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ANA PAULA RIBEIRO

SONIA BEATRIZ DOS SANTOS


MARIA ALICE GONÇALVES
JOANA BARROS

Educação e diversidade cultural

1ª Edição

Brasília/DF - 2018
Autores
Ana Paula RIBEIRO
Sonia Beatriz dos SANTOS
Maria Alice GONÇALVES
Joana BARROS

Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e
Editoração
Sumário
Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa...................................................................................................... 4

Introdução.............................................................................................................................................................................. 6

Aula 1
Uma ciência da diferença: o que é Antropologia?............................................................................................. 7

Aula 2
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina?.......................................................................................16

Aula 3
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e
Pluralidade Cultural.................................................................................................................................................... 27

Aula 4
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos
humanos......................................................................................................................................................................... 36

Aula 5
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural...................................................................................................49

Aula 6
O legado cultural africano – Lei no 10.639/2003 e indígena – Lei no 11.645/2008............................ 62

Referências...........................................................................................................................................................................73
Organização do Caderno de
Estudos e Pesquisa
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos,
de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com
questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável.
Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras
e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de
Estudos e Pesquisa.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

Cuidado

Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.

Importante

Indicado para ressaltar trechos importantes do texto.

Observe a Lei

Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem,
a fonte primária sobre um determinado assunto.

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Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa
e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio.
É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus
sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas
conclusões.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Posicionamento do autor

Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.

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Introdução
Nos dias atuais, quando diferenças culturais são parte do cotidiano de um mundo cada vez
mais globalizado, é cada vez mais importante pensar nos desafios que essa pluralidade coloca
à Educação. Neste Caderno, apresentaremos a disciplina Educação e Pluralidade Cultural e
procuraremos entender como os conceitos de cultura, educação e pluralidade cultural estão
relacionados na sociedade em que vivemos.

Objetivos

Este Caderno de Estudos tem como objetivos:

»» Discutir a pluralidade cultural e seus desafios para o campo da educação.

»» Apresentar ferramentas teórico-metodológicas desenvolvidas pela Antropologia para


a compreensão da pluralidade cultural.

»» Estabelecer uma relação entre os conceitos de cultura, educação e pluralidade cultural.

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AULA
UMA CIÊNCIA DA DIFERENÇA:
O QUE É ANTROPOLOGIA? 1
Apresentação

Nesta aula apresentaremos a problemática da pluralidade cultural a partir de uma disciplina que
foi forjada para lidar com ela: a antropologia. Trabalharemos alguns dos seus conceitos básicos,
a partir da leitura do texto “O Ritual do Corpo entre os Sonacirema”, de Horace Minner.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

»» Compreender o que é antropologia.

»» Analisar o texto “O Ritual do Corpo entre os Sonacirema”, para uma sensibilização à


disciplina.

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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia

“Eu” e o “outro”: de quem trata a antropologia?

Para início de conversa, propomos a leitura de um texto introdutório, que nos levará a pensar
questões relevantes sobre a própria disciplina. O nome do texto é O Ritual do Corpo entre os
Sonacirema, e foi escrito nos anos 1940, nos EUA, por um antropólogo chamado Horace Minner.
Vamos ler?

Saiba mais

O Ritual do Corpo entre os Sonacirema


Horace Minner

A maioria das culturas possui uma configuração particular, ou estilo. Frequentemente, um determinado valor central ou uma
forma específica de perceber o mundo deixa suas marcas em várias instituições das sociedades. Como, por exemplo, temos o
“machismo” nas culturas de influência ibérica, a “face” na cultura japonesa, e a “contaminação pelas mulheres” em algumas
culturas dos planaltos da Nova Guiné. Neste artigo, Horace Minner demonstra que ”atitudes quanto ao corpo” têm uma
influência generalizada em muitas instituições da sociedade Sonacirema.

O antropólogo tornou-se tão familiarizado com a diversidade de modos com que diferentes povos reagem diante de
situações similares, que ele não consegue se surpreender com os costumes exóticos possíveis. Com efeito, se quaisquer
entre todas as combinações logicamente possíveis de comportamento não tiverem sido encontradas em alguma parte do
mundo, ele tem o direito de suspeitar que elas devem estar presentes em alguma tribo ainda não estudada. Esta observação
já foi realmente feita por Murdock, no que diz respeito à organização do clã. Neste sentido, as crenças e práticas mágicas dos
Sonacirema apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece importante descrevê-las como exemplo dos extremos a
que o comportamento humano pode chegar.

O Professor Linton foi o primeiro a chamar a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Sonacirema, há vinte
anos, mas a cultura deste povo é ainda muito pouco compreendida. Os Sonacirema são um grupo norte-americano que vive
no território que se estende desde os Cree do Canadá aos Yaqui e Tarahuma do México, e aos Carib e Aruaque das Antilhas.
Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do leste.

A cultura Sonacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um habitat
natural muito rico. Embora a maior parte do tempo das pessoas, nesta sociedade, seja devotada à ocupação econômica,
uma grande porção do fruto destes trabalhos e uma considerável parte do dia são despendidas em atividades rituais. O foco
dessas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante dentro do etos deste
povo. Embora tal tipo de preocupação não seja realmente pouco comum, seus aspectos cerimoniais e a filosofia aí implícita
são únicos.

A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural
é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características através do
uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal
propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em suas casas e, de fato, a opulência de uma
casa é frequentemente aferida em termos da quantidade dos centros de rituais que abriga. A maioria das casas é de taipa,
mas os santuários dos mais ricos têm paredes cobertas de pedras. As famílias mais pobres imitam os ricos, aplicando placas
de cerâmica nas paredes de seus santuários.

Embora cada família possua ao menos um desses santuários, os rituais a eles associados não são cerimônias familiares,
mas sim privadas e secretas. Os ritos, normalmente, só são discutidos com as crianças, e isto apenas durante a fase em que
elas estão sendo iniciadas nesses mistérios. Eu pude, entretanto, estabelecer com os nativos uma relação que me permitiu
examinar esses santuários e anotar a descrição desses rituais.

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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1

O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções
mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários profissionais
especializados. Dentre estes, os mais poderosos são os curandeiros, cujos serviços devem ser retribuídos por meio de
presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para seus clientes, decidindo apenas os
ingredientes que nelas devem entrar, escrevendo-os em seguida em uma linguagem antiga e secreta. Tal escrito só pode ser
decifrado pelo curandeiro e pelos herbanários, os quais – mediante outro presente – fornecem o feitiço desejado.

O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas sim é colocado na caixa de mágicas do santuário
doméstico. Como estes materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais
ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágicas costuma estar sempre transbordando Os pacotes mágicos são
tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original e temem usá-los de novo, embora os nativos tenham-se
mostrados vagos em relação a esta questão, só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os
velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágicas, diante da qual os rituais do corpo são encenados,
protegerá de alguma forma o fiel.

Embaixo da caix de mágicas existe uma pequena fonte. Todo dia cada membro da família, em sucessão, entra no quarto do
santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de águas sagradas na fonte e realiza um breve
rito de ablução As águas sagradas são obtidas do Templo da Água da comunidade, onde os sacerdotes conduzem elaboradas
cerimônias para manter o líquido ritualmente puro.

Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os especialistas cuja
designação é mais bem traduzida por “homens-da-boca-sagrada”. Os Sonacirema têm um horror pela boca e uma fascinação
por ela que chegam às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas
relações sociais. Não fosse pelos rituais da boca, os Sonacirema acham que seus dentes cairiam, suas gengivas sangrariam,
suas mandíbulas encolheriam, seus amigos os abandonariam, seus amantes os rejeitariam. Eles também acreditam na
existência de uma forte relação entre características orais e morais. Assim, por exemplo, existe uma ablução ritual da boca
das crianças que se considera como forma de desenvolver sua fibra moral.

O ritual do corpo cotidianamente realizado por todos inclui um rito bucal. Apesar de sabermos que este povo é tão
meticuloso no que diz respeito ao cuidado da boca, este rito envolve uma prática que o estrangeiro não iniciado não
consegue deixar de achar repugnante. Conforme me foi descrito, o rito consiste na inserção de um pequeno feixe de cerdas
de porco na boca, juntamente com certos pós-mágicos, e em seguida na movimentação desse feixe segundo uma série de
gestos altamente formalizados.

Além desse rito bucal privado, as pessoas procuram o homem-da-boca-sagrada uma ou duas vezes por ano. Estes
profissionais possuem uma impressionante parafernália, que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas
e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase inacreditável tortura ritual do cliente. O
homem-da-boca-sagrada abre a boca do cliente e, usando as ferramentas citadas, alarga quaisquer buracos que o uso tenha
feito nos dentes. Materiais mágicos são então depositados nesses buracos. Se não se encontram buracos naturais nos dentes,
grandes seções de um ou mais dentes são serradas para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do
cliente, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado
e tradicional do rito fica evidente no fato de que os nativos retornam todo ano ao homem-da-boca-sagrada, embora seus
dentes continuem a se deteriorar.

Deve-se esperar que, quando um estudo intensivo dos Sonacirema for feito, seja realizada uma pesquisa cuidadosa sobre a
estrutura de personalidade desses nativos. Basta observar o brilho nos olhos de um homem-da-boca-sagrada, quando ele
enfia uma agulha em um nervo exposto, para que se suspeite de que certa dose de sadismo está presente. Se isto puder ser
verificado, uma configuração muito importante emergirá, posto que a maioria da população mostra tendências masoquistas
bem definidas. Era a tais tendências que o Professor Linton se referia, ao discutir uma parte especial do ritual cotidiano do
corpo, que é realizada apenas pelos homens. Esta parte do rito envolve uma arranhadura e laceração da superfície do rosto
por meio de um instrumento cortante. Ritos femininos especiais ocorrem somente quatro vezes por mês lunar, mas o que
lhes falta em frequência lhes sobra em barbárie. Como parte dessa cerimônia as mulheres assam suas cabeças em pequenos

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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia

fornos durante mais ou menos uma hora. O ponto teoricamente interessante é que um povo dominantemente masoquista
desenvolve especialistas sádicos.

Os curandeiros possuem um templo imponente, o latipsoh, em cada comunidade de algum tamanho. As cerimônias
mais elaboradas, necessárias para o tratamento de pacientes muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais
cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam lentamente
nas câmaras do templo com uma roupa e um penteado distintivos.

As cerimônias no latipsoh são tão violentas que chega a ser fenomenal o fato de que uma razoável proporção dos nativos
realmente doentes que entram no templo consiga curar-se. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta,
costumam resistir às tentativas de levá-las ao templo, alegando que “é aonde você vai para morrer”. Apesar disso, os doentes
adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se a uma prolongada purificação ritual, se eles possuem
meios para tanto. Os guardiões de muitos templos, não importa quão doente o suplicante ou quão grave a emergência,
não admitem o cliente se ele não pode dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se
sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente.

O (a) suplicante, ao entrar no templo, é primeiramente despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Sonacirema
evitam a exposição de seu corpo e das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade
do santuário doméstico, onde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. A súbita perda da privacidade corporal,
ao se entrar no latipsoh , costuma causar um choque psicológico. Um homem, cuja própria mulher jamais viu quando ele
realizava um ato excretório, de repente encontra-se nu, assistido por uma vestal enquanto executa suas funções naturais
dentro de um vaso sagrado. Este tipo de tratamento cerimonial é necessário porque as excreções são usadas por um adivinho
para diagnosticar o curso e a natureza da doença do paciente. Os clientes femininos, por seu lado, veem seus corpos nus
submetidos ao escrutínio, manipulação e espetadelas dos curandeiros.

Poucos suplicantes nos templos estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitados em suas
camas duras. As cerimônias diárias, como os já citados ritos do homem-da-boca-sagrada, implicam desconforto e tortura.
Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis pacientes, rolam-no em seus leitos de dor
enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objetos de treinamento intensivo das vestais. Em outros
momentos, elas inserem varas mágicas na boca do paciente, ou obrigam-no a comer substâncias que são consideradas
curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm a seus clientes e atiram agulhas magicamente tratadas em sua carne. O
fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a
fé do povo nos curandeiros.

Ainda resta um outro tipo de especialista, conhecido como um escutador. Este tipo de feiticeiro tem o poder de exorcizar
os demônios que se alojam nas cabeças das pessoas que foram enfeitiçadas. Os Sonacirema acreditam que os pais fazem
feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma maldição nas crianças,
enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contramagia do feiticeiro “escutador” é singular por sua relativa
ausência de ritual. O paciente simplesmente conta ao “escutador” todos os seus problemas e medos, começando com
as primeiras dificuldades de que pode se lembrar. A memória exibida pelos Sonacirema nessas sessões de exorcismo
é verdadeiramente notável. Não é incomum que o paciente lamente a rejeição que sentiu ao ser desmamado, e alguns
indivíduos chegam a localizar seus problemas nos efeitos traumáticos de seu próprio nascimento.

Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão
generalizada ao corpo e a suas funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes
cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos, ainda são usados para fazer os seios das mulheres
maiores, se eles são pequenos; e menores, se eles são grandes. Uma insatisfação geral com a forma dos seios é simbolizada
pelo fato de que a forma ideal está virtualmente fora do espectro da variação humana. Umas poucas mulheres que sofrem
de um quase inumano desenvolvimento hipermamário são tão idolatradas que podem viver muito bem através de simples
viagens de aldeia em aldeia, permitindo aos nativos admirá-las mediante uma taxa.

Já fizemos referência ao fato de que as funções excretórias são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao domínio do secreto.
As funções reprodutivas naturais são igualmente distorcidas. O intercurso sexual é tabu como tópico de conversa, além
de programado e planejado enquanto ato. Grandes esforços são feitos para evitar a gravidez por meio do uso de materiais

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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1

mágicos ou pela imitação do intercurso a certas fases, da lua. A concepção é realmente muito pouco frequente. Quando
grávidas, as mulheres se vestem de forma a ocultar seu estado. O parto se realiza em segredo, sem amigos ou parentes
assistindo, e a maioria das mulheres não amamenta nem cuida de seus bebês.

Nossa descrição da vida ritual dos Sonacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil
compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo debaixo dos pesados fardos que eles mesmos se
impuseram. Mas, mesmo costumes tão exóticos quanto esses ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do
esclarecimento feito por Malinowski, que escreveu:

Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é


fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas sem este poder e este guia, o homem
primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como a fez, nem poderia o
homem ter avançado até os mais altos estágios da civilização.

Vamos reler o texto e ver quais pistas Horace


Para refletir
Minner nos traz sobre suas reações, assim
como a antropologia e seus conceitos Quando lemos um texto sobre outro povo, outras
principais? culturas, podemos dizer que temos algum tipo de reação.
Identificação, estranhamento, afastamento, indiferença... Ao

Após a releitura do texto, você deve estar mais ler este trabalho, o que você sente? Quais são as sensações
que você tem a respeito dos Sonacirema? Quais são as
familiarizado com a linguagem e diversos
ideias preconcebidas a respeito desse povo que passa a lhe
trechos que antes ficavam confusos ou eram acompanhar? De que forma você se identifica, estranha, se
objetos de estranhamento passaram a fazer afasta dos rituais daquele povo ou fica indiferente?

mais sentido para você? Logo no início do


texto, Minner nos diz claramente que “Todas as culturas possuem uma configuração particular,
um estilo”. Isso significa que a cultura, adjacente a um grupo específico é relativa, isto é, tem
questões próprias que não a fazem nem melhor, nem pior que a nossa, apenas guardam um estilo
particular que as diferencia de outras. Estamos trabalhando aqui com dois conceitos primordiais
da disciplina: cultura e relativismo, que desvendaremos em breve.

Na sociedade Sonacirema, Minner vai demonstrando que, em sua particularidade, este povo
prioriza as atitudes quanto ao corpo e, consequentemente, este é um aspecto fundamental da
sua cultura. No texto, descobrimos que a crença dos Sonacirema é de que “o corpo humano é
feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença”. Isto posto, em seguida descobrimos
que aquele povo utiliza de rituais para evitar a decadência física.

Em nossa segunda leitura, o estranhamento vai dando lugar à familiaridade e percebemos o


quanto os Sonacirema são parecidos conosco. Vejamos: “Os indivíduos mais poderosos desta
sociedade têm vários santuários em sua casa” e “O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca
embutida na parede”. Os santuários são os banheiros e as arcas são os armários do banheiro.
“Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas”: que podemos aproximar
dos remédios guardados na arca, isto é, no armário do banheiro! Curandeiros são médicos
cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais, isto é, pagamentos.

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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia

Estes curandeiros prescrevem os feitiços e poções mágicas por meio de uma linguagem antiga
e secreta, que é a imagem mais próxima do que entendemos como receita médica. Herbanários
são farmacêuticos e embaixo da caixa de mágica existe uma pequena fonte – a pia, em que “Todo
dia, cada membro da família, em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa
de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução”,
que é a nossa escovação dos dentes.

Há hierarquia entre os profissionais da magia. Em termos de prestígio, abaixo dos médicos, estão
os “homens-da-boca-sagrada”, isto é, os dentistas.

Sobre a relação dos Sonacirema com “homens-da-boca-sagrada” e seus dentes, Minner nos diz que

Os Sonacirema nutrem um misto de horror e fascinação por suas bocas que chega
às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência
sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente
realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um
pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico
e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos
altamente ritualizados.

Ora:

Pequeno feixe de cerdas na boca – escova de dente.

Creme mágico – pasta dental.

Em sequência, descobrimos que “Os curandeiros possuem um templo imponente, o Latipsoh,


em cada comunidade, de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o
tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas neste templo”.

Latipsoh – hospital

Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais
que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa distintiva.

Grupo permanente de vestais – corpo de enfermagem de um hospital.

Os guardiões do templo, não importa quão doente o suplicante esteja ou quão grave a emergência,
não admitem o fiel se ele não puder dar um rico presente ao zelador.

Guardiões do templo – zelador = gestor ou administrador hospitalar

Esses guardiões do templo têm uma função: “Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se
sobreviveu às cerimônias, os guardiões não permitem a saída do neófito até que este dê ainda
outro presente”, que é o pagamento pelos serviços prestados no Latipsoh, isto é, no hospital!

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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1

Em outra parte, já ao final, Minner nos diz que “Os Sonacirema acreditam que os pais fazem
feitiçaria contra seus próprios filhos. As mães são especialmente suspeitas de colocarem uma
maldição nas crianças, enquanto ensinam a elas os ritos corporais secretos. A contramagia do
feiticeiro ‘escutador’ é singular por sua relativa ausência de ritual”. E nesse caso, o feiticeiro
“escutador” que cuida da maldição nas crianças se torna um... profissional da área de psicologia!

Você já descobriu quem são os Sonacirema?

Vamos ler de trás para frente?

Sonacirema são os americanos! E suas experiências com relação ao corpo, são, de certa forma,
as nossas também.

O texto de Horace Minner nos apresentou a algumas sensações, como estranhamento e


reconhecimento, empatia, aproximação e distanciamento, ou até mesmo a indiferença ou a
curiosidade, sensações que iam se sucedendo conforme a leitura do texto e as semelhanças ou
diferenças que encontramos com relação a nossa própria cultura, ou aquilo que consideramos
como nossa cultura. Essas sensações e conceitos, como o de cultura, diversidade cultural, a tentativa
de entender o outro da forma como ele se apresenta, respeitando a sua cultura (relativismo) e
até mesmo os rituais e a magia, são fundamentais para entendermos a antropologia enquanto
disciplina. Muitos, aliás, devem estar se perguntando o que significa exatamente Antropologia...

