desqualificação

da coisa pública, na descrença no potencial emancipatório da classe trabalhadora.

A garantia da reprodução ampliada do capital significa, cada vez mais, produção

de desumanidade, de alienação. Ora, na medida em que existe uma dissociação crescente

entre necessidades da acumulação e necessidades humanas, a produção é, cada vez mais,

voltada, não para a satisfação das necessidades sociais, mas para a criação e expansão do

valor. Por esta razão, ao invés de eliminar a fome, despende-se enormes volumes de recursos

com a fabricação de armas atômicas e guerras7.

Neste contexto, a busca de intervenções conscientes no direcionamento da

economia, cedeu lugar ao pragmatismo daqueles que dizem estar a serviço do livre

movimento da economia, isto é, das coisas, das mercadorias e dos pressupostos da

acumulação.

O pensamento atual, à medida que não vislumbra o novo, limita-se,

pragmaticamente, a elaborações que visam administrar o presente, renunciando, assim, à

possibilidade, sempre historicamente determinada, de controlar o decurso da experiência

social. O revigoramento desta razão instrumental, apenas gestionária, é uma resultante

necessária da consolide ação da ideologia do mercado que, segundo esta concepção, seria

uma relação social não superável e que, segundo os neoliberais, não deveria ser, sequer,

controlada8.

Controlar o mercado, afirma Duayer, “[...] é quando menos, um indício explícito

de que o controle consciente da produção social é possível e desejável. E controlar a

5
Ver a respeito Netto (2001).
6
Ver em Martins (2002).
7
Ver a respeito Lessa (2000)
8
Ver em Duayer (1996).
33

produção social nada mais significa do que subordiná-la a finalidades humano-sociais”

(DUAYER, 1996, p. 21).

Mesmo aqueles que não partilham de uma perspectiva emancipatória da vida

social, mas que refutam a concepção de que o mercado é uma instância supra-pessoal,

alarmam-se, segundo Duayer, com o fato de que a drástica redução do poder de intervenção

do Estado deixa a economia cada vez mais submetida à irracionalidade dos mercados

financeiros, atirando milhões de pessoas fora do mercado de trabalho, o que gera, como

efeito, a denominada exclusão social, fruto da super-exploração do trabalho pelo capital.

Segundo Martins, esta forma aviltante de socialização não leva, propriamente, à

tão propalada exclusão, mas sim, à inclusão perversa de grande parte dos trabalhadores.

Assim, propõe que discutamos

“[...] o preço moral e social da inclusão, o comprometimento profundo do


caráter desses membros das novas gerações, desde cedo submetidos a uma
socialização degradante. O que a sociedade capitalista propõe hoje aos
chamados excluídos está nas formas crescentemente perversas de inclusão,
na degrade ação do trabalho como meio de inserção digna na sociedade”
(MARTINS, 2002, p. 23).

A mundialização do capital, sobretudo do capital especulativo, forçou, de acordo

com a interpretação de Chesnais, a implementação de políticas que debilitaram as três formas

institucionais de regulação social assumidas pelo Estado. São elas:

[...] o trabalho assalariado enquanto forma predominante de inserção social e


de acesso à renda, um sistema monetário internacional fundado sobre taxas
fixas de câmbio, a existência de instituições nacionais suficientemente fortes
para impor uma disciplina ao capital privado. (CHESNAIS, 1996, p.144)

Ao tentar erodir as regulações sociais praticadas pelo Estado, as corporações

transnacionais objetivam a “[...] liquide ação dos direitos sociais, como o assalto ao

patrimônio e ao fundo público” (NETTO, 1996, p. 100). Ademais, neste cenário de forte
34

reação da burguesia, o reordenamento do Estado provoca o debilitamento do potencial

regulatório e de intervenção do poder público sobre o movimento do capital.

A quebra do pacto que possibilitou o arranjo político do Estado de Bem Estar faz

com que o Estado diminua suas responsabilidades com a garantia dos direitos sociais. Tal

redimensionamento da ação do Estado não altera sua natureza essencialmente classista9; o

que acontece é uma diminuição de sua ação reguladora da economia. É importante ressaltar

que esta crise tem dado mostras de que tenda afirmar-se como crise de realização, ou seja;

trata-se de uma crise expressiva da erosão dos pilares de sustentação e dos fins aos quais se

destinava o Estado capitalista.

Oliveira chama a atenção para a associação do termo crise do Estado-Providência

“[...] à produção de bens sociais públicos e menos à presença dos fundos públicos na

estruturação da reprodução do Capital” (OLIVEIRA, 1988, p. 32). O autor contrapõe-se a

essa falácia, argumentando que a crise do Welfare tem acarretado a “[...] crise fiscal do

Estado, devido à disputa entre fundos públicos destinados a reprodução do Capital e fundos

que financiam a produção de bens e serviços sociais públicos” (OLIVEIRA, 1988, p.11).

A crise fiscal do Estado traz à tona o aumento do excedente de mão de obra e da

pauperização e provoca a reação “[...] à exploração tributária, de servidores do Estado por

melhores salários e condições de trabalho, e de clientes do Estado reivindicando uma maior e

melhor cobertura de serviços sociais” (VASCONCELOS, 1988, p.19). Num momento de

ampliação de demandas e escassez de recursos, acirra-se a luta em torno da destinação dos

recursos públicos, agudizando, assim, os conflitos no âmbito das políticas sociais.

O Estado neoliberal vem utilizando todos os mecanismos disponíveis para tentar

interditar os movimentos da sociedade contrários a essa nova manifestação da racionalidade

capitalista. Segundo Netto (1993), a burguesia financia esta ofensiva, não porque acredite no

9
Ver Netto (1993)
35

livre mercado, mas porque o Estado, além de continuar intervindo para assegurar a taxa

média de lucro, intensifica sua ação contra os controles democráticos ao processo de a

acumulação.

A intervenção do Estado, nesta nova fase do capitalismo, não se reduz,

evidentemente, ao exercício de liquide ação das conquistas democráticas. Balizado pela

compreensão de que esta intervenção, notadamente após o estágio do capitalismo

monopolista, assume modalidades singulares também relativas ao espaço, Bezerra de Farias

demonstra que a ação estatal desdobra-se em dois planos, a saber: "[...] um sobre o conjunto

do território e o outro sobre suas partes" (FARIAS, 2000, p.44). Estas escalas de atuação

relacionam-se, respectivamente, à expansão territorial das relações capitalistas dominantes e à

articulação espacial de todas as relações produtivas existentes em uma determinada formação

econômica e social. O autor destaca que a articulação entre espaços não conduz à superação

do desenvolvimento desigual e combinado, mas à globalização, que aumenta a sujeição dos

trabalhadores das economias periféricas aos processos de valorização do capital dos países

centrais.

São exemplos emblemáticos da tendência ao acirramento da exclusão de imensas

parcelas da população: os ditames que os grandes banqueiros e as instituições multilaterais

imprimem à renegociação da dívida dos países periféricos, com imposição de ajustes

altamente recessivos e remessas de capital superiores aos excedentes disponíveis em suas

economias; o monopólio dos meios de comunicação, de patentes de conhecimento científico-

tecnológico e dos fluxos de informação imprescindíveis ao desenvolvimento assegurado por

instituições multilaterais e pela correlação de forças nas relações internacionais.

Os objetivos estratégicos do atual padrão de a acumulação podem, também, ser

aquilatados a partir do aprofundamento da análise das implicações da reestruturação

produtiva em curso sobre a reorganização territorial da acumulação capitalista. Muito embora


36

a reestruturação esteja sendo operada com intensidade, velocidade e especificidades

características de cada formação socio-econômica, sua repercussão no crescimento negativo

do emprego tem acarretado imensa segregação de regiões e povos.

Tendo em vista os objetivos da acumulação, todos os investimentos devem estar

subordinados às normas e níveis de competitividade das grandes metrópoles capitalistas e do

capital dominante no mercado mundial, o que tem contribuído às outras estratégias descritas,

para a exacerbação da pobreza e de formas de alienação.

Com base nesta linha de argumentação, pode-se afirmar que a apreensão do

processo de territorialização da nova dinâmica socio-econômica exige, não apenas considerar

que o processo de produção do espaço está intimamente imbricado ao processo de reprodução

ampliada do Capital, mas também, a compreensão do desenvolvimento desigual e combinado

do capitalismo, o que conduz à constituição de uma unidade contraditória, na qual o moderno

e o atrasado são faces de uma mesma racionalidade que tem por fim precípuo a busca do

lucro.

Não estamos, portanto, em face de um espaço dual, mas sim, da manifestação, no

espaço, de contradições sociais territorializadas, cuja existência resulta da apropriação

desigual do lucro, da propriedade e da renda, entre as classes sociais e entre países e regiões.

A atual reorganização dos espaços urbanos cumpre importante papel na expansão

da nova ordem. Soja (1993) analisa as mudanças em curso na ordenação espacial das cidades,

a partir dos movimentos de reprodução do capital e da reestruturação do mercado de trabalho.

Desta perspectiva de análise, Cassab comenta alguns dos efeitos da reestruturação

urbana sobre a vida cotidiana. Afirma a autora:

“[...] ao contrário da cidade moderna, que com suas praças, monumentos e


jardins estimulava a presença e aglomeração das pessoas nas ruas, a cidade
contemporânea não propicia tal presença. A cidade cresceu demais, tornou-
se mais e mais impessoal e, principalmente, transformou-se num lugar
violento, perigoso e ameaçador [...]” (CASSAB, 2001, p. 116),
no qual os moradores, sobretudo os mais ricos, criam formas de autoproteção.
37

A autora não formula uma visão ingênua, a-crítica, que leve a perceber a cidade

como uma realidade estruturada por si mesma, possuidora de suas próprias regras de

formação e de transformação. Antes, em sua elaboração, a cidade é uma expressão de

estruturas societárias bem mais amplas e mais profundas, que necessitam ser decifradas para

que se torne possível identificar as funções que lhe é atribuída em distintos contextos

históricos e sociais.

Neste sentido, a autora concebe a cidade como

[...] o lócus mais complexo, onde se desenvolvem ao máximo a produção e a


circulação de bens. Ela é, por excelência, o espaço da circulação, no qual os
acontecimentos no cotidiano dos seus habitantes se passam no ritmo das
necessidades da produção e do consumo das mercadorias e bens simbólicos
(CASSAB, 2001, p. 130).

Da mesma forma, não há no pensamento de Cassab uma visão orientada pela

compreensão de que as cidades modernas, ao contrário das atuais, foram estruturadas para a

aproximação de homens e mulheres e para a sua libertação dos grilhões próprios da época

anterior, mas sim, de que diferentemente da cidade que serviu de sustentáculo à produção

industrial, a cidade atual cumpre papel decisivo no processo de modernização, pela via da

internacionalização, dirigido não mais pelo capitalismo industrial, mas pela financeirização

da economia em um novo estágio da acumulação. Nas duas situações históricas, há a busca

pela instauração de uma nova ordem espacial que se torna meio e resultado de uma nova

ordem societária (TOPALOV, 1990,p.32).

Nas áreas onde já estão localizadas as grandes instituições e empresas (nacionais,

multinacionais e transnacionais) de serviços especializados na área financeira manifestou-se a

concentração de informações e comunicações, de mercados diversificados, como também, de

força de trabalho, de infra-estrutura e equipamentos coletivos e, ainda de instâncias de

decisão política. Estas condições, estratégicas à reprodução do capital, têm sido


38

transformadas em “lócus por excelência” da territorialização da nova dinâmica de a

acumulação.

Estima-se que existem hoje, na escala mundial, cerca de 300 centros com mais de

um milhão de habitantes, entre os quais, pelo menos, vinte com mais de 10 milhões de

habitantes. O produto das mega-aglomerações urbanas como as de Tóquio e de Chicago,

supera, largamente, o de alguns países, tais como Brasil e México10.

A metrópole, portanto, não é unicamente um aglomerado urbano com população

superior a um milhão de habitantes, conforme caracterização do IBGE, mas a

"[...] expressão materializada de novas formas econômicas (oligo-


monopolistas) e dos novos patamares financeiros e técnicos do processo de a
acumulação de capital. Expressa, dessa maneira, o espaço urbano-
metropolitano poder e expropriação e também, domínio e alienação. Neste
sentido, prossegue a autora “[...] metrópole e acumulação configuram,
teoricamente, duas faces da mesma moeda” (RIBEIRO, 1986, p.24).

Muito embora exista consenso, entre diversos autores, de que a reestruturação das

metrópoles vincula-se às mudanças no regime de a acumulação, há divergências quanto à

relação entre capital financeiro e capital produtivo na condução da dinâmica da economia e

sobre suas conseqüências para a reestruturação das metrópoles.

Soja (1993) considera que é equivocada a interpretação da reestruturação urbana

baseada na idéia de que estamos em face da existência de cidades pós-industriais, pois a

industrialização continua a ser a força propulsora do desenvolvimento no mundo

contemporâneo.

A globalização da economia pode ser, de acordo com o autor, creditada ao

capitalismo financeiro – que resulta da mútua e íntima relação entre o capital bancário e

industrial. Porém, para este autor, o comando da acumulação permanece baseado no

capitalismo industrial.

10
Consultar Davidovich (2002).
39

Partilhamos da mesma compreensão, pois entendemos que é por intermédio da

extração da mais-valia, oriunda da exploração da força de trabalho no âmbito da produção,

que o valor é criado.

Convém ressaltar, todavia, que o declínio da proporção relativa de empregos

industriais, notadamente nas indústrias pesadas e empregadoras de trabalhadores com nível

mais avançado de organização sindical, em virtude das alterações no processo produtivo, tem

gerado mudanças na conformação do mercado de trabalho urbano e repercutido na própria

estruturação das relações entre as classes sociais e o espaço metropolitano. Ao lado do

desemprego e do aumento da informalidade e dos processos de sub-contratação que levam à

redução salarial e à queda brutal da qualidade de vida, surge um segmento de classe, uma

elite transnacional que, por possuir acesso ilimitado ao consumo, impõe um novo estilo de

vida, que inclui, por exemplo, a pressão pela expansão da oferta de bens relacionados à

indústria do turismo, ‘shopping centers’ e ampliação do mercado de artes. Constata-se o

grande interesse do capital na difusão/imposição deste estilo de vida, o que propicia uma

articulação entre capital imobiliário, capital financeiro e as redes de prestação de serviços e

de comércio.

Esta dinâmica acarreta, conforme já referido, o aumento da concentração de

renda, da segregação e a auto-segregação das elites nos espaços metropolitanos, assim como

o acirramento das lutas por condições de vida e de trabalho.

Provavelmente, a face mais visível da radicalização da questão social no

urbano é a existência, em contraponto aos aglomerados de exclusão (favelas, cortiços e

loteamentos clandestinos), de enclaves fortificados e auto-segregados formados pelos

condomínios de classe média alta. Nos dois ‘habitats’, nos aglomerados de exclusão e nos

enclaves, ocorre, segundo Cassab (2001), a partilha de valores, idéias e modos de vida, que

interagem, ainda que parcialmente, na configuração da totalidade urbana.


40

Também se aglomera, cada vez em maior número, aqueles que não moram,

vivem sem teto, embaixo dos viadutos e nos bancos das praças, imersos na voragem da

fome, da sujeira e das doenças.

A mercantilização de todas as esferas da vida social e o conseqüente

aguçamento dos antagonismos e contradições sociais têm sido difundidos ideologicamente

como caos, desordem e crise, diante de uma pretensa ordem que precisaria ser (re) criada.

Por meio desta manipulação ideológica, busca-se obliterar os fundamentos do antagonismo

social, ao mesmo tempo em que se propaga a necessidade do uso, cada vez mais intenso,

de mecanismos de engenharia de segurança e controle, bem como de adoção do

planejamento estratégico, baseado na racionalidade da eficiência e da rentabilidade. Estas

novas diretrizes favorecem a redução do significado da cidade à sua funcionalidade para o

capital e para os que usufruem e se incorporam aos circuitos que garantem a acumulação.

Por fim, se para os trabalhadores que tentavam alojar-se nas primeiras cidades

industriais estava gestando, não apenas um novo mundo, prenhe das promessas do

progresso e da integração, mas também, um novo modo de viver e morar, no qual o

agrupamento isolado começava a ser substituído pela aglomeração, expressiva das

condições gerais de produção; para os trabalhadores das grandes cidades do presente, nas

quais e por meio das quais se busca a articulação global da economia de modo desigual e

combinado, impõem-se a incerteza e a insegurança quanto à sobrevivência e à reprodução

diária de sua força de trabalho.

Estes processos, geradores da desconstrução/reconstrução da grande cidade do

capitalismo, responsáveis pela polarização social contemporânea, têm sido acompanhados de

forte tendência à perda de sentido e de significados societais e pela conseqüente sensação de

incapacidade, sentida por homens e mulheres, de tomarem em suas mãos as rédeas da

história.
41

A realização desta dinâmica não ocorre, contudo, sem resistências e objeções.

Movimentos sociais, em diversas partes do mundo, têm procurado ressignificar o fazer

político, por meio dações que mobilizam milhares e, até mesmo, milhões de pessoas,

articuladas em torno de novas demandas e questões supra-locais. Demonstram, desta forma,

compreensão dos determinantes e contradições sociais resultantes da natureza do

desenvolvimento capitalista, e da conseqüente necessidade, trazida por esta dinâmica, de

incorporação crescente de novas esferas, espaços, territórios e instâncias da relação social à

lógica econômica e espacial imposta pelos países centrais e pelas corporações transnacionais.

1.1.1. Moradia e trabalho nas metrópoles brasileiras contemporâneas

A repercussão das transformações sociais na periferia do sistema capitalista

agrava, substancialmente, as condições de vida e trabalho da população. Neste item

destacaremos as principais determinações conjunturais da crise social no urbano brasileiro,

nos dias atuais, e seus efeitos nas condições de moradia e trabalho dos segmentos mais

pauperizados da população.

O contexto econômico, político e social, do qual a sociedade brasileira é parte

integrante, possui traços universais, mas revela, em cada formação social, especificidades

que, uma vez compreendidas, tornam possível recuperar o que é característico do lugar: a

sua particularidade. Os dados a seguir evidenciam traços da sociedade brasileira no

momento atual e auxiliam na caracterização de suas características únicas.

O aumento do número de regiões metropolitanas, de nove na década de 70 para

vinte e seis no ano de 2000, e da população metropolitana no total de população do país,

que passou de 30% do total em 1980, para 38%, em 2000, correspondendo a 64 milhões e

meio de pessoas e a 47% do contingente urbano nacional, articulado ao fato de 78,7% do

PIB nacional ser produzido em 111 centros urbanos e à elevada proporção do PIB estadual
42

nas regiões metropolitanas (88% na de São Paulo, 75% no Recife)11, constituem dados

expressivos do caráter concentracionista do desenvolvimento capitalista no Brasil e do seu

aprofundamento nas últimas décadas.

Conforme diversos autores, o desenvolvimento capitalista, ao provocar uma

imensa e abrupta expansão do tecido urbano no país, gerou aumento da concentração de

riqueza, de poder e da propriedade e, conseqüentemente, aprofundou a miséria.

Agregam-se a esses fatos, a existência em 1989 de cerca de 1,8 milhão de

desempregados e, mais de uma década depois, a constatação, de acordo com os dados do

Censo 2000, de que esse número havia saltado para 11,4 milhões de pessoas, representando

15% da População Economicamente Ativa. Este crescimento do desemprego determinou,

decisivamente, o aumento do número de pobres no Brasil, que cresceu, significativamente,

no período de 1995 a 1999, - pós-plano real - notadamente nas regiões metropolitanas.

A situação habitacional expressa, de forma nítida, a pobreza no país. Estima-se

que, nas áreas metropolitanas, o déficit habitacional alcance 5.414.944 unidades. É

importante observar que, em dez anos (entre 1991 e 2000) houve acréscimo de 21,7% e um

crescimento de 2,2% ao ano do déficit habitacional e que 83,2% do déficit urbano concentra-

se nas famílias de baixa renda. No Nordeste, falta moradia para 2.631.790 famílias, e no

Sudeste, existe um déficit estimado de 2.412.460 unidades habitacionais12.

Esta crise ou carência de moradias tem se manifestado, simultaneamente, à oferta

de imóveis para populações de maior poder aquisitivo e à instalação de bens de consumo

coletivo em áreas onda renda efetiva e a capacidade de pressão dos segmentos sociais são

mais elevadas.

O aprofundamento das contradições sociais na sociedade brasileira tem, também,

acarretado o aumento do trabalho infantil e de idosos. Existem no país, atualmente, cerca de

11
Consultar Davidovich (2002).
12
Fonte: Dados extraídos do artigo” Dez visitas aos sem -teto”, Revista Carta Capital, ano X, n.261.
43

2,7 milhões de jovens com menos de 16 anos que desempenham atividades remuneradas,

apesar de sua ilegalidade. Da mesma forma, existem seis milhões de aposentados e

pensionistas que ainda permanecem no mercado de trabalho13.

A afirmação de Ribeiro (1996) de que a crise social no Brasil manifesta-se

atualizando tendências históricas à segregação e à discriminação, fornece pistas para elucidar

os principais determinantes destas marcas da sociedade brasileira. A atualização e o

aprofundamento dessas tendências no contexto atual têm, a nosso ver, como principal

determinante a forma de inserção do país na chamada economia globalizada.

Ao longo das duas últimas décadas, a economia brasileira tem sofrido uma

profunda reestruturação que tem por fim efetivar uma mais intensa inserção do país no

mercado mundial. Este processo se inscreve num contexto em que a crescente

internacionalização do Capital reforça, ainda mais, as tendências à polarização entre

economias centrais e periféricas, visto que as primeiras, como é o caso da norte-americana na

tentativa de superação da crise de a acumulação, tratam de recuperar a hegemonia no

mercado mundial, relativizando, assim, as suas perdas no mercado interno e descarregando

sobre os concorrentes, e especialmente, sobre os países periféricos, os seus custos sociais e

políticos.

A posição histórica do país na divisão internacional do trabalho, conjugada à sua

condição relativamente avançada no que concerne ao desenvolvimento do parque industrial,

em comparação com outros países da periferia, é decisiva para que ocorra a afirmação da

estratégia de extração da mais valia do capitalismo internacional. Impõe-se, portanto,

consoante tal projeto, que aqui se consolide, de forma urgente e acelerada, as requeridas

transformações nas relações entre Estado, sociedade e economia.

13
Fonte: Censo Demográfico de 2000, IBGE.
44

Subordinando-se às determinações dos organismos credores internacionais, os

últimos governos brasileiros têm procurado integrar a economia ao chamado processo de

globalização, principalmente por meio da abertura comercial e financeira. Sob a inspiração da

análise de Mandel, podemos afirmar que esta forma de integração tem sido adotada por "[...]

razões de preferência sócio-política, cuja natureza de classe deve ser posta a nu” (MANDEL,

1990, p.82) e não pela inexistência de outras possíveis estratégias.

Neste quadro de acirramento da competição intercapitalista, as sociedades

excludentes e injustas, como a brasileira, convivem com uma progressiva deterioração das

condições de trabalho e com a crescente fragilização da já precária institucionalização dos

direitos sociais e trabalhistas.

O acirramento destas contradições sociais também se manifesta, conforme

referido, na paisagem urbana. O aparente caos urbano e a sua intensificação, sobretudo nos

contextos metropolitanos, revelam algumas das conseqüências do reordenamento

contemporâneo do capital e do recuo do Estado na implementação de políticas públicas.

Essas mudanças têm gerado conseqüências profundamente agudas nas condições de vida da

população trabalhadora, pois, na grande maioria dos países latino-americanos, as reformas

neoliberais têm ocorrido sem que o Estado desenvolvimentista tenha, antes, garantido a

universalização dos direitos sociais, inclusive os direitos associados à vida urbana.

Nas cidades brasileiras, esse processo se articula à migração da população

expulsa pelo latifúndio improdutivo, pela modificação da agricultura, pelo arrocho salarial

mais pesado da América Latina e à existência de multidões que não têm onde trabalhar, não

têm o que comer e, finalmente, não têm onde morar.

É necessário ressaltar que o atual recuo do Estado na implementação de políticas

sociais, na sociedade brasileira, tem se dado de uma forma bastante peculiar, decorrente da
45

forma historicamente assumida por esta intervenção, que lhe confere bases muito frágeis,

principalmente no tocante à concreta garantia de direitos sociais.

Diversos autores14 ressaltam que, diferentemente do observado nos países

centrais, onda intervenção social do Estado emergiu, após a década de 30, num contexto de

pressão e organização da classe trabalhadora, o que contribuiu para que houvesse uma

certa distribuição de renda, na sociedade brasileira, esta intervenção surgiu em meio a uma

correlação de forças sociais e econômicas bastante distinta, que favoreceu enorme

concentração de renda, fazendo com que a atuação do Estado tenda, historicamente, a

contribuir para o aprofundamento das desigualdades sociais.

A crise do modelo de desenvolvimento baseado na substituição de importações

ocorreu a partir do início da década de 80, com a denominada crise da dívida. Nas décadas

anteriores, foi instaurado um parque industrial dotado de estrutura produtiva complexa e

diversificada, o que possibilitou a ampliação do operariado industrial e do mercado de


15
trabalho urbano. A constituição do chamado “novo sindicalismo” , no final da década de

70, foi fruto da organização desta nova classe operária.

Além da efervescência política promovida pelas lutas sociais, a década de 80

também foi marcada pelo fim do denominado milagre econômico e a conseqüente

desaceleração econômica do país. As mudanças introduzidas na economia e na política

produziram achatamento salarial, aumento da inflação, instabilidade no emprego e

encarecimento da terra urbana. Este conjunto de processos teve diversas conseqüências

sociais, inclusive a diminuição da produção de loteamentos populares periféricos e,

conseqüentemente, a maior dificuldade de acesso à casa própria pela população de baixa

renda. Farias (1991) ressalta que este encarecimento da habitação já vinha sendo produzido

desde a implantação da política habitacional, levada a efeito pelo BNH. Segundo o autor, os

14
Consultar em Fernandes (1993) e Oliveira (1982).
46

programas habitacionais brasileiros, na maioria das vezes, contribuíram para aumentar as

distorções sociais. Por serem dirigidos, especialmente, para segmentos sociais de alta renda,

estes programas favoreceram o encarecimento do solo urbano, estimularam a especulação

imobiliária e provocaram o deslocamento dos segmentos populacionais mais pauperizados

para condições sócio-habitacionais precárias.

É importante enfatizar que, nesse período, a capacidade de endividamento dos

trabalhadores sofreu fortíssima redução. Lago (1996) esclarece que essa incapacidade não se

deu exclusivamente em função da desvalorização dos salários frente ao acelerado processo

inflacionário. Somaram-se a esta dinâmica, o aumento da instabilidade do trabalho e a

incerteza em relação ao rendimento mensal. A imensa dificuldade de endividar-se trouxe

graves conseqüências quanto ao acesso à casa própria, visto que os compradores das casas

populares tinham como principal estratégia de compra o endividamento a longo prazo, uma

vez que não possuíam condições de poupança. Com o colapso do BNH e, conseqüentemente,

o fim da construção de conjuntos habitacionais por parte do poder público16, teria aumentado

a dificuldade de acesso às moradias populares.

De fato, a resposta do Estado brasileiro a essa questão tem sido, historicamente,

conduzida pela lógica da repressão, do clientelismo e da privatização17. Com a difusão dos

princípios do neoliberalismo, a partir do final dos anos 80, foram aprofundadas e atualizadas

as seguintes faces da sociedade brasileira: a interpenetração entre as esferas pública e privada,

em favor desta última, o autoritarismo, a injustiça e a exclusão social. Daí seu caráter,

marcadamente, antidemocrático de experiência urbana. A ausência de uma política urbana

15
Ver sobre o novo sindicalismo Mattos (1988).
16
A partir de 1973 o BNH inicia a construção de conjuntos habitacionais que visavam atender a população com
renda na faixa de 3 a 5 salários mínimos. Em São Paulo, através da COHAB, o BNH financia 84 mil habitações
de 1975 a 1978. Contudo, esses conjuntos acabaram sendo ocupados por famílias de renda superior a
inicialmente considerada como alvo.
17
Ver SILVA (1999).
47

amplamente concebida e democraticamente implementada exemplifica esse cariz conservador

do Estado brasileiro.

Diante do aprofundamento da exclusão, especialmente devido ao aumento de

desemprego nos anos 90, e frente aos rígidos obstáculos para que o país ingresse num novo

ciclo expansionista, em conseqüência, tanto do novo ordenamento internacional, quanto da

existência de problemas internos nas duas últimas décadas, tende-se a concordar com a

hipótese da impossibilidade de, neste contexto, haver “retomada das atividades imobiliárias de

maneira similar àquela ocorrida quando da fase expansiva do Sistema Financeiro de

Habitação. Visto por esta perspectiva, pode-se dizer que [...] o sonho de casa própria termina

inclusive para a classe média” (RIBEIRO; AZEVEDO, 1996, p.23).

Com o fim do Banco Nacional de Habitação e sua substituição pela Caixa

Econômica Federal, as dificuldades de acesso à casa própria, mesmo para os segmentos

médios, aumentaram. Isso porque, ao contrário do BNH, que possuía como orientação

política, a construção de casas populares com o oferecimento de algumas facilidades aos

compradores de baixa renda, a Caixa Econômica desempenha suas funções de financiadora de

habitação a partir dos parâmetros de mercado e, portanto, praticamente, sem nenhum subsídio

aos trabalhadores mais pobres. Agrega-se a estes fatos, a redução dos programas alternativos

de construção de casas – tais como mutirões e programas dirigidos, unicamente, para as

populações de baixa renda – que exigem maior investimento público. Este conjunto de

processos contribui para a intensificação da carência habitacional, vivida por grande parte da

classe trabalhadora brasileira.

Na realidade, sob a justificativa da crise fiscal do Estado, o que tem ocorrido é a

desativação dos gastos sociais, um crescente desprestígio das instituições públicas e uma

importante modificação no trato do Estado com a questão social. A resposta à questão social,

passou a conformar-se, de modo inteiramente obediente, aos imperativos da dinâmica de


48

inserção da economia no capitalismo contemporâneo, muito embora, caiba a ressalva de que

este ajustamento ocorra a partir de vetores culturais próprios à sociedade brasileira. Todavia,

é mister, também, enfatizar que a crise fiscal dos Estados latino-americanos foi fruto,

basicamente, do aumento dos juros da dívida externa18, que tem, como conseqüência, uma

extraordinária transferência de recursos públicos para o capital financeiro, às custas da

precarização das condições de vida da imensa maioria da população trabalhadora.

A partir de 1990, deu-se, conforme mencionado, uma nova modalidade de

inserção internacional do capitalismo brasileiro, por meio da abertura comercial e da adoção

de ajustes estruturais, cujo objetivo mais claramente exposto era tornar o Brasil um país

competitivo no cenário internacional e atraente ao investimento externo.

Interesses estratégicos dos governos nacionais, envolvendo alianças entre

tecnocratas nacionais e estrangeiros, "[...] cujo prestígio e respaldo internacionais tornam-se

novas fontes de poder” (DINIZ, 2000, p.5), contribuíram para esta forma de adesão aos

pressupostos dominantes, 19 o que permite afirmar que a integração do país aos comandos da

mundialização da economia tem se dado de modo subordinado, mas não de forma

inteiramente passiva.

A partir da abertura iniciada no governo Collor, cujo intuito era criar facilidades

para o deslocamento de mercadorias, capitais e informações, algumas indústrias brasileiras

iniciaram a modernização do aparelho produtivo e da gestão. A incorporação de

equipamentos de base microeletrônica foi acompanhada do recurso a práticas que visavam a

redução dos custos. Com este fim, têm sido utilizados os mecanismos da terceirização, da

flexibilidade na organização e a melhoria da quantidade e qualidade da informação, visando a

18
Entre 2001 e 2002 a dívida externa chegou a casa dos 300 bilhões de dólares. Enquanto os gastos com saúde,
educação, agricultura, desenvolvimento agrário, ciência e tecnologia, minas e energia, meio ambiente e cultura
totalizaram, aproximadamente, 60 bilhões de reais, os gastos com juros e encargos da dívida e amortização do
total da dívida pública alcançaram a soma de 142 bilhões de reais.
19
Convém ressaltar que esta concepção busca refutar a lógica da inexorabilidade do paradigma dominante que
orienta a integração das economias nacionais aos mercados globais, muito embora sejam reconhecidas as
49

qualidade do produto. Esta busca de competitividade e eficiência deu-se de forma defensiva e

diante da omissão do Estado com a formulação e implementação de políticas industriais.

A reestruturação tem sido realizada, portanto, por meio da alteração do paradigma

produtivo, de inovações tecnológicas e através da desregulamentação das relações sociais e


20
da flexibilização das leis do trabalho. Em decorrência da utilização dessas estratégias e

procedimentos, elevaram-se os padrões de exploração, evidenciou-se o aumento do

desemprego, do trabalho precário e informalizado, da terceirização e maior

estratificação/segmentação entre os que estão empregados.

É importante observar que, no país, a perda de postos de trabalho industrial

relaciona-se às mudanças provocadas na estrutura produtiva a partir do incremento da

abertura comercial, num contexto de forte sobrevalorização das taxas de câmbio e de juros

muito altos. Esta

[...] desindustrialização se caracteriza, principalmente, pela redução do valor


agregado no país em todas as cadeias industriais complexas, onde parte
crescente da produção dos componentes, peças e matérias primas são
substituídas por importados e perda da produção doméstica de bens finais
pela ocupação do mercado por produtos importados (DINIZ, 2000).

No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, as políticas de estabilização

e de ajuste provocaram maiores impactos na indústria. Setores inteiros foram desativados ou

desnacionalizados, tais como têxtil, calçados, bens de capital, eletrodomésticos, produtos de

higiene e limpeza e autopeças, entre outros21, o que provocou fortes impactos negativos sobre

o emprego.

constrições impostas aos Estados nacionais na nova ordem mundial.


20
No caso do Brasil, a tendência predominante da flexibilização tem sido no sentido de promover a mera
precarização do trabalho. O argumento de que a relativização das normas estatais protetoras corresponderia,
necessariamente, à assunção do instituto da negociação coletiva não encontra suporte na realidade do país, pois
ainda não foram construídos os pressupostos para que a sua prática ocorra num clima de efetiva liberdade
sindical. Por outro lado, as circunstâncias socioeconômicas indicam que o período em que tais medidas
flexibilizantes foram implementadas, foi marcado pelo crescimento dos índices de desemprego, tendo como
conseqüência direta o enfraquecimento do poder de negociação dos sindicatos dos trabalhadores.
21
Consultar Sabóia (2001).
50

Em decorrência da inserção da economia na chamada globalização financeira,

parte do capital, antes empregada na produção, foi aplicada no mercado financeiro, o que

dirigiu o interesse das elites dominantes para a redução da inflação, e não para o aumento do

emprego e da produção.

O aumento da competitividade provocado pela abertura comercial, acrescido dos

efeitos da guerra fiscal entre os estados da federação e das disparidades salariais entre

trabalhadores das diversas regiões, estimulou decisões do empresariado relativas à localização

espacial das indústrias. Sabóia demonstra que, na década de 90, o maior deslocamento das

plantas industriais ocorreu da região Sudeste para a região Sul. Muito embora a primeira

continue tendo a maior concentração de mão de obra industrial do país, houve queda da

participação do emprego industrial na região. Salários inferiores, boa infra-estrutura e

participação acirrada na guerra fiscal fizeram da região Sul o destino de setores desenvolvidos

e modernos da indústria do Sudeste, bem como, de setores com menor nível de

desenvolvimento técnico. A atração exercida pelos benefícios fiscais e os baixos salários

provocou, ainda, o deslocamento da indústria para a região Nordeste e, sobretudo, para o

estado do Ceará. Esta reestruturação espacial tem provocado mudanças que incidem no

sentido e na intensidade dos fluxos migratórios.

Além da transferência de indústrias, Diniz (2000) registra um intenso processo de

aquisição, fusão ou associação com grupos empresariais estrangeiros. Segundo a autora, esta

intensa reorganização do setor industrial foi acompanhada do aumento da presença dos grupos

transnacionais na economia brasileira e do aprofundamento da centralização e da

concentração do capital.

É importante ressaltar que, nas empresas brasileiras, as modificações

organizacionais têm prevalecido sobre as inovações tecnológicas. Teixeira conclui, com base

numa pesquisa sobre reestruturação produtiva realizada numa indústria do Ceará, que a
51

adesão dos trabalhadores ao programa de reestruturação produtiva deve-se, sobretudo, às altas

taxas de desemprego e ao elevado nível de pobreza. Afirma o autor: “nestas condições

quaisquer estímulos salariais (vale transporte, sistema de condução própria, vale refeição,

cesta básica, etc.) funcionam como um grande amortecedor de choques entre a gerência e os

trabalhadores” (TEXEIRA, 1997, s.nt.).

Observamos que o atual aumento da pobreza histórica no país tem estado

relacionado, não apenas ao desemprego, mas, também, ao precário acesso a serviços públicos

necessários ao processo de reprodução da força de trabalho. Embora esses serviços, em si

mesmos, não sejam capazes de incidir sobre determinantes estruturais da pobreza, sua

ausência ou precariedade deteriora ainda mais as condições de vida dos segmentos mais

pauperizados da classe trabalhadora22.

A reorganização espacial da atividade econômica e seu conseqüente impacto

sobre regiões de tradição industrial, associados ao enorme aumento da população excedente,

à deterioração do mercado de trabalho e à diminuição dos padrões de proteção social têm

empurrado as populações mais pobres para locais de moradia com péssima infra-estrutura e

qualidade habitacional.

Os dados levantados na pesquisa de Bernadelli et al. (2003) sobre segregação

sócio-espacial em cidades na América Latina demonstram o agravamento da segregação

espacial expresso, inclusive, nas formas de habitat urbano, com ênfase na moradia. A

autoconstrução, todavia, é, de acordo com os dados observados, ainda presente, havendo

bairros inteiros em que o próprio morador e sua família constroem suas casas sobre terrenos

adquiridos (muitas vezes em prestações) em bairros geralmente distantes do centro, pouco

arborizados, com falta de infra-estrutura. O aspecto inacabado, a insalubridade, a

precariedade, o tamanho (do lote e da casa), não raro pequeno para o número de moradores, a

22
Ver a respeito Raichelis (1998).
52

localização da casa em áreas inadequadas à construção, são fatos recorrentes na rede urbana

latino-americana. Ainda assim, devido à qualidade dos próprios materiais utilizados na

construção, as casas são menos improvisadas do que em áreas favelizadas e, em geral, os

materiais são de qualidade superior do que os comumente utilizados em ocupações ilegais. A

localização dos grandes conjuntos na periferia, como resultado dos preços mais baixos da

terra, apesar de representar um custo mais baixo por unidade, obriga a outras inversões, pela

ausência de bens de consumo coletivo necessários à reprodução da força de trabalho e pelas

dificuldades relativas aos transportes coletivos e, portanto, por falta de acesso ao mercado de

trabalho.

Para a imensa maioria da população, resta morar em áreas desvalorizadas ou

desinteressantes para o capital imobiliário, entre as quais se incluem as áreas de proteção

ambiental – onde muitas vezes não há fiscalização – já que os investimentos públicos são

concentrados em determinados pontos da cidade que beneficiam o capital imobiliário e os

segmentos sociais com renda média e alta.

Ao lado dos aglomerados da exclusão, correntes na urbanização brasileira,

ampliam-se as construções de condomínios fechados de alto luxo, que vendem segurança

contra o restante dos habitantes da cidade, sobretudo os mais pobres, aos quais só é facultada

a penetração e a circulação na condição de trabalhadores subalternos.

Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que o aumento do número de favelas e,

sobretudo, de cortiços, está diretamente relacionado a mudanças no padrão periférico que


23
caracterizou a urbanização brasileira, até a década de 80, quando os mais pobres eram,

gradativamente, empurrados para a periferia das grandes cidades e, por meio da

autoconstrução, tornavam-se proprietários. Hoje, ocorre uma tendência à concentração das

23
Resultados do Censo Demográfico referentes à população dos municípios que compõem a Região
Metropolitana indicam transformação no padrão de crescimento. Ora, se na década de 60/70 houve crescimento,
na década de 80, verifica-se uma queda geral das taxas de crescimento em todas as regiões metropolitanas, sendo
53

populações pauperizadas, também no centro da cidade, nas ruas e nos interstícios da malha

urbana consolidada.

A moradia no núcleo metropolitano favorece, além do usufruto de equipamentos e

serviços, o aumento da oportunidade de geração ou alcance de renda, devido à proximidade

com segmentos sociais de maior poder aquisitivo, que podem consumir serviços intermitentes

e produtos.

A agudização da pobreza da população urbana pode, igualmente, ser constatada a

partir da análise do conteúdo das reivindicações populares. Pesquisa realizada em abril/junho

de1981, numa amostra representativa da região metropolitana de São Paulo, permitiu

constatar que 41,44% dos inquilinos na faixa de renda mais baixa gastavam, no pagamento de

aluguel, no mínimo 50% de sua renda, e que 8,6% destes inquilinos despendiam, com aluguel,

uma quantia superior à sua própria renda. Nestas circunstâncias, cresceu o número de

inquilinos inadimplentes e intensificaram-se as ações de despejo. No contexto da recessão

econômica, nasceram e fortaleceram-se movimentos pela conquista da moradia. As favelas já

não atendiam à demanda de moradia dos pobres e a procura por terra passou a assumir

enorme proporção, visto que fugir do aluguel tornava-se uma necessidade imperiosa para um

grande número de trabalhadores 24.

É necessário ressaltar, por fim, que a territorialização das novas dinâmicas

societárias tem conseqüências sociais, políticas, culturais e ideológicas que, na maioria das

vezes, não são percebidas. Esta ausência de apreensão da cidade em sua totalidade pode ser

creditada ao fato de que as diferentes frações e classes sociais, por apropriarem-se de forma

desigual do espaço urbano, desenvolvem distintas representações de cidade. A fragmentação

do espaço, resultante da divisão técnica e social do trabalho, sustenta este desconhecimento.

esta mais acentuada nas periferias. Enquanto nas metrópoles a queda é, em média, de 1,78 pontos percentuais ao
ano, nas periferias ela chega a 2,54 pontos.
24
Dados extraídos de Bonduki (1992).
54

Na realidade, esse desconhecimento relaciona-se, segundo Maricato (1996), ao

interesse das elites econômicas e do poder público em escamotear a cidade real. Para tanto,

difundem a existência de uma cidade virtual que é oferecida como mercadoria. Ao lado do

desconhecimento da totalidade urbana e de sua utilização ideológica tem-se, igualmente,

conforme proposto por Cassab (2001), a sensação de desenraizamento vivida por aqueles que

não têm direito à cidade. No exame sobre condições de vida de moradores dos aglomerados

da exclusão da cidade do Rio de Janeiro, a autora encontra, em suas histórias de vida,

experiências de desenraizamento resultantes da intervenção do Estado em seus locais de

moradia. Afirma a autora:

[...] Há desde a experiência de uma migração motivada pela busca de


emprego e salário, passando pelas traumáticas remoções de favelas,
promovidas mais intensamente nos anos 60 e 70, até os deslocamentos para
fronteiras mais distantes das periferias das metrópoles, provocadas pela
valorização das áreas urbanas que antes ocupavam. A instabilidade, portanto,
que o desenraizamento provoca vai surgir como um traço formador desta
cultura. (CASSAB, 2001, p.127)

Moradores da cidade ilegal – muitas vezes tomados como habitantes de lugar

nenhum – estão sujeitos a ter que, não só morar em favelas, mas morar noutros espaços

extremamente precários, tais como: ocupações coletivas de prédios públicos; ocupações

individuais ou coletivas de espaços vazios sob pontes e viadutos; loteamentos clandestinos

(implantados por empresas privadas, imobiliárias, proprietários e cooperativas habitacionais

em áreas impróprias ou de preservação ambiental); conjuntos habitacionais e loteamentos

irregulares criados pelo poder público; conjuntos habitacionais irregulares implantados por

associações comunitárias e empresas imobiliárias e, ainda, cortiços instalados em imóveis

velhos e deteriorados, adaptados para serem alugados a famílias de baixa renda. Sem dúvida,

esses segmentos sociais expõem, por meio do seu habitat, a face concentradora e desigual da

urbanização brasileira.
55

1.2. A QUESTÃO DA HABITAÇÃO COMO EXPRESSÃO DA PRODUÇÃO/

REPRODUÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS

Ferraz, em sua análise sobre as relações entre moradia e cotidiano, afirma que

[...] o uso da casa como abrigo das atividades cotidianas de sobrevivência e


reprodução da força de trabalho, consubstancia uma essência da noção de
habitação, [...] construída culturalmente. Essa noção é que produz em cada
indivíduo a idéia, o devaneio de uma casa [...] o seu território, seu canto no
mundo (FERRAZ, 2000, p.2).

Inspirada em reflexão de Bachelard, a autora atribui à noção de território um

sentido amplo, não restrito ao objeto, mas incorporado ao entorno, ao caminho, ao acesso, à

paisagem, à convivência coletiva e à vizinhança.

Em seu trabalho, esclarece que, pelo fato da habitação não possuir apenas valor de

uso, mas também valor de troca, o acesso a casa será determinado pelo nível de renda da

população. Na qualidade de mercadoria e, portanto, de objeto de consumo, a habitação

transforma-se em objeto de representação simbólica, na medida em que passa a representar

aquele que mora e expressar sua inserção econômica e social.

Da análise de Ferraz, podemos depreender que a questão da habitação na

sociedade capitalista contemporânea não decorre, conforme difundido pela concepção

dominante, do desequilíbrio entre a carente oferta de imóveis e uma vasta população

consumidora, mas sim, resulta de um processo complexo e contraditório da estruturação

urbana, sobretudo na fase monopólica do capitalismo. Apesar da habitação ser exigida, ao

lado dos outros equipamentos imprescindíveis à reprodução da força de trabalho, pelo

processo de produção e acumulação do capital, essa exigência não é atendida pelos

capitalistas privados, por não ser considerada como suficientemente rentável, o que contribui,

ao lado de outros determinantes, para a impossibilidade de acesso à moradia de amplas


56

camadas de trabalhadores. É necessário ressaltar, contudo, que se a questão habitacional se

acentua a partir do ingresso do capital no estágio do monopólio, esta questão já se manifesta

desde o ingresso do capitalismo na era da industrialização e da urbanização.

É no domínio específico da questão habitacional que, segundo Marx, torna-se

mais perceptível a conexão entre acumulação e miséria. Explica o autor:

[...] qualquer observador desprevenido percebe que, quanto maior a


centralização dos meios de produção, tanto maior o amontoamento
correspondente de trabalhadores no mesmo espaço e, portanto, quanto mais
rápida a acumulação capitalista, tanto mais miseráveis as habitações dos
trabalhadores (MARX, 1987, p.764).

Ou seja: a velocidade da acumulação do capital nas cidades industriais ou

comerciais e o conseqüente afluxo de enormes levas de trabalhadores disponíveis produzem,

como razão inversa, a miséria. As moradias da classe trabalhadora, improvisadas e insalubres,

fazem transparecer os efeitos da lei geral da acumulação capitalista25.

Singer, a esse respeito, afirma que:

[...] a cidade capitalista não tem lugar para os pobres. A propriedade privada
do solo urbano faz com que a posse de uma renda monetária seja requisito
indispensável à ocupação do espaço urbano. Mas, o funcionamento normal
da economia capitalista não assegura um mínimo de renda a todos. Antes,
pelo contrário, este funcionamento visa manter uma parte da força de
trabalho em reserva, o que significa que uma parte correspondente da
população não tem meios para pagar pelo direito de ocupar um pedaço de
solo urbano. (SINGER, 1982, p.12)

A afirmação de Singer, além de colocar em cheque o discurso oficial acerca da

relação entre oferta e demanda na produção da escassez de moradia, chama a atenção para a

25
A Lei Geral da Acumulação Capitalista é sintetizada por Marx da seguinte maneira: "Quanto maiores a riqueza
social, o capital em funcionamento, o volume e energia de seu crescimento, portanto também a grandeza
absoluta do proletariado e a força produtiva de seu trabalho, tanto maior o exército industrial de reserva. A força
de trabalho disponível é desenvolvida pelas mesmas causas que as forças expansivas do capital. A grandeza
proporcional do exército de reserva cresce, portanto, com as potências da riqueza. Mais quanto maior esse
exército de reserva em relação ao exército ativo de trabalhadores, tanto mais maciça a superpopulação
consolidada, cuja miséria está em razão inversa do suplício de seu trabalho. Quanto maior, finalmente, a camada
lazarenta da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto maior o pauperismo oficial. Essa é a lei
absoluta geral da acumulação capitalista”. (MARX, 1987, p.747).
57

existência de processos, intimamente imbricados, que resultam na impossibilidade do acesso

de grandes segmentos da classe trabalhadora à habitação urbana: a apropriação monopólica da

terra urbana e o pauperismo. Tal análise demonstra que as disputas pelo direito à habitação

envolvem relações bem mais complexas, cuja aparência precisa ser desvendada.

Por ser a renda determinada pela participação dos indivíduos no processo de

produção, o exame da problemática tratada exige a apreensão de como se dá o processo de

trabalho no modo de produção capitalista.

O processo de trabalho, na sociedade capitalista, caracteriza-se por duas

peculiaridades:

- O trabalhador trabalha sob o controle da classe que detém os meios de produção;

- O resultado do trabalho é do capitalista: "Ao comprador pertence o uso da

mercadoria, e o possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor de uso que

vendeu, ao ceder seu trabalho” (MARX, 1987, p.208).

A força de trabalho, como qualquer mercadoria, possui valor de uso e valor de

troca. O valor da força de trabalho é determinado pelo tempo de trabalho socialmente

necessário para a produção dos meios de subsistência necessários à sua reprodução. Ao

desenvolver sua capacidade no processo de trabalho, o trabalhador acrescenta,

simultaneamente, valor à matéria-prima e conserva o valor dos meios de produção. Assim, ao

mesmo tempo em que o trabalhador cria valor, ele o conserva ao transferi-lo ao novo produto.

A mais valia - excedente criado pelos trabalhadores acima do valor de sua força de trabalho -

é apropriada, gratuitamente, pelo capitalista. Deste modo, para o dono do capital, só é

produtivo o trabalho que cria mais valia. No processo de produção, portanto, o operário

reproduz, no produto, o capital investido e acrescenta-lhe valor novo. Este valor novo,

acrescentado ao produto, não advém do conteúdo da atividade, mas do fato de este trabalho

fazer parte do conjunto do trabalho geral realizado em sociedade.


58

Os representantes das várias escolas da economia política possuíam concepções

diferentes acerca da origem da mais valia. Marx ressalta o avanço destas teorias na busca de

solução para o problema da troca entre trabalho e capital e mostra suas debilidades

conceituais com respeito à origem e à natureza da mais valia e, logo, do lucro.

