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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCI AS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓ S-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Brun o de Olive ira Pinho

Di rei to na t ura l e m Hugo G ro ti us

VERSÃO CORRIGIDA APÓS A DEFESA

São Paul o
2013
Bruno d e Oliveira Pinho

Di rei to na t ura l e m Hugo G ro ti us

Di sse rtaçã o ap re senta da a o pr ogr am a de


Pó s-Grad uaç ão em Fi l osof i a do
Dep artam ento d e Fi l osof i a da Fac ul da de
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da U niv ersi da de de São Paulo, para
obten ção do títul o d e Me stre em Fil osof i a,
so b ori entaç ão do Prof . Dr. Al bert o Ri b ei ro
Gonçal v es de Barr o s.

VERSÃO CORRIGIDA APÓS A DEFESA

São Paul o
2013
“Ad astra per aspera”
Ag radecime ntos

Ao Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros, pela orientação e


paciência.

Aos e xa minadores da banca de qualificação, Rolf Kuntz e Milton


Meira, pelas críticas e sugestões.

A todos os a migos que de alguma for ma contribuíra m na


elaboração deste trabalho.

A todos os meus fa miliares, em especial a minha mãe, Maria das


Graças, que me ensinou o valor da dedicação para se alcançar um
objetivo.
RESUMO

PINHO, Bruno de O. Direito natural e m Hugo Grotius. 2013. 157 f .


Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Hu manas. Departa mento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2013.

Os estudos da obra de Hugo Grotius aponta m a sua i mportância para a


constituição de um conceito moderno de direito natural. A análise do
conteúdo de suas principais obras políticas, De Jure Praedae
Commentarius e De Jure Belli ac Pa cis, per mitiu a identificação de
noções inspiradas no estoicismo e no ecletismo ro mano, principalmente
de Sêneca e Cícero, sobretudo no que diz respeito ao direito natural.
Alé m disso, a abordage m jusnaturalista do autor serve de base para
funda mentar seus argu mentos e m defesa da possibilidade de se
e mpreender u ma guerra justa. Dest e modo, u ma análise do direito
natural grociano requer a reflexão sobre estes dois aspectos. Co m
vistas a co mpreender a origem dos conceitos de lei natural e direito
natural e as consequências que Grotius retira deles, a presente
dissertação investigou a possível influência estoica e eclética na
concepção de direito natural formu lada por Groitus e o vínculo
existente entre esta formulação e a teoria grociana da guerra e da
pena.

Palavras-chave: lei natural, direito natural, guerra justa, pena, Grotius.


ABSTRACT

PINHO, Bruno de O. Natural law in Hu go Grotius, 2013. 157 f. Master's


Dissertation – Faculty of Philosophy, Languages and Literature, and
Hu man Sciences. Depart ment of Philosophy, University of São Paulo,
São Paulo, 2013.

Studies of Hugo Grotius's work suggest its relevance for the


constitution of a modern concept of natural law. The analysis of the
content of his main political works, De Jure Praedae Commentarius and
De Jure Belli ac Pac is, opened space for the identification of concepts
inspired by the Roman stoicism and e clecticism, spe cially from Seneca
and Cicero, mainly regarding the natural law. Moreover, the author's
jusnaturalistic approach serves as a base to support his arguments in
defence of the possibility to wage a ju st war. Therefore, an analysis of
the Grotian natural law requires a re flection upon these two a spects.
Ai ming at co mprehending the origin of the concepts of natural law and
natural rights and the consequences Grotius retrieves from the m, th e
present dissertation investigates a possible stoic and eclectic infuence
on the conception of natural rights for mulated by Grotius and the link
between this for mulation and the Grotian's theory of war and
punishment.

Key words: natural law, natural rights, just war, punish ment, Grotius.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………............................ 8

1 A INFLUÊNCIA DE SÊNECA E CÍCERO NA CONCEPÇÃO DE DIREITO


NATURAL DE HUGO GROTIUS…………………………………………………........... 11

1.1 A crítica a Carnéades e a recuperação de conceitos do estoicismo............... 13

1.2 A “hipótese impiíssima” e o direito natural………..…..……………………........28

2 A DUPLA COMPREENSÃO DE LEI E DIREITO NATURAIS DE GROTIUS……. 46

2.1 As regras e leis naturais do De Jure Praedae Commentarius………….......... 48

2.2 Lei e direito naturais no Direito da Guerra e da Paz………………….………. 69

2.3 O surgimento da sociedade civil e da propriedade…………..……………....... 87

3 CONSEQUÊNCIAS DO DESRESPEITO AO DIREITO NATURAL: A GUERRA


JUSTA E A PENA………………………………….....…………………………………. 106

3.1 A liberdade dos mares…………………………………………........................ 107

3.2 A guerra justa no De Jure Praedae Commentarius....................................... 111

3.3 A guerra justa no Direito da Guerra e da Paz…………………...……............ 116

3.4 A decisão sobre a guerra: o magistrado e o soberano................................. 128

3.5 A pena…………………………........................................................................136

CONCLUSÃO………………………………………………......................................... 149

BIBLIOGRAFIA………………………………............................................................. 152
8

INTRODUÇÃO

A noção, segundo a qual existe uma lei universalmente


válida, e que dela decorrem direitos aplicáveis a todos os seres
hu manos é recorrente na história da filosofia. Referidos
manda mento s são deno minados de lei e direitos naturais. Na
antiguidade os filósofos gregos desenvolveram o conceito segundo
o qual o justo estaria fundamentado na natureza e, alguns séculos
mais tarde, os teóricos do chama do jusnaturalismo moderno
utilizaram este conceito para sustentar que a lei natural seria
anterior à lei positiva humana. Dentre estes pensadores modernos
destaca-se Hugo Grotius, jurista holandês do fim do sé culo XVI e
início do século XVII.

Estudiosos das relações internacionais e do direito


internacional têm maior fa miliaridade co m as teorias de Grotius,
principalmente no que diz respeito às relações jurídicas entre
Estados na ausência de u m órgão capaz de analisar conflito de
interesses. Por outro lado, entre os pesquisadores de filosofia
política e da filosofia do direito, o aspecto mais conhecido deste
autor é a sua concepção de direito natural dedutivo 1.

Apesar de e xistirem inú meras pe squisas sobre a obra do


jurista holandês, é possível verificar que a maioria delas parte da
leitura do seu tratado mais conhecido – O Dire ito da Guerra e da
Pa z, de 1625. Poucos intérpretes se aprofunda m na leitura de
outros textos por entendere m que este tratado é a obra mais
significativa deste autor.

1
O m ét odo ded ut iv o, caract erí st i co de f i l ósof os do sécul o XVI I (De scart e s,
Spi noza, Lei b ni z, et c), con si st e na a pre se nt ação de prem i ssa s g erai s q ue, se
v erdadei ra s, serv em para ex pl i car um caso part i cul ar. Ne st e m ét odo part e- se
de um a t eori a geral para ex pl i car um f at o esp ecí f i co. G rot i us, em sua
apre se nt ação do di rei t o nat ural , apre sent a prem i ssa s ger ai s e, apó s o
de senv olv im ent o dest a s prem i ssa s, apo nt a caso s e specí f i cos de i nci dênci a
de st e di rei t o. G roti us é um dos pri m ei ros teóri cos d o di rei t o a f azer uso d o
m ét odo dedut iv o ao t rat ar do di rei t o nat ural .
9

Grotius era um pensador e xtre ma ment e culto e inserido nas


questões de seu te mpo. Alé m de dedicar-se aos assuntos jurídicos,
possuía profundo conhecimento de filosofia, tendo, inclusive,
escrito inúmeros ensaios sobre teologia e história. Este a mplo
conhecimento faz co m que sua obra tenha u ma grand e
2
abrangência .

Deste modo, para co mpreender a co ncepção grociana de


direito natural faz-se necessário não só a análise do tratado mais
conhecido, ma s, ta mbé m, u ma aprecia ção de outra obra política do
autor, o De Jure Praedae Commentarius.

Nesta dissertação o objetivo é estudar os conceitos de lei


natural e direito natural presente e m duas das principais obras de
Hugo Grotius: De Jure Praedae Commentarius e Dire ito da Guerra
e da Pa z. Para tal, será apresentada u ma análise da exposição
grociana acerca do tema e as derivações que o autor faz de tal
conceito.

Por meio de u ma análise das ideias de Grotius e a


co mparação dos dois te xtos, é possível verificar aspectos de seu
pensa mento que não tê m sido alvo de u m estudo mais aprofundado
por historiadores da filosofia política – co mo, por e xe mplo, a
influência do estoicismo na concepção de direito natural do jurista,
e as suas regras e leis naturais presentes no segundo capítulo do
De Jure Praedae Commentariu s.

2
A abra ngê nci a do s a ssunt o s t rat ado s por G rot i us f az com que T I ERNEY
af i rm e que: “monarq uist as p oder iam cham ar at enção p ara a d ef esa gr ocia na
do abs olut ism o como uma f orm a le gí t ima de gover no; const it ucio nal ist as
poder iam exp lorar a in da mais a su a expl icaç ão das vári as mane iras em qu e a
sobera nia pod e ser l imit a da. Rac ion alist a s poder iam e nf at i zar a Et i am si
darem us de G rot ius ( ‘Ain da q ue a dmit amos que n ão h á Deus. . . ’); t eór icos d o
dire it o cr ist ãos pod eri am i nsist ir em s eu en siname nt o d e que a livr e vo nt ad e
de D eus f o i uma f ont e do dire it o. Empir ist as pod eriam est imar a vast a ord em
de exempl os hist ór icos de G rot ius; aq ueles q ue pref er em um modo
mat emát ico de rac iocí n io po deri am ape lar a os seus argum ent os ‘a pr ior i’. A
t radiçã o mediev al era mu lt if acet a da e, na t ransmissão de muit os d e seus
eleme nt os, G rot ius deixo u vári as opções a bert as para se us sucessor es qu e
poder iam e nt end er seus escr it os de v árias maneir as. ” (T h e ide a of nat ur a l
right s: st udi es on nat ur al ri ght s, nat ur al la w and church law , 1150- 162 5, p.
338-3 39).
10

O modo co mo o jurista desenvolve sua argumentação


e mergiu a percepção sobre a utilização de pontos de vista que
estava m presentes na obra de Cícero e Sêneca. Por isso, no
primeiro capítulo há u m e studo do ví nculo entre Grotius e estes
dois filósofos clássicos para entender de onde se originaram os
conceitos utilizados pelo jurista.

A leitura dos dois textos de Groti us indica que muitos


conceitos do tratado já estava m pre sentes no De Jure Praedae.
Entretanto, há u ma diferença no que se refere à concepção de lei e
direito. Por isso, no segundo capítulo, faz-se a análise da parte
das obras que trata m da lei natural e do direito natural e
apresenta m-se duas concepções intrinsicamente ligadas a estes
conceitos, o surgimento da sociedade política e da propriedade.

Se mpre que possível, o jurista faz questão de salientar que


seu objetivo, no tratado, é refletir sobre a possibilidade de existir
ou não u ma justiça no ato de guerrear. Grotius retira a justificativa
da guerra do seu conceito de direito natural e atrela o ato de
guerra à defesa deste direito. Não bastasse a possibilidade bélica,
o desrespeito ao direito natural também ense ja a possibilidade de
punição daqueles que infringem u m manda mento natural. Sendo
assim, torna-se i mportante verificar, no terceiro capítulo, as
hipóteses em que a guerra e a punição estão ligadas ao direito
natural.
11

1 A INFLUÊNCIA DE SÊNECA E CÍCERO NA CONCEPÇÃO DE


DIREITO NATURAL DE HUGO GROTIUS

Nos primeiros parágrafos do “Prolegômenos” do Dire ito da


Guerra, Grotius mostra a principal tese que pretende refutar: a
opinião segundo a qual a guerra é inco mpatível co m o direito. Co m
este ob jetivo e m mente, o autor, ante s de adentrar no estudo dos
fenô menos bélicos, apresenta uma abordagem teórica na qual
pretende provar a e xistência da justiça e, consequente mente, d o
direito natural. 3

Alé m disso, no segundo capítulo do primeiro livro da


referida obra, o jurista salienta que existe m preceitos fundados n a
própria natureza e, em deter minadas situações, a guerra estaria
e m confor midade co m estes preceit os. Nesta parte, ele utiliza
argu mentos e xtraídos do De F in ibus de Marco Túlio Cícero 4, que

3
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, Li v ro I , capí t ul o II , p. 99.
4
A passagem com ent ada por G rot i u s é e ssa: “20 “Cont inu emos, ent ã o ”, diss e
ele, “da do q ue nos af ast amos dess es pri nc í pios da nat ure za, c om os qua is
deve est ar de ac ordo o q ue se seg ue. Segue-s e est a div isão pr imord ial :
est imável eles di zem ser ( assim po is, na minh a op ini ão, po derí amo s
denom inar) aq uil o q ue o u se ja, e le própr io, segu ndo a n at ure za, ou pr odu za
algo assim, de mod o que se ja d ign o de e scolha p orq ue t enh a al gum pes o
dign o de est ima, qu e aq uel es de nomi na m α ξια , e, cont r ariam ent e, nã o
est imável, o qu e seja co nt rário a o ant eri or. T endo as coisas prim eiras si do
assim est ab el ecid as, de m odo que aqu el a s que s ão se gun do a nat ur e za
devam s er ac olh id as p or ca usa de s i pró prias e as co nt rári as, de mod o
idênt ico, devam ser rej eit ad as, o primeir o dever (assim, com ef eit o, cham o
καθηκον ) é qu e a si mesmo se c onserv e no est ado nat u ral, em se gui da, qu e
se at enha às c oisas q ue são se gun do a nat ure za e qu e rep ila as co nt rári as.
T endo si do e ncont r ado esse crit ério de e scolha e, do m esmo mod o, d e
recusa, seg ue-se, de pois, a esc olh a un id a ao sent ime nt o de d ever; em
segui da, ela é cont í n ua, por f im, ela é cons t ant e e est á em consenso com a
nat ure za. É nessa esco lha q ue, por prime iro , começa a est ar cont ido e a ser
ent end id o o qu e se ja aqu ilo qu e p ode, verd a deiram ent e, se r ch amado de bem.
21 É primeir a, pois, a conci liaç ão do h omem em f avor daqui lo que é se gun do
a nat ure za. Mas, assim que e le se ap ossa d a int el igê ncia, ou, de pr ef erênc ia,
do ent en dime nt o (que e les cham am εννοια ), e vê, ent re as ações que e le
real i za, uma ord enaç ão e, por assim di zer, uma co ncórd ia, e le a est im a d e
muit o maior v alor do qu e t udo a qui lo q ue am ara em prim eiro lug ar e, à lu z d o
conhec iment o e da ra zã o el e de t al f orma ref let e, que co nclu i qu e ness a
ordem est á c oloc ado aqu il o qu e há de ma is e levad o par a o homem, o b em qu e
por si só deve s er lo uvad o e b uscad o. E, uma ve z que el e cons ist a na qui l o
que os est oic os chamam οµολογια , e que nós pod erí amos chamar ‘ acord o’,
caso agr ade – um a ve z, port ant o, que n iss o est eja a que le b em a que t u do
12

asseverava a e xistência de determinados princípios naturais


primitivos e outros deno minados secundários.

O autor retira, desta passagem do De Fin ibus, dua s


importantes proposições para o desenvolvimento da sua concepçã o
de direito natural: (1) o dever que temos de nos conservar mos no
estado e m que a natureza nos colocou, de reter o que é conforme
à natureza e de repudiar as coisas que lhe são contrárias; (2) o
be m dos ho mens, o honesto, está e m adequação co m a reta razão ,
que seria mais i mportante do que as aspirações particulares.

O primeiro princípio contém noções se melhantes àquelas


expostas nas Leis 1, 2, 3 e 4 do De Jure Praedae Commentar ius e
que serão analisadas no próximo ca pítulo. Em nota ao segundo
princípio, o jurista traz um trecho da Carta 124 do Cartas a Lucílio
de Lúcio Aneu Sêneca. Este afirmou que o bem do ho me m não se
encontra no ho me m, a não ser quand o a razão nele é perfeita, tal
qual toda natureza não mo stra o q ue faz seu be m a não ser
quando chegou ao ponto de perfeição que lhe convém 5.

Essas passagens indicam que conceitos funda mentais para


o desenvolvimento da argu mentação g rociana estão embasados e m
concepções de Cícero e Sêneca. Tanto nos “Prolegômenos” quanto
no primeiro livro do Dire ito da Guer ra, Grotius menciona estes
autores quando apresenta os funda mentos da sua concepção d e
direito natural. Por exe mplo, ao sustentar a necessidade de o
ho me m se manter no estado e m qu e a natureza o colocou 6, o
jurista, além de fazer uso de um preceito extraído de Cícero,

deve s e ref er ir, as ações ho nrosas e o pró pr io h onros o – qu e é a ú nica cois a


que s e co nsid era ent re os bens, ain da que s e ori gi ne post eri orment e – m esmo
assim, isso ap enas, p or sua car act erí st ic a própr ia e d ign ida de d eve ser
buscad o. De nt re aqu elas cois as que são pr imeiras po r n at ure za, ent ret a nt o,
nada dev e ser busca do por ca usa de s i mes mo. ” (Cí cero, D e F in ibus, l iv ro I I I ,
V, 20-21, t radução d e Si dney Cav al hei ro de Li m a, Aspect os do gêner o diá log o
no De f i ni bus de Cí cero, p. 427 -42 8).
5
Na Cart a 12 4, 11-1 2, Sêneca e sc rev e: “(.. . ) T al como nos rest a nt es seres d a
nat ure za o seu bem esp ecí f ico só a parec e na pl ena mat uri dad e, t ambém o
bem especí f ic o do hom em só surge n ele q u ando e le ac ede à p erf eit a ra zã o. ”
(SÊNECA, Lúci o Aneu. Cart as a L ucí li o. p. 700).
6
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerra e da P a z, l iv ro I, cap. I I, I , pág. 99.
13

parece, també m, repetir uma noção de Sêneca. Este sustentava


que ao invés de querer que os eventos do mundo ocorra m
confor me os fatos, e consequente mente sofrer uma frustração
se mpre que os fatos não correspondam às vontades, seria melhor
aceitar os fatos da maneira co mo eles se apresenta m e dese jar
que a existência se opere conforme e xige m os processos naturais.
Para Sêneca, a paz de espírito e a felicidade seriam, portanto,
obtidas mediante a aceitação do mund o co mo ele é.

Alé m disso, o jurista, ao utilizar os ter mos “ moral” e


“honesto” para qualificar o direito natural, parece ter em mente a
identificação estabelecida por Sêneca, no Cartas a Lucílio, entr e
razão, honestum e a natureza. Outrossim, a argu mentação
contrária à tese de Carnéades conté m pontos de vistas
expressados por Cí cero no Da República e no Das Le is.

1.1 A crítica a Carnéades e a recuperação de conceitos do estoicismo

Já menciona mos que o principal objetivo de Grotius é


defender a possibilidade de existir uma guerra ju sta. Para isso, ele
faz um trâ mite interessante: não inicia sua análise abordando
diretamente a guerra, mas fa z u ma e spécie de introdução. Nesta
“introdução”, Grotius procura funda me ntar os princípios da guerra
justa – esta precisa das noções de ju stiça e direitos naturais para
ser co mpreendida.

É e xata mente quando defende a e xistência da justiça que


Grotius utiliza concepções inspiradas no estoicismo e no ecletismo
ro manos. No início dos “Prolegômenos”, o jurista rele mbra
argu mentos contrários à justiça e à p ossibilidade de haver u ma lei
natural que são sintetizados e personificados em Carnéades. Ao
que parece, Grotius faz uso do s arg u mentos de Carnéades para
expor os funda mentos de suas convicções.
14

No ano de 155 a.C., o cético Carné ades participou, junto


co m o aristótelico Critolau e o estoico Diógenes, de uma missão
diplomática ateniense e m Ro ma 7. Durante a visita que faziam,
proferiram algumas conferências. Em dois dias contínuos de
apresentação, Carnéades tratou do t e ma ju st iça. No pri meiro dia
e m que abordou o te ma, ele argu ment ou e m defesa da justiça e, no
dia seguinte, apresentou uma linha de raciocínio totalmente
diferente e sustentou que a justiça seria u ma for ma de loucura.

Infelizmente, não resta m registros da argumentação d e


Carnéades favorável à justiça. A argu mentação do segundo
discurso, contrário à ideia de justiça pode ser recomposta por meio
de passagens esparsas do Da República de Cícero, co mpletadas
por Lactâncio. No livro III desta obra, Cícero traz a argumentação
de Carnéades por meio da fala do personage m Filus. Apesar de
existir divergência entre os comentad ores se o conteúdo principal
do discurso do cético é repetido no discurso de Filus, a maioria
dos estudiosos desse período considera que referido discurso é u m
teste munho be m fiel da exposição de Carnéades.

Pode-se resu mir a argu mentação d o seguinte modo: se


houvesse justiça na ordem das coisas, ela poderia ser descoberta
e o seu conceito não variaria, co mo, por e xe mplo, o modo de
percepção do calor e do frio, do doce e do a margo 8. Há u ma
variação muito grande, nos diversos povos de u ma mesma época,
e até entre me mbros do mesmo povo, daquilo que é a justiça. Por
isso, as leis e as sanções não são expressão da natureza e ne m
7
Lui z Bi cca sal i ent a que “o mot iv o que s uscit ou essa miss ão di pl omát ica f o i o
inci dent e p olí t ico, um aut ê nt ico imbr ó gli o int ern acio na l, envolv end o
pret ensõ es at eni enses so bre o t errit ór io d e O ropos, que lhes cust o u uma
puniç ão, um a mult a e leva da impost a pelos roma nos ” (BI CCA, Lui z.
“Carné ade s em Rom a: cet i ci sm o e di al éti ca”, Sképsis, p. 77).
8
“O dir eit o qu e pr ocuram os p ode ser al gum a ve z civi l, n at ura l n unca; s e o
f osse, como o que nt e e o f rio, o amarg o e o doce, seri am o j ust o e o i njust o
igua is p ara t o dos. [ . . . ] Se eu quis esse d escr ever os gên eros divers os d e l eis,
inst it uiç ões, háb it os e cost umes, t ão divers o s não só em t od os os p ovos c omo
numa mesma cid ade, demonst r aria nest a os seus mi lhar es d e mud anças. [ . . . ]
Se f osse in at a a j ust iça, t o dos os h omens s ancio nar iam o n osso dire it o, q ue
seria i gua l para t od os, e não ut i li za riam os benef í cios d e out ros em out ro s
t empos nem em out ros paí ses ” ( CÍ CERO , Marco T úl i o. Da Rep úbl ica, l iv ro I I I,
p. 176-1 77).
15

estão e m confor midade co m ela. A origem da justiça, segundo


Carnéades, está vinculada à nossa fraqueza. 9

Esta argu mentação de Carnéades, contrária à justiça


natural, é o ponto inicial da argument ação de Grotius. Segundo o
jurista, o cético grego desqualificaria a noção de lei e de direito,
especialmente ao tratar da guerra, e defenderia o direito da
conveniência negando a existência do direito natural, porque o que
a natureza impõe a todos os ani mais é a utilidade.

Grotius sintetiza a argumentação de Carnéades contrária à


justiça desta maneira:

os hom en s se i m puser am , em v i st a de se u i nt eresse, l ei s


que v ari am de acord o com os co st um es e q ue, ent re o s
m esm os pov os, m ui t as v ezes m udam de acordo com a s
ci rcunst â nci as. Q uant o ao di rei t o nat ural , esse nã o
ex i st e; t odos o s ser e s, hom ens e o ut ro s ani m ai s, se
dei x am arrast a r p el a nat ur eza em f unção d e su a s
própri a s ut i l i dades. De duz- se, poi s, que n ã o há j ust i ça
ou, se ho uv esse um a, não pa ssari a d e su pr em a l oucura,
porqu ant o pr ej udi ca o i nt ere sse do i ndiv í duo,
10
preocu pan do- se em proporci onar v ant agem a out rem .

Nota-se u ma diferença entre a argu mentação de Carnéades


exposta por Cícero e a apresentada pe lo jurista. A co mparação da s
passagens que reproduze m as afir ma ções do cético indica que o
conteúdo trazido pelo jurista é menor do que aquele constante no
Da República, há u m maior desenvolvimento da tese cética nesta
obra. Este fato pode indicar que o jurista resu miu a argumentação
que Cícero atribui a Carnéades. Tendo co mo base a e xpo sição do
ro mano e do holandês, percebe-se que a opinião a ser refutada é
co mposta por quatro argu mentos: (1) não existe direito natural e

9
“A just iça não é f i lha da nat ur e za, nem d a vont ade, m as d e n ossa f ra que za .
Se f osse prec iso esco lh er t rês cois as, comet er in just iç as sem sof rê-l as,
comet ê-las e sof r ê-las, ou ev it ar am ba s, o melh or ser ia c omet ê-l as
impun iment e; se f osse p ossí vel, port a nt o, não f a zê- las e nã o sof rê-las, a o
passo qu e o est ado mais mis eráve l seria l u t ar sempre, quer como opr essor,
quer como ví t ima. . . ” (CÍ CE RO , Marco T úl i o. Da Rep úbl ica, l iv ro I I I, p. 177).
10
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, “Prol eg ôm eno s”, par. 5º, p .
36.
16

tanto ho mens quanto ani mais são inclinados por sua natureza a se
preocupar com a sua própria utilidade; (2) as leis, em virtude desta
utilidade, variam de a cordo co m o s povos e seus costu mes,
mudando, ta mbé m, segundo as circunstâncias; (3) não existe
justiça, ha ja vista a variação do conteúdo das leis; (4) caso
existisse u ma justiça, ela seria loucura visto que faria com que
cada indivíduo colocasse seus próprios interesses abaixo da
vantage m do outro.

Nos “Prolegô menos”, a resposta de Gr otius ao argumento d e


que não existe u m direito natural, mas, so mente a u tilidade,
sustenta-se e m duas afirma ções. Na primeira, fundamentada no
conceito estoico sobre a natureza hu mana, ele sustenta que os
ho mens tê m e m si mes mos u m de se jo pela vida em u ma sociedade
racionalmente organizada (appetitus societat is). 11 Na segunda, que
rebate a preocupação de homens e animais so mente co m a
utilidade, o autor utiliza uma argu men tação idêntica à de Sêneca 12
para sustentar que os animais não age m apenas de modo egoísta,
mas eles cuida m de sua prole e busca m o benefí cio dos me mbro s
da sua espécie. Segundo o jurista, esta disposição dos animais se
repete nas crianças, que têm u ma inclinação para a
benevolência. 13 Verifica-se que Grotius, fazendo uso de um
argu mento de Sêneca, sustenta que o s ani mais não age m apenas
de modo egoísta, ma s ta mbé m busca m o benefício dos me mbros

11
O parágr af o 6º do s “Prol egôm eno s”, no t ex t o ori gi nal , t em a seg ui nt e
redaçã o: “ Int er haec aut em qu ae homi ni s un t propr ia est ap pet it us soci et at is,
id est commu nit at is no n qua liscu nqu e s ed t ranqu ill ae, E pro su i int el lect u s
modo ord inat a e, cum bis qui su i sunt ge neris ” (t ex t o di sponí v el no si t e
ht t p: / / gal li ca. bnf .f r/ ). Em port uguê s, t erí am os: E ent re as co isas q ue s ão
própr ias do homem est á o dese jo d e socie da de, ist o é, o de c omun ida de; nã o
de qua lqu er socie dad e, mas uma t ranqu ila e ordena da seg und o o seu próp ri o
ent end iment o, com os q uais p ert enc em ao se u gêner o. (t raduçã o l iv re).
12
“Mesmo os a nima is n ovi nhos, ac aba dos de sair d o út er o mat er no ou d e u m
ovo, sab em inst i nt ivam ent e d ond e l hes p ode vir o peri go e evit am o q ue l he s
pode ca usar a mort e; bast a ver passar a so mbra das aves de rap in a para qu e
as suas pres as ha bit ua is proc urem p ôr-se a salvo. ” (SÊNECA, L úci o Aneu.
Cart as a Lucí l io, 12 1, 18, p. 693).
13
Para G rot i us, o s ani m ai s e as cri ança s seri am desprov i dos da s f acul dade s
de conh ecer e a gi r. A i nst rução perm i t e que as cri anç a s apre ndam a f al ar e a
f azer uso d e ref eri das f acul dad e s. I st o i ndi cari a que, na s cri ança s, a
f acul dade raci onal seri a um a pot ênci a qu e nece ssi t ari a da ed ucaçã o p ara se
t ransf orm ar em at o.
17

de sua própria espécie. O autor entende que os seres humanos


tê m esta mes ma disposição e funda menta esta con vicção na
inclinação das crianças para a benevolência. 14

Esta benevolência espontânea das crianças estaria


vinculada à tendência de autopreservação dos animais, que os
leva a viver de acordo co m a natureza. 15 O jurista entende que o s
ho mens obedece m ao direito natural por co mpreendere m que a o
agir deste modo eles se beneficiaria m – seria possível a vida
coletiva em har monia, esta vida har mônica é vantajosa para
todos. 16 Para viver de acordo co m a na tureza, os animais segue m
sua tendência à autopreservação, buscando o que está de acordo
co m sua natureza e re jeitando o que lhe é contrário. Assi m, o auto r

14
G RO T I US, HUG O. O Direit o da G u erra e d a Pa z, “Prol eg ôm eno s”, par. 7º ,
pp. 37-3 8.
15
No De J ure Pra eda e, G rot i us e scr ev eu: “Sêneca di sse ‘ Da mesma f orm a qu e
t odos os mem bros se harmo ni zam ent re s i, porqu e é int eress e de t odos qu e
cada um s eja preserv ado, ass im t odos os ho mens cui dam de c ada um, porq u e
f omos eng end rad os par a o c on junt o, e a s oc ieda de não pod e sa lvar-se sen ão
pelo amor e o cu ida do d as part es. A segu ran ça deve ser r eal i zad a med iant e a
segura nça mút ua. ’ (D e Ira, I I, 31). Est e é aquel e pare nt esco dos h omen s
ent re si, aq ue la ci dad ani a do mu ndo, que os a nt ig os f ilós of os no s
recomen dam com t ant os e import a nt es avi sos, sobret ud o os Est oic os, cuj o
pensam ent o t ambém Cí cer o compart ilh a: do qua l der iva t amb ém aqu el e
escrit o de F lor ent i no: uma ve z q ue a nat u re za est abe lece u ent re n ós um cert o
parent esc o, se de du z qu e é í mpi o o h omem ins idi ar out ro homem; c ois a q ue
ele ot imament e ap lica ao dire it o d as ge n t es. De on de a parec e qu e n ão
ret ament e e co nt ra a j ust iça os mest r es Acad êmicos da ig norâ nci a
sust ent avam qu e a just iç a, que é n at ure za, soment e lev a à sua pró pri a
ut ili dad e, e que a j ust iça c ivi l n ão vem da n at ure za, m as da op ini ão. E
omit iam aq uel a just iça ce nt ral, que é pró pri a ao gênero h umano. ”. No ori gi nal :
“Seneca: ut om ni a i nt er se m em bra consen t i unt , qui a si ng ul a serv ari t oti us
i nt erest , i t a homi nes si ngul i s parc ent , qui a ad coet um geni t i sum us. Salv a
aut em esse soci et a s, ni si am ore et cust odi a part i um non pot e st . I dem ali bo:
Securi t as securi t at e m ut ua paci sc end a e st . Haec e st i l l a hom i num i nt er se
cognat i o, i l l a m undi civ it as, quam t or t ant i sque pr aeco ni i s v et eres phi l o sop hi
nobi s com m endant , prae se rt i m St oi ci , quorum sent ent i am et i am Ci cero
ex sequi t ur: ex qua et ill ud est F l orent i ni : cum cognat i onem quandam i nt er nos
nat ura c on st i t ueri t , con seq uen s e sse ut h o mi nem homi ni i nsi di ari nef as si t ;
quod i l l e opt im e ad j us g ent i um ref ert . Unde appar et quam non rect e m agi st ri
i gnorant i ae Ac adem i ci cont ra j u st i t i am di spu t av eri nt , eam quae n at ura e st a d
ut i li t at em dunt ax at su am ducere, civ il em vero n on ex nat ur a e sse, sed ex
opi ni one. Hanc eni m m edi am j ust i t i am, quae h um ano gen eri propri a e st ,
om it t ebant . ” (G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae Comme nt ari us, cap. I I , p. 13).
16
G rot i us af i rm a que “(. . . ) a caridade seg ui da ment e me admoest a e, às ve zes,
me orden a pref er ir o bem de mu it os ao qu e seria va nt ajos o só par a mim. ”
(G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I I, capí t ul o I , I X, p.
294).
18

rebate o argumento segundo o qual cada um coloca seus


interesses abaixo das vantagens do outro.

Para o jurista, o que diferencia o ser humano dos outros


animais é o fato destes não possuíre m faculdades racionais.
Enquanto nos ani mais a escolha é instintiva – o sentimento que
eles têm coincide com u ma total adesão à situação presente –, nos
ho mens há a capacidade de prever e prover as suas próprias
necessidades, ou seja, e xiste u m ato racional. Saliente-se que a
mesma diferença entre ho mens e animais pode ser en contrada e m
Sêneca quando ele afirma que o ho me m e Deus, por sere m
racionais, possue m naturezas idênticas, apenas diferindo entre si
por um ser i mortal e o outro mortal, e o restante dos seres não são
absolutamente perfeitos porque são desprovidos de razão. 17

Estas afir mações co mpõe m as pre missa s utilizadas por


Grotius para combater a argu menta ção do cético grego. Para
sustentar a e xistência do direito natural, o jurista faz uso das
consequências advindas da sociabilidade natural – incluindo a
natureza racional do home m – qu e ele retira do estoicismo
ro mano. 18 Segundo a argumentação de Grotius, o direito natural é
imanente à própria natureza racional e social do home m e, por
isso, seria imutável e válido para todos os ho mens.

Igualmente, para contestar o argu ment o segundo o qual não


existe justiça, o jurista defende qu e o direito natural, ao ser
co mpreendido como o que é justo , estaria fundamentado na
sociabilidade humana e não na utilidade. Esta sociabilidade, e não
a utilidade, teria originado o direito civil. É óbvio que o direito civil
foi instituído e m vista de algu m benef ício, isto porque os ho mens
elaboram leis e direitos e m busca de alguma utilidade específica.

17
SÊNECA, Lúci o Aneu. Cart as a Lucí l io, 12 4, 14, p. 701.
18
No par ágraf o 6° dos “Prol eg ôm enos” d o Dir eit o da G uerra, o aut or su st ent a
que o hom em dif ere dos out r o s ani m ai s por ter a nece ssi dad e de um a v i da em
um a soci edad e pací f i ca organi zada de acordo com os d ado s d e sua
i nt el i gênci a e af i rm a que e st a t en dênci a hum ana era de nom i nada p el o s
est oi co s d e soci abi l i dade (a t rad ução para o port ug uê s, ne st e pont o, t raz a
ex pressã o “e st ado d om ést i co”, ent ret ant o parece m ai s corret a a t raduç ão
i ngl esa q ue ut i l i za a pal av ra “soci abl ene ss”).
19

Mas este benefício é coletivo e não individual: a preservação de


toda a espécie humana e, consequ ente mente, da co munidade
política criada.

Destas afirmaçõe s pode-se interpretar que o jurista não


vincula a utilidade ao benefício de todos os ho mens, ma s ao invés
disso, parece entender que a busca do útil está intrinsecamente
ligada à vantage m pes soal, mesmo q ue ela acarrete prejuízo aos
outros.

O jurista não concorda com o argumento de Carnéades


segundo o qual a justiça se origina da utilidade e vê na natureza –
e na própria natureza do home m – a fonte da justiça e do direito
natural. 19 Apesar de não ser a fonte do direito natural, a utilidade
se une a ele na medida e m que ela seria uma causa oca sional do
direito civil. De fato, este direito teria surgido das associações
hu manas que e mergira m e m vista de u ma vantage m coletiva – a
preservação da espécie por meio da proteção da vida e dos bens
de cada um de seus me mbros. As leis que compõe m o direito civil
de cada Estado dize m respeito à sua própria utilidade – esta
utilidade, contudo, não é individual, mas coletiva, na medida e m
que te m co mo ob jetivo garantir a preservação dos direitos de todos
os cidadãos. Além disso, e xiste m leis que emana m de vários
Estados: o direito das gentes (jus gentium). As regras do ju s
gentium 20 brota m do consenso dos povo s e tende m para a utilidade
de todos os ho mens – esta utilidade acarretaria um benefício a
toda a hu manidade e não so mente a u m indivíduo. Segundo o
jurista, o direito das gentes – que el e sustenta ser u ma parte do
direito natural – teria sido omitido na argu mentação de Carnéades.

19
“(…) A nat ure za d o hom em que nos im pel e a buscar o comérci o recí pr oco
com nossos seme lha nt es, mesmo qua ndo não nos f a lt asse a bsol ut ament e
nada, é ela p rópr ia a mã e do d ire it o nat ural. A mãe d o dir eit o civ il, n o
ent ant o, é a o brig ação qu e a g ent e s e imp õe p el o pr ópri o c onse nt iment o e,
como est a ob rig ação ext ra i su a f orç a d o d ir eit o nat ura l, a nat u re za po de s er
consid erad a como a b isavó t amb ém do dir eit o civi l ” (I bid. , “Prol egôm eno s” ,
par. 16, p. 43).
20
T rat arei , no próx im o capí t ul o, do di rei t o da s g ent e s e a su a l i gação com o
di rei t o nat ural .
20

O direito natural impõe a ne cessidade de se preservar a


sociabilidade, e seu conteúdo tem por objeto a garantia dos
direitos ligados à propriedade e ao patrimônio por meio de três
deveres: respeito aos bens dos outros, reparação dos prejuízos
causados e respeito aos pactos 21. Deste modo, nu m plano
mera mente jurídico, a lei natural, enquanto direito objetivo, te m por
finalidade a proteção da sociabilidade e, consequente mente, dos
direitos de cada home m, direitos estes vinculados à utilidade de
cada um. Se m estes deveres, o direito natural não existiria e não
poderia ser utilizado como razão para se e mpreender a guerra.

Em su ma, a argu mentação de Grotius leva a co mpreender


que a utilidade, considerada em si me sma, não é o funda mento da
sociabilidade nem da lei natural que a protege. Por outro lado, sob
u ma ótica estrita mente jurídica, a utilidade se torna o ob jetivo da
lei natural, pois a proteção dos direitos de cada um dos seres
hu manos não é, senão, a contraprestação da obrigação que cada
ser hu mano te m de garantir a manut enção da existência co mu m,
na qual está, necessariamente, inserido. Por este mo tivo, ele pode
afirmar que não é contrário à natureza da sociedade zelar e prover
para os seus próprios interesses, desde que o direito do outro não
seja atingido 22.

Neste sentido, lembre-se que para Cí cero o direito não se


baseia em u ma convenção, mas si m n a natureza. 23 Desta natureza ,
segundo o pensador ro mano, ad viria a sociabilidade humana.
Assi m, verifica-se que quando Grotius argumenta que no ho me m
há a necessidade de sociedade par a refutar o ponto de vista
segundo o qual a natureza i mpele os animais so mente para a

21
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, “Prol eg ôm eno s”, par. 8º, p .
39. Est e s dev eres, q ue G rot i us v i ncul a ao d i rei t o propri am ent e di t o, t am bém
est ã o em Cí cero (Dos Deveres, l iv ro II I , 23, 122), que su st e nt a que el es sã o
f i nal i dades da s l ei s.
22
Ibi d. , l iv ro I , cap. 2, I, p. 103.
23
“(…) mas, ent re t odas as q uest õ es que c on st it uem o ob jet o d as disc ussõe s
cient í f icas, nad a é t ão esse ncia l c omo o compr een der pl ename nt e qu e
nascemos p ara a just iç a e que o D ireit o nã o se basei a em conve nções, mas
sim na Nat ure za . ” (CÍ CERO , Marco T úl i o. Das Leis, l iv ro I , p. 44).
21

busca da própria utilidade e faz referência aos estoicos, ele parece


apresentar um raciocínio inspirado nestes pontos de vista de
Cícero.

Cícero ta mbé m criticou Carnéades por ter introduzido uma


confusão no que diz respeito à orige m natural do Direito. 24 O
filósofo romano parece não con cordar co m o vínculo entre o direito
e a utilidade quando afirma que se fosse a utilidade e o interesse
que fizessem os ho men s agir de mo do honrado, ao invés deste
co mporta men to ser i mposto pela p rópria honradez, os seres
hu manos não seriam bons, mas espe rtos. 25 Outrossim, ele afir ma
que:

A j ust i ça si m pl esm ent e não ex i st e se nã o deriv a da


Nat ureza e a ut i l i dade acaba c om t ôda j ust i ça con st ruí d a
com base na ut i l i dade: se a Nat ureza não conf i rm ar o
26
Di rei t o, t odas a s v i rt udes ruem .

Em Cícero, a natureza é a fonte da inteligência (razão) e


per mite que se relacione o honroso co m a virtude e o desonroso
co m o vício. Por entender que estas equivalências são naturais e
não convencionais, o romano argu me nta que a distinção entre o
honroso e o desonroso també m seria natural, na medida e m que se

24
CÍ CERO , Marco T úli o. Das Leis, l iv ro I , pp. 47 e 48.
25
CÍ CERO , Marco T úli o. Das Leis, l iv ro I, p. 49.
26
CÍ CERO , Marco T úli o. Das Leis, l iv ro I, p. 50. Em que pe se o f i l ósof o
rom ano e st abel ecer um v í ncul o ent re o út i l e o ho ne st o, no Dos Dev eres, el e
sal i ent a qu e “t odos os home ns dev eriam t e r o segu int e ob jet iv o: que aqu il o
que é út il para cad a um o s eja t ambém par a ben ef í cio de t o dos. Se al guém o
cobiçar par a s i pr ópri o, ent ão t o dos os l aç os soci ais que un em os hom ens
ent re s i se diss olver ão. Al ém d isso, s e a na t ure za pr escrev e q ue um hom em
deveri a dese jar c onsi dera r os int er esses do seu s emel hant e, qu aisq uer qu e
sejam, pel a simpl es ra zão d e ser el e um homem, é necessár io, segu ndo a
mesma nat ur e za, q ue a qu ilo que é út il par a t odos de uma cert a mane ira o
deva ser t ambém part i lh ado em comum. ” (CÍ CERO , Marco T úli o. Dos Deveres,
l iv ro I II , 26-27, p. 123). Som a-se a i st o o f at o del e v i ncul ar a ut il i dade ao
proced er de um hom em de bem (Idem. , 64, p. 138). Est e s ar gum ent o s
m ost ram que aqui l o que Cí cero ent end e por ut il i dade é dif erent e daqui l o que
G rot i us t em em m ent e quand o a pre se nt a ar gum ent os cont ra a ut i l i dade. Para
o hol an dê s a ut i l i dade est ari a v i ncul ada à b usc a d o pr ópri o ben ef í ci o sem a
preocu paçã o com o benef í ci o dos out ro s, ao passo que pa ra Cí cero a
ut i li dade pod e e st ar v i ncul ada ao hone st o, h aj a v i st a que el a t em por obj et iv o
o bem de t odo s.
22

a virtude fosse convencional, as partes que a co mpõe m ta mbé m o


seriam. Ele conclui que a virtude (e a justiça, que é uma
importante virtude) é u ma razão perfeita e te m u ma base natural. 27

Ao que tudo indica, Grotius tinha em mente esta s


concepções de Cícero quando se opô s ao vínculo entre o direito e
a utilidade para sustentar a possibilidade de o direito ter uma
origem natural e, també m, afastar a reputada inexistência da
justiça. Neste sentido, no Da República, o filósofo romano afir mou
que a lex, enquanto e xpressão da ra tio naturalis, seria igual em
toda parte, entendimento contrário a afirmação de Carnéades
segundo a qual não haveria um direito natural e, tampouco u ma
justiça, na medida e m que as leis variariam de u ma localidade para
outra. 28

A definição de direito natural de Grotius apresenta estes


mesmos ele mentos. O jurista igualmente se insurge contra o
argu mento do cético segundo o qual a justiça não e xiste pelo fato
de cada povo ter diferentes leis. Em sua definição de direito
natural, o holandês també m vincula este direito à reta razão (que
nos permite conhecer a conformidade de uma ação moral com a
natureza) 29, além de afir mar que este d ireito é imutável e abrang e
todas as coisas. 30 So me-se a isto argu mentos apresentados n o
primeiro capítulo do Dire ito da Guer ra. A prova a poster ior i do
direito natural 31 parece refutar o argume nto que vê na variação dos
diferentes sistemas legislativos dos povos a prova da inexistência
do direito natural.

