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Prefácio

M editações no Evangelho de Mateus, de J. C. Ryle, tem sido


um livro amado e compartilhado por várias gerações de
crentes, desde a sua primeira edição, em 1879. Esta obra contém
uma simplicidade e uma espiritualidade que têm feito dela o
comentário devocional clássico sobre os evangelhos, na opinião de
um grande número de leitores.
Buscando pôr à disposição do leitor moderno uma modalidade
mais popular desta obra, foram removidos os textos bíblicos (antes
impressos na íntegra), embora o leitor seja encorajado a ler cada
passagem selecionada do começo ao fim, antes de iniciar a leitura
das próprias meditações de Ryle. Também omitimos as notas de
rodapé, nas quais Ryle abordava questões textuais de um modo
mais crítico, embora sem conexão direta com a exposição
propriamente dita. O texto usado é o da Edição Revista e Atualizada
da Sociedade Bíblica do Brasil.
Confiamos que esta nova edição das meditações devocionais
de Ryle alcançará os mesmos alvos aos quais o autor se aplicou
pessoalmente, a fim de que, “com uma oração fervorosa, possa
promover a religião pura e sem mácula, ampliar o conhecimento de
muitos sobre a pessoa de Jesus Cristo e ser um humilde
instrumento na gloriosa tarefa de converter e de edificar almas
imortais”.
Os Editores
A genealogia de Cristo
Leia Mateus 1.1-17

É com esses versículos que tem início o Novo Testamento. Cumpre-


nos lê-los sempre com sentimentos sérios e solenes. O livro à nossa
frente não contém a palavra de homens, mas, sim, a própria Palavra
de Deus. Cada versículo foi escrito sob a inspiração do Espírito
Santo.
Agradeçamos diariamente a Deus por nos haver presenteado
com as Sagradas Escrituras. O mais pobre brasileiro que
compreenda sua Bíblia sabe mais sobre assuntos religiosos do que
os mais sábios filósofos da Grécia ou de Roma.
Não nos esqueçamos da grande responsabilidade que temos.
Seremos todos julgados no último dia, de acordo com a luz que
tivermos recebido. Daquele a quem muito foi dado, também muito
será requerido. Leiamos nossas Bíblias com reverência e diligência,
com a franca resolução de dar crédito e pôr em prática tudo aquilo
que aprendermos. Não é algo de pouca importância a maneira como
usamos esse livro. A vida ou a morte eterna dependem desse uso.
Acima de tudo, oremos, com toda a humildade, rogando pela
iluminação que nos é dada pelo Espírito Santo. Somente ele é
capaz de aplicar a verdade aos nossos corações, permitindo-nos
tirar proveito daquilo que ali tivermos lido.
O Novo Testamento começa narrando a vida, a morte e a
ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Nenhuma outra porção
da Bíblia é tão importante quanto essa, e nenhuma outra parte é tão
plena e completa. Quatro evangelhos distintos contam a história dos
feitos de Jesus Cristo e de sua morte. Por quatro vezes
consecutivas, lemos as preciosas narrativas de suas realizações e
de suas palavras. Quão agradecidos nos deveríamos mostrar por
causa disso! Conhecer Cristo é ter a vida eterna. Confiar em Cristo
é desfrutar a paz com Deus. Seguir os passos de Cristo é ser um
crente verdadeiro. Estar com Cristo será o próprio céu. Ninguém
pode alegar ouvir demais sobre Jesus Cristo.
O evangelho de Mateus tem início com uma longa lista de
nomes. Dezesseis versículos ocupam-se da genealogia de Abraão a
Davi, e de Davi à família na qual nasceu o Senhor Jesus. Ninguém
deve imaginar que esses versículos são inúteis. Em toda a Criação
de Deus, coisa alguma é inútil. Tanto o musgo mais insignificante
como os menores insetos atendem a alguma boa finalidade. De
igual modo, coisa alguma é inútil na Bíblia Sagrada. Cada palavra
foi outorgada por inspiração divina. Os capítulos e versículos que, à
primeira vista, parecem destituídos de proveito foram todos dados
com algum bom propósito. Examine novamente esses dezesseis
versículos e você encontrará neles muitas lições úteis e instrutivas.
Com base nessa lista de nomes, aprenda o fato de que Deus
sempre cumpre sua Palavra. Deus havia prometido que, na
descendência de Abraão, todas as famílias da terra seriam
abençoadas. Deus havia prometido levantar um Salvador dentre os
descendentes de Davi (Gn 12.3; Is 11.1). Esses dezesseis
versículos, por conseguinte, provam que Jesus era filho de Davi e
filho de Abraão, e que aquela promessa de Deus teve seu devido
cumprimento. Pessoas ímpias, que não meditam nas coisas,
deveriam relembrar essa lição e temer. Sem importar o que elas
pensem, Deus haverá de cumprir sua Palavra. Se não se
arrependerem, certamente perecerão. Aqueles que são crentes
autênticos deveriam relembrar essa lição, consolando-se nela. Seu
Pai celestial se mostrará fiel a todos os seus compromissos. Ele
asseverou que salvará todos os que confiarem em Cristo. Ora, se
ele afirmou isso, então certamente cumprirá sua Palavra. “Deus não
é homem, para que minta” (Nm 23.19). “Ele permanece fiel, pois de
maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13).
Em seguida, com base nessa mesma lista de nomes, podemos
aprender muito sobre a pecaminosidade e a corrupção da natureza
humana. Observemos quantos pais piedosos, nessa lista de nomes,
tiveram filhos ímpios e iníquos. Os nomes de Roboão e Jorão, de
Amom e Jeconias, deveriam ensinar-nos lições humilhantes. Esses
quatro tiveram pais piedosos. No entanto, eles mesmos foram
homens malignos. A graça de Deus não é hereditária. É preciso algo
mais do que apenas um bom exemplo e bons conselhos para que
alguém se torne filho de Deus. Aqueles que nascem do alto não
nascem nem “do sangue, nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13). Os pais dedicados à
oração deveriam orar, dia e noite, para que seus filhos nasçam do
Espírito.
Aprenda, finalmente, com base nessa lista de nomes, quão
grandes são a misericórdia e a compaixão de nosso Senhor Jesus
Cristo. Medite sobre quão contaminada e impura é a nossa
natureza; e, então, pense na condescendência de Cristo, por haver
nascido de mulher e ter-se feito “em semelhança de homens” (Fp
2.7). Alguns dos nomes sobre os quais lemos nessa lista nos fazem
lembrar histórias tristes e vergonhosas. Alguns são de pessoas
nunca mencionadas em qualquer outra porção das Escrituras.
Porém, no fim da lista figura o nome do Senhor Jesus Cristo.
Embora ele seja o Deus eterno, humilhou-se ao se tornar um ser
humano, com a finalidade de prover a salvação dos pecadores.
Jesus Cristo, “sendo rico, se fez pobre por amor de vós” (2Co 8.9).
Deveríamos ler essa relação de nomes com um sentimento de
gratidão. Vemos ali que nenhum daqueles que compartilham da
natureza humana está fora do alcance da simpatia e da compaixão
de Cristo. Nossos pecados talvez tenham sido tão negros e graves
quanto os pecados de algumas pessoas mencionadas pelo apóstolo
Mateus. Entretanto, tais pecados não podem fechar o céu para nós,
se nos arrependermos e confiarmos no evangelho. Se Jesus não se
envergonhou por nascer de uma mulher cuja árvore genealógica
continha nomes como de alguns daqueles sobre quem pudemos ler
hoje, então certamente não devemos pensar que ele haveria de se
envergonhar por nos chamar “irmãos” e conferir-nos a vida eterna.
A encarnação e o nome de Cristo
Leia Mateus 1.18-25

