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Ler História

63 | 2012
A transição democrática portuguesa

«Quando Portugal contou para a América». Os


Estados Unidos e a transição democrática
portuguesa
Les Etats-Unis et la transition démocratique portugaise
The United States and the Portuguese democratic transition

Tiago Moreira de Sá

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/384
DOI: 10.4000/lerhistoria.384
ISSN: 2183-7791

Editora
ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa

Edição impressa
Data de publição: 1 Setembro 2012
Paginação: 109-125
ISSN: 0870-6182

Refêrencia eletrónica
Tiago Moreira de Sá, « «Quando Portugal contou para a América». Os Estados Unidos e a transição
democrática portuguesa », Ler História [Online], 63 | 2012, posto online no dia 09 abril 2015,
consultado no dia 03 maio 2019. URL : http://journals.openedition.org/lerhistoria/384 ; DOI : 10.4000/
lerhistoria.384

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Internacional.
Ler história | N.º 63 | 2012 | pp. 127-141

TRANSIÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO. AS RELAÇÕES ENTRE PORTUGAL


E O BRASIL (1974-1976)

127
Thiago Carvalho
| Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CEHC-IUL

Introdução
Este artigo propõe-se analisar as relações luso-brasileiras a partir de
quatro acontecimentos concomitantes: a revolução e a transição para a
democracia em Portugal; o princípio da liberalização política no Brasil; a
descolonização em África. O lapso temporal incide no período que vai de
abril de 1974 a dezembro de 1976 e a sua escolha decorre da perceção de
que os quatro processos acima enunciados conduziram à revisão dos modelos
de inserção internacional português e brasileiro, bem como do padrão de
relacionamento entre os dois países.
O ponto de partida deste estudo é o impasse em que se encontravam as
relações luso-brasileiras nas vésperas do 25 de abril, decorrente, em grande
parte, das divergências existentes entre Lisboa e Brasília quanto à questão
colonial portuguesa. De seguida, examinaremos como a revolução repercutiu
nas relações bilaterais e em que medida a atuação da diplomacia brasileira
influenciou o processo de descolonização e a consolidação dos setores polí-
ticos moderados em Portugal. Por fim, avaliaremos se a mudança de regime
e a progressiva institucionalização da democracia conduziu a alterações no
padrão de relacionamento entre ambos os países.

Fim do apoio brasileiro ao Ultramar Português (1946-1974)


A questão colonial assumiu crescente importância na agenda diplomática
portuguesa à medida que o conflito militar em África se prolongava e a defesa
política do ultramar perdia apoios internacionais. Para compreender como
o processo de descolonização se repercutiu nas relações luso-brasileiras, é
necessário analisar a evolução dos vínculos bilaterais e o despertar do inte-
resse do Brasil pelo continente africano no terceiro quartel do século XX.
A ordem bipolar que emergiu após a II Guerra Mundial alterou a corre-
lação de forças do sistema de alianças, obrigando a diplomacia portuguesa e a
brasileira a reajustarem as respetivas políticas externas. Desde então, ocorreu
a progressiva diferenciação de objetivos e de perceções entre Lisboa e Bra-
sília, fazendo com que o tradicional alinhamento automático entre as duas
chancelarias fosse gradualmente substituído pelo impasse no diálogo bilateral.
Thiago Carvalho | Transição e descolonização...

Num primeiro momento, que vai do princípio da década de 50 até


1969, as relações luso-brasileiras foram marcadas pela ambiguidade. Isto é,
o apoio do Brasil ao colonialismo português oscilou em função da política
128 interna, refletindo as divisões existentes na Administração brasileira quanto
ao modelo de desenvolvimento e de inserção internacional a adotar. Em
sentido contrário às mudanças que estruturavam o mundo do pós-guerra,
Brasília foi durante a década de 50 um dos principais aliados da política
externa portuguesa, nomeadamente no que diz respeito à manutenção do
Império1. Todavia, esse posicionamento não reunia consenso e perderia
apoios à medida que ao longo dos anos 60 ganhava força, junto das elites
governamentais brasileiras, a proposta de implementação de uma política
externa global. Enquanto foi possível, a diplomacia portuguesa reverteu
habilmente essas divisões a seu favor com o propósito de assegurar o apoio
de Brasília ou, ao menos, de minimizar as divergências bilaterais. No perío-
do em que o alinhamento automático entre os dois países foi posto em
questão, celebraram-se dois instrumentos jurídicos – o Tratado de Amizade
e Consulta (1953); e a Convenção Sobre a Igualdade de Direitos e Deveres
(1971) – que tinham a finalidade de aprofundar o relacionamento bilateral
e consubstanciar a Comunidade Luso-Brasileira2.
A ideia de Comunidade foi compreendida e instrumentalizada de modo
distinto pelas duas diplomacias. Por um lado, as Necessidades pretendiam
que a institucionalização da Comunidade comprometesse a política externa
brasileira com a política ultramarina, reduzindo as probabilidades de mani-
festação oficial de Brasília a favor da emancipação das colónias. Por outro
lado, o Itamaraty entendia a Comunidade como Luso-Afro-Brasileira. Isto
é, identificava África como interlocutor, autonomizando as relações com as
colónias do vínculo metropolitano. Essa interpretação mais ampla da ideia
de Comunidade revela que a diplomacia brasileira procurava assumir uma
nova posição no continente e que se arrogava corresponsável pela defesa
do legado lusófono, subtraindo a Lisboa a primazia no estabelecimento de
relações entre as duas margens do Atlântico3.
A partir de 1969 até 1974, as relações bilaterais foram marcadas por
divergências crescentes que conduziram à sua estagnação. Em Portugal, o
marcelismo mostrava-se incapaz de pôr termo à guerra colonial e de empre-
ender a efetiva liberalização política e económica, ficando sem alternativas

