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Título do original em inglês:
Chasing the Dragon
Copyright © 1980, Jackie Pullinger.
Publicado na Inglaterra por Hodder
and Stoughton, Londres.
Printed in Brazil
Índice
Prefácio
Glossário
1. Rastros de Sangue
2. Para a China de "Canoa"
3. Uma Cidade Chamada Trevas
4. O Clubinho
5. Luz nas Trevas
6. As Quadrilhas
7. O "Irmão Maior" Está Olhando por Você
8. Perseguindo o Dragão
9. "Doenças" da Infância
10. É Jesus Mesmo
11. As Casas de Estêvão
12. Acolhendo Anjos
13. Testemunhos
14. E Por em Liberdade os Cativos
15. Andar no Espírito
Para minha família, especialmente
meu Pai.
Prefácio
Fiquei conhecendo Jackie Pullinger em
1968, quando fui a Hong Kong para fazer uma
filmagem. Um amigo nos apresentou, e ela me
falou de seu trabalho na Cidade Murada. Fiquei
fascinado pelo que me narrou, e fui visitar o
lugar em sua companhia. Era exatamente
como ela o descrevera.
Nos anos que se seguiram continuei a
manter contato com ela, vendo seu trabalho
desenvolver-se mais. O jornal Sunday Times
publicou um relato de sua obra em 1974. Em
1978, ela foi à Inglaterra para falar sobre seu
trabalho e, nessa ocasião, consultei-a sobre a
possibilidade de, juntos, escrevermos um livro,
dando um relato mais completo de tudo
quanto lhe acontecera. Concordou, mas não
sem certa relutância, e em 1979 voltei a Hong
Kong.
Alguns nomes e lugares citados no livro
tiveram que ser modificados, para que as
pessoas implicadas não sofressem nenhum
tipo de prejuízo, a maioria das quais ainda vive
naquela cidade. Excetuando-se esse detalhe,
tudo o mais foi narrado da forma como
ocorreu. Muitos dos eventos aqui narrados
podem ser comprovados em outras fontes.
Tenho que agradecer a muitas pessoas
que nos ajudaram na feitura deste livro. Entre
elas gostaria de mencionar Marjorie Witcombe
e Mary Stack, de Hong Kong, que nos
emprestaram sua casa, a Susan Soloman, da
Califórnia, a meu irmão Edward e a seus
colegas do Banco Mundial, em Washington,
onde o manuscrito foi terminado, e sobretudo
à minha esposa Juliet, que fez uma excelente
revisão e deu sua contribuição durante toda a
produção do livro. Estamos narrando aqui
incidentes ocorridos até 1976 apenas. O que
aconteceu de lá para cá terá de aguardar um
novo livro.
Andrew Quicke
Londres
Abril de 1980
Glossário
Amah: empregado (a).
Congee: um mingau de arroz que se
come no café da manhã.
Daih lo: Irmão Maior.
Daih ma: Mãe Maior, a esposa mais velha
de um chinês.
Daih pai dong: barraca de rua.
For-gei: garçom ou operário.
Fui-goih: arrepender-se.
Gong-sou: conversações entre quadrilhas
inimigas, como tentativa de solucionar
diferenças.
"Hai bin do ah?": De onde você é?
Hak Nam: Trevas (Nome que muitas
vezes é empregado para identificar a Cidade
Murada de Hong Kong.)
Hawh-fui: sentir muito um erro cometido.
Kai na: madrinha
Kai neui: afilhada (Estes dois termos são
empregados para designar o relacionamento de uma
mulher com uma criança que ela toma para criar.)
Kung-fu: um tipo de arte marcial chinesa.
Lap-sap: lixo.
Mama-san: mulher que tem a seu
encargo várias
prostitutas jovens ou bar-girls.
"M'gong?": Não quer falar?
Mintoi: edredom.
"Moe yeh": Nada.
Pahng-jue: chefe de um salão onde se
vende ou toma drogas.
"Pa mafan": medo de complicações.
Pin-mun: comércio ilegal.
Poon Siu Jeh: Pullinger em chinês.
Sai lo: Irmão Menor.
Sai ma: Mãe Menor, esposa mais nova ou
concubina de um chinês.
Seui Fong
14 K Nome das diversas quadrilhas tríades
que
são ilegais em Hong Kong.
Ging Yu
Wo Shing Wo
2
Para a China de "Canoa"
Os agentes da imigração subiram a bordo
do navio, e eu era a primeira da fila, ansiosa
que estava para desembarcar. Cedo, de
manhã, eu me aprontara e subira para o
convés. A vista que se tinha dali era de cair o
queixo. Lá estavam as montanhas de cumes
brilhantes, sumindo-se à distância, em meio à
bruma, como num quadro oriental. Percebi que
meu coração estava inundado de grande paz,
e ao reconhecer que aquele era o lugar que
Deus havia escolhido para mim, agradeci-lhe.
Eu me achava ali, esperando e
contemplando o mar da China, na "Pérola do
Oriente", Hong Kong. Cercava-nos a enseada,
que separava a Ilha Victoria da Península de
Kowloon. Ela estava pontilhada de barquinhos.
Balsas se moviam entre as diversas ilhas
adjacentes, levando operários, e nos
ancoradouros viam-se muitos dos
antiquíssimos juncos, que traziam toda sorte
de alimentos da China territorial para a
Colônia. Pareciam estranhamente antiquados
em comparação com os modernos arranha-
céus que se erguiam logo atrás, nas encostas
dos morros, na Ilha de Hong Kong.
Um pouco mais perto, após as docas,
entreviam-se nesgas de ruas chinesas, tão
singulares, encantadoras, com o exotismo
próprio do Oriente. Erguendo os olhos, vi à
distância ás colinas dos Nove Dragões, nos
Novos Territórios, que se estendiam até a
fronteira da
China de Mao. Vista do mar, numa manhã
ensolarada, Hong Kong era belíssima.
O agente da imigração não demonstrava
o mesmo entusiasmo que eu. Pegou os
formulários preenchidos, nos quais eu
declarava que tinha vindo à Colônia para
trabalhar.
— Onde mora? indagou.
— Na verdade, ainda não tenho onde
morar.
— Endereço de amigos?
— Ainda não tenho conhecidos aqui.
— Onde trabalha?
— Bem, não... ainda não tenho emprego.
Ele me fitou com uma expressão de
desalento. Até esse ponto conseguira levar
bem a entrevista, mas minhas respostas não
se achavam muito de acordo com o "figurino".
Tentou fazer mais algumas indagações
suplementares.
— Onde está sua mãe?
— Na Inglaterra.
— E sua passagem de volta?
— Ainda não tenho.
Não estava nem um pouco preocupada
por não ter passagem de volta, e não
compreendia por que ele tinha que estar.
Afinal, seu rosto se iluminou oomo se
encontrando a solução.
— Quanto tem em dinheiro?
Também fiquei satisfeita, pois pensava
estar muito bem financeiramente. Chegara ali
quase que com a mesma quantia que tinha ao
embarcar.
— Mais ou menos HKS100 dólares,
respondi orgulhosa.
— É pouco, replicou ele rispidamente.
Hong Kong é um lugar de vida muito cara. Não
dá nem para três dias, concluiu, e saiu
apressado, à procura de seu chefe.
Os dois confabularam por alguns
instantes, depois voltaram para onde me
encontrava.
— Embora a senhora seja britânica, falou
o chefe, vamos negar-lhe permissão para
desembarcar. Espere aqui.
Fiquei ali parada, me perguntando o que
iriam fazer comigo. Na imaginação, já os via
trancando-me num camarote, obrigando-me a
voltar para a Inglaterra. Meus amigos iriam
dizer:
— Não falei? Onde já se viu, sair pelo
mundo fora, seguindo a orientação de Deus!
Que atitude mais irresponsável!
O que eu faria? E como viera parar aqui?
Quando minha mãe ficou grávida de
mim, pensou que estava esperando uma
criança só, mas deu à luz gêmeas, o que deve
ter sido uma grande decepção para meu pai,
que tinha esperanças de fundar um time de
rugby* e acabou com quatro filhas. Então
procurei compensar o fato comportando-me
como um garoto. Subia em árvores e corria
muito, gostava de brinquedos masculinos e
bicicletas.
Uma das recordações mais antigas que
tenho, foi de quando estava com quatro anos.
Lembro-me de que estava encostada ao
aquecedor, em nossa casa, e pensava:
"Será que vale a pena ser bom neste
mundo?"
Acabei-me decidindo que, fosse lá o que
eu escolhesse fazer na vida, um dia seria
conhecida e famosa. Mais ou menos um ano
depois, eu e minha irmã gêmea estávamos na
escola dominical, e uma missionária fez uma
palestra. Estendendo o dedo para cada uma de
nós, ela disse:
— Será que Deus quer vocês no campo
missionário?
Recordo-me de que logo pensei que a
resposta dessa pergunta nunca poderia ser
"não", pois, logicamente, Deus quer que todos
vão para os campos. Mas não tinha a mínima
idéia do que fosse um campo missionário. Eu
me via a mim mesma sentada à porta de uma
choupana, num lugar qualquer da Africa,
sentindo-me muito nobre e digna.
Contei a uma amiga da escola que
desejava ser missionária. Foi um grande erro.
Logo percebi que todos esperavam que eu
fosse melhor do que os outros.
__________________
* Esporte semelhante ao futebol
americano e ao nosso futebol militar.
_____________________
*O grande líder da Inglaterra na II
Guerra Mundial, muito querido e
respeitado por todo o povo.
Eu e minha irmã estávamos sentadas à
mesa do internato tomando chá com o
inevitável pão preto. A cabeceira encontrava-
se uma garota maior de nome Mirissa. Pensei
em iniciar educadamente uma conversa, mas,
infelizmente, escolhi o assunto errado. Tendo
ouvido a primeira transmissão radiofônica de
um programa de Billy Graham, mencionei
como ficara impressionada com o evangelista.
— Puro emocionalismo de massa!
exclamou a moça desdenhosa.
Eu tinha tanto respeito pela opinião das
pessoas mais velhas, que depois, todas as
vezes que se conversava sobre isso na escola,
eu dizia com ironia:
— Puro emocionalismo de massa!
Chegou a época de nossa "confirmação"
na igreja. Eu estava levando tudo muito a
sério, mas sentia que os outros só estavam
interessados nas roupas novas e no "chá de
confirmação", que teríamos depois da
cerimônia. Meu medo era que o ministro nos
perguntasse, individualmente, em que
críamos. Mas ele não o fez. Contudo, resolvi
fazer-lhe uma pergunta.
— Em que devo pensar, no momento em
que o Bispo impuser as mãos sobre mim?
— Ah, bem... é... ore! disse ele afinal.
Eu e Gilly fomos até a frente e nos
ajoelhamos, e o Bispo impôs as mãos sobre
nós. Só me recordo de que, ao voltar para meu
lugar, estava sentindo uma grande alegria.
Minha vontade era rir de felicidade. Que
atitude mais imprópria! Afinal, era um culto de
confirmação espiritual, e aquele era o
momento mais solene. O riso seria depois, na
hora do chá. Eu tinha pensado antes que
gostaria de me comportar de maneira bastante
reverente e elegante nesse culto, e não
parecia haver nenhuma associação entre ele e
aquela alegria tão despropositada. Eu estava
entregando minha vida a Deus, e não esperava
receber nada em troca.
A primeira coisa que fiz depois disso foi
pegar a lista telefônica e procurar endereços
de missões.
— Desejo ser missionária, escrevi para
elas, e creio que deveria começar a preparar-
me desde já. Quais os cursos que devo fazer?
Em resposta, eles me mandaram dizer
que haviam colocado meu nome no seu rol de
associados jovens.
Nas férias, geralmente, eu trabalhava na
fábrica de papai, ou então dava aulas
particulares, ou funcionava como "carteiro"
para o Correio, na época do Natal. Já me
considerava uma pessoa integrada à
sociedade.
Depois, fui para o Real Conservatório de
Música, onde descobri que os músicos
achavam que o amor era o grande inspirador
da música, e tive muito trabalho para me livrar
de um pistonista.
Vez por outra, eu passava pela sala da
União Cristã e via lá o quadro de avisos. Sentia
um aperto na consciência. Mas aqueles jovens
ali me pareciam tão desinteressantes e sem
graça, e, além disso, na sua maioria, eram
organistas. Na cantina da escola, assentavam-
se sempre juntos, parecendo muito santos; não
me atraíam em nada. Não sabia sobre o que
conversavam e nem me interessava saber.
Davam a impressão de serem muito solenes e
tristes, e embora me garantissem que minha
vida mudaria depois que eu viesse a "conhecer
Jesus", eu não queria mudar para ficar igual a
eles.
Nesse tempo, eu gostava de freqüentar
festinhas, mas a principal forma de
divertimento ali ou era imoral ou
desinteressante. Contudo, eu sempre ia
esperando encontrar ali o homem dos meus
sonhos. Foi só depois de muito tempo que
compreendi que ele nunca poderia estar
presente numa daquelas festas.
Certo dia, eu estava no trem, voltando da
escola para casa, quando encontrei duas ex-
colegas de escola. Elas me convidaram para ir
a uma reunião em uma casa, onde um
pregador maravilhoso faria palestras sobre a
Bíblia. E eu fui. Ele era realmente fabuloso.
Mas todas as outras pessoas também o eram.
E o que mais me impressionou foi que eram
todos gente normal, como eu. As moças
usavam maquilagem. Os rapazes conversavam
sobre corrida de automóvel — no entanto
estavam ali porque desejavam estudar a Bíblia.
Naquele ambiente foi muito fácil falar sobre
Deus.
Contudo, eu ainda ficava incomodada
quando ouvia falar em céu e inferno. Mas o
que mais me transtornava era a idéia de que
ninguém podia chegar a Deus, a não ser por
intermédio de Jesus. Compreendi que ou eu
tinha que aceitar tudo que Jesus dissera a
respeito de si próprio, ou abandonar de vez a
fé cristã. E não foi sem relutância que orei a
ele dizendo que acreditava em tudo que ele
dissera. E assim me converti.
Passei a ter uma vida ainda mais cheia do
que antes. Pouco depois disso, um homem me
perguntou se eu acreditava em Deus.
— Não, respondi. Eu o conheço. É
diferente. Tenho paz e sei para onde estou
indo.
Mas essa nova vida também me trouxe
alguns problemas. Certo dia, após o estudo
bíblico, as moças tiveram um momento de
oração. Abri os olhos para dar uma espiada.
Sorriam parecendo muito felizes. Fiquei
abismada, pois se críamos que iríamos para o
céu por causa de Jesus, a recíproca também
era verdadeira — quem não cresse nele não
iria. "Como essas pessoas podem ficar
sentadas aí sabendo disso?" pensei. "E as
pessoas que ainda não ouviram as boas-
novas?"
Em conseqüência disso, passei a tomar
parte numa cena que teria abominado, antes
de minha conversão. Estava tocando piano
numa reunião de jovens evangélicos em
Waddon, cantando hinos sobre a salvação. Foi
aí que tive certeza de que minha vida havia-se
modificado mesmo.
Depois que me formei, comecei a dar
aulas de música. Mas eu queria dedicar toda a
minha vida a uma obra qualquer, em algum
lugar. E não havia nada que me impedisse de
fazê-lo. Voltou-me a idéia de ser missionária. '
Então escrevi para missões, escolas e
companhias radiofónicas da Africa. E todos
responderam da mesma forma — não queriam
meus préstimos.
— Ainda não podemos dar-nos o luxo de
ter músicos por aqui, diziam.
Não me deixei abater, e tratei de pedir
conselhos às pessoas que melhor pudessem
me orientar.
— O que você acha que devo fazer de
minha vida? indagava.
— Já orou pedindo a orientação de Deus?
replicavam.
Já havia orado, mas Deus ainda não tinha
me dado uma resposta clara. A Bíblia ensinava
que eu deveria crer e ele me orientaria. Uma
noite, sonhei que nossa família estava reunida
à mesa da sala de jantar, olhando um mapa
colorido da Africa. Entre os diversos países
daquele continente havia um que estava
colorido de cor-de-rosa. Inclinei-me mais para
ver qual era. Estava escrito "Hong Kong".
Quando acordei, escrevi para o governo
de Hong Kong explicando que era professora
de música, formada, e gostaria de lecionar
nesse país. Responderam dizendo que não
havia vagas para músicos. Recorri então à
minha sociedade missionária. Impossível,
responderam. Não aceitavam candidatos a
missionário com menos de vinte e cinco anos.
Eu teria que aguardar um pouco mais.
Ao que parecia, havia interpretado
erradamente o meu sonho.
Certa vez fui orar em uma pequena igreja
de um povoado, um lugar muito calmo. Ali tive
uma visão de uma mulher de braços
estendidos, como se estivesse implorando
ajuda. Fiquei a me indagar o que ela queria.
Parecia desejar alguma coisa desesperada-
mente. Seria auxílios do Fundo Cristão? Depois,
foram surgindo umas palavras que iam
passando à minha frente, como se fossem a
ficha técnica de um programa de televisão: "O
que você pode nos dar?" O que, em verdade,
eu poderia dar a ela? Se fosse missionária, o
que iria dar às pessoas? Daria o que aprendera
em meus estudos? Deveria talvez atuar como
intermediária para conseguir-lhes alimentos,
dinheiro ou roupas? Se eu lhes desse apenas
essas coisas, quando saísse de lá, voltariam a
ter fome. Mas a mulher da visão estava com
fome de um alimento que ela não conhecia.
Ocorreu-me, então, que o de que ela
precisava era o amor de Jesus. Se ela o
recebesse, quando eu saísse de lá, ela ainda
estaria satisfeita, e poderia até transmiti-lo a
outros. Finalmente sabia o que tinha a fazer —
só não sabia onde.
Pouco depois disso, encontrei um amigo
que morava em West Croydon, que sabia que
eu estava orando sobre meu futuro.
— Já recebeu a resposta? indagou.
— Não, respondi.
— Gostaria de assistir às nossas
reuniões? indagou. Lá estamos sempre
recebendo respostas.
Será que aquela gente de West Croydon
pensava que tinha uma espécie de monopólio
de Deus? Fiquei curiosa para saber o que
acontecia nas reuniões.
— Logo que cheguei, alguém me disse
que não ficasse espantada se acontecesse algo
de extraordinário. Sentei-me perto da porta. Ao
que parecia, iriam exercitar os dons espirituais,
e eu queria ter facilidade de escapulir, caso
fosse necessário.
Não estava muito certa sobre o que iria
haver ali. Pensava que talvez alguém fosse
profetizar em voz alta. Mas a reunião foi muito
ordeira e calma, com orações normais e os
hinos de sempre. Um ou dois dos presentes
realmente falaram numa língua que eu não
compreendia, mas até certo momento não
houve nenhuma profecia estrondosa, nem voz
estridente de Deus falando comigo.
Mas depois ela veio.
Uma pessoa começou a falar em voz
tranqüila, e logo tive plena certeza de que
aquilo era para mim.
"Vá. Confie em mim e eu a guiarei. Eu a
instruirei sobre o caminho em que deve andar.
Eu a guiarei com meus olhos."
Tive certeza de que Deus estava com
minha vida em suas mãos, e que muito breve
iria conduzir-me a algum lugar.
Não havia dúvida de que o povo de West
Croydon recebia respostas de Deus. Voltei para
casa, e pus-me a aguardar maiores
orientações. Ainda não sabia para onde
deveria ir. Dei aviso prévio em todos os empre-
gos, de modo que estivesse livre para partir
logo após o encerramento das aulas.
Durante os feriados da Páscoa, trabalhei
durante uma semana na igreja de Richard
Thompson. Ele me conhecia havia bastante
tempo, e eu sentia que poderia ajudar-me.
Disse-lhe que eu e Deus nos achávamos numa
encruzilhada. Ele me ordenara claramente que
fosse, mas não me dissera para onde.
— Se Deus está ordenando que và, é
melhor você ir, replicou ele.
— Mas como, se não sei para onde ir.
Todos os meus pedidos de trabalho estão
sendo rejeitados.
— Bem, se você já tentou todas as
formas convencionais de trabalho missionário
e Deus continua dizendo para você ir, é melhor
você começar a mexer-se. Se já tivesse um
emprego, a passagem, o lugar para ficar, a
aposentadoria e pensão, não precisaria confiar
nele, continuou Richard. Desse modo, qualquer
um pode ser missionário. Se eu fosse você,
compraria passagem num navio com destino
ao ponto mais distante possível, embarcaria
nele, e depois iria orando todo o tempo,
perguntando a Deus onde deveria descer.
Depois de vários meses, era a primeira
vez que eu recebia uma resposta definida.
— É uma idéia maravilhosa, respondi.
Mas me parece errada, pois eu adoraria fazer
isso.
Eu ainda pensava que tudo que o crente
fizesse tinha que implicar em sofrimento, e que
não podia ter nenhuma satisfação em sua fé.
Mas Richard afirmou que esse plano era
bíblico. Abrão, por exemplo, deixara sua terra
e, obedecendo a uma ordem de Deus, seguira
para a terra prometida sem saber para onde ia,
pois confiava em Deus.
— Não há o que temer, se você se
colocar inteiramente nas mãos de Deus, disse
Richard com muita seriedade. Se ele não
quiser que você tome esse navio, ele a deterá,
ou poderá levar a embarcação para qualquer
lugar do mundo.