E sses versículos começam revelando-nos duas grandes


verdades. Eles nos informam como o Senhor Jesus Cristo
assumiu nossa natureza ao se tornar homem. Também nos
informam que seu nascimento foi miraculoso. Sua mãe, Maria, era
virgem.
Esses são assuntos extremamente misteriosos. São
profundezas para as quais não há sondagem que possam medi-las.
São verdades que nenhuma mente humana é abrangente o
bastante para entender. Não procuremos explicar coisas que estão
acima de nossa débil razão. Contentemo-nos em crer com
reverência, sem especular sobre questões que não somos capazes
de entender. Para nós, crentes, é suficiente saber que, para aquele
que criou o mundo, nada é impossível. Antes, devemos satisfazer-
nos com a declaração constante no credo dos apóstolos: “Jesus
Cristo foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu da virgem Maria”.
Observemos a conduta de José, descrita nesses versículos.
Trata-se de um belo exemplo de piedosa sabedoria e de terna
consideração pelo próximo. Ele viu “a aparência de mal” naquela
que estava comprometida a se casar com ele. Entretanto, José nada
fez de precipitado. Esperou pacientemente até perceber como lhe
convinha agir, de acordo com seu dever. Com toda a probabilidade,
ele deixou a questão aos cuidados de Deus, em oração. “Aquele
que crer não foge” (Is 28.16).
A paciência de José foi graciosamente recompensada. Ele
recebeu uma mensagem direta, da parte de Deus, sobre a razão de
sua ansiedade e, de uma vez para sempre, foi aliviado de todos os
seus temores. Quão bom é esperar em Deus! Quem, de todo o
coração, deixou seus temores aos cuidados do Senhor em oração,
para, então, vê-lo falhar? “Reconhece-o em todos os teus caminhos,
e ele endireitará as tuas veredas” (Pv 3.6).
Notemos os dois nomes conferidos a nosso Senhor nesses
versículos. Um deles é Jesus; o outro, Emanuel. O primeiro desses
nomes descreve seu ofício; o segundo, sua natureza. Ambos são
profundamente interessantes.
O nome Jesus significa “Salvador”. Trata-se do mesmo nome
Josué, que aparece no Antigo Testamento. Foi dado a nosso Senhor
porque “ele salvará o seu povo dos pecados deles”. Esse é o ofício
especial do Senhor Jesus. Ele nos salva de nossa culpa do pecado,
lavando-nos a alma em seu próprio sangue expiatório. Ele nos salva
do domínio do pecado ao nos conferir, no próprio coração, o Espírito
santificador. Ele nos salva da presença do pecado quando nos tira
deste mundo para irmos descansar com ele. E, finalmente, ele nos
salva das consequências do pecado ao nos proporcionar um
glorioso corpo ressurreto, no último dia. O povo de Cristo é bendito
e santo! Eles não são salvos das tristezas, da cruz e dos conflitos.
Porém, são salvos do pecado, para todo o sempre. São purificados
da culpa, mediante o sangue de Cristo. São habilitados para o céu
mediante o Espírito de Cristo. Nisso consiste a salvação. Mas
aquele que se apega ao pecado ainda não é salvo.
Jesus é um nome que infunde muita coragem aos que vivem
sobrecarregados de pecados. Aquele que é o Rei dos reis e o
Senhor dos senhores poderia ter-se feito conhecido, com toda a
legitimidade, por algum título mais pomposo. Contudo, não quis
fazê-lo. Os dirigentes deste mundo com frequência têm chamado a
si mesmos por títulos como “grande”, “conquistador”, “herói”,
“magnífico” e outros semelhantes. Mas o Filho de Deus contentou-
se em chamar a si “Salvador”. As almas que desejarem a salvação
podem achegar-se ao Pai, com ousadia, tendo acesso por meio de
Jesus Cristo, com toda a confiança. Esse é seu ofício, e nisso ele se
deleita — mostrar-se misericordioso. “Porquanto Deus enviou o seu
Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o
mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17).
Jesus é um nome peculiarmente doce e precioso para aqueles
que são crentes. Com frequência, esse nome os tem beneficiado,
quando o favor de reis e de príncipes teria sido ouvido por eles com
pouco interesse. Esse nome tem-lhes dado a paz interior que o
dinheiro não pode comprar. Esse nome lhes tem aliviado as
consciências pesadas, conferindo descanso a seus corações
entristecidos. O livro de Cantares refere-se à experiência de muitos
crentes, ao asseverar: “como unguento derramado é o teu nome”
(Ct 1.3). Feliz é a pessoa que confia não meramente em vagas
noções a respeito da misericórdia e da bondade de Deus, mas no
próprio “Jesus”.
O outro nome que aparece nesses versículos não é menos
interessante do que aquele que já destacamos. Esse é o nome
conferido a nosso Senhor em vista de sua natureza, como “Deus
que se manifestou em carne”. Ele é chamado Emanuel, ou seja,
“Deus conosco”. Devemos cuidar para que sejam bem claras as
noções que formamos sobre a natureza e a pessoa de nosso
Senhor Jesus Cristo. Esse é um ponto que se reveste da mais
capital importância. Deveríamos ter bem claro, em nossas mentes,
que nosso Senhor é tão perfeito Deus quanto perfeito homem. Se
chegarmos a perder de vista esse fundamento da verdade,
poderemos cair vítimas de terríveis heresias. O nome “Emanuel”,
pois, é que se reveste de todo o mistério que o circunda. Jesus é o
“Deus conosco”. Ele assumiu a natureza humana igual à nossa, em
todas as coisas, exceto apenas na tendência ao pecado. Mas,
embora Jesus estivesse “conosco” em carne e sangue humanos, ao
mesmo tempo ele nunca deixou de ser o verdadeiro Deus.
Quando lemos os evangelhos, muitas vezes descobrimos que
nosso Senhor era capaz de ficar cansado, de sentir fome e sede,
como também podia chorar, gemer e sentir dor, como qualquer um
de nós. Em tudo isso, podemos ver “o homem” Jesus Cristo.
Percebemos a natureza humana que ele tomou para si mesmo ao
nascer da virgem Maria.
Entretanto, nesses mesmos quatro evangelhos, descobriremos
que nosso Salvador conhecia os corações e os pensamentos dos
homens, exercia autoridade sobre os demônios, podia fazer os mais
espantosos milagres apenas com uma palavra, era servido pelos
anjos, permitiu que um de seus discípulos o chamasse “Deus meu”
e, igualmente, disse: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8.58).
E também: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Em tudo isso, vemos
“o Deus eterno”. Vemos aquele que “é sobre todos, Deus bendito
para todo o sempre. Amém” (Rm 9.5).
Você deseja dispor de um seguro fundamento para sua fé e
esperança? Nesse caso, jamais perca de vista a divindade de seu
Salvador. Aquele em cujo sangue você foi ensinado a confiar é o
Deus Todo-Poderoso. Toda a autoridade foi dada a Jesus Cristo, no
céu e na terra. Ninguém poderá arrancar você da mão dele. Se você
é um verdadeiro crente em Jesus, não permita que seu coração se
perturbe ou atemorize.
Você deseja contar com um doce consolo nas ocasiões de
sofrimento e tribulação? Nesse caso, nunca perca de vista a
humanidade de seu Salvador. Ele é o ser humano Jesus Cristo, que
se deitou nos braços da virgem Maria quando era um pequenino
infante e que conhece os corações humanos. Ele se deixa
sensibilizar pelo senso de nossas fraquezas. Ele experimentou,
pessoalmente, as tentações lançadas por Satanás. Ele precisou
enfrentar a fome. Ele derramou lágrimas. Ele sentiu dor. Confie nele
o tempo todo, em todas as suas aflições. Ele nunca haverá de
desprezá-lo. Derrame diante dele, em oração, tudo que estiver em
seu ser, e nada oculte dele. Ele é capaz de simpatizar
profundamente com seu povo.
Que esses pensamentos se aprofundem em nossas mentes!
Bendigamos a Deus pelas encorajadoras verdades contidas no
primeiro capítulo do Novo Testamento. Esse capítulo nos fala de
alguém que salva “o seu povo dos pecados deles”. Porém, isso
ainda não é tudo. Esse capítulo revela-nos que o Salvador é o
“Emanuel”, o próprio Deus conosco; Deus manifesto em carne
humana, idêntica à nossa. Essas são boas-novas. São autênticas
boas-novas. Alimentemos nossos corações com essas verdades,
por meio da fé, juntamente com ações de graças.
Os sábios do Oriente
Leia Mateus 2.1-12