Sugestão de estudo

Se você quiser aprofundar seus estudos, sugerimos os seguintes livros:

LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

Aprender Antropologia, de François Laplantine, prioriza a constituição da Antropologia enquanto disciplina e suas escolas na
teoria antropológica, isto é, seus principais autores e seu desenvolvimento na Europa e Estados Unidos.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barros Laraia, é um livro introdutório sobre o conceito de cultura, tratado
por excelência dentro da antropologia. A partir do que é a cultura e do que não pode ser a cultura. Laraia desvenda, em uma
linguagem simples, a importância desse conceito.

O que é, então, a Antropologia?

Segundo Cristina Costa (2002, p. 106), o homem – objeto de conhecimento quase exclusivo da
filosofia – foi finalmente enfocado pela ciência a partir do século XIX. Desenvolveram-se então
as ciências humanas – a Sociologia, a Ciência Política, a Psicologia e a Antropologia. As razões
desse florescer de explicações científicas da natureza humana estão em parte nos problemas que
a sociedade enfrentava, trazidos pela urbanização, pela industrialização e pela expansão europeia
no mundo. Tais razões estão também na grande aceitação do pensamento científico no mundo

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AULA 1 • Uma ciência da diferença: o que é Antropologia

ocidental. Se a ciência adquiria uma inquestionável credibilidade, por que não utilizá-la para o
conhecimento do homem? O resultado foi um desenvolvimento extraordinário dessas ciências,
de seus métodos e pressupostos teóricos.

Tudo favorecia o surgimento de teorias e métodos novos: a necessidade de um planejamento


social que garantisse o sucesso da economia industrial e sua expansão pelo mundo; a crescente
complexidade da vida humana gerada pela industrialização e urbanização e o alargamento dos
horizontes científicos com a intensa interação de povos e nações. A antropologia e a sociologia,
entre as ciências sociais, definiram de forma bastante satisfatória seus objetos de estudo, seus
objetivos e métodos. Enquanto à Sociologia cabia o estudo da sociedade europeia, à Antropologia
cabia o estudo dos povos colonizados na África, Ásia e América e ainda nessa direção, a Antropologia
acaba por desenvolver um método mais empirista que o sociológico e bastante qualitativo,
voltado para a descoberta das particularidades da sociedade que estudava.

O professor Vagner Gonçalves, em sua página pessoala(http://www.fflch.usp.br/da/vagner/


antropo.html), define que

A Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural. Sendo


cada uma destas dimensões por si só muito ampla, o conhecimento antropológico
geralmente é organizado em áreas que indicam uma escolha prévia de certos
aspectos a serem privilegiados como a “Antropologia Física ou Biológica” (aspectos
genéticos e biológicos do homem), a “Antropologia Social” (organização social
e política, parentesco, instituições sociais), a “Antropologia Cultural” (sistemas
simbólicos, religião, comportamento) e a “Arqueologia” (condições de existência
dos grupos humanos desaparecidos).

Além disso, podemos utilizar termos como Antropologia, Etnologia e Etnografia


para distinguir diferentes níveis de análise ou tradições acadêmicas.

Ainda para Gonçalves:

Qualquer que seja a definição adotada é possível entender a antropologia como


uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, isto é, a busca de
respostas para entendermos o que somos a partir do espelho fornecido pelo
“Outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e
culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais podemos alargar nossas
possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que, afinal de contas, nos torna
seres singulares, humanos.

François Laplantine (1998, p. 13) entende que, ainda no início, a Antropologia irá atribuir-se um
objeto que lhe é próprio: o estudo das populações que não pertencem à civilização ocidental. Serão
necessárias ainda algumas décadas para elaborar ferramentas de investigação que permitam a
coleta direta no campo das observações e informações. Mas logo após ter firmado seus próprios
métodos de pesquisa – no início do século XX –, a Antropologia percebe que o objeto empírico

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Uma ciência da diferença: o que é Antropologia • AULA 1

que tinha escolhido (as sociedades “primitivas”) está desaparecendo; pois o próprio universo
dos “selvagens” não é de forma alguma poupado pelo imperialismo existente à época e pelo
acelerado desenvolvimento, principalmente o industrial. Ela se vê, portanto, confrontada com
uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma questão permanece desde seu nascimento: o
fim do “selvagem” ou, como diz Paul Mercier (1966), será que a “morte do primitivo” há de causar
a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta vários tipos de
resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em três deles:

1. O antropólogo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o âmbito das outras
ciências humanas. Ele resolve a questão da autonomia problemática de sua disciplina
reencontrando, especialmente, a Sociologia, e notadamente o que é chamado de
“sociologia comparada”;

2. Ele sai em busca de outra área de investigação: o camponês, este selvagem de dentro,
objeto ideal de seu estudo, particularmente bem adequado, já que foi deixado de lado
pelos outros ramos das ciências do homem;

3. Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive não exclui o anterior (pelo
menos enquanto campo de estudo), ele afirma a especificidade de sua prática, não mais
por meio de um objeto empírico constituído (o selvagem, o camponês), mas por meio
de uma abordagem epistemológica constituinte.

O objeto teórico da Antropologia não está ligado, na perspectiva na qual começamos a nos situar
a partir de agora, a um espaço geográfico, cultural ou histórico particular.

Sintetizando

Vimos até agora:

Que a Antropologia surge de uma expansão das preocupações e métodos da ciência em direção à sociedade humana nas
diferentes formas em que se apresenta;

Assim como ficou claro na discussão do texto “O ritual do Corpo entre os Sonacirema”, os conceitos de etnocentrismo e
relativismo cultural são centrais para a disciplina e permitem transformar nossos valores em objeto de reflexão à luz de
outros modos de vida.

15
AULA
COMO EMERGE A ANTROPOLOGIA
ENQUANTO DISCIPLINA? 2
Apresentação

Nesta aula apresentaremos o contexto histórico em que a Antropologia emerge enquanto


disciplina, suas escolas teóricas, principais autores e questões.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

»» Compreender o contexto da emergência da disciplina.

»» Relacionar a discussão sobre Jardins Zoológicos Humanos ao surgimento da disciplina.

»» Apreender os principais autores e escolas.

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Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2

O contexto de emergência da antropologia

Saiba mais

Texto: Os Jardins Zoológicos Humanos


No final do século XIX, não havia um único cidadão francês que não tivesse descoberto uma reconstituição “autêntica”
desses ambientes selvagens, povoados de homens e de animais exóticos, entre uma exposição, a missa dominical e o passeio
no lago.
por Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Sandrine Lemaire

1 de Agosto de 2000, em Le Monde Diplomatique Brasil

Fonte: http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=186

Jardins zoológicos humanos

Os zoológicos humanos, exposições etnológicas ou aldeias negras, continuam sendo assuntos complexos a serem abordados
por países que exaltam a igualdade de todos os seres humanos. De fato, esses “zoos”, nos quais indivíduos “exóticos”
misturados a animais selvagens eram mostrados atrás das grades ou em recintos delimitados a um público ávido de
distração, constituem a prova mais evidente da defasagem que existe entre o discurso e a prática no tempo da construção
dos impérios coloniais.

“Canibais australianos, machos e fêmeas. A única colônia desta raça selvagem, estranha,
desfigurada e a mais brutal nunca antes capturada das regiões selvagens em todos os tempos.
A ordem mais baixa da humanidade.” [1]

“Exibições etnológicas”
A ideia de promover um espetáculo zoológico pondo em cena populações exóticas aparece paralelamente em vários países
europeus ao longo da década de 1970 do século passado. Inicialmente, na Alemanha, onde em 1874, Karl Hagenbeck,
vendedor de animais selvagens e futuro promotor dos principais zoos europeus, decide apresentar aos visitantes, ávidos
de “sensações”, nativos de Samoa e da Lapônia como populações “genuinamente naturais”. O sucesso dessas primeiras
exibições o conduz, a partir de 1876, a enviar um de seus colaboradores ao Sudão egípcio, a fim de trazer animais, bem
como nubianos, para renovar a “atração”. Esses últimos tiveram sucesso imediato em toda a Europa, sendo apresentados
sucessivamente em diversas capitais como Paris, Londres e Berlim. Tal sucesso influenciou, sem dúvida alguma, Geoffroy de
Saint-Hilaire, diretor do Jardim de Aclimação, que procurava atrações capazes de reverter a situação financeira delicada em
que se encontrava seu estabelecimento. Ele decide então, em 1877, organizar dois “espetáculos etnológicos”, apresentando
os nubianos e esquimós aos parisienses. O sucesso foi fulminante. A frequência ao Jardim dobrou e alcançou, naquele ano,
milhões de ingressos pagantes. Os parisienses acorreram para descobrir o que a grande imprensa qualificava de “grupo de
animais exóticos, acompanhados por indivíduos não menos singulares”. Entre 1877 e 1912, foram montadas com sucesso no
Jardim Zoológico de Aclimação, em Paris, cerca de trinta “exibições etnológicas” desse tipo.

Vários outros lugares iriam rapidamente apresentar os mesmos “espetáculos” ou adaptá-los para fins políticos, a exemplo
das exposições universais parisienses de 1878 e de 1889 (com a torre Eiffel, como “atração máxima”), que tinham como
principais atrações uma “aldeia negra” e 400 figurantes “indígenas”; a de 1900, com seus 50 milhões de visitantes, além
do famoso diorama[2] “vivo” de Madagascar; e ainda, mais tarde, as exposições coloniais de Marselha, em 1906 e 1922, e
também as de Paris, em 1907 e 1931.

Uma reconstituição “autêntica”

Estabelecimentos passam a se especializar no “lúdico”, como as representações programadas no Campo de Marte, na boate
Folies-Bergères ou na Cidade Mágica, e na reconstituição colonial, como, por exemplo, a da derrota dos daomeanos,[3]
liderados por seu último rei, Behanzin, para o exército francês, no teatro da Porte Saint-Martin...

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AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina

Para atender a uma demanda mais “comercial” e ao apelo do interior do país, as feiras e as exposições regionais tornaram-se,
bem depressa, os principais lugares de promoção dessas exibições. É nesta dinâmica que são estruturadas, muito rapidamente,
as “turnês” itinerantes – passando de exposição a feira regional –, e se popularizam as célebres “aldeias negras” (ou “aldeias
senegalesas”), como por ocasião da exposição de Lyon em 1894. Não há uma só cidade, uma exposição ou um francês que não
tenha descoberto, numa tarde ensolarada, uma reconstituição “autêntica” desses ambientes selvagens, povoados de homens e de
animais exóticos, entre uma exposição agrícola, a missa dominical e o passeio no lago.

O discurso das “raças inferiores”

São milhões de franceses que vão, de 1877 ao início dos anos 1930, ao encontro do Outro. Um “outro” levado à cena na gaiola.
Quer seja um povo “estranho”, vindo dos quatro cantos do mundo, ou indígenas do império, trata-se, para a maioria dos
metropolitanos, do primeiro contato com a alteridade. É grande o impacto social desses espetáculos para a construção da
imagem do Outro. Principalmente porque eles são combinados com uma propaganda colonial onipresente (pela imagem e
pelo texto) que impregna profundamente o imaginário dos franceses. No entanto, esses zoos humanos ficaram ausentes da
memória coletiva.

O aparecimento, depois o impulso e o entusiasmo pelos zoos humanos, resulta da articulação de três fenômenos
concomitantes: inicialmente, a construção de um imaginário social sobre o Outro (colonizado ou não); em seguida, a
teorização científica da “hierarquia das raças”, na esteira dos avanços da antropologia física; e, enfim, a edificação de um
império colonial, então em plena construção. Bem antes da grande expansão colonial da Terceira República dos anos 1870-
1910, que termina com o traçado definitivo das fronteiras do império ultramarino, manifesta-se, na metrópole, uma paixão
pelo exotismo, ao mesmo tempo em que se constrói – na fronteira de várias ciências – um discurso sobre as “raças” ditas
inferiores. Logicamente, a construção da identidade de toda civilização dá-se sempre sobre as representações do outro,
permitindo – como num espelho – elaborar uma autorepresentação e se situar no mundo.

A mecânica colonial da inferiorização

No que diz respeito ao Ocidente, as primeiras manifestações são encontradas na Antiguidade (a categorização do “bárbaro”,
do “meteco”[4] e do cidadão), retomadas pela Europa do tempo das Cruzadas e, depois, por ocasião da primeira fase de
explorações e conquistas coloniais nos séculos XVI e XVII. Mas até o século XIX essas representações da alteridade não
passaram de incidências, não necessariamente negativas, não parecendo ter penetrado profundamente no corpo social.

Com os impérios coloniais consolidados, o poder das representações do outro se impõe num contexto político muito
diferente e num movimento de expansão histórica de amplitude inédita. A questão fundamental continua sendo a
colonização porque ela impõe a necessidade de dominar o outro, de domesticá-lo e, portanto, de representá-lo.

As imagens ambivalentes do “selvagem”, marcadas por uma alteridade negativa, mas, também, pelas reminiscências do mito
do “bom selvagem” de Rousseau, são substituídas por uma visão claramente estigmatizante das populações “exóticas”. A
mecânica colonial de inferiorização do indígena pela imagem é então acionada e, nessa conquista dos imaginários europeus,
os zoos humanos constituem, sem dúvida alguma, a engrenagem mais viciada da construção dos preconceitos sobre as
populações colonizadas. A prova está lá, para todos verem: trata-se de selvagens, vivendo e pensando como selvagens. A
ironia da história é que esses bandos de indígenas que atravessavam a Europa (e mesmo o Atlântico), ficavam muitas vezes
de 10 a 15 anos fora de seus países de origem e aceitavam a encenação, desde que remunerados. Não é outro o cenário da
selvageria instalada no zoo pelos organizadores dessas exibições: ao final do século: o selvagem reivindica um salário![5]

A estigmatização da selvageria

Paralelamente, um racismo popular instala-se na grande imprensa e na opinião pública, como pano de fundo da conquista
colonial. Todos os grandes meios de comunicação, dos jornais ilustrados mais populares – como Le Petit Parisien ou Le Petit
Journal – às publicações de caráter “científico” – La Nature ou La Science amusante –, passando por revistas de viagens e de
exploração como Le Tour du Monde e o Journal des Voyages –, apresentam as populações exóticas – e muito particularmente as
submetidas à conquista colonial – como vestígios dos primeiros estágios da humanidade.

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Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2

O vocabulário de estigmatização da selvageria – bestialidade, gosto de sangue, fetichismo obscurantista, estupidez atávica
– é reforçado por uma produção iconográfica de uma violência inaudita, propagando a ideia de uma sub-humanidade
estagnante, humanidade dos confins coloniais, na fronteira da humanidade e da animalidade.[6]

“Raças superiores” e “raças inferiores”

Simultaneamente, a inferiorização dos “exóticos” é consolidada pela tripla articulação do positivismo, do evolucionismo e
do racismo. Os membros da Sociedade de Antropologia – criada em 1859, mesma data que o Jardim da Aclimação de Paris
– estiveram por várias vezes nessas exibições de grande público, com o objetivo de realizar suas pesquisas voltadas para a
antropologia física. Esta ciência, obcecada pelas diferenças entre os povos e o estabelecimento de hierarquias, dava à noção de
“raça” um caráter predominante nos esquemas de explicação da diversidade humana. Através dos zoos humanos, assiste-se
ao desenvolvimento da construção de uma classificação das “raças” humanas e da elaboração de uma escala unilínea, que
permite hierarquizá-las de cima a baixo na escala evolucionista.

O conde de Gobineau, por exemplo, com sua obra Essai sur l’inégalité des races humaines (1853-1855), estabeleceu a
desigualdade original das raças, criando a “beleza das formas, da força física e da inteligência”, e consagrando, assim, as
noções de “raças superiores” e “raças inferiores”. Como muitos outros, postula a superioridade original da “raça branca”,
que detém, segundo ele, o monopólio desses três elementos e serve de norma, permitindo classificar o negro num estado de
inferioridade irremediável, no degrau mais baixo da escala da humanidade, e as outras “raças” como intermediárias.

Os pensadores da desigualdade

Essa classificação encontra-se nas programações parisienses dos zoos humanos, condicionando grandemente a ideologia
subjacente desses espetáculos. Quando, por exemplo, os cossacos foram convidados ao Jardim Zoológico da Aclimação, a
embaixada da Rússia insistiu para que eles não fossem confundidos com os “negros” vindos da África. Do mesmo modo,
quando Buffalo Bill chegou com sua trupe encontrou seu lugar no Jardim, contando com a presença de “índios” em
seu espetáculo! Finalmente, os liliputianos foram, sem nenhum problema, apresentados ao público, segundo a mesma
terminologia da diferença, da monstruosidade e da bestialidade aplicada às populações exóticas!

O darwinismo social, vulgarizado e reinterpretado na virada do século por Gustave Le Bon e Vacher de Lapouge, encontra
sua tradução visual de distinção entre “raças primitivas” e “raças civilizadas” nessas exibições de caráter etnológico. Esses
pensadores da desigualdade descobrem, por meio dos zoos humanos, um laboratório fabuloso de espécimens até então
inimagináveis na metrópole.

Tanto a antropologia física como a emergente antropometria – na época, uma gramática dos “caracteres somáticos” dos
grupos sociais, sistematizados desde 1867 pela Sociedade de Antropologia com a criação de um laboratório de craniometria,
e depois a frenologia – legitimam a continuidade dessas exibições. Incitam os cientistas a manterem ativamente as
programações por três razões pragmáticas: a disponibilidade de um “material” humano excepcional (variedade, número e
renovação dos espécimens?); o interesse do grande público por suas pesquisas, e portanto a possibilidade de promover seus
trabalhos na grande imprensa; e finalmente, a demonstração mais comprobatória da procedência dos enunciados racistas
pela presença física dos “selvagens”.

Liliputianos, corcundas e macrocéfalos

Ora, nesta percepção linear da evolução sociocultural e proximidade ao mundo animal, as civilizações não europeias são,
evidentemente, consideradas como atrasadas, mas passíveis de serem civilizadas, portanto, colonizáveis. Fecha-se o círculo.
A coerência dos espetáculos torna-se uma evidência científica, ao mesmo tempo em que uma perfeita demonstração das
teorias nascentes sobre a hierarquia das raças e uma perfeita ilustração in situ da missão civilizadora ultramarina. Cientistas,
membros do lobby colonial e organizadores de espetáculos, todos tiram proveito.

A aplicação dos fundamentos antropológicos “darwinianos” da ciência política, celebrizada e popularizada por essas
exibições, vai muito rapidamente influenciar as ciências irmãs e o projeto “eugenista” de Georges Vacher de Lapouge, que
consistia na melhoria das qualidades hereditárias, desta ou daquela população, por meio de uma seleção sistemática e

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AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina

voluntária. Muito significativamente, as exibições de “monstros” (anões ou liliputianos no Jardim Zoológico da Aclimação,
em 1909; corcundas ou gigantes nos inúmeros parques de diversão itinerantes; macrocéfalos ou “negros” albinos em Paris,
em 1902) conhecem, na virada do século, um grande sucesso, acompanhando e interpenetrando o sucesso estrondoso dos
zoos humanos. É lógico que, dialeticamente, eugenia, darwinismo social e hierarquia racial têm correspondência entre si. E
compartilham uma mesma angústia diante da alteridade, angústia que encontra seu exutório[7] na racionalização desigual
das “raças”, numa estigmatização comum do “corrompido” e do “indígena”.