A idéia me pareceu fascinante.
O conselho de Richard era um pouco
incomum, mas muito sábio. Em nenhum
momento, ele me deu a impressão de que eu
entraria no navio como uma pessoa comum, e
sairia dele transformada em missionária,
pronta para trabalhar. O que eu tinha de fazer
era simplesmente seguir a Deus, aonde ele me
mandasse. Assim compreendi que não tinha
nada a temer nessa aventura.
Então fiz o que ele dissera. Procurei o
navio mais barato, com o percurso mais longo
possível, que passava por muitos países. Ia da
França ao Japão. Comprei a passagem, e tudo
estava resolvido.
Naturalmente, eu teria que enfrentar
meus pais e amigos. Alguns se mostraram
descrentes. Meu pai, com muito bom-senso,
insistia em que eu pensasse muito, em minha
"viagem de canoa para a China". Meus pais
estavam satisfeitos com a minha ida, mas um
se preocupava com o outro. Orei pelo
problema, e uma noite escutei os dois
discutindo, cada um tentando convencer o
outro de que estava tudo certo.
O pessoal da minha sociedade
missionária já não se mostrou tão
entusiasmado.
— Que conselho mais irresponsável para
um pastor dar a uma jovem, disseram. E
suponhamos que não tenha sido o Espírito
Santo quem ditou as palavras para Richard
Thompson?
O dia em que parti foi um desses dias em
que tudo dá errado. O táxi que havíamos
contratado para nos levar a Londres apareceu
com uma hora de atraso. Mas afinal vi-me
acomodada no vagão do trem com minha
bagagem. Richard Thompson surgiu correndo
pela plataforma, gritando:
— Glória a Deus!
E daí a pouco o trem arrancou.
O agente da imigração voltou-se para
mim muito transtornado. Por um instante
pensei que eu tinha vindo de tão longe até a
Ásia, apenas para ser repatriada. Mas de
repente lembrei-me do texto que lera pela
manhã: "Eis que nas palmas das minhas mãos
te gravei." Se meu nome estava gravado ali,
então Deus sabia tudo que me dizia respeito.
— Espere um pouco, disse eu,
lembrando-me repentinamente de um afilhado
de minha mãe. Eu conheço uma pessoa aqui.
Ele é da polícia.
O resultado foi dramático. Naquela
época, 1966, a polícia era tida em alta conta, e
qualquer um que tivesse um conhecido na
força policial, obviamente era uma pessoa
direita.
Devolveram-me o passaporte
resmungando que eu poderia desembarcar,
sob a condição de que deveria procurar
emprego imediatamente. Na opinião deles,
meu dinheiro não daria nem para três dias de
estada em Hong Kong.
3
Uma Cidade Chamada Trevas
A Cidade Murada é guardada dia e noite,
continuamente, por um exército de vigias.
Assim que um estranho qualquer se aproxima,
os vigias vão passando a notícia de boca em
boca. Aqueles rapazes saem correndo por
entre barracas de lanche, entrando e saindo
por portas, e atravessando ruelas estreitas. As
verdadeiras atividades da cidade ficam
completamente camufladas para um
forasteiro. Portas se fecham, janelas são
cerradas e a queima de incenso disfarça o acre
odor do ópio.
Um dos nomes chineses dados à Cidade
Murada é "Hak Nam", que significa "trevas". E
realmente trata-se de um lugar de trevas
horríveis, tanto físicas quanto espirituais. Mas
quando se conhecem os homens e mulheres
que vivem e sofrem em tal lugar, podemos
ficar condoídos, cheios de compaixão.
A Sr.a Donnithorne me convidara para
visitar o jardim da infância e a igrejinha que
organizara ali, mas não me havia preparado
devidamente para o que iria ver. Pegamos um
carro até a rua Tung Tau Chuen, situada nos
arredores da cidade. É a rua dos dentistas
clandestinos, que exercem seu trabalho ile-
galmente, pois dentistas práticos não podem
operar em Hong Kong.
Logo atrás desses bizarros cômodos
erguiam-se os precários arranha-céus da
Cidade Murada. Passamos apertadamente por
um vão entre duas das lojas de dentistas e
pusemo-nos a caminhar por um beco
escorregadio. Nunca me esquecerei do mau
cheiro e da escuridão reinante. Era um cheiro
fétido de comida azeda e de excremento,
misturado ao de lixo e de vísceras de animais.
Fomos andando por entre as casas, e a parte
superior delas se projetava sobre a rua,
formando uma espécie de arco sobre o beco.
Parecia-me estar caminhando por um túnel
subterrâneo.
A medida que avançávamos, minha
amiga ia comentando algumas coisas: à nossa
direita uma indústria de flores de plástico; à
esquerda, uma velha prostituta, que era velha
e feia demais para conseguir fregueses. Então
ela contratava meninas prostitutas para
trabalharem para ela. E essas tinham muitos
clientes. Nesse lugar depravado, a posse de
uma criança prostituta era considerada apenas
como uma excelente fonte de renda. "Tia
Donnie" avisou-me que mantivesse o rosto
voltado para o chão, caso alguém resolvesse
esvaziar na rua seu urinol, no momento em
que passávamos embaixo. Depois vinha o
cinema de filmes pornográficos, uma espécie
de pavilhão, inteiramente lotado.
Mas havia um comércio normal também.
Vimos homens carregando na cabeça latas de
concreto re-cém-misturado. Mulheres, tendo
nas mãos imensas sacolas cheias de flores
artificiais, iam saindo das pequeninas saletas
onde eram fabricadas. Ali não se observava o
"Dia do Descanso". Cinco feriados ao ano eram
mais que suficientes. Para um chinês, é de
suprema importância que os filhos trabalhem
para os pais, muitas horas por dia.
Como pode existir um lugar destes bem
no meio de Hong Kong, a Colônia da Coroa
Britânica? Há cerca de oitenta anos, quando a
Inglaterra se apossou da ilha chinesa de Hong
Kong, da Península de Kowloon e dos territórios
contíguos a ela, foi feita uma exceção. A velha
cidade murada de Kowloon deveria
permanecer sob a jurisdição da China, com seu
mandarim, sujeita às leis chinesas. Mais tarde
o mandarim morreu, e seu cargo nunca foi
ocupado, nem por outro chinês nem por um
inglês, e assim a desordem passou a reinar na
Cidade Murada, onde prevalece até hoje. Ela
se tornou um paraíso para o contrabando do
ouro, antros de jogatina ilegal e todo o tipo de
vícios. O desentendimento com relação à sua
posse significava que a polícia não podia impor
a lei e a ordem dentro dela. Quando querem
procurar criminosos ali, entram em grupos
grandes.
A cidade tem uma população muito
grande, mas é pequena. Em apenas seis acres
de terra, vivem trinta mil pessoas, ou o dobro.
As condições habitacionais são apavorantes.
Não existem leis regulamentando a construção
das casas; por isso as ruas se acham
"entulhadas" de prédios de apartamento,
situados em ângulos os mais loucos, sem água,
luz ou esgoto. Excrementos são atirados nas
ruas, que exalam constante mau cheiro. No
andar térreo, existem apenas dois banheiros
para as trinta mil pessoas. E esses dois não
passam de buracos feitos no chão sobre fossas
já transbordantes. Um é para as mulheres e o
outro para os homens.
Seria muito improvável que num lugar
como a Cidade Murada houvesse escolas e
igrejas. Mas a Sr.a Donnithorne tinha
conseguido abrir uma escolinha primária. Os
professores não eram formados, mas haviam
feito o curso secundário. Era uma escola
pequena, com várias centenas de alunos. No
primeiro dia em que fui visitar o local, Tia
Donnie pediu-me que lecionasse nela. Antes de
pensar duas vezes repliquei:
— Pois não!
E sem que soubesse claramente em que
estava me metendo, concordei em dirigir a
bandinha de percussão, ensinar canto e
conversação em inglês, três vezes por semana.
Pelo sistema chinês, aprende-se tudo de
cor. E todos os meses se fazem provas, bem
como ao fim do semestre e do ano. A criança
reprovada nos exames finais tinha que repetir
todo o ano escolar.
As aulas da bandinha e de canto não
apresentavam muita dificuldade para mim,
mesmo levando-se em conta que não
conversava muito com os alunos, mas, quanto
às aulas de conversação, meu fracasso foi
total.
Tentei vitalizar mais as aulas
dramatizando as histórias, mas eles não
corresponderam. Todas as vezes que tentava
fazer isso aconteciam verdadeiras guerras na
sala de aula. A liberdade que eu tentava
aplicar, em poucos minutos transformava-se
em anarquia.
Uma vez por semana, à noite, havia um
culto numa das salas de aula. E a Sr.* a Poon —
nome que, orgulhosamente, me deram em
chinês — tocava o harmónio.
A maioria das pessoas que vinham era
constituída de mulheres mais velhas, algumas
carregando crianças presas às costas. Vim a
descobrir depois que muitas delas, sendo
analfabetas, vinham à igreja para ter aula de
leitura. Começavam cantando entusiasti-
camente, em voz bem alta. Em seguida, a
instrutora bíblica expunha os ensinamentos em
cantonês. Nessa época, eu não entendia uma
palavra do que era dito, mas sentia que
participava do culto.
Na primeira noite em que lá estive, uma
mulher me captou a atenção, naquele grupo
de chineses. Era uma velha verdureira: tinha o
rosto muito sulcado de rugas, e apenas dois
dentes, que estavam sempre em evidência,
pois a mulher sorria constantemente. Ela se
aproximou de mim e puxou-me pela manga,
com veemência. Ficou falando e falando,
sorrindo e puxando a manga. Pedi a alguém
que interpretasse para mim o que ela estava
dizendo.
— Até a semana que vem! Até a semana
que vem!
Tive vontade de dizer a ela que não
poderia ir todas as semanas, pois morava
muito longe, e quando voltava para casa já era
muito tarde, e eu tinha que me levantar cedo
para dar aula. Mas senti que não conseguiria
explicar-lhe tudo isso. Ela só compreenderia
que eu estaria ali ou não estaria. Então resolvi
ir ao culto todos os dias, só por causa dela.
Aquela altura, eu já tinha um emprego
fixo: dava aulas numa escola primária, pela
manhã. Lecionei ali durante seis meses. Além
disso, auxiliava Tia Donnie na escolinha dela,
três vezes por semana, à tarde, tocava nos
cultos de domingo, e preparava programas
musicais em prol de várias instituições de
caridade. Isso tomava todo o meu tempo.
Na segunda vez que fui à Cidade Murada,
tive uma sensação maravilhosa: aquela
vibração interior que se tem no dia do
aniversário. E comecei a me indagar por que
me sentia tão feliz. E na outra vez que fui ali,
experimentei exatamente a mesma coisa. Isso
me parecia um pouco descabido, num lugar
tão revoltante como aquele. E, no entanto,
quase todas as vezes em que me encontrava
nesse reduto de marginalidade, nos doze anos
que se seguiram, sentia o mesmo gozo. Eu já
tivera um vislumbre dessa alegria no dia da
minha "confirmação", e depois quando
recebera a Jesus em minha vida — mas
experimentar o contentamento espiritual nesse
lugar profano?
— Aquele ali é viciado, disse-me Tia
Donnie certa manhã, quando nos dirigíamos
para a escola.
Nessa ocasião, eu ainda não sabia direito
o que significava ser viciado. Ele iria nos
agredir, roubar-nos o relógio ou ter um acesso?
Era um homem de aspecto patético, que, com
movimentos lentos, catava coisas num monte
de lixo. Estava examinando os detritos ali
deixados, um por um, para ver se havia algum
objeto que pudesse ser de valor para ele. Dava
a impressão de estar muito doente, o rosto
muito pálido, e parecia ter setenta anos e não
trinta e cinco. Usava uma camiseta de algodão
bastante suja e sandálias de plástico, já bem
gastas. A maioria dos chineses anda sempre
muito limpa, mas o Sr. Fung estava imundo.
Seus dentes eram pretos, quebrados. O cabelo
cortado rente indicava que acabara de sair da
prisão. Mas, para ele, a cadeia era apenas um
lugar para dormir e comer com mais
regularidade.
Mas, na verdade, cama e comida não era
o que importava para ele. Fung vivia para
"perseguir o dragão". Essa maneira chinesa de
tomar droga tem seu ritual próprio. O viciado
chega a um local de comércio de drogas, pega
um pedaço de folha de alumínio e coloca nela
alguns grãozinhos de heroína. Acende um
paviozinho feito de papel enrolado e coloca sob
o alumínio, a fim de aquecer a droga. A heroína
vai-se derretendo lentamente, transformando-
se numa espécie de melaço escuro e
fumegante. Ele coloca na boca a parte externa
de uma caixa de fósforo para servir de funil,
pelo qual ele irá inalando a fumaça. Em
seguida, põe-se a mover a folha de alumínio,
fazendo o filete de líquido grosso escorrer de
um lado para outro, acompanhando o
movimento da fumaça com a boca. Chamam a
isso "perseguir o dragão".
Pouco depois, fiquei sabendo que nem
todos os viciados tinham uma aparência como
a do Sr. Fung. Alguns deles estão sempre bem
vestidos. Para estes, o fato de se apresentarem
bem é uma evidência de que não se acham
escravizados ao dragão. Como passara a ir à
cidade com freqüência, vi o Sr. Fung muitas
vezes. Comecei a me indagar se não deveria
fazer alguma coisa por ele e por outros iguais a
ele.
A prostituição raramente era camuflada.
A primeira prostituta que vi ali chamou minha
atenção por estar usando batom e esmalte
num tom vermelho berrante. Ficava o dia
inteiro agachada na rua, uma rua tão estreita
que o rego do esgoto passava perto de seus
pés. Rua abaixo havia outras delas, sentadas
sobre caixas de laranjas e uma delas tinha até
uma cadeira. Na sua maioria também eram
viciadas em drogas. As marcas escuras no
dorso da mão revelavam que injetavam
heroína diretamente na veia. Eu passava ali
todos os dias e nunca saberia dizer quando
estavam acordadas ou dormindo. Estavam
sempre pendendo a cabeça, o branco dos
olhos amarelado pelo torpor da heroína.
Um dia tentei tocar na menorzinha.
Aprendera a "Jesus te ama", em chinês.
— Yeh sou ngoi nei, falei.
Mas ela se encolheu toda, fugindo ao
meu contato. Vendo a expressão de seu rosto,
compreendi subitamente que cometera um
erro. Ela colocara uma barreira entre nós, e eu
não sabia o que fazer para derrubá-la. A moça
estava fortemente constrangida, porque eu,
uma jovem "limpa", cometera um engano e
tocara nela, uma suja.
Fui percebendo aos poucos que as
mulheres mais velhas se engajavam na
obtenção de clientes. Quando os homens
saíam do cinema pornográfico, as mama-sans
quase os agarravam e puxavam para ali. As
vezes dava para ouvi-las dizer, empurrando-os
escada acima:
— Venha, ela é bem jovem, e é barato.
Naturalmente, as mocinhas não ficavam com o
dinheiro. A maioria das prostitutas era
controlada por quadrilhas, e os bordéis só
podiam funcionar com permissão da quadrilha,
que controlava a área em que se encontravam.
Havia duas mocinhas que eu via
ocasionalmente. Uma delas era aleijada e a
outra retardada. Ambas eram prisioneiras.
Nunca saíam a não ser acompanhadas por
uma mama-san. Eram visitadas por três
clientes a hora. Nessa época uma tinha treze e
a outra quatorze anos. Mais tarde, vim a saber,
através de um membro da quadrilha, como
essas moças eram iniciadas nesse tipo de vida.
Os rapazes organizavam uma festinha e
convidavam mocinhas. Durante a festa, as
jovens eram seduzidas. Se resistissem, eram
estrupadas. Via de regra, cada membro da
quadrilha pegava sua menina e ficava com ela
durante alguns dias. Depois que percebia que
ela já estava afeiçoada a ele e acostumada
com o sexo, ele a entregava a um bordel.
Outras mocinhas se prostituíam, porque
seus pais não tinham condições de sustentá-
las, e as vendiam para o comércio da
prostituição, onde permaneciam até se
tornarem mais adultas. Depois disso, muitas
dessas antigas meninas-prostituas fugiam de
seus donos e se lançavam na carreira, fazendo
a única coisa que sabiam. Algumas dessas
crianças iniciavam este tipo de vida com nove
anos de idade.
Comecei a planejar um modo de alcançar
essas moças, que estavam sempre tão bem
vigiadas. Afinal tive que desistir disso e
"arquivei" mentalmente o problema, mas tinha
esperanças de que um dia pudesse encontrar
um homem que se interessasse por esse
trabalho, e pudesse pagar a quantia necessária
para uma hora com elas, mas que, nesse
tempo, pregasse o evangelho para a jovem.
Talvez juntos, eu e ele, pudéssemos conceber
um plano de fuga para elas, se alguma
quisesse abandonar esse tipo de vida.
4
O Clubinho
Às vezes penso que a verdadeira razão
por que criei o clubinho foi Chan Wo Sai. Era
um rapazinho feioso, de quinze anos, e com
tantos problemas, quantos pode ter qualquer
outra pessoa. Conheci-o quando dava aulas de
inglês e canto na Escola Primária Oiwah, três
tardes por semana. Estava ensinando uma
musiquinha muito simples, sem arroubo
nenhum, e, no entanto, lá estava Chan Wo Sai
parecendo realmente empolgado com uma
cançãozinha infantil. Girava os olhos e estalava
os dedos. Depois levantou-se e pôs-se a
dançar pela sala, vindo em minha direção,
remexendo os quadris com um jeito bem
sensual. Mandei que voltasse para o lugar, e
passei a ensinar outra música. Após a aula,
procurei descobrir as origens dele.
Chan Wo Sai nascera ali mesmo, na
Cidade Murada. A mãe era prostituta e o pai,
um bêbedo. Viviam num pardieiro, numa casa
que havia desabado. Toda a família ocupava
um quartinho minúsculo. Na casa ao lado,
moravam algumas prostitutas. Desde que se
entendeu por gente, o garoto passou a
conviver com esses fatos; eram parte de seu
quotidiano. Seus horizontes eram limitados
pelo bordel ao lado, os antros de jogo um
pouco abaixo e os salões de ópio depois
desses. Na Cidade Murada não havia nada que
oferecesse a alguém uma atividade mais
construtiva.
Então procurei conhecê-lo e ajudá-lo a
melhorar de vida.
Isso seria um pouco difícil, já que eu não
falava uma só palavra de cantonês. E para
dificultar ainda mais as coisas, ele tinha uma
deficiência de fala que embaraçava ainda mais
nossa conversa. Nosso único ponto em comum
era uma espécie de tambor que eu havia dado
a ele. Consistia numa membrana de borracha
presa numa armação de madeira, na qual se
batia com baquetas; uma bateria surda. Ele
tinha que treinar naquilo, mas não tinha o
menor senso de ritmo. Mas ele se mostrava
muito satisfeito, pois era a primeira vez na
vida que alguém demonstrava algum interesse
por ele.
A medida que os dias iam passando,
percebi que estava constantemente pensando
nele, e isso me deixou um pouco alarmada.
Minha mentalidade inglesa me levava a crer
que qualquer amor por um rapaz tinha que ser
de natureza romântica, e, sendo eu crente, isso
teria que terminar em casamento. Mas,
naquele caso, obviamente, isso era impossível,
e até mesmo ridículo. Meu bom-senso dizia
que ele era um rapaz feioso, com uma
formação das piores possíveis. Mas eu
realmente o amava e orava por ele constan-
temente. Cheguei a um ponto em que estaria
disposta a dar minha vida por ele.
Algum tempo depois, vim a compreender
o que se passava comigo, e fiquei bastante
surpresa. Era como se Deus tivesse me
concedido um amor especial por ele, que eu
deveria demonstrar, embora não se tratasse
de um sentimento que devesse ou pudesse ser
retribuído. Era um amor que tinha por objetivo
o bem dele, e diferia bastante do amor que eu
sentira por outras pessoas, para o qual sempre
tinha desejado alguma forma de retribuição.
Dentre os vários grupos humanos
necessitados que pululavam a Cidade Murada,
o mais desatendido era o dos adolescentes. As
crianças menores, pelo menos, tinham a
chance de freqüentar uma escola primária.
Mas os adolescentes não tinham nada. Era
praticamente impossível estudar num ginásio.
E eles tinham de trabalhar nas indústrias de
plástico, onde ganhavam pouquíssimo.
Muitos rapazinhos, e até mocinhas, saíam
de casa e iam viver com outros jovens em
cômodos miseráveis. Pouco depois, não tendo
nenhuma atividade, caíam na senda do crime.
Muitas vezes, as quadrilhas é que lhes
ofereciam a única forma de ocupação possível.
Durante o verão de 1967, toda a China
fora convulsionada pelas atividades da Guarda
Vermelha. Aquela "epidemia" chegou também
a Hong Kong. Houve tumultos por toda a
colônia. Vim a descobrir, porém, que alguns
rapazes da Cidade Murada estavam sendo
pagos para participarem do tumulto. Percebi
então que poderia convencê-los a fazer um
piquenique. Então, num dia úmido de junho,
disse a Tia Donnie em tom bastante pomposo:
— Acho que Deus está querendo que eu
organize um clubinho para jovens.
