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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Delfos

Querida filha,

Cá estou eu de novo ... Perdoa-me Margarida ... tu és o meu pretexto para eu


escrever. Sempre registo algo. Como sou preguiçoso, só mesmo inventando um muro ...
não das lamentações, claro!, mas de ... reflexões. E assim obrigo-me a explicar-me o
melhor possível ao imaginar que me dirijo especificamente a ti. Bem sei que, pelo
menos para mim, não é tarefa fácil. Lembrei-me deste assunto, que aliás se encaixa
perfeitamente na sequência dos temas dos mails anteriores que te enviei, por causa de
um sonho que tive numa destas noites e da constatação de que tu tiras partido
intensivamente das possibilidades que a net de banda larga oferece. E também por seres
fã de algumas séries de culto da tv.
Quando nos vimos da última vez via net percebi, com o evoluir do meu estado, que
preciso de me ligar a uma dessas redes sociais de mensagens curtas por telemóvel, por
computador ..., o que seja. É uma forma prática de comunicar com os outros, tanto à
distância, como, particularmente para mim, presencialmente ... Eis um bom exemplo do
que é o uso de uma tecnologia para um fim que não terá sido de todo pensado pelos seus
criadores. Pelo menos como fim primordial. Está sempre a acontecer e, apesar disso, os
teóricos da comunicação e mass media modernos continuam a insistir em fazer
previsões sobre as repercussões dos mesmos no futuro ... Ainda não perceberam que as
tecnologias que os humanos inventam têm sempre efeitos na sua maior parte
imprevistos, quer os indesejáveis, como também os desejáveis ... Refiro-me
particularmente a algumas mentes prestigiadas que acabam por afinal se comportarem
como pedantes arautos da desgraça. Na minha opinião, fazem-no à semelhança de
alguns intelectuais de referência em algumas sociedades à época em que a escrita
surgiu, como contam alguns historiadores, que se manifestaram contra essa nova
tecnologia porque, entre outros argumentos, os jovens deixariam de memorizar a
informação de utilidade técnica, as histórias, etc. Naturalmente estavas-lhes vedado a
visão do que a escrita viria a permitir como, por exemplo, a enorme especialização de
diferentes pessoas em diferentes áreas do conhecimento e o seu consequente
aprofundamento, o que permitiu as posteriores revoluções científicas.

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Uma da falácias que resulta deste tipo de atitude consiste em desvalorizar os mass
media modernos atribuindo-lhes a construção de mundos irreais alienadores. O mesmo
é dito em relação às redes de comunicação não presencial com suporte na net de banda
larga. Cometem aqui o clássico erro de olharem somente para o que essas novas
tecnologias, inevitavelmente, destróem ... fechando os olhos ao que elas
incontornavelmente constróem, e esquecendo que o que será construído – e destruído
também! - permanece em grande parte inimaginado (existe sempre, para essas pessoas,
uma opção que é a da associação a uma dessas seitas religiosas e para-religiosas que
rejeitam liminarmente todas as novas tecnologias ...). Enfim, negam a complexidade,
esquecem-se que construímos, nas e com as tecnologias, mundos ... Que não acedemos
com elas ao mundo. Não estamos perante a invenção de realidades que escondem a
realidade, mas perante aquilo que nós humanos sempre fizemos, e não podemos deixar
de fazer, que consiste em criar mundos de significados com e nos quais vivemos. Tão só
e isto é de sempre, este processo em contínuo. Ou seja, a nossa era não é caracterizada
pela “derrota do real”, ou a “derrota dos factos” nos mass media porque não há uma
realidade para derrotar, mas apenas realidades – eventualmente em conflito -, e que
umas se podem tornar mais generalizadas do que outras, porque também os “factos” não
são eles próprios adquiridos, não são verdades que se impõem a-contextualmente.
Derivando para aspectos específicos, passo a referir-me a algumas ideias feitas que por
aí circulam. Com algumas delas já te terás deparado, Margarida.
Começando pelo tema das compras ... (esta é a única verdadeira realidade perene –
as mulheres e as compras ... ☺) Como consumidores não nos caracterizamos
diferentemente dos nossos antepassados pelo facto de agora adquirirmos objectos pela
sua simbologia social, o que supostamente não aconteceria antes da era dos mass media
publicitários, como se fosse possível em qualquer era destituir qualquer objecto do seu
significado social. Por outras palavras, como se cada objecto na sua essência fosse
autónomo da sua simbologia, como se esta fosse um atributo postiço, circunstancial,
descartável, e o objecto em si fosse perene, a-contextual, adquirido; Por outras palavras
ainda, como se os motivos de compra pudessem ser autónomos dessa simbologia, mais
ou menos explícita ou assumida, como se o valor de uso de um objecto fosse autónomo
do seu valor simbólico (Uns ténis de determinada marca, por exemplo, - ou umas calças
de ganga - consoante o seu valor simbólico, que por sua vez, sublinho, é relativo ao
contexto específico, “pode” ser usado apropriadamente numas ocasiões, e noutras não.
Ou, ainda, umas calças de ganga com um rasgão podem ser vistas no seio de um grupo