Nesta passage m, Grotius sustenta que uma coisa estaria em


confor midade co m o direito natural quando ela é tida como tal e m
todas as nações ou entre as que são mais civilizadas. Carnéades

27
CÍ CERO , Marco T úli o. Das Leis, l iv ro I , pp. 50-51.
28
No Da R epú bl ica, ap ó s af i rm ar que a t e se de Ca rné ade s não dev eri a ser
ouv i da pel os j ov ens, Cí cero apre sent a um a concepç ão de l ei nat ural . Est a l ei
est ari a em conf orm i dade com a ret a razã o e a seri a apl i cáv el a t odo s.
(CÍ CERO , Marco T úl i o. Da Repúb lic a, l iv ro II I, XVI I , p. 178).
29
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, l iv ro I , cap. I , X, p. 79.
30
Idem. O p. ci t . , p. 81.
31
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , XI I , p. 85.
23

parece identificar esta “coisa” com a s leis, mas é possível outra


identificação. O fato de todos os povos possuíre m u m consenso
sobre a necessidade de tutelar alguns objetos (i mportantes para se
garantir a preservação da vida) por meio de u ma lei indicaria que
estes ob jetos estão e m confor midade co m o direito natural.

Deste modo, o que altera não é o direito natural, mas o


objeto sobre o qual ele recai 32. A percepção do direito natural
depende da natureza racional e da sociabilidade. O fato de as
sociedades se diferenciarem u mas das outras faria com que
referida percepção dos objetos do direito natural mude de u ma
localidade para outra. Deste modo, o simples fato das leis naturais
sere m interpretadas de forma variável não exclui a existência de
u m princípio de justiça. 33

Nesta argu mentação contrária à tese de Carnéades, Grotius


faz u ma distinção entre a espécie humana e as de mais espécies
animais e su stenta que a hu manidade possui u m atributo peculiar -
a razão, que faz co m que o ho me m possa ter acesso à sua
condição e, por meio da palavra (co municação), tenha
possibilidade de entrar em entendi me nto co m os outros me mbros
de sua espécie, garantindo, assim, u m acordo que acarreta sua
sobrevivência. O jurista sustenta que a razão per mite que o ho me m
se afaste da busca dos prazeres e não se deixe levar por u m
í mpeto te merário, além de indicar o direito natural. 34 A razão e a
sociabilidade natural dos homens aparece m co mo características
funda mentais no desenvolvimento de sua argu mentação, visto que
é por meio delas que é possível o acesso ao direito natural.

Deste modo, o direito natural pode ser conhecido por meio


da natureza racional humana e sua e xistência estaria co mprovada,
a prior i, pela sociabilidade hu mana. A inclusão das afirmações d e

32
G ROT I US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I, cap. I , X, 6, p. 81.
33
Será v i st o, no próx im o capí t ul o, que no D e Jure Prae dae Comment ar ius,
G rot i us apre sent a d ua s e spéci e s de di rei t o nat ural e que um a del as a dv ém do
acordo d e v ont ades do s h om ens i n seri do s e m um a Repúbl i ca.
34
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerra e da P a z, “Prol eg ôm enos”, par. 9º, pp.
39-40.
24

Carnéades e a refutação a elas for ma m, co mo dito anterior mente,


u ma pre missa para que o holandês exponha os funda men tos de
sua argu mentação sobre o direito natural. Ele utiliza a
sociabilidade humana do estoicismo para superar as críticas de
Carnéades e, assi m, funda mentar o direito natural nesta
sociabilidade; além, é claro, de argu mentar que o ho me m
co mpreende este direito por meio de sua natureza racional.

Ao que tudo indica, nesta parte dos “ Prolegômenos” e m que


o pensamento do cético grego é trazido a tona há a repetição de
u ma discussão latente no pensament o clássico: a oposição entre
nómos e phýsis.

Leo Strauss ressalta que na antiguidade clássica havia uma


distinção entre phýsis (que ele denomina de natureza) e nómos
(que seria, para ele, uma convenção ). Para este co mentador, no
início, existia uma identificação entre aquilo que seria bom co m o
ancestral. Isso teria levado alguns a pensar que o modo recto
havia sido estabelecido pelos deuses, ou melhor, havia u ma
concepção segundo a qual o modo recto teria de ser uma lei
divina. Esta concepção teria feito co m que os primeiros
pensadores identificasse m a lei co m o modo de vida da
co munidade, aceitando a convenção e as regras advindas da
situação apresentada – tendo em vista que elas teriam se
35
originado de entidades hierarquicamente superiores.

Por outro lado, o grupo de pensa dores que a tradição


deno minou de direito natural clássico preferiu identificar o ju sto
co m a natureza. Leo Strauss apo nta que Sócrates, Platão,
Aristóteles, os estoicos e pensadores cristãos – sobretudo Tomá s
de Aquino – formaria m este grupo 36.

Os convencionalistas entendiam que a nómos seria a lei


advinda da ancestralidade. Para eles, a lei apareceria co mo u m
manda mento que recolhe a sua força vinculativa do acordo ou da

35
ST RAUSS, Leo. Direit o N at ural e H ist óri a, p p. 78-83.
36
ST RAUSS, Leo. Direit o N at ural e H ist óri a, p. 105.
25

convenção dos me mbros do grupo. Por outro lado, os pensadores


do direito natural clássico desvinculara m a autoridade do ancestral
ao sustentarem que a natureza fornece não só a matéria, ma s
ta mbé m o modelo de todas as artes – a natureza seria a
verdadeira autoridade. A descoberta da natureza e a distinção
entre natureza e convenção, para Strauss 37, é a condição
necessária para o aparecimento da ideia de direito natural.

Os argu mentos atribuídos a Carnéades se identificam co m


as teses convencionalistas. 38 O principal argument o
convencionalista era no sentido de que não poderia existir direito
natural pelo fato de que aquilo que era tido como justo variava de
u ma sociedade para outra. A argu men tação de Grotius e m prol da
justiça parece o distanciar da clássica distinção entre phýs is e
nómos, haja vista que ele faz uso da concepção de Sêne ca e de
Cícero. Estes apartare m-se da tradição grega de pensar a justiça e
a natureza separada mente.

Segundo Reinholdo, os filósofos estoicos – incluem-se aqui


Sêneca e Cícero (apesar deste último não ser u m estoico, ele
concorda neste ponto com eles) – se apropriaram do termo nómos
(lei), usado pelos sofistas, e ampliara m o seu sentido para uma
confor mação co m o vocábulo thésis (algo dado). No estoicismo,
nómos equiparava-se à lei universal, incluindo tanto as leis da

37
ST RAUSS, Leo. Direit o N at ural e H ist óri a, p. 80.
38
“O conve ncio nal ismo r eje it a o d ireit o nat u r al p elas seg ui nt es ra zõ es: 1) a
just iça est á i nev it avelm ent e em t ensã o com o desej o nat ur al de ca da um, qu e
se dirig e unic ament e p ara o bem própr io; 2) na medida em qu e a just iça t em
um f und ament o nat ur al – em t ermos ger ais , na me did a em qu e é be néf ic a
para o ind iví du o – as su as ex igê ncias limit a m-se aos membr os da c ida de, ist o
é, de uma un ida de conv enci ona l; a qui lo a que se cham a ‘dir eit o nat ur al ’
consist e num co nju nt o de re gras rud iment ar es de conve niê ncia soc ia l que s ó
são vál idas p ara os membros d e um grup o part icu lar e qu e, além d isso, nã o
são un iversa lment e vá li das nem mesm o para as relaçõ es no i nt eri or do gr upo ;
3) o que se ent e nde g eralm ent e por ‘ dir ei t o’ ou ‘j ust iça ’ não det ermin a o
sign if icad o exact o de ‘aj udar ’ ou de ‘caus a r dano’ o u do ‘ bem comum’; só
at ravés de uma esp ecif ic ação é q ue est es t e rmos adqu irem um sent id o ple no,
e t oda a esp ecif icaç ão é co nvenc ion al. A diversi dad e das conc epçõ es de
just iça co nf irma ma is do qu e demost r a o carát er conv enci ona l da j ust iça. ”
(Ib id. , p. 93-94).
26

natureza das coisas – fundamento da ciência –, quanto à lei


moral 39.

A este nómos, os estoicos acrescenta m a phýsis que, alé m


de poder ser traduzido como “natureza ”, refere-se à realidade. Não
a uma realidade pronta e acabada, ma s aquela que se encontra em
movi mento e e m transfor mação, a qu e nasce e se desenvolve, o
fundo eterno, perene, imortal e imper ecível de onde tudo brota e
para onde tudo retorna. Neste últi mo sentido, a palavra significa
origem, manifestação 40.

A consciência de cada ho me m participa do logos universal e


este e xpressa u ma lei válida para todos. Uma lei que é originária e
ate mporal, independente de qualquer pacto elaborado pelos
ho mens. Constituindo uma thé s is, ela não está sujeita à
mutabilidade histórica e não é afetada pela contingência do temp o
e do espaço. Grotius parece concordar co m este entendi mento ao
provar a existência do direito natural no capítulo primeiro do Livro I
do Dire ito da Guerra 41.

Nota-se esta identificação entre o nómos e a phýsis no Da s


Leis de Cícero. Nesta obra, o ro mano defende a existência de uma
lei vinculada à razão da natureza das coisas 42. Esta lei indicaria o
justo e o verdadeiro, e não seria u m produto da inteligência
hu mana, mas teria se originado da mente divina – de Júpiter. 43
Alé m disso, referida lei seria anterior à for mação dos Estados. 44

39
ULLMANN, Rei nhol d o Al oysi o. O Est oicismo Romano, p. 42.
40
SPI NELLI , Mi guel . Q uest ões F undame nt ais da F ilos of ia G rega, p. 3 6-37.
41
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , XI I , p. 86.
42
“Exist ia, pois um a ra zã o deriv ada da n at ure za das cois as, inc it and o ao b em
e af ast and o do mal, q ue par a che gar a ser Lei nã o necess it ou ser r edi gid a,
pois que já o er a des de s ua orig em. E sua o rigem é t ão ant ig a com o a me nt e
divi na. Por isso a le i verda de ira e ess encia l, a que man da e proí b e
leg it imament e, é a ra zã o just a d o gra nde J ú pit er. ” (CÍ CERO , Marco T úl i o. Das
Leis, l iv ro I I , p. 65. ).
43
“(. . . ) a le i n ão é o pro dut o da int e li gênc ia h umana, nem da v ont ad e p opu lar,
mas alg o et ern o qu e reg e o u nive rso p or meio d e sáb ios ma ndat os e sáb ia s
proib içõ es. ” (CÍ CE RO , Marco T úlio. Das L eis , liv ro I I , p. 64).
44
“Sem dúvi da, p ara d ef in ir D ireit o noss o po nt o de part i da ser á a le i supr em a
que pert e nce a t o dos os s écul os e j á er a v ig ent e qua ndo nã o h avi a l ei escrit a
nem Est ado const it uí do. ” (CÍ CERO , Marco T úl i o. Das Leis, liv ro I , p. 41).
27

Co mo vere mos no pró xi mo capítulo, o jurista sustenta, n o


Dire ito da Guerra, que o jus estaria identificado com a le x. É a
partir deste sentido de direito vinculado à lei que ele define seu
direito natural, que possui as mesmas características da lei natural
de Cícero. 45

Na antiguidade clássica, tanto os con vencionalistas quanto


naturalistas reconheciam que não pod eria existir direito natural se
os princípios deste direito não fosse m imutá veis. A variação sobre
o conteúdo do direito natural de uma localidade para outra não
prova que o direito natural não exista, mas apenas que a
percepção do conteúdo deste direito é diferente. Para existir, o
direito natural necessita somente que todos os homens que goza m
de pleno juízo reconheça m a e xistência de tais princípios, não que
estes princípios tenham conteúdo idêntico.

Em su ma, no estoicismo, a phýsis p ode estar vinculada à


nómos e ser algo dado (thésis). O nómos physikós, a le x naturalis,
(lei natural) indica o que é benéfico e o que é maléfico, assi m
co mo o que é virtuoso e vicioso.

Sêneca e Cícero faze m parte de u m grupo de pensadores


que explicitaram que as leis da phýsis (natureza) deveria m
funda mentar as leis dos homens (nó mos). Para tal, eles tinham
co mo funda mento teórico o uso da razão. A natureza possuiria leis
imanentes que o s ho men s deveria m seguir, usando a razão recta
(sensata).

Pode-se concluir que Grotius reproduz os argu mentos do


cético grego para, em pri meiro lugar, introduzir concepções que o
aproxi ma m de Sêneca e Cícero, e, fazendo uso dessas
concepções, provar a existência do direito natural. É desses dois
filósofos que o jurista retira os princípios básicos do seu direito
natural. Este está fundamentado na convicção de que todos os
ho mens tê m u m a mor próprio que os leva a buscar a sua

45
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, capí t ul o I, X, p. 81.
28

preservação, mas há, ta mbé m, certo grau de parentesco entre os


ho mens que faz co m que e xista na h u manidade u ma necessidade
de vida e m sociedade. Esta condição seria reconhecível graças à
presença de u m atributo que apenas o s seres hu manos possue m: a
razão.

1.2 A “hipótese impiíssima” e o direito natural

A for mulação contida no paragrafo 1 1 dos “Prolegô menos”


do Dire ito da Guerra, deno minada “hipótese impiíssi ma” ou
“hipótese etiamsi daremus” parece afastar o autor do estoicismo
ro mano e da tradição medieval, que não viam a possibilidade de
não existir u m ser superior que teria sido responsável pela criação
tanto do home m quanto da natureza. Em sua concepção de lei
natural, Cícero vincula esta lei à natureza, que foi criada por
Júpiter. Por seu turno, os teóricos cristãos contemporâneos a
Grotius estabeleciam u m elo entre o direito natural e o direito
divino, estes direitos, segundo estes teóricos, teriam sido criados
por Deus.

Na cha mada “hipótese impiíssi ma” o jurista sustenta a


possibilidade de acesso ao conteúdo da lei natural
46
independentemente da e xistência de Deus . Pode m-se tirar dua s
conclusões da afirmação do jurista segundo a qual o argumento
apresentado por ele “teria lugar de certo modo” mesmo se Deus
não existisse ou não interferisse nos atos hu manos.

A pri meira conclusão seria a negação da necessidade de se


provar a existência de Deus e a sua intervenção na vida. Em

46
No t ex t o ori gi nal a hi pót ese é a ssi m f orm ulada: “Et haec quid em, quae i am
diximus, l ocum h aber ent et iams i dar emus, quod s ine summ o scel ere d ari
nequ it , non esse De um, aut non curar i ab e o negot i a huma na ” (di sponí v el em
ht t p: / / gal li ca. bnf .f r/ ark: / 12148/ btv 1b8606 957 9/ f 22. im age. r= grot i us%20d e%20j u
re%20 bel l i %20ac%20 paci s. l an gEN).
29

contrapartida, há outra possibilidade de interpretação. Pode-se,


ta mbé m, concluir que com a “hipótese impiíssi ma”, Grotius
pretendia negar a importância do ato criativo de Deus no que diz
respeito ao direito natural.

Ao negar que as provas do direito natural dependem d e


Deus para sua validade, seria possível pensar que Grotius busca
um funda mento fora do teocentr ismo para alicerçar seu
naturalismo. Contudo, ele não diz, neste parágrafo, qual é este
funda mento. Poré m, no parágrafo seguinte (parágrafo 12), o autor
escreve que a lei de natureza procede de princípios inerentes ao
ser hu mano 47, pode-se, assim, inferir que a lei pode ter apenas a
natureza hu mana co mo fonte.

Grotius afirma que o que ele havia dito teria lugar mesmo se
Deus não e xistisse ou que os negócios hu manos não fosse m ob jet o
de seus cuidados, mas ele alerta, e m seguida, que se deve
obedecer a Deus, que te m Sua e xistência confirmada “e m parte por
nossa razão” e de outra parte por “nu merosas provas e milagres
atestados através dos séculos”. Deste modo, ele não está negando
a existência de Deus ou a possibilidade de Ele intervir na criação,
mas pretende separar o direito natural de um funda mento
teocêntrico.

A maioria dos co mentadores ente nde que a hipótese


grociana não é original. Ao buscar os antecedentes da “hipótese
etiamsi daremus” de Grotius, Javier Hervada afirma que não
encontrou nenhu m precedente par ecido na tradição jurídica
anterior ao jurista holandês. Segundo este co mentador, a origem
da hipótese está vinculada à tradição teológica e filosófica 48.

Ressalte-se que alguns autores 49 sustenta m que Grotius


teria se inspirado em Marco Aurélio, que nas Meditações (livros II,

47
No t ex t o ori gi nal: “ex princip iis hom ini int ern is prof lu it ”.
48
HERVADA, Jav i er. “T he O l d and t he N e w i n t he Hypot h e si s “Et i am si
darem us”, G rot ia na, p. 10.
49
VI LLEY, Mi chel. A F ormação do Pe nsament o Jurí dico Mod erno, p. 64 8.
30

11 50, e VI, 44 51) teria escrito algo parecido com a hipóte se


impiíssi ma. Contudo, respeitado este entendimento, não parece
que esses dois trechos tenha m ser vido de pressuposto para a
for mulação de Grotius. Marco Aurélio, nas passagens
mencionadas, não está tratando do direito natural, tampouco d e
seu fundamento, mas da atitude que os homens deve m ter e m
relação à vida – o estoico está preocupado co m o modo de viver
filosoficamente (no sentido clássico de um conheci mento prático
ou sabedoria de comporta mento de algué m).

Esta diferença de intenções entre Grotius e Marco Aurélio


faz co m que Hervada entenda que o precedente da hipótese do
parágrafo 11 pode ser encontrado e m autores da escolástica tardia
dos séculos XIV e XV e nos autores mais i mportantes da segunda
escolástica espanhola 52.

Alé m de Hervada, outros comentado res entendem que a


mesma argu mentação da “hipótese impiíssi ma” foi utilizada por
autores espanhóis. Jerome Schnee wind afirma que Suárez estaria
entre os precursores da formulação grociana. 53 Este co mentad o r
sustenta que a principal proposição de Suárez residiria na relação
entre intelecto e vontade na constituição da lei. Para o espanhol, a
lei serviria para guiar a ação e, por isso, deve ter uma função
‘de monstrativa’, que indica, para os seres racionais, o que é bom e
o que é mau. Igual mente, para Suá rez, a lei teria uma função
‘preceptiva’ na medida em que ela não apenas esclarece, mas
proporciona uma força motriz. Nos processos intelectuais, a
principal faculdade a mover a ação seria a vontade. Por isso, para

50
“Se os deuses exist em, nad a há de t emer o so em part ir dent re os h omens;
eles nã o t e haver iam de pr ecip it ar num a de sgraça; mas se el es não ex ist em
ou não se imp ort am com os assunt os huma nos, que me int eress a viver nu m
mundo v a zio de deus es o u va zi o d e p rovidê nci a? ” (AU RÉLI O , Marco.
Medit açõ es, p. 278).
51
“Se, por ém, el es (o s de u se s) não de lib eraram s obre na da – o que é
impie dad e adm it ir (. . . ) – se, po is, el es nã o d eli berar am sobr e na da d o qu e no s
concern e, e nt ão posso d ecid ir s obre mim p rópri o, cab e a mim exami nar os
meus int eress es ” (AURÉLI O , Marco. Medit aç ões, p. 297).
52
HERVADA, op. cit . , p. 14.
53
SCHNEEW I ND, Jerom e B. A invençã o d a aut o nomi a: uma hist ór ia d a
f ilosof i a moral mo dern a, p. 95.
31

Suárez, qualquer legislador, humano ou divino, necessita fazer uso


do intelecto e da vontade para formula r u ma lei 54.

A se melhança entre Grotius e Suárez ta mbé m é apontad a


por Haggen macher 55, que vê gran de se melhança entre a
argu mentação dos dois. Entret anto, este co mentador,
diferentemente de Hervada, não vê n ovidade alguma na hipótese
de Grotius e afirma que o argu ment o de Grotius que sustenta a
existência e o conhecimento do direito natural, independentemente
de Deus, seria um lugar co mu m na e scolástica tardia 56.

Entretanto, a hipótese de Grotius diferencia-se da


argu mentação escolástica devido ao fato de o autor não
estabelecer nenhuma relação de causalidade – de analogia e
participação – entre a natureza divina e a natureza humana, entre
a razão de Deus e a dos ho men s 57. É ve rdade que, no parágrafo 1 2
dos “Prolegômenos”, há u ma ligação entre o direito natural e Deus,
que teria originado este direito. Poré m, este vín culo está
funda mentado apenas na livre vontade de Deus. Este seria o ponto
chave a diferenciar o jurista holandês dos escolásticos e que faria
Grotius afastar a importância do direito divino e da vontade de
54
SCHNEEW I ND, Jerom e B. A invenção d a aut onom ia: uma h ist óri a da
f ilosof i a moral mod erna, p. 87. Est e pe squi sa dor arg um ent a que no pri m ei ro
capí t ul o do Dir eit o d a G uerra e d a Pa z a pri m ei ra pal av ra ut il i zada é
cont rov érsi a (cont rovers iae) e o j uri st a e st ari a di spo st o a di scut i r
cont rov érsi as, f at os da v i da que a t ornam m ai s dif í cil . Um a das f orm as m ai s
ex t rem as de cont rov érsi a é a guerr a, por i sso nece ssári a a su a anál i se. Par a
est e com ent ador, a i dei a ce nt ral de G rot i us con si st e n o f at o de o di rei t o
nat ural f ornecer di ret ri zes qu e perm i t em resolv er est a s cont rov érsi as. A
ori gi nal i dade de G rot i us, p ara el e, e st ari a n a f orm a de con st rui r o probl em a
da l ei e do di rei t o nat ural : o j uri st a n ão p art i ri a da noç ão segu ndo a qual
Deu s, a o adm i ni st rar o univ erso, gara nt e q u e a ob edi ênci a a o di rei t o nat ural
cont ri bui para o n o sso pr ópri o b em , t am pouco su st ent a qu e a l ei nat ur al no s
l ev a ao ap erf ei çoam ent o da n o ssa nat ur eza. G rot i us pa rece e st ar m ai s
preocu pad o em apre sent ar um a sol uçã o par a conf l it os h um anos e g arant i r a s
condi çõe s m í nim as de so brev iv ênci a para a hum ani dade ( Idem. O p. cit . , pp.
99-10 0).
55
HAG G ENMACHER, Pet er. G rot ius et l a doc t rine d e la gu erre just e, p. 5 17-
523.
56
Bri an Ti erney concord a com Pet er Haggen m acher e acresce nt a que G rot i u s
“era erud it o o suf ic ient e p ara cit ar f ont es cl á ssicas, mas o est oicismo q ue e le
desenv olve u t er ia rece bid o um a impres são me diev al de ju rist as qu e
enxert avam no est o icismo su as pró prias d out rin as de d ireit os subj et ivos. ”
(T I ERNEY, Bri an. T he Id ea of Nat ura l R ig ht s: St udies on N at ura l Ri ght s,
Nat ural Law , and Churc h Law , 1150- 162 5, p. 320).
57
HERVADA, op. cit . , p. 18-19.
32

Deus do acesso ao conteúdo do direito natural. Além disso,


ausente a relação de causalidade entre a natureza divina e a
natureza hu mana, bas tando esta para se perceber a e xistência do
direito natural, Grotius pode afirmar que este direito é tão imutável
que não pode ser mudado ne m por De us. 58

A “hipótese si Deu s non esset vel nih im praeciperet”,


ta mbé m aparece e m Vitória, Soto, Molina, Medina e Suárez, mas
nestes autores ela é vista co mo sendo impo ssível, pois eles não
colocam e m dúvida a existência de Deus. Alé m disso, na época
destes autores havia forte influência da analogia ent is, que era
utilizada para explicar a relação de dependência ontológica entre
seres criados (humanidade, natureza criada) em relação ao Criador
(Deus).

Partindo desta analogia, os teóricos anteriores a Grotius


entendiam que o direito natural seria essencialmente u ma
inferência e sua e xistência não seria total mente inteligível se ele
não fosse co mpreendido à luz do Ser que o cria. O fato de Deus
ter criado toda a natureza faria, então, co m que ela estivesse
funda mentada apenas Nele. Na medida em que o direito é fruto da
natureza criada por Deus, haveria uma relação de causalidade
entre a natureza divina e o direito natural, que, portanto, depende
da participação de Deus para existir. Deste modo, Deus seria a
única fonte do direito natural.

Contudo, no men cionado parágrafo 12 dos “Prolegô menos”,


Grotius sustenta que o direito natural tem duas fontes. O direito
e mana da livre vontade de Deus 59, mas ta mbé m e mana da natureza
hu mana, afinal seus princípios são inerentes aos seres hu manos.
Referidos princípios são imputados a Deus, que dispôs livremente
para que tais princípios existissem e m nós.

58
G RO TI US, Hugo. Direit o da G uerra e d a Pa z, liv ro I , capí t ul o I , X, p. 81.
59
“Essa já é o ut ra f ont e do dire it o, a lém d aq uela qu e ema na d a n at ure za, a
saber, aqu el a que prov ém da livr e vont ad e de Deus. ” (G RO T I US, Hugo. O
Direit o da G uerra e da Pa z, “Prol egôm eno s”, par. 12, p. 41).
33

A refor ma protestante certa mente influenciou Grotius nesta


for mulação, na medida e m que o protestantismo re jeitou a analogia
entis e, consequente mente, a necessidade de compreensão de
Deus e de Sua natureza para to marmos ciência do conteúdo do
direito natural. Ao que parece, Grotius aceitava que Deus
desejava, quando criou livremente o home m, que a natureza
hu mana fluísse de princípios naturais, mas esses princípios não
aparece m co mo u m refle xo da razão d e Deus ou de Sua natureza.

Deste modo, diferentemente dos seus predecessores,


Grotius entendia que a hipótese impiíssi ma acarreta u ma
concepção de direito natural segundo a qual este direito e seus
funda mentos são co mpleta mente inteligíveis e m si mesmos, se m a
necessidade ontológica de referência a Deus. Assi m, o direito
natural ser ou não um manda mento d e Deus transfor ma-se e m u m
fato e deixa de ser u ma questão ontoló gica.

É interessante o fato de Grotius recorrer, no livro I, capítulo


I, do Dire ito da Guerra, a um trecho da carta de São Paulo aos
Ro manos (Ro manos II , 14) muito utilizado por autores medievais. 60
Autores da patrística e da escolástica encontrara m u m ne xo entre
o paganismo – principalmente de Aristóteles e dos estoicos – e o
cristianismo no que diz respeito ao ju s naturale e, especialmente ,
a lex naturae, neste trecho da carta de São Paulo.

Apesar de a “hipótese impiíssi ma” afastar a análise do


direito natural da discussão teológica e, ta mbé m, limitar a
importância do ato criativo divino, precisa-se ter em conta o fat o
de esta hipótese ser u m dos argu ment os de Grotius para co mbater
a tese de Carnéades. Nes ta argu ment ação o jurista apresenta duas
fontes do direito natural, Deus e a natureza racional humana.
Enquanto Cícero e os estoicos apresentava m u m vínculo entre a
natureza (phýsis) e a mente divina, haja vista que a realidade
natural, que fundamenta a lei supre ma, teria sido criada por
Júpiter. Na obra do nosso autor, a vinculação entre a lei e a
60
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , XVI , p. 92-93.
34

natureza permanece, mas a “hipótese etiams i daremos” afasta a


ligação entre a natureza e o ato criativo divino, na medida em qu e
se pode duvidar da existência de Deus.

Em que pese Grotius apartar a discussão política da


teologia, ele era um cristão convicto. O fato de, na época do
holandês, existir uma interpretação que cristianiza as concepções
de Sêneca e Cícero, para defender que nestes autores haveria
u ma concepção de deus único que ter ia ordenado toda a natureza
pode ter levado o jurista holandês a fazer uso da obra dos
referidos filósofos. Esta interpretação per mite que Grotius continue
a utilizar o direito divino presente na tradição to mista, ma s se m
que ele seja hierarquicamente sup erior ao direito natural. O
disposto no Livro I, capítulo I, X 61, nos leva a crer que o jurist a
parece concordar com a concepção do estoicismo ro mano segundo
a qual haveria uma orde m racional para o universo, e o modo co mo
os seres racionais vivem e m confor mi dade com esta orde m seria o
direito natural.

Ao invés de utilizarem a e xplicação pagã, fundada na


existência de muitos deuses que atuariam para influenciar os
eventos e aconteci mentos hu manos, tanto Sêneca quanto Cí cero
parte m da perspectiva segundo a qual há u ma substância racional
de absoluta abrangência e que impreg na a todos os fenô menos do
universo. Para alguns deles, a palavra “Júpiter” 62 era usada para
deter minar u ma for ma unificada de razão, u ma espécie de razão

61
Nest a part e, ap ó s def i ni r o di reit o nat ural , G rot i us su st ent a a i m ut abi li dade
de st e di rei t o e argum ent a que nem m esm o o própri o Deu s pod eri a m udar se u
cont eúd o. El e (D eu s) “(. . . ) não po der ia f a zer com que d ois m ais do is n ã o
f ossem quat ro, de i gua l modo e le nã o p ode imp edir q ue a qui lo qu e é
essenci alme nt e mau não s ej a mau. ” (G RO T I US, Hugo. O Dir eit o da G uerr a e
da Pa z, Liv ro I , capí t ul o 1, X, p. 81).
62
Nos “Prol egôm eno s” d o Dire it o da G uerra e da Pa z, G rot i us af i rm a que
“Crisi po e os est óicos d i zi am que a ori g em do dir eit o n ão d everi a ser
procura da em p art e al guma a não ser no pró prio Jú pit er ” (p ar. 12, p. 41). N o
De Jur e Prae dae Comme nt ari us (cap. I I , p. 2 0), el e j á t i nha ci t ado Cí cero, q u e
t eri a di t o, no Ph il ipp ics, XI , x i i, 28, que o pró pri o Júpi t er sa nci onou o seg ui nt e
precei t o ou l ei : que t oda s a s coi sa s sal ut ares p ara a re públ i ca dev em ser
t i das com o l egí t im as e j u st a s. Vem os que el e ret i ra do s e st oi co s a noç ão d e
que Júpi t er ord ena a v i da pol í t i ca, adv i ndo del e a noção d e razão e d e
soci abi l i dade nat ural .
35

divina que controlaria e ordenaria a estrutura da natureza,


deter minando assim o curso dos event os do mundo.

Toda a realidade natural seria administrada por esta razão


divina. Além disso, desta estruturação transcendente adviriam as
leis naturais que são a base para os valores morais e u ma vida e m
har monia co m a natureza. Phillip Mitsis 63 vai além e e xplica que n o
estoicismo, as leis naturais que expressa m a vontade divina não
são apenas ju stificativas externalistas.

Segundo os estoicos, quando os ho mens co meça m a viver


de acordo co m princípios morais universais, suas mente s e,
consequente mente, suas disposições virtuosas internas, passam a
refletir e assumir a própria estrutura destes princípios. Na medida
e m que se é partícipe da razão universal, seria enganoso pensar
que qualquer expressão da lei divina poderia ser vista como algo
pura mente e xterno. Ta mbé m é e quivocado pensar que as
expressões das disposições virtuosas são puramente internas. Os
estoicos pensa m que o mundo é g overnado por u m legislador
divino moral cuja vontade é expressa e m leis naturais morais que,
de u m modo penetrante, estrutura m as vidas morais.

Co mo já mencionado, Grotius sustenta que o direito, alé m


de se originar da natureza, procede da livre vontade de Deus,
segundo a qual, apesar de todas a s objeções, a razão diz que se
deve render obediência. Grotius observa, e m u ma nota a este
parágrafo, que o termo direito (ius) teria derivado de Júpiter. De
jussum se chegou a jus, jus is e dep ois juris. Infor mação que ele
retirou de Cícero, citado na mesma no ta. No me smo sentido é o De
Jure Praedae, no qual Grotius afirma, no capítulo II:

Parece, d e f at o, que o própri o t erm o iu s [ di rei t o] é


deriv ado de I ovis [ Jú pi t er] , e q ue o m esm o proce sso d e
deriv ação é v ál i do para iurare [ j urar] iusiur andum [ f azer
j uram ent o] ou Iovis iur and um [ um j uram ent o em nom e de

63
MI T SI S, Phi ll i p. “T he St oi c O ri gi n of Nat ural Ri ght s”, T opics in St oi c
Philos ophy, p. 15 3-17 7.
36

Júpi t er] . Alt ernat iv am ent e, pode-se ex pl i car o


de senv olv im ent o desse s t erm os p el o f at o de que o s
ant i gos ut i l i zav am o t erm o iusa – i st o é, i ussa [ coi sa s
com andada s] – para se ref eri rem aos prec ei t o s
de si gnad o s com o iur a [ di rei t o] . Em t odo caso, o at o d e
com andar é um a f unção d o p oder, e o po der pri m ári o
so bre t oda s a s coi sa s pert ence a De u s, no se nt i do d e
que o po der sobre sua s pró pri as obr a s pert ence a o
art í f i ce e o pod er so bre o s i nf eri ores é d e seu s
64
su peri ore s .

A razão encontra-se no ho me m que tr az a “centelha divina”


e m si. Por meio se sua natureza racional, o ser humano participa
da estrutura racional submetida à força de toda a realidade.
Mediante a utilização da razão, o ho me m co mpreende a verdadeira
orde m das coisas do mundo e o seu lugar nesta ordem; é neste ato
que ele, home m, se dá conta de que tudo obedece às leis da
existência. Portanto, o ho me m deve a ssociar seu comporta mento à
orde m do direito da natureza.

Grotius, em nenhu m mo mento, ro mpe co m a e xistência de


Deus e, se mpre que possí vel, utiliza argu mentos de autoridades
cristãs e trechos das escrituras 65. O intento dele é dar u m
funda mento seguro ao direito natural, funda mento este capaz de
tornar o direito obrigatório a todos os ho mens, onde quer que eles
esteja m. Ele pretendia, por meio de direitos que existiriam antes
mes mo da criação da sociedade política e que são acessíveis por
meio da razão, trazer condições que pusesse m fi m aos conflitos
político-religiosos que devastava m a Europa naquela época.

A sua fa mosa “hipótese impiíssi ma” de modo algu m


questiona a existência de Deus; e os princípios da lei natural ainda
decorrem Dele. O que Grotius pretende fazer é uma separação
entre direito e teologia, sustentando que ne m Deus pode i mpedir

64
G RO TI US, Hugo. De Jure Praedae Comme nt arius, Cap. I I , p. 8, t raduçã o
mi nha.
65
No pri m ei ro capí t ul o do Liv ro I do D ireit o d a G uerra e da P a z, ap ó s pr ov ar a
ex i st ênci a do di rei t o nat ur al , G rot i us t raz u m ex em pl o do Deut er onôm io e d o
Salmos p ara su st ent ar que o s e st ra ngei ro s n unca f oram subm et i dos ao di rei t o
do s he breu s. T am bém ao t rat ar da guerr a, e l e usa arg um ent os da s E scri t ura s
para m ost rar q ue o em prego d a f orça é com pat ív el com a f é cri st ã.
37

que o que é essencialmente mau n ão se ja mau ne m que a lei


natural exista.

A natureza hu mana, e m Grotius, é suficiente por si só para


garantir a existência da lei natural. Uma vez que Grotius pretende
obter um siste ma nor mativo de ordens e proibições - um siste ma
co m conteúdo suficiente para orientar as deliberações morais - da
natureza hu mana, deve advir sem ne nhu ma surpresa que Grotius
dote este siste ma co m certo nú mero d e propriedades. Algumas das
suas propriedades são devidas ao fato de o ser humano ser u m
animal que tende para a vida em co munidade. Grotius não afirma
quais propriedades são estas, mas po de-se especular, no entanto,
que elas estariam vinculadas às faculdades de percepção e ao
modo de agir dos seres hu manos. 66

Estas propriedades, segundo o jurista, diferenciam os sere s


hu manos dos animais e per mite m qu e se tome conheci mento da
orde m natural e, consequente mente , retire-se direitos naturais
desta orde m. Contudo, apesar de po ssuir uma natureza distinta
dos animais, a humanidade te m e m co mu m co m os outros seres
vivos o dever de se conservar no estado e m que a natureza lhe
colocou. Assim, Grotius parece ter uma concepção segundo a qual
algumas características hu manas se deve m si mplesmente ao fato
de o ho me m ser u m ani mal. Este entendimento apro xi maria
Grotius, novamente, de u ma concepção de Sêneca, segundo a qual
muitas características da natureza dos ho mens se deve m ao fato
de os seres hu manos sere m ani mais.

Cu mpre salientar que a partir da leitura do Dire ito da Guerra


e da Pa z, pode-se interpretar que e m Grotius há u ma relativa
dualidade dos seres hu manos. De u m lado, nota-se u m aspect o

66
Já f oi sal i ent ad o q ue, no pará graf o 6º do s “Pr ol egôm eno s” do Dir eit o d a
G uerra, o a ut or ar gum ent a qu e o hom em possui um a nat ureza supe ri or ao s
ani m ai s e f undam ent a est a af i rm ação no f at o de ex i st i r na hum ani dade um a
nece ssi dad e de v i da em um a soci edad e pací f i ca e organi zada d e acord o com
a su a i nt el i gênci a. Est a soci a bi l i dade nat ur al , segu ndo o j uri st a, hav i a si do
denom i nada pel o s e st oi co s d e “e st ad o dom ést i co”. Veri f i ca-se qu e ape sar d e
a soci abi l i dade hum ana ser um l ugar com um , o j uri st a ut i li za a concepção
est oi ca d e soci abi l i dade nat ural .
38

pura mente corporal, biológico, que aproxi ma os hu manos dos


animais e os faz seguir as necessidades instintivas (permitindo,
inclusive, buscar o que é necessário para a sobrevivência). Por
outro lado, nos parágrafos 6º, 7º e 9º dos “Prolegômenos”, Grotius
diferencia os homen s dos an imais considerando três
características que só existiriam nos ho mens: (1) necessidade de
vida em u ma co munidade politicament e organizada; (2) capacidade
de co municação por meio do uso da l inguagem 67; (3) presença d a
razão – “faculdade de conhecer e agir” 68 so mada ao “(...) juízo qu e
lhe permite apreciar as coisas, presentes e futuras, capazes de
agradar ou de ser prejudiciais e també m aquelas coisas que pode m
levar a isso” 69. So ma-se a isto o fato de ser conveniente à natureza
do ho me m “(...) não se deixar ven cer pelo temor ne m pelas
seduções dos prazeres presentes (...)” 70.

Estas características do home m e a diferença que existe


entre a hu manidade e os outros animais já havia m sido
sustentadas pelos estoicos. Grotius, no mencionado parágrafo 7º
do “Prolegômenos”, cita um longo trecho do De Beneficiis (livro IV,
cap. XVIII) de Sêneca, no qual se sob ressai a afirmação de que a
natureza deu ao ho me m a razão e a vida social, que fizeram co m
que ele deixasse de ser fraco para se tornar o mais forte de todos
os seres.

Tanto para os estoicos ro manos co mo para Grotius, o que


diferencia o ser humano do s outros a nimais seria o fato de existir,
nos ho mens, a capacidade de prever e prover as suas próprias
necessidades (os seres humanos, por meio da razão, pode m

67
A capaci dade d e com uni cação do s sere s hu m anos par ece e st ar i nt i m am ent e
l i gada ao u so da s no ssa s f acul dade s raci on ai s, m as dei x a-se de i ncl uí -l a em
conj unt o c om a razão pel o f at o de G rot i us a s t er sep ara do e n ão t e r
apre se nt and o nen hum argum ent o para e st a e scol h a. Al ém di sso, j unt a- se
dua s car act erí st i cas q ue G rot i u s sep ara, m as que parec em ser si m il ares: a
f acul dade de c onh ecer e a gi r, e o j uí zo que no s perm i t e apreci ar a s c oi sa s.
Am bas di zem respei t o à no ssa ca paci dad e i n t el ect iv a adv i nda da pr e senç a d a
razão.
68
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, “Prol eg ôm eno s”, par. 7º, p .
39.
69
Ibi d. , par. 9º, p. 39 e 40.
70
Ibi d. , p. 40.
39

avaliar seus atos e escolher qual atitude tomar), enquanto nos


outros animais a escolha é instintiva (o sentimento que eles têm
coincide com u ma total adesão à situação presente). Esta
diferença fica clara em Sêneca quand o ele afirma que o home m e
Deus, por sere m racionais, possue m naturezas idênticas, apenas
diferindo entre si por um ser mortal e o outro imortal, o restante
dos seres não estariam no mesmo grau de perfeição porque seria m
desprovidos de razão. 71

Na mencionada passage m do De F in ibus de Cícero usada


por Grotius há uma concepção de be m que se origina de uma
co mparação racional 72. O ho me m cheg a à noção de be m quand o
confronta racionalmente os ob jetos que estão de acordo com a
natureza. É na própria essência racional que se tem consciência
do be m e que assi m o defini mos.

Alé m desta duplicidade (corpo e capacidade racional) da


natureza hu mana, ta mbé m pode ser tido como ponto e m co mu m
entre Grotius e Sêneca a afir mação de que os ho mens tê m a
necessidade de seguir a natureza – lembrar-se-á da proposição de
Grotius segundo a qual é um dever se conservar no estado e m que
a natureza colocou o ser hu mano. Não obstante, o jurista não
aborda diretamente o estado em qu e a natureza colocou o ser
hu mano no Dire ito da Guerra 73, ele apenas argu menta que a
condição dos homens na natureza é de fraqueza e, em virtude
disso, necessitados da vida e m coletividade. Para que esta vida
e m coletividade possa ocorrer, mister que exista m deveres e
obrigações recíprocas entre os homens – advindos do direito
natural.

Uma vez que estes deveres e obrigações tê m orige m no


direito natural, para que a humanidade possa viver adequadamente

71
SÊNECA, Lúci o Aneu. Cart as a Lucí l io, 12 4, 14, p. 701.
72
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, capí t ul o II , p. 99.
73
G rot i us t rat a d o e st a do de n at urez a e do surgi m ent o da soci ed ade ci v i l no
se gun do capí t ul o do D e Jure Prae dae. V erem os e st e po nt o no se gun do
capí t ul o.
40

e m u ma so ciedade politicamente org anizada de acordo com os


dados de sua inteligência, faz-se necessário que os homens
tenha m conheci mento dos preceitos e stabelecidos pela natureza e
que for ma m o direito natural. Neste sentido, Grotius, ao definir o
direito natural, afirmou que este direito nos é ditado pela reta
razão – que levaria a conhecer que uma ação (e m confor midade ou
não co m a natureza), afetada por defor midade moral ou por
necessidade moral, foi proibida ou ordenada por Deus (o próprio
autor da natureza). 74

Esta definição de direito natural está vinculada a uma açã o


que seria ou não afetada pela defor midade moral ou necessidade
moral. Entretanto, não fica clara a utilização de aspectos morais
por Grotius no Dire ito da Guerra e no De Jure Praedae. O
desenvolvimento anterior do texto, e até mesmo o uso de
ter minologia idêntica a utilizada pelos citados pensadores
clássicos, indica a necessidade de u ma análise, me smo que
sintética, de como a razão, o honestu m e a natureza se identificam
e m Sêne ca, para co mpreender o ponto de partida grociano. Tudo
leva a crer que o jurista holandês teve esta identificação de termos
co mo pressuposto quando usou os termo s moral e honesto
(honesta) 75, adequando-os à reta razão, para qualificar o direito
natural.

Nas Cartas a Lucílio, Sêneca repete inú meras vezes que se


deve “seguir a natureza” (sequ i na turam). A natureza a ser
seguida não diz respeito so mente às causas e xternas (condições
favoráveis e adversas de espaço, te mpo e lugar, por e xe mplo),
mas ta mbé m está intima mente ligada à natureza do ho me m. Aqui é
importante salientar que de acordo co m a perspectiva de Grotius e
de Sêneca, os seres humanos possue m u ma dupla natureza,
manifestada pelo fato de possuírem um corpo animal e sere m
portadores de faculdades racionais. Deste modo, a natureza do

74
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, Li v ro I , cap. I , X, p. 79.
75
Ibi d. , l iv ro I , cap. I , X, pp. 79 e 80, e l iv ro I , cap. I I , I , p. 99.
41

ho me m pos sui um aspecto ligado ao corpo e outro ligado à


capacidade racional.

