No famoso poema José, de Carlos Drummond de Andrade há uma passagem
que diz: “quer ir para Minas/Minas não há mais?” Com isso, o poeta expressa a irreversibilidade do deslocamento do homem do campo para a cidade. Uma vez emigrado, urbanizado, aculturado, o camponês jamais será o mesmo, jamais adaptar-se-á ao campo outra vez. Portanto, o campo, Minas, suas origens, não existem mais: o cordão umbilical foi cortado. Resta apenas um território nostalgicamente mítico na imaginação do imigrante que dele só pode mesmo fazer poesia. Se for assim num processo migratório campo/ cidade dentro do mesmo país, que dizer do acontecimento na diáspora negra? Extorquido da Mãe África e implantado em novo universo, o negro passa por um processo de ruptura bem mais violento, mas que, ao axioma paralelo “África não há mais”, opõe uma intensificação da nostalgia, reforçando o território da imaginação; amarrando os laços místicos e míticos. O negro transporta-se então à sua raiz: retroage em seus sentimentos e aspirações, cultua seus mitos e deuses. Tudo isso é um processo salutar de retorno às raízes, mas só o será devidamente se o negro brasileiro se der conta da integridade do axioma drummondiano. A África de outrora é hoje um dos componentes da complexa raça brasileira, forjada por centenas de anos e miscigenações de A Cor da Tradição toda espécie. Essa África de outrora existe apenas na mente do brasileiro. África não há mais. Não há mais retorno. Observa-se que o africano que de lá veio, contrariando de cara os mitos de inferioridade dos negros, terminou construindo aqui uma super-raça– não por critérios nazistas de uma apuração genética premeditada, mas por um rigoroso processo de seleção natural. Somente os mais fortes e os mais inteligentes sobreviveriam a uma travessia do Oceano Atlântico em condições extremamente precárias e à repressão. Só me dei conta das agruras de um percurso oceânico quando sofri enjoos que me prostraram de cama toda a viagem a bordo de um transatlântico francês, o Lavoisier, imenso com seus estabilizadores e todo conforto de um hotel. Eu só pensava, pensando que ia morrer nos escravos, nos porões das caravelas. Os holandeses às vezes traziam 500, 600 escravos num yacht ou bergantim. Imaginem o desconforto, a má alimentação, a falta de higiene e o que é muito importante, as condições distintas do habitat desses negros, da savana, da mata, do aberto. Um brutal e traumático processo do qual só sairia com vida e saúde os mais aptos. Estes dariam surgência aqui a uma raça de fortes, a uma super-raça, por sua complexidade, capacidade de adaptação e de sobrevivência em condições hostis. Aqui, além da resistência física, psicológica e orgânica, os negros tiveram de usar toda sua astúcia para sobreviver face à inferioridade militar que tinham em relação aos portugueses, a única, aliás, porque no mais se mostraram muito mais em casa – Nordeste brasileiro e Golfo de Guiné são terras irmãs, um dia estiveram unidas geograficamente. Os escravos africanos vieram reunir os dois continentes. Os europeus, no trópico, tropeçam, tristes europeus, nem tanto os portugueses, quase tropicais. Resulta que esse impulso cultural de adaptação dos negros foi tão forte que os esforços de branqueálos terminaram por empretecer os brancos. Aqui na Bahia, mais do que em qualquer outro lugar do Brasil, a presença cultural negra na religião, na culinária, no vestuário, na música, na dança, na forma de ver e transar o mundo foi e é tão forte que os africano assumem o papel de colonizadores. Na África, eles acomodaram-se em serem colonizados, admiram os europeus, querem europeizar-se. Aqui, os europeus se africanizaram. Frequentei a Associação do Cabo Verde, Lisboa, onde tem dança toda quinta. E lá estávamos neguinhos africanos todos durinhos, dançando. E lá estava um conjunto negro todo durinho tocando. Suingue zero. Aqui é o contrário. Branco tem suingue. Branco mexe os quadris. Há exceções, é claro, mas a verdade é que na África o negro foi colonizado; na Bahia ele é colonizador. No Rio também. Afinal o único produto cultural que o Rio gerou foram os negríssimos desfiles de escola de samba. Sim, perdoem- me, e a bossa nova, sofisticada música negra de Ipanema e João Gilberto, mulato baiano, filho de Caymmi, outro. Essa poderosa raça mestiça brasileira, portanto, nada tem que pedir à África. Os africanos de hoje é que têm a aprender conosco uma lição de resistência, de bravura, de sagacidade, de complexificação. O super-homem, diz Álvaro de Campos, não será mais forte, e sim o mais complexo. Esses são os negros e mestiços brasileiros, por um processo de seleção centenário. A nobre raça brasileira. Boa parte dos africanos trazidos como escravos eram presos políticos, por lutas hegemônicas na África, e já pessoas de alto nível. Enquanto da Europa vinham degredados, da África vinham príncipes e princesas, como Otampê Ojaró, filha gêmea do Alaketu, do rei de Ketu, que descende em linha reta de Oxossi. Essa é ancestral de D. Olga de Alaketu, Olga Régis (em latim, do rei), fundadora do seu terreiro. Esta elite aqui se uniu aos mais aptos na sobrevivência, que vêm arrastando quase 500 anos de privação e marcha sempre à frente. A compreensão dessa complexidade e que o Brasil está aí para o conquistarmos fará com que amemos melhor nossa raiz africana. Fico feliz ao ver que o Olodum já saiu dessa onda de todo ano homenagear um país africano e compreendeu sua verdadeira vocação universal. Também vai dar Índia no Olodum. Nada mais justo. Não pensaram que nós éramos a Índia e nos chamaram de índios? Sejamos todos índios no carnaval. Índios brasileiros, cafusos, caboclos, matando o dragão da maldade, revivendo Glauber.