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Direção editorial: Agemir Bavaresco
Capa e diagramação: Lucas Fontella Margoni
http://www.abecbrasil.org.br
Leituras da Lógica de Hegel. [recurso eletrônico] / Agemir Bavaresco; José Pinheiro Pertille;
Marloren Lopes Miranda; Jair Tauchen (Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017.
363 p.
ISBN - 978-85-5696-256-0
CDD-100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário
Apresentação ................................................................................................ 9
O que Hegel propriamente quer com sua Ciência da Lógica? Uma pequena
introdução à Lógica de Hegel....................................................................... 77
Christian Iber
Donde vêm os múltiplos? A análise do uno na lógica do ser para si ......... 163
Federico Orsini
O movimento da estrutura lógica da linguagem hegeliana atuante nas
mediações do silogismo da necessidade (S - P - U; U - S - P; P - U - S) ..... 183
Gonzalo Tinajeros Arce
Introdução
Pesquisador-colaborador do Depto. de Filosofia da UNICAMP, bolsista de pós-dourorado pela
FAPESP, sob a supervisão do prof. Dr. Marcos Lutz Müller. Contato: gomanolasco@gmail.com. Este
artigo em parte resultado da minha tese de doutorado e em parte de uma pesquisa mais atual, que
realizo em conjunto com Gabriel Valladão Silva.
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Digo inaugurada em decorrência da longa sobrevida do “veto” russelliano à Ciênciada Lógica,
veiculado aliás pelo próprio McTaggert (cf. McTAGGART, 1910. p. 43.). Sobre o que considero as
consequências radicais da virada linguística, radicais precisamente porque um passo além da virada
semântica propriamente fregeana, cf. a introdução de R. Rorty ao livro fundamental de W. Sellars
(SELLARS, 1997, p.1), onde se encontra que tal radicalização fora operada principalmente por Quine
("Two dogmas of empiricism", 1951), Wittgenstein ("Philosophical Investigations", 1954), Sellars
(Empiricism and the Philosophy of Mind", 1956). Mediante o rechaço generalizado à ideia de uma
"linguagem analítica pura", mediante, portanto, a reorientação do pensar lógico aos fatos linguísticos
em sua materialidade estrutural, incompleta, o espaço filosófico-lógico anglo-saxão buscou
abandonar enfim o paradigma que se poderia chamar genericamente de standard-analysis
(desenvolvida lógico-formalmente ao longo do séc. XIX, cujo ápice a teoria dos conjuntos de Cantor,
as discussões lógicas de Frege e Russell, enfim o programa de Hilbert) e inscreveu efetivamente
âmbito epistêmico em geral as conclusões pragmáticas dos teoremas da incompletude de Gödel e da
indeterminidade de Heisenberg. Os sistemas lógicos, então, são vistos como incompletos,
indeterminados também em última instância os modelos físicos. A linguística filosófica há, pois, de
fornecer o horizonte para a articulação científica da filosofia pragmática da lógica. Tratou-se,
portanto, essa tal virada, da suspensão da ideia da linguagem universal-formal pura -- daquele
espectro da característica universal leibniziana que rondava a Europa ainda tarde nos sécs. XIX e
quase bem já adentro do XX -- e da redescoberta da materialidade do discurso, do caráter de
contingência da língua e do pensar (vide o conceito filosófico dos jogos de linguagem, onde regra e
contingência co-legislam sobre certo horizonte particular de possibilidades). Instaurado então o
linguistic turn no espaço filosófico hegemônico de língua inglesa, e apenas então, reinventa-se ali
Hegel como filósofo, e a Ciência da Lógica como objeto científico.