1 Gonçalves, Williams da Silva, O Realismo da Fraternidade: Brasil – Portugal, Lisboa, ICS, 2003, p. 107.
2 Saraiva, José Flávio Sombra, O Lugar da África. A Dimensão Atlântica da Política Externa Brasileira (de 1947 a
nossos dias), Brasília, Universidade de Brasília, 1996, pp. 98-118.
3 «Relatório sobre as relações luso-brasileiras produzido pelo MNE, de 22 de junho de 1969, pp. 1-25», PEA confi-
dencial 16, n.º 337, AHDMNE.
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no plano externo para contrariar o crescente isolamento internacional4 e o


fim do alinhamento automático brasileiro. Por sua vez, a distensão da ordem
bipolar permitiu ao Brasil implementar uma política externa mais autónoma
e flexível, livre dos alinhamentos rígidos da Guerra Fria e que tinha por 129
finalidade concorrer para o êxito do projeto nacional-desenvolvimenitsta5.
Essa nova orientação implicava na revisão das alianças tradicionais e atribuía
prioridade às relações com o continente africano, tornando inconciliável a
defesa do ultramar português. Como consequência, Brasília evitava «todo e
qualquer envolvimento político e militar no problema colonial lusitano» e
passou a defender a solução negociada para o conflito6. Quando chegamos
a 1974, há um conjunto de divergências bilaterais acumuladas ao redor
da questão colonial que refletiam estratégias nacionais e políticas externas
distintas, e que conduziram as relações luso-brasileiras a um impasse.

Revolução, mudança de regime e política externa


O 25 de abril de 1974 foi recebido com expectativa em Brasília. Dois
dias após o levantamento militar, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o
regime português. O colapso do Estado Novo e a descolonização tinham-se
tornado pré-condições para Brasília normalizar as relações com Lisboa e,
sobretudo, para relançar a sua política africana. Quinze dias após a revo-
lução, o então embaixador português em Brasília, José Hermano Saraiva,
relatava ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) que o Itamaraty
considerava os vínculos com Lisboa «à luz dos interesses decorrentes de uma
relação geral Brasil-África, e não de uma relação específica Brasil-Portugal»7.
Nos meses seguintes, as atenções da diplomacia brasileira em relação a
Portugal não ficariam circunscritas à descolonização. O otimismo com que
Brasília reconheceu o novo regime português foi rapidamente substituído
por dúvidas quanto à sua natureza política, que se acentuaram à medida
que o processo revolucionário se radicalizava. Rapidamente as relações

4 Oliveira, Pedro Aires, «A Política Externa», in A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-
-1974), coord. Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira, Lisboa, Editorial Notícias, 2004, pp. 302-303.
5 A estratégia de diversificação dos laços económicos e políticos, proposta pelo Pragmatismo Responsável, atingiu
os seus objetivos. Por um lado, alcançou níveis inéditos de internacionalização da economia, colaborando para o
projeto nacional-desenvolvimentista. Por outro, redimensionou o âmbito da política externa brasileira que avançou para
espaços até então secundarizados, propiciando a médio prazo uma inserção internacional mais ampla e autónoma
para o Brasil. Ver: Cervo, Amado Luiz e Bueno, Clodoaldo, História da Política Exterior do Brasil, Brasília, UNB,
2008, 3.ª ed., pp. 397-425.
6 «Relatório sobre as relações Brasil-Portugal, enviado pelo MRE, Mário Gibson Barboza, ao Presidente Garrastazu
Médici, de 22 de janeiro de 1974, pp. 1-45», AAS mre/ rb 19740523, Pasta III – A 1 (Anexo), CPDOC/FGV.
7 «Relatório sobre os principais problemas de natureza política, cultural e económica atualmente pendentes nesta
embaixada, enviado pela Embaixada de Portugal em Brasília ao MNE, de 9 de maio de 1974, pp. 1-7», PEA 31/1974,
n.º 337, AHDMNE.
Thiago Carvalho | Transição e descolonização...

luso-brasileiras foram condicionadas pela polarização ideológica, à direita


no Brasil e à esquerda em Portugal, dando azo a manifestações de agra-
vo e a reticências recíprocas que as conduziram à quase paralisia. O
130 Governo de Ernesto Geisel (1974-1979), penúltimo da ditadura civil-
-militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1986, tornou-se alvo de protestos
cada vez mais violentos que visavam a missão brasileira em Lisboa e os
dirigentes políticos daquele país. Como agravante a este contexto hostil,
as tergiversações do processo revolucionário português repercutiam na
condução da política externa, colocando em questão os vínculos com a
ditadura brasileira.
Em junho de 1974, uma missão da Junta de Salvação Nacional (JSN),
chefiada pelo general Galvão de Melo, deslocou-se ao Brasil com o pro-
pósito de pôr fim à sucessão de mal-entendidos e de assegurar o apoio do
Governo brasileiro ao novo regime português. Citando fonte diplomática
estrangeira, o Jornal de Brasília mencionava que naquele período as relações
luso-brasileiras eram «tecnicamente perfeitas, porém frias, muito frias»8.
O êxito da missão portuguesa foi limitado. Por um lado, a instabilidade
política e a radicalização à esquerda em Portugal dificultavam o diálogo
com a ditadura de direita brasileira. Por outro, a prioridade do Itamaraty
era a de que o novo regime português reconhecesse prontamente o direito
à autodeterminação das colónias e que, se possível, envolvesse o Brasil nas
negociações em curso9. A JSN não podia corresponder às aspirações brasileiras
pois naquele momento não havia consenso em Portugal acerca de como e
quando decorreria a descolonização. Tão pouco, face à multiplicação dos
polos de poder que concorriam entre si, havia como controlar de modo
eficaz as críticas e a oposição à ditadura brasileira10.
Face à rápida radicalização política em Portugal e atravessando um
período difícil nas relações bilaterais, o Itamaraty acreditava que Lisboa
não recorreria à sua mediação e que tão pouco o mantinha ao corrente
das conversações sobre o processo de independência. Nesse contexto, o
Governo brasileiro decidiu atuar autonomamente, procurando não correr
o risco de ser excluído das oportunidades que julgava virem a surgir com
a descolonização. A 18 de julho de 1974, o Brasil reconheceu a indepen-
dência da Guiné-Bissau, antecipando-se a Portugal e à ONU. Com esta
decisão, Brasília pretendia recuperar a iniciativa política e distanciar-se do
passado de apoio tácito ao colonialismo, dando prova de autonomia face