N inguém sabe dizer quem foram esses “magos”. Seus nomes e


seu país de origem nos foram ocultados. Somos informados
somente de que eles vieram “do Oriente”.
Não sabemos dizer se eles eram caldeus ou árabes. Também
não sabemos dizer se aprenderam a esperar o Cristo, informados
por pessoas das dez tribos de Israel que foram para o cativeiro
assírio, ou por causa das profecias de Daniel. Todavia, pouco
importa saber quem foram eles. A questão que nos interessa mais
são as riquíssimas instruções que recebemos por meio do relato
bíblico sobre eles.
Esses versículos demonstram que pode haver verdadeiros
servos de Deus nos lugares onde menos esperamos encontrá-los. O
Senhor Jesus conta com muitos servos “secretos”, como aqueles
sábios antigos. A história deles sobre a terra talvez seja tão pouco
conhecida quanto a história de Melquisedeque, de Jetro ou de Jó.
Não obstante, seus nomes estão inscritos no Livro da Vida, e eles
serão encontrados na companhia de Jesus Cristo, por ocasião de
seu glorioso retorno. Faríamos bem em não esquecer isso. Não
devemos olhar ao redor da terra para, então, dizermos,
precipitadamente: “Tudo é esterilidade”. A graça divina não se limita
a lugares e a famílias. O Espírito Santo pode conduzir almas aos
pés de Cristo sem a ajuda de muitos meios externos. Os homens
podem nascer em lugares distantes, como sucedeu àqueles sábios;
no entanto, eles podem tornar-se “sábios para a salvação”. Neste
exato instante, existem alguns que estão na jornada para o céu, e a
respeito dos quais a Igreja e o mundo nada sabem. Eles vicejam em
lugares secretos, como os lírios que crescem entre os espinhos e
“desperdiçam a sua fragrância no ar do deserto”. Porém, Cristo os
ama, e eles amam Cristo.
Esses versículos também nos ensinam que nem sempre são
aqueles que desfrutam os maiores privilégios religiosos que mais
honram a Cristo. Poderíamos mesmo pensar que os escribas e os
fariseus estariam entre os primeiros que se apressariam a ir até
Belém, assim que se espalhou o rumor do nascimento do Salvador.
Porém, não foi isso que aconteceu. Alguns poucos estrangeiros,
vindos de alguma terra longínqua, foram os primeiros, se não
quisermos mencionar os pastores referidos por Lucas, a se regozijar
diante do nascimento do menino Jesus. “Veio para o que era seu, e
os seus não o receberam” (Jo 1.11). Quão lamentável retrato da
natureza humana temos aí! Com quanta frequência essa mesma
atitude pode ser vista entre nós mesmos! Com quanta frequência as
próprias pessoas que vivem mais perto dos meios da graça divina
são justamente aquelas que mais os negligenciam! Há uma
profunda verdade contida naquele antigo provérbio, que afirma:
“Quanto mais perto da igreja, mais longe de Deus!”. A familiaridade
com as realidades sagradas reveste-se de uma horrível tendência
que leva os homens a desprezarem-nas. Existem muitas pessoas
que, por razões de residência e de conveniência, deveriam ser as
primeiras e as mais empenhadas na adoração ao Senhor Deus. No
entanto, são sempre as últimas a fazê-lo. Por outro lado, existem
aquelas que esperaríamos que fossem as últimas, mas que são
sempre as primeiras.
Esses versículos nos ensinam que pode haver um
conhecimento meramente intelectual das Escrituras, sem o
acompanhamento da graça divina no coração. Observe como o rei
Herodes indagou dos sacerdotes e dos anciãos dos judeus acerca
de “onde o Cristo deveria nascer”. Note também com que prontidão
eles lhe deram a resposta, mostrando que estavam perfeitamente
familiarizados com o teor das Sagradas Escrituras. Entretanto, eles
mesmos nunca foram a Belém, em busca do Salvador, que estava
prestes a nascer. Também não quiseram acreditar nele quando
começou a ministrar entre o povo. Portanto, seus corações não
estavam tão despertos quanto sua inteligência. Cuidemos para
nunca nos satisfazer somente com um conhecimento mental. Esse
conhecimento é excelente quando usado de forma correta. Não
obstante, uma pessoa pode ser possuidora de um profundo
conhecimento intelectual, mas perecer para sempre. Qual é o
estado de nossos corações? Essa é a questão que realmente
importa. Um pouco de graça é melhor do que muitos dotes, que, por
si sós, não salvam ninguém. Mas a graça divina nos conduz à glória.
A conduta dos magos, descrita neste capítulo, serve-nos de
esplêndido exemplo de diligência espiritual. Quantas
inconveniências e canseiras deve ter-lhes custado a viagem, desde
a sua pátria distante até a casa na qual o menino Jesus foi
encontrado por eles! Quantos quilômetros cansativos devem ter
percorrido! A fadiga das viagens, no antigo Oriente, era muito maior
do que nós, da moderna civilização, podemos compreender. Sem
dúvida, o tempo que se perdia em uma viagem era muito mais
dilatado do que acontece em nossos dias. Os perigos encontrados
não eram poucos, nem pequenos. Nenhuma dessas coisas,
contudo, fez os magos desistirem. Eles resolveram, em seus
corações, que veriam aquele que nascera para ser o “Rei dos
judeus”. E não descansaram até encontrá-lo. Assim, demonstraram
que aquele adágio popular encerra uma grande verdade: “Sempre
que houver boa vontade, será descoberto o caminho”.
Quem dera que todos os crentes professos estivessem mais
dispostos a seguir o bom exemplo dos magos! Onde está nossa
abnegação? De que maneira nos temos preocupado com nossas
próprias almas? Quanta diligência temos mostrado em seguir a
Cristo? O que nos tem custado nossa religião? Essas são
indagações seriíssimas que merecem nossa mais estrita
consideração.
Em último lugar, embora não menos importante, a conduta dos
magos serviu de notável exemplo de fé. Eles confiaram em Cristo,
ainda que nunca o tivessem visto. Mas isso não foi tudo. Creram
nele mesmo depois de os escribas e os fariseus terem demonstrado
sua incredulidade. Porém, nem mesmo isso foi tudo. Confiaram nele
quando o viram como um pequeno menino, nos joelhos de Maria; e
adoraram-no como a um rei. Esse foi o ponto culminante de sua fé.
Não contemplaram qualquer milagre que pudesse convencê-los.
Não ouviram qualquer ensino que tentasse persuadi-los. Não foram
testemunhas de nenhum sinal de divindade ou de grandiosidade
que os deixasse atônitos. A ninguém mais viram senão a um menino
ainda pequeno, fraco e impotente, necessitado dos cuidados
maternos como qualquer um de nós. A despeito disso, quando viram
aquele Menino, creram estar diante do divino Salvador do mundo. E,
“prostrando-se, o adoraram”.
Em todas as Escrituras, não encontramos fé mais robusta do
que a dos magos. Sua fé merece ser considerada no mesmo nível
de fé do ladrão penitente. Este viu a morte de alguém que fora
crucificado como se fosse um malfeitor; mas, a despeito disso,
dirigiu-lhe um apelo, chamando-o “Senhor”. Os magos viram um
menino ainda pequeno, no colo de uma mulher pobre; mas, não
obstante, o adoraram, confessando ser ele o Cristo.
Verdadeiramente bem-aventurados são aqueles que podem confiar
dessa maneira!
Lembremo-nos de que essa é a espécie de fé que Deus
deleita-se em honrar. Podemos encontrar provas disso todos os
dias. Onde quer que a Bíblia Sagrada seja lida, a conduta daqueles
magos torna-se conhecida, sendo relatada em memória deles.
Sigamos suas pegadas de fé. Não nos envergonhemos de confiar
em Jesus e de nos confessar seus seguidores, mesmo que todas as
pessoas ao nosso redor permaneçam na indiferença e na
incredulidade. Não dispomos de mil evidências mais do que os
magos dispuseram para crer que Jesus é o Cristo? Não há dúvida
de que dispomos. No entanto, onde está a nossa fé?
A fuga para o Egito e a residência em Nazaré
Leia Mateus 2.13-23