Eu imaginava o trabalho sendo realizado
com o auxílio de uma equipe de obreiros
cristãos da ilha de Hong Kong, todos escolhidos
a dedo, que iriam avançar sobre a cidade com
um programa de ação mu.'to bem planejado,
enquanto eu ficava sentada, assistindo e
aplaudindo.
Meu plano era termos um salão que
abrisse todas as noites, e aos sábados e
domingos. Seria um lugar onde os rapazes
pudessem jogar tênis de mesa e engajar-se em
outras atividades saudáveis, mas igualmente
um lugar onde ouvissem falar de Jesus. Mas Tia
Donnie tinha uma atitude mais prática.
— Ótimo! Há anos estou orando por isso.
Quando pretende começar? A semana que
vem?
Começamos uma semana depois. Ainda
dava para contar nos dedos as palavras de
cantonês que eu sabia. Não contava com
minha equipe escolhida a dedo e não tínhamos
um local para nos reunirmos. Mas passamos a
usar uma sala da escola nos sábados à tarde. E
Gordon Siu; um jovem chinês que eu
conhecera na Orquestra Juvenil, veio em meu
auxílio como intérprete, tornando-se um esteio
para mim. Ele me ajudava a alugar ônibus,
acompanhava-nos nos piqueniques, ou ia
patinar conosco. Pouco depois, começaram as
férias, e, ao pensar que os rapazinhos
poderiam envolver-se mais nos tumultos de
rua, resolvi ampliar ainda mais nossas
atividades.
De reuniões apenas aos sábados,
passamos a ter um completo programa de
verão, com piqueniques, caminhadas a pé e
visitas às plantações do refloresta-mento. E
nos anos que se seguiram realizamos o mesmo
programa em julho e agosto.
Os primeiros a aparecer foram os
adolescentes de treze e quatorze anos, que
traziam também seus amigos de fora. Todos
sabiam que eu estava ali basicamente porque
era cristã, e que em toda a programação
sempre haveria uma pequena palestra no
início. Eles não gostavam muito de ouvir falar
de Jesus. Nem ao menos sabiam direito quem
ele era. Alguns jovens me disseram que não
poderiam ir ao clubinho.
— Nós bebemos e fumamos, vamos ao
cinema e jogamos, e sabemos que os crentes
não fazem essas coisas.
Pouco depois, Chan Wo Sai largou a
escola. Estando com quinze anos, era um dos
mais velhos alunos do quarto ano. Achava-se
com quatro anos de atraso, pelo menos, em
seus estudos. Ele resolvera não concluir o ano.
Fora aberto um novo cinema, e ele conseguira
um emprego de vender ingressos.
Para a inexperiente professora inglesa,
largar a escola primária era uma coisa terrível.
Durante todo o período das férias, tentei
persuadir o garoto a voltar. Por fim, ele
resolveu ir conversar com os professores, mas
eles se recusaram a recebê-lo.
— Olha, Jackie, disse um deles, ficamos
muito satisfeitos quando ele decidiu sair,
porque não conseguíamos controlá-lo mais.
Pois que vá!
E era uma escola missionária! Os
professores eram crentes, e eu imagina que,
quando se reuniam para orar, intercediam por
alunos difíceis e problemáticos como Chan Wo
Sai.
Mas a verdade era que a maioria deles
mal havia completado o segundo grau. Diziam-
se cristãos apenas para conseguirem o
emprego, e eram incapazes de controlar
quaisquer alunos, a não ser que fossem
bastante dóceis.
A única alternativa que restava a Sai era
fazer um curso profissionalizante, onde
pudesse aprender algum ofício. Viemos a
descobrir, porém, que ele não se qualificava
para nenhum deles, ou porque já passara da
idade, ou porque não tinha terminado o
primário, ou porque não falava inglês. Todas as
portas se fechavam para Chan Wo Sai, embora
ele tivesse apenas quinze anos.
O que iria suceder-lhe? Parara de estudar
e, ao que parecia, a única perspectiva de vida
para ele era vender ingressos no cinema. Não
havia nada mais que eu pudesse fazer por ele,
a não ser manter o clubinho em atividade.
Vários dos seus amigos que paravam de
estudar iam para as quadrilhas. Sentiam que
ali tinham uma função na vida. Tinham sua
posição certa e eram tratados como uma
pessoa importante. Encontravam ali até um
pouco de carinho e afeto, consideração e
amizade, o que não achavam em nenhuma
outra parte. Tanto na igreja como na escola, o
sucesso nas provas era sinônimo de valor e
integridade. Mas nem nas quadrilhas nem em
meu clubinho, eles escutavam palavras de
condenação ou rejeição pelo fracasso.
O nosso Clubinho Jovem era realmente
bem diverso de tudo o mais que havia na
Cidade Murada. Ninguém obtinha lucros com
ele; não era controlado por chefes de
quadrilhas. Tivemos de mudar várias vezes,
mas era sempre o mesmo. Um salão com
alguns joguinhos tais como mesa de pingue-
pongue e alvo para dardos, alguns bancos
toscos e uma estante com alguns livros
evangélicos".
Outro rapaz que vim a conhecer bem
naquela época foi Nicholas. Tanto o pai como a
mãe já tinham sido processados por venda de
drogas, e a família toda vivia numa das piores
casas que já vi. As duas filhas mais velhas
eram prostitutas. E todos moravam em apenas
um cômodo pequeno e malcheiroso.
Os membros da igreja não gostavam de
Nicholas, pois ele, do mesmo modo que Chan
Wo Sai, exercia uma influência negativa sobre
os outros alunos da escola. Naturalmente eles
sabiam que suas irmãs eram meretrizes e o pai
viciado em ópio. Na opinião deles, o fato de eu
receber Nicholas em nosso clubinho implicava
em descrédito para o bom nome da igreja
cristã. Eu não devia nem ser vista em
companhia dele.
Eu sabia que o rapaz tinha má conduta e
estava sempre dando trabalho. Mas eu o
amava, embora isso fosse absurdo. Jesus viera
ao mundo por causa de pessoas iguais a ele, o
que também não fazia muito sentido.
Resolvi então fazer-me amiga dele e
visitá-lo seguidamente. Interessava-me
bastante por ele. Encontrava-o nos antros de
droga, e, quando era preso, acompanhava-o à
delegacia, e ali orava por ele. Mas nada disso o
tocava para que se modificasse.
Vim a compreender depois que naquele
lugar de tamanhas trevas não havia a noção
do conceito de retidão. O crime, a mentira e a
corrupção eram coisas certas, desde que
dessem lucro. Mas as pessoas que assim
pensavam assumiam uma atitude de moralida-
de em minha presença. E achavam que tal
atitude era correta, já que eu era
representante da Igreja, do Sistema.
— Nicholas é um menino terrível, dizia a
mãe, repreendendo-o bem na minha frente, e
depois se lamentava: não sei por que meus
filhos são todos uns perdidos.
E ela era uma pessoa que preparava os
saquinhos de heroína para vender aos
viciados.
Tempos depois, uma das meninas mais
novas, Annie, também se tornou prostituta.
Mas, afinal, acabou fazendo um bom
casamento. O noivo era for-gei, mas também
trabalhava para a polícia, fazendo a
arrecadação do dinheiro do suborno. Annie
ficou muito feliz de se casar com ele, pois o
rapaz tinha seu próprio carro. E sua mãe
também ficou encantada.
Certo dia, quando eu caminhava pela rua,
um velho correu ao meu encontro. Tinha o
rosto esquelético dos viciados em ópio, e
estava furioso.
— Poon Siu Jeh, você tem que reclamar
na polícia. Era proprietário de um salão de
consumo de ópio, um homem muito
importante na Cidade Murada.
— E por que eu deveria reclamar?
indaguei.
— Por que fecharam todas as salas de
ópio, disse ele muito encolerizado.
— Mas estou muito satisfeita de saber
que fecharam as salas de ópio, respondi. Por
que deseja que eu reclame?
— Porque deixaram as de heroína
funcionando, e pagamos a eles a mesma
quantia que os outros. Isso não é justo.
Não se tratava do que era certo e errado,
mas justo e injusto.
Joseph foi um dos primeiros presidentes
do clubinho. Não tinha nenhuma ligação clara
com o crime organizado, como Nicholas e Chan
Wo Sai. Quando ele estava com seis anos, seu
pai casou-se de novo; e como a madrasta não
gostasse dos enteados, não lhes dava o que
comer. Então Joseph e sua irmã Jenny tiveram
que sair mendigando. Mas um pastor de Novos
Territórios os apanhou e enviou para a escola
da Tia Donnie. Depois de terminar o curso
primário, Joseph arranjou um quarto para
morar e pôs-se a trabalhar em serviços
pesados, sempre que conseguia algum. Pouco
depois, sua irmã foi morar com ele.
Depois, tipos como Nicholas começaram
a freqüentar seu cômodo, passando a noite ali,
e seu quartinho se tornou uma "incubadeira"
de quadrilheiros. Passei a visitá-los com
regularidade. A irmã também estava correndo
perigo moral. Aos quinze anos era muito
bonita, e estava-se deliciando com a liberdade
que tinha. Podia conversar à vontade com os
amigos do irmão. Senti que, se continuasse
morando com ele, ela iria fatalmente acabar
tomando o caminho inevitável. Não poderia
abrigar a ambos em minha casa, já que havia
outra moça da Cidade Murada, Rachel,
morando comigo. Mas achei que Jenny poderia
vir. Convenci-a a sair de lá para ficar conosco.
Arranjei uma escola secundária para ela, mas o
desejo da moça era voltar para a Cidade
Murada, e durante o período em que esteve
conosco, causou-nos muitos problemas.
Outro rapaz que freqüentava
assiduamente o clubinho era Christopher, que
morava num casebre. Para se chegar lá,
descia-se por uma ruela escura, onde não
penetrava a luz solar. Em determinado ponto,
havia alguns galinheiros feitos de engradado
de refrigerantes. Era ali. Subia-se uma
escadinha de madeira, e estava-se na casa
dele. A porta era aberta de baixo para cima,
como um alçapão. Era apenas um cômodo.
Uma cortina servia de tapume para o canto
onde a família dormia. Nele havia apenas dois
beliches e todos dormiam naquelas duas
camas, os pais e seis filhos.
O resto do aposento estava ocupado por
imensas pilhas de artefatos de plástico, com os
quais a mãe dele trabalhava, ganhando mais
ou menos um dólar por dia. Todos os filhos
tinham que ajudá-la. A filha mais nova nem
chegara a terminar a escola. Aos treze anos
fora trabalhar numa fábrica de artigos de
plástico. E todo o dinheiro que ganhava tinha
que ser entregue à mãe. E depois que chegava
do serviço, tinha que trabalhar mais, pregando
lantejoulas em roupas. Quando fazia uma blusa
de frio, por exemplo, ganhava mais três
dólares, que, naturalmente, seriam de sua
mãe.
Assim Christopher começou a trabalhar, e
seu dinheiro também era entregue à mãe. Era
uma tradição dos chineses, uma lei não
escrita: os filhos tinham que pagar aos pais
pelo sustento deles recebido. A ambição dos
pais era aposentarem-se e serem sustentados
pelos filhos. Os jovens chineses não tinham
nenhuma satisfação ao receberem seu
pagamento, pois nunca ficavam com ele. Os
pais retinham tudo. A mãe de Christopher foi
assim ajuntando dinheiro e, mais tarde,
comprou um apartamento para si, fora da
Cidade Murada.
Muitos casais chineses têm família
numerosa por razões econômicas: para que
fiquem ricos ao envelhecer. Tive a impressão
de que a afeição familiar não se baseava em
um amor mútuo, mas, sim, em interesses
econômicos.
Ah Lin, a irmã mais nova de Christopher,
afinal se rebelou contra aquela exploração.
Conheceu em sua fábrica um rapaz que
gostava dela, mas a mãe proibiu o namoro.
Também não permitia que ela freqüentasse o
clubinho, pois as atividades dele eram, em sua
maior parte, recreativas. O divertimento, pura
e simplesmente, não deveria existir para ela. A
menina tinha que ficar em casa, e olhar os
irmãozinhos, ou então montar as peças dos
objetos de plástico, ou buscar água.
Finalmente, a garota, com quatorze anos, fugiu
de casa e foi morar com o rapaz. A mãe
conseguiu pegá-la de volta e trancou-a em
casa. O que ela fizera significava não apenas
vergonha para a família, mas também um
rombo nas finanças dela. Sendo as meninas
tratadas assim, como se fossem bens parti-
culares, não é de se estranhar que caíssem na
prostituição para se libertarem.
Minha tarefa era fazer o povo da Cidade
Murada entender quem fora Cristo. Se não
conseguiam compreender as palavras que
pregávamos sobre Jesus, então nós, os crentes,
tínhamos que demonstrar na prática quem ele
era, pelos nossos atos e conduta. Então iniciei
o que eu chamava de "andar a segunda
milha". Parecia que havia muitos cristãos que
não se importavam de andar a primeira milha;
muitos que não se dariam ao trabalho de
andar duas e nenhum que quisesse andar três.
Aquele povo ali precisava que se andasse com
eles uma maratona.
Fui-me envolvendo cada vez mais com os
rapazes, seus familiares e seus problemas.
Implicava em viver diante deles de maneira
prática, para que vissem quem Jesus era, e o
conhecessem. Um exemplo desse tipo de
conduta foi o que se deu, quando um dos
rapazes me pediu que ajudasse sua irmã a
conseguir matrícula numa escola secundária. O
processo normal era ficar na fila um dia inteiro,
apenas para pegar um formulário para fazer o
exame de admissão.
Aquela família esperava que eu
simplesmente fosse à diretora e lhe dissesse:
— Olhe, eu sou fulana de tal, conheço o
Dr. Sicrano. Será que poderiam admitir aqui
essa menina?
Mas não fiz isso. Entrei na fila, como todo
mundo, e eles ficaram muito espantados, pois
quando haviam pedido meu auxílio, não era
isso que tinham em mente.
Eu só podia dar esse tipo de ajuda
durante as férias, pois estava dando aulas de
música em tempo integral no Colégio Anglo-
Chinês para meninas. Mas durante muito
tempo, muitas pessoas se agregaram a mim
simplesmente pensando que, se ficassem em
meu grupo, talvez conseguissem um
certificado de batismo ou um documento
qualquer que lhes possibilitasse emigrar para
os Estados Unidos. Eram os "crentes da sopa".
Tratavam-me como haviam tratado outros
missionários, crendo que eu fosse uma presa
fácil. Estavam constantemente pedindo
dinheiro emprestado. E não acreditavam,
quando eu lhes dizia que não o tinha. Os
diálogos eram quase sempre mais ou menos
assim:
— Poon Siu Jeh, estou sem emprego e
meu dinheiro acabou.
— Mas eu não tenho dinheiro.
— Ah, mas você deve ter sim. Você é
muito rica.
— Não; não tenho dinheiro nenhum.
— Tem, sim. Você tem uma igreja na
América que a sustenta.
— Não, não tenho igreja. E eu vim da
Inglaterra. Mas não sou sustentada por igreja
nenhuma.
— Ah, qualquer dia desses você pega um
jato e volta para sua terra.
— Não; não existe a menor probabilidade
de isso acontecer, pois não tenho dinheiro para
a passagem, respondia eu com toda a
sinceridade.
— Então seus pais lhe mandam dinheiro.
— Meus pais também não têm muito
dinheiro, replicava.
Aquela altura, Ah Ping entrava na
conversa. Ele pensava um pouco mais que os
outros, e seus comentários eram sempre mais
precisos.
— É, talvez você não tenha dinheiro
mesmo, mas sempre pode ir embora, se
quiser. Nós não podemos. Não temos para
onde ir. Mas vocês, os ocidentais, podem pegar
o avião e ir embora, e depois se esquecem
completamente de nós.
— Não, Ah Ping. Não estou pensando em
ir embora e esquecer vocês.
Mas Ah Ping sabia falar, quando se
entusiasmava. E hoje ele iria dizer uma coisa
que todos eles pensavam.
— Vocês, os ocidentais, continuou ele,
vêm aqui e falam de Jesus para nós. Ficam
aqui um ou dois anos, para aplacarem a
consciência, e depois vão embora. Esse Jesus
chama vocês de volta para fazer outro
trabalho, na sua pátria. É verdade que lá
muitos conseguem angariar bastante dinheiro
para nós, povos mais carentes. Mas continuam
bem, morando em belas casas, com geladeiras
e empregados, enquanto nós continuamos
vivendo aqui. Mais cedo ou mais tarde, você
também irá embora.
Era um forte libelo contra aqueles
evangelistas que chegavam a Hong Kong,
cantavam lindos hinos sobre Jesus e depois
pegavam o avião e iam embora.
— ótimo, dizia Ah Ping, ótimo para eles e
para nós também. Teríamos muito prazer em
crer em Jesus, se também pudéssemos pegar
um avião e viajar pelo mundo todo, como eles.
É muito fácil para eles cantar hinos que falam
de amor, mas o que sabem a nosso respeito?
Nada; não sabem nada. E não nos conquistam
tampouco.
Houve ocasiões em que tentei conversar
com os guardas das salas de jogo, mas quando
mencionava que Jesus os amava, eles
acenavam a cabeça afirmativamente.
— Ótimo! Muito bom! diziam. Mas isso
não significa nada para nós.
E não significava mesmo, pois a maioria
nem tinha idéia de quem era Jesus, e do que
fosse amor. E eu continuei a pregar, dizendo
que Jesus poderia dar-lhes uma nova vida, mas
não pareciam entender nada.
5
Luz nas Trevas
Jesus não apenas afirmou que era Deus,
ele demonstrou isso. Fez os cegos recobrarem
a visão, os surdos, a audição, e os mortos
voltarem à vida. Alguns cristãos diziam que
estas coisas ainda aconteciam em nossos dias,
mas eu não as estava vendo.
Meus amigos missionários não podiam
auxiliar-me muito nessa questão. Muitos deles
tinham vivido sempre na China e se sentiam
meio desarvorados. Alguns ainda tinham
certos ranços culturais, e começaram a
influenciar-me a tal ponto, que passei a me
preocupar com detalhes tais como se devia
usar vestidos sem mangas ou se devia ir nadar
aos domingos. Eu não pertencia a nenhuma
missão, e, na verdade, estava bem livre de
imposições. Contudo, estava me sentindo
tolhida, infrutífera.
Certo dia fui tocar harmónio na Capela.
Lá conheci um casal chinês que iria dirigir o
culto, e percebi neles uma vitalidade e um
poder que eu desconhecia. Imediatamente,
tive vontade de saber por que eram tão
diferentes. Não falavam inglês muito bem, e eu
mal falava chinês.
— Você não possui o Espírito Santo,
disseram.
Ligeiramente indignada repliquei que o
tinha sim.
"É lógico que possuo o Espírito", pensei
comigo mesma. "Se não o tivesse não poderia
crer em Jesus."
Mas estava claro que aquele casal tinha
algo que eu não tinha, e eu o reconhecera,
apesar de não ter entendido bem a
mensagem. Eles denominavam-no possuir o
Espírito Santo, ao passo que eu preferia outra
expressão. Mas, se Deus tinha outra bênção
para mim, gostaria de recebê-la, e deixaria
para depois a nomenclatura teológica. Então
combinei visita-los em seu apartamento no dia
seguinte.
O apartamento deles, como milhares de
outros da cidade, tinha apenas um cômodo.
Havia ali uma mesa sobre a qual se viam um
prato com laranjas e outro com pedaços de
flanela molhada. As laranjas eram usadas
tradicionalmente pelos chineses para qualquer
comemoração, e os pedaços de flanela eram
para quando eu chorasse.
Senti meu coração pulsar com força, pois
não sabia exatamente o que iria acontecer ali.
Então me sentei, e eles impuseram as mãos
sobre minha cabeça e começaram a falar
repetidamente:
— Agora comece a falar, agora comece a
falar, agora comece a falar...
Mas não aconteceu nada. No grupo de
West Croydon havia algumas pessoas que
falavam línguas estranhas, mas ninguém
gostava de conversar muito sobre esse dom.
Parecia-me maravilhoso ter uma nova língua
na qual pudesse expressar a Deus todos os
pensamentos, mas fechei a boca firmemente.
Se Deus quisesse dar-me o dom, ele teria que
fazê-lo, e não eu.
Contudo, estava-me sentindo cada vez
mais envergonhada, além de um grande
desconforto e muito calor. Eles iriam ficar
muito desapontados, se nada acontecesse.
Afinal, não consegui me conter mais, e abri a
boca para dizer: "Ajudem-me!" Foi aí que
começou. Logo que fiz aquele esforço
consciente para abrir a boca, percebi que
estava falando fluentemente uma língua que
nunca aprendera. Era uma língua muito bela,
bem articulada, suave e coerente. Não tive a
menor dúvida de que tinha recebido o sinal.
Mas não me sobreveio nenhuma alegria
esfuziante. Foi totalmente desprovido de
emoção.
O casal chinês ficou encantado ao ver
que eu falara em línguas, embora um pouco
surpreso de não me ver chorar. Mas eles
choraram um pouquinho. Ainda me sentia um
pouco constrangida, e saí assim que pude.
