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Alloa, Emmanuel (Org.). Pensar a imagem. — é, sem dúvida, o historiador da arte ale-
Tradução coordenada por Carla Rodrigues. mão do início do século XX Aby Warburg.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015. Ele defendia uma “kulturwissenschaftliche
Bildgeschichte”, uma “história das imagens
do ponto de vista sociocultural”,1 e em um
Há algumas décadas as imagens deixa- de seus célebres estudos, de 1901, “A arte do
ram de ser um elemento raro no universo retrato e a burguesia florentina”, já indicava o
dos historiadores, mera ilustração em capas caminho central de seu método de trabalho:
de livros ou ornamento de edições de luxo. Florença, o berço da cultura urbano-
A influência dos historiadores da chamada -mercantil moderna e autoconfiante, não
Escola dos Annales foi um passo decisivo nos legou somente retratos de pessoas há
nesse sentido: ao questionar a separação muito falecidas em uma vivacidade cativan-
entre disciplinas, o contato com a Antro- te e uma abundância incomparável. Em cen-
pologia, a História da Arte e a Arqueologia tenas de documentos arquivados já lidos e
contribuiu para que o conceito de fonte pri- em outros milhares ainda não lidos, as vozes
mária se expandisse do documento textual dos mortos continuam vivas. Uma postura
para todo tipo de vestígio material, incluin- de respeito histórico pode devolver o timbre
do, evidentemente, as imagens visuais. Mas a essas vozes inaudíveis, dado que nos damos
não apenas isso, as imagens também come- ao trabalho de recuperar o vínculo natural
çaram a ser vistas como legítimos objetos entre palavra e imagem.2
de estudo, uma vez que o objetivo princi-
pal da ciência histórica é compreender as 1
WARBURG, Aby. Heidnisch- antike Weissagung
in Wort und Bild zu Luthers Zeiten. Heilderberg:
sociedades humanas em suas produções e
Sitzungsberichte der Heildelbergen Akademie der
representações. Wissenchaften, 1920.
A grande referência dessa mudança de 2
WARBURG, Aby. A arte do retrato e a burguesia
florentina. In: WARBURG, Aby. A renovação da An-
paradigma — e que poderíamos chamar de
tiguidade pagã. Contribuições científico-culturais para
figura totêmica dos estudos sobre as imagens a história do Renascimento europeu. Tradução de Ma-
DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X017033019
* Professora da Área de História Medieval do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação
graduação em História Social da USP; coordenadora do Laboratório de Teoria e História da Imagem e da
Música Medievais (LATHIMM-USP).
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guem a respeito da natureza da imagem. O “what you see is what you see” (apud Alloa,
ponto central é a dualidade herdada desde p. 14), porque não se sabe o que se vê. A
a Antiguidade clássica quanto à concepção segunda grande lição é o constante questio-
da imagem como pura representação ou namento que se há de fazer ao “tom de certe-
como simples objeto — nas palavras de Pla- za” que se poderia ter em relação às imagens,
tão (apud Alloa, p. 11), como imagem-cópia de que se sabe (a verdade) em relação a elas.
(eikón) ou como imagem-simulacro (eidolon) Como ele diz, retomando Didi-Huberman,
—; ou ainda, nas palavras do teórico da não é questão de reconhecimento e sim de
arte Louis Marin, como transparência ou conhecimento. As imagens dão a pensar:
opacidade (apud Alloa, p. 14). Essa dualida- são um objeto paradoxal “que se dá a ver em
de foi muito explorada, por exemplo, pelo uma única e rápida olhada, sem, no entan-
cristianismo, que pôde adotar e assumir as to, jamais ser exaustivo no instante” (p. 16)
imagens reforçando a cisão entre imagem e — afinal, o “fim da imagem não pode ser
ídolo: enquanto a primeira, por ser alegoria, reduzido a suas bordas materiais” (p. 16).