O bserve, nessa passagem da Bíblia, quão verdadeiro é o fato


de que os governantes deste mundo raramente mostram-se
amigáveis em relação à causa de Deus. O Senhor Jesus desceu do
céu a fim de salvar os pecadores e, logo em seguida, conforme
somos informados, o rei Herodes pôs-se a “procurar o menino para
o matar”.
A grandeza pessoal e as riquezas materiais servem de
perigosa possessão para a alma. Aqueles que as buscam não
sabem o que estão procurando. Essas coisas precipitam os homens
em muitas tentações. Elas são favoráveis para encher o coração
humano de orgulho, agrilhoando as afeições dos homens às coisas
terrenas. “Não foram chamados muitos sábios segundo a carne,
nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento” (1Co
1.26). “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm
riquezas” (Lc 18.24).
Você tem invejado os ricos e os importantes? Você tem dito em
seu coração: “Gostaria de estar no lugar deles, com a posição e as
riquezas que eles possuem”? Cuidado para não ceder diante desse
tipo de sentimento. As próprias riquezas materiais que você tanto
admira podem estar levando seus possuidores, gradualmente, a
afundar no inferno. Um pouco mais de dinheiro poderia decretar sua
ruína. Você poderia acabar caindo em todo excesso de crueldade e
de iniquidades, à semelhança de Herodes. Por isso, “tende cuidado
e guardai-vos de toda e qualquer avareza” (Lc 12.15). “Contentai-
vos com as cousas que tendes” (Hb 13.5).
Por acaso você acredita que a causa de Cristo depende do
poder e do patrocínio dos príncipes? Você está enganado. Eles
raramente têm feito alguma coisa que realmente contribua para o
avanço do cristianismo. Com muito maior frequência, eles se têm
mostrado inimigos da verdade. “Não confieis em príncipes, nem nos
filhos dos homens, em quem não há salvação” (Sl 146.3). Existem
muitas pessoas cujas atitudes se assemelham às de Herodes. São
poucas pessoas como o rei Josias, ou como Eduardo VI da
Inglaterra, que procuraram fomentar a causa da religião.
Observemos como o Senhor Jesus foi um “homem de dores”,
desde a mais tenra infância. As tribulações vinham ao seu encontro
desde que ele entrou neste mundo. Sua vida correu perigo, devido
ao medo e à ira de Herodes. José e a mãe de Jesus tiveram de
levá-lo para bem longe, à noite. Foi assim que eles fugiram “para o
Egito”. Porém, isso serviu somente de tipo e figura simbólica de toda
a experiência de Jesus neste mundo. As ondas de humilhação
começaram a bater contra ele desde que ainda era um bebê que era
amamentado.O Senhor Jesus é precisamente o Salvador de que
necessitam aqueles que padecem e vivem na tristeza. Ele sabe
muito bem o que queremos dizer quando lhe contamos, em oração,
nossas tribulações. Ele é perfeitamente capaz de simpatizar
conosco quando, sofrendo, debaixo de alguma cruel perseguição,
clamamos a ele. Não devemos esconder dele coisa alguma.
Devemos fazer dele um amigo íntimo. Derramemos diante de Jesus
os gemidos de nossos corações. Ele tem grande experiência
pessoal com as aflições.
Observemos como a morte pode remover deste mundo os reis,
como a quaisquer outros homens. Quando soa a hora de sua
partida, os dirigentes de milhões de criaturas humanas não são
capazes de permanecer em vida. O assassino de crianças
impotentes precisa enfrentar a morte. Portanto, José e Maria
acabaram recebendo a notícia de que Herodes já havia falecido.
Imediatamente, regressaram, em segurança, à sua terra natal. Os
crentes verdadeiros nunca deveriam deixar-se perturbar em
demasia diante das perseguições que lhes movem os homens. Os
crentes podem ser fracos, e seus inimigos, poderosos; mas, apesar
disso, não deveriam mostrar-se medrosos. Antes, deveriam
relembrar o fato de que “o júbilo dos perversos é breve, e a alegria
dos ímpios, momentânea” (Jó 20.5). O que sucedeu aos Faraós,
aos Neros e aos Dioclecianos que, em sua época, perseguiram
ferozmente os servos de Deus? Onde estão alguns perseguidores
mais recentes, como a sanguinária Maria I, da Inglaterra, ou Carlos
IX, da França? Esses fizeram o máximo ao seu alcance para lançar
a divina verdade por terra. Mas a verdade tornou a brotar, e continua
vivendo, enquanto os perseguidores estão mortos e seus corpos já
se dissolveram no solo. Por conseguinte, que não desmaie nenhum
coração crente! A morte é uma poderosa niveladora de todos os
homens, podendo retirar qualquer montanha do caminho da Igreja
de Cristo. “O Senhor vive para sempre.” Seus inimigos são meros
homens. A verdade sempre haverá de prevalecer.
Notemos, em último lugar, quão grande lição de humildade nos
é ensinada por meio do lugar no qual o Filho de Deus residiu
quando esteve neste mundo. Ele vivia com sua mãe e com José em
uma cidade chamada “Nazaré”. Nazaré era uma pequena aldeia da
Galileia. Uma localidade obscura e remota, que não é mencionada
no Antigo Testamento nem por uma única vez. Hebrom, Silo,
Gibeom e Betel eram cidades muito mais importantes. Não
obstante, o Senhor Jesus preteriu todas elas, preferindo viver em
Nazaré. Ele fez isso por humildade.
Em Nazaré, o Senhor Jesus habitou por trinta anos. Foi ali que
passou da infância para a meninice e, depois, para a adolescência,
até atingir a idade adulta. Pouco sabemos acerca de como Jesus
passou esses trinta anos. Somos expressamente informados,
entretanto, de que Jesus, ao descer para Nazaré em companhia de
Maria e de José, “era-lhes submisso”. Sabemos também que,
provavelmente, ele trabalhava em companhia de José, na
carpintaria. Tão somente podemos adiantar que cerca de cinco
sextos dos anos que nosso Salvador esteve na terra foram
passados entre os pobres deste mundo, em retiro quase absoluto.
Na verdade, ele fez isso por pura humildade.
Aprendamos a ser sábios, por meio do exemplo deixado por
nosso Salvador. Sempre nos mostramos por demais inclinados a
buscar coisas grandiosas neste mundo. Descontinuemos essa
prática. Obter uma boa posição profissional, um título e uma elevada
posição social não são coisas tão importantes quanto pensa a
maioria das pessoas. De fato, constitui um pecado grave ser
ambicioso, mundano, orgulhoso e dotado de mentalidade carnal.
Todavia, não é pecado ser pobre. Não importa tanto onde residimos,
mas, sim, o que somos aos olhos do Senhor. Para onde iremos
após a morte? Viveremos para sempre nos céus? Essas são as
coisas dotadas de peso real, às quais deveríamos dar atenção.
Acima de tudo, porém, esforcemo-nos por imitar a humildade
demonstrada por nosso Salvador. O orgulho é o mais antigo e o
mais disseminado dos pecados. A humildade é a mais rara e bela
de todas as virtudes. Esforcemo-nos por ser humildes. Nosso
conhecimento pode ser insuficiente. Nossa fé pode ser fraca.
Nossas forças podem ser pequenas. Entretanto, se formos bons
discípulos daquele que veio residir em Nazaré, então, seja como for,
seremos humildes.
O ministério de João Batista
Leia Mateus 3.1-12