Quando estava à porta, disseram-me:
— Agora você pode esperar que os outros
dons do Espírito vão aparecer também.
Mas não entendi bem o que quiseram
dizer. Na semana seguinte, todos os dias,
ficava esperando que o dom de cura ou o de
profecia surgissem de repente. Eram os dois
únicos dons do Espírito de que eu ouvira falar.
Eu não tinha dúvida nenhuma acerca da
validade e do uso deles, mas não sabia quando
uma pessoa reconhecia que os possuía.
Outra coisa que me intrigava um pouco
era o fato de não estar dominada pela emoção.
Lera livros que haviam-me deixado com a
impressão de que aquela experiência iria fazer-
me andar nas nuvens. Procurei, então, alguém
em Hong Kong que pudesse dar-me umas
explicações sobre isso, mas não encontrei nin-
guém. Alguns amigos missionários me
disseram, em tom sombrio:
— Na China, aconteceu uma coisa muito
perigosa que ocasionou divisão nas igrejas.
Os missionários pentecostais informaram-
me que haviam feito um acordo com os demais
evangélicos de não conversarem com outros
sobre os assuntos em que divergissem, falando
só sobre Jesus. Mas o ensino sobre os dons
estava na Bíblia, tinha vindo de Deus, como
isso poderia ser perigoso?
Com o passar dos meses, comecei a pôr
de lado a questão toda. A experiência não
havia mudado em nada a minha vida
espiritual. Ainda continuava rondando a Cidade
Murada, todas as noites ia a um culto
qualquer, procurava ajudar as pessoas, mas
parecia que não estava conseguindo nada.
Senti como se tivesse sido enganada.
"Quem eles pensam que são?" indaguei
comigo mesma, na primeira vez que ouvi falar
do casal Willans. Era um casal americano, a
filha Suzanne e uma amiga, Gail Castle, que
acabara de chegar a
Hong Kong. Eles iam realizar reuniões de
oração. "Hong Kong não precisa de mais
reuniões de oração. Eu mesma tenho reuniões
todos os dias. Eles deveriam, primeiramente,
conhecer a situação da igreja aqui."
Já haviam-se passado dois anos desde
que eu chegara da Inglaterra, e um ano que eu
supunha haver recebido "o dom do Espírito".
Sentia-me uma autoridade na questão de
reuniões de oração da Colônia. Mas uma amiga
minha, Clare Harding, insistiu em que eu fosse,
dizendo que seria uma reunião carismática.
— Está bem, vou freqüentar durante
algum tempo, respondi.
E foi então que fiquei conhecendo Rick e
Jean Stone Willans.
— Você tem o dom de línguas, Jackie?
indagou Jean. Ora em línguas?
— Para dizer a verdade não o faço. Não
vejo nele muita utilidade. Não me ajudava em
nada; então parei de orar.
— Mas isso é um grande erro, disse ela.
Não se trata de um dom de emoção, para
satisfação própria, é um dom do Espírito. A
Bíblia ensina que aquele que ora em línguas é
edificado espiritualmente. Portanto, não se
importe muito com o que sente, exercite-o.
E assim ela e Rick me fizeram prometer
que iria orar em minha língua celestial todos os
dias. E em seguida, para meu espanto,
sugeriram que orássemos juntos em línguas.
Eu não estava muito certa se isso era correto,
pois a Bíblia ensina que as pessoas não podem
falar línguas em voz alta, todas ao .mesmo
tempo. Explicaram que Paulo se referia a um
culto público, onde um estranho poderia entrar
e pensar que estavam todos loucos. Mas nós
três ali não iríamos escandalizar ninguém.
Iríamos simplesmente orar a Deus numa língua
que ele nos concedera.
Não houve jeito de escapar, e então nos
pusemos a orar. Senti-me meio ridícula,
dizendo coisas que não entendia. Mas, em
dado momento, eles pararam de orar e eu fui
impelida a continuar. Faria qualquer coisa para
não estar ali, orando em voz alta, em língua
estranha, diante daqueles americanos. Mas
quando pensei que estava para morrer de
vergonha, Deus me falou:
— Você não quer ser ridícula por amor a
mim? Entreguei os pontos.
— Está bem, Senhor, isso não faz muito
sentido para mim, mas como foste tu quem
inventaste esse dom, ele deve ser bom.
Quando acabamos de orar, Jean falou que
Deus lhe havia dado a interpretação do que eu
dissera. Meu coração estivera clamando pelo
Senhor, como se estivesse nas profundezas de
um vale, e ele no pico das montanhas. Eu lhe
dirigira palavras de adoração e suplicara que
ele me usasse.
Tomei a decisão de nunca mais desprezar
o dom, se Deus me ajudasse a orar daquela
maneira todas as vezes em que o exercitasse.
Aceitei o fato de que ele estava-me ajudando a
aperfeiçoar minha comunhão e súplica.
E, dali por diante, passei a orar todos os
dias na linguagem do Espírito. Antes de fazê-lo,
porém, eu dizia:
— Senhor, não sei orar e nem por quem
devo interceder. Peço-te que ores por meu
intermédio, e me conduzas às pessoas que te
desejam.
Mais ou menos um mês e meio depois,
comecei a notar que acontecia um fato
maravilhoso. As pessoas com quem eu falava
de Cristo, criam nele. A princípio, não entendi
direito, e pensei que tinha descoberto, por
acaso, uma nova e excelente técnica de evan-
gelização. Mas, na verdade, eu dizia as
mesmas coisas que antes. Depois compreendi
o que havia acontecido. Eu estava falando de
Jesus a pessoas que realmente desejavam
ouvir. Deixara que Deus participasse de
minhas orações e isso tivera um resultado
direto em meu trabalho. Eu estava pedindo a
Deus que realizasse sua vontade por meu
intermédio, quando orava na língua que ele me
dera.
E não poderia orgulhar-me de nada. Só
poderia maravilhar-me de ver como Deus
permitia que eu tivesse uma pequena
participação em sua obra. E aí veio a emoção.
Ela veio, quando vi os resultados dessas
orações.
Passei a conhecer melhor os Willans, e
eles se me tornaram ótimos amigos e
conselheiros. Experimentei mais uma vez a
gloriosa liberdade de viver, que possuímos em
Cristo Jesus. Ao me converter, eu aceitara o
fato de que Jesus havia morrido por mim, mas
a partir de então eu começava a ver os
milagres que ele estava operando no mundo
hoje.
6
As Quadrilhas
— Hai bin do ah? De onde você é?
Aterrorizado, o rapazinho fitou os quatro
membros da famigerada quadrilha 14K que
avançavam para ele ameaçadoramente. Em
gíria da quadrilha, estavam indagando a qual
daqueles grupos ele pertencia. Mas o rapaz
não conseguia responder, tremia demais.
— M'gong? Não quer falar, hein?
Ah Ping, o porta-voz da turma,
aproximou-se mais até ficar a um passo dele.
Não havia meio de escape. O rapaz estava
encurralado num dos becos da Cidade Murada.
Eles o atormentavam, ironizando seu medo,
avançando lentamente, como que deliciando-
se sadicamente com o pavor que lhe
inspiravam.
O primeiro soco veio com grande rapidez,
e atingiu-o nas costelas — o treinamento que
os chineses têm no kung-fu produz grande
flexibilidade e economia de movimentos, que
torna o soco preciso e mortal. O menino caiu, e
logo recebeu mais pancadas no estômago,
peito e virilha. Ele gemia, e se contorcia, mas
não disse nada. Então os outros foram
empurrando-o rua abaixo, chutando-o,
enquanto ele seguia aos tropeções, e depois se
afastou manquejando. Ficou então sabendo o
que acontecia, quando alguém entrava em
território inimigo, sem a devida proteção.
Aquilo dava enorme satisfação aos
membros das quadrilhas. Eles estavam no
controle de tudo que se passava ali em seu
território. Foi aí que fiquei sabendo que o salão
que eu alugara situava-se bem no meio da
área controlada pela 14K, pois acabava de
presenciar aquela cena repulsiva.
— Por que fizeram isso? indaguei. O que
aquele rapazinho fez a vocês?
Ah Ping deu de ombros.
— Talvez nada, respondeu anuindo. Mas
ele não se identificou, então tínhamos que dar-
lhe uma lição. Provavelmente é dos nossos
inimigos, o Ging Yu, e temos que mostrar a
eles quem é que manda aqui.
Nos seus primórdios, a Sociedade Tríade
era uma agremiação secreta chinesa, cujos
membros faziam o juramento de derrubar o
governo dos opressores estrangeiros, e
restaurar ao poder a casa governante da
China, a Dinastia Ming.
Nos dias atuais, a antiga Sociedade
Tríade encontra-se degenerada, tendo-se
subdividido em centenas de pequenos grupos,
todos alegando ser um prolongamento da
tradicional Sociedade Tríade. Na verdade, não
passam de quadrilhas de marginais, que
utilizam esse nome e os rituais da antiga
sociedade apenas para camuflar suas
atividades criminosas. No passado, o indivíduo
que quisesse filiar-se a uma das sociedades
tríades tinha que submeter-se a uma série de
rituais. Entre eles contavam-se decorar
poesias, aprender certas formas de aperto de
mão e assinaturas, e beber sangue, bem como
derramar sangue. Quando um homem entrava
para uma delas, tinha que jurar que iria seguir
seu "irmão" para sempre. Este era conhecido
como daih lo, irmão maior; e o iniciante era o
sai lo, irmão menor. E esse laço era
indissolúvel. Um candidato a membro da
Sociedade Tríade poderia pedir a um membro
efetivo dela que o deixasse "segui-lo", e assim
este se tornava seu irmão maior. Cada
quadrilha possuía uma complicada hierarquia
de deveres e posições de liderança. Alguns dos
chefes eram identificados por nomes
estranhos, e outras vezes apenas por números,
tais como 489, 438, 26 e 415. Os membros
comuns eram chamados penas de 49.
As quadrilhas espalhavam terror por toda
a Hong íong, o que facilitava a extorsão de
pagamento por proteção. A Cidade Murada era
sede perfeita para as quadrilhas. Ali operavam
dois grupos principais, geograficamente
separados por determinada rua. O Jing Yu tinha
o controle de todas as salas de venda consumo
de heroína. Também recebia o pagamento por
proteção, e explorava a prostituição no setor a
este da Rua Principal. Mas os quadrilheiros
mais temidos eram os da 14K. Esse nome
deriva do fato de ela haver sido organizada na
Rua Wah, n.° 14, em Tantão, com o objetivo de
ajudar a causa da China Nacionalista. Dizia-se
que ela contava com cem mil membros em
todo o mundo, e mais sessenta mil só em iong
Kong, e que controlava o comércio do ópio, os
antros de jogatina, filmes pornográficos,
bordéis de crianças e outros negócios, no setor
oeste da cidade.
Seu comando era descentralizado, e a
quadrilha dele cada área tinha seu próprio
dirigente, que cuidava los interesses dela no
local. Mas todos conheciam os chefes
principais, e os membros das quadrilhas-irmãs
eram chamadas de "primos". Assim, em
questão de minutos, um grupo tríade poderia
chamar a si dezenas de "irmãos", e, caso
necessário, podia organizar ama briga em
poucas horas, envolvendo centenas de
quadrilheiros.
Enquanto as pessoas não ligadas às
tríades andaram pela cidade "rezando" para
não serem detidas, até mesmo os que
pertenciam a Ging Yu ou 14K, quando saíam
dela, só caminhavam em seu próprio território.
Eu, porém, andava por todas as ruas indis-
tintamente, chegando a conhecer o lugar
melhor que os próprios marginais, que se
achavam restritos a apenas um lado da cidade.
Os quadrilheiros que conheci observavam
aquela velha máxima de que existe honra até
mesmo entre ladrões. Em troca de uma
obediência irrestrita por parte do seu sai lo, o
daih lo lhe prometia proteção. Se um irmão
menor fosse preso, o seu irmão maior tinha
que tomar providências, para que na prisão ele
recebesse comida, drogas e proteção, embora
fizessem restrições ao uso de drogas, já que
sua ausência diminuía sua utilidade para a
quadrilha. E foi minha preocupação pelos
viciados que mais tarde me aproximou de
alguns líderes tríades, levando-me a tomar chá
com eles.
Não fiquei espantada ao saber que
Christopher iria ser iniciado numa 14K. Como
poderia andar por ali, se não pertencesse a
uma quadrilha?
Ele freqüentara o clubinho com certa
assiduidade, mas, depois de certo tempo
passou a me evitar. Todas as vezes que
tentava aproximar-me dele, desaparecia.
Começou a jogar e estava sempre em compa-
nhia de marginais. Contudo, não queria que eu
visse o que estava fazendo. Chegou o dia em
que o apanhei. Encontramo-nos frente a frente,
num beco muito estreito, e ele não poderia dar
para trás. Estava encurralado. Eu carregava
meu pesado acordeon e pedi-lhe que
carregasse o instrumento para mim, à oficina
de consertos. E enquanto caminhávamos, eu ia
conversando com ele.
— Christopher, em sua opinião, por que
Jesus veio ao mundo?
Ele não respondeu.
— Foi por causa dos ricos ou por causa
dos pobres? continuei.
— Por causa dos pobres, disse.
— Mas ele ama os bons ou os maus?
indaguei.
— Jesus ama os bons, Sr.ta Poon.
— Errado. Sabe de uma coisa? Se Jesus
vivesse no mundo hoje, estaria aqui na Cidade
Murada, sentado naqueles engradados de
laranjas, conversando com as prostitutas e
cáftens, bem lá na lama.
Não é correto dizer a um chinês que ele
está errado, mas eu estava ansiosa para que
ele compreendesse o que eu queria comunicar-
lhe. Não era hora de me importar com
convenções.
— Era nas ruas que ele passava grande
parte do tempo, conversando com criminosos
conhecidos, e ia numa igreja arrumadinha e
limpa, esperando que os bonzinhos fossem lá.
— E por que ele fez isto? perguntou
incrédulo.
— Porque foi para isso que veio, respondi
lentamente. Não foi para salvar os bonzinhos,
mas para salvar os maus, os perdidos.
De repente Christopher parou. Estava
pasmado com o que ouvira. Aquela altura,
tínhamos saído da idade Murada e passávamos
pela rua do mercado, ele disse que queria
ouvir mais, e então deixamos o acordeon na
oficina ali perto e nos sentamos num banco
público. Narrei-lhe a história de Naamã, o
general que fora atacado de lepra, e concluí:
— É muito simples. A única coisa a fazer
é buscar Jesus e ser purificado.
Os veículos passavam por nós aos
roncos; o povo conversava em altos brados,
como se faz em Hong Kong. Um avião desceu
para aterrissar. Mas hristopher não estava
escutando nada. Tinha os olhos fechados e
falava baixinho. Estava confessando a Jesus
que falhara em sua vida, e lhe pedia que o
purificasse. E sentado ali à beira da rua
poeirenta e barulhenta, ele se tornou crente.
No sábado seguinte, ele apareceu no
clubinho e stemunhou diante dos outros,
dizendo que na semana anterior não cria em
Jesus, mas agora o conhecia, na palavra foi
acolhida, a princípio, com silêncio. Ias logo
começaram as chacotas e risos. Rapazes de
família ruim simplesmente não se tornavam
crentes, isso era para moços bons, educados,
classe média. Ele devia estar brincando.
Mas não estava. E recusou-se a continuar
com sua iniciação na quadrilha. Já estava com
o livro de regulamentos que deveria
memorizar, mas devolveu-. Uma coisa dessas
nunca acontecera antes, no meio aquela
gente. E sua decisão foi uma revelação para
mim também. Jesus estava em Hong Kong
também, tanto quanto estava na Inglaterra; e
aqueles que o buscassem poderiam encontrá-
lo.
A transformação que se operou em
Christopher foi notável. Passou a trabalhar tão
bem na fábrica, que foi promovido. Passava
todo o tempo livre no clubinho, e aos domingos
ia aos cultos na igreja.
Continuei a orar em Espírito em minha
devoção particular, e outros rapazes como
Christopher também fizeram a decisão de
converter-se a Cristo. Reuníamos para estudar
a Bíblia e orar, muitas vezes, e um dia, quando
estávamos orando, um deles recebeu uma
mensagem em línguas.
Esperamos uns instantes, e daí a pouco
Christopher começou a dar a interpretação, em
cântico.
8
Perseguindo o Dragão
Uma noite, quando saía daquela cidade
escura, pus-me a pensar longamente. A vida
que estava levando era muito estranha, pois
nunca me deitava ou cantava em horários
regulares, e ainda tinha que conversar com
Deus o tempo todo.
"Graças a Deus não sou casada", orei.
"Graças a Jesus sou livre, para cuidar dos filhos
de outras pessoas."
Naquela época estava morando num
apartamento m uma jovem de nome
Stephanie, e ela nunca se preocupava com os
horários em que eu chegava em casa. Já era
bem mais de meia-noite, quando tomei o
micro-ônibus, para voltar.
Em dado momento, interrompi minha
oração, pus minha atenção se voltou para um
rapazinho de aparência horrível, um esqueleto
ambulante, de uns quinze anos. As órbitas
oculares eram escuras, imensa, no rosto
acinzentado. Procurei lembrar onde o vira
antes. Afinal, recordei de onde o conhecia.
Fora há cinco anos, quando começara a ir
à cidade Murada. Havia uma grande casa de
chá nas imediações, e aquele garotinho ficava
por ali, esperando táxis para abrir a porta e
receber uma pequena gorjeta. Tinha um
aspecto muito doente, e era óbvio que estava
vivendo pelas ruas. Como ainda não sabia lar
chinês, pedi aos conhecidos chineses que
escrevessem bilhetes para ele, oferecendo-me
para ajudalo. O que eu não sabia era que o
menino se viciara em drogas por volta dos dez
anos. Ele nunca vinha aos encontros que
marcava, mas continuei a orar por ele.
E ali estava ele de novo. Agradeci a Deus
por aproximá-lo novamente de mim.
Felizmente já sabia falar chinês. Ele saltou do
veículo num setor da cidade onde a vida
noturna era movimentada. Saltei também e o
segui. Bati-lhe de leve no ombro e me
apresentei, convidando-o para comermos
alguma coisa. O garoto ficou bastante
constrangido. Enquanto lanchávamos, notei
que se sentia cada vez mais inquieto. Percebia-
se claramente que estava precisando de uma
dose da droga. Sua mente já estava muito
prejudicada pela quantidade de heroína que
consumira. Ele não estava entendendo nada
do que lhe dizia. Portanto, não adiantava falar
com Ah Tsoi sobre Jesus. Calculei que, se
resolvêssemos primeiro o problema de sua
dependência da droga, sua mente se aclararia,
e poderia falar-lhe de Cristo.
Nas semanas que se seguiram, encontrei-
me com ele várias vezes, a qualquer hora do
dia ou da noite. Nunca dormia no mesmo
lugar, e eu estava receosa de perder o contato
com ele, caso fosse preso. Com todas aquelas
marcas de picada pelo braço, era um alvo fácil
para a polícia. E o que era pior, soube que ele
estava assaltando pessoas na rua, para
comprar a droga.
Mas eu estava obcecada pela idéia de
salvá-lo. Quanto mais via aquele garoto de
vida miserável, mais gostava dele. Afinal, o
Pastor Chan concordou em recebê-lo no seu
Centro Cristão de Reabilitação. Era a resposta
às minhas orações. Como ele teria que esperar
algum tempo antes de ir para o centro,
comecei a dar-lhe dinheiro. Estava um pouco
em dúvida quanto a essa atitude, mas ele
precisava do dinheiro para comprar heroína. Se
não lhe desse, seria forçado a roubar. Assim
me convenci de que estava agindo de modo
certo.
Por fim, chegou o dia em que ele deveria
seguir para o centro. Comprara-lhe algumas
roupas novas, sandálias e calção de banho,
pois o centro ficava próximo de uma praia.
Embrulhando aquelas coisas, sentia uma
enorme ternura por Ah Tsoi. Eu lhe dissera para
passar em meu apartamento e tomar um
banho, antes de ir para o centro.
Duas horas depois do momento em que
deveria ter chegado, ainda não havia o menor
sinal dele. Quando eu já estava começando a
achar que não viria mais, ele apareceu. Estava
imundo, mas não havia mais tempo para o
banho. Ele revelava uma atitude muito hostil,
negativa; mesmo assim fomos, e então o
entreguei ao Pastor Chan.
Fui deitar-me e dormi quase vinte horas
seguidas. Havia semanas que não dormia com
tranqüilidade. Estava exausta, mas
grandemente aliviada. Graças a Deus, Ah Tsoi
achava-se nas mãos de outra pessoa e era
problema dela. O pastor poderia falar-lhe de
Jesus e ajudá-lo a crescer. E eu poderia
procurar o próximo...
Fui despertada por um telefonema. Ah
Tsoi fugira do centro. Não suportara as dores
da desintoxicação forçada. Os outros tentaram
convencê-lo a orar, mas recusou-se, e, à noite,
escapou. O pessoal do centro tentou encontrá-
lo para convencê-lo a voltar, mas ele se
recusava terminantemente a retornar.