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de adolescentes de Lisboa como um sinal evidente de bom gosto, e em Várzea de
Meruge, por exemplo pela Dona Alexandrina, podem ser encaradas como um sinal
dramático de pobreza ou de desleixo indesculpável).
Continuando a derivação ... Que agora nos caracterizaríamos especificamente por
nos diferenciarmos socialmente pela simbologia dos objectos que possuímos, passando
para segundo plano as necessidades racionais objectivas que eles visam satisfazer, como
se “ter” e “ser” fossem dissociáveis na construção dos mundos; Que agora possuiríamos
a particularidade de nos sentirmos atraídos pelas cópias, e antes pela autenticidade,
como se qualquer objecto não fosse sempre ele próprio uma cópia – muitas cópias!,
porque nada deriva do nada –, e como se as cópias preenchessem necessidades
secundárias, e os originais, esses sim, necessidades essenciais.
Que a nossa era se caracterizaria particularmente pela substituição da realidade, do
dia-a-dia, pelo entretenimento e fantasia mais apetecíveis, como se os humanos de
antanho fossem emocionalmente neutros, não fossem também atraídos pelo apetecível,
pela fantasia, e pelos escapes em relação às fontes dos seus medos, dos seus sentimentos
de impotência, das suas ansiedades, ...; Que agora trabalharíamos exclusivamente para
adquirir estatuto social, e que antes o faríamos para satisfazer necessidades “reais”; Que
agora tenderíamos a manter através dos media de banda larga relações “falsas”, e que
antes comunicávamos face-a-face com autenticidade, ou que antes os media espelhavam
a realidade, e que agora a construiriam como que inventando ilusões, enganos.
Que agora já não reflectiríamos sobre o que vemos, ouvimos e lemos nos media, que
seriamos simplesmente manipulados, e que antes aqueles media seriam imparciais
quanto ao modo como transmitiam a realidade, concedendo liberdade às audiências para
retirarem as suas conclusões; Que antes a comunicação pelos media era desinteressada,
autónoma dos poderes, e que hoje estaria refém das forças sociais dominantes, ou que a
comunicação face-a-face escaparia a esta lógica, como se não fosse ela, também,
mediada por códigos, sistemas simbólicos e relações de poder.
Que os mass media veiculariam apenas as culturas “dominantes”, e não o fariam
também em relação às culturas “minoritárias”, isto como se as próprias audiências,
desadequadamente entendidas como passivas e monolíticas, não participassem elas
próprias na construção do que é maioritário e minoritário; Que supostamente no passado
as identidades não eram construídas pela apropriação de imagens, códigos, símbolos,
etc., que hoje, e só hoje, determinariam como se desenvolve toda a vida quotidiana –
consumo, política, cultura, ...; E que a comunicação nos media, ao contrário da