E sses doze versículos descrevem o ministério de João Batista, o


precursor de nosso Senhor Jesus Cristo. Esse é um ministério
que merece nossa cuidadosa atenção. Poucos pregadores têm
obtido tão notáveis resultados quanto ele. “Saíam a ter com ele
Jerusalém, toda a Judeia e toda a circunvizinhança do Jordão”,
conforme lemos em Mateus 3.5. Nenhum outro pregador jamais
recebeu tão grandes elogios da parte do Cabeça da Igreja. Jesus
chamou João Batista de “a lâmpada que ardia e alumiava” (Jo 5.35).
O grande Supervisor de nossas almas declarou pessoalmente:
“Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior do que João
Batista” (Mt 11.11). Por conseguinte, estudemos as principais
características do ministério dele.
João Batista falava com clareza a respeito do pecado.
Ensinava a absoluta necessidade de “arrependimento”, antes que
alguém possa ser salvo. Ele anunciava que o arrependimento
precisa ser comprovado por seus “frutos”. Advertia os homens de
que nunca dependessem de meros privilégios externos ou da união
externa com alguma igreja ou religião.
É precisamente esse o ensinamento de que todos carecemos.
Estamos naturalmente mortos, somos cegos e dormimos no tocante
às realidades espirituais. Contentamo-nos com uma religião
meramente formal, lisonjeando-nos a nós mesmos com a ideia de
que, se frequentarmos alguma igreja, seremos salvos. É preciso que
alguém nos diga que, a menos que nos arrependamos e nos
convertamos, todos nós pereceremos.
João Batista também falou com clareza a respeito de nosso
Senhor Jesus Cristo. Ele ensinou ao povo que, em breve, alguém
“mais poderoso” do que ele apareceria. João Batista não passava
de um servo; mas aquele que viria era o próprio Rei. João Batista só
podia batizar “em água”; porém, aquele que viria após João batizaria
“no Espírito Santo e no fogo”; além disso, tiraria pecados e, algum
dia, haveria de voltar para julgar o mundo.
Novamente, esse é o ensinamento do qual a natureza humana
tanto precisa. Precisamos ser enviados diretamente a Jesus Cristo.
No entanto, estamos sempre inclinados a parar muito aquém desse
alvo. Queremos descansar nos vínculos com nossas igrejas locais,
gozando regularmente os benefícios do ministério oficial. No
entanto, deveríamos entender a absoluta necessidade de estarmos
unidos ao próprio Cristo, mediante a fé. Ele é a fonte designada por
Deus; nele encontramos a misericórdia, a graça, a vida e a paz.
Cada um de nós precisa estabelecer um relacionamento pessoal
com ele a respeito de nossa alma. O que sabemos acerca do
Senhor Jesus? O que já obtivemos da parte dele? É de questões
dessa ordem que depende nossa salvação eterna.
João Batista manifestou-se claramente a respeito do Espírito
Santo. Ele pregou, asseverando que existe o batismo no Espírito
Santo. E ensinou que o ofício especial do Senhor Jesus é conferir o
Espírito aos homens. Uma vez mais, esse é um ensinamento de que
precisamos muito. Devemos compreender que o perdão dos
pecados não é a única coisa necessária à salvação da alma. Ainda
há outra coisa: o batismo de nossos corações por parte do Espírito
Santo. Não precisa haver apenas a operação de Cristo em nosso
favor; também deve haver a atuação do Espírito Santo em nós. Não
somente devemos ter o direito de entrar no céu, mediante o sangue
vertido por Cristo; também devemos ser preparados para o céu, por
intermédio da atuação do Espírito de Cristo. Jamais devemos
descansar enquanto não tivermos experimentado algo da
experiência do batismo no Espírito Santo. O batismo em água é um
grande privilégio nosso. Contudo, também devemos procurar
desfrutar o batismo no Espírito Santo.
João Batista falou claramente sobre o tremendo perigo que
correm os impenitentes e os incrédulos. Advertiu os que o ouviam
de que todos deveriam aguardar a “ira vindoura”. Pregou sobre um
“fogo inextinguível”, no qual a palha, algum dia, ficará queimando
eternamente.
Mais uma vez, esse é um ensino bíblico extremamente
importante. Todos nós precisamos ser claramente advertidos de que
essa não é uma questão destituída de importância, como se
pudéssemos arrepender-nos ou não. Pelo contrário, precisamos
relembrar que existem tanto o inferno como o céu, e que a punição
eterna espera pelos ímpios, da mesma maneira que a vida eterna
destina-se aos piedosos. Somos incrivelmente inclinados a nos
esquecer disso. Falamos sobre o amor e a misericórdia de Deus,
mas não destacamos suficientemente sua justiça e santidade.
Devemos usar de grande cautela quanto a esse particular. Não
constitui gentileza autêntica disfarçar, diante das outras pessoas, os
terrores do Senhor. É bom que todos nós saibamos que é possível
às pessoas perderem-se eternamente, e que todos os que não
querem converter-se estão à beira do abismo.
Por último, João Batista referiu-se claramente à segurança
desfrutada pelos crentes autênticos. Ele ensinou que existe um
celeiro no qual serão recolhidos todos aqueles que pertencem a
Jesus Cristo, como seu trigo, e que esses serão reunidos ali quando
o Senhor Jesus vier pela segunda vez.
De novo, esse é um ensino do qual a natureza humana precisa
desesperadamente. Os melhores crentes carecem de muito
encorajamento. Eles continuam vivendo em seu corpo. Vivem em
um mundo caracterizado pela impiedade. Com frequência, são
tentados pelo diabo. De vez em quando, é preciso que a memória
deles seja despertada para o fato de que Jesus nunca os deixará,
nem os abandonará. Ele haverá de conduzi-los, com toda a
segurança, nesta vida, e, finalmente, haverá de encaminhá-los à
glória eterna. Eles serão protegidos no dia da ira do Senhor. Estarão
tão seguros quanto Noé esteve na arca.
Que todas essas verdades lancem profundas raízes em nossos
corações! Vivemos em uma época em que os falsos ensinos vêm à
tona por todos os lados. Nunca nos deveríamos esquecer das
principais características de um ministério evangélico fiel. Quão
grande seria a felicidade da Igreja de Cristo se todos os seus
ministros se parecessem mais com João Batista!
O batismo de Cristo
Leia Mateus 3.13-17