Senti como se uma parte de meu ser
houvesse morrido. Sentia-me muito abatida, e
deitei-me no chão e chorei. Deitada ali fiquei a
pensar que aquilo era o fim de tudo. Não sabia
o que mais poderia ter feito para socorrê-lo. Eu
dera a Ah Tsoi meu tempo, carinho, dinheiro,
alimento, e tentara falar-lhe de Jesus. Mas
nada disso adiantara. Eu fracassara.
Não estava zangada com Deus, mas
sentia-me muito decepcionada e confusa com
tudo que acontecera. Não entendia por que ele
permitira que eu me aproximasse de Ah Tsoi,
se aquilo não ia dar em nada. Afinal orei:
— Senhor, não quero mais saber desse
tipo de coisa, por favor. Não querer lidar com
viciados, pois não suporto isso. Eu só tinha
amor para dar a uma pessoa, e dei-o todo a
ele, mas não foi suficiente. Acho que não tenho
mais nada para dar.
No dia seguinte, pela manhã, peguei o
ônibus para ir à aula de chinês. Acomodei-me
como pude no meio de outros quarenta e
tantos passageiros de pé, quando, com o canto
do olho, avistei um rapazinho que era
deficiente mental. Virei o rosto, pois não queria
olhar para ele. E meu olhos deram com outro
viciado em drogas. A única coisa a fazer então
era fechá-los.
"Senhor", orei, "não estou olhando,
porque não desejo passar por todo aquele
sofrimento outra vez. Eu pensava que tu irias
ajudar-me, mas não deu certo. E por que não?"
Lembrei-me da época em que começara
a ver e a reconhecer viciados. Em uma rua,
havia mais de cem, inalando heroína
abertamente. Naquela ocasião, eu dissera a
Deus: "Valeria a pena dar minha vida por essa
gente, se tu me usasses para socorrê-los."
Aos poucos fui-me refazendo do
sofrimento que tivera por causa de Ah Tsoi, e
então comecei a ver os erros que cometera no
trato com ele. Tentara dar-lhe tudo que tinha,
mas estava tentando salvá-lo com minhas
próprias forças. Queria vê-lo livre das drogas,
mas ele não se achava tão desesperado, que
desejasse a libertação.
Eu não tivera coragem de forçá-lo a
libertar-se do vício. (Isso aconteceu antes de
eu haver presenciado a libertação de Winson,
operada pelo poder de Deus.) Estava
convencida de que Ah Tsoi precisava dos
cuidados de uma pessoa mais tarimbada.
Vendo que nem isso dera certo, sentira-me
derrotada.
Algum tempo depois, o Pastor Chan
convidou-me a tomar chá com ele. Ele
palmilhara sozinho aquela estrada. Com
determinação e coragem, criara o seu centro
de reabilitação de viciados, nos Novos Territó-
rios. Uma vez que o viciado era liberto da
droga, ficava ali um ano e meio, recebendo
carinho e disciplina, e assim podia crescer em
Cristo. Muitos dos que passaram pelo seu
centro haviam-se tornado obreiros cristãos. E
os rapazes de lá eram os únicos que eu
conhecia que não voltavam à droga. E ele fora
edificando sua obra aos poucos, com muitas
experiências e sofrimento.
Os assistentes sociais são instruídos a
não se envolverem emocionalmente com
aqueles com quem trabalham, mas eu sabia
que, se não tivesse tido uma aproximação
maior com as pessoas com quem trabalhava,
não teria permanecido. O fracasso no caso de
Ah Tsoi ensinou-me que não tinha capacidade
suficiente para pegar uma tarefa assim,
simplesmente porque era uma obra meritória.
Mas eu sabia que meus recursos próprios
estavam esgotados.
Entretanto, apesar de haver orado muito,
pedindo a Deus que não me aparecessem mais
viciados, aquilo não foi o fim. Descobri que
poderia voltar a cuidar deles, com o amor de
Deus.
Conhecendo melhor as quadrilhas e seu
funcionamento, cheguei à conclusão de que
havia tantos viciados entre eles, porque a
droga era muito barata e de fácil obtenção.
Uma noite entrei numa das salas de
comércio e consumo de heroína. Era numa
espécie de coberta, nos arredores da cidade,
mas funcionava com o conhecimento da
polícia. Estava imunda. Havia algumas mesas
longas, às quais estavam sentadas pessoas
que mais lembravam figuras
despersonalizadas. Senti como se estivesse
entrando num banquete diabólico, num jantar
estranho e silencioso. Pela quantia de cin-
qüenta centavos, um "garçon" fornecia os
pavios feitos de papel higiênico retorcido, a
folha de estanho e o funil de papelão
necessário para se "perseguir o dragão". São
poucos os viciados chineses que injetam he-
roína. Têm medo de tomar uma dose
excessiva.
Entre os cinqüenta e poucos presentes
ali, inalando a droga em seu festim macabro,
achava-se um rapazinho de uns quatorze anos.
Sua pele era pálida e sem vida, e suas forças
estavam esgotadas. A namorada, que devia ter
mais ou menos a mesma idade, estava
sentada ao seu lado', amparando-o nos braços,
enquanto ele aspirava aquele veneno. Então
me lembrei de que a moça tinha que comerciar
com seu corpo, a fim de pagar a droga para o
rapaz. Olhei os outros presentes que também
sustentavam o hábito pelo mesmo processo, a
menos que roubassem. Era uma cena
degradante, mas sentia-me fascinada e atraída
por aquilo. Senti a força de atração da droga,
que todo viciado em potencial conhece muito
bem, e que desafia toda a lógica. Ele sabe que
ela destrói, que leva a uma dependência total
e à depravação, mas ainda assim quer
experimentá-la. E depois que a experimenta
uma vez, sente-se forçado a continuar nisso,
até ficar acorrentado a ela.
Todo viciado tem um relacionamento de
amor e ódio com a droga. Na mente, ele a
detesta, mas seu corpo a deseja fortemente, e
atraiçoa a mente, fazendo-a crer que a droga é
sua salvação. Nenhum deles percebe quando
cruzou a fronteira que separa a condição de
simples curioso, que "brinca" com as drogas,
para a de viciado. Na primeira vez em que um
indivícuo toma a droga, ele vomita, mas depois
volta a tomá-la, só para ver se já consegue
sentir alguma coisa. Outro, talvez, experimente
poucos efeitos negativos, e fica pensando que
pode tomá-la sem problemas. Começa com
doses pequenas, mas daí a pouco tem
necessidade de aumentá-las. E vai tomando
doses cada vez maiores até morrer ou ser
preso.
Senti o poder de atração da droga. Era
muito forte. Era demoníaco.
No dia em que Winson veio ao clubinho e
foi liberto do vício, Deus me revelou que o
dragão podia ser derrotado. Naquele momento,
percebi que a experiência por ele vivida
poderia repetir-se em outros rapazes que se
convertessem. Pouco depois, Ah Ping disse-me
que um amigo seu, um viciado, desejava ir ao
nosso acampamento no verão, e aceitei-o
prontamente. Ah Ming era da Ilha de Hong
Kong, um quadrilheiro de grande influência ali.
Conhecemo-nos na balsa que nos conduzia à
Ilha Lamma, onde se situava o acampamento,
mas não quis apertar-me a mão, nem
conversar.
Nos primeiros dias, eu não teria auxiliares
masculinos, embora mais tarde dois rapazes
ingleses, Tim e Nick, fossem trabalhar conosco.
Por isso, orei a Deus nos seguintes termos:
"Senhor, mande-me somente as pessoas
certas. Não permita que venham os
problemáticos."
O acampamento ficava no alto de uma
montanha, um lugar lindo e tranqüilo. A
programação era bem delineada, com horários
de dormir bastante rígidos e trabalho bem
distribuído, mas era difícil fazê-la funcionar
sozinha. Eu e as poucas moças que foram
dormíamos nas barracas, enquanto os rapazes
acomodavam-se no enorme dormitório. Eu não
podia ir lá examinar os pertences deles nem
apagar as luzes. Mas podia orar a Deus, para
que barrasse a ida de problemáticos.
Ah Ming surgiu à porta do dormitório e
me viu sentada do lado de fora, em meio à
escuridão. Não tinha contado com isso.
— Éééé... eu... éeéé... gosto de olhar as
estrelas, disse improvisando uma desculpa.
— É, concordei. Eu também. São muito
lindas, não são?
Ficamos ali sentados várias horas,
mantendo uma conversa educada. Estava claro
que ele estava ansioso para dar uma saída, e
tomar sua droga. Afinal, fui-me deitar e ele
dirigiu-se para o outro lado do morro para
tomar sua heroína.
Eu pedira a Deus que impedisse a ida de
rapazes problemáticos, então tinha de concluir
que todos os que tinham ido haviam sido
enviados por ele. Os missionários haviam-me
dito que o melhor modo de se fundar uma
igreja era trabalhar com um converso de cada
vez. Depois que esse fosse crente e estivesse
bem firme, então poderia trabalhar com outro.
Eu fizera exatamente o contrário, e agora
estava com um dormitório cheio de
quadrilheiros. Comecei a pensar que talvez os
missionários tivessem razão.
Dois dias depois, Ah Ming havia esgotado
seu estoque de drogas. Mandou que um rapaz
viesse dizer-me que tinham um problema
urgente a resolver, e portanto iriam embora.
Como estávamos realizando o culto matutino,
três deles fugiram.
Pedi a Nick que fosse atrás deles. Aqueles
ardilosos rapazes haviam elaborado uma boa
explicação para sua fuga, mas felizmente Nick
não sabia falar chinês e continuou atrás deles.
Subiram e desceram três morros, sempre
escutando aquele inglês dizendo
repetidamente:
— Vocês têm que voltar! Jesus os ama!
Mas o desejo deles pela droga era tão
forte, que subiriam cem morros, se fosse
preciso, para chegar à balsa e aos
fornecedores da heroína.
Enquanto isso, lá no acampamento,
estávamos orando para que voltassem.
De repente, sem saber bem por que
estavam agindo assim, os três rapazes
estacaram. Viraram-se e começaram a voltar.
Quando reapareceram com Nick, pareciam
bastante encabulados. Não sabiam explicar,
nem a si mesmos, aquela mudança de direção.
E quando sugeri a Ah Ming que tivéssemos
uma conversa, ele fez que sim.
Caía uma chuva forte e entramos numa
barraca pequena. Ah Ming estava muito
inquieto, incomodado com a situação, mas não
podia sair da barraca por causa da chuvarada.
— Lamento muito, Ah Ming, principiei,
você estar-se sentindo tão mal, mas queria
dizer-lhe uma coisa que poderá ser-lhe muito
útil.
Desenhei três cruzes no chão.
— Vamos imaginar que podemos
enxergar todos os erros que uma pessoa
praticou. Vamos pegar este lap-sap (lixo) para
representar esses pecados, continuei, pegando
um pouquinho de terra, tampinhas de garrafa
e pedaços de papel que havia por ali. Quando
Jesus foi crucificado, de cada lado dele
também foram crucificados dois homens. Eram
ladroes e talvez até já tivessem matado
alguém.
Coloquei um montinho de lixo sobre as
cruzes laterais, deixando vazia a de Jesus.
— Sabe por que essa do meio está sem
lap-sap? indaguei.
— Sei. Jesus nunca fez nada errado. Não
tinha pecado.
Apontando para uma das outras cruzes,
continuei:
"— Ei, então você é o Cristo, não é?"
disse o homem daqui em tom de ironia. "Então
prove. Chame seus capangas para salvá-lo, e
salve-nos também."
"— Você não devia falar assim", objetou o
ladrão da cruz da direita. "Nós erramos,
merecemos morrer. Mas esse homem não fez
nada", e depois virou-se para Jesus e disse:
"Senhor, lembre-se de mim quando chegar ao
seu reino."
"— Hoje você estará comigo no paraíso",
respondeu Jesus.
E ao dizer isso, peguei o montinho de
terra da cruz da direita e coloquei-o sobre a de
Jesus.
— Você está com vontade de vomitar?
indaguei. Notara que a fisionomia de Ah Ming
estava esverdeada, e que ele tremia.
— Pois bem, Jesus sentiu a mesma coisa.
Só que foi muito pior, pois além de ficar com
os pecados daquele homem, recebeu todos os
pecados e as dores de todas as pessoas do
mundo, para que hoje não tivéssemos pecados
nem dores.
Ficamos os dois olhando para o chão,
durante alguns minutos, fitando a mensagem
ali exposta. Depois eu disse:
— O ladrão desse lado foi perdoado e
hoje está vivendo com Deus. Mas por que o
outro não foi?
— Porque um creu e o outro não,
respondeu Ah Ming.
— E é isso que você precisa fazer,
repliquei. Se você quiser entregar suas dores a
Jesus, ele poderá removê-las agora mesmo.
Você quer?
Ah Ming não estava querendo muito.
Seus olhos lacrimejavam, e ele comprimia o
estômago com as mãos. Ainda estava
chovendo, e ele se achava naquela barraca.
Afinal, não conseguiu suportar mais.
— Suponhamos, disse ele com um suspiro
resignado, suponhamos que eu faça uma
tentativa.
Isso bastava. Então, fez uma oração clara
pedindo a Jesus que removesse a dor e todos
os seus pecados, para que pudesse começar
uma nova vida. Naquele momento parou de
chover.
Meus amigos ingleses vieram até a
barraca, e impusemos as mãos sobre Ah Ming.
Oramos, e ele recebeu o dom do Espírito
Santo.
Uma semana depois, quando
regressávamos do acampamento, o rapaz me
relatou como Deus atendera às nossas orações
naquela noite. Ele fora deitar-se ainda um
pouco confuso, e tivera um sonho bastante
estranho. Sonhara que se achava deitado
numa cama de madeira, no alto da montanha.
Ventava muito, e ele ouviu alguém batendo à
porta. Como estava-se sentindo muito mal,
devido à carência da droga, não foi atender.
Mas a pessoa bateu novamente, e ele foi ver
quem era. Viu um homem com uma vela na
mão. Ele voltou a deitar-se, pois estava de
muito mau humor. Na terceira vez que o
homem bateu, Ah Ming pensou: "Coitado desse
homem, não deve ter para onde ir." Abriu a
porta, e foi deitar-se de novo. O outro entrou
no barraco e, aproximando-se da cama,
colocou a vela sobre ela. Em seguida, disse a
Ah Ming que se sentasse, e impôs as mãos
sobre ele com muito carinho. As dores
desapareceram, e o rapaz nunca mais sentiu
nada.
O apito estava trilando. Todas as manhãs,
os rapazes tinham que fazer a ginástica
costumeira. Saltaram todos da cama. Ah Ming
também se levantou, mas estava apalpando o
leito. Ah Ping perguntou-lhe o que estava
fazendo.
— Estou procurando as gotas de parafina
da vela, replicou.
O sonho lhe parecera tão real, que ele
tinha certeza de que Jesus estivera ali de
verdade. Naquele mesmo dia, foi batizado no
mar.
Embora Ah Ming tivesse um emprego nos
estaleiros, ele próprio não fazia nada. Ficava
deitado o tempo todo, enquanto seus "irmãos
menores" lhe levavam heroína. No primeiro dia
de serviço, após o acampamento, foi orando
pela balsa que atravessava a baía. Estava tão
imerso na oração, que nem notou que alguém
havia-lhe furtado as sandálias. Mas seguiu em
frente, para o trabalho, sem se deixar abater, e
entrou pelo portão descalço. Logo notou que
um grupo de uma quadrilha rival vinha em sua
direção armado para a luta. Instintivamente,
pegou a primeira arma que viu: dois pesados
mourões de ferro. No acampamento, ele já
havia dado instruções a seus irmãos com
relação àquela briga. Vendo que Ah Ming se
preparava para ir ao ataque, eles também
pegaram em facões. De repente, o rapaz se
lembrou de uma coisa.
— Epa! Eu vim pela balsa orando para ter
paz! Não posso brigar com essa gente.
Largou as armas que pegara e, sentando-
se no chão, pôs-se a orar novamente. Instantes
depois, ergueu os olhos e viu que seus
inimigos o cercavam, olhando-o com ar
intrigado.
— O que você está fazendo? indagou o
chefe deles.
— Orando. Agora sou crente. Quer saber
como foi?
Responderam que sim, completamente
espantados, e Ah Ming pôs-se a narrar-lhes o
que sucedera. Os outros ficaram tão
impressionados com o fato, que alguns
passaram a assistir às nossas reuniões.
Desse modo nosso clubinho foi crescendo
mais e mais. Eu ainda não conhecia
pessoalmente o afamado Goko, mas seu
"irmão grandalhão" ia ali muitas vezes.
Algumas semanas depois do
acampamento, estávamos orando certo dia,'
quando um dos rapazes teve uma visão. Como
todos os que haviam crido em Cristo tinham
recebido também o Espírito Santo, não nos
surpreendíamos com as maravilhas que ele
operava. Na visão, todos estávamos descendo
a rua, enfileirados, cantando e dançando. Mas
apenas doze se dispuseram a ir. Os outros se
desculparam.
— Poon Siu Jeh, nós moramos neste lugar.
Um dos corinhos de que mais
gostávamos no clubinho era "Não tenho prata
nem ouro". Um dos moços tocava violão.
Peguei meu acordeon, uns dois ou três
pandeiros, e os outros doze vieram atrás de
nós, enfileirados. Quando chegávamos ao
verso que dizia "andando e saltando e
louvando a Deus", todos nós dávamos alguns
pulos.
Muitos dos comércios do vício naquela
hora tiveram de parar. Ao passarmos pelo
cinema pornográfico e pelas salas de jogo, os
homens saíram para ver o que estava
acontecendo. Muitas daquelas pessoas já
tinham visto os crentes distribuindo
papeizinhos pelas ruas, mas nunca os tinham
visto cantar e dançar por ali.
Depois de passar pelos antros de ópio,
chegamos às duas maiores salas de comércio
de heroína. Ali paramos, e Ah Ming começou a
pregar. Dentro de uma delas um jovem alto,
chamado Ah Mo, acabara de injetar em si uma
dose. Ele pouco ou nenhum prazer alcançava
mais com a droga, pois nem bem acabava de
tomar uma dose, e já precisava pensar em
como obter dinheiro para a próxima. Já estava
maquinando o próximo assalto, quando
escutou aquela cantoria lá fora. Saindo de lá,
ficou espantado de ver seu amigo Ah Ming
contando como Jesus havia transformado sua
vida.
Realmente acontecera uma coisa
maravilhosa com o rapaz, pois umas três
semanas antes os dois tinham tomado heroína
juntos. Esquecendo sua intenção de praticar
um assalto, acompanhou a fileira de crentes
até o clubinho. Ali pôs-se a escutar
maravilhado as palavras dos moços que lhe
diziam como Jesus poderia transformar-lhe
toda a vida. Mas ele abanou a cabeça, e pediu
para falar comigo em particular.
— Não posso ser crente, Sr.ta Poon. Matei
minha esposa.
E me narrou a trágica história de sua
ascensão na quadrilha pela fama de bom
brigador. Ele costumava jogar pessoas para
fora de boates e bares nos mais chiques
setores da cidade. Em pouco tempo, tinha o
controle de um pequeno império. Vivia com
uma recepcionista de um dancing, mas tinha
mais três amantes. Quando foi preso, a
recepcionista o visitou na cadeia. Ela o amava
realmente. Mas depois que foi solto, continuou
a procurar as outras mulheres. Ela começou a
tomar drogas, e, certa vez, foi levada quase à
morte para o hospital, onde fez lavagem
estomacal. Mas Ah Mo não largou sua vida de
libertinagem, e ela tomou outra dose
excessiva. Na terceira vez em que o fez,
morreu no hospital. Ele ficou profundamente
abalado com o senso de culpa, e, num impulso
de autopunição, entregou-se às drogas
também.
Quando eu lhe disse que poderia
encontrar perdão em Cristo, seus olhos
ganharam nova esperança. Orou recebendo a
Jesus e saiu dali pisando nas nuvens. Alguns
dos velhos companheiros que se achavam lá
fora, no beco, zombaram dele ao ver a
expressão de seu rosto.
— Ele ficou religioso, gente, diziam. Ficou
religioso.
Mais tarde Ah Mo me disse:
— Não me importei com aquilo, pois meu
coração estava leve.
Eu presumira que, como Winson e Ah
Ming tinham sido curados milagrosamente do
vício, todos os que cressem o seriam também.
Mas Ah Mo não o foi, e continuou a tomar
drogas.
Pedi ao Pastor Chan que o recebesse em
seu centro, mas não havia vagas, e ele teve de
esperar várias semanas.
— Glória a Deus! disse Ah Mo alguns dias
depois, quando veio para o culto de domingo.
Essa semana não precisei assaltar ninguém
para comprar minha heroína. Arranjei um
emprego.
Quando fiquei sabendo qual era o
emprego, eu mesma não consegui dar graças
a Deus. Ele estava trabalhando em uma das
salas como tin-man-toi (metereologista). Todas
as noites, tinha que ficar sentado em uma das
entradas da Cidade Murada. Em seu maço de
cigarros havia um plugue elétrico. Se visse um
grupo de policiais aproximando-se, ou um
investigador do departamento de narcóticos,
ou um membro de uma quadrilha inimiga, sua
tarefa era introduzir o plugue numa tomada
que havia na muralha. Isso disparava um
alarme nas várias salas, e, quando o intruso
chegasse lá, toda a atividade estaria
paralisada.