Tal fato nos levaria a interpretar a expressão “seguir a


natureza” de dois modos. Em u m primeiro mo mento, Sêneca
levaria e m conta o aspecto mera mente biológico do home m e que o
aproxi ma da s outras e spécies anima is. Neste sentido, “seguir a
natureza” significaria obedecer aos instintos que nos incitam a
satisfazer nossas necessidades naturais (comer, beber, etc.) – o
instinto de preservação do home m estaria vinculado a este último
sentido da expressão. 76 Por outro lado, quando o estoico romano, a
partir de dados naturais, procura saber qual é o “be m” específico
do ser humano, chega à conclusão de que a razão é algo exclusivo
do home m. Consequente mente, seguir a natureza, para os seres
hu manos, significaria viver de acordo co m os dita mes da razão. 77

Na medida e m que o ser humano é u ma espécie animal que


possui a particularidade de ser racional, seria lícito concluir que os
ho mens natural mente vive m de acordo co m a razão e,
consequente mente, segundo a natureza. Co mo isto não ocorre, há
a necessidade, no estoicismo de Sên eca, de se ultrapassar esta
realidade limitadora do ser, para que se possa cu mprir o ideal de
viver de acordo com a natureza. Ao dar uma solução para esta
condição hu mana, Sêneca argu menta que a al ma hu mana possui a
mencionada duplicidade de natureza: de u m lado se te m a

76
“O t ipo de mov iment o pr ópri o d os a nima is ir racion ais é a pen as a que le que a
sua n at ure za l hes permit e. ” (SÊ NECA, L úci o Aneu. op. c it . , Cart a 1 24, 19-2 0,
p. 703).
77
“O que nós di zemos é qu e a f e lici dad e de p ende de a v ida est ar de acord o
com a nat ure za; o qu e se ja “est a r de aco rdo com a nat ur e za ” é um d ad o
evide nt e e ime diat o, t al com o por ex emplo o conceit o d e “int e iro ”. Esse est ar
de ac ordo com a nat ure za (q ue é uma prop rieda de de t odo o ser assim qu e
nasce), a isso nã o chamo e u bem, mas sim o começo do bem. ”. Ne st e po nt o,
Sêneca af i rm a que est e at o d e e st ar de aco rdo com a nat ureza é com eço do
bem porqu e a perc epçã o d o b em e do m al , para el e, só seri a al cançad a com o
uso da r azão. El e af i rm a que no rec ém -nasci do não ex i st e o b em porque el e
carece de r azão. El e su st e nt a q ue o b em e specí f i co do hom em só sur g e
quan do el e aced e à perf ei t a razão e que, quan do el e f al a em “bem ”, est á
ut i li zando o t erm o no se nt i do f i gurado. Por f im , el e af i rm a que esse bem é a
obedi ênci a à pr ópri a n at ureza. ( I bid. , C art a 124, 7, 9, 11, 13 e 1 4, p. 69 9-
701).
42

influência dos instintos, das paixões (affectus), e de outro há o


do mínio da razão (ractio).

O modo de superar a condição animal é fazer co m que est e


último do mínio prevaleça – subjugando as paixões, ou seja ,
mantendo sob controle o conjunto de instintos naturais que
pertence m ao ho me m enquanto animal. Isto implica que viver
“segundo a natureza” requer a transfo r mação da potên cia racional
e m ato, e esta atualização da nossa razão Sêneca denomina de
virtude. Deste modo, e xistindo u ma op osição entre razão e paixão,
de um lado, e, de outro, entre paixão e virtude, consequentemente,
a virtude se identifica com a razão.

É, portanto, co mo argu menta João Antônio Segurado e


Ca mpos 78, assim que se dá a identificação entre virtude, razão e
natureza no pensamento de Sêneca. Quando afirma que o home m
deve seguir (estar conforme, e m ter mos grocianos) a natureza,
Sêneca entende que a natureza humana é dotada da razão e o fato
desta existir potencialmente e m cada ser humano, atualizando-se
co mo virtude, faz co m que se ja ne cessário, para o ho me m seguir a
natureza, que ele viva segundo a razão, praticando a virtude 79.

Viver de acordo co m a própria natureza é viver segundo a


razão. Co mo, para Sêneca, a razão hu mana é u ma parte da razão
universal, o home m, ao viver sob seus designíos, está em
confor midade não só con sigo mesmo, mas ta mbé m co m todo o
conjunto das coisas que co mpõe m a or de m universal da natureza 80.

Grotius, porém, não está apenas preocupado co m u ma vida


virtuosa. Ele te m u ma preocupação pr ática: precisa dar sentido ao
ter mo justo que ele usa para qualificar uma for ma de guerra. Para
tal, pode-se interpretar que ele tomou co mo funda mento est a
ligação entre virtude, razão e natureza na elaboração de seu

78
SEG URADO E CAMPOS, J. A. Int rodução às Cart as a Lucí l io, p. XXVI .
79
“O que nós di zemos é qu e a f e lici dad e de p ende de a v ida est ar de acord o
com a nat ure za. ” (SÊNECA, Lúci o An eu. O p. Ci t . Cart a 124, 7, p. 699).
80
“A perf e ição abs olut a é a que la que é p erf eit a em rel ação à o rdem da
nat ure za. ” (SÊNECA, Lúci o An eu. op. cit . , Ca rt a 124, 14, p. 701).
43

conceito de direito natural. Sêneca usou o ter mo latino honestum,


traduzido como “be m moral”. Esta me sma e xpressão é e mpregada
por Grotius na sua definição de direito natural, apresentada no
primeiro capítulo do Dire ito da Guerra.

Quando Grotius vincula o honesto às leis, ele deixa de


identificar o termo so mente co m a razão para dar u m caráter
coercitivo, obrigatório, às obrigações morais que antes era m
apenas individuais. Diferentemente, portanto, de Sêneca, que
identificava o honestum somente co m a razão e, portanto, via a
virtude como oposição às paixões. Em Grotius o termo honestum,
te m duas perspectivas. Em primeiro lugar, ele é visto
restritivamente e tudo o que dele se afastar é vicioso. Em
contrapartida, aquilo que é tido como honesto també m pode ter u m
significado mais a mplo, segundo o qu al se tem a titudes louváveis
(virtuosas) quando se aproxi ma daquilo que é tido como honesto,
mesmo que não o fa ça por inteiro. Neste sentido, a virtude estaria
na busca por atingir o honesto. 81 Segu ndo o próprio Grotius, esta
última perspectiva é o objeto de preocupação das leis divinas e
hu manas, tendo e m vista que a finalidade das leis é tornar
obrigatórias as coisas que, por sua natureza, eram apena s
louváveis. Aqui fica claro que, aquilo que era tido por Sêneca co mo
“be m moral”, e m Grotius, ganha obrigatoriedade na medida e m que
passa a ser ob jeto das leis.

Neste ponto surge u ma diferença entre o jurista holandês e


os estoicos, inclusive Sêneca. Grotius to ma u ma obrigação moral e
a transfor ma e m direito, fazendo com que esta obrigação, que
estava adstrita ao indivíduo e soment e dizia respeito a uma única
pessoa, se transfor me e m u ma lei. A lei, ao ser aplicada, deixa de
fazer parte apenas do â mbito individual para conceder u m direito,
a outra pessoa, de exigir o cumpri mento da obrigação que, até
então, era apenas um dever moral de uma única pessoa. Por

81
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, Liv ro I , cap. I I , I, p. 100-
101.
44

exe mplo, o dever de se abster dos objetos alheios concede, ao


proprietário do bem roubado, o direito de empregar a força para
manter a posse de seu patri mônio.

Sêneca não está preocupado em transmutar sua s


obrigações morais em direitos, ele está interessado com a esfera
da consciência pessoal. Grotius muda a aplicação desta
moralidade para as relações bilaterais e multilaterais. Coloca a
moralidade estoica como cerne de seu sistema jurídico.
Fundamenta seu direito natural em “regras” morais. Isto porque
sua intenção é tratar da vida em co munidade, em u ma sociedade
política. Ele, como dito há pouco, queria dar obrigatoriedade a
princípios que, antes, eram apenas morais. Por isso ele atribui um
caráter coercitivo a estes princípios que, na obra dele, passam a
ser regras e leis. Deste modo, pod e ser dado a u m indivíduo,
externo à relação constituída ( magi strado), a co mpetência de
resguardar o cumpri mento de obrigações que antes estava m
restritas à consciência de cada um do s ho mens.

Para Grotius, o home m tende naturalmente para a vida e m


coletividade e sua subsistência fora da sociedade é quase
insustentável. Da sociabilidade human a, so mada ao uso da razão,
é que decorre m as leis e os direitos naturais, sendo estes regras
necessárias à vida social – ideia que fica clara se levar mos e m
conta as regras e as leis constantes no De Jure Praedae.

Conclusão

Verifica-se a importância de Cícero e Sêneca para a


concepção grociana de direito natural. Em pri meiro lugar, a
argu mentação do jurista contrária à tese de Carnéades, exposta
dos “Prolegômenos” do Dire ito da Guerra, não parece refutar
totalmente a tese do cético grego. Co ntudo, a leitura das obras de
Grotius e o fato de ele repetir, na sua definição de direito natural,
45

as características da lei natural de Cícero indicam que u m


importante argu mento favorável à existência da justiça e do direito
natural não está nos “Prolegô menos”, mas si m no pri meiro capítulo
do Dire ito da Guerra e no segundo capítulo do De Jure Praedae
Commentarius, que traze m o ponto d e vista do autor sobre a lei
natural.

Por outro lado, pode-se interpretar que a “hipótese


impiíssi ma” serve de meio para afastar a análise do direito natural
da discussão teológica de seu tempo. Alé m disso, referida hipótese
per mite que o autor reto me a iden tificação estoica de razão,
honestum e a natureza no seu estudo do direito natural.
46

2 A DUPLA COMPREENSÃO DE LEI E DIREITO NATURAIS DE


GROTIUS

Após ter apresentado a influência estoica para a formaçã o


conceitual de Grotius e dois pontos de grande importância na obra
do jurista – a “hipótese impiíssima” e a argu mentação contrária ao
ceticismo de Carnéades –, e o desenvolvimento que o jurista
apresenta após ter sustentado a existência da justiça e do direito
natural, faz-se necessária uma análise do modo co mo ele expõe a
sua concepção de direito natural. A análise se baseará no início
das suas duas principais obras políticas: segundo capítulo do De
Jure Praedae Commentarius e pri meiro livro do De Jure Belli a c
Pac is (O Direito da Guerra e da Paz).

Apesar de u m lapso de vinte anos separar os te xtos, h á


inúmeras se melhanças entre eles. 82 Em a mbos, há u ma clara
preocupação co m a guerra e, principalmente, co m a investigação
sobre a possibilidade de existir u ma guerra justa. O método de
abordagem do fenô meno bélico do Direito da Guerra é se melhante
ao do De Jure Praedae, a argumenta ção apresentada por Grotius
para justificar a guerra é vinculada aos conceitos de lei natural e
de direito natural, em decorrência do fato de a guerra ter como
finalidade principal a garantia de referidos direitos. Por isso, como
já salientado no capítulo anterior, nas duas obras, antes de tratar
da guerra e m si, o jurista faz u ma e xp osição teórica em que aborda
a lei natural e traz definições conceituais importantes.

82
O De Jure Praed ae é de 1 604 e não f oi publ i cado, ex cet o o capí t ul o XI I qu e
recebe u o t í t ul o De Mare Lib erum. Já o Direit o da G uerr a e d a Pa z f oi
publ i cado em 162 5. Al ém da di f erença t em poral e de t am anh o (o pri m ei ro liv ro
é cerca de quat ro v ezes m enor em cont eúdo d o que o segu ndo), pel a
dif erença d e ab orda gen s e po si ci onam ent o s, o Dire it o d a G uerra e da Pa z é o
grand e t ex t o de G rot i us. Não se sabe por q u e o aut or não p ubl i cou o De J ure
Praeda e, m as, t alv ez, a f al t a de general i dad e da s af i rm ações ou de co nv i cção
so bre sua s po si çõe s po ssam t er cont ri buí do para i sso.
47

No Dire ito da Guerra, Grotius demonstra a possibilidade de


existir u ma justiça na guerra a partir de u ma concep ção de direito
natural segundo a qual o conteúdo do referido direito seria atingido
por meio do uso da razão. A construção teórica do jurista co meça
co m u ma argu mentação favorável à justiça, que havia sido alvo de
crítica pelos céticos. Por outro lado, no De Jure Praedae, ele
esboça u ma maior preocupação metod ológica – em primeiro lugar,
ele apresenta o que seria universalmente verdadeiro e m u ma
proposição geral, para, depois, adaptar esses axio mas a casos
concretos, menos genéricos 83.

No primeiro capítulo do Dire ito da Gu erra aparece o vínculo


entre o jus e a le x. Após ter e xposto e contestado os argu mentos
contrários à ideia de justiça e do direito, nos “Prolegômenos”, o
jurista atribui três sentidos à palavra direito (jus). Inicialmente, ele
vincula o direito à noção de justo. Al é m disso, o direito pode ser
visto como u ma “qualidade moral” que corresponde a uma
faculdade ou a u ma aptidão. Por fi m, Grotius apresenta u m sentido
segundo o qual o termo direito (jus) equivaleria à lei (lex).

Das três acep ções, a última é a mais importante. É a partir


dela que Grotius desenvolve seus argu mentos e apresenta u m
conjunto de regras obrigatórias para a manutenção da paz na
co munidade política. O jurista não se ocupa apenas co m a justiça
e suas implicações nos co mporta me ntos dos cidadãos, ao invés
disso, como dito no capítulo anterior, ele desenvolve um siste ma
de regras e leis naturais para assegurar direitos e tornar efetivos
princípios de justiça que estava m, antes, vinculados apenas à
esfera moral.

Partindo da argumentação apresentada no primeiro capítulo


do Dire ito da Guerra, seria lícito sustentar que o direito natural ali
contido é verdadeiramente u m sinônimo de lei natural. Contudo, no
De Jure Praedae, o jurista apresent a o direito e a lei de modo
diverso.
83
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I , p. 7.
48

Neste último livro, mais especifica me nte no capítulo 2, são


apresentadas nove regras e treze leis naturais. Grotius utiliza as
expressões latinas regulae e leges quando se refere,
respectivamente, a estes ter mos. Tan to nas regras como nas leis,
são deter minados direitos aos homen s – o jurista, quando propõe
u ma regra ou lei que assegura determinado direito a alguém, faz
uso da palavra latina jus. Nesta perspectiva, o direito adviria de
u m siste ma nor mativo natural composto de regras universalment e
válidas.

Surge, então, uma diferença entre as duas obras. Enquanto


no Dire ito da Guerra, no terceiro sentido atribuído ao termo direito,
jus e le x aparece m co mo sinônimo s; no De Jure Praedae, os
ter mos se refere m a ob jetos distintos e não são sinônimos.

2.1 As regras e leis naturais do De Jure Praedae Commentarius

Saliente-se que no início do De Jure Praedae, Grotius


apresenta u ma linha argu mentativa co m u m a specto geo métrico
que mais se asse melha a u m sist e ma do que a u m modelo
argu mentativo clássico – são apresentados axio mas (regras) dos
quais ele retira leis naturais.

Ao apresentar as nove regras e treze leis 84, Grotius


esclarece que procurou mostrar “(...) o que constitui um ‘direito
[ius]; e deste conceito obte mos ta mbé m a definição de ‘errado’ ou
‘injúria’ [injuria], guiados pela crença básica de que este ter mo se
refere a tudo o que é feito em oposição ao direito.” Sendo o direito,

84
O m esm o procedi m ent o é rep et i do por T h om as Ho bbe s. O f il ósof o i ngl ê s
t am bém el enca, nos c apí t ul os XI V e XV do Leviat ã ( publ i cado em 1651 ), um
conj unt o de l ei s d e nat urez a.
49

aquilo que é “(...) concedido pelas várias regras e leis, enquanto


que as ações de natureza contrária são injustas.” 85

Pode-se dividir este con junto nor mat ivo apresentado pelo
jurista e m duas partes. A pri meira parte é constituída por três
regras e seis leis que são apresentadas antes da e xposição
grociana de como a sociedade política teria surgido - o jurista
afirma que pequenas unidades sociais surgiram “após esses
princípios tere m sido estabelecidos” 86. Deste modo, estas regras e
leis são anteriores ao surgimento da sociedade política; por outro
lado, a segunda parte das referidas regras e das leis surgem após
a criação da República 87, estando intima mente ligadas ao home m
enquanto partícipe de uma co munidade politicamente organizada.

Dada a sua relevância, o surgimento da sociedade política


será alvo de análise apartada. Deve-se ter em conta, por ora, que
no texto e m análise existe m duas espécies de regras e leis
naturais, e que elas dizem respeito, em u m pri meiro mo mento, ao
ho me m considerado e m si mesmo, e e m u m segundo instante, ao
ho me m enquanto me mbro de u ma associação política.

O sistema nor mativo grociano começa co m u ma pre missa


co mu m e a mpla mente aceita pelos teóricos da época: a existência
de Deus. A primeira regra vincula o direito à vontade manifestada
por Deus – é a partir deste a xio ma q ue ele deduz todas as outras
regras e leis 88. Visando justificar a escolha desta proposição,
Grotius cita Cícero 89 - que teria afir mado que o estudo dos

85
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 30.
86
Ibi d. , p. 19.
87
Dura nt e t od o o seg und o ca pí t ul o do De Jure Pra eda e, G rot i us ut i l i za o
t erm o l ati no respubl ica q uan do se ref ere a u m conj unt o de hom ens q ue v iv em
de um m odo pol i t i cam ent e organi zado. Cont udo, nã o p arece ser l í ci t o pen sar,
ao m enos com base n e st e t ex t o e no Direit o da G uerra, qu e há al gum a
i nf l uênci a do republ i cani sm o sobre G rot i u s. Ape sar de el e f azer uso d o t erm o
repúbl i ca, el e i gual m ent e ut i li za a pal av ra civit at es (ci dade s) qua ndo se ref ere
a a ssoci açõe s e a ssem bl ei as de hom ens e em prega a ex pre ssã o civ es par a
i ndi car os hom en s qu e com põem as repú bl i cas.
88
Regra 1 – Aqui l o que Deu s d ecl arou qu e el e quer é di rei t o (Regul a I – Q uo d
Deus se vel le si gnif icarit , id jus est ).
89
Passa gem ret i rada do De F ini bus, I V, v .ii .
50

fenô menos celestiais é benéfico à just iça e explica que o ter mo jus
teria derivado de Júpiter.

Não obstante o con junto nor mativo e xposto por Grotius ter
co mo ponto de partida o Criador, Grotius não recorre à teologia
para embasar a pri meira regra, mas a pensadores pagãos –
Cícero 90 e Crísipo 91. O jurista sustenta que a vontade de Deus não
se revela somente por meio de oráculos e presságios
sobrenaturais, mas pode mos perceb er esta vontade no próprio
desígnio de Deus, de onde derivaria o direito natural.

Uma vez que Deus moldou a criação e determinou


voluntariamente sua e xistência, cada parte singular que a co mpõe
recebeu Dele certas propriedades naturais por meio das quais sua
existência pode ser preservada. Alé m disso, cada parte deve ser
conduzida para seu próprio bem – e m confor midade co m a lei
funda mental inerente à sua origem. Por isto, segundo o jurista,
Cícero repetidamente insistiria que todas as coisas na natureza
são cuidadosamente atentas a si mesmas e busca m a própria
felicidade e segurança 92.

Há a identificação do ato criativo de Deus co m a inserção,


na natureza, de princípios de direito natural. Deste modo, bastaria
ao ser hu mano observar – e, por que não, co mpreender – a
natureza para ter acesso à vontade de Deus e, consequentemente ,
ao conteúdo do direito natural. Percebe-se novamente a influência

90
Cí cero a ssev era: “Coisas semel ha nt es pod em ser dit as so bre a ex posiç ã o
da nat ur e za, de q ue se va lem t ant o est e s quant o os voss os, e isso, n a
verdad e, não p or duas ca usas a pen as, como pensa Ep icur o, a f im de que s e
arrede o me do da mort e e d a reli gi ão, ma s at é mesmo um cert o senso de
medid a t ra z o con hec iment o das co isas cel e st es àquel es que o bservem qu ão
grand e mod eraçã o exist e t ambém e nt re os deuses, q ue gr and e or dem, e ao s
que perc ebem a gra nde za de alm a dos deu ses e suas obras e rea li za ções e
aind a a just iç a, uma ve z que t e sej a co nhec i do qu al é o p ode r div ino da que le
que g overn a e que é o s enh or, qu al é seu pla no, qu al s ua vo nt ade; à su a
nat ure za a ra zã o est á a just ad a, ra zão que p elos f i lósof os é chama da d e suma
lei, a verd ade ira l ei. ” (CÍ CERO , Marco T úl i o. De F inib us, I V, v . 11, p. 517).
91
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 9.
92
G rot i us f az ref erênci a a Cí cer o na pági na 9 do De Jur e Pra eda e, m as nã o
i ndi ca de q ual obr a ret i rou a f rase. Ent ret a nt o, e st a i dei a p arece se re pet i r no
Direit o da G uerra qu and o o j uri st a t rat a, no i ní ci o do segun do capí t ul o do
pri m ei ro liv ro, dos pri ncí pi os pri m i tiv os comun s ao s hom en s e ao s ani m ai s e
f az m enção ao De F ini bus, I I I , 5, 17.
51

da filosofia estoica romana sobre Gro tius na medida e m que e ste


extrai seus princípios de justiça da orde m natural estabelecida por
Deus. O pri meiro princípio observável no co mporta mento do s
animais se relaciona ao instinto de sobrevivência, seria uma
espécie de a mor próprio que leva cada u m a procurar, e m pri meiro
lugar, a sua autopreservação.

Co m esta argu mentação, o jurista estabelece, inicialmente ,


os direitos de cada sujeito, para, em seguida, definir os direitos de
todos. Estes direitos servem, co mo será visto mais adiante, como
u ma espécie de contenção dos atos das pessoas, pelo fato de
Grotius julgar que o amor próprio não pode ser exagerado, mas
deve ter um limite – a necessidade (e, ta mbé m, o direito) que os
outros seres hu manos tê m de buscar a própria preservação.

Para proporcionar a subsistência de cada u m dos seres


hu manos, surge m duas leis extraídas, co mo dito acima, do ato
criativo divino e da observação da natureza, que leva m, antes de
tudo, a buscar a sobrevivência. A primeira lei estabelece que as
a meaças à vida e à integridade física podem ser evitadas. 93
Entretanto, não adianta apenas preservar o corpo, para viver, é
necessário se alimentar, se aquecer, etc. Estas necessidades
acarreta m a possibilidade de se e xtrair – da natureza – e reter os
bens imprescindíveis para a própria preservação. 94

Partindo de uma regra axio mática que vincula a existência


da lei à Deus, Grotius apresenta as duas leis básicas para a
sobrevivência dos homens: de u m lado, há uma lei que prescreve a
preservação da vida, mantendo a integralidade corporal e, de outro
lado, uma lei que ad mite a posse dos bens úteis para a
subsistência. 95

93
Lei 1 – É l í ci t o prot eger a v i da e af ast ar a s coi sa s q ue po ssam ser nociv as
(Lex I – Vit am t ue ri et dec lin are noc it ura l ice at).
94
Lei 2 – É l í ci t o acum ul ar e m ant er para si as coi sa s út ei s à v i da (Lex II –
Adjun gere s ibi q uae a d vive ndum su nt ut ili a eaqu e ret in ere l iceat).
95
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 9.
52

A segunda lei estaria em co nfor midade com os


ensinamentos de Cí cero que no Dos Deveres 96 já ad mitia que cad a
u m busca, e m pri meiro lugar, suprir as próprias necessidades e
que esta atitude não é contrária à natureza, mas não se pod e
au mentar o patrimônio com os b ens alheios – este último
argu mento já e sboça o conteúdo da s Leis 3 e 4. Alé m disso,
Grotius entende que as escolas filosóficas da antiguidade
(estoicos, epicuristas e peripatéticos), distintas entre si, ao
discutirem sobre os fins (o be m e o mal), concorda m co m o s
princípios estabelecidos nas duas primeiras leis, até mesmo o s
céticos estariam de acordo co m o cont eúdo da segunda lei 97.

O jurista, na continuação desta argu mentação sobre a


possibilidade de obtenção dos bens naturais necessários à vida,
defende que a utilização destes bens efetiva-se por meio da
apreensão individual de parte dos recursos naturais de uso
co mu m. Consequente mente, aquilo que havia sido apanhado por
alguém deveria se tornar sua propriedade 98. Emerge a concepçã o
segundo a qual a propriedade teria surgido do ato de apreensão de
objetos naturais que era m, antes, de uso co mu m – entendi ment o
que ecoa no Dire ito da Guerra 99 e que será analisado adiante.

Apesar de haver a possibilidade de uso co mu m dos recurso s


naturais, estes recursos seriam insuficientes para toda a
hu manidade se cada um dos ho men s levasse em con sideração
apenas o próprio bem-estar se m que tivesse alguma preocupação
co m os seus se melhantes – esta preocupação possibilitaria uma

96
“Com ef eit o, e por que, af in al, ca da um pref ere adq uir ir p ara s i mesm o
qual quer b em relat ivo às necess id ades d a nossa vid a a t er de o f a zer par a
com o s eu s emel hant e, qu e se conc eda, po i s, não ser t a l at it ude cont r ária à
nat ure za h umana. Co nt udo, aqu el a mes ma nat ur e za nã o p ermit e qu e
possamos aume nt ar as nossas poss es, o s nossos m eios ou as noss as
rique za s à cust a dos desp ojos a lhe ios. ” (CÍ CERO , Marco T úl i o. Dos Deveres,
I I I , 22, p. 122).
97
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 10-11.
98
“Appreh ensi o ha ec poss essio dicit ur, u nde usus et mox dom ini um secut u m
est ” - “Essa apre ensã o se c hama ‘p osses sio’ ( at o d e t omar poss e), e é
precursor a do ‘usus ’ ( uso), e su bseq uent eme nt e do ‘ domi nium ’ (p ropr ied ade). ”
(De Jure Prae dae, o b. ci t . , cap. I I , p. 11).
99
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. II , II I .
53

união harmônica dos seres humano s. Esta concepção sobre a


necessidade de uma consideração recíproca para a manutenção de
toda a espécie humana parece ter sido extraída de Sêneca, que
salientou a existência de uma solidariedade entre os homens ao
afirmar que aquele que se preocu pa apenas consigo mesmo,
visando seu próprio proveito, não podia viver feliz; para se viver
para si próprio, deve-se, antes, viver para os outros. 100

Segundo Grotius, esta necessidade hu mana de manter u ma


vida co munitária na qual prevalece a “har monia mútua” teria sido
introduzida nas pessoas por Deu s, que impri miu e m todos os
animais o a mor por si mesmo e pelo próxi mo, visando a
conservação da natureza co mo u m tod o. Apesar de co mpartilhar do
atributo cooperativo com os outros an imais, os seres hu manos se
diferenciam deles por possuíre m u m re squício da image m da ment e
divina: a razão 101.

Todavia, esta razão teria sido obscurecida pelos vícios


hu manos, mas não ao ponto de torná-la imperceptível. Segundo o
jurista, a luz divina (e a razão) man ifesta-se e é perceptível no
consenso dos povos (consenso gentium). O fato de Grotius
acreditar que existe u ma concórdia universal em relação ao que é
bo m e verdadeiro o faz derivar, do consenso dos povos, o direito
natural secundário ou jus gentium (direito das gentes). O recurso
ao consenso, que aqui serve para provar a presença da faculdade
racional nos homens e, de u ma for ma menos e xplícita, o direito
dos povos, será u m dos modo s de se provar o direito natural no
Dire ito da Guerra 102.

Quando se refere ao consenso, em a mbas as obras, o


jurista faz referência a u m trecho d e Cícero 103. Neste trecho, o
ro mano sustenta que o consenso de todos os povo s sobre u m
assunto deve ser considerado como u ma lei de natureza.

100
SÊNECA, Lúci o Aneu. Cart as f ilos óf icas, ob. ci t ., Cart a 48, 2, pp. 161-16 2.
101
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 11-12.
102
Idem, O Direit o d a G uerra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I , XI I , p. 85.
103
T usculana e Dis put at io nes, 13, 30.
54

Nova mente, o filósofo ro mano é utilizado para embasar a


convicção grociana que estabelece um vínculo entre o consenso
dos ho mens e a presença, neles, d a razão, além de vincular o
reconhecimento da e xistência do direito natural ao mencionado
consenso.

No mo mento e m que ele sustenta que o consenso constitui o


direito natural secundário (jus naturae secundarium) e faz uma
equivalência entre este e o direito das gentes primário (jus gent ium
primar ium), o jurista apresenta u ma d ivisão do direito natural que
não se coaduna co m a definição exposta no Dire ito da Guerra. No
início do segundo capítulo e no terceiro capítulo do De Jure
Praedae, o jurista afir ma que o direito natural primário procede da
vontade divina, que fez constar certos princípios no coração dos
ho mens ob jetivando a preservação da hu manidade. O autor
diferencia este direito do direito natural secundário que advém do
acordo universal das pessoas sobre o que é bo m e verdadeiro.
Enquanto o direito natural primário deriva de Deus e é inato, o
direito natural secundário surge do consenso.

Na medida e m que o jurista vincula o direito das gentes


primário à segunda regra, faz-se n ecessário um breve estudo
acerca do significado deste direito. No capítulo 2 do De Jure
Praedae, Grotius apresenta duas formas de direito das gentes, o já
mencionado direito das gentes primário e o direito das gentes
secundário (jus gentium secundar ium ). O jus gent ium primar ium
seria um corpo de preceitos morais impostos pela razão natural
sobre todos os povos, ao passo que o jus gentium secundar ium
estaria relacionado com a Regra 8 e seria uma mistura do direito
dos povos pri mário co m o direito civil. Este direito seria uma
espécie de direito dos povos positivado e consensual, ha ja vista
que seria compo sto de regras co mu mente aceitas pelos me mbros
da co munidade internacional para o bem de todos. 104

104
Segund o Pet er Ha gge nm acher, est e jus g e nt ium nã o de si gnari a um a f ont e
de regra s e i n st i t ui ção com pl em ent ares ao d i rei t o nat ural , div ino ou civ il , m as
55

Esta concepção de direito dos povos secundários


asse melha-se àquela expressada por Cícero 105 e alguns jurist a s
ro manos 106, mas difere de outro jurista ro mano clássico, Ulpiano.
Este último dividia o direito em três ramo s: direito natural (que
existiria na natureza e regeria os animais, assi m co mo os seres
hu manos), direito das gentes (que era distintamente hu mano) e
direito civil (que era o conjunto de direito específico de u m
povo) 107. A escravidão, por exe mplo, era fundamentada no ju s
gentium, mes mo que segundo o direito natural todos nasçam livres.
Nesta concepção tripartite de direito, os direitos de propriedade
pode m ser considerados parte do jus gentium, ma s não do direito
natural. 108

Por outro lado, Her mogenianus, um jurista ro mano d a


segunda metade do século III, descreveu o jus gentium co mo o
direito que diz respeito às guerras, interesses nacionais, realeza e
soberania, direitos de propriedade, limites das propriedades,

seri a a som a dos t rê s e corre spon deri a ao nosso di rei t o i nt ernaci onal
(HAG G ENMACHER, Pet er. G rot ius et la doc t rine d e la guerr e j ust e, p. 61 8-
619).
105
“(. . . ) Por est a r azão, de sej aram o s no sso s a nt epa ssado s qu e f osse um a
coi sa d o dom í ni o do di rei t o das gent e s enq u ant o out ra, d o dom í ni o do di rei t o
civ il . Aquil o que pert enc e ao d om í nio do di rei t o civ il não ser á
nece ssari am ent e d o dom í ni o do di rei t o da s g ent e s e, nã o o b st ant e, aqui l o q ue
é do dom í ni o do di rei t o da s ge nt e s ser á t am bém nece ssari am ent e do dom í ni o
do di rei t o civ il . Mas, nó s não p o ssuí m os qual quer n oção su b st anci al m ent e
con si st ent e acerca daq ui l o em que poderá con si st i r a v erdadei ra l ei ou a
j ust i ça pura – t ud o aq ui l o que no s é po ssí v el de sf rut ar não pa ssa de um m ero
esboço. ” (CÍ CERO , Marco T úl i o. Dos Devere s, p. 140).
106
G ai o def i ni u, no séc ul o I I , o jus ge nt ium c o m o aqui l o que “a ra zã o nat ura l
est abel ece u ent r e t od os os pov os ” (“Q uo d v ero nat ural i s rat i o i nt er om ne s
hom i nes con st i t ui t . . . v ocat or i us gent i um ”, Di gest o 1. 1. 9. G ai o é ci t ado por
Bri an T i erney - T I ERNEY, Bri an. T he Ide a of Nat ura l R ight s, p. 136). Al ém
di sso, o m esm o j uri st a escr ev eu que “cada povo (po pul us), que é gover nad o
por le is e cost umes (le ges et mores), observ a, em part e, o seu própr io dir eit o
pecul iar e, em p art e, o dir eit o c omum d e t od a a h uman ida de. Esse dir eit o qu e
um pov o est abe lece u p ara si m esmo lhe é pecul iar e é c hamad o ‘ius civ ile ’
(dire it o civ il), s end o o d ireit o es peci al da ‘ci vit as’ ( est ado), en qua nt o o dir eit o
que a r a zão nat ura l est a bel ece e nt re t od a a human ida de é s egu ido por t od os
os povos s emel hant es e é ch amad o ‘ jus gent i um’ (d ireit o das gent es, o u
dire it o do mun do), sen do o d ireit o obs ervad o por t od a a huma nid ade. Ass im, o
povo r omano obs erva, em part e, o s eu pró prio dire it o e, em part e, o d ireit o
comum de t oda a huma nid ade ” (G ai o, ci t ado por La uren s W i nkel - W I NKEL,
Laure n s. “T he Peace T reat i es of W est phal i a as a n i nst anc e of t he recept i on of
Rom an l aw”, p. 225).
107
Digest o, 1. 1. 4, ci t ado por T I ERNEY, op. cit . , p. 136.
108
T I ERNEY, Bri an. op. cit . , p. 136-137.
56

assenta mentos e co mércio, “incluindo contratos de compra e


venda, e de locação e contratação, exceto para determinados
elementos contratuais distinguidos por meio do ‘jus civile’". 109

Ao que tudo indica, neste ponto Grotius diverge de Ulpiano


na medida e m que o jurista holandês identifica o direito das gentes
co m o direito natural quando trata das Regras 4 e 8 e, ao contrário
do jurista ro mano, ele não apresenta a possibilidade de o direito
natural ser aplicado aos animais – no primeiro capítulo do Dire ito
da Guerra, é estabelecido um vínculo entre o direito natural e a
reta razão, que para Grotius está presente unicamente nos seres
hu manos 110. Todavia, o autor parece aceitar o posicionamento d e
Her mogenianus sobre o vínculo entre o jus gentium e a guerra uma
vez que ele afirma, no parágrafo 28 dos “Prolegômenos”, e xistir
“u m direito comu m a todo s os povos e que serve para a guerra e
na guerra”. 111 Em que pese esta afirmação, além das regras do ju s
gentium, o jurista argu menta, sobretu do no Dire ito da Guerra, que
os preceitos do direito natural també m se aplicam à guerra. Não
bastasse isso, o holandês não relaciona a propriedade com o jus
gentium, mas a liga ao direito natural 112.

109
Herm ogeni an u s, ci t ado por W I NKEL, “T he P eace T re at i es of W est phal i a a s
an i n st ance of t he recept i on of Rom an l aw”, Peace T re at ies and I nt ernat i ona l
Law in Europe an H ist ory, p. 225.
110
G rot i us f az ref erênci a ao De O f f iciis, I , 50, de Cí cero no i t em XI do pri m ei ro
capi t ul o do Dir eit o da G uerra e da Pa z. Ne st e t rech o, Cí cer o e scr ev e: “O seu
ví nculo é const it uí do pe la ra zã o e pe la li ngu agem qu e, ensi nan do,
apren den do, comu nica ndo, discut i ndo e ra cioci nan do, assoc iam os homen s
uns com os out r os, reun in do-os numa es pécie de s oci eda de n at ura l; em
nenh um o ut ro as pect o, para a lém d est e, n os af ast amos t ant o da nat ur e za dos
anima is, na qua l af irmam os t ant as ve ze s e xist ir uma c ert a cora gem (com o
acont ece com os cava los, c omo suc ede com os l eões); acerca de les, p orém,
não f al amos nós de just iça, d e equ ida de, o u de bon dad e já q ue, com ef eit o,
não sã o e les d ot ados de r a zão nem d e l ing u agem. ” (Marco T úl i o CÍ CERO , Dos
Deveres, p. 3 3). G rot i us concor da com Cí cero qu e não cr ê na ex i st ênci a d e
j ust i ça, de equi d ade o u de bon dad e ent re o s ani m ai s, poi s l hes f al t ari a t ant o a
razão qu ant o a l i ngua gem .
111
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, “Prol eg ôm enos”, p. 51.
112
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, “Prol eg ôm enos”, p. 80.
57

Após trazer à tona o jus gentium pr im arium, Grotius vincula


este direito à segunda regra 113, se gundo a qual o que o
consentimento co mu m mostrou ser a vontade de todos é direito, na
medida e m que tanto naquele direito quanto nesta regra é o
consenso dos ho mens que indica o que é o direito. Na opinião do
autor, a maioria concorda que se deve cuidar do bem-estar uns do s
outros e a aceitação desta obrigação seria uma característica
distintiva dos homens. Esta afirmação insere o tema da
sociabilidade natural dos seres hu manos e m sua e xposição. O
autor afirma que esta preocupação co m o be m do s outros ta mbé m
encontraria respaldo em Sêneca, Aristóteles e Cicero, sem
especificar as obras destes autores.

Merece destaque o fato de o jurista citar o mencionado


trecho do De Ira (II, xxxi) de Sêneca para justificar esta obrigação
de cuidado recíproco. 114 Este frag mento é citado tanto no De Jure
Praedae co mo no Dire ito da Guerra, mas nesta última obra o
jurista não recorre ao argu mento de a utoridade para justificar uma
regra advinda do consentimento e a consequente sociabilidade
hu mana. No ite m II I do pri meiro capí tulo do último te xto, Grotius
cita Sêneca no mo mento e m que a presenta o direito como u m
atributo de ação e o equipara ao justo, ou se ja, e m u ma
perspectiva diferente daquela do De Jure Praedae, na qual a ideia
de justo parece estar vinculada não a u ma ação, mas ao consenso
dos ho mens - este origina a segunda regra natural.

Esta regra (Regra 2) serve co mo pre â mbulo de u ma ideia


muito presente na obra de Grotius: o pressuposto de que existe um
certo grau de parentesco natural entre os homens, situação esta
que obrigaria o ser humano a viver em co munhão e despertaria a
preocupação co m o be m-estar mútuo. Por isso, é apresentada uma
crítica ao argumento e mpregado pelos céticos acadêmicos. Estes

113
Regra 2 – Aqui l o que o consen so d o s hom ens d ecl arou qu e t odo s quer em é
di rei t o (Regula II – Q uo d consens us homi nu m velle cunct os si gnif icaver it , id
jus est ).
114
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 13.
58

co mpreende m que a benevolência advinda da natureza visa


unicamente o proveito pessoal e a justiça civil não se baseava na
natureza, mas na opinião. Nesta seara, a argumentação do De
Jure Praedae é diferente daquela dos “Prolegômeno s”; Grotius, na
obra da juventude, não se aprofunda no exa me das teses dos
céticos, ele apenas expõe e afir ma nã o concordar co m dois pontos
de vista: o argu mento utilitarista contrário à justiça, e a visão
convencionalista segundo a qual o direito está ligado à opinião e
não à natureza. O que fica claro é que o jurista discordava da
concepção utilitarista e convencionalista anos antes da elaboração
do Dire ito da Guerra. 115

A Regra 2 acarreta outras duas leis: (Lei 3) que ninguém


machuque o pró xi mo e (Lei 4) que ningué m se aposse daquilo que
o outro possui. 116 Da ideia de um conse nso co mu m, Grotius retira
leis que buscam o respeito a duas espécies de propriedade do
ho me m – a interna (o corpo) e a exte rna (os bens). Esta mesma
preocupação co m a propriedade está presente do Dire ito da
Guerra, co mo será visto a seguir.

Aparente mente, há u ma dicoto mia no conceito de


propriedade do De Jure Praedae que fica evidente quando Grotius
trata das “coisas boas e más”. Ele a s divide em dois grupos. O
primeiro grupo, que seria o mais importante, é constituído por
aquilo que se refere diretamente ao pr óprio corpo – por exe mplo, a
morte, a mutilação de u m me mbro, u ma doença, etc. Já o segundo
grupo é composto de ob jetos que e xistem fora de nós mesmos,

115
G rot i us m enci ona Carn éad e s ap ena s no cap. VI I do De J ure Pra eda e:
“Assim, em relaç ão a os suj eit os, est e argu ment o é af i nad o com a que le q u e
Carné ades e os f il ósof os aca dêmic os apl i caram erron eament e a t odas as
pessoas, a sab er, qu e a just iç a é uma q uest ão d e op in ião - “bas ead a n ão n a
nat ure za, mas no d ireit o ” -, na medida em q u e ela cons ist iri a na conf orm ida de
com as inst it uiçõ es est abe lec idas d as vári as nações ” (H ugo G RO T I US, De
Jure Prae dae, cap. VI I , pp. 76-7 7). Sem se cont rapor de f orm a ex t ensiv a ao
cét i co, o j uri st a at ri bui a C arné ade s a c on cepção seg und o a qual a j u st i ça
ba sei a- se a pen a s no di rei t o l ocal .
116
Lei 3 – Ni nguém l ese o o ut ro (L ex 3 – N e qu is at erum lae dat ). L ei 4 –
Ni nguém ocupe a s c oi sa s ocup ada s por o ut ro (Lex 4 – Ne q uis occ upet a lt er i
occupat a).
59

mas que nos são benéficos ou prejud iciais, como, por e xe mplo, a
honra e a riqueza.

Talvez em virtude dessa dualidade, o holandês tenha


afirmado que a Lei 1 é posta e m prática por meio de u ma espécie
de repulsão de corpos – o corpo físico repelindo uma a meaça a
sua integralidade advinda de uma ação de um ser ou ob jeto – e
que a Lei 2, por outro lado, é respeitada por meio da fixação de
corpos – neste ponto, não é um ser ou objeto que põe em risco a
integridade do corpo físico, mas trata-se de u m atributo moral, u ma
qualidade ou sensação (não materiais) que faze m parte do direito
da pessoa, u ma noção e mbrionária do que hoje cha ma mo s de
direito subjetivo. A pri meira lei está ligada à proteção do corpo e m
si e a segunda objetiva a tutela dos bens fora do corpo. Esta
mesma noção de propriedade que leva e m consideração o corpo e
os bens consta no Dire ito da Guerra, mas neste tratado, co mo
vere mos a seguir, o jurista acrescenta a este conceito a vida, e
não apenas o corpo, e a liberdade.

Outro ponto e m co mu m entre o De Jure Praedae e o Dire it o


da Guerra e da Pa z é a divisão da justiça em duas for ma s. No Jure
Praedae ele as deno mina de justiça distributiva e compensatória 117.
A justiça distributiva é aquela que permite ao chefe de u ma fa mília
atribuir a cada um a sua parte, medida e pesada
proporcionalmente às diferentes idades e condições de cada um.
Esta justiça, segundo Grotius, é a mesma contida no Gorgias de
Platão 118. Nosso autor afirma que o filósofo grego equipara Deus a
u m geô metra, pois Ele administra a lei e a equidade conforme u m
princípio de proporção, tendo como finalidade tornar todas as
coisas iguais. Por outro lado, a ju stiça co mpensatória não se
ocupa co m assunto s co mun s, mas co m aqueles peculiares ao
indivíduo. Há u ma dupla função dest a ju stiça: preservar o be m e
corrigir o mal.

117
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 14-15.
118
G rot i us não t raz a pa ssagem do t ex t o de Pl at ão.
60

Por outro lado, no Direito da Guerra, o autor traz a justiça


expletiva (ou co mutativa) e atributiva 119. A justiça e xpletiva é
aquela que tem a finalidade de correção, vinculada ao direito
estritamente dito ou próprio (seria, segundo Grotius, típica dos
contratos, acordos), tratando-se de uma faculdade moral perfeita,
u m “ato”; e a justiça atributiva (a qual Aristóteles chamava de
distributiva) que é aquela que está ligada ao gesto de fazer be m
aos outros, vista co mo aptidão – u ma faculdade moral imperfeita,
“potência”.