8 AHDMNE – PEA 31/1974, n.º 337, Jornal de Brasília, 6 de junho de 1974, sem página.
9 «Visit of general Galvão de Melo to Brazil, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento
de Estado, de 24 de junho de 1974, pp. 1-8», NARA, Document Number: 1974Brasil04584.
10 Telo, António José, História Contemporânea de Portugal, Lisboa, Presença, vol. I, pp. 43-45.
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à diplomacia portuguesa, ao mesmo tempo que enviava um sinal claro


aos movimentos de libertação de que apoiava o pronto reconhecimento
do direito à autodeterminação. Na opinião da embaixada dos EUA em
Brasília, ao pressentir que a descolonização da Guiné-Bissau era «iminen- 131
te», o Ministério das Relações Exteriores (MRE) resolveu reconhecer a sua
independência com o objetivo de «obter o maior crédito possível» junto
dos governos africanos não vindo a reboque da iniciativa portuguesa11.
Poucos dias após o reconhecimento de Bissau, o chanceler brasileiro,
António Azeredo da Silveira, viria a confirmar publicamente que «a nova
política africana do Brasil» estava «apenas começando» e que outros
«gestos», como o «reconhecimento da independência da Guiné-Bissau»,
seriam em «breve realizados»12.
Apesar das inúmeras críticas proferidas pelos meios oficiais em Lisboa,
que acusavam o Itamaraty de «desenvolver uma política africana às custas de
Portugal»13, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) assentiu com o
estabelecimento de missões especiais do Brasil em Angola e em Moçambique,
no princípio de 1975, cujo propósito era permitir à diplomacia brasileira
acompanhar de perto o processo de descolonização, acautelando a sua posição
naqueles territórios. Como demonstra o relatório do MRE, a prioridade era
deixar claro aos movimentos de libertação que o Brasil «estava pronto, no
momento oportuno, a oferecer a sua colaboração ao Governo estabelecido
logo após a independência»14.
O apoio brasileiro às pretensões de Bissau não implicava riscos diplo-
máticos, pois a Guiné já havia sido reconhecida por um número signifi-
cativo de Estados e em breve também o seria por Portugal e pelas Nações
Unidas. Tratou-se de uma decisão com forte dimensão simbólica e que
pretendia atingir dois objetivos. A médio prazo, afirmar a nova estratégia
de Brasília para o continente africano, facilitando as relações com Luanda
e Maputo. No imediato, influenciar a política interna portuguesa, favore-
cendo os setoressectores que, tal como o Governo brasileiro, defendiam a
rápida transferência de poderes. O Itamaraty sabia que em Portugal não
havia consenso quanto ao modelo de descolonização a seguir e de que esta
era uma decisão de fundo, que definia o equilíbrio de forças políticas e
o futuro da revolução. Ao reconhecer a independência da Guiné-Bissau,
Brasília pretendia influenciar o incerto cenário político português, forta-

11 «Brazil recognizes Guinea – Bissau, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento de
Estado, de 20 de julho de 1974, pp. 1-3», NARA, Document Number: 1974Brasil05392.
12 AHDMNE – PEA 31/1974, n.º 337, Jornal de Brasília, 23 de julho de 1974, sem página.
13 AHDMNE – PEA 31/1974, n.º 337, Estado de São Paulo, 20 de julho de 1974, sem página.
14 «Relatório do MRE sobre a descolonização dos territórios africanos sob Administração portuguesa, novembro de
1974, pp. 1-4», AAS mre/rb 19740523, Pasta II-4, CPDOC/FGV.
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lecendo os setores favoráveis à descolonização imediata, nomeadamente o


Partido Socialista (PS)15.
Desde meados de 1974 que a diplomacia brasileira atribuía ao PS um
132 papel decisivo na transição para a democracia e no processo de descoloni-
zação16. Por sua vez, as relações estreitas com o Brasil, que vinha desempe-
nhando ativa política em África e se assumia como interlocutor no diálogo
Norte-Sul, poderia ser uma mais valia ao realinhamento e à plena integração
de Portugal no sistema internacional. A identificação de interesses entre o
PS – que carecia de apoios internacionais para afirmar-se internamente – e
a diplomacia brasileira – que via no Partido Socialista a força política capaz
de encaminhar a revolução rumo à democracia e à descolonização – concor-
reu para que o MNE, então chefiado por Mário Soares, correspondesse ao
empenho do Itamaraty em atribuir especial importância às relações bilaterais,
procurando situá-las acima das questões do regime. O franco entendimento
entre o chanceler brasileiro, Azeredo da Silveira, e o seu homólogo português,
revelou ser determinante para que os canais de diálogo permanecessem abertos
apesar da escalada de tensão entre os dois países.
A renúncia do general Spínola à presidência da República, a 30 de
setembro de 1974, alterou a correlação de forças em disputa pelo controlo
da revolução a favor da extrema-esquerda17. Os setores mais conservadores
do regime militar brasileiro interpretaram a ascensão do «gonçalvismo»
como a confirmação de que Portugal passara para a órbita soviética e cri-
ticaram duramente o facto do Ministério das Relações Exteriores manter a
confiança no Governo português. Em audiência com o presidente Geisel, o
chanceler Azeredo da Silveira defendeu a posição assumida afirmando que
«mesmo que Portugal se tornasse comunista, o Brasil nunca poderia deixar
de considerar como prioritárias e especiais» as relações bilaterais18. A pros-
secução da aproximação a Lisboa só foi possível, pois contou com o apoio
da Presidência da República. Estava em questão o êxito do «Pragmatismo
Responsável»19, que pugnava por uma inserção internacional independente