“Ritos canibalescos” e “barbárie”

Os “zoos humanos” encontram-se assim na confluência do racismo popular e da objetivação científica da hierarquia racial,
ambos frutos da expansão colonial. Índice notável desta confluência, as “exibições etnológicas” do Jardim Zoológico da
Aclimação são legitimadas, como vimos, pela Sociedade de Antropologia e pela quase totalidade da comunidade científica
francesa. Ainda que entre 1890 e 1900 a Sociedade de Antropologia se torne claramente mais circunspecta quanto ao caráter
“científico” desses espetáculos, ela não pode deixar de apreciar o afluxo de populações que lhe permitem aprofundar suas
pesquisas sobre a diversidade das “espécies”. A ruptura se dará, finalmente, devido à crescente importância que passam a ter
essas diversões apreciadas pelo público e, sobretudo, pelo fato de eles se tornarem cada vez mais populares e burlescos.

É preciso dizer que esses espetáculos – assim como as exibições no Campo de Marte e nas Folies-Bergères – são estruturados
a partir de uma representação cada vez mais elaborada da “selvageria”: trajes rdículos no estilo barroco, danças frenéticas,
simulação de “combates sanguinários” ou “ritos canibalescos”, insistência em programas publicitários sobre a “crueldade”, a
“barbárie” e os “costumes desumanos” (sacrifícios humanos, golpes com armas cortantes?).

Uma barreira intransponível

Tudo converge para que, entre 1890 e a primeira guerra mundial, uma imagem particularmente sanguinária do selvagem
se imponha. Os “espetáculos” – construídos sem nenhuma preocupação de verdade etnológica, cumpre dizer – remetem,
desenvolvem, atualizam e legitimam os estereótipos racistas mais doentios que formam o imaginário sobre o “outro” no
momento da conquista colonial. Na realidade, é fundamental destacar que o “fornecimento dos indígenas” segue de perto
as conquistas da república ultramarina, recebe o aval (e o apoio) da administração colonial, contribuindo para sustentar
explicitamente a empreitada colonial da França.

Os tuaregues, por exemplo, foram exibidos em Paris nos meses que se seguiram à conquista francesa de Tumbuctu, em
1894; também os malgaxes, que apareceram um ano após a ocupação de Madagascar; e finalmente, o sucesso das célebres
amazonas do reino de Abomey, que se seguiu à comentada derrota de Behanzin para o exército francês no Daomé. A
vontade de degradar, humilhar, animalizar o outro – mas, também, de glorificar a França ultramarina através de um
ultranacionalismo que conheceu o auge após a derrota de 1870 – é então plenamente assumida e destacada pela grande
imprensa, ao mostrar aos colonizadores “indígenas” exaltados, cruéis, cegos pelo fetichismo e sedentos de sangue. Assim,
as diferentes populações exóticas tendem todas a ser mostradas em seu cotidiano pouco atraente: há um fenômeno de
uniformização na caricatura do conjunto das “raças” apresentadas, que as torna praticamente indiferenciadas. Entre “eles” e
“nós”, há, a partir deste momento, uma barreira intransponível.

A animalização do outro

Os “selvagens” trazidos ao Ocidente são sem dúvida atraentes, mas no entanto despertam um sentimento de medo. Suas
ações e movimentos devem ser rigorosamente controlados. São apresentados como absolutamente diferentes e sua
incursão europeia os obriga a se comportarem como tal, pois lhes é proibido manifestar qualquer sinal de assimilação,
de ocidentalização, durante o tempo em que são exibidos. Deste modo, é impossível que eles se misturem aos visitantes
na maior parte das manifestações. Caracterizando-se segundo os estereótipos em vigor, seus trajes são concebidos para
parecerem o mais originais possíveis. Os exibidos devem, além disso, permanecer no interior de uma parte especificamente
delimitada do espaço da exposição (sob pena de aplicação de multa sobre seus já parcos salários), o que marca a fronteira
intangível entre seu mundo e o dos cidadãos que os visitam e os inspecionam. Uma fronteira delimita escrupulosamente a
selvageria e a civilização, a natureza e a cultura.

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Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2

O que mais chama a atenção nesta brutal animalização do outro é a reação do público. Ao longo dos anos de exibições
quotidianas, poucos jornalistas, políticos ou cientistas comoveram-se com as condições sanitárias e de abrigo – muitas vezes
catastróficas – dos “indígenas”; sem falar nos inúmeros casos de morte (como os ocorridos em 1892, com os índios Kaliña, de
Galibi, em Paris[8]) pouco habituados ao clima francês.

Imagem invertida da ferocidade colonial?

Contudo, alguns relatos ressaltam o horror desses espetáculos. Com relação a isso, a atitude do público não é o assunto
menos chocante: inúmeros visitantes jogam alimento ou quinquilharias aos grupos expostos, comentando suas fisionomias,
comparando-os aos primatas (retomando com isso uma das cantilenas da antropologia física, ansiosa em revelar os
“caracteres simiescos” dos indígenas), ou rindo abertamente à visão de uma africana doente e tremendo em sua cabana.
Essas descrições – algumas cheias de lacunas – demonstram razoavelmente o sucesso da “racialização latente dos espíritos”
contemporânea. Em tal contexto, o império podia crescer com a consciência tranquila, instituindo a desigualdade jurídica,
política e econômica entre europeus e “indígenas”, com base no racismo endêmico, uma vez que na metrópole se encontrava
a prova de que fora dela só havia selvagens recém-saídos das trevas.

Evidentemente, os zoos humanos nada revelam sobre as “populações exóticas”. Por outro lado, constituem um instrumento
extraordinário de análise das mentalidades do final do século XIX até os anos trinta. Na verdade, zoos, exposições e jardins
tinham o objetivo básico de mostrar o raro, o curioso, o estranho, todas as expressões do não habitual e do diferente, por
oposição a uma construção racional do mundo, elaborada segundo padrões europeus.[9]

Não seriam essas dissimulações raivosas, afinal, a imagem invertida da ferocidade – esta, bem real – da própria conquista
colonial? Não haveria a vontade – deliberada ou inconsciente – de legitimar a brutalidade dos conquistadores por meio
da animalização dos conquistados? Nesta animalização, a transgressão dos valores e das normas do que representa para a
Europa a civilização constitui um elemento-chave.

A ambivalência do fascínio
No domínio do sagrado, a norma sexual é evidentemente a primeira. A poligamia toca, assim, num dos fundamentos
sociorreligiosos da família cristã. O fato que os zoos humanos acolham famílias inteiras – com as diferentes esposas do chefe
de família – é significativo. Na melhor das hipóteses, o espectador vem contemplar uma coisa bizarra e incompreensível, e na
pior, a manifestação de uma lascívia animal, trazendo, na interrogação expressa no olhar, o desejo insaciado de um fantasma
que, mesmo no Ocidente, constitui o inverso do proibido.

O tema da sexualidade é particularmente desenvolvido. Para os “negros”, cresce o mito de uma sexualidade bestial, plural.
Nesse mito, que abrange considerações físicas (uma grande vitalidade e órgãos genitais considerados superdesenvolvidos,
tanto no homem quanto na mulher), cristaliza-se a ambivalência do fascínio por seres que se encontram no limiar entre
a animalidade e a humanidade. A própria vitalidade sexual remete a uma vitalidade corporal de conjunto – visível, por
exemplo, em inúmeras gravuras dos grandes jornais ilustrados da época, que evocam o combate vigoroso de “tribos”
quase nuas diante das tropas coloniais –, provocando um fascínio pelo corpo do “selvagem”. Esse fascínio é o produto da
preocupação, vivida no final do século XIX, com a “degeneração biológica” do Ocidente.[10]

No capítulo da transgressão do sagrado, a recorrência ao tema da antropologia é reveladora. No momento em que


(final do século XIX) quase nada se sabe a respeito de uma prática social fortemente ritualizada e, de qualquer maneira,
extremamente limitada à África subsaariana, as imagens de “selvagens antropófagos” invadem os meios de comunicação e
são um dos argumentos que mais contribuem para vender os zoos humanos (até a Exposição Colonial Internacional de 1931
e a presença periférica dos kanak).[11] O canibalismo rompe, na verdade, um tabu importante; a aproximação com o mundo
animal torna-se evidente. Com relação a isso, as encenações realizadas nas exposições ou nas salas de espetáculos revelam a
força do tema.

A era da “missão civilizadora”

A partir da exposição universal de 1889 e até o final do período entre as duas guerras, vão se multiplicar as exposições,
em particular as coloniais. Em sua quase totalidade, são propostos à curiosidade dos visitantes: uma aldeia “negra”,
“indochinesa”, “árabe” ou “kanak”. Simultaneamente, essas aldeias “negras” ou senegalesas – sinal de uma evolução

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AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina

semântica muito interessante no período que se seguiu à grande guerra – tornam-se atrações autônomas, itinerantes e
perfeitamente instrumentalizadas no interior do país, mas, também, por toda a Europa e nos Estados Unidos.

As apresentações se sucedem, ano após ano, com quatro ou cinco trupes distintas que percorrem as grandes exposições
regionais como Amiens, Angers, Nantes, Reims, Le Mans, Nice, Clermont-Ferrand, Lyon, Lille, Nogent, Orléans e as grandes
cidades (e jardins zoológicos) europeias como Hamburgo, Antuérpia, Barcelona, Londres, Berlim ou Milão, onde chegam a
afluir de 200.000 a 300.000 visitantes por exibição.

As encenações passam, então, a ser muito mais “etnográficas” e as “aldeias” parecem enfeites fabricados em papelão, dignos
das produções hollywoodianas da época sobre a África misteriosa[12]. São admirados os produtos típicos e o “artesanato”
comercializado (provavelmente uma das primeiríssimas exposições de “arte negra” destinada ao grande público); formas
originais de organização social são progressivamente reconhecidas e geralmente mostradas como traços de um passado que
a colonização deve necessariamente abolir. As reconstituições fantasiosas de “danças indígenas” e os episódios históricos
famosos são espaçados e acabam sumindo.

Outra conjuntura se revela: o “selvagem” volta a ser doce, cooperativo, à semelhança, para dizer a verdade, de um império
que quer, às vésperas da primeira guerra mundial, passar a imagem de definitivamente pacificado. Nessa época, os limites
territoriais do império são, de fato, traçados. À conquista sucede-se a “missão civilizadora”, discurso que será ardentemente
defendido pelas exposições coloniais. O administrador sucede ao militar. No momento em que o tema propriamente racial
tende a desaparecer, sob a influência “benéfica” da França das Luzes, da República colonizadora, os “indígenas” voltam a
ocupar a base da escala das civilizações. As aldeias negras substituem os zoos humanos. Certamente, o indígena continua
sendo um ser inferior, porém “domesticado”, em quem se descobre o potencial de evolução que justifica o gesto imperial.

Esta nova percepção do outro indígena encontrará sua maior intensidade por ocasião da Exposição Colonial Internacional
de Vincennes, em 1931, que, com uma área de centenas de hectares, constitui a mutação mais bem conduzida do zoo
humano sob o manto da missão civilizadora, de boa consciência colonial e de apostolado republicano.

Os zoos humanos constituem, portanto, um fenômeno cultural fundamental – até aqui totalmente oculto – por sua
amplitude e também por permitirem compreender como se estrutura a relação com o outro pela França colonial e também
pela Europa. De fato, não estaria a maior parte dos arquétipos encenados pelos Zoos humanos projetando a raiz de um
inconsciente coletivo – que assumirá, ao longo do século, múltiplas faces –, e que se torna indispensável desconstruir,[13]
com base numa pesquisa[14] recente que revela que mais de dois terços dos franceses são racistas?
Texto traduzido por Nena Mello

Referências
[1] Plakate, 1880-1914, Historiches Museum, Frankfurt.

[2]N.T.: Trata-se de uma tela panorâmica, sem bordas que, projetada em sala escura, produz a ilusão de movimento, graças
ao efeito do jogo de luzes. O primeiro diorama foi instalado em Paris em 1922 por Daguerre e Bouton. Cf. Petit Larousse en
Couleurs. Paris: Librairie Larousse, 1972, p. 281.

[3] N.T.: Os daomeanos eram, até 1975, os habitantes de Daomé, hoje República Popular do Benin. Béhanzin foi seu último
rei, tendo governado entre 1889 e 1893, quando foi aprisionado e derrotado pelos franceses.

[4] Palavra que designava em Atenas o estrangeiro residindo na cidade. Hoje, de sentido pejorativo, é utilizada para designar
o estrangeiro vivendo em um país. (NT)

[5] Nem todos os grupos “importados” dispunham de um mesmo e único status. Os “fueguinos”, por exemplo, habitantes da
Terra do Fogo, situada no extremo Sul do continente sul-americano, parecem ter sido “transportados” como espécimens de
zoológico propriamente ditos; enquanto, os “gaúchos”, espécie de artistas contratados, tinham plena consciência da máscara
que vestiam em cena para os visitantes.

[6] Ler, de Nicolas Bancel, Pascal Blanchard e Laurent Gervereau, Images et Colonies, Ed. Achac-BDIC, Paris, 1993.

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Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2

[7] Ferida artificial cujo fim é provocar uma supuração permanente. Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. Novo
Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1ª ed. (NT).

[8] Ler, de Gérard Collomb, “La photographie et son double. Les Kaliña et ’le droit de regard’ de l’Occident”, in L’Autre et Nous.
Éditions Syros-Achac, 1995.

[9] Ler, de Anne McClintock, Imperial Leather. Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest. Ed. Routledge, Londres,
1994.

[10] Ler, de Christian Pociellot e Daniel Denis (org.). A l’école de l’aventure. Ed. PUS, Voiron, 2000.

[11] Ler, de Didier Dæninckx, Cannibale. Ed. Gallimard (coleção Folio) e Éditions Verdier, reedição, 1998.

[12] Nome de uma trupe itinerante apresentada no Jardim Zoológico da Aclimação.

[13] Ler, de Nicolas Bancel e Pascal Blanchard. De l’indigène à l’immigré, col. “Découvertes”. Ed. Gallimard, 1998.

[14] Ler, de Sylvia Zappi, “Un sondage révèle une progression du racisme et de l’antisémitisme”, Le Monde, 16/3/ 2000.

A unidade biológica e a diversidade cultural da


espécie humana

Uma das questões principais trazidas pelo texto “Os Jardins Zoológicos Humanos” é a articulação
entre racismo (e as teorias racistas do século XIX) e o sentido de evolução e progresso que
considerava a Europa como única detentora de cultura, como se esta fosse a única a existir, e
justificando o tratamento dado a outros povos colonizados por países europeus. Estamos falando,
na realidade, de culturas. De uma diversidade de culturas que não eram compreendidas, naquele
momento, em sua totalidade. Vejamos.

Artefatos, desenhos, poemas, manuscritos e construções são alguns dos registros que documentam
a produção da humanidade ao longo dos tempos. Desde o século XIX, chamamos a produção
humana de cultura.

Embora ainda não nomeassem dessa forma, os relatos de viajantes europeus que partiam ao
encontro desses “outros” foram essenciais para o acúmulo de um conhecimento sobre o que
mais tarde se chamaria “cultura”.

Antecederam o conceito de cultura o termo


Atenção
germânico Kultur, cunhado ao final do século
XVIII e princípio do XIX, para significar os Hoje, afirma-se que a diversidade das culturas
aspectos espirituais de uma comunidade. Esse relaciona-se às circunstâncias geográficas, históricas
e sociais, não podendo ser explicada pela constituição
termo se opunha à palavra francesa Civilization,
anatômica ou fisiológica dos negros, dos amarelos
utilizada para designar as realizações materiais ou dos brancos. Como sabemos, em cada sociedade
de um povo. O vocábulo Culture, formulado por moderna existe um número ilimitado de culturas e

E. Tylor, só surgirá no século XIX. Mas o que é um número limitado de classificações, baseadas nas
diferenças aparentes existentes entre os homens.
cultura?

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AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina

Como vimos no texto “Os Jardins Zoológicos Humanos”, durante o século XIX, as Ciências
Biológicas formulam o atualmente superado conceito de raça. Acreditava-se que a humanidade
era formada por raças diferentes entre si, biológica e psicologicamente. Nessa perspectiva, eram
desiguais em valor absoluto, mas também diversas nas suas aptidões particulares. Essas ideias
foram adotadas pela Ciência Social da época para explicar as diferenças entre as culturas. No
campo social, surgem as chamadas teorias racistas que pressupõem uma hierarquização entre
os seres humanos. Cabe lembrar que essas afirmações foram contestadas pela genética moderna.

A obra de Charles Darwin sobre a evolução humana revolucionou as ciências naturais e provocou
um grande impacto na Europa do século XIX. Em A Origem das Espécies (1859), ele confirma
cientificamente a unidade de espécie humana, daí a inoperância do termo raça.

Influenciado pelas ciências naturais, Edward Tylor (1832-1917) assim define Cultura: “todo
complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra
capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem com o membro de uma sociedade”, ou seja,
todo conhecimento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética. Tylor
considerava cultura como um fenômeno natural. A diversidade cultural presente na espécie
humana era explicada como resultado da desigualdade dos estágios existentes no processo de
evolução. Sendo assim, todas as culturas deveriam passar pelas mesmas etapas de evolução.

A perspectiva do evolucionismo unilinear, adotada por Tylor,


Sugestão de estudo
supunha que todas as culturas deveriam passar pelas mesmas
etapas de evolução. Situando cada sociedade dentro de CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural.
uma escala que ia da menos à mais desenvolvida. Desse Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
modo, as diferentes sociedades humanas eram classificadas
hierarquicamente. Nessa escala evolutiva, as sociedades
europeias eram consideradas civilizadas. Mas Tylor não era o único autor evolucionista a aparecer
naquele período.

Lewis Henry Morgan (Estados Unidos, 1818-1881) e James Frazer (Escócia, 1854-1941) foram
importantes pesquisadores que fomentaram, não apenas a emergência da disciplina, como,
também, o evolucionismo cultural, que pressupunha, na mesma humanidade, um único caminho
possível de ser seguido. Fosse em temas como etnologia e história dos indígenas americanos e
de um estudo sistemático das relações de parentesco, no caso de Morgan ou dos estudos sobre
as diversas religiões, no caso de Frazer, a perspectiva de evolução das sociedades “primitivas”
para as “civilizadas” era uma constante, assim como o trabalho de gabinete, aquele que buscava
conhecer outros grupos por meio da literatura etnográfica disponível em cartas, diários, relatórios,
livros, sem estabelecer, de forma constante, um contato com os nativos que buscasse conhecer
melhor e mais profundamente as culturas estudadas. Culturas, a partir de agora, no plural.

Entre o final do século XIX e o início do século XX, esses dois quadros (evolucionismo e trabalho
de gabinete) passam a mudar. Primeiro com Émile Durkheim (1858-1917) e seu sobrinho Marcel

24
Como emerge a Antropologia enquanto disciplina • AULA 2

Mauss (1872-1950), considerados fundadores da Escola Sociológica Francesa e primeiros teóricos


da Antropologia e com Bronislaw Malinowski, que inaugura não apenas o Funcionalismo, mas,
também, o trabalho de campo em Antropologia.

Porém, a perspectiva evolucionista é finalmente contestada e superada pelo método comparativo


iniciado por Franz Boas (1858-1949). Esse antropólogo, crítico do evolucionismo unilinear,
inaugura uma nova abordagem multilinear, o método comparativo. Nele, cada grupo humano
desenvolve-se por meio de um caminho próprio, que não pode ser simplificado em estágios. A
partir dessa constatação, a interpretação evolucionista da cultura só tem sentido quando ocorre
em termos de uma abordagem multilinear.

Essa possibilidade de desenvolvimento múltiplo orienta a produção das várias definições


contemporâneas de cultura. Dentre os teóricos que consideram a cultura como sistemas
simbólicos, temos o antropólogo americano Clifford Geertz. Esse antropólogo afirma que
cultura não é um complexo de comportamentos concretos, mas um conjunto de mecanismos
de controle, planos, receitas, regras, instruções (que os técnicos de computadores chamam de
programa) para governar o comportamento. Para Geertz, todos os homens são geneticamente
aptos para receber um programa, e esse programa é o que chamamos de cultura.