Entre os economistas políticos, Adam Smith foi quem mais contribuiu para o

processo de construção da categoria mais valia, posto que reconheceu ser o trabalho a fonte de

todo valor, independentemente dos valores de uso por ele produzido. Mas, por não ter

concebido a própria força de trabalho como mercadoria, Adam Smith não teria alcançado

distinguir a mais valia do lucro.

Ao superar a elaboração de Adam Smith, Marx demonstra que a mercadoria

vendida pelo operário é a força de trabalho e, não, o próprio trabalho. Segundo este autor, no

processo anterior à transformação do dinheiro em mercadoria e desta em capital, o trabalhador

ainda não estava despojado dos meios de produção. Derivou daí a necessidade de tornar o

trabalhador "livre" - não mais pertencente a um senhor e destituído da propriedade dos meios

de produção.

Deste modo, o trabalhador se defronta, no mercado, como proprietário de sua

força de trabalho e todos os meios de produção se confrontam com ele, no processo de

circulação, como propriedade da burguesia. Evidentemente, este trabalhador, despojado dos

meios de produção, estará também privado dos meios de subsistência e, ao ser privado destes

meios, não poderá criar nenhum meio de produção. Assim, foram estabelecidas as condições

materiais básicas para que a realização do trabalho aconteça de forma alienada.

Neste modo de produção, o objetivo da compra da força de trabalho é o aumento

do capital. Por ser a capacidade de trabalho apenas potencial, o trabalhador só pode vir a

realizá-la se obtiver inserção no mercado de trabalho. A noção de trabalhador livre abrange,

portanto, todos aqueles que dependem da venda de sua força de trabalho para sua reprodução,
59

estejam ou não empregados. A superpopulação relativa está incluída nesta noção, dado que o

critério determinante da análise é a propriedade dos meios de produção. A importância e a

necessidade da superpopulação relativa advêm de sua dupla função para o capital: 1ª- reduzir

o salário e aumentar as taxas de mais-valia de maneira a possibilitar a acumulação; 2ª-

propiciar uma massa de trabalhadores adaptados às oscilações do capital.

Neste sentido,

[...] o conceito de trabalhador livre contém já implícito que o mesmo é um


pauper; pobre virtual. Com respeito às condições econômicas é mera
capacidade de trabalho e por isto, dotado de necessidades vitais. E uma
necessidade em todos os sentidos, visto não dispor das condições objetivas
para a realização da sua capacidade de trabalho. Quando o capitalista não
necessita do sobretrabalho do indivíduo ele não pode realizar o trabalho
necessário, produzir os seus meios de subsistência. Quando não pode obtê-
los por meio do intercâmbio mercantil obterá por meio de esmolas que
sobram para ele da renda de todas as classes. (MARX, 1980, p.110)

O pauperismo, nesta orientação teórica e analítica, é apreendido como resultante

do desenvolvimento das forças produtivas. É, portanto, uma especificidade da produção

fundada no capital. "Sua produção e sua necessidade se compreendem na produção e na

necessidade da superpopulação relativa, e ambos constituem condição de existência da

produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza” (MARX, 1987, p747).

Nesta sociedade, na qual, conforme já referido, o desenvolvimento das forças

produtivas cria uma massa crescente de trabalhadores excedentes, a pobreza é o resultado

necessário das leis do movimento do capital e não algo fortuito ou uma manifestação

conjuntural da dinâmica da economia. Esta concepção refuta as noções correntes de que a

solução para o problema habitacional reside na implantação de políticas sociais voltadas para

as populações de baixa renda. Ainda que tais propostas possam minorar carências de parcela

da população trabalhadora, por estarem centradas na ótica da distribuição, descoladas da

produção, terminam por não apreender a questão da pobreza como outra face da riqueza, o

que tenda acarretar o enfrentamento sempre parcial.


60

Dissemos, anteriormente, que a concepção da questão da habitação, como parte e

expressão da questão social, requer a apreensão de seus múltiplos determinantes, o que

permite que a sua aparência seja superada. Neste sentido, torna-se necessário acrescentar a

esta análise, o debate sobre os mecanismos de formação do preço do solo urbano e sua

interferência nos custos da habitação. Agentes do mercado imobiliário, do governo e alguns

teóricos concebem a formação do preço dos terrenos por suas características e situação

locativa. Outras análises, porém, superam esta concepção, que apenas considera a aparência,

através da elucide ação das relações entre o proprietário fundiário e o empresariado

capitalista, suas transformações no momento histórico atual e a questão habitacional.

As contribuições de Harvey (1980), Ribeiro (1997) e Lefebvre (2001), construídas

com base na análise de Marx a respeito da renda fundiária, auxiliam na compreensão desta

problemática. A terra, originalmente bem natural, não-mercantil, transforma-se em um

produto com valor de troca, por meio da incorporação do trabalho social contido nos

investimentos públicos. Porém, ainda que a transformação da terra em produto urbano resulte

de longos anos de maturação, e que esta carregue potencialmente valor de uso extensivo a

toda população, a sua apropriação é feita de forma privada, consoante a lógica do valor de

troca26. Esta transformação faz com que a terra se torne, ao mesmo tempo, condição de

produção para o capital imobiliário e condição de vida para a classe trabalhadora.

Os autores Ribeiro e Pechman (1983) definem o problema fundiário da seguinte

maneira: a terra, espaço necessário à produção de moradia, é monopolizada por alguns

proprietários. Este monopólio representa a consolide ação, no plano jurídico, de relações

sociais herdadas de outros momentos do desenvolvimento da sociedade. Trata-se de

26
Harvey afirma: "O solo e suas benfeitorias não são mercadorias quaisquer: assim, os conceitos de valor de uso
e valor de troca assumem significado em uma situação mais do que especial. O solo e as benfeitorias não podem
deslocar-se livremente, e isso os diferencia de outras mercadorias, [...]. O solo e as benfeitorias têm localização
fixa. A localização absoluta confere privilégios de monopólio à pessoa que tem o direito de determinar o uso
nessa localização. O solo e as benfeitorias são mercadorias das quais nenhum indivíduo pode dispensar"
(HARVEY, 1980, p.135).
61

propriedade sobre uma condição não reprodutível da produção e da circulação de

mercadorias, já que a terra não pode ser reproduzida pelo capital e não tem por fim a

valorização do capital-dinheiro. O monopólio da terra permite ao dono da propriedade tributar

a produção e circulação de mercadorias participando, desse modo, da distribuição da mais-

valia, sem concorrer para sua geração e realização. Com o desenvolvimento da sociedade

capitalista, esta relação social passa a subordinar-se às leis da produção e da distribuição da

mais-valia, "[...] fazendo com que os proprietários de terras somente obtenham um

rendimento do seu direito de propriedade quando o uso do solo permite a geração de um lucro

[...] acima do lucro médio" (RIBEIRO; PECHMAN, 1983, p. 32). Todavia, é mister ressaltar

que, muito embora a terra tenha perdido força enquanto elemento capaz de interferir,

decisivamente, no processo de produção da ordem social do capital, ela permanece sendo

suporte necessário à expansão do ciclo do capital; tanto que a necessidade de solo, cuja oferta

é cada vez mais restrita, continua acarretando intensas lutas sociais.

A subordinação da propriedade da terra às leis próprias da expansão capitalista

não significa, entretanto, que tal subordinação ocorra na mesma intensidade no setor de

moradia. Neste ramo da produção, o capital se depara, de fato, com dificuldades para

subordinar a renda ao lucro.

A análise de Engels (1984) da destruição da manufatura e do surgimento da

grande indústria auxilia no desvelamento desta questão, pois contribui para concebê-la a partir

da evolução histórica do capitalismo. O autor demonstra que o desenvolvimento da indústria

produziu intensos fluxos migratórios em direção a oportunidades de trabalho concentradas nas

cidades. Com o surgimento do grande capital industrial, ocorreu a remodelação do espaço

urbano, já que este deveria ser adaptado às exigências da produção capitalista de mercadorias.

Esta intensa renovação foi realizada, tanto pelas próprias empresas, quanto pelo Estado.
62

Como o número de imóveis não atendia à demanda, os proletários tiveram que

alugar pequenos cubículos. O aumento da classe trabalhadora e a sua concentração espacial

em condições habitacionais anti-higiênicas e miseráveis propiciaram o aparecimento de surtos

epidêmicos. Por outro lado, a concentração de trabalhadores também favoreceu o aumento da

consciência política. Do ponto de vista da burguesia, este processo representou uma dupla

ameaça, já que as epidemias punham em risco o necessário exército industrial de reserva, e a

disseminação de idéias revolucionárias colocava em risco o poderio das classes dominantes27.

Movida por essa inquietação, a burguesia desencadeou um novo processo de

renovação urbana, que incluía a demolição de imóveis que serviriam de abrigo à classe

trabalhadora. Tem-se aí a primeira crise de moradia: a associação de um veloz crescimento da

população urbana com a extinção de parte do parque imobiliário existente28.

A carência de moradias favorece a cobrança de elevados aluguéis. Esta situação

cria um atrativo para o capital-dinheiro existente na economia e estimula a compra de imóveis

para o seu parcelamento em cubículos. Este mecanismo reproduz a crise de moradias, pois os

lugares habitados pelos trabalhadores são destruídos e pequenas vilas são construídas em

lugares distantes, o que provoca o deslocamento espacial dos alojamentos precários e, não, a

sua eliminação.

A rentabilidade originada do capital aplicado na produção de habitação não criou,

portanto, condições para a superação da crise de moradia. Segundo Engels (1984), não existia

interesse das classes dominantes em sua solução. Tal desinteresse, segundo o autor,

demonstraria a intenção dos capitalistas em conservar o operariado pressionado pela

necessidade contínua de vender sua força de trabalho para ter acesso à moradia e, ao mesmo

tempo, submetido às iniciativas patronais de construção de vilas operárias. Com base nestes

argumentos, o autor polemiza com Proudhom, para quem era possível solucionar a

27
Engels (1975) descreve as condições habitacionais da classe operária no momento da revolução industrial.
28
Ver a respeito em Ribeiro (1997).
63

problemática habitacional por meio da transformação de todo operário em proprietário de sua

casa. Engels (1984) mostra a impossibilidade de esta questão ser superada nos limites da

sociedade regida pelo capital.

As reflexões do autor sobre os efeitos da expansão capitalista na vida urbana

possibilitam, também, compreender a importância da cidade como lócus das transformações

que então se operavam, isto é, como território que nasce sobre as ruínas do mundo feudal,

lugar do encontro das grandes metamorfoses e da materialização dos interesses de expansão

da burguesia industrial e, por conseguinte, da emergência de grandes conflitos sociais.

Ademais, contribuem para a compreensão de como a separação entre trabalhador e meios de

produção e entre trabalhador e propriedade da moradia permitiu que a habitação se

transformasse em mercadoria produzida sob relações capitalistas e, portanto, destinada ao

lucro.

Ribeiro demonstra que, guardadas as especificidades de cada processo de

urbanização e de produção da moradia, a denominada crise habitacional é inerente ao sistema

capitalista. Neste sentido, afirma: “[...] como acontece em outros setores da produção de

mercadorias, a penúria de moradias deveria existir, até o momento em que passasse a ser

rentável o investimento imobiliário” (RIBEIRO, 1997, p.146).

Esta mudança, de acordo com o autor, não ocorre, todavia, unicamente pelas

razões apontadas por Engels (1984), mas, sobretudo, por empecilhos existentes para que o

capital seja empregado na produção de moradias, o que conforma uma especificidade do

setor em relação aos outros ramos de produção. Estes obstáculos específicos enfrentados pelo

setor imobiliário não possuem, tal qual ocorre com os outros setores, sua superação

assegurada pelo próprio movimento de reprodução do capital.

A renda torna o papel do proprietário urbano preponderante na produção de

moradia, desvendando, segundo Ribeiro, o seguinte paradoxo: “[...] o investimento


64

imobiliário é rentável, mas a propriedade fundiária urbana impede a produção capitalista de

moradia, na medida em que a renda predomina sobre o lucro” (RIBEIRO, 1997, p. 146). Ora,

ainda que as transformações econômicas tenham feito com que a terra se transformasse de

bem patrimonial em mercadoria que circula para proporcionar renda e que esta transformação

tenha produzido um incentivo para a produção de novas moradias, o controle do espaço da

produção permanece como prerrogativa dos proprietários da terra urbana.

Segundo a análise realizada pelo autor, a produção capitalista de moradias,

voltada para a produção massiva e propiciadora do barateamento de custos, somente será

possível se o capital contornar os dois obstáculos mencionados: a propriedade privada da terra

urbana e a estreiteza do mercado consumidor.

Ribeiro (1997) salienta, também, que a habitação resulta de um complexo

processo que envolve produção e comercialização. Suas características a diferenciam de

outras mercadorias de consumo privado, pois se trata de mercadoria que requer demorado

tempo de produção e decorrente imobilização de capital. Além disso, a produção se vincula à

disponibilidade de terra, serviços e infra-estrutura, o que distancia o preço da habitação do

valor dos salários.

Por conseguinte, a habitação é uma mercadoria que, em geral, exige

financiamento prévio à produção e ao consumo, já que, via de regra, seus consumidores não a

podem comprar à vista, em decorrência do desequilíbrio entre seu valor e o poder aquisitivo

dos trabalhadores.

No artigo intitulado “Incorporação imobiliária: características, dinâmica e

impasses”, Ribeiro aprofunda essa análise ao demonstrar os limites à expansão capital ista no

setor imobiliário, o que permite compreender que existe, além das decisões macroeconômicas

que determinam o perfil da geração e da distribuição de renda, uma associação entre os


65

mecanismos que regulam o solo urbano e os que regulam a produção de moradia, o que

constitui elemento decisivo na conformação da questão habitacional.

Inicialmente, o autor apresenta as posições teóricas mais comuns em torno dos

determinantes do padrão de a acumulação no setor imobiliário na sociedade brasileira atual.

Nesta posição, há um ponto em comum: a dinâmica construtiva especulativa é explicada

como dependente do comportamento de variáveis de natureza macroeconômica ou política.

Contrapondo-se a estas explicações, Ribeiro (1997) argumenta, com base na sua pesquisa

sobre o Rio de Janeiro, que as razões adjacentes a esta dinâmica especulativa vinculam-se a:

permissividade na regulação pública da produção do espaço construído e;

existência de um modo de produção do espaço construído responsável por

desigualdades materiais e simbólicas das condições habitacionais.

Esta desigualdade restringe a oferta de terras urbanizadas, limitando a produção

em massa da habitação. A dinâmica especulativa, ao mesmo tempo em que se alimenta desta

desigualdade, concorre para a manutenção e reprodução da própria desigualdade na produção

do espaço urbano.

A oferta de moradia depende de duas outras ofertas: a oferta de crédito e a oferta

de terras urbanizadas. A realização dessas ofertas é problemática: o financiamento depende de

condições econômicas e financeiras que permitam a estruturação de um sistema de crédito

para o financiamento de uma mercadoria de valor alto, em uma sociedade que mantém o nível

salarial no plano do precário custeio das necessidades mais imediatas de reprodução da força

de trabalho. Já a oferta de terra depende da interação entre os mercados de solo, as obras

públicas, os serviços privados e a prestação direta ou indireta, pelo poder público,de alguns

serviços urbanos.

Estas contradições particulares possibilitam, segundo Ribeiro, "[...] a existência da

relação social que se materializa na forma capital de incorporação” (RIBEIRO, 1996, p. 114).
66

O capital incorporador é um agente capaz de viabilizar financeiramente o empreendimento,

por meio da centralização de poupanças e de capital e do acesso à terra urbanizada. O

incorporador compra o terreno, detém o financiamento para a construção e comercialização,

decide sobre o processo de produção, define a localização e as características gerais do

produto e, ainda, seu preço. Sua atuação articula o proprietário original da terra, o financiador

e o construtor, o que o torna um agente com papel dominante na organização do setor

imobiliário. A intervenção deste agente demonstra, segundo palavras do autor, “[...] que

capital e propriedade fundem-se na produção da cidade” (RIBEIRO, 1996, p. 31).

Por fim, Ribeiro (1996) enfatiza que o mercado imobiliário funciona como um

mecanismo de seleção e de segregação social, gerado na disputa pelo acesso aos espaços nos

quais as condições urbanas são mais propícias. Como a produção é dirigida para quem tem

maior poder de compra e se baseia na escassez do produto, visto existir um mercado estreito

de terras urbanizadas, a organização da cidade configura-se como mecanismo de ampliação e

aprofundamento das desigualdades entre as classes sociais.

A força do capital imobiliário é decisiva na fixação do preço do solo urbano. Ao

contrário do que ocorre na indústria ou na agricultura, essa fração do capital não se valoriza

porque domina ou organiza o processo social de produção, mas porque detém o monopólio do

acesso a espaços disputados. A especulação é sua própria razão de existir, já que as

transformações do uso do solo são sua fonte de lucro. Para concretizar seu objetivo, compra

solo com baixa densidade de ocupação e vende, o mesmo solo, com potencial para abrigar alta

densidade demográfica. Assim, compra solos ocupados por casas, vende solos com edifícios;

compra solo de uso residencial e vende solo transformado para uso comercial; compra solos

onde residem camadas populares e o vende para segmentos com alto poder aquisitivo. Para

que estas operações sejam realizadas, é necessário investir na construção de moradias ou

equipamentos. Todavia, o lucro imobiliário não advém essencialmente da atividade


67

construtiva e, sim, da comercialização do solo com seu uso transformado. Por isso, pode-se

afirmar que esse ramo da atividade empresarial cria uma frente de valorização parcialmente

fictícia, pois as operações de construção são tributárias das operações especulativas e do

trabalho social geral.

A ação do capital na estruturação do solo urbano é amparada por uma determinada

concepção hegemônica de direito e corroborada pela ação do Estado, que se encarrega de

realizar grandes investimentos em infra-estrutura, implantar equipamentos de uso coletivo,

estabelecer normas para o uso do solo e fiscalizar seu cumprimento.

Ao intervir na produção do espaço urbano em favor do aumento do lucro de

empresas privadas, o Estado estrutura a cidade para atender, sobretudo, às necessidades do

capital em geral e, em particular, às do capital imobiliário. Por meio da intervenção do setor

imobiliário, ocorre o surgimento de um espaço físico-social recortado por múltiplos lugares.

Em todo e qualquer recanto seus agentes instalam-se e definem uma forma diferenciada de

auferir rentabilidade, submetendo aos seus objetivos, até mesmo os terrenos pessimamente

localizados, que são transformados em mercadoria vendável ao trabalhador com menor poder

aquisitivo.

O segredo da valorização da terra vazia pode ser desvendado, na maioria das

vezes, por meio da seletividade orientadora do investimento público em infra-estrutura e em

equipamentos urbanos. Ao especulador de terrenos é garantido, assim, sem despender

recursos próprios, multiplicar seu capital com base no trabalho social, o que reforça a lógica

da socialização dos custos e da privatização dos lucros.

A partir desta compreensão, consideramos imprescindível ressaltar o papel do

Estado na reprodução ampliada do capital, em especial após a consolide ação de sua fase

monopólica, quando as funções de regulação passam a ser exercidas, relevantemente, nesse

âmbito. Neste período histórico, o Estado se envolve diretamente na expansão da economia,


68

subsidiando-a com instrumentos de grande poder de difusão, além de atuar no sentido da

remoção dos obstáculos para o empreendimento e a acumulação (LOJKINE, 1981, p.56).

É necessário, contudo, reconhecer criticamente a tendência analítica que gera o

obscurecimento da sociedade civil e impede apreender, como nos diz Lefebvre (1974), que a

“verdade do político” (e, conseqüentemente, do estatal), está no social. Tendo em vista que o

Estado é uma expressão das relações sociais, são essas relações que permitem compreender

as formas políticas e, não, o contrário. O que queremos enfatizar com esta ressalva é que o

Estado, por ser um órgão de uma sociedade estruturada em classes, tem sua ação direcionada

no sentido de assegurar e fortalecer os interesses da classe que detém a hegemonia sobre o

conjunto da sociedade. Muito embora o caráter de classe do Estado não se restrinja à ordem

burguesa, na sociedade capitalista este caráter aparece, de forma mais nítida, ainda que

travestido da aparência de um órgão independente das classes, cujo objetivo maior é o bem

comum, aparência que torna possível sua atuação como mediador dos interesses de classe.

A organização interna das cidades resulta, por conseguinte, da ação de agentes

que possuem interesses complementares ou antagônicos entre si. Além do Estado e das

empresas imobiliárias, interferem, na estruturação da cidade, os proprietários de terra e de

imóveis e a própria população moradora.

Pode-se, portanto, afirmar que:

o solo urbano [...] traduz a existência de uma luta social por usos
diferenciados, que ganha contornos mais claros quando se considera que
possa ser também esse solo terra de habitação, os mecanismos econômicos e
jurídicos que geram remoção, localização diferencial e controle implicam a
segregação social e espacial de amplos segmentos da população
metropolitana (RIBEIRO, 2001, p.46).

Com efeito, a questão da habitação não decorre de um simples desequilíbrio entre

a pequena oferta de imóveis e uma vasta população consumidora, Por envolver não apenas

abrigo, mas ocupação do espaço urbano com seus complementos de infra-estrutura,


69

transporte, serviços, equipamentos sociais e paisagem, a habitação torna-se de extrema

relevância para a reprodução diária dos trabalhadores. A obtenção deste meio de vida está

sujeita a um complexo conjunto de mediações sociais, entre elas as regras que determinam a

troca de mercadorias. Como o intercâmbio de mercadorias não está sob o controle dos

indivíduos produtores, mas sim, alheio ao seu domínio, o trabalhador só poderá vir a adquiri-

las caso se insira no mercado de trabalho, isto é, quando demandado pelo empresariado e,

portanto, com possibilidade de obtenção de renda suficiente para pagar pelo preço da moradia.

A habitação se constitui, portanto, numa complexa questão com múltiplas

determinações, expressivas das contradições sociais geradas pelo desenvolvimento

capitalista29. Faz parte integrante, e a nosso ver, de maneira fundamental destas contradições,

a existência da propriedade privada e seu reconhecimento jurídico, o que assegura aos

detentores deste direito a cobrança e, até mesmo, o despejo dos que não possuem condições

de pagamento. O fato de o acesso à habitação ser determinado pelo nível de renda ou pelo

salário da população, é situação hoje agravada pela conjuntura de desemprego e de crescente

pauperização. A divisão social e técnica do trabalho separando local de moradia e local de

trabalho obriga o habitante a depender de numerosos meios de consumo para a sua

reprodução diária.

A apreensão deste complexo de determinações possibilita conceber a problemática

da habitação como uma questão concreta e particular e, ao mesmo tempo, como integrante do

conjunto das manifestações da desigualdade entre as classes sociais, geradas na sociedade

capitalista madura.

Alguns autores denominam esse conjunto de manifestações de questão social. Sua

origem, segundo o pensamento marxista, reside na contradição entre o caráter coletivo da

produção e a apropriação privada das condições de realização do trabalho, bem como de seus

29
Ver Gohn (1982).
70

resultados. Historicamente, a chamada questão social se relaciona com a constituição da

classe operária e a sua inserção na cena política, por meio de lutas em favor dos direitos

associados ao trabalho. Foram estas lutas que romperam o domínio privado nas relações entre

capital e trabalho, permitindo que a questão social penetrasse na esfera pública, sendo exigida

a intervenção do Estado para legitimação e legalização de direitos e deveres dos sujeitos

envolvidos. A partir dessa intervenção, consubstanciaram-se serviços e políticas públicas que,

nos países cêntricos, foram expressão do Estado de Bem-Estar. (IAMAMOTO, 2001, p. 17).

Nos países periféricos, a resposta do Estado à questão social se deu de forma

bastante diferente e particular. No próximo item, a nossa exposição estará dirigida aos

principais determinantes das características assumidas pela relação entre o Estado e as lutas

urbanas no Brasil, a fim de buscar as razões de suas manifestações específicas e suas

conseqüências sociais, especialmente no tocante à luta por moradia nos dias atuais.

1.3. PARTICULARIDADES DAS LUTAS URBANAS NO BRASIL

Se tomarmos como referência as lutas reivindicatórias ocorridas nas principais

cidades dos países de capitalismo avançado, veremos que as lutas urbanas no Brasil exibem

algumas particularidades, ainda que a problemática enfrentada seja aparentemente a mesma -

a desigualdade no acesso a bens e serviços de consumo coletivo. Na sociedade brasileira, uma

parcela importante da classe trabalhadora é praticamente excluída de condições mínimas de

acesso aos direitos à vida urbana e ao trabalho.

Tal fato tem sido atribuído a circunstâncias históricas vinculadas à forma de

desenvolvimento do capitalismo na formação social brasileira. Nesta sociedade, o processo de

desenvolvimento ocorreu sem a realização de transformações estruturais, inclusive as

chamadas conquistas democráticas, que constituíram as pré-condições do desenvolvimento


71

nos países euro-ocidentais (NETTO, 1998). Na realidade brasileira, tais conquistas adquiriram

um caráter restrito e formal, posto que a burguesia encontrasse condições de fazer com que

sua implantação se limitasse à democracia política, não atingindo, assim, as condições

estruturais que garantem a reprodução da sociedade comandada pelo capital.

Esta ausência de processos democráticos na história da sociedade brasileira

acarretou uma forma de regulação que não leva em conta a perspectiva de universalização dos

direitos sociais. A emergência e a consolide ação da burguesia, de forma subalterna ao

imperialismo, e seu decorrente caráter não heróico, constituem-se em razões essenciais da não

conformação do modelo de Estado de bem estar liberal democrático em países periféricos

como o Brasil30. Diferentemente dos países centrais, nos quais a intervenção do Estado

emergiu num contexto de pressão e organização da classe trabalhadora, o que contribuiu para

determinar certa distribuição de renda, no Brasil a intervenção estatal sobre a vida econômica

e social surgiu em meio a uma correlação de forças sociais e econômicas bastante distinta,

favorecedora de uma enorme concentração de renda.

Florestan Fernandes (1987) em A Revolução Burguesa no Brasil ressalta que a

sociedade de classes engendrada na periferia é incompatível com a universalização dos

direitos sociais. A relação entre a burguesia e a classe trabalhadora no país tem, de acordo

com o autor, entre suas principais marcas, o comportamento particularista e egoísta da

burguesia associada ao capital internacional, gerador de exclusão, por vezes total, dos não–

possuidores dos meios de produção.

Com esta afirmação, o autor sustenta a interpretação de que a realidade brasileira

não se move única e exclusivamente no sentido de responder às pressões e forças externas,

mas, também, a interesses construídos internamente. Esta concepção permite perceber os

30
Em Fernandes (1975) encontra-se uma análise aprofundada deste traço peculiar da burguesia brasileira.
72

processos históricos e sociais que interagiram no sentido de determinar ou condicionar as

decisões das frações burguesas que assumiram o poder no país.

Esta orientação teórica parece-nos especialmente importante para, em primeiro

lugar, reafirmar que o desenvolvimento capitalista no Brasil ocorreu sem ruptura com as

formas anteriores de apropriação da riqueza, como é o caso do latifúndio, posto que as

redimensionassem segundo seus fins. Em segundo lugar, porque em momentos nos quais a

economia mundial conheceu um período de prosperidade, do qual extraíram algum proveito

certos países periféricos como o Brasil, que já possuíam alguma acumulação interna e cujos

Estados-nação obtiveram condições de autonomia que permitiram acionar medidas de estilo

keynesiano, tais medidas orientaram-se para a industrialização via substituição de importações

e incorporaram apenas alguns segmentos da classe trabalhadora.

De fato, o Estado interventor brasileiro surgiu aprofundando as desigualdades

sociais. Coube a ele, o desempenho de papel fundamental na criação de uma sociedade

capitalista industrializada. Todavia, o desenvolvimento ocorrido neste período não alterou o

padrão dominante da relação entre o Estado e as “classes que vivem do trabalho”, qual seja: a

exclusão social e política da massa trabalhadora e a utilização dos meios coercitivos no

enfrentamento dos conflitos sociais.

Segundo O'Donnel,

[...] a relativa ausência do setor popular como sujeito sócio-político


razoavelmente autônomo define a particularidade do modo de ser histórico
da burguesia brasileira: uma classe que economicamente conquistou êxitos
importantes, mas que se constituiu como um sujeito sócio-político
profundamente autoritário, como de resto o foram todas as burguesias até
que a crescente organização e presença política do setor popular as levou
para o caminho das negociações e concessões democratizantes. Que eu
saiba, não existe outro caso na história de uma burguesia economicamente
tão bem sucedida, que haja sido tão pouco desafiada social e politicamente.
(O'DONNEL,1998, p.92)
73

Quando se tematiza acerca da ausência do denominado pacto democrático na

sociedade brasileira, entretanto, outros determinantes vêm à tona, de forma a demonstrar a

complexidade da questão. Além da fragilidade da oposição organizada da classe operária, no

movimento sindical e nos partidos social-democratas ou socialistas, encontra-se, entre as

frações da burguesia, a ausência de tradição ético-política liberal, em geral substituída por

estratégias de modernização conservadora, reguladas por meio de acordos pactuados pelo alto,

o que permite a conciliação com as forças representantes do atraso. Estes determinantes

somados à tradição patrimonialista e ao lugar subalterno ocupado pelo país na reprodução do

capital e nas disputas políticas internacionais e, em decorrência, o tardio desenvolvimento

industrial do país, concorrem para conformar, na sociedade brasileira, a ausência de relações

contratuais entre Estado e Sociedade.

Esta relação entre Estado e classe trabalhadora, pode ser refletida como proposto

por Florestan Fernandes (1987), com base nos seus componentes estruturais. Tais

componentes, segundo o autor, radicam-se no processo conservador de consolide ação da

dominação burguesa no país. Particularmente, quando é observada a imposição desta

dominação sobre a classe operária, constatam-se as marcas da cooptação e da repressão. Ou

seja: a democracia nesta sociedade é “[...] uma democracia restrita, aberta e funcional só para

os que têm acesso à dominação burguesa” (FERNANDES, 1987, p. 212).

Tais características sociais, econômicas, políticas e culturais do desenvolvimento

brasileiro contribuíram, ao lado de outros determinantes, para configurar uma sociedade

particular que se move, historicamente, sobre o seguinte eixo: "um capitalismo sem reformas

e a exclusão das massas dos níveis de decisão” (NETTO, 1998, p.22).

Esta exclusão tenda provocar, no plano da subjetividade, uma noção distorcida do

quadro histórico e social no qual o desenvolvimento capitalista se processou e se processa.

Coutinho (1974) demonstra que este alijamento das forças populares dos ganhos do
74

desenvolvimento acarreta a compreensão de que a mudança se deve à ação de indivíduos mais

capazes e, não, a um complexo de determinações nas quais operam condições objetivas e

subjetivas.

Enfim, em razão deste complexo de determinações, o desenvolvimento industrial

no Brasil acabou reproduzindo, de um modo mais grave e acentuado, as denominadas

desigualdades naturais do capitalismo.

Ao longo das lutas sociais, tem sido procurada a reversão deste traço histórico,

porém, o que se constata em democracias pouco consolidadas, como a brasileira, é que a

ampliação da participação social numa perspectiva que não se limita à reivindicação dos

direitos sociais, muito embora os inclua, quando a consideração de interesses e agentes das

classes dominadas na gestão da vida social, tenda provocar repercussões políticas,

econômicas, sociais e culturais e a acirrar as contradições sociais.

Ainda que esta participação não possa "ferir o caráter de classes do Estado

constituído” (NETTO, 1990, p.53), ao postular a construção de uma democracia de massas

organizada de baixo para cima e capaz de articular a intervenção instituída com as forças

instituintes, acaba provocando, conforme salienta Netto, uma forte reação de amplos setores

da burguesia e das elites dirigentes, o que não só denuncia a ausência de uma cultura política

permeável a projetos de cunho democratizante, mas sobretudo, põe em relevo a seguinte

evidência histórica, assinalada pelo autor: o aprofundamento do projeto democrático só pode

vir a ser efetivado por meio da ação dos trabalhadores organizados. Esta ação, na sociedade

brasileira, possui um caráter potencialmente disruptivo.

A realização destas possibilidades democráticas exige, contudo, a compreensão de

que mesmo as conquistas nos marcos liberais obtidas nas formações que realizaram o Estado
75

de bem estar só foram alcançadas como resultado da ação e da pressão dos trabalhadores e

não por uma decisão espontânea das classes dominantes31.

A análise da retomada do projeto de redemocratização do início dos anos 80 na

sociedade brasileira possibilita, não só desvendar as circunstâncias sociopolíticas e os

pressupostos ídeo-teóricos, a partir dos quais este projeto se efetivou, como também auxilia na

avaliação de seus rumos e tendências atuais.

Trataremos, inicialmente, das particularidades do processo de declínio do período

ditatorial e da transição democrática.

Segundo Coutinho, o processo de transição, que produziu a derrocada da ditadura,

manifesta a seguinte contradição central: por ter sido um regime ditatorial modernizador

serviu para “[...] desenvolver os pressupostos de uma sociedade civil que, progressivamente

escapou à sua tutela” (COUTINHO, 2000, p. 90). Convém notar, também, que a violência do

Estado ditatorial burguês impediu a organização da sociedade civil nas suas instituições, mas

não conseguiu obstaculizar, por completo, a constituição de novas formas de organização.

Algumas destas formas, definidas por Frederico (1990) como moleculares, desencadearam

efeitos, de certa maneira inesperados, como as greves no ABC paulista.

O fracasso da política econômica adotada pelo regime militar e a vitória do

partido de oposição ao governo são expressões do declínio do regime autoritário e do início

do processo de transição democrática. Para a crise do regime concorre, sobretudo, o

esgotamento do milagre econômico, dado que este representava, à época, a única fonte de

legitimação do Estado frente à resistência democrática e à ação do movimento popular. Ao

longo deste período de crise da ditadura, foi construído o projeto de redemocratização.

A despeito das divergências teóricas e políticas entre os defensores deste projeto,

estes possuíam em comum o interesse em eliminar os componentes autoritários da ordem

31
No discurso liberal a noção de igualdade refere-se, estritamente, à esfera política, uma vez que a noção de
igualdade econômica é estranha a esta forma de pensamento.
76

política.

Netto (1998) destaca dois processos fundamentais que auxiliam na compreensão

das características deste processo de transição. São eles: a estruturação do Estado sob a tutela

militar e a hegemonia de correntes burguesas no campo da oposição democrática. A

confluência destes processos comprometeu o alcance de uma democracia substantiva.

Este segundo componente é também analisado por Sader (1998). Diz o autor: "[...]

quando a transição política do país se consuma, o que era promessa tornou-se história. Difusas

aspirações de justiça social e de democracia foram recolhidas e elaboradas de outro modo pela

Aliança Democrática que constituiu a Nova República” (SADER, 1988, p.314).

O autor afirma que:

[...] o projeto político implícito nos movimentos sociais do fim da década de


70 sofreu uma derrota política [...]. Eles (os movimentos sociais) foram
projetados para enfrentamentos decisivos quando ainda mal se haviam
constituído como sujeitos políticos. O ritmo de suas histórias não era o
mesmo que o da política instituída, e foi esta que fixou as datas. (SADER,
1988, p.315).

Com efeito, naquele momento, conformou-se na sociedade brasileira um processo

de transição no qual coexistiu um Estado estruturado segundo o projeto político-econômico da

ditadura, e um regime político que transitava no sentido da alteração do ordenamento jurídico-

político do país.

Estas contradições manifestaram-se ao longo de todo o processo constituinte,

contribuindo para produzir uma Constituição híbrida32, fruto de um processo de "transição

fraca".

Esta "transição fraca" possui, segundo Coutinho (2000), os seguintes elementos:

1) um executivo forte em detrimento do parlamento, ou, de modo mais geral, a tendência a

"desequilibrar", em favor do Estado, a relação entre este e a sociedade civil; 2) mecanismos

32
Ver DINIZ (1997).
77

transformistas, ou seja, a tentativa permanente de obter apoio para o governo por meio da

cooptação e dos favores clientelistas; 3) formas de populismo, isto é, de representação política

por intermédio do vínculo direto entre líder e massa atomizada, sem a mediação da sociedade

civil e, em particular, dos partidos; 4) a tutela militar, vale dizer, a atribuição de um peso

político às forças armadas, sem relação com o balanço de forças efetivamente presentes na

sociedade civil.

Ocorre, assim, uma ruptura com a ditadura implantada em 64, mas, não com os

traços autoritários e excludentes da política no Brasil.

Com a promulgação da Constituição de 88, formalizou-se um projeto de reforma

do setor público que incluía a ampliação dos direitos sociais e a participação da sociedade,

participação esta concebida, por alguns movimentos sociais, como “interferência decisória na

formulação, execução e fiscalização das políticas sociais públicas e, portanto, na

redistribuição e emprego do fundo público para a maioria da população” (IAMAMOTO,

2001, p. 265).

Cabe ressaltar que, diferentemente de outros países da América Latina, o processo

de redemocratização no Brasil ultrapassou os limites da luta pelo restabelecimento do direito

ao voto e alcançou conquistas, cuja pretensão principal era romper com o poderio das forças

conservadoras sobre a "coisa pública". Não resta dúvida de que as lutas travadas pelos

movimentos sociais foram determinantes neste processo.

A entrada em vigor da Constituição se deu, contudo, num contexto marcado por

uma ausência de “sincronia entre um projeto nacional democrático e as estruturas efetivas de

mando, especialmente, no executivo” (NETTO, 1998, p. 12).

A esta contradição de caráter endógeno, alia-se outra de caráter exógeno.

Enquanto nos países da Europa ocidental vinha à tona a chamada crise do Estado de Bem

Estar e a elaboração de alternativas de cunho neoliberal, aqui se promulgava a chamada


78

"Constituição Cidadã", por meio da qual se formaliza o projeto de universalização de direitos

e de controle social sobre a "coisa pública". Fiori salienta o fato de que estas alterações foram

encaminhadas num contexto extremamente adverso, posto que trovejado pela "aceleração dos

desequilíbrios macro econômicos [...] e progressivo estrangulamento financeiro do Estado e

da economia privada” (FIORI, 1991, p. 2).

Frente a estas circunstâncias, o compromisso da Nova República com o que foi

denominado de resgate da dívida social, assentou-se sob o impulso de uma transição fraca e,

em meio a uma grave crise econômica, o que restringiu, em muito, as possibilidades de

materialização do projeto elaborado e difundido pelos movimentos sociais.

Deste modo, grande parte das propostas defendidas pelos diferentes atores sociais,

aglutinados em torno da bandeira da democratização da administração e da esfera pública, só

se tornou viável a partir da eleição de prefeituras do campo democrático popular. Este evento

possibilitou o aparecimento de novos interlocutores, que despontaram no cenário político,

legitimados por sua inserção em processos democráticos de gestão municipal democrática.

As transformações no cenário dos anos 90, entretanto, produziram um conjunto de

mudanças no papel dos Estados nacionais, com graves conseqüências para o desempenho das

funções associadas à regulação econômico-social. Na medida em que o projeto neoliberal

configura uma resposta burguesa às demandas democráticas, numa conjuntura histórica de

agudização da crise do capital, tais mudanças têm provocado uma tendência à redução, ainda

maior, da relevância dos controles sociais democráticos, inclusive daqueles construídos sob o

impulso das lutas sociais do final dos anos 70 e início dos anos 80.

A exigência de desregulamentação do Estado, os efeitos de uma prolongada crise

recessiva e a implementação de políticas de ajuste fiscal têm restringido a efetivação de

projetos que expressam a interação entre forças sociopolíticas que operam no plano do
79

Estado-nação, o que impõe maiores constrangimentos às lutas sociais empreendidas nesta

conjuntura.

As recentes manifestações organizadas por movimentos de favela, de loteamentos

clandestinos e pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, bem como, as ocupações de

terrenos e prédios públicos, além de dar visibilidade ao caráter classista do Estado, expressam

o profundo agravamento da questão social na realidade brasileira atual e, ao mesmo tempo, a

capacidade de organização de segmentos extremamente pauperizados da classe trabalhadora.

Evidentemente, este contexto poderá vir a ser alterado por meio de uma profunda

mudança na correlação de forças sociais e políticas. Porém, o que se constata, no momento

atual, é o aumento da exclusão frente ao direito à cidade, impossibilitando o abrigo de

atividades cotidianas de sobrevivência e, ainda, a convivência e a reprodução da força de

trabalho de um contingente expressivo da população trabalhadora pobre. Milhões de

brasileiros, segundo palavras de Ferraz, “vivem hoje na miséria absoluta e os improvisos

marcam de forma incontestável suas estratégias de sobrevivência e, portanto, de solução

habitacional” (FERRAZ, 2000, p.12).

Malgrado as resistências a este processo, vive-se, hoje, uma nova fase, também

para as lutas sociais. A redução dos índices de sindicalização, fruto do desemprego, da

terceirização, da precarização das relações de trabalho e da perda de credibilidade dos

projetos coletivos, bem como, o incremento da segmentação e das desigualdades intra-classe e

o crescente enfraquecimento da participação dos trabalhadores na regulação das relações de

produção, têm dificultado a organização e a mobilização de diversos segmentos da classe.

No tocante, especificamente, às lutas por habitação, as alterações ocorridas são

extremamente preocupantes. Bonduki (1988) é um dos autores que chama a atenção para

este fato. O autor, a partir da reconstituição histórica dos movimentos sociais pelo direito à

habitação em São Paulo, convida o leitor a refletir a respeito do significado das recentes
80

modificações no eixo de luta desses movimentos, demonstrando que a reivindicação pela

posse de terra passou, a partir dos anos 80, a ser central para todos os movimentos de

ocupantes ou de favelados, o que, no seu entender, revela o rebaixamento das condições de

habitação da classe trabalhadora brasileira.

Bonduki afirma que a “ luta pela terra é o último patamar a que pode chegar o

movimento pelo direito à habitação” (BONDUKI, 1988, p.129). Em seguida a esta

afirmação, o autor conclui sua análise ressaltando que a questão deve ser enfrentada por

meio do investimento maciço na produção da habitação.

Partilhamos da compreensão do autor no que concerne à preocupação em

destacar que a centralização da luta por moradia, na reivindicação do pedaço de chão para

morar, e sua efetivação pela via da ação direta, expressam a radicalização das lutas por

moradia, o que deixa transparecer a radicalização da questão social na realidade brasileira

atual. Contudo, como vimos, o enfrentamento da questão habitacional não remete,

exclusivamente, ao quantum de moradias é disponibilizado numa dada sociedade, uma vez

que a forma de acesso a este bem é, ao mesmo tempo, reveladora da questão social no

urbano e por ela determinada. Seu enfrentamento demanda apreendê-la em intima conexão

com a dinâmica das transformações estruturais e conjunturais, com seus determinantes

fundamentais e suas particularidades, enquanto expressão da questão social mais ampla

numa determinada formação social. Ao mesmo tempo, desvendá-la significa reconhecer e

potencializar possibilidades que se abrem no reverso da crise social, na qual estamos

imersos. Frente a esta, têm surgido sujeitos individuais e coletivos que reivindicam, não só

o direito habitação, mas, sobretudo, o direito à afirmação de sua condição humana.

Neste capítulo, procuramos demonstrar que a apreensão da questão da habitação

para além de sua aparência e imediatismo, requer inseri-la no contexto da questão social, da

qual é parte. Para tanto, discorremos acerca de seus determinantes históricos e estruturais e
81

ressaltamos as transformações no Estado, na produção e no consumo, e suas repercussões nas

condições de vida, trabalho e moradia da classe que vive do trabalho, especialmente em

sociedades como a brasileira. Em seguida, observamos que, em face do acirramento das

contradições sociais, têm ocorrido diversas lutas sociais que expressam, com intensidade e

qualidade diversas, as práticas acionadas pelos trabalhadores para opor resistência material e

simbólica aos perversos efeitos destas contradições em suas vidas.

No próximo capítulo discorreremos sobre a forma particular assumida por esta

questão na grande metrópole paulista - lócus da emergência de diversos movimentos de

luta por moradia, inclusive do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, que constitui o

objeto empírico desta tese.


82

CAPÍTULO 2

A QUESTÃO HABITACIONAL NA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Como procuramos demonstrar no capítulo anterior, a repartição desigual da

localização e da qualidade habitacional, entre as diversas frações de classe nas cidades

capitalistas, expressa o entrelaçamento contraditório entre os desígnios do Estado e os

interesses dos proprietários fundiários e do empresariado, num determinado contexto social, o

que imprime à questão habitacional uma complexidade e uma particularidade que, para serem

decifradas, requerem o seu reconhecimento como questão social.

Na sociedade brasileira, onde o desenvolvimento capitalista efetivou-se sem as

transformações estruturais democráticas, entre elas, o acesso universal aos direitos sociais e a

reforma agrária, a questão social apresenta faces particulares, cujas marcas podem ser

sentidas, especialmente, no processo de ocupação das grandes cidades destinadas a servir

como território para a industrialização.

O processo de formação da cidade de São Paulo e do seu entorno metropolitano

atesta, de forma singular, as perversas conseqüências sociais do padrão de desenvolvimento

urbano-industrial implantado no Brasil, inclusive no que se refere à questão habitacional. Por

tratar-se da região que exerce o comando da rede urbana brasileira, a Região Metropolitana de

São Paulo (RMSP) evidencia, de forma contundente, a histórica tendência fortemente

concentracionista do modelo de a acumulação capitalista no Brasil.

O conteúdo deste capítulo está centrado nas recentes transformações sociais

ocorridas nessa região. Seu objetivo principal é contextualizar, histórica e socialmente, estas

transformações e relacioná-las com as condições de vida da classe trabalhadora e às lutas e

reivindicações pelo direito à habitação. Para apreender as razões sociais, econômicas e

políticas indutoras das modificações operadas na região faremos, inicialmente, um resgate


83

conciso das características do processo de urbanização na sociedade brasileira e,

particularmente, na referida região. Pretendemos, com este resgate, reconhecer determinantes

estruturais e conjunturais da questão habitacional na referida região, inclusive no que

concerne às reivindicações sociais, associadas às lutas pelo direito à habitação, posto que a

RMSP configura-se como cenário de intensos conflitos, desde a década de trinta do século

XX, quando se expande o processo de urbanização e emergem os primeiros movimentos

reivindicatórios urbanos que deram origem, mais tarde, às Sociedades de amigos de Bairros.

2.1. PARTICULARIDADES DA URBANIZAÇÃO BRASILEIRA: BREVE HISTÓRICO

A expansão urbana favorece o alcance das condições gerais de produção,

envolvendo a circulação e o consumo, e propicia o aumento da velocidade da acumulação,

além de facilitar a cooperação entre os agentes do processo produtivo. Derivam daí os

estímulos ao crescimento da aglomeração, já que esta contribui para a redução do tempo de

produção e para a aceleração do ritmo de realização dos investimentos e, logo, da

acumulação. O processo de urbanização, portanto, não é um processo isolado do

desenvolvimento capitalista, mas sim, parte constitutiva deste, posto que subordinado às

vicissitudes do capital e aos padrões técnicos e sociais assumidos pela acumulação.

A constituição da sociedade urbana no Brasil é anterior à industrialização; porém,

sob o impulso deste processo, sofre um grande redimensionamento dirigido à consolide ação

da economia brasileira, na escala nacional, e à sua integração ao circuito internacional do

capital.

O declínio da economia baseada no café, radicalizado pela crise mundial de 1929,

possibilitou o desenvolvimento da indústria, a aceleração do processo de urbanização e o

afloramento, na sociedade urbana, das diferenciações sociais e da diversificação ocupacional

resultantes da divisão social do trabalho, da constituição da classe média urbana e do


84

crescimento do proletariado. O movimento político-militar organizado por segmentos das

elites brasileiras, em 1930, demarca o início desse novo período urbano-industrial na história

do país.

A partir deste período, consolidaram-se as regras que visavam inserir a economia

brasileira no cenário internacional, não apenas como produtor agrícola, mas também, de bens

de consumo industrializados. Foram criadas as condições para a consolide ação da burguesia

industrial, como força econômica e política, e para a conformação de uma relevante mudança

na composição da classe operária: de imigrantes estrangeiros para migrantes nacionais33.

Convém frisar que no Brasil, como aconteceu em outros países de industrialização

tardia, a transformação da economia agro-exportadora em economia urbano-industrial foi

posterior à fase do capitalismo concorrente nos países centrais. A plena integração do país ao

circuito de valorização do capital ocorreu, portanto, já na fase monopólica34 e sob a

hegemonia do capitalismo financeiro. Esta forma de inserção na divisão internacional do

trabalho acentuou a dependência do país do capitalismo internacional e tornou o Estado “[...]

veículo e instrumento da penetração rápida, parcial e desigual das relações mercantis

capitalistas” (FARIAS, p. 63, 1991), viabilizando a valorização da fração hegemônica do

capital, e contribuindo para conformar a fisionomia e o teor específico das relações entre

Estado e urbano na sociedade brasileira.

Ao refletir essas relações, Oliveira (1982) demonstra que a urbanização na

sociedade brasileira possui características peculiares e que, por esta razão, sua emergência não

pode ser reduzida à forte intensificação da economia industrial, ocorrida após 1930. Antes, as

cidades brasileiras constituíam-se, fundamentalmente, como sedes do capital comercial. Nelas

33
Ver Fausto (1970).
34
Conforme analisa Netto "a viabilização do objetivo primário da organização monopólica, qual seja, o
acréscimo dos lucros capitalistas por meio do controle dos mercados, além de ter introduzido na dinâmica
capitalista um conjunto de fenômenos, potencializou a contradição entre a socialização da produção e a
apropriação privada: internacionalizada a produção, grupos de monopólios controlaram-na por cima de povos e
Estados” (NETTO, 1992, p.16).
85

se localizavam a burocracia do Estado e as instituições que estabeleciam as ligações

econômico-financeiras entre a produção brasileira e o circuito internacional de mercadorias.

Até os primeiros vinte anos do século passado, reproduziu-se no país, um padrão

de urbanização existente, mesmo que de forma embrionária, desde a Colônia. Este padrão,

fundado numa economia monocultora voltada para a exportação e sustentada no trabalho

escravo, impossibilitou o desenvolvimento de um mercado de trabalho urbano e embotou a

divisão social do trabalho.

Essa urbanização preceda nova urbanização, que se define quando a cidade passa

a sediar a economia industrial. No Brasil, diferentemente do observado na expansão

capitalista nos países centrais, onda industrialização expressa a divisão social do trabalho

entre cidade e campo, a industrialização é "[...] simultaneamente [...] e fundamentalmente

urbana porque não pode apoiar-se em nenhuma pretérita divisão social do trabalho no interior

das unidades agrícolas" (OLIVEIRA, p. 42, 1982).