Para fazer este serviço, Ah Mo recebia
cerca de HK$ 15,00 dólares diários, que eram
suficientes para a heroína, mas não para o
arroz.
Todos os dias eu lhe dava um pouco de
alimento. Aprendera que não devia dar
dinheiro. Ele dormia num beco atrás dos
banheiros públicos de Kowloon, pagando para
isso a quantia de HK$ 15,00 dólares a outro
homem que se arvorara em "dono" da rua.
Quase todas as vezes em que ia lá, eu me
sentava ali e orava com ele, embora
geralmente estivesse sonolento.
Dei graças a Deus quando acabou-se
aquele trabalho de vigilante. Ah Mo foi para o
centro de reabilitação, libertou-se da droga, e,
em um mês, engordou quase dez quilos. Mais
um dragão beijara a lona.
Após a cura miraculosa de Winson,
continuei mandando recados a Goko. Ia aos
antros de jogo e deixava ali meu nome;
conversei com a esposa dele. Afinal, concordou
em falar comigo. Winson chegou com um
recado, dizendo que ele me convidava para
tomar chá no Restaurante Fairy, fora da
cidade. Enquanto me encaminhava para lá,
fiquei a imaginar como seria Goko. Sabia que
era alto e forte, e que fora um grande jogador
de futebol antes de se entregar ao ópio. O fato
de ser viciado fazia um forte contraste com o
terror que seu nome inspirava. Era um dos
mais velhos chefes das quadrilhas, e
orgulhava-se de observar bem as leis do seu
mundo, como, por exemplo, encarregar-se dos
funerais de um companheiro assassinado.
Ele me reconheceu primeiro, já que eu
era a única ocidental a entrar no restaurante.
Era um homem de uns trinta e cinco anos,
muito bem vestido, e achava-se sentado
sozinho. Fez um gesto cortês, indicando que
me sentasse. Olhando-o de frente pela
primeira vez, pude perceber que o ópio deixara
profundas marcas de dissipação em seu rosto
forte. Sorriu, exibindo dentes estragados e
escurecidos pela droga.
Educadamente, aquele impiedoso chefe
da corrupção indagou-me o que iria pedir.
Entregamo-nos a uma conversa agradável, até
que não agüentei mais e disse abruptamente:
— Não precisa ser tão educado comigo.
Vamos parar com essa hipocrisia, por favor.
Não temos a mínima simpatia um pelo outro.
Por que me trata com tanta gentileza?
Ele pensou por uns instantes.
— É que creio que você gosta de meus
"irmãos" assim como eu gosto.
E ele não estava falando por falar. Era
conhecido de todos o cuidado que tinha por
seus seguidores.
— É, realmente gosto deles, concordei.
Mas detesto tudo que você faz, e as coisas em
que está envolvido.
Então pôs de lado as gentilezas e passou
a falar abertamente.
— Poon Siu Jeh, tanto eu como você
conhecemos o poder. Eu o utilizo desse jeito (e
cerrou os punhos), e você desse jeito (apontou
o coração). Você possui um poder que não
tenho. Não quero meus "irmãos" amarrados à
heroína, mas não consigo fazer com que
larguem. Mas acho que Jesus consegue.
Fiquei maravilhada ao pensar nas
implicações do que ele acabara de dizer.
— Por isso, continuou ele, resolvi entregar
todos os viciados a você.
— Não, repliquei prontamente. Já sei o
que você quer. Quer que Jesus os liberte das
drogas, para que voltem a lutar na quadrilha.
Mas os cristãos não podem servir a dois
senhores. Eles têm que seguir ou a Cristo ou a
você. Nós dois estamos seguindo rumos
diferentes. Não tenho a menor intenção de
ajudar seus "irmãos" a se libertarem da droga,
simplesmente para você pegá-los de volta.
Tenho certeza de que, se voltarem a seguir
você, retornarão ao vício também.
— Está bem, então, disse ele erguendo a
cabeça lentamente. Eu libero aqueles que
quiserem seguir a Jesus.
Mal pude acreditar no que ele estava
dizendo. Uma sociedade tríade nunca liberava
seus membros. Quando uma pessoa se unia a
uma quadrilha, era membro dela para o resto
da vida. Se alguém tentasse sair, arriscava-se
a ser severamente castigado ou até morto. E
ali estava Goko, voluntariamente, liberando
alguns de seus "irmãos".
— Sabe o que vou fazer? disse ele depois.
Vou dar-lhe todos os imprestáveis e ficar com
os bons para mim.
— Ótimo, repliquei, Jesus veio para os
imprestáveis mesmo.
E foi esse o estranho pacto que fizemos.
A partir daquele dia, Goko sempre mandava os
viciados para eu curá-los. Quando ouviu falar
do que acontecera a Johnny, ele disse:
— Vou ficar de olho em vocês. Se ele
permanecer firme uns cinco anos, eu também
terei que crer.
9
"Doenças" da Infância
Winson estava em perigo. Ele me
procurou todo animado.
— Poon Siu Jeh, tenho que dar muitas
graças a Deus. Ontem à noite, fui a uma sala
de ópio e um deles me ofereceu a droga de
graça. Tive vontade de tomar. Mas orei, e Deus
me deu forças para resistir.
Fiquei furiosa com ele.
— Isso não é razão para "louvar o
Senhor", Winson, disse-lhe. Isso é tentar a
Deus. Você nem devia ter ido lá.
Mas o problema é que Winson não tinha
outro lugar para dormir. Na época em que se
convertera, estava morando nessa sala de
ópio. Eu já lhe dissera para largar a quadrilha e
seguir a Jesus, mas na prática isso era o
mesmo que dizer: "Ide em paz, aquecei-vos e
fartai-vos", e não fazer nada para suprir suas
necessidades materiais. Tanto Winson como Ah
Ping ainda estavam envolvidos com as
quadrilhas, pelo simples fato de residirem na
Cidade Murada. Quando um "irmão" deles era
atacado, ficavam num dilema muito grande. O
primeiro impulso deles era defendê-lo. Era
muito difícil dar as costas aos amigos com
quem haviam-se criado e de quem gostavam.
Compreendi também que a mera presença
deles ali era uma aprovação às atividades das
quadrilhas.
Ah Ming também encontrou muitas
dificuldades.
— Antes de me tornar cristão, disse, eu
era bastante conhecido pela minha capacidade
de comando. Se eu dizia: "Vai", meus
seguidores iam. Se eu dizia: "Faca", eles
esfaqueavam. Nem paravam para pensar. Mas,
agora, quando eles vêm se queixar comigo,
tenho que parar e pensar. Não posso mandá-
los lutar, pois sou crente. Pela primeira vez na
vida, tenho parado para pensar no sentimento
das vítimas. E meus "irmãos" estão perdendo o
respeito por mim, e isso me magoa.
Andando pela Cidade Murada, eu estava
sempre encontrando ex-viciados e
quadrilheiros que revelavam um grande desejo
de mudar de vida. Tinham que ser retirados
dali, daquele ambiente de pecado. Mas não
havia outro lugar onde pudessem viver. Pus-me
a procurar lares ou pensões de crentes que
pudessem recebê-los, mas sempre exigiam
que eles tivessem um emprego ou
estudassem, e que pudessem dar referências
de um pastor e pagar um mês de aluguel
adiantado. E como nenhum dos recém-
convertidos que eu conhecia preenchia essas
exigências, era impossível arranjar lugar para
eles.
Eu procurara colocar um desses rapazes
em casa de cada família inglesa que eu
conhecia. Mas essa situação não foi bastante
satisfatória, pois os garotos precisavam de
maior vigilância e de um disciplina-mento mais
rígido, o que tais pessoas às vezes não podiam
dar. Além disso, a maioria delas, depois de
algum tempo, achava muito desagradável ter
um quadrilheiro em casa, mesmo sendo um
quadrilheiro convertido.
Mary Taylor rompeu em lágrimas na
primeira vez que viu nosso apartamento da
Rua Lung Kong. É verdade que as paredes
estavam rachadas, a ponto de desmoronar; no
telhado havia um grande rombo, e a luz não
estava ligada. No entanto, para mim era um
presente do céu. Havíamos orado pedindo a
Deus um lugar onde pudesse abrigar minhas
ovelhas, e esse era o lugar.
Encontrei esse apartamento quando
estava andando nas vizinhanças da Cidade
Murada, indagando se ali havia cômodos para
alugar. Tinha mais de trezentos metros de área
ao todo, e havia uma escada que dava para
um terraço que fora parcialmente recoberto
com folhas de zinco ondulado, e assim era um
quarto a mais.
Fiquei tão empolgada quando o vi, que
enxerguei apenas as possibilidades. Mas Mary,
sendo mais prática, via apenas as falhas dele.
Os rapazes da Cidade Murada nos ajudaram a
fazer os reparos necessários, contribuindo com
suas habilidades, ou mesmo sem elas.
Baseadas na premissa de que o serviço
sai com mais rapidez se o interessado se acha
presente, eu e Mary nos mudamos para lá,
acomodando-nos entre montes de entulho,
sem luz e com um encanamento de água não
muito confiável. Uma das grandes vantagens
era o jardim do terraço, depois que removemos
o lixo que ali havia e plantamos begónias,
cactus e trepadeiras. Colocamos a trepadeira
de forma a vedar a vista à casa do outro lado
da rua.
Era então hora de resolver se iria receber
ali rapazes ou moças, já que tantos estavam
desabrigados. Se recebesse os rapazes, o que
não era muito aconselhável visto ser eu
solteira, seria necessário recusar as moças.
Mas a chance de opção foi-me tirada das
mãos, quando Ah Ping e Ah Keung tiveram de
sair da casa que eu arranjara para morarem, e
não tinham mais para onde ir, a não ser a
Cidade Murada ou nosso apartamento da Rua
Lung Kong.
Nossa família foi aumentada com a
chegada de Joseph, o antigo presidente de
nosso clubinho. Winson também largou a sala
de ópio e passou a morar conosco. Tivemos
que arranjar um jeito de Ah Ping ir morar com
alguns amigos. E foi assim que criamos uma
comunidade cristã, para auxiliar os rapazes no
seu crescimento espiritual.
Eu me encarregava de muita coisa.
Cozinhava, comprava roupas e alimento para
os rapazes, cuidava da casa, arranjava escola
ou emprego para eles. Também abríamos o
clubinho quase todas as noites.
Quando finalmente me deitava para
dormir, era acordada por viciados que queriam
ouvir falar de Jesus. Prostitutas me ligavam da
delegacia; detetives vinham à nossa porta
procurando informações, e juízes me enviavam
certos casos, pois nossa casa era uma das
poucas que recebiam delinqüentes.
Afinal, nosso apartamento acabou sendo
misto. Uma noite ouvi uma batida à porta.
Quando abri, vi uma mocinha com um bebê
num dos braços e uma mala enorme na outra
mão. Atrás dela estavam seu irmão e duas
irmãzinhas menores.
— Poon Siu Jeh, murmurou ela. Viemos
morar com você.
Eu conhecera aquelas crianças havia três
meses e tivera muitos contatos com a família.
A história da família Chung era de estarrecer.
Moravam num quartinho minúsculo onde só
havia uma cama de casal. O teto era um
pedaço de linóleo que, quando chovia, ficava
cheio de água e abaulado no meio. Era nessa
cama que as crianças aprendiam a andar;
dormiam nela, cozinhavam nela, brincavam e
faziam os deveres de casa nela. Todos os cinco
eram muito acanhados, e quando eu ia visitá-
los, viravam-se para a parede, ignorando
minha presença.
Nunca os vi comer nada a não ser
congee, uma espécie de mingau de arroz
cozido em água, porque o infeliz pai gastava
tudo que tinha em heroína e não dava à família
nenhum sustento. O único dinheiro que
entrava ali era a Sr.a Chung quem ganhava,
carregando água. Ela buscava água nas fontes
que havia fora da Cidade Murada, levando-a às
casas. Ganhava cinco centavos por balde que
entregava, mas ficou reumática e não podia
mais caminhar com os baldes pesados.
Embora estivesse esperando o sexto
filho, ela estava sempre sorrindo. Recebera a
Jesus no coração e muitas vezes orava
conosco. Costumávamos levar-lhe bacon, peixe
seco e azeite para melhorar um pouco seu
arroz. Se lhe déssemos dinheiro, o marido o
roubaria para comprar heroína. No Natal,
demos brinquedos às crianças e pagamos a
taxa escolar para elas. Até mesmo os filhos
tinham que trabalhar nas indústrias ali, para
poderem comprar seu arroz. Levei o caso
dessa família ao Departamento de Bem-Estar
Social, solicitando alguma ajuda financeira,
mas os sociólogos encarregados do
levantamento eram muito desinteressados.
Acompanhei a Sr.a Chung até lá, pois não sabia
ler. Ficamos sentadas lá o dia todo, esperando
a assistente designada para cuidar do caso
deles. Sugeri à moça que tratasse o casal
como duas pessoas distintas, pois o marido
raramente aparecia em casa, e não contribuía
para a renda da família. Mandaram-me sair,
enquanto a Sr.a Chung era entrevistada. Mais
tarde, ela me disse que tinha ido outra vez à
repartição para assinar o pedido de auxílio, e
que devíamos aguardar uma carta deles.
Passaram-se quatro meses e a carta não veio.
Fui ao departamento para verificar, e a
resposta que recebi foi:
— Essa família não se enquadra dentro
das disposições para receber auxílio de
pobreza.
— Se eles não estão enquadrados, então
quem está? indaguei. Não conheço ninguém
que seja mais pobre que eles. E agora têm
uma criança recém-nascida.
Ao que parecia, os encarregados haviam
solicitado a presença do marido na repartição
para fazer uma declaração de rendimentos.
— Ganho HKS600 dólares por mês e dou
400 à minha esposa, dissera ele.
Isso era uma grande mentira, mas, para
um chinês, é muito vergonhoso ter de
confessar que não consegue sustentar sua
família. Essa informação errada foi anotada, e
quando a Sr.a Chung foi lá, pediram-lhe que
endossasse a declaração do marido. Ela não
sabia o que estava escrito ali. Pensou que
estivesse assinando a petição de auxílio, e
então colocou sua marca.
— Mas vocês não viram que ele é
viciado? Não se pode confiar na palavra de um
homem assim!
— Ele disse que está completamente
liberto da droga, replicaram.
— Mas não sabem reconhecer um
viciado?
O pessoal ali acabou-me tachando de
"criadora de caso", mas voltaram atrás na
decisão, e afinal a Sr.8 Chung recebeu auxílio
do governo.
Então ajudamos a família a mudar-se da
Cidade Murada. Meus rapazes contrataram um
caminhão, e retiramos a cama de casal dali.
Debaixo dela encontramos vários tambores
cheios de roupa usada. Anteriormente, eles
tinham estado em contato com uma instituição
de caridade que lhes dera uma dúzia de
tambores de roupas, enviadas de outros países
para os "refugiados". A Sr.a Chung tinha um
desejo tão forte de possuir coisas, que não
jogava nada fora. Os tambores estavam
apinhados de baratas. Havia muitas e muitas
roupas que não prestavam mais e amontoei
uma porção delas junto às latas de lixo na rua.
No dia seguinte, quando fui lá, soube que a
filha mais velha, Ah Ling, as apanhara de volta.
Mais ou menos na época em que nos
mudamos para o apartamento da Rua Lung
Kong, a Sr.a Chung me disse que recebera
ordens do governo para arranjar trabalho, já
que não podiam sustentar a esposa de um
viciado indefinidamente. Ela lhes respondeu
que não estava bem, mas eles se recusaram a
ajudá-la por mais tempo. Duas semanas
depois, ela começou a tossir e morreu. Já
padecia com tosse havia muito tempo e tinha-
se consultado várias vezes.
Senti que, em parte, eu era culpada de
sua morte. Sabia que estava tossindo, mas
nunca me dera ao trabalho de acompanhá-la
ao médico, e assim não fora diagnosticado que
estava com tuberculose. E ela morreu. Uma
morte que poderia ter sido evitada.
Após o sepultamento dela, continuei a
visitar e a ajudar as crianças, que estavam
sendo exploradas pelo pai. Ele mandou a filha
de treze anos trabalhar numa fábrica, por um
minguado salário de HK$ 100 dólares por mês.
E tinha que entregar todo o dinheiro a ele.
Quando fazíamos passeios com o clubinho,
levávamos todas as crianças, e foi então que
pediram para morar em minha casa. Disse-lhes
que, pela lei, eles estavam sob a guarda e
tutela do pai. Mas, um mês depois, fizeram a
mala e fugiram de casa para morar comigo.
Parados ali à minha porta, constituíam
um quadro patético. Estavam inteiramente
convictos de que eu os receberia. Em minha
casa já havia rapazes dormindo no chão, mas
não tinha outra opção, senão acolhê-los. Eram
crianças muito retraíadas, e só depois de muito
tempo foi que conseguiram conversar comigo.
Nossos rapazes eram muito bondosos com
aquelas crianças, e gostavam imensamente de
brincar com o bebezinho.
Depois, nossa família aumentou mais
com as constantes visitas da Sr.a Chan, que eu
conhecera havia alguns meses. Seu filho, Pin
Kwong, era um viciado terrível, que não tinha a
menor intenção de mudar de vida. Muitas
vezes, pedi-lhe notícias de sua mãe, mas ele
sempre me dizia:
— Ela não quer saber de crentes; é uma
adoradora de ídolos.
Quando ele foi preso mais uma vez,
procurei a mãe e encontrei-a de cama, em seu
quartinho na Cidade Murada. Ela resolvera
morrer, ao saber que o filho fora preso mais
uma vez. Pin Kwong era toda a sua vida. As
mulheres chinesas em geral têm muito orgulho
dos filhos homens, mas o dela era um perdido,
e por isso ela não tinha mais vontade de viver.
Ele não queria que eu visitasse a mãe, para eu
não saber que a explorava. Quando a
encontramos, ela já estava recolhida havia
vários dias, sem se alimentar, e achava-se
enfraquecida. Então resolvemos tomar provi-
dências para restaurar-lhe o animo. Demos-lhe
alimento e falamos-lhe do Pai celestial, que
tinha dado ao mundo o seu bem mais precioso,
o seu Filho, só porque a amava.
A Sr.a Chan nunca tinha ouvido falar de
Cristo.
Impusemos as mãos sobre ela, orando
em voz alta e pedindo a Deus que ele próprio
lhe falasse de um modo que ela pudesse
compreender. Terminada a oração, ela ergueu
os olhos, sorriu e disse que fora curada da
"doença do pulmão" e que já conseguia
respirar sem dificuldade. E nunca mais sentiu
nada.
Naquela noite ela sonhou que via um
homem vestido com um longo manto branco,
aproximar-se dela com os braços estendidos,
pendindo-lhe que fosse a ele e se batizasse. A
partir daquele momento, ela foi sempre uma
pessoa alegre e radiante. Quando nos
mudamos para a Rua Lung Kung, demos-lhe
uma chave da casa, e ela estava sempre
aparecendo por lá, fazendo a limpeza ou
cozinhando para nós, e nos apresentava os
negociantes do mercado local, seus
conhecidos, que passaram a vender-nos
alimentos por baixo preço. Gostava
imensamente da nova família que adotara e
ficava por ali dando ordens a todos.
Como não soubesse ler, pedi aos rapazes
que lhe ensinassem versículos da Bíblia. Levou
uma semana para aprender: "Disse Jesus: Eu
sou o pão da vida".
Três anos antes, certa noite, íamos ter um
estudo bíblico, e Dora viera até a Cidade
Murada para interpretar para mim. Foi uma
dessas ocasiões em que só um rapaz veio ao
culto. Fiquei muito irritada, e foi esta uma das
raras vezes em que desejei estar na Inglaterra.
E expressei esses sentimentos. Quando
orávamos, Deus deu uma mensagem em
línguas ao rapaz, e Dora interpretou-a.
— Ninguém que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai ou filhos, ou terras por
amor a mim ou ao evangelho deixará de
receber cem vezes mais casas, irmãos, irmãs,
mães e filhos, e terras nesta vida, e, na vida
futura, a vida eterna.
Imediatamente abri a Bíblia em Marcos e
li esses versos, e vi que realmente o texto dizia
que receberíamos ainda nesta vida cem vezes
mais. E naquela noite reivindiquei o
cumprimento dessa promessa.
— Senhor, disse, gostaria de ter cem
casas, cem irmãos e irmãs. E também cem
mães e filhos.
Contei então o pessoal ali, naquele
apartamento da Rua Lung Kong, e vi que devia
ter pelo menos uns cem irmãos e irmãs. Como
ainda era pequeno o número de mães,
apareceu então a Sr.a Chan. Mas vieram outras
mães também.
Certo dia fui procurada por um rapaz que
acompanhava sua avó. Era bem velhinha e
debilitada, e tinha um curativo na cabeça.
— Quero ser batizada, disse ela com voz
esganiçada.
Fiquei logo desconfiada.
— Se a senhora ainda não recebeu a
Jesus, batizar não significa nada. Se quiser que
eu lhe fale dele, terei imenso prazer, mas se o
que a senhora quer é apenas o certificado, não
posso dar-lhe. Aqui em nossa igreja não damos
certificados.