Concluímos, a partir de Clifford Geertz, que a cultura distancia o homem dos outros animais,
tornando-o o único ser possuidor de um mapa orientador, ou seja, de um conjunto de orientações
conscientes ou não, mas que o ajudam a viver em sociedade. Por exemplo, a intenção de oferecer
flores como presente ou a arte de transformar um conjunto de sementes em colar são marcas
da presença do homem interagindo com o mundo e se apropriando do meio ambiente. A partir
dessa interação, damos outro significado, diferente do original, às flores ou sementes, e que será
diferente também para cada um de nós. Nesse exemplo, a flor e o conjunto de sementes assumem
um significado simbólico tanto para o grupo quanto para o sujeito da ação.

Outras tradições antropológicas


Quadro Produzido pelo Professor Vagner Gonçalves – USP

25
AULA 2 • Como emerge a Antropologia enquanto disciplina

Se é verdade que a primeira metade do século XX definiu muitos parâmetros do que viria a ser a
Antropologia moderna, não podemos desprezar outras escolas, fundamentais para a consolidação
e difusão da disciplina.

Sintetizando

Vimos até agora:

»» o contexto em que a Antropologia surge enquanto disciplina;

»» o que foram os jardins zoológicos humanos e como eles se relacionam com a nossa disciplina;

»» as principais escolas e autores da disciplina, assim como suas contribuições.

26
AULA
PRINCIPAIS CONCEITOS
ANTROPOLÓGICOS E A RELAÇÃO
ENTRE ANTROPOLOGIA, EDUCAÇÃO E
PLURALIDADE CULTURAL 3
Apresentação

Nesta aula, apresentaremos conceitos utilizados na Antropologia que ancoram alguns dos
principais debates sobre pluralidade cultural no campo da Educação.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

»» Compreender os diversos conceitos que fazem parte desta disciplina, tais como natureza
e cultura, indivíduo e sociedade, etnocentrismo e relativismo cultural, diversidade, raça
e etnia, sexo e gênero.

»» Compreender a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural.

27
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural

Introdução: conceitos básicos da teoria antropológica

Natureza e Cultura

A relação natureza e cultura se constitui numa matriz da filosofia ocidental. O processo de


reflexão acerca da diferença entre essas duas esferas e a tentativa de entender os modos como
elas se relacionam remonta ao período dos gregos. De modo que podemos perceber que, ao longo
da História da Filosofia, essa temática vem agregando diversas questões, discussões, versões e
formulações. Assim, questionamentos têm estimulado grandes e infindáveis debates, tais como:
o que diferencia o ser humano de outros animais? Existe uma natureza humana? O que é natural
e o que é cultural no ser humano?

A Natureza tem sido definida em oposição à cultura. Em outras palavras, tem-se dito que Cultura
é tudo aquilo que não é natureza, ou que é produzido pelo ser humano.

Cultura é, num sentido amplo, definida como um conjunto de regras, símbolos, tradições, práticas
rituais, formas de arte, cerimônias, mas, também, a linguagem, a fofoca, histórias e rituais do
cotidiano, que podem se traduzir em objetos, sentimentos, pensamentos e comportamentos de
grupos de indivíduos. Portanto, a cultura pode se constituir em material e imaterial.

Para o antropólogo Edward Tylor (1832-1917), o primeiro antropólogo a formular um conceito


de cultura (1871), esta se constituía em um conjunto complexo de conhecimentos, crenças, arte,
moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto
membro pertencente a uma sociedade. De Tylor até hoje, o conceito de cultura ganhou novas
roupagens, preocupações adicionais e tentou dar conta das próprias reflexões do mundo em
que vivemos. Diversos autores formularam definições para ele.

Bellah et al. (1985), por exemplo, definiram cultura como “aqueles padrões de significado que
qualquer grupo ou sociedade utiliza para interpretar e avaliar a si próprio e sua situação” (Habits
of the Heart, p. 333).

Pierre Bourdieu (1979) definiu cultura como

“um sistema adquirido e duradouro de esquemas de percepção, pensamento e


ação, produzidos por condições objetivas, mas tendendo a persistir mesmo após
uma alteração dessas condições” (The Inheritors, 1979).

Harris (1979) afirmava que cultura referia-se

“ao repertório aprendido de pensamentos e ações, exibidos por membros de


grupos sociais – repertórios [transmitidos] independentemente da hereditariedade
genética de uma geração à outra” (HARRIS, Cultural Materialism, p. 47).

28
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3

Para Geertz (1989), a cultura é como uma “teia de significados que o homem tece ao seu redor
e que o amarra (p. 15)”; e ainda, valendo-se de Max Weber, Geertz afirmava “que o homem é um
animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (p. 15). Nesse sentido, uma das
tarefas do antropólogo é a de buscar apreender os seus significados.

Etnocentrismo e Relativismo Cultural

O relativismo cultural se fundamenta na ideia de que “os indivíduos são condicionados a um


modo de vida específico e particular, por meio do processo de endoculturação”; em outras palavras,
“adquirem seus próprios sistemas de valores e sua própria integridade cultural (MARCONI, 2001,
p. 52)”. A perspectiva relativista cultural diverge sobre a ideia de normas e valores absolutos, pois
seus adeptos defendem que avaliações e julgamentos “devem ser sempre relativos à própria
cultura onde surgem (MARCONI, 2001, p. 52)”. Ao serem socializados numa cultura, as pessoas
naturalizam seus padrões, tomando-os como verdade para a sua vida e passam ainda a utilizar
tais padrões ou valores como parâmetros de juízos para avaliar os modos de vida (usos, costumes,
rituais, crenças) distintos dos seus.

O etnocentrismo é um conceito universal, é o que


Sugestão de estudo
ocorre quando os indivíduos supervalorizam suas
próprias culturas em detrimento das demais. Em geral, Se você quer aprofundar o estudo sobre o conceito
todos nós possuímos esses sentimentos, ou seja, ver o de etnocentrismo, sugerimos:
mundo sob as lentes de sua cultura e, em consequência, ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo. São
assumindo uma postura pretensiosa de considerar seu Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
modo de vida como o mais correto e natural. Entretanto,
é importante compreendermos a existência da grande diversidade cultural no mundo, e que,
por conseguinte há modos de vida considerados bons para um grupo, ao passo que podem ser
manifestados no comportamento agressivo ou em atitudes de superioridade e até de hostilidade
(MARCONI, 2011, p. 52). Também outras maneiras de expressar o etnocentrismo aparecem na
discriminação, no proselitismo, na violência, e na agressividade verbal.

Saiba mais

Etnocentrismo, por Everardo Rocha:


Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens, um pastor se preparou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu
seu trabalho de evangelização e catequese. Muito generoso, comprou, para os selvagens, contas, espelhos, pentes etc.;
modesto, comprou para si próprio apenas um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer contas,
marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre absolutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias
inevitáveis e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do Xingu distribuindo seus presentes e sua
doutrinação. Tempos depois, fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os lugares de sua pregação
e mostrava-se admirado de muitas coisas, especialmente do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia no
pulso e consultava frequentemente. Um dia, por fim, vencido por insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o,
meio sem jeito e a contragosto, ao jovem índio.

29
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural

A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu
trabalho. Apontando seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias da aldeia, o índio fez o pastor
divisar, não sem dificuldade, um belo ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O índio queria
que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em
meio às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma
função, contemplava o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio.

Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua tarefa seguinte era entregar aos superiores
seus relatórios e, naquela manhã, dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos seus colegas em
congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze
para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última hora examinou detalhadamente as paredes do seu
escritório. Nelas, arcos, flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela decoração. Rústica e sóbria
ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembranças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado o
que aquele índio foi fazer com o meu relógio.

Essa estória, não necessariamente verdadeira, porém, de toda evidência, bastante plausível,
demonstra alguns dos importantes sentidos da questão do etnocentrismo.

Em primeiro lugar, não é necessário ser nenhum detetive ou especialista em Antropologia


Social (ou ainda pastor) para perceber que, nesse choque de culturas, os personagens de cada
uma delas fizeram, obviamente, a mesma coisa. Privilegiaram ambos as funções estéticas,
ornamentais, decorativas de objetos que, na cultura do “outro”, desempenhavam funções que
seriam principalmente técnicas. Para o pastor, o uso inusitado do seu relógio causou tanto espanto
quanto o que causaria ao jovem índio conhecer o uso que o pastor deu a seu arco e flecha. Cada
um “traduziu” nos termos de sua própria cultura o significado dos objetos cujo sentido original
foi forjado na cultura do “outro”. O etnocentrismo passa exatamente por um julgamento do valor
da cultura do “outro” nos termos da cultura do grupo do “eu”.

Em segundo lugar, essa estória representa o que se poderia chamar, se isso fosse possível, de
um etnocentrismo “cordial”, já que ambos – o índio e o pastor – tiveram atitudes concretas sem
maiores consequências. No mais das vezes, o etnocentrismo implica uma apreensão do “outro”
que se reveste de uma forma bastante violenta. Como já vimos, pode colocá-lo como “primitivo”,
como “algo a ser destruído”, como “atraso ao desenvolvimento”, (fórmula, aliás, muito comum e
de uso geral no etnocídio, na matança dos índios).

Outros conceitos

Indivíduo e Sociedade

Ruth Benedict (s/d) afirmava que “a sociedade e o indivíduo não são antagônicos, mas
interdependentes (p. 276)”. Podemos afirmar que sociedade é um sistema de inter-relações que
integra os indivíduos em uma mesma cultura. Segundo Marina Marconi (2001), uma sociedade
é constituída por seres humanos que seguem “uma forma de viver normativa”, ou seja, “tornam-

30
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3

se portadores de culturas, em geral, adaptadas à ambiência local (p. 193)”. Assim, elementos
como as atitudes, as condutas e os comportamentos são parte integrante do “complexo cultural
e são ditados pelas normas e padrões adotados pelo grupo como saudáveis ao desenvolvimento
sociocultural (p. 193)”. Também é importante ressaltar que nas sociedades simples as normas
e padrões tendem a ser mais persistentes. Outro aspecto é que não há sociedade humana sem
cultura, e vice-versa.

Quanto ao conceito de indivíduo, ele está intrinsecamente ligado ao de sociedade, pois este
somente se torna humano mediante sua interação com outros seres humanos. E nesse sentido,
a cultura é a responsável pela padronização dessa intercessão.

Diversidade, Raça e Etnia

A diversidade está vinculada a conceitos tais como pluralidade e multiplicidade, e heterogeneidade.


O conceito de diversidade cultural se refere às diferenças culturais que existem entre os seres
humanos. A linguagem, as danças, o vestuário, entre outras tradições, são expressões da diversidade
cultural. Desse modo, o conceito nos remete à existência de uma variedade de ideias, aspectos,
características, perspectivas e realidades distintos. Desde seus primórdios, a antropologia tem
se ocupado em identificar e compreender as mais diferentes sociedades situadas pelo globo.

Ao buscarmos informações sobre o conceito de raça, veremos que ele foi utilizado para classificar e
analisar distintas populações oriundas da mesma espécie biológica observando-se seus caracteres
genéticos. Durante os séculos XVII e XX, muitos antropólogos, sobretudo os denominados
evolucionistas, utilizavam a ideia de raças humanas para classificar grupos humanos. Entretanto,
o termo raça, na perspectiva biológica, foi contestado pela ideia de que há somente uma raça, a
humana, de modo que ele deixou de ser utilizado com a conotação biológica ou genética. Hoje,
a utilização do termo raça remete a uma posição política, a exemplo de quando é utilizado pelo
movimento negro quando se pede por “igualdade racial” e cria-se uma legislação para efetivar
esse tipo de demanda.

A etnia tem sido utilizada como um conceito alternativo e sinônimo de raça. Entretanto, há
críticas a essa equiparação, contestando que esses conceitos não podem ser considerados iguais.
A diferença entre ambos está no fato de que, no caso da etnia, ela compreende fatores culturais
a exemplo da nacionalidade, da religião, da língua, das tradições; ao passo que a raça envolve
apenas os fatores morfológicos, tais como cor da pele, constituição física, traços faciais, entre
outros, que de forma alguma são homogêneos ou inequívocos em um grupo.

Sexo e Gênero

No dicionário Aurélio (mini), sexo apresenta duas definições importantes para nossa compreensão:

“o conjunto das características que distinguem os seres vivos, com relação à sua
função reprodutora; e qualquer das duas categorias, macho ou fêmea, na qual
eles se classificam.”

31
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural

Ao final da década de 1980 e início da década de 1990, o conceito de gênero substituiu os estudos
sobre as condições femininas. Hoje inclui temas mais amplos, como discussões sobre masculinidade
e transexualidade. Para os especialistas em gênero e feminismo, a substituição de uma discussão
sobre as questões femininas para a adoção do conceito de gênero ampliou o campo de discussão
e aliviou tensões no debate entre a universidade e os movimentos sociais, fazendo com que as
discussões sobre mulheres passassem a ser mais bem aceitas em alguns grupos.

O conceito de gênero absorveu a contribuição de diversas disciplinas, entre as quais a Sociologia,


Antropologia, a Psicologia. Há diversas definições ou entendimentos sobre o que é gênero. A
mais usual aponta para estudos baseados no binômio sexo/gênero, entendendo sexo como a
representação da natureza, por tratar-se da anatomia e da fisiologia, enquanto gênero representaria
as forças sociais, políticas e institucionais. Seriam essas forças que moldam os comportamentos
e os significados do que é feminino e masculino.

Maria Luiza Heilborn (1999) afirma que o gênero é uma construção social do sexo. E ainda segundo
Heleieth Saffioti (s/d), ele “diz respeito às imagens do feminino e do masculino, historicamente
construídas (p. 1)”. E, ao contrário do que muitos indivíduos pensam, a ideia de gênero não está
vinculada à diferenciação sexual biológica, porque essa distinção entre os sexos assume dimensões
da ordem do simbólico (HEILBORN, 1999), produzindo significados no que se refere às diferenças
corporais (SCOTT, 1994). Nesse sentido, podemos falar, então, na existência de construções,
as quais antropólogos clássicos tanto quanto modernos têm se dedicado a compreender. Um
exemplo desse tipo de construção pode ser vislumbrado na afirmação de Heilborn (1999) que
identifica que “... há machos e fêmeas na espécie humana, mas a qualidade de ser homem e ser
mulher é condição realizada pela cultura”. (p. 5).

Na sociedade, assumimos papéis de gênero, ou seja, se somos identificados como mulher, devemos
nos apresentar com comportamentos, padrões de vida que evidenciem o que está previamente
estabelecido na sociedade que condiz com a ideia de uma menina ou mulher, tal como falar e
agir tal qual uma; o mesmo deverá ser seguido pelos homens ou meninos. O papel atribuído aos
gêneros varia entre as diferentes sociedades e também no tempo. O papel que se esperava de
uma mulher durante a era colonial era bem diferente do que se apresenta hoje no Brasil, o que,
por sua vez, difere do que se espera de uma mulher no Irã, por exemplo. Em fins do século XX, os
pesquisadores da área incorporaram a essa questão de gênero os estudos sobre masculinidade.

Identidade(s)

Os estudos de Stuart Hall (1999) apontam para uma questão extremamente discutida na teoria
social – as identidades. Argumenta-se que, quando as velhas identidades estão em declínio, surgem
novas identidades, fragmentando o indivíduo moderno, até então visto como sujeito unificado.

32
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3

As identidades modernas estariam sendo descentradas, isto é, deslocadas e fragmentadas.


As transformações ocorridas nas sociedades modernas do final do século XX promoveram a
fragmentação de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, eram
sólidas e estáveis. Essas transformações abalaram também a ideia que tínhamos de nós mesmos
como sujeitos integrados. Nesse mundo pós-moderno, qualquer concepção essencialista ou fixa
de identidade é rechaçada. Assim:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,


está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Esse processo
produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade
fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”:
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL,
1999, pp. 12-13).

Atenção

O termo pós-modernismo nasceu na arquitetura do final dos anos 1950 e início dos anos 1960 e depois se generalizou para
todos os campos da cultura. Esse termo investiu no ataque ao universalismo, enfatizando o localismo, o particularismo e
o regionalismo. Assim, pós-modernidade refere-se à tendência ao pluralismo e à diferença, ou seja, à cultura do outro, do
diferente (mulheres, gays, negros, terceiro mundo).

A partir dessa perspectiva, admitimos que o sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos. Enfim, a identidade unificada, aquela entendida como construída desde o nascimento
até a morte, é uma fantasia, já que somos confrontados com uma multiplicidade de identidades
possíveis e, por vezes, contraditórias.

Sistematizando, comparando e apresentando conceitos

Raça e Etnia

A noção de raça foi elaborada pelas Ciências Biológicas do século XIX para explicar as diferenças
existentes entre os homens. Posteriormente superado com a constatação da igualdade existente
na humanidade, tornou-se incompatível com a ideia de diferenças biológicas dentro de uma
mesma espécie.

Gênero é uma construção social. Refere-se às diferenças sexuais entre os indivíduos de dada
sociedade. Inicialmente, foi usado como sinônimo de estudos sobre a mulher. Atualmente,
expressa mais do que diferenças entre homens e mulheres: refere-se à pluralidade de papéis e às
práticas sociais e sexuais existentes em nossa sociedade, tais como heterossexuais, homossexuais,
bissexuais, transexuais entre outros grupos, ressaltando que essas identidades são heterogêneas
e cambiantes.

33
AULA 3 • Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural

Raça difere de outras noções, como gênero, por exemplo. Raça não se refere a nenhuma
característica física inequívoca, enquanto gênero vincula-se à noção biológica de sexo.

O termo racismo refere-se ao conjunto de crenças que classificam a humanidade em coletividades


distintas, definidas em função de atributos naturais e/ou culturais. Esses atributos são organizados
em uma hierarquia de superioridade e inferioridade, que pode ser descrita como racista. O
racismo é uma noção europeia que entrou em uso na década de 1930 para designar as crenças e
as práticas do regime nazista da Alemanha, baseadas na suposta superioridade da raça “ariana”,
na importância da “pureza racial” e na consequente política da “purificação” que culminou no
Holocausto. Já o termo sexismo refere-se à intolerância e à discriminação gerada pela diferença
entre os sexos.

Etnia é o termo empregado para designar um grupo social que se diferencia de outros grupos
por sua especificidade cultural.

Etnicidade é um neologismo que surgiu no âmbito dos estudos sobre as relações interétnicas no
início da década de 1960. Esse neologismo é inseparável do conceito de grupo étnico, podendo
ser definido como a condição de pertencer a um grupo étnico. Etnicidade e constituição de
grupos étnicos baseiam-se na diferenciação cultural dos indivíduos e na criação de laços sociais
entre os que partilham de uma cultura comum. Enquanto raça se refere às diferenças físicas,
biologicamente herdadas, a diferenciação étnica se dá em termos de diferenças culturais que
têm de ser aprendidas.

Após a introdução aos termos etnia e raça, cabe a explicação do que é a questão étnico-racial.
Conhecida nos meios acadêmicos como “questão racial”, a adoção do termo étnico-racial
visa a superar as ambiguidades presentes nos termos etnia e raça, a fim de retratar as relações
entre brancos e negros na sociedade brasileira. Seria apropriado o uso do termo etnia para nos
referirmos às diferentes populações brancas ou negras brasileiras? Seria apropriado o uso do
termo raça para nos referirmos às relações raciais entre as populações brancas e negras do Brasil?
Certamente que não. Essa constatação tem levado alguns pesquisadores a adotarem o termo
étnico-racial, com vistas a superar os limites dos dois termos. Cabe esclarecer que nesse contexto
o termo raça assume seu significado social, ou seja, refere-se às diferenças na aparência, tais
como cor da pele, tipo de cabelo, laços culturais, entre outras, e não na essência dos indivíduos.