O surgimento da fábrica como unidade produtiva e a decorrente complexidade da

divisão social e técnica do trabalho provocaram importantes redefinições na vida urbana. Já

que a industrialização surgiu como processo exclusivamente urbano, o crescimento da

urbanização excede, amplamente, a expansão da indústria. Assim, a urbanização aconteceu

em ritmo superior ao da oferta de empregos no setor secundário e, no terciário, associado à

industrialização, ocorrendo intenso crescimento da economia informal, além da criação de

abundante exército industrial de reserva.

O Estado foi o grande articulador desse novo processo de a acumulação. Sua

atuação se dirigiu, não só para a regulamentação do mercado de trabalho por meio das leis

trabalhistas, de modo a favorecer a constituição de novas relações entre capital e trabalho,

como também, para a transferência de excedentes entre frações das classes dominantes e o
86

incremento da acumulação industrial por meio da penalização da produção agro-exportadora,

o que estimulou intensa urbanização.

A partir da década de 50, afirma-se a tendência ao capitalismo monopolista em

escala mundial. O Estado, forçado pela redefinição da divisão internacional do trabalho e

pelos avanços em curso na organização da produção, passou a penetrar em espaços produtivos

que antes lhe eram vedados. Esta redefinição foi determinada pela conjugação dos seguintes

processos:

- restrição à exportação de capitais e mercadorias e ao abastecimento de bens

primários após a ampliação dos territórios socialistas ocorrida no segundo pós-guerra;

- ampliação das conquistas democráticas nos países centrais, sob pressão das

lutas dos trabalhadores, que obrigaram o Estado a assumir parcela dos custos da reprodução

da força de trabalho. As conquistas sociais acarretaram o encarecimento do preço da força de

trabalho e da produção de mercadorias e induziram a industrialização da periferia, tornada

espaço privilegiado de expansão das grandes empresas dos países centrais.35

No Brasil, essa redefinição da dinâmica capitalista trouxe duas conseqüências:

- o fortalecimento da intervenção do Estado que, por sua força extra-

econômica, passou a ser o ente capaz de realizar o processo de centralização de capital;

- a complexificação da divisão social do trabalho, com o crescimento do

número dos trabalhadores improdutivos e empregados das grandes empresas que, ao

comporem a classe média, modificam a estrutura de classes brasileira.

Esta estrutura foi composta assim, conforme já dito, por um enorme exército

industrial de reserva, resultante do tipo de industrialização e da intensa concentração de

capital; por uma fração operária relativamente pequena e uma significativa fração da classe

média.

35
Oliveira (1982).
87

Por fim, Oliveira (1982) afirma que a ação do Estado como agente potencializador

do capital privado e a sua transformação em árbitro da distribuição do excedente social entre

os oligopólios, associada ao privilegiamento das demandas da classe média nos investimentos

em urbanização, resultou em forte polarização entre o próprio Estado e os não proprietários.

A análise de Oliveira permite ver que, para assegurar a manutenção de um forte

vínculo da economia nacional com os movimentos geopolíticos das potências mundiais, o

Estado brasileiro atuou, a partir deste período, no sentido da adaptação do conjunto da

sociedade e, especialmente das classes trabalhadoras, às exigências imperialistas e das

grandes corporações. Esta atuação provocou o acirramento das disputas entre as classes

sociais e frações de classe pela apropriação dos recursos públicos e outros benefícios

concentrados nas mãos do Estado.

Reiteramos, todavia, conforme aludido no capítulo anterior, que partimos do

entendimento de que as contradições sociais urbanas não estão inscritas apenas no âmago do

Estado, mas, conforme afirma Bezerra de Farias, inscrevem-se

“[...] entre as necessidades objetivas de reprodução do capital social total, em


condição de imperialismo, no quadro da economia mundial capitalista, em
condição de desenvolvimento desigual e combinado e a dificuldade concreta
de materializar esta reprodução no contexto do espaço econômico
periférico”. (FARIAS, 1991, p. 61)

Esta angulação teórica permite apreender o processo brasileiro de industrialização

como um fenômeno particular, inscrito no movimento mais amplo da acumulação em escala

mundial, cujas marcas históricas tendem a se aprofundar na conjuntura atual. Entre estas

marcas, destacamos o lugar subalterno ocupado pelo país na organização do sistema

capitalista e a forma socialmente excludente de estruturação do mercado de trabalho urbano.

O alto grau de espoliação e de exploração do proletariado e suas debilidades

organizativas são algumas das resultantes dessas marcas históricas. À combinação destes
88

processos, pode ser atribuído o fato de os trabalhadores não conseguirem garantir, frente à

burguesia e ao Estado, as condições necessárias à sua reprodução.

Vilmar Farias (1991), a este respeito, ressalta que o processo de urbanização

brasileira produziu uma gigantesca concentração demográfica nas grandes cidades e

metrópoles. Criou e concentrou riquezas, mas não levou à plena institucionalização das

relações de trabalho, capaz de absorver os contingentes populacionais expulsos do campo.

Com isso, foi gerada uma constante população excedente, sujeita a acintosos processos de

espoliação urbana36 e, ao mesmo tempo e pelo mesmo processo, produziu-se uma enorme

pujança econômica, concentrada em ilhas de prosperidade. Na opinião do autor,

[...] a sociedade urbana brasileira resultante do processo de crescimento,


urbanização e mudança dos últimos trinta anos apresenta-se, estruturalmente,
com uma sociedade complexa, espacial, ocupacional e socialmente
diversificada, unificada mas heterogênea, segmentada, e, sobretudo,
profundamente desigual [...] (FARIAS,1991, p.105).

A estruturação da desigual, excludente e concentracionista sociedade urbana

brasileira tem, ao longo da história, provocado, como sua contra-face, a fermentação de

mobilizações sociais que denotam a luta dos segmentos sociais não incluídos pela imposição

de sua presença na cidade. A Região Metropolitana de São Paulo expressa, de forma

emblemática, esta dinâmica social.

36
Espoliação urbana é conceituada por como “o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou
precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos
níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapide ação que se realiza no âmbito das relações de
trabalho” (KOWARICK, p. 59, 1980).
89

2.2. A REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO

Conforme explicitamos anteriormente, o processo de urbanização brasileiro é

marcado por imensas desigualdades na apropriação dos resultados da produção da riqueza.

Uma expressão desta desigualdade encontra-se no fato de que parte relevante da economia

nacional concentra-se numa só região e, especialmente, num só estado. A posição ocupada

pelo estado de São Paulo, na dinâmica da economia nacional deve ser compreendida à luz da

apreensão das relações entre o Estado e o urbano no Brasil, posto que o Estado brasileiro foi,

conforme descrito, o grande protagonista da concentração sócio-econômica ocorrida no país.

Este protagonismo manifestou-se desde a estruturação do complexo cafeeiro, sendo

fortalecido durante o primeiro surto de industrialização ocorrido no pós trinta, até o ciclo

expansivo promovido pelo regime militar, entre o final dos anos 60 e o início dos anos 70.

2.2.1 RMSP: Características Principais

O estado de São Paulo possui três grandes regiões metropolitanas: a Região

Metropolitana de São Paulo (RMSP), a Região Metropolitana da Baixada Santista (RMBS) e

a Região Metropolitana de Campinas (RMC). Juntas, elas concentram 21,5 milhões de

habitantes e 23% do PIB nacional37.

A RMSP, a mais antiga de todas as regiões do Estado, foi criada em 1973. A

concentração industrial faz com que o PIB por habitante na RMSP38 seja maior do que o

prevalecente no restante das regiões do país39. Só na Região Metropolitana de São Paulo

37
Fonte: EMPLASA / Secretaria de Estado Economia e Planejamento do Estado de São Paulo.
www.emplasa.sp.gov.br
38
De acordo com a EMPLASA (2000), o Produto Interno Bruto (PIB) da região atingiu, em 2000, algo em torno
de US$ 99,1 bilhões, o que corresponda cerca de 16,7% do total brasileiro. A renda per capita atingiu US$ 5
545.
39
Ver Campário e Kowarick (1988).
90

concentrava-se, na década de 90, “[...] um valor de produção industrial equivalente ao de nove

estados nordestinos somados aos três estados da região Sul” (NETO, 1995, p.23).

Epicentro do processo de a acumulação no Brasil, a Região Metropolitana de São

Paulo (RMSP) consolidou-se, particularmente, após os anos 30, como o pólo mais dinâmico

do país, em decorrência da forte concentração industrial, uma vez que nela se localizam as

sedes brasileiras dos mais importantes complexos industriais, comerciais e financeiros, bem

como, uma série de serviços necessários à agilização da circulação das mercadorias, tais

como: planejamento, publicidade, marketing, seguros, finanças e consultorias. Em pouco

tempo, transformou-se, também, na mais importante área metropolitana da América Latina.

A área da Grande São Paulo é, atualmente, formada por 39 municípios, com

17.879 habitantes. Destes, 61% moram no município de São Paulo40. Em quinze anos, a

mancha urbana foi ampliada em 436km². Este crescimento físico-espacial resultou,

fundamentalmente, do vertiginoso processo de produção e de circulação de capital

concentrado na região e da intensidade dos fluxos migratórios, sendo consolidada a

periferização dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora.

O exponencial crescimento regional e a sua consolide ação como área concentrada

da industrialização brasileira e pólo mais dinâmico do país e da América Latina têm se

concretizado à custa da pauperização de parcela significativa da classe trabalhadora, o que

explica o fato da região ser considerada como herdeira e caudatária da modalidade

dependente, concentracionista, excludente e iníqua de industrialização implantada no país.

O declínio da posição do Rio de Janeiro como centro hegemônico da economia e

da política nacional e o processo de concentração econômica e populacional no Estado de São

Paulo, com destaque para o crescimento industrial na área metropolitana, só veio a ocorrer a

partir de 1930.

40
Fonte: IBGE, Censo Demográfico.
91

Com a crise mundial, a partir da década de 30, e suas repercussões sobre o setor

agrário-exportador e o posterior estrangulamento deste setor, decorrente da Segunda Guerra

Mundial, o processo de industrialização ganha uma nova dinâmica, o que transforma as

cidades da região Sudeste e Sul em sedes do desenvolvimento industrial.

O parque industrial nacional, situado de forma concentrada no eixo Rio - São

Paulo recebeu grande quantidade de contingentes populacionais oriundos do meio rural,

devido ao êxodo provocado pela desagregação das relações de trabalho, organizadas à época

do predomínio do café. Entretanto, a consolide ação da posição hegemônica da economia

paulistana no contexto da economia nacional, relaciona-se à Grande Depressão de 1929 e à

busca de superação de suas conseqüências sobre a economia brasileira. Detentor, já nesta

data, de avançada incorporação das relações capitalistas de produção, de amplo mercado

interno e, mesmo excluído o café, de agricultura mercantil desenvolvida, o estado de São

Paulo estruturou uma expansão industrial diversificada e concentradora. Esta predominância41

deve-se, também, ao papel desempenhado, desde o primeiro surto de industrialização ocorrido

no final do século pelo trabalhador imigrante, que contribuiu, decisivamente, para o rápido

crescimento populacional da cidade de São Paulo.

Bógus (1992) demonstra que estes movimentos migratórios foram importantes,

não só para a consolide ação da posição ocupada pela região metropolitana paulista na

economia nacional, mas também, na conformação do padrão periférico de estruturação intra-

urbana. As raízes da segregação da população pobre em determinadas áreas da cidade de São

Paulo podem ser encontradas, de acordo com a autora, nas condições criadas pela produção

fabril.

A tendência à concentração das unidades produtivas da economia nacional no

Sudeste – especialmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – é, segundo a

41
Ver Bógus (1992).
92

interpretação de Schimdt e Farret (1996), subsidiada pelo valor produzido no restante do

território nacional, já que a política de substituição de importações obrigava a compra de

produtos de indústrias nacionais, apesar de estes produtos serem mais caros do que os

produtos estrangeiros, o que permitiu a pujança econômica do Sudeste.

Acrescenta-se a este determinante, a posterior intervenção estatal por meio da

aplicação do Plano de Metas – amplo programa de desenvolvimento que previa maciços

investimentos em diversos setores da economia – que entre os seus objetivos visou tornar o

Brasil um país atraente aos investimentos estrangeiros. O expressivo ingresso de capital

externo, ocorrido no período, foi responsável por grande crescimento da produção industrial

nos setores automobilístico, químico-farmacêutico e de eletrodomésticos. Esta política

acentuou a concentração do parque industrial na região Sudeste, particularmente na RMSP, o

que gerou o agravamento dos contrastes e das desigualdades regionais.

Durante o período compreendido entre os anos 1960 a 1980, manifestaram-se, na

Região Metropolitana de São Paulo, profundas alterações nos processos e nas relações de

trabalho, que asseguraram a continuidade de sua predominância econômica. O elevado grau

de concentração da produção industrial na Região potencializou a convergência dos fluxos

migratórios, o que a erigiu como a mais importante área metropolitana da América Latina.

Campanário e Kowarick (1988) explicam o padrão concentrado de a acumulação

implantado no país, a partir do período conhecido como milagre econômico, pela existência,

na região, das seguintes vantagens locativas:

- uma rede de serviços e infra-estrutura bem provida;

- indústrias fornecedoras de insumos;

- proximidade de mercados consumidores;

- abundante oferta de mão de obra, inclusive especializada.


93

A existência de mão de obra especializada é, segundo os autores, “[...] fator de

crucial importância para fazer girar um sistema produtivo que avançava no sentido de

apresentar, do ponto vista tecnológico e organizacional, as características de um capitalismo

moderno”. (CAMPÁRIO; KOWARICK, 1988, p.35).

Estas mudanças implicaram, não só na subordinação da agricultura à indústria,

com base numa forte concentração de terra e da propriedade e a expulsão da população

campesina, como também, favoreceram o desenvolvimento mais acentuado do setor

secundário, com a industrialização pesada constituindo um parque produtor diversificado, em

que os ramos tradicionais foram perdendo peso relativo. Neste contexto, intensificou-se o

processo de urbanização no país.

Como resultado do aumento do emprego industrial e dos índices de crescimento

econômico registrados na década de 70, foram criadas inúmeras atividades econômicas e

novas ocupações de natureza urbana, fundamentais para a expansão concentrada (e

concentradora) do mercado de consumo e de trabalho na RMSP. Ademais, formou-se na

Região, uma vasta classe média, que desenvolveu novos padrões culturais e hábitos de

consumo, difundidos para o restante do país. Trata-se, sem dúvida, considerando-se as

singularidades da formação social brasileira, da difusão limitada dos princípios de uma

sociedade de consumo e de massas.

A partir dessa década, ocorreu, também, a interiorização da indústria, devido ao

aumento do controle sobre as fontes poluidoras do ambiente e a valorização dos terrenos

adequados à expansão industrial. Na capital paulistana, permaneceram indústrias de alta

tecnologia, não poluentes, e segmentos da tradicional indústria de bens de consumo. Esta

reestruturação das atividades econômicas influiu na mudança do percurso de parcela da

população migrante, pois contribuiu para a sua retenção no interior do estado e, portanto, para

o não ingresso de imigrantes de outros estados e municípios na região metropolitana.


94

Na metrópole, migrantes vindos de diversas regiões do país, principalmente do

Nordeste, passaram a ocupar loteamentos periféricos ainda mais distantes do centro da capital

paulista. O preço da moradia nas zonas centrais e a atuação do Estado, em benefício dos

interesses do setor imobiliário, acarretaram a segregação residencial desta parcela da classe

trabalhadora. Em 1980, a população migrante representava 56% da população total do estado.

Os maiores percentuais localizavam-se nos municípios de base industrial e nas cidades

dormitórios. Bógus (1992) ressalta que grande parte das famílias da Região Metropolitana de

São Paulo vivenciou, ao longo desta década, as conseqüências do deslocamento no mercado

de trabalho e no espaço urbano, rumando para a periferia e, possivelmente, para o interior do

estado42.

No final dos anos 70, em meio ao esgotamento do chamado milagre econômico e

frente às conseqüências da crise no padrão de financiamento internacional da industrialização,

interrompeu-se o ciclo de crescimento da economia nacional e teve início um longo período

de estagnação da economia metropolitana. Abriu-se, então, durante a década de 80, um

período de graves dificuldades, quando se alternaram conjunturas de recessão e crise, com

exceção dos poucos anos de crescimento sob a influência do Plano Cruzado, o que fez com

que o processo de redemocratização da sociedade brasileira tenha convivido com uma penosa

situação econômica e social.

A RMSP sofreu, de forma mais aguda, os efeitos dessa crise. A redução do

financiamento público, devido à crise aberta pelo crescimento da dívida externa, em meio a

acentuado recrudescimento do processo inflacionário, levou a uma drástica retração da

produção industrial, com graves repercussões sociais43. Ao final da década de 80, iniciou-se o

42 A autora, com base na análise dos dados do censo de 1991, refuta a opinião dautores que apontavam para a
tendência ao esgotamento do padrão periférico da expansão urbana e para o retorno da população pobre para
cortiços no centro, mostrando que este padrão se mantém, assim como permanece, também, o padrão segregador
de expansão da metrópole.
43
A taxa média de crescimento do PIB caiu, durante a década, para 2,1% e o PIB industrial para 1%. Ver Cano
(1993).
95

processo de desconcentração industrial, que atinge seu apogeu na década seguinte. No

próximo item, analisaremos este processo, com vistas à apreensão de suas determinações

históricas e conjunturais e de seus efeitos específicos sobre a questão habitacional.

2.2.2 A RMSP no Contexto da Crise

As alterações ocorridas, entre os anos 70 e 80 na economia internacional,

passaram a requerer maior competitividade da produção nacional frente às exigências do

mercado, cada vez mais mundializado. Devido a essas exigências, foram promovidas

profundas mudanças no modelo econômico, assentado no processo substitutivo de

importações e em forte protecionismo estatal.

As transformações estruturais no aparato produtivo e no mercado de trabalho,

promovidas na década de 90, coadunavam-se, assim, às transformações em curso em âmbito

internacional nos anos 70 e 80, especialmente, nos Estados Unidos e na Europa. Estas

mudanças constituíram parte importante do ajuste da economia brasileira à crise geral do

ordenamento capitalista. Como forma de reação à crise, fomentaram-se os setores adaptáveis

à acumulação flexível e à internacionalização maciça, o que só veio a ser sentido com mais

intensidade, conforme referido, na década de 90, quando a região torna-se impulsionadora de

mudanças estruturais na economia brasileira.

Com a abertura e a desregulamentação da economia, a RMSP sofreu os primeiros

efeitos do processo da reestruturação produtiva, identificáveis nas mudanças significativas em

sua composição econômica e social. Muito embora estas mudanças acompanhem os

movimentos da reestruturação capitalista, na escala nacional, assumem algumas

particularidades no contexto sócio-espacial conformado pela região.

A cidade de São Paulo – núcleo da RMSP – constitui-se, atualmente, em um

centro muito dinâmico de valorização do capital e em lugar por excelência da violência e da


96

pobreza. Considerada a metrópole brasileira que integra a cadeia das cidades globais – por

meio das quais se realiza o comando e o controle do mercado capitalista em âmbito mundial –

nela se centraliza a gestão do sistema financeiro nacional e, inclusive, do sistema bancário.

A concentração do sistema bancário na região propiciou a criação e o

desenvolvimento de novos serviços e, especialmente, as atividades ligadas às tecnologias de

informação e comunicação e à gestão dos negócios empresariais e financeiros. Esta

centralização tem sido possibilitada, sobretudo, pela expansão das redes de telecomunicações,

o que tem assegurado à metrópole paulista a possibilidade de se afirmar como elo de

integração do país ao sistema econômico mundial e como pólo de integração do território

nacional. Afinal, nela se concentraram, historicamente, as condições mais propícias à

circulação e à valorização do capital.

De acordo com a Pesquisa de Atividade Econômica realizada em 1996 pela

SEADE, podem ser observadas na região, em meados dos anos 90, mais permanências que

rupturas. Prevalece a alta concentração do valor de produção nas grandes empresas dos

principais gêneros que, em grande medida, consolidaram, na década de 70, a matriz da

industrialização tardia brasileira – as indústrias de bens intermediários, de bens de capital e de

consumo duráveis. Em verdade, o esforço de modernização desenvolvido na última década

teria ampliado o já alto grau de heterogeneidade estrutural que caracteriza a industrialização

brasileira.

Em termos de pessoal ocupado, os setores mais importantes são formados pelos

complexos metal-mecânico, químico e eletroeletrônico, seguidos por aqueles considerados

mais tradicionais, como têxtil e de alimentos. Por outro lado, os setores extrativos, de

minerais não-metálicos e de refino de petróleo e álcool, por estarem muito vinculados às


97

fontes de matéria-prima, estão entre os menos importantes na estrutura do emprego na

região44.

Com efeito, a reestruturação produtiva em curso no país, acelerada a partir dos

anos 90, não descaracterizou a Região Metropolitana como epicentro da economia do país. A

tendência à desindustrialização foi acompanhada do fortalecimento de seu papel de principal

centro financeiro e de grande prestador de serviços produtivos.

Muito embora os indicadores mostrem a perda relativa da participação do Estado

de São Paulo e da Região Metropolitana na distribuição da produção industrial do país, as

maiores indústrias se encontram localizadas na região. Os deslocamentos ocorridos não

alteraram, substancialmente, a posição ocupada pela região na economia nacional porque as

indústrias interiorizadas, como as indústrias de caráter tradicional, mantiveram a proximidade

geográfica com a metrópole. Outras, deslocadas para outros estados, pela busca de vantagens

fiscais e do barateamento dos custos de produção, ainda mantêm seus centros de gestão e

planejamento na grande metrópole paulista.

Das unidades criadas entre 1990 e 1996, 53% instalaram-se na Região

Metropolitana, 46% no interior do Estado (concentradas num raio de 100 km de São Paulo),

18% em outros estados, 2% no Mercosul e 1% em outros países45.

Ao contrário, portanto, do que fora sinalizado por alguns estudos46 elaborados na

década de 90, a região não deixou de ser o principal pólo de concentração dos investimentos

44
A RMSP ainda concentra fatia importante da produção industrial estadual. A estrutura industrial da região, em
função de seu alto grau de concentração, acompanha a hierarquia existente entre as principais divisões da
indústria de transformação do Estado. Destacam-se, quer pelo valor adicionado, quer pelo montante de pessoal
ocupado, os setores: químico (15,3% do VA e 8,2% do PO regional); montagens de veículos automotores
(12,6% do VA e 9,7% do PO regional); máquinas e equipamentos (10,5% do VA e 9,5% do PO regional);
edição, impressão e reprodução de gravações (9,8% do VA e 6,1% do PO regional); e alimentos e bebidas (7,7%
do VA e 7,5% do PO regional). Somados, estes setores representam 55,9% do valor adicionado, 41% do pessoal
ocupado e 31,6% das unidades locais existentes na RMSP. Fonte: Funde ação Seade. Pesquisa da Atividade
Econômica Paulista - Paep. 1996.
45
Ver em Branco (2000).
46
Para analisar as mudanças espaciais da indústria brasileira no Brasil nos anos noventa consultar Sabóia
(1999), Andrade e Serra (1999) e Cano (1997).
98

industriais. De fato, o que ocorreu foi uma drástica redução do emprego industrial. Só no

período entre 1989 e 1996, houve redução de um terço do emprego na indústria47.

Sabóia (1999), por exemplo, afirma que a redução do emprego na indústria não

deve ser compreendida como sinônimo de perda de dinamismo industrial. Ao contrário, entre

1989 e 1999, observou-se a redução do emprego industrial em 25,1% e o simultâneo

crescimento do número de estabelecimentos em todas as regiões do Estado de São Paulo,

inclusive na RMSP. Ou seja: a redução do emprego industrial com a introdução de novos

métodos de organização do trabalho resultou em aumento da competitividade e na busca de

maiores ganhos em produtividade48. O autor observa, também, que a combinação entre

aumento de produtividade e parco crescimento econômico foi responsável pela grande queda

do emprego na região.

A dinâmica econômica derivada da reestruturação produtiva em curso tem gerado,

conforme referido, conseqüências sociais dramáticas, que atingem a maioria dos habitantes da

RMSP. Somada à péssima distribuição de renda do país, a deterioração das condições de

acesso ao mercado de trabalho, mostrou-se mais desfavorável aos segmentos mais

pauperizados da classe trabalhadora. São numerosos os determinantes da grande precarização

social na região: desde as condições históricas de reprodução dos trabalhadores até a

desresponsabilização do Estado com políticas públicas, assim como o desemprego ocasionado

pela chamada reconversão produtiva.

Os efeitos destas mudanças na dinâmica do mercado de trabalho podem ser assim

observados; a principal redução dos postos de trabalho se deu, conforme mencionado, no setor

industrial. Ao mesmo tempo, houve a ampliação das ocupações no setor serviços,

47
Em 1989, a população empregada na indústria da RMSP representava 33% da PEA; em 1999 a proporção caiu
para 19% e essa queda foi mais acentuada no setor metal-mecânico, que passa de 14% a 7% nesse período. Os
serviços representam cerca de 53% dos empregos em 1999, contra 41% em 1989. O aumento se concentrou nos
serviços especializados. Em 2000, para o Município de São Paulo, os serviços mais especializados
representavam cerca de 60% dos empregos, particularmente nas zonas sudoeste, sudeste e norte. Na capital, a
indústria representa 18,2% dos empregos e o comércio soma 16,7% (dados da Funde ação Seade/Dieese, 2000).
99

especialmente nos serviços relacionados à produção e nos pessoais, domésticos49. Ademais, o

mercado de trabalho tem favorecido, principalmente, aos mais escolarizados e qualificados, o

que, conjugado aos fatores citados, contribui para o empobrecimento, o aumento do trabalho

feminino, inclusive, o aumento do número de mulheres chefes de família50, bem como para a

participação dos filhos menores na obtenção de renda.

Gráfico 1

RMSP- Estrutura do emprego, por gênero e grau de instrução –1990 e 2002

Fonte: SISE/SGGE/Fundap

48
Ver Pesquisa de atividade Econômica (1996).
49
As ocupações do setor terciário, que respondiam por cerca de 60% da estrutura ocupacional metropolitana, em
1988, atingiram cerca de 79 %, em 1999.
50
“[...] A expansão da ocupação nos serviços, inclusive no âmbito doméstico e no comércio, possibilitou uma
maior inserção das mulheres no mercado de trabalho, por serem setores em que elas tradicionalmente atuam.
Mas a participação da mulher também cresceu e se tornou majoritária em ocupações tradicionalmente ocupadas
por homens, tais como cirurgia dentária (58%), matemática (57%), estatística (55%), biologia (51%) e escritores
e redatores (51%). A participação das mulheres cresceu principalmente na faixa etária inferior a 40 anos e em
ocupações que exigem maior grau de escolaridade. Entre os homens, a redução do emprego dá-se principalmente
entre os trabalhadores jovens com menor grau de escolaridade” . SISE/ SGGE/Fundap (2002).
100

Cabe sublinhar, também, a predominância, na RMSP, de ocupações de nível

básico, sem qualificação, com menores remunerações e crescentemente precarizadas. Em

termos absolutos, as ocupações que mais cresceram na região foram: serviço doméstico,

vigilância privada, atendente de serviços, atendente balconista, motorista. Por outro lado, a

introdução das novas tecnologias nos processos de trabalho em diversos setores industriais51

ocasionou a diminuição das ocupações ligadas à indústria de transformação.

Conforme estamos procurando demonstrar, essas mudanças no mercado de

trabalho são expressivas de profundas alterações no setor produtivo da economia nacional.

Entre seus efeitos principais, dois chamam mais a nossa atenção: o aumento da segmentação e

da heterogeneidade da classe trabalhadora e o aumento significativo dos contingentes mais

pauperizados.

Segundo Rocha, distintamente do observado em passado recente, o crescimento

do número de pobres ocorre no centro mais dinâmico do país – na RMSP. Este crescimento

está associado, fundamentalmente, à falta de emprego e à precarização da relação de trabalho.

Na opinião da autora, tem ocorrido o aumento de “[...] um amplo contingente de pobres

estruturais, dentre os quais se incluem – em função dos baixos rendimentos na base da

distribuição – mesmo aqueles que participam normalmente no mercado de trabalho”

(ROCHA, 2001, p.5) 52.

Brandão e Januzzi (1985) fornecem informações que ajudam a situar, de forma

ainda mais precisa, a análise destes processos. Estes autores, ao demonstrarem os efeitos do

processo de reconversão produtiva nos níveis de pobreza da população paulistana chamam a

atenção para o caráter extremamente perverso das alterações na organização da economia.

Primeiro: as famílias mais afetadas pela redução de renda foram as que, em 1990, possuíam os

51
Fonte: SISE/ SGGE/Fundap (2002).
52
A autora exemplifica esta situação com a RMSP, onde, com o salário mínimo de R$151,00 e a linha de
pobreza per capita mensal estimada para a região na ordem de R$167,00 (set. 1999), um indivíduo que receba
dois salários mínimos e tenha um filho estará situado abaixo da linha de pobreza.
101

menores patamares de rendimento. Segundo: houve aumento da desigualdade entre os

rendimentos auferidos pelas famílias situadas nos extremos da distribuição de renda, o que

indica que houve crescimento do número de famílias posicionadas abaixo da linha de pobreza.

Enquanto que os 5% mais ricos conseguiram obter aumento de 1% no valor real de sua renda

per capta, entre os mais pobres, o decréscimo da renda per capta média atingiu 42%, passando

de R$ 33,00 em junho de 1990, para R$ 19,00 em julho de 1994.

Nos anos subseqüentes, as desigualdades sociais tornam-se ainda mais agudas,

conforme demonstram os resultados parciais da pesquisa realizada pelos autores. Ao final da

década de 90, a renda familiar continuou a trajetória descendente iniciada em 1996. Em 1998,

a renda familiar total era estimada em 1.693 reais, tendo passado para pouco mais de 1.500

reais em setembro de 2000. Esta queda de cerca de 11% na renda familiar deu-se em

decorrência da diminuição do valor real dos rendimentos do trabalho, já que estes respondem

por quase 80% do total auferido pelas famílias residentes na metrópole paulista. Além da

queda de 10% da renda do trabalho, também contribuíram para a diminuição da renda familiar

o decréscimo de 5% no valor real das aposentadorias e pensões da Previdência, assim como a

redução do nível médio do conjunto das rendas provenientes de outras fontes (poupança,

aluguéis, doação de terceiros), as transferências governamentais e outros. Por outro lado,

houve queda da taxa de desemprego – de 19% para 17% da população economicamente ativa

no período –, o que interrompeu a trajetória ascendente do indicador, desde 1994. Este foi,

segundo os autores, um dos poucos fatores a atuar contra a diminuição do nível médio da

renda familiar.

A renda familiar per capita apresentou uma queda de 5%, o que representa uma

redução menor, com relação à observada em períodos anteriores. Segundo os autores, esta

redução relativa é conseqüência da diminuição do tamanho médio das famílias da Região

Metropolitana de São Paulo, seja pela queda da fecundidade, seja pelo crescimento de
102

arranjos familiares unipessoais, casais sem filhos e famílias monoparentais. A análise do

indicador, segundo percentis de renda, evidencia que as famílias de maior poder aquisitivo

conseguiram escapar à queda de rendimentos apontada, mantendo o valor real da renda frente

à inflação do período (16,1% acumulada nos dois anos). Entre os 10% das famílias mais

pobres, à redução da renda per capita foi da ordem de 5%, provocando uma forte pressão

sobre os níveis de indigência e pobreza existentes na região; “A julgar pelo comportamento da

renda média das 25% mais ricas e 25% mais pobres, as famílias situadas nos percentis

intermediários é que vieram a sofrer maior queda dos níveis de rendimento, certamente

superiores a redução média observada (5%)" (JANNUZI; FERREIRA, p.35, 2001).

Em contrapartida, em 2000, na RMSP, as famílias mais ricas (10% do total)

passaram a responder por 38% da massa de renda familiar, quando, ainda em 1998,

apropriavam-se de cerca de 36%. Para as famílias mais pobres, considerando-se os 10% com

renda mais baixa, coube 1% da massa de renda total no período. Quando se toma segmentos

numericamente mais expressivos, constata-se que para a metade das famílias mais pobres da

região, não coube mais do que 18% do total da renda, ao final dos anos 90.

Segundo Cunha e Dedeca (2001), as alterações demográficas detectadas na região

devem-se, provavelmente, ao aumento da pauperização e da concentração de renda. Os dados

a seguir, demonstram que a interrupção do crescimento populacional, que teve na redução dos

fluxos migratórios um fator decisivo, representa, sem dúvida, uma forte expressão da natureza

e do caráter perverso das transformações sócio-econômicas em curso.

A Grande São Paulo teve, na década de 60, crescimento populacional de 5,53% ao

ano e, na década de 70, de 4,46%. Entre os anos 80 e 91, a diminuição no ritmo de

crescimento atingiu a taxa de 1,87% ao ano, e entre os anos 1991 e 1996, a taxa de

crescimento urbano decresceu ainda mais, chegando a 1,40% 53.

53
Dados de Taschner (1986).
103

A capital de São Paulo, também, vem apresentando redução em sua taxa de

crescimento populacional, que passou de taxas de 6,1% a.a., nos anos 50 e 60, a taxas de 1,2%

a.a.. na década de 80 e a 0,34%, de 1991 a 1996 (IBGE). Em contrapartida, os outros

municípios da região tiveram crescimento de 3,08% ao ano, entre 91 e 96, e de 3,20% ao ano,

na década de 80. Ou seja: ocorre desde a década de 80 uma forte redução do saldo migratório

para a capital do estado e um conseqüente deslocamento populacional para o entorno

metropolitano. Nas cidades da periferia da região tem havido intenso crescimento

populacional, elevando para cerca de 40% seu peso na população total da metrópole, enquanto

o Município de São Paulo, que já representou 72% em 1970, hoje concentra cerca de 60% dos

habitantes da RMSP. Migrantes, pertencentes aos segmentos pauperizados da classe

trabalhadora, dirigem-se às periferias da metrópole, em busca de moradia, o que acarreta a

formação de zonas densamente povoadas e com alojamentos e outras condições de

habitabilidade extremamente precárias.

Por outro lado, a RMSP retém cada vez menos a população que recebe. Muito

embora esta seja ainda a principal porta de entrada dos migrantes que se dirigem para o estado

de São Paulo, esse papel tem sido, atualmente, compartilhado com outras áreas.

Dedeca e Cunha (2001) ressaltam, também, a importância do crescimento da

emigração, marcada, em especial, por movimentos de retorno dos migrantes, aos seus estados

de origem. De acordo com suas análises, estas novas características se vinculam à perda da

capacidade da região de absorver novos fluxos migratórios, especialmente no mercado de

trabalho54.

Os autores refutam a noção de que a migração possa ser tomada como raiz da

atual situação de trabalho na Região Metropolitana. Argumentam que, na verdade, é a

ausência de capacidade de absorção do mercado de trabalho que empurra os migrantes para as

54
A análise por regiões mostra que o crescimento do desemprego no Brasil teve uma distribuição desigual,
tendendo a concentrar-se nos principais centros industriais. Ver Sabóia (2001).
104

periferias e, também, para as posições mais precárias do mercado de trabalho local. Além do

que,

As novas características do processo de absorção do migrante não sugerem a


ocorrência de mobilidade ocupacional, que pudesse permitir, mesmo a longo
prazo, alguma perspectiva de inserção em segmentos econômicos mas
dinâmicos, nos quais o trabalho conta com alguma proteção social. As
evidências empíricas apresentadas com base nos dados das PNAD's 92, 95 e
98, além de fornecerem um quadro amplo e atualizado das tendências
migratórias da região, permitem contribuir para desmistificar o impacto ou
conseqüência da migração para o mercado de trabalho da região, que, via de
regra, o senso comum considera negativa (CUNHA; DEDECA, 2001, p.2).

Segundo os autores, a retração econômica e seus efeitos obstaculizadores da

mobilidade social têm dificultado as possibilidades de inserção do migrante no mercado de

trabalho formal. Assim, as chances de inserção do trabalhador migrante acabam restritas aos

estratos mais precários do mercado, o que não significa que estes trabalhadores não sejam

imprescindíveis para a dinâmica metropolitana55, ao contrário, confirma a importância destes

na composição da estrutura ocupacional da região.

Na verdade, este tem sido o papel desempenhado historicamente pela migração na

consolide ação da principal metrópole do país, desde a expansão industrial do pós 30, quando

levas crescentes de trabalhadores garantiram ao capital, abundância de força de trabalho, a

baixo preço.

Estudos recentes de Tashner (2003), também, chamam a atenção para a mudança

demográfica que vem acontecendo na região. A autora demonstra que o fato de muitas

indústrias repassarem suas plantas industriais para outros núcleos urbanos do estado,

associado ao desemprego industrial e ao aumento do preço da moradia, tem acarretado

deslocamentos populacionais do município central para os municípios do entorno e para o

interior. De acordo com a autora, a região do estado que mais cresceu no início da década de

55
“De fato, a sensação de serem "pau pra toda obra" é o que fica evidente nos dados analisados para os
migrantes metropolitanos e que, portanto, não se poda eles imputar a responsabilidade da desestabilização do
mercado de trabalho local”. (CUNHA; DEDECA, p.2, 2001).
105

90 foi aquela composta pelos municípios da Grande São Paulo, atingindo um saldo migratório

de 440 mil pessoas. A capital do estado cresce, portanto, a um ritmo menor do que aquele do

seu entorno.

Guarulhos, cidade da RMSP onde se localiza o acampamento do Movimento dos

Trabalhadores Sem Teto, estudado nesta tese, foi a cidade paulista com maior crescimento

populacional entre 1991 e 1996.

Esta alteração na intensidade, direção e, especialmente, na capacidade de absorção

do migrante na região é vista por Martins como uma manifestação do esgotamento da

capacidade ressocializadora das grandes cidades. De acordo com o autor, nas grandes

metrópoles “[...] a excludência vem se transformando num modo de vida” (MARTINS, 2002,

p.149), porque o que era antes vivido como transitório, hoje perde o sentido da esperança

dascensão social, inclusive no que concerne ao acesso a direitos sociais e políticos.

Assim, para o autor, as migrações hoje tendem a desagregar sem transformar,

“dessocializam, mas não ressocializam, não preparam [...] para uma nova sociabilidade mais

rica e humanizadora” (MARTINS, 2002, p. 144). A migração interna teria passado a

representar, não a possibilidade de alcance de uma nova vida, mas a tentativa, em geral

movida pelo desalento, e não pela esperança de arranjar algum emprego na grande cidade.

Boa parte das vezes, porém, encontra-se, não um emprego, mas alguma estratégia de

sobrevivência, o que faz com que o migrante se sujeite a situações de “[...] anomia, de

supressão de normas e valores de referência” (MARTINS, 2002, p. 144).

As reflexões e análises apresentadas nos possibilitam considerar, para os fins a

que se destina esta pesquisa, que os fenômenos em curso na RMSP expressam, de forma

emblemática, a extrema, contínua e crescente concentração de renda, riqueza e propriedade na

sociedade brasileira, particularmente nos últimos vinte anos. Fruto deste modelo

concentracionista, a pobreza no país tenda, cada vez mais, urbanizar-se, o que demonstra a
106

existência de íntima relação entre o pauperismo crescente e as mudanças no mercado urbano

de trabalho, no período atual, uma vez que a posição que os indivíduos ocupam na estrutura

sócio-ocupacional e a sua participação na distribuição dos meios de produção determinam, em

larga medida, seu nível de renda e suas possibilidades de acesso aos bens e equipamentos

urbanos. Todavia, há que se levar em conta que o ajuste fiscal praticado pelos últimos

governos tem, igualmente, contribuído para o significativo aumento do número de pessoas

sem garantias de reprodução de sua força de trabalho, daí a importância de estudos que

redimensionam a discussão sobre a pobreza, com vistas a articular a existência deste

fenômeno aos mecanismos que a produzem e reproduzem.

Iamamoto esclarece que a existência e a ampliação de um contingente

populacional, sem garantia de reprodução de sua força de trabalho, são expressivas do

agravamento atual da questão social na sociedade capitalista, cujos determinantes podem ser

assim sintetizados:

[...] o crescimento da força de trabalho disponível é impulsionado pelas


mesmas causas que a força expansiva do capital, expressando a lei geral da
acumulação capitalista. Esta é modificada em sua realização pelas mais
variadas circunstâncias, fruto do aperfeiçoamento dos meios de produção e
do desenvolvimento da produtividade do trabalho social mais rápido do que
a população trabalhadora produtiva. Gerando, assim, uma acumulação da
miséria relativa à acumulação do capital, encontra-se aí a raiz da
produção/reprodução da questão social na sociedade capitalista.
(IAMAMOTO, 2001, p.15).

Com efeito, a atual reestruturação produtiva, particularmente nos países

periféricos, articulada à financeirização da economia e a mudanças no papel do Estado, ao

acarretarem uma perversa associação entre aumento da exploração do trabalho e diminuição

dos direitos sociais, contribuem para agudizar a exploração e o pauperismo, levando ao

acirramento das contradições e antagonismos sociais – próprios da natureza da sociedade

burguesa.
107

As grandes metrópoles contemporâneas, conforme visto no capítulo anterior,

constituem o lugar privilegiado das expressões e conseqüências mais intensas dos processos

de reestruturação da produção capitalista. Como as alterações na conformação do espaço

urbano se dão de modo contínuo e cumulativo, cada fase carrega resquícios, memórias das

fases pretéritas e absorvem, de modo seletivo, um conjunto de atualizações, em geral muito

pronunciadas e de elevado custo social56, o que tem inclusive favorecido a configuração de

ambientes cada vez mais degradados e violentos. Esses rearranjos espaciais espelham e, ao

mesmo tempo, condicionam mudanças na produção, na política de investimento, no consumo

e na luta entre as classes sociais.

O que tem sido constatado nos estudos citados é que as alterações em curso

afetam, não só a forma de morar, de trabalhar e de consumir dos habitantes da Região

Metropolitana de São Paulo, como também se espraiam no conjunto da vida social da grande

metrópole e seu núcleo. Entre as características principais destas mudanças, realçamos, não

mais a existência de trabalhadores pobres, migrantes à procura de trabalho, mas a crescente

ampliação do número de pobres aparentemente sem destinação social, sem garantias de

sobrevivência – sintoma da atualização de traços históricos de uma urbanização excludente e

segregadora, que recusa aos pobres o direito à cidade.

2.3. A QUESTÃO HABITACIONAL NA GRANDE SÃO PAULO NO MOMENTO

ATUAL

No item anterior, vimos que uma das principais contradições abertas pela atual

dinâmica do capitalismo, com graves repercussões sobre as condições de moradia da classe

trabalhadora, corresponde à drástica redução do trabalho vivo, incorporado ao circuito da

acumulação. A agudização desta contradição social tem condenado parcelas significativas dos

56
Ver Carlos (2003).
108

trabalhadores aos efeitos da barbárie social, neste momento da história em que o capitalismo

parece desnudar-se, evidenciando as conseqüências sociais do sistema entregue às suas

próprias leis57.

É nosso intento aprofundar neste item, a partir de uma situação concreta- a

questão habitacional na Região Metropolitana de São Paulo na atualidade -, as reflexões já

enunciadas no capítulo anterior.

A análise de Santos (1990) da Região Metropolitana de São Paulo fornece uma

contribuição importante a esta reflexão, uma vez que põe em relevo uma das características

marcantes do contexto analisado: seus contrastes sociais extremamente agudos. Segundo o

autor, o crescimento do núcleo metropolitano da Região é produto de processos interligados

que empurram para a cidade numerosos habitantes do campo e de cidades menores, que se

abrigam precariamente, e via de regra, acabam se aglomerando nos locais periféricos privados

de recursos. Nestes lugares, o custeio da sobrevivência diária, exceto os gastos com habitação,

é mais elevado do que nas áreas centrais, o que expressa a existência de uma íntima

interligação entre pobreza e ampliação das áreas periféricas da metrópole.

Ainda segundo o autor, como a distribuição dos serviços e equipamentos urbanos

é altamente seletiva, grande parte da população é excluída do acesso aos bens mais básicos

(água, luz, esgoto, transportes, escolas e hospitais), sendo este um dos aspectos mais

importantes dos contrastes entre centro e periferia. A este respeito, Santos observa que, a

[...] forma como a cidade é geograficamente organizada faz com que ela não
apenas atraia gente pobre, mas ela própria cria ainda mais gente pobre. O
espaço é desse modo, instrumental à produção de pobres e da pobreza; um
argumento a mais para considerarmos o espaço geográfico não apenas um
dado um reflexo, mas como um fator ativo, uma instância da sociedade,
como a economia, a cultura e as instituições (SANTOS, p. 59, 1990).

57
Ver Fiori (2004).
109

Muito embora partilhemos da compreensão do autor de que o espaço não possa

ser concebido como um mero reflexo, uma vez que impõe restrições e possibilidades aos

sujeitos, consideramos que a apreensão dos determinantes e efeitos de sua conformação e de

suas mudanças deve levar em conta o exame do processo de produção e reprodução social e,

logo, deve se radicar em processos históricos e sociais, que engendram uma estreita

interligação dialética entre espaço e tempo e entre sujeitos e circunstâncias. Trata-se, a nosso

ver, de relação social materializada no espaço, cuja produção e transformação resultam, não

de determinantes unívocos e autônomos, mas de múltiplas determinações, nas quais incluem-

se, não só os determinantes estruturais, mas também, as mediações históricas que

reconfiguram as relações sociais, num dado contexto social.

Nesta direção, a análise da íntima interligação entre pauperismo e periferização e

das características particulares que esta interligação assume na capital paulista e no seu

entorno, parte do pressuposto de que a questão habitacional nesta região resulta,

fundamentalmente, da busca, realizada pelo Estado e por frações da burguesia, de

conformação de um espaço propício à acumulação capitalista. A integração entre relação

social e espacialidade, expressa, assim, o favorecimento da concentração e centralização de

capital, às custas de alto nível de extração de mais valia do conjunto da população

trabalhadora, o que inclui a existência de um enorme exército de reserva formado,

basicamente, de segmentos expulsos do campo.

Na base da grande expansão periférica ocorrida na cidade de São Paulo,

especialmente nos anos de crescimento da indústria, encontra-se a combinação

autoconstrução, loteamentos irregulares ou clandestinos e a ausência de investimento,

controle e fiscalização dos órgãos responsáveis pela ordenação do espaço urbano.

A favela e a casa própria autoconstruída em loteamentos periféricos, somadas ao

preço dos aluguéis, fizeram com que a moradia de aluguel deixasse de representar a única
110

opção para a população de baixa renda. Esta população buscou as suas próprias alternativas

habitacionais em bairros precários, sem infra-estrutura necessária às condições dignas de

sobrevivência. Esta foi, de acordo com uma bela reflexão de Bonduki, a forma possível de

incorporação à cidade de expressivos segmentos de trabalhadores.

O auto-empreendimento na periferia, configurando o território da aventura


individual, da propriedade privada, da moralidade cristã e do
conservadorismo político – no espaço da casa em construção, do lote
bagunçado, da quadra clandestina, da rua semi-oficializada, do ponto de
ônibus sempre cheio, do tempo infinito até o trabalho – formou a base do
que chamo do modo de vida paulistano, tornando-se uma referência cultural
estruturadora do cotidiano dos habitantes da cidade. Participar desse
processo tornou-se sinal de incorporação à cidade e à cidadania, e também a
aspiração máxima de ascensão social acessível aos trabalhadores de baixa
rende a (BONDUKI, p.317, 1998).

Com efeito, a inclusão do trabalhador à cidade, na época de a expansão industrial,

se deu, de acordo com o autor, em condição que o aproximam da propriedade da habitação,

ainda que em condições irregulares e clandestinas Atualmente, esta forma de acesso à cidade

e, de certa maneira, à cidadania limitada, sofre profunda alteração.

Entre as recentes transformações na forma de morar dos habitantes do núcleo

metropolitano e do conjunto da RMSP, destacam-se as seguintes: aumento da ocupação de

terrenos ou imóveis abandonados; aumento da favelização; exponencial aumento da

população de rua no centro da capital; formação de enclaves fortificados e extensão da

periferização.

Pesquisa realizada em abril/junho de 1981, numa amostra representativa da

Região Metropolitana de São Paulo, permitiu afirmar que 41,44% dos inquilinos na faixa de

renda mais baixa gastavam, no pagamento de aluguel, no mínimo, 50% de sua renda,

enquanto 8,6% destes inquilinos despendiam, com aluguel, uma quantia superior à sua própria

renda. Nestas circunstâncias, cresceu o número daqueles em atraso no pagamento do aluguel e

intensificaram-se as ações de despejo. Neste contexto de recessão econômica, nasceram e


111

fortaleceram-se movimentos pela conquista da moradia. As favelas existentes já não atendiam

à demanda por habitação e a procura por terra assumiu grande dimensão, visto que fugir do

aluguel tornava-se uma necessidade imperiosa para um amplo segmento da classe

trabalhadora58.

Nos anos 90, essa situação agravou-se, conforme demonstra a Pesquisa de

Condições de Vida (PCV). Segundo análise da PCV, embora o número de casas na RMSP

tenha aumentado, houve crescimento acentuado das denominadas invasões. Calcula-se que o

número de domicílios “invadidos” na RMSP tenha crescido, entre 1994 e 1998, 40%. É

socialmente significativa a expansão vertiginosa dessa forma de apropriação da moradia desde

1990, quando representava 4,3%, posto que em 1994 atingiu o percentual de 6,5% do total dos

domicílios e, em 98, representou 9,1% deste total, segundo a Funde ação Seade (2001). Os

autores da pesquisa observam que este crescimento das ocupações ocorreu simultaneamente à

ampliação da proporção de famílias morando em barracos ou favelas.

Tabela 1
Distribuição das famílias, segundo formas de apropriação da moradia estado de São
Paulo, RMSP e interior 1994 – 1998 (%)
Formas de apropriação da Estado de São Paulo RMSP Interior
Moradia
1994 1998 1994 1998 1994 1998

Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0

Própria 58,5 60,6 56,3 55,6 63,1 68,4

Alugada 23,5 21,8 24,6 22,5 21,2 20,8

Cedida 12,4 11,0 12,6 12,8 11,9 8,1

Invadida 5,6 6,6 6,5 9,1 3,8 2,7

Fonte: Funde ação Seade. Pesquisa de Condições de Vida – PCV (2001).

58
Dados e análise extraídos de Bonduki (1992).
112

Conforme pode ser notado, no período 1994-1998, a proporção de famílias

proprietárias no interior cresceu cinco pontos percentuais, ao mesmo tempo em que ocorre a

redução da presença das demais formas de apropriação da moradia. Já na RMSP, a única

forma em ampliação corresponde às famílias classificadas pela pesquisa como invasoras. O

crescimento desta forma de apropriação no período foi de 2,6 pontos percentuais, o que

indica, conforme a pesquisa, a crescente impossibilidade de acesso da grande parte dos

trabalhadores da região ao mercado imobiliário privado legal.

