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Situações clínicas
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Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto
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Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto
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Membro efetivo com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto
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Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto
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esposa tomando conta do filho. Pergunta para a analista se ela se importa que faça a
conexão. A analista, sem idéia de como isso funcionaria, fornece-lhe a senha. Paulo faz
a conexão, apoia o celular em seu abdômen com a tela voltada para ele e a analista e,
então, o “desconhecido” se presentifica: lá estavam Paulo, a analista, o filho e sua
esposa, sendo possível verem-se e ouvirem-se dependendo dos botões clicados! Inicia
um relato sobre problemas no seu trabalho. Interrompe seu relato ao ouvir o choro do
filho, olha a imagem, comenta algo sobre como sua esposa está lidando com a criança.
Diz: “Será que tento falar com ela por aqui? Ela não vai me ouvir direito, está meio
surda, ainda mais com o Rafinha chorando”. Ele pergunta e ele responde. Volta a
apoiar a mão com o celular sobre seu abdômen, tenta voltar ao seu relato. Passados
poucos minutos o choro da criança invade a sessão novamente. Paulo olha o celular.
Silencia, titubeia, diz “Precisava ficar, queria ficar, mas acho que vou voltar para casa.
O que você acha?” A analista responde-lhe “difícil de escolher, mas está sentindo que
precisa escolher”. Paulo escolhe voltar para casa.
Em outra sessão em que Paulo estabelece a conexão com o quarto do filho, inicia
uma fala sobre algumas intimidades suas. Interrompe sua fala assustado e diz “Nossa, e
se ela estiver me ouvindo lá?!”. Pega o celular e deixa a conexão sem som; programa o
celular de uma forma que só tocaria se alguém de sua casa lhe telefonasse. Coloca o
aparelho no divã com a tela voltada para baixo. Silencia. Suspira. Diz “Eu ajo dessa
maneira em tudo o que faço, quero resolver tudo, não consigo ir fazendo uma coisa de
cada vez e aí vira essa confusão. Isso é a fome infinita que você sempre me fala, não
é?” A analista diz: “Agora escolheu, não está tendo fome infinita aqui. Escolheu ficar,
então temos condições de pensar sobre isso. Penso que sim, que tem a ver com a fome
infinita de que eu falo. Como você está pensando?”...
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O que se observa na vinheta apresentada é que o celular é utilizado como objeto
propício para a expressão do funcionamento onipotente já existente. O celular e muitos
aparelhos tecnológicos, quando conectados à internet, transformam-se em ferramentas
que permitem obter informações em tempo real de qualquer ponto do planeta,
possibilitando assim a vivência de onipresença. Essas experiências podem alimentar
mecanismos onipotentes e serem usados com essa finalidade, tal como pudemos ver no
caso de Paulo. Ou seja, o celular não “cria” o funcionamento onipotente, mas favorece
sua expressão. Lemma (2015) fala sobre isso nas seguintes palavras:
Paulo tentou ser onipresente, mas “apenas” conseguiu estar com o corpo na
sessão e a mente conectada com sua casa. A situação vivenciada propiciou ao
analisando a experiência da impossibilidade de viver sem realizar lutos, sem vivenciar
perdas, estando, nesse momento, em contato com seus limites ditados pela condição
humana. Um momento importante foi o fato do próprio analisando sentir-se invadido
com a possibilidade de seu relato estar sendo ouvido pela esposa: Paulo sentiu a
necessidade de realizar uma escolha. Há aqui uma experiência com potencial para
abertura de frestas no funcionamento onipotente. Paulo que, como um deus, tudo vê,
tudo ouve e em tudo interfere, encontra-se na posição inversa: pode ser ouvido em “seus
segredos”5, sem que tenha controle sobre os desdobramentos possíveis da situação. O
outro se apresenta a ele como invasivo; as fantasias persecutórias se ativam e ele
“renuncia” a estar em dois espaços a um só tempo, e desativa o celular. Abre assim a
possibilidade de pensar a experiência, de entrar em contato com sua forma onipotente de
vivenciar as situações.
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Em sua posição onipotente, Paulo têm “segredos” e não consegue “intimidade”.
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É interessante ressaltar também a atitude da analista diante do pedido do
paciente de usar o celular. De início ela sente-se desnorteada com o inédito da situação.