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"Assim a língua é a primeira categoria, sob a qual o espírito é pensado não como um interior, mas
como um medium, que não está nem dentro nem fora. Com isso o espírito é logos de um mundo e
não [mais] a reflexão da consciência de si solitária" (HABERMAS, 1969, p. 25). Habermas capta
assim, a meu ver com boa dose de razão, a vinculação fundamental entre o projeto hegeliano da PdG
e essa virada linguística herderiana: em ambos os casos trata-se do abandono do ponto de vista do
sujeito de conhecimento "pronto": "Kant parte da identidade do eu como uma unidade originária da
consciência transcendental. Em oposição Hegel foi levado desde a sua experiência fundamental do
singular até a visada de que a identidade da consciência de si não pode ser concebida como uma
originária, mas apenas como tendo vindo a ser.” Trata-se, pois, de desmentir "aquelas unidades
abstratas da vontade prática, da vontade técnica e da inteligência, com as quais começavam a as
Críticas da razão, pura e prática, de Kant." (HABERMAS, 1969, p. 30).
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Desta opinião resulta uma certa fixidez com que se toma o pensamento do jovem Hegel e
principalmente o de Herder, do que resulta (i) em formulações ao meu ver injustificadas sobre "a
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1. Mendelssohn e Herder
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Essa edição contém um aparato filológico crítico riquíssimo, a encargo do editor, que nos serviu de
fonte básica a respeito de Herder.
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"Ambas [as ciências e a política] têm que ser postas em movimento por oposicionalidades
(Widerwärtigkeiten), pois do contrário os seus sucos vitais se perdem numa podridão mortal; ambas
têm de não ultrapassar um certo ponto em seus progressos, pois do contrário perdem força interior
à medida em que expandem os seus limites exteriores." (Mendelssohn, Carta 20 in: Briefe, vol. 1,
1757, p. 134) - Os 23 volumes das acima referidas Briefe estão disponíveis on-line no site na
Universidade de Bielefeld: http://ds.ub.uni-bielefeld.de/viewer/toc/1921386/1/ acesso 30.09.2017)
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Herder assim descreve (a fim de criticá-lo) tal pensamento: “o grande espaço de pensamento
(Gedankenraum) que eles [os conceitos, as palavras] circunscrevem pode ser considerado em
extensão diversa. Há uma Symbolik, comum a todos os seres humanos - uma grande câmara de
tesouro na qual repousam guardados os conhecimentos pertencentes ao gênero humano como um
todo. A verdadeira maneira-de-fala (Sprachweise), que eu ainda não conheço, tem a chave para essa
câmara escura e irá, quando surgir, desvelá-la, iluminá-la e nos mostrar os seus tesouros. Isso seria a
semiótica que hoje encontramos apenas nominalmente nos glossários de nossas enciclopédias
filosóficas apenas: um deciframento da alma humana a partir da sua língua.” (HERDER, op.cit. p. 76)
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Na Carta 22 Mendelssohn discorre sobre o fato de que os matemáticos desenvolvem instrumentos
teóricos de extrema utilidade, mas muita vez extrapolam os limites de sua criatividade e querem
persuadir a si próprios infundadamente de que os termos resultantes da sua atuação instrumental-
teórica incontornavelmente empírica sejam de fato "coisas (Dinge) efetivas na doutrina da natureza
e na metafísica”. E ainda se irritam se alguem se recusa a atribuir direito de cidadania (Bürgerrecht)
a tais objetos, acusando-lhes como tradicionalmente de incorrerem em metabasis eis allo genos. A
introdução de teoremas utilíssimos ao progresso matemático visando a atuação no progresso
filosófico leva a consequências as mais aventureiras. Sobre a quantificação não resta dúvida:
"apenas a ser aturada desde que permaneça em seus limites" (...) "A invenção,” por exemplo a do
instrumentário algébrico do cálculo infinitesimal (teoria matemática das grandezas intensivas), "tem
suas várias utilidades. Apenas se esquece,” e tal esquecimento é contrário à própria filosofia
leibniziana, "que é apenas uma invenção, imagina-se sob a palavra natureza eu não sei o quê como
um ídolo e afinal se o coloca no trono da divindade."