T emos aqui a narrativa do batismo de nosso Senhor Jesus


Cristo. Esse foi o primeiro passo dado por Jesus quando iniciou
seu ministério terreno. Quando um sacerdote judeu começava a
oficiar, com a idade de trinta anos, lavava-se com água. Quando
nosso grande Sumo Sacerdote iniciou a grandiosa obra que veio
realizar neste mundo, foi publicamente batizado.
Nesses versículos, devemos aprender a considerar com
reverência a ordenança cristã do batismo. Uma ordenança da qual o
próprio Senhor Jesus participou não pode ser tida como algo de
pouca importância. Uma ordenança à qual o grande Cabeça da
Igreja submeteu-se sempre deveria ser honorável aos olhos dos
crentes verdadeiros.Poucos pormenores da religião cristã têm sido
alvo de tantas interpretações distorcidas quanto o batismo. Poucos
desses detalhes têm requerido tanta defesa e tanto esclarecimento.
Armemo-nos, portanto, com duas precauções de natureza geral.
De um lado, tenhamos o cuidado de não atribuir à água do
batismo valor supersticioso. Não podemos supor que a água do
batismo opere como se fosse um encantamento. Não podemos
esperar que todas as pessoas que são batizadas recebam
automaticamente a graça de Deus no momento de seu batismo.
Afirmar que todos que recebem o batismo obtêm um benefício
idêntico e do mesmo nível, não importando nem um pouco se
recebem a cerimônia com fé e oração ou no mais completo
desinteresse, sim, afirmar tais coisas é contradizer as mais
evidentes lições das Escrituras.
Por outro lado, devemos ter o cuidado de não desonrar a
ordenança do batismo. O batismo cristão é desonrado quando o
tiramos de cena, não permitindo que se evidencie na congregação
local. Uma ordenança que foi determinada pelo próprio Cristo não
pode ser tratada dessa maneira. A admissão de todos os novos
membros à igreja visível, quer jovens, quer adultos, é um
acontecimento que deveria suscitar vívido interesse em qualquer
assembleia evangélica. Esse é um evento que deveria invocar as
mais fervorosas orações da parte de todos os crentes dedicados à
oração. Quanto mais profundamente convictos ficarmos de que o
batismo e a graça divina nem sempre estão ligados um ao outro,
mais nos sentiremos impulsionados a orar coletivamente em favor
de todos aqueles que forem batizados.
O ato do batismo de nosso Senhor Jesus Cristo foi
acompanhado por circunstâncias que se revestiram de uma
solenidade bastante peculiar. Um batismo como o dele jamais
voltará a ocorrer, por mais que dure este mundo. Lemos nas
Escrituras acerca da presença de todas as três Pessoas da bendita
Trindade. Deus Filho, tendo-se manifestado em carne humana, foi
batizado. Deus Espírito Santo desceu na cena sob a forma corpórea
de uma pomba, adejando sobre Jesus. E Deus Pai falou do céu,
com voz audível. Em suma, encontramos ali a manifestação ou a
presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Sem dúvida,
deveríamos considerar esse fato um anúncio público de que a obra
de Jesus Cristo resultava do conselho eterno de todas as três
Pessoas divinas. Foram essas três Pessoas que, no começo da
Criação, disseram: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme
a nossa semelhança” (Gn 1.26). Novamente, foi a Trindade inteira
que, no início do evangelho, pareceu dizer: “Salvemos o homem”.
Lemos que se fez ouvir “uma voz dos céus” por ocasião do
batismo de nosso Senhor. Essa foi uma circunstância que se
revestiu de singular solenidade. Nenhuma outra voz do céu jamais
se fizera ouvir antes disso, exceto por ocasião da transmissão da lei
mosaica, no monte Sinai. Ambas essas ocasiões foram marcadas
por uma importância ímpar. Por conseguinte, pareceu conveniente,
ao nosso Pai celestial, assinalar ambas essas oportunidades com
uma honra toda peculiar. Tanto na introdução da lei como na
introdução do evangelho, o próprio Deus Pai falou.
Quão notáveis e profundamente instrutivas são as palavras de
Deus Pai! “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.” Por
meio dessas palavras, ele declarou que Jesus é o divino Salvador,
selado e nomeado para isso desde toda a eternidade, a fim de
realizar a obra da redenção. Ele proclamou que aceitava Jesus
como o único Mediador entre Deus e os homens. O Pai parecia
estar publicando ao mundo que estava satisfeito com Cristo como a
propiciação por nossos pecados, como nosso Substituto, como
aquele que pagaria o preço do resgate pela família condenada de
Adão e como o Cabeça de um povo remido. Em Cristo, Deus Pai via
sua santa lei magnificada e honrada. Por meio dele, Deus pode ser
“justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).
Convém refletirmos cuidadosamente sobre essas palavras!
Elas podem enriquecer extraordinariamente nossos pensamentos.
São palavras que transbordam de paz, alegria, consolo e
encorajamento para todos aqueles que se refugiam no Senhor
Jesus Cristo, entregando-lhe suas almas para a salvação. Esses
podem regozijar-se no pensamento de que, embora continuem
pecadores em si mesmos, aos olhos de Deus são considerados
justos. Deus Pai considera todos eles membros de seu Filho amado.
Não percebe neles qualquer mácula e, por causa de seu Filho, fica
satisfeito (2Pe 1.17).
A tentação
Leia Mateus 4.1-11