As Leis 5 120 e 6 121 são retiradas desta concepção dual d e


justiça. Segundo ele, as obras más d eve m ser corrigidas (Lei 5) e
as boas obras deve m ser reco mpensa das (Lei 6). Isso porque, para
se efetuar a plena justiça é necessário, de u m lado, castigar e, de
outro, prevenir. A prevenção e o castigo estão inseridos no âmbito
da pena, da qual tratarei no próximo capítulo.

Tanto na obra da juventude co mo no seu tratado sobre a


guerra, Grotius tem u ma clara preocupação co m o princípio da
boa-fé, que leva os ho men s a confiar uns nos outros partindo da
pre missa de que cada um cu mp re a palavra dada. Nos
“Prolegômenos” do Dire ito da G uerra, ele estabelece a
necessidade de se cumprir as promessas 122 e afirma ser u ma reg r a
de direito natural ser fiel aos co mpro missos 123. Neste ponto, el e
sustenta que há u ma regra que vai ao encontro do princípio da
boa-fé: a Regra 3 do De Jure Praedae que estabelece que aquilo
que cada um indicou ser a sua vontade é um direito. 124 É unísson o
que Grotius é um defensor de u ma sociedade criada por meio de

119
G RO T I US, Hugo. O Direit o d a G uerra e da Pa z, l iv ro I , cap. I , VI I I , pp. 76-
77.
120
Lei 5 – As m ás açõe s d ev em ser corri gi das ( Lex V – Malef act a corr ig end a).
121
Lei 6 – A s bo a s aç õe s dev em ser r ecom pen sa da s ( Lex V I – B enef act a
repens and a).
122
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, “Prol eg ôm enos”, p ar. 8º, p.
39.
123
Ibi d. , par. 15, p. 42.
124
Regr a 3 – Aqui l o qu e ca da um decl arou que el e q uer é um di rei t o em
rel ação a el e (Re gu la I I I – Q uo d se qu isqu e velle s ign if icav erit , id i n eum j us
est ).
61

u m pacto, que so mente pode ser posto em prática se cada u m dos


pactuantes cu mprirem sua parte no acordo. Deste modo, faz-se
necessária uma regra que estabeleça uma obrigatoriedade aos
co mpro missos as su midos.

Nesta argu mentação sobre o princípio da boa-fé, Grotius


sustenta que a cautela hu mana nos fez i mitar a natureza, que
garante a preservação do mundo todo por uma espécie de pacto
que vincula todas as partes. Segundo o autor, este pacto forma
u ma pequena unidade social – que te m co mo funda mento o be m
co mu m e a autopreservação dos indivíduos por meio da ajuda
mútua, visando ta mbé m a aquisição e m igualdade dos bens
necessários para a vida. Esta pequena co munidade ele denomina
“República” 125. Ela encontra razão de ser na vontade dos
indivíduos que, originariamente, se manifestaram na aceitação do
pacto e, mais tarde, confirma m o assentimento quando cada u m
deles se conecta ao corpo da República, já e stabelecida 126.

Não há nenhuma menção relevante em defesa da República


no Dire ito da Guerra, mas no De Jure Praedae ele chega a
sustentar que este siste ma de organização, tendo se originado e m
Deus, é mais aceitável do que as associações e asse mbleias de
ho mens que são conhecidas como Estado (civitates). 127 Est a
afirmação não significa que Grotius possa ser visto como u m
republicano, mas de mons tra que, ao menos na ju ventude, ele não
era u m monarquista, co mo as críticas de Rousseau sugere m 128.

125
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 19-20.
126
A dif erença ent re a rep úbl i ca a o Est ad o ser á v i st a no próx i m o capí t ul o.
127
G RO T I US, Hugo. De Jur e Prae dae Comment arius, ca p. I I , p. 20. Sobr e e st e
t em a, T uck af i rm a “Est e era o t ipo d e repú bl ica sob eran a, ent ão, q ue G rot iu s
t inha em ment e q uan do ele arg ument o u que o ind iví duo nat ural era,
moralme nt e f ala ndo, como um est ado s ob erano em mini at ura, ao q ua l o
vocabu lár io da li berd ade e da s ober an ia po de ser ap lic ada ” (Ri char d T UCK,
T he Right s of W ar and Pe ace, p. 84).
128
No segu ndo capí t ul o do l iv ro I I do Co nt rat o Soc ial, Rou sseau af i rm a:
“T odos p odem ver nos capí t ul os d e G rot i us como esse s ábi o e se u t rad ut or
Barbeyrac co nf und em-se, embar açam-se em seus sof ismas por me do de d i zer
demais sobr e o assunt o ou de nã o d i zer o bast ant e s egu ndo seus po nt os d e
vist a, f a ze ndo co lid ir os int er esses que pret endi am conci li ar. G rot ius,
ref ugi ado em F rança, d escont e nt e com su a pát ria e des eja ndo agra dar a Luí s
XII I, a qu em seu l ivro é de dica do, n ada p oupa par a d espo jar os pov os d e
62

No De Jure Praedae, Grotius entende que a República,


mesmo quando ela é composta de partes diferentes, constitui – em
virtude da sua finalidade subjacente – u m corpo unificado e
per manente, e, portanto, a República co mo u m todo deve ser
considerada co mo su jeita a u m único direito. Ele utiliza o conceito
de República para mostrar co mo u m Estado deve e star sub metido
à obediência jurídica e, nas suas relações com outros Estados,
precisa cumprir regras e leis naturais haja vista que nesta
condição os Estados asse melhar-se-iam aos ho men s no estado
pré-político. Além disso, os diferentes povos estariam ligados por
u ma espécie de parentesco natural. Tanto aqui como no Dire ito d a
Guerra, Grotius tem e m mente que to dos os ho mens for ma m u ma
espécie de “sociedade universal” estabelecida pela natureza 129.

Tendo em mente u m corpo político único – seja ele uma


pequena República, um Estado ou t oda a sociedade hu mana –,
Grotius mo stra que dentro deste ente coletivo as duas for mas d e
justiça citadas (distributiva e comp ensatória) se tornam mais
evidentes. Por meio da justiça distributiva, os bens públicos são
repartidos a vários cidadãos, de acordo co m o mérito de cada u m,
e ta mbé m são atribuídos deveres e encargos para os cidadãos,
segundo a força de cada u m. Por out ro lado, por meio da justiça
co mpensatória, a comunidade se most ra preocupada não só com a
preservação da igualdade entre os indivíduos, mas ta mbé m co m a
outorga de honrarias, e reco mpensas, e co m a punição de pessoas
que causara m danos à co munidade.

Surge m, então, leis peculiares ao pact o civil que, apesar de


derivarem das três pri meiras regras, ultrapassam os li mites das
seis leis mencionadas até então. Para preservar a comunidade
política e manter a orde m, os cidad ãos, enquanto me mbros da
mesma coletividade, devem abster-se de prejudicar os outros e

t odos os se us d ire it os e par a del es rev e st ir os r eis, c om a mel hor art e


possí vel. ” (RO USSEAU, Jean-J acqu e s. Do C ont rat o Soci al, p. 45-4 6).
129
A i dei a de “ soci eda de univ ersal ” f i ca cl ara n o De Jur e Prae dae (p. 21) e el e
usa o t erm o “soci edad e de hom en s” no Dir eit o da G uerra e d a Pa z (p. 73 ).
Not a- se, nov am ent e, a i nf l uênci a est oi ca ne st a concepçã o.
63

proteger-se mutua mente (Lei 7) e, ta mbé m, é dever do cidadão


abster-se de apreender os bens dos outros – se ja m eles de u so
privado ou comu m –, be m co mo contribuir com o que for
necessário para os outros indivíduos e para toda a coletividade
(Lei 8) 130.

Estas duas últimas leis apontam para o bem co mu m da s


pessoas que vivem e m u ma co munidade. Embora, no estado de
natureza, cada u m se preocupe mais co m sua própria sorte do que
co m a de outre m, e m u ma co mpar ação entre o benefício de
indivíduos isolados e o benefício de todos, o último deve
prevalecer na medida e m que a coletividade també m inclui os
sujeitos singularmente considerados.

No que diz respeito a este bem co mu m, a vontade de todo o


conjunto de cidadãos prevalece. Lembrando que cada u m dos
cidadãos teria manifestado seu consentimento, por meio de u ma
vontade livre, para que fosse estabelecido o arranjo da
co munidade política. De acordo co m o jurista, a referida vontade,
quando aplicada a todos, é cha mada de lei propriamente dita (le x
propria d icta). Esta lei, alicerçada no acordo mútuo e na vontade
dos indivíduos, é u ma “lei civil”, por ser estrita mente ligada à
co munidade política.

Este argu mento apresenta o direito civil como u ma espécie


de direito que surge desta vontade co letiva. Não é por acaso qu e
Grotius, logo após fazer essas considerações sobre a lei
propriamente dita, estabelece a sua Regra 4 131 que dá orige m a o

130
Lei 7 - O s cidad ãos n ão só devem se abst er de pre jud icar os out ro s
cidad ãos, mas d evem, t ambém, pr ot egê- lo s, t ant o como um t od o e com o
ind iví duos. (Lex V I I – Ut sin gu li civ es caet eros t um univ ersos, t um sin gul os
non m odo no n lae dere nt , verum et iam t uer ent ur). L ei 8 - O s ci dad ão s nã o
apen a s d ev em abst er- se de t i rar un s do s o ut ros a s c oi sa s po ssuí da s de m odo
priv ado ou de f orm a em com um , m as, ao co nt rári o, dev em garant i r as coi sa s
nece ssári a s t ant o par a o s i ndiv í duos qu ant o para à c ol et iv i dade. (Lex VI I I - Ut
cives non mod o a lt er alt er i pr ivat im aut inc ommune poss essa non er iper ent ,
verum at iam si ngu li t um qu ae si ngu lis, t um quae u nivers is nec essari a
conf erent e).
131
Regr a 4 – T u do aqui l o q ue a re públ i ca d ecl arou que el a quer é di rei t o par a
t odo s o s ci da dão s ( Reg ula IV – Q u idq ui d res publ ica s e vel le s ign if icav it , id i n
cives un iversos j us est ).
64

direito que, segundo o jurista, para os filósofos seria convencional,


particular e doméstico, e para os juristas seria o direito civil.
I mportante salientar que o holandês afirma que este direito é
relativo, mudando confor me a causa e a vontade humana –
variando, també m, de localidade para localidade –, ao passo que
os preceitos do direito natural perman eceriam os mesmos. Por isso
os céticos estariam errados e m sustentar a não existência do
direito natural, haja vista que a mudança de norma s de u ma
localidade para outra estaria atrelada a u ma diferente concepção
de direito civil e não de direito natural.

Apesar de utilizar um argu mento co nvencionalista quando


trata do direito civil, Grotius não é u m convencionalista na medida
e m que ele assevera que existe m preceitos naturais baseados e m
causas constantes, sendo que o que variaria de uma localidade
para outra não seria o direito natural, mas a concepção do que é
bo m 132. Esta variação dá origem a leis aplicáveis a u ma
co munidade específica, mas este con junto nor mativo não pode, de
modo algu m, se opor aos princípios do direito estabelecidos pela
natureza 133.

Não basta que a manifestação da vontade constitua um


direito para todo o corpo de cidadãos, este direito també m deve
ser aplicado às suas relações recíprocas – Regra 5 134. Deste mod o ,
as Regras 4 e 5 ganha m total sentido para a preservação dos
ho mens. O fato de ser lei, para todo o corpo de cidadãos e ta mbé m
para os cidadãos nas suas relações mútuas, a vontade indicada,
anteriormente, pela República, é fu nda mental para garantir a

132
Um dos arg um ent os d e Carn éad e s t razi dos por G rot i us no s “Prol egôm eno s”
repet e um a t ese do s conv enci onal i st as seg u ndo a qu al não po de hav er di rei t o
nat ural por que a j ust i ça v ari ari a de soci edade para soci edad e. Q uand o o
j uri st a, aqui , def ende que, ap e sar de ex i st i r um a v ari ação sob re a conc epçã o
do que é b om , ai nda assi m hav eri a um di rei to nat ural , el e parece ant eci pa r a
su a argum ent açã o cont ra o cét i co.
133
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 23.
134
Regra 5 - Aqui l o que a rep úbl i ca deci di u que el a qu er é di rei t o ent re o s
ci dadão s (R egu la V – Q u idq uid r espu blic a s e vell e sig nif ic avit , id int er c ives
singu los j us est ).
65

segurança e preservação de todo o corpo de cidadãos da


co munidade.

Entretanto, a preservação da sociedade não pode ser feita


de qualquer modo, devendo e xist ir alguma segurança aos
transgressores da lei. Surge, então, a necessidade da instituição
de u m siste ma judicial ordenado, ao qual os cidadãos manifeste m
seu consentimento. Este consenti ment o se concretiza por meio do
direito civil. 135 Poré m, Grotius diferencia o direito civil do
procedimento judicial (judicium), o primeiro estaria relacionado
co m a vontade de todos os cidadãos aplicada a todos eles e o
judicium seria a vontade de todos aplicada a um cidadão e m
particular, tendo e m vista o be m co mu m. 136 Este procedi mento é
u ma for ma de a República intervir como árbitra entre os cidadãos
por meio de u m julga mento. Contudo, não é possível que todos o s
cidadãos julgue m os envolvidos na disputa, ou haveria a
necessidade de participação de todos e os próprios litigantes
estariam e xercendo u m julga mento e m causa própria, ou seria
necessário criar uma for ma legítima de decisão na qual alguns
cidadãos escolhidos participassem do procedimento.

Grotius optou pelo último recurso e ressalta que o poder


civil, que se manifesta nas leis e julga mentos, reside
essencialmente na República, que pode exercê-lo sobre as
pessoas e seus bens, na medida e m que o poder da República é,
na verdade, o poder de todos os seus me mbros aplicável, portanto,
a todos os cidadãos. Estes, fazend o uso de seu poder legal,
delegaram o e xercício do jud ic ium a deter minadas pessoas.
Aqueles que ficam incu mbidos desta atribuição são cha mados, e m
grego, de arcontes e, em latim, de ma gistratus ( magistrados). 137 O

135
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 23.
136
T ant o o di rei t o civ i l quant o a l ei adv i nda do proc edi m ent o j udi ci al não sã o
obj et o da s regr a s e l ei s enum erad a s no t ex t o.
137
Na G réci a ant i ga, “arcont e” era um a espéci e de t í t ul o recebi do pel o s
at eni en se s e sc ol hi dos para f azer part e d o areóp ago, um consel ho qu e no
perí odo dem ocrát i co ex erci a o papel de um t ri bunal re spo n sáv el pel os
j ul gam ent os de cri m es. Magi st ra do t am bém era, t radi ci onal m ent e, um t í t ul o
l i gado a um cargo of i ci al . Na ant i gui dade ro m ana, um magist rat u era um do s
66

magistrado manifesta sua vontade, e m u m ca so específico, por


meio de u m procedi mento judicial. Assi m, o que o magistrado
indicou ser sua vontade é um direito, no que diz respeito a todo o
corpo de cidadãos (Regra 6) e aos cidadãos enquanto indivíduos
(Regra 7) 138.

Um dos aspectos mais interessantes desta obra da


juventude e que pode e xplicar o fato d e Grotius não a ter publicado
é o fato de nela constar uma p reocupação co m o direito
instrumental, além de existir uma noção embrionária de duas
características apontadas pelos juristas conte mporâneos co mo
principais do chamado Estado de Direito: a defesa do devido
processo legal e do império da lei. O jurista holandês defende a
obrigatoriedade de se recorrer ao procedimento judicial quando há
conflitos de pretensões entre os me mbros de u m Estado e chega a
sub meter este Estado às regras e leis naturais que apresenta,
além de sustentar que o próprio Estado deve fazer uso do
procedimento judicial.

Ele é claro ao afirmar que nenhum cidadão deve procurar


fazer valer seu próprio direito contra u m concidadão se m u m
procedimento judicial (Lei 9), sendo função do magistrado agir e m
todos os assunto s para o be m da Rep ública (Lei 10). Por sua vez,
cu mpre à República defender a validade de todo ato exarado pelo
magistrado (Lei 11) 139.

m ai ores of i ci ai s do g ov erno e po ssuí a t a nt o o pod er j udi ci al com o o ex ecut iv o.


Em G roti us o m agi st rado p o ssui um a e sp éci e de m andat o e t em f unção
j udi ci al e l egi sl at iv a, na m edi da em que el e det erm i na di rei t os p or m ei o d e
su a v ont ade.
138
Regr a 6 - Aq ui l o que o m agi st rad o d eci di u q ue el e quer é di rei t o para t odo s
os ci dadã o s (R egu la V I – Q uod se ma gist r at us vel le s ig nif icav it i d i n civ es
univers os jus est ). Regr a 7 - Aq ui l o que o m agi st ra do deci di u qu e el e quer, é
di rei t o para ca da ci da dão (Re gul a V II – Q uo d se ma gist rat us v el le s ign if icav it
id in c ives s ing ulos j us est ). O m agi st rad o t rari a um a “l ei ” ao ca so co ncret o,
i ndi cari a qual é a l ei de nat ur eza para a sol uçã o do c onf l it o. T rat arei da
f unção do m agi st rado m ai s a f rent e.
139
Lei 9 – Q ue nen hum ci dadão ex ecut e o se u di rei t o cont ra out ro ci dad ão a
não ser m edi ant e um procedi m ent o j udi ci al (Lex IX – N e civis adv ersus civ em
jus su um nis i j udic io exseq uat ur). L ei 10 - O m agi st rado t ud o f aça par a o bem
da rep úbl i ca (Lex X – Ut magist rat us omni a g erat e bo no r eip ubl ica e). Lei 11 –
que a r epú bl i ca consi der e rat i f i cados t odo s o s at o s real i zado s p el o
m agi st rado (Lex X I – Ut qui dqu id mag ist rat us gessit respu bl ica rat um ha beat ).
67

Há u ma preocupação co m o proced imento judicial co mo


for ma pela qual se busca a aplicação da lei e, consequentemente,
da pena. Grotius, ao tratar da guerra no Dire ito da Guerra e da
Pa z, sustenta que a força só pode ser empreendida pelo particular
no caso de ausência de magistrados ou quando o acesso ao
magistrado se mostrar e xtre ma mente difícil. A instituição de um
corpo político torna necessário o recurso ao juiz para solucionar os
conflitos.

Não são apenas os cidadãos que estã o su jeitos às regras e


leis expostas por Grotius, mas os Estados ta mbé m deve m adotar
deter minadas condutas. As Regras 8 e 9 demonstra m a intenção
grociana de sub meter os Estados às leis que por eles próprios
fora m elaboradas (Regra 8) e que eles cu mpra m o procedi mento
judicial – sendo que o direito de fazer uso do procedimento judicial
deve ser dado ao réu (seja ele um cidadão ou Estado), soment e
passando ao autor se ficar comprova do a negligência do réu no
cu mpri mento do seu dever (Regra 9) 140.

Saliente-se que a Lei 12 é clara ao estabelecer que nem a


República nem qualquer dos seus cidadãos deve fazer valer seu
próprio direito contra outro Estado o u seus cidadãos, salvo por
meio de procedimento judicial 141. Aq ui é criado um princípio
jurisdicional que tem por ob jetivo assegurar a obrigatoriedade de
se recorrer aos tribunais quando houver conflito entre me mbros de
co munidades políticas distintas. Co mo dito há pouco, é
interessante o fato de Grotius estab elecer que o próprio Estado
deve se submeter ao devido processo, ou seja, recorrer a um de

140
Regra 8 - T ud o aq ui l o que t o da s a s r epú bl i cas deci di ram que el a s q uerem ,
i sso é di rei t o para t odo s ( Reg ula VI I I – Q uid qui d omn es res pub lica e
sign if icaru nt se vel le, i d in omnes j us es t ). Regra 9 – N o j ul gam ent o a
pri ori dade será dad a para a r epú bl i ca que é ré, o u cuj o ci d adã o é o réu. M a s
se ne st a r epú bl i ca est e of í ci o cessar, a rep ú bl i ca aut ora, ou cuj o ci dad ão é o
aut or, dev e j ul gar. (Regu la IX – I n j udi cando pri ores s int p art es e ju s
reipu bl icae, u nde c ujusv e a civ e pet it ur. Q uod si h ujus of f icium c esset , t um
respub lic a, quae ipsa cu jusve c ivis pet it , eam rem judicet).
141
Lei 12 - N enh um a repúbl i ca e ne nhum ci dadão ex erça o seu di rei t o cont r a
out ra rep úbl i ca ou cont ra um ci dadão d e out r a repú bl i ca a não ser por m ei o de
um procedi m ent o j udi ci al (Lex X II – Ne respub lic a n eu c ivis i n a lt eram
rempub licam a lt eri usve civem jus suum n isi j udic io exse quat ur).
68

seus magistrados para fazer valer seu direito contra um de seus


cidadãos ou contra outro Estado. Sem muito alarde, Grotius cria
u ma grande limitação ao poder estatal com essa lei e defende a
obrigatoriedade da jurisdição para a solução de qualquer espécie
de conflito, inclusive os que envolvam Estados.

Co mo salientado há pouco, a Regra 8 está ligada ao jus


gentium secundar ium e é u ma mistur a de direito civil com direito
das gentes, tendo e m vista que as leis de todos os Estados
passa m a ser aplicadas a todos eles por uma aceitação recíproca.
A Lei 12 ta mbé m diria respeito a um princípio do jus gent ium,
asse melhando-se ao direito civil da Lei 9 na medida e m que a mba s
garante m o jud ic io e xse quatur e o torna m obrigatório.

No final do segundo capítulo do De Jure Praedae, é


apresentada uma situação e xcepcional para não se recorrer ao
magistrado. Este argu mento ta mbé m está presente do Dire ito d a
Guerra e da Pa z. Segundo Grotius, se, por exe mplo, a vida de
alguém está e m perigo, sendo este perigo resultado de um ataque
de algum indivíduo e m circunstâncias de te mpo e lugar que não
per mita m o recurso a um juiz, esta pessoa que sofre o ataque
pode, de modo justo, se defender, desrespeitando a Lei 9 –
relativa ao procedimento judicial. 142 Nesta situação, nem mesmo a
Lei 3, que proíbe ferir o outro, seria u m obstáculo para a legítima
defesa, pois, caso contrário, nenhum indivíduo seria capaz de
exercer o direito estabelecido pela primeira lei, que recomenda a
manutenção da própria vida.

Esta e xce ção encontra respaldo na sua última lei (Lei 13),
que é um princípio interpretativo de todo o sistema 143. Esta lei
assevera que nos casos e m que as leis podem ser ob servadas

142
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 29.
143
Lei 13 - No s ca so s em que a s l ei s p odem se r ob serv adas si m ult aneam ent e,
sej am el as o b serv adas; qu and o i sso não po de ser f ei t o, ent ão sej a pref erív el
aquel a l ei qu e é m ai s di gna (Lex XI I I – Ut ub i simu l o bserv ari possu nt
observe nt ur: ubi id f ier i non p ot est , t um pot io r sit quae est di gni or).
69

simultanea mente, deve-se seguir todas ao mesmo te mpo, e,


quando isto for impos sível, a lei hierarquicamente superior deve
prevalecer. Pela argumentação e mpregada por ele, percebemo s
que a hierarquia das leis está em confor midade com a nu meraçã o
delas.

Grotius defende a obrigatoriedade de o Estado se subme ter


a u m procedi mento judicial para fazer valer suas pretensões. Esta
necessidade de um procedi mento con stitui um verdadeiro limite à
atuação do Estado e fa z co m que os cidadãos e os Estados se ja m
iguais, na medida e m que a mbos de pende m de u m procedi mento
judicial para o exercício de um direito que foi violado.

2.2 Lei e direito naturais no Di reito da Guerra e da Paz

No Dire ito da Guerra e da Pa z há u ma preocupação com a


sobrevivência e a manutenção da vida, esta mpada nas duas
primeiras leis do De Jure Praedae. Contudo, na obra da
maturidade, ele não retira as leis que preserva m a vida daquilo que
Deus mostrou ser sua vontade, mas da natureza racional humana
que possibilita, por meio da observação da ordem natural, verificar
a tendência que o ser humano te m p ara viver em sociedade. A já
analisada “hipótese impiíssima” e xclui a necessidade de uma
argu mentação funda mentada e m u m criador supremo. Afinal, é a
própria razão que nos mostra a necessidade de preservação.

Por isso, ao invés de utilizar uma argumentação teocêntrica,


Grotius, no primeiro capítulo do Dire it o da Guerra, apresenta uma
verdadeira teoria das fontes do Direito ao mostrar os po ssíveis
sentidos que o termo direito (jus) pode ter. É a partir do
estabelecimento dos sentidos que a palavra direito tem que o
jurista for mula u m siste ma racional dedutivo de regras naturais.
70

Em primeiro lugar, o direito é tido como sinônimo de justo. 144


Por ter u ma preocupação prática, Grotius parece ver o direito como
atributo de uma ação. Neste sentido, o jurista argu menta que dada
a dificuldade de valorar os atos hu manos, para que u ma
deter minada ação seja qualificada como “ justa” seria necessário
confrontá-la com condutas reputad as co mo “in justas” – u ma
afirmação que não esclarece o alcance do termo, afinal definir o
que é “injusto” é tão difícil quanto definir o que é “ justo”. Uma
solução para este impa sse pode ser e ncontrada no fato de o autor ,
to mando a justiça co mo u ma virtude 145, sustentar que “é in justo o
que repugna à natureza da sociedade dos seres dotados de
razão”. 146 O jurista nova mente apresenta afirmações de Cícero 147 e
Sêneca 148 e m defesa da vida co mu m e do respeito recíproco do s
me mbros da co munidade política.

As citações de monstra m que o jurista concorda co m Cícero


ao defender que a prática de um ato injusto – por e xe mplo,
despojar o outro e m vista do próprio proveito – atenta contra a
natureza e, caso todos agissem deste modo, haveria o risco de a
sociedade entrar em colapso. Além disso, o ponto de vista de
Grotius mostra-se afinado co m Sê neca, que entendia que a
sociedade subsistiria por meio da proteção recíproca de seus
me mbros. Esta proteção, por sua vez, ocasionaria uma har monia
entre os ho mens.

Co m es ta argu menta ção aparente me nte si mples, o jurista


vincula o direito, o justo, à vida e m u ma sociedade. Dentro desta
144
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , I I I, p. 72.
145
Lem brem os qu e, com o di t o no c apí t ul o an t eri or, em Sêneca a v i rt ude se
i dent if i ca com a razão.
146
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , p. 73.
147
G rot i us m enci ona o De O f f iciis, I I I , 5, 21.
148
O j uri st a ci t a um t recho d o D e Ira, I I , 31, no qual Sê neca t eri a e scri t o:
“como exist e uma harmo nia ent re t odos os m embros, po rqu ant o é do int er esse
do t odo q ue ca da um em p art icu lar se ja conserva do, assim t amb ém os
homens se p oup am uns a os out ros p orqu e n ascemos par a a vid a comum. De
f at o, a socie dad e nã o po de su bsist ir se n ão pe lo am or e p ela prot eçã o
recí procos das part es de que se co nst it ui. ”. Em not a a e st a ci t ação, o j uri st a
m enci ona out ra p a ssag em de Sênec a, da C art a 48, 3, na q ual se f al a de um
di rei t o com um do gênero hum ano, f undado na própri a nat ur eza, que no s f ez
soci áv ei s e que f ort al ece o v í ncul o de ami zade.
71

sociedade dois tipos de relações emerge m. De u m lado, te m-se


u ma situação de horizontalidade, caracterizada pela igualdade que
existe entre os cidadãos que se relaciona m uns co m os outros, e,
de outro lado, tem-se u ma situação de verticalidade que leva e m
conta a relação entre o governante e aqueles que são governados.
O primeiro caso diz respeito ao direito de igual para igual e o
último refere-se ao direito de superioridade. A justiça deve levar
e m conta esta distinção.

Neste pri meiro sentido, o fato de o jus estar vinculado à


justiça faz co m que o direito apresente uma a mplitude exacerbada.
Talvez visando restringir o alcance do termo, no segundo sentido,
Grotius afirma que o direito seria u ma qualidade moral que
corresponde a u ma pessoa ter algu ma coisa ou agir justa mente. 149

Nesta segunda acepção, surge m d uas modalidades de


direito: direito enquanto faculdade e direito enquanto aptidão. O
primeiro direito diz respeito a u ma f aculdade moral perfeita, da
qual decorre o direito estritamente dito ou próprio. O segundo, por
sua vez, é u ma qualidade moral imperfeita. O jurista utiliza termo s
aristotélicos quando afirma que, ao falar de coisas naturais, a
faculdade corresponderia ao ato e a aptidão à potência (“quibu s
respondent in naturalibu s, illi qu idem actus, hu ic autem potent ia ”),
mas não apresenta u m desenvolviment o desta ideia.

A faculdade, ou direito próprio, no entender de Grotius, era


designada pelos juristas pela expressão “sui” (seu, próprio). Esta
afirmação poderia ser vista como u ma forma de o jurista mostrar
que suas definições são repetições de conceitos do direito romano,
mas, co mo será visto a frente, ele foi alvo de críticas justa ment e

149
“T omado nest e s ent i do o d ire it o é uma qua l idad e mora l li gad a ao ind iví du o
para p ossuir ou f a zer de mod o just o alg uma coisa ” (H ugo G RO T I US, O Direit o
da G uerra e da Pa z, l iv ro I , Cap. I , I V, p. 74). A t radução da e di t ora Uni j uí ,
ne st a pa ssagem , t raz com pli cações – com o o u so da p al av ra “i ndiv í duo”.
Verif i ca-se n o t ex t o ori gi nal : “ius est qua lit a s moral is perso nae comp et ens a d
ali qui d just e h abe ndum v el ag end um ”. Na t ra dução para o i ngl ê s t em -se: “ri ght
is a mor al qua lit y a nnex ed t o t he p erso n, jus t ly ent it l ing him t o poss ess som e
part icu lar priv ile gie, or t o perf orm some p art icul ar act”. N e st a s c on st am o
t erm o “pessoa”.
72

por ter se afastado dos jurisconsultos romanos neste ponto. O


jurista sustenta que a faculdade pode ser: u m poder sobre si
mes mo (potestas in se), que ele denomina de liberdade; um poder
sobre os outros (potestas in alios), co mo, por exe mplo, o pátrio
poder; um do mínio pleno e total, que poderia estar vinculado à
propriedade, ou um do mínio menos pe rfeito, co mo, por e xe mplo, o
usufruto e o direito de crédito.

Igualmente, a faculdade ta mbé m se apresenta co mo


“popular” (quando estabelecida para o benefício privado) e
“e minente” (quando adstrita ao interesse co mu m), esta é superior
ao direito popular e, consequentement e, estaria acima dos direitos
das pessoas e de seus bens. Este direito eminente possibilita ao
rei exercer uma tutela sobre os poderes das pessoas que possuem
certo grau de hierarquia social, como o pai e o mestre. Alé m disso,
este direito concederia ao monarca a possibilidade de utilizar a
propriedade dos súditos quando houvesse necessidade, tendo e m
vista o bem co mu m – le mbre-se que a justiça deve ser vista de
acordo co m a relação dos envolvidos e há u ma hierarquia entre o
governante e o governado. O direito eminente faz ta mbé m co m qu e
os cidadãos se sintam mais obrigados às necessidades públicas do
que às necessidades de seus credores. 150

A e xplanação de Grotius do direito enquanto faculdade não


encontrava respaldo no direito roma no e fez com que o jurista
fosse alvo de críticas. John De Fe lde afirmou que apesar de
Grotius trazer uma definição que corresponde ao que os ro manos
cha mava m de o seu (suum), a liberdade não era vista pelos
juristas ro manos co mo u m direito. Por sua vez, Ulrich Huber era
contrário à inclusão do do mínio no conceito de direito, haja vista
que os antigos não vinculavam o do mí nio ao direito. 151

150
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , VI , p. 75.
151
VI LLEY, Mi chel . Est údios e n t orno a la n oci ón de der echo sub jet ivo, p. 25-
31.
73

Michel Villey sustenta que por esta exposição, Grotius pode


ser tido como u m possível introdutor da noção moderna de direito
subjetivo 152. Segundo ele, estas noções de direito de personalidade
e de propriedade têm origem moder na e não ro mana, pois os
juristas ro manos não dispunham d e um ter mo abstrato para
designar o direito de uma pe ssoa sobr e o be m que lhe pertence. 153
Entretanto, Brian Tierney rebateu a argumentação de Villey,
segundo a qual as origens do direito subjetivo encontrava m-se na
concepção, pri meiramente utilizada por Guilherme de Ockha m e
depois por Grotius, segundo a qual o direito estaria vinculado à
faculdade. Segundo Tierney, a acepção de jus como facultas ou
potestas te m orige m nos canonistas do século XII. 154 Além disso ,
ele argumenta que os ter mos potest as, facultas e potent ia são
ter mos que designa m u ma sub categoria da “qualidade” – ele cita o
Summule Logicale s de Petrus Hispanus (posteriormente, Pap a
João XXI) e assevera que nesta ob ra se encontra a qualidade
definida como aquilo segundo o qual se é chamado ‘quais’, co mo
quando segundo a ‘brancura’ se chama ‘brancos’, segundo a cor,
‘coloridos’, e segundo a justiça, ‘justos’.

Embora e xista divergência sobre o fato de o autor ser o u


não u m dos precursores da interpretação do direito enquanto

152
Segund o Mi chel Vi ll ey (Est údios en t orno a la noci ón de d erech o subj et ivo,
p. 26- 31 e 151- 190), qua ndo G rot i us d ef i niu j us com o q ual i dade m oral qu e
corre spo nde a um a pe ssoa t er al gum a coi sa ou a gi r j ust am ent e e af i rm ou que
esse jus pod eri a ser um pod er sobr e si m esm o; um poder sobr e out ro s ou um
poder sobr e a s c oi sa s, t em -se um a def i ni ção de j u st i ça pareci d a com o qu e o s
rom anos cham av am de “o seu”. Ent ret ant o, a li berdade n unca f oi concebi da
pel os r om anos com o um di rei t o. Vil l ey af i rma que e st a s n oçõe s d e di rei t os d e
per son al i dade e de p ropri ed ade, t ã o f ami li ares p ara n ó s, t êm ori gem
rel at iv am ent e recent e e q ue a v i são su bj et iv a de n o ssa ci ênci a j urí di ca é
m oderna, e n ão rom ana. Se gun do e st e com ent ador, f oi G uil herm e de O ckham
quem i nt roduzi u a i dei a de di rei t o su bj et iv o – qua ndo proc urav a def ender o
di rei t o de pro pri eda de d o s f ranci sca no s, c ont e st ado pel o P apa J oão XXI I .
O ckham deu ao t erm o jus um sent i do n o qual f ez um a di st i nção ent re
perm i ssã o e di rei t o, def i ni ndo est e com o um poder at ri buí d o p or um a l ei
po si t iv a: o poder de reiv i ndi car em j uí zo (potest as vind ican di et def en den di i n
human o iud ici o).
153
VI LLEY, Mi chel . A f ormação do pens ament o jurí dic o moder no, p. 666.
154
T I ERNEY, Bri an. “Vi ll ey, O ckham and t he Bi rt h of I ndiv i dual Ri ght s”, T he
W eight ier Mat t ers of t he Law : Essays on L aw and Rel ig ion, p. 1- 32; e T he
Ide a of N at ural Ri ght s: St udi es on Nat ura l Right s, Nat ural Law , and Churc h
Law , 1150-16 25.
74

faculdade, Grotius teria introduzido a ideia de qualita s moralis para


qualificar a faculdade. Contudo, os autores medievais estudados
por Tierney – co mo, por e xe mplo, Marsílio de Pádua – já
vinculavam o jus à ideia de potentia. Alejandro Guzmán 155 salienta
que quando Grotius fala de qualitas, ele estaria utilizando uma
concepção apresentada por autores que o precederam, sobretudo
pensadores do final do século XII e início do XIII, que
identificavam a potência co m a qualidade.

Os estudos de Villey e de Tierney são de grande valor.


Entretanto, o vínculo entre Grotius e os pensadores dos séculos
XII e XIII não fica claro no Dire ito da Guerra. Nesta obra, o autor,
diferentemente dos pensadores men cionados por Tierney, não
vincula a qualidade moral (qualitas moralis) apenas à potência
(potentia), mas ta mbé m ao ato (acto). É a partir desta últi ma que o
jurista aborda o poder sobre si (liberdade), sobre o outro e o
direito de crédito. Ade mais, o jurista não faz menção a autore s
desta época.

Feitas estas considerações, ressalta-se que Grotius, a


despeito de não concordar em muit os pontos com Aristóteles,
reto ma o conceito deste filósofo quando sustenta que o direito
enquanto faculdade (quando designa u ma potência) está ligado à
aptidão, que era denominada de a xia (valor) por Aristóteles.
Todavia, o jurista não se aprofunda nesta espécie de direito e não
esclarece o significado da expressão. De u m modo geral, o ter mo
grego axia pode ser traduzido como preço ou valor, e serve de
base para se indicar o que faz u ma pessoa ser merecedora d e
algo 156.

155
G UZ MÁN, Al ej andro. “Hi st ori a de l a de no mi naci ón del der echo-f acul t ad
com o ‘subj et iv o’”, Est udios Hist ór ico-Jurí d ico s, p. 407-443.
156
Ari st ót el es, se gun do Adri ana Sa nt o s T abo sa , “propõe qu e a ‘axia ’ (val or), a
base da med ida e a própr ia med ida nas re l ações de t roca como const it ut iva
da soci eda de, é a nec essid ad e, ist o é, a r e lação dos ind iví duos uns c om os
out ros e de t odos par a cida de. Cad a u m vale segun do o qu e t ra z à
necessi dad e comum. ” (A dri ana S. T ABO SA, “A i gual dade e a
com ensur abi l i dade na s t roca s em Ari st ót el es”, HYPNO S, p. 118) . Mi chael
Pakal uk, ao com ent ar o s l iv ros VI I I e I X d a Ét ica a Nic ômaco, sal i ent a qu e a
axia, “(. . . ) em Arist ót e les, des empe nha o p apel de ind icar o qu e é que f a z
75

Partindo desta segunda acepção do ter mo jus é possível


verificar a existência de dois tipos de direitos: perfeitos e
imperfeitos. Quando esta qualidade moral ligada ao sujeito é
co mpleta te m-se um “direito perfeito”, també m deno minad o
faculdade ou direito próprio ou estritamente dito. Este direito
perfeito ensejaria, entre os ho mens, as obrigações. Quando este
direito é ameaçado há a possibilidade de se buscar a tutela
jurisdicional dos tribunais ou, caso não seja possível fazer uso
deste artifício, recorrer-se à guerra. Por outro lado, a aptidão
(axia) estaria associada a um direito imperfeito que não está
vinculado a uma obrigação, mas às virtudes - “cujo ob jeto é de
fazer o bem aos outros, co mo a liberdade, a clemência, a sábia
condução do governo do Estado” 157. O jurista não afir ma que o s
“direitos imperfeitos” são obrigatórios, mas sustenta que seu
conteúdo é apenas louvável 158 e vinculado a u ma regra de a mor 159.

A faculdade e a aptidão vinculam-se a duas espécies de


justiça: a justiça expletiva e a justiça atributiva. Este trâmite,
so mado ao fato de o jurista não retirar maiores consequências do
fato de a aptidão ser equivalente à axia, mostra que o jurista
afasta-se da concepção aristotélica da justiça. Pri meira mente ,
Grotius não manté m o sentido da justiça “comutativa”, mas a
substitui por uma ju stiça expletiva e vincula esta justiça ao direito
propriamente dito.

O jurista entende que Aristóteles teria limitado esta justiça


na medida e m que o filósofo grego teria sustentado que esta
modalidade de justiça diria respeito aos contratos. Para o
holandês, a justiça expletiva não incidiria apenas sobre os
contratos, mas ela ta mbé m obrigaria o possuidor de um be m alheio
a devolver este be m ao legítimo do no – este ato não requer a

uma pesso a ou ação mer eced ora d e al guma coisa. ” (ARI ST Ó T ELES, Arist ot le
Nicomac hea n Et hics, book s VI I I and I X, p. 93 , t radução l iv re).
157
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , VI I I, p. 76.
158
G RO T I US, Hugo. O Dir eit o da G u erra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I I , I , pp. 100-
101.
159
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I I, VI II , p. 135.
76

existência de u m contrato entre eles. Alé m desta mudança, Grotius


aparta o direito propriamente dito (faculdade) da justiça distributiva
(deno minada por ele de justiça atributiva) e vincula esta justiça à
aptidão, por entender que a justiça a tributiva estaria atrelada às
virtudes e consistiria em fazer o be m a os outros. 160

Deste modo, ao estabelecer um elo entre a justiça expletiva


e a faculdade, de um lado, e a justiça atributiva e a aptidão, de
outro, o jurista altera o sentido aristotélico da justiça co mutativa e
não mais aceita que o ju sto consista e m u m “ meio” – nos
“Prolegômenos”, ele claramente se opõe a esta concepção de
justiça de Aristóteles. 161 Mas não é só neste ponto que Grotiu s
discorda do filósofo grego, o jurista entende que a diferença entre
as duas modalidades de justiça estaria nas matérias tratadas por
elas, e não residiria em u ma proporção mate mática, co mo
sustentava Aristóteles – para o jurista holandês, o filósofo grego
entendia que a justiça expletiva (co mutativa) seguiria uma
proporção aritmética e a ju stiça atributiva (distributiva) designaria
u ma proporção geo métrica ou, em te r mos grocianos, na primeira
haveria uma proporção si mples e na segunda te m-se u ma
proporção co mparativa.

Apresentados os dois primeiros sentidos do jus e feita uma


pequena análise sobre o direito propriamente dito, Grotius traz a
lume o sentido da palavra “direito” do qual extrai as maiores
consequências. Neste último significado, o direito é tido como
sinônimo de lei, consistindo em u ma “regra das ações morais que
obrigam a que m é honesto” 162. O jurista salienta a importância d e
existir u ma obrigação na lei e no direito, na medida e m que se m

160
G RO T I US, Hugo. O Direit o d a G uerra e da Pa z, l iv ro I , cap. I , VI I I , pp. 76-
77.
161
“(. . . ) não é sem r a zão qu e a lg uns plat ônic os e ant i gos crist ãos p arece m
t er-se af ast ado de Arist ót eles, no p ont o em que est e f ilós of o coloc ou a
própr ia n at ure za da v irt ud e num just o m eio de p aixõ es e de aç ões. (. . . ) A
f alsid ade d esse pri ncí pi o post o de um a man eira ge ral pr ovém do ex empl o da
just iça. ” (G RO T I US, Hugo. O Direit o d a G uerra e d a Pa z, “Pr ol egôm eno s”,
par. 43 e 44, p. 58).
162
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , I X, p. 78.
77

esta força o jus não poderia ter este no me. Não basta sse isso, não
é apenas o justo que é obrigatório, mas o honesto, pois a
incidência do direito deve abranger todas as virtudes morais e não
apenas a justiça. Vê-se, nova mente, o modo co mo o autor reto ma
a doutrina moral de Sêneca e Cícero e dá a ela um grau de
obrigatoriedade. O jurista holandês pretende que as virtudes se
torne m obrigatórias e abrangidas pelo direito.

É co m este terceiro sentido do jus e m mente que Grotius


define o direito natural que, ao ser ditado pela reta razão, nos
“leva a conhecer que uma ação, dependendo se é ou não conforme
à nature za rac ional, é afetada por d eformidade moral e que, em
decorrência, Deus, o autor da natureza, a proíbe ou a ordena” 163.
O direito natural se consubstancia em ato s obrigatórios e lícitos,
sendo por isso diferente do direito hu mano e do direito divino
voluntário porque estes dois tipos de direito não prescrevem ne m
proíbe m coisas obrigatórias ou lícitas por si mesmas. Surge, então,
u ma i mportante diferença entre o direito natural e os direitos divino
e hu mano, a obrigatoriedade e a licitude do direito natural não
estão funda mentadas fora deste direito, ao passo que tanto o
direito divino quanto o direito human o requerem u m funda ment o
que lhes assegure a vigência e depende m de u m ato de vontade
para existir – veremos adiante que o jurista holandês insere o
direito humano e o direito divino dentro de u m “direito voluntário”.