é permitida (seu poder advindo da possibi- No primeiro capítulo do livro, Gottfried
lidade de remeter ao protótipo), a imagem Boehm retoma a discussão da dualidade da
como ser-aí é rejeitada (por sua pretensão de imagem, e também aponta o equívoco dessa
se substituir ao protótipo). proposição, sustentando que a imagem é ao
Mas não é esse o objetivo de Alloa, e sim mesmo tempo transparência e opacidade. A
apontar os limites para essa dualidade tão possibilidade da conjunção “e” é já uma ca-
ancorada na tradição ocidental. A imagem racterística — e uma evidência — de uma
funciona no entre, e qualquer solução rápida forma de pensar própria às imagens, por
que pretenda acantoná-la em uma defini- adição de opostos, por exemplo (como de-
ção excludente está fadada à incompletude. monstra um caso bastante conhecido, o da
Como ele diz — e é uma das primeiras li- imagem do coelho-pato evocada por Witt-
ções que dá — “as imagens exigem que a genstein: no texto escrito somos obrigados
elas se dedique tempo” (p. 8). O caso emble- a usar sinais gráficos, descrições para dar a
mático por ele escolhido é o de uma fotogra- entender algo que é simultaneamente am-
fia da série Retratos Fictícios, de Keith Cot- bos na imagem). Na esteira, entre outros, do
tingham, de 1992: um retrato triplo de três historiador da arte francês Pierre Francastel,
adolescentes em busto que tem a particula- que falava de um “pensamento figurativo”,4
ridade de não ser de fato um retrato. Seus Boehm sustenta a existência de uma epis-
modelos não existem, trata-se de uma ima- téme icônica, a escapar do exclusivismo do
gem “de síntese”, “virtual”. A transparência logos da linguagem. A imagem não é ape-
absoluta é aqui impossível, uma vez que não nas referência, ela produz sentido (e daí seu
existe o original a ser substituído, e a total interesse para o historiador, por exemplo).
opacidade também, já que não se pode di- 4
FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São
zer, como o artista minimalista Frank Stella, Paulo: Perspectiva, 1993, p. 3.
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Como ele conclui, em uma fórmula lapidar: nem mesmo o iconoclasmo bizantino, mas
“O que mostra — a imagem, em sua ocor- as pretensas imagens aqueiropoiéticas, não
rência — nos mostra como alguma coisa produzidas pela mão (e, portanto, não sen-
se mostra” (p. 38). A imagem mostra como do frutos da operação imaginante e dese-
(de que modo) ela mostra: essa é a lógica da jante) do homem.
mostração, o elemento fundamental da epis- Na sequência, temos três textos com uma
téme icônica. Cabe aos estudiosos — e aqui abordagem mais estritamente filosófica, e
remetemo-nos especificamente aos historia- que nos forçam a deslocar o olhar de histo-
dores — conhecer como esses mecanismos riador. Em “Imagem, mímesis & méthexis”,
de funcionamento da imagem, a lógica da Jean-Luc Nancy discute, sobretudo, os dois
mostração, se dão em diferentes sociedades. conceitos do título: se mímesis nos é familiar
No capítulo seguinte Marie-José Mon- (basta lembrar a extensa bibliografia sobre
dzain retoma essa ideia e a retrabalha, lem- o tema, na qual se destaca o incontornável
brando que a imagem é “ao mesmo tempo livro de Erich Auerbach5), méthexis (que po-
uma operadora em uma relação e o objeto deríamos traduzir sucintamente por “parti-
produzido por essa relação” (p. 39). Ou seja, cipação”) o é bem menos. Sua proposta é de
é “como” e o “quê”, poderíamos dizer. Isso que ambas devem ser consideradas de forma
a leva a fazer uma crítica profunda à atitude imbricada na imagem. Como exemplo, cita
demasiado cômoda de confundir imagem as máscaras funerárias romanas, que estão
com um simples objeto de uma narrativa na origem do próprio termo “imago”: desde
(especialmente a da História da Arte). O o momento de sua modelagem, “a mímesis
estudioso, como ela diz, deve “interrogar modula a méthexis pela qual os viventes par-
as operações imaginantes na sua relação tilham a morte do morto” (p. 59). A imagem
com o que constitui o sujeito falante e so- é o efeito do desejo (do morto, nesse caso).