Por que aprender Antropologia é importante para o profissional


de Educação?

A antropologia se debruça sobre a cultura dos diferentes povos desde a sua criação como
disciplina ou área do conhecimento. O interesse pelos hábitos de higiene e alimentação, pela
relação dos nativos com seu corpo, pelos modos como resolviam problemas relacionados à
saúde ou a doença, pelos aspectos religiosos, entre tantos outros, tornou-se, ao longo do século

34
Principais conceitos antropológicos e a relação entre Antropologia, Educação e Pluralidade Cultural • AULA 3

XX, uma preocupação corrente com a educação e muitas vezes com o espaço escolar, mesmo
que indiretamente.

Essa percepção de como se configuram as culturas de determinado povo, população ou grupo


social nos ajuda a perceber os vários aspectos da diversidade e a pensá-la em termos de políticas
nacionais e internacionais. Temos em mente que hoje muitos dos grandes problemas sociais são
também problemas na área de saúde já que estão relacionados à pobreza e às desigualdades
sociais, por exemplo.

O que queremos dizer com isso? Que a relação do homem com a sua cultura ou a influência que
dela recebe é essencial para entendermos os aspectos peculiares da educação em relação a sua
sociedade.

Podemos compreender a Antropologia como a ciência social que se dedica ao estudo do “homem
de todos os tempos e tipos” (CAVEDON, 2008).

Sendo a Antropologia um importante polo compreensivo do funcionamento das sociedades,


dos grupos sociais e das organizações, ela não pode deixar de ser incorporada à formação do
profissional de saúde. E daí a relevância de examinarmos como alguns de seus conceitos básicos
(tais como natureza e cultura, indivíduo e sociedade, etnocentrismo e relativismo cultural,
determinismo biológico e geográfico, diversidade, raça e etnia, sexo e gênero, gênero, ritos e
mitos) regulam instituições sociais e culturais.

Além disso, uma das questões essenciais do nosso debate é de que maneira percebemos a
cultura como um elemento de análise importante para a criação de políticas públicas, para o
desenvolvimento das políticas sociais, para o combate às desigualdades e ainda para conhecer
melhor a população com a qual estamos interagindo. É nesse sentido que precisamos saber
melhor o que é Antropologia e os conceitos correlatos com os quais trabalharemos, antes de
partirmos para as outras aulas. É importante observar que hoje há uma área consolidada sobre
as especificidades da Antropologia e sua interseção com a Educação, chamada Antropologia da
Educação. Essa área pretende refletir sobre como os autores clássicos da teoria antropológica
trataram o tema educação e como as metodologias de pesquisa desenvolvidas na Antropologia
são fundamentais hoje para compreendermos os espaços educacionais em nossa sociedade.

Sintetizando

Vimos até agora:

»» os principais conceitos da Antropologia, fundamentais para o entendimento da relação entre Antropologia, Educação e
Diversidade Cultural;

»» os diversos conceitos que fazem parte desta disciplina, tais como natureza e cultura, indivíduo e sociedade,
etnocentrismo e relativismo cultural, determinismo biológico e geográfico, diversidade, raça e etnia, sexo e gênero,
ritos e mitos.

35
AULA
MOVIMENTOS SOCIAIS, DIREITOS
HUMANOS E IDENTIDADES:
INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE
DIREITOS HUMANOS 4
Apresentação

Esta aula tem por objetivo geral debater as questões relativas aos movimentos sociais, direitos
humanos e lutas por direitos. Abordaremos as principais correntes de pensamento que refletiram
sobre a ação social coletiva, buscando estabelecer bases para refletirmos sobre o lugar desse
acúmulo histórico na construção de uma educação que contemple a pluralidade cultural.
Tomaremos como exemplo o caso das discussões de gênero.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

»» Compreender o contexto e historicidade dos conceitos como movimentos sociais,


direitos humanos e direitos sociais, entre outros e situar-se no seu campo de debates.

»» Compreender o contexto de surgimento das políticas públicas voltadas para grupos


específicos, por meio da reivindicação de movimentos sociais.

»» Ter elementos críticos para compreender os mecanismos de fomento da educação e da


cultura organizacional orientada para a diversidade cultural.

36
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4

Movimentos sociais

Experiência social e a construção de um conceito

Grosso modo, podemos dizer que o termo movimento social refere-se à ação coletiva de um
grupo de pessoas, com finalidade de alguma transformação ou questionamento da ordem social,
num contexto específico. A maior parte dos teóricos sociais concorda que esse tipo de ação social
envolve uma relação social específica e conflitiva entre partes de uma mesma sociedade. São
exemplos de movimentos sociais: o movimento negro que luta contra o racismo e segregação
racial, o movimento estudantil, movimento indígena, o movimento de trabalhadores do campo,
movimento feminista, movimento ambientalista, movimentos pelos direitos civis, movimento
de moradia e reforma urbana, separatistas, movimento de juventude, e tantas outras formas de
lutas sociais, aparecimento público e representação política.

Evidentemente, cada um desses movimentos tem uma história, atuação e organização diferentes,
que mudam ao longo do tempo e variam de acordo com a região onde se encontram, são mais
ou menos amplos nas suas lutas, têm atuação mais centralizada, têm um viés reivindicatório
mais focalizado ou mais amplo... e por aí seguem as diferenças.

O tipo clássico e historicamente originário de movimento social é o movimento operário. O


movimento operário nasce com a constituição da sociedade industrial e a consolidação da
produção industrial nas cidades. Esses grupos tornaram-se uma força política de importância
crescente, sindicalizam-se e mantêm relações próximas com partidos políticos, inspirados por
ideias socialistas.

No início do século XX partidos da classe operária já se haviam firmado por toda a Europa – onde
alguns deles, em especial na Alemanha e na Áustria, já eram bastante grandes. E também, em
escala menor, na América do Norte.

Nas primeiras décadas do século XX, por volta dos anos 1950 e 1960, o movimento operário e
movimentos revolucionários desde a Revolução Francesa tiveram grande incidência sobre a cena
dos países onde eclodiram, mas, também, sobre os outros países, e, por que não dizer, sobre a
cena mundial que se desenhava.

Durante os anos 1940 a 1960, vivenciou-se especialmente nos países da Europa a constituição
do que se chamou de Estado de Bem-Estar Social, ou Estado Providência ou ainda, o Welfare
State. Ou seja, a constituição de uma estrutura estatal de promoção e gestão de regras e políticas
públicas que tomam o Estado como agente regulamentador de toda vida social, política e
econômica do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, cabendo ao Estado do 
bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população. A influência e a importância
dos movimentos de trabalhadores, sindicatos e movimentos sociais neste processo são sublinhadas

37
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos

por diversos autores que tratam do tema, mostrando a centralidade dos sujeitos políticos
(movimentos sociais lato senso) ligados à mudança social.

Nos anos 1960, a maioria dos países do Ocidente vivenciou importantes movimentos sociais, tais
como o estudantil, os movimentos pelos direitos civis e os movimento pela paz, enquanto em
países do Terceiro Mundo surgiram movimentos de libertação nacional. Durante os anos 1970
e início dos anos 1980 um grande número de movimentos sociais proliferou pela América do
Norte e a Europa – movimentos de mulheres, ecológicos, antinucleares e pela paz, bem como
movimentos por autonomia regional.

Não só os movimentos sociais sacudiram a cena política dos anos 1960, 1970 e 1980 quanto do
ponto de vista teórico, também os movimentos sociais se colocam no centro da discussão das
Ciências Sociais.

Tal como a maioria das noções das Ciências Sociais, a de movimento social não descreve parte
da realidade, mas é um elemento de um modo específico de construir a realidade social.

“Novos personagens entram em cena”: os movimentos


sociais no Brasil dos anos 1970 em diante

Assim como em outros países, o Brasil viveu anos intensos desde a eclosão de novos movimentos
sociais. Não teríamos condição aqui nesta aula (e nem mesmo no Caderno todo) de recompor
o nascimento de cada um deles ou mesmo de alguns. O que importa sublinhar é que com o
aparecimento dos movimentos sociais:

Da segunda metade da década de 1970 ao início dos anos 1980, começava


a tentativa para desenvolver um novo quadro paradigmático que pudesse
interpretar com maior especificidade os movimentos sociais urbanos emergentes
na sociedade brasileira e que permitissem um entendimento ampliado do “novo
sindicalismo” nascente. Até então, as ações coletivas civis eram especialmente
analisadas a partir do paradigma marxista clássico das lutas de classe, privilegiando
os estudos sobre os movimentos sindicais, operários, ou nacional-populares, na
interface da temática nação x classe. Diante do projeto de redemocratização do
Estado e da sociedade, a questão da autonomia dos atores coletivos na sua relação
com governos ainda autoritários, por um lado, e a multiplicidade de identidades
coletivas (trabalhador, morador, mulher etc.) de organizações emergentes, por
outro, tornaram-se focos de atenção privilegiada desses atores e de seus analistas.
(Ilse Scherer-Warren e Lígia Helena Hahn Lüchmann, “Situando o debate sobre movimentos
sociais e sociedade civil no Brasil – Introdução”, Revista Política e Sociedade, no 5 – outubro de
2004, pp. 13-14).

A problematização da vida pública brasileira e seus impasses encontrou, nos anos 1980, seu
centro no aparecimento de novos sujeitos políticos ou “novos personagens”, usando expressão

38
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4

célebre cunhada por Eder Sader. Essas leituras do cenário brasileiro ao mesmo tempo em que
analisavam a cena pública da época, “acertavam as contas” com a história da formação brasileira,
relendo e problematizando atuação política das classes populares no cenário público, lidos até
ali na chave da incompletude e da impossibilidade de acesso à cidadania, aos direitos sociais e
à vida pública.

Nesse momento da história brasileira, muitos e diversos movimentos surgem e ou se reestruturam:


movimentos de moradia – associações de bairros, de moradores de favelas, de encortiçados;
movimento de saúde; movimento contra carestia; movimento por educação – professores e
funcionários, e educadores em geral, mas, também, pais e alunos; movimentos de identidade
étnica como movimentos indígenas; movimentos negros e de combate ao racismo; movimento
de mulheres...

Esses movimentos sociais dirigem sua ação e colocam-se em oposição em relação ao Estado
autoritário brasileiro, naquele momento ainda nos estertores da ditadura formal, cobrando-lhe,
além de maior porosidade e permeabilidade a suas reivindicações por direitos, maior participação
na definição de suas políticas públicas e na sua gestão.

A Constituinte de 1988 é um momento importante, uma vez que representou um novo marco
jurídico que, em alguma medida, representava os anseios e expectativas de uma sociedade
democrática, instituindo mecanismos e formas de participação popular e social na vida política
do Brasil, para além da democracia representativa.

A importância da Constituinte também reside no fato de que, a partir desse novo arcabouço
jurídico-legal, formas de participação popular foram reconhecidas, ao menos formalmente,
como justas e abriram caminho para afirmar-se como uma prática de gestão compartilhada
das políticas públicas, dos programas sociais e dos recursos concernidos nessa disputa. Tudo
isso, tornou-se referência nos rumos da democratização brasileira ao longo dos anos 1990,
consolidando uma nova cultura política e uma cidadania renovada. Destaca-se, também,
por exemplo, o debate sobre as causas ambientais.

Direitos humanos e movimentos sociais

Artigo 1o “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em


direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros
em espírito de fraternidade. “
(Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1948.)

Para entender a noção de direito que muitos movimentos sociais reivindicam e que estruturam
políticas públicas implementadas no Brasil e no mundo, precisamos dar um passo atrás e

39
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos

entender o que são Direitos Humanos. Esses são um conjunto de princípios e diretrizes que
buscam resguardar todas as pessoas de injustiças.

Além disso, têm o objetivo de lhes garantir o direito de usufruir da liberdade de expressão por
meio da sua fala, de suas crenças e sua visão de mundo, a salvo de ameaças e de necessidades,
materiais inclusive. Esses direitos estão estabelecidos num documento redigido e aprovado pela
Organização das Nações Unidas, a ONU, em 1948, justamente em função do reconhecimento
da violação de direitos experimentada na Segunda Guerra Mundial.

Para que uma declaração feita na ONU seja efetiva é preciso criar instrumentos legais internacionais
e também leis em cada nação que reafirmem o que se disse nas Nações Unidas.

A partir da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dois conjuntos de


princípios foram estabelecidos em 1966: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos
(PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Em
1993, na Conferência Mundial de Viena, esses dois documentos foram reunidos para afirmar o
caráter indivisível e interdependente dos direitos humanos. Isso quer dizer que eles se aplicam
a todas as pessoas e que, para se efetivarem, dependem uns dos outros. São interdependentes e
inalienáveis, ou seja, não podem ser negociados ou compensados por outros. O Estado brasileiro
é signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, e inseriu-se no Sistema Internacional
de Direitos Humanos em 1992.

Podemos dizer que Direitos Humanos são os direitos básicos de todos os seres humanos. Os
direitos humanos de primeira geração seriam os direitos de liberdade, compreendendo os direitos
civis, políticos e as liberdades clássicas. Os direitos humanos de segunda geração, ou direitos de
igualdade, constituiriam os direitos econômicos, sociais e culturais. Já como direitos humanos
de terceira geração, chamados direitos de fraternidade, estariam o direito ao meio ambiente
equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, paz, autodeterminação dos povos e
outros direitos difusos.

São direitos civis e políticos: o direito à vida, à propriedade, à liberdade de pensamento, de expressão,
de crença, igualdade formal, ou seja, de todos perante a lei, direitos à nacionalidade, de participar
do governo do seu Estado, podendo votar e ser votado, entre outros. São direitos econômicos,
sociais e culturais: direito ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência social, à moradia, à
distribuição de renda, entre outros, fundamentados no valor igualdade de oportunidades. E, por
fim, são direitos difusos e coletivos: o direito à paz, Sugestão
direito aode
progresso,
estudo autodeterminação dos
povos, direito ambiental, direitos do consumidor, inclusão digital, entre outros, fundamentados
no valor fraternidade. A Plataforma Dhesca desenvolve o Projeto Relatorias de
Direitos Humanos, por meio de relatores e missões pelo país;

Nem sempre os movimentos sociais se acompanha a situação dos direitos humanos no Brasil.

reivindicam e ou se identificam como Veja o sítio eletrônico do projeto e os relatórios produzidos


nesses 10 anos de existência.
um movimento de direitos humanos.

40
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4

Entretanto, muitas vezes acabam por utilizar-se de conceitos, ideias e mecanismos de proteção
contra violações de direitos ou de garantia de direitos, que estão lastreadas nesse debate dos
direitos humanos. Há uma forte corrente dos direitos humanos que busca ampliar o escopo de sua
atuação para além dos direitos civis, especialmente nos países ditos em desenvolvimento. Esses
movimentos, organizações e entidades lutam pela garantia dos direitos humanos compreendidos
como integralidade dos econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca) visando ao
fortalecimento da cidadania e à radicalização da democracia.

A Plataforma Dhesca Brasil é uma articulação nacional composta por movimentos e organizações
de direitos humanos da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção, defesa e reparação
dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais – Dhesca. A Plataforma atua
também incidindo na formulação, efetivação e controle de políticas públicas sociais.

Gênero, sexualidade e raça: elementos para o debate sobre


a incidência dos movimentos sociais em políticas públicas

Mulheres e Gênero

Quando falamos em movimento feminista, temos a tendência de circunscrever o debate às


mulheres. “Feminismo é coisa de mulher...” Certo!? Devagar com o andor, porque esta é uma
afirmação capciosa, ela pode nos levar a muitos enganos. Primeiro, vamos pensar sobre o que
são as representações dos homens e das mulheres, do masculino e do feminino, ou melhor,
masculinidade e feminilidade. Pra isso, precisamos compreender o que é gênero.

Como vimos, quando falamos em gênero ou relações de gênero, estamos falando da construção
social das identidades feminina e masculina e a forma de relação social que se estabelece
entre mulheres e homens, entre mulheres entre si e homens entre si. Gênero é, portanto, uma
categoria relacional, é uma maneira de pensar as relações entre mulheres e homens e também
se deslocando de uma leitura essencialista.

As identidades de gênero e relações de gênero são uma construção social, não são determinadas
apenas pelo sexo, mas pela maneira como, no interior de um contexto cultural, são imaginados
os papéis sociais de cada gênero.

Compreender essa construção social não significa desconsiderar que ela se


dá em corpos sexuados. Compreendemos que há uma estreita imbricação
entre o social e o biológico. Como disse Guacira Lopes Louro, gênero também
tem uma dimensão e uma expressão biológica. Assim, mulheres e homens
imprimem no corpo, gestos, posturas, e disposições, as relações de poder
vividas a partir das relações de gênero. (Nalu Faria, em Gênero e Educação,
2003, p. 30)

41
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos

Esse conceito de gênero ou relações de gênero desenvolvido pela Antropologia e pela


psicanálise procurava estabelecer sentidos e compreender existência de papéis sociais distintos
e hierárquicos operantes nas sociedades. As feministas que trabalhavam na década de 1960
com essa terminologia criticavam os modelos de explicação da vida social e das questões
envolvendo as mulheres e seu lugar subalterno na sociedade baseadas nas diferenças físicas
e biológicas entre os dois sexos. Nesse sentido, o debate de gênero contrapunha-se e buscava
ultrapassar o conceito de sexo como matriz explicativa para as desigualdades entre mulheres
e homens.

Essa noção, combatida pelo conceito de gênero, partia das diferenças biológicas para
argumentar que o sexo feminino traria consigo fragilidade física e emocional, desequilíbrio
psíquico, menor inteligência e capacidade de exercer papéis importantes na esfera pública,
cabendo aos homens, que possuiriam força física, capacidade maior de racionalização e
de exercer autoridade, ocupar os espaços públicos e cargos importantes, enquanto, às suas
mulheres caberia o cuidado apenas com o espaço privado. Nessa explicação, o destino é
traçado biologicamente para cada um dos sexos e não diz respeito a uma opção.

Relações de gênero estão também presentes nos símbolos culturalmente disponíveis sobre
homens e mulheres. O que significa que o gênero e as suas múltiplas distinções estão presentes
nas atribuições sociais associadas às masculinidades e às feminilidades e, portanto, estão por
dentro de regras e normas da vida social, as organizações, na maneira como constituímos
nossas relações de trabalho, familiares e afetivas, assim como, na educação, nas políticas
públicas.

Assim, o feminismo é um movimento social, filosófico e político que reivindica direitos


equânimes para mulheres. Envolve diversos movimentos, teorias e filosofias, advogando
pela igualdade entre mulheres e homens, além de envolver a campanha pelos direitos das
mulheres e seus interesses.

É preciso dizer que atualmente o debate sobre o feminismo tem várias vertentes, concepções,
movimentos e organizações.

A luta das mulheres, no entanto, não é uma novidade na história humana. Muitas mulheres
lutaram em seu tempo e da forma como podiam contra as violações e violências sofridas, e
buscando o direito de existir como sujeitos de suas próprias vidas. Algumas autoras apontam
o final do século XIII como o começo do feminismo, com a tentativa de criação de igreja
das mulheres, por Guillermine de Bohemia. Mas é somente em meados do século XIX que
podemos considerar o movimento feminista como uma luta organizada e coletiva.

