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A charge da Folha de São Paulo no Primeiro Turno das Eleições 2014: opinião ou isenção?
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar os cartuns publicados na pag 2 do jornal “Folha de São Paulo” no
período entre o início do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral – 19 de agosto - e a realização
do Primeiro Turno das Eleições 2014 – 4 de outubro -, utilizando como aporte teórico autores que
estudam a estética do humor, como Elias Thomé Saliba.
Por meio da análise do período indicado, foram identificadas 23 charges que abordam diretamente
os três principais candidatos à eleição presidencial e/ou seus partidos no primeiro turno: Aécio
Neves (PSDB); Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PSB). Sobre estas foi realizada a análise do
seu discurso visual e verbal e a relação deste com as notícias da mesma data ou datas imediatamente
subsequentes.
Numa análise quantitativa, identificou-se uma maior ênfase na disputa Dilma versus Marina, mas
através da valoração do discurso dessas charges, procurei identificar padrões qualitativos de
referência aos três candidatos, que são relatados na conclusão. Podemos identificar pro meio da
valoração uma maior incidência de atributos negativos associados à candidata Dilma, seguida de
Marina. O candidato Aécio foi pouco retratado e de forma menos crítica que as demais.
¹Mestre em Ciências Sociais (Ciência Política) pela PUC-SP. Integrante do NEAMP – Núcleo de Estudos em Mídia e
Política da Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. Este artigo é parte da pesquisa que está sendo realizada
com o apoio do FAPESP, “Lideranças Políticas: características e a questão institucional”, até 2017.
Introdução
Considerando que o cartum é uma linguagem humorística que enfatiza traços “defeituosos” ou
risíveis dos personagens políticos, com o intuito de denunciar, provocar, criticar ou gerar o riso,
meu objetivo é identificar possíveis padrões de retrato dos líderes políticos participantes do pleito
ou os discursos presentes que poderiam influenciar ou reverberar outros discursos no noticiário, por
meio da criação de estereótipos. Para Saliba, “O estereótipo é uma espécie de pret à porter do
humorismo que, por sua vez, se alimenta desta intrínseca vocação de juntar fragmentos do passado
e concentrá-los naquele instante rápido e fugidio da anedota”. (pág.16)
Segundo Melo apud Nery (pag7) a caricatura é “O retrato humano ou do objeto que exagera ou
simplifica traços, acentuando detalhes ou ressaltando defeitos. Sua finalidade é sucitar risos, ironia.
Trata-se de um retrato isolado”.
Retrato isolado que entretanto contribui para que o leitor forme uma imagem e uma opinião do
retratado, lendo criticamente a realidade. Conforme o mesmo autor, apud Nery “A charge é uma
crítica humorística de um fato ou acontecimento específico. Reprodução gráfica de uma notícia já
conhecida do público, segundo a ótica do desenhista”.
O jornal a Folha de São Paulo veicula nesse mesmo período uma campanha na mídia em que
ressalta seu “pluralismo”, isto é, como instituição jornalística ela se autodeclara um jornal “de
opinião” “que tem suas posições” mas “sempre publica opiniões divergentes”. Procurei verificar
essa condição por meio da comparação entre a chamada de capa do dia (Noticiário Político) ou
outras notícias relevantes sobre o pleito e sua abordagem nas charges publicadas diariamente na pag
2 (seção “Opinião”), e também verificar quais as características atribuídas e críticas realizadas sobre
os candidatos através das charges, para ratificar ou refutar o autodenominada “isenção” do veículo.
O cartunismo do jornal diário capta o “espírito do tempo”, o “clima” reinante num determinado
período. Nesse sentido, como define Saliba, a anedota se torna compreensível e risível na medida
em que o leitor tem conhecimento do que ela se refere e concorda tacitamente com a crítica
implícita na anedota. Apesar do jornal ser diário, as charges analisadas nem sempre estiveram
associadas à manchete da mesma data; por vezes, fizeram referência às notícias das demais seções
da mesma edição ou dos dias imediatamente anteriores, destacando escândalos ou polêmicas
relacionadas aos candidatos .