Porém, além de seus sentimentos, até então, nada havia que pudesse justificar uma
interdição do pedido de Paulo. Há uma decisão de viver a experiência, de acolher o
desconhecido e criar a oportunidade para pensá-lo. A decisão da analista é de lançar-se
ao desamparo do inédito e impensado, sem agarrar-se onipotentemente ao conhecido ou
a alguma regra pré-estabelecida. Talvez seja essa uma atitude emblemática para o
analista diante das novas tecnologias: abrir-se para o novo, sem pré-conceitos,
confiando na condição de pensar a experiência emocional que se apresenta. Aliás,
atitude completamente condizente com as recomendações de Bion sobre o estar
receptivo ao evolver do encontro analítico, “sem memória, sem desejo, sem necessidade
de compreensão” (Bion, 2000). Pode-se conjecturar se não seria esta uma atitude da
analista que, delicada e continuamente, aventurando-se em sala de análise pelos mais
diferentes e inusitados caminhos, promove no analisando uma espécie de contato com a
coragem diante do não saber. Tal atitude pode ir, aos poucos, diluindo a onipotência do
saber prévio e controlador.
Carolina tem 16 anos, vive com a avó e já mudou de casa várias vezes: ora está
com a mãe numa cidade, depois com o pai na fazenda, ora com a mãe em outra cidade,
com uma avó, com a outra. Possui uma irmã do casamento entre o pai e a mãe e tem
outros meio irmãos, de novos companheiros da mãe e do pai, tendo recentemente
ganhado um meio irmão de um novo casamento do pai. Ela tem um tique pronunciado:
chacoalha a cabeça ao falar; era bastante obesa e fez cirurgia de redução de estômago. É
agitada, ansiosa, tem dificuldade para dormir e rompantes de agressividade. Carolina fez
dois perfis no Facebook: um “oficial”, onde interage com pessoas da família e outro
fake, no qual, tal como ela diz, sente que é realmente quem é. Neste segundo perfil
possui vários amigos aficcionados por mangás e por vídeo-games e também tem um
namorado. Este namorado mora muito longe, em outro estado, mas os dois se falam
diariamente, ficando muitas vezes conectados, jogando juntos (on-line) por várias horas
seguidas. De tudo o que Carolina narra à analista a respeito de sua vida, o namoro
parece ser o evento mais estável e constante e até mesmo “real”, embora seja virtual. Há
tempos planejam se encontrar, mas como são menores de idade, dependem de outros
para se locomoverem e tal encontro nunca se efetivou. Chega muito brava a uma sessão
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e relata uma situação de intrigas, ciúmes e exclusão ocorrida neste grupo do Facebook:
uma garota se aproximou do seu namorado, eles ficaram conversando e o grupo
incentivou esse contato. Ela, então, brigou com todo mundo, se desconectou, terminou o
namoro, mas um dos amigos a “chamou” para conversar e ela voltou a “interagir” com o
grupo. Aí então, quem ficou com ciúmes foi o seu namorado, que brigou com ela, e eles
seguem brigados... Seu relato é vivo e cheio de emoção, a analista muitas vezes “se
esquece” de que Carolina fala de pessoas que estão juntas num espaço virtual, da rede e
não ao vivo. O grupo é formado por pessoas que nunca se encontraram de fato, pois
cada um mora em lugar diferente do país. É uma experiência diferente de relatos
ouvidos de outros pacientes contando de paqueras em “chats” de relacionamento, ou
mesmo situações em redes sociais, em que fica claro para a analista que se trata de
contatos virtuais. A analista pergunta-se se seria uma peculiaridade de Carolina
conseguir se envolver somente porque não tem a presença física do outro (ou outros), ou
se fala de um lugar que é desconhecido à analista por uma diferença de gerações: uma
tamanha familiaridade com os relacionamentos virtuais, que torna o contato quase real.
De acordo com Lemma (2015),
Carolina nos leva a pensar no uso que ela faz do contato online, como a
constituição de um espaço de presenças vivas e emocionantes, em que pode
experimentar amor, ciúme, separação, exclusão, encontros, desencontros e reencontros.
Nesse caso os recursos tecnológicos criam a oportunidade de um outro lugar de
experiências – na ausência de corpos, mas com a presença de intensas emoções. Talvez
seja esse o caminho que Carolina encontrou para ter experiências às quais não teria
coragem de se lançar no mundo real.
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mundos se apresentam na sala de análise, a serem significados, pensados,
experimentados com a disponibilidade e hospitalidade (Assis, 2010) que é característica
fundamental da técnica psicanalítica, sempre aberta ao novo de cada encontro.