Ainda de acordo com a PCV, podemos ver que é na RMSP que se avolumam as

questões referentes, não apenas à ausência de moradia, mas também, às questões relativas à

ausência de condições de habitabilidade. O déficit habitacional59 no estado de São Paulo

corresponda 3,1% do total de domicílios existentes. A Região Metropolitana de São Paulo,

ainda de acordo com a Funde ação Seade (2001), é a região do estado na qual o déficit é mais

acentuado, 3,6%, contra 2,4% no interior paulista, conforme mostra a tabela a seguir. Já no

tocante à questão da inadequação, a região também apresenta carências superiores às demais

regiões do estado. A estimativa de moradias inadequadas no Estado é de 2,927 milhões, das

quais 2,174 milhões se localizam na RMSP.

59
De acordo com a PCV, o déficit habitacional agrupa as moradias que devem ser substituídas porque não
oferecem as condições de segurança indispensáveis a seus ocupantes. As edificações identificadas que não
garantem segurança são os barracos. As outras edificações consideradas precárias entraram no critério
inadequação.
113

Tabela 2

Distribuição dos Domicílios, segundo Necessidades Habitacionais - Estado de São Paulo


e Interior – 1988 Em %
Necessid Estado RMSP Munic Agrupamentos Urbanos do Interior
Habit. (*) de SP
Total Central Leste RM Norte Oeste Vale do
Santos Paraíba

Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

Déficit 3,1 3,6 3,2 2,4 (3,4) ... 9,0 ... ... ...

Inadeq. 37,6 45,2 43,4 24,7 21,0 29,3 31,9 17,7 20,9 22,3

Adeq. 59,3 51,3 53,4 73,0 75,6 70,3 59,0 81,9 76,7 76,4

Fonte: Funde ação SEADE. Pesquisa de Condições de Vida (2001).

De modo geral, os dados apresentados pela pesquisa demonstram a relação,

absolutamente nítida, entre baixos rendimentos e necessidades habitacionais. Esta

constatação, porém, não é suficiente para permitir a apreensão dos determinantes sócio-

econômicos e espaciais dessa questão e de sua atualização, particularmente na RMSP.

Na verdade, esta apreensão não se esgota única e exclusivamente na observação

da distribuição de renda, posto que a histórica articulação entre propriedade privada do solo,

intervenção seletiva do Estado na alocação de equipamentos e serviços e a

desresponsabilização do capital com a reprodução da força de trabalho, sempre dificultou o

acesso à habitação, no mercado legal, a expressivos segmentos da classe trabalhadora. Hoje,

porém, o que pode ser constatado é que a articulação entre estes processos obstaculiza, não só

a aquisição da moradia neste mercado, conforme já referido, mas também, o acesso à moradia

no mercado ilegal, derivando daí o aumento do número de ocupações de prédios e terrenos na

Região.
114

Consideramos, também, ser de especial importância acentuar, tendo em vista o

interesse desta pesquisa, o fato de que as alterações na forma de morar são, também,

reveladoras de fortes alterações na estrutura das relações sociais e, em particular, na própria

conformação da classe trabalhadora.

A análise de Torres (2001) trata esse importante ângulo das transformações

sociais em curso. O autor, em seu estudo sobre a produção social dos espaços periféricos60 da

RMSP a partir dos anos 90, ressalta que tem havido melhoria nas condições de vida de uma

parte expressiva da periferia, acompanhada da expansão de áreas extremamente precárias, o

que indicaria existência de grande diferenciação e heterogeneidade social, mesmo nos espaços

decorrentes da segregação espacial. Com esta afirmação, o autor se contrapõe à tendência a

homogeneizar as características dos trabalhadores da(s) periferia(s), dominante na literatura.

As áreas ainda mais precárias devem ser tratadas, segundo Torres (2001), como

hiperperiféricas, uma periferia da periferia, posto que expressem a condensação e acúmulo de

riscos sociais, residenciais e ambientais de diversas origens. Estes são espaços habitados por

segmentos sociais, que não se assemelham à população operária ou, até mesmo, ao exército

industrial de reserva, típicos das periferias dos anos 70. Trata-se, conforme palavras do autor,

“de um segmento fragilmente integrado ao sistema econômico” e também, acrescentamos, à

própria metrópole. (TORRES, p.30, 2001).

Para explicitar melhor sua análise, Torres (2001) argumenta que existiam na

Região Metropolitana de São Paulo, em 1998, aproximadamente 1,7 milhões de pessoas (10%

da população) com rendimento familiar inferior a 2 salários mínimos, ou R$ 302,00, de

acordo com a PNAD-IBGE, o que corresponderia a uma renda per capita inferior a R$ 2,50

por dia, para uma família com quatro pessoas. As áreas de periferia mais tradicional, e mesmo

as favelas mais consolidadas, constituem-se em locais cujos custos de moradia são

60
A análise de Torres e Marques (2001) se baseia no relatório sobre os indicadores sociais referentes ao Censo
de 1991.
115

inacessíveis a este segmento da população metropolitana, para os quais as condições de

mobilidade social ascendente são praticamente inexistentes. Esta imensa parcela da população

é obrigada a habitar em locais ainda mais precários, tais como as áreas de risco ambiental ou

com péssimas condições sociais e sanitárias.

Essas condições, talvez ainda mais precárias do que as descritas para as periferias

dos anos da expansão industrial, indicam um padrão de segregação mais complexo e, ainda,

mais injusto. Para o autor, o aparecimento destas hiperperiferias se relaciona, conforme

aludido, ao aumento da heterogeneidade social na metrópole, cujo aprofundamento deve-se

[...] (à ação do) mercado de terras que torna as áreas de risco ambiental as
únicas acessíveis a grupos de baixíssima renda, [...] as ações do poder
público e de produtores privados do urbano, passando pelos padrões mais
gerais de transformação dos mercados de trabalho (TORRES; MARQUES,
p.32, 2001).

Neste contexto, de acordo com o autor, a desigualdade de rendimentos aumenta,

mesmo naqueles momentos em que a renda média apresenta algum crescimento, como o

observado na segunda metade dos anos 90.

As constatações de Torres permitem inferir que o binômio pobreza e

periferização, característico do período da expansão industrial na metrópole paulistana, tem

sido, nestes tempos da acumulação flexível, substituído pelo binômio: miséria e

hiperperiferização.

Muito embora tenha havido melhoria nas periferias devido ao aumento do

investimento público resultante, tanto das pressões do capital imobiliário, quanto das pressões

oriundas dos movimentos sociais, estas não foram capazes de, por si só, alterar o padrão de

desenvolvimento urbano estruturado para servir a uma divisão territorial do trabalho baseada
116

na cooperação desigual entre modos de trabalho, tempos de trabalho e condições de

trabalho61.

Nos dias atuais, conforme assinalado, a dinâmica de ocupação do solo, não só

permanece orientada por fortíssima desigualdade na espacialização da estrutura de classes,

como também, esta desigualdade sofre terrível agravamento. O empobrecimento agudo tem

provocado o esgotamento de tradicionais alternativas de sobrevivência de parcela significativa

da classe trabalhadora, como exemplifica a autoconstrução. Diante desta circunstância, parte

da classe trabalhadora tem sido obrigada a se concentrar em áreas cada vez mais distantes do

núcleo metropolitano, onda disputa por condições materiais de vida urbana é menos intensa e

onde são menos presentes as oportunidades de inserção no mercado de trabalho62.

Nesta direção, consideramos de fundamental importância ressaltar a preocupação

de Torres em sublinhar que a população moradora nas hiperperiferias difere do exército de

reserva ou do operariado dos anos 70, uma vez que a relação deste segmento com o mercado

de trabalho não só é absolutamente frágil, conforme palavras do autor, mas, sobretudo, sem

perspectivas.

Se articularmos esta constatação com as informações anteriores, podemos inferir

que os moradores dessas áreas são parte de um segmento em expansão, que vivencia uma

experiência de classe distinta daquela do operariado dos anos 70. A sua relação com o

mercado de trabalho é, via de regra, não só informal, mas também, intermitente e instável.

Com efeito, esse segmento da classe trabalhadora se distingue, também, daquela fração do

exército de reserva com alguma possibilidade, ainda que muitas vezes pequena, de

reaproveitamento no mercado de trabalho. Em verdade, suas possibilidades de (re) inserção

no mercado de trabalho são praticamente nulas, tendendo a se constituir, assim, ao que tudo

61
Ver Marx (1985) e Santos (1990b).
62
Ver Ribeiro (1997).
117

indica, num exército de reserva estagnado, ou em parte da superpopulação relativa que,

segundo Marx “[...] vegeta no inferno da indigência, do pauperismo” (MARX, p. 7 46, 1985)

Como vimos, o processo de crescimento e expansão da grande metrópole

paulistana, além de resultar na formação de um parque industrial diversificado e complexo, no

desenvolvimento de uma burguesia industrial e financeira, na especialização de parcela do

proletariado, bem como na constituição de uma classe média, com poder de compra, e na

expansão do setor terciário, gerou, concomitantemente, uma amplíssima pauperização,

expressando, assim, os efeitos de um modelo de desenvolvimento dependente e atrelado aos

interesses expansionistas das corporações transnacionais e do capital financeiro.

Um dos efeitos deste modelo é, conforme já assinalamos, a segregação social e

espacial expressiva da estrutura de classes, nas economias periféricas e dependentes, como a

brasileira. Ainda que a segregação seja recorrente nas grandes cidades contemporâneas,

especialmente naquelas que foram, ou são centro da expansão industrial, nas cidades

brasileiras, a materialização da desigualdade social no espaço surge na forma de exclusão do

acesso a bens, equipamentos e, até mesmo, à terra urbana.

As transformações sociais relacionadas à precarização do trabalho e da habitação

e às novas formas espaciais de segregação – os aglomerados de exclusão – não se restringem,

todavia, exclusivamente aos espaços periféricos. Dados recentes indicam que estas mudanças,

conforme já referido, podem ser contatadas, também, no centro da grande metrópole. De fato,

a situação habitacional na capital do estado é expressiva do que vem acontecendo no conjunto

da RMSP.
118

Segundo estudos de Bógus e Tashner (1998), com base em dados do período da

década de 70, até o final dos anos 90, a migração de empresas para os municípios do interior

acarretou aumento do pauperismo na capital paulista, o que fez com que a chamada cidade

informal tenha crescido mais intensamente do que a regular. Os novos domicílios em favelas,

cortiços e loteamentos clandestinos superaram os lançamentos do mercado imobiliário e a

produção de unidades habitacionais pelo poder público.

De acordo com as autoras, em duas décadas, de 1973 a 1993, a população

moradora em favelas no município de São Paulo aumentou de 1% para quase 20% da

população total63. No processo de ocupação do espaço, quando as próprias favelas tornaram-

se inacessíveis devido, entre outros fatores, à mercantilização de terras e imóveis,

manifestaram-se, com maior intensidade, “invasões” de terra urbana, tanto que, em 1993,

somente 41% dos chefes de família declararam ter pago por seu lote, contra 4,3% em 1987.

Um outro aspecto importante da análise realizada pelas autoras é que,

distintamente do que acontecia no início do século XX, a moradia precária de aluguel não

mais se situa, predominantemente, nas zonas centrais melhor equipadas e mais próximas ao

mercado de trabalho. O cortiço de periferia tem se tornado uma das expressões destas tristes

alterações na vida social da grande metrópole paulistana.

Bógus e Tashner observam, ainda, que o fenômeno do loteamento clandestino

retornou, nas últimas décadas, de forma mais aguda, sobretudo nas áreas de proteção aos

mananciais. Entre 1984 e 1990, foram identificados 105 loteamentos clandestinos nessas

áreas, ocupando 1.866,5 hectares (cerca de 50% da área clandestina identificada).

63
Na cidade de São Paulo, o fenômeno favela, embora presente nos anos 40, só vai se desenvolver em larga
escala nos anos 70. "Em 1957, apurava-se na capital de São Paulo um total de 141 núcleos, com 8.488 barracos e
cerca de 50 mil favelados” (FINEP -GAP,1983,p 6). Em 1973, os aglomerados favelados já somavam 542, com
14.650 domicílios e quase 72 mil pessoas (1,09% da população municipal). Em 1980, eram 80.535 moradias,
com 440 mil pessoas (5,18% da população da cidade). Segundo o Censo de favelas de 1987, o total
dassentamentos favelados em São Paulo chegou a 1592, com 150 mil casas, abrigando 813 mil pessoas (8,92%
da população da capital). Em 1993, data da última pesquisa, o número das moradias faveladas atingiu 378,6 mil,
com 1,9 milhões de pessoas, 19,8% da população municipal.
119

Informações recentes apontam que esse quadro social vem piorando

drasticamente. No início do ano 2000, a capital de São Paulo abrigava 900 mil pessoas

morando em cortiços; em 1.500 favelas residiam 1 milhão e 300 mil pessoas, e mais de 10mil

moravam na rua. Em contraste, cabe registrar que a concentração de renda na cidade é a maior

do país. Durante o período do Plano Real, a renda da elite, que era em 1994, 41,2 vezes

superior à dos segmentos pauperizados, passou a ser 45,5 vezes superior, em 1998.

Observando a pirâmide social, verifica-se que os 5% mais pobres detinham 0,6% da riqueza

produzida na cidade, enquanto os 5% mais ricos detinham 24,9 desta riqueza64.

Já a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística detecta que no

início do ano 2001, o Brasil tinha 960 mil moradias tidas como inadequadas. Dessas, 402.551,

ou seja, aproximadamente 40%, situavam-se na cidade de São Paulo65. Estes estudos mostram

que o número de pessoas que vivem em favelas, nas ruas, em cortiços ou em "mocós", em São

Paulo, já supera a população de 15 das 26 capitais do país. São, pelo menos, 1,077 milhão, ou

seja, 1 em cada 10 moradores da capital66.

O agravamento da situação habitacional na cidade também pode ser medido por

meio da comparação dos dados dos últimos censos. No Censo de 1991, 743.468 pessoas

viviam na capital em imóveis ou espaços não adequados à habitação. Em 2000, este segmento

já havia crescido 45%. No mesmo período, porém, a população total cidade aumentou apenas

8%. A explosão populacional aconteceu, portanto, entre os sem-teto e as pessoas que vivem

no que o IBGE define como aglomerado subnormal, cômodo (cortiço), domicílio improvisado

("mocó") e favela67.

64
Dados extraídos de Gutemberg (2000).
65
Jornal O Estado de S. Paulo, 19 de maio de 2001.
66
Este levantamento foi feito pela Folha de São Paulo com base em dados do Censo Demográfico 2000 e no
último levantamento realizado pela administração municipal, também em 2000, para apurar o número de
moradores de rua, que não são recenseados.
67
O domicílio improvisado, pelo conceito do instituto, é toda instalação fixa que não deveria servir de moradia –
como prédios em construção, postos de saúde, vagões de trem, buracos, carroças, tendas, grutas entre outros.
120

De acordo com dados da Secretaria Municipal da Habitação, de 2000, metade dos

habitantes de São Paulo morava em habitações consideradas irregulares. Dos 5,5 milhões de

habitantes, 3 milhões viviam em loteamentos clandestinos; 1,9 milhão em favelas (dos quais

13,8% pagavam pelo local) e 600 mil cortiços68. Este levantamento também mostra que 1,3

milhão de moradores dos loteamentos ilegais não têm acesso a infra-estrutura básica69.

Tomando-se, exclusivamente, o item população moradora em favela veremos que,

entre 1980 e 2000, esta população cresceu 4,4% ao ano. Ou seja, numa intensidade 4 vezes

superior à média da metrópole, o que ratifica a degrade ação das condições de vida, neste

contexto, ao longo dos últimos vinte anos.

O volume dos moradores em domicílios precários foi o que mais aumentou nos

anos 90: (101%), seguido pela população de rua, (80%). O número de moradores de rua em

São Paulo era 8.704, em 2000 e em 2001, dez mil pessoas70. Parte dessas, provavelmente, faz

parte do segmento que dorme nas ruas da cidade, por não possuir condições de retornar,

diariamente, para suas moradias na periferia. De acordo com a observação de Tashner e

Bógus (1998) este morador configura uma situação nova “a do desabrigado com teto”. Trata -

se do morador de rua que possui casa na periferia, mas que não consegue arcar com o tempo e

o custo das quatro horas de locomoção diárias, entre sua casa e o local de trabalho.

É importante salientar que, segundo pesquisa elaborada pela FIPE em 2000, 70%

da população de rua, de São Paulo, encontra-se no auge de sua capacidade produtiva. Estas

pessoas, conforme o levantamento feito pela Funde ação, experimentaram o desemprego, a

migração na busca da sobrevivência, o rompimento de vínculos familiares e afetivos, numa

seqüência de perdas.

68
Em 1993, a pesquisa FIPE/SEHAB registrou 24 mil imóveis cortiçados em São Paulo, com 161 mil famílias
moradoras e uma população de 600 mil pessoas, 6% da população paulistana.
69
Fonte: reportagem do jornal Folha de S. Paulo (4/6/2000)
70
Fonte: IBGE.
121

Este percurso acaba praticamente inviabilizando o retorno ao trabalho, cabendo-

lhes a inserção social, nos moldes do que Martins (2002) denomina de inclusão perversa, nas

estratégias de sobrevivência, antes praticadas por mendigos e tidas como iníquas ou, até

mesmo, repugnantes, como por exemplo: catar lixo, catar papel, catar latinhas. Martins

considera esses segmentos sociais “[...] vítimas da migração insuficientemente ou

patologicamente assimilada pela sociedade de destino” (MARTINS, p. 145, 2002)

A noção de exclusão-integrativa, proposta por este autor, auxilia no exame da

forma de incorporação desse segmento social, no circuito de valorização do capital. Segundo

Martins (1989), a teoria da superpopulação relativa possui, como elemento central, a idéia de

que são criados excedentes populacionais úteis. A utilidade dos trabalhadores, excluídos do

processo de trabalho capitalista, reside no fato de que, na maioria das vezes, encontram-se

inclusos no processo de valorização do capital por meio de formas indiretas de subordinação.

Esta arguta reflexão do autor nos leva a concluir que se, por um lado, o trabalho

formal, estável por tempo determinado e socialmente protegido tenda ser uma realidade do

passado, por outro, confirma-se a impossibilidade de violação da lei do valor no ordenamento

capitalista, independentemente das formas assumidas empiricamente pelas relações de

trabalho. Ou seja: independente da forma técnico-material em que se expressa o trabalho, ele

mantém seu caráter específico na sociedade do capital.71

Também enriquecem esta análise, as contribuições de Oliveira sobre as atuais

mudanças da classe trabalhadora na sociedade brasileira. No artigo intitulado "Passagem na

Neblina", o autor demonstra que a ampliação do assalariamento e a revolução eletrônica

impõem atualização do conceito marxista de "exército industrial", ainda que com nova

interpretação.

Neste sentido, afirma que:

71
Ver a este respeito em Iamamoto(2001)
122

A ampliação do assalariamento operou uma fusão entre as frações


intermitente e latente do exército industrial: praticamente todos os
trabalhadores converteram-se em membros intermitentes/latentes pela
permanente desqualificação e pela informalização. A fração propriamente
ativa tornou-se minoritária, enquanto a fração estagnada ou lúmpen tenda
crescer. (OLIVEIRA, p.18, 2000)
Ao tornar-se minoritária, a fração ativa, nas palavras do autor, perde em influência e

radicalidade.

Frente ao exposto, consideramos que, o agravamento das condições de vida de

amplos segmentos da classe trabalhadora, constatado a partir dos dados e análises relativos à

renda, emprego e moradia, na Região Metropolitana de São Paulo impõe, conforme

mencionado anteriormente, o aprofundamento da compreensão da complexidade do novo

modelo de a acumulação, já que ao lado das novas tecnologias e de novas e diferentes

especialidades, convivem formas de organização do trabalho não capitalistas, porém

articuladas ao processo de a acumulação.

Na atual reestruturação da economia brasileira, permanece, portanto, a

convivência, entre o moderno e o arcaico. Este fato demonstra que as determinações do

capitalismo não correspondem no mesmo tempo histórico, e nem da mesma maneira em todas

as formações sociais, o que exige o exame das suas formas particulares. 72

Esta orientação analítica possibilita perceber que a degradante situação na qual se

encontra, hoje, imensa parcela da classe trabalhadora do país e, em particular, da Região

Metropolitana de São Paulo, não constitui um dado apenas do presente. Ao longo dos anos, os

trabalhadores das grandes metrópoles brasileiras, vêm sendo obrigados a se adequar a

alterações no padrão de a acumulação capitalista, difundidas por meio de formas, muitas

vezes, extremamente violentas. Após ter sido empurrada para as periferias, hoje, devido ao

processo de valorização destas áreas, a classe trabalhadora tem sido expulsa para locais ainda

72
Ver Martins (1989) e Iamamoto (2001).
123

mais distantes, ou, obrigada a retornar às áreas centrais da metrópole, em busca de

sobrevivência, morando na rua e trabalhando com os dejetos da sociedade urbana.

Impelidos a adotar soluções de moradia e a aceitar formas de trabalho que

remontam a épocas anteriores à própria industrialização, a existência e crescimento desta

manifestação da questão social denunciam que vivenciamos um profundo retrocesso social,

que não tem por determinante, unicamente, o atual padrão de a acumulação. Na verdade, este

retrocesso é fruto de expropriações cumulativas, que fazem cair por terra as expectativas e as

promessas de uma segura e inclusiva evolução urbana.

O fato de o moderno utilizar-se do arcaico, fazendo-o ressurgir e atualizar-se para

fins exclusivamente da acumulação, remete-nos, também, para a necessidade de aprofundar a

análise das implicações sociais da atual metamorfose estrutural da economia e de sua forma

de realização em países periféricos. No exame das condições particulares nas quais se

processam as transformações, em países periféricos, torna-se indispensável aprofundar o

estudo da conformação da classe trabalhadora, particularmente de seu segmento mais

pauperizado, tanto no que se refere às suas condições objetivas de existência, quanto no que

diz respeito às suas condições subjetivas, o que inclui a consideração de valores e práticas.

Justificamos essa necessidade, com base no pressuposto de que as formas de

pertencimento à classe trabalhadora tecem experiências de vida diversificadas. Por esta razão,

torna-se necessário, para os fins a que se destina este trabalho, apreender as condições

particulares de vida do segmento excedente da classe trabalhadora, na atual conjuntura.

2.3.1. Luta por moradia na Região Metropolitana de São Paulo

Destacamos no item anterior que, na Região Metropolitana de São Paulo,

mantém-se e se acentua, guardadas suas particularidades e atualizações, o padrão social de

moradia comum às grandes cidades brasileiras.


124

De fato, conforme exposto, a questão habitacional, nesta região, expressa a crise

em que vive a sociedade urbana brasileira, constituindo parte essencial e visível de uma

organização social concentracionista e inigualitária. Citando Engels, afirmamos que “(numa)

sociedade, assim, a falta de habitação não é nenhum acaso, é uma instituição necessária e,

juntamente com suas repercussões sobre a saúde, [...] só poderá ser eliminada quando toda a

ordem social de que resulta for revolucionada pela base”. (ENGELS, p.51,1984)

Na realidade, na atual conjuntura, acontece a atualização e o aprofundamento da

perspectiva de urbanismo, baseado na racionalidade da modernização excludente, ou seja, “o

investimento nas áreas que constituem o cenário da cidade hegemônica ou oficial, com a

conseqüente segregação e diferenciação acentuada na ocupação do solo e na distribuição de

equipamentos é apropriado de forma distinta pelas classes [...]” (BIENSTEIN, p. 19, 2002).

Em que pese, nos dias atuais, a existência de uma maior complexidade da

estrutura sócio-espacial, mantém-se a tendência histórica à fragmentação social e à

segregação espacial. Em algumas áreas do centro e, principalmente, nas periferias mais

distantes, moram os biscateiros, os subempregados, os desempregados e, nas áreas mais bem

equipadas, frações da classe média e, em áreas bem melhor servidas, fortificadas e afastadas,

frações da burguesia. Especialmente nestas áreas, conforme assinalam Bógus e Tashner

(2000), ocorre a privatização de espaços públicos, com vistas à garantia da segurança dos

segmentos sociais de alta renda, que se sentem ameaçados pela proximidade física daqueles

pertencentes às frações mais pauperizadas da população trabalhadora, consideradas como

“classes perigosas”.

Este padrão de distribuição sócio-espacial da moradia, hoje cada vez mais

segregacionista, confirma a forte tendência da burguesia brasileira a ser avessa a qualquer tipo

de distribuição da riqueza ou da renda, mesmo em períodos de crescimento econômico.

Deriva daí, provavelmente, a importância atribuída, por seus representantes e aliados no


125

Estado, à utilização de mecanismos de repressão e de socialização do trabalhador, que visam

inculcar valores de aceitação da autoridade, a obediência às leis e regras, o respeito à

propriedade privada e aos contratos sociais73.

O padrão de distribuição sócio-espacial de moradia não vem sendo, porém,

mantido sem objeções e resistências, protagonizadas por movimentos sociais, que impuseram

sua presença e demandas no cenário político paulistano, desde as primeiras décadas do século

passado.

Neste item, procuraremos demonstrar a importância destes movimentos nos

confrontos e na resistência à cidade do pensamento único74 e na denúncia do poder

monopolista da propriedade privada. Para isto, iremos traçar um panorama dos movimentos

sociais de luta por moradia na Região Metropolitana de São Paulo, a partir década de 70 do

século passado, até o ano 2000. Decidimos limitar a análise a partir da década de 70 porque,

neste período, os movimentos urbanos adquiriram grande visibilidade e capacidade de

mobilização.

A preocupação em identificar os objetivos, características, formato organizativo e

reivindicações destes movimentos, decorre do interesse em traçar as semelhanças e as

diferenças entre os movimentos que alcançaram forte presença na cena pública, a partir da

década de 70, e recentemente, se afirmaram na Região Metropolitana de São Paulo.

Objetivamos com esta identificação, estabelecer referências necessárias à análise do

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

73
Ver Harvey (1982).
74
O termo pensamento único foi utilizado, pela primeira vez, por Ignacio Ramonet, no Le Monde Diplomatique,
em 1995. O jornalista usou o termo para alertar para a hegemonia de um instrumental ideológico que objetiva
impor universalmente o domínio absoluto do mercado e da economia sobre os rumos políticos e sociais do
mundo, cada vez mais internacionalizado, pós derrota do socialismo real.
126

Este objetivo se baseia na compreensão norteadora desta pesquisa, de que ”[...]

decifrar a questão social é também demonstrar as particulares formas de luta, de resistência

material e simbólica acionadas pelos indivíduos sociais à questão social” (IAMAMOTO,

p.59, 1998).

Do ponto de vista de Iamamoto (1998), a apreensão da questão social deve trazer

à tona os saberes e as práticas dos sujeitos individuais, ou coletivos, que constroem estratégias

de confronto com a ordem vigente, e não circunscrever-se, unicamente, à apreensão das leis

objetivas, que se manifestam na estruturação da realidade social e /ou na ação dos

dominantes.

Compartilhamos da preocupação da autora com a importância do resgate da

totalidade social. Esta compreensão tem sido menosprezada, tanto nos estudos que tendem a

enfatizar a ação dos sujeitos na estruturação da vida social, como naqueles que analisam as

circunstâncias objetivas da experiência social, sem considerar a ação. Cabe, contudo, ressaltar

que, na reflexão da totalidade, os processos singulares vivenciados pelos sujeitos sociais, não

são tomados de modo abstrato. Tais processos são refletidos à luz de seu enraizamento na

história dos homens, em geral, e dos homens e mulheres, em particular. Por esta razão,

constitui-se uma exigência desta perspectiva teórica, a contextualização histórica e social dos

movimentos sociais.

No continente latino-americano, os chamados novos movimentos sociais

direcionaram suas lutas para o enfrentamento das contradições decorrentes do modelo político

e econômico implementado pelos regimes ditatoriais, e seus efeitos sobre as condições de

vida e trabalho. Na sociedade brasileira, as ações dos movimentos urbanos intensificaram-se,

a partir de meados da década de 70, sob o impulso das lutas operárias, que deram origem ao

novo sindicalismo. A partir deste momento foi retomada a articulação democrática pelo

“direito dos de baixo” (FERNANDES, 1986) à organiz ação e manifestação políticas. A partir
127

deste momento, multiplicaram-se associações de bairros e outros movimentos urbanos, em

diversas cidades, cujo discurso e ações pressionavam as agências governamentais pela

apropriação socialmente justa do fundo público.

Este foi um momento marcado, também, pela luta por ideais democráticos

vinculados à conquista de direitos civis e políticos, como exemplificam a campanha pela

Anistia dos Presos Políticos, a campanha das “Diretas Já” e o processo Constituinte. Outros

movimentos, no entanto, tangenciaram as questões acima, mantendo-se em seu espaço

organizativo próprio, como por exemplo, movimentos de mulheres, homossexuais e negros.

Suas principais reivindicações se referiam à luta contra a discriminação social.

A luta pela democracia fortaleceu uma vertente do movimento que defendia a

democracia participativa como mecanismo privilegiado, na busca da ampliação da esfera

pública e de respeito à participação política da classe trabalhadora. Esta vertente se baseava na

defesa da autonomia política e organizacional, frente ao poder instituído e aos partidos,

como forma de resistência à ameaça de cooptação e à alteração de seus valores e práticas.

Com respeito à sua dinâmica interna, a democracia participativa se apresentava como

alternativa às práticas preponderantes nos movimentos sociais tradicionais, cujas rígidas e

hierarquizadas estruturas, conservavam o poder concentrado nas mãos dos dirigentes, por

meio de formas de representação e de delegação de poderes. Para tal, os denominados novos

movimentos sociais se confrontaram com fortes tradições culturais dos movimentos populares

brasileiros, ainda presentes à época da sua aparição na cena política.

A Igreja Católica desempenhou papel aglutinador de boa parte da militância dos

movimentos sociais, neste período. A influência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)

sobre a ação dos movimentos sociais de São Paulo, à esta época, é interpretada por Singer

(1980) como a marca de um novo período na história das lutas urbanas. A atuação das CEBs

contribuiu para o alcance de maior autonomia organizativa dos movimentos, diante do Estado
128

e dos partidos políticos, e para a afirmação de uma nova postura frente ao direito,

caracterizada pela ressignificação do sentido da ação. Os representantes dos movimentos

passam, a partir dessa influência, a compreender a luta por meios de consumo coletivo, como

luta por direitos associados à vida urbana e, não mais como concessões, ou dádivas, a serem

barganhadas junto ao poder público.

Na Região Metropolitana de São Paulo, segundo dados da Federação de Órgãos

para Assistência Social e Educacional (FASE)75, a partir da metade da década de 70, duas

frentes do movimento de moradia ganharam maior expressão: o movimento de favelas e o

movimento de loteamentos periféricos. Ao final dos anos 80, ganha visibilidade pública,

também, o movimento dos encortiçados e o movimento dos sem teto.

Dados disponíveis sobre os movimentos de luta por moradia na cidade de São

Paulo, no ano de 2000, confirmam esta tendência. A partir dos anos 90, intensificaram-se os

movimentos de luta por moradia, que atuam no centro da capital, envolvendo, principalmente,

o movimento dos encortiçados e dos sem teto. Evidentemente, esses dados não são adequados

à apreensão da dinâmica dos movimentos de luta por moradia no conjunto da metrópole,

porém avaliamos que por se tratar de fenômeno recente e crescente, com grande repercussão

pública e, localizado na maior e mais desenvolvida cidade do país, estas informações podem

ser reveladoras de fortes e significativas tendências políticas e sociais76.

Cassab (2000) aponta as seguintes causas desta intensificação: nos últimos anos

do século XX, houve grande esvaziamento de imóveis no centro da capital devido à

transferência de empresas e repartições públicas. Tal esvaziamento ocorre, simultaneamente,

ao afluxo de pessoas, em busca de moradia mais próxima aos locais de trabalho e que não

75
Fase - SP, junho de 1995.
76
Cabe justificar, também, que por não dispormos de dados a respeito da dinâmica das lutas por moradia no
conjunto da região, por não ser este nosso objeto de estudo e, devido à relevância destas lutas na capital, optamos
por centrar a exposição e análise nas lutas por moradia na metrópole paulista.
129

podiam arcar com os custos de deslocamento da periferia, e nem com o pagamento de aluguel

em áreas mais próximas ao centro.

Anos depois, foram iniciados investimentos públicos no centro com os objetivos

de modernizar, embelezar e revitalizar a região, o que acarretou a valorização de imóveis e

sucessivas ameaças de despejo dos moradores. Estes atos, segundo relatado na pesquisa,

revestem-se de um discurso, dirigido à opinião pública, de valorização, por meio da

revitalização cultural, da área central, o que aumenta os obstáculos ao reconhecimento da

legitimidade da luta dos movimentos por moradia.

A novidade desta ofensiva do empresariado e de seus representantes no Estado

relaciona-se ao fortalecimento da aliança entre as frações do capital imobiliário, comercial e

financeiro e o Estado, neste período de crise da economia industrial. O investimento no setor

imobiliário se dirige à construção de escritórios modernos e de locais exclusivos de consumo,

incluindo a articulação entre bens culturais e turismo. Para concretizar a propalada renovação

urbana, torna-se necessário desapropriar moradores, a fim de criar, para o mercado

imobiliário, a possibilidade de reocupar a área e atribuir-lhe outros usos. Trata-se, de acordo

com Seabra, de uma “nova higienização” da cidade 77.

Esses acontecimentos acirraram o conflito entre os movimentos e o governo

estadual e provocaram o aumento da mobilização. Quatro movimentos pelo direito à moradia

lideram, atualmente, as lutas no centro de São Paulo: a União das Lutas de Cortiço, o Fórum

de Cortiços, o Movimento dos Sem Teto do Centro, o Movimento de Moradia do Centro.

Todos integram a União dos Movimentos de Moradia (UMM) que, além dos movimentos do

Centro, reúne movimentos em defesa de favelas das diversas regiões da capital. A UMM atua,

também, em nível estadual, no ABC e interior, e integra a União Nacional, presente em sete

estados: Pará, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Ceará e Paraíba.

77
Ver Seabra (2000).
130

Esses movimentos possuem distintas estratégias e métodos de luta, mas têm

buscado construir formas de articulação que permitam a elaboração de propostas dirigidas,

tanto aos poderes públicos, em diferentes níveis (municipal, estadual e federal) e âmbitos de

atuação (legislativo e executivo), quanto a outros movimentos e ONGs, em âmbito nacional e

internacional.

A relação dos movimentos de luta por moradia com o atual governo municipal,

quando da realização da pesquisa de Cassab, no ano 2000, ainda estava em fase de definição.

Boa parte dos representantes dos movimentos fez campanha para a prefeita Marta Suplicy, do

Partido dos Trabalhadores e alguns assumiram postos no governo municipal. Alguns desses

representantes começaram, após poucos meses de governo, a tecer críticas à prefeitura, pela

demora no atendimento das reivindicações, e decidiram reiniciar as ocupações, como forma

de pressão e, concomitantemente, de negociação. De forma conjunta ou isolada, esses

movimentos têm, ao longo do processo de negociação, apresentado ao governo projetos

referentes à questão da moradia. O projeto intitulado “Morar perto do Centro”, cujo objetivo é

garantir a permanência na área central do município, por exemplo, foi apresentado pelos

quatro movimentos. Para a elaboração do referido projeto, contaram com o apoio de

professores de universidades paulistas e representantes de ONGs. Trata-se, de acordo com os

formuladores, de um programa participativo de reabilitação de cortiços na região central,

envolvendo os aspectos relacionados à habitação, cultura, educação, arquitetura e patrimônio

histórico e geração de renda, para as famílias moradoras de cortiços. O seu objetivo é evitar a

expulsão das famílias de baixa renda da área central de São Paulo. Na formulação desta

proposta, podemos perceber a preocupação com a permanência dos moradores no Centro, e

em tentar assegurar o acesso ao mercado de trabalho para seus participantes.

O projeto de alguns desses movimentos, todavia, é bem mais amplo e expressivo

de acúmulos técnicos e políticos resultantes de debate e luta pela reforma urbana. Os


131

representantes do Movimento dos Sem Teto do Centro, por exemplo, defendem uma Reforma

Habitacional e Urbana capaz de criar novas condições de vida urbana, que atendam às

necessidades da maioria da classe trabalhadora. Para a elaboração do programa, tomam por

base o diagnóstico de que a precariedade da situação habitacional advém da combinação entre

arrocho salarial, desemprego, especulação imobiliária e drenagem de recursos públicos para o

capital financeiro.

Os objetivos propostos no programa são os seguintes:

Destinar recursos públicos a fim de implantar um programa habitacional que


atenda às famílias de baixa renda e fixe os trabalhadores nas áreas
urbanizadas, perto do mercado de trabalho, acompanhado de programas
sociais complementares;

Criar instrumentos de política de desenvolvimento urbano que limitem o uso


da propriedade urbana em prol do bem coletivo, implantando a função social
da propriedade; [...]78.

Para concretizar esses objetivos, propõem as seguintes medidas:

1. Plano Integrado de Desenvolvimento Social, capitaneado por projetos


habitacionais e implantado especialmente nas regiões urbanizadas - para que
os trabalhadores de baixa renda deixem de ser expulsos das regiões servidas
de equipamentos urbanos e morem perto do trabalho. Para tanto, é preciso
combinar diversas frentes de investimento social:

1.1. Destinar o máximo de recursos possíveis para programas habitacionais a


fim de atender trabalhadores sem-teto de baixa renda de 0 a 3 salários
mínimos [...], orientando-se pelas seguintes medidas:

1.1.1 Disponibilizar 10.000 (dez) mil moradias/ano nas regiões urbanizadas,


especialmente naquelas onde as expulsões dos trabalhadores sem-teto são
maiores (conforme último Censo);

1.1.2. Terminar os projetos habitacionais iniciados e não concluídos – os


mutirões;

1.1.3. Reurbanizar favelas, começando por aquelas que estão em situação


mais precária;

1.1.4. Criar o Fundo Municipal de Habitação Popular, canalizando todos os


recursos do Governo Estadual, Federal, Municipal e outros, com o objetivo
de executar os programas habitacionais do Município.

78
Tese do MSTC para a 1ª Conferência Municipal de Habitação de São Paulo, São Paulo, setembro, 2001
132

1.2. Projetos educacionais: cursos da alfabetização, supletivos,


profissionalizantes, nas comunidades organizadas para atender os
trabalhadores de baixa renda;

1.3. Plano de emergência para desempregados e trabalhadores de baixa


renda: frente de trabalho, bolsa-escola, bolsa-trabalho e renda mínima para
apoiar os moradores de rua;

1.4. Assegurar o ingresso nas escolas e creches de todos os filhos de


trabalhadores com renda de 0 a 3 salários mínimos;

1.5. Implantar espaços culturais que viabilizem a participação dos jovens e


de todos os integrantes das famílias de baixa renda.

2. Participação popular – os projetos habitacionais e sociais devem:

2.1. Ser desenvolvidos em parceria com o Movimento Organizado, que


indica a demanda e supervisiona a implantação dos programas;

2.2. Garantir a participação e controle da comunidade atendida;

2.3. O grupo de famílias deve contribuir e acompanhar a execução do


empreendimento por meio da autogestão. Que seja constituída uma
Associação de Moradores para dar continuidade dos programas de
desenvolvimento social.

3. Aprovar Instrumentos de Política de Desenvolvimento Urbano, pautando-


se pelo Estatuto da Cidade/Projeto de Lei nº 181/1989, 79

(...)

3.1. Incidência de imposto fortemente progressivo para imóveis vazios,


(predial e territorial), sem utilização por mais dano e dia;

3.2. Que a valorização dos imóveis, decorrente de investimentos públicos,


seja tributada pela Contribuição de Melhoria, a fim de que o investimento
social volte para ser utilizado em moradia popular e fins sociais;

3.3. Que os proprietários inadimplentes, devedores de impostos da


Prefeitura, cedam sua propriedade, em troca dos débitos tributários; esses
imóveis só poderão ser utilizados para fins sociais;

3.4. Que os imóveis fechados, por mais de três anos, só possam ser
reutilizados para moradia popular;

3.5. Que todas as propriedades imóveis provenientes de enriquecimento


ilícito (da corrupção, sonegação de impostos, tráfico de drogas) sejam
desapropriadas, sem indenização, a seu injusto possuidor e destinadas a
investimentos sociais, especialmente moradia popular;

3.6. Que em toda cidade urbanizada sejam reservadas áreas para


assentamento de população de baixa renda;

79
Observação constante do documento: “(o substitutivo aprovado não contem pla as propostas do original), cujas
diretrizes devem orientar a utilização do estoque de propriedades imóveis, destinando-as para fins sociais.” (tese
do MTST, 2001).
133

3.7. Que os imóveis de outros entes federados (Estado, Governo Federal),


Autarquias e Fundações Estatais existentes no Município, sem destinação
específica, sejam utilizados para projetos de moradia popular e
equipamentos sociais. Começar esse programa nos imóveis situados no
entorno da Rede Ferroviária Federal;

Recomende ação: Que a Câmara de São Paulo realize um amplo


mapeamento das propriedades imobiliárias, a fim de localizar os
latifundiários urbanos, grileiros, devedores de impostos, bem como o uso
real de cada imóvel (terrenos e edificações), qual a valorização de cada
empreendimento etc. Estas informações deverão ser objeto da ampla
discussão, que servirá de base para formulação de política urbana e do que é
a função social da propriedade.

4. Formação de um Comitê de Defesa de Programas Habitacionais Populares


representado por todos os movimentos de luta por moradia. Que esse Comitê
mobilize todas as suas bases, articuladas com outras forças sociais, e realize
atos, passeatas, ocupando os imóveis necessários aos Programas
Habitacionais para apoiar o Legislativo, Executivo e Judiciário no sentido de
criar instrumentos de Política Urbana. E que também exerça função
fiscalizadora sobre a aplicação das verbas e execução dos Programas 80.

Da análise do programa do movimento, podemos depreender que:

- no projeto do Movimento, revela-se uma concepção que não só engloba os bens

e serviços que envolvem o habitar como prevê, também, de modo articulado, a necessidade de

reorganizar a própria lógica que presida constituição da cidade, uma vez que postula a ação

direta dos participantes, não só no exercício da pressão pelo atendimento de suas

reivindicações, como no acompanhamento, controle e fiscalização das ações propostas.

Para tal, os representantes do Movimento ressaltam a importância central do

enfrentamento ao monopólio da propriedade privada e ao alijamento de segmentos sociais do

direito do trabalho, o que nos parece demonstrar acúmulo teórico-prático, no tocante às

complexas questões que determinam a questão urbana, e suas repercussões na situação

habitacional dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora.

80
Tese do MSTC para a 1ª Conferência Municipal de Habitação de São Paulo, São Paulo, setembro, 2001.
134

2.4. A QUESTÃO DA HABITAÇÃO NA RMSP: CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, este breve exame sobre a questão da habitação na particularidade da

Região Metropolitana de São Paulo, permite concluir que, nesta conjuntura de ofensiva

neoliberal, de reestruturação produtiva e de aprofundamento da inserção subalterna da

economia brasileira aos comandos centrais do capitalismo, cada vez mais internacionalizado,

os limitados dispositivos de inclusão social da classe trabalhadora se tornam ainda mais

restritos.

O desemprego mantém-se em curso ascendente, em meio a uma economia,

praticamente estagnada e de drástica redução de investimentos. Muito embora este processo

reproduza tendências mundiais, alguns autores destacam que é na periferia do sistema

capitalista que o desemprego e a informalidade assumem abrangência e rapidez mais

avassaladoras, o que resulta no exponencial aumento do pauperismo.

A cidade de São Paulo, conforme preciosa reflexão de Santos (1990), permanece,

como no início do século passado, aberta a responder, por meio da adoção do novo, a todo e

qualquer movimento renovador das economias centrais81. Por ser a metrópole brasileira em

melhores condições de nuclear a acumulação e a reestruturação em curso, os contrastes e

contradições se mostram, de forma mais desenvolvida e, por conseguinte, de forma mais

nítida e contundente.

Em outras palavras: a metrópole paulistana permanece sendo um território da

concentração do pauperismo e da riqueza do país, o que não só denuncia o aprofundamento da

polarização entre as classes sociais, na sua expressão regional e intra-metropolitana, como

mostra os efeitos nefastos do aprofundamento da inserção subalterna da economia brasileira,

no capitalismo em transformação, em escala mundial.

81
Ver Santos (1990).
135

Nesta cidade, que no início do século passado destinou às levas de trabalhadores

imigrantes e migrantes os locais mais insalubres e precários, não porque os considerasse

descartáveis, mas porque concebia a provisão habitacional como responsabilidade privada – a

questão da apropriação da cidade se renova na qualidade de direito dos proprietários82, uma

vez que o destino de amplos e crescentes segmentos sociais são as soluções habitacionais

improvisadas, ou a moradia nas ruas.

Em resistência a esta dinâmica, florescem, contudo, numerosos movimentos

sociais. Santos observa que a densidade da população trabalhadora, sua proximidade

geográfica e o acúmulo de lutas operárias ocorridas na região, oferecem a oportunidade de

transformar quantidade em qualidade. Assim: na opinião do autor, estes elementos, ao lado de

outros já citados, favorecem o intenso associativismo existente na região. Tomando-se como

referência esta análise de Santos, podemos supor que a concentração de trabalhadores é hoje,

de certa forma, ameaçada pela dispersão resultante do desemprego, o que parece conferir aos

movimentos de luta por moradia, a tarefa de aglutinação e de coesão, antes desempenhada

pelo movimento sindical.

Por fim, é nosso intuito sublinhar que este perfil da questão habitacional na

RMSP, aqui brevemente delineado, expressa também, alterações na conformação da classe

trabalhadora na sociedade brasileira atual. Estas mudanças têm acarretado, conforme afirma

Ribeiro (1997), o desraizamento sócio-cultural de importantes segmentos da classe

trabalhadora e sua concentração em precários contextos sócio-espaciais. Nesta circunstância,

tem ocorrido o recrudescimento dos antagonismos e conflitos sociais manifestos,

especialmente, na luta por terra, moradia, e pela apropriação do fundo público.

Ainda que estas lutas se revelem fragmentadas e centradas, prioritariamente, em

reivindicações de caráter mais imediato, sua ampliação e visibilidade, não só denunciam os

82
Ver a respeito da concepção subjacente às políticas habitacionais no Brasil em Bonduki (1998).
136

principais determinantes da agudização das contradições sociais, como também apontam para

a necessidade de fortalecer as iniciativas teórico-práticas, que visam articular soluções

imediatas a projetos de transformação estrutural, com vistas à superação da fragmentação das

ações e de sua imediaticidade.

Consideramos, igualmente, que o crescente acirramento de lutas protagonizadas

por representantes dos segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora – tida

historicamente, como menos capazes de intervir na luta política – requer, à luz das novas

experiências desenvolvidas por estes segmentos, a análise crítica dos pressupostos teóricos

norteadores da reflexão sobre movimentos sociais. A questão é: até que ponto os movimentos

protagonizados por grupos sociais, pertencentes a população excedente, estariam imprimindo

um novo significado ao pensar e ao fazer político da classe trabalhadora? No próximo

capítulo, tomando por base a experiência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto,

procuraremos contribuir na reflexão deste tema.


137

CAPÍTULO 3

A EMERGÊNCIA DO MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TETO

NA GRANDE SÃO PAULO

Dissemos anteriormente que a expansão do capitalismo tende, cada vez mais, a

concentrar a vida social na cidade. Reafirmamos, todavia, que a materialização desse processo

expansivo não se realiza de modo linear, evolutivo e nem, muito menos, homogêneo. Ao

contrário, concretiza-se de maneira profundamente desigual.

No processo de expansão sócio-espacial da grande metrópole paulista, constata-se

a concretização desse desenvolvimento desigual em suas distintas faces. Uma delas é, sem

dúvida, a segregação da classe trabalhadora, submetida à periferização de sua moradia, desde

o período inicial da industrialização.

Às distintas escalas em que a industrialização se materializou, corresponderam

diferentes conformações físico-espaciais da experiência urbana da classe trabalhadora,

reconhecíveis através da observação do desempenho de diferentes variáveis e processos, tais

como: fontes de emprego; transporte e sistema viário; parcelamento do solo; verticalização

das construções e expansão horizontal periférica. Estas variáveis e processos contribuíram,

com pesos distintos, para a consolide ação da desigualdade sócio-espacial, na escala intra-

metropolitana.

A divisão social e territorial do trabalho na metrópole e seu entorno, baseia-se em

uma relação de apoio recíproco, porém hierárquica e desigual, dada à operação dos

mecanismos de extração do excedente. Esta forma particular de produção da desigualdade

acarreta a tendência à reprodução permanente, e crescentemente pronunciada, da distância


138

social decorrente da concentração de investimentos públicos e privados no município núcleo

da metrópole.

Esta marca da expansão social e espacial da metrópole tem se acentuado nos anos

recentes, especificamente entre os anos 80 e 90, quando o fluxo migratório passa a direcionar-

se, com mais intensidade, para o entorno urbano, do que para o núcleo da metrópole. A partir

deste período, ocorre a crescente periferização do aumento demográfico metropolitano. Os

segmentos mais pauperizados das classes trabalhadoras passam a residir em áreas ainda mais

longínquas do núcleo metropolitano, praticamente desprovidas das mínimas condições de

habitabilidade. Trata-se de um macro processo que, com alguma ousadia, poderia ser

denominado de desurbanização do trabalho urbano (RIBEIRO, et. al., 1997).

Este redirecionamento do fluxo migratório tem implicado em mudanças de caráter

bastante amplo na experiência urbana da classe trabalhadora, inclusive no que concerne à

organização sócio-espacial e política nas próprias cidades da periferia metropolitana. O

aumento das lutas por moradia, serviços urbanos e equipamentos sociais, nestas cidades, pode

ser considerado um dos processos expressivo desse fenômeno.

Neste capítulo, pretendemos discorrer sobre a formação e a organização do

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na Região Metropolitana de São Paulo (MTST). O

foco da análise se dirige para o processo de formação do Movimento na periferia extrema de

Guarulhos – cidade da grande metrópole paulista onde se localiza o acampamento Anita

Garibaldi. É nosso objetivo extrair da dinâmica desta experiência do MTST, elementos que

permitam refletir determinantes sociais de sua emergência, trajetória e possíveis tendências,

na atual conjuntura. Com este intuito, trataremos, neste capítulo, do processo de constituição

do MTST e, no próximo capítulo, com base na experiência do acampamento Anita Garibaldi,

analisaremos a dinâmica e formato organizativo do Movimento.