42
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4

Movimento feminista e a perspectiva de gênero na análise


da sociedade

Se acima dissemos que gênero é uma


Sugestão de estudo
categoria, é preciso dizer que feminismo
é um movimento social cujos principais A sufragetes brasileiras foram lideradas por Bertha Lutz,
sujeitos políticos são as mulheres. bióloga, cientista de importância, que estudou no exterior e
voltou para o Brasil na década de 1910, iniciando a luta pelo

Assim, o feminismo é um movimento social, voto. Foi uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino, organização que fez campanha pública
filosófico e político que reivindica direitos
pelo voto, tendo inclusive levado, em 1927, um abaixo-
equânimes para mulheres e que luta pela assinado ao Senado, pedindo a aprovação do Projeto de Lei,
libertação de padrões opressores baseados de autoria do Senador Juvenal Lamartine, que dava o direito
de voto às mulheres. Esse direito foi conquistado em 1932,
em normas de gênero. Envolve diversos
quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro.
movimentos, teorias e filosofias, advogando
pela igualdade entre mulheres e homens,
além de envolver a campanha pelos direitos das mulheres e seus interesses.

É preciso dizer que atualmente o debate sobre o feminismo tem várias vertentes, concepções,
movimentos e organizações. E nem sempre – como em muitos, se não todos os movimentos
sociais – há uma e apenas uma forma de se organizar, de compreender as questões, nem apenas
uma forma de reivindicação...

A luta das mulheres contra as opressões vividas por elas não é uma novidade na história
humana. Muitas mulheres lutaram em seu tempo e da forma como podiam contra as
violações e violências sofridas, e buscando o direito de existir como sujeitos de suas próprias
vidas. Algumas autoras apontam o final do século XIII como o começo do feminismo,
com a tentativa de criação de igreja das mulheres, por Guillermine de Bohemia. Mas é
somente em meados do século XIX que podemos falar de movimento feminista como
uma luta organizada e coletiva.

A chamada primeira onda do feminismo tem início nas últimas décadas do século XIX,
com a luta das mulheres pelo direito de voto. A luta pelo sufrágio seria a primeira de muitas
conquistas. As sufragetes promoviam grandes manifestações pelas ruas de Londres, fizeram,
também, greve de fome e, muitas vezes, foram presas por suas lutas.

O movimento feminista renascerá nos anos 1960, no bojo de outras manifestações


por direitos. O livro de Segundo sexo, lançado em 1949 terá grande importância neste
Novo Feminismo, como ficou conhecida a segunda onda do feminismo; assim como
Betty Friedan, com o livro A mística da feminilidade, lançado em 1963, no auge das
mobilizações.

43
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos

O feminismo aparece como um movimento libertário, que não quer só espaço


para a mulher – no trabalho, na vida pública, na educação –, mas que luta,
sim, por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, em
que esta última tenha liberdade e autonomia para decidir sobre sua vida e
seu corpo. (Célia Regina, Feminismo, História e Poder, p. 16)

O novo feminismo começa nos anos 1960 e segue até meados dos anos 1980 com certa
homogeneidade. Essa será a segunda onda, da qual os autores falam, que trará ao debate as
questões de igualdade que vão além do sufrágio, como acabar com a discriminação. Percebem
as desigualdades culturais e políticas das mulheres como intrinsecamente ligadas.

Já a terceira onda, que coexiste com a segunda, tem início nos anos 1990 e contrapõe-se as
definições essencialistas da feminilidade feitas pela segunda onda que enfatizou as experiências
das mulheres brancas de classe média alta. Nesse momento, as discussões dentro da esfera
feminista sobre as questões relacionadas à raça ganham muito peso e importância, seja como
tema seja como questão política.

Assim como para outros movimentos sociais no Brasil, a década de 1980 foi especialmente
importante. As mulheres se engajaram fortemente no processo por redemocratização do País,
nos movimentos sociais mais relevantes da época.

De sua luta muitas conquistas podem ser enumeradas.

No início [dos anos 1970], refletindo a experiência do movimento de mulheres


[mundial], foram priorizadas as políticas de combate à violência e de atenção
à saúde da mulher. Já nos anos 1990, vieram as políticas para o conjunto da
cidade e as necessidades das mulheres: desde o planejamento urbano até as
lavanderias coletivas e programas de geração de renda. As mulheres passaram
a pressionar de forma mais eficiente o Legislativo. A Constituição de 1988
marcou importantes conquistas. (Nalu Faria e Míriam Nobre, em Gênero e
Educação, 2003, p. 38)

Dentre essas conquistas, podemos elencar: a licença-maternidade de 120 dias, extensão


do direito à creche para os filhos de trabalhadores de ambos os sexos; direitos trabalhistas
para empregadas domésticas e para as trabalhadoras rurais; titulação imóvel em nome das
mulheres nos programas habitacionais públicos; legislação e programas de prevenção e
combate a violência contra a mulher etc.

A educação é um elemento primordial no combate às desigualdades. Veja o texto que


selecionamos para reflexão sobre: como uma educação não sexista impacta o cotidiano da
escola? E no seu trabalho, como incorporar uma perspectiva não sexista nas relações de
trabalho?

44
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4

Saiba mais

Qualidade do ensino e gênero: por uma educação não sexista


Cláudia Vianna, fragmento de “Educação e gênero: parceria necessária para a qualidade do ensino” em Gênero e
Educação: Caderno para professores, São Paulo: Secretaria Municipal da Educação, 2003.

Uma das formas mais candentes de manutenção do poder na escola dá-se pela reprodução das desigualdades de
gênero nas relações escolares e na organização do sistema e do cotidiano escolar. Nesse sentido, é tarefa urgente a
reflexão sobre o papel de educadoras e educadores na garantia da qualidade do ensino, a partir da ótica das relações
de gênero.

A educação tem, entre suas funções, a transmissão de modelos culturais, valores e concepções; com eles, determina
padrões de conduta, modelos de pensamento. (...) Mas ultrapassar o sexismo implica compreender seu significado
e seu funcionamento. Ou seja, supõe compreender que ele está ligado ao modo como a nossa sociedade opõe,
hierarquiza e naturaliza as diferenças entre os sexos, reduzindo-as às características físicas tidas como naturais e,
portanto, imutáveis. Supõe criticar os vários estereótipos que justificam a permanência da desigualdade entre os
sexos.

Exige, também, superar as hierarquias que apresentam significados masculinos e significados femininos como
categorias excludentes e que afirmam o status inferior das características femininas. Implica, ainda, perceber que
esse modo único e difundido de compreensão é reforçado pelas explicações oriundas da medicina e das ciências
biológicas e também pelas instituições sociais, como a escola, assim como por nós, professores e professoras ou
alunos(as), que omitimos que essas referências são construídas socialmente – com base em imagens que a sociedade
nos oferece –, não são “naturais” e, portanto, são passíveis de mudanças.Esse é o primeiro passo para sairmos do
sexismo, isto é, das concepções naturalizadas, polarizadas que diferenciam meninos e meninas, masculinos e
femininos de modo permanente, inevitável e que atribuem a essas diferenças uma hierarquia na qual os significados
femininos são desvalorizados socialmente. Sair dessas concepções é, antes de tudo, entender que são construídas
socialmente e, portanto, podem ser mudadas. (...) Muitas são as possibilidades de construção de uma escola não
sexista: introduzir o ponto de vista da mulher nos livros didáticos, nos conteúdos escolares; não hierarquizar
significados masculinos e femininos; interferir na reprodução de estereótipos pelas crianças e pelos jovens; analisar
com alunos(as) as atribuições e significados dominantes para cada sexo, explorando os pontos positivos e negativos
presentes nos modelos da TV, nos jornais e gibis; descobrir a existência de inúmeros esquemas, sentidos e ações para
cada sexo que não têm relação com capacidades inatas, comportamentos espontâneos e, principalmente, trabalhar
com vários modelos de menino/menina, feminino/masculino.

Essa é uma tarefa difícil, mas urgente e necessária. Requer luta em todas as esferas: na denúncia das revelações ditas
científicas que perpetuam preconceitos; nas reivindicações por direitos; na discussão de propostas e atividades
realizadas na escola; na conscientização do corpo docente; na análise crítica dos livros didáticos; na luta diária
contra aquilo que aprendemos como verdade, mas que nos transmite imagens relativas à discriminação de gênero;
na reconstrução da história imediata, da vida cotidiana feita por homens e mulheres; no preparo de menino(as),
garotos(as) para novos caminhos com o pensamento lógico, com as emoções, com o cuidado, com os sentimentos;
com espaços e com atividades consideradas femininas; com o questionamento dos significados femininos e
masculinos dominantes na sociedade e nas relações escolares; não hierarquizar significados masculinos e femininos;
interferir na reprodução de estereótipos pelas crianças e pelos jovens; analisar com alunos(as) as atribuições e
significados dominantes para cada sexo, explorando os pontos positivos e negativos presentes nos modelos da
TV, nos jornais e gibis; descobrir a existência de inúmeros esquemas, sentidos e ações para cada sexo que não têm
relação com capacidades inatas, comportamentos espontâneos e, principalmente, trabalhar com vários modelos de
menino/menina, feminino/masculino.

45
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos

Políticas afirmativas, estado e movimentos sociais

No encontro entre as práticas populares e as novas formas de organização, com as


práticas estatais de gestão é que se situa o nascimento de experiências de democratização
dos espaços de decisão política nos anos 1970 e 1980, no Brasil. nesse Nesse sentido,
a constituinte de 1988 é um momento importante, uma vez que representou um novo
marco jurídico que, em alguma medida, referia-se aos anseios e expectativas de uma
sociedade democrática, instituindo mecanismos e formas de participação na vida política
do Brasil. Sua importância também reside no fato de que a partir deste novo arcabouço
jurídico-legal que algumas formas de participação se tornam reconhecidas, como justas e
abrem caminho para afirmar-se como uma prática de gestão compartilhada das políticas
públicas e dos programas sociais. E, sobretudo, na afirmação de direitos sociais no País,
na constituição de mecanismos de garantia desses direitos, seja por meio de políticas
públicas, seja por meio de uma cultura de respeito aos direitos.

A consolidação dessas novas formas de participação na vida política brasileira, por


exemplo, por meio de conselhos gestores de políticas públicas, entretanto, ocorreu
concomitantemente às transformações pelas quais passou a economia mundial e a forma
específica como o capitalismo se reorganizou no mundo e no Brasil, sob a insígnia de
globalização ou neoliberalismo. No bojo dessas novas políticas públicas e nesse contexto,
vimos ser debatidas e implementadas as chamadas políticas ou ações afirmativas. Como
define Alexandre Nascimento:

Como políticas públicas e privadas, as ações afirmativas podem ser entendidas


como intervenções nas instituições, através de leis, programas e outras
medidas, com o objetivo de discutir as relações assimétricas entre gêneros,
grupos raciais, portadores e não portadores de deficiências físicas, promover
a diversidade sociocultural e a igualdade de oportunidades entre os diversos
grupos sociais. (NASCIMENTO, 2010, p. 2)

Entretanto, há um debate importante que tem colocado em lados opostos políticas


públicas universais e ações afirmativas, ou, ainda, políticas públicas universais e políticas
compensatórias. Evidentemente, não enceraremos esse debate aqui; entretanto, é relevante
introduzi-lo, dada sua importância na cena pública pela persistência das desigualdades
sociais, econômicas, culturais que segue sendo a tônica em muitos países.

46
Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos • AULA 4

Essa tensão se revela no nosso cotidiano e poderia ser condensado numa formulação do
mesmo autor:

Na perspectiva dos movimentos sociais, as ações afirmativas não são o fim das
lutas sociais antirracistas – são as próprias lutas. E, como tais, são ações de
afirmação de identidade e produção de direitos. (...) Entretanto, no contexto
dos debates que se travam na sociedade, as políticas de ação afirmativa são
comumente definidas como políticas compensatórias, específicas, focalizadas,
sendo, portanto, opostas ao ideal republicano de igualdade e direitos universais,
que devem ser materializados através de políticas também universalistas,
aquelas definidas como “para todos”. Por um lado, trata-se de um alerta,
pois pensar políticas de ação afirmativa sem pensar em democratização de
direitos surge como um equívoco, pois o verdadeiro objetivo dos movimentos
sociais é a universalização dos direitos, a constituição material daquilo que a
constituição formal define como direitos da cidadania. Por outro lado, trata-se
de uma concepção estreita do que significa ação afirmativa, que não leva em
consideração o seu potencial constituinte, à medida que o que está instituído
e socialmente aceito (caso das desigualdades e dos privilégios coorporativos)
está sendo profundamente questionado pelos defensores de tais ações e pode
sofrer abalos significativos se algumas políticas forem implementadas.

(NASCIMENTO, 2010, pp. 1-2).

Com isso, chegamos ao final desta aula. Procuramos construir um caminho que possibilitasse
uma reflexão sobre aquilo que acreditamos ser a própria prática da constituição de direitos.
Resta-nos voltar a essa questão e nos interrogar sobre o que esses temas que discutimos nos
revelam sobre a nossa sociedade e as formas que construímos de viver num mundo comum,
justo e sem violência.

Resta-nos voltar a essa questão e nos interrogar sobre o que esses temas que discutimos nos
revelam sobre a nossa sociedade e as formas que construímos de viver num mundo comum,
justo e sem opressão e violência.

Só conseguimos perceber a existência de um direito de ter direitos (e isto significa


viver numa estrutura onde se é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito
de pertencer a algum tipo de comunidade organizada, quando surgiram milhões
de pessoas que haviam perdido esses direitos e não podiam recuperá-los devido
à nova situação política global.

(Hannah Arendt. As origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1990, pp. 329-331)

47
AULA 4 • Movimentos sociais, direitos humanos e identidades: introdução ao debate sobre direitos humanos

Sintetizando

Até aqui vimos:

»» o contexto e historicidade dos conceitos como movimentos sociais, direitos humanos e direitos sociais, entre outros, e
situar-nos no seu campo de debates;

»» o contexto de surgimento das políticas públicas voltadas para grupos específicos, por meio da reivindicação de
movimentos sociais.

48
AULA
EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE E
PLURALIDADE CULTURAL 5
Apresentação

Esta aula pretende apresentar a questão da diversidade e pluralidade cultural na educação e


como os preconceitos e o racismo devem ser tratados na escola.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

»» Analisar as relações étnico-raciais no Brasil e as desigualdades étnico-raciais.

»» Refletir sobre os preconceitos, o racismo e a escola. Por uma educação que promova
relações democráticas.

49
AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural

Introdução

Todos nós fazemos parte da mesma espécie. Não existem raças superiores ou inferiores,
nem qualquer diferença biológica entre os povos do mundo. O preconceito nega a nossa
humanidade, privando as sociedades da convivência sem conflitos étnico-raciais. Ele também
alimenta as desigualdades e as disparidades de poder, incentivando o abuso e a exploração
dos grupos vulneráveis.

A sociedade brasileira tem sido moldada e profundamente afetada pelo racismo, pelo sexismo
e por diversas outras formas de preconceito. Nossa nação enfrenta o desafio de encontrar
caminhos para desfazer o legado de desvantagens cumulativas que afeta não só a população
negra, mas diversos grupos que hoje encontram dificuldades para acessar seus direitos de
cidadãos.

Nesta aula você lerá somente sobre o combate ao racismo. Definimos por estratégias
antirracistas e aquelas que combatem a ideia de inferioridade e superioridade de indivíduos
e de grupos, pautada em raça/etnia.

Essas desigualdades são construídas histórica e culturalmente e, com relação à diversidade,


as questões étnico-raciais e de gênero são campos de enfrentamento na vida social, e na
escola não se apresenta de forma diferente.

Aqui, passamos a tratar do movimento negro para tentarmos compreender como, nos
anos 2000, ações afirmativas e a inclusão de história e cultura africana e afro-brasileira
passaram a ser questões de políticas públicas educacionais. E esses movimentos se
iniciam nos anos 1970.

A década de 1970 e o Movimento Negro Unificado (MNU)


t

Saiba mais

Soul music na década de 1970


Os bailes de música soul eram comuns no Rio de Janeiro durante toda década de 1970. Iniciados no Canecão, casa de
shows da Zona Sul, ao longo de toda década os bailes espalharam-se por todo subúrbio carioca, como forma de diversão
e sociabilidade dos moradores, que gostavam das novidades musicais trazidas dos Estados Unidos. Os bailes estavam na
moda, e sua música e estética passaram a influenciar gerações. No mesmo período, o Movimento Negro passa a perceber
uma consciência do que era ser negro no Brasil e esses bailes deixam de ser encarados apenas como uma diversão, quase
alienada e se transformam em instrumento da luta antirracista empreendida por vários setores da sociedade.

50
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5

Segundo Hanchard (2001), no Brasil não houve uma mobilização tão forte quanto a
ocorrida nos Estados Unidos pela luta dos direitos civis, também na década de 1960,
pois aqui ocorreu uma preocupação muito mais cultural. Com o black is beautiful,
criação norte-americana, passamos a valorizar a estética do cabelo crespo, o soul, o
funk e, posteriormente, o hip-hop, que buscam se afirmar como elementos da cultura
negra, a partir da década de 1970. Em Salvador, o bloco carnavalesco Ilê Ayê é criado
em 1974 e nos mostrou suas influências nas roupas e nos conteúdos políticos de suas
letras: reafricanização, direitos civis norte-americanos, lutas de independência e contra
os sistemas de apartheid na África, explosão da música negra serão questões a serem
refletidas nos discursos e na prática política.

A década de 1970 pode ser descrita como a década em que houve uma “revivificação da
cultura negra”, ao mesmo tempo em que se constituía uma crescente luta antirracista. Em
1975, é fundado no Rio de Janeiro o Instituto de Pesquisas de Cultura Negra (IPCN), um dos
movimentos mais relevantes e uma das poucas entidades a ter sede própria.

Com vários grupos antirracistas espalhados em diversas regiões do Brasil, em 1979 é criado
o Movimento Negro Unificado (MNU), uma denominação genérica e aglutinadora desses
diversos movimentos.

Apesar de seu nome, o Movimento Negro Unificado nunca apresentou uma coordenação
unificada de suas ações. Trata-se de iniciativas e organizações variadas que só se condensam
numa plataforma única diante de acontecimentos de especial relevância como foram,
por exemplo, a Constituição de 1988, a comemoração dos 300 anos da morte de Zumbi
em 1995, e a preparação para a III Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em
Durban em 2001 (COSTA, 2005, p. 14).

1988 e o centenário da Abolição

O ano de 1988 foi marcado pela comemoração dos cem anos do fim da escravidão. Ao mesmo
tempo em que o Movimento Negro lutava para dar visibilidade ao dia 20 de novembro, Dia
da Consciência Negra, escolhido em homenagem a Zumbi dos Palmares, houve toda uma
movimentação por parte da sociedade, inclusive dos intelectuais e do estado, para comemorar
e discutir o Centenário da Abolição, suas consequências e os avanços políticos conquistados
pela população negra brasileira.

51
AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural

Independente do significado dado, Yvonne Maggie (1994, p. 4) aponta que naquele momento
o 13 de maio foi mais comemorado que o 20 de novembro e identifica 30 tipos de eventos
acontecidos ao longo do ano de 1988:

acontecimento cívico, anúncio, campanha, casos, concurso, convênio, curso,


dança, denúncia, disco, documento, exposição, festa, filmes, lei, leitura, missa,
passeata, peça, prêmio, projeto, publicações, rádio, reunião, seminário, show,
tribunal, TV, vídeo, visita diplomática.

Movimento negro e educação

Foram inúmeras as conquistas dos movimentos negros no século XX, principalmente as ações
implantadas ao longo dos últimos 30 anos de combate ao racismo e à discriminação racial.