15 «Brazilian recognition of Guinea-Bissau, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília ao Departamento
de Estado, de 29 de julho de 1974, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1974Brasil05590.
16 «Sobre a organização do ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e as relações luso-brasileiras, telegrama
enviado pela embaixada do Brasil em Lisboa ao MRE, de 23 de maio de 1974, pp. 1-2», AAS mre/ rb 19740523,
Pasta I-3, CPDOC/FGV.
17 Rodrigues, Luís Nuno, Spínola, Lisboa, Esfera dos Livros, 2010, pp. 491-528.
18 «Aerograma n.º 449, sobre a visita do Chanceler do Brasil a Portugal, de 21 novembro de 1974, pp. 1-2», PEA
764/1973-74, n.º 337, AHDMNE.
19 A política externa «Pragmática e Responsável» assentava em três vetores: a política externa era entendida como
instrumento do desenvolvimento económico; a diversificação das relações diplomáticas pretendia aprofundar a
integração do país na economia mundial, ampliando a sua importância internacional e diminuindo as suas vul-
nerabilidades; a opção pela inserção autónoma e livre dos condicionalismos da Guerra Fria deveria maximizar a
capacidade de decisão do Estado face ao sistema internacional.
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das fronteiras da Guerra Fria, e o processo de liberalização empreendido


pelo Governo Geisel, cujo resultado dependia da capacidade de conter a
influência política da linha dura do regime.
Em dezembro de 1974, realizou-se em Lisboa o encontro entre os minis- 133
tros dos Negócios Estrangeiros dos dois países. O seu objetivo principal era
situar o relacionamento bilateral acima das questões do regime no momento
em que as divergências políticas e ideológicas se avolumavam, prejudicando
o desenvolvimento das relações luso-brasileiras. O êxito limitado do encontro
ministerial deve ser compreendido no contexto da rápida radicalização do
«gonçalvismo», um período de grande instabilidade e de fragmentação do
poder, o que dificultava a execução de uma política externa coerente. O
propósito de imprimir maior pragmatismo político e económico aos vínculos
comuns foi travado pela grave crise política e institucional portuguesa, e pela
incapacidade das duas diplomacias estabelecerem os mecanismos necessários
à redefinição do padrão de relacionamento bilateral.
A radicalização do processo revolucionário português, sobretudo a
partir do 11 de março de 1975, fez-se sentir de modo concreto em Brasília.
A coletivização da economia deu origem a uma nova vaga migratória em
Portugal, composta por empresários e profissionais liberais, que partiam
para o Brasil deixando para trás a crise política e económica20. Ao mesmo
tempo, aumentaram as críticas à ditadura brasileira nos meios de comu-
nicação e registaram-se atos violentos, como o atentado aos escritórios da
companhia de aviação brasileira, VARIG, e as ameaças à integridade do
corpo diplomático. A responsabilidade por muitos desses incidentes cabia
diretamente ao próprio Estado português, como exemplifica a tentativa de
nacionalização da agência do Banco do Brasil em Lisboa ou o apoio de
parte das Forças Armadas às atividades da oposição brasileira em Lisboa21.
Na perspetiva do Itamaraty, a orientação ideológica do governo portu-
guês não era determinante para a manutenção dos vínculos bilaterais. O
que comprometia as relações com Portugal, e os interesses brasileiros em
África, era a crescente instabilidade política decorrente da radicalização do
«gonçalvismo». A partir do I Pacto MFA-Partidos, a 11 de abril, o MRE
adotou uma estratégia de baixo perfil em relação a Lisboa, na expectativa
de que em breve o equilíbrio de forças alterar-se-ia em direção ao centro22.
Seria necessário aguardar pelo 25 de novembro de 1975 para que as forças

20 Diário de Notícias, 27 de maio de 1975, p. 3.


21 Carvalho, Thiago de Almeida, Do Lirismo ao Pragmatismo. A Dimensão Multilateral das Relações Luso-Brasileiras
(1974-1976), Lisboa, Instituto Diplomático, 2009, pp. 104-109.
22 «Highlights of secretary’s luncheon for Silveira, telegrama enviado pelo Departamento de Estado a embaixada dos
EUA em Brasília, de 17 de maio de 1975, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1975State115636.
Thiago Carvalho | Transição e descolonização...

políticas e militares moderadas recuperassem a iniciativa e tivesse início a


progressiva normalização das relações luso-brasileiras.

134
Bloqueio político em Lisboa, avanço diplomático em África
Enquanto as relações com Lisboa atravessavam o seu momento de
maior tensão, o Governo brasileiro prosseguia a estratégia de aproximação
com a África. Uma das prioridades do Itamaraty era alterar a imagem do
Brasil no continente, dissociando-o do colonialismo português. Apesar do
reconhecimento da Guiné-Bissau, em julho 1974, ter sido recebido com
«entusiasmo» pelos diplomatas africanos credenciados em Brasília, não fora
suficiente para pôr fim às desconfianças dos movimentos de libertação quan-
to às reais intenções da ditadura militar brasileira23. Tão pouco assegurou
imediatamente ao Brasil uma posição mais favorável do que a portuguesa
junto a Angola e a Moçambique.
Se em princípios de 1975 as relações com Bissau estavam normali-
zadas, em parte devido à própria dinâmica da autodeterminação guine-
ense, o mesmo não ocorria em relação a Luanda e a Maputo. Faltava
ao Governo brasileiro dar prova inequívoca da sua nova política afri-
cana. Reconhecer a independência de Angola, sob a liderança de Agos-
tinho Neto, parecia ser a ocasião perfeita. Por um lado, a fragmentação
do poder político em Lisboa e a falta de operacionalidade dos meios
militares portugueses, assim como a limitada capacidade de intervenção
internacional da Administração Ford, geraram um vazio de poder em
África que foi explorado pelo Itamaraty. Por outro, apesar das reticências
quanto ao passado de apoio tácito ao colonialismo e à natureza do regime
brasileiro, havia recetividade por parte do MPLA em desenvolver relações
com o Brasil24.
A 11 de novembro de 1975, o Governo de Ernesto Geisel foi o pri-
meiro a reconhecer o MPLA como representante do novo Estado angolano,
adotando uma decisão de amplo significado geoestratégico. Em primeiro