Não obstante ser u m direito válido por si mesmo e não


depender da vontade humana, o direito natural não diz respeito
so mente a ob jetos que estão alé m d a vontade dos ho mens, ele
ta mbé m incide sobre as coisas que estão conforme esta vontade –
por exe mplo, a propriedade que foi introduzida pela vontade
hu mana e, a partir do mo mento e m q ue teve início, se torna parte
do direito natural e deve ser respeitada (há u ma lei natural que
proíbe que eu me apodere, contra a vontade do outro, daquilo que
a ele pertence – temos, neste ponto, uma repetição da Lei 4 do De

163
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , X, p. 79.
78

Jure Praedae). A propriedade – que originalmente não er a


resguardada pelo direito natural – é inserida no rol dos objetos
assegurados por este direito pelo fato de, por meio dela, os seres
hu manos conseguire m manter a vida em sociedade, por meio da
proteção dos bens necessários à subsistência de cada pessoa.

Grotius afirma que o produto da vonta de dos ho mens, desd e


que e m confor midade co m o direito natural, pode se tornar ob jeto
da lei natural. Ele faz a supracitada referência à propriedade,
instituição que é derivada da vontade hu mana. Esses ob jetos,
e mbora não seja m naturais, passa m a ter sua violação protegida
pela lei natural pelo fato de a elaboração de regras ser parte
importante do direito de preservação da sociedade. A vontade
hu mana, portanto, cria objetos que não são naturais, mas que são
protegidos pela ordem natural.

Outra característica importante do direito natural grociano é


a sua i mutabilidade 164. Segundo o jurista, esta característica f a z
co m que ne m mes mo Deus possa mu dar as leis de natureza 165. É
interessante o argumento utilizado por ele para provar que a
imutabilidade deste direito impede que até me smo Deus intervenha
no conteúdo das leis naturais, na medida e m que o jurista
holandês expõe u m argu mento cartesiano: Deus não pode mudar a
lei natural do mes mo modo que nã o pode mudar as verdade s
geo métricas. Estabelecida a criação, no mundo criado estão
inclusas as formas de relações racionais e as realidades ganham
autono mia. Há então uma orde m no que Deus criou. Deus só
poderia mudar essas coisas (o conteúdo da lei natural ou da
aritmética) se deixasse de lado a criação. Esta é u ma obra
perfeita, por si só capaz de manter os seres que dela participam.
E esta capacidade de preservar os seres vivos existentes encontra
supedâneo nas leis e direitos naturais que, se violados, tornariam
164
O di rei t o nat ur al nã o m uda, o q ue al t era é o obj et o do di rei t o, sobre o qu al
se e st at ui u a obri gaç ão. Se, por ac a so, um credor der qui t ação da dí v i da ao
dev edor, o di rei t o d e se co brar a dív i da não de sap arece – ap ena s a obri gaç ã o
especí f i ca de cobrar um a dív i da concret a dei x a de exi st i r.
165
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , X, p. 81.
79

a convivência neste mundo i mpossível. Ao criar o mundo e sua


orde m natural, Deus não poderia mais alterar a criação. Deste
modo, o conteúdo inicial do direito natural permanece eterno.

Todavia, apartando-se da tradição dos jurisconsultos


ro manos, Grotius não divide o direito natural em, de u m lado,
direito comu m ao s animais e aos ho mens e, de outro, direito
próprio da humanidade. Como fo i salientado, para alguns
jurisconsultos, o pri meiro direito seria um direito natural e, o
segundo, o jus gent ium. O autor ente nde que esta divisão não faz
sentido pelo fato de os animais não possuíre m faculdades
racionais e estas serem funda mentai s para se tomar ciência do
be m e do mal 166.

Pelo exposto, co mpreende-se que o jurista apresenta uma


concepção de direito natural segundo a qual este direito seria
imutável, válido por si mesmo e diria respeito somente aos
ho mens. Entretanto, estas característ icas apenas dizem respeito
ao conteúdo, à validade e à incidência deste direito, mas não
prova m a sua existência. Em virtude disso, Grotius pretende provar
a existência do direito natural de dois modos: a pr ior i e a
posterior i:

Prov a-se a pri ori dem onst ran do a conv eni ênci a ou a
i nconv eni ênci a nece ssári a de um a coi sa co m a nat urez a
raci onal e soci al . Prov a-se a po st eri ori co ncl ui ndo, se
não c om um a cert eza i nf al ív el , ao m enos c om bast a nt e
proba bi l i dade, que um a coi sa é de di rei t o n at ural porqu e
é t i da com o t al em t odas a s naçõ e s ou ent r e a s qu e sã o
167
m ai s civ ili zadas.

A prova a priori é retirada do fato de o direito natural ser


conveniente e necessário para a preservação social e estar em
confor midade co m a natureza racional do home m. A prova a
posterior i está adstrita ao consenso g eral que preserva os mesmos

166
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , XI , p. 82-84.
167
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P az, l iv ro I, cap. I , XI I , p. 85.
80

bens; deste modo, o direito é natural porque está presente em


todas as sociedades.

Alé m do direito natural, Grotius afirma e xistir um direito


voluntário, que ele divide em direito voluntário divino e direito
voluntário humano 168. Dentro do direito hu mano te m-se o “direito
civil” (que é o conjunto de leis que emana m do poder civil, sendo o
direito da coletividade); o “direito me nos a mplo que o civil” (não
e mana do poder civil, compreendendo, por exe mplo, as ordens de
u m pai ao filho), e, por último, o “direito mais a mplo que o civil”
(seria o jus gentium, ou se ja, o direito das gentes).

Este direito humano estaria, portanto, vinculado a três tipos


de leis: “leis” infraestatais (regras estabelecidas por particulares
que estão vinculados entre si por uma relação fática – ao exe mplo
do pai e do filho pode-se acrescentar a relação entre patrão e
e mpregado, no que diz respeito às regras estipuladas no local de
trabalho); leis estatais (emanadas d o poder civil e que incidem
sobre todos os cidadãos), e leis supraestatais (aquelas que
receberam sua força obrigatória da vontade de todas as nações ou
de grande número delas e regulam os Estados e seus povos).

Le mbre mos que, assi m co mo o “direito civil”, o “direito mais


a mplo que o civil” també m está presente no De Jure Praedae. O
“direito civil”, encontra respaldo nas Regras 4 e 5, e o “direito mais
a mplo que o civil” está inserido na Regra 8, estando, ta mbé m, e m
confor midade co m o jus gent ium 169, segundo a qual o consenso d e
todas as nações deve ser considerado co mo u m preceito do direito
natural.

Não é apenas o direito voluntário hu mano que sofre u ma


divisão. O direito voluntário divino també m e stá dividido em duas
outras espécies de direito: direito universal e direito específico. O
168
Est a div i são t am bém est á pre sent e n o De Jure Praed ae. Ne st a obr a, el e
su st e nt a que o di rei t o div i no é superi or ao d i ret o hum ano, haj a v i st a que e ste
proced e daq uel e e a pri m ei ra regra est ab el ecer que o di rei t o se ori gi na da
v ont ade de De u s (G RO T I US, Hugo. De Jure Praedae Comment ar ius, p. 6, 8,
12 e 29).
169
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 12.
81

direito voluntário divino é aquele que teve sua origem na vontade


de Deus – as regras, por exe mplo, dadas, nas escrituras, aos
cristãos. Este direito pode ser obrigatório para todos – direito
divino universal – ou para um só povo – direito divino específico.

A divisão do direito em direito humano e direito divino não


era u ma novidade, antes de Grotius havia um consen so de que
existiriam três tipos de leis: naturais, hu manas e divinas. Contudo,
os teóricos que antecederam o jurista holandês apresentaram
concepções sobre o acesso ao cont eúdo das leis naturais que
diferem da apresentada pelo jurista. O s escolásticos, por exe mplo,
entendiam que a e xistência do ho me m e da natureza só poderia m
ser plenamente co mpreendidas quando consideradas e m relação a
Deus. Deste modo, o direito natural estaria necessariamente
vinculado à teologia e às descrições metafísicas. A Suma
Teológica traz quatro espécies de leis: lei eterna, lei natural, lei
hu mana e lei divina.

Segundo To más de Aquino, a lei eterna é um dita me d a


razão prática que advém de Deus 170. Referida lei emana da razã o
divina que rege a comunidade perfeita. 171 Por outro lado, a le i
natural consistiria e m u ma parte da lei eterna que diria respeito
especificamente ao ser hu mano e seria uma participação da
criatura racional na lei eterna. 172 As leis hu manas derivariam d o s
preceitos gerais da lei natural e com esta deveriam estar e m
confor midade; caso a lei hu mana de sviasse da lei de natureza,
haveria uma “perversão” daquela lei. Por fi m, Aquino entendia que
haveria uma lei divina que tem por objetivo dirigir o home m a se u
devido fim. Esta lei seria acessível aos homen s por meio da
revelação e estaria nas Escrituras. Aquino argu mentava, ainda,
que esta lei divina não era um produto da razão hu mana, mas teria
170
“Port ant o, devem os d i zer que a le i et e rna, do mo do c omo é, nã o p ode se r
conhec ida por nin guém a nã o ser D eus e os abenç oad os qu e o v êem em su a
essênci a. Cont u do, q ual quer cr iat ur a raci o nal co nhec e essa le i at ravés de
uma ‘irr ad iaçã o’ ma is f ort e ou m ais f rac a”. (AQ UI NO , Sant o T om ás d e.
Int ro duct io n t o St . T homas Aquinas, p. 93, r. 2).
171
Ibi d. , p. 91, r. 1.
172
Ibi d. , p. 91, r. 2.
82

sido revelada ao home m por meio da graça divina, para assegurar


que a hu manidade tenha conheciment o do que deve ser feito para
que tanto sua finalidade natural quanto a sobrenatural seja m
satisfeitas. Segundo o tomismo, a lei natural difere da lei divina na
medida e m que ela representa o conhecimento racional humano do
be m, operado por meio do intelecto; ao passo que a lei divina
prové m direta mente de Deus, por meio da revelação.

Co mo visto há pouco, Grotius apresenta um entendi ment o


diferente e não faz menção à lei eterna 173. O jurista, partindo d a
mencionada divisão do direito em natural e voluntário, sustenta
que o direito voluntário é subdividido em direito humano e direito
divino. Esta divisão, ao que tudo indica, inicia o rompi mento co m
u ma visão que apresentava u m trata mento teológico do tema e
estabelecia um vínculo entre o direito natural e Deus, por entender
que referido direito seria dependente do direito divino e,
consequente mente, do Criador.

Diferentemente da tradição teológica que o precedera ,


Grotius não estabelece uma hierarquia entre o direito divino,
natural e humano, ma s, ao invés disso, separa o direito natural do
direito humano. 174 No Dire ito da Guerra, o jurista sustenta que o
direito voluntário advém da vontade; enquanto o direito human o
procede da vontade dos homens, o direito divino provém da livre
vontade de Deus. Deste modo, são d uas vontades independentes
que criam o direito voluntário, sem que haja u ma relação de
causalidade ou conformidade entre o direito divino e o direito
hu mano.

173
É im port ant e t er em cont a q ue F ranci sco Suárez, ap ont a do p or di v erso s
com ent adore s com o prec ur sor d a s noç õe s d e G rot i us, nã o ex cl ui u a l ei et erna
de sua s co ncepç õe s. Seg und o Mi chel Bast i t , “a ori gi nal i dade da po si ção d e
Suarez se dev e ao f at o de el e m ant er a exi st ênci a de um a l ei et erna segu nd o
a gran de t radi ção t eol ó gi ca que v ai de Sant o Ago st i nho a S ant o T om ás,
m esm o quand o l he af i rm a o carát er v ol unt ári o. ” (BAST IT , Mi chel. Nasciment o
da le i moder na: O pensame nt o da l ei de Sa nt o T omás a Suare z, p. 412).
174
“Deu s, ao a prov ar a l ei hum ana, se di sp õe a ap rov á-l a som ent e com o
hum ana e do pont o de v i st a hum ano. ” (G RO T I US, Hugo. O D ireit o da G uerra e
da Pa z, l iv ro I , cap. I V, VI I , p. 250).
83

Apesar de o direito divino, segundo a argu mentação d e


Grotius, ser obrigatório, sua obrigatoriedade não alcança todos os
seres hu manos, ha ja vista que nem t odos os ho mens adquiriram,
suficientemente, conheci mento das leis divinas. 175

Considerando que tanto o direito humano quanto o direito


divino são voluntários, bastaria ter conhecimento da vontade que
os criou para se compreender o conteúdo destes direitos.
Entretanto, ao afastar a vontade do â mbito do direito natural,
Grotius precisa apresentar um meio que possibilite o acesso ao
conteúdo deste direito, meio este qu e não tenha relação com a
vontade. Para o jurista, o teor do direito natural pode ser
apreendido por meio da reta razão. Cu mpre salientar que a noção
grociana de reta razão não é apena s razão co mo faculdade de
cálculo, mas u ma for ma que per mite o conhecimento do que
convé m ou não à natureza hu mana.

Pode-se dizer que Grotius apresenta certa “economia dos


atos divinos” porque aquilo que é mau ou bom por si mesmo é
apresentado à razão de tal maneira que independe, em princípio,
da manifestação da vontade divina. Isso não significa que, embora
todos os ho mens tenha m a razão para conhecer a lei natural, os
seres hu manos tenha m se utilizado dela para ter acesso a esta lei
ou tenha m conheci mento dela. Da me sma for ma co mo as verdades
da geo metria são acessíveis ao consenso geral dos homens, mas
ne m todos consegue m aprendê-las. Co mo dito antes, a
sociabilidade humana define as regr as da lei natural, ou seja,
define os atos e condições que são co mpatíveis ou não co m a lei
social.

Outrossim, partindo da ideia de que reside no home m u ma


parcela da razão e o ho me m estar ia destinado à vida social,
Grotius entende que a humanidade tem o dever de tornar possível
sua coexistência co m seus se melhantes. A vida social, no sentido

175
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , XV, p. 89.
84

de condição da sobrevivência do home m, é algo que a natureza


entregou à hu manidade. Ela, natur eza, assi m co mo a outros
animais, entregou-nos certas ar mas para sobreviver (capacidade
de co municação e a possibilidade de fazer uso da reta razão).
Desta condição de sobrevivência decorre u m direito propriamente
dito, este estaria vinculado a u m p equeno nú mero de deveres.
Neste pequeno resu mo de deveres há , sobretudo, u ma seleção de
deveres que dizem respeito à propriedade e à obrigação de
cu mprir pro messas, que é o co mporta mento previsível advindo de
ações voluntariamente assu midas 176.

Segundo o jurista, estes deveres derivam da própria


natureza hu mana e são acessíveis à r azão. O direito propriamente
dito envolve estes deveres básicos e outras obrigações que, por
co mple mentare m aqueles deveres, são derivadas. Por exe mplo, se
u ma regra básica impõe a obrigação de restituir o terreno que
pertence a outra pessoa, surge u ma regra derivada que també m
torna necessária a devolução dos frutos percebidos por meio do
cultivo da terra durante o período de te mpo e m que e sta foi
injusta mente po ssuída.

Em su ma, para Grotius, o direito natural é obrigatório e


lícito por si mes mo por apresentar enunciados que permite m a
sobrevivência humana. Referido direito não é u m con junto de leis
feitas pelos homens ou deter minado grupo de ho mens para reger
u m deter minado povo (direito human o), ta mpouco está ligado às
regras dadas por Deus aos cristãos (direito divino). O direito
natural, diferentemente destas duas o utras modalidades, obriga a
todos. Por outro lado, o direito civil é visto como direito político,
criado pela sociedade política. Deste modo, a obediência civil seria
derivada da obrigação natural do cu mp rimento dos co mpro missos e
das pro messas assu midas.

176
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, “Prol eg ôm enos”, p ar. 8º, p.
39.
85

Desta análise do uso das expressões lex e jus por Grotius,


verifica-se que o jurista vincula o direito à natureza racional
hu mana e faz co m que este direito passe a ser um ob jeto de
conhecimento que enuncia questões atinentes à sobrevivência do
ho me m. Entretanto, o autor apresenta uma noção de regra que,
além de e star vinculada ao conhecime nto, te m orige m na vontade –
lembre-se o fato de as leis e regras do De Jure Praedae, se mpre
que possível, faze m menção à vontad e da República e dos homens
co mo sendo a orige m de u m direito.

Todavia, pode-se concluir que nas suas duas obras e xiste m


concepções distintas de direito natural. No De Jure Praedae,
diferentemente do Dire ito da Guerra, te m-se u ma noção de direito
natural vinculado diretamente à vonta de de Deus. Na tentativa de
provar este vínculo, o jurista mostra, primeira mente, u ma ligação
etimológica entre o jus e Jovis (Júpiter), e, em seguida, faz u ma
menção a u ma frase de Ana xarco – qu e teria dito que não é porque
u ma coisa é ju sta que Deus a quer, mas ela é justa porque Deus a
quer. Deus teria colocado, no coração dos ho mens, o s atributos do
direito natural com o intuito de preservar a Sua criação.

Apesar de sustentar que o direito natural provém da


providência divina, Grotius já esboçava a possibilidade de os
ho mens conhecere m este direito por meio de propriedades naturais
– tê m-se duas tendências naturais, a mar a nós mesmos e ao s
outros. Da primeira tendência adviria o instinto de conservação e
da segunda surgiria o princípio de sociabilidade. O instinto de
conservação faria surgir o “direito natural primário” e da
sociabilidade emergiria o “direito natural secundário”. Como dito
antes, o “direito natural primário” deriva de Deus – que fez constar
certos princípios no coração dos ho mens ob jetivando garantir a
preservar da hu manidade, ao passo que o “direito natural
secundário” surgiria do consenso da humanidade. Enquanto o
“direito natural primário” é inato, o “direito natural secundário”
deriva do consenso.
86

Esta concepção de direito natural sofrerá u ma mudança no


Dire ito da Guerra. A “hipótese i mpiíssima” afasta do direito natural
a importância da vontade divina. Não que esta não exista, mas a
natureza racional humana e a própria natureza são suficientes
para que se consiga mensurar o valor moral dos atos humanos. Há
u ma mudança no funda mento de validade do direito. No De Jure
Praedae, o direito natural dependia da vontade divina 177; no Dire it o
da Guerra, o direito natural pode ser conhecido apenas por meio
da razão, da observação da natureza e da sociabilidade humanas,
que per mite m a definição de valores ob jetivos a sere m atingidos
pelas ações humana s.

O direito natural primário do De Jure Praedae se asse melha


ao direito voluntário divino do Dire ito da Guerra, haja vista o fato
de ambo s tere m origem na vontade de Deus. Por outro lado, o
direito natural secundário da obra da juventude é o que mais se
asse melha ao direito natural do tratado, na medida em que o
jurista argu menta que este direito secundário seria encontrado por
meio de u m processo racional mater ializado no acordo entre os
ho mens sobre o que é bo m. Apesar de Grotius não men cionar a
razão quando analisa o direito natural secundário, pode-se
interpretar que o consenso entre os ho mens apenas se torna
possível quando a humanidade faz uso da faculdade racional.

Alguns co mentadores, tendo e m co nta estas diferenças


entre as duas principais obras do jurista, entendem que Grotius
parte de uma concepção voluntarista de direito natural para uma
for mulação mais próxi ma do intelectualismo 178. Por outro lado, para
Schnee wind 179, o início da definição de direito natural do Dire ito d a
Guerra é parecida com a concepção voluntarista de Suárez, na
medida em que na obra dos doi s este direito estaria em
confor midade co m a natureza racional e teria em si u ma qualidade
177
Lem brem os qu e a pri m ei ra regra do De Ju re Prae dae v i ncul a o di rei t o à
v ont ade de Deu s.
178
HAG G ENMACHER, Pet er. op. cit . , e Ri chard T UCK, op. cit .
179
Jerom e B. SCHNEEW I ND, A invenç ão d a aut o nomi a: uma hist ór ia da
f ilosof i a moral mo dern a, pp. 100- 10 1.
87

de base moral ou necessidade moral; e, em consequência disso,


os atos contrários a este direito seria m proibidos por Deus. 180 O
jurista holandês ressalta que esses atos “são, por si mesmos,
obrigatórios ou ilícitos”, e, por isso, seriam necessariament e
ordenados ou proibidos por Deus. A observação de que estes atos
pode m ser inerente mente obrigatórios se opõe ao voluntarismo.
Entretanto, Grotius observa, na sequencia, que estes atos seriam
ordenados ou proibidos por Deus; ela já havia sustentado, nos
prolegômenos (parágrafo 12), que o livre-arbítrio de Deus seria
u ma fonte do direito.

Apesar destes argu mentos, que levariam a crer que no


Dire ito da Guerra há uma concepção voluntarista, verifica-se que
no início do parágrafo 12 o jurista salienta que o direito não emana
apenas de Deus, mas ta mbé m te m a natureza racional humana
co mo fonte. Em que pese o fato de , segundo os defen sores da
origem divina do direito natural, a natureza hu mana ter sido criada
por Deus, o jurista parece refutar esta dependência criativa quando
sustenta que ne m o próprio Deus poderia modificar o conteúdo do
direito natural. 181 Verifica-se, portanto, que o direito natural
desenvolvido no tratado apresenta u ma relativa autonomia e
independência da vontade divina, ao passo que a argu mentação
e mpreendida no De Jure Praedae, a presenta u m vínculo entre o
direito natural e a vontade de Deus.

2.3 O surgi mento da sociedade civil e da propriedade

Quando analisa a guerra dos súditos contra os detentore s


do poder no quarto capítulo do primeiro livro do Dire ito da Guerra,
Grotius apresenta seu ponto de vist a sobre o apareci mento da

180
G RO TI US, Hugo. Direit o da G uerra e d a Pa z, liv ro I , cap. I, X, p. 79.
181
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I , X, p. 81.
88

sociedade civil e o modo de vida do s ho mens antes de estare m


organizados politicamente.

A argu mentação do jurista parte do pressuposto de ter


existido, entre os homens, u ma condição anterior à vida
politicamente organizada. Nesta situação, a hu manidade se reuniu
espontanea mente, para obedecer a u m manda mento de Deus,
tendo e m conta que e xperi mentava m u ma condição de “fraqueza
das famílias isoladas e desarmadas contra a violência por seu
isolamento.” 182 A sociedade política teria surgido da união das
fa mílias visando proporcionar segurança recíproca.

Esta passage m pode ter inspirado John Locke, que afir mou
que a primeira sociedade foi aquela for mada por ho me m e mulher,
a sociedade conjugal 183. Contudo, o jurista holandês trata do te ma
e m outras passagens da referida obra e traz u ma argu mentação
mais elaborada no De Jure Pra edae. Sendo assi m, para
co mpreender o arran jo das ideias do autor sobre este ponto, é
indispensável analisar estas passagens.

Antes de adentrar propria mente na apreciação das


convicções de Grotius, deve-se destacar que ele e os filósofos
que, depois dele, trataram da con dição do ho me m antes do
aparecimento da sociedade civil foram dura mente criticados por
Jean-Jacques Rousseau. 184 No Discurso sobre a desigualdade, p o r

182
Ibi d. , l iv ro I , cap. I V, VI I, p. 250.
183
“A primeira soc ied ade f oi ent re o hom em e su a m ul her, que deu i ní ci o à
que h á ent re pai s e f il hos; à q ual , com o tem po, v ei o a j unt ar-se a qu e h á
ent re senh or e serv i dor. ” (LO CKE, Joh n. Do i s t rat ados sobr e o gov ern o, l iv ro
I I , capí t ul o VII , par. 77 e 78, p. 451).
184
“O s f ilósof os que exam inar am os f undame nt os da socie dad e sent ir am t odos
a nec essid ade d e vo lt ar at é o est ad o d e n at ure za, mas ne nhum de les c heg o u
at é l á. Uns nã o h esit ar am em sup or, no h o mem, nesse est ad o, a noç ão de
just o e do in just o, s em pre ocup arem-se com most rar q ue ele dev eria t er ess a
noção, nem qu e e la lh e f oss e út i l. O ut ros f al aram d o dire it o nat ura l, q ue c ad a
um t em, sem explic ar o q ue e nt end iam por pert e ncer. O ut ros da nd o
inic ialm ent e ao m ais f o rt e a ut ori dad e so bre o mais f raco, log o f i ze ram nasce r
o G overno, sem se lemb rarem d o t empo que dev eri a decorr er ant es q ue
pudess e exist ir e nt re os home ns o sent id o d as palavr as aut or ida de e gov erno.
Enf im, t odos, f aland o inc essant em ent e de necessid ade, av ide z, op ressã o,
desej o e org ulh o, t ransport ar am para o est a do de nat u re za i déi as que t i nha m
adqu iri do em soci eda de; f a lavam do homem selvag em e descr eviam o homem
89

exe mplo, o filósofo suíço ironiza o fato de Grotius sustentar que a


sociabilidade seria um atributo natural do ho me m. 185

Estas críticas de Rousseau não são objeto deste trabalho,


so mente são mencionadas a fim de mostrar, antes de mais nada,
que Grotius foi um dos pri meiros teóricos a abordar o surgiment o
da sociedade civil pela perspectiva do direito natural – tema que
se repete em outros autores posteriores a ele. Além disso, as
afirmações de Rous seau ta mbé m de monstra m que alguns aspectos
da obra de Grotius não foram levados e m conta pelos seus
críticos.

Robert Derathé, ao analisar estas cr íticas de Rousseau a


Grotius, ressalta a importância do jurista holandês 186 e mo stra qu e ,
e m suas críticas à re jeição grociana da soberania do povo, o
filósofo suíço teria ignorado o fato de ele (Grotius) ter tido o
cuidado de precisar quais seriam os direitos do povo quando este
partilha da soberania com os reis, ou quando estes são forçados a
respeitar as leis em virtude de u ma co nvenção co m seus súditos 187.

Contudo não é apenas este aspecto que, aparentemente,


resta oculto nas críticas de Rousse au. Ao que tudo indica, os
principais filósofos modernos que a nalisaram o surgi mento da

civil. ” ( RO USSEAU, Jean-J acqu e s. Disc urso sobre a or igem e os f und ament o s
da desi gu ald ade e nt re os home ns, p. 235-2 3 6).
185
“Q uais quer qu e s ejam t ais ori gens, vê-se, pe lo m enos, o pouc o c uid ad o
que t eve a nat ure za ao re unir os home ns po r meio de n ecess ida des mút uas e
ao f acil it ar-l hes o uso da p alav ra, como p reparo u mal sua soc iab il ida de e
como pôs p ouco de si mesm o em t udo q ue f i ze ram par a est ab elec er os se us
laços. Com ef eit o, é impossí ve l ima gin ar por que, ness e est ad o pr imit ivo, u m
homem sent ir ia mais nec essid ad e de um out ro homem do qu e um macaco ou
um lob o d e seu s emel hant e; ou a ind a – uma v e z sup ond o-se ess a
necessi dad e –, q ual o mot iv o qu e p oder ia levar o out r o a at e nd ê-lo, o u,
f inalme nt e, nest e ú lt imo cas o, como po der ia m est abel ecer con diç ões ent r e si. ”
(Ib id. , p. 250-2 51).
186
“Se Rouss eau, n o Co nt rat o soc ial, co ncent ra seus at a ques em G rot ius, é
porqu e, sem part i lhar d a admir ação de seu século p elo aut or do Di rei t o d e
guerra e de paz, el e sa be que é m elh or c ulp ar o lí der do q ue s eus c ompars as,
o mest re do que seus discí p ul os. ‘O d ire it o polí t ic o, escrev e e le no Em í li o,
est á ain da p or nasc er, e pod e-se pr esumir q ue nã o nascer á nu nca. G rot ius, o
m est re de t odo s o s no sso s sá bi os ne sse t e rreno, é ap enas uma cria nça; e,
pior ai nda, uma cria nça de má-f é’. ” (D ERAT HÉ, Robert . J ean-J acqu es
Rousse au e a ci ênci a polí t ic a de se u t empo, p. 119).
187
Ibi d. , p. 127.
90

sociedade política (Thomas Hobbes, John Locke e o próprio


Rousseau) não tiveram contato co m o De Jure Praedae, na medida
e m que este te xto teve apenas o capítulo XII publicado e o
restante do manuscrito original foi encontrado apenas e m 1864 –
muitos anos após a morte do último dos filósofos mencionados,
Rousseau, e m 1778.

Nesta obra, Grotius argumenta que após o estabeleciment o


das três regras e das seis leis naturais, devido à natureza corrupta
de alguns homen s, muitas pessoas deixara m de cu mprir suas
obrigações e passaram a atacar os bens e as vidas de outros, se m
sere m punidos. Os ataques eram e mpreendidos ora por pessoas
mais preparadas, ora por grupos. Esta situação fez surgir a
necessidade de que fosse criado u m re médio para que as leis da
sociedade humana não fosse m consideradas inválidas e, por isso,
deixadas de lado. 188

Referida necessidade se tornou mai s urgente devido ao


au mento do nú mero de seres hu mano s e a sua dispersão, que os
privava de beneficiarem-se uns dos ou tros.

Assi m , as uni dade s soci ai s m enore s pa ssara m a agrega r


pe ssoa s em um a m esm a l ocal i dade, nã o c o m o i nt ui t o de
abol i r a soci ed ade qu e u ne t o do s o s h om ens, m a s, a o
i nv és di sso, v i sando f ort al ecer a soci edad e univ ersal po r
m ei o de um a f orm a de prot eção m ai s c on f i áv el e, ao
m esm o t em po, agregar de f orm a m ai s conv eni ent e o s
dif erent e s e num eroso s f rut os do t rabal ho de div erso s
hom ens – f rut os e st e s n ece ssári o s para a manut enç ão d a
189
v i da hum ana .

188
Nest e t recho, a ar gum ent ação d e G rot i us p arece a nt eci par aq uel a si t uaçã o
de scri t a por T h om as Ho bb e s no capí t ul o XI V do L eviat ã. E nt ret ant o, o j uri st a
não se aprof unda no t em a, ao pa sso que Ho bbe s de se nv olv e um a
argum ent ação seg und o a qu al há um a i gual dad e e nt re o s h om ens qu e
proporci o nari a um a de sco nf i ança, est a gerari a a g uerra. A pe sar di sso, G rot i u s
ent endi a qu e t eri a hav i do um est ado de i nse gura nça, não a o pont o de se
chegar à g uerra de t o do s o s hom en s co nt ra t odo s o s hom en s, m as suf i ci ent e
para ger ar um a i ncert eza quant o à m anut enção d a i nt egri dade f í si ca e
pat ri m oni al de cada ser hum ano.
189
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 19.
91

Esta união de pessoas per mite a alteração de rumo do s


interesses, deixa de existir uma preocupação unicamente pessoal
e surge uma consideração com o be m-estar coletivo. Grotius
entende que quando os bens se encontram universal mente
distribuídos a cada ho me m separada mente, cada u m se preocupa
unicamente consigo mes mo; ao passo que quando tais bens são
agregados e associados, as preocupações de cada um dei xa m de
dizer respeito somente a si mesmo e os bens de todos passa m a
pertencer à coletividade. 190

Consoante à argu mentação de Grotius, os seres hu mano s


teriam i mitado a natureza, que garantiu a preservação do universo
por meio de uma con venção que regeria todas as suas partes.
Aparece, então, u ma pequena unidade social formada por u m
acordo geral que teria como ob jetivo proporcionar o bem co mu m.
Esta unidade social seria autossuficiente, no que diz respeito à
autoproteção, por meio da a juda mút ua e à aquisição igualitária
dos bens necessários à manutenção da vida. Grotius deno mina
esta associação de República (respublica) e os ho mens que a
co mpõe m são cha mados de cidadãos (cives). 191

O jurista argu menta que este siste ma de organização teve


origem e m Deus e funda menta esta co nvicção e m Cícero, que teria
dito que o próprio Júpiter sancionou o preceito, ou lei, segundo o
qual “tudo o que faz be m à saúde d a república deve ser to mado
co mo legíti mo e justo”. 192 Neste parágr afo Grotius faz uso de u m
argu mento de autoridade para defender a vida e m u ma co munidade
politicamente organizada ao afirmar que, como os filósofos 193
haviam declarado, nada do que foi alcançado na Terra é mais

190
Ibi d. , p. 19.
191
No parágraf o se gui nt e, G rot i us ref ere-se a est a or gani zaçã o pol í t i ca com o
se ndo ci dade s (civ it at es), t en do o t ra dut or da edi ção i ngl esa opt ad o p el a
pal av ra “Est ad o”. O u so da ex pressão l at i n a “re sp ubl i ca” pel o j uri st a, ne st e
t ex t o, ao que t udo i ndi ca, é sem el hant e ao em pregad o p or Ho bbe s n a
i nt rodução do L eviat ã (p. 11), o u sej a, com o si nôni m o de ci dad e (civit as), nã o
i ndi cando, port ant o, conv i cções rep ubl i cana s.
192
CÍ CERO , Marco T úli o. O rações, “Fi lí pi ca”, XI , x ii , 28.
193
A ref erênci a de G rot i us é, nov am ent e, a Rep úbl ica (VI , xi ii . 13) de Cí cero.
92

valioso do que essas associações e asse mbleias de ho me m


conhecidas co mo Estados (civitates). 194

Nova mente, a vida em sociedade aparece como u ma


característica primordial dos seres hu manos. O jurista pretende
provar esta sociabilidade por meio de u m argu mento consensual,
pois é possível encontrar e m qualquer parte agrupa mentos de
pessoas unidas deste modo. Segundo o autor, a sociabilidade é
u ma característica intrinsecamente ligada à natureza humana e
deter minante para a constituição da hu manidade, por isso aqueles
que se mantê m afas tados dessa prática mal poderiam ser
cha mados de seres hu manos 195.

Outro fator, além da insegurança – e a necessidade de


proteção recíproca que advém dela – e a conveniência de agregar
os frutos do trabalho 196, é important e para a formação das
primeiras co munidades: a vontade do s seres hu manos. Esta seria
manifestada, inicialmente, por meio da aceitação formal dos pactos
e, após a instituição da co munidade política por meio de u ma
aceitação tácita, com a associação de cada um ao corpo de
cidadãos de u ma República já estabelecida. Existiria a
necessidade de manifestação da aceitação do pacto pelo simples
fato de a República, para Grotius, em que pese ser co mposta de
partes diferentes, ser um corpo unificado e permanente, sujeito a
u m único direito.

Pode-se criticar esta aceitação tácita, pois não se te m


notícia de ter ocorrido, alguma vez na história, a renúncia à
condição de cidadão e u m retorno a o estado pré-político. O ser
hu mano nasce e m u ma sociedade p olítica e não é instado a se
194
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I , p. 20.
195
Ibi d. , p. 20.
196
John Locke apre sent a um argum ent o se g undo o q ual o hom em t eri a se
uni do em soci edad e para re al i zar coi sa s que sozi nho el e nã o seri a capaz, d e
t al m odo que h á um a “conv eni ênci a e i ncl i nação para co nduzi -l o para a
socied ade” (Do is t rat ados sobr e o gov erno, l iv ro I I , cap. VI I , p. 45 1). De st e
m odo, a conv eni ênci a de agregar o s f rut os do t rabal ho d o s hom en s seri a um
pre ssup o st o c om um ent re G rot i us e Lock e p a ra a f orm ação d a soci ed ade civ il .
Al ém di sso, am bos par ecem t er a opi ni ão seg und o a qual e st a soci eda d e
adv ei o da nece ssi dad e de a sse gur ar o s ben s de cada h om em.
93

manifestar sobre a aceitação desta condição, pelo contrário, está


sujeito às obrigações e te m direitos desde o seu nasci mento. 197

Não é apenas neste trecho que o jurista trata do modo de


aceitação do pacto constitutivo da sociedade. Nos “Prolegômenos”,
ele sustenta que teria existido uma manifestação expressa ou
tácita daqueles que haviam se sub metido ao domínio de um só
ho me m ou de vários. Após esta manifestação, estes ho mens
deve m se confor mar ao que a maioria dos me mbros da associação
– ou aqueles a quem o poder foi delegado – estabelecer. 198 Al é m
disso, a regra de direito natural que deter mina que os homen s
deve m ser fieis aos co mpro missos assu midos teria ensejado o
direito civil. 199

Após o estabeleci mento de u m co mpr o misso recíproco e a


instituição da sociedade política, fez-se necessária a existência de
u m meio de se obrigar os cidadãos a cu mprirem o pacto social – há
u m preceito do direito natural segundo o qual se deve ser fiel aos
co mpro missos assu midos. Apesar da omissão grociana, pode-se
interpretar licitamente que o meio adequado de obrigar todos os
ho mens a cu mprire m seus deve res e, consequente mente,
preservar a sociedade política, seria a utilização de meios
coercitivos capazes de assegurar o respeito às leis aprovadas pelo
consenso dos cidadãos. Esta ação est atal consiste no uso legítimo
da força pela comunidade política e se exterioriza por meio de atos
de pessoas encarregadas do exercíci o de u ma função pública. É
para garantir a aplicação da lei e manutenção da sociedade que
houve a instituição dos tribunais e no meação dos magistrados,
criou-se a polícia e, até mesmo, d eu-se a imposição de pena
àqueles que violaram as regras.

197
No di rei t o bra si l ei ro, há o dev er de p agam ent o de t ri but o s at é por recém -
na sci do s e i nca paze s qu e são pro pri et ári os d e i m óv ei s, pel o si m pl es f at o
del es serem propri et ári o s de i m óv ei s e nã o por el e s t er em acei t ado f azer
part e da com uni dad e pol í t i ca.
198
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e d a Pa z, “Pr ol egôm eno s”, par. 15,
pp. 42-4 3.
199
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G u erra e da P a z, ”Pr ol egôm eno s”, pa r. 15, p .
42.
94

A essas causas para o surgi mento das primeiras


co munidades políticas, Grotius acrescenta a circunstância de a
natureza hu mana nos i mpelir a buscar o co mércio recíproco. 200
Possuindo esta necessidade de praticar atos comerciais e vivendo
em u ma condição de incertezas, os seres hu mano s, por
consentimento, se agrupara m e m co munidade e fizeram e mergir o
direito civil 201.

A descrição do De Jure Praedae conté m mais detalhes do


que a do Dire ito da Guerra, nesta obra o jurista apresenta a s
características da condição natural do home m em trechos
esparsos. Coadunando as assertivas do De Jure Praedae, nós
pode mos co mpreender melhor o ponto de vista de Grotius sobre o
surgimento da sociedade política. O jurista entende que
inicialmente a hu manidade não vivia organizada politicamente, as
pessoas viviam dispersas e estava m privadas do benefício mútuo .
A convivência humana e m u ma socied ade politicamente organizada
ocorreu devido a fatores que a meaça va m a sobrevivência de toda
a espécie. Esta concepção mostra a artificialidade da sociedade
política grociana. Apesar de o jurista argu mentar insistente mente
que so mos naturalmente inclinados para a vida em sociedade, ele
apresenta dois estados distintos de organização política e
argu menta que a vida e m u ma co munidade política requer u m
pacto que e xteriorize a vontade dos ho mens. Ju sta mente pelo fato
de surgir a partir de u m acordo de von tades, a co munidade política
não é natural, mas artificial.

Segundo o autor, há, nos seres hu manos, u ma inclinação


para a vida em coletividade. Na condição anterior à constituição da
sociedade política teria existido uma vida comunitária simplificada

200
A necessi dad e nat ural hum ana pel o com érci o recí proco, al ém de col aborar
para a f undaçã o da soci ed ade ci v il , ori gi na o di rei t o nat ural . G rot i us af i rm a
que a nat ur eza d o s hom en s “é a pró pri a mãe do di rei t o nat ural ” (G RO T I US,
Hugo. O Dire it o da G uerra e da Pa z, “Prol eg ôm enos”, par. 1 6, p. 43).
201
“A mãe do d ire it o civ il, no ent a nt o, é a o brigaç ão q ue a gent e se imp õ e
pelo própr io c onse nt iment o e, como est a o br igaçã o ext ra i sua f orç a do d ire it o
nat ura l, a nat ure za p ode ser co nsid erad a como a bisav ó t ambém do dir eit o
civil. ” ( Ibi d. , par. 16, p. 43).
95

se m ser racionalmente organizada. Esta tendência, nos homens,


para a vida em sociedade seria inata e estaria vinculada a este
convívio do estado de natureza. Lemb re mos que Grotius partia da
pre missa de que no estado de natureza havia pequenos núcleos.
Os argu mentos utilizados pelo autor nos leva m a entender que,
antes do pacto social, os homens for mava m u ma espécie de
“sociedade universal” e estavam dispersos pelas diversas regiões.
Apesar da dispersão, havia pequenos grupos que agregavam os
ho mens. Nesta situação, eventuais ataques aos bens ou a vida de
alguém não ense java m punições, fato que gerava muita
insegurança. Além desta insegurança, a aquisição dos bens
necessários para a manutenção da vida era difícil, sobretudo se
pensar mos que cada u m tinha que e mpregar as próprias forças
se m a a juda dos outros. 202 Caso alguns ho mens cooperasse m u n s
co m os outros, havia o risco de algum deles descu mprir o acordo
ou poderia acontecer uma intervenção expropriatória de outros
ho mens, que se apossariam dos ben s até então adquiridos. Esta
ação expropriatória leva o jurista a afir mar que o ho me m te m u ma
natureza corrupta, mas ele não desenvolve este tema 203.

202
Est e ar gum ent o f az o l ei t or pen der para um a i nt erpret aç ão seg und o a q ual
no e st ad o de n at ureza groci ano não h á a f orm ação de núcl eo s f am ili ares e,
port ant o, a soci abi l i dade hum ana, di f erent em ent e do que o j uri st a af i rm a, não
seri a nat ural , m as art i f i ci al e adv i nda de um acordo de v ont ade s. E st a
apare nt e i ncon gruê nci a em G rot i us par ece t er si do p ouco ex pl orada p or se u s
crí t i cos, que f ocaram m ai s se u s at aq ue s so b re a sua su po st a d ef esa d o po der
real .
203
Nest e p ont o do t ex t o, G rot i us f az um a af i rm ação que de st o a da
argum ent ação at é ent ã o apr e sent a da qu and o su st ent a q ue o s ser e s hum ano s
po ssuem um a nat ureza corru pt a. A i dei a de corrupçã o pre ssupõ e a ex i st ênci a
de um a si t uação ant eri or, na qu al o s h om ens nã o er am corrupt o s. Cont u do,
G rot i us est á t rat an do do e st ad o pré-p ol í t i co, ou sej a, no sso aut or j á est á
anal i sa ndo a con di ção pri mi t iv a dos hom ens. E st a apar ent e i ncongr uênci a
pode i ndi car q ue a c ondi ção hum ana no e st a do de nat urez a, para no sso aut or,
é m ut áv el , hav eri a t ran sf orm ações suc e ssiv as qu e f azem com que o h om em,
que i ni ci alm ent e v iv i a i sol ado, p a sse a v iv er em peque no s grup o s e,
con seq uent em ent e, sej a “corrom pi do”. Nest e pont o, G rot i us parec e concor da r
com Hobbes n o que di z re spei t o à con di ção de i ncert eza do s h om ens n o
est a do d e n at ureza. O j uri st a n ão c heg a a a rgum ent ar, com o o i ngl ês, q ue o s
hom ens t êm um enorm e de spr azer d a com panhi a u n s do s out ro s e t am pouc o
acredi t a que na f al t a de soci eda de h á um a con st ant e si t uação de g uerra d e
t odo s cont ra t od o s, da qu al Hobbe s t rat a n o capí t ul o XI I I do Levi at ã.
96

Para assegurar a vida, os pactos e o utros direitos naturais,


seria necessária a criação de uma instituição capaz de reunir
forças para evitar tanto os ataques como tornar obrigatório o
cu mpri mento do pacto. Alé m, é claro, de possibilitar que os
ho mens agregasse m os frutos do trabalho e fomentasse m o
co mércio recíproco, necessários para facilitar a vida humana .
Referidas necessidades teriam feito co m que os seres hu mano s
manifestasse m suas vontades, por meio de um acordo geral, no
sentido de proporcionarem u ma co ndição de vida na qual é
buscado o be m co mu m e se torna possível a aquisição, se m riscos,
dos bens necessários para a sobrevivência 204.

Ao acrescentar a aptidão natural dos ho mens para o


co mércio co mo pre mis sa do direito natural e da necessidade de
instituição da sociedade política, o jurista vincula a troca de bens à
pre mência de proteção dessas relações e, també m, destes bens. A
propriedade, ao que tudo indica, está inserida no rol de
preocupações que exigiram a criação do Estado.

No relato sobre o surgimento da prop riedade, no Dire ito d a


Guerra, Grotius ta mbé m apresenta u ma descrição de co mo
suposta mente vivia m os ho mens ante s da for mação das pri meiras
co munidades. 205 Co mo mencionado anteriormente, não existia a
propriedade privada nos moldes e m que hoje é entendida; neste
primeiro estágio, todo o gênero humano detinha o direito geral
sobre os bens e qualquer um podia se apropriar do que quisesse,
fazendo uso do que podia ser consu mido para satisfazer suas
necessidades.