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Precisamente do debate entre os textos: Über die Evidenz (Mendelssohn), Über die Deutlichkeit,
Einzig mögliche Beweisgrunde des Daseins Gottes, Versuch über die negative Grösse (Kant) e Über
die Methode, die Metaphysik, Theologie und Moral richtiger zu beweisen (Lambert) - todos (com
exceção de Lambert) publicados nos primeiros anos da década de 1760.
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II - Ciência da Lógica
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Herder, pois, além de refletir em geral sobre a matéria histórica de toda língua, tece uma miríade
de considerações interessantes sobre a particularidade da língua alemã ante as suas vizinhas e
conclui o seu comentário das Briefe de Mendelssohn e Lessing com uma extensiva narrativa histórica
da formação cultural de toda língua (um romance de formação da língua em suas fases/estações:
Língua da necessidade, da canção, da ética e da política, do saber livresco, do saber filosófico, do
saber poético; p. 203), e em específico da língua alemã, em que passa em vista os diversos
acontecimentos históricos que a marcaram como eventos geológicos, terminando com a análise
crítica das últimas tendências da língua alemã erudita (Wolf, Baumgarten, Meier, Kant). E tudo isso
apenas como prelúdio ao referido tratado sobre a origem das línguas, que ganhou o prêmio em 1770.
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A ontologia wolffiana consistia numa analítica pura, a priori, do ser. Kant, por sua vez, traduziu
esse sistema numa analítica não mais do ser, mas do horizonte (transcendental) da experiência. Mas
essa analítica transcendental pretendia habitar e articular o elemento de “pureza” e aprioricidade por
assim dizer pré-predicativa. Seu corolário, uma teoria transcendental dos juízos. Não se trata para
Kant portanto das palavras que constroem mundos (impossíveis), mas da tríade: formas da
sensibilidade, categorias lógicas e ideias da razão, que legislam sobre o horizonte semântico da
experiência. A lógica transcendental está aquém, além, ao lado, acima do ser; não é ele, não se
desdobra no elemento do ser, porém na infrastrutura transcendental que legisla sobre o uso
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empírico da razão. Apenas que, como busquei indicar acima, o ser do partido dos “especuladores” já
não era o ser de Wolff, mas a palavra-coisa, o ser enquanto “semente” inanalisável da língua. - A
crítica de Kant ao partido dos especuladores atravessa praticamente toda a sua obra. Se nos
primeiros anos de 1760 encontramos o filósofo de Königsberg a debater com Mendelssohn, na
década de 1780 o debate com Herder se torna aberto e declarado (vide a Resenha de Kant às Ideen de
Herder, seu texto sobre o conceito da raça humana, e especialmente o célebre Was heisst sich im
Denken orientieren).
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Isso permite, acredito, elucidar a contento a polêmica asserção hegeliana, da Introdução à WdL:
“Por causa disso se pode expressar que esse conteúdo é a apresentação de Deus, tal como ele é em
sua essência eterna antes da criação da natureza e de um espírito infinito.” (HEGEL, 2016, p. 52). A
investigação schellinguiana sobre a essência da liberdade (de 1809) ocorre entre os dois extremos, a
essência como fundamento da existência (Deus antes da criação do mundo) e a essência como
existência (Deus criando o mundo). A articulação hegeliana da lógica, porém, ocupa e desenvolve o
espaço que para Schelling era apenas seu pressuposto, o chão mesmo de sua especulação, para além
do qual apenas o Ungrund, a Indifferenz, qual seja, esse espaço anterior à criação do mundo. Por
isso, Hegel se vê capaz de articular o que para Schelling era apenas a noite escura do sem-fundo, o
mal, o não-ente (o nada). Da inauguração desse espaço (propriamente do horizonte do que Schelling
consideraria o nada em si mesmo) resulta que a tese hegeliana sobre a essência da liberdade humana
não estará restrita à reconexão com a existência da luz divina no interior do humano (reconciliação
com o ente), porém se alça à reconciliação com o caráter contraditório, misto de ser e nada, da vida
ético-política, propriamente o Estado.