23 Folha de São Paulo, 20 de julho de 1974, p. 4. A decisão brasileira foi interpretada pelos meios diplomáticos africanos
como uma «demonstração de independência da política externa» do Governo Geisel «frente a Portugal» e como
resposta à solicitação enviada pela a OUA ao Itamaraty, a 31 de maio de 1974, para que o Brasil exercesse maior
influência no processo de descolonização. A repercussão positiva que o reconhecimento de Bissau teve junto aos
membros da OUA foi salientada pelo Chanceler Azeredo da Silveira em correspondência com o Presidente Geisel.
Ver: «Informação Para o Senhor Presidente da República. Guiné-Bissau, de 6 de setembro de 1974, p. 1», EG.PR.
1974.03.00/2 – CPDOC/FGV.
24 O MRE recebeu da missão em Luanda várias indicações de que o MPLA seria recetivo às relações com o Brasil após
a transferência de poderes, tendo inclusive convidado o presidente Geisel a participar na cerimónia de independência.
Ver: «Aerograma n.º 507, conversa entre Azeredo da Silveira e Vasco Futscher Pereira sobre o reconhecimento do
MPLA e as suas repercussões, enviado pela embaixada de Portugal em Brasília ao MNE, de 11 de novembro de
1975, pp. 1-3», PEA 21/1975, n.º 320, AHDMNE.
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lugar, o Governo brasileiro demonstrava possuir uma política africana


própria, livre do alinhamento bipolar com Washington e dos embaraços
causados pela proximidade a Lisboa. Em segundo, Angola era percebida
como a chave da política externa para todo o continente, e imprescindível 135
à normalização dos contactos com a FRELIMO25. Em terceiro, Brasília
consubstanciava a sua estratégia de diversificação dos vínculos políticos e
económicos, independente das fronteiras ideológicas.
No que diz respeito à melhoria do relacionamento com as ex-colónias
portuguesas, a iniciativa brasileira teve efeitos imediatos. A 15 de novembro
de 1975, portanto quatro dias após a independência de Angola, Moçambi-
que normalizou as relações com o Brasil. Ainda que esta decisão não tenha
significado o fim das reticências por parte das autoridades moçambicanas,
foi uma conquista importante para a diplomacia brasileira que atribuía às
relações com Maputo um papel decisivo na consolidação da sua presença
na costa leste da África. Como observou a embaixada dos EUA em Brasília,
com o propósito de melhorar a «imagem e a credibilidade» do Brasil junto
aos «Estados Africanos mais progressistas», o Itamaraty entendeu que era
urgente «reforçar a sua presença na África lusófona» e demarcar-se do «pas-
sado de apoio ao colonialismo português». O modo mais rápido e eficaz
de o fazer seria «apoiar o MPLA em detrimento da FNLA e da UNITA»,
cujas relações com o Zaire e a África do Sul eram questionadas por vários
líderes africanos26.
A aproximação do Brasil a África, em meados da década de 70, decorreu
de uma estratégia delineada pelo Governo e cujo propósito era internaciona-
lizar a economia brasileira, diminuir a dependência energética e diversificar

25 Segundo a embaixada dos EUA em Brasília, o chanceler Azeredo da Silveira recebera garantias do seu homólogo
moçambicano, Joaquim Chissano, de que em breve Maputo poderia estabelecer relações com o Brasil. Ver: «Reaction
to Brazilian recognition on MPLA as Government of Angola, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília
ao Departamento de Estado, de 18 de novembro de 1975, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1975Brasil09965.
26 «Approach to Brazil on question of Angolan recognition, telegrama enviado pela embaixada dos EUA em Brasília
ao Departamento de Estado, de 10 de novembro de 1975, pp. 1-4», NARA, Document Number: 1975Brasil09749.
De 1972 a 1977 o Brasil elevou mais de seis vezes as suas exportações para África, saltando de US$ 90.390 mil
para US$ 568.987 mil. Esse crescimento tornou-se ainda mais expressivo na primeira metade da década de 1980.
Em 1972, África tinha uma participação de 2,30% no total das exportações brasileiras, enquanto em 1981 – ano
do maior volume do comércio africano – o percentual elevou-se a 8,40%. Enquanto em 1971 15% das exportações
brasileiras para África eram de manufaturados, em 1978 esse índice atingiu 81%. Em contrapartida, as importações
provenientes da África concentram-se em produtos primários. Importa salientar que essas trocas decorreram com
poucos países africanos, com destaque para os produtores de petróleo, tendo o comércio com os demais um
comportamento irregular. Na segunda metade da década de 1970, oito países absorviam o equivalente a 80% das
exportações brasileiras para África, enquanto que cinco – Argélia, Líbia, Nigéria, Congo, Gabão e Angola – forne-
ciam cerca de 90% das exportações para o Brasil. A utilização do countertrade – pagamento parcial ou total de
mercadorias por meio de mercadorias – deslocou as compras brasileiras de petróleo do Médio Oriente e da América
Latina para África, posicionando a Nigéria e Angola – sobretudo a partir de 1984 – como os principais parceiros
comerciais do Brasil em África. Ver: Santana, Ivo, A Experiência Empresarial Brasileira na África (1970 a 1990),
Salvador, Ponto e Vírgula, 2004, pp. 57-69.
Thiago Carvalho | Transição e descolonização...

os vínculos políticos27. O apoio à autodeterminação das colónias portugue-


sas revelou ser determinante para afirmação da política africana brasileira.
Contou com a solidariedade de países com forte influência regional, como
136 o Senegal e a Nigéria, com os quais Brasília mantinha laços estreitos; com
a concordância de parte das elites dirigentes portuguesas, que autorizaram
o estabelecimento da missão especial brasileira em Angola e Moçambique
e que defendiam a rápida transferência de poderes; e com abordagem
realista dos movimentos de libertação, que viam nas relações com o Brasil
boas perspetivas políticas e económicas. A normalização das relações com
a África lusófona conferiu credibilidade à política africana do Itamaraty,
permitindo que em poucos anos o Brasil deixasse de ser visto como aliado
do colonialismo português, ou instrumento do «imperialismo» americano,
para ser considerado por muitos Estados um parceiro político e económico
relevante28.