A pós o batismo de Jesus, o primeiro evento a ser registrado pelo


apóstolo Mateus, na vida do Senhor, foi a tentação. Trata-se de
um assunto profundo e envolto em mistério. No relato bíblico a esse
respeito, há muita coisa que não sabemos esclarecer. No entanto,
na superfície da narrativa, existem lições práticas perfeitamente
claras, às quais deveríamos prestar atenção.
Em primeiro lugar, aprendamos que temos, no diabo, um
inimigo real e poderoso. Ele não temeu desferir seus ataques nem
mesmo contra o próprio Senhor Jesus. Por três vezes consecutivas,
ele tentou o próprio Filho de Deus. Nosso Salvador foi conduzido ao
deserto com o propósito de ser “tentado pelo diabo”.
Foi por intermédio do diabo que o pecado entrou no mundo, no
começo da história da humanidade. Foi o diabo que oprimiu Jó,
enganou Davi e fez Pedro cair em perigoso pecado. A Bíblia intitula
o diabo de “homicida”, “mentiroso” e “leão que ruge”. Aquele que é o
adversário de nossas almas nunca dorme nem cochila. É ele que,
por cerca de seis mil anos, vem realizando uma única obra nefanda:
arruinar homens e mulheres, lançando-os no inferno. Ele é um ser
cujas sutileza e astúcia ultrapassam toda a compreensão humana,
de tal maneira que, com frequência, parece ser um “anjo de luz”
(2Co 11.14).Cumpre-nos vigiar e orar diariamente acerca dos
perversos estratagemas do diabo. Não existe inimigo pior do que
aquele que nunca pode ser visto e que nunca morre; que está
sempre perto de nós, onde quer que nos encontremos, e que vai
conosco aonde quer que formos. Também não é coisa de pouca
importância a maneira leviana e até humorística com que os
homens se referem, de forma geral, ao diabo. Lembremo-nos a
cada dia que, se quisermos ser salvos, não somente teremos de
crucificar a carne e vencer o mundo, como também teremos de
fazer conforme as Escrituras nos recomendam: “resisti ao diabo” (Tg
4.7).
Em seguida, aprendamos que não devemos enfrentar a
tentação como se fosse uma coisa estranha. “Não é o servo maior
do que seu senhor” (Jo 15.20). Se Satanás atacou o próprio Jesus
Cristo, então, sem dúvida, também atacará os crentes. Como seria
bom, para todos os crentes, se eles se lembrassem dessa realidade.
No entanto, frequentemente tendemos a esquecer isso. Com
frequência, os crentes detectam maus pensamentos em suas
mentes que eles poderiam afirmar que odeiam. Dúvidas, indagações
e uma pecaminosa imaginação são coisas que lhes são sugeridas,
contra o que todo o seu homem interior se revolta. Não devem
permitir, contudo, que essas coisas destruam sua paz e os furtem de
suas consolações. É necessário lembrar que o diabo existe, e não
deveriam surpreender-se ao descobrir que ele está sempre bem
perto deles. Ser vítima das tentações ainda não é incorrer em
pecado. Pecamos somente quando cedemos diante das tentações,
dando lugar ao pecado em nossos corações, algo que muito
deveríamos temer.
Convém aprendermos, em seguida, que a principal arma que
devemos usar para resistir a Satanás é a Bíblia. Por nada menos de
três vezes o grande adversário de nossas almas apresentou
tentações diante de nosso Senhor. Por três vezes, o oferecimento
diabólico foi repelido, sempre mediante o emprego de algum texto
bíblico como motivação: “Está escrito”. Essa é apenas uma das
muitas razões para sermos leitores diligentes das Sagradas
Escrituras. A Palavra de Deus é a espada do Espírito (Ef 6.17).
Jamais estaremos combatendo, como convém ao crente, enquanto
não estivermos usando a Bíblia como nossa principal arma de
ataque e defesa. A Palavra de Deus também é lâmpada para
nossos pés. Jamais nos conservaremos no elevado caminho do Rei,
que leva ao céu, se não estivermos andando iluminados por essa
luz. Com toda a razão, podemos temer que, entre os crentes, a
Bíblia não é lida de modo suficiente. Não basta possuirmos as
Escrituras. É necessário lê-las e orar a respeito de nós mesmos. A
Bíblia não nos fará bem algum se tão somente ficar guardada em
nossos lares. Antes, precisamos estar familiarizados com o
conteúdo das Escrituras, com seu texto armazenado em nossa
mente e em nossa memória. O conhecimento bíblico nunca pode
ser adquirido por mera intuição. Tal conhecimento só pode ser
adquirido mediante a leitura regular, trabalhosa, diária, atenta e
desperta. Queixamo-nos do tempo e do trabalho que isso nos
custa? Se assim estivermos fazendo, então será sinal de que ainda
não estamos aptos ao reino de Deus.
Em último lugar, devemos aprender quanto nosso Senhor
Jesus Cristo é um Salvador que simpatiza conosco. “Pois naquilo
que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer
os que são tentados” (Hb 2.18).
A simpatia de Jesus por nós é uma verdade que deveria ser
particularmente valorizada por todos os crentes. Eles poderão
descobrir que essa é uma verdade que serve de fonte de poderosas
consolações. Nunca deveriam esquecer-se de que eles contam com
um poderoso Amigo nos céus, o qual simpatiza com eles em todas
as tentações e provações pelas quais tiverem de passar. Ele sente,
juntamente com eles, suas ansiedades espirituais. Os crentes são
tentados por Satanás a desconfiar da bondade e dos cuidados de
Deus por eles? Jesus também foi tentado desse modo. São
tentados à presunção, em relação à misericórdia divina, arriscando-
se desnecessariamente e sem garantias? Assim também Jesus foi
tentado. São tentados a cometer algum grande pecado específico,
como se isso lhes oferecesse alguma vantagem? Essa também foi
uma das tentações que acometeram Jesus Cristo. São tentados a
fazer alguma aplicação errônea das Escrituras, como justificativa
para a prática do mal? Outro tanto sucedeu a Jesus. Ele é
exatamente o Salvador do qual aqueles que são tentados precisam.
Por conseguinte, os crentes devem refugiar-se no Senhor, pedindo-
lhe ajuda e expondo, diante dele, todas as suas dificuldades. Então,
haverão de descobrir que ele está sempre preparado a simpatizar
com eles. Jesus pode entender todas as suas tristezas.
Seria bom se todos nós reconhecêssemos, em nossa própria
experiência diária, quanto vale um Salvador cheio de simpatia! Não
há nada que se lhe possa comparar, neste nosso mundo frio e
enganador. Aqueles que buscam encontrar a felicidade neste mundo
e desprezam a religião revelada nas Escrituras não fazem a mínima
ideia do verdadeiro consolo que estão perdendo.
Começo do ministério de Cristo e a chamada dos
primeiros discípulos
Leia Mateus 4.12-25