Como as leis antirracistas ficaram ausentes do debate nacional até a década de 1980, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos foi utilizada como respaldo por muitos dos
movimentos negros que surgiram ao longo das décadas de 1940 e 1950, em resposta às suas
demandas, críticas, avaliações e reivindicações.

Dentre elas, talvez as mais visíveis sejam as demandas e as conquistas pela educação
dos afrodescendentes. Segundo Silva (2003, p. 227), “a educação formal e a preparação
profissional foram sempre perseguidas pelos negros organizados, em diferentes épocas”.
Nesse sentido, podemos sistematizar alguns exemplos da relação entre movimentos
negros e educação:

»» Alfabetização e Educação para jovens e adultos: desde a Frente Negra Brasileira,


passando pelo Teatro Experimental do Negro, a alfabetização e a educação de jovens
e adultos era uma prioridade. Especificamente em relação ao TEN, Jeruse Romão
(2005) ressaltará que o objetivo não era apenas o da escolarização: incorporou-se
ao projeto do TEN a perspectiva e a conscientização do negro em vários aspectos,
o educativo, o político e o de inserção no mercado de trabalho.

»» Currículo Escolar e Livros Didáticos: em relação aos currículos escolares, o movimento


apontava uma ausência de conteúdos que contemplassem a Cultura afro-brasileira e
a história dos povos africanos. Sueli Carneiro (2002) ressalta que até houve algumas
iniciativas nesse sentido, mas esbarraram na falta de formação docente para tratar
de questões étnicas e raciais dentro de sala de aula. Hoje, estamos capacitando
professores e produzindo recursos didáticos, o que nos leva à segunda questão:
os livros didáticos. Os livros didáticos foram denunciados como cristalizadores de
papéis sociais subalternos protagonizados por personagens negros e a reificação de
estereótipos racistas.

52
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5

Assim, apontou-se em que medida essas práticas afetam a formação de crianças e adolescentes
negros e brancos, destruindo a autoestima do primeiro grupo e, no segundo, cristalizando
imagens negativas e inferiorizadas da pessoa negra, em ambos, empobrecendo o relacionamento
humano e limitando as possibilidades exploratórias da diversidade racial, étnica e cultural
(CARNEIRO, 2002, p. 209)

Podemos estabelecer, nesse sentido, três das conquistas sobre essas questões: em 1996,
entre os critérios de avaliação dos livros didáticos comprados e distribuídos pelo Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), as questões raciais foram incluídas. Em 1998, a Pluralidade
Cultural foi incluída entre os temas transversais nos Parâmetros Curriculares Nacionais. Em
2003, a publicação da Lei no 10.639 tornou obrigatório o ensino da História da África e dos
Afro-brasileiros no Ensino Fundamental e Médio.

Acesso ao ensino universitário

Desde o início da década de 1990, tem-


Atenção
se formado cursos pré-vestibulares
populares em vários estados da
Lei Caó
Federação. Esses cursos são iniciativas
de grupos comunitários, profissionais A discriminação racial só passou a ser considerada crime em 1989,
por texto do então deputado pelo Partido Democrático Trabalhista
na área de Educação e entidades com
(PDT) Carlos Alberto Caó. A lei leva o seu nome – a Lei Caó.
o objetivo de “preparar estudantes Anteriormente, vigorava a Lei Afonso Arinos, de 1951, a primeira a
oriundos das classes populares e combater o racismo no Brasil, mas que considerava o preconceito de
cor e o racismo uma contravenção. Inexiste estatística oficial sobre o
grupos sociais marginalizados para
número de processos movidos nesse período.
o vestibular” (NASCIMENTO, 2005,
Partido Democrático Trabalhista (PDT) – surgiu em 17 de junho de
p. 139), tendo como consequência o
1979, em Lisboa, fruto do Encontro dos Trabalhistas no Brasil com os
ingresso no ensino superior. Também Trabalhistas no Exílio, liderados por Leonel Brizola (1922-2004). Seu
entendido como uma política de objetivo era reavivar o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado
por Getúlio Vargas (1883-1954) e presidido por João Goulart (1918-
ação afirmativa, tal como as cotas,
1976), e proscrito pelo Golpe de 1964.
os pré-vestibulares comunitários
tiveram entre seus pioneiros o projeto
Universidade para os Trabalhadores – do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (SINTUFRJ), com um corte pautado nas diferenças de classes sociais
(criado em 1986), a Associação Mangueira Vestibulares, para atender os estudantes do morro da
Mangueira (criada em 1992) e as mais conhecidas: o Instituto Cultural Steve Biko (fundado em
Salvador, Bahia, no ano de 1992), o Curso Pré-Vestibular para Negros e Carentes (fundado em São
João de Meriti, RJ, 1993) e que, posteriormente, virou o Movimento de Cursos Pré-Vestibulares para
Negros e Carentes (PVNC) e o Projeto Educação para Afro-descendentes (Educafro, fundado em

53
AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural

São Paulo, em 1997, por um grupo ligado à Igreja Católica que atuava no PVNC) (NASCIMENTO,
2005, pp. 140-144).

Legislação antirracista

Percebemos que o repúdio ao racismo e ao sexismo na sociedade brasileira tem se expressado,


desde o final da década de 1980, com mais vigor. Destacamos a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), a Constituição Brasileira (outorgada em 1988) e a Lei no 7.716, de 5 de
janeiro de 1989 (a Lei Caó, que qualifica o racismo como crime) e as demais leis que proíbem a
discriminação, garantindo os direitos civis de todos brasileiros como norteadoras de uma política
antirracista e antissexista.

O Brasil é signatário de inúmeras Declarações Internacionais, o que significa que se obriga


a cumprir as normas nelas estabelecidas. Destacamos a Declaração Universal dos Direitos
Humanos.

Segundo Hédio Silva Jr.,

Conforme definição consagrada pelos organismos internacionais, discriminação


é “qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou
destruir a igualdade de oportunidade e tratamento”. Com base nesta definição,
pode-se afirmar que existe discriminação sempre que uma pessoa seja impedida
de exercer um direito (ao trabalho, por exemplo), por motivos injustificados,
arbitrários, racistas, não podendo usufruir das mesmas oportunidades e do
mesmo tratamento de que gozam outras pessoas, em função da raça, sexo, idade
ou qualquer outro critério arbitrário.

Se contra o preconceito cabe ação persuasiva, contra a prática discriminatória


cabe, sim, a sanção estatal, a punição. Mas não apenas; para além de sanções
punitivas, que, aliás, reclamam leis mais hábeis e abrangentes, impõe-se a adoção
de sanções premiais para instituições que adotarem programas de promoção da
igualdade. (2000, p. 11)

A primeira lei considerada contra a discriminação racial foi a de no 1.390, de 1951, conhecida
como Lei Afonso Arinos. Contava com nove artigos e foi promulgada no Rio de Janeiro pelo então
presidente Getúlio Vargas. Nos artigos que selecionamos a seguir, veremos que a Lei Afonso
Arinos constituía a discriminação racial como contravenção penal, podendo o agente dessa
discriminação receber pena de prisão simples, ou simplesmente pagar uma multa:

Art. 1o Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa,
por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de
hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito
de raça ou de cor.

54
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5

Parágrafo único. Será considerado agente da contravenção o diretor, gerente ou


responsável pelo estabelecimento.

Art. 5o Recusar inscrição de aluno em estabelecimentos de ensino de qualquer


curso ou grau, por preconceito de raça ou de cor. Pena: prisão simples de três
meses a um ano ou multa de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) a Cr$ 5.000,00
(cinco mil cruzeiros).

Parágrafo único. Se se tratar de estabelecimento oficial de ensino, a pena será a


perda do cargo para o agente, desde que apurada em inquérito regular.

Art. 6o Obstar o acesso de alguém a qualquer cargo do funcionalismo público ou


ao serviço em qualquer ramo das forças armadas, por preconceito de raça ou de
cor. Pena: perda do cargo, depois de apurada a responsabilidade em inquérito
regular, para o funcionário dirigente de repartição de que dependa a inscrição
no concurso de habilitação dos candidatos.

Com essa lei, uma multa de apenas R$ 0,50 (valores atualizados por Carneiro, em 2000) reparava
os danos. Para muitos militantes do movimento negro, como, por exemplo, Sueli Carneiro e Abdias
do Nascimento, a Lei Afonso Arinos não representou uma modificação real e tampouco respondeu
às demandas da população negra. A lei surgia no contexto em que o mito da democracia racial
brasileira estava em seu auge. Foram precisos 37 anos (entre 1951 e 1988) para que o racismo se
constituísse como crime, inafiançável e imprescritível (sem prazo estabelecido para prescrição).

A Constituição Brasileira de 1988

Nossa oitava Constituição Brasileira de 1988 foi batizada de “Constituição Cidadã”, por seu
conjunto de princípios democráticos que ajudam a reger a vida social e política brasileira. Nela,
há uma preocupação em garantir a todos a mesma dignidade e a possibilidade de exercício da
cidadania. Para tanto, é preciso considerar que existem diferenças étnicas, culturais, regionais,
de gênero, etárias, religiosas e desigualdades sociais que devem ser consideradas, para que a
igualdade seja alcançada. Em destaque alguns artigos:

Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos


Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático
de direito e tem como fundamentos:

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

Art. 3o Os objetivos fundamentais da República são:

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação;

55
AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural

Art. 4o A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais


pelos seguintes princípios:

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

Art. 5o Todos são iguais perante e lei, sem distinção de qualquer natureza;

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades


fundamentais;

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito


à pena de reclusão.

A Constituição de 1988 consagra a luta e os esforços dos movimentos negros constituídos ao


longo do século XX.

Lei no 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei Caó)

O autor da lei que trata o racismo como crime, o deputado Carlos Alberto de Oliveira Caó (PDT-
RJ) – jornalista, ex-secretário do Trabalho do estado do Rio de Janeiro – integrava , à época, a
Assembleia Nacional Constituinte de 1988, quando legislava a respeito da tipificação do crime de
racismo. Ele obteve uma ampla votação: 520 votos favoráveis, dois contrários e uma abstenção.
Destacamos alguns trechos da lei (DATAFOLHA, 1995).

Para refletir

Radialista diz que assalto é coisa de preto


Às 12h do dia 9 de abril de 1991, Itamar Alves de Oliveira apresentava seu programa diário na rádio São Carlos FM. Após
narrar um crime de furto, o locutor lançou contra os criminosos: “Cana neles, principalmente no preto. Aliás, só podia ser
preto”.

Oliveira foi condenado, em 1995, a dois anos de reclusão por incitar a prática racista em meio radiofônico.

O locutor – mais conhecido em São Carlos (SP) como Oliveira Jr. – diz ter sido desfavorecido, pois membros do movimento
negro municipal teriam influenciado o julgamento. Na ocasião, o acusado não apresentou a cópia da fita em que estava
supostamente gravada a frase racista.

Oliveira, que continua na mesma rádio, não quis comentar. “Tanta coisa boa para falar e a gente vai falar de racismo”.

Paulo Duarte, advogado de Oliveira, diz que hoje não vê racismo contra o negro no Brasil e defende o locutor.

“A intenção de Itamar não foi racista. Quando ele disse “tem que prender esse negro mesmo”, ele poderia ter falado “tem que
prender esse cabeludo”, ou esse “viado”, diz.

Folha de São Paulo, 13 de outubro de 2001 – Caderno Folha Treinee:http://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/


menosiguais/xx1310200110.htm

56
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5

Art. 1o Serão punidos, na forma desta lei, os crimes de preconceitos de raça ou


de cor.

(...)

Art. 3o Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer


cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de
serviços públicos:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Art. 4o Negar ou obstar emprego em empresa privada:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Art. 5o Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a


servir, atender ou receber cliente ou comprador.

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 6 o Recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em


estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau:

Pena – reclusão de 3 (três) a 5 (cinco) anos.

Parágrafo único. Se o crime for praticado contra menor de 18 (dezoito) anos a


pena é agravada de 1/3 (um terço).

Art. 7o Impedir acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou


qualquer estabelecimento similar.

Pena – reclusão de 3(três) a 5 (cinco) anos.

Art. 8o Impedir acesso ou recusar atendimento em restaurante, bares, confeitarias,


ou locais semelhantes abertos ao público:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 9o Impedir acesso ou recusar o atendimento em estabelecimentos esportivos,


casas de diversões ou clubes sociais abertos ao público:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 10. Impedir acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros,


barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas
finalidades:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 11. Impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais


e elevadores ou escada de acesso aos mesmos.

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

57
AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural

Art. 12. Impedir o acesso ou o uso de transportes públicos, como aviões, navios,
barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte
concebido:

Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos.

Art. 13 Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das


Forças Armadas.

Pena – reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos.

Art. 14. Impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou


convivência familiar e social:

Pena – reclusão de 2(dois) a 4 (quatro) anos.

(...)

Art. 16. Constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública,


para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento
particular por prazo não superior a 3 (três) anos.

(...)

Art. 18. Os efeitos de que tratam os artigos 16 e 17 desta Lei não são automáticos,
devendo ser motivadamente declarados na sentença.

(...)

Art. 20. Praticar, induzir, ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por
publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor,
religião, etnia ou procedência nacional:

Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

§ 1o Poderá o juiz determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste,


ainda antes do inquérito policial, sob a pena de desobediência:

I – o reconhecimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do


material respectivo;

II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas.

§ 2o Constitui efeito de condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a


destruição do material apreendido.

A criminalização do racismo

A Lei Caó, em conjunto com a Constituição de 1988, formaram base legal para a tipificação e a
criminalização do racismo. Mesmo assim, ainda se pode encontrar alguns entraves nessa questão.
O primeiro é que poucas pessoas denunciam que foram vítimas de racismo. O segundo é que,

58
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5

mesmo com a existência da lei, não há uma disposição do Judiciário em julgar o racismo como
crime, e, sim, como delito. Para alguns juristas, isso acontece pela persistente ideia de que no
Brasil vivemos numa democracia racial.

Vejamos: em 1995, o livro O racismo cordial constatou que a lei conseguia punir poucos casos.
O titular da Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo assim explicava esse fato:

Quase tudo que aparece é injúria, ou nem isso, diz. Ele explica como são
interpretadas, perante a lei, as acusações de suposto crime de racismo. “Quando
uma pessoa chama a outra de ‘macaco’, isso é injúria. Se a ofensa for chamar alguém
de ‘ladrão’, sem provar, isso é calúnia. E no caso de um profissional classificar o
outro de ‘incompetente’, aí é difamação. Tudo isso aí é muito confundido com
racismo, principalmente quando há um branco e um negro envolvidos” (p. 25).

Por isso, desde 1997, a injúria (ofensa à dignidade ou ao decoro de alguém) que seja baseada em
cor, raça/etnia passou a ser qualificada e implicar pena maior. O deputado Paulo Paim (PT-RS)
equiparou a pena de injúria relacionada à raça ou cor à mesma punição da Lei Caó: três anos
de prisão e multa.

Mesmo assim, ainda há no Brasil poucos processos por crime de racismo. Em levantamento (dos
anos de 1995 a 1999) do Ministério das Relações Exteriores feito para a Conferência de Durban,
ocorrida na África do Sul em 2001, havia menos de 150 processos em todo o País. No Rio de
Janeiro e em São Paulo eram apenas 25 ações penais.

Outras leis que proíbem a discriminação e que garantem os


direitos civis de todos brasileiros
1. Código Penal – A Lei no 9.459, de 13 de maio de 1997: acrescenta o § 3o no art. 140 do
Código Penal, como crime de injúria real, no caso da injúria consistir na utilização de
elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, e a pena de três anos de
reclusão e multa. Trata-se da proteção da honra subjetiva da pessoa;

2. A Lei também coíbe a discriminação na mídia – Lei no 8.081, de 21 de setembro de 1990,


altera a Lei no 7.716, a Lei Caó, art. 20 – Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, a pena é de reclusão
de um a três anos e multa;

§ 2o Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios
de comunicação social ou publicação de qualquer natureza, a pena é de reclusão de
dois a cinco anos e multa.

3. Código de Defesa do Consumidor – Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990: dispõe, no


art. 37, que é proibida toda a publicidade enganosa ou abusiva. E no § 2o: “É abusiva,
dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza (...)”.

59
AULA 5 • Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural

4. No Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Na


proteção da criança e do adolescente, dispõe no seu:

Art. 5o Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência,


discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei
qualquer atentado, por ação ou omissão a seus direitos fundamentais.

5. Na Lei da Tortura: a Lei no 9.455, de 7 de abril de 1997 – prevê em seu art. 1o, inciso I,
letra c: “Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe


sofrimento físico ou mental:

c) “em razão de discriminação racial ou religiosa”.

Luta antirracista na escola: a propósito da diáspora e do


atlântico negro

Diáspora define o deslocamento, normalmente forçado ou incentivado, de grandes massas


populacionais originárias de uma zona determinada para várias áreas de acolhimento distintas.
O termo diáspora é usado com muita frequência para fazer referência à dispersão do povo judeu
no mundo antigo, a partir do exílio na Babilônia no século VI a.C. e, especialmente, depois da
destruição de Jerusalém no ano de 135 d.C. Em termos gerais, diáspora pode significar a dispersão
de qualquer povo ou etnia pelo mundo. Com o objetivo de explicar a dispersão ocorrida com os
descendentes de africanos, o termo foi tomado de empréstimo da experiência da comunidade
judia. Assim, o termo passou a ser utilizado por religiosos e intelectuais ligados às tradições
africanas para se referir à dispersão.

Os homens e mulheres que foram trazidos como escravos para o Brasil partiram de diferentes pontos
da África. Na viagem, trouxeram as culturas de seus grupos étnicos. No Brasil, desembarcaram em
vários portos, como o de Salvador, na Bahia, e no porto do Rio de Janeiro. Lá, eram vendidos para
trabalhar como escravos em diferentes lugares do nosso território. A diáspora africana deu início
a um processo de criação, invenção e recriação das tradições africanas, visando à preservação
dos laços de identidade, cooperação e solidariedade. Por meio dessa rede de interação, esses
povos preservaram marcas visíveis das culturas africanas.

Gilroy (2000) considera que as culturas e as identidades negras são indissociáveis da experiência
da escravidão moderna (nas Américas) e de sua herança racializada espalhada pelo Atlântico. É na
memória da escravidão e na experiência do racismo e do terror racial que se funda politicamente
a identidade cultural dos negros no Ocidente. Gilroy aborda radicalmente a identidade negra
como construção política e histórica marcada pelas trocas culturais por meio do Atlântico.

60
Educação, Diversidade e Pluralidade Cultural • AULA 5

Segundo o autor, em se tratando de identidade negra, a questão das origens interessa menos
que as experiências de desenraizamento, deslocamento e criação cultural. Essas experiências
se produziriam desde o tráfico negreiro, trauma original, até as mais diversas experiências de
encantamento e estranhamento em viagens e exílios entre América, Europa e África.

Pensar as identidades e culturas negras entendidas sob a perspectiva da diáspora permitiu a


Gilroy não apenas entender a historicidade e a multiplicidade das configurações culturais negras,
mas, também, no limite, tentar superar a noção de raça como estruturadora dessas culturas e
identidades. As identidades negras da diáspora, culturalmente híbridas e dinâmicas, construíram-
se não apenas a partir da memória do trauma original da escravidão e da vivência posterior da
violência racial e do racismo. Também a partir de uma experiência radical de desenraizamento
e de uma constante metamorfose cultural, estrutural à experiência da modernidade. Assim,
Gilroy introduziu a noção de Atlântico Negro, visando englobar todas as diversas configurações
culturais existentes no Novo Mundo.