A velhinha tinha levado um tombo e
ferido a cabeça. Estava com receio de morrer,
sem ter um lugar para ser enterrada. Em Hong
Kong havia poucos lugares. Mas, como
membro de uma igreja, ela conseguiria um.
Levei-a à Sr.a Chan, que fez amizade com ela e
falou-lhe de Cristo. A velhinha teve uma
conversão genuína, foi batizada e seis meses
depois morreu, tendo já o seu lugar reservado
no céu.
Eu não fazia idéia de que cuidar dos
rapazes em minha casa iria ser tão trabalhoso.
Cometera um erro básico. Tinha pensado que
"se alguém está em Cristo é um novo homem",
ao passo que o texto bíblico diz que "é nova
criatura". Eles eram como recém-nascidos, e
tinham muito que aprender. A ignorância deles
sobre as condições normais de vida era de
estarrecer.
Alguns, como Mau Jai, tinham vivido pelas
ruas desde a idade de cinco anos. Ele não
pudera viver em sua própria casa, porque o pai
tinha duas esposas, e a segunda, sua mãe,
caíra no desagrado dele e os filhos dela foram
expulsos de casa. Não tiveram uma infância
normal. Logo tornaram-se peritos na arte da
astúcia e da trapaça. Como estavam
acostumados a ficar acordados a noite toda,
não compreendiam por que tinham que ir
dormir à meia-noite. Levantavam a hora que
acordassem. Se não sentissem vontade de ir
trabalhar, não iam. Os regulamentos da casa
eram logo associados com a idéia da prisão, e
não os observavam da forma devida.
Por vezes, eu achava que eram eles que
estavam-me dirigindo, e não eu a eles. Um
exemplo de um caso assim foi o de Ah Hung,
que nos fora enviado pelas autoridades,
supostamente liberto da dependência à droga.
Na verdade, ele recomeçou a tomar heroína no
mesmo dia em que foi solto. Portanto, não foi
surpresa para nós, quando perdeu o emprego e
desapareceu de casa. Certo dia, reapareceu
completamente drogado, confessando que
havia participado de um assalto. Nós o
convencemos a entregar-se, mas fugiu de
novo. Como mencionara uma arma, liguei para
a polícia, e, daí a pouco, seis viaturas cheias de
detetives vieram pelo túnel, cantando pneus, e
pararam diante do prédio. Num instante,
entraram no apartamento, revólveres em
punho, como se pensassem que ele ainda
estava lá. Depois se foram, deixando alguns de
vigia, os quais se revezavam, guardando a
casa vinte e quatro horas por dia. Numa noite,
os dois que estavam de guarda largaram seu
turno e foram procurar um bom restaurante,
deixando-nos um número de telefone, onde
poderíamos encontrá-los.
Era tudo mentira. No dia seguinte, Ah
Hung apareceu e explicou que não havia
participado realmente do crime. Não acreditei,
e levei-o à delegacia para confessar. Foi a
melhor coisa que poderia ter-lhe acontecido,
pois soubemos que não poderia mesmo ter
tomado parte no assalto. Todos zombaram
dele, por haver inventado aquela história sob o
efeito de drogas. Mas era exatamente o que
precisava acontecer para que se comprovasse
o fato de que ainda estava viciado, e chegasse
ao ponto de desejar auxílio espiritual.
Estávamos sentindo claramente que os
rapazes da Cidade Murada precisavam de uma
disciplina mais forte. Em parte, eu tinha
dificuldade nisso, pois me relacionara com eles
como amiga, e tornou-se difícil a transição, e
colocar-me na posição de pastor ou professora.
Assim, eles chegavam em casa a qualquer
hora do dia ou da noite, e não estavam
crescendo espiritualmente, como eu desejava.
Comecei a orar a Deus para que mandasse
alguém que pudesse encarregar-se dos
serviços caseiros, de modo que eu pudesse
sair às ruas outra vez.
Pedi a dois rapazes crentes, chineses,
que morassem conosco para dirigir a casa. Mas
não deu muito certo. Eles queriam um salário
definido, o que eu não poderia prometer-lhes.
Queriam que os rapazes os tratassem de
"professor". Quando eu acordava de manhã,
perguntava-lhes se haviam chamado os rapa-
zes e preparado o desjejum. Replicavam que
tinham estado muito ocupados com a "hora
silenciosa", isto é, seu momento de oração e
leitura bíblica. Para eles, ensinar era realizar
um estudo bíblico e pregar por quase uma hora
e meia. Foram ensinados que era assim que se
fazia o trabalho cristão: dirigir cultos, serem
tratados com determinado título e pregar.
Ainda não haviam aprendido a lição de Jesus,
quando lavara os pés dos discípulos.
Muitas vezes, eu levava os rapazes às
reuniões promovidas pelo casal Willans, das
quais eles gostavam muito. Ali sempre se fazia
a interpretação para o chinês, a fim de que
eles pudessem participar e ter comunhão com
outros crentes. Muitas pessoas oravam por
nós.
Certo dia, Jean Willans disse-me com
firmeza:
— Se você quer mesmo trabalhar com
esses rapazes, Jackie, tudo bem. Mas não
precisa morar com eles. Ou pelo menos arranje
um lugar, onde você possa ir vez por outra
para recuperar suas energias em paz.
Mas eu não entendia essa atitude. Aliás,
eu não entendia por que o mundo todo não
queria trabalhar na Cidade Murada. Eu não
desejava estar em nenhum outro lugar da
Terra.
Entretanto, a despeito da confusão
reinante em nossa casa, descobri que muitas
vezes Deus usava crentes jovens para nos
reanimar, a mim e aos outros. Todos os que
haviam-se tornado crentes receberam o poder
de Deus na mesma hora em que haviam crido.
E nós os aconselhávamos a exercitar os dons
espirituais, quando tínhamos nossas reuniões.
Então eles sabiam perfeitamente que, o fato
de terem um dom, tinha por objetivo
auxiliarem-se mutuamente.
Certa noite, estávamos orando, quando
um dos moços disse que Deus lhe dera
algumas palavras para nos dizer: "Vá e colha
os repolhos e pegue o ônibus rapidamente."
Era uma mensagem muito estranha. Só depois
de uma consulta ao dicionário foi que consegui
a interpretação correta. "A seara está pronta;
vá trabalhar na colheita." Saímos e pregamos
aos vagabundos que dormiam pelas ruas nas
proximidades da nossa. Um deles aceitou
nossa oração e mais tarde foi liberto das
drogas em nossa casa.
Houve uma outra ocasião em que os
rapazes me reanimaram bastante. Eu chegara
em casa exausta e preocupada. Mary e os dois
obreiros tinham ido embora. Estavam-se
sentindo impotentes para dirigir os conversos e
os outros rapazes. E me indagava se os
missionários de outros países tinham os
mesmos problemas que eu enfrentava com os
novos convertidos.
— Achem um versículo bíblico bem
reconfortante para mim, disse aos rapazes.
Mas o texto mais animador que acharam
foi um verso deprimente de Apocalipse.
— Vamos orar, então falei.
Quando estávamos orando, recebi uma
mensagem em línguas, e um dos rapazes a
interpretou imediatamente. Só havia poucos
dias que ele crera em Jesus, e não sabia ler a
Bíblia direito. Mas a interpretação que deu foi
uma citação clara e direta do livro de Salmos:
13
Testemunhos
Estava muito escuro, aquela noite, na
Cidade Murada. Quatro ou cinco rapazes
achavam-se em nosso pequeno salão do
clubinho, assistindo a um jogo de pingue-
pongue. Uma figurinha patética surgiu em
dado momento, na claridade do ambiente. Era
muito jovem e magérrimo. Notava-se
claramente que era viciado em heroína.
Reconheci Bibi, o irmão mais novo de Winson.
Estava fugindo da polícia. Chamei-o para que
se sentasse num banco de madeira, e falei-lhe
de Jesus. Tive a impressão de que ele começou
a entender a mensagem, mas não ficou ali
mais que uma meia hora. Prometeu-me que
voltaria, e, de fato, alguns dias depois
reapareceu. Falei-lhe um pouco mais, e disse-
lhe que já tinha conhecimento suficiente para
tomar, sozinho, a decisão de seguir a Cristo.
— Não posso mais continuar
encontrando-o, pois estarei desrespeitando a
lei. Vou orar por você, e quando estiver
disposto a seguir a Cristo, pode me chamar,
que irei com você à delegacia para se entregar.
Acompanharei todo o seu processo, pois, se
realmente se dispuser a orar, tenho certeza de
que tudo sairá bem.
Mas ele não se entregou. Mais tarde, foi
preso e mandado para a cadeia. Fui visitá-lo,
mas, assim que foi solto, voltou às drogas. Um
dia ouvi dizer que fora outra vez preso por dois
crimes bastante graves. Uma das acusações
era que ferira um jornaleiro e roubara o relógio
dele. A segunda era de assalto. Logo que fiquei
sabendo dos detalhes das acusações, senti que
ele não era culpado de pelo menos uma delas.
No momento em que supostamente estaria
assaltando o jornaleiro, ele estava no clubinho
conversando comigo. Fui vê-lo na prisão, e
fiquei sabendo que estava disposto a confessar
tudo, pois, embora fosse inocente das duas
acusações, tinha cometido uns vinte roubos
em outro lugar.
— Vou-me confessar culpado e acabar
logo com isso, disse com um tom de
resignação.
— Mas não pode, insisti, isso não é
verdade. Diga ao juiz que você cometeu os
outros crimes, mas diga a verdade.
No julgamento, ele se declarou inocente,
mas foi considerado culpado, apesar de meu
depoimento. Ao explicar o caso, o juiz disse
que acreditava que eu estava falando a
verdade, mas achava que a outra testemunha
se confundira a respeito da hora do crime. E
encerrou o caso.
Eu passara muitos dias no fórum orando,
e acabei ficando conhecida dos policiais. No
fim do julgamento, quando eu saía da sala do
júri, um inspetor de polícia me deteve.
— Como você se envolveu nisso?
indagou.
— Bom, acontece que sou crente.
— Então, por que está depondo a favor
de um criminoso?
— Sei que ele é criminoso, e sei que
praticou muitos furtos, mas esse aí ele não
praticou.
— Pois eu também sou cristão, disse o
policial. Procure ver as coisas por esse prisma.
Quando esse pessoal comete um crime,
geralmente sabemos quem o cometeu, mas
nem sempre temos provas para prendê-lo. Por
isso, os acusamos de crimes para os quais
possamos "arranjar" provas. É duro, mas é
justo. E a sociedade sai ganhando, concluiu
ele.
— Mas, a longo prazo, repliquei, o efeito
sobre a sociedade é negativo. Isso destrói o
respeito pela lei, pela polícia e pela verdade. O
criminoso aprende a pensar que ser preso não
tem nada a ver com sua culpa ou inocência. É
simplesmente falta de sorte sua.
— Mas, pelo menos, estão recebendo
castigo pelos seus crimes, argumentou o
inspetor.
— Mas não reconhecem que estão
pagando pelos atos praticados, repliquei. E
ficam fortemente revoltados por estarem
presos sob acusações falsas. E quando saem, a
primeira coisa que querem fazer, é praticar o
crime pelo qual foram castigados. Acham que,
já se que cumpriram a pena por ele, têm o
direito de cometê-lo.
Afinal, o homem encerrou a conversa
meio desajeitado.
— E, nunca tinha pensado nisso dessa
maneira, comentou e afastou-se
apressadamente.
Quando Bibi saiu da prisão, encontrei-o
novamente. Seu rosto parecia acinzentado e
tinha profundas olheiras. Voltou direto a tomar
drogas. Prometera modificar-se, mas achava-se
sem forças para tal. Os viciados têm uma frase
que gostam de repetir quando vão a uma
"boca" de drogas: "Meu coração ainda não
tinha decidido, mas meus pés foram por si
mesmos."
Bibi arranjou o emprego de coletor de
lixo, a fim de comprar a droga. Era o mais
baixo tipo de trabalho ali, mas ele tinha que
ganhar algum dinheiro para adquirir a heroína.
Mas o que ganhava não era suficiente; e voltou
então a roubar. Sempre que me via, dava um
jeito de fugir. Mas geralmente eu descobria
onde ele estava morando. Certa vez, uma
emissora de televisão foi à Cidade Murada
fazer um filme sobre nosso trabalho.
Procuramos Bibi, e ele foi filmado em casa. A
família transformou o acontecimento numa
novela. A mãe chorava:
— Conserte a vida de meu filho, Poon Siu
Jeh, dizia ela. Leve-o para sua casa e faça dele
um homem bom.
É lógico que não era assim que as coisas
se passavam. Bibi tinha conhecimento da
verdade, sabia que só ele poderia tomar a
decisão de modificar-se. Eu já tinha aprendido
que havia um tempo certo para se pregar e
falar, e um tempo em que não se falava mais.
E este tempo chegara para ele; então disse-lhe
que havíamos chegado ao fim da linha.
— Esta é a última vez que venho falar-
lhe. Você já conhece o caminho da salvação.
Agora é com você. Pode escolher se quer
segui-lo ou não. Não quero vê-lo mais
enquanto estiver nesse estado, pois você não
precisava estar assim. Quando estiver disposto
a mudar de vida, aí então pode me procurar.
Uma semana depois, ele veio.
— Agora estou disposto, falou. Para mim,
chega. Não há outro jeito. Não consigo me
livrar do vício sozinho. Não posso ficar em
casa, senão irei vender drogas para comprar a
minha. Por favor, ajude-me.
Oramos durante muito tempo. Bibi foi
cheio do Espírito e começou a falar numa nova
língua. Depois me disse:
— Agora, você tem que me levar para
sua casa. Dei um suspiro profundo e respondi:
— Sinto muito, mas não temos vagas. Ele
ficou muito irritado. Sua única salvação seria ir
para uma das casas de Estêvão.
— Mas você tem que deixar eu ir para lá,
berrou ele. Não pode querer que eu fique pelas
ruas, pois continuarei a tomar heroína. E
nenhum crente de verdade pode tomar essa
droga.
Conversei com os Willans e com os
obreiros da terceira casa, pedindo que o
recebessem, mas recusa--se. Sara explicou:
— Não podemos recebê-lo, porque não
estamos condições.
— Mas tem que receber, argumentei.
Esse é o objetivo dessas casas, isto é, que os
moços possam desenvolver-se na vida cristã.
Agora você não quer deixar que eu leve um aí,
porque deseja a casa bem acertadinha.
— Não será bom trazer nenhum rapaz
para uma a que não esteja com tudo acertado,
replicou ela com firmeza. Se os que estão aqui
não tiverem um relacionamento sólido para
suportar a vida de mais um, ele terá que
esperar até que já estejam mais firmes.
Ela tinha razão. Era seu dever proteger os
membros de "nossa família". Se eu fosse
simplesmente colocando mais e mais pessoas
ali, desordenadamente, a situação poderia
tornar-se caótica, como já o fora antes.
Tive que procurar Bibi e dizer-lhe que não
havia vagas mesmo. Encontramo-nos junto a
uma barraca de lanches. Ele ficou furioso
comigo, quando lhe dei a notícia.
— Bibi, disse procurando acalmá-lo, só
por um momento, pare de olhar para si mesmo
e de pensar que nossa casa é a sua salvação.
Olhe para o céu. Olhe para o alto e pense
naquele que criou o céu, a terra, o mar e os
pássaros. É ele quem faz tudo. E foi ele quem
decidiu que seu Espírito habitasse em nós. Por
quê? Por que Jesus deixou toda a sua glória e
veio aqui e foi chicoteado, morreu e
ressuscitou para que tivéssemos seu Espírito.
Não é maravilhoso pensar que o Espírito do
Deus que criou o mundo todo possa realmente
vir morar em nós? Pare de ficar pensando que
nossa casa é a sua salvação e pense em como
nosso Deus é grandioso.
Deixei-o naquela barraca, orando, e saí
para conversar com outro viciado. Voltei meia
hora depois e encontrei-o ainda ali, de olhos
fechados e um leve sorriso no rosto. Chamei-o,
mas não respondeu. Na terceira vez que o
chamei, abriu os olhos com muita relutância.
Contou-me que tinha visto Jesus. Ele estava no
alto de uma montanha e Jesus se aproximara
dele com a mão estendida, dizendo-lhe:
— Bibi, você quer me seguir?
— Quero, Senhor. A quem mais eu
poderia seguir? replicou ele.
Então o Senhor o tomara pela mão e o
conduzira por um caminho belíssimo.
— Era um lugar lindo. Havia flores lindas
por ali, e pássaros, e o perfume era muito
doce. Estávamos andando por aquele caminho,
quando a ouvi chamar-me, mas não queria
voltar.
Daquele momento em diante, em vez de
ficar com a idéia fixa de que nossa casa era
sua única salvação, passou a olhar para o seu
Criador, esperando só nele. No dia seguinte,
abriu-se uma vaga para ele em nossa terceira
casa. E ele ficou ali dois anos. Foi um dos
melhores rapazes que já tivemos lá. Durante o
processo de libertação da droga, levou uma
vida normal. Certo dia, seus familiares ligaram
para Jean e Rick informando que o pai dele
estava à morte, e o rapaz foi visitá-lo no
hospital. O pai, que também se libertara do
ópio e se tornara crente, disse:
— Agora estou pronto para ir para o céu,
pois Jesus transformou meus filhos em homens
bons.
Mas não morreu. Os filhos oraram por
eles e foi curado.
Como havia vários obreiros trabalhando
na Associação Estêvão, eu podia sair mais às
ruas. Os viciados espalhavam a notícia do
nosso trabalho, e pessoas de todas as partes
da colônia procurava-nos em busca de ajuda.
Um policial crente deu-me um bip, para que eu
pudesse ser contactada onde estivesse, a
qualquer momento. Assim achei-me cada vez
mais envolvida em tribunais e julgamentos.
Certo dia eu havia assistido a um julgamento
e, quando saía, ouvi alguém me chamando:
— Poon Siu Jeh! Estão-me acusando
injustamente! Ajude-me!
Olhei para trás e vi o rapaz que iria ser
julgado em seguida, sendo levado para o
tribunal. Não o conhecia. Mas pude perceber o
desespero em seu rosto sujo. Eu não tinha
condições de saber se ele estava falando a
verdade ou não, e mesmo que o soubesse, não
tinha direito de falar no tribunal. Entretanto,
aquele rapaz estava para enfrentar aquela
batalha sozinho. Tive uma inspiração súbita e
levantei-me.
— Meritíssimo, disse, não conheço bem o
acusado, mas creio que é possível que não
tenha tido acesso a um defensor. Será que
poderia suspender o caso até que façamos
verificações nesse sentido?
O juiz ergueu as sobrancelhas. Era uma
solicitação meio incomum. Virou-se para o
acusado.
— Você deseja um representante?
indagou.
— Quero, respondeu o rapaz. Mas depois
que fui preso, não me deixaram dar um
telefonema.
O juiz suspendeu o julgamento por vinte
e quatro horas, e então fui falar com o rapaz.
Fiquei sabendo que tinha o apelido de
Sorchuen, e que tinha conhecimento a meu
respeito por intermédio de seus "irmãos" de
Chaiwan.
Tremia convulsivamente e seus olhos
estavam vermelhos e lacrimejantes. Fungava o
tempo todo.
— Não tenho muito tempo para lhe falar
de Jesus, mas se você clamar a ele, ele o
ouvirá e o salvará.
Imediatamente, os sintomas de carência
da droga desapareceram, e suas feições
relaxaram. Quando o vi no dia seguinte, tinha
o rosto tranqüilo e feliz.
— Orei a Jesus, disse ele, e agora me
sinto totalmente diferente.
Sorchuen foi declarado culpado das
acusações que pesavam contra ele. Depois de
sair da cadeia, foi preso de novo, mas
telefonou-me da delegacia. Fui visitá-lo
acompanhada de um excelente advogado. Fora
preso sob a acusação de arrombar vários
carros no distrito de Shaukiwan. Segundo ele,
isso era mentira. Afirmava que no momento do
crime ele se achava no cinema, assistindo a
um filme pornográfico, em Wanchai. Terminado
o filme, pegara um ônibus para ir a Chaiwan,
mas fora detido por dois detetives que lhes
ordenaram que descesse e fosse "falar".
Pediram-lhe que os ajudasse a encontrar outro
quadrilheiro de nome Morgwai, (diabo), e o
levaram num carro particular até um cinema, à
procura do outro. Ali, Sorchuen viu um amigo
seu, mas não conseguiram localizar o "Diabo";
então os homens o levaram para a delegacia, e
o indiciaram sob aquela acusação, depois de
ele haver assinado uma declaração incrimina-
tória na delegacia de polícia.
Como muitos dos outros rapazes,
Sorchuen afirmava que apanhara para
confessar o crime. Vim a saber que muitos não
chegavam a apanhar, mas tinham tanta
certeza de que isso aconteceria, que
assinavam as confissões, incriminando-se.
Muitos acusados eram condenados com base
apenas em sua confissão, sem testemunhas,
provas, nada.
Eu e Davi, o advogado, resolvemos
investigar os fatos por nossa conta. Ele
escreveu à polícia solicitando o número da
placa dos carros que supostamente Sorchuen
tinha tentado arrombar. Fui procurar o "Diabo",
mas soube que também tinha sido preso.