Para facilitar o trabalho de análise, tornou-se ainda necessário fazer uma distinção entre dois estilos
de charge, que se alternaram ao longo do período acompanhado:
1- As “charges eleitorais”, que tratam dos três principais candidatos à eleição presidencial –
Aécio, Dilma e Marina – e que são o objeto desse artigo;
2- As charges aqui nomeadas de “autorais”, que expressam uma crítica ao cenário
político/econômico social, sem no entanto fazer referência direta à um candidato, mas sim à
uma situação. Estas mereceriam uma análise apartada, que poderei posteriormente agregar à
minha pesquisa.
Também é importante considerar que no grupo de ilustradores da Folha de São Paulo se revezaram
aleatoriamente no período pelo menos cinco autores: Angeli, Benett, Laerte, Jean Galvão e João
Montanaro – com diferentes estilos de redação e desenho. Angeli e Laerte, na maioria das vezes, se
dedicaram ao estilo mais “autoral”, enquanto Galvão, Montanaro e Benett retrataram mais as
notícias pontuais.
Numa primeira avaliação quantitativa, num total de 47 charges do período analisado, pude verificar
que apenas 23 retrataram ou fizeram menção direta aos três principais candidatos à presidência:
Aécio (PSDB), Dilma (PT) e Marina (PSB).
Nota: O total de aparições do candidato é a soma das charges individuais mais aquelas em que aparecem
associados a algum opositor. Nessa situação, quando um candidato foi mencionado de forma depreciativa,
sua valoração foi “negativa” enquanto a do opositor foi “neutra”, na mesma charge.
Podemos verificar portanto que o confronto “Marina e Dilma” foi o assunto mais abordado, seguido
da candidata Dilma individualmente.
Porém, ao considerarmos a “valoração negativa”, a candidata Dilma foi retratada desta forma com
mais frequência, com 10 menções.
Na figura 1 (FSP – pág2 – edição de 27/8/14), temos um exemplo de valoração negativa versus
neutra, quando Dilma aparece ao lado de Marina como foco da representação:
A ilustração se refere ao episódio da primeira propaganda eleitoral de Dilma na TV, quando uma
cidadã do interior do Nordeste foi entrevistada. A imprensa apurou que a mesma ganhou uma
dentadura dias antes da gravação, fato que foi avaliado negativamente pela própria Folha em 22/8.
(Anexo1)
Outro exemplo de menção depreciativa e crítica da candidata Dilma é a charge publicada em 8/9/14
(Fig2), que com o texto “Campanha é isso: quatro meses de insônia pra quatro anos de sono
profundo” faz referência ao escândalo da propina da Petrobrás, abordado pela imprensa desde o
início de agosto (quando o ex-diretor Paulo Roberto Costa denunciou um esquema dentro da estatal
que envolvia vários políticos, entre eles membros do PT, partido da Presidente), expressando um
sentido dúbio de que a candidata se manteria insone durante a campanha (de preocupação),
enquanto durante o mandato se manteve “adormecida” enquanto as ilegalidades na estatal ocorriam.
No confronto Dilma versus Marina, a primeira também aparece desfavorecida, seja em pessoa ou
representada pelo partido, como nas charges a seguir:
A charge ironiza os comentários da própria presidentes que afirmou, dias antes, que haveria trocas
no seu Ministério em caso de reeleição; x dias depois o Ministro da Fazenda, Guido Mantegna, foi
demitido.
(Fig 4 – FSP – pág 2 - 13/9/14)
Na Fig 4, dois homens carrancudos, de terno e estrelas vermelhas na lapela (símbolo do PT) fitam
Marina; um deles aponta o dedo para a cara dela e diz; “Assim que a gente lembrar onde deixamos
a honra, vamos pedir para ela te processar”. Charge faz referência à nota da coluna de Mônica
Bergamo, no mesmo jornal, em 11/9 (Anexo 3).
Na sequência de Dilma, a candidata Marina foi a segunda mais abordada, com 16 menções. Porém a
temática mais explorada para satirizar Marina foi sua opção religiosa (evangélica).