139

3.1. A GÊNESE DO MTST EM DIFERENTES VERSÕES E INTERPRETAÇÕES

A história da gênese do Movimento é contada de diversas maneiras. Nestes

distintos relatos, manifestam-se múltiplas experiências e interpretações tecidas por sujeitos

que vivenciam (ou vivenciaram) diferentes formas de inserção no processo de construção do

Movimento. Não é nossa intenção precípua conferir um ordenamento rígido a estes relatos,

mas sim, resgatá-los (nos limites do que nos foi possível recolher), visando demonstrar a

diversidade das versões, e, também, apreender o significado da emergência deste movimento

social, neste período da história do país e no contexto particular do estado de São Paulo.

Daniel, representante da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores

Sem Terra (MST) no Estado de São Paulo, relatou que ao longo do processo de preparação de

ocupações de terra no Estado, em 1993 e 94, a coordenação do Movimento identificou uma

mudança no perfil dos participantes. Os interessados em participar das ocupações, não

possuíam mais o perfil do campesinato, do ex-pequeno proprietário rural, sem acesso à terra.

Tratavam-se de famílias moradoras na cidade que, segundo suas palavras, “[...] queri am lutar

mas não queriam sair da cidade [...] Precisavam [...] dalguma forma de luta para [...]

sobreviver na cidade,[...] não iam voltar pro campo, por ter vivido algum tempo na vida

urbana e se readaptar à (vida) rural de novo é difícil, [...]” 83.

No curso do depoimento, o coordenador demonstra forte preocupação com a

necessidade do fortalecimento da luta do campo e sinaliza para a possibilidade de que, diante

da mudança do perfil da população campesina, do aumento do êxodo rural e da concentração

da vida nas cidades, este fortalecimento pudesse ser realizado com a participação dos

excluídos da cidade e, a partir de mudanças nas práticas de organização do MST.

83
Depoimento dado na palestra “Novas Práticas na Luta pela Reforma Urbana” promovida pelo LASTRO -
IPPUR/UFRJ, em 2000.
140

Já para Alex, ex-participante da coordenação do acampamento Anita Garibaldi, a

marcha popular nacional organizada pelo MST, em 1997, foi o fator impulsionador da criação

do MTST. Um dos objetivos do MST, com a marcha, era estimular o retorno de famílias da

cidade para o campo, “[...] mas, no percurso [...] se começou a ver melhor a cidade, como

funcionava, qual era o papel dela dentro do modelo que nós temos. Já antes, militantes se

deslocavam para a cidade em eventuais trabalhos, trazendo gente da cidade para o campo, se

viu a necessidade de tentar criar dentro das próprias cidades focos de organização” (BENOIT,

2002,p.135).

Com base no reconhecimento desta tendência, surge a idéia de organizar uma

forma de atuação capaz de enfrentar os desafios da questão urbana. A criação do MTST, em

1997, tem por objetivo a luta por moradia, pela reforma urbana e pela transformação social.

Seus organizadores compreendem que as lutas por reforma agrária e por reforma urbana

devem ser travadas de modo articulado, pois, na sua concepção, o alcance das metas da

reforma urbana depende da luta simultânea pela reforma agrária.

Outro relato nos foi oferecido por Jota, membro da coordenação estadual do

Movimento, residente no acampamento Anita Garibaldi. Jota foi um dos militantes deslocados

pelo MST para iniciar a organização do MTST. No seu depoimento, o MTST é apresentado

como uma alternativa para assegurar a continuidade da luta pela reforma agrária, num

contexto de drástica redução da população rural e, especialmente, dos segmentos que formam

a principal base social do MST 84.

Nas suas palavras,

O MTST surgiu em virtude de uma discussão do MST no Pontal do


Paranapanema no estado de São Paulo. (...) Foi em função de uma realidade
específica do Pontal, isso que é interessante. Mas culminou com uma forma
nacional de pensar, uma forma nacional de agir. Foram duas vertentes. Essa
questão do Pontal é uma e a outra foi a Grande Marcha Nacional que tinha
sido feita em 1997. Mas, a primeira foi a discussão feita lá no Pontal. Porque

84
A base social do Movimento era formada, principalmente, por pequenos proprietários rurais, arrendatários,
meeiros, posseiros (no Sul e Sudeste do país) e bóias-frias (no Nordeste).
141

lá no Pontal tinha uma situação muito complexa, porque por ser uma região
onde a maior parte dos camponeses não se fixou na região pelo êxodo rural
do grande centro, ficou todo mundo por ali. E ali, de fato, a produção
agrícola de grandes empreendimentos agrícolas gerava umas sobras e essas
sobras o povo, de uma forma ou de outra, o povo acabou tendo acesso e
então se fixava na região. A maior parte das terras é da União e do estado de
São Paulo. Portanto são terras públicas que foram griladas, que estão sobre a
posse, a propriedade de fato, de uma pequena burguesia agrária que se
organizaram na UDR. [...] É uma situação bem militarizada. Durante o ano
de 1996, o MST fez um acordo com o Governo Mário Covas, porque era
uma região conflitiva. De um lado, muita gente sem terra e que dependia da
terra. De outro lado, uma burguesia latifundiária armada [...].

Sabendo disso, o MST fez várias lutas. O governo Mário Covas era um
governo mais negociador, e fez um acordo com o MST, cedendo 40% das
terras no Pontal. [...]. É um acordo que se constitui como uma faca de dois
gumes: ele (o movimento) pode ficar com a propriedade de 40% das terras,
mas não (pode avançar para o restante) 85 [...] das terras, que eram as dos
latifundiários.

No depoimento de Jota há uma ênfase na situação de impasse vivida pela

coordenação do Movimento, diante de um contexto marcado por inúmeros e violentos

conflitos entre posseiros, grileiros e o estado e a demanda dos participantes do Movimento por

terra, para morar e trabalhar. Seu depoimento prossegue com o relato da decisão tomada pela

coordenação.

[...] Então qual era o jeito do Movimento? Pensar uma saída que não fosse
fazer luta na região. E ali mesmo foi discutido, entre os dirigentes do Sem
Terra, a possibilidade de construção de um movimento urbano que atuasse
na cidade, mas que partisse de um plano de aumento da correlação de forças
entre o MST e as cidades de uma maneira geral. Que esse movimento fosse
unificador dos movimentos que já existiam nas cidades e que canalizassem
para uma pressão sobre o governo, toda essa força social pressionando [...],
para que ,em conseqüência dessa pressão, tivesse conquistas no campo.

De acordo com a interpretação deste coordenador, a proposta de criação do MTST

teria nascido da busca de uma alternativa diante da necessidade de redefinir a linha de ação do

MST, na região do Pontal de Paranapanema, frente à mudança de orientação política do

governo do estado no enfrentamento do conflito fundiário, na região 86.

85
As palavras entre parêntesis são nossas.
86
Vale observar que a região do Pontal de Paranapanema concentrou, entre 1964 e 1981, o segundo maior
número de conflitos no estado. Ver a respeito em Fernandes (1996).
142

Jota prossegue seu depoimento, afirmando que:

[...] A idéia que dava base a essa tática era de que só vai fazer reforma
urbana, quando fizer uma política agrícola que reduza as contradições entre
campo e cidade e faça com que o camponês se fixe no campo e não faça o
movimento de êxodo rural, que ainda acontece. Que a economia agrícola
seja fortalecida no plano da subsistência, no plano da auto-gestão, e não no
plano do capital agrícola, da produção em larga escala, da monocultura. E a
monocultura exerce o movimento natural do êxodo. Há dados que analisam
isso [...]. A idéia é exterminar a agricultura. Então, contra esse movimento,
essa idéia. Agora, a realidade urbana é muito complexa. Não é só essa idéia.
Tem toda uma forma de racionalismo urbano que não permite que a cidade
esteja lá na cidade, saia da cidade e volte para o campo. Já construiu
vínculos sociais. Já tem uma relação com a economia. Ele já está preso à
economia urbana, de modo a que fica mais fácil satisfazer uma distribuição
eqüitativa de toda a riqueza, tanto rural quanto urbana, fica mais fácil fazer
pela via ‘urbanina’, mais do que a via campesina.

Como pode ser observada, nos relatos registrados, a interpretação da gênese do

MTST não é unívoca. Variam os argumentos, variam os sentidos da organização e, logo,

variam as expectativas. O MTST aparece, na fala de lideranças, no âmbito de uma estratégia

maior, que visa a articulação entre movimentos urbanos e o MST e, por vezes, como processo

de organização que apoiaria, de imediato, o fortalecimento do próprio MST.

Oliveira (2001), um dos coordenadores do MTST, durante o período de sua

organização, no Rio de Janeiro, registra que a organização do Movimento teria tido início em

Campinas-SP, em agosto de 1996. A escolha desta cidade teria decorrido da existência das

seguintes condições: proximidade com um grande centro urbano; carência habitacional da

população; existência de terras desocupadas; pequeno número de movimentos populares e do

fato de que, na época, estavam acontecendo, na cidade, lutas desarticuladas por moradia,

através da ocupação de terrenos.

O trabalho de organização iniciou-se por meio do estabelecimento de vínculos

com os participantes das ocupações em curso na cidade. Este trabalho resultou na realização

de outras três ocupações que reuniram, aproximadamente, três mil famílias e, ainda, na
143

organização de uma marcha estadual em defesa da Reforma Agrária, de Campinas até São

Paulo, sob a direção do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

O MTST reuniu milhares de pessoas em torno das ocupações e das manifestações,

mas, segundo Oliveira, "[...] esta expressividade que o Movimento ganhou num primeiro

momento não significou a existência de um movimento organizado" (OLIVEIRA, 2001,p.3).

A ausência de organização, em seu relato, levaria à perda do controle sobre as ocupações.

Entretanto, desta luta, teriam surgido militantes que se dispuseram a contribuir na organização

do movimento noutras regiões do Estado de São Paulo e no Estado do Rio de Janeiro.

A organização do MTST no Estado do Rio de Janeiro enfrentou desafios e

obstáculos que podem ser reconhecidos nos seguintes fatos.

Em dezembro de 1997, organizou-se na cidade do Rio de Janeiro a primeira

ocupação. A forte repressão do governo Marcelo Alencar levou ao desmantelamento dessa

ocupação. Como não houve dispersão dos participantes, o movimento realizou, a seguir, outra

ocupação. Esta ocupação também foi alvo de despejo, resultando, contudo, num acampamento

de 350 famílias. Um ano depois, foi realizada outra ocupação em Campo Grande, que reuniu

1.500 famílias. Esta última ocupação acabou se transformando em um acampamento,

denominado Che Guevara. Este acampamento, também, foi desmantelado. Os participantes

que restaram organizaram um acampamento na Avenida Brasil, que durou 15 dias, quando,

então, as famílias voltaram a ocupar a mesma área anterior.

Em agosto de 1999, dois militantes do MTST de São Paulo foram deslocados para

ajudar no trabalho de organização, em desenvolvimento, no Rio de Janeiro. O MTST, na

Região Metropolitana do Rio de Janeiro, chegou a ter 2.001 famílias assentadas em três

regiões: 1.600, em Sepetiba; 360, em Nova Iguaçu e 41, em Bangu. Entretanto, de acordo com

a avaliação de Oliveira, não foi possível difundir as propostas do Movimento para o conjunto

dos assentados, devido ao pequeno número de militantes e ao forte sistema de coerção e de


144

cooptação utilizado pelo governo estadual. Assim, o MTST acabou por perder o controle e a

direção das ocupações.

Atualmente, o MTST não está presente na metrópole do Rio de Janeiro. Suas

principais lideranças retornaram a São Paulo, ou foram deslocadas para acampamentos do

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no estado do Rio de Janeiro. Há, por parte

de membros da coordenação estadual de São Paulo, a intenção de reativar a atuação no estado

do Rio de Janeiro. Estas lideranças avaliam que as dificuldades enfrentadas, neste estado,

podem ser superadas por meio de uma ação mais adequada às condições de vida e à cultura

locais.

Atualmente, o MTST se encontra mais estruturado no Estado de São Paulo. Ainda

não possui uma coordenação nacional, mas, mantém alguma interlocução com movimentos

análogos em Sergipe, Rio Grande do Norte e em Minas Gerais. Em São Paulo, o Movimento

chegou a reunir quatro ocupações: Parque Oziel, em Campinas; Carlos Lamarca, em Osasco;

Anita Garibaldi, em Guarulhos e Santos Dias, em São Bernardo do Campo. Os acampados de

Osasco e de São Bernardo foram despejados, mas parte das famílias está alojada e recebendo

a orientação e o acompanhamento da coordenação estadual do Movimento.

Cabe registrar que, em seus momentos mais expressivos, o MTST se afirmava, de

forma privilegiada, em contextos que são mais que urbanos, são efetivamente metropolitanos.
145

3.2. RAÍZES HISTÓRICAS E SOCIAIS DA FORMAÇÃO DO MTST

Segundo os relatos mais completos da gênese do MTST, o movimento se originou

de decisão política de um segmento dos dirigentes do MST do Pontal de Paranapanema. Esta

decisão foi provocada pela constatação da progressiva redução dos números de interessados

em retornar ao campo e se fixar no meio rural. Este fato sinaliza para o movimento, a

necessidade de reconhecimento de um limite objetivo à luta por terra e por reforma agrária.

Em face desta compreensão, algumas lideranças constróem o Movimento dos Trabalhadores

Sem Teto como uma alternativa, um meio para o enfrentamento desse limite, cujo objetivo é

ampliar a correlação de forças na luta pela reforma agrária, articulando-a à luta por reforma

urbana.

Desta maneira, é a própria dificuldade sentida na ampliação da base do MST que

apóia o reconhecimento da questão urbana. Neste processo, é impossível desconhecer a força

dos processos de modernização da agricultura e de urbanização que caracterizaram (e

caracterizam) o estado de São Paulo.

Nos depoimentos anteriores, têm-se pistas bastante instigantes para o

esclarecimento de determinantes do processo de formação do MTST. Jota, por exemplo,

aponta dois processos impulsionadores da constituição do Movimento: as especificidades da

experiência no Pontal de Paranapanema e a realização das marchas. Não temos dúvida sobre a

relevância das marchas na luta por reforma agrária. As marchas apóiam o fortalecimento da

luta por reforma agrária, por permitirem a difusão e a ampliação sócio-territorial da adesão a

esta causa. Entretanto, avaliamos que o fato do MTST ter nascido da experiência do Pontal e

ter se espraiado para outras cidades e estados, a partir de processos de organização

desenvolvidos ao longo das marchas estadual e nacional, expressa transformações de caráter

geral, que devem ser decifradas à luz da análise dos processos sociais e históricos,
146

responsáveis pela expulsão da população trabalhadora rural e sua vinda maciça para as

grandes cidades, onde terminam por engrossar as fileiras da população sobrante, face às

necessidades médias do capital.

Desvendar os ardis que conformam esse processo é uma tarefa imprescindível

para a apreensão das determinações que singularizam o MTST como movimento social. Para

tal, vamos iniciar a análise pelo resgate, ainda que de modo sucinto, das recentes

transformações na agricultura brasileira e, mais especificamente, na agricultura paulista.

Consideraremos, sobretudo, as suas conseqüências sociais e impactos sobre as estrutura de

classes no campo. O foco desta análise se dirige para a apreensão da questão social, no que

concerne ao agravamento das condições de vida e suas repercussões sobre os processos de

resistência à agudização da expropriação e da exploração da força de trabalho no meio rural.

Em seguida, procuraremos demonstrar os vínculos existentes entre a intensificação da

expropriação e da exploração e a formação de amplos segmentos de população sobrante nas

metrópoles brasileiras. Daremos particular ênfase à periferia da grande metrópole paulista,

para onde tem migrado, nas décadas recentes, parte dos trabalhadores expulsos do campo e do

núcleo metropolitano.

A constituição do MTST, conforme visto, representa uma resposta política às

conseqüências de fortes alterações nas relações sociais no campo, em seus efeitos nas grandes

cidades brasileiras. Nestas transformações, residem tendências que conectam a sociedade

brasileira à dinâmica capitalista na idade do monopólio, o que, de acordo com Hobsbawn,

nos isola para sempre do mundo passado. Trata-se, neste verdadeiro divisor de águas, da “[...]

morte do campesinato: [...] a mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da

segunda metade do século XX” (HOBSBAWN, 1996:284). É nosso intuito, todavia, mostrar

como essas tendências mais amplas do capitalismo têm se inscrito em relações sociais que

singularizam a sociedade brasileira atual.


147

Hobsbawn, na citação acima, refere-se a uma tendência inerente ao

amadurecimento do capitalismo, quando se afirma o estágio monopolista do Capital. Nesta

fase, potencializam-se as contradições fundamentais do estágio concorrencial – a exploração,

a alienação e a transitoriedade histórica – através da combinação destas com novas

contradições e antagonismos, que tornam ainda mais complexa a sociedade burguesa

madura87.

É típico da natureza do capitalismo, neste estágio, apropriar-se do Estado, com

vistas a fazê-lo assegurar o sobrelucro nos setores monopolizados da economia. O Estado

passa a agir, progressivamente, como organizador da vida econômica e administrador das

crises inerentes à natureza e à dinâmica do modo de produção. Crises que tendem a aumentar,

nesta fase do desenvolvimento capitalista.

O ingresso da sociedade brasileira neste estágio do capitalismo ocorreu pelas

mãos dos governos militares, após o golpe de 1964. A partir deste período, toda a vida social

e não mais, apenas, a atuação das instituições estatais, passou a ser determinada “[...] pela

política de a acumulação capitalista acelerada” (IANNI, 1986:17).

A política estatal se orientou em direção à consolide ação e à expansão do

capitalismo dependente, como estratégia de contenção de alternativas de cariz nacionalista, e

até mesmo socialista, em afirmação nos primeiros anos da década de 60 do século passado. As

forças do grande capital saíram vencedoras dos embates sócio-políticos deste período e

direcionaram a ação do Estado em favor da dinâmica concentradora dos investimentos e

centralizadora da acumulação, com fortes impactos na rede urbana brasileira.

Assim, o ajustamento da economia brasileira à nova fase do capitalismo, foi

realizado num contexto de ascensão e hegemonia do grande capital, especialmente após 1968.

A implementação do modelo econômico associado, gerido por um Estado altamente

87
Ver a respeito Netto (1992).
148

intervencionista, e sob as regras da ditadura militar, sustentou o intenso e generalizado

desenvolvimento, em moldes capitalistas, no campo e na cidade.

Netto, em precisa avaliação do modelo de desenvolvimento adotado na década de

70, sintetiza suas linhas mestras da seguinte forma:

[...] benesse ao capitalismo estrangeiro e aos grandes grupos nativos,


concentração e centralização em todos os níveis, o que instaura a
internalizarão e a territorialização do imperialismo, uma concentração da
propriedade e de renda que engendrou uma oligarquia financeira, um padrão
de industrialização na retaguarda tecnológica e vocacionada para fomentar e
atender demandas enormemente elitizadas no mercado interno e direcionado
desde e para o exterior: a constituição de uma estrutura de classes fortemente
polarizada, apesar de muito complexa: um processo de pauperização relativa
praticamente sem precedentes no mundo contemporâneo: a acentuação
vigorosa da concentração geopolítica das riquezas sociais, aprofundando
brutais desigualdades regionais (NETTO, 1998:32).

Estas transformações estruturais, expressivas da modernização pela via

conservadora, geraram o acelerado assalariamento de amplos setores da classe trabalhadora e,

em particular, das classes médias; contribuíram para o brutal aumento da urbanização e

acarretaram, ao lado da constituição de um segmento moderno da força de trabalho, o

aumento do desemprego e da degradação das condições de vida nas cidades88.

Vale lembrar, entretanto, que o reordenamento da economia e das funções do

Estado não modificou, apenas, o mundo urbano, mas também, as relações sociais no campo.

Na década de 70, o governo militar introduziu profundas modificações na política agrária do

país. Como parte desta política, foi realizada a modernização e a mecanização da agricultura,

o que resultou na expulsão de assalariados, parceiros e arrendatários das grandes propriedades

rurais, sobretudo na região Sul.

A implantação deste projeto de modernização econômica, pela via conservadora,

pôs os governos militares diante do seguinte dilema: empreender a modernização do campo

88
Ver a respeito em BOSCHI (1987).
149

em consonância com os interesses econômicos dominantes ou responder às lutas por reforma

agrária do período anterior ao golpe de 1964 89.

Este não era um dilema menor naquela conjuntura, pois o aprendizado da luta

acumulada pelos trabalhadores do campo, ainda que enfrentada por meio de dura repressão,

parecia ter se tornado irreversível. Além do mais, a pauperização destes trabalhadores –

resultante histórica da dominação e da exploração empreendida pelo latifúndio – era cada vez

mais intensa, o que exigia algum tipo de intervenção, que evitasse por em risco o projeto de

desenvolvimento gerador da acelerada modernização econômica em curso no período.

O Estatuto da Terra, aprovado no início do governo militar e, posteriormente, a

criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), representaram

algumas das respostas do regime ao acirramento das lutas do campo no período anterior ao

golpe. Por meio do Estatuto, conforme Martins (1986) demonstra, a reforma agrária é

reduzida a ações emergenciais nas áreas de conflito e ao estímulo à colonização de áreas

novas. De fato, a finalidade deste instrumento era esmorecer a luta dos trabalhadores, por

meio de limitada desapropriação de terras, e propiciar o ingresso do grande capital no campo.

A expansão do capital comercial, industrial e financeiro no campo, apoiada na

atração de grandes empresas ou na pressão pela modernização do latifúndio tradicional, foi,

efetivamente, impulsionada pelo Estado. Coube a este, não só assumir o papel de financiador

da modernização do campo, por meio do sistema de crédito e das políticas de comércio

exterior e de preços, como também, conceber e implementar uma política fundiária

favorecedora da grande propriedade territorial. Profundas mudanças na estrutura fundiária e,

por conseguinte, nas relações de produção e de classe, resultaram desta intervenção. A

propriedade territorial foi mantida intocada e transformada numa garantia de acesso a

financiamentos, em condições privilegiadas. Conjugaram-se, assim, os interesses das

89
Ver a respeito em Martins (1986).
150

empresas e dos grandes proprietários, com base na integração e na valorização do capital

permitidos pela expansão do sistema financeiro e do crédito.

Algumas fortes tendências surgem a partir destas mudanças. Entre estas,

destacamos a proletarização do trabalhador do campo, decorrente da expropriação de suas

precárias formas de acesso à terra. Este processo reduziu a possibilidade de reprodução

independente da pequena produção, ou das formas de produzir, nas quais o trabalhador

mantém o controle do processo de trabalho. Acompanha a proletarização, o aumento da

diferenciação interna do campesinato, “[...] com a recriação de produtores familiares que se

tecnificam” (SILVA, 1999:17) para se adequar aos novos padrões competitivos, presentes na

atividade gropecuária. Ao mesmo tempo, foi preservada a pequena produção de subsistência,

caracterizada por uma espécie de semi-assalariamento, apoiado na existência de laços frágeis

com os meios de produção.

Em contrapartida, consolidam-se a agroindústria e a grande empresa agrícola – as

forças dominantes no agrobrasileiro – que agregam, segundo Martins (1980), aos seus

instrumentos de poder e riqueza, a propriedade da terra.

Esse modelo de expansão das atividades capitalistas no campo não resultou,

todavia, na superação das históricas desigualdades entre estados ou, mesmo, entre regiões,

uma vez que o crescimento econômico se materializou de maneira diferenciada. Além disto,

na medida em que os recursos financeiros e técnicos alocados, foram concentrados num

pequeno segmento do empresariado, especialmente das regiões Sul e Sudeste, gerou-se a

desagregação da produção existente90. Desse modo, constituiu-se, ao longo dos últimos anos,

um amplíssimo complexo burguês, em que formas diversas de competição refletem,

exatamente, a presença de interesses não-homogêneos, porém dominantes, articulados sob a

hegemonia do capital financeiro.

90
Ver Martine (1987).
151

A competição intra-capitalista gerada por estes processos, no entanto, não tem se

traduzido em divergências mais profundas entre as frações das classes dominantes, posto que,

historicamente, observa-se a sua capacidade de união em momentos de crise e, muito

particularmente, quando se trata de barrar propostas que realmente efetivam a reforma agrária.

As diferenças que permeiam as relações entre grandes proprietários territoriais, empresas

agroindustriais e empresários rurais, têm sido contornadas, ainda que transitoriamente, através

de articulações e acordos que visam o acesso a políticas públicas de incremento à produção e

valorização do capital. Neste contexto, perde relevância a idéia de que existe uma burguesia

agrária com interesses opostos aos do restante das frações da burguesia, visto que o grande

capital industrial passou a ter também uma face agrária, decorrente do fato de que o mercado

de terras se tornou uma aplicação alternativa para sua valorização.

Silva demonstra que este padrão de desenvolvimento foi construído em três

momentos: “(...) o da constituição dos complexos agro-industriais, o da industrialização da

agricultura e, o mais recente, da integração de capitais intersetoriais sob o comando do capital

financeiro” (SILVA, 1996:30).

Ao patrocinar, no espaço agrário brasileiro, a associação de grandes grupos

empresariais com a propriedade da terra, o Estado reforçou, na burguesia como um todo, seu

caráter conservador e anti-reformista. Esta associação gerou, ainda, novas atividades

econômicas, inclusive vinculadas ao mercado internacional. Com isso, os investimentos no

campo passaram a ter a marca da indústria, do grande intermediário, e, com especial força, do

capital bancário-financeiro.
152

É neste contexto que surge o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). A

política de modernização e mecanização agropecuária foi efetivada, concomitantemente, à

construção de grandes hidrelétricas, o que ampliou a desapropriação das terras de pequenos

agricultores. Parte dos trabalhadores expulsos buscou, nas cidades, oportunidades de emprego

e de acesso à renda. A crise econômica dos anos 80, porém, provocou o aumento do

desemprego e a conseqüente não absorção, ou absorção precária, destes segmentos da classe

trabalhadora.

No final dos anos 70, sob a organização da Comissão Pastoral da Terra, à qual

mais tarde se somaram representantes da Igreja Luterana, iniciou-se, nos estados do Sul, a

organização de trabalhadores sem terra.

Em 1982, o Movimento já havia se espalhado por vários estados do país. Neste

ano, a Comissão Pastoral da Terra iniciou a realização de encontros que resultaram na funde

ação do "[...] movimento de camponeses sem terra de alcance nacional voltado à luta por terra

e pela reforma agrária" (MORISSAWA, 2001, p.36).

A organização do MST ocorre num cenário político marcado pelo declínio91 do

regime militar e pela mobilização de diversos segmentos sociais, em direção à superação dos

componentes autoritários da ordem política. Neste período, diversos movimentos


92
representativos da classe trabalhadora, sob o impulso das grandes lutas operárias,

retomaram e ressignificaram suas perspectivas de luta e obtiveram significativas conquistas

no campo e na cidade93.

Como parte deste processo de ressignificação das lutas sociais, foi construída uma

dura crítica ao predomínio de relações clientelistas e corporativistas nos movimentos

sindicais. A partir de uma perspectiva de atuação que privilegia a democracia participativa, os

91
Netto (1998).
92
Estamos nos referindo às lutas operárias ocorridas em fins dos anos 70,impulsionadas a partir do ABC
paulista, que sacudiram o país, por romper os estreitos limites da estrutura sindical oficial e impor ao processo de
abertura, horizontes políticos mais largos do que os projetados pelo discurso oficial.
153

trabalhadores passaram a se organizar nas comunidades eclesiais de base, nas oposições

sindicais, nos movimentos de saúde e outros. Assim, aos poucos, a tradicional subalternidade

política das bases, característica de alguns setores do sindicalismo, foi substituída por uma

cultura política que valorizava a mobilização e a pressão direta como instrumentos de

conquista de demandas salariais e direitos trabalhistas amplos. Apesar da existência de

diferenças, e até mesmo de divergências teóricas e políticas entre os defensores deste projeto,

estes tinham em comum a luta pela redemocratização da sociedade brasileira e pela afirmação

de novos sujeitos sociais.

Essas lutas influenciaram a formação de instituições que, segundo Fernandes

(1996), serviram como matrizes político-culturais do Movimento dos Trabalhadores Sem

Terra: o novo sindicalismo, representado pela CUT e o Partido dos Trabalhadores. Estes, ao

lado de setores da Igreja, especialmente, da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação,

contribuíram, decisivamente, na formação do ideário político orientador das lutas dos

trabalhadores rurais, que emergia naquele período. Vale lembrar, ainda, que o envolvimento

da Igreja Católica com a questão da luta pela terra, é anterior a este período.

Hoje, o MST está organizado em quase todo o país. Sua luta por terra e pela

reforma agrária se articula, conforme mencionado, ao processo de reprodução ampliada do

capital na agricultura. Neste processo, manifestam-se as estratégias do capital, em sua fase

monopolista, que arrasta a sociedade como um todo para o movimento de valorização do

capital.

No estado de São Paulo, a agricultura sofreu intensa transformação, a partir dos

anos 70. Volumes crescentes de crédito subsidiaram a modernização tecnológica, em alguns

setores da produção agropecuária, que passaram a depender do dinamismo da indústria

produtora de insumos. Esta mudança na base técnico-financeira da agricultura brasileira

93
Consultar a respeito em Singer e Brant (1981) e Sader (1988).
154

consolidou o processo de industrialização no campo e a destruição de relações familiares de

produção, fomentando a difusão do assalariamento. Com o financiamento do Estado e com

preços garantidos pelo monopólio da terra e da técnica, foi diversificada a exportação de

produtos agrícolas. Com este impulso, as empresas capitalistas, concentradas nas regiões de

Campinas, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, ampliaram exponencialmente a dimensão

de suas propriedades.

A organização do MST em São Paulo originou-se da luta dos posseiros da

Fazenda Primavera nos municípios de Andradina, Castilho e Nova Independência, no Oeste

do estado. Conforme antes registrado, o Movimento, em sua gênese, contou com o apoio

efetivo da Comissão Pastoral da Terra (CPT).94 A vitória dos posseiros da Fazenda Primavera,

em 1980, estimulou a organização de outros lavradores da região. Em 1981, fruto da

articulação destas lutas promovida pela CPT, inicia-se, a partir da reunião de lideranças de

Andradina, Sumaré e do Pontal de Paranapanema, o processo de constituição do Movimento

dos Sem Terra do Oeste de São Paulo.

Nos primeiros processos de enfrentamento, ocorridos neste período, o Movimento

contou, também, com o apoio de alguns sindicatos de trabalhadores rurais e de alguns

parlamentares de oposição, vinculados ao PMDB. A partir dos anos 80, este apoio foi

ampliado. O MST passou a contar com o apoio da Central Única dos Trabalhadores e

sindicatos filiados, do Partido dos Trabalhadores e do Partido Comunista do Brasil.

O Pontal de Paranapanema se localiza no extremo oeste de São Paulo. A ocupação

de terras desta região ocorreu por meio de grilagem de grandes áreas conquistadas e mantidas

através de processos expropriatórios marcados por brutal violência contra os posseiros. As

ocupações no Pontal datam do início dos anos 80. Porém, as ocupações impulsionadas pelo

projeto da reforma agrária, sob a bandeira do MST, só tiveram início em 1984. Não

94
Ver a respeito em Fernandes (1996).
155

casualmente, em 1985, o Pontal torna-se berço da União Democrática Ruralista – forte núcleo

da luta contra a reforma agrária em âmbito local, estadual e nacional.

A região desenvolve, como principal atividade, a agropecuária. Destacam-se as

culturas do milho, algodão, feijão, mandioca, cana-de-açúcar, além da pecuária de corte e

leite. O Pontal também abriga extensa área de floresta tropical, incluindo o Parque Estadual

Morro do Diabo, uma das maiores e mais importantes reservas de mata nativa do Estado.

A região apresenta baixa densidade demográfica. A sede da Cocamp (Cooperativa

de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados de Reforma Agrária do Pontal

Ltda) está localizada na cidade de Teodoro Sampaio, que tem cerca de 20.000 habitantes. A

CESP (Companhia Energética do Estado de São Paulo), quando da construção das usinas

hidroelétricas de Rosana e Taquaruçu, foi responsável pela geração de muitos empregos, o

que provocou rápido crescimento e desenvolvimento da cidade. Com a finalização dos

trabalhos da companhia, os moradores enfrentaram o desemprego e a migração dos jovens,

situação compartilhada por todos os municípios da região.

Conforme antes afirmado, a estrutura fundiária da região está baseada em

latifúndios situados em terras pertencentes ao Estado, griladas no período da ocupação. Trata-

se de terras devolutas, que estão na origem dos conflitos entre fazendeiros e integrantes do

Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Em 1995, a região do Pontal era uma das

principais áreas de conflito fundiário do país. A intensificação destes conflitos levou o

governo do estado a levantar a situação fundiária do território paulista. Este levantamento

mostrou que 15% da terra total do estado poderia ser (re)incorporada ao patrimônio público.

No Pontal, porém, a incorporação de terras tem estado marcada pela lentidão. Segundo

informação fornecida por Bernardo Fernandes (1996), a região possuía, à época,

aproximadamente 445.000.000 hectares de terras devolutas e 520.000.000 submetidas a ações

discriminatórias, estando a maior parte das terras sob o domínio de grileiros.


156

Existem, atualmente, setenta e seis assentamentos de Reforma Agrária com cerca

de seis mil famílias, na região. Os últimos levantamentos indicam que, na grande maioria

destes assentamentos, permanecem casais com idade superior a 40 anos. Seus filhos, como os

jovens em geral, não permanecem nos lotes conquistados, já que, muito embora a política de

reforma agrária adotada tenha como princípio a divisão dos assentamentos em pequenos lotes,

para o exercício da agricultura familiar, não existe acesso a recursos financeiros, em volume

suficiente, para a exploração total da área e conseqüente incorporação de toda a mão-de-obra

familiar disponível.

As famílias ficam, em muitos casos, até cinco anos acampados, morando em

barracos de lona, às margens das rodovias, em precárias condições de vida, em frente a

latifúndios improdutivos. Quando são finalmente assentadas, as famílias são obrigadas a

transferir o barraco para lotes sem qualquer infra-estrutura. Esta situação acaba gerando,

principalmente entre os mais jovens, a busca por emprego nas cidades próximas.

Em 1994, com a eleição de Mário Covas para o governo do estado de São Paulo, e

diante do recrudescimento de violentos conflitos na região do Pontal e sua repercussão em

órgãos da imprensa, em âmbito nacional, modificaram-se as relações entre representantes do

executivo estadual e o Movimento. Covas nomeou para a Secretaria de Justiça e da Defesa da

Cidadania, o advogado Belisário S. Júnior95, que contribuiu para dar início à negociação com

o Movimento. Após longo embate entre as partes envolvidas, o governo decidiu apresentar

um acordo que previa, dentre suas diversas cláusulas: a utilização, nas ações reivindicatórias,

de 500 hectares, ou até 30% do total da área em litígio, para assentamentos provisórios, sem

prejuízo do prosseguimento regular da ação de reintegração das terras devolutas. Em

contrapartida, o Secretário de Justiça solicitou ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, a

suspensão das ocupações.

95
De acordo com Fernandes (1996), o advogado possuía, em sua trajetória profissional, ligação com a
Arquidiocese de São Paulo. Desse modo, sua nomeação para a Secretaria representava, em certa medida, um
157

Este acordo não foi considerado satisfatório, nem pelos coordenadores do MST,

nem pelos grileiros. Para os primeiros, a extensão de terras destinadas para assentamento, nas

fazendas ocupadas, era insuficiente para assentar todas as famílias acampadas. Já os grileiros,

não aceitaram a proposta, sobretudo por duas razões: o acordo não limitava o assentamento de

famílias, em apenas uma localidade, o que favorecia a ampliação territorial das ocupações, e,

também, a proposta não garantia o pagamento de todas as benfeitorias em dinheiro. Contudo,

segundo o relato de Fernandes (1996), a proposta atendeu aos interesses dos acampados, já

cansados dos constantes despejos, o que gerou grande tensão na relação entre a coordenação

do MST, e sua base. Neste contexto, acirrou-se o conflito, incluindo a prisão de líderes do

Movimento. Ocorreram, ainda, algumas batalhas judiciais, garantindo e depois revogados os

termos do acordo, o que provocou novas ocupações, atos públicos de solidariedade ao

Movimento, marchas estaduais e intermediações políticas, que chegaram a envolver a

presidência da república. Por fim, em abril de 1996, o Superior Tribunal de Justiça, acatando

recurso da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, ordenou, para fins de reforma agrária,

o resgate da tutela de 30% das áreas arrecadadas para os assentamentos provisórios96.

Dezesseis anos depois da ocupação da Fazenda Primavera, havia no estado de São

Paulo quatorze acampamentos com três mil quatrocentos e noventa e nove famílias, fato que,

de acordo com o autor citado, demonstra que a reforma agrária no estado e no país vem sendo

efetivada, na prática, pela luta dos trabalhadores sem terra.

Passados, aproximadamente, vinte anos do seu início o Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra, acumulou uma larga experiência política, resultante da avaliação

dos numerosos acampamentos e assentamentos realizados, e tornou reconhecida e legítima a

luta por reforma agrária, além de ter reunido um conjunto de aliados políticos e simpatizantes,

em âmbito nacional e internacional. Diante da implantação de medidas neoliberais, nos anos

abalo na histórica aliança entre os grileiros e o governo do estado.


96
Consultar a respeito deste processo Fernandes (1996).
158

9097 e da inserção do país na globalização através da ampliação da abertura da economia do

país, o Movimento se depara com o terrível agravamento da questão social, cujas repercussões

tornam ainda mais difíceis as condições de vida da classe trabalhadora, no campo e na cidade.

O privilegiamento dos oligopólios financeiros e agroalimentares internacionais; a

produção voltada para a exportação e pagamento da dívida externa e a redução dos

investimentos públicos, cerne do modelo neoliberal, combinados com a abertura econômica,

têm trazido perversas conseqüências sociais, entre as quais destacamos:

− Aumento do desemprego no campo, devido não só à introdução de novas

técnicas de produção, mas também, ao declínio de algumas empresas mais dependentes de

recursos públicos, frente à competição com as empresas multinacionais;

− Crescimento da capacidade das empresas multinacionais de imposição dos

preços das matérias-primas, e do montante dos salários98;

− Progressiva vulnerabilidade do país, em relação ao abastecimento alimentar,

especialmente dos setores de baixa renda, além de crescente sangria de recursos, dada a

remessa de lucros, royalties e outros pagamentos ao exterior;

97
Essa informação pode ser comprovada a partir do Censo Agropecuário de 1996, que revela os resultados de
onze anos de neoliberalismo no campo brasileiro. Os dados demonstram que as políticas adotadas,principalmente
durante o Governo FHC (1995-2002), intensificaram a concentração da propriedade da terra, levando milhões de
trabalhadores à perda do trabalho. Um balanço da situação da reforma agrária em 1996, realizado pelo MST,
demonstrou que, apesar de o presidente ter afirmado que não faltariam recursos, a realidade demonstrou a
ausência de priorização da questão. Dos 1,5 bilhões de reais aprovados no Orçamento da União para a reforma, o
governo liberou apenas 1,251 bilhão, ou seja, houve um corte de 264 milhões. Das famílias assentadas em 1996
pelo INCRA, de acordo com levantamento de meados de dezembro, 18 mil se referem às que receberam terras
em projetos já existentes. O MST, em seu relatório do ano de 1996, estimou que cerca de 25 mil famílias foram,
de fato, assentadas, em projetos de reforma agrária, enquanto o governo FHC informou ter assentado 62.000
famílias.
98
No período em questão, a Parmalat incorporou empresas no Brasil, Uruguai, Argentina, Venezuela, Canadá.
No Brasil, nos anos 90, após o Estado abandonar a ação reguladora do mercado, a Parmalat interveio,
maciçamente, no mercado do leite, levando à queda de renda e à penalização de pequenos produtores.
159

− Aumento da pauperização, da superexploração, e, até mesmo, no campo99;

− Manutenção de alta concentração de terra em poder de uma minoria.

Intensificação dos conflitos, da violência no campo e da exclusão social, do acesso à terra e

aos benefícios da modernização técnica;

− Urbanização do meio rural, em parte como resultado da homogeneização dos

mercados de trabalho agrícola e industrial, mas também, devido à intensidade da expansão

urbana, em áreas antes dedicadas à produção agropecuária;

− Expulsão de trabalhadores do campo, por impossibilidade de acesso à terra e a

condições de sobrevivência, com o conseqüente aumento do desemprego e da violência

urbana.

Estas conseqüências econômicas e sociais são expressivas da forma da expansão

do capitalismo no país: não incorporação dos trabalhadores aos benefícios do

desenvolvimento econômico e combinação de diferentes processos de modernização à

preservação de arcaicas relações sociais de produção100.

Estas circunstâncias, dada a sua força brutalmente desagregadora do tecido social,

têm acirrado os conflitos no campo e repercutido na condução da ação do Movimento dos

Trabalhadores Sem Terra, posto que as mudanças na estrutura de classes no campo

acarretaram modificações na própria base social do MST. Fernandes fornece exemplo de

como essas mudanças na conformação da base social afetaram as diversas lutas travadas pelo

movimento, entre os anos de 1980 e 1986, no estado de São Paulo.

99
Em recente trabalho de pesquisa sobre o trabalho escravo no Brasil, Eudoro Santana constatou que 43% dos
casos denunciados, no período de 86 e 91, ocorreram em agroindústrias do setor sucroalcooleiro. A agroindústria
sucroalcooleira, mesmo tendo recebido enormes subsídios do Pró-Álcool, continua mantendo, com seus
trabalhadores, relações de superexploração e de escravidão. O autor constata que, além do crescimento brutal do
número de trabalhadores escravizados, nos últimos anos, a geografia do trabalho escravo no Brasil aponta, como
área de concentração, exatamente as regiões de acelerado crescimento capitalista ou as fronteiras agrícolas,
ondas grandes empresas contam com amplo apoio estatal, através de incentivos fiscais. Dados da Comissão
Pastoral da Terra também demonstram o acelerado crescimento do número de trabalhadores escravos no Brasil.
Em 1990, foram registrados doze casos, envolvendo 1.559 pessoas escravizadas. Em 1991, foram 27 casos
envolvendo 4.883 pessoas; em 1992, dezoito casos e 16.442 pessoas. Ver a respeito Santana (2000).
100
Ver a este respeito em Fernandes (1987) e Iamamoto (2001).
160

A origem da luta pela terra em Sumaré é distinta das outras lutas no estado
pelo fato de emergir em uma realidade diferente [...]. Uma das diferenças é
que na luta de Andradina [...] os trabalhadores estavam no campo. Na luta de
Itapeva [...] havia a participação de arrendatários e meeiros. Na luta do
Pontal havia a participação mista de bóias-frias, desempregados das
construções das barragens e posseiros. Em Sumaré, todos os trabalhadores
que participaram das lutas estavam na cidade. Expropriados ou expulsos do
campo, haviam migrado em busca de condições de sobrevivência.
(FERNANDES, 1996:117)

Estas alterações, expressivas da atualização do processo de expropriação da terra e

aumento da exploração da classe trabalhadora, ocorridas no Estado, acarretaram a necessidade

de mudanças estratégicas na atuação do MST. No Congresso de 1995 estas novas

circunstâncias foram, amplamente, debatidas. Com base nos resultados deste debate, o

Movimento deliberou ampliar suas bases sociais em área urbana. O slogan “R eforma Agrária

é uma luta de todos” indica o redimensionamento projetado pelo MST para esta fase de sua

ação. Esta palavra de ordem corresponde à compreensão de que a luta pela reforma agrária

não deveria ser assumida, apenas, pelos trabalhadores sem-terra. A análise das circunstâncias

vividas pelo movimento indicava que a “[...] luta pela reforma agrária iria se decidir nas

cidades” (MST, 2001:60).

A partir desta decisão, é iniciada a busca de maior articulação com os movimentos

sociais urbanos e a própria constituição das bases de organização do Movimento dos

Trabalhadores Sem Teto.

Nesta mudança na estratégia do Movimento reside, ao que tudo indica, a busca de

superação da falsa oposição entre campo e cidade, imposta pela divisão social e técnica do

trabalho; oposição já em parte rompida pelo próprio avanço das forças produtivas e pelo

conjunto das transformações capitalistas no campo e na cidade.


161

3.3. TRANSFORMANDO O LIMITE EM POSSIBILIDADE: SÍNTESE DOS

PRINCIPAIS DETERMINANTES SOCIAIS DA FORMAÇÃO DO MTST

Os processos históricos, até aqui analisados, permitem tecer algumas reflexões

teóricas em apoio à apreensão do complexo de determinações que estiveram na gênese do

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, na Região Metropolitana de São Paulo. Não é nossa

intenção, com este procedimento, desassociar processos analíticos, mas afirmar, com base na

orientação teórico-metodológica adotada, a existência de determinações de caráter particular e

imediatamente concreto e de determinações de caráter universal e abstrato que, conjugadas,

contribuem para a formação de um terreno propício à emergência deste movimento social.

Com esta perspectiva teórico-analítica ressaltamos que, para além da forma

particular de expansão do capitalismo no Brasil e da conseqüente metamorfose das relações

sociais no campo, existe uma determinação essencial do contexto no qual emergiram as

condições necessárias ao nascimento do MTST: a forma capitalista de organizar a produção

em qualquer espaço.

Na dominação do capital sobre o trabalho, e sua decorrente necessidade de

subjugar o trabalhador e controlar os meios de produção, o capital trava uma luta constante

contra os obstáculos à sua reprodução ampliada. Enfrenta a propriedade da terra para fazê-la

produzir, em consonância com os seus desígnios; transforma a terra em terra de negócios, em

mercadoria e, por conseguinte, em produtora de mais valia, muito embora, sob a forma de

renda da terra101. Pelo mesmo processo expropriatório, promove a separação entre o

trabalhador e os meios de que necessita para trabalhar, transformando o anterior dono da terra

em trabalhador assalariado.

101
“[...] a propriedade fundiária, ainda que sob diversos códigos, foi incorporada pelo capitalismo, contradição
essa que se expressa na renda capitalista da terra. Tal renda nada mais tem a ver com o passado pré-capitalista,
não é mais um tributo individual e pessoal do servo ao senhor; agora é um pagamento que toda a sociedade faz
pelo fato de que uma classe preserva a propriedade da terra” (MARTINS, 1979:20).
162

Nestes processos se expressam, conforme afirmação de Marx a seguir, os

fundamentos da sociedade regida pelo capital.

[...] el trabajo asalariado no es creado en su plenitud sino por la acción del


capital sobre la propiedad de la tierra, y luego, una vez que ésta se há
consolidado como forma, por el propietario mismo de la tierra.Este, como
dice Steurt, clears la tierra entonces de sus bocas superfluas, a los hijos de la
tierra los arranca del pecho que los crió y transforma de este modo la propia
agricultura, que conforme a su naturaleza se presenta como fuente directa de
subsistencia, en fuente mediada de subsistencia, completamente dependiente
de relacione sociales (MARX, 1980:218)102.

A expropriação dos meios e da condição de trabalho é, portanto, fundante do

próprio modo de produção que, para seu desenvolvimento, requer a apropriação privada da

força de trabalho alheio e, por conseguinte, a separação do produtor direto dos seus meios de

produção. A expropriação de meios de produção cria as condições necessárias para o

exercício da outra face do processo de reprodução ampliada do Capital: a exploração; através

da exploração, o capitalista se apropria do excedente gerado no processo de trabalho.

Na atualidade, porém, na medida em que as empresas, tanto na cidade como no

campo, tendem, progressivamente, a incorporar tecnologia poupadora de mão de obra, o

destino de grande parte dos assalariados oscila entre o desemprego e a indigência e/ou o

trabalho precário. Provavelmente por esta razão, a luta pela terra, no presente, possui um

perfil ímpar, capaz de, potencialmente, aglutinar trabalhadores rurais e urbanos. O

desemprego, a carência de habitação e a necessidade de serviços urbanos, fazem com que o

acesso à terra surja como uma alternativa para o suprimento das necessidades básicas de

reprodução para um segmento da classe trabalhadora que resiste à lumpenização.

102
O termo clears significa, de acordo com a tradução do autor, despeja, libera.
163

No tocante à articulação entre lutas no campo e na cidade, cabe dizer, ainda, que o

capital, ao dominar a agricultura, gera uma fonte de superpopulação relativa103,

permanentemente ameaçada de ter que se transferir para a cidade. Ao mesmo tempo, a

migração possui um antecedente necessário: a existência de uma superpopulação latente no

campo, sazonalmente utilizada.

Na luta pela terra, combina-se, conforme demonstra Martins (1979), a resistência

aos dois processos antes mencionados: a expropriação e a exploração.

No Brasil, o desenvolvimento capitalista tem, historicamente, implicado a

expropriação, de forma violenta, das formas de acesso à terra alcançadas pelo trabalhador.

Esta expropriação tem sido efetivada pelo latifundiário tradicional, o empresariado moderno e

o próprio Estado que, de distintas maneiras, também destitui o trabalhador de suas condições

de vida e trabalho.

Apesar das diferenças entre estes agentes, a história tem mostrado, não só o

emprego da violência, mas também, a permanente resistência daqueles que sofrem a

expropriação levada a efeito por órgãos de governo, em associação com as forças privadas do

latifúndio e das grandes empresas. Tal associação constitui um dos traços característicos do

Estado capitalista, especialmente em países nos quais a revolução burguesa ocorreu por meio

de pactos que preservaram a grande propriedade rural, como é o caso do Brasil.

O fato, já mencionado anteriormente, da revolução burguesa no país ter ocorrido

com forte dissociação entre desenvolvimento capitalista e regime democrático e, ainda, ter

sido concluída sem ruptura com o imperialismo e com o latifúndio, permitiu que a resposta à

questão agrária tivesse sido o reforço da capitalização no campo e a industrialização da

agricultura, o que gerou a permanente subordinação da produção agrícola aos comandos do

103
A constituição da população sobrante pode ocorrer de diversas maneiras: a extração de mais trabalho de um
número menor de trabalhadores, por meio da introdução de inovações técnicas; a troca de força de trabalho
adulta pela infantil e da masculina pela feminina; a substituição da força de trabalho especializada pela não
especializada; a expropriação do trabalhador de sua base fundiária.
164

mercado internacional e a incorporação de relações não–capitalistas de produção e de

propriedade na própria dinâmica da expansão capitalista104.

Concentração da propriedade territorial e violenta expropriação dos trabalhadores

têm acompanhado, portanto, o amadurecimento do capitalismo, cujos resultados, como vimos,

são: acentuação da concentração da riqueza, da renda e da propriedade e aprofundamento das

disparidades sociais e regionais.