ciável” (p. 40). Da percepção desse papel Assim, após Mondzain, Nancy também re-
crucial da imagem na própria constituição toma a noção de desejo, fundamental tanto
da sociedade, ela retira outra conclusão, de na produção quanto na recepção da ima-
cunho político: “É porque a capacidade do gem, e que os historiadores em geral deixam
sujeito de produzir imagens faz parte de de lado (como de resto tudo que se remete a
uma economia constituinte do desejo que ideias psicanalíticas). Decerto, não se trata
as instituições que constituíram seu poder de tarefa fácil, porém nem por isso deve ser
tomaram o cuidado tanto de interditar as eludida: não se está convidando a fazer uma
imagens quando de controlar a produção análise psicanalítica de uma imagem (e o fa-
de seus efeitos” (p. 41). O exemplo maior moso e duvidoso exemplo de Freud com a
que ela dá, e não poderia ser diferente, lem- pintura de Leonardo da Vinci mostra bem
brando suas pesquisas sobre os ícones bi- 5
AUERBACH, Erich. Mimesis. A representação da
zantinos, é o cristianismo e suas restrições/ realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspec-
oposições às imagens — cujo ápice não é tiva, 2004.
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se texto (originalmente publicado na revista filósofo francês não se limita a discutir esse
October de 1996, no qual ele retoma a famo- texto, e dialoga com o conjunto da obra de
sa interrogação de seu livro Picture Theory, Mitchell — que, é importante lembrar, é
de 1994, reforçada pelo advérbio “realmen- um dos principais nomes da chamada ico-
te”), sua primeira tarefa é buscar justificar nic turn, a virada icônica, ou pictorial turn,
a validade da pergunta, já que em princípio como ele se refere com mais frequência, am-
ela pode causar estranheza. No entanto, bas batizadas a partir da linguistic turn. É
em nosso entender, ele não ataca de fato o justamente daí que parte Rancière: em pri-
problema, apoiando-se mais na iconografia meiro lugar, ele se interroga sobre que vira-
(como demonstram os exemplos que forne- da linguística seria essa. Seria a lacaniana,
ce, como o do famoso cartaz de propagan- da materialidade do significante, ou a derri-
da para alistamento do exército americano, diana, em que há a primazia da fala em de-
com a imagem de Tio Sam, p. 175). Na trimento do traço gráfico? E, portanto, a vi-
conclusão de seu texto, Mitchell torna-se, rada pictórica seria a oposição a uma dessas
literalmente, porta-voz das imagens (como situações — ou a ambas? Como ele aponta,
deixa perceber quando diz: “Mas isso é tudo é certo que houve uma mudança nos últi-
o que queremos? Ou, mais especificamen- mos anos, tanto no que concerne a situações
te, é isso tudo o que as imagens querem?”, práticas (como a ofensiva iconoclasta dos ta-
p. 186). E aqui residem novos problemas, libãs ao destruírem os Budas de Bamiyan,
porque dentre esses supostos “desejos” das por exemplo, o que pressupõe uma requa-
imagens, além de alguns de caráter genérico lificação de obras consideradas patrimônio
(como elas não quererem simplesmente ser da humanidade a imagens da divindade)
transformadas em linguagem), estão outros quanto a posturas teóricas (como a do pró-
passíveis de discussão, como seu convite à prio Mitchell, que demonstrou em vários
volta a “uma hermenêutica que retorne ao momentos de sua obra os modos de funcio-
gesto inicial da iconologia do historiador da namento das imagens, com suas conden-
arte Erwin Panofsky” (p. 187), ou sua defe- sações e deslocamentos, fazendo “ver uma
sa de que as imagens não querem ser inter- coisa em uma outra ou por uma outra”, p.