A Figura 5 (FSP - pág 2 – 1/9/14) mostra Dilma apontando para Aécio “Os próximos passos de
Marina”, representados pelas pegadas de um Curupira - uma contradição em si já que uma
evangélica não acreditaria numa figura da mitologia brasileira. O sentido dessa fala também pode
apontar a posição de liderança que a candidata Marina tinha naquele momento, “desnorteando” os
adversários.
Outro sentido possível dessa representação é de que a candidata “se contradiz”, dando passos de
“confundem” os concorrentes.
Essa “provocação” do cartunista quanto à opção religiosa da candidata – que nos remete também à
discussão do Estado laico versus Estado influenciado por lideranças religiosas – reaparece na Figura
6 (FSP - pág 2 – 5/9/14) em que um quadro apresenta entre os “Ministeriáveis de Marina” as
figuras de uma Iara, do Boitatá, da Mula-sem-Cabeça, um duende e do Saci-Pererê.
Fig 7
Na mesma semana, causou grande repercussão na mídia a notícia de que o Programa de Governo da
candidata havia sido alterado por influência do pastor da igreja Assembleia de Deus Vitória em
Cristo Silas Malafaia. Marina havia divulgado dias antes em seu Programa de Governo texto em
que previa o envio de projeto de lei de reconhecimento do direito à União Civil e adoção de
crianças por casais homossexuais. Após ação do pastor nos redes sociais questionando sua posição,
a candidata publicou uma “errata” amenizando suas posições. Essa polêmica está representada na
Fig. 7, (FSP- pag 2 – 2/9/14) em que Marina, “afundada” num sofá com a postura de uma menina
aborrecida, diz ao telefone “o tio Silas não deixou eu brincar com vocês”. Verídico ou não, o fato de
que o Programa de Governo e os posicionamentos de Marina eram “validados” por membros da
bancada evangélica foi utilizado pelos oponentes para atacá-la, caracterizando-a como alguém
movido pela crença religiosa, mais do que pela competência técnica ou de gestão executiva. (Vide
Fig 8 e anexo 4, “Marina costuma recorrer a versículos da Bíblia para tomar decisões”).
Fig. 8
Além da polarização Dilma versus Marina, o candidato Aécio, até as vésperas do primeiro turno
figurando em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, foi pouco retratado.
Chama atenção a charge de 3/10/14 (Fig 10) , que resume o espírito das vésperas do primeiro turno,
quando Marina caiu vertiginosamente e Aécio recuperou posições, aproximando-os nos índices de
intenção de voto.
Marina literalmente desfaz-se em folhas, enquanto Aécio, com uma expressão triunfante, caminha
logo atrás, recolhendo-as em um grande saco.
Fig. 10
Conclusão
Para Bergson apud Saliba (pag 22): “Para compreender o riso, impõe-se colocá-lo no seu ambiente
natural, que é a sociedade; impõe-se sobretudo determinar-lhe uma função útil, que é uma função
social. Digamo-lo desde já: essa será a ideia diretriz de todas as nossas reflexões. O riso deve
corresponder a certas exigências da vida em comum. O riso deve ser uma significação social”.
Pela amostra de charges aqui coletadas, o significação dessa cobertura das eleições parece
demonstrar uma valoração negativa maior sobre a candidata Dilma e sobre o PT, mencionado
explicitamente. Os demais partidos não foram retratados.
Embora a representação de Marina coloque em cheque sua relação com a religião e a interferência
desta num Estado dito “laico”, as críticas a ela foram menos contundentes do que as dirigidas à
presidente.
A posição em relação ao candidato Aécio foi de neutralidade. Ele foi praticamente considerado
“pouco importante” até o início de outubro, quando as pesquisas começaram a indicar que ele
poderia passar para o segundo turno.
É importante ressaltar que há um paradoxo entre o pluralismo do jornal Folha de São Paulo e a
produção de humor; embora haja de fato pluralismo nos autores, temas e discursos, ao
considerarmos a valoração das charges analisadas, podemos identificar uma tendência de
desfavorecimento da candidatura Dilma Rousseff no primeiro turno.