Com o golpe de 1964, segundo Florestan Fernandes (1987), encerra-se um

capítulo da história do país, uma vez que se arquiva a possibilidade de realização de uma

revolução democrático-burguesa e se inicia outro momento, no qual a modernização

econômica é imposta de cima para baixo. Neste momento, a burguesia alcança sua maturidade

e assume o poder de forma plena. O Estado, por ela capturado, não só implementou a

modernização pelo alto e ampliou as relações de dependência ao capitalismo internacional

como também, acionou todo o aparato repressivo para tentar conter e excluir as forças sociais

que se contrapunham à implementação do projeto de modernização conservadora do país.

Nestas circunstâncias, “[..] a velha oligarquia agrária se recompõe, moderniza -se

economicamente, refaz alianças para se manter no bloco de poder, influenciando

decisivamente as bases conservadoras da dominação burguesa no Brasil” (IAMAMOTO,

2001:109).

Estes processos, expressivos de mudanças e permanências, forjam, em

contrapartida, a emergência de novas contradições sociais. No tocante, especificamente, ao

surgimento de novas forças sociais no campo, Martins afirma que o regime militar, ao

procurar sufocar o conflito que se espalhava pelo país, estava, na realidade, tentando “[...]

domesticar o demônio político que ele liberou com a sua política agrária e econômica”

(MARTINS, 1980:15).

104
Ver a este respeito Iamamoto (2001).
165

Entretanto, cabe ressaltar que o aparecimento, na cena política, do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra só se dará, com vigor, em meados da década de 80, quando,

sob o impulso do clamor democrático e da transição política, o novo governo acena para a

possibilidade, nunca verdadeiramente deflagrada, de realização da reforma agrária105.

Desde a sua constituição até os dias de hoje, o Movimento acumulou uma

experiência política que tem possibilitado a denúncia do poder, detido pelos proprietários da

terra, e as forças e interesses que garantem o monopólio da terra.

Frente ao exposto, parece-nos possível afirmar que a luta pela reforma agrária,

embora seja caudatária das experiências construídas por mobilizações do passado – sobretudo

as ocorridas nos anos 1950-60, vinculadas à atuação das Ligas Camponesas, apresenta

matizes muito peculiares, com origem em determinações específicas do amadurecimento do

capitalismo na sociedade brasileira.

Não se trata mais de uma luta expressiva da oposição campesinato-latifúndio,

considerada por partidos de esquerda como um instrumento decisivo da transformação social,

num contexto marcado por urbanização ainda incipiente. Trata-se, agora, de uma luta entre

terra de trabalho e terra de negócio. Na terra de trabalho, segundo Martins (1980), os ganhos

não provêm da exploração de um capitalista sobre um trabalhador expropriado. São ganhos

provenientes do trabalho do lavrador e de sua família. Já na terra de negócio, cujos

proprietários são muitas vezes grandes complexos agroindustriais nacionais ou internacionais,

a apropriação da terra é feita com o intuito do lucro direto ou indireto (MARTINS, 1980).

Desejamos afirmar, em suma, que a implantação de um novo padrão de a

acumulação, distinto do prevalecente nas décadas anteriores, determinou metamorfoses,

inclusive, no sentido da luta pela terra, protagonizada pelo MST. Esta alteração no contexto,

105
É necessário ressaltar que o compromisso da Nova República com o que foi denominado de resgate da dívida
social se assentou, sob o impulso de uma transição fraca, e em meio a uma grave crise econômica, o que
restringiu, em muito, as possibilidades de materialização do projeto elaborado pelos movimentos sociais. A
respeito do conceito de transição fraca consultar Coutinho (2000).
166

nos sujeitos e no conteúdo das lutas no campo – expressivas das alterações nas relações de

produção – inclusive impõe, a nosso ver, a necessidade de pensar a classe, não como uma

categoria estática, mas como uma totalidade histórica concreta, que se faz em movimento,

cuja mola propulsora é a luta de classes.

De posse destas reflexões, voltamos ao processo em análise: a emergência do

Movimento dos Trabalhadores Sem Teto.

Como vimos, a emergência do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra ocorre

num contexto político no qual o regime ditatorial começava a entrar em declínio, por força,

inclusive, da pressão das lutas sociais. Mas, a constituição do Movimento deriva de um

complexo de determinações. Sua organização, não só corresponda possibilidades abertas pelo

contexto político, mas também, à consolide ação de relações assalariadas no campo; utilização

da mão-de-obra familiar, acompanhada do aumento da exploração e da intensificação da

expropriação e dos conflitos fundiários. Podemos acrescentar a estas determinações, a

urbanização acelerada e a ampliação da população excedente nas cidades, além da decisiva

intervenção, na questão agrária, do setor progressista da Igreja Católica.

Já a formação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto possui outra origem.

Sua emergência como movimento social vincula-se à vontade política de um sujeito coletivo,

já configurado, cujo projeto não se circunscreve à luta por terra e por reforma agrária, uma

vez que as concebe como intimamente relacionadas à necessidade de transformações mais

amplas na estrutura social. A formação desta vontade política foi, a nosso ver, determinada

por circunstâncias sociais e históricas em que se acentuam os mecanismos de expropriação e

exploração e se intensificam as suas conseqüências sociais, dentre elas a drástica redução da

população moradora no campo.


167

A principal marca desta conjuntura é a ofensiva do capital diante de sua crise em

escala mundial. As alternativas encontradas, por governos e pelo empresariado, no contexto

dos países periféricos, foram a inserção subalterna na economia mundial, a financeirização da

economia e a desresponsabilização do Estado com políticas públicas sociais, com suas

terríveis repercussões nas condições de vida dos trabalhadores: aumento do desemprego e da

pauperização; crescimento da violência no campo e na cidade; intensificação da urbanização;

aumento do preço do solo urbano, periferização do crescimento metropolitano e agudização

da questão habitacional, especialmente nas grandes cidades.

Porém, como os percursos, coletivos ou individuais, não obedecem a uma lógica

geral, pré-determinada e imanente, a materialização do projeto de constituição do MTST tem

enfrentado os dilemas trazidos pelo inusitado, pelo imprevisível e também questões, postas

pelo confronto entre o desejo e a dinâmica da realidade.

No próximo capítulo, realizaremos uma exposição da experiência de ocupação e

organização do acampamento do MTST Anita Garibaldi e, em seguida, teceremos algumas

considerações sobre as questões suscitadas pela análise desta experiência.


168

CAPÍTULO 4

O ACAMPAMENTO ANITA GARIBALDI: SINGULARIDADES, POSSIBILIDADES

E LIMITES DE UMA EXPERIÊNCIA DO MTST

No capítulo anterior, procuramos reconhecer elementos relevantes do contexto da

emergência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na Região Metropolitana de São

Paulo. Neste, a preocupação central é apresentar a descrição e a análise crítica de uma

experiência desenvolvida pelo movimento: o acampamento Anita Garibaldi. Diferentemente

do capítulo anterior, no qual nos detivemos, especialmente, na apreciação das circunstâncias

sociais que propiciaram as condições do aparecimento do MTST no cenário político

brasileiro, o foco principal da análise se dirige agora, prioritariamente, para a dinâmica interna

do movimento. Em ambos, esforçamo-nos para interpretar a questão à luz da relação entre

processos determinantes da constituição de um movimento social: a atuação consciente e

planejada de seus participantes e as circunstâncias sociais e históricas em que esta atuação se

desenvolve.

A escolha deste acampamento como referência empírica se deve ao fato de que se

trata da única ocupação consolidada do MTST e, logo, da experiência mais desenvolvida e,

portanto, possibilitadora de estudo mais aprofundado. Ao longo de todo o processo da

investigação, tivemos a preocupação em não cair na tentação representada pelas sínteses e

generalizações apressadas, que dificultam a apreensão dos processos sociais em sua

singularidade, particularidade e simultânea universalidade. Por esta razão, o percurso da

investigação empírica do acampamento Anita Garibaldi partiu do pressuposto teórico-

metodológico de que deveríamos nos ater, prioritariamente, à apreensão da singularidade

deste processo organizativo e de que esta apreensão só seria possível a partir de análise que

valorizasse o contexto. Nosso intuito, com esta abordagem, foi reconhecer elementos da
169

experiência que pudessem ser compartilhados com outros movimentos sociais e, a partir

deles, procurar detectar as particularidades das experiências de luta por moradia nesta

conjuntura e, principalmente, tentar apreender o que singulariza a experiência do MTST.

Na ocupação, o estudo se iniciou pela coleta de informações, que visava conhecer

o histórico do movimento, incluindo o processo de formação, número de ocupantes,

conquistas alcançadas, perspectivas do movimento, relações com grupos de apoio e outros

movimentos sociais, acesso a equipamentos urbanos. Esta coleta de informações foi feita em

dois momentos.

No primeiro momento, estivemos no acampamento, após contato telefônico com

um membro da coordenação, para apresentar o objetivo da pesquisa e fazer um

reconhecimento inicial. Nesta fase, entrevistamos uma das coordenadoras do acampamento,

que também integra a coordenação estadual do MTST e visitamos as principais instalações.

Posteriormente, retornamos ao acampamento para dar prosseguimento ao estudo e, durante

este período, de uma semana, contamos com a valiosa colaboração de Clarice Cassab, mestre

em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ.

Neste momento da aproximação com a experiência analisada, realizamos

entrevistas semi-dirigidas com lideranças, mediadores e com moradores. Decidimos

entrevistar, não só as lideranças que fazem parte da coordenação estadual do movimento,

como também, lideranças intermediárias, conformadas por coordenadores de rua106. Durante o

trabalho de coleta emergiram outros dados, não previstos, o que suscitou a necessidade de

rever o roteiro inicial do levantamento. Entre estes, destacamos: a importância dos

mediadores no desenvolvimento da experiência; a relação do Movimento com a prefeitura; a

106
As lideranças intermediárias integram a coordenação do acampamento, exercendo o papel de elo de ligação
entre os moradores dos acampamentos e a coordenação do MTST. No acampamento visitado são chamadas de
coordenadores de rua. Cada rua do acampamento possui dois coordenadores que são responsáveis por levar e
discutir as reivindicações dos moradores com os coordenadores estaduais do MTST.
170

situação jurídica atual da ocupação; a questão dos objetivos do Movimento e o seu processo

constitutivo.

Em seguida, iniciamos a realização de entrevistas semi-abertas com participantes

da ocupação. A rede de depoentes foi construída a partir de contatos efetuados pelos

coordenadores. Pretendíamos, a partir das informações coletadas, elaborar um perfil dos

ocupantes, visando reconhecer a composição da base social do MTST, o que incluiria: dados

sobre origem migratória, formas atuais e anteriores de inserção no mercado de trabalho;

aspirações e interesses que motivam a ação, bem como, gênero, faixa etária e etnia. Porém, o

pouco tempo e o parco recurso financeiro e humano disponíveis impediram a concretização

deste objetivo. No entanto, foi possível entrevistar moradores não pertencentes à coordenação

do movimento para conhecer suas histórias e interpretação da experiência.

Paralelamente à realização das entrevistas, procuramos conhecer as principais

características das formas de sociabilidade construídas entre os participantes. Esta

investigação foi feita por meio da observação de dois processos: a tomada de decisão e a

forma de apropriação do espaço. Nos dois processos, presumíamos encontrar inscrito o

sentido da ação do movimento e, ainda, tensões e ambigüidades entre projeto e processos

efetivamente vivenciados.

Através da forma assumida pela tomada de decisão, tanto com relação às questões

do dia a dia, como com respeito à escolha das alternativas e táticas de luta, pretendíamos

observar o grau e a qualidade da participação política dos ocupantes, sobretudo no que

concerne à sua relação com as lideranças. A escolha destes indicadores da cultura política

efetivamente praticada foi feita antes do início da pesquisa empírica. Sua justificativa decorre

do fato de os considerarmos úteis para a análise das orientações políticas do movimento.

Durante a sistematização e a análise das informações coletadas, procuramos

compor um retrato, o mais exato possível, da experiência que ora apresentamos.


171

O capítulo está estruturado da seguinte forma: inicialmente, analisaremos o

contexto sócio-espacial do acampamento: a cidade de Guarulhos na RMSP. Logo em seguida,

apresentamos a experiência, incluindo um breve histórico do processo de ocupação; a

caracterização dos moradores do acampamento e a situação atual.

Ao final do capítulo, tecemos algumas considerações a respeito das

singularidades, das possibilidades e dos limites da atuação do MTST na atual conjuntura.

4.1. O ACAMPAMENTO ANITA GARIBALDI

4.1.1 Localização

O acampamento está situado, conforme mencionado, numa área da periferia de

Guarulhos, município contíguo à capital paulista. A escolha desta cidade se deveu, sobretudo,

à inserção de militantes do MST em lutas por moradia e à existência de outros movimentos

sociais na região. A atuação de lideranças do MST expressava a preocupação de testar o

projeto numa cidade menor, antes de realizar uma intervenção de maior fôlego no município

núcleo da metrópole.

Para esta cidade, conformada como pólo industrial, a partir da década de 40,

confluíram, até a década de 70, período de grande surto industrial, migrantes do interior de

Minas Gerais, de São Paulo e de diversos estados do Nordeste.


172

O fato de Guarulhos se situar entre o eixo Rio/SP e a rota de Minas Gerais107, e

assim, estar próxima ao mercado consumidor, favoreceu a adesão a uma aparente vocação:

“(...) ter nascido para a cidade de São Paulo”. Porém, outros fatores influenciaram, de modo

mais decisivo, para a posição ocupada pela cidade na dinâmica de expansão capitalista na

região metropolitana e para a relação estabelecida por ela, com o centro mais dinâmico da

economia nacional. Não é nossa pretensão discorrer sobre a totalidade destes fatores, mas

apenas citar, os que consideramos mais estreitamente relacionados com nosso objeto de

estudo, tais como: a existência de terrenos e mão-de-obra mais baratos do que os da capital,

além de facilidades de escoamento dos produtos, devido à localização da cidade às margens

da Via Dutra. Acresce-se a estes, outro importante fator: a isenção de impostos, oferecida às

empresas pelo governo municipal, durante os anos 50 e 60. Estes fatores propiciaram à cidade

as condições necessárias ao abrigo de grande concentração industrial e demográfica no

período de substituição de importações. Ainda hoje, em que pese o êxodo industrial das

últimas décadas, o parque industrial de Guarulhos é, sem dúvida, um dos maiores do país. Em

1999, havia na cidade 2.000 empresas, com destaque para as indústrias metalúrgicas, de

plástico, químicas, farmacêuticas, alimentícias e de vestuário.

As atividades comerciais e de serviços são também bastante dinâmicas no

município. Existiam mais de sete mil estabelecimentos comerciais cadastrados no Ministério

do Trabalho no ano de 1999, dos mais variados ramos e portes, inclusive grandes redes de

supermercados e lojas de departamentos. 108

Este dinamismo econômico, todavia, baseado nas vantagens locativas aludidas,

tem concorrido para sustentar um modelo de a acumulação, cujo epicentro se situa na capital,

fato que pode ser explicado, através da análise mais aprofundada da divisão territorial do

107
Cortam o território do município, a Rodovia Presidente Dutra e a Rodovia Airton Senna da Silva, que ligam
os estados do Rio de Janeiro e São Paulo e a Rodovia Fernão Dias, que liga o município a Belo Horizonte, Minas
Gerais.
108
Ver Abreu (2002).
173

trabalho. A extração de mais valia dos trabalhadores de cidades como Guarulhos,

posicionados num patamar inferior da hierarquia urbana, é apropriada de forma a minimizar

custos e maximizar lucros. A direção do excedente assim produzido reflete características do

modelo de financiamento da expansão capitalista acionado, especialmente, na periferia do

sistema mundial. A participação do Estado, traduzida em vantagens oferecidas ao capital,

favorece, enormemente, o processo de a acumulação. Aos trabalhadores, sob a imposição da

divisão do trabalho, restam os baixos salários e as precárias condições de vida urbana.

Malgrado as melhorias que vêm sendo realizadas nos equipamentos públicos da

cidade, as disparidades salariais entre trabalhadores de Guarulhos e da cidade de São Paulo

ilustram, como mostraremos a seguir, o fato de que tem ocorrido, na atualidade, a

permanência e, até mesmo, a acentuação do padrão de desenvolvimento urbano que, conforme

dissemos em capítulo anterior, baseia-se numa cooperação realizada por meio da associação

desigual de formas, tempos e de condições de trabalho109. A cristalização desta desigualdade

contribui para aprofundar a dependência da economia de Guarulhos da dinâmica sócio-

econômica da capital, num contexto em que as grandes diretrizes da política econômica são

impostas ao país, ainda que com base na aliança entre frações das classes dominantes dos

países centrais e periféricos.

Os resultados obtidos por pesquisa sobre tendências recentes da expansão


110
metropolitana e intra-municipal de Guarulhos demonstram a existência de uma grande

proporção de pessoas responsáveis por domicílios sem rendimentos: cerca de 13%. Esta

proporção, segundo os autores, é pouco maior do que a verificada no conjunto da Região

Metropolitana de São Paulo (RMSP) e, significativamente maior do que a média estadual e

nacional. A proporção dos que ganham até um salário mínimo é equivalente à média da

RMSP, sendo bem menor do que a média nacional. Ora, nesta faixa, Guarulhos apresenta

109
Ver a respeito em Marx (1985) e Santos (1990).
110
Abreu et. all. (2002).
174

vantagem relativa frente ao restante do país, mesmo considerando, conforme assinalam os

autores, que as diferenças regionais implicam, também, em diferenças importantes no que

concerne ao valor relativo dos salários. Entre as razões apontadas para a existência das

referidas diferenças, encontra-se o nível de monetarização da economia e os custos da

reprodução da força de trabalho em contextos metropolitanos.

Por outro lado, a maior diferença de Guarulhos face à Região Metropolitana, diz

respeito à faixa superior de rendimentos, isto é, entre aqueles que recebem mais de 20 salários

mínimos. Nesta faixa, a proporção da RMSP é mais do que o dobro da verificada em

Guarulhos. Assim, constatamos que a população de Guarulhos, no que concerne à renda,

encontra-se em uma situação bastante desfavorável em relação ao conjunto da região.

Esta situação, acrescida do brusco aumento do fluxo migratório em direção à

cidade, ocorrido nos últimos anos, permite avaliar a situação vivida pelos segmentos mais

pauperizados da classe trabalhadora.

Entre os anos 91 e 96, a cidade se tornou o segundo município mais populoso da

Região Metropolitana e do estado de São Paulo, com mais de um milhão de habitantes.

Durante este período, de apenas cinco anos, houve um acréscimo de 184.331 pessoas. Deste

total, 67% são originárias das regiões Sudeste e Nordeste. De 1996 a 2000, o ritmo de

crescimento se manteve em ascensão, com uma taxa de crescimento anual de 2,46%. Este

crescimento denota, conforme já referido, a existência de um forte vetor de expansão urbana

em direção às áreas do entorno da capital111.

A participação do fluxo migratório no crescimento populacional no período 1991-

1996 ocorreu, ainda de acordo com a pesquisa citada, principalmente nos bairros que

possuíam áreas rurais e nos bairros periféricos da porção leste do município, sendo os novos

111
Ver Abreu (2002).
175

habitantes originários, em sua maioria, da região Sudeste (66%) do país, especificamente, do

Estado de São Paulo (97,80%).

Os autores informam, também, com base nos dados sintetizados no gráfico

reproduzido a seguir, que o maior contingente de migrantes oriundos da Região Nordeste

compreende o grupo de idade de 20 a 24 anos, sendo 12,74% do sexo masculino e 10,31% do

sexo feminino. Assim, a migração de nordestinos foi muito seletiva por sexo e idade, uma vez

que composta por pessoas mais jovens, principalmente homens.

Gráfico 2 – Guarulhos - migrantes região Nordeste - período 1991-1996

Migrantes Região Nordeste - Período 1991-1996

80 ou + 0,06 0,07
0,07 0,09
70 a 74 0,13 0,17
0,21 0,27
60 a 64 0,33 0,37
0,53 0,60
0,82 H M
50 a 54 0,90
1,26 1,21
40 a 44 1,96 1,54
3,07 2,53
30 a 34 5,26 4,42
8,24 7,17
20 a 24 12,74 10,31
6,84 8,25
10 a 14 4,51 5,29
5,40 5,36
4 Anos 0,00 0,00

14,00 12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 0,00 2,00 4,00 6,00 8,00 10,00 12,00 14,00

Fonte: Funde ação IBGE, Contagem da População 1996, apud Ricardo Antunes de Abreu e outros,
op.cit.,
176

Os autores observam, no tocante aos migrantes provenientes da região Sudeste

(ver gráfico 2 apresentado a seguir), do sexo masculino, uma concentração na faixa de idade

de 30 a 34 anos, enquanto a concentração do sexo feminino se dá na faixa de 25 a 29 anos.

Como a proporção de crianças na faixa de 5 a 9 anos também é grande, os autores levantam a

hipótese de esta migração ter um importante componente familiar, ou seja, o fluxo migratório

seria composto, significativamente, por casais jovens, com filhos.

Gráfico 3 – Guarulhos – migrantes região Sudeste –período de 1991-1996

Migrantes Região Sudeste - Período de 1991 - 1996

80 ou + 0,11 0,25
0,17 0,25
70 a 74 0,28 0,42
0,46 0,61
60 a 64 0,65 0,84
0,89 0,99
50 a 54 1,37 1,37
2,27 1,95
H
40 a 44 3,70 3,22
M
5,26 4,93
30 a 34 6,85 6,39
6,71 6,96
20 a 24 5,41 6,14
4,47 4,97
10 a 14 5,39 5,46
5,74 5,53
4 Anos 0,00 0,00
12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 0,00 2,00 4,00 6,00 8,00 10,00 12,00

Fonte: Funde ação IBGE, Contagem da População 1996, apud Antunes, et. all (2002)

Esse é um fato indiretamente expressivo do aumento do pauperismo, pois denota,

conforme sustenta Ribeiro et. all (1997), a crescente instabilidade a que estão sujeitos os

processos de reprodução da ampla maioria dos trabalhadores, especialmente os mais jovens.

A concentração da extrema pobreza em áreas cada vez mais distantes, devido à


177

impossibilidade de arcar com os custos de moradia em localidades centrais, dificulta o acesso

às tradicionais estratégias de sobrevivência da classe trabalhadora, o que inclui o aprendizado

das reivindicações urbanas e, mesmo, as redes sociais.

Com relação à expectativa de crescimento econômico da cidade, os autores da

pesquisa informam que se projeta para Guarulhos, a expansão do setor de serviços. Esta

projeção se baseia no aumento do número de hotéis ligados ao denominado turismo de

negócios. Além disto, com os novos investimentos imobiliários previstos para o município, o

setor de serviços deverá receber investimentos significativos.

Nos últimos vinte anos, foram instalados na cidade, equipamentos de impacto

regional, tais como: o Aeroporto Internacional de São Paulo – Guarulhos (inaugurado em

1985 e com a 3ª pista em construção, prevista para ser inaugurada em 2005), Rodoanel,

Dryport, o Parque Ecológico do Tietê e o Parque Estadual da Cantareira.

Segundo os autores da pesquisa aqui citada, este dinamismo da economia

municipal, somado ao redirecionamento do crescimento da população metropolitana, são os

elementos responsáveis pelo grande aumento do fluxo migratório que se dirige à cidade.

Avaliamos que a proximidade com São Paulo, município sede da RMSP,

contribui, ao lado de outros determinantes, para condicionar o processo de desenvolvimento

da cidade a funções metropolitanas comandadas pelo município-núcleo. Contudo, se, por um

lado, esta integração à dinâmica metropolitana satisfaz frações da burguesia industrial ligadas

ao setor metalúrgico, e, mais recentemente, o empresariado envolvido no escoamento da

produção, os proprietários fundiários e o capital imobiliário, que usufruem da valorização da

terra urbana, por outro, esta proximidade não tem representado oportunidade de integração

consistente aos rumos tomados pelo desenvolvimento urbano para a grande maioria da

população. Para os que vivem do trabalho, Guarulhos tem se transformado, cada vez mais, em

uma expressão agravada das questões sociais que atingem a capital paulista.
178

Pietá (1992), em sua narrativa sobre a história de Guarulhos, valoriza os

movimentos sindicais e populares surgidos nos anos 50 na cidade. Estes movimentos

enfrentaram as questões geradas pelo agravamento das desigualdades sociais, a partir deste

período. Destaca, entre estes: as Sociedades de Amigos de Bairro, os movimentos

impulsionados pelas Comunidades Eclesiais de Base, os movimentos por transportes, por

água, e a luta pela regularização de loteamentos clandestinos ou irregulares, além dos

movimentos de mutuários do BNH, favelados e sem-terra. O Movimento dos Trabalhadores

Sem Teto é um dos movimentos mais recentes na cidade. No ano passado, foi iniciada, ainda,

a articulação entre diversos movimentos sociais, visando à construção do movimento dos

desempregados.

A configuração espacial da cidade permite reconhecer, com nitidez, o aumento

das distâncias sociais entre os habitantes das áreas mais bem equipadas e os residentes na

periferia, próxima ao aeroporto, onde se situa o acampamento Anita Garibaldi. Alguns dos

moradores das áreas centrais, com os quais conversamos, declararam desconhecer a área do

acampamento, justificando este desconhecimento por sua distância e por ser considerada

“perigosa”.

Esta noção é amplamente reforçada pela mídia em geral e pela própria mídia

local, posto que, conforme ressalta Ferraz (2001), os lugares da pobreza são, "[...] enunciados

historicamente e via de regra, no escorregadio terreno da violência, deslizando da

criminalidade para o perigo. Estes lugares de moradia (são) contrapostos à espacialização da

outra sociedade organizada e (sempre) ameaçada pela primeira".

O acampamento Anita Garibaldi dista, aproximadamente, uma hora e quinze

minutos do centro da cidade. Nos arredores, têm-se favelas ou loteamentos clandestinos com

habitações precariamente construídas pelos próprios moradores e sem coleta de esgoto, que

corre a céu aberto, poluindo córregos e gerando problemas de saúde; sem guias ou sarjetas,
179

sem pavimentação; com vias internas que mal permitem a circulação de veículos, o que

dificulta o acesso de caminhões coletores de lixo ou ambulâncias.

A precariedade do local onde está situado o acampamento Anita Garibaldi parece

demonstrar, por si só, os nexos causais entre hiperperiferização e aumento da miséria, nos

anos recentes, e entre o aumento exponencial da concentração de renda, propriedade e poder.

Contudo, o resgate do processo de organização desta ocupação do MTST permite também

evidenciar a capacidade de resistência de segmentos da classe trabalhadora que, frente a esta

situação social, tem pouco a perder. É esta resistência que pretendemos demonstrar a seguir.

4.1.2 A Preparação da Ocupação

O Anita, como é denominado o acampamento do MTST pelos militantes dos

movimentos sociais de Guarulhos, resulta de uma experiência precedida por um largo esforço

de preparação. Esta preparação incluiu a formação e mobilização dos participantes, a

construção de alianças políticas e o alcance da infra-estrutura necessária.

A experiência implementada em Campinas serviu como primeiro aprendizado

para a atuação do MST no meio urbano. Alex relata que

[...] os militantes do MST, que vieram do campo, não foram lá para intervir,
mas para contribuir com as pessoas que já vinham [...] tentando se organizar.
Mas, a partir daí, os companheiros do MST começaram a ver a dimensão das
contradições que existiam dentro da cidade e passaram por uma fase de
estudo e reflexão. [...] tentaram desenvolver lá a organização interna do
acampamento, mas não entendiam bem qual é o papel das forças políticas
dentro da cidade, como se organizar nesse meio, como se relacionar com os
partidos políticos, com o tráfico de drogas e com todas as facções que se
organizam no meio urbano (BENOIT, 2002:136).
180

Neste depoimento, este membro da coordenação expressa o reconhecimento da

densidade e da complexidade do urbano e a decorrente preocupação com a importância da

capacitação para atuar no contexto urbano e, sobretudo, metropolitano. Com este intuito, entre

os anos de 1998 e 2000, alguns militantes do MST retornaram às suas bases para debater e

conceber uma metodologia mais apropriada ao trabalho, no contexto das grandes cidades.

Após este período de capacitação, alguns militantes regressaram à metrópole com

a responsabilidade de desenvolver uma experiência de atuação em Guarulhos. No início do

processo de organização, foram contatados militantes de movimentos sociais e de

Comunidades Eclesiais de Base e, também, realizadas reuniões com moradores de diversos

bairros. Estas reuniões visaram apresentar os objetivos do movimento e a proposta da

ocupação. Foram, assim, avaliadas as possibilidades de êxito do projeto, a partir de critérios

utilizados em ocupações anteriores, tais como: aumento do número de participantes nas

reuniões; construção de aliança com representantes de movimentos sociais da região e

condições físicas e jurídicas do terreno a ser ocupado. Esta avaliação levou a coordenação do

movimento a decidir pela efetivação da ocupação.

Isaura, integrante da coordenação do acampamento, relata que durante as reuniões

preparatórias, foram cadastradas, aproximadamente, 1.500 famílias, mas os sucessivos

adiamentos da ocupação, por motivos que não eram divulgados, em razão da necessidade de

preservar a segurança dos participantes, levaram a certa perda de credibilidade e à dispersão

de parte dos inicialmente envolvidos no movimento.

Meire, também integrante da coordenação do acampamento e da coordenação

estadual do MTST, relembra este momento de preparação com muito entusiasmo. Antes de

ingressar no movimento, fazia parte de uma Comunidade Eclesial de Base. Conheceu o

MTST em reunião na casa de uma amiga. Desta reunião registra, especialmente, o

aprendizado do significado da bandeira do Movimento: a luta por moradia e por


181

transformações sociais no urbano e pelo socialismo. Convidou, então, os coordenadores para

fazerem a próxima reunião na sua casa, mas, como estes não localizaram a rua em que residia,

decidiu assumir a tarefa de coordenar a reunião. Desenhou a bandeira, explicou seu

significado e apresentou a proposta de ocupação de um terreno. Comentou que se sentia muito

interessada em participar da experiência e seu interesse se devia a um conjunto de situações

enfrentadas desde que chegou à cidade.

Tinha chegado a Guarulhos há aproximadamente vinte anos atrás, vinda do Ceará,

para ajudar uma irmã que estava doente. Quando a irmã e o marido decidiram voltar, ela se

recusou a acompanhá-los. Trabalhou como empregada doméstica e, depois, como operária

numa empresa metalúrgica, onde conheceu seu marido. Na época da ocupação, estava

desempregada e o marido licenciado pelo INPS. Pagavam aluguel. Meire lembra que só

sobravam trinta reais por mês para as despesas. A ocupação representava uma possibilidade

de realizar o sonho de ter uma casa própria. Conta que antes da ocupação, quando via um

terreno, idealizava uma casa. Agora, com a ocupação, quando vê um latifúndio, idealiza uma

ocupação com inúmeras famílias, porque, com a experiência no Movimento, aprendeu a ser

solidária. Atualmente, a depoente é responsável pelo setor de educação do acampamento e

integrante, conforme referido, da coordenação estadual do MTST.

O objetivo de Meire, neste depoimento, é enfatizar a importância de sua

experiência no Movimento para formação da consciência de que a necessidade individual e

familiar de moradia só pode ser alcançada, se for compreendida como necessidade coletiva.

Parece-nos interessante observar que, muito embora a luta seja por um bem individual, ela

pode possibilitar, especialmente para os segmentos sociais mais pauperizados, o entendimento

de que a luta por habitação é, sobretudo, uma luta por necessidades de todos.
182

4.1.3 A ocupação

A ocupação teve início no dia 19 de maio de 2001, numa área de 250.000 m², no

bairro Ponte Alta, situado na periferia de Guarulhos. A área estava desocupada há cerca de 50

anos e o proprietário burlava a lei, de forma a tentar enquadrá-la como área rural para pagar

impostos mais baixos, que efetivamente não estavam sendo pagos. O acampamento Anita

Garibaldi é, segundo os organizadores, a maior ocupação da história de Guarulhos. O terreno,

à época da ocupação, estava sendo utilizado para despejo de lixo e como local onde grupos de

extermínio se desfaziam de cadáveres.

Camila, integrante da Coordenação Estadual do Movimento, registra que antes da

ocupação do terreno, a Coordenação obteve a informação de que o proprietário estava

inadimplente, mas, ainda não sabia que o terreno tinha sido cadastrado no INCRA, de forma

irregular. A depoente, também, anota que por meio das ocupações, o Movimento denuncia o

fato da terra não estar cumprindo sua função social, mas, servindo à especulação imobiliária.

Ao fazer esta denúncia, o Movimento se aproxima, sem dúvida, da larga trajetória dos

movimentos sociais urbanos no país.

Na etapa inicial, os ocupantes moravam em barracas de lona. A ocupação teve

início com, aproximadamente, 200 pessoas e, em apenas algumas semanas, chegou a reunir

em torno de 12.000 pessoas. Meire conta que, nesse período, a organização dos acampados

obedeceu à seguinte dinâmica: foram formadas seis brigadas, cada uma constituída por 50

grupos e, cada grupo, por 40 famílias. Cada grupo tinha um coordenador e um representante

das equipes de saúde, infra-estrutura, segurança e educação. Estas brigadas receberam nomes

que simbolizam a luta dos trabalhadores, por exemplo: Terra e Liberdade, Nossa Terra,

Antônio Conselheiro, Zumbi do Palmares, Chico Mendes. Durante este período, os ocupantes

participavam de duas reuniões por semana: uma para definir o funcionamento e a organização
183

cotidiana dos grupos e outra para formação política, na qual se realizava a análise da

conjuntura nacional, incluindo sua relação com as questões estaduais e municipais.

Essa organização tem sido modificada de acordo com a necessidade de

enfrentamento de novas situações, sendo uma das principais metas desse formato

organizativo, segundo o depoimento dos coordenadores do acampamento, envolver o maior

número possível de participantes em decisões relativas ao futuro da ocupação.

No dia 28 de maio do mesmo ano, os participantes da ocupação fizeram uma

caminhada de 25 quilômetros, do acampamento ao centro de Guarulhos, pela via Dutra, com o

objetivo de reivindicar a permanência no local. O resultado desta reivindicação foi o

adiamento da reintegração de posse, pedida pelo proprietário, e a abertura de negociação

direta com o governo do Estado.

No dia 24 de junho, a coordenação do acampamento realizou um ato público para

comemorar a suspensão da liminar de reintegração de posse e homenagear as entidades e

militantes que vinham apoiando sua luta. Foram homenageados, entre outros: o Sindicato dos

Advogados, a Comissão de Direitos Humanos e a Comissão de Habitação da Ordem dos

Advogados do Brasil, o Sindicato dos profissionais do Ensino de Guarulhos, tanto do ensino

público, quanto do privado. Compareceram ao evento, parlamentares e representantes de

partidos políticos de esquerda, especialmente do Partido dos Trabalhadores, de diversos

movimentos sociais, sindicatos e ONGs. A organização deste ato político visou, sobretudo,

dar visibilidade aos objetivos do Movimento e construir a aceitação social dos seus objetivos.

Benoit visitou o acampamento logo após a ocupação. No seu depoimento,

transparece a ênfase na capacidade organizativa do movimento, expressa no cuidado com o

ordenamento do espaço, conforme pode ser constatado a seguir:

A visão externa é impressionante: milhares de tendas bem ordenadas,


erguidas no meio de um terreno de 113 hectares. A primeira impressão é de
que estamos chegando num acampamento militar. Neste assentamento –
próximo ao aeroporto internacional de Cumbica – vivem, em tendas e
184

moradias improvisadas, sobre chão de terra, cerca de 3.200 famílias, (...), o


equivalente a muitas cidades do interior do Brasil. O acampamento, apesar
da precariedade das condições de vida, é extremamente bem organizado: as
moradias, conservam um certo espaço uma das outras, são bastante limpas,
apesar do chão de terra, e são distribuídas racionalmente, constituindo ruas
geometricamente dispostas. Aqui e ali, tremulam bandeiras do movimento,
simbolizando que estamos numa cidade, mas numa cidade em luta
(BENOIT, 2002:137).
Neste período inicial, retratado na foto a seguir, não havia água no local, a luz era

precária e a alimentação extremamente insuficiente. Faltavam remédios e agasalhos.

Atualmente, com a reestruturação espacial, de que trataremos mais adiante, o acampamento

dispõe de fossas sanitárias; canalização de valetas; água e a luz elétrica estão em vias de

regularização. A coordenação do Movimento considera a instalação da infra-estrutura um

recurso fundamental contra o despejo dos ocupantes, posto que obriga os órgãos públicos a

reconhecerem a permanência e, de certa forma, o início de enraizamento daquele grupo no

local.

Imagem 1 - Foto do acampamento Anita Garibaldi – primeiras semanas de ocupação

Fonte: www.anitamtst.cjb.net
185

4.1.4 A consolide ação da ocupação

Para consolidar a ocupação, os coordenadores do movimento desenvolveram um

conjunto de métodos de atuação e atividades. Entre elas, destacamos: além do trabalho

realizado durante o período em que estavam sob as lonas, a seleção daqueles que deveriam

permanecer na ocupação, a estruturação espacial do acampamento, o acompanhamento da

situação jurídica; a provisão de equipamentos de infra-estrutura; a formação política dos

participantes; o estímulo à participação e à mobilização para pressionar os poderes públicos.

4.1.5 Os acampados do Anita Garibaldi

Hoje, o acampamento possui, aproximadamente, 5.000 moradores. A seleção dos

ocupantes obedeceu aos critérios de permanência e participação nas atividades exigidas pela

ocupação. Os coordenadores das brigadas cadastraram as famílias que chegavam para

participar da ocupação e acompanhavam sua participação nas atividades diárias, procurando

deixar claros os objetivos do Movimento e evitar sua utilização para outros fins, inclusive

mercantis.

Em julho de 2002, a Prefeitura de Guarulhos, através da Secretaria de Habitação,

realizou, em conjunto com a coordenação MTST, o arrolamento das famílias moradoras no

acampamento. Uma equipe de moradores foi orientada pelos técnicos desta Secretaria para

ajudar na execução do levantamento. A estimativa feita pelos técnicos da Secretaria teve por

base uma amostra equivalente a 10% da ocupação. Esta estimativa permite traçar um perfil

sócio-econômico aproximado dos moradores.

No acampamento, havia nesta época, 5.358 moradores, destes, 1.821 eram

crianças, na idade de zero a doze anos. Este número, somado ao de idosos, perfaz quase a

metade do total de moradores. Ainda, mais da metade dos moradores declarou não ter

rendimentos.
186

Em que pese a imprecisão dos instrumentos utilizados na coleta e a

sistematização, apenas preliminar, dos dados disponíveis na Secretaria, é possível presumir,

pela articulação destes dados com as informações colhidas durante as entrevistas e as

observações feitas durante a pesquisa para a tese, que grande parte dos moradores do Anita

Garibaldi, estava desempregada, ou precariamente empregada, por ocasião da ocupação.

Segundo levantamento informal feito por um dos coordenadores, alguns moradores

trabalhavam no aeroporto carregando malas; muitos eram catadores de papel e outros

exerciam a função de ajudantes de obras. A principal fonte de renda era o trabalho temporário,

principalmente no setor de serviços. Era também expressiva, a presença de famílias que

tinham, como principal fonte de renda, a pensão de um membro aposentado, ou a bolsa

proveniente de algum programa de assistência.

Há no acampamento Anita Garibaldi, diversas atividades comerciais e serviços

como: venda de hortaliças, de móveis usados, modelagem de cabelo. Os principais

consumidores e clientes são os moradores do próprio acampamento e da área adjacente. Há,

também, uma rua do acampamento destinada ao comércio. Nela se encontram as vendinhas e

armazéns. Membros da coordenação de rua têm observado o crescimento do número de

moradores que desenvolvem pequenas atividades comercias nas suas casas. Muito embora

estas atividades contrariem as regras de funcionamento da ocupação, porque estão sendo

desenvolvidas em área que não se encontra destinada ao comércio, a coordenação compreende

que não é possível coibi-las, visto que esta é a única forma de sobrevivência encontrada por

estes moradores.

Conforme referido, há um grande número de crianças e jovens na composição dos

moradores do Anita Garibaldi. Muitos desses jovens são chefes de família, sem experiência

anterior de trabalho formal, e muitos se encontram desempregados. A presença de mulheres é,


187

também, bastante significativa. Elas formam a grande maioria “dos chefes de família”, e

representam 40% da liderança do movimento.

É comum ver-se no relato de movimentos sociais urbanos a importância da

participação feminina. Mais adiante, analisaremos a relevância da presença das mulheres no

processo de organização do acampamento Anita Garibaldi; por ora, consideramos necessário

frisar que o peso da participação feminina nestes processos se deve, sem dúvida, ao fato de

elas estarem inscritas na esfera da reprodução da força de trabalho, e, mais especificamente,

na luta por abrigo da família.

4.1.6 A reestruturação espacial

Passados alguns meses do início da ocupação, foi realizada uma grande

reestruturação espacial no acampamento. Esta reestruturação contou, inicialmente, com a

assessoria de um grupo de estudantes do Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

Universidade de São Paulo e, posteriormente, contou com a assistência de um arquiteto

holandês que, na época, visitava o acampamento. Os estudantes da FAU/USP participaram de

algumas reuniões com a coordenação do acampamento para discutir o teor de uma proposta

urbanística e arquitetônica para o Anita Garibaldi. Após um período de debates, a

coordenação decidiu não aceitar a proposta apresentada pelos estudantes, porque demandava

recursos financeiros inexistentes e não atendia às propostas e necessidades mais imediatas do

Movimento.

Enquanto, para a coordenação do MTST, o reordenamento do espaço era

extremamente urgente e tinha, entre os seus principais objetivos, a conquista de apoio da

Prefeitura para a provisão de equipamentos de consumo coletivo, para os representantes do

laboratório da FAU/USP era mais importante elaborar um projeto orientado por propostas

distintas.
188

O depoimento de alguns estudantes revela esta distinção entre projetos. De acordo

com a proposta dos estudantes, na área:

[..] não teria muros, seria tudo livre, e sobre o solo se implantariam blocos de
apartamento, [...]. No solo então teria espaço para plantações e para área
verde, de lazer e de circulação. E isso, é claro, não é uma idéia que nasceu
em nós, é uma idéia que já vem desde os modernos. Para fazer com as
próprias mãos, com o material construtivo que eles tinham, era aquilo
mesmo que eles fizeram. A partir desse primeiro momento que a gente
participava de reuniões apresentando essas idéias, o porque de liberar o solo,
verticalizar, a gente trabalhou essencialmente com a coordenação do
movimento, não fizemos oficina com a população acampada. Acho que a
gente tinha um diálogo legal, mas só que não tinha condições de viabilizar
grande parte do que a gente havia pensado (Diogo, depoimento à autora,
2003).

A participação do conjunto dos moradores no reordenamento espacial ocorreu nas

etapas de divisão dos lotes, na preparação do terreno e na coleta de madeiras para construir as

casas. O acampamento está dividido em 1.786 lotes, distribuídos em 23 quadras. Cada lote

possui 100 m² e a área social mede 74 mil metros quadrados. Na área social, há uma

biblioteca, um espaço para a secretaria, um salão para reuniões e um outro cômodo com

cozinha, farmácia e salas menores112.

Nestas salas são oferecidas, diariamente, aulas de alfabetização para jovens e

adultos e, ainda, ocorre a recreação para crianças, cursos de capoeira, missa, cultos

evangélicos e reuniões. Além disto, há no acampamento escolinha de futebol e aulas de

violão. Na sala da administração estão centralizadas as informações, as convocatórias e a

distribuição periódica de cesta básica de alimentos e roupas, doados para algumas famílias

cadastradas.

A impressão com que saíamos das visitas diárias ao acampamento era de que estas

atividades assumidas, boa parte das vezes, pelos próprios moradores, conferiam uma grande

vitalidade ao acampamento e ajudavam na conformação de um tecido social e urbano,

profundamente distinto das experiências anteriores dos moradores.


189

4.1.7 Situação jurídica do Anita Garibaldi

Logo no início da ocupação, o proprietário do terreno ingressou com o pedido de

reintegração de posse, que foi aceito pelo Juiz. A coordenação do Movimento acionou um

escritório de advogados, que trabalha para movimentos sociais, inclusive o MST. O advogado que

assumiu o processo contestou a decisão judicial, com base em diversos argumentos, entre eles o

mérito da função social da propriedade. Além disso, o Movimento pressionava a Prefeitura para

que intermediasse as negociações, em busca da solução do conflito. Após certa resistência, a

Prefeitura, através da Secretaria de Habitação, concordou em assumir este papel. Esta decisão

contribuiu para convencer o juiz dos riscos existentes na reintegração de posse. O juiz responsável

pelo processo decidiu, então, encaminhar o processo para o Ministério Público (MP), em primeira

instância.

Passado um ano desde a requisição de reintegração de posse, o Ministério Público se

pronunciou, favoravelmente, à reivindicação do Movimento, sob os seguintes argumentos: teria

havido negligência do proprietário, posto que este não fizesse uso de todos os recursos jurídicos

cabíveis, acarretando um aumento vertiginoso do número de ocupantes, que possuíam,

nitidamente, péssimas condições de vida. Além disso, o Ministério Público reconheceu que o

Estado não conseguiria alojar numerosas famílias em locais adequados.

Na opinião do advogado, que nos concedeu a entrevista, a decisão do MP se

deveu, sobretudo, ao fato de que o poder judiciário, nem sempre se alinha com a violenta

política de criminalização dos movimentos sociais, praticada pelos últimos governos

estaduais, posto que alguns juízes temam ter que assumir a responsabilidade pela morte de

crianças, adolescentes e idosos.

De fato, esta decisão se distingue de boa parte das decisões judiciais na região. Na

antiga ocupação do MTST em Osasco, por exemplo, o poder público determinou o uso da

112
Ver a planta atual do acampamento.
190

força para expulsar os acampados. Numa atitude, segundo a avaliação da direção do

Movimento, de clara defesa do interesse da propriedade privada, a justiça ignorou o direito de

moradia e o princípio de função social da terra, garantidos pela Constituição Federal.

4.2.OS MÉTODOS DE LUTA E O FORMATO ORGANIZATIVO DO MOVIMENTO

Entre os métodos de luta utilizados pelo Movimento, destacam-se, a exemplo do

MST, as ocupações de terrenos, as marchas, as manifestações conjuntas por bandeiras

comuns, como exemplifica a luta contra a ALCA. Por meio das ocupações, o Movimento

objetiva alcançar, pela via da ação direta, uma mudança na correlação de forças e, assim,

pressionar em direção à abertura de negociações.

Além dos métodos descritos, há uma ação dirigida à ocupação de espaços

públicos. Esta ação visa à divulgação e o fortalecimento da organização, envolvendo a criação

de comitês de apoio, como, por exemplo, os formados nas universidades; a construção de

alianças com diretores de escolas públicas próximas ao acampamento, por meio, não só do

esclarecimento dos objetivos do trabalho desenvolvido, como também, da doação de parte do

material escolar recebido pelo acampamento.

A coordenação do Movimento ainda se relaciona com os outros movimentos

sociais de luta por moradia da metrópole e, particularmente, de Guarulhos, assim como, com

movimentos sindicais da cidade e outros movimentos de luta por moradia, em âmbito

nacional. Em escala internacional, o MTST mantém relações com uma central de

trabalhadores da Itália. No ano passado, dois militantes do movimento estiveram em visita à

Itália para divulgar o trabalho realizado e solicitar ajuda financeira para o desenvolvimento de

projetos de capacitação profissional para os participantes da ocupação.


191

O MTST possui uma coordenação estadual responsável por avaliar e acompanhar

as ações desenvolvidas pelo Movimento no estado; uma coordenação regional que responde

pelo trabalho no acampamento e uma coordenação de rua, cuja tarefa principal, conforme

antes afirmado, é se reunir, semanalmente com os moradores, para conhecer e tomar decisões

frente a questões relativas à vizinhança; à melhoria da infra-estrutura e à divulgação de

informações sobre temas de interesse do Movimento.

Esta última coordenação se reúne, periodicamente, com um dos coordenadores

regionais do MTST, para troca de informações e tomada de decisões sobre problemas

relativos ao funcionamento cotidiano do acampamento. Nestas reuniões, se debatem questões

trazidas pelos coordenadores de rua e, também, as campanhas e lutas gerais. Encontra-se em

fase de discussão, neste momento, a constituição de uma coordenação nacional do Movimento

dos Trabalhadores Sem Teto.

No próximo item, é nossa intenção analisar o significado do fazer político do

MTST. Para tal, enfocaremos suas peculiaridades, aspectos singulares e seus limites e

potencialidades na atual conjuntura.


192

4.3. SINGULARIDADES DA EMERGÊNCIA E DA CONSTITUIÇÃO DO

MOVIMENTO

As reflexões que ora apresentamos, são efetivamente preliminares. Trata-se de

sistematização elaborada a partir da tensa interação entre os questionamentos teórico-

empíricos, formulados durante o processo de preparação da pesquisa, e o confronto desta

intencionalidade com as novas e inesperadas questões suscitadas pelo trabalho empírico.

Deste processo, surgiu a necessidade de aprofundamento teórico, com vistas ao alcance de

respostas para as seguintes perguntas:

a) O que explica a permanência do acampamento na cidade de Guarulhos, uma

vez que ocupações organizadas nas cidades vizinhas acabaram sendo despejadas?

b) Tendo em vista o fato de o Movimento ser composto por um segmento da

classe trabalhadora, alijado do mercado de trabalho, e os direitos sociais serem historicamente

associados ao trabalho, qual é a fonte da legitimidade da luta empreendida pelos participantes

do Movimento?

c) Até que ponto o fato de o Movimento ter sido construído a partir de estratégias

definidas pelo MST interfere na possibilidade da construção da autonomia?

No intuito de preservar a orientação analítica adotada ao longo da pesquisa,

procuramos responder a essas indagações, evitando reconhecer seus possíveis determinantes,

através do privilegiamento de uma das dimensões da realidade social – processos estruturais

ou sujeitos da ação. Por esta razão, direcionamos nosso esforço de interpretação no sentido de

apreender as conexões existentes entre estas dimensões, no âmago da dinâmica social.


193

4.4. RAZÕES DA PERMANÊNCIA E DA CONSOLIDAÇÃO DO MOVIMENTO EM

GUARULHOS

A experiência do Anita Garibaldi já se prolonga por quatro anos. Na verdade, à

exceção da experiência de Campinas, que não se encontra mais sob o comando do

Movimento, esta é a única das experiências, organizada pelo MTST, que não terminou em

despejo. Todas as outras sofreram uma duríssima repressão, incluindo o uso de violência

policial.

Este é um fato que nos intrigou durante boa parte do levantamento empírico

realizado. Obviamente, esta permanência é compreendida de distintas maneiras pelos

participantes do Movimento. Militantes e mediadores explicam-na como resultado da sorte;

da proteção dada pela prefeitura petista, eleita no ano de 2000, e, sobretudo, pelo engajamento

do atual prefeito em ocupações de loteamentos clandestinos de Guarulhos. Explicam a

permanência, ainda, pelo fato da sua campanha eleitoral ter tido, como um dos temas

privilegiados, a questão da luta por moradia.