A institucionalização da democracia e a normalização dos vínculos


bilaterais
A partir do 25 de novembro de 1975, ocorreu a gradual distensão dos
vínculos bilaterais, sobretudo após a eleição para a Presidência da República
e a tomada de posse do I Governo Constitucional português em 1976. Com
a progressiva institucionalização da democracia em Portugal, diminuiriam
as eventuais zonas de tensão e criaram-se condições para a normalização das
relações luso-brasileiras. Esse foi o período em que teve início a clarificação
da política interna e externa portuguesa, em que se procurou rever o con-
ceito estratégico nacional, definindo Portugal como país simultaneamente

27 Santana, Ivo de, «Notas e Comentários Sobre a Dinâmica do Comércio Brasil-África nas décadas de 1970 a 1990»,
Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 49 (2), 2006, pp. 120-129.
28 O Estado brasileiro desempenhou um importante papel no estreitamento dos vínculos políticos e económicos com
África. Tendo o propósito de facilitar as exportações brasileiras de bens de capital e produtos de consumo duráveis,
bem como o pagamento de serviços, o Governo brasileiro disponibilizou linhas de crédito a países como Angola,
Moçambique, Senegal, Costa do Marfim, Gabão, Guiné-Bissau, Níger, Mali, Togo, e Zaire. Outra medida relevante
foi o posicionamento do Brasil dentre os cinco maiores participantes – com cerca de US$ 20 milhões – no Fundo
Africano de Desenvolvimento, o que facilitava a presença das empresas brasileiras nos projetos financiados pelo
Banco Africano de Desenvolvimento ou por ambas as entidades. A criação de trading companies, privadas e esta-
tais, e de joint ventures, aprofundou as relações com os países supracitados e alargou-as a novos parceiros como
a Tanzânia, Mauritânia, Libéria, Marrocos, Sudão e Zimbábue. A partir de finais da década de 1970, e sobretudo
na primeira metade dos anos 80, estes mercados africanos abriram-se às empresas brasileiras de prestação de
serviços, especialmente àquelas voltadas para a construção de obras-públicas e de infraestrutura, exploração de
petróleo, projetos agrícolas e prospeção mineral. Os países africanos beneficiaram da transferência tecnológica e
de serviços brasileiros, e poderiam reduzir a sua dependência em relação aos tradicionais parceiros comerciais
no hemisfério norte. A aposta nas relações com o Brasil também tinha em consideração as baixas possibilidades
de Brasília ingerir na política interna africana, por falta de meios e por opção estratégica. Ver: Santana, Ivo, A
Experiência Empresarial Brasileira na África (1970 a 1990), Salvador, Ponto e Vírgula, 2004, pp. 68-75.
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europeu e atlântico29, e que as relações com o Brasil e as ex-colónias africanas


ganharam novo impulso.
A imprensa brasileira e a portuguesa captaram as mudanças em curso.
Segundo o Jornal do Brasil, com o fim da «vertiginosa marcha ‘alla sinistra’ 137
do regime português» desaparecia a «atmosfera que impedia um relacio-
namento» bilateral «acima das contingências políticas do momento»30.
Por sua vez, o Expresso afirmava que o Governo brasileiro demonstrava
estar disposto «a passar uma esponja no que ficou para trás» e construir
um «relacionamento maduro com Portugal» 31. Essas impressões eram
corroboradas pela correspondência diplomática portuguesa. No relatório
enviado ao MNE, o embaixador Vasco Futscher Pereira concluía que após
«um longo período de reserva», as autoridades brasileiras começavam a
crer na «estabilidade política portuguesa» estando novamente «dispostas
ao diálogo»32.
Apesar do empenho das duas chancelarias na distensão do diá-
logo bilateral, as tensões acumuladas ao longo dos anos não se desfize-
ram imediatamente. Eram frequentes, nos meios de comunicação brasi-
leiros, os comentários hostis ao Governo português proferidos por
Champalimaud, as censuras de Marcelo Caetano, as referências elogio-
sas a Salazar feitas pelos brasileiros simpatizantes do Estado Novo e pe-
los emigrantes no Brasil. Por sua vez, em Portugal a imprensa continua-
va a condenar a ditadura brasileira e ocorriam mobilizações com o
propósito de denunciar o seu carácter repressivo, muitas com o patro-
cínio de órgãos do Governo33. A explicação para a continuidade desses
incidentes ao longo de 1976 e, em menor escala, nos anos seguintes, resi-
de na lenta desmobilização dos grupos de extrema-direita e de extrema-
-esquerda nos dois países, que resistiam ao novo equilíbrio político em
configuração, e revela o quão polarizadas ideologicamente estavam as
relações bilaterais.
A eleição do I Governo Constitucional, em abril de 1976, representou
um ponto de viragem nas relações luso-brasileiras. Em primeiro lugar, o
novo Executivo inscreveu-as no programa de governo como prioritárias
para processo de redefinição do conceito estratégico nacional, assumindo
o compromisso de «normalizar» os vínculos entre Lisboa e Brasília e de