204
Nest e pont o, l em brem os que a m ai or i nconv eni ênci a do e st ad o de n at ureza ,
para G rot i us, é a au sê nci a de m agi st rado s e de um poder cap az de i m por
penal i dad e s. A concepç ão gr oci ana do e st ado d e nat ur eza di f ere daquel a
ex pressa da, p or ex em pl o, por T hom as H ob be s. Para e st e, nã o é ape na s a
au sênci a de um poder co n st i t uí do que t orn a i nsu st ent áv el a v ida na condi ção
nat ural , m as é o f at o de ne st a si t uação ex i st i r um est ado de guerr a d e t od o s
cont ra t od o s qu e f az com que nada po ssa ser c on si der ado i nj u st o (ca pí t ul o
XI I I do Levi at ã).
205
G RO T I US, Hugo. O Direit o d a G uerra e d a Pa z, l iv ro I I , cap. I I, I I , p. 309-
315.
97

Apesar de não haver a propriedade sobre bens imóveis, já


existia u ma espécie de propriedade sobre os bens mó veis. Esta
teria surgido no mo mento e m que u m be m de uso co mu m foi
apropriado por alguém, que passou a ter o direito de se manter na
posse deste be m. Qualquer tentativa de retirada deste objeto seria
u ma in justiça, ha ja vista que “do que alguém se havia apropriado
outro não podia tirá-lo dele sem in justiça” 206.

Co m esta argu mentação, o jurista apresenta a possibilidade


de existir um direito de propriedade antes do aparecimento da
sociedade política. Além disso, ao defender que atentar contra
este direito seria uma injustiça, Grot ius está sustentando que a
justiça é anterior ao estabeleciment o da co munidade política –
seria justo manter a propriedade dos bens co muns que fora m
apropriados para suprir as necessidades vitais. Visando legitimar
este raciocínio, o autor cita o famoso exe mplo do lugar ocupado no
teatro utilizado por Cícero. 207

Nesta parte surge u ma perspectiva diferente dos trechos


anteriormente mencionados. Após citar Cícero, Grotius e xpõe su a
concepção de co mo seria a situaçã o da vida hu mana ante s da
instituição do Estado. Esta concepção parece antecipar uma visão
presente no Discurso sobre as ciências e as artes, de Rousseau.
Em pri meiro lugar, o jurista entende que os seres humanos
poderiam ter mantido seu modo de vida, se m a constituição de u ma
co munidade política, se tivessem co nservado a simplicidade de
seus costu mes ou tivesse m praticado a caridade mútua. 208 Nest a
condição pré-social, o estado de simplicidade dos homens pod e
ser visto no fato deles viverem nus. 209 Outrossim, o jurista afir ma

206
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. II , II , p. 309.
207
De F inib us, I I I , 20, 67. Cit ado por G rot i us no Direit o d a G uerra, p. 310.
208
O j uri st a ex em plif i ca a si m pli ci dade de c o st um es a o f azer um a al u sã o ao s
i ndí gena s da Am éri ca e ent ende qu e os pri m ei ros cri st ão s de Jer u sal ém
si nt et i zari am a prát i ca da cari dade m út ua.
209
G RO T I US, Hugo. O Dire it o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I I , cap. I I , I I, p. 310.
Rou sse au, i gual m ent e, ressal t a a nudez do s hom en s no e st ado d e nat urez a
no Discurs o sobr e as ciênc ias e as art es, p. 336.
98

que havia, nesta situação, mais a ignorância dos vícios do que o


conhecimento da virtude.

É nesta condição anterior à formação da sociedade política


que surge a propriedade. O holandês argu menta que a humanidade
deixou esta vida simples e inocente após aplicarem “(...) seu
espírito a artes diversas, cujo sí mbolo era a árvore da ciência do
be m e do mal, isto é, coisas de que se pode fazer bo m ou mau
uso” 210. Destas artes, destacar-se-ia m a agricultura e a criação de
rebanhos. No início, havia a partilha dos bens, mas teve início a
rivalidade que acarretou o emprego de violência. Esta situação
teria feito com que os ho men s bon s fosse m corro mpidos pelo
contato co m os ho mens maus, ocorrendo u ma generalização da
violência 211.

A violência fez co m que os ho mens se dividissem e m duas


regiões, mas fos se m mantidas past agens e m co mu m – havia
quantidade grande de terras e uma pequena quantidade de
ho mens, fato que possibilitava o uso das terras por todos. Por
isso, “não era permitido então distinguir os campos ou separá-los
por limites” 212. Poré m, devido ao aumen to da quantidade de seres
hu manos e ao cresci mento do rebanh o, as terras passara m a ser
divididas entre famílias e não mais ent re nações. 213

Grotius extrai esta concepção do livro do Gênesis. No


capítulo 13 é narrada a disputa entre os pastores de Ló e Abrão
que resultou na separação dos rebanhos e dos ho mens que os
serviam. Apesar de Grotius afirmar qu e este relato diz respeito ao
“estado primitivo da co munidade”, no versículo 12 deste capítulo
encontra-se a afirmação de que Abrão fixou-se na terra de Canaã e

210
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. II , II , p. 312.
211
Ibid. , p. 312. Est e p ont o de v i st a de G rot i us so bre a ge neral i zação d a
v i ol ênci a nos rem et e, nov am ent e, à concepção de guerr a de t od o s cont r a
t odo s de Ho bbe s ( Levi at ã, part e 1, cap. XI I I , p. 109).
212
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. II , II , p. 313.
213
Est e p ont o d e v i st a sob re a di v i são da s t er r as e surgi m ent o da pro pri eda de
f oi ret i rado da s E scri t ura s. G rot i us ent e ndi a que e st a hi st óri a sa grad a e st á d e
acordo c om os rel at o s do s f i l ósof os e po e t as so bre o e st ad o pri m it iv o da
com uni dade de be n s e da p art i l ha que se seg ui u.
99

Ló nas cidades da planície, onde levantou suas tendas até


Sodo ma. Na narrativa bíblica já existia m cidades e Grotius omite
esta informação de sua argu mentação 214.

Em su ma, o jurista apresenta u m raciocínio segundo o qual


os seres hu manos se afastara m da vida em u ma co munidade na
qual os bens era m de todos 215. Os seres hu manos não ma i s
encontrava m satisfação na vida simples – alimentare m-se de
frutas, habitar em cavernas, viverem nus ou cobrir os corpos com
cascas de árvores ou peles de animais – e, objetivando uma vida
mais confortável, recorrera m à indústria, cujos resultados fora m
postos, inicialmente, à disposição de todos. Na e xposição de
Grotius, a propriedade começa co m os bens móveis (apropriação
de frutas, de animais, etc.) e termina co m a fixação e posse de
bens imóveis (poços, pastos, terras, et c.).

Os argu mentos utilizados pelo jurista e o fato dele afirmar


que a história das Escrituras estaria e m confor midade co m o s
poetas, nos leva a averiguar a origem das ideias por ele
apresentadas. Apesar de alguns comentadores apontare m
aspectos em co mu m entre Grotius e autores da segunda
escolástica espanhola 216, o jurista não menciona nenhu m desse s
autores neste ponto. Certa mente o a utor teve contato co m esse s
autores e foi influenciado em alguns aspectos por eles. Mas ele,
por exe mplo, não concorda com a co ncepção de Vitória de que o
poder civil tinha origem divina. Grotius ta mbé m discorda destes

214
“G ênesi s 13, 1-1 3”, Bí blia de Jerus além, pp. 50-51.
215
G RO T I US, Hugo. O Direit o d a G uerra e d a Pa z, l iv ro I I , cap. I I, I I , p. 313-
314.
216
Bri an T i erney su st ent a q ue G rot i us, ne st a di scu ssã o sobre a ori gem do
Est ad o, se apr ox im a do p en sam ent o m edi ev al t ardi o. Segu ndo e st e
com ent ador, ant e s de G rot i u s, F ranci sco d e Vi t óri a t eri a su st ent ado que a
repúbl i ca er a f orm ada por um a associ ação de i ndiv í duos e que o pod er civ il
f oi i nf undi do na com uni dade por um a conce ssã o di ret a de Deu s. Al ém di sso ,
F ranci sco Su árez ar gum ent ou q ue o p ode r de f orm ar um a soci eda de pol í t i ca
era i nerent e à n at ureza hum ana, de sde o i ní ci o; m as el e ai nda reco nheci a q ue
a com uni dade pol í t i ca po ssuí a pod ere s – e speci al m ent e o de p uni r – que nã o
pert enci am ao s i ndiv í duos qu e f orm av am a associ ação pol í t i ca. (T he Id ea of
Nat ural R ig ht s, p. 333).
100

autores sobre o aspecto civil da pena, co mo vere mo s no próxi mo


capítulo.

Por outro lado, procede de Lu crécio 217 o entendime n t o


segundo o qual a existência do ho me m é anterior à for mação da
sociedade política e a compreensão de que nesta condição pré-
política o home m retira os elemen tos essenciais para a sua
subsistência diretamente da natureza, se m, inicialmente, o au xílio
dos outros ho mens ou de algu ma técnica produtiva.

Há algu mas diferenças entre o jurista holandês e o poet a


ro mano. Enquanto Lucrécio afirmava que os primeiros seres
hu manos era m mais vigorosos e teriam se unido devido à
benevolência, Grotius não trata de aspectos físicos dos ho mens e
entende que a benevolência não foi a causa da união dos homen s,
mas, si m, as inconveniências do estado pré-político. A
propriedade, na obra de Grotius, tem início com a apropriação de
u m be m co mu m, enquanto Lucrécio afirma que os pri meiros reis
repartiram os bens entre os home ns. Por outro lado, ambos
concorda m que houve u ma situação inconveniente que fez emergir
as leis.

O jurista holandês parte da noção de u m pacto for mador de


u ma co munidade política na qual surge m o direito civil e os
magistrados, ao passo que Lu crécio afirma tere m sido
estabelecidos magistrados e leis sem fazer menção a u m corpo
político organizado. Outro aspecto em Grotius que parece ter mais
implicações e que não encontra respa ldo na obra de Lucrécio é a
noção segundo a qual teria existido u m acordo de vontades, u m
pacto, ensejador da união política dos homen s. Esta concepção
influenciou a maioria dos pensadores posteriores ao jurista.

Diferentemente de Lucrécio, Grotius afirma que a


propriedade não teve início em u m simples ato de vontade, tendo
e m vista que se algué m manifestasse sua intenção de to mar co mo

217
LUCRÉCI O , Da nat ure za, p. 1 16-1 17.
101

seu algo que era co mu m, outros h o mens poderia m querer se


apropriar do mes mo ob jeto. A propriedade, então, seria o resultado
de u ma convenção – e xpressa ou tá cita. A convenção e xpressa
seria ajustada por meio de u ma partilha dos bens e a convenção
tácita estaria vinculada à ocupação. Os ho mens teria m chegado a
u m acordo segundo o qual “(...) o que cada u m ocupasse seria de
sua propriedade.” 218 Grotius fundamenta esta conclusão em u m
trecho extraído de Cícero 219. Segundo o jurista, quando cha mar a m
Ceres de legisladora e denominara m “Tesmoforias” os mistérios
dessa deusa, os antigos teria m indicado que co m a partilha das
terras teria surgido um novo direito: o direito de propriedade. 220

Partindo da leitura desta passagem, verifica-se a existência


de u m aspe cto co mu m na obra de Grotius e de Rousseau no qu e
se refere à origem da propriedade. Em a mbos, os bens que era m
co muns torna m-se particulares, por meio da ocupação, e o cultivo
das terras te m papel funda menta l para o surgimento da
propriedade. 221

Entretanto, causa certa estranheza o fato de o jurista trazer


este relato sobre a origem da propriedade apenas no segundo

218
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. II , II , p. 314.
219
De O f f iciis, I I I , 5.
220
Rousseau, na se gun da part e do D iscurso sobre a des igu ald ade, com ent a
est a pa ssagem : “(. . . ) Q uando os ant i gos, d i z G róc io, empr est aram a Cer es o
epí t et o d e leg isla dora e a uma f est a c ele brada em sua ho nra o nome d e
T esmof oria, com iss o qu iseram dar a ent ender t er a part ilh a das t er ras
produ zi do uma nova espéc ie de dire it o, i st o é, o d ireit o de pro prie dad e,
diverso daq ue le res ult ant e da lei nat ur al ” (D iscurso so bre a des igu ald ade, p.
266).
221
Segun do R ou sse au, “(…) e nqu ant o só se d edicar am a obras que um ún ic o
homem po dia cr iar, e a art es qu e nã o sol icit avam o conc urso d e vári as mãos,
viveram t ão livr es, sadi os, bo ns e f el i zes quant o o po der iam ser p or su a
nat ure za, e co nt in uaram a g o zar ent re s i das doçur as de um comérc io
inde pen dent e; mas, desde o inst ant e em qu e um homem sent iu nec essid ad e
do soc orro de out ro, desd e q ue s e p erceb eu ser út i l a um s ó co nt ar co m
provisõ es p ara do is, des apar eceu a ig ual d ade, int rod u ziu-s e a pro pri eda de
(. . . ). ” (Discurs o so bre a desi gua lda de, p. 2 64-26 5). Para el e, a i nv enção d a
m et al urgi a e da agri cul t ura produzi u est a grande rev ol ução. A ori gem da
propri ed ade e st á v i ncul ada, seg und o Ro u sse au, a o cul t iv o da t erra q ue
gerari a, ao cul t iv ador, “(. . . ) um direit o s o bre o prod ut o d a t erra qu e e le
t rabal hou, dá- lhe co nseq uent em ent e dir eit o sobre a gl eba p elo me nos at é a
colhe it a, assim s end o cad a an o; por d et ermi nar t al f at o uma poss e cont í n ua,
t ransf orma-se f acilm ent e em pro pri eda de. ” ( Discurso sobr e a des igu ald ade, p.
266).
102

livro, tendo em vista que a sua definição de propriedade está no


primeiro livro. Não bastasse isso, tanto no De Jure Praedae como
no Dire ito da Guerra ele traz a tona o argumento da “Tesmo forias”
para exe mplificar que co m a partilha das terras havia surgido o
direito de propriedade. Contudo, na primeira obra, Grotius empreg a
este argu mento quando e xplica as mencionadas Leis 3 e 4,
respectivamente, da inofensividade e da abstinência, que dize m
respeito ao estado de natureza, no qual a propriedade tem orige m.
Há a preocupação, no segundo capítulo do segundo livro do Dire ito
da Guerra, de definir quais bens pertence m aos ho mens e m
co mu m, ha ja vista que entre as cau sas que justificam a guerra
consta a a mea ça contra o que nos pert ence – tanto e m co mu m co m
todos os homen s quanto e m particular. Na obra da juventude ele
usa o argu mento de “Tes moforias” para mostrar o vínculo entre
apropriação e propriedade, ao passo que no seu tratado sobre a
guerra o argumento é utilizado para esclarecer uma das situações
que autorizam a realização de uma gu erra.

No segundo capítulo do Dire ito da Gue rra, o autor apresenta


seu conceito de propriedade 222. Ele entende que a propriedade de
cada u m é, e m u m primeiro mo mento, a vida, o corpo, a liberdade
e os bens. 223 Este conceito parece ter influenciado John Locke que ,
no Segundo Tratado Sobre o Governo Civil 224, ta mbé m define a
propriedade como sendo a vida, a liberdade e bens.

222
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I I, I , p. 103.
223
Nov am ent e G rot i us ci t a um t recho do l iv ro I I I , 5, do De O f f iciis de Cí cero
para m ost rar q ue n ão é j u st o t i rar a saúd e do v i zi nho, nem se ap oder ar do s
ben s do s o ut ro s.
224
No ca pí t ul o VI I , § 87, d o Se gun do T rat ad o Sobr e o G ov erno Civ il, Jo h n
Locke af i rm a: “T endo o homem nasci do, t al como se pr ovou, com t í t ulo à
lib erda de p erf eit a e a um g o zo i rrest rit o de t odos os d ire it os e pr ivi lég ios d a
lei d e nat ur e za, da mesm a f orma qu e qu a lquer out ro h omem ou g rup o de
homens no mu ndo, t em ele por n at ure za o p oder nã o ape nas de pres ervar su a
p ro p ri ed ad e, ist o é, su a vi d a, l i b erd ad e e b en s cont ra inj úri as e int e nt os d e
out ros h omens, c omo t amb ém de ju lg ar e punir as v iol ações dess a l ei po r
out ros. (. . . )” (LO CKE, John. Dois T rat a dos S obre o G ove rno C ivi l, p. 458, gri f o
m eu).
103

Conclusão

Co mo dito anteriormente, a partir da leitura das duas


principais obras políticas verifica-se que Grotius manifesta
diferentes noções de lex e jus. Enquanto no De Jure Praedae, o
jus decorre da regulae e da le x; no Dire ito da Guerra, o jurista
desenvolve u ma concep ção de direito natural a partir de u m
sentido de jus no qual este ter mo seria sinônimo de le x. Esta
diferença faz com que o direito natural, na primeira obra, decorra
de regras e leis naturais, ao passo que no tratado a identificação
do direito com a lei faz co m que a mbos se ja m entendidos co mo
sendo regras de ações morais obrigatórias.

Esta diferença aponta preocupações distintas. Quando


regras e leis naturais específicas são estabelecidas, cria-se u m
sistema nor mativo que não per mite o recurso à generalização, na
medida e m que so mente o conteúdo destas nor mas pode incidir
sobre aqueles que concorda m co m este conteúdo. Por outro lado,
o expediente adotado no Direito da Guerra faz com que o direito
natural seja mais genérico e dificulta a limitação de seu conteúdo,
deste modo abre-se a possibilidade para a inserção, no âmbito do
direito natural, de novos objetos qu e não estava m inicialmente
vinculados a ele (como, por e xe mplo, o direito de propriedade).
I mportante salientar que, no Direito d a Guerra, Grotius argument a
que o direito natural impõe alguns deveres morais que obrigam a
que m é honesto; ao invés de apresentar todo o conteúdo deste
direito, o autor aponta princípios básicos que deve m ser seguidos
para se estar e m confor midade co m a lei natural.

Se a criação de um siste ma nor mativo pode fazer com que o


direito natural perca a sua generalidade, este recurso, por outro
lado, permite que o autor assegure os direitos que ele reputa
essenciais. Entre as diversas regras e leis do De Jure Praedae há
algumas que trata m de u m te ma que n ão é desenvolvido no Dire ito
da Guerra: a obrigatoriedade do procedimento judicial. É verdade
104

que o autor sustenta, no tratado, que há a necessidade de se


recorrer às cortes antes de se empre ender a guerra, contudo ele
não afirma nesta obra que os Estado s tê m o dever de recorrer ao
procedimento judicial quando eles estiverem entre as partes das
lides sub metidas aos tribunais.

Esta argu mentação vincula o procedimento judicial ao


direito natural e o torna obrigatório aos cidadãos e aos Estado s
quando estes busca m resguardar seus direitos ou a punição
daqueles que transgrediram a lei. Referida vinculação parece
de monstrar a importância deste tema para o jurista. A preocupação
co m o procedi mento legal não é nova, costu ma-se apontar a
Magna Carta, de 1215, co mo u m dos primeiros docu mento s
jurídicos a indicar a necessidade de a punição ser precedida de um
processo. 225 Contudo, a obrigatoriedade de o Estado, e m su a s
relações, se sub meter às cortes (e às leis) é u ma noção que só se
solidificou com o conceito de Rechtstaat (Estado de Direito),
for mulado por juristas alemãe s do século XIX.

Esta concepção grociana parece destoar das investigações


efetuadas na época. Ao sustentar que os Estados deve m se
sub meter ao procedimento judicial, Grotius estabelece um limite
para a atuação estatal. O Estado e, consequente mente, aquele que
o governa, não pode fazer valer seus direitos sobre os cidadãos
se m recorrer aos tribunais. Sem alarde é apresentado um meio de
conter os í mpetos daqueles que g overna m, se ja m eles reis,
príncipes ou me mbros de u ma asse mbleia.

Não obstante apresentar este ponto d e vista que o aproxi ma


do pensa mento moderno, Grotius, no De Jure Praedae, també m

225
A cl áusul a 39 da Magn a C art a e st a bel ece que “ nen hum h omem l ivre s er á
capt urad o, o u leva do pris ion eiro, ou priv a do d os bens, ou exi lad o, o u d e
qual quer m odo dest ruí do, e nunc a usar emos da f orça c ontra e le, e n unc a
mandar emos que out r os o f açam, salvo em processo l ega l por seus par es ou
de acor do com as le is da t e rra ” (“3 9. Nul l us l i ber hom o capi at ur, v el
im pri sonet ur, aut di ssei si at ur, aut ul t l aget ur, aut ex el et ur, aut al i quo
de st ruat ur, n ec super eum i bim us, nec sup er eum mi tt em us, ni si per l egal e
j udi ci um pari um suorum v el per l egem t erre”). Di spi nív el no end ereç o
el et rôni co ht t p: / / gal li ca. bnf .f r/ ?l ang= PT .
105

segue a tradição to mista e sustenta q ue o direito natural se origina


da vontade de Deus. Este ponto de vista não será mantido no
Dire ito da Guerra, neste tratado o aut or vincula o direito natural à
natureza racional humana e separa este direito do direito divino.
Nota-se, então, a mencionada dupla concepção de direito natural.

As diferenças na noção de direito natural não acarretam


mudanças e m u m aspecto vinculado a este direito: o surgimento da
sociedade política. Nos dois trabalhos o autor defende a existência
de uma condição na qual os seres hu manos viviam se m estare m
politicamente organizados. Nesta situação, cada u m garante a sua
sobrevivência por meio da apropriação dos bens naturais
necessários para a própria subsistência. Viu-se que este ato de
apropriação teria originado a propriedade privada. Entretanto, não
havia meios de se resguardar esta propriedade e, como salientado
anteriormente, outras situações teriam tornado difícil a vida dos
seres hu manos. Igualmente, nesta co ndição não existia um modo
capaz de fazer co m que este s direitos naturais fosse m respeitados.
Assi m, concebeu-se u m artifício apto a solucionar este problema .
Restou estabelecida, através de um pacto, a sociedade política,
detentora da força necessária para acautelar os direitos naturais e
garantir a convivência harmônica entre os ho mens.

Apesar de ter surgido um ente for te o suficiente para


proteger os cidadãos e seus direitos naturais, o jurista entende
que cada u m conserva seu direito de guerrear para defender seu
direito natural e que este ato seria justo, desde que cu mpridos
alguns requisitos. Assim, faz-se ne cessária uma análise desta
possibilidade.
106

3 CONSEQUÊNCIAS DO DESRESPEITO AO DIREITO


NATURAL: A GUERRA JUSTA E A PENA

No capítulo anterior, demonstrou-se o desenvolvimento


grotiano dos termos jus e le x e a sua visão sobre o surgimento da
sociedade política e da propriedade. Salientou-se alhures que, nas
suas obras, se mpre que possível, o jurista assevera que seu
principal objetivo é elaborar um estud o a respeito da guerra e da
paz – estabelecendo regras aplicáveis às relações internacionais.
No livro II e III do Dire ito da Guerra e da Pa z, o autor trata da
guerra e da justiça na guerra e pretende de monstrar que o ter mo
“guerra justa” pode ser utilizado, na medida em que e xiste m
situações e m que o recurso bélico é co mpatível co m o direito.

Quando o jurista apresenta sua teoria sobre a guerra justa,


há u ma argu mentação que vincula os atos bélicos ao direito
natural. O autor utiliza conceitos advindos do direito natural para
justificar a guerra e legitimar a aplicação de punições aos
transgressores da lei.

Assi m, a guerra e a pena são te mas importantes na obra de


Grotius e estão atreladas à sua concepção de direito natural,
sendo u ma consequência do descu mpr imento deste direito. No que
diz respeito à primeira, a investigação do jurista pode ser inserida
e m duas tradições de estudo de conflitos humanos: jus ad bello
(determinação de critérios a serem cu mpridos antes de se
e mpreender u ma batalha) e o jus in bello (definição de
co mporta men tos per mitidos em u ma guerra). No que tange ao
direito natural, é mais i mportante analisar os pressupostos
estabelecidos por Grotius para o uso da força ao invés de
aprofundar-se sobre o seu ponto de vista sobre o que é permitido
107

fazer durante as guerras, tendo e m vista a generalidade destas


afirmações. 226

Desde a antiguidade, a guerra é tema recorrente na filosofia


política 227, mas u m do s aspectos que diferencia a argumentação d o
jurista da tradição é o ponto de par tida de sua investigação. O
autor inicia seus estudos a partir de um fato concreto, a
apreensão, por uma co mpanhia holandesa, de u m navio português
carregado de mercadorias do oriente.

3.1 A liberdade dos mares

Em 1603, o navio português Santa Catarina foi capturado


pelo almirante Jacob van Hee mskerck 228 que estava a serviço da
Co mpanhia das Índias Oridentais.

226
No pri m ei ro capí t ul o do t ercei ro l iv ro do Direit o da G u erra e da Pa z (p.
1015- 101 9), G rot i us a pre se nt a al gum as r egr as que det erm i nari am as condut a s
perm i ti das na gu erra, segu ndo o di rei t o de nat ureza. A pri m ei ra regra aut ori za
que se f aça o nece ssári o para ev i t ar o sof rim ent o de um dano, m as est a
reação pr eci sa ser pr oporci on al à ação of ensiv a. A segund a regra d et erm i na
que o di rei t o não dev e ser apreci ad o som ent e no i ni ci o do conf li t o, m as dev e
ser av al i ado conf orm e as si t uaçõ e s qu e sur gi rem no curso da g uerr a (p. ex . ,
se al gu ém se al i ar ao m eu agr e ssor, t e nho o di rei t o de m e d ef ender c ont r a
do s doi s). A t ercei ra regra aut ori za, quan do se p ret en de a rec uper ação de um
bem que f oi i nj ust am ent e ret i rado, a ret enção de o ut ro bem ou de v al or
su peri or a o dev i do, desd e q ue n ão sej a po ssí v el recuperar i m edi at am ent e o
v al or ex at o do bem ex propri ado e se f aça, po st eri orm ent e, a rest i t ui ção d o
ex cedent e. G rot i us apr e sent a, na v erdade, m andam ent os de
proporci o nal i dade, n o s q uai s el e procur a l im i t ar a ação daq uel e q u e
l i ci t am ent e com bat e. De st e m odo a guerr a j ust a é em pree ndi da ape na s p ar a
ev it ar o dano ou rec uper ar um bem , sem que o agr e ssor sej a prej u di cado em
se u s di rei t os nat urai s.
227
Q uando G rot i us argum ent a, no se gun do ca pí t ul o do pri m ei ro l iv ro do Direit o
da G uerra, que o di rei t o de nat ur eza nã o é cont rári o à guerr a, el e ci t a um
t recho do De O f f iciis de Cí cer o no qual sã o m enci onada s d ua s m anei ra s d e
resol ução d e um a cont rov érsi a. A passagem é im port ant e por que l i mi t a a v i a
bél i ca ao s ca so s em que o di ál og o nã o pode ser col oc ado em prát i ca e
apre se nt a com o pri nci pal f i nal i dade da guerr a a bu sca d e um a v i da em paz e
sem i nj ust i ça (Dos Deveres, ob. C it . , liv ro I , 35, p. 27).
228
Na alv orada de 25 de f ev erei ro de 1603, t rês nav i os h ol and e se s, so b o
com ando do al m i rant e Jacob v an Heem skerc k, av i st aram um a nau port ugue sa
ancora da na co st a l e st e de Si ngap ura. D epo i s de al gum a s h ora s de c om bat e,
os hol and e se s d om i naram a t ri pul ação, qu e abdi cou da s m ercadori a s e do
nav i o, em t roca das pró pri as v i das. A m ercadori a era part i cul arm ent e v al i osa
108

Este fato gerou um grande debate na época e foi


considerado por muitos co mo u m ve rdadeiro ato bélico. Por ser
u ma co mpanhia despida de personalidade jurídica de direito
público, para os juristas daquele período, a Co mpanhia das Índias
não teria o direito de reter a mercadoria resultante do botim.

A ação do almirante Heemskerck te m características que a


singularizam, tornando-a importante na tradição da guerra justa.
Em pri meiro lugar, a apreensão do Santa Catarina foi realizada por
u ma co mpanhia privada e não por algué m que estava a serviço do
governo. Além disso, os holandeses não praticaram u m ato de
defesa, mas e mpreendera m u ma gu erra ofensiva – os seguidos
atos ofensivos praticados demonstra m que eles pretendiam abrir
novas rotas co merciais. 229

Na tentativa de justificar esta ofensiva, Grotius escreve o


De Jure Praedae Commentarius. No capítulo XII desta obra,
publicado co m o título De Mare L iberum, Grotius se opõe à teoria
do mare clausum que era defendida por Portugal e Espanha,
baseada na Bula Inter Coetera de 1493 (alterada pelo Tratado de
Tordesilhas de 1494), a qual garantia o domínio de exploração das
novas rotas co merciais aos países da península ibérica.

poi s cont i nh a cobre do Ja pão, sed a e porcel ana da Chi n a e l i ngot es de o uro e
prat a do Méx i co e Peru, al ém de v ári os qui l ogram as d e al m í scar. A carga do
nav i o era t ão v ali osa qu e a v enda po st eri or arrecado u o dobro d o capi t al da
própri a C om panhi a d a s Í ndi a s O ri ent ai s Hol a nde sa (em hol andê s, "Ver een igd e
O ost -Ind ische Com pag nie", com a si gl a V.O . C. ). I nf orm ações ret i rada s d e
MASSELMAN, G eorge. T he Cradl e of Colo ni alism, p. 131, e VAN I T T ERSUM,
Mart i ne Jul i a. Hugo G rot ius, Nat ural Ri ght s T heories and t he R ise of Dut ch
Pow er in t he East Ind ies 1 595- 161 5.
229
Não f oi som ent e e st e at o q ue m arcou a s of ensi v as da Com panhi a da s
Í ndi as O ri dent ai s Hol an de sa em busc a de nov as rot a s com erci ai s.
Em 1605, m ercadore s hol an de se s da V. O . C. , arm ados, ca pt uraram o
f ort e port uguê s de Am boyna (ou Am bon), na s i l has Mol uca s (I ndon é si a);
em 1619, i nv adi ram Jacart a, que renom ea ram Bat av i a (o nom e l at i no dos
Paí se s Bai x os) e a t ran sf orm aram em capi tal , e, em 1682, t om aram Bant am ,
que era o úl t im o port o i m port ant e ai nda em m ãos do s nat iv os. A ex pl oração
com erci al l ev ou ao enri quecim ent o da Com panhi a. Para se t er i dei a, em 1669,
a V. O . C. era a m ai s ri ca com panhi a priv ada do m undo, po ssuí a m ai s d e ce nt o
e ci nquent a nav i os m ercant e s, quar ent a n av i os de gu erra, ci nque nt a m i l
f unci onári os e um ex érci t o priv ado de dez m il sol dado s (MASSELMAN o p. cit . ,
e VAN I T T ERSUM, op. cit . ).
109

No De Mare Liberum, Grotius argume nta que a Companhia


das Índias teria o direito de aprisionar o navio porque os Países
Baixos esta va m e m guerra contra a Espanha 230, que na época
exercia do mínio político sobre Portu gal devido à União Ibérica
(1580-1640).

Co mo dito anterior mente, a co mpanh ia holandesa realizou


atos ofensivos que visavam à abe rtura de rotas comerciais.
Consequente mente, a co mpanhia desfrutou de um vultoso acúmulo
monetário advindo do produto do saque dos bens tomados de
cargas e entrepostos comerciais conquistados e da exploração das
novas rotas co merciais.

Por isso, Grotius, que era advogado da co mpanhia


holandesa, não pôde utilizar o clássico argu mento segundo o qual
atos de guerra são justos quando p raticados para se defender.
Diferentemente disto, o jurista sustenta que a liberdade dos mares
era fundamental para a co municação entre os povos e nações, e
nenhu m país poderia monopolizar o oceano, na medida e m que o
do mínio sobre u m be m i móvel adviria da ocupação física e, dada a
grande extensão e falta de limites previamente estabelecidos nos
mares, seria difícil alguma nação o cu pá-los. Sua argumentação é
funda mentada e m u ma noção segundo a qual os oceanos são
territórios internacionais que pertencem a podos os povos. 231 Dest e
modo, Grotius dava u m suporte teórico para que os holandeses
pudesse m quebrar o monopólio co mer cial do oceano índico 232.

230
A G uerra do s 8 0 a no s f oi um conf li t o ent re os Paí se s B ai x os e a E span ha.
Verdad ei ra gu erra de sece ssã o por m ei o da q ual o t erri t óri o hol a ndê s se
t ornou i nde pen dent e da Cor oa e sp anh ol a. O conf li t o f oi dese ncad ead o, al ém
do s al t os t ri but o s, por m ot iv os rel i gi osos: os cal v i ni st as h ol ande se s t i nham
recei o de sof rer per seg ui ção pel o s cat ól i cos espan hói s.
231
No Direit o d a G uerra e da Pa z, G rot i us m ant ém a sua t ese d e
im possi bi l i dade de a po ssam ent o do s m are s. Ent ret ant o, el e apre sent a um a
ex ceção a e st a re gra a o af i rm ar ser p o ssív el o dom í ni o sobr e ri os e m are s
que e st ão ent re doi s t erri t óri os de um mesm o paí s. S eri a po ssí v el a um
Est ad o, ou m ai s d e um , caso t e nham um a pa rt e do m ar dent ro de se u s l i mi t es
t erri t ori ai s, ocupá-l o; p ode ndo, i ncl u siv e, cobrar t ri but o s do s nav i os q ue
pa ssam por est e m ar (Liv ro I I, I II ).
232
Não é sem razão que G rot i us, ao se ref eri r ao m anuscri t o ori gi nal do De
Jure Praed ae Comm ent ari us, o den om i nav a de De In dis.
110

Grotius entende que o papa não possuía autoridade e poder


para fazer u ma divisão dos oceanos e , ainda que pudesse realizá-
la, “isso não far ia os portugueses soberanos daqueles lugares.
Porque não é uma doação que produ z a soberan ia, mas a
consequente entrega da coisa e o seu apossamento
233
subsequente ” . Seu raciocínio leva à conclusão de que o mar nã o
pode ser apropriado, pois é um be m co mu m e acessí vel a todas as
pessoas. Para legitimar esta argu me ntação, o jurista utiliza o já
mencionado argu mento de Cícero sob re a aquisição dos assentos
de u m teatro. Todos os lugares do t eatro estão disponíveis, mas
u ma vez que alguma pessoa se senta, ela toma posse do lugar e,
mesmo que vá ao banheiro, pode reivindicar o direito de se sentar
ali, caso alguma outra pessoa tenh a ocupado o lugar na sua
ausência. O princípio da ocupação e a i mpossibilidade desta se
dar sobre os mares faz co m que e stes não possa m ser apropriados
por nenhu ma nação e, ta mpouco, se re m doados pela autoridade
religiosa.

Após esta pri meira defesa do direito de co mércio da


Holanda co m as Índias, Grotius a rgu menta que a atividade
co mercial era funda mental para a sub sistência dos Países Baixos
e, e m virtude disso, passa a ser i mpo rtante para a manutenção do
direito natural de preservação da vida, per mitindo o uso da força
co mo meio para se assegurar a sobrevivência da sociedade
batava. Deste modo, os holandeses de ve m sustentar seu direito de
co mércio co m as índias orientais por meio da paz, por tratados ou
através da guerra.

Essa preocupação co m a guerra co mo meio de se garantir


u m direito natural é, ao que parece, o ponto de partida dele para a
elaboração da sua sistemática, que será aprimorada na sua grande
obra da maturidade.

233
G RO TI US, Hugo. T he F reedom of t he Seas, p. 16-17.
111

3.2 A guerra justa no De Jure Praedae Commentarius

No De Jure Praedae, Grotius te m u ma postura mais pró xi ma


a de um advogado do que a de u m filósofo. Como dito antes, o
autor tenta justificar os atos e mpree ndidos pela Companhia das
Índias e não somente apresentar u ma teoria sobre o modo correto
de se fazer a guerra.

Apesar desta preocupação prática, o jove m jurista apresenta


concepções i mportantes nesta obra. O primeiro conceito a ser
destacado é a definição de guerra que, para ele, é uma “e xecução
ar mada contra um adversário armad o” 234, bem diferente daquela
que será apresentada, mais tarde, no Dire ito da Guerra e que será
analisada no próxi mo tópico. Nesta p rimeira definição verifica-se
que a guerra é vista como u ma dispu ta de arma s, levando-se em
conta so mente o ato de e xecução, se m a preocupação co m o
te mpo e a vontade dos contendores e m travar a batalha.

Em que pese ter ocorrido u ma mu dança no conceito de


guerra; no Direito da Guerra, Grotius repete a divisão,
estabelecida no De Jure Praedae, da guerra em justa e injusta, e
privada e pública. 235 Esta dupla divisão é de su ma i mportância para
a argu mentação grociana contra os portugueses.

Antes de adentrar na análise destas divisões, é necessário


entender quais são os fundamentos da justiça na guerra. Estes
funda mentos ta mbé m serão repetidos nos argu mentos do Dire ito

234
“Armat a in armat um exsecut io be llum d ici t ur” (Hu go G RO T I US, De Jure
Praeda e, cap. I I , p. 30).
235
“(…) A guerr a é dit a " just a" se cons ist e na exec ução de um di reit o, e
"injust a" se e la cons ist e n a exec ução de uma les ão. Ela é chama da d e
"públ ica", qu and o cond u zi da pe la vo nt ade da Rep úbl ica, e nest e últ im o
conceit o a vont ade dos mag ist rad os (p or e xemplo, prí nci pes) est á inc luí da.
Além d isso, a guerr a p úb lica po de ser 'civi l' ( quan do t r avad a co nt ra uma part e
da mesma Repú bl ica) ou "est ran gei ra" (quan do t ravad a cont ra out ra s
Repú blic as). O que é conheci do como uma "guerra d e ali ados ” é uma f orma
de guerr a cont ra est ran ge iros. Aque las qu e são t ravadas de mod o cont rár io
[ do que a pú bl ica] são “ guerr as priv adas ”, emb ora a lgum as aut or ida de s
pref erem descr ever t ais conf lit os c omo 'bri gas' ao invés de " guerr as" (. . . ). ”
(G RO T I US, Hugo. De Jure Pra eda e Comment arius, cap. I I , p. 30).
112

da Guerra: o uso da força se torna justo quando por meio da


guerra se ob jetiva a defesa da vida, da propriedade – ou a
recuperação desta –, o pagamento do que é devido e a punição
pelo ilícito cometido 236. A guerra, para ser justa, deve per manece r
na esfera do direito contestado, sendo travada entre as pessoas
obrigadas e vinculadas por este direito 237.

Não bastasse m estes pressupostos, o jurista apresenta a


possibilidade de se empreender voluntariamente u ma guerra contra
u m Estado ou magistrado – que por si me smo ou por meio de u m
cidadão causou a lesão. Pode-se combater justa mente quando o
dano foi causado por um Estado e quando este, não tendo causado
o dano de forma direta, protege u m cidadão causador da lesão.
També m pode m ser alvo de retaliação os aliados e os súditos de
u m adversário 238.

Ao que tudo indica, estas duas últimas situações consiste m


e m u ma tentativa de justificar o ato do almirante Hee mskerck, ha ja
vista que nenhu ma destas duas causas estaria diretamente
vinculada a uma guerra defensiva. Pode-se, licitamente, concluir
que o ato de “fecha mento” dos mares seria visto pelo jurista co mo
u m dano a todo o povo holandês – poderia haver dúvida se a
exclusividade mercantil portuguesa nas Índias seria um ato do
Estado ou dos navegadores portugueses (cidadãos). Por isso,
talvez, o autor tenha apresentado, na juventude, estas duas
justificativas: u ma supondo que o b arco português fazia a rota
co mercial co m autorização direta da coroa (seja ela espanhola ou
portuguesa) e, outra, segundo a qual a exploração comercial no
oceano índico era uma iniciativa privada chancelada pelo Estado.

O holandês entende que podem ser empreendidos atos


ofensivos quando se coloca em risco a sobrevivência de todo o

236
Ibi d. , Cap. VI I , p. 70. I nt eressant e not ar qu e a guerr a pod e acarr et ar um a
puni ção (G RO T I US, Hugo. O Dir eit o d a G ue rra e da Pa z, Liv ro I I , cap. 1, p.
285).
237
Ibi d. , cap. VI I I , p. 108.
238
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI , p. 75.
113

Estado. Por ser per mitido por u ma le i natural defender a própria


vida e evitar o que nos ameaça (Lei 1) e obter e reter os bens
necessários para a manutenção da própria vida (Lei 2), Grotius
pode argumentar que, na medida e m q ue os holandeses dependem
do co mércio para sobreviver, o fecha mento das rotas co merciais e
a exclusividade portuguesa do comércio com as Índias seriam
contrários ao direito natural e, portanto, autorizariam a ofensiva de
u ma co mpanhia privada. 239

Em que pese à argumenta ção e m favor de uma guerra


ofensiva, o jurista, inicialmente, apr oxi ma a guerra à noção de
“vingança”. Neste ponto, o termo te m u m sentido diferente do
atual, significando uma reação i mediata a um mal sofrido.
Entretanto, ele salienta que os atos de “vingança” privada são
proibidos (lembrando que a Lei 9 deter mina a necessidade do
processo judicial para que o cidadão faça valer seu direito sobre o
outro). Não bastasse isso, se a causa da “vingança” for injusta, a
guerra advinda dela també m será. A “vingança” não pode ser
infligida com u m espírito de injustiça, ou seja, quando não se tem
e m conta o bem da pessoa punida ne m o bem co mu m. Surge,
então, u ma verdadeira “vingança institucionalizada” 240 que acarreta
u ma pena – o fato de a guerra ter co mo finalidade sanar o mal
praticado faz com que ela deva ser exercida pelo Estado. O
castigo, porém, não pode ultrapassar os limites da retribuição; a
penalidade deve ser equivalente à inju stiça praticada 241.

239
O j uri st a su st e nt av a que a ex pan são m arí t i m a hol ande sa er a f undam ent al
para a m anut ençã o d a “Re públ i ca da s Prov í nci as Uni da s d a H ol anda” .
Af i rm ou, no De r epu bl ica em end and a qu e “o comércio com as Í ndi as O rie nt ais
era de gra nde im port ânc ia p ara a seg uranç a do paí s, e que est av a claro o
suf icie nt e que o com ércio n ão po di a ser condu zi do sem armas, da do a
obst rução port u gues a por m eio da f orç a e da f rau de. (Def e nsi o, p. 331) ”
(T UCK, Ri chard. Philos ophy a nd G overnm ent 1572-1 651, p. 17 0).
240
A argum ent ação do j uri st a é cont rári a à p rát i ca da v i ngança t ant o pel o s
part i cul ares com o pel o E st a do. N o De Ju re Prae dae, qua ndo G rot i us f az
al usã o a um a v i ngança e st at al , el e est á def ende ndo a po ssi bi l i dade de um a
com uni dade pol í t i ca im por um a pena para puni r e ret ri bui r a of ensa prat i cad a
pel o del i t o. De st e m odo, o E st ad o d ev e agi r de m odo j u st o, v i sando o b em
com um .
241
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. I I I , p. 39.
114

Há u m juízo de ponderação quando da prática de atos de


força que acarretam a guerra. Antes de praticar atos de guerra,
tanto o detentor da capacidade de declarar a guerra pública quanto
o particular agem co mo juízes e m cau sa própria. É preciso avaliar
o dano sofrido ou a ameaça e verificar se há necessidade de
utilizar a força para garantir a manut enção do direito, que estaria
e m risco. Des te modo, Grotius transfor ma todos os ho mens e m
juíze s, pois cada u m te m que decidir se o ato do outro é u ma
a meaça que e xige o uso de ar mas.

As guerras privadas, em si mesmas, são justas, mas não


pode m ser e mpreendidas pelos indivíduos, co mo dito antes, por
u ma questão procedimental. As situações que permite m o recurso
à guerra com justiça são claras. A guerra encontra seu fundamento
na defesa de direitos básicos dos suje itos. Ela serve para a defesa
da vida e da propriedade, visa també m à busca do paga mento do
que é devido e a punição pelo ilícito co metido. Por servir de meio
para acautelar tais direitos é que a guerra privada não pode ser
proibida. Ela subsiste, mesmo após a instituição do Estado e das
cortes, podendo ser empreendida quando não for possível o
recurso ao judiciário. O sujeito não p erde o seu direito natural de
reivindicar e lutar pelo seu direito, há apenas a ausência de u m
pressuposto processual, criado a partir a institucionalização dos
tribunais. Para a busca da reparação de um direito violado, na
sociedade política, é necessário um processo for malizado junto a
u m magistrado. Existindo juíze s disponíveis, não se pode utilizar a
força por conta própria.