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“Como pode então a Lógica, ou uma filosofia determinada em geral, demonstrar a verdade e a
realidade se ela começa com uma contradição ante a realidade sensível, ante o entendimento da
efetividade, sem dissolver essa contradição?”
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Assim, o capítulo intermediário da Doutrina do Ser contém uma narrativa histórica bastante
determinada: trata-se de elucidar os passos pelos quais a filosofia e a ciência modernas desdobraram
essas oposições duras da metafísica clássica e medieval em relações de grandeza. A versão moderna
do atomismo clássico (de faceta atomista-empirista segundo os newtonianos, de faceta
monadológico-idealista segundo os leibnizianos) alcançou assim integrar na dinâmica quantitativa a
oposição lógica fundamental em que se fundava a filosofia de Demócrito. O elemento onticamente
negativo do atomismo democriteano, o vácuo, foi pela matemática moderna englobado ao processo
mediante o qual a própria realidade numérica se engendra dinamicamente. O infinitesimal, assim,
foi proposto como um objeto matemático perfeitamente dinâmico, que contém pretensamente em si
o movimento próprio (infinito) do pensar e do mundo, por isso está fundado num símbolo complexo
(dx\dy), num pensamento complexo (o da ultima ratio das fluxiones de Newton -- ou num sistema
complexo como a teoria dos conjuntos de Cantor). A quantidade se fez essência do pensamento. Mas
o objetivo de Hegel na Quantidade é mostrar como a esse agregado complexo de símbolos e de
representações que constitui a doutrina do cálculo infintesimal e diferencial não subjaz propriamente
um conceito. Tal conceito surge apenas quando se alcança traduzir qualitativamente (em termos da
filosofia) a operatividade dos matemáticos. Resultado disso o conceito da relação de potência e da
medida.
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c) Ser e Medida
A metafísica do cálculo infinitesimal terá sido, por assim
dizer, a descoberta da América da lógica. Deu um largo passo
adiante em relação à clássica metafísica do começo, descobriu
inclusive o verdadeiro conceito do infinito (vide o elogio de Hegel a
Espinoza quanto a isso), articulou-o contudo mediante o engenho,
o mecanismo, a astúcia “escravista” do cálculo e da característica
(i.e. mediante os “mistérios” de dx/dy, da ultima ratio -- nem
antes, nem depois, mas enquanto evanescem as fluxiones). De tais
mistérios terá surgido, para Hegel, além do descalabro do
atomismo social da sociedade burguesa da Europa ocidental, além
do horror (jacobino e romântico) da liberdade do arbítrio
moderna, ainda uma ominosa “neuseinwollende
Korpuscuplarphilosophie”, a saber, o atomismo moderno que
alcançaria mais tarde na tabela periódica de Mendeleiév a sua
expressão computacional completa -- e no solo das cidades de
Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl e Fukushima a sua verdade.
Sendo assim, a Doutrina do Ser tem uma tarefa tríplice negativa: 1)
suspender a metafísica do começo, a ontologia tradicional,
mediante a asserção: ser e nada são o mesmo; 2) suspender a
metafísica do infinitesimal mediante a exposição de que os
mecanismos quânticos são e serão sempre incompletudes,
alcançando assim separar quantidade e essência um século antes
de Gödel; e por último 3) depois da suspensão da categoria do
progresso infinito pela categoria da relação de potência, suspender
- e isto significa, mostrar que o pensamento não estará a ela
restrito - a metafísica do atomismo (tanto o atomismo corpuscular
quanto social) moderno. O ser de Parmênides, assim, teria na
modernidade se secularizado, i.e., se traduzido na medida atômica
proposta por Dalton et. al. Com isso, revelou-se: o ser é a sua
medida. Mas Hegel dá um passo adiante: cada época sócio-cultural
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Referências
HERDER, Werke (ed. por W. Pross), Carl Hanser Verlag, Munique-Viena, 1984,