Encontrei, porém, o amigo que o rapaz vira no
cinema. Ele se lembrava bem do dia e da hora.
Sorchuen estava preso e não poderia ter
entrado em contato com esse amigo. O rapaz
disse que ele o tinha visto três horas antes da
hora em que, segundo os autos, ele fora preso
em Shaukiwan. Fiquei convicta de que estava
falando a verdade, já que as duas versões
eram idênticas.
De posse das placas dos veículos fomos a
Sheko, onde morava o dono de um deles.
Conseguimos localizá-lo e perguntamos onde
normalmente estacionava o carro.
— Normalmente, respondeu ele, no
estacionamento de Shaukiwan.
Mas no dia do roubo, não o tinha deixado
lá. Tínhamos, afinal, uma testemunha.
Toda essa agitação em torno de um caso
de menor importância era muito incomum, e o
escritório da promotoria ficou alerta.
Num dos intervalos do julgamento do
caso, o advogado de acusação pediu para falar
comigo. Tinha ficado muito irritado com o
interrogatório longo e minucioso levado a
efeito pela defesa.
— Por que vocês dois estão-se dando
tanto trabalho por um caso tão insignificante?
indagou ele. Se não fosse isso, já estaria tudo
encerrado a essa altura. De qualquer modo, é
uma questão tão trivial.
— Será que não se deve apresentar a
melhor defesa possível em favor do acusado?
— Claro, replicou, mas por que perder
tempo com um caso desses? objetou.
— Porque cremos que o acusado é
inocente, respondi.
Olhou-me grandemente espantado.
— Mas a ficha desse homem tem dezenas
de condenações!
— Estamos falando das acusações de
hoje. Tenho certeza de que não cometeu esse
crime.
— Olhe, minha cara, já estou em Hong
Kong há seis meses...
Entretanto, aquele foi um dos poucos
casos em que me envolvi, nos quais o acusado
não foi declarado culpado. E estávamos com
Sorchuen nas mãos também. No dia em que
tínhamos orado na cela da delegacia, eu lhe
falara do fato de que Jesus está vivo. Mas
ainda teria que aprender que a maneira de se
tornar seu discípulo não era assistindo a um
filme pornográfico.
Após este caso, Davi representou vários
outros acusados, e certa vez provocou a
abertura de um precedente jurídico em Hong
Kong. Foi numa ocasião em que alguns rapazes
foram presos por terem-se declarado membros
de uma sociedade tríade. Embora uma pessoa
não possa ser presa por ser membro de uma
quadrilha, se se mantiver calada, pode ser
presa caso se declare como tal. Dois dos
rapazes tinham assinado confissão nesse
sentido. Mais tarde afirmaram que o tinham
feito sob coação. Os outros se declararam
culpados.
O julgamento de problemas semelhantes,
isto é, de membros de uma sociedade tríade,
geralmente era rápido, mas esse acabou-se
tornando extremamente complicado. Os dois
rapazes acusados tinham-se tornado cristãos
havia mais ou menos um ano. Muitos de nós
estávamos orando para que esse julgamento,
de alguma forma, fosse para a glória de Deus.
Um indivíduo que fosse membro ativo de uma
sociedade tríade não poderia ser cristão, pois
as duas coisas eram incompatíveis.
A polícia apresentou sua primeira
testemunha. Ele se apresentou no tribunal e
deu seu depoimento.
— Sou um dos dirigentes de uma 14K.
Pelos regulamentos de uma sociedade tríade,
uma vez membro de uma delas, o indivíduo é
membro para sempre. Embora hoje eu fique o
tempo todo dando depoimentos na polícia,
ainda sou membro da 14K.
Argumentamos que nossos rapazes já
não pertenciam à tríade, porque tinham
recebido o batismo cristão, renunciando assim
à condição de membros dela. Perante o juiz os
rapazes declararam:
— Já fomos membros da quadrilha. Agora
não o somos mais.
Outra testemunha técnica foi um filólogo
chinês que explicou que a confissão dos
rapazes tinha sido traduzida para o inglês,
como se eles tivessem dito: "Sou membro de
uma sociedade tríade". Mas esse sentido era
questionável, pois na língua chinesa não havia
tempos verbais, nem presente nem passado.
Nosso argumento era de que tinha dito
realmente:
— Sim; fui membro de uma tríade.
Depois apresentamos outra testemunha,
Ah Kei, que tivera na sua quadrilha a mesma
graduação que o rapaz que testemunhara pela
polícia.
— Também sou um número 426 da 14K.
Mas tornei-me cristão e renunciei à quadrilha.
Esses dois rapazes que estão sendo julgados
eram meus irmãos menores. Já disse aos
membros do grupo que não sou mais
responsável por eles. Se quiserem seguir a
Jesus, são livres para fazê-lo.
O juiz já tivera de passar várias horas
escutando essa gente falar de batismo,
conversão e etc. Normalmente, nesse tipo de
caso, os indiciados eram logo condenados ou
absolvidos.
— Não vejo por que um homem tenha
que ficar marcado para toda a vida, disse ele
afinal. Se ele deseja mudar de vida e tornar-se
cristão, muito bem. Caso encerrado.
Uma razão pela qual não havia mais
absolvições, era que o povo de Hong Kong não
se dispunha muito a depor nos tribunais. Havia
uma desconfiança geral da justiça. Mas eu,
como era ferrenha defensora do sistema
judiciário britânico, crendo que ele era justo,
tentei convencê-los de que, se falassem a
verdade, não poderiam deixar de ser
justificados. Se tantos casos eram julgados
desfavoravelmente a eles, isso se devia ao fato
de eles próprios se omitirem tanto.
Como eu ia muitas vezes ao tribunal,
comecei a notar certos indivíduos que
apareciam com regularidade. Havia, por
exemplo, uma velhinha com uma longa trança
que lhe caía pelas costas. Tinha nas mãos uma
espécie de lista, e ficava ali sentada a manhã
inteira, declarando-se culpada de pelo menos
umas vinte acusações, sob nomes diversos.
Quando um desses nomes era chamado, ela se
levantava e murmurava:
Yauh (presente).
Em seguida, anotava diante do nome a
quantia a da multa a ser paga. Vim a saber que
era assim que ganhava a vida. Como não tinha
mais condições de ficar na rua vendendo seus
artigos, ia ao tribunal responder pelas
infrações de seus colegas vendedores de rua,
para que pudessem continuar com seus negó-
cios. Para isso, recebia uma pequena quantia.
Havia ali também um velho de setenta
anos que fazia a mesma coisa. As acusações
eram lidas:
— Uso de tóxicos e posse de
instrumentos para consumo de tóxicos.
O velho acenava afirmativamente, muito
satisfeito.
— Cinqüenta e oito condenações
anteriores por infrações semelhantes.
E ele continuava a acenar que sim,
sorrindo.
— Cem dólares de multa, ou cinqüenta
dólares, e um dia de detenção.
E o homem se afastava com um amplo
sorriso no rosto. Comentei com Ah Keung:
— Ele sempre tinha a má-sorte de ser
preso.
— Não, não, explicou ele. Esse homem é
um "ator". Ganha dos donos da sala de drogas
para ser preso.
Quando os proprietários das salas eram
informados de que a polícia ia dar uma batida,
fechavam tudo, deixando ali somente um
velho viciado, que então era preso e indiciado.
Devido à sua idade e ao número de
condenações anteriores, recebia uma sentença
leve. A loja lhe pagava cento e cinqüenta
dólares para fazer isso, e ainda lhe fornecia
ópio de graça: assim ele podia cultivar seu
vício e, depois de pagar a multa, ainda lhe
sobrava algum dinheiro.
O pai de Ah Keung pediu-me certa vez
que socorresse seu filho Ah Pooi, que tinha sido
preso por ter roubado um rádio de um velho,
fora da Cidade Murada. Mas, no momento do
roubo, ele estivera dentro da cidade,
conversando com uma velhinha. A mulher
negou-se a depor. O pai também vira os dois
detetives levarem o rapaz, mas não queria ir
depor.
— Pa mahfan, não quero envolvimento
com a polícia. É muito perigoso, argumentava.
Como estava ligado à jogatina ilegal,
achava que era preferível ficar em paz com a
polícia, do que defender o filho. Mesmo assim
desejava que eu o ajudasse. Expliquei-lhe que,
como ele estava retendo uma informação de
vital importância, eu não poderia fazer nada.
Eu tinha que me controlar muito, para
não me deixar dominar pela raiva, quando a
verdade era derrotada. Mas também tinha que
tomar cuidado, para não ser usada por
indivíduos inescrupulosos, que não tinham o
mínimo interesse em mudar de vida.
Muitas pessoas foram tocadas devido a
esses problemas no tribunal, e, se parecia que
os tribunais terrenos eram injustos, era cada
vez maior o número de pessoas que
compreendiam o que era ser justificado nos
celestiais. Um maravilhoso exemplo disso foi
Suenjai, um criminoso que se reabilitou.
Durante dez anos, ele tinha levado uma vida
certinha, trabalhando arduamente para
sustentar a esposa e quatro filhos. Certo dia foi
preso sob a acusação de bater carteiras. Tive
certeza de que não fizera aquilo. Foi um golpe
muito duro para ele.
A esposa dele entrou em contato comigo
e visitei-o na cadeia, onde aguardava
julgamento. Estava muito ressentido e
revoltado. Queria falar-lhe de Jesus, mas ele
não queria ouvir sermões; pus-me então a orar.
Aí ele ficou calmo. Não tinha uma Bíblia em
mãos, apenas um livrete com trechos do
Sermão do Monte. Achei que não era uma
literatura bastante adequada, pois não
continha a mensagem da salvação. Não tendo,
porém, outra coisa, deixei-a com ele, para que
a lesse.
Na primeira vez em que fui visitar o
centro de triagem, Suenjai estava sentado no
meio de um pequeno grupo. Perguntei-lhe:
— Por que Jesus teve de morrer?
— Porque está escrito: "Não penseis que
vim revogar a lei ou os profetas: não vim para
revogar, vim para cumprir. Porque em verdade
vos digo: Até que o céu e a terra passem, nem
um Í ou um til jamais passará da lei, até que
tudo se cumpra." Foi a resposta dele.
O Sermão do Monte levou-o à fé. Pediu a
Jesus que entrasse em sua vida e recebeu o
Espírito Santo.
Pouco antes do dia do julgamento,
perguntei-lhe como iria apresentar sua defesa.
Resolvera não apresentar defesa nenhuma. Ia
apenas declarar-se inocente. Comecei a
aconselhá-lo a não fazer isso, mas ele me
interrompeu.
— A Bíblia diz: "Seja, porém, a tua
palavra: Sim, sim; não, não. O que disto
passar, vem do maligno."
Suenjai foi condenado. Embora fosse
obrigado a ficar preso um ano e três meses por
um crime que não cometera, conservou-se
sempre alegre, nunca cessando de louvar a
Deus. Aliás, alguns de seus vizinhos, quando
ouviram falar da maneira como ele se condu-
zira no tribunal, ficaram tão impressionados,
que me pediram que fossemos falar-lhes desse
Jesus que tinha poder para transformar o
coração do homem.
Um dia, Suenjai contou-me que ganhara
para Cristo doze prisioneiros. Fiquei um pouco
em dúvida, pois sabia que seus conhecimentos
teológicos eram baseados apenas em três
capítulos de Mateus, algumas conversas
comigo, e em sua própria experiência.
— Bem, explicou ele, uma noite um dos
companheiros da cela acordou aos berros,
contorcendo-se na cama, como se estivesse
sufocando. Percebi que estava sendo agarrado
por um demônio. Então, levantei-me e disse:
"Satanás, em nome de Jesus, saia dele!" Mas
nada aconteceu. Falei de novo: "Saia dele, já
disse." Fiz que ia dar um chute no espírito, e
ele saiu, e o colega ficou calmo e tranqüilo. Os
outros colegas me perguntaram:
— Que foi isso? O que você fez?
— Foi Jesus, respondi.
— Então disseram que também queriam
crer nele. E assim expliquei-lhes como
poderiam fazê-lo.
Três dias depois que Suenjai foi solto, sua
esposa fugiu com outro homem e se prostituiu.
Mas ele permaneceu fiel em oração, e, em
encontros posteriores com a mulher, ela ficou
tão impressionada com a atitude de compaixão
e perdão da parte dele, que acabou voltando
para o marido.
Durante algum tempo, ele realizou
reuniões de oração em seu pequeno
apartamento, convidando todos os vizinhos.
Um ex-detento que assistiu a uma dessas
reuniões, afirmou:
— Quando vi o que aconteceu com esse
meu amigo, não pude deixar de receber a
Jesus em meu coração.
E Deus não operava apenas no coração
dos criminosos, mas em várias ocasiões tocou
profundamente na vida de pessoas ligadas aos
processos. Quando Ah Kit foi julgado, eu, Jean
e vários outros membros de nosso grupo fomos
assistir ao julgamento.
Após o veredito, quando o juiz o confiou
às nossas mãos, um inspetor de polícia
procurou-nos mostrando-se muito interessado
em nosso trabalho. Sugeriu que fôssemos
almoçar juntos para continuarmos a conversa.
Várias horas depois, ele conseguiu dizer o que
estava querendo.
— Sei que o que vou dizer é meio
estranho, principiou, mas, quando vocês
entraram no tribunal hoje de manhã, olhei para
vocês, e, bom... parecia que havia uma auréola
na cabeça de cada um.
Não tive vontade de rir; pelo contrário,
engoli em seco várias vezes.
Nós o convidamos para a reunião de
oração dos sábados à tarde, e ele compareceu.
Acho que nunca vi uma pessoa que ficasse tão
tocada por uma reunião de oração. No final,
comentou:
— Normalmente, aos sábados à noite,
saio com os colegas para beber. Mas hoje
estou vendo que vocês aqui estão realmente
sendo inspirados por uma coisa que não
compreendo bem.
Fiquei aliviada ao ouvi-lo emitir um
comentário tão positivo; pois, durante a
reunião, uma das moças se aproximara dele e
lhe indagara sem rodeios se era salvo. Fiquei
preocupada, pensando que ele pudesse ter
ficado agastado com um "ataque" tão direto.
Mas não. E ao sair, levou consigo um exemplar
do livro de Jean.
Leu-o durante todo o domingo. Afinal,
teve que ajoelhar-se e orar. Em seguida, ligou-
nos e disse que queria receber o batismo no
Espírito Santo.
— Não consegui dormir, explicou. Fiquei
só pensando no que vi ontem à noite; vi gente
falando em línguas; vi com meus próprios
olhos como a vida dos moços foi transformada.
E cheguei à conclusão de que Jesus tem que
ser mesmo real. E hoje pela manhã orei a ele
pedindo que entrasse em minha vida.
No domingo seguinte, ele foi batizado no
mar, juntamente com a esposa e com um
antigo quadrilheiro.
Logo, muita gente ficou sabendo da
conversão do policial. Seus amigos notaram
que sua vida mudara completamente. A
conversão de Ted causou um grande impacto
no Departamento de Polícia de Hong Kong.
Não muito tempo depois disso, um de
seus colegas, que fazia oposição à sua
conversão, disse-lhe:
— Pelo menos espero que você não tente
mudar-me.
— Não, replicou Ted, não estou tentando
modificar você. Sei que quando você se
arrepender tudo vai-se acertar.
— Bom, mas se eu "apagar" antes?
— É, realmente isso pode acontecer,
replicou Ted.
14
E Pôr em Liberdade os Cativos
Certo dia recebi uma belíssima carta de
um chinês de Taiwan, que se encontrava preso
no centro de triagem, aguardando julgamento.
Na ocasião em que o conhecera ali, era um
homem revoltado, cheio de ódio. Em suas
roupas havia uma tarja branca, que indicava
ser ele um indivíduo perigoso. Na mesma cela,
estava com ele um rapaz da Cidade Murada,
que lhe falara a meu respeito.
Então fui falar de Jesus a Ah Lung. O que
ele esperava era que eu iria ajudá-lo a sair da
prisão. Contudo, depois de ouvir-me, disse que
queria crer no Senhor. Respondi-lhe que teria
de perdoar os guardas da cadeia e abandonar
os ressentimentos.
— Não me peça para fazer isso,
resmungou. Nunca poderia amar esses
homens.
— É lógico que não pode perdoá-los,
enquanto não compreender que você foi
perdoado.
Expliquei-lhe que, fosse o que fosse que
tivesse feito, Jesus perdoaria seus pecados. A
seguir, orei, e senti o impulso de falar em
língua estranha. Então ele pôs-se a interpretar-
me em voz suave.
— Deus me falou que não poderá me
perdoar, enquanto eu não perdoar a outros.
Então, voluntariamente, perdôo os guardas.
E ele se tornou um detento-padrão.
Modificou seu depoimento, declarando-se
culpado no tribunal. Mais tarde nos disse:
— Tive que reconhecer que fiz uma
porção de coisas erradas. Foi a primeira vez
em minha vida que admiti que estava errado.
Ah Lung testemunhou para um rapaz que
estava aguardando o julgamento por crime de
estupro, e que assistiu a um dos estudos
bíblicos que eu realizara no centro.
— Vi o que aconteceu com Ah Lung,
quando creu em Cristo. O que há nisso tudo
que faz um homem durão tornar-se uma
pessoa de coração brando? Quero conhecer
este Jesus.
Expliquei-lhe que Jesus era o Filho do
Deus to-do-poderoso, que morrera pelos
pecadores.
— Você crê que ele era o Filho de Deus?
perguntei. -
— Não entendo bem essas coisas,
respondeu, os olhos fixos no tampo da mesa.
— Mas você deseja crer?
— Está bem, respondeu, continuando
com os olhos baixos.
— Crê que ele morreu pelos seus
pecados?
— Isso também eu não entendo.
— Não tem importância se você não
compreende bem essas coisas. Deseja crer
nisso?
— Está bem, respondeu, ainda sem
erguer a cabeça.
— Crê que ele ressuscitou dos mortos?
— Ah, creio, disse prontamente, e afinal
ergueu o rosto.
— Por que tem tanta certeza disso, mas
não tem certeza das outras coisas? indaguei
curiosa.
— Porque senão você não estaria aqui na
cadeia conversando comigo.
— Pois bem, você deseja segui-lo?
perguntei.
— Se ele é o Deus verdadeiro, é lógico; a
quem mais eu iria seguir?
— Está bem. Jesus lhe dará poder para
viver a vida cristã, pois ele não espera que
você tenha essa vida obedecendo a um
conjunto de regrinhas. Isso é impossível. Ele irá
dar-lhe seu Espírito, para que este o ajude
nisso.
Duas semanas depois, vi no jornal que
seu caso tinha sofrido uma reviravolta. No
julgamento, ele se dirigira ao juiz e dissera:
— Meu advogado instruiu-me para dizer-
lhe que sou inocente, mas tenho que confessar
que sou culpado, pois agora creio em Jesus.
Foi sentenciado a nove anos de detenção.
Quando fui visitá-lo na penitenciária, sorriu
para mim.
— Estou tão feliz de saber que meus
pecados foram perdoados, Sr.ta Poon, exclamou
ele.
E nunca cessava de testemunhar de
Jesus aos outros, dizendo:
— É maravilhoso saber que Jesus levou
sobre si todos os nossos pecados, até o tão
terrível estupro.
Essa atitude se acha em franco contraste
com a que vi em Daih So, quando fora visitá-lo,
havia dois anos, no mesmo lugar. Não tivera
permissão para utilizar uma sala privativa, e
conversara com ele no salão geral. Os
prisioneiros ficavam dentro de um
compartimento, e a parede de separação
consistia numa telinha muito fina, que não me
permitia ver claramente suas feições.
Daih So tinha apenas trinta anos, mas
como era viciado em heroína desde os treze
anos, parecia mais um velho. Estava sempre
babando, mas eu gostava muito dele, pois
parecia haver uma aura de inocência em torno
de sua pessoa. Certa vez, ele me deu a mais
clara definição de pecado que eu já ouvira até
então.
— O que é pecado? perguntara-lhe.
— Isso é simples, replicara. Pecar é andar
em nossos próprios caminhos.
Mas aquele dia na prisão, sua atitude era
outra.
— Não adianta ficar conversando comigo,
Sr. Poon, falando que tenho de largar as
ta
CONTRACAPA
Caça ao Dragão
No coração de Hong Kong, encontra-se a
temida Cidade Murada, verdadeiro inferno de
tráfico de drogas e de jogatina ilegal. Os
forasteiros não são bem recebidos ali. A
própria polícia tem receio de se aventurar
naqueles domínios. Ali florescem a
prostituição, a pornografia e o vício da heroína.
E nessa área pequena e apertada vivem
amontoadas pelo menos trinta mil pessoas —
talvez o dobro.
Quando Jackie Pullinger saiu da
Inglaterra, não tinha a menor idéia de que
Deus a estava levando para trabalhar
justamente na Cidade Murada. Mas, quando
começou a falar de Jesus ali, rudes
quadrilheiros se converteram, prostitutas
largaram o ofício... e Jackie tropeçou na
descoberta de um novo método de tratamento
para a dependência das drogas.
Caça ao Dragão é um relato honesto,
desafiante e inspirador, que revela a fibra, o
amor e a dedicação de uma jovem disposta a
tudo para servir a Deus.
Editora Betânia
Leitura para uma vida bem sucedida