Havendo, portanto, a nece ssidade de u m procedi mento para


que seja utilizado o poder coercitivo e, consequente mente, a
guerra, o poder de empreendê-la de maneira justa reside no
Estado e não no indivíduo. Dentro do Estado, caberia ao
magistrado supremo decidir sobre a guerra. Na falta deste, deve-
se seguir u ma classificação de poder decrescente – partir do mais
alto magistrado até chegar ao mais baixo.
115

No capítulo VI do De Jure Praedae, Grotius deixa claro que


o poder de e mpreender a guerra, e m locais nos quais o povo não
te m o costu me de se reunir em a sse mbleia, cabe aos aristocratas
ou aos príncipes. 242 Este ponto merecerá maior atenção quando for
analisado quem te m o poder de decisã o sobre os atos de guerra.

Assi m, as guerras públicas são just a mente e mpreendidas


por um Estado ou por u m magistrado – de acordo com a posição
deste na sua classificação. Além disso, as guerras pode m ser
feitas em con junto co m u m Estado ou u m magistrado aliado. 243

Co mo salientado antes, a guerra pública e a guerra privada


so mente pode m ser e mpreendidas qu ando for impo ssível utilizar a
via judicial 244. Ade mais, as guerras públicas deve m ser precedida s
da rerum repetit io (u ma espécie de reivindicação formalizada e
unilateral dos danos) e da aprovação de um decreto. Cu mpre
salientar que a guerra, para os me mbros do aparelho estatal
( magistrados, soldados, auxiliares ad ministrativos, etc.) é justa
quando ordenada por um superior.

Grotius salienta a necessidade de se ter boa-fé quando da


utilização da força:

A concl usão ex po st a n a part e i ni ci al dest e capí t ul o - a


sa ber, q ue um a guerr a é t rav ada j ust am ent e por age nt e s
v ol unt ári os na m edi da em que el a perm ane ce dent ro d a
esf era do di rei t o cont e st ado e é t rav ada ent re a s
pe ssoa s obri ga da s por m ei o do di rei t o - dev e se r
i nt erpret ada, ou com pl et ada, pel a segui nt e f rase: e n a
245
m edi da em que é perm i ti do pel a boa-f é .

No final do capítulo VIII, e nos capítu los IX e X do De Jure


Praedae, Grotius está preocupado co m a propriedade sobre o

242
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI , p. 64.
243
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI I , 75.
244
Na época de G rot i us n ão hav i a a possi bi l i dade de se l ev ar a di sput a ent r e
dua s p e ssoa s j urí di ca s d e di rei t o pú bl i co ex t erno a um a cort e i nt ernaci onal .
Sendo a ssi m , qual quer conf li t o de i nt eresse s env olv endo dua s naç õe s t rari a o
ri sco de um a guerr a.
245
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI I I , p. 118.
116

espólio da guerra. É conforme o direito natural e, portanto, justa a


apreensão e detenção dos bens capturados na guerra, desde que
não exista um co mando anterior contrário a isto 246. Na guerra
privada, na medida e m que estão e m causa direitos primários, os
despojos não são adquiridos por indivíduos ou por aliados, mas
pelo autor principal da guerra – que teve inicialmente seu direito
violado – até a sua pretensão ser satisfeita 247.

Por fi m, o jurista argu menta que o espólio da guerra serve


de indenização para o ofendido, haja vista que este teve que fazer
uso da força para preservar seu direito. Verifica-se, aqui, uma
contradição entre as obras. A argu me ntação do Dire ito da Guerra
per mite concluir que a indenização precisa ser proporcional ao
dano. Nesta obra, Grotius defende que quando o valor da
indenização for atingido, os bens apreendidos que restarem deve m
ser devolvidos. Se referidos bens, quando seu valor ultrapassa o
montante da indenização, devem se r devolvidos, o espólio do
Catarina també m deveria ser devolvido aos portugueses, ha ja vista
que a mercadoria do navio, por ser muito valiosa, era superior ao
desforço praticado pelo almirante Heemskerck.

3.3 A guerra justa no Direito da Guerra e da Paz

No Dire ito da Guerra e da Pa z, Grotius não está preocupado


co m u m fato isolado. Ele pretende demonstrar que o uso da força
não é contrário ao direito de natureza. Co mo salientado
anteriormente, a definição de guerra neste tratado difere daquela
do De Jure Praedae e não mais designa u ma ação, mas u m e stado.
No tratado, a guerra é tida como u m estado no qual os indivíduos

246
Com est a t ese, G rot i us d ef ende o at o d e apr een sã o da car ga do C at arin a.
247
G RO TI US, Hugo. De Jure Praed ae Comme nt arius, cap s. I X e X, p. 124 e
141.
117

considerados como tais resolvem sua s controvérsias pela força 248.


Esta definição faz co m que a guerra se torne u ma situação e não
apenas u m ato e xecutivo e apro xi ma o conceito grociano daquele
que será dado, mais tarde, por Hobb es no Leviatã 249. A novidad e
trazida pelo jurista é abandonar a tradicional argumentação e m
torno dos atos e apresentar u m perigo que se protrai no tempo; a
guerra enquanto “status” faz co m q ue o risco não seja apenas
atual, mas ta mbé m futuro.

O holandês defende que o direito de natureza e o da s


gentes admite m a guerra. Além disso, entende que a guerra justa é
co mpatível co m o direito humano e divino. Tal compatibilidade
advé m de princípios primitivos (alguns co muns aos animais e
outros que nos são provados pela história). Outra forma de
co mpatibilidade entre direito natural e a guerra é a utilização da
reta razão, ao invés dos impulsos ditados pela natureza animal,
para julgar a conveniência ou não de um ato ou regra.

Para provar que o direito de natureza não é contrário à


guerra e que a guerra pode ser justa, o autor traz os dois grupos
de princípios, retirados de Cícero, vistos no primeiro capítulo – os
princípios primitivos ou primeiros por natureza, e os princípios
superiores ou preferenciais aos do grupo anterior 250.

248
G ROT I US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I , I I , p. 71-72.
249
A def i ni ção de G rot i us n ão a pre se nt a, co m o a de Hobb e s, a noç ão d e
t em po, m as o u so da pal av ra “st at us” ( e st a do). O u so de st a ex pre ssão e a
af i rm ação do j uri st a no se nt i do da po ssi bi l i dade d e se em pree nder um a guerr a
cont ra um a am eaça imi nent e nos rem et em a um a i nt erpret ação segu ndo a
qual a gu erra é um a v erdadei ra si t uaçã o que se prol ong a p or um det erm i nado
perí odo de t em po. De st e m odo, é po ssí v el v er cert a sem el hança ent re a
def i ni ção groci ana e aq uel a a pre se nt ada por Ho bbe s no ca pí t ul o XI I I d o
Leviat ã: “ pois a G UERRA não c ons ist e ap en as na bat al ha o u n o at o de l ut ar,
mas na que le la pso de t empo dur ant e o qua l a v ont ad e de t rav ar a b at al ha é
suf icie nt ement e con heci da. Port ant o, a noç ão d e t em po d eve s er l evad a e m
cont a na nat ure za da guerr a, d o mesmo modo que na n at ure za do cl ima.
Porque t a l como a n at ure za d o mau t emp o não co nsist e em d ois ou t rê s
chuviscos, mas numa t e ndê ncia p ara chov er durant e vár ios d ias seg uid os,
t ambém a nat ur e za d a g uerra nã o co nsist e na lut a r eal, mas n a co nhec id a
dispos içã o para t a l, durant e t odo o t emp o em que n ão há g arant ia d o
cont rári o. ” (L evi at ã, p. 109).
250
O s pri ncí pi o s por nat ur eza o u pri m i tiv os sã o aqu el es pel o s q uai s t odo ser
v iv o, desde o m om ent o de seu na sci m ent o, se t or na c aro a si m esm o e é
l ev ado a zel ar pel a su a con serv ação, a am ar a si própri o e t udo o q ue é
118

Grotius chega a sustentar que a reta razão e a natureza da


sociedade não veta m o e mprego da fo rça, mas so mente as vias de
fato – não condizentes com a vida em sociedade. As vias de fato
seriam contrárias ao direito 251.

Co mpreende-se que a guerra, quando serve para a defesa


de um direito, é permitida. 252 A guerra é u m meio para a defesa da
vida e dos direitos inerentes a ela. Tendo em men te esses direitos
inerentes à vida e que a tornam possível, Grotius cita uma
passage m do Dos Deveres de Cícero para sustentar que somente
por meio do respeito ao que pertence ao outro é que a vida e m
coletividade se torna possível. 253 Partindo disto, o holandês conclui
que zelar e prover os próprios interesses, desde que o direito do
outro não se ja atingido, não é contrário à natureza. É por isso que
o e mprego da força, quando não viola o direito dos outros, não é
injusto. 254

A noção de propriedade de Grotius acarreta que, ao lado


dos bens exteriores, te m-se, co mo co mponentes da propriedade, a
vida, o corpo e a liberdade; contra os quais não se pode atentar
se m in justiça. A propriedade estabelece limite ao direito de ação e
de interferência e já foi mencionado que ela é protegida pelo
direito natural. Desta forma, a propriedade se torna um direito
partícipe da ordenação da vida social – consequente mente, ela é
conveniente à natureza e, caso se ja prejudicada, pode servir de
255
justificativa para a realização da guerra justa .

nece ssári o p ara se m ant er. Desse s pri ncí pi os d ecorre o dev er que t em os de
no s co n serv arm os no e st ad o n o q ual a n at u reza n o s col oco u, de ret erm os o
que e st á em conf ormi dade com el a e de repudi ar a s at i t ude s cont rári a s a el a.
Por out r o l ado, o s pri ncí pi os sup eri ore s são aq uel e s q ue t rat am da
conv eni ênci a das açõe s e obj et o s com a razão – send o que e st a é d e
nat ureza superi or ao c orpo. E st e úl t im o grupo é própri o do q ue é h one st o.
251
G RO T I US, Hugo. O Dir eit o da G u erra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I I , I , pp. 102-
103.
252
Ibid. , p. 101.
253
CÍ CERO , Marco T úli o. Dos Deveres, I I I , 22, p. 122.
254
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerra e da P a z, l iv ro I, cap. I I, I , p. 103.
255
Ibid. , l iv ro I I , cap. I , II , II I , pp. 284-287.
119

Em que pese autorizar um desforço quando violado, o


direito de empreender a guerra quando há ofensa ao direito de
propriedade não é sempre autorizado pelo direito natural. O jurista
afirma que as causas que leva m a humanidade às guerras são as
mesmas que a leva m à s cortes, ou se ja, a violação dos direitos. A
existência de magistrados e de tribunais disponíveis seria um
impedi mento para o uso da própria força e m busca de reparar ou
evitar um dano. 256 Este mesmo argu me nto já estava no De Jure
Praedae e se repete no Dire ito da Guerra e da Pa z.
Excepcionalmente, pode-se utilizar de meios próprios, sem
recorrer a um juiz, para evitar u m perigo iminente.

A principal causa legítima da guerra é u ma afronta recebida.


Partindo da interpretação de uma frase de Santo Agostinho - “a
iniquidade da parte contrária produz guerras justas” 257 -, Grotius
sustenta que o termo “iniquidade” deve ser entendido como
sinônimo de “injúria”. Além do mais, ele afirma que a maioria dos
autores, além desta causa geral, assinalam outras três causas
legítimas às guerras: a defesa, recuperação de pertences e a
punição. A menos que se dê ao termo recuperar um significado
mais a mplo, o mite-se nesta enu mer ação, segundo o jurista, a
busca do que é devido. 258 Nota-se que os mesmos argu mento s
utilizados aqui pelo jurista holandês já constava m na obra de
Francisco de Vitória 259 e Alberico Gentili 260.

Vitória apresenta quatro preocupações quando escreve


sobre a guerra: se a guerra era lícita para os cristãos; qual a
autoridade seria competente para declarar e fazer a guerra; as
causas justas da guerra, e os atos lícitos contra os inimigos e m
u ma guerra. Grotius ta mbé m adentra na discussão sobre a licitude
ou não da guerra para os cristãos e qual a autoridade competente

256
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da Pa z, l iv ro I I , cap. I, I I, p. 284.
257
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. I, I , p. 284.
258
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. I, I I, p. 285.
259
VI T Ó RI A, F ranci sco de. ‘O n t he La w of W ar’, Vit oria: Polit ical W rit in gs.
260
G ENT I LI , Al beri co. De Jure Belli L ibri T res.
120

para empreender a guerra. 261 A guerra feita pelos cristãos é u m


assunto que foge do â mbito deste trabalho e a co mpetência para
atos bélicos, na obra de Grotius, será vista mais a frente.

No que diz respeito às causas justas para a guerra, Vitória


afirma que a única causa que justificaria a guerra seria uma lesão
recebida e sustenta esta afirmação e m u ma definição de guerra
que havia sido formulada por Santo Agostinho, a me sma citada
pelo jurista holandês e mencionada há pouco. 262 Por outro lado, a o
averiguar qual autoridade poderia guerrear, o espanhol afirma que
qualquer particular pode empreender u ma guerra defensiva, não
so mente para defender a sua vida, mas ta mbé m para assegurar
seus bens. 263 Vitória destaca que qualquer República tem o direito
de declarar e fazer a guerra, sendo que o príncipe tem a me sma
autoridade da República. Outrossim, o espanhol entendia que a
guerra seria adequadamente e mpreendida quando não houvesse
juíze s para apreciar as disputas. 264

Percebe-se que estas concepções de Vitória influenciaram


Grotius, que parece concordar co m o espanhol em diversos pontos
– nosso autor també m asseverou que a lesão sofrida era uma
causa para a guerra ju sta, defendeu a possibilidade de particulares
e mpreendere m atos de guerra e m def esa de si mesmo e de seus
bens quando não houvesse disponibilidade de acesso aos
magistrados, e, por fim, que e m guerra entre estados, caberia ao
soberano decidir sobre sua declaração.

Resta, portanto, clara qual foi a fonte de inspiração


grociana para a inserção da passagem de Santo Ago stinho. Nesta
parte do Dire ito da Guerra, o jurista e stá repetindo concepções de
Francisco de Vitória sobre as causas da guerra.

261
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerra e da P a z, l iv ro I, cap. I I, V e VII , pp.
109-1 14 e 1 17-1 27; e l iv ro I I , cap. I , XI I e XI II , pp. 298-302.
262
VI T Ó RI A, F ranci sco de. op. cit . , p. 303.
263
Ibid. , p. 299.
264
VI T Ó RI A, F ranci sco de. op. cit . , p. 300-301.
121

Não obstante, co mo dito anteriormente, outro autor do


século XVI apresenta concepções similares às sustentadas por
Grotius na formulação do seu conceito de guerra justa. Nota-se
que o jurista holandês pode ter se inspirado em Alberico Gentili
para defender a possibilidade de realização de uma guerra
265
ofensiva .

Gentili, antes de Grotius, já defendia que a guerra defensiva


poderia ser feita contra um ini migo que ataca ou se prepara para
atacar. 266 Contudo, quando se trata da última hipótese, o soberano
deve ter u m receio be m funda mentad o do ataque, por e xe mplo, o
simples cresci mento do poder de um país vizinho não constituiria
funda mento para u ma guerra. 267 Além desta similaridade, Grotius
ta mbé m pode ter retirado de Gentili outras duas causas para a
guerra justa, a saber, a necessidade de manter a existência da
co munidade política por meio da recuperação da propriedade
injusta mente retirada e a punição dos crimes. 268

Embora o jurista holandês repita argumentos utilizados por


estes dois autores, ele não aceita todas as suas concepções. Ele
censura Vitória por, suposta mente, te r defendido que u ma cidade
poderia mover u ma guerra por motivo de vingança 269 e, ta mbé m,
discorda dele, como vere mo s a seguir, quando trata da origem da

265
Menci ono u- se qu e o at a que hol a ndê s ao nav i o port ugu ê s f oi v i st o pel o s
t eóri cos da é poca c om o um a guerra i nj ust a e of ensiv a, na m edi da em que a
real i nt enção da c om panhi a com erci al hol an de sa - qu e n ão a pen a s a pree nde u
o Sant a Cat ari na, m as, em preend eu di sput a s por ent rep o st o s com erci ai s com
os port u gue se s no ocea no í n di co – era abri r rot a s c om erci ai s. A Com panhi a
da s Í ndi as n ão e st av a se def enden do de um at aque, m as t om ando a i ni ci at iv a
de at acar.
266
G ENT I LI , Al beri co. O p. cit . , p. 66.
267
Est e arg um ent o, i gual m ent e ut i li zado por G rot i us, m ost ra q ue o at a qu e
prev ent iv o, por f eri r o di rei t o nat ural , é ex cepci onal e r equ er um f at o grav e.
Vê-se q ue a i nv asão do I raqu e em m arço de 200 3 p or um a coal i zação m i li t ar
m ult i naci onal li derada pel o s E st a do s Uni do s da Am éri ca, m otiv ada pel o
su po st o de senv olv iment o de arm as de dest rui ção em m assa pel o gov erno
l ocal , seri a con den ada pel o s d oi s aut ore s. Ref eri do at o of ensi v o não e st ari a
cal cado em um f undam ent o seg uro, poi s não h av i a o recei o de at aq u e
im i nent e. Al ém di sso, at é h oj e n ão f oram en cont rada s a s arm as de de st r ui ção
em m assa sup o st am ent e de senv olv idas pel o I raque – m ot iv o pel o qual se v i a
o gov erno i raqui ano com o am eaçador à paz.
268
G ENT I LI , Al beri co. O p. cit . , p. 79-92.
269
G ROT I US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I, cap. I II , I V, p. 170.
122

pena – se esta ad vé m do direito civil ou do direito natural. Por


outro lado, enquanto Gentili afirma existirem causas divinas para a
guerra 270, Grotius não apresenta referidas causas para se recorre r
às armas, apesar de defender a licitude, para os cristãos, da
prática de atos de guerra e entender não existire m i mpedi mentos
nas Escrituras para a Guerra.

O holandês també m discorda de Gentili no que tange à


possibilidade de a vingança servir co mo causa justificadora de
ações bélicas. Enquanto o jurista italiano argumenta que a
vingança pode servir de justa motivação para conflitos 271, o jurist a
holandês refuta a possibilidade de a vingança ser autorizadora do
uso da força, na medida e m que ela não estaria em confor midade
co m as causa s justificadoras da guerra.

Vitória defendia a possibilidade de os cristãos guerrearem e


Grotius concorda com esta possibilidade. Contudo, o jurista
holandês está mais preocupado com a universalidade do fenômeno
bélico e sua compatibilidade com o direito natural em u m mundo
que não comporta apenas cristãos. A pretensão de Grotius é de
dar validade universal aos seus conceitos, para que as regras de
direito natural se apliquem a todas as pessoas e não so mente ao s
cristãos.

Respeitadas as interpretações que entende m que Grotius


apenas repete concepções anteriores, verifica-se que o jurista
desenvolve u m verdadeiro direito da guerra visando delimitar as
situações autorizadoras dos conflitos e as for malidades
necessárias para o uso bélico. Alé m disso, a tentativa de
co mpatibilização da guerra co m o direito natural representaria a
superação dos argu mento s de cunho religioso empregados pela
maioria dos teóricos medievais 272.

270
G ENT I LI , Al beri co. O p. cit . , p. 31-32.
271
G ENT I LI , Al beri co. O p. cit . , p. 79-92.
272
T I ERNEY, Bri an. O p. cit . , e Pet er HAG G ENMACHER, O p. cit . , ent end em
que G rot i u s nã o a pre se nt a n enh um a nov idade si gni f i cat iv a t ant o na su a
anál i se do di rei t o nat ural qua nt o da gue rra. Segund o esse s com ent adore s, o
123

No Dire ito da Guerra, o jurista holandês aponta quatro


causas legítimas para o recurso à força e, consequente mente, à
guerra. Primeira mente, a guerra é justa quando se ob jetiva a
defesa de quem recorre a esta via. Pode-se, ta mbé m, por meio das
ar mas, recuperar um be m que foi injusta mente retirado. Além
disso, a ação bélica serve para se buscar o que é devido. Por fim,
a guerra pode licitamente ser u m mod o de se aplicar uma punição.
Estas causas já tinha m sido mencionadas no De Jure Praedae 273.

Em u m primeiro mo mento, o uso de co ncepções da segunda


escolástica pode ser visto como u ma tentativa, por parte de
Grotius, de fazer co m que as suas co nclusões do De Jure Praedae
fosse m aceitas pelos teóricos espanhóis e pela própria coroa
espanhola. Ao que tudo indica, na juventude, o jurista tentava
convencer a co munidade cristã que os atos da Co mpanhia das
Índias não eram injusto s, mas pelo contrário, estava m totalmente
e m confor midade co m o direito natural. Posteriormente, no Dire ito
da Guerra, os argumentos são reto mados se m a mesma
preocupação prática e, talvez por isso, é excluída a possibilidade
de guerrear contra o Estado que não causou diretamente a lesão,
mas protege u m cidadão que a causou.

Não bastasse m e stas causas legítima s para a guerra, nosso


autor ressalta que, além de servir para afastar u m perigo presente
e certo, pode-se utilizar a força para a defesa do corpo e seus
me mbros, e do pudor, bem co mo pode-se optar por não se
defender.

A guerra preventiva ou defensiva, por outro lado, tem co mo


funda mento o te mor de sofrer um ataque – é permitido prevenir um
ataque que não é atual, ma s que parece u ma a meaça distante. Tal

j uri st a hol andê s e st ari a a pen a s repet i ndo o s aut or e s da seg und a e scol á st i ca
quan do e scr ev e sobre a gu erra. Em que p e se e ssa p o ssi bi l i dade
i nt erpret at iv a, no Dire it o d a G uerr a, G rot i us ce n sur a Vi t óri a por t e r,
su po st am ent e, def endi do a po ssi bi l i dade de v i ngança (l iv ro I , cap. I I I , I V, p.
170) e, qua ndo e screv e sobre a p ena, f az out ra crí t i ca a Vi t ori a e out ros
aut ore s e spa nhói s do sécul o XVI . Essa s crí t i cas serão alv o de anál i se a
se gui r.
273
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI I , p. 70.
124

atitude não pode ser realizada direta mente (pois seria injusto),
mas deve ser e mpreendida de modo indireto, punindo um cri me
que apenas co meçou e ainda não se consu mou.

Neste ponto, é interessante a argumentação elaborada por


Grotius quando trata da guerra motivada pelo te mor de sofrer u ma
agressão. Ele faz uso da concepção de Gentili segundo a qual o
uso da violência é adstrito a um perigo certo e atual (nos seus
dizeres, presente), e não te m co mo funda mento um perigo
274
pressuposto. Pode-se verificar, no Direito da Guerra, que o u so
da força pode se dar como reação a uma injúria te mida e não
recebida. Neste caso, é possível o recurso à via excepcional se há
risco iminente de se sofrer um dano, e m u ma espécie de legítima
275
defesa . I mportante salientar que é ne cessária a identificação do
perigo, pois o risco de agressão deve ser caracterizado co m
parcimônia. Para Grotius, a hipótese que justifica o uso da força
e m caso de te mor de sofrer u m da no, e não e m caso de u ma
agressão atual, requer prudência por parte de quem faz uso de
meios bélicos. Esta guerra preventiva deve ser evitada.

Em su ma, o uso da força e o direito de se e mpreender a


guerra se justificam e m u m dano sof rido, no temor de sofrer um
dano – iminência de violação do direito – e, de modo e xcepcional,
e m u m dano te mido e não sofrido. Neste último caso, por e xe mplo,
a expansão de um vizinho, com objetivo de conquistar a
propriedade alheia, é ameaça suficiente para se empreender u ma
guerra justa. A análise do risco é feita por que m é a mea çado, este
274
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerra e da P a z, l iv ro II , cap. I, I II , p. 290-
291.
275
Vê-se qu e a s i dei a s de G rot i u s i n spi raram , de cert a f orm a, a redação d o
art . 51 da Cart a da s Naçõ e s Uni da s: “Art i go 51 - Nada n a pre se nt e Cart a
prej udi cará o di rei t o i nerent e de l egí t i m a def esa i ndiv i dual ou col et iv a no caso
de ocor rer um at aqu e arm ado c ont ra um Me m bro das Naçõ e s Uni d a s, at é q ue
o Con sel ho de Seg uranç a t enh a t om ado as m edi da s nec e ssári a s para a
m anut enção da paz e d a segur ança i nt ern aci onai s. A s m edi das tom ada s p el o s
Mem bros n o ex ercí ci o de sse di rei t o d e l eg í t im a def esa serão com uni cada s
im edi at am ent e ao Consel ho de Seg uranç a e não dev erão, de m odo al gum,
at i ngi r a a ut ori dade e a r e spo n sabi l i dade que a pre se nt e C art a at ri bui ao
Con sel ho p ara l ev ar a ef ei t o, em qual quer t em po, a ação que j ul gar
nece ssári a à m anut enç ão o u ao re st a bel e cim ent o da paz e d a seg uranç a
i nt ernaci onai s. ”.
125

exerce u m juí zo valorativo e pondera as circunstâncias para decidir


se é ou não o caso de utilizar a força para evitar o dano.

Grotius defende que a guerra é permitida somente contra o


agressor, diferentemente daquilo que escreveu no De Jure
Praedae – que per mite o uso da força contra os aliados do inimigo
e contra os súditos dos Estados.

Há diferença entre a segunda hipótese (temor de sofrer u m


dano) e a terceira (dano te mido e não sofrido). No primeiro caso, a
a meaça de dano é tão evidente que é so mente u ma questão de
te mpo para que ele ocorra – p. e x., ca so u m vizinho faça u ma obra
que está visivelmente abalando a estrutura física da minha
residência, é questão de tempo para que ela venha a ruir. Esta
situação autoriza a tomada de medidas preventivas imediatas. Por
outro lado, o dano te mido é aquele que ainda não encontra
respaldo fático, está só na mente do indivíduo – fazendo uso do
exe mplo anterior, caso a obra do vizinho não esteja afetando
diretamente a minha casa, mas e steja pondo e m risco u ma
residência ao lado da minha e eu tenha indícios de que, no futuro,
eu possa vir a sofrer a mesma a meaça ou mesmo u m dano, devo
primeira mente e mpreender alguma me dida judicial, mas se esta se
tornar de morada eu posso to mar algu ma outra medida, menos
gravosa que a do primeiro exe mplo, para evitar o risco de
deterioração do patrimônio. Claro que esta defesa deve, e m
primeiro lugar, ser a busca do s apar elhos estatais disponíveis e,
e m último ca so, o e mprego da própria força.

O uso da força deve ocorrer quando a ordem geral do


mundo, a orde m da natureza é perturbada e há uma a meaça real à
sobrevivência. Caso haja u m dano advindo do desrespeito ao
direito, surge a necessidade (ou melhor, um direito) de imposição
de uma punição. A aplicação da pena requer uma decisão a
respeito de qual a penalidade aplicável, e esta deve ser
proporcional à agressão sofrida.
126

Após estas análises, o autor trata da divisão da guerra em


pública e privada. Em u m segund o mo mento, ele analisa a
soberania, buscando definir quem p ode ou não empreender a
guerra pública.

O jurista holandês distingue três tipos de guerra: a guerra


privada; a guerra pública, e a guerra mista. A guerra pública é a
que se faz pela autoridade de um poder civil. A guerra privada é a
que se faz de outro modo que não pelo poder civil e a guerra mista
é pública de uma parte e privada de outro. Às duas modalidades
presentes no De Jure Praedae, ele acrescenta a guerra mista 276.

A partir dessas definições pouco instrutivas, Grotius passa a


analisar cada uma das guerras pela orde m que ele supõe ser a
cronológica de aparecimento de cad a u ma delas. Ele inicia sua
exposição co m as guerras privadas e repete os argumentos do De
Jure Praedae; segundo ele, estas guerras são legítimas na medida
e m que, pelo direito de natureza, serve m para rechaçar u ma injúria
sofrida. As guerras privadas são lícitas após a instituição dos
tribunais pelo fato de existirem ocasiõ es e m que a via judicial fica
indisponível mo mentanea mente ou de modo absoluto 277.

A via judicial fica mo mentanea mente indisponível quando


não se pode esperar o socorro do jui z se m se e xpor a u m perigo
certo ou a u m pre juízo. O fecha men to absoluto pode se dar de
direito – se estamo s e m locais em q ue não existe m autoridades
( mar, deserto, ilhas desabitadas, lugar aonde não houver cidade) –
ou de fato – se as pessoas não intenta m a sub missão ao juiz ou
este se recusa a apreciar a causa 278.

O jurista apresenta e xe mplos do e vangelho para provar que


a guerra privada não é ilícita e para co mbater a opinião dos
cristãos antigos que aprovavam as guerras públicas e eram
contrários à defesa privada. Grotius usa o seguinte argumento:

276
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I II , I, p. 159.
277
Ibi d. , I I , p. 160.
278
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I II , II , p. 160.
127

“nos mais antigos cânones (...), so mente é privado da co munhão


aquele que, numa contenda, matou co m o pri meiro golpe seu
adversário por um e xcesso de alteração” 279. Deste modo, o autor
pretende mostrar que a guerra privada está em confor midade co m
o direito natural e serve co mo modo d e preservação da vida.

Por outro lado, são apresentados dois tipos de guerra


pública no capítulo 3 do Livro I do Dire ito da Guerra: a guerra
pública solene e a guerra pública não solene. A solenidade diria
respeito aos efeitos específicos deste s conflitos no direito civil e à
licitude do recurso às armas.

Para a guerra pública ser solene ela tem que ter dois
requisitos. Em primeiro lugar, aqueles que a faze m deve m possuir
o poder soberano. Ta mbé m deve m ser observadas certas
for malidades, que Grotius afirma estarem vinculadas à
necessidade de uma declaração pública de guerra 280. Por outr o
lado, a guerra pública não solene é a que não possui formalidades;
seja ela feita contra particulares e “pela autoridade de qualquer
magistrado”. Por levar perigo a todo o Estado, so mente o detentor
do poder soberano pode ordenar a guerra pública.

Malgrado o jurista holandês ter afirmado que so mente o


soberano pode declarar a guerra pública, ele ta mbé m entende que
há a possibilidade deste tipo de conflito ser autorizado por um
magistrado, desde que se compreend a o termo “público” como o
que diz respeito ao que está ligado a um poder delegado a este
magistrado. Poré m, ao se entender que o ter mo significa aquilo
que se faz solenemente, esse tipo de guerra não é pública, porque
haveria a necessidade da decisão da autoridade soberana com o
concurso de outras circunstâncias. O autor não se alinha a este
último posicionamento, argu mentando que pode m e xistir casos e m
que o soberano delegue às autoridades subalternas o poder de

279
Ibi d. , l iv ro I , cap. I I, I II , p. 167.
280
G RO T I US, Hugo. O Direit o d a G uerra e d a Pa z, l iv ro I II , cap. I II , V, p.
1074.
128

mover guerras. Deste modo, estas autoridades estariam agindo de


acordo co m a vontade da autoridade soberana e não da sua
própria, pois quem delega a outro u ma função seria o autor dela 281.

Tanto a guerra pública quanto a privada são conflitos nos


quais u m direito é violado, ambas tê m as mesmas causas que nos
faze m buscar u ma prestação jurisdicional do Estado – mas a
ausência de magistrados ou a impossibilidade mo mentânea de se
buscar a tutela estatal concede legitimidade ao uso da força pelo
indivíduo.

Para melhor compreender a questão relativa à guerra


solene, Grotius acha importante analisar o que é a soberania e em
quais pessoas ela reside.

3.4 A decisão sobre a guerra: o magistrado e o soberano

A execu ção de atos de guerra, quando os homens estão


reunidos em sociedade civil, necessita de uma decisão emanada
pelo detentor de u m poder espe cífico para tal fim. Não é uníssono
na obra de Grotius a quem é atribuído este poder.

No capítulo VI do De Jure Praedae, ele deixa claro que o


Estado deve ser concebido como algo autossuficiente, dotado de
suas próprias leis, tribunais, receita e magistrados. Ta mbé m de ve
haver, no Estado, seu próprio conselho e sua própria autoridade 282.

Nesta for ma de organização, a autoridade incumbida de


e mpreender guerras públicas reside nos magistrados. Ao utilizar o

281
O m esm o argum ent o é ut i li zado hodi ernam ent e para su st e nt ar a
respon sabi l i dade obj et iv a do Est ado pel o s at os prat i cado s p or f unci onári os
públ i cos, no ex ercí ci o de sua s f unçõe s, que geram da no s à s pe ssoa s.
G arant e- se o di rei t o à p erce pção de v al ores a t í t ul o de i n deni zaçã o pel o s
dano s sof ri dos sem a part i ci pação di ret a do Est ad o, por ent e nder- se que o
serv i dor públ i co est ari a ex ercendo um a at iv i dade del e gad a.
282
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI , p. 63.
129

ter mo “ magistrado”, ele tem e m mente aquele a quem foi confiado


u m mandato para se e mpreender a guerra. Mas Grotius afirma que,
de certo modo, todos os magistrados fora m investidos deste
atributo, uma vez que a prestação jurisdicional e a defesa da
própria jurisdição – além da e missão e execução dos decretos –
pertence m a u m único e mesmo cargo 283.

Por outro lado, há localidades nas quais as pessoas


costu ma m se reunir em asse mbleia e locais nos quais há consenso
de que u ma as se mbleia seria vantajosa. Nestes locais, a
autoridade para decidir sobre a guerra seria investida naquelas
pessoas as quais todo o poder civil, ou a sua maior parte, foi
atribuído. Em alguns desses Estados, o poder beligerante é
confiado a u m deter minado nú mero d e indivíduos – por exe mplo,
u ma porção específica do povo –, o u à aristocracia. Em outros
Estados, este poder é concedido a u m único indivíduo, cha mado
príncipe 284.

Grotius ressalta que quando o príncipe está ausente ou é


negligente, o primeiro magistrado hierarquicamente posicionado
abaixo do príncipe terá a co mpetência para decidir sobre a guerra,
defender o Estado, punir os inimigos e até deter minar a morte dos
malfeitores. Isso pode ocorrer desde que não exista lei que proíba
expressa mente essa alternativa 285.

Embora as críticas de Rousseau, me ncionadas no capítulo


anterior, apontem para u m absolutismo de Grotius, nota-se u ma
aparente dualidade na obra do holandês no que diz respeito ao seu

283
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI , p. 63.
284
G RO T I US, Hugo. De Jur e Praed ae C omme nt arius, cap. VI , p. 64. Q uent i n
Ski nner sal i ent a, ao t r at ar d a t rad ução do s t erm os “pri nce p s” e “m agi st rat u s”,
que “ (. . . ) na E urop a d o s p ri m órdi os da m oderni dade, por ém , essa s t rad uçõe s
ai nda port av am as conot açõe s – m ui t o mai s am pl as – do l at im ori gi nal ,
conot açõ e s e st a s qu e de sd e ent ã o se perder am . O t erm o “prí nci pe”
f requent em ent e se ut i l i zav a para ref eri r-se a rei s e i m peradore s, al ém , de
si m pl es prí nci pe s. E “m agi st rado” se e m pregav a de m odo geral para
de screv er um a cl asse de f unci onári o s j udi ci ári os b em m ai s am pl a do que em
no sso s di a s (. . . )” (SKI NNER, Q uent i n. As fundaç ões do p ensame nt o po lí t ico
modern o, p. 21).
285
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, cap. VI , p. 63.
130

posicionamento sobre a for ma de governo. Para alguns


intérpretes 286, Grotius seria favorável à for ma monarquista d e
governo e reservaria pouco, ou nenh u m, poder aos cidadãos do
Estado. Por outro lado, há outros pesquisadores 287 que, partindo
do uso do ter mo respublica no De Jur e Praedae e tendo por base
outros textos do início da produção acadê mica de Grotius 288,
defende m que ao menos no início de sua vida acadêmica, o
holandês teria admiração pelos ideais republicanos. A análise do
eventual aspecto republicano de Grotius foge ao escopo deste
trabalho e constitui uma interpretação polêmica, na medida e m que
não encontra respaldo na maioria dos co mentadores do autor.

Em que pese à argu mentação no sentido de existir u ma


ad miração pelo republicanismo na o bra de Grotius, a leitura do
Dire ito da Guerra e da Pa z não per mi te esta interpretação. Nesta
obra, o jurista apresenta diferentes for mas de governo e sustenta
que os povos são livres para escolher as formas que acha m mais
adequadas sem e mitir u m juízo de valor sobre qual seria a melhor
delas 289. Em seu tratado, ele ta mbé m analisa, brevemente, o pod e r
civil e o poder soberano, isto porque, co mo dito antes, o jurista
holandês sustenta que u ma das espéci es de guerra (guerra pública
solene) requer que aquele que a realiza este ja revestido do poder
soberano 290. Referido poder sofre certa limitação procedimental n o
que tange à declaração de guerra, isto se deve ao fato de o

286
Do s qu ai s se de st aca P et er Ha gg enm acher ( G rot ius and G e nt il i e G rot i us et
la doct ri ne de la gu erre j ust e).
287
T UCK, Ri chard. “G rot i us, C arne ade s, an d H obbe s”, “T he ‘m odern’ t he ory of
nat ural l aw’, Nat ura l Rig ht s T heori es, Phil os ophy an d G overnme nt 157 2-16 51
e T he Right s of W ar and Pe ace.
288
Paralle la rer umpub lic arum (160 2), De repu blic a emend and a (ent re 16 00 e
1610), D e a nt iqu it at e re ipu bl icae B at avica e (161 0) e A nna les et hist ori a e
(1604, p ubl i cada em 1657).
289
“Como há vár ios gê neros d e vida, uns me lh ores que o ut ros, e que cad a um
é livre de esc olh er ent re t odos e les o que l h e convém, de igu al mod o um povo
pode f a zer a esco lha da f orma de gov erno q ue q uis er e n ão de acor do c om a
excelê nci a de t al ou qu al f orma – quest ã o que div id e as op ini ões –, mas
segun do sua v ont ad e (. . . )” (G RO T I US, Hugo. Direit o d a G uerra e d a Pa z, l iv ro
I , cap. I I I, VI II , pp. 177-178).
290
Hobbe s e st á de ac ordo com G rot i us nest e pont o. No capí t ul o XVI I I do
Leviat ã, o i ngl ê s af i rm a est ar “a nex ada à sob erani a o di rei t o de f azer a gu err a
e paz com out ras n açõe s e re públ i ca s” (p. 15 4).
131

detentor do poder soberano precisar seguir certas formalidades


antes de iniciar os atos de guerra 291. Deste modo, é i mportan t e
saber o que consiste, para Grotius, o poder soberano e que m
deté m este poder.

Ao e xa minar o que seria o poder soberano, o jurista afirma


que este seria o poder no qual os atos não depende m da
disposição de outrem e pode m ser anulados segundo o bel-prazer
de uma “vontade hu mana estranha” 292. Para o jurista, o objet o
co mu m da soberania (que ele compar a co m o corpo) é o Estado e
o objeto próprio (que é uma parte do corpo – o autor exe mplifica
asseverando que referida parte seria o olho) é u ma pessoa única
ou coletiva. 293

Após estas e xplicações, ele critica a opinião que defende


que a soberania reside no povo e não concorda co m a
possibilidade de ser concedida permissão ao povo para reprimir e
punir os reis todas as vezes que estes fizerem mau uso do poder.
O holandês entende que pelo fato de o home m ter a liberdade de
reduzir-se à escravidão privada sem seu proveito, um povo poderia
abrir mão de sua soberania em prol de um só indivíduo ou de
vários. 294 Tal fato seria possível em virtude de o povo, por sua
própria vontade, poder escolher a for ma de governo que bem
entender 295.

291
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I I I , I V, p. 168.
De sde a ant i gui dad e rom ana ent e ndi a- se que a guer ra, a nt e s d e se r
em preendi da, nec e ssi t av a de cert as f orm ali dade s – em respei t o, i ni ci alm ent e,
ao “jus f et i ale ” e, p o st eri orm ent e, ao “jus gen t ium”.
292
G RO T I US, Hugo. O Dire it o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I I I , VI I, p. 175.
Ao usar e sse t erm o, G roti us ex cl ui aquel e que ex erce esse pod er sober ano e
ao qual é perm i t i do m udar de v ont ade e o su cessor.
293
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I II , VII , p. 176.
294
Est e argum ent o p erm i t e i nt erpret ar que, se gun do G rot i us, a so bera ni a
resi di a, i ni ci alm ent e, no pov o. Q uando anal i sa a sob erani a, o j uri st a su st ent a
que n o ca so de ex t i nção de um rei no, o poder sobe ran o ret orn a a o pov o
(G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uer ra e da P a z, l iv ro I, cap. I II , VII , p. 176).
295
Hob be s, qu and o e scr ev e sobre a geraç ão d a Re públ i ca (Lev iat ã, ca p. XVI I ,
p. 147- 14 8) t am bém su st e nt a q ue o p oder f oi de si gnad o a um hom em ou a
um a assem bl ei a de hom en s p or t od o s o s m em bros d a C ivit as. I st o f ez com
que, com o di t o ant e s, al gun s c om ent adore s def ende ssem o carát er a b sol ut i st a
de G rot i us. Cont u do o j uri st a hol a ndê s a pre se nt a hi pót e se s d e al i enação d a
so bera ni a, af i rm ação que n ão enc ont ra eco n a obra d e Hob be s.
132

Um aspe cto curioso é o fato de o jurista argu mentar que o


povo poderia, antes da for mação do Estado, fi xar limites ao
detentor do poder soberano e, portanto, co mpartilhar este poder
co m o rei:

Há out ra s pe sso a s qu e acredi t am que há um a e spéci e d e


depe ndê nci a recí proca ent re um rei e se u s sú di t os, d e
m anei ra que e sse s úl t i m os dev eri am obede cer a se u rei
enqu ant o gov ernasse bem , m as q ue, se o rei v i esse a
gov ernar m al, se t orn ari a de pen dent e de seu pov o. Se
essa s pe ssoa s di sse ssem que nã o se d ev e cum pri r
porqu e o rei orde nou um at o m ani f est am ent e i nj ust o, su a
propo si ção seri a v erdadei ra e c onf orm e a a prov ação de
t odo s o s hom en s de bem , m as i sso n ão enc erra nen hum
di rei t o de coação o u de su peri ori dad e. Se um pov o
t iv esse o pro pó si t o de com part i l har com o rei a
aut ori dad e so bera na, de que f al arem os mai s adi ant e ,
dev eri a cert am ent e f ix ar os l im it es de ssa s re spect i v as
j uri sdi çõe s, de m anei ra a p oder f aci lm ent e di scerni -l a s,
se gun do a di f erença de l ocal , de pessoa s ou d e
296
assunt o s .

No Dire ito da Guerra há duas for ma s de soberania. Há, de


u m lado, a soberania de plena posse, que faz parte do patri mônio
de que m governa e pode ser alienada (aliena-se o direito perpétuo
de governar as pessoas e não as pessoas). De outro lado, e xiste a
soberania que não é de plena posse, que é aquela na qual o poder
é deferido ao governante pela vontade do povo, não sendo
per mitido ao rei alienar sua soberania. Além disso, para o autor,
há estados não plena mente soberan os, ma s co m fa culdade de
alienação. Ele ressalta que:

É preci so di st i ng ui r a sob erani a da pl eni t u de do di rei t o


de po ssuí -l a, [ e o que el e hav i a di t o ant es] é de t al m odo
v erdadei ro q ue não som ent e a m ai ori a do s E st ad o s
so bera no s nã o sã o po ssuí d o s pl e nam ent e, m as ai nd a
que m ui t os E st a do s não sob era no s são po ssuí d o s com
297 298
pl ena pro pri edad e. (. . . ) .

296
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I II , I X, p. 189.
297
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G ue rra e d a Pa z, l iv ro I , cap. II I , XI V, pp.
202-2 03.
298
O aut or t am bém div i de a sobera ni a em um a part e que el e denom i na de
su bj et iv a e out ra que el e denom i na obj et iv a ou pot e nci al . Dá com o ex em pl os o
I m péri o Rom ano que era div i di do em part es e out ro i m péri o, ao qual el e nã o
133

Apesar de o detentor do poder soberano não necessitar da


autorização dos governados para agir, Grotius mostra que pode m
existir reis que queiram que seus atos se ja m considerados válidos
após passar pelo assenti mento de certos órgãos do Estado .
Entretanto, esta atitude não constituiria uma partilha da
soberania 299.