Julgamos que alguns destes fatores devem ter efetivamente influenciado e

singularizado a experiência estudada, ainda que com diferentes graus de importância. No

entanto, acreditamos que a permanência possa ser compreendida através de determinantes de

natureza sócio-econômica e, sobretudo, de natureza política.

Senão vejamos: primeiramente, vale recordar que, no final da década de 90,

ocorreu aumento exponencial da população de Guarulhos. Este grande afluxo de pessoas de

baixo poder aquisitivo redundou em pressão social por emprego, equipamentos públicos e,

inclusive, por habitação.

Em segundo lugar, cabe registrar que a cidade possui, aproximadamente, 300

loteamentos clandestinos. Algumas das ocupações de terrenos foram lideradas pelo atual
194

prefeito, que se elegeu com base nos seus compromissos com as lutas populares. Entretanto,

os programas habitacionais desenvolvidos pela prefeitura, prevêem renda mínima a partir de

três salários mínimos, não atendendo, assim, às necessidades do segmento de classe

trabalhadora do acampamento. A proposta da prefeitura, apresentada aos representantes do

movimento e ao proprietário, é a formação, pelos moradores, de uma cooperativa de crédito

mútuo, o que não corresponde aos interesses da coordenação do Movimento, muito embora

esta não seja uma posição por ela explicitada.

Em terceiro lugar, há interesse do proprietário na venda do imóvel, uma vez que

as inúmeras ocupações organizadas na cidade, e em regiões circunvizinhas, fazem com que os

especuladores temam a perda de seus terrenos.

Enfim, ao que tudo indica, a permanência do acampamento se deve, não só à

pressão política, mas ao fato de que condensa os efeitos sociais e políticos do aumento do

número de migrantes de baixa renda, nos últimos anos; a abertura do governo municipal às

pressões sociais e, ao mesmo tempo, a ausência de condições financeiras e interesse político

efetivo, deste governo, em romper com a lógica da propriedade privada do solo e de se

comprometer com a implementação de uma política de emprego e moradia, ampla e

integradora, para os segmentos sociais mais pauperizados.

Tais condições, somadas ao interesse do proprietário em se aproveitar da

ocupação para se desfazer do imóvel, contribuíram para que o executivo municipal

construísse a intermediação política entre ocupantes e proprietário e, com isto, influenciasse o

poder jurídico em sua decisão de não acatar a demanda de reintegração da posse.

A permanência deste acampamento tem, obviamente, possibilitado que o

Movimento consolide territorialmente o seu projeto, podendo assim, experimentar o concreto

exercício de seus objetivos.


195

4.5.O PROCESSO CONSTITUTIVO DO MOVIMENTO E SUAS CONTRADIÇÕES

A resposta às outras questões se apóia no exame das condições politicamente

construídas para que os integrantes do Movimento se tornem reais protagonistas da ação

desenvolvida. No intuito de respondê-las, retornaremos, neste momento, à reflexão do

processo de formação do MTST.

Uma das peculiaridades essenciais do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto é,

como estamos procurando demonstrar, o seu próprio processo de formação. Este processo

demonstra, sem dúvida, que os representantes do MST defendem um projeto que não se limita

a reivindicações de caráter imediato. Antes, o projeto deste Movimento evidencia acúmulo

ideopolítico, teórico e organizativo e, expressa capacidade de fazer, do limite, uma

possibilidade. Possibilidade que possui, entre seu feixe de determinações, a existência do

entrelaçamento entre os destinos sociais dos trabalhadores da cidade e do campo, em

decorrência das formas assumidas pela modernização capitalista nas últimas décadas.

Desse modo, ao procurar fazer com que a luta pela reforma agrária seja assumida

também pelos trabalhadores urbanos, como demonstram inclusive as numerosas

manifestações do movimento na metrópole de São Paulo, o MST tende à afirmação de uma

perspectiva classista na interpretação da realidade social, assim como, na definição de sua

estratégia. Com esta perspectiva, as lideranças buscam a adequação do seu projeto à dinâmica

da realidade, não para se sujeitar aos seus imperativos, mas, por meio da aceitação de seus

determinantes e tendências, tentar ampliar as suas possibilidades de luta. Nesta iniciativa

política, reside, a nosso ver, uma perspectiva de busca de superação de duas tendências, que

são correntemente experimentadas, e, por esta razão, sempre debatidas, na história

internacional do movimento operário: o fatalismo e o espontaneísmo.


196

O fatalismo se inspira em noções que naturalizam a vida social. Segundo esta

concepção, as expressões da realidade imediata são apreendidas em si, como se a realidade se

resumisse ao imediatamente vivido. Para os adeptos desta concepção, a ordem do capital é

natural e perene, daí derivando a idéia de que nada, ou muito pouco, pode ser feito diante do

que é dado.

Esta é uma tendência ainda dominante entre líderes sindicais, de movimentos

sociais e partidos políticos do campo progressista no Brasil, que traduzida em intervenções

práticas, demonstra a aceitação, por grande parte destas lideranças, da ordem dominante.

Decorre desta concepção, a crença na inevitabilidade da ofensiva do capital sobre o mundo do

trabalho e, por conseguinte, na impossibilidade de construção de uma efetiva resistência às

exigências da ordem dominante.

Malgrado a necessidade de reconhecer, conforme mostra ANTUNES (1999:205),

que a “(...) classe trabalhadora, os trabalhadores do mundo na virada do século é mais

explorada, mais fragmentada, mais heterogênea” e a decorrente redução de suas

possibilidades de resistir à exploração e à opressão, ao não enxergar, no movimento concreto

do real, os momentos de contradição e de negação, essas lideranças referidas, acabam

reforçando a tendência à sinonímia entre o real e o presente imediato. Assim, ao tomarem o

momento sensível, imediato como todo o real, amplificam a aparência do real, o que dificulta

a percepção das forças de sua transformação.

O esforço realizado pelo MST em se contrapor à tendência ao fatalismo, ainda tão

presente nos movimentos sociais, combina com a recusa de concepções inspiradas no

espontaneísmo ou no mecanicismo. Argumentam os adeptos da visão mecanicista, que a

necessidade social pode, por si só, levar à criação de processos coletivos de resistência, o que

os leva a não valorizar a importância da intervenção dirigente, consciente e planejada, numa

dada correlação de forças.


197

Distintamente destas concepções, o MST se pautou pela compreensão de que a

ação de sujeitos, portadores de projetos contra-hegemônicos, constitui-se num dos elementos

centrais do processo de formação de um movimento social. Nesta direção, procura

materializar seu projeto por meio da mobilização e da organização de um conjunto de

trabalhadores, com o qual pretende viver uma experiência que articula os objetivos imediatos

deste conjunto, aos objetivos mediatos propostos pela direção do Movimento.

Imbuídos dos objetivos maiores do seu projeto, e de suas decorrentes

responsabilidades, alguns militantes do MST, conforme antes referido, iniciaram a preparação

do acampamento de Guarulhos, o que compreendeu, entre diversas outras atividades: a

avaliação de experiências anteriores; o balanço de seus resultados negativos; a difusão dos

objetivos e propostas do Movimento, incluindo a realização de reuniões em diversos bairros e

a divulgação de símbolos do MTST, como a bandeira. Além destas atividades, promoveram a

construção de alianças, no sentido de assegurar apoio político e a infra-estrutura indispensável

à realização da ocupação, bem como a formação de novas lideranças e a elaboração de

avaliações sistemáticas do processo de mobilização. A execução destas atividades ocorreu

concomitantemente à escolha do local da ocupação, de modo a tentar garantir, não só sua

efetivação, mas também, a segurança dos participantes e a ampliar as chances de permanência

do acampamento.

Ao longo deste percurso, uma das preocupações centrais dos militantes que

coordenavam a ocupação, era procurar esclarecer aqueles com quem discutiam o projeto, que

este não se limitava, exclusivamente, à obtenção da moradia, mas sim, expressava a luta por

reforma urbana e pela transformação social. Neste intuito, procuravam se distinguir da

maioria dos outros movimentos de luta por moradia da região.

Para tanto, desenvolveram ações de cunho educativo com todos os participantes, e

procuraram não atrelar o Movimento a partidos políticos ou parlamentares, construindo


198

alianças com movimentos sociais e sindicais e todos os partidos do campo da esquerda. Além

disto, procuraram deixar nítido, por meio da organização espacial do acampamento, a

preocupação com a eqüidade, com a disciplina, com o bem comum, incluindo a saúde e a

segurança. Tratava-se, sobretudo, da busca de reconhecimento dos participantes da ocupação,

como moradores da cidade, em contraponto com a visão dominante, que os concebe de forma

preconceituosa e criminalizadora.

A experiência junto aos acampamentos do MST capacitou as lideranças do MTST

a acionar valores e alguns princípios organizativos, relacionados à divisão de tarefas, à

direção coletiva, à disciplina e à formação de quadros. Estes princípios, construídos com base

na experiência do novo sindicalismo e dos movimentos de base organizados pela Igreja

Católica, demonstram a importância atribuída, pelo movimento, à difusão de novos valores.

De modo semelhante ao que ocorre no MST, os dirigentes do Movimento dos Trabalhadores

Sem Teto expressam uma concepção de ação política que possui, entre seus fundamentos, a

compreensão de que a ação política envolve valores éticos.

Diversos depoimentos de participantes do Movimento mostram como alguns

momentos foram de grande relevância para a difusão e o compartilhamento de valores e dos

objetivos maiores da ação. Entre estes, destacam-se: o momento da ocupação e os dias

subseqüentes, e o momento da reestruturação espacial do acampamento, para divisão dos lotes

e construção das casas de madeira e dos espaços coletivos.

Esses dias são lembrados, por vários dos entrevistados, como momentos

extremamente marcantes.

A tensão imposta pelo medo do despejo e da violência física e moral, que o

processo de ocupação traz, combinou com a defesa de valores e práticas solidárias e de

organização coletiva, incluindo reuniões de formação. Por meio deste aprendizado, buscou-se

defender, objetiva e subjetivamente, a legitimidade da luta. O depoimento de um dos


199

membros da coordenação do MTST fornece um exemplo da importância desta questão para os

dirigentes do Movimento. Ele explica que:

A primeira etapa é a ocupação. Depois dela constituída vem a etapa da


resistência, que é exatamente a época que a gente ficou debaixo das lonas
pretas e abrimos ruas, e partilhamos os lotes. Isso é um processo de
resistência. Não só do ponto de vista jurídico, porque temos que resistir
juridicamente na área, sob pressão constante de despejo. E também a
resistência humana, física, da chuva, do sol, da fome, das estruturas mínimas
que deveriam ter e não têm. Isso tudo é um conjunto de resistência. E essa
fase é interessante, porque nessa fase pessoas brilhantes se destacam.
Destacaram-se muitas pessoas. A coordenação mostra que hoje, de uma certa
forma, uns estão com o nível de consciência mais elevado, outros menos,
mas todos fazem parte de uma coordenação, onde os problemas são
discutidos coletivamente com essas pessoas, uns com mais outros com
menos entendimento. Essas pessoas surgiram desse trabalho. E outras
pessoas, que já conseguiram extrapolar o conceito de coordenação. Já saíram
do âmbito local e já passaram para o âmbito estadual. São aquelas pessoas
que se disponibilizaram a sair daqui e contribuir em outro lugar (João,
depoimento à autora, 2003).
A nosso ver, sobressai, no depoimento deste dirigente, a importância da vivência

desta experiência de funde ação e defesa dos momentos iniciais do acampamento para a

formação da vontade coletiva, inclusive para a formação de novas lideranças. Porém, neste

depoimento, há uma ressalva que consideramos muito importante: o fato de que o processo de

formação da vontade coletiva não é homogêneo e, assim, não envolve a todos na mesma

intensidade.

Por mais óbvia que esta afirmação pareça ser, ela é, muitas vezes, de difícil

assimilação, especialmente entre alguns partidos políticos no campo da esquerda, o que

influencia a atuação dos seus militantes nos movimentos sociais. Dificuldades no exercício

democrático do reconhecimento das individualidades e singularidades, na forma de pensar e

atuar socialmente constituem, provavelmente, algumas das principais razões da tendência à

uniformização e à homogeneização de práticas políticas. Por outro lado, na valorização deste

exercício, reside, a nosso ver, uma possibilidade de criação efetiva de “(...) sujeitos de

vontade social e política e sujeitos de possibilidades históricas” (MARTINS, 2002:55).


200

Entretanto, como a efetivação deste exercício não depende, apenas, do desejo dos

envolvidos, mas de condições históricas concretas, torna-se importante, a nosso ver, destacar

o significado da ocupação, para as lideranças do movimento, e seu efeito ou rebatimento

social. Conforme já enfatizado, a luta por moradia, através da ocupação de imóveis públicos e

privados, como forma de forçar a negociação, é parte central dos métodos de ação do MTST.

Evidentemente, a conquista do lugar de moradia, pela via da ocupação, não é inaugurada com

o Movimento113 porém, ao contrário das ocupações tradicionais, a ação empreendida pelo

MTST é parte de um projeto organizativo mais amplo, cujas raízes se encontram, inclusive,

noutra espacialidade.

As lideranças do movimento consideram que só com uma mudança na correlação

de forças, pela via da apropriação do que é, por direito, da classe trabalhadora, pode ser

conquistada a abertura de negociações com o poder instituído. Neste sentido, a ocupação é um

ato político de demonstração da rebeldia de um segmento de trabalhadores, historicamente

alijado do direito à cidade. Com esta ação confrontam-se com a “sacrossanta propriedade

privada” – um dos pilares de sustentação do modo de produção regido pela lógica do capital.

Ao fazê-lo, colocam em cheque a ordem vigente e o poder de polícia do Estado. Ao mesmo

tempo, trazem à tona a aliança entre este, os proprietários fundiários e os especuladores

imobiliários, na defesa da propriedade privada e do lucro. Em contrapartida, tais ações têm

sido confrontadas, não só com forte violência física, mas também, com o uso de terrível

violência simbólica.

Cecília Coimbra analisa da seguinte maneira o ímpeto dos ideólogos burgueses na

criminalização dos movimentos sociais, protagonizados por representantes da população

excedente:

113
Exemplo da Antigüidade da ocupação de terras urbanas é fornecido pelas favelas na cidade do Rio de Janeiro.
O início da ocupação da Favela da Rocinha ocorreu há mais de cem anos.
201

Da mesma forma que se constituíram perigosos “inimigos da Pátria” nos


anos 60 e 70, em nosso país – e, em muitos momentos da história da
humanidade, foram sendo concebidos os indesejáveis – também hoje,
principalmente via meios de comunicação de massa, estão sendo forjados os
novos “inimigos internos” do regime: os segmentos mais pauperizados e
todos aqueles que ousam levantar-se contra as normas vigentes. Eles serão
produzidos como suspeitos, perigosos, criminosos (Coimbra, 2004).

Neste contexto, a construção político-ideológica da legitimidade da luta se torna,

ainda, mais importante e estratégica. Conscientes desta importância, os dirigentes do MTST

procuraram amadurecer e consolidar os valores experimentados no processo de ocupação,

durante a estruturação espacial do acampamento.

Lenise, moradora do acampamento, recorda-se deste momento da seguinte forma:

[...] Nós passamos seis meses morando na lona, não tinha teto. Na minha
casa não tinha. Algumas pessoas colocaram madeira do lado. Era bambu
amarrado com corda, não tinha porta. Não era essa segurança que é hoje. O
que a gente vai ter são ruas abertas. Porque eu trabalhei, eu cavei, arranquei
toco, tirei mato, limpei (Lenise, depoimento à autora, 2003).

Neste depoimento, se expressa a conquista do sentido da legitimidade, do direito

a ter direito, obtido com base no esforço individual, inscrito no esforço coletivo e no território

conquistado.

Já no depoimento transcrito a seguir, vemos a preocupação com o reconhecimento

do direito à moradia. Com estes dois depoimentos, pretendemos demonstrar a busca de

afirmação da dignidade da luta.

[...] A preocupação nossa em dividir em lotes, formalizar o que aconteceu


aqui dentro, um bairro, onde todo mundo tem acesso. Vem o carro e você
não precisa parar aqui para sair fora, para depois você passar. Não, aqui foi
feito um bairro. É organizado? É. Nós, pelo menos, tentamos ser organizados
e desenvolver aqui um bairro e não uma favela. Nada contra uma favela. Eu
acho que a grande maioria do povo que vive aqui veio de favela. Uma boa
parte veio do aluguel. Perderam o emprego e as condições e tiveram que vir
para cá. Mas se nós fizemos uma ocupação e no final das contas ficassem
becos? O que nós estávamos fazendo? Que organização é essa? Isso aqui não
seria uma organização, era uma bagunça. Foi onde nós formamos um bairro,
mas um bairro muito chique. Está na madeira? Mas está chique (Isaura,
depoimento à autora, 2003).
202

No depoimento de Isaura, coordenadora do movimento, surge a demonstração de

orgulho pelo trabalho realizado, por seu resultado, inclusive físico. Para ela, a importância da

reestruturação do espaço vincula-se à necessidade de expressar materialmente o projeto do

Movimento e assim mostrar a sua diferença em face de outras ocupações, que não são

realizadas tendo como horizonte um novo projeto de vida urbana.

Ao transformar uma área, antes destinada à especulação imobiliária, cuja visão

lembrava abandono e sujeira, em espaço de abrigo e, mais do que isto, em espaço modificado

com a intenção de ordenar e orientar uma nova experiência social e política, o Movimento dá

visibilidade ao seu telos, ao sentido de sua ação. A sua forma de expressão manifesta,

claramente, não só uma radical contraposição ao projeto dominante de cidade, como também,

sua diferença frente a outras lutas por moradia.

Tal contraposição se expressa nas ruas limpas; na amplitude dos espaços para a

circulação de pessoas e automóveis; na distribuição de ruas e avenidas; na delimitação do

espaço comum, projetado para propiciar o encontro dos moradores, na instalação de

equipamentos públicos e na divisão dos lotes – todos com exatamente o mesmo tamanho: 100

metros quadrados, conforme mostra a planta, a seguir:


203

Planta 1 - Reestruturação espacial do acampamento Anita Garibaldi

Fonte: Coordenação do Acampamento Anita Garibaldi : MTST


204

Nesses momentos da experiência: ocupação e reestruturação espacial, cada

participante foi intensamente convidado a se envolver na maioria das atividades em curso.

Estes foram momentos marcados pelo esforço da resistência, conforme compreendido pelos

coordenadores do Movimento. Nestes momentos, cada um e o próprio projeto do Movimento,

pareciam colocar-se à prova.

Com efeito, o que pretendemos destacar é a importância, no processo de

constituição do MTST, da existência de um projeto que busca articular as demandas imediatas

e concretas de um determinado segmento de classe trabalhadora à demanda mediata por

transformação social. No aprofundamento desta articulação, residem as condições da

materialização deste projeto, bem como as chances de que esta experiência venha a semear e

legitimar novas possibilidades de ação. Entre estas possibilidades, destacamos: o

reconhecimento da luta por direitos e a legitimidade da ação direta. Este reconhecimento é, de

acordo com SHERER-WAREM (1993), um dos elementos fundamentais da configuração de

um movimento social, já que contribui para a formação de identidades coletivas.

No tocante especificamente ao MTST, frisamos que por se tratar de uma

organização ainda em processo de construção, as vivências, especialmente durante os dois

momentos mencionados, são de grande relevância para a conquista da legitimidade da ação.

Todavia, consideramos que o alcance da legitimidade, muito embora possa favorecer a

conquista da autonomia do Movimento, não é suficiente para garantir a realização de suas

metas.

Para os participantes do MTST, a compreensão da legitimidade da ação parece

advir, fundamentalmente, da consciência do direito a lutar pela sobrevivência diária. Por se

constituir como um movimento social, formado basicamente pela população excedente, que

enfrenta dificuldades objetivas de organização política, a organização surge, diretamente,

vinculada à luta pela sobrevivência. Observamos que o direito à luta, nestas circunstâncias,
205

apóia-se no ideário cristão, especialmente no catolicismo, ligado à Teologia da Libertação –

fonte de formação das lideranças do MST114.

As mulheres do acampamento expressam a legitimidade da ocupação, com

extrema nitidez. No direito a lutar pela sobrevivência dos filhos, residem os valores que

legitimam a sua participação no movimento. Provavelmente, por esta razão, sejam tão cruciais

os papéis por elas assumidos na sustentação diária do acampamento e, assim, do Movimento

como um todo. Muito embora grande parte dos porta–vozes do MTST sejam homens, a

presença de mulheres nas coordenações, no trabalho sócio-educativo, na lida diária, e, não

raro, nos processos de organização de novas ocupações, ou de enfrentamento da violência

policial nos despejos vividos noutras ocupações, denota uma clara distinção entre este

Movimento e boa parte do movimento sindical, em que grande parte da liderança é masculina.

As razões para essa diferença podem ser encontradas no significado da habitação,

na reprodução da força de trabalho e no papel desempenhado pelas mulheres nesta

reprodução, posto que a elas, tradicionalmente, cabe o cuidado e a proteção da família. Além

disto, cabe ressaltar a crescente presença de mulheres como chefe de família na classe

trabalhadora, o que também acontece no acampamento Anita Garibaldi.

A habitação não se restringe a ser o abrigo, também pode viabilizar o acesso à

renda, através da venda de produtos das pequenas hortas, ou a oferta de serviços: manicura ou

cabeleireira, bem como a ajuda na recreação de crianças do acampamento. A estas atividades,

soma-se o acesso aos recursos a equipamentos e serviços públicos, muitas vezes, só alcançado

por via de forte pressão coletiva.

114
Lembramos a importância da ação da Igreja, em especial do setor progressista da Igreja Católica, na
organização do MST. O ideário da Teologia da Libertação forneceu (e ainda fornece) os argumentos que
legitimam a luta pela terra e a luta pela reforma agrária. Em conformidade com o pensamento católico, todos os
homens, indistintamente, são possuidores do direito à vida e de vivê-la, em condições iguais. A este ideário, os
representantes da Teologia da Libertação acrescentaram a noção do compromisso da ação da Igreja com os
oprimidos, a opção pelos pobres, a forte crítica à exploração e à opressão capitalistas e a compreensão de que é
preciso haver profundas mudanças na sociedade brasileira, com vistas ao alcance da justiça social; mudanças,
que só poderão ser viabilizadas por intermédio da organização e da luta. Muito embora não haja influência direta
206

Nesta experiência, o significado da habitação é bem maior do que, simplesmente,

o da casa. Envolve, antes, o sentido da vizinhança, da ajuda mútua, inclusive no acesso à

alimentação e roupas e no cuidado com os filhos. A habitação, também, possibilita o acesso a

informações e contatos necessários à participação em programas assistenciais e o usufruto de

outros direitos sociais, como o direito à instrução, para si e para os filhos, tanto na rede

pública como nas atividades do Movimento.

Tendo em vista o fato de que os ocupantes integram o segmento da classe

trabalhadora que sofre, mais diretamente, a ruptura das promessas de integração associadas à

incorporação no mercado de trabalho e às políticas sociais, a participação no Movimento e,

por conseguinte, o alcance da moradia, pode significar o acesso a outros direitos negados pela

cidade. O habitar para este segmento significa, portanto, a possibilidade de vivência do

sentimento de pertencer, através do abrigo representado pela morada e por um estoque de

valores relacionados à solidariedade e à cooperação mútua. A luta por habitação envolve,

assim, conforme antes aludido, o alcance de um “canto no mundo”.

Trata-se, provavelmente, da conquista de uma pré–condição da disputa por um

lugar na cidade, uma vez que esta disputa só pode vir a se concretizar no direito ao trabalho,

posto que o “trabalho é, [...], condição es sencial na construção das esferas de sociabilidade e

de permanência no tecido urbano” (Cassab, 2004: 72).

Por intermédio do trabalho, pode-se, não só produzir os meios de subsistência

necessários à reprodução da força de trabalho – a manutenção da condição vital de si e de sua

família, como também, experimentar a objetivação de capacidades individuais e coletivas. Por

meio desta vivência, exercita-se, subjetivamente, a apreensão das circunstâncias objetivas,

sociais e históricas do trabalho.

deste ideário na organização do MTST, há influência indireta, já que parte da coordenação do acampamento é
formada por dirigentes deslocados do MST.
207

O acesso ao trabalho e aos direitos a ele associados é, nestes tempos marcados por

forte redução do trabalho necessário, uma condição cada vez mais difícil de ser obtida. Com

isto, o trabalhador sofre, crescentemente, a desvalorização de sua capacidade de

reivindicação, o que acarreta degrade ação pessoal e política115.

Assim, enquanto que, em fins dos anos 70 e início dos 80, os operários

metalúrgicos, das grandes greves do ABC paulista, conquistaram o reconhecimento de sua

luta, com apoio no valor produzido por seu trabalho, vinte anos após, o segmento da classe

trabalhadora que forma a base social do MTST, constrói a legitimidade de sua luta com base

no direito à sobrevivência diária. Esta mudança revela a intensidade do pauperismo, em

contraponto à concentração crescente da riqueza e da renda, e demonstra, também, a

relevância de movimentos sociais que acabam por cumprir a função de evitar o descarte

absoluto da parcela da classe trabalhadora que, atualmente, mais cresce. Reside,

provavelmente, no desempenho desta função, a grande fonte de legitimidade destes

movimentos sociais: o direito à vida digna.

4.6. PRINCIPAIS OBSTÁCULOS À ATUAÇÃO DO MTST

Não obstante a extrema relevância social do MTST, especialmente por seu papel

aglutinador de segmentos da classe trabalhadora, que resistem tenazmente à exclusão social, o

Movimento se confronta com obstáculos e limites de origem, não só exógena, mas também

endógena, que podem, caso não sejam superados, vir a comprometer a realização do seu

115
Segundo Martins (2002:124), “[...] O que a sociedade capitalista propõe hoje aos chamados exclu ídos está
nas formas crescentemente perversas de inclusão, na degrade ação da pessoa e na desvalorização do trabalho
como meio de inserção digna na sociedade [...]. Esta é uma estratégia muito clara para esvaziar o potencial
político de reivindicação das classes trabalhadoras. O trabalhador que entra num processo demorado e
patológico de reinclusão, que não pode nem mesmo se concretizar se degrada como pessoa [...]. Ao mesmo
tempo, ele se degrada como ser político, como sujeito da história, porque perde o poder de exigir o
cumprimento das leis em relação a ele”.
208

projeto. Destacamos, entre os limites endógenos, as condições de exercício da autonomia no

(e do) Movimento.

Compreendemos que a autonomia – princípio reivindicado pelas principais

lideranças do Movimento – requer, além da elaboração coletiva do sentido da ação e de sua

legitimidade, a construção de uma outra condição que, segundo avaliamos, possui igual

importância: a superação da distância entre dirigentes e base nos processos de tomada de

decisão realmente significativa.

Nesta separação, reside, de acordo com Chauí, uma das formas contemporâneas

de cristalização da dominação e da exploração. Os dirigentes detêm a consciência dos fins da

ação e se espera da base que adote formas de comportamento que favoreçam o alcance destes

fins, cujo sentido lhe escapa. Esta heteronomia, segundo a autora, inicia-se na divisão do

trabalho e se espalha por toda a sociedade, e, de acordo com CHAUÍ (1990:306) “[...] é

reforçada e naturalizada porque encontra suporte na ideologia da competência” . A esta

concepção, vincula-se o conceito de falsa consciência. Trata-se, ainda segundo a autora, da

idéia de que a consciência verdadeira deve vir de fora, “[...] de tal modo que a alienação seria

suprimida pela ação educadora da vanguarda” (CHAUÍ,1990:307).

É importante observar que, tanto no MST como no MTST, a separação entre

dirigentes e dirigidos, incluindo a distância entre modos de vida, tem sido duramente criticada

e em seu lugar se afirma o princípio de que o dirigente deve, não só viver sob as mesmas

condições sócio-econômicas de todos os participantes, incluindo moradia, como também

assumir tarefas manuais, e não somente as relacionadas à concepção política do Movimento.

Na crítica a este traço, comum mesmo, ao novo sindicalismo, reside a busca de

superação da reprodução da divisão social e técnica de trabalho, no âmago do Movimento que

estamos analisando. As observações e os depoimentos de participantes indicam que este

esforço tem resultado em enorme confiança na seriedade e no compromisso da direção do


209

MTST com a causa comum, a conquista da moradia. Observamos, entretanto, que esta busca

de superação das distâncias sociais é combinada com a valorização da disciplina e com o

controle da militância, o que, no movimento sindical, acontece de forma bem menos incisiva.

Presumimos que a necessidade de acionar estes dois últimos métodos de ação, ou princípios

orientadores da ação, de acordo com a terminologia do MST, deve-se ao fato de que estes

movimentos lidam com questões que hoje não afetam mais o novo sindicalismo – a segurança

de seus participantes, frente ao recrudescimento da coerção e da violência.

Contudo, a observação do processo de tomada de decisão, entre os participantes

do acampamento no MTST, leva-nos a presumir que, muito embora esta busca de superação

de distâncias entre liderança e base constitua parte importante dos valores perseguidos pelo

Movimento, ainda há um caminho a ser superado.

O depoimento de uma das lideranças intermediárias do movimento sobre a

desigualdade, no acesso à informação e na participação em decisões relevantes para o

Movimento, ilustra este comentário analítico. Segundo o morador,

[...] o processo (de reintegração de posse) hoje está parado. Então a gente
não tem muito informe sobre isso. Quem participa? O pessoal lá da
coordenação. Eles participam e falam com a gente. Mas, muitas vezes, eu
não fico sabendo de certas coisas. Teve-se uma reunião hoje, eles fazem
outra para ver como irão passar para a gente. Então, eu não vou dizer que
eles estão parados. Não. Mas se eles estão andando com alguma coisa, eu
também não sei (Moreno, depoimento à autora, 2003).

Com este questionamento sobre quem participa, o militante interpela a direção do

Movimento, mostrando sua insatisfação com a hierarquia e a seletividade que transparecem

do processo de tomada de decisão. Esta crítica toma como referência o próprio chamado à

participação constante, realizado pela coordenação. Na realidade, as diferenças e divergências

entre as lideranças intermediárias e os integrantes da coordenação estadual do MTST,

adquirem diferentes conotações, ainda que pareçam ter conteúdo semelhante.


210

Enquanto para alguns membros da coordenação intermediária, a ação deveria

concentrar-se, prioritariamente, no acampamento, incluindo atividades que favoreçam a

obtenção de renda, para os membros da coordenação do acampamento, que integram a

Coordenação Estadual do Movimento, a prioridade é o espraiamento da luta por meio da

ocupação de outros terrenos em cidades vizinhas; a articulação em âmbito estadual com

movimentos e a estruturação da coordenação nacional, além da articulação com outros

movimentos e ONGs, em âmbito internacional. Na medida em que estas diferenças não são

amplamente discutidas e tratadas em conjunto, permanecem existindo, de forma tensa, sempre

latente, o que interfere, diretamente, no grau e na qualidade da participação social e,

conseqüentemente, na formação e na preservação da vontade coletiva.

Consideramos que a construção da vontade coletiva requer que cada participante

seja chamado a imprimir, na experiência vivida, a marca de suas capacidades, intenções e

concepções de mundo, de modo a contribuir para a concretização do projeto do Movimento.

Deste modo, poderiam ser forjadas possibilidades concretas para que os integrantes do

Movimento se tornem protagonistas, e não meramente coadjuvantes da ação, cuja

interpretação e cujos sentidos, escapam aos esforços diários de preservação da própria

experiência.

Segundo afirma CHAUÍ (1990), os movimentos sociais tendem, com base na

ideologia da competência, a naturalizar a separação entre dirigentes e dirigidos. A análise da

experiência do MTST, no acampamento Anita Garibaldi, leva-nos a partilhar esta

compreensão da autora. Entre os participantes da ocupação, esta tendência é reforçada pelo

fato de que a ausência de debate democrático nos processos de tomada de decisão surge,

muitas vezes, envolta por ardis ideológicos, de difícil apreensão e, logo, superação.

Gramsci já apontava que a reprodução desta tendência pode ser camuflada, sob a

alegação da urgência; de ausência de tempo hábil, para que todos possam ter acesso a
211

informações indispensáveis à participação nas decisões. Em nome da urgência, as soluções

encontradas para diferentes desafios e momentos, boa parte das vezes, resultam de discussões,

não apenas apressadas, mas centralizadas, o que faz com que, nem todos os integrantes do

processo coletivo possam “[..] dominar os termos exatos das questões e, portanto, ao seguirem

as diretrizes fixadas, fazem-no por espírito de disciplina e pela confiança que depositam em

seus dirigentes” (GRAMSCI,1917: 104)

No MTST, a exemplo de outros movimentos, tende-se, desta forma, a incorrer no

erro de estimular a passividade dos participantes, mesmo quando a passividade aparece

encoberta pela intensa atividade. Muitas vezes, trata-se de mero ativismo, de uma ação

dissociada do seu significado, uma vez que, o processo de construção de alternativas de

deliberação das prioridades de ação, não é coletivamente partilhado.

Há nesta relação, conforme mencionado, uma reprodução, nos processos de

reivindicação e organização política, da divisão social do trabalho. Esta divisão é orientada

pela concepção de que alguns, por terem mais competência, possuem a consciência

verdadeira, que deve nortear o caminho a ser seguido. No discurso dos principais dirigentes

do MTST, o caminho a ser perseguido tem como horizonte o ideário da reforma urbana,

articulada à reforma agrária e à transformação social.

No tocante à questão da reforma urbana, cabe ressaltar que o Movimento,

diferentemente de outras lutas por moradia, com presença na metrópole paulista116, orienta-se

por uma concepção reduzida, exclusivamente, à necessidade de ocupação do latifúndio

urbano.

Atribuímos esta reduzida elaboração da questão urbana ao fato de o Movimento

ter formação recente, o que lhe confere um grau menor de experiência, no que concerne ao

116
Lembramos que os movimentos de luta por moradia tiveram intensa participação na elaboração do projeto de
reforma urbana, defendido desde os primeiros anos da década de 80 do século passado. Projeto que alcançou
reconhecimento na Assembléia Nacional Constituinte, e que dá origem ao capítulo sobre direitos urbanos da
Constituição Federal.
212

enfrentamento das contradições urbanas. Além disso, parte de seus principais dirigentes

possuem vínculos com o MST e, por conseguinte, com a luta pela reforma agrária. O

depoimento, a seguir, de um dos coordenadores intermediários, expressa a influência deste

vínculo na concepção da luta urbana. Afirma o entrevistado:

[...] a [...] questão da reforma urbana do MTST é lutar, primeiro para tirar
dos latifundiários uma quantidade de terra improdutiva, nas áreas de cidade.
Porque você pode ver que, se a gente for levar em consideração, entre os
latifundiários existem varias áreas muito grandes, que não têm objetivo
nenhum, que não têm função para nada. Então, essa é uma das finalidades da
reforma urbana. É ocupar estas áreas de latifundiários. Ocupar essas áreas,
para que a gente faça uma reforma urbana para essas famílias pobres dos
mais pobres, porque, geralmente, a gente sabe: isso ai é fruto destas grandes
quantidades de terra no município, no urbano, nas grandes cidades, é só para
que elas valorizem. Então, aquelas terras ficam lá paradas, muitas vezes são
terras griladas, que não têm atividade nenhuma. [...] Então, a luta do MTST,
na reforma urbana, é ocupar as grandes áreas de latifúndio. Áreas que estão
improdutivas, que não estão servindo para nada, que nem capim eles estão
plantando para os animais (João, depoimento à autora, 2003).

O depoimento desta liderança do Movimento permite entrever certa transposição

mecânica da experiência alcançada no campo, para a cidade. Pelo que nos foi possível

constatar, não se trata de um depoimento isolado, pois como já dissemos, diferentemente dos

movimentos de luta por moradia da década de 80, e de outros movimentos por moradia, que

hoje atuam na Região Metropolitana de São Paulo, que alicerçam sua atuação na luta num

amplo projeto de reforma urbana, no MTST, a construção desta bandeira de luta se baseia.

Exclusivamente, na idéia da ocupação dos denominados latifúndios urbanos117 e sua

desapropriação, via instrumentos urbanísticos existentes.

Consideramos relevante observar que, muito embora o processo constitutivo do

Movimento pareça revelar a superação da falsa dicotomia entre campo e cidade, os

depoimentos e a prática do Movimento indicam a parca reflexão do conjunto da liderança do

117
O movimento parece se utilizar do termo latifúndio urbano como uma analogia da realidade rural, como uma
concepção emprestada. Segundo Ferreira (2003) “a expressão latifúndio urbano é uma concepção que [...] não se
refere à medida da propriedade rural”. [...] Não tomamos o sentido quantitativo da medida de um latifúndio
(acima de mil hectares), mas seu conteúdo qualitativo que quer dizer grande extensão de terra mal aproveitada”.
213

MTST a este respeito, já que a própria concepção de reforma urbana sugere a ausência de

análise das complexas relações exercidas pelo campo e pela cidade, na fase contemporânea do

capitalismo.

O limitado reconhecimento da natureza da questão urbana acarreta, obviamente,

dificuldades para a definição do horizonte do Movimento e da experiência do acampamento.

Todavia, a experiência da ocupação, o debate com os outros movimentos sociais e a própria

interlocução com a prefeitura, o governo estadual e o proprietário do terreno, tendem a

provocar alterações nesse quadro, uma vez que a inserção do Movimento, na cidade, exige

respostas que dependem do debate sobre a dinâmica das contradições especificamente

urbanas.

A ainda frágil análise da questão urbana combina com um ideário utópico acerca

do mundo rural. Segundo Jota, entre as diferenças entre o MTST e os outros movimentos de

luta por moradia, destaca-se a não ocupação de prédios públicos, porque a materialização do

seu projeto requer espaços horizontais, onde as pessoas possam pisar na terra, plantar uma

horta e estabelecer relações de vizinhança, propiciadas, também, pela forma de organização

do espaço físico.

Do depoimento deste líder sobre a escolha do tipo de ocupação do MTST,

podemos depreender a tendência à transposição de um ideário utópico da vida no campo, para

o mundo urbano. Presumimos que, subjacente a esta concepção, encontra-se, além da crítica

ao individualismo, ao consumismo e à competição entre os moradores das metrópoles, a idéia

de que a experiência de novas relações, baseadas, pretensamente, noutra forma de convívio

social, pode possibilitar a superação dos males do mundo urbano. Afinal, a concepção da

cidade como epicentro do Mal (pecados e vícios), tem uma longa presença no imaginário

social, inclusive através da influência exercida pelas religiões tradicionais e pelos primeiros

críticos da cidade capitalista.


214

Nesta concepção, as possibilidades de resistir aos males do mundo capitalista

estariam creditadas, principalmente, nos valores tradicionais, na recuperação idealizada da

vida no campo. Como não é possível reconduzir os participantes da ocupação para a zona

rural, buscar-se-ia construir, por meio da influência exercida pelo Movimento, uma vivência

contrária ao modo de vida urbano, uma vez que a cidade constituiria o lócus privilegiado dos

desvios característicos da racionalidade capitalista.

Salvo melhor juízo, trata-se de uma concepção elaborada com base em valores do

passado pré-capitalista, acionados para interpretar, criticamente, as condições de vida hoje

experimentadas no campo e para sustentar a intervenção do MTST no contexto urbano. Nela,

não ocorre o reconhecimento de que o campo e a cidade conformam um todo organicamente

articulado, uma vez que esta articulação corresponde à divisão social e técnica do trabalho.

Muito embora esta visão expresse a adesão a valores anteriores ao capitalismo, e

constitua uma concepção que informa parcela dos dirigentes do Movimento – designados pelo

MST para cumprir a tarefa de organizar o MTST – ao articularmos esta forma de pensar à

terceira bandeira do Movimento, o chamado ao socialismo, reconhecemos que,

provavelmente, no conjunto das concepções que informam a direção do MTST, prevalece

uma mescla entre uma concepção passadista, restauradora da ordem anterior ao capitalismo, e

perspectivas marcadamente dirigidas ao futuro. Ainda que a construção deste futuro pareça

combinar a análise marxista dos fundamentos da exploração e da opressão com leituras que,

contraditoriamente, remetem ao passado pré-capitalista.

Explicando melhor: a direção do Movimento, durante as reuniões preparatórias

para a ocupação do terreno, afirmava aos participantes que a luta por moradia e por reforma

urbana deve estar articulada a uma luta maior por transformação social, orientada ao

socialismo. Com esta formulação, os coordenadores do MTST pretendiam difundir, entre os

futuros participantes e entre seus aliados, o caráter não imediatista do seu projeto, afirmando,
215

assim, a vinculação da luta imediata à necessidade de superação dos fundamentos da ordem

social vigente. Ao fazê-lo, marcam uma posição bastante distinta daquela dos movimentos

sociais urbanos dos anos 80. Para estes últimos, de forma predominante, a melhoria das

condições urbanas de vida dependeria, sobretudo, da democratização da gestão dos recursos

públicos.

Avaliamos, porém, que, ao longo da constituição do Movimento, o horizonte do

socialismo tem, algumas vezes, se transformado em mero discurso, que se esvanece,

reaparecendo em alguns documentos, na referência genérica a transformações sociais. O fato

de o socialismo constituir, explicitamente, uma bandeira do Movimento, mas com um sentido

aparentemente alegórico, destituído de potencial aglutinador e mobilizador não é, obviamente,

casual.

Ao que tudo indica, o fato da bandeira do socialismo ser propagandeada pelo

Movimento se deve à influência do ideário anticapitalista, defendido por parte da direção do

MST. Contudo, o fato dessa bandeira apresentar características apenas figurativas, alegóricas,

vincula-se a outras determinações sociais relacionadas, tanto à constituição da base social do

Movimento, quanto aos limites próprios à natureza de um movimento social.

Primeiramente, partimos do pressuposto de que a precariedade da relação da base

do Movimento com o mundo do trabalho torna distante e nebulosa a percepção da exploração

e da opressão, que caracteriza o modo de produção capitalista.

A não inclusão da população sobrante no mercado de trabalho torna-a,

tendencialmente, um ator social historicamente privado de algumas condições objetivas que

permitem a identificação do antagonismo presente na relação capital-trabalho. Por esta razão,

este segmento reúne menores condições de constituir uma força social dirigida à

transformação radical das relações sociais de produção. Esta compreensão nos leva a afirmar

que as condições de vida experimentadas pelo segmento da classe trabalhadora que compõe a
216

base social do MTST e, especialmente, o desemprego permanente, não ajudam a revelar as

contradições de classe. Ao contrário, antes as elide, porque expõe os indivíduos à privação, ao

alijamento e, assim, ao sentimento de não pertencimento à classe que vive do trabalho

(Martins, 2002).

Cabe ressaltar, todavia, a partir da análise da experiência do MTST e de outros

movimentos sociais que aglutinam segmentos da população excedente que a “[...] condição de

despossuídos e excluídos os coloca potencialmente como um sujeito social capaz de assumir

ações mais ousadas, uma vez que esses segmentos sociais não têm mais nada a perder no

universo da sociabilidade do capital”. (ANTUNES, 1999:207)

De fato, por se tratar de um movimento social, a esfera de formulação e atuação

do MTST não abarca os interesses do conjunto da classe trabalhadora, que são representados

pelos partidos políticos. Sua esfera de elaboração política e intervenção vincula-se à questão

que aglutina e serve como elemento catalisador da identidade do Movimento – a luta por

moradia, a partir da qual são ensaiados os passos em direção a outras formas de contestação

da ordem dominante.

Julgamos que a abordagem do socialismo, realizada pelo Movimento, deve estar

ligada à influências ideo-culturais de militantes do MST, designados para a organização do

MTST. Importante observar, neste sentido, que o MST mantém com a direção do MTST uma

relação de acompanhamento próximo à sua atuação, incluindo a formação de quadros,

avaliação do trabalho desenvolvido e ajuda financeira.

A cultura política de alguns dos principais dirigentes do MST está impregnada,

tanto pela indignação ética, própria da moral tradicional da Igreja Católica, como pelo

compromisso com a transformação social introduzido pela Teologia da Libertação. Porém,

como afirma LÖWY (1995)118, não há na crítica ao presente, formulada pelos teólogos da

118
De acordo com o autor, “O romantismo revolucionário e/ou utópico para o qual a nostalgia do passado pré –
capitalista é, por assim dizer, investida na esperança de um futuro pré-capitalista. Recusando tanto a ilusão de
217

libertação, um claro desígnio de restauração de um passado anterior ao capitalismo, mas sim,

uma intenção marcadamente progressista.

Com base na análise realizada por este autor, poderíamos afirmar que se, por um

lado, a influência do pensamento anticapitalista da Teologia da Libertação na militância do

MST, inclusive em membros deslocados para o MTST e militantes das CEBs, inspirou os

objetivos do MTST, por outro, há, no ideário do MST e do MTST, a presença de traços

utópicos do anticapitalismo romântico. Na perspectiva da Teologia da Libertação, a

concepção de futuro é construída pelo passado, pois, nela se articula a análise marxista dos

fundamentos da exploração e da opressão, com uma noção de que a transformação virá por

meio da ação redentora da Igreja, não concebida como instituição, mas como povo de Deus –

os oprimidos – que, uma vez organizados e sob o impulso da luta, forjarão o porvir.

Avaliamos que este ideário, embora tenha como horizonte o futuro, possui traços

passadistas, posto que nele se oblitera a reflexão em torno do papel da classe trabalhadora,

particularmente do operariado119, no processo de construção da nova ordem. Ou seja: a

utilização da noção de povo oprimido, não permite discernir entre aqueles que, no interior da

classe trabalhadora, possuiriam condições e interesse de soldar uma unidade estratégica de

seus objetivos, em direção a mudanças revolucionárias. Ao mesmo tempo, elide-se a própria

noção de processo revolucionário – instrumento necessário às transformações radicais de

ordenamentos sociais, o que faz transparecer os traços do caráter extremamente progressista,

mas utópico.

um retorno puro e simples às comunidades orgânicas do passado quanto a aceitação resignada do presente
burguês, aspira – de modo mais ou menos radical e explícito, conforme o caso – à abolição do capitalismo e ao
advento de uma utopia futura, na qual certos traços e valores das sociedades pré-capitalistas seriam
reencontrados”.
119
Esta afirmação se fundamenta na teoria social de Marx, para quem a classe operária, engajada em sua luta
contra a burguesia, é a força política capaz de realizar a destruição do capitalismo e uma transição para o
socialismo. Segundo o autor, esta é "a classe a qual pertence o futuro", como escreveu em seu prefácio à Enquête
Ouvrière, em 1880.
218

Reside, sem dúvida, desta combinação de influências, parte das orientações de

práticas presentes no cotidiano do acampamento. Nelas, o estímulo à vivência e sentimento do

nós e do bem comum, permite recordar o ideário do comunitarismo cristão.

Não podemos afirmar a existência de efetivas relações causais entre as influências

deste ideário e a ausência de formulação mais clara sobre a questão social no urbano brasileiro

atual. Podemos, sim, afirmar a importância do conhecimento da realidade social em que se

atua como condição indispensável à definição dos objetivos, metas, estratégias de luta, tanto

do ponto de vista imediato, como mediato, mesmo porque, compreendemos o Movimento

como intrinsecamente vinculado à transformação ocorrida na questão social, uma vez que no

seu âmago, coexistem profunda desigualdade e resistência (Iamamoto, 1998).

Da mesma forma, cabe reafirmar que a demanda de enfrentamento da questão

social, posta ao Movimento desde sua preparação, tende, por força dos imperativos das

condições dadas pela dinâmica da realidade, a se manifestar, a cada dia, de forma mais nítida,

tanto nas reivindicações da base, quanto nas negociações com o governo e o proprietário do

terreno, o que impõe novos desafios teórico-práticos aos seus militantes.

Conhecer a cidade pode significar a revalorização da experiência de migrantes e

filhos de migrantes, ex-favelados, ou ex-moradores dos bairros de Guarulhos e de São Paulo –

exilados do trabalho e, por conseqüência, das condições indispensáveis à vida urbana.

Naquele “acampamento de baianos”, conforme alguns moradores do acampamento

jocosamente denominam o Anita Garibaldi, residem pessoas cuja adesão ao Movimento não

foi construída pela experiência de trabalho, mas pela necessidade de ter um local seu para

morar.

Em suas histórias de vida, há um conjunto de experiências que, caso valorizadas,

podem desmistificar interpretações idealizadas e acríticas da vida no mundo rural e,

especialmente, potencializar a aventura da conquista de um lugar no mundo, na cidade.


219

Aventura, que não pode mais ser vivida como aventura individual ou, quando muito, restrita

aos mutirões de autoconstrução experimentados pelos migrantes que chegaram à periferia da

Região Metropolitana, no período da expansão industrial, mas pode sim, ser vivida na

configuração de novos sujeitos coletivos, com capacidade de compreender e ampliar as

estratégias populares de sobrevivência, através do reconhecimento de seus sentidos sociais e

políticos.

Desvendar as contradições sociais da vida urbana hoje, apreendendo o

entrelaçamento de interesses entre os sujeitos que disputam a cidade pode, outrossim,

significar a descoberta de permanências e possíveis alterações conjunturais na relação entre

movimentos sociais e vida cotidiana, o que demanda a elaboração de novas estratégias de luta

e, inclusive, uma aproximação, ainda maior, com outros processos de organização, e

mediadores com capacidade de análise e de formulação de propostas abrangentes para o

enfrentamento da questão social no urbano.

Decifrar a cidade pode vir, assim, a possibilitar o reconhecimento das condições

indispensáveis à vivência da autonomia. Neste esforço residiria, conforme reflete SADER

(1988), a possibilidade de se dar algo, além daquilo que já está determinado, uma vez que o

significado da construção do sujeito autônomo não se relaciona àquele que seria livre de todas

as determinações externas, mas àquele que é capaz de reelaborá-las em função do seu projeto,

da sua vontade.

Por fim, salientamos que as linhas de argumentação até aqui apresentadas, tiveram

por objetivo orientar a reflexão das potencialidades e dos limites do MTST se afirmar como

movimento autônomo, possuidor de identidade e projeto próprios. Vimos que esta

possibilidade se depara com um conjunto de dificuldades e obstáculos. Entre estes,

destacamos a relação entre dirigentes e base. Há uma outra questão, porém, que, a nosso ver

atinge, de modo ainda mais decisivo e essencial, os objetivos do Movimento: o acesso ao


220

trabalho dos seus integrantes. Esta questão (de difícil enfrentamento), levantada pela

coordenação intermediária, parece não ter sido ainda suficientemente tratada, e talvez até

mesmo compreendida, em sua complexidade, pelo conjunto da direção do Movimento.