pretadas. A última frase do capítulo chega 193). Mas como Rancière aponta, Mitchell
mesmo a um impasse tautológico: “O que vai mais além, e sua virada pictórica seria
as imagens querem, em última instância, o “retorno do recalcado”: para responder à
é simplesmente serem perguntadas sobre o crítica a uma suposta inconsistência da ima-
que querem, tendo em conta que a resposta gem, ele insiste na vitalidade desta. Como
pode muito bem ser ‘nada’” (p. 187). Como ele diz, para o americano “as imagens não
fazer tais perguntas? são reflexos, sombras ou artifícios, são seres
Outras críticas podem ser levantadas, de viventes, quer dizer, organismos dotados de
forma mais elaborada, como o faz Jacques desejos” (p. 194). Mas quem deseja são os
Rancière no capítulo que se segue. Nele, o fazedores de imagens e seus consumidores,
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que (se) projetam nelas: “se amamos vê-las, p. 205). Ou seja, não se trata de discutir o
é pela capacidade que temos de lhes empres- conteúdo da imagem, seu referente etc.,
tar ou de lhes subtrair ao mesmo tempo vida como uma resposta — ela sim verdadeira-
e vontade” (p. 200), escreve Rancière. E este mente tola — poderia dar. Seu objeto de
propõe, em lugar de ver as imagens como reflexão é a obra de Harun Farocki, cineas-
viventes, dar-lhes a consistência de “quase- ta/documentarista/artista de origem alemã
-corpos”, pois “o que constitui a imagem é a morto em 2014. Como um verdadeiro ar-
operação que transforma uma corporeidade queólogo e montador de imagens, Farocki
em outra” (p. 200). Como exemplo, ele cita obtinha, remontava e expunha imagens mos-
as “imagens reais” de Alfredo Jaar represen- trando o funcionamento de nossas socieda-
tando o genocídio em Ruanda: elas mos- des (desde uma sessão de pose para a revista
tram palavras inscritas sobre caixões negros Playboy até técnicas militares) que deveriam
nos quais estão fechadas fotografias dos cor- permanecer escondidas do público em geral.
pos ausentes — “quer dizer que ele lhes dá Jogando com as palavras voir (ver) e recevoir
um outro corpo, um corpo e uma história (receber — para o qual podemos oferecer
singular em lugar de um corpo anônimo da outra tradução que a do livro: em recevoir
vítima de um massacre de massa” (p. 200). há não só voir, mas revoir, rever, e ce, esse:
Depois desses dois textos, que cons- receber e rever isso/esse), Didi-Huberman
tituem o ponto mais instigante do livro, a discute como Farocki conseguiu nos resti-
última parte é dedicada a um texto isola- tuir imagens do mundo (“imagens operado-
do de Georges Didi-Huberman, autor que ras”, um termo muito mais apropriado que
foi descoberto há poucos anos em nosso país viventes, no que ele tem de fazer pensar no
e se tornou a grande referência nos estudos modo de funcionamento das imagens), mais
sobre as imagens (ou de uma história das do que simplesmente se apropriar delas. São
imagens, termo por ele mais utilizado que o imagens que constituem um bem comum e
visual studies de Mitchell). Ele parte de duas que ele retorna à comunidade, em um gesto
questões aparentemente das mais simples: a que mostra o alcance político, militante que
primeira, que ele qualifica de inocente, ain- podem ter as imagens.
da que útil, é a de saber de que uma ima- Na sequência, após os créditos das ima-
gem é uma imagem. Muita tinta já foi gasta gens, são apresentadas notas biográficas dos
para respondê-la, e não é ela que atrai sua autores e dos tradutores. A preocupação em
atenção, e sim uma segunda, que chama de fornecer indicações bibliográficas em por-
tola e maldosa (mas só aparentemente), “a tuguês das principais obras dos autores en-
quem” (no sentido do “de quem”, da perten- riquece a edição, embora algumas estejam
ça que a expressão francesa à qui significa) é faltando, como Ensaios de ego-história, de
uma imagem (“Diz-se: ‘tirar uma foto’. Mas Pierre Nora, pelas Edições 70, ou Sobre o
o que se tira, a quem se tira exatamente? E olhar, de John Berger, pela Gustavo Gili.
não é preciso devolvê-la a quem de direito?”, Mas há outras ressalvas que podem ser
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