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ponto, ora noutro, encontramos alguma coisa nova; mas, no inicio, as
peças não se completam. Assim, fazemos conjecturas, formulamos
hipóteses, as quais retiramos quando não se confirmam, necessitamos
de muita paciência e vivacidade em qualquer eventualidade [...] Via de
regra, trabalha [a ciência] como um escultor no seu modelo de argila, o
qual, incansável, modifica o esboço primitivo, remove, acrescenta, até
chegar aquilo que sente ser um satisfatório grau de semelhança com o
objeto que vê ou imagina. (Freud 1976a, p. 211).
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cap. 27) coloca que o desenvolvimento mental é função do crescimento da capacidade
de captar dados sensoriais junto com o crescimento da capacidade para a consciência
dos dados sensoriais. Por sua vez, ambos os crescimentos são função da condição que o
indivíduo encontra para sustentar e transformar as emoções que sente:
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O novo Universo da Cibercultura abre possibilidades antes impensáveis de
qualidades de vínculos e formas de comunicação. Dentro da sessão de análise,
mantemos nosso foco no vínculo presencial entre analista/analisando, na experiência
emocional presente a cada momento da sessão e, portanto, em como esse novo universo
se introduz, se presentifica durante a sessão e, especialmente, com que função ele se
apresenta. Pensamos que as experiências que o analisando vivencia no vínculo analítico,
conforme o modelo boca ↔ seio ou continente ↔ contido descrito acima, tem o
potencial de serem apreendidas pelo analisando e de nutri-lo de um manancial de
experiências metabolizadas (elementos oníricos ou α) que até poderá evolver para
conhecimentos sobre si mesmo, sobre o outro, sobre os relacionamentos, sobre o
mundo. Experiências que poderão ser expandidas nos seus relacionamentos fora da
sessão.
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Braga (2002), apreende as manifestações psíquicas como contendo ambas as
dimensões pensar ↔ alucinar, implicando na possibilidade de descobrirmos
pensamentos sob escombros de transformações em alucinose, como encontrarmos
alucinações escondidas num pensar organizado. Dessa forma, o trabalho constante do
analista é sempre transitando entre o pensar e o alucinar: é o exercício contínuo de se
guiar através da experiência emocional vivida no encontro analítico, seu fio condutor
(Braga 2011).
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b. No caso de Carolina, o instrumento tecnológico não entra diretamente
na sala de análise, mas no relato da vivência da paciente. Estendendo
nosso olhar ao uso que a paciente faz de seus encontros online como
forma de enfrentamento/fuga de seus medos e desejos, podemos
conjecturar, como Lemma (2015), que dadas as possibilidades de
contato à distância, tais recursos podem favorecer a “ilusão da não-
corporeidade” e, nesse caso, não apenas servem a manifestações do já
existente, mas criam maiores possibilidades de evasão da realidade,
em outra linguagem, para a manutenção de vínculos -K, manutenção
da “fuga do conhecer” o que é temido. Por um outro vértice, seus
encontros virtuais também carregam o potencial de criar um “campo
de experimentação” para o temido encontro presencial, ou, favorecer
uma aproximação à possibilidade de estabelecer vínculos K,
favorecer um movimento em direção ao conhecer e ao ser.
Considerações Finais
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Corpo-Sensorial↔ Psíquico-Simbólico
Pensamento ↔ Alucinação
Conhecido ↔ Desconhecido
Infinito ↔ Finito
Segundo Braga, para estarmos (sermos) uno com o que vivemos, necessitamos
abandonar nossos envoltórios alucinados. A maciça presença dos smartphones e tablets
nas sessões e nos relatos, impregnados de conversas e contatos virtuais, trarão maiores
incertezas na tarefa de delimitação de nosso objeto psicanalítico? Seria o mundo virtual
um poderoso terreno para a construção de envoltórios alucinados?
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Referências
_________ (2000). Cogitações Tradução Ester Hadassa Sandler e Paulo Cesar Sandler;
revisão técnica Ligia Todescan Lessa Mattos, Rio de Janeiro : Imago Ed. (Trabalho original
publicado em 1992).
________ (2014). W. R. Bion A Obra Complexa Arnaldo Chuster, Gustavo Soares e Renato
Trachtenberg Porto Alegre : Sulina.
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Frayze-Pereira, J. (2016). Tatuagem: perspectiva estética na clínica do corpo como obra de arte.
Trabalho apresentado em reunião científica da SBPSP em 12/03.
Ogden, T. H. (2010). Esta Arte da Psicanálise: sonhando sonhos não sonhados e gritos
interrompidos Tradução de Daniel Bueno Porto Alegre : Artmed.
Palfrey, J.; Gasser, U. (2011). Nascidos na Era Digital : Entendendo a Primeira Geração de
Nativos Digitais Porto Alegre : Ed. Penso.
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