29 Teixeira, Nuno Severiano, «O 25 de abril e a Política Externa Portuguesa», Revista de Relações Internacionais.
Lisboa: IPRI, n.º 1, 2004, pp. 9-10.
30 AHDMNE – PEA 21/1976, n.º 33/BRA/18, Jornal do Brasil, 18 de outubro de1976, p.10.
31 Expresso, 24 de janeiro de 1976, p. 2.
32 «Aerograma n.º 285, sobre as novas perspetivas nas relações luso-brasileiras, enviado pela embaixada de Portugal
em Brasília ao MNE, de 2 de fevereiro de 1976, p. 1». PEA 21/1976, n.º 33/BR/18, 1986, AHDMNE.
33 Carvalho, Do Lirismo ao Pragmatismo…, pp. 146-148.
Thiago Carvalho | Transição e descolonização...

tratar os diferendos bilaterais de «forma não ideológica»34. Em segundo, o


primeiro-ministro, Mário Soares, empenhou-se em «uma maior aproximação
com o Brasil» por considerar que as relações entre os dois países eram «tão
138 íntimas, tão profundas, tão necessárias a ambas as partes que transcendem
em muito e de longe os problemas conjunturais dos regimes políticos ou
dos governos»35.
O encontro bilateral a realizar-se em dezembro de 1976, em Brasília,
afigurava-se como o momento em que se colocaria à prova a vontade e a
capacidade das duas chancelarias em reequacionar as relações luso-brasileiras
em novos termos. A diplomacia portuguesa sabia ser «difícil» que as «tensões
e incompreensões acumuladas» pudessem «diluir-se em pouco tempo» e, por
isso, talvez o único objetivo a aspirar fosse diminuir as «reservas existentes»
e criar uma «atmosfera de confiança»36. A embaixada do Brasil em Lisboa
tinha opinião semelhante. Considerava que o encontro bilateral «não se
prestaria ao trato de matérias de carácter mais técnico» e sim ao «acerto de
posições políticas» que no futuro poderiam permitir o «rápido avanço» das
conversações37. Isto é, as duas diplomacias teriam que reequacionar as suas
relações à luz das transformações políticas ocorridas em Portugal e no Brasil
nos anos anteriores, nomeadamente: o processo revolucionário e a recente
institucionalização da democracia; a conclusão do processo de descolonização;
a perspetiva de integração portuguesa na Comunidade Europeia (CE); o
princípio da liberalização democrática e a influência do projeto nacional-
-desenvolvimentista na orientação da política externa brasileira.
À medida que o encontro bilateral se aproximava, tornava-se evidente
que a sua importância seria eminentemente política. Nesse sentido, a visita
oficial ao Brasil constituía uma oportunidade para o novo governo português
dissipar os receios remanescentes junto da opinião pública e da linha dura do
regime brasileiro acerca da orientação ideológica do Partido Socialista e do
rumo da revolução portuguesa. No Rio de janeiro, Mário Soares procurou
deixar claro o campo político em que se situava o PS ao afirmar publica-
mente: «Nós salvamos para a Europa, salvamos para o Ocidente, salvamos
Portugal do Comunismo»38. O passado de oposição ao gonçalvismo e o

34 Programa do I Governo Constitucional (consulta eletrónica a 27 de julho de 2012: http://www.portugal.gov.pt/


pt/o-governo/arquivo-historico/governos-constitucionais/gc01/programa-do-governo/programa-do-i-governo-
-constitucional.aspx).
35 AHDMNE – PEA 21/1976, n.º 33/BRA/18, Jornal de Brasília, 4 de agosto de 1976, p. 6.
36 «Aerograma n.º 418, sobre a viagem do primeiro-ministro de Portugal, Mário Soares, ao Brasil, enviado pela em-
baixada de Portugal em Brasília ao MNE de 24 de outubro de 1976, pp. 1-3», PEA 8/1977, n.º 33/BRA/9, 1976-7,
AHDMNE.
37 «Sobre a visita do primeiro-ministro Mário Soares ao Brasil, telegrama enviado pela embaixada do Brasil em Lisboa
ao MRE, de 26 de outubro de 1976, pp. 1-3», AAS mre/rb 19740523, Pasta III – 43 A 1, CPDOC/FGV.
38 Diário de Noticias, 21 de dezembro de 1976, p. 7.
Ler história | N.º 63 | 2012 | pp. 127-141

empenho do primeiro-ministro em convencer os empresários portugueses


radicados no Brasil a participarem na reconstrução do setor privado nacio-
nal concorriam para reforçar as suas credenciais democráticas. Apesar dos
socialistas portugueses suscitarem reservas num país que há mais de uma 139
década vivia sob ditadura de direita, acabaria por prevalecer em Brasília
a ideia de que seria preferível haver em Lisboa um Governo próximo das
democracias europeias do que o possível regresso da extrema-esquerda ao
poder. Em declaração à imprensa, o chanceler Azeredo da Silveira enfatizou
a importância do encontro ao afirmar que se tratava de um «teste muito
importante» para o êxito das relações entre os dois países39. Falando em
nome da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido que apoiava o
regime militar, o deputado Siqueira Campos observou que o «socialismo»
implantado em Portugal, «sob a liderança do jovem Mário Soares», era a
«solução para o mundo ocidental»40. O primeiro-ministro não só tinha
conquistado simpatias no seio do regime como contava com a cumplicidade
das suas figuras mais proeminentes.
Após décadas de divergências entre as estratégias de inserção interna-
cional portuguesa e brasileira, parecia haver consonância entre as respeti-
vas políticas externas. Ambos os Estados procuravam diversificar os seus
vínculos diplomáticos; pugnavam por um novo padrão de relacionamento
Norte-Sul; pela aproximação à CE; e atribuíam relevo aos laços bilaterais
e ao relacionamento com os demais países lusófonos. Esta convergência,
permitiria não só ambicionar reequacionar as relações luso-brasileiras em
termos mais concretos, perscrutando os seus limites e potencialidades, como
procurar transpor a concertação bilateral para o plano multilateral.
Foi com esse espírito que os chefes de Governo e das diplomacias
de Portugal e do Brasil se reuniram em dezembro de 1976, em Brasília.
Ao retomar a tradição das reuniões ministeriais anuais, interrompida em
1975, ambas as partes recuperaram algumas propostas avançadas em 1974,
nomeadamente a de conferir maior realismo e eficácia ao relacionamento
bilateral, desenvolvendo-o acima das vicissitudes políticas do momento e em
convergência com o interesse nacional. O êxito do encontro foi sobretudo
político, pois consolidou a confiança entre as duas chancelarias e refletiu
positivamente na opinião pública portuguesa e brasileira, concorrendo
para a desideologização dos vínculos bilaterais. Fracassou no propósito de
estabelecer um novo padrão de relacionamento, já que as transformações