Esse desfavorecimento também aparece na Figura 11, onde o ilustrador Jean Galvão (FSP – pág 2 -
29/9) mostra cavaletes da candidata Dilma enfileirados na rua, por onde passam transeuntes
indiferentes. Porém, o verso dos cavaletes está dobrado e pintado de amarelo, compondo a palavra
“Marina”. A charge dá margem ao entendimento de que “Marina é o oposto de Dilma” ou de que
ambas “são os dois lados do mesmo cavalete” – talvez criticando o posicionamento da candidata do
PSB como “terceira via” ou “Nova Política”.
Na figura seguinte, “No Castelo da Velha Política” a candidata do PSB, até aquela data em segundo
lugar nas pesquisas de intenção de voto para a presidência, aparece aos pés de um labirinto,
contemplando no outro extremo um “monstro vermelho”, que simboliza a candidata Dilma do PT.
As notícias na data/período abordavam a queda de Marina das pesquisas e o fortalecimento de
Dilma, conforme editorial “O fator Marina”, de 28/9/14 (anexo 2).
Chama a atenção o fato de o candidato Aécio ter sido pouco abordado mas também pouco criticado;
as charges dedicadas a ele ressaltam sua desvantagem nas pesquisas, sem fazer qualquer referência
às suas características pessoais, escândalos partidários ou qualquer outro atributos negativo o
bastante para afetar sua imagem (Figs 14 e 15).
(Fig 14 – FSP – 6/9/14)
De acordo com Saliba (pag 32, parágrafo 2): “(...) as representações humorísticas participaram (na
Belle Epóque) ativamente do processo de invenção da imaginação nacional, construindo tipos,
visuais ou verbais, e fomentando estereótipos.” Entende-se o estereótipo como um recurso para
categorizar, caracterizar os atores políticos, e dessa forma reformar determinadas interpretações dos
seus posicionamentos.
Pela perspectiva da história cultural, associada ao papel do jornalismo, podemos ver nas charges
apresentadas uma leitura particular da disputa eleitoral, que conduziria o leitor da Folha associar a
candidata Dilma a episódios de ilegalidade, corrupção e radicalismo partidário; a candidata Marina
à religiosidade, fantasia e hesitação na tomada de posições; e o candidato Aécio a uma simples
posição de desvantagem, superada com o resultado do primeiro turno. Seria necessário acompanhar
portanto a continuidade dessa produção até o resultado final da eleição para avaliarmos de forma
completa a representação de Aécio, pouco expressiva até então.
Bibliografia
NERY, João Elias. “Charge e Caricatura na Construção de Imagens Públicas”. Tese de Doutorado
em Comunicação e Semiótica. PUCSP, 1998.
SALIBA, Elias Thomé. “Raízes do Riso”. Ed. Cia das Letras, São Paulo, 2002.
Internet
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em: www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2014/09/1514473-rombo-da-previdencia-
pode-chegar-a-r-100-bi-ainda-neste-ano-diz-ministro.shtml <Acesso em 10/10/2014>
Nery, Natuza; Bragon, Ranier; Sadi, Andréa “Marina costuma recorrer a versículos da Bíblia antes
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Pitombo, João Pedro. “Sertaneja diz que ganhou prótese antes de gravar com Dilma” Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/08/1504101-sertaneja-diz-que-ganhou-protese-antes-
de-gravar-com-dilma-para-tv.shtml <Acesso em 10/10/2014>
Imagens
Anexo 1
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/08/1504101-sertaneja-diz-que-ganhou-protese-
antes-de-gravar-com-dilma-para-tv.shtml
Anexo 2
www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2014/09/1514473-rombo-da-previdencia-
pode-chegar-a-r-100-bi-ainda-neste-ano-diz-ministro.shtml <acesso em 10/10/2014>)
Anexo 4
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/09/1508909-marina-costuma-recorrer-a-versiculos-
da-biblia-para-tomar-decisoes.shtml