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comunicação não mediada electronicamente, seria autoreferencial, quer dizer, se
alimentaria dela própria, exclusivamente dos seus códigos e símbolos (basta atentar, a
título de exemplo que contraria esta acepção, na comunicação entre quaisquer
profissionais altamente especializados, seja qual for o media interveniente).
Que a sobreexposição à informação dos mass media e multimédia geraria
incapacidade de decisão por parte da audiência, como se o simples acto preceptivo não
fosse já decisão/acção, e como se a decisão “reflectida” fosse autónoma dos contextos
sentido, fosse inderteminada a priori, como que partindo do nada – da tabula rasa; Que
esta sobreexposição geraria efeitos “hipnóticos”, e que a contemplação, por exemplo, de
uma paisagem natural ou de um espectáculo de circo já não; Que a sobreprodução
cultural “típica” dos novos media , e a “aceleração da realidade” que esses media
induziriam, excederia a capacidade de processamento e de interpretação dos sujeitos,
como se estes fossem mecanismos que operam com inputs e outputs e que, por isso,
pudessem entupir..., como se a percepção não fosse logo à partida selecção/construção,
sempre, de uma infinidade de possibilidades.
Que a velocidade estonteante a que se renova continuamente a informação nos
media de hoje nos obrigaria a uma velocidade igual de processamento, como se
estivéssemos condenados a abdicar de acompanhar a realidade, como se, já o referi
atrás, fossemos máquinas passivas compulsivamente obrigadas a processar tudo o que
“passa à nossa frente”, como se não estivesse uma selectividade implícita à percepção,
nomeadamente dos estímulos exteriores, que é por sua vez decisão/acção que dá
sentidos que geram ordem no caos, que “extraem” compreensão do infinitamente
complexo, e que nesse processo constróem também as velocidades e acelerações; Que o
que restaria às audiências como única reacção possível à “sobreprodução” de
informação seria o não envolvimento, com se fosse possível abdicar de construir
mundos como quem fecha os olhos, de optar por não construir sentidos que implicam
forçosamente envolvimento, quando o que se passa de facto é a construção pelas
audiências de mundos alternativos, nomeadamente alternativos àqueles que o
observador teleológico totalizante entende que são a realidade e que são os relevantes.
Utilizando um exemplo do quotidiano de muitos de nós, a atracção pelo
“espectáculo da violência e sofrimento alheio” não é uma criação dos mass media, ou
então estaremos a ignorar, por exemplo, os engarrafamentos que se formam nas auto-
estradas na faixa contrária aquela em que se deu um acidente. Mais importante ainda,
essa demonstração de curiosidade colectiva não implica que a maioria dos curiosos

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desejem que se dê mais à frente um outro acidente para que possam, de novo, satisfazer
a sua curiosidade supostamente mórbida. A maior parte, senão todos, estarão a desejar
precisamente o contrário, quanto mais não seja para que possam chegar aos seus
destinos tão rápido quanto possível. Quer dizer, não são portadores de uma qualquer
apetência perversa dissociada dos contextos específicos – no caso o acaso de se
cruzarem com um acidente rodoviário. E o mesmo acontecerá em relação ao
visionamento de imagens violentas na televisão. A perspectiva do paradigma do
contexto sentido ajuda-me a perceber que também nos mass media modernos se
realiza/revela nos instantes únicos o humano, e que não se dá neles intrinsecamente a
sua “perversão”, ... nem neles se dará a sua “salvação”.
Portanto, filha, não te preocupes, não te deixes influenciar por alguns alarmistas.
Desconheces, e eu e eles também, os efeitos do consumo dos mas media e da utilização
da net de banda larga interactiva e policêntrica. Nomeadamente, desconhecemos aqueles
efeitos que um dia, a posteriori, haveremos de considerar ou perversos ou benéficos.
Daqui se devem retirar ilações também para a educação das crianças ...
Fiquei contente por os exames te estarem a correr bem. A Rita, o Miguel e a Teresa
mandam beijinhos. As crianças perguntam quando voltas ... Espero que ainda queiras ...
para Portugal ...
Até ao próximo fim-de-semana na net.

Beijos e saudades do teu pai.

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