39 «Aerograma n.º 421, declarações do ministro da Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, à imprensa brasileira
sobre a visita do primeiro-ministro Mário Soares ao Brasil, enviado pela embaixada de Portugal em Brasília ao MNE,
de 27 de outubro de 1976, p. 1», PEA 8/1977, n.º 33/BRA/9, AHDMNE.
40 Diário de Noticias, 17 de dezembro de 1976, p. 7.
Thiago Carvalho | Transição e descolonização...

necessárias a essa mudança, como o incremento das trocas comerciais


e o aprofundamento da cooperação, não ocorreram. Nesse sentido, ape-
sar das duas chancelarias terem pretendido romper com o modelo de
140 relacionamento bilateral esgotado, acabaram perpetuando uma das suas
principais características: a incapacidade em consubstanciar as iniciativas
adotadas41.
O encontro bilateral de 1976 não deve ser apenas compreendido no
âmbito estrito da política externa, tendo repercutido no plano interno dos
dois países. A diplomacia portuguesa acreditava que a posição favorável do
Governo conservador brasileiro em relação ao Executivo socialista contribui-
ria para a imagem de moderação do PS, permitindo ao partido conquistar
a «confiança dos setores de centro e de direita em Portugal» e consolidar as
suas «bases de apoio». Para esses segmentos políticos, o «bom entendimento
com o Brasil» representava o «aval para confiar nas atitudes e nas intenções
socialistas»42. Por sua vez, o empenho do Governo Geisel em estreitar os
vínculos com Portugal, apesar das fortes críticas internas, contribuiu para
isolar a linha dura do regime subtraindo-lhe gradualmente importância na
formulação e execução do processo decisório. O apoio inequívoco ao Exe-
cutivo socialista constituía um sinal claro de que a liberalização democrática
era irreversível e de que a política externa não seria orientada por critérios
ideológicos. Naquele momento, tanto o Governo brasileiro como os seus
aliados ocidentais consideravam a presença do PS à frente do Governo a
melhor hipótese para a consolidação da democracia e para permanência de
Portugal no campo do Ocidente.

Conclusão
Com o 25 de abril as relações luso-brasileiras passaram por uma revi-
são profunda que lhes pretendeu atribuir novo significado. Terminava um
longo período de diferenciação de objetivos e de perceções estratégicas
entre Lisboa e Brasília, que se acentuou à medida que a questão colonial se
encaminhava para o seu fim, e que conduziu ao questionamento do padrão
de relacionamento bilateral. A revolução e a transição para a democracia
em Portugal, bem como o início da liberalização do regime autoritário no
Brasil, repercutiram na formulação das respetivas políticas internas e externas
e, por conseguinte, no modo como os dois países interagiam.

41 Carvalho, Do Lirismo ao Pragmatismo…, pp. 153-169.


42 «Aerograma n.º 386, repercussões na imprensa brasileira do anúncio da visita do primeiro-ministro, Mário Soares,
ao Brasil, enviado pela embaixada de Portugal em Brasília ao MNE, de 13 de outubro de 1976, pp. 1-4», PEA
8/1977, n.º 33/BRA/9, AHDMNE.
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No epicentro destas transformações estiveram a descolonização e o


estabelecimento de laços com os novos países de língua portuguesa. África
revelou-se determinante para a reinserção internacional de Portugal e do
Brasil, em meados da década de 70, e para o reajuste das ligações bilaterais. 141
Há mais de duas décadas que consistia na pedra de toque das relações luso-
-brasileiras, ditando os consensos e as divergências entre ambos os Gover-
nos. Com o término do ciclo africano e o regresso às fronteiras europeias,
Portugal redefiniu o conceito estratégico nacional e atribuiu às ligações
com a lusofonia um sentido renovado. Por sua vez, o Governo brasileiro
implementou uma estratégia coerente de aproximação ao continente afri-
cano, privilegiando os contactos que concorressem para o êxito do projeto
nacional-desenvolvimentista, cujo melhor exemplo foi a próspera relação
desenvolvida com Angola e o interesse renovado pelos vínculos com Lisboa.
A revolução e a transição para a democracia em Portugal favoreceu o
entendimento entre a diplomacia portuguesa e brasileira ao eliminar dois
dos seus principais pontos de dissensão – a questão colonial e a polariza-
ção ideológica – mas não trouxe, no imediato, alterações substanciais ao
padrão de relacionamento cujas limitações faziam-se sentir há anos. Por um
lado, a grave crise económica e financeira portuguesa e o abrandamento da
economia brasileira limitavam as oportunidades de cooperação. Por outro,
Portugal e o Brasil adotavam políticas externas e económicas divergentes,
o que explica a fraca complementaridade entre as respetivas estratégias de
inserção internacional e de desenvolvimento económico. Essa dissociação
de interesses fez com que as iniciativas adotadas por Lisboa e por Brasília
com a finalidade de aprofundar as relações bilaterais estivessem sujeitas às
contingências políticas e às oportunidades do momento, ficando, na maior
parte das vezes, aquém do pretendido.

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