Esta não é, a nosso ver, uma questão menor. A ausência de condições de

sobrevivência diária, para muitos moradores do acampamento, pode comprometer a

sustentação do Movimento, uma vez que seus integrantes podem vir a se tornar mais

vulneráveis ao poder do tráfico de drogas, ao clientelismo eleitoral e, até mesmo, recorrer à

venda da casa ou seu aluguel como forma de suprir carências alimentares imediatas.

Como a autonomia do movimento não pode ser concebida, de forma descolada, da

construção da autonomia de cada um de seus participantes, o enfrentamento da luta pelo

direito ao trabalho, tanto pela via da formação de cooperativas de trabalho, como pela via da

pressão coletiva, pela abertura de postos de trabalho e qualificação profissional, é

imprescindível à própria sobrevivência do projeto do Movimento e da experiência do

acampamento em particular.

Enfim, por se tratar de um Movimento formado por um segmento da classe

trabalhadora, exilado do mundo do trabalho, que reivindica pela ação direta um chão para

morar numa sociedade assentada na defesa da propriedade privada e na exploração do

trabalho, o não enfrentamento da questão do trabalho, no contexto urbano-metropolitano,

torna este e outros movimentos similares extremamente vulneráveis, sobretudo frente ao

crescimento do desemprego.

Estes fatos demonstram a importância de que seja assumida, pelo Movimento, a

luta por alternativas de sobrevivência, reivindicada por integrantes de sua base e coordenação

intermediária, mas especialmente, torna urgente a luta pelo emprego. Nesta perspectiva,

evidencia-se a centralidade, que precisaria ser atribuída à superação da histórica dissociação


221

entre lutas urbanas e lutas sindicais, em contextos metropolitanos. Esta questão exige

aprofundamento maior, o que procuraremos realizar a seguir.

4.7. A DISSOCIAÇÃO ENTRE LUTAS URBANAS E LUTAS SINDICAIS

Muito embora respeitemos o fato de que as preocupações com a manutenção das

conquistas e com a ampliação do seu raio de ação tomem todo o tempo do parco número de

militantes dos movimentos sociais, a tradicional dissociação entre lutas por moradia ou

melhorias urbanas e lutas na esfera do trabalho constitui, a nosso ver, a principal razão das

dificuldades observadas na formulação de um projeto cultural e político que unifique os

trabalhadores.

Ribeiro, preocupada em discernir, nesta dissociação, as suas conseqüências para

as lutas sociais, afirma:

O trabalho e vida urbana ou realidade urbana para a classe trabalhadora


compõem uma só lógica, motivo pelo qual colocamos como questão aqui, a
desvinculação atual entre os movimentos sociais urbanos e os movimentos
de base trabalhista. Pois, vemos o mais-trabalho que se realiza fora do
espaço das unidades capitalistas de produção como articulado às
necessidades do capital e estimulador do processo de a acumulação, seja
pelo barateamento do custo de reprodução da força de trabalho seja pela
produção das condições gerais de a acumulação do capital (RIBEIRO,
1980:122).

Na afirmação da autora, realizada antes do atual aumento do desemprego,

encontram-se nítidas indicações em apoio à superação da visão que cinde trabalho de

reprodução social. Mas, a que atribuir a desvinculação criticada por Ribeiro? Poderia estar

relacionada à aceitação da noção dominante de cidadania, segundo a qual a sua conquista se

restringe à posse ou aquisição de direitos? Possivelmente, sim. O ethos instrumental-

possessivo, subjacente a esta noção, dificulta o reconhecimento do direito dos produtores da


222

riqueza à gestão do mundo do trabalho, o que tende, muitas vezes, a circunscrever as lutas dos

trabalhadores a disputas por acesso individual ao mercado de trabalho e, logo, ao consumo.

Esta dissociação estaria relacionada, fundamentalmente, à separação entre

produtor e meios de produção e entre produtor e propriedade da terra, permitindo que a

moradia tenha se transformado em mercadoria produzida sob relações capitalistas e, portanto,

destinada ao lucro?

Iamamoto, refletindo a conformação da sociabilidade burguesa moderna, fornece

uma chave de interpretação para tais questões. A autora afirma que:

[...] O processo de produção como reprodução ampliada de relações sociais


recria, simultaneamente, a consciência como alienação e a possibilidade de
rebeldia por parte daqueles que vivem do trabalho ou dele são excluídos. O
seu fundamento concreto está na tensão entre o trabalhador coletivo como
objeto do capital, porquanto expressão do capital – neste sentido sua
propriedade –, e o trabalhador como sujeito criativo vivo e livre, capaz de
reagir aos castigos do trabalho, de lutar contra sua alienação no processo de
sua afirmação como sujeito político-coletivo (IAMAMOTO, 2001:80).

Ora, na tensa e contraditória relação entre o sujeito criativo e o trabalhador

coletivo, no processo de formação do sujeito político-coletivo, convivem práticas e valores

instituídos e instituintes e, neste sentido, a superação da alienação e da conseqüente falta de

apreensão da totalidade na análise e na intervenção, existem como possibilidade, mas não

estão garantidas. Cabe ressaltar, contudo, que a classe não é um todo homogêneo e que,

portanto, os segmentos ou frações que a compõem tecem experiências de vida diversificadas,

implicando em condições e possibilidades, também diferenciadas de constituição de projetos

político-organizativos autônomos.

A materialização desta possibilidade exige a elaboração de uma nova concepção

de mundo, forjada por meio da práxis e da reflexão sobre os fundamentos econômicos e

sócio-políticos da organização da sociedade, permitindo identificar os véus que encobrem e

dissimulam o real e obliteram a compreensão dos nexos ontológicos que o compõem. Nesta
223

perspectiva, a concretização desta possibilidade requer conceber o modo de produção como

um todo orgânico, no qual os momentos de constituição do social não se dão de forma

isolada, mas sim, através de processos de mútua determinação.

Deriva daí, por conseguinte, a necessidade de aprofundar o exame teórico do

processo de produção e reprodução da sociedade capitalista. Este exame se fundamenta, a

nosso ver, na compreensão de que a dominação do trabalho pelo capital, não se restringe ao

lócus da produção, mas se estende à totalidade do social, entendida não como soma das

partes, mas como um complexo conjunto de relações diferenciadas, hierarquizadas, visto que

existem relações mais ou menos importantes na preservação da totalidade120. Esta angulação

teórica permite, ademais, conceber a realidade social, não como algo acabado, mas como um

todo estruturado, em curso de desenvolvimento e de autocriação121 permanente.

Nesta direção, torna-se imprescindível superar a concepção que tenda apreender o

momento da reprodução, unicamente, como reprodução da existência física dos indivíduos122.

A reprodução das relações de produção, segundo a perspectiva teórica marxista, não se limita

à reprodução da força viva de trabalho e dos meios de produção. Ao contrário, esta

perspectiva teórica compreenda relação entre produção e reprodução, como unidade, o que

faz com que a dominação do trabalho pelo capital não se restrinja ao lócus da produção, mas

se estenda à totalidade social.

Com base nesta visão, é possível perceber que as concepções teórico-práticas que

fragmentam as lutas sociais se baseiam em uma mistificação ideológica, difusora da noção de

que a luta por trabalho se desenvolve no espaço da produção e se restringe à economia,

enquanto que a luta por moradia se encerra no espaço da reprodução.

O fato de que esta percepção seja aceita tão amplamente, requer a reflexão

aprofundada de seus determinantes sociais. Do nosso ponto de vista, sua aceitação deita raízes

120
Ver Pontes (1989).
121
Ver Kosik (1976).
224

na forma como as expressões concretas da questão social aparecem na experiência social

imediata. Na medida em que estas expressões se manifestam de forma atomizada,

desvinculadas entre si, acontece, em geral, a sua apreensão a partir de sua aparência

fenomênica.

A ausência de instrumentos teórico-metodológicos que permitam superar este

seccionamento do ser social, no sentido do desvendamento dos seus traços fundantes e da

apreensão de seu caráter transitório, faz com que se tomem as expressões do real como se

fosse todo o real.

Lefebvre interpreta o processo de produção/reprodução das relações sociais da

seguinte maneira:

Quanto ao modo de produção (capitalista) este conceito designa em Marx o


resultado das relações de antagonismo: "salário/Capital",
"proletariado/burguesia”. Estas relações sociais não entram na prática da
sociedade, e da sociedade burguesa, a não ser através de formas que as
sustém e a mascaram; por exemplo, a forma contratual (do "contrato de
trabalho", ficticiamente livre, que liga os membros da classe trabalhadora e
os da burguesia e que pretensamente os associa). Este resultado global
compreende, portanto, as elaborações jurídicas das relações de produção, as
relações de propriedade decodificadas – as ideologias que exprimem
também, dissimulando-as, as relações de antagonismo – as instituições
políticas e culturais, a ciência, [...] (LEFEBVRE, 1977:220).

Para o autor, a reprodução das relações sociais alcança a totalidade da vida

cotidiana, expressando-se, tanto no lazer, na escola, na formação do pensamento científico, na

conformação do espaço arquitetural e urbano, nas relações familiares, como no trabalho.

IAMAMOTO (1992:72) com a mesma orientação analítica, afirma que "[...] a

reprodução das relações sociais é reprodução da totalidade do processo social [...] que envolve

o cotidiano da vida em sociedade: o modo de viver e trabalhar, de forma socialmente

determinada, dos indivíduos em sociedade”.

122
Ver MARX e ENGELS (1983).
225

A autora esclarece que a noção de reprodução envolve a reprodução da força de

trabalho e dos meios de produção, como elementos essenciais do processo de trabalho, e os

ultrapassa. Pois não se trata

[...] apenas de reprodução material no seu sentido amplo, englobando


produção, consumo, distribuição e troca de mercadorias. Refere-se à
reprodução das forças produtivas e das relações de produção na sua
globalidade, envolvendo, também, a reprodução da produção espiritual, isto
é das formas de consciência social [...] através das quais se toma consciência
das mudanças ocorridas nas condições materiais de produção. Neste
processo são gestadas e recriadas lutas sociais entre os agentes sociais
envolvidos na produção, que expressam a luta pelo poder, pela hegemonia
das diferentes classes sociais sobre o conjunto da sociedade (IAMAMOTO,
1992:72).

Compreendemos, contudo, que a superação dessa visão dicotômica exige, não só

aprofundamento teórico, mas também, a construção de um sujeito coletivo capaz de aglutinar

diversos saberes e práticas, em torno de um projeto comum que supere os fundamentos da

ordem burguesa, na direção da construção de uma nova sociabilidade. Este projeto, a nosso

ver, é indispensável à viabilização da unidade necessária à superação da desarticulação entre

as lutas sociais, tão intensamente estimuladas pelas políticas de cunho neoliberal123.

4.8. O SENTIDO DA AÇÃO DO MTST NA CONJUNTURA ATUAL

Finalizando este capítulo, queremos explicitar a linha reflexiva que orientou sua

elaboração. Esforçamo-nos, ainda que de forma limitada, na busca da apreensão teórico-

empírica das peculiaridades, possibilidades e limites do MTST. A experiência mais

consolidada do Movimento – o acampamento Anita Garibaldi – serviu como recurso à

análise. Procuramos, depois, articular esta apreensão à análise das balizas sócio-históricas da

formação do Movimento (a respeito das quais tecemos considerações no capítulo 3), e ao

123
Diversos autores analisam o significado e efeitos da implantação da programática neoliberal no Brasil.
Citamos, a título de exemplo, os seguintes: TEIXEIRA (2000), RAICHELLIS (1998), SALAMA (1997)
TAVARES e FIORI (1993).
226

exame de dois outros determinantes: o contexto sócio-espacial da experiência da ocupação e

sua dinâmica interna. Esta análise crítica tem como referência, conforme já mencionado, a

relação – tensa e contraditória – entre dois processos de constituição de um movimento social:

a intervenção consciente e planejada de seus participantes e as circunstâncias sociais e

históricas nas quais esta atuação acontece.

Este percurso nos levou a tecer as seguintes considerações:

Muito embora o MTST possua consideráveis limites, tendo em vista seu curto

tempo de existência, a forma peculiar de sua formação e os obstáculos enfrentados na

construção de sua autonomia, é importante ressaltar que possui como potencialidade, a

capacidade de dar visibilidade e legitimidade às reivindicações de um segmento social, sem

voz na sociedade e sem lugar na cidade.

Salientamos o fato da ação do movimento se firmar num contexto sócio-espacial

que oferece condições bastante particulares. Estas condições fazem com que a vivência da

questão habitacional assuma características específicas. A histórica disputa por solo urbano e

fundos públicos entre os movimentos populares, os empresários do setor imobiliário e

especuladores, ganha uma nova qualidade na cidade de Guarulhos quando,

concomitantemente ao processo de ocupação, assume a administração da cidade um prefeito

reconhecido por seu engajamento nas ocupações urbanas. Observamos que a própria eleição

do prefeito decorreu do seu compromisso com a luta pela moradia popular e, evidentemente,

da existência de um grande número de loteamentos clandestinos na região, decorrentes de

ocupações realizadas de forma individual ou coletiva.

Por certo, a eleição deste prefeito, em 2000, mesmo que no cenário social

produzido pelo ajuste econômico da década de 90, representou, para os movimentos de luta

por moradia, e especialmente para o movimento recém criado, um novo estímulo. É

importante observar, portanto, que a possibilidade de realização da experiência, de forma mais


227

plena na cidade de Guarulhos, se deve também à postura política que vem sendo adotada pela

Prefeitura.

Por outro lado, o projeto do movimento e a sua concretização advêm, sem dúvida,

de um amplo complexo de determinações, entre as quais citamos: o aprendizado das

principais lideranças nas ocupações e cursos de formação do MST; o interesse de um conjunto

de participantes em partilhar dos objetivos do movimento; a construção de alianças com

outros movimentos sociais; a conquista de legitimidade das reivindicações do Movimento

junto a instituições públicas, especialmente nas escolas da região, e a própria reestruturação

espacial e organização da infra-estrutura do acampamento.

Com efeito, ao se organizarem em torno da questão da moradia, os chamados

excluídos se tornam capazes de impor alguma perda a alguns dos principais agentes

econômicos que modelam a cidade: os especuladores imobiliários, que diante do aumento do

número de ocupações, temem manter terrenos vazios. Esta é, do nosso ponto de vista, uma

perda imposta pela ação dos movimentos de luta por moradia, àqueles que detêm o monopólio

da propriedade privada da terra urbana, posto que, de alguma forma, o aumento das ocupações

incide sobre o processo de formação do preço do solo urbano.

Não é possível, evidentemente, afirmar que esta ação facultaria inibir o aumento

da segregação sócio-espacial desse segmento da classe trabalhadora, uma vez que o

enfrentamento deste processo requer uma ação de maior vulto, que resulte na unificação dos

diversos movimentos sociais, inclusive o sindical. Mas, sem dúvida, trata-se de um processo

que intervém, direta e vivamente, no espaço social. De fato, a experiência do MTST em

Guarulhos, tornou-se, conforme pudemos constatar, parte integrante da cidade, ainda que tal

integração se dê imersa no clima próprio dos tempos atuais, caracterizado, segundo palavras

de Cassab (2001), como tempos de instabilidade e incerteza.


228

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste percurso, consideramos necessário fazer, inicialmente, uma breve

retrospectiva das indagações e objetivos que nortearam a pesquisa, seguida pela síntese das

aproximações teórico-metodológicas ao objeto, construídas ao longo da investigação e da

exposição dos resultados alcançados.

Partimos da seguinte questão: qual o significado da inovação no fazer político dos

movimentos sociais que acionam a via da ação direta na disputa pelo recurso público e pelo

direito ao uso do solo urbano? Para respondê-la, procuramos apreender os determinantes

sociais e históricos da emergência e da consolide ação do MTST como movimento social na

cena política brasileira.

Esta intenção norteou a apreensão dos determinantes estruturais e conjunturais da

produção da desigual participação social no processo de produção e distribuição de bens e

serviços, e sua atualização e aprofundamento na conjuntura atual, sobretudo em países

dependentes e periféricos, como o Brasil.

Esta apreensão foi realizada a partir do pressuposto teórico de que o fundamento

desta sociedade – a contradição entre a apropriação privada dos meios de produção e do

excedente social e sua produção cada vez mais socializada – permanece e se radicaliza na

atualidade, especialmente, nos países da periferia do sistema. Esta contradição agudiza-se na

fase atual do capitalismo, face à mercantilização de todos os espaços sociais, o que os

transforma em espaços administrados sob a égide da lógica do lucro.


229

124
No mundo urbano, esta contradição materializa-se, de acordo com Lojkine,

como contradição entre a parte dos recursos coletivos destinada ao financiamento dos meios

de produção e a parte destinada ao financiamento dos meios de reprodução da força de

trabalho e, ainda, entre o uso do solo, prioritariamente, como espaço reservado às

necessidades do capital, e o uso destinado ao suprimento das necessidades da classe

trabalhadora.

Com base neste pressuposto, elaboramos um arcabouço teórico-metodológico que

possibilitou desvendar, ao longo do processo de trabalho, conexões entre processos sociais

que serviram como instrumentos fundamentais para a resposta à questão que norteou o estudo.

Destacamos, entre elas, a relação entre a questão habitacional e a categoria

trabalho. Compreendemos, conforme mencionado na parte introdutória ao texto do primeiro

capítulo, que o desvendamento da questão habitacional requer a utilização de uma orientação

teórico–metodológica que permita trazer à tona os nexos ontológicos que tornam possível

caracterizá-la como parte integrante da questão social geral e revelar, também, suas

particularidades. O esforço de apreensão da questão da habitação, a partir desta perspectiva

analítica, orienta-se pela perspectiva da totalidade na análise das situações sociais e, por esta

razão, requer concebê-la a partir da forma como se organiza o trabalho nesta sociedade e a

partir da visão dos produtores da riqueza: os trabalhadores.

Neste processo, nos demos conta de que os analistas vinculados à tradição

marxista têm contribuído enormemente para o debate acerca desta questão; posto que

desmistificaram a falácia da economia liberal de que a questão habitacional seria sinônimo de

déficit habitacional. Com esta contribuição, desnudam o caráter estrutural desta questão e

desvendam a moradia nesta sociedade como direito dos proprietários e, não como direito

social público, uma vez que sua produção está subsumida à busca do lucro. Entretanto, ao não

124
Ver em LOJKINE, (1981).
230

estabelecerem as conexões entre o denominado problema habitacional com a forma como se

organiza o trabalho na sociedade capitalista e a relação entre este e a produção da riqueza e do

pauperismo, estas concepções teóricas não valorizam um nexo ontológico fundante desta

formação social e, por decorrência, elidem a importância, na produção da cidade, de um outro

agente modelador do espaço: a classe trabalhadora.

Por conseguinte: ao obliterarem a relação entre a questão habitacional e o trabalho

– “ selo distintivo de humanidade dos indivíduos sociais na construção de resposta às

necessidades humanas [...]” (IAMAMOTO, 2000:17), transformador simultâneo do sujeito e

da realidade, ainda que pervertido do seu significado abstrato, nas condições em que se realiza

na sociedade do capital –, essas concepções teóricas tratam a questão habitacional como

situação habitacional, posto que não é considerada a totalidade do processo de produção e

reprodução da sociedade capitalista, inclusive as permanências e rupturas - próprias de uma

sociedade em estruturação permanente.

Referenciada na compreensão de que a questão habitacional não é uma questão

isolada, decidimos apreendê-la como questão social plena. Nesta direção, procuramos

inscrever o trabalho como parte do complexo de processos que a produzem. Esta apreensão

permitiu identificar a íntima e recíproca relação entre monopólio da propriedade privada e

exploração da força de trabalho - componentes fundamentais da conformação, não só da

questão social habitacional, mas da questão social, como um todo. A análise da questão

habitacional, a partir de seus vínculos com o trabalho, possibilitou assim, reconhecer que nela

a conexão entre riqueza e pauperismo, característica do modo de produção capitalista, adquire

nitidez, pois nesta, entrelaçam-se os interesses das classes fundamentais da sociedade.

Em síntese: a questão da habitação nesta sociedade não se reduz a uma questão de

distribuição social de recursos em mãos do Estado ou do empresariado, uma vez que a

distribuição é inteiramente determinada pela produção, [...] não só [...] porque é distribuído o
231

resultado da produção, mas também, porque ela determina a forma como o produtor

participará da distribuição” (MARX 1857:118). Também, não se trata, exclusivamente, de

um resultado das leis objetivas do capital, e nem pode ser atribuída, unicamente, à

seletividade da ação do Estado na distribuição dos bens e recursos sociais, mas resulta de uma

síntese de múltiplas determinações. A busca dos nexos entre estas diversas determinações

forneceu chaves de interpretação do sentido da ação do MTST no contexto analisado.

Assim, demonstramos, no primeiro capítulo, que a questão habitacional é uma

manifestação da questão social e, portanto, inscrita na produção e reprodução da totalidade da

vida social. No intuito de realizar esta demonstração, tratamos dos seus determinantes

históricos e conjunturais e de sua expressão na sociedade brasileira atual.

Partimos do pressuposto de que a existência de segmentos pauperizados da classe

trabalhadora, privados do direito à moradia e ao trabalho, compõe uma dimensão estrutural da

realização do capitalismo. Não se trata, portanto, de fenômeno conjuntural ou relativo a

alguns contextos espaciais; mas sim, do efeito da histórica repartição desigual da localização e

da qualidade habitacional, entre as diversas frações de classe nas cidades capitalistas.

Salientamos que, embora constitua parte integrante da chamada questão social, a

questão da habitação se expressa de forma particular. Na qualidade de expressão da

desigualdade e da rebeldia, no que concerne à habitação, esta questão se aprofunda na

periferia do sistema e tenda se agudizar no atual período histórico, devido às transformações

em curso na organização da produção, do consumo e no papel do Estado, em resposta à crise

do capitalismo em âmbito mundial.

Vimos, também neste capítulo, que a sociedade regida pela racionalidade do

capital carrega consigo o misterioso poder de uniformizar, sob a forma mercadoria, todas as

múltiplas expressões da vida social e individual. O capital se mostra, assim, cada vez mais um

ente sem qualquer impedimento à sua sanha de reprodução. Obstáculos sociais ou naturais, ou
232

veleidades culturais, são rompidos ou ultrapassados à custa de um alto preço humano. Sem

dúvida, a reorganização das cidades cumpre importante papel na produção de espaços

adequados à expansão desta ordem. Sobretudo nas grandes cidades dos países periféricos, o

permanente reordenamento das condições gerais da acumulação capitalista expressa a relação

de subordinação destes países, aos interesses hegemônicos, em escala mundial.

Na sociedade brasileira, na qual o desenvolvimento capitalista se efetivou sem as

transformações estruturais democráticas, entre elas a reforma agrária e o acesso universal aos

direitos sociais, a questão social apresenta faces particulares, cujas marcas, inscritas no

processo de ocupação das grandes cidades destinadas a servir como território para a

industrialização, atualizam-se hoje, frente a mudanças impostas pelo novo padrão de

acumulação, agora, sob o comando do capitalismo financeiro.

Na Região Metropolitana de São Paulo – contexto da emergência do MTST –

encontra-se uma nítida expressão dos efeitos desta dinâmica.

Como vimos, o processo de ocupação sócio-espacial da Região Metropolitana de

São Paulo, apresentado no segundo capítulo, permite desvendar as principais características

do padrão de desenvolvimento urbano-industrial implantado no Brasil. Com este

desvendamento, tornou-se possível compreender a lógica que presidiu o crescimento urbano e

as suas conseqüências sociais, entre elas a consolide ação do binômio periferização e

pauperismo, analisado por Milton Santos (1990). Esta marca do processo de expansão social e

espacial da metrópole tem se intensificado nos anos recentes, especificamente entre os anos

80 e 90, quando o fluxo migratório passa a se voltar, cada vez mais, para a periferia

metropolitana.
233

Procuramos salientar, neste capítulo, os efeitos das transformações oriundas das

estratégias empresariais, sob o comando de representantes da burguesia financeira

internacional, acionadas no enfrentamento da crise mundial e suas repercussões,

especialmente na conformação da classe trabalhadora.

O aumento do número dos trabalhadores não incorporado ao mercado formal, os

flexibilizados, precarizados e temporários – resultante das diretrizes da reestruturação

econômica –, demonstra a proletarização e o empobrecimento crescente da classe

trabalhadora.

Estas alterações, somadas ao recuo do Estado no cumprimento de suas obrigações

com investimentos sociais, num quadro de refluxo de boa parte do movimento sindical, têm

favorecido a proliferação de movimentos de ocupação de prédios e terrenos urbanos, entre

eles o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Nosso intuito com a exposição realizada no

terceiro capítulo, foi revelar a íntima relação entre os movimentos de luta por moradia e a

divisão social e territorial do trabalho na metrópole e seu entorno e, ainda, a divisão social e

técnica da produção entre cidade e campo; relação esta recíproca, mas absolutamente

desigual, o que acarreta a tendência à ampliação da distância social entre as classes.

O objetivo deste capítulo foi apresentar o complexo de determinações que

forneceram as balizas históricas e sociais propiciadoras da constituição do MTST. No último

capítulo, a exposição se baseia no exame de uma das experiências do Movimento: a Ocupação

Anita Garibaldi. Nele apresentamos uma reflexão sobre as singularidades, as possibilidades e

limites desta experiência na conjuntura atual.

Ao longo da exposição desta experiência, esforçamo-nos por demonstrar que a

apreensão do fazer político de um movimento social deve partir do suposto de que sua

emergência constitui parte integrante das contradições sociais próprias de uma sociedade

assentada na exploração e na opressão. Desse modo, a experiência é lida como uma resposta
234

política organizada por um sujeito coletivo, representante de uma fração da classe

trabalhadora, cuja ação expressa determinações e condições subjetivas e objetivas presentes

numa dada formação social e num determinado contexto histórico. Neste sentido, o

aparecimento de um movimento social na cena política deve ser tomado como um sintoma de

uma ampla processualidade social e histórica, que determina as condições de sua afirmação.

Em resposta a estas condições, sujeitos intervêm, por meio de projetos e lutas concretas,

fazendo valer, assim, sua vontade, mesmo em circunstâncias que não alcançam transformar.

Sob esta angulação teórico-metodológica, a apreensão do sentido da ação do MTST partiu do

pressuposto de que por se tratar de um fato social pleno, não se auto-explica, já que a sua

interpretação depende do desvelamento de um contexto social e histórico singular.

Nesta direção, procuramos apreendê-lo, primeiramente como acontecimento

social significativo, em reação à questão da habitação. Em seguida, procuramos resgatar sua

história, para conhecer os sujeitos portadores do projeto do seu nascimento e as circunstâncias

de sua origem: as profundas mudanças no mundo urbano e rural brasileiro na direção da

adequação da sociedade à fase do monopólio, as conseqüências sociais provocadas por estas

alterações na estrutura das relações sociais e a ação do MST, em resposta à drástica redução

da população rural. Neste caminho, identificamos, também, a base social que dá sustentação

ao Movimento: a população sobrante da cidade – segmento social, em expansão, integrante da

fração estagnada do exército de reserva, com perspectivas cada vez mais reduzidas de

integração ou reintegração no mercado formal de trabalho.

Conceber a base social do Movimento como parte da classe trabalhadora, e não

como um grupo excluído ou marginalizado, constituiu uma condição analítica essencial ao

desvendamento do seu fazer político, uma vez que, não só permitiu reconhecer a

funcionalidade deste segmento da classe trabalhadora para a acumulação do capital, como

possibilitou interpretar o significado particular de sua luta por moradia. Na verdade,


235

procuramos conceber esta luta e os métodos de ação do Movimento, especialmente a

ocupação, a partir do entendimento de que a forma de inserção na classe tece distintas

experiências sociais. Assim sendo, a crescente heterogeneidade no interior da classe

trabalhadora, decorrente do aumento da segmentação e da complexificação do trabalho, faz

com que as lutas adquiram um caráter multifacetado. Em se tratando dos segmentos mais

pauperizados, a resistência, cada vez mais radicalizada, parece expressar a urgência de suas

demandas, o descrédito nos poderes constituídos, além da profunda indignação dos que nada

têm a perder.

Salientamos, no exame da experiência do Anita Garibaldi – única experiência

consolidada do Movimento –, a importância do contexto sócio-espacial do seu

desenvolvimento, que conjuga condições fundamentais de sua emergência e afirmação: ser

uma região periférica, próxima à grande capital, receptora de grande fluxo migratório

conformado pela população sobrante, e, ao mesmo tempo, ser uma região com fortes tradições

de lutas por ocupação de solo urbano. O aprendizado da importância do contexto sócio-

espacial para a territorialização do projeto do MTST foi de grande valia na busca de resposta

à nossa questão.

Por fim, conjugamos à apreensão dos determinantes e condições da emergência e

consolide ação do MTST em Guarulhos, a análise da dinâmica interna da experiência de

ocupação Anita Garibaldi. O exame do projeto ideal, proposto pela direção do Movimento, e

das questões e desafios oriundos do confronto entre intenção e possibilidades reais,

acrescentaram ao processo reflexivo o reconhecimento da transformação do projeto em ação

e, também, possibilitaram a interpretação, ainda que parcial, dos significados do Movimento

para seus participantes.


236

Frente ao exposto, afirmarmos que a reflexão sobre o fazer político do MTST

permite dizer que, diferentemente, do que tem sido, por vezes, afirmado na análise de

movimentos sociais, esta conjuntura não possui entre as suas marcas, única e exclusivamente,

o crescente refluxo dos movimentos sociais, subsumidos pela expansão da institucionalização

via ONGs. Tampouco, nos encontramos frente à tendência ao desaparecimento dos

movimentos sociais orientados por um projeto de classe. Com efeito, o que o surgimento do

MTST indica é que estamos diante da constituição, ainda seminal, de um novo sujeito

político, que se soma, com suas especificidades, à luta contra a distribuição desigual dos bens

e equipamentos sociais no urbano. Trata-se, principalmente, de um sujeito coletivo que, ao

contribuir na organização da fração de classe apartada do mundo do trabalho, possibilita

modificar o lugar ocupado por este segmento nas formas de organização da classe

trabalhadora. Ao fazê-lo, contrariam os interesses dos poderosos, para quem é inadmissível

que o “Zé povinho sonhe com fome e tudo” (LISPECTOR, 1983: 157).

Neste contexto, em que parece anunciar-se o fim do pacto civilizador, sob o qual

se ergueu o ideário da cidade moderna, o Movimento projeta uma contra-tendência à miséria

opressora e opressiva, que empurra os trabalhadores para a luta imediata pela sobrevivência

diária e para sucumbir às estigmatizações que visam exilá-los do direito a lutar por seus

direitos ao usufruto dos equipamentos e serviços sociais. Ainda que em circunstâncias

extremamente adversas, o MTST oferece uma possibilidade de que estes indivíduos – antes

separados de si mesmos - resistam e, assim, reconheçam sua identidade de trabalhador.

Não é possível ainda presumir, dados os limites desta investigação, que estamos

em face de uma nova representação coletiva das condições de classe, conformada a partir da

reconfiguração da classe trabalhadora, de forma similar ao que ocorreu, de acordo com a

análise de Sader (1988), ao longo da década de 70. Mas, estamos convencidos da necessidade

de aprofundamento teórico da atual conjuntura social e política.


237

Enfim, a reflexão efetuada nos conduz a afirmar que a questão enfrentada pelo

MTST é resultante de uma formação social, em que a função de controle sobre a produção e

distribuição da riqueza não é exercida pelos reais produtores. Sua efetiva superação só poderá

ser alcançada, conforme afirmação de Engels (1984), caso sejam construídas as possibilidades

efetivas de superação dessa forma social de produção e reprodução da vida. E, esta alternativa

é tanto mais urgente e necessária, quanto mais se intensificam as contradições desse sistema

social, fortemente condensadas nas metrópoles do país.


238

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Ricardo Antunes; et. all. Tendências recentes de expansão metropolitana e intra-
municipal: o papel da migração no caso do município de Guarulhos – São Paulo. XIII
Encontro Nacional da ABEP. In. Anais do XIII Encontro Nacional da ABEP. Ouro Preto:
nov. 2002.

ANDRADE, T.A.; SERRA, R.V. (Des)concentração espacial da indústria brasileira:


possibilidades e limites da investigação. ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA. In: Anais do Encontro da Associação Nacional de
Pós-Graduação em Economia. Belém: ANPEC, dez.1999.

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do


mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.

______. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São


Paulo: Boitempo, 1999.

BENOIT, H. O assentamento Anita Garibaldi: entrevista com lideranças do Movimento dos


Trabalhadores Sem Teto (MTST). Crítica Marxista. São Paulo, n.14, pg. 134-149, 2002.

BERNADELLI, Maria Lúcia F. da Hora; LOCATEL, Ramalho; RAMALHO,Barbudo.


Reestruturação socio-espacial e a segregação da vivenda: os casos de Santiago do Chile,
Mendoza e Buenos Aires. In: Anais do V Colóquio Internacional de Geociência,
Barcelona, maio de 2003.

BIENSTEIN, R. Redesenho urbanístico e participação social em processos de


regularização fundiária. 2002. Tese (doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

BÓGUS, Maria Lúcia. Urbanização e metropolização: o caso de São Paulo. In: Bógus e
Wanderley (organizadores). A Luta pela cidade em São Paulo. São Paulo: Cortez, 1992.
239

BONDUKI, Nabil. Crise na Habitação e a luta pela moradia no pós-guerra. In: KOWARICK,
Lúcio. (Coord). As lutas sociais e a cidade: São Paulo, passado e presente. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1988.

______. Habitação e autogestão: construindo territórios de utopia. Rio de Janeiro: FASE,


1992.

______. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura moderna, lei do inquilinato e


difusão da casa própria, São Paulo: FAPESP, 1998.

BOSCHI, Renato R. A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. Rio de


Janeiro: IUPERJ, 1987.

BRANCO, Martone. Informações e Missão Institucional: pesquisa desvenda economia


paulista. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, n.13, p. 3-17, 2000.

BRANDÃO, Sandra M.; JANUZZI, Pedro de M. Distribuição de renda e pobreza. São Paulo
em Perspectiva, São Paulo, v. 9, n.3, 1985.

CAMPANÁRIO, Milton; KOWARICK, Lúcio. São Paulo: metrópole do subdesenvolvimento


industrializado. In: Kowarick, Lucio. (Coord). As lutas sociais e a cidade: São Paulo,
passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

CANO, Wilson. Reflexões sobre o Brasil e a nova (des) ordem mundial. São Paulo:
UNICAMP, 1993.

______. Concentração e desconcentração econômica regional no Brasil. Economia e


Sociedade, São Paulo: UNICAMP, n. 8, jun.1997.

CARLOS, Ana Fani A. Espaço Tempo na Metrópole Scripta Nova. Disponível em:
www.ub.es/geocrit/nova.htm. Acesso em: ago. 2003.

CASSAB, Clarice. Perfil das novas ocupações urbanas no centro de São Paulo. São Paulo,
S.n.t. Mimeografado, 2000.

______. Mudanças e permanências: novos desafios aos movimentos urbanos; uma


aproximação ao movimento dos trabalhadores sem teto (MTST). 2004. Dissertação (mestrado
240

em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e


Regional, universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

CASSAB, Maria Aparecida T. Jovens pobres e o futuro: a construção da subjetividade na


instabilidade e na incerteza. Niterói: Intertextos, 2001.

CHAUÍ, Marilena. Comentários: subjetividades contemporâneas. São Paulo, v.1, n.1, 1997.

______. Representação ou Participação? In. Cultura e democracia: o discurso competente e


outras falas. São Paulo: Cortez, 1990.

______. Ideologia neoliberal e universidade. In. OLIVEIRA, F.; PAOLI, M.C. Os sentidos
da democracia. Petrópolis: Vozes, 1999.

CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.

COIMBRA, Cecília B. Criminalização dos movimentos sociais: o caso do MST. S.n.t.


Mimeografado, 2004.

COUTINHO, Carlos Nelson. Realismo e anti-realismo na literatura brasileira. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1974.

______. Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez,
2000.

CUNHA, José Marcos Pinto da; DEDECA, Cláudio Salvadori. Migração e Trabalho na
Região Metropolitana de São Paulo-Brasil: uma abordagem mais justa! Scripta Nova.
Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Disponível em
www.ub.es/geocrit/nova.htm. Acesso em: agosto de 2001.

DAVIDOVICH, Fany. A volta da metrópole no Brasil: referências para a gestão. In:


SEMINÁRIO NACIONAL METRÓPOLE ENTRE A COESÃO E A FRAGMENTAÇÃO, A
COOPERAÇÃO E O CONFLITO. Anais do Seminário Nacional Metrópole entre a coesão
e a fragmentação, a cooperação e o conflito. Rio de Janeiro, Observatório de Políticas
Públicas e Gestão Municipal, IPPUR/ UFRJ, ago. 2002.
241

DINIZ, Eli. A Política das reformas e a reconfiguração do setor privado no Brasil:


Aspectos políticos institucionais das relações público-privado. Rio de Janeiro. 2000,
Mimeografado.

______. Globalização, elites empresariais e democracia no Brasil dos anos 90. S.n.t.
Mimeografado, 1997.

DUAYER, Mário. Dinossauros, micos leão e teoria econômica. Niterói, s.n.t, 1996.

ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Porto: Afrontamento, 1975.

______. Para a questão da habitação. Lisboa, Avante, 1984.

FARIAS, Flávio Bezerra de. O Estado capitalista contemporâneo: para a crítica das visões
regulacionistas. São Paulo: Cortez, 2000.

______. A descoberta do Estado brasileiro. Universidade e Sociedade, Brasília, v.1, n.1,


1991.

FARIAS, E.Vilmar. Cinqüenta anos de urbanização: tendências e perspectivas. Novos


Estudos Cebrap, São Paulo, n. 29, 1991.

FAUSTO, Boris. A revolução de 30. São Paulo: Brasiliense, 1970.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação


sociológica. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

______. Capitalismo e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1993.

FERNANDES, Bernardo M. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2001.

FERRAZ, Sonia M. T. Espaço e tempo: moradia e cotidiano. Textos para Leitura, Niterói,
s.n.t, 2000.

______. Formas contemporâneas de moradia de baixa renda. Rio de Janeiro: FAU/UFF,


2001.

FIORI, José Luís, Democracia e reformas: equívocos, obstáculos e disjuntivas. Rio de


Janeiro: UFRJ/IEI, 1991.
242

______. A Natureza da concentração. Revista Carta Capital, S.P., ano X, n. 261, 2004.

FREDERICO, Celso. A esquerda e o movimento operário no Brasil: 1964/1984. Belo


Horizonte, Oficina de Livros, v. 2, 1990.

FUNDE AÇÃO SEADE. Diagnóstico das condições habitacionais no estado de São Paulo.
São Paulo, nov. 2001

GOHN, Maria da Glória. Reivindicações populares urbanas. São Paulo: Cortez, 1982.

______. Cidade, ONGs e ações coletivas. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, vl. 9, n.2,
abr.jun./1995.

______. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
Loyola, 1997.

Gramsci, A. Para uma associação da cultura, AVANTI !, 18/12/1917, In: Uchoa,P.C. e


Picoone, P. Convite à leitura de Gramsci. Editora Achiamé, R. J. 1979.

GUTEMBERG, Sousa. Ocupações de prédio e Reforma Urbana. PÓLIS, São Paulo, setembro
2000.

HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo: HUCITEC, 1980.

______. O trabalho, o capital e o conflito de classe em torno do ambiente construído nas


sociedades capitalistas avançadas. Espaços e Debates, São Paulo, n. 6, 1982.

HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. São Paulo, Companhia das
Letras, 1996.

IAMAMOTO, M. A questão social no capitalismo. Temporalis, Brasília, ano II, nº.3, 2001.

_____. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São


Paulo, Cortez, 1998.

______. Trabalho e indivíduo social: um estudo sobre a condição operária na agro-indústria


canavieira paulista. São Paulo: Cortez, 2001.

IAMAMOTO, Marilda V. e CARVALHO, R. Relações sociais e serviço social no Brasil.


São Paulo: Cortez, 1992.
243

IANNI, Otávio. O Estado e o planejamento econômico no Brasil. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1986.

JANNUZI, Pedro de M.; FERREIRA, Maria Paula. Renda e políticas sociais


compensatórias na região metropolitana de São Paulo: resultados de pesquisa. São Paulo:
Funde ação SEADE, 2001.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

LAGO, Luciana. A casa própria em tempo de crise; os novos padrões de provisão de moradia
nas grandes cidades. In. RIBEIRO, L. C. de Q. e AZEVEDO, S. de (orgs). A crise da
moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma urbana. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 1996.

LEFEBVRE, Henri. A cidade do capital. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

______. Estrutura social: a reprodução das relações sociais. In: FORACCHI, M. M. e


MARTINS, J. S. Sociologia e sociedade: leitura de introdução à Sociologia. Rio de Janeiro:
Livros Técnicos e Científicos, 1977.

LESSA, Sérgio. Contra-revolução, trabalho e classes sociais. Temporalis. Brasília, ano II, n.
4, 2001.

______. O processo de produção/reprodução social: trabalho e sociabilidade. In. Capacitação


em serviço social e política social. Brasília, CFESS/ ABPESS, Centro de Educação Aberta,
Continuada, à Distância, 2000.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela citado por Sperber, Suzi Frankl.In: Os pobres na
Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, Brasiliense,1983.

LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

LÖWY, Michael e SAYRE, Roberto. Romantismo e política. São Paulo: Paz e Terra, 1995.

MANDEL, Ernest. A crise do capital. São Paulo: Ensaio, 1990.


244

MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e


violência. São Paulo: Hucitec, 1996.

MARTINE, G. et al. Os impactos sociais da modernização agrícola. São Paulo:


Caetes/Hucitec, 1987.

MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão,
pobreza e classes sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

______. Dilemas sobre as classes subalternas na idade da razão. In: Caminhada no chão da
noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais. São Paulo: Hucitec, 1989.

______. Expropriação e violência: a questão política no campo. São Paulo: Hucitec, 1980.

_______. A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1984.

______. O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

______. Os camponeses e a política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no


processo político. Petrópolis: Vozes, 1986.

MARTINS, Maria Lúcia R. Movimentos sociais em São Paulo. São Paulo: FASE, 1995.

MARX, Karl. O capital: A Crítica da economia política. São Paulo: DIFEL, liv. 1. v. II,
1985.

______. O capital. São Paulo: Moraes, cap.VI (inédito),1985.

_______ Introdução à crítica da economia política (1857). In: MARX. São Paulo, Abril
Cultural. (Col. “Os Pensadores”), 1974.

MARX, K. e ENGELS, F. A história dos homens. In: FERNANDEZ, F. (org.). História. São
Paulo: Ática, 1983.

______. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política. (Grundisse)


1857-1858. México, Siglo XXI, vol. 2,12ª ed. 1980.

MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro (1955/ 988).
Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1988.
245

MÉSZÁROS, I. A ordem de reprodução social metabólica do capital. Londres: Merlin


Press, 1995.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES SEM TERRA. Construindo o caminho. 2001.


(documento de circulação interna).

MORISSAWA, M. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular,
2001.

NETO, José Meneleu. Desemprego e luta de classes: as novas determinidades do conceito de


exército industrial de reserva. In: TEIXEIRA, Francisco; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de.
Neoliberalismo e reestruturação produtiva. São Paulo: Cortez, 1998.

NETO, Leonardo Guimarães. Dinâmica Recente das Economias Regionais Brasileiras. São
em Perspectiva, São Paulo, v. 9, n.3, 1995.

NETTO, José Paulo. A crise do socialismo e a ofensiva neoliberal. São Paulo, Cortez, 1993.

______. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64. São
Paulo: Cortez, 1998.

______. Democracia e transição socialista. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990.

______. Cinco notas a propósito da questão social. Temporalis, Brasília, ano ll, n. 3, 2001.

______. Transformações societárias e Serviço Social. Serviço Social e Sociedade, São Paulo,
n. 50, abr. 1996.

______. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.

O'DONNEL, G. Hiatos, instituições e perspectivas democráticas. In. REIS, Fábio;


O'DONNEL, G.A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. São Paulo: Vértice, 1998.

OLIVEIRA, Francisco. O surgimento do antivalor. Novos Estudos CEBRAP, n. 22. São


Paulo, CEBRAP, outubro 1988.

______. O Estado e o urbano no Brasil. Espaço e Debates, São Paulo: ano 6, p.36-54, 1982.

______. Passagem na neblina. In: Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo. São
Paulo: Funde ação Perseu Abramo, 2000.
246

OLIVEIRA, H. C. Organização do movimento popular urbano: o caso do MTST.


Monografia de conclusão de curso - Instituto de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária.
Veranópolis, Rio Grande do Sul, 2001.

PONTES, Reinaldo N. A propósito da categoria de mediação. Serviço Social e Sociedade,


São Paulo, n. 31, 1989.

PIETÁ, Elói. Revirando a história de Guarulhos. São Paulo: Cajá, 1992.

RAICHELIS, Raquel. Esfera pública e conselhos de assistência social: caminhos da


construção democrática. São Paulo: Cortez, 1998.

RIBEIRO, Ana Clara T. Metrópoles brasileiras: limites à integração social no Rio de Janeiro
In. RIBEIRO, Ana Clara T. Urbanidade e vida metropolitana. Rio de Janeiro: Jorbran,
1996.

______. Cidade, reivindicações e equipamentos coletivos. In. RIBEIRO, Ana Clara T. O


desenvolvimento urbano em questão. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2001.

______. O fato Metropolitano: enigma e poder. Cadernos PUR/UFRJ. Rio de Janeiro, ano 1,
v. 1, 1986.

______. O dia a dia na cidade: as incertezas do trabalho. In: Revista Eclesiástica Brasileira,
R.J., vol. 40, mar.1980.

RIBEIRO, Ana Clara; SILVA, Cátia Antonia da e VIEIRA, Hernani do Moraes.


Reproducción social e involución intra-metropolitana en el Brasil. In: MUTLUO, Yamada
(org). Ciudad y campo en América Latina. Gtaka: The Japan center for area studies,
National Museum of Ethnologia, 1997.

RIBEIRO, L.C.; AZEVEDO, S. (Org). A produção da moradia nas grandes cidades: dinâmica
e impasses In: A crise da moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à reforma
urbana. Rio de Janeiro: UFRJ. 1996.

RIBEIRO, Luiz C. Queiroz Ribeiro; PECHMAN, Robert M. O que é questão da moradia.


São Paulo: Brasiliense, 1983.
247

RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Dos cortiços aos condomínios fechados: as formas de
produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1997.

______. Incorporação Imobiliária; características, dinâmicas e impasse In.. A crise da


moradia nas grandes cidades: da questão da habitação à questão urbana. Rio de Janeiro:
UFRJ. 1996.

RIBEIRO, Luiz César de Queiroz (organizador). O Futuro das Metrópoles: desigualdades e


governabilidade. Rio de Janeiro: editora Revan, 2000.

ROCHA, Sônia. Pobreza e desigualdade no Brasil: o esgotamento dos efeitos distributivos do


Plano Real. R.J., IPEA, abr. 2001 (texto para discussão nº 721).

SABÓIA, João. Descentralização industrial no Brasil na década de noventa: um processo


dinâmico e diferenciado regionalmente. In: XXX ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA. Anais do XXX Encontro da
Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia. Salvador, dez. 2001.

______. Desconcentração industrial no Brasil nos anos 90: um enfoque regional. Pesquisa e
Planejamento Econômico, R.J., v. 30, n.1, abr.2000.

SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos
trabalhadores da grande São Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SALAMA, Pierre e VALIER, Jacques. Pobreza e desigualdades no terceiro mundo. São


Paulo: Nobel, 1997.

SANTANA, Eudoro. A miséria e a questão agrária. Revista Funde ação Perseu Abramo,
São Paulo, n. 2444, mar/abr/maio 2000.

SANTOS, Milton. Metrópole corporativa e fragmentada: o caso de São Paulo. São Paulo:
Nobel, 1990.

______. Involução metropolitana e economia segmentada: o caso de São Paulo. In: Ribeiro,
Ana Clara T. e Machado, Denise B. Pinheiro Metropolização e rede urbana: perspectivas
dos anos 90, Rio de Janeiro: UFRJ, 1990b.
248

SCHIMDT, B.; FARRET, R. A questão urbana. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.

SEABRA, Odete Carvalho de Lima. Em reflexões sobre o espaço urbano. Revista Adusp,
São Paulo, n. 20, set. 2000.

Scherer-Waren, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993.

SILVA, Maria Ozanira. Política habitacional brasileira: verso e reverso. São Paulo: Cortez,
1999.

SILVEIRA, Maria Lídia Sousa da. Conformação de um Novo Projeto Hegemônico: da


necessidade, no caso brasileiro, de uma leitura marxista na reflexão gramsciana.
Departamento de Ciências Sociais/UNICAMP, Campinas,1992. (mimeo).

SILVA, José Graziano da. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas:


UNICAMP, 1996.

______. Tecnologia e agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS,


1999.

SINGER, Paul. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: MARICATO, E. (Org) A
produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: ALFA-
OMEGA, 1982.

______. Movimentos de bairro. In: SINGER, Paul; BRANT, Vinicius Caldeira (Org). São
Paulo: o povo em movimento. Petrópolis: Vozes, 1980.

SOJA, W. Edward. Geografias pós-modernas: a reafirmação do espaço na teoria social


crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

TAVARES, M. da C. e FIORI, J. L. (Des) ajustes global e modernização conservadora.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

TASCHNER, Suzana P.; BÓGUS, Lúcia M. M. A cidade dos anéis: São Paulo. O Futuro das
Metrópoles: desigualdades e governabilidade. Rio de Janeiro: editora Revan, 2000.

______. São Paulo: velhas desigualdades, novas configurações espaciais? XXII ENCONTRO
ANUAL DA ANPOCS. In: Anais do XXII Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 1998.
249

TASCHNER, Suzana P. Favelas e Cortiços: vinte anos de pesquisa urbana no Brasil.


Cadernos IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, ano 1, n.1, jan/abr. 1986.

______. O Brasil e suas Favelas. In: ABRAMO, Pedro A Cidade da informalidade: o


desafio das cidades latino- americanas. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003.

TEIXEIRA, Aluísio. O ajuste impossível: seis anos depois, uma reapresentação. Rio de
Janeiro, s.n.t, 2000.

TEIXEIRA, Francisco José S. Universalidade e globalização: formas distintas de


sociabilidades. S.n.t.

TOPALOV, Cristian. Os saberes sobre a cidade: tempos de crise? Espaço e Debates, São
Paulo, n.34, 1991.

TORRES, H.G; MARQUES, E. Reflexões sobre a hiperperiferia: novas e velhas faces da


pobreza no entorno metropolitano. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São
Paulo, n.4, 2001.

VASCONCELOS, Eduardo M. Estado e políticas sociais no capitalismo: uma abordagem


marxista. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 28, 1988.

Das könnte Ihnen auch gefallen