Em 20 de novembro de 2003, foi instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial


(PNPIR), por meio do Decreto no 4.886. Ela apresenta diretrizes para todas as áreas do governo e
da sociedade brasileira, voltadas para seis ações programáticas: implementação de um modelo
de gestão da política de promoção da igualdade racial; apoio às comunidades remanescentes
de quilombos; ações afirmativas; desenvolvimento e inclusão social; relações internacionais e
produção de conhecimento.

Sintetizando

Vimos até agora:

»» Como analisar as relações étnico-raciais no Brasil e as Desigualdades étnico-raciais e refletir sobre os preconceitos, o
racismo e a escola para pensarmos em uma educação anti: antirracista, antissexista e anti-homofóbica.

61
AULA
O LEGADO CULTURAL AFRICANO –
LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA –
LEI N o 11.645/2008 6
Apresentação

Nesta aula veremos a relevância das Leis n os 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluem,
respectivamente, história e cultura africanas e afro-brasileiras, e indígenas no ensino básico e
seus desdobramentos político-sociais.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

»» Refletir sobre o legado cultural africano – Lei no 10.639/2003 e indígena – Lei


no 11.645/2008.

»» Analisar o Plano Nacional de implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para


Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino da história e cultura afro-brasileiras
e africanas e indígenas.

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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6

A obrigatoriedade da temática história e cultura


afro-brasileira nas escolas

A História e Cultura Afro-Brasileiras

Nos anos de 1980, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco) produziu oito volumes para a redação de uma História Geral da África que,
segundo os pesquisadores da área, continuam atuais. Tais volumes chamam a atenção
para a importância da África para a história da humanidade. Recentemente traduzidos
e disponibilizados para download, esses livros são facilmente encontrados no site da
Fundação Palmares.

Os itens a seguir destacados indicam a complexidade e riqueza da história do continente


africano, dos povos africanos e seus descendentes fora da África (CEERT, 2004, pp. 20-21).

Saiba mais

Alguns exemplos do legado africano


Pecuária – Foram os africanos que introduziram no Brasil as técnicas mais desenvolvidas de pastoreio. Foi a partir da
pecuária que alguns povos africanos interagiram com os demais, se expandiram e formularam suas estruturas sociais.

Mineração – Até o século XV, as moedas europeias e islâmicas eram cunhadas com ouro da África.

Arquitetura – Para construir superfícies lisas, polidas e impermeáveis, alguns povos africanos misturavam azeite
de dendê ou manteiga de carité ao barro, construindo edifícios e palácios encavados em rochas. Os africanos são os
senhores do sopapo, técnica também conhecida com pau a pique, que consiste em atirar o barro comprimindo-o com
socos numa estrutura de madeira, com um teto de palha em duas abas. Esse tipo de construção pode ser visto até hoje
de norte a sul do Brasil.

Música – A música brasileira recebeu uma significativa contribuição das culturas africanas. Os africanos foram
responsáveis pela introdução nas Américas de instrumentos musicais, como a cuíca, o birimbau, o ganzá e o reco-
reco.

Estratégias Militares – Os povos africanos possuíam organizações militares desenvolvidas, com estratégias e armas
eficientes. No Brasil, essas técnicas foram recriadas na organização dos Quilombos.

Religiosidade – A religião dos Orixás é uma das contribuições religiosas africanas.

Língua – Muitas línguas africanas foram faladas no Brasil e deixaram como herança vocábulos que foram
incorporados ao português do Brasil
(Secad/MEC, Calendário 2006 – Meu Brasil Africano, Minha África Brasileira).

Como você sabe, as culturas africanas e as culturas afro-brasileiras são culturas vivas,
contemporâneas. Desse modo, o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades
(CEERT, 2004, pp. 19-23), a partir da produção de intelectuais que realizam estudos na área da
educação das relações étnico-raciais e o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana,

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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008

apresenta conteúdos que poderão ser explorados na temática em questão. A seguir, destacamos
alguns pontos para estudos sugeridos por esse documento:

»» a História dos Quilombos e dos remanescentes de quilombos, das associações negras


(recreativas, culturais, educativas, religiosas artísticas, entre outras), as organizações do
movimento negro e suas contribuições para a história da localidade onde está inserido
o grupo e da nação brasileira;

»» as datas do calendário que celebram a cultura afro-brasileira e africana como o 21 de


março – Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial;

»» festas e expressões artísticas como as congadas, maracatus, tambores de criola, rodas


de samba, entre outros;

»» inclusão da temática em todo o conteúdo curricular, focalizando as dimensões da


economia, da saúde, do acesso à informação, à educação;

»» destaque para a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento.

A temática racial poderá transversalizar todas as disciplinas. Por exemplo, em matemática


pode-se abordar, no âmbito de certas informações representadas – dados estatísticos, tabelas e
gráficos –, os conteúdos acerca dos grupos étnicos e as relações raciais no Brasil. Em educação
artística é possível estimular o reconhecimento da presença das corporeidades africana e
indígena nas várias situações e momentos do cotidiano (luta, festa ou luto). E assim por diante
será possível, sem esforço, salientar nas várias disciplinas do currículo escolar do Ensino Básico
a presença da história e da cultura dos afro-brasileiros e africanos.

“A Secretaria de Educação continuada, Alfabetização e diversidade (Secad) do Ministério de


Educação organizou o calendário – História e Cultura Afro-brasileira e Africana – datas para
conhecer e pesquisar. Nele encontramos datas que celebram o nascimento ou a morte de líderes,
os direitos humanos, a cultura negra, os momentos dos movimentos sociais e negros brasileiros
e internacional que podem inspirar o professor do ensino fundamental e médio na elaboração
de programas e atividades que contemplem a questão racial.”

A Lei no 10.639/2003 e a Lei no 11.645/2008

A Lei no 10.639/2003 e, posteriormente, a Lei no 11.645/2008, que dá a mesma orientação


quanto à temática indígena, não são apenas instrumentos de orientação para o combate à
discriminação. São também leis afirmativas, no sentido de que reconhecem a escola como
lugar da formação de cidadãos e afirmam a relevância de a escola promover a necessária

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O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008 • AULA 6

valorização das matrizes culturais que fizeram do Brasil o país rico, múltiplo e plural que
somos.

Em 2003, a Lei n o 10.639 alterou a LDB (lei n o 9.394/1996) para incluir no currículo oficial
da rede de ensino a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira.
No ano de 2008, a Lei n o 11.645 alterou novamente a LBD para incluir no currículo a
obrigatoriedade do estudo da história e cultura dos povos indígenas. Assim, a legislação
passou a exigir a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade do
estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Seguem as partes principais das
Leis n os 10.639 e 11.645:

Lei no 10.639, De 9 de janeiro de 2003

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos


seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e


particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.a

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o


estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes
à História do Brasil.

§ 2 o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão


ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional
da Consciência Negra’.

Art. 2o Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

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Outras questões correlatas:

A definição de Remanescentes de Quilombos pelo movimento

Habitantes de “terras de pretos”, “territórios negros” ou “comunidades negras rurais”, os grupos


que hoje são considerados remanescentes de quilombos, se constituíram em diversos processos
que incluem as fugas com ocupação das terras livres e geralmente isoladas, heranças, doações,
recebimento de terras como pagamento de serviços prestados ao Estado, a simples permanência
nas terras que ocupavam e cultivavam no interior das grandes propriedades, bem como a compra
de terras, tanto durante a vigência do sistema escravocrata quanto após a sua extinção (SCHMITT;
TURATTI; CARVALHO, 2002, p. 3).

Ser remanescente de quilombo é ter uma identidade construída a partir do compartilhamento


territorial e étnico, com grande ênfase na atividade camponesa. Essa identidade quilombola é
forjada a partir da necessidade de se lutar pela sua terra e construída sempre em relação aos grupos
com os quais os remanescentes se relacionam e se confrontam, sendo constituída não apenas
como uma identidade territorial, mas, também, uma identidade étnica. Esta última é dinâmica
e não se restringe a elementos materiais ou traços biológicos distintivos e é necessariamente
uma autodefinição, isto é, é elaborada pelo próprio grupo.

A autodefinição – e a própria construção de uma identidade étnica e territorial – se dá não apenas


com uma ligação com o passado, mas, também, “reside na manutenção de práticas de resistência
e reprodução do seu modo de vida num determinado local onde prevalece a coletivização dos
bens materiais e imateriais” (SEPPIR, 2004).

É importante estabelecer que, em se tratando de remanescentes de quilombos, temos três


elementos que perpassam a sua autodefinição e, como consequência, a construção de uma
identidade quilombola: a etnicidade, a questão fundiária e o território.

Podemos dizer que, no caso das comunidades remanescentes de quilombos, a identidade étnica
de um grupo é a base para a forma de sua organização – ao se denominarem / definirem como
quilombolas. Esta é resultado de uma “confluência de fatores escolhidos por eles mesmos: de
uma ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos e
religiosos” (SEPPIR, 2004, p. 10). Não é muito diferente da maneira como os diversos grupos
étnicos indígenas existentes no Brasil constroem sua identidade. No caso dos remanescentes
de quilombos, temos alguns exemplos nos quais podemos pensar: o primeiro é a presença das
religiões afro-brasileiras ou do catolicismo popular (mesmo que já haja uma mudança no perfil
religioso dos moradores de quilombos). O segundo é a presença de linguagem ou língua própria:
a cupópia falada em Cafundó, “terra de preto” localizada no interior de São Paulo é um bom
caso para pensarmos. O terceiro exemplo é o de uma ancestralidade comum com os primeiros
habitantes, como no caso da doação das terras para uma mesma família e a posterior fixação

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dos seus descendentes (como se deu no quilombo São José, em Valença ou no Campinho da
Independência, em Parati).

A questão fundiária se constitui em uma aproximação da dimensão histórica (dos quilombos no


período colonial) com as organizações mais recentes: as práticas econômicas desenvolvidas, seus
modelos produtivos agrícolas, dando conta de uma “necessária microeconomia local com vistas
à consolidação de um uso comum da terra” (SEPPIR, 2004, p. 10). A questão fundiária no Brasil
também é prioridade de outros movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). Em um país constituído por grandes extensões de terra nas mãos de poucos
proprietários, a distribuição desigual ainda é uma realidade. Nesse sentido, o que diferenciaria
os remanescentes de quilombos dos militantes do MST, por exemplo? Para os remanescentes
de quilombos, a questão fundiária é fundamental para a continuidade do grupo e sua fixação,
mas não é condição exclusiva para sua existência. Luta-se pela terra, mas esta não é qualquer
terra. “É a terra na qual mantiveram alguma autonomia cultural, social e consequentemente
sua autoestima” (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002, p. 5). Aqui encontramos o terceiro
elemento: o território.

O território não é apenas um espaço geográfico, mas, sim, tudo que efetivamente diz respeito ao
grupo – objetos, valores, relacionamentos. Está confuso? O território é também o espaço vivido,
local em que se dá a construção de culturas e práticas sociais bem definidas. Para utilizar uma
definição de Muniz Sodré (1988), mais forte que a territorialidade física, o espaço fundiário
adquire outra conotação nesse sentido, pois ele também tem energia (axé), capaz de unir e
irmanar seus integrantes.

A partir de sua constituição enquanto grupo, os remanescentes de quilombos garantem


efetivamente o direito à manutenção de sua cultura por meio dos arts. 215 e 216 da Constituição.
O art. 215 determina que o Estado proteja as manifestações culturais afro-brasileiras, enquanto o
art. 216 considera patrimônio a ser promovido e protegido pelo Poder Público os bens materiais e
imateriais. Esses dois artigos em conjunto consideram que as terras quilombolas são “Territórios
Culturais Afro-Brasileiros” (art. 6o, Portaria no 6, de 1o de março de 2004 da Fundação Cultural
Palmares) e, como tal, devem ser resguardados e defendidos pela sociedade brasileira.

Quilombos e educação

Os problemas enfrentados pelos remanescentes de quilombos são muitos: a burocracia e a


dificuldade em relação à titulação de suas terras, coerção por parte dos latifundiários para venda
das terras, esgotamento do solo, luta contra a pobreza, a fome e a discriminação. Emergem ainda
outras questões que dizem respeito principalmente à manutenção social e cultural dos grupos: a
pouca fixação à terra de seus descendentes, a explícita falta de oportunidade para os mais jovens,
a ausência de escolas próximas ou que, quando existem, não consideram as especificidades da
população.

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Além das inúmeras pesquisas etnográficas ou nas áreas do direito à terra, a questão da educação
quilombola tem aparecido bastante nos campos da pesquisa. O fato é que ainda existem poucas
escolas no interior dos territórios quilombolas, fazendo com que jovens e adultos migrem para
as cidades para estudar e trabalhar.

Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira


(Inep, 2004), o País tem 49.722 estudantes matriculados em 364 escolas localizadas em áreas
remanescentes de quilombos.

Cabe, nesse sentido, afirmar que essa população quilombola deve ter acesso a uma educação
plural, que dê conta de suas especificidades de raça, gênero, faixa etária e classe social, e que
ainda a insira em uma discussão maior sobre a educação brasileira nos diversos níveis e sobre
a relação da escola com os afro-descendentes. É necessário não isolar esses indivíduos, mas
estimulá-los a portar-se, manter-se e situar-se no mundo, na busca do seu autoconhecimento
(NUNES, 2006).

Em termos de políticas públicas, o Decreto no 4.887/2003, que garante às comunidades quilombolas


a posse de terra e o acesso a serviços, tenta assegurar também o ingresso a uma educação de
qualidade. Nesse sentido, o Ministério da Educação, por meio da antiga Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), pensava as seguintes ações específicas:

»» formação específica de professores para áreas de remanescentes de quilombos;

»» fóruns estaduais para articulação e acompanhamento das formações de professores


in loco;

»» ampliação e melhoria da rede escolar;

»» produção e aquisição de material didático para a educação quilombola.

Diversidade religiosa e intolerância

Consta no Artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos que:

Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;


este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

A desproporção entre cristãos e seguidores de religiões consideradas minoritárias é tão grande


que uma das propostas do Programa Nacional de Direitos Humanos, implantado em 1996, é
“prevenir e combater a intolerância religiosa, inclusive no que diz respeito a religiões minoritárias
e a cultos afro-brasileiros”.

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Se antes o Código Penal de 1890 criminalizava as religiões afro-brasileiras, hoje é crime


zombar, ofender e perturbar pessoas, cultos e cerimônias, imagens e objetos religiosos.
No entanto, a intolerância existe e ainda hoje as religiões afro-brasileiras são vítimas da
incompreensão.

No art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, determina-se que, no ensino


religioso nas escolas públicas, deve-se respeitar a diversidade religiosa existente, sem
praticar o proselitismo religioso, isto é, é obrigatório respeitar a diversidade religiosa
do aluno, e não se deve tentar convertê-lo. Esse ensino religioso deve ser pautado na
Constituição (art. 5 o, inciso VI), que claramente define o País e o caracteriza como um
Estado laico, sem relação com denominações religiosas; portanto, o ensino da religião
não deveria ser confessional.

Na escola, ao explicar o ensino religioso, deve ser feito de forma plural, respeitando a fé dos
alunos, seja ela qual for, e também seus ritos, práticas e visões de mundo, dentro de uma
perspectiva multicultural que retrate a diversidade do País.

No final da IX Conferência Nacional de Direitos Humanos (BRASÍLIA, 2004), representantes dos


diversos setores religiosos do Brasil assinaram o seguinte documento:

Declaramos a necessidade de se buscar, por meio do diálogo inter-religioso, a


valorização do ser enquanto sujeito de sua própria história, independente do
credo religioso. Somos unânimes em repudiar qualquer ato de perseguição e
intolerância religiosa.

A questão indígena

Lei no 11.645, de 10 março de 2008

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de


janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”.

Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar


com a seguinte redação:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.

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§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos


aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política,
pertinentes à história do Brasil.

§ 2 o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos


indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e
histórias brasileiras.

Atenção

Populações indígenas
Hoje, no Brasil, vivem cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25%
da população brasileira. Cabe esclarecer que esse dado populacional considera tão somente aqueles indígenas que vivem
em aldeias, havendo estimativas de que, além desses, há entre 100 e 190 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em
áreas urbanas. Há, também, 63 referências de índios ainda não contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o
reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista. (www.funai.gov.br)

A população indígena brasileira tem crescido nos últimos anos, embora povos específicos
tenham diminuído demograficamente e alguns estejam até ameaçados de extinção. Hoje são
várias etnias, parte delas residindo também em outros países. A situação de pobreza da maior
parte das comunidades indígenas nacionais os aproxima da questão de desvantagem social
a que são submetidos os afro-brasileiros. No entanto, só podemos identificar étnicas entre os
indígenas. Devido à intensa miscigenação das étnicas africanas provocada pelo tráfico negreiro,
hoje, identificamos uma variedade de populações afro-brasileiras. Devido às implicações
históricas e à complexidade do debate em torno dos termos raça e etnia, há pesquisadores que
fazem opção pelo termo etnia para se referir aos afro-brasileiros. No que diz respeito à luta
pela defesa dos direitos de cidadão, os grupos indígenas aproximam-se dos afro-brasileiros
na luta pela inclusão social.

A atualidade da questão indígena pode ser constatada quando verificamos os indicadores


das desigualdades no País. Com baixa escolaridade e precária inserção nos diferentes campos
da vida social, os indígenas, hoje, enfrentam uma série de problemas sociais. O indígena
contemporâneo é um sujeito que busca de exercer o seu protagonismo e não ser visto apenas
como aquele exterior à contemporaneidade, distante da vida atual.

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Sugestão de estudo

Indicamos três curtas que podem ser encontrados no youtube:

Eu não quero voltar sozinho (De Daniel Ribeiro, Brasil, 2010, 17min) Cores & Botas ( Juliana Vicente, Brasil, 2010, 16 min) e

Vista a minha pele (Joel Zito de Araújo, Brasil, 2003, 24min). Divirtam-se!!!!!

Podemos refletir acerca da questão indígena na atualidade com um fragmento do texto a seguir:

Os não indígenas brasileiros se caracterizam pela variabilidade, mudança e complexidade. Não são
grupos congelados num passado localizado antes da chegada do colonizador distante do presente
avançado e moderno. A Constituição brasileira reconhece que os indígenas foram submetidos a
um processo violento de colonização e, hoje, são portadores de sua própria voz com demandas
específicas de inclusão social.

O reconhecimento pelo Estado de sua condição dos descendentes das populações autóctones visa
superar as desvantagens construídas ao longo de anos: a expropriação territorial, o extermínio de
etnias e a perda de parte de seu patrimônio cultural. Para constituir analiticamente as culturas
indígenas, é preciso partir da produção cultural dos indígenas contemporâneos e, sem dúvida,
garantir os direitos à cidadania para todos os brasileiros.

Na Constituição de 1988, há vários artigos destinados à defesa dos direitos dos índios, entre eles,
destacamos o capítulo VIII – Dos Índios (arts. 231 e 232). Observe outros artigos como arts. 129
V, 210, 215, 242, entre outros.

Art. 210, § 2o – O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa,


assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas
maternas e processos próprios de aprendizagem.

Art. 231, caput – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre a terra que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério
Público em todos os atos do processo.

Art. 215, § 1o – O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,


indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório brasileiro.

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AULA 6 • O LEGADO CULTURAL AFRICANO – LEI N o 10.639/2003 E INDÍGENA – LEI N o 11.645/2008

Art. 242, § 1o – O ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições


das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.

Sintetizando

Vimos a relevância das Leis nos 10.639/2003 e 11.645/2008, que incluem, respectivamente, história e cultura africana e
afro-brasileira, e indígena no ensino básico e seus desdobramentos político-sociais.

72
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