A despeito de o jurista não concorda r co m a possibilidade


de partilha do poder soberano, no Livro III do Dire ito da Guerra e
da Pa z, ele sustenta a possibilidade de aquisição e fragmentação
da soberania, após seu estabelecimento, pelo acordo dos
cidadãos. Igualmente, segundo Grotius, a vitória, em u ma guerra,
produz efeitos na soberania, permitindo que o poder soberano
possa ser adquirido, não importando se no Estado vencido era um
rei ou um povo que e xercia tal poder 300. Aquele que vence a
guerra, além do poder soberano, adquire a propriedade
pertencente ao povo 301.

Não obstante toda a sua argu mentação e m prol da guerra,


Grotius defende que a soberania ou uma parte dela pode ser
alienada em vista da paz. Para isso, os reis devem possuir u m
direito patrimonial sobre o reino – para o autor, contudo, a maioria
dos monarcas de sua épo ca possuía o poder a título de usufruto.
Neste caso, para que ocorra a alienação total do Estado, seria
necessário o consentimento do povo, que pode se manifestar por
meio de deputados dos partidos do povo. Em caso de alienação de
parte do Estado, deve haver um duplo consentimento: de todo o

denom i na, no qual o pov o se re serv ou certos at o s d a so bera ni a e conf i ou o


rest o ao sob eran o. Co nt ud o, nã o f i ca cl aro qu al é a part e subj et iv a e a
pot enci al , nem m esm o pel os ex em pl os.
299
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I I I , XVI I I , p.
209.
300
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G u erra e da Pa z, l iv ro I II , cap. VI I I, I , pp.
1187- 118 9. Ho bbe s t am bém ent ende que o p oder sober ano po de ser a dqui ri do
pel a gu erra, d and o ori gem a um a repú bl ic a por aqu isiç ão. No Lev iat ã, el e
su st e nt a que o pod er so bera no pod e se r a dqui ri do “(. . . ) qu and o um hom em
suj ei t a at rav és da guerr a o s seu s i ni mi gos à sua v ont ade, conced end o-l he s a
v i da com essa c ondi ção” (C ap. XVI I , p. 148).
301
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II I , cap. VI I I , p. 1189.
134

povo e daqueles que vão ser separados – ha ja vista e xistire m


interesses contrários, de um lado há a vontade de manuten ção do
território e, de outro lado, existe o dese jo de frag mentação
política 302.

Quanto à celebração da paz, há duas hipóteses. Em u m


Estado monárquico co mpete ao rei fazer a paz, por ser ele o
detentor do poder soberano. Contudo, se ele não estiver e m plenas
condições de suas faculdades mentais ou for parcialmente incapaz
(louco ou jove m), esta atribuição residirá no povo ou caberá a
que m o povo delegou esta tarefa 303. Por outro lado, e m u m Esta d o
no qual o poder é exercido pelos principais cidadãos ou pelo povo,
o direito de selar a paz compete a tod os 304.

A soberania grociana encontra limites, o detentor deste


poder não pode atentar contra o direito natural. Por isso, cumpre
ao soberano manter a palavra dada e se obrigar pelos
co mpro missos assu midos por pesso as as quais delegou poder,
desde que os detentores dos poderes inferiores tenham feito o que
é considerado conforme sua atribuição, ou, agindo além do que lhe
foi delegado, haja u m poder especial para tanto e de conhecimento
público ou daqueles cujos interesses estão e m questão 305.

A soberania, assi m co mo a propriedade, ter mina quando


aquele que possui este direito deixa de e xistir, se m deixar
sucessor. Se o poder soberano reside no povo, aquele deixa de
existir co m o desapareci mento deste.

Em duas partes do Dire ito da Guerra e da Pa z, Grotius


defende que, mes mo que por meio de motivos justos – a violação,
por exe mplo, de u m direito natural –, os súditos não teriam o
direito de empreender forças contra o detentor do poder soberano

302
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerr a e d a Pa z, l iv ro I II , cap. XX, V, pp.
1381- 138 2.
303
G rot i us não di st i ng ue a i ncapaci d ade em rel at iv a e ab sol ut a, com o é f ei t o,
hoj e em di a, pel os j uri st as.
304
G RO T I US, Hugo. O Dir eit o da G u erra e d a Pa z, l iv ro I II , cap. XX, I I e I I I
(repet i ção do l iv ro I I, cap. V, XVI I ), p. 1380.
305
Ibi d. , l iv ro I I I , cap. XXI I , I I , pp. 1445-1 446.
135

por ser uma causa injusta ou u ma resistência criminosa. Caso


contrário, os súditos belicosos pode m ser punidos severamente 306.

Outrossim, ao analisar a possibilidade de defesa 307, Grotiu s


afirma que ela é ilícita quando praticada contra u ma pessoa de
grande utilidade para o Estado – co mo , por exe mplo, o soberano. A
guerra contra o soberano seria uma a fronta à lei divina, pelo fato
de a pessoa do rei ser sagrada, e ao direito de natureza. É
contrária a este direito – em que pese ele autorizar, em caso de
necessidade, a morte do ofensor – p orque, co mo dito no primeiro
capítulo, referido direito faz com que os co mporta mento s este ja m
e m confor midade co m as virtudes, inclusive com as virtudes da
te mperança e prudência, tornando-as obrigatórias. Para Grotius as
virtudes mencionadas não autoriza m o regicídio. 308

Poré m, não são apenas esta s virtudes que deter mina m a


imunidade do soberano. A caridade impõe a necessidade de
preservação da vida do soberano. É a caridade que nos adverte e ,
algumas vezes, ordena preferir o be m de muitos ao que seria
vantajo so só para uma pessoa. Ade mais, no que diz respeito à
manutenção da coletividade, é mais vantajoso manter o soberano
ao invés de buscar a satisfação pessoal.

Em su ma, e m que pese haver semelh anças entre o autor e


Hobbes 309 – a mbos, por e xe mplo, enten de m que a guerra deve se r
declarada pelo detentor do poder soberano (um rei ou uma
asse mbleia) e que não se pode punir os reis –, o holandês
entendia que a soberania pode ser alienada. Além disso, Grotius
se distancia do autor inglês ao sustentar que uma lei pode ordenar

306
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerra e d a Pa z, l iv ro I , cap. I V e l iv ro I I I ,
cap. XI X.
307
Ibi d. , l iv ro I I , cap. I V, I V, p. 267.
308
Ibi d. , l iv ro I , cap. I V, I I , p. 234.
309
Em um a cart a de 11 de abri l de 1643, um ano ap ó s a publ i cação anô ni m a
do De Civ e, G rot i us se m ani f est ou so bre est a o bra e af i rm ou que ex i st em
i dei as i ncon grue nt e s e nt re el e e Ho bbe s: “ Vi o l ivro De C ive, e agra dam a s
coisas que d i z a f avor dos Reis. Mas n ão po sso apr ovar os f u ndame nt os c om
os quais orga ni za os se us pens ament os. Pe nsa que e nt re t odos os h omens a
guerra vem d a nat ur e za e t ra z o ut ras i dei as não co ngru ent es c om as n ossas. ”
(Cart a s de Hu go G róci o, Am st erdam , 1687, n. 648).
136

a perda do poder soberano. Neste sentido, ele afirma que “(...) o


direito de soberania, não mais que o d e propriedade, não se perde
por u m cri me, a menos que a lei assim ordene” 310.

Este posicionamento sobre a soberania serve para saber


que m pode empreender a guerra pública no Direito da Guerra.
Enquanto nesta obra a decisão cabe ao detentor do poder
soberano, manifestado na figura de um rei ou consubstanciado e m
u ma asse mbleia; no De Jure Praedae é dada preferência ao
magistrado – a que m cabe decidir sobre a guerra –, em que pese o
fato de, nesta obra, a soberania també m ser detida por um único
ho me m (príncipe) ou estar consubstanciada em u ma asse mbleia.

3.5 A pena

A diferença entre a guerra e a pena reside na possibilidade


de acesso à jurisdição. Ambas são consequências da violação ao
direito. Contudo, com a criação da sociedade política, o exercício
da atividade jurisdicional se torna exclusividade do Estado e,
consequente mente, do detentor do poder soberano, a quem cabe o
papel de impor u ma penalidade quando u ma lei é desrespeitada 311.

Interessante notar o fato de a argume ntação tender para um


raciocínio segundo o qual pode-se agir de duas formas frente a
u ma ação que nos cause ofensa. Pode-se, e m pri meiro lugar,
buscar uma prestação jurisdicional ou, so mente na hipótese de
esta via não estar disponível, pode-se utilizar a força e fazer a
guerra privada para resguardar o direito. Contudo, apesar de restar

310
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. I, I X, p. 293.
311
“(. . . ) A li berd ade de pr over por c ast ig os aos int er esses da s oci eda de
human a que, no com eço, como diss emos, p ert enci a aos priv ados, f ico u, após
o est ab el ecime nt o d os Est ad os e das j urisd i ções, par a os p oder es so bera nos,
não pro pri ament e p orqu e eles ma ndam n os o ut ros, mas porqu e não o bed ecem
a ning uém. A depe ndê nci a, de f at o, t irou es se dire it o dos out r os. ” (G RO T I US,
Hugo. O Dire it o da G uerra e da Pa z, l iv ro I I , cap. XX, XL, p. 851).
137

clara a permissão para se agir em ca sos de extre ma necessidade,


não se pode ir além da defesa, ou seja, não é permitido aplicar
u ma punição ao agressor. Isto diferenciaria a pena e a guerra em
u m Estado. Enquanto a primeira é e xercida e xclusivamente pelo
detentor da soberania ou por pessoas as quais foram delegadas
funções estatais, a última pod e, excepcional mente, ser
e mpreendida pelos cidadãos. 312 A pena seria cabível quando há
u ma situação in justa, ou se ja, quando há u m ro mpi mento da orde m
naturalmente estabelecida – seja esta u ma orde m social ou
internacional.

Apesar disso, o jurista apresenta uma argu mentação


inovadora. Desde a antiguidade romana entendia-se que o direito
de imposição de pena (jus gladii) pertencia ao soberano, uma vez
que tal atribuição aparentava ser um direito especial que nenhuma
pessoa naturalmente poderia possuir. Grotius apresenta
entendimento que diverge deste raciocínio. Em pri meiro lugar, as
cinco primeiras leis do De Jure Praedae, vistas no capítulo
anterior, implicam que os seres hu ma nos tê m o direito de defender
as suas vidas, assegurar o seu patrimônio e corrigir as más
condutas. Estas leis resguardam direitos naturais que existiria m
antes mes mo da forma ção da sociedade política. Não bastasse
isso, o jurista afirma:

À l uz da di sc u ssão ant eri or, é cl aro que a s c au sa s p ara a


im posi ção d e puni ção sã o nat ur ai s e d eriv am do precei t o
que t em os cham ado d e a pri m ei ra l ei . Contudo, nã o é o
poder d e pu ni r, esse nci al m ent e, um poder qu e pert enc e à
Repú bl i ca [ Re spu bl i ca] ? Não m esm o! Pelo cont r ári o,
assi m com o t odo o di rei t o do m agi st rado l he v em da
Repú bl i ca, por i sso o m esm o di rei t o cheg a à Re públ i ca
adv i ndo de part i cul ares; e si m il arm ent e, o poder d a
Repú bl i ca é o re sul t ad o d o ac ordo col et iv o, com o
dem onst ram o s em nossa di scu ssã o sobr e a t ercei r a
regra. Port ant o, um a v ez que ni nguém é capaz d e
t ransf eri r um a coi sa que el e nu nca p o ssui u , é ev i dent e
que o s part i cul are s det i nham o di rei t o de puni ção ant e s
de el e pert enc er à Re públ i ca. O argum en t o a se gui r,
t am bém , t em grande f orça ne st a r el ação: a Rep úbl i ca

312
Est a di f erença nã o f i ca cl ara no e st a do de n at urez a, na au sê nci a d a
soci ed ade ci v il .
138

i nf li ge puni çã o p or of en sa s cont ra si m esm a, não


som ent e sobre seu s pró pri o s suj ei t o s, m as t am bém sobr e
os e st rang ei ros, ai nd a qu e el a nã o deriv e o poder so br e
os úl t im os do di rei t o civ i l, que é v i ncul ativ o para o s
ci dadão s só por que el e s der am o seu co n sent i m ent o, e,
port ant o, o di rei t o d e n at urez a, ou o di rei t o d as ge nt e s, é
a f ont e da qual a Repú bl i ca recebe o poder em
313
que st ão.

Esta citação de monstra que o jurista entende que, no estado


de natureza, os seres hu manos tinham o direito de punir uns aos
outros quando algum direito natural fosse desrespeitado. Ele apoia
esta convicção no fato de os Estados reivindicarem o direito de
punir estrangeiros, sem que estes estrangeiros tenham atribuído a
estes entes políticos referido direito. Assi m, o direito de punir
adviria do direito de natureza e não de u ma cessão por parte dos
primeiros ho mens. 314

Portanto, a possibilidade de se evitar más condutas (Lei 5) -


co m a aplicação da pena proporcional ao dano -, para o holandês,
não requer um poder instituído. Grotius entende que a satisfação

313
G RO TI US, Hugo. De Jure Prae dae C omment arius, p. 91-9 2, t raduçã o l iv re.
314
Argum ent o i dênt i co a e st e ser á em prega do e de scri t o por Locke c om o um a
dout ri na m ui t o est ra nha: “Ant es qu e a co n denem, p orém, gost aria que me
respon dessem p or qua l dir eit o p ode q ua lqu er prí ncip e ou Est ad o cond enar à
mort e, ou p uni r a um est r ang ei ro, por q ual quer cr ime q ue est e c omet a e m
seus domí n ios. É cert o que s uas l eis, em virt ude d e qu alq uer sa nção q ue
recebam pel a vo nt ade promu lga da do l egis l at ivo, nã o at i ngem o est ran ge iro.
Não lhe di ze m res peit o e, s e d issessem, ele não est ari a o brig ado a c onserv á-
las. A aut orid ade l egis lat iv a, pel a qua l elas t êm f orça junt o aos sú dit os d esse
Est ado, nã o t em p oder s obre el e. Aqu eles que det êm o po der su premo d e
elab orar le is na I ngl at erra, F ra nça o u H ola nda est ão p ara um í nd io c omo o
rest o do mund o: homens d esprov id os de aut orida de. Se, port ant o, p ela l ei d a
nat ure za, n em t odo homem t em o pod er de punir as t rans gressõ es cont ra el a
t al como jul gar pon dera dame nt e qu e o c aso req uer, n ão ve jo c omo o s
magist rad os de qu alq uer comun id ade po de riam puni r a um est rangei ro d e
out ro p aí s, vist o q ue, com rel ação a e le, não pod em t er ma is p oder qu e
aque le qu e q ual quer h omem p ode t er n at uralme nt e s obre out r o. ” (Do is
T rat ados Sobr e o G ov erno, l iv ro I I , cap. I I , 9, p. 387-38 8). Ape sar d a
sem el hança da argum ent açã o d e L ocke e G rot i us, o j uri st a hol and ê s
apre se nt a e st a c om paração ent re o carát er nat ural da pen a com o di rei t o qu e
o Est a do t em de puni r o e st ra ngei ro n o De J ure Prae dae, t ex t o não pu bl i cado
ant e s de 18 64 e, port ant o, de sc onh eci do por Locke, f at o que l ev a al gun s
com ent adore s a v er a simi l ari dade com o um a conv ergênci a i nt el ect ual
(Ri chard T UCK, T he Right s of w ar and peac e, p. 82). Ent ret ant o, a repet i ção
t am bém pode i ndi car, a o m eno s, que o i n gl ês t e nha ut i l i zado as m e sm as
f ont es que G rot i u s e si do i nf l uenci ado por e l e, na m edi da em no capí t ul o XX
do segu ndo l iv ro do Direit o d a G uerra o h o l andê s su st ent a q ue a p ena n ão
adv ém do di reit o civ il, m as da pró pri a nat ure za.
139

direta dos direitos pode ser empreen dida sem a necessidade de


intervenção estatal. Porém, co m o surgimento do Estado, este
meio de se fazer justiça co m as próprias mãos se tornou
excepcional, ficando restrito, como dito a pouco, aos casos em que
o acesso ao judiciário não for possível. Deste modo, a guerra
privada não está em oposição ao direito natural, mesmo depois da
instituição dos organismos judiciais 315.

A argu mentação de Grotius parece indicar que os homens,


antes de transferir quaisquer direitos para a sociedade política,
seriam, no que se refere aos direitos naturais, idênticos aos
Estados. De ste modo, não e xist e m poderes políticos que
pertence m às naçõe s que u m su jeit o não possua por natureza.
Esta situação fica mais evidente quando se tê m e m mente as
relações entre Estados soberanos – a inexistência de um poder
que obrigue os Estados faz com que prevaleçam, no â mbito do
direito internacional, os princípios do direito natural.

Esta argu menta ção serve ta mbé m p ara defender os atos


ofensivos da companhia holandesa. Tendo em conta que o direito
de infligir a pena decorre do direito natural e este també m
possibilita que se lute para garantir a própria subsistência, uma
co mpanhia de co mércio privada pode usar a violência da mesma
for ma e para os mes mos fins qu e os tradicionais Estados
soberanos. Segundo nosso autor, o uso da força pela Companhia
das Índias estaria fundamentado no fato de a principal atividade
econô mica dos holandeses (o co mércio maríti mo) estar e m risco,
haja vista que Portugal e Espanha detinham a e xclusividade
co mercial no Oceano Índico. O jurista entendia que os holandeses
não conseguiriam assegurar os recursos míni mos para sua
sobrevivência caso fosse m i mpo ssibilitados de explorar as rotas
co merciais maríti mas. De ste modo, o recurso à guerra para a
abertura de rotas co merciais seria, para nosso autor, u ma defesa
da subsistência da comunidade política holandesa.

315
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro I, cap. I II , p. 161.
140

Diferentemente de Grotius, outros pensadores não


concordava m co m a utilização dos ter mos justo e injusto – e a
punição dos atos injustos – fora da sociedade política. Thoma s
Hobbes, por exe mplo, defende que estas expressões só pode m ter
lugar quando existe um poder co ercitivo capaz de obrigar
igualmente os ho mens. 316 Contudo, o mesmo entendimento d e
Grotius parece encontrar eco em John Locke. 317

Ainda que não e xista u m poder co mu m, pode-se, no estad o


de natureza, utilizar os termos “justo” e “injusto”. A argu mentaçã o
de Hobbes – e o trecho mencionado na nota de rodapé serve de
exe mplo de co mo ele se coloca neste ponto – é no sentido de que
fora do Estado, local no qual há o poder comu m, não há sentido

316
“O ra, como os pact os de conf i ança mút ua são inv áli dos sempre q ue d e
qual quer dos la dos exist e r ecei o d e n ão-cu mpriment o (conf orm e se disse n o
capí t ulo a nt erior ), embora a or igem da just i ça seja a cel ebraç ão dos p act os,
não pod e h aver r ea lment e in just iça ant es de ser remov ida a c ausa dess e
medo; o que nã o pode ser f eit o e nqu ant o os homens se enco nt ram na
condiç ão n at ura l de g uerr a. Port ant o, par a que as pal avras ‘ just o ’ e i njust o ’
possam t er l ugar, é nec essári a a lg uma espé cie de pod er c oercit ivo, ca pa z d e
obrig ar i gua lment e os hom ens a o cumpr ime nt o dos s eus p act os, medi ant e o
t error d e a lgum cast ig o q ue s ej a su peri or a o be nef í cio qu e es peram t irar d o
rompime nt o do pact o, e cap a z d e conf ir mar propri eda de qu e os homen s
adqu irem por cont r at o mút uo, como recom pensa d o dire it o univ ersal a q ue
renunc iar am. E não pode hav er t al po der a nt es de se erig ir uma rep úbl ica.
T ambém a d ef in ição c omum de just iça f orn ecida pe los esc olást icos p ermit e
dedu zi r o mesmo, na med ida em qu e af ir mam que a j ust i ça é a v ont ade
con st ant e de dar a ca da um o que é se u. Po rt ant o, on de n ão há o se u, ist o é,
não h á pr opri eda de, n ão p ode hav er i njust iç a, e on de n ão f o i est a bel ecid o u m
poder co ercit iv o, ist o é, onde n ão há re p úbl ica, não h á propr ied ade, p ois
t odos os homens t êm dir eit o a t odas as coisas. Port a nt o, on de n ão h á
repúb lic a nad a é in just o. De mod o qu e a nat ure za da just iça cons ist e n o
cumprime nt o d os pact os vál id os, mas a val id ade dos p act os só começ a com a
const it uiç ão de um p oder c ivil s uf icie nt e par a obri gar os hom ens a cumpr i-l os,
e é t ambém só a i qu e começa a haver p ropri eda de. ” (HO BBES, T hom as.
Leviat ã, ca pí t ul o XV, p. 124- 125).
317
“Pela mesma ra zão, um homem no est a do de nat ure za pod e puni r a s
v i ol ações m enor e s a essa le i. (. . . ) Cada d elit o passí ve l d e ser pu nid o d a
mesma f orma e no mesmo gra u qu e numa socied ade p olí t ica; p ois, embor a
est eja f ora d os meus prop ósit os ent r ar aq ui nas part icul arid ades d a lei d a
nat ure za o u d e su as m edi da s p uni t iv as, é n o ent a nt o c ert o q ue t al le i ex ist e,
sendo t amb ém t ão int el igí vel e cl ara par a uma criat ura rac ion al e par a um
est udios o d essa l ei qua nt o as l eis posit i vas das soc ie dad es po lí t icas, e
possive lment e ai nda mais clar a, t ant o qua nt o a r a zão é ma is f áci l d e se r
ent end id a d o q ue as f a nt asi as e as int r icad as maq uin ações d os h omens, qu e
seguem i nt eress es cont rár ios e oc ult os f orm ulad as por me io d e pa lavras, vist o
que assim é ver dad eiram ent e uma gr and e part e das le is munic ipa is dos
paí ses, as q ua is só s ão ver dad eir as se base adas na l ei da nat ure za. Med iant e
a qua l sã o re gul adas e i nt erpr et adas. ” ( LO CKE, John. Do is T rat ad os sobr e o
govern o civi l, p. 390-3 91).
141

e m se falar e m moralidade, justo, injusto, retaliação, etc. Para


Grotius e, mais tarde, Locke, no ent anto, há a possibilidade de
existência de ações justas e injust as, e consequente mente, a
punição no estado de natureza.

Igualmente, o jurista entende que a punição envolve,


necessariamente, a discussão acerca do direito de punir e o exa me
da atribuição da responsabilidade de aplicação da pena. Essa
discussão traz à tona os dois conceitos de justiça já mencionados
no capítulo anterior. A teoria grociana deixa claro que a punição
está associada à justiça expletiva (comutativa) – típica das trocas,
dos contratos, das transações de cará ter privado. O autor faz u ma
analogia entre a natureza da relação entre o criminoso e a vítima ,
no crime, e a relação existente entre as partes que celebra m u m
contrato para justificar o fato de a pena subsistir nas relações
entre particulares 318.

Outra questão relevante diz respeito à argu mentação do


jurista no sentido de que o indivíduo que co mete u m ato injusto, ao
ser penalizado, estaria apenas assumindo a consequência de seu
ato. Segundo o jurista, o ato criminoso transfere um atributo da
liberdade do autor do delito para a vítima. Desta for ma, o direito de
punição surge de u m desequilíbrio gerado por u m ato cri minoso
que rebaixa o culpado, que antes do co meti mento do delito era u m
cidadão igual à vítima 319.

Neste ponto, Locke utiliza um raciocínio similar ao de


Grotius para elaborar a concepção segundo a qual o criminoso
renuncia à sua humanidade quando pratica um delito que mereça a
pena capital. 320 O desequilíbrio, advindo da perda de hu manidade ,
torna legítima a punição de um ho me m por outro, na medida e m

318
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. XX, I I , p. 782.
319
“(. . . ) aquel e q ue agi u mal dev a ser c onsi derad o como t end o-se por iss o
mesmo t orna do i nf eri or a q ua lqu er um e t endo-s e como q ue r iscad o d o
número dos huma nos para se c oloc ar e nt re a es péci e d os a nima is q ue sã o
submissos a o homem (. . . )” (G RO T I US, Hugo. O Direit o da G uerra e da Pa z,
Liv ro II , cap. XX, I I I , p. 786).
320
LO CKE, John. Do is t rat a dos so bre o gov ern o civi l, l iv ro I I , cap. I V, par. 23-
24, p. 403-4 05.
142

que os que era m iguais o deixa m de ser a partir do evento


delituoso. Desta ideia de perda de hu manidade surge, ta mbé m, a
noção de perfeita escravidão descrita por Locke no Segundo
Tratado – o criminoso perde a sua condição de humanidade e fica
nu ma posição de inferioridade que justifica a sua punição 321.

Não basta definir a pena como retribuição a um ato que


ofende a orde m natural e causa um dano ao direito de outra
pessoa. É necessário definir o conteúdo retributivo da sanção.
Grotius, inicialmente, re jeita a ideia segundo a qual a pena se
justifica co mo for ma de satisfação da vítima – u ma espécie de
vingança privada que traria prazer ao ofendido. 322 Ele diferencia o
ato de punição do ato criminoso. Uma pena que busca so ment e
produzir a satisfação do ofendido seria um ato voltado para o
passado e, portanto, inútil em relação ao cri me e à própria
violação da regra, aproximando-se de u m cri me.

Por advir e estar e m confor midade co m o direito natural, a


pena deve ser proporcional ao crime e deve m ser considerados

321
Re nat o Jani ne Ri bei ro sal i ent a qu e “ o def e nsor da escrav idã o é
just ament e o f i lósof o li bera l: Lock e f a z do escravo um não- homem. Per deu ,
por crime cont r a a lei d e ra zão, q ue é le i de propr ied ade, o seu d ire it o nat ura l
à vid a, e p or iss o é just o pr eá- lo, ass im c omo o se ria s up lici á-lo. ‘Q uan do
algu ém, por s ua própr ia c ulp a, per deu o dir eit o (f orf eit ed) à pr ópri a vi da, p or
algum at o que mer eça a mort e, aq ue le pa ra quem e le per deu esse dir eit o
pode ( qua ndo o t iver em s eu p oder) demor ar -se em t oma-l a e f a zer uso d essa
pessoa p ara seu pr ópr io serviç o, sem lhe inf li gir com isso inj úria a lg uma. ’
Pois ‘t a l é a pe rf eit a co ndiç ão d e escrav idã o, que n ada é s enã o o e st ad o d e
guerra co nt i nuad o ent re um conqui st a dor l egí t im o e um cativ o’ (Segundo
T rat ado, §§ 23-2 4). Já o cat ivo h obb esia no era c ont i do à f orç a; a pr isã o
apen as grif av a, no pres o, a sua li berd ade de homem. Para L ocke, o cat iv o
t ambém é domi nad o à f orça, e não ass ume obrig ação a lguma – mas porq ue
deixo u de s er hom em. Com seu cr ime re du zi u-se a co isa, e perd end o a ra zã o
deve ser t a ngi do f eit o anim al. É por que o es cravo se best ial i zou que pod e ser
propr ied ade(. . . ). ” (RI BEI RO , Renat o Jani ne . Ao le it or s em med o: Hob be s
escreven do cont r a o seu t empo, p. 15 8).
322
G rot i us af i rm a que “a ra zão s uger e ao home m de nad a f a zer q ue pr ej udi qu e
out ro homem, a n ão s er que sej a em vist a d e a lgum bem. S oment e na dor d e
um inim igo, co nsid erad o ass im iso lad ament e, não h á bem a lg um, a não s er
que um b em f also e im agi nár io, t al como a qu ele q ue se e ncont ra nas riq ue za s
supérf l uas e em vár ias o ut ras co isas d a m esma nat ur e za. ”. Al ém di sso, “é
pois evid ent e que o h omem nã o é le git imam ent e p uni do p el o hom em, qua nd o
não o é sen ão em vist a da pu niç ão. ” (G RO T I US, Hugo. O Dire it o da G uer ra e
da Pa z, l iv ro I I, capí t ul o XX, V, pp. 791 e 7 9 3).
143

dois aspectos na sua imposição. 323 Pre cisam ser considerados o


fato merecedor de pena (o ato praticado) e o fim que se pretende
atingir com a punição. També m deve m ser apreciados os
propósitos e o desejo do delinquente 324.

Co m esta convicção de pena proporcional em mente ,


Grotius censura o fato de Francisco de Vitória ter defendido a
possibilidade de uma cidade e mpre ender u ma guerra para se
vingar de uma injúria da qual o príncipe não se preocupou e m
exigir reparação. 325 O fato de o prínci pe não e xigir a reparação
de monstraria que a ofensa não seria grave e, deste modo, não
possibilitaria u ma punição. Não basta sse isso, co mo há pouco foi
salientado, o holandês entende que a vingança não é u ma causa
justa para se recorrer à guerra.

A ressalva grociana ao pensa ment o de Vitória não se


restringe a este caso. O jurista nova mente critica este autor,
acrescentando Vasquez, Azor e Molina na censura, porque eles
pareceriam co mpreender que existe justiça na guerra quando
aquele que a e mpreende tenha sido “(...) lesado pessoalmente o u
e m seu Estado ou tenha u m direito de jurisdição sobre aquele que
é atacado pelas armas.” Segundo o holandês, estes autores
criticados entendem que o poder de punir é um efeito próprio da
jurisdição civil, enquanto ele pensa que referido poder provém do
direito natural. Para Grotius, se estes pensadores estivesse m
corretos quanto à orige m civil da pena, u m ini migo não teria o

323
A proporci on al i dade nã o se re st ri ng e à apl i cação da p ena, m as e st á
pre sent e t am bém na guerr a. G rot i us su st ent a qu e a pe sar de e st ar em
conf ormi dade com a j ust i ça com pensat óri a, o at o de m at ar não é p erm i ti do
ao s cri st ão s para ev i t ar um t apa ou ul t raj e. Est e at o seri a cont rári o ao di rei t o
de nat u reza porq ue e st e a ssa ssi nat o não é um m ei o própri o par a prot e ge r
no ssa próp ri a e st i m a (G RO T I US, Hugo. O Di reit o da G u erra e da P a z, l iv ro I I ,
cap. I , X, p. 295-29 7). Al ém di sso, no q ue se ref ere à def esa do di rei t o de
propri ed ade, con si d eran do ap ena s e st e d i rei t o, “(.. . ) o l adrão que f oge
l ev ando nosso bem pode ser ab at i do por nosso dard o, se é im possí v el
recuper ar de out ro m odo o s obj et o s roub ado s. ” (G RO T I US, Hugo. O Direit o d a
G uerra e da Pa z, XI , p. 297-29 8).
324
Ibi d. , l iv ro I I , cap. XX, XXVI I I , p. 833-83 4.
325
Ibi d. , l iv ro I , cap. I II , I V, p. 170.
144

direito de castigar seu inimigo, mesmo depois que a guerra tivesse


sido empreendida 326.

Asseverou-se, antes, que o jurista ent ende que a pena te m


que ter co mo preocupação o futuro e, por isso, não pode ser u m
meio de vingança – na medida e m que esta se fi xa a atos
passados. Isto ju stifica a sua crítica à Vitória. Além disso, a pena
deve ter um caráter preventivo. Ela serve para impedir, por meio
da força e do temor da coação, que o criminoso ou qualquer
indivíduo que cogite praticar um d elito, o faça. Este caráter
preventivo inclui a possibilidade de aplicação de pena capital ao
transgressor da ordem.

Deste modo, para Grotius, a pena serve para educar o


ofensor; evitar a repetição do crime, e para desencoraja r
co mporta men tos se melhantes. 327 O autor, sustenta que a punição
não exige a presença de u m terceiro, de u m juiz co mu m pelo fato
de a reta razão nos fazer compreend er que há uma regra natural
segundo a qual os pactos devem ser cumpridos. Portanto, há
direito de punição independentement e de existir u ma jurisdição
co mu m. Nó s si mples mente transferimos a u m ente a força que
antes da vida política em sociedade pertencia a cada u m de nós.
Neste caso, é co mo se u m terceiro assu misse a força daqueles que
fora m pre judicados pelo ato criminoso.

Grotius trata do ato criminoso e da pena do ponto de vista


do direito natural. Co mo deve ser infligida a pena quando a
sociedade política já está for mada? Segundo a argu mentaçã o
e mpregada por ele, é preferível que haja u m juiz investido do
poder necessário para assegurar o cumpri mento das leis e aplicar
concreta mente a justiça. Ainda que a lei natural alcançada pela
razão possa deter minar o que é e o qu e não é justo, a manutençã o
da condição natural envolve um risco. Por isso, é melhor entregar

326
G RO T I US, Hugo. O Direit o da G u erra e d a Pa z, l iv ro I I , cap. XX, XL, p.
854.
327
G RO TI US, Hugo. O Direit o da G uerr a e da P a z, l iv ro II , cap. XX, VI , p. 793.
145

o poder punitivo, a força, à autoridade pública. Aqui, lembre-se


que Locke apontou co mo inconveniente da condição natural o fato
das paixões podere m sobrepor-se à reta razão (u ma das vantagen s
da vida e m sociedade é a enunciação de regras unívocas que
deverão reger e ordenar a vida).

Tanto o holandês quanto Locke sustenta m que e xiste u ma


lei natural e que a razão a reconhece, que ela é eficaz (em
princípio), e reconhecem que nossas limitações de ve m dar lugar ao
poder comu m, se mpre que possível. O magistrado exerce, de modo
mais seguro, a força contra a violação do direito. Mesmo que os
indivíduos possa m, na ausência de juíze s, reagir à agressão e
punir os ofensores, os dois autores preferem o uso do poder
estatal instituído.

A vida em coletividade oferece benefícios. Entre eles,


destaca m-se: o fato dos cidadãos passare m a conhecer o conteúdo
da lei; a existência de um juiz co mu m e imparcial; e as autoridades
tendere m a dispor dos meios de aplicação da justiça (da pena),
quando necessário.

Conclusão

Quando investiga a possibilidade de existir uma justiça na


guerra, o autor holandês expressa uma concepção diferente dos
juristas de seu te mpo. Estes costu mava m entender que a guerra
so mente poderia ser empreendida pelo Estado. Nosso autor abre a
possibilidade para que as guerras seja m e mpreendidas por
qualquer um, desde que cu mpridos certos requisitos.

Viu-se que na obra de Grotius há duas definições de guerra.


No De Jure Praedae, o jurista sustenta que a guerra é u ma
execução ar mada contra u m adversário armado, ao passo que, no
Dire ito da Guerra, o fenô meno bélico é equiparado a um estado no
qual os indivíduos resolvem suas controvérsias pela força. A
146

primeira definição se asse melha ao sentido estabelecido pelos


juristas da época do autor. Gentili, por exe mplo, ta mbé m inseriu as
ar mas na sua definição de guerra. 328 A d efinição de Grotius desto a
daquela apresentada por Gentili por não restringir a guerra às
ar mas públicas. Alé m disso, o holandês entendia que qualquer
pessoa poderia executar u ma guerra p rivada. 329

Co mo dito anteriormente, a definição do Dire ito da Guerra


afasta o autor dos teóricos de seu te mpo. A guerra deixa de ser u m
ato para ser entendida co mo u m statu s. Este entendi mento fa z co m
que ela se torne u ma situação que se protrai por u m deter minado
período de te mpo. Deste modo, a gu erra passa a ser vista co mo
u ma situação e não apenas co mo u m a to executivo.

A despeito de ser uma manifestação d a força, a guerra pode


ser justa quando realizada com o ob jetivo de defender um direito
natural. Todas as modalidades de guerra justa descritas por
Grotius têm este ob jetivo. Para ade quar os atos bélicos co m o
direito natural, o autor aponta alguns requisitos que, ao serem
preenchidos, fazem co m que a guerr a seja justa. Neste sentido,
apontou-se que a guerra pública solene requer a necessidade de
se elaborar, antes do início do conflito, u ma declaração formal de
guerra, e haveria a necessidade de e xercer um juízo de
ponderação antes de se praticar u ma guerra privada, haja vista
que é necessário averiguar se a ofensa praticada é grave o
suficiente para que se recorra à violência. 330

Alé m disso, a guerra possibilita a aplicação de u ma punição.


Esta ta mbé m requer u ma apreciação, por parte daquele que vai
infligir a pena, para que se verifique a adequação do castigo. Não

328
Al beri co G ent i li af i rm a que a G uerr a é a j u st a c ont en da d e arm a s pú bl i cas
(G ENT I LI , Al beri co. O direit o de g uerr a, l iv ro I , cap. I I, p. 61).
329
F ranci sco de Vi t óri a j á su st e nt av a, ant es d e G rot i us, que qual qu er pe ssoa
poderi a decl arar e em preen der um a gue rra (VI T Ó RI A, F ranci sco d e. O n t h e
Law of W ar, p. 299).
330
G ent i li j á hav i a sal i ent ado a nec e ssi dade de um a decl araçã o ant eri or à
prát i ca de at o s d e gu erra pa ra qu e e st a f osse c on si dera da j u st a (G ENT I LI ,
Al beri co. O Direit o de G uerra, l iv ro I I , cap. I , p. 217).
147

bastasse isto, é imprescindível que referido castigo seja


proporcional ao dano.

É interessante a mudança proporcionada por Grotius no que


tange ao direito de punir. Como salientado anteriormente,
pensava-se, antes do autor, que este direito adviria do direito civil,
mas o jurista holandês argumenta qu e o direito de punir seria um
direito natural, anterior ao pacto constitutivo da sociedade política,
que não deixa de e xistir mesmo quand o os ho mens passa m a fazer
parte de um Estado. Segundo o jurista, o direito de impor u ma
pena, be m co mo o de e mpreender u ma guerra justa, por sere m
a mparados por u ma lei natural, não desaparece m, mas só pode m
ser utilizados quando o Estado não proporcionar um meio de
salvaguardá-los – os tribunais.

A ausência ou indisponibilidade de ju ízes é u m i mportante


requisito para se recorrer à guerra. Na época do jurista não havia
organismos capazes de regular as relações entre Estados, estes
podiam e mpreender guerras se m rece io de que seus atos fosse m
controlados por meio de u m sistema internacional. A teoria
grociana da guerra traz um mecanismo que poderia limitar estes
atos de guerra dos Estados, tendo e m vista que eles deve m seguir
requisitos míni mos antes de guerrear.

Salientou-se que, segundo Grotius, a liberdade natural


subsiste me s mo quando se está em u ma sociedade civil.
Primeira mente, nos locais nos quais não e xiste m tribunais ou
quando estes não estão à disposição dos envolvidos. Um e xe mplo
dessa situação seria o crime praticado e m alto mar.

Pode-se concluir que há uma importâ ncia da teoria da pena


contida no Dire ito da Guerra e da Pa z para a construção da teoria
grociana da ordem internacional. Isto ocorre pelo fato de o direito
de punição independer de uma jurisdição co mu m. Os ho mens, par a
viver e m sociedade, confia m a u m terceiro uma força que antes d a
vida política pertencia a cada u m d eles. Desta for ma, a antiga
liberdade natural que eles possuíam subsiste mesmo na sociedade
148

civil. Primeiramente onde não há tribunais. Quando o jurista faz


referência à situação em que a liberdade natural subsiste, não é
mera mente u ma questão de localização geográfica, mas u ma
situação de fato. Não é a i mpossibilidade de acesso físico a u m
magistrado, mas a ausência de sua jurisdição – é a circunstância
que impossibilita a tutela estatal e, consequente mente, a aplicação
concreta da lei. Os oceanos são os locais nos quais ocorrem as
relações internacionais – relações entre Estados soberanos que,
no século XVII, não encontrava m u m tribunal capaz de aplicar pena
a eles. Nestas situações fica claro que u ma da s funções da guerra
é a punição. Consequente mente, dentr o da teoria da guerra justa e
da pena de Grotius, a ofensiva praticada pela co mpanhia
holandesa estaria justificada.
149

CONCLUSÃO

No primeiro capítulo observou-se a importância das noçõe s


de Sêneca e Cícero para a formulação grociana de direito natural.
O jurista utiliza as noções de sociabilidade natural e de natureza
racional humana, contidas nestes auto res clássicos, para sustentar
que o direito natural seria acessível aos homen s devido a sua
própria natureza. Este ponto de vista, so mado à “hipótese
impiíssi ma”, faz co m que o jurista afaste a i mportância de Deu s
para que se conheça o conteúdo da l ei natural. Bastaria, assim, a
simples observação da natureza para se deduzir o direito natural.

Há, poré m, dúvida sobre à vinculação do jurista a estas


ideias do estoicismo e do ecletismo ro manos. Para alguns, quando
o jurista menciona os dois filósofos ro manos, ele estaria apenas
repetindo um trâ mite co mu m e i mprimindo u m viés medieval as
concepções destes dois filósofos. 331 Por outro lado, pode-se
interpretar que o holandês aceita a mencionada concepção co mo
meio de apresentar conteúdos ina tos da natureza hu mana,
conteúdos estes que per mite m o acesso ao direito natural. Apesar
desta divergência, a influência de Sêneca e Cícero é evidente.

No que tange ao direito natural, no segundo capítulo foi


apresentada a análise da co mpreensão dos ter mos le x e jus par a
mostrar a diferença de entendimentos sobre o direito natural nas
duas obras políticas de Grotius. Viu-se que o jurista holandês
apresenta u ma grande mudança de u m livro para outro, ele passa
de um conceito voluntarista de direito natural para um
entendimento dedutivo do direito natural.

A e xposição do jurista sobre o direito natural é reputada,


por alguns intérpretes, co mo u ma cont inuação do entendimento de
autores da escolástica espanhola. Esta interpretação pode estar

331
Nest e se nt i do é o pont o de v i st a de Bri an T i erney (T he Idea of Nat ur a l
Right s) e Pet er H agg enm acher (G rot ius et la doct rin e de la guerr e just e).
150

funda mentada e m quatro argu mentos. Pri meira mente, for mulação
similar à “hipótese impiíssima” pode ser encontrada na obra de
alguns desses teóricos. So ma-se a isto o fato de a análise sobre a
origem do Estado ter sido e mpreen dido, antes de Grotius, por
Francisco de Vitória e Francisco Suárez. Igualmente, co mo visto
no terceiro capítulo, o autor retoma pontos de vistas de Vitória
quando expõe sua teoria da guerra ju sta. Alé m disso, tanto para o
jurista holandês co mo para Vitória e Suárez, o direito natural seria
u m direito advindo da razão e diria respeito às criaturas racionais.
Por fim, no De Jure Praedae, Grotius concorda com os espanhóis
ao afirmar que o direito divino seria superior ao direito natural.

Não obstante esta interpretação, most rou-se que existe uma


diferença entre a formulação grociana e a de seus predecessores.
Na “hipótese impiíssi ma”, o autor não estabelece u ma relação de
causalidade entre a natureza divina e a natureza humana. Co m
esta hipótese, o jurista apresenta a possibilidade de a natureza
racional humana ser u ma fonte da lei natural e retira a importância
da participação de Deus para a existência da lei natural.

Foi visto també m que Grotius, ao defender a possibilidade


de justiça na guerra, critica Vitória por ter supostamente vinculado
a guerra à vingança. O holandês entende que a guerra somente
poderia ser justa mente e mpreendida quando aquele que recorre ao
uso da força o faz tendo em vista a proteção de um direito natural,
seja para assegurar este direito ou para reivindicar o prejuízo
sofrido. Quando o jurista analisa a pena, ele també m discorda
destes pensadores por entender que eles vincularam a punição ao
direito civil. Diferentemente dos esco lásticos espanhóis, o jurista
holandês entende que a possibilidade de impor u ma pena advé m
do direito natural, sendo possível a aplicação de castigos antes do
surgimento da sociedade política.

A riqueza de conteúdo da obra de Grotius permite


interpretações distintas. O jurista, por exe mplo, pode ser visto
co mo u m defensor do absolutismo por reservar, no Dire ito da
151

Guerra, pouco espaço de atuação pa ra os cidadãos, e sustentar


que o povo não te m direito de resistência contra o rei. Por outro
lado, ele apresentou uma argu mentação, no De Jure Praedae, que
o colocaria como u m dos precursores da concepção de devido
processo legal. Nesta obra, o jurista defende que o Estado deveria
se sub meter ao procedimento judicial sempre que houvesse u m
conflito de pretensões entre ele e outro Estado ou u m cidadão.

A diversidade de temas torna a obra de Grotius


multifacetada e, por isso, passível de interpretações distintas.
Contudo, há u m consenso acerca da contribuição de Grotius para a
exclusão da argu mentação teológica do â mbito do direito natural e
para o vínculo deste último à guerra e ao direito de punir.
152

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