N esses versículos, encontramos o começo do ministério de


nosso Senhor entre os homens. Ele dá início aos seus labores
entre uma população ignorante e obscurecida. Ele escolhe os
homens que serão seus companheiros e discípulos, confirmando
seu ministério por meio de milagres, os quais chamam a atenção de
“toda a Síria” e atraem grandes multidões para ouvi-lo.
Observemos a maneira como nosso Senhor deu início à sua
poderosa realização: “passou Jesus a pregar”. Não existe outra
atividade tão honrada quanto a de um pregador. Não há trabalho
humano tão importante para as almas dos homens. Esse é um ofício
do qual o próprio Filho de Deus não se envergonhou. Por meio
desse ofício, ele selecionou seus doze apóstolos. Foi um ofício que
o apóstolo Paulo, já idoso, recomendou de maneira especial a
Timóteo, quase em seu último alento: “Prega a palavra, insta, quer
seja oportuno, quer não” (2Tm 4.2). Acima de qualquer outro, esse é
o instrumento que Deus se agrada em usar na conversão e na
edificação das almas humanas. Os dias mais resplandecentes da
Igreja de Cristo sempre foram aqueles em que a pregação do
evangelho foi mais honrada. Por outro lado, os dias mais negros da
Igreja sempre têm sido aqueles em que a prédica foi desvalorizada.
Honremos as ordenanças e as orações públicas nas igrejas
locais e recorramos, reverentemente, a esses meios da graça
divina. Porém, cuidemos em nunca permitir que essas práticas
venham a tomar o lugar que pertence à pregação do evangelho.
Prestemos atenção à primeira doutrina que o Senhor Jesus
proclamou ao mundo. Ele começou afirmando: “Arrependei-vos”. A
necessidade de arrependimento é um dos grandes fundamentos do
cristianismo. É necessário pregarmos que toda a humanidade, sem
exceção, se arrependa. Importantes ou não, ricos ou pobres, todos
os homens têm caído em pecado e são culpados diante de Deus.
Todos precisam arrepender-se e converter-se se porventura
quiserem ser salvos. O verdadeiro arrependimento não é uma
questão superficial. Antes, envolve a completa mudança do coração
no que concerne ao pecado, uma transformação que se demonstra
mediante santa contrição e humilhação, com a confissão sincera
dos pecados, diante do trono da graça, e a quebra total dos hábitos
pecaminosos, bem como do ódio permanente por todo pecado. Tal
arrependimento é o acompanhante inseparável da fé salvadora em
Jesus Cristo. Devemos valorizar grandemente essa doutrina. Ela se
reveste de grande importância. Nenhum ensino cristão pode ser
considerado sadio se não puser sempre em evidência “o
arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus
Cristo” (At 20.21).
Observemos também a classe de homens a quem o Senhor
Jesus escolheu para ser seus discípulos. Eles pertenciam às
camadas mais pobres e humildes da sociedade. Pedro, André,
Tiago e João eram todos “pescadores”. A religião de nosso Senhor
Jesus Cristo não visava somente aos ricos e cultos; destinava-se ao
mundo todo, e a maior parte da humanidade sempre será pobre. A
pobreza e a ignorância literária excluíam milhares de pessoas da
atenção dos orgulhosos filósofos do mundo pagão. Mas isso não
impede ninguém de ocupar até mesmo os mais altos escalões do
ministério cristão. Certo homem é humilde? Ele sente o peso de
seus pecados? Ele está disposto a ouvir a voz de Cristo e segui-lo?
Nesse caso, ele pode ser o mais pobre dos pobres, mas, no reino
dos céus, haverá de ocupar uma posição tão importante quanto
qualquer outra pessoa. O intelecto e o dinheiro de nada valem sem
a graça de Deus.
A religião de Cristo deve ter tido sua origem no céu. Do
contrário, nunca teria prosperado e se propagado por toda a terra,
conforme tem sucedido. É inútil os incrédulos tentarem retrucar esse
argumento. Ele não pode ser contestado. Uma religião que não
lisonjeia os ricos, os grandes e os bem instruídos, uma religião que
não dá margem às inclinações carnais do coração humano, uma
religião cujos primeiros mestres foram pobres pescadores,
destituídos de riquezas materiais, posição social ou poder, uma
religião como essa jamais teria transformado o mundo se não
procedesse de Deus. Por um lado, contemplamos os imperadores
romanos e os sacerdotes do paganismo, com seus esplêndidos
santuários! Por outro lado, vemos alguns poucos trabalhadores
braçais, cristãos, sem grande instrução formal, mas anunciando o
evangelho! Acaso já houve outros dois grupos tão diferentes entre
si? Os que eram fracos mostraram-se fortes; e os que eram fortes
mostraram-se fracos. O paganismo ruiu, e o cristianismo assumiu
seu lugar. Portanto, o cristianismo deve proceder de Deus.
Em último lugar, observemos o caráter geral dos milagres por
meio dos quais nosso Senhor confirmou sua missão. Nessa
passagem bíblica, esses milagres são vistos em geral. Porém, um
pouco mais adiante, haveremos de vê-los descritos em particular.
Mas qual é o caráter desses milagres? Eles foram alicerçados na
misericórdia e na bondade. Nosso Senhor “percorria [...] toda a
Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e
curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo”. Esses
milagres tiveram o propósito de nos ensinar quão poderoso é nosso
Senhor. Aquele que era capaz de curar enfermos com um simples
toque de mão e expelir demônios com uma palavra também é
poderoso para “salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus”
(Hb 7.25). Sim, ele é o Todo-Poderoso. Esses milagres têm,
igualmente, a finalidade de servir de símbolos ou emblemas da
habilidade de nosso Senhor como médico espiritual. Aquele diante
de quem nenhuma enfermidade física mostrou-se incurável é
poderoso para curar cada um dos males que afligem nossas almas.
Não há coração partido que ele não saiba sarar. Não há ferida de
consciência que ele não possa fazer cicatrizar. Todos nós somos
indivíduos caídos, esmagados, despedaçados e atingidos por
alguma praga, por causa do pecado. Mas Jesus, por meio de seu
sangue e Espírito, pode curar-nos inteiramente. Tão somente
devemos ir até ele. Esses milagres também têm o propósito de nos
mostrar o coração de Jesus, o Salvador, extremamente compassivo.
Ele não rejeitava ninguém que viesse até ele. Ele nunca rejeitou
quem quer que fosse, por mais enfermo ou repugnante que
estivesse. Seus ouvidos estavam sempre dispostos a dar atenção a
todos, e ele estava sempre pronto a ajudar a todos com um coração
terno. Não existe bondade que se possa comparar à sua.
A compaixão de Jesus jamais falhará. Nunca nos deveríamos
esquecer de que Jesus Cristo “ontem e hoje é o mesmo, e o será
para sempre” (Hb 13.8)! Exaltado nos céus, à mão direita de Deus
Pai, em coisa alguma ele se modificou. Ele continua perfeitamente
capaz de salvar, igualmente disposto a nos acolher e da mesma
maneira preparado para nos ajudar, tal como fazia vinte séculos
atrás. Naqueles dias, teríamos colocado nossas petições diante
dele? Façamos a mesma coisa hoje. Ele pode curar “toda sorte de
doenças e enfermidades”.
As bem-aventuranças
Leia Mateus 5.1-12

O s três capítulos que têm início com esses versículos merecem


especial atenção da parte de todos os estudiosos da Bíblia.
Esses capítulos contêm o que, em geral, chama-se “Sermão da
Montanha”. Cada palavra do Senhor Jesus deveria ser reputada
como preciosa por aqueles que se dizem crentes. É a voz de nosso
supremo Pastor, a palavra do grande Superintendente e Cabeça da
Igreja. É o Senhor quem está falando. É a palavra daquele que
falava como ninguém jamais falou, a voz daquele por meio de quem
seremos julgados no último dia. Queremos saber que tipo de pessoa
deveria ser o crente? Queremos saber que caráter cristão deveria
ser nosso alvo?
Gostaríamos de saber qual conduta e quais hábitos mentais
deveríamos cultivar como seguidores de Jesus? Nesse caso,
estudemos com frequência o Sermão da Montanha. Meditemos
constantemente sobre as sentenças de Cristo, e submetamo-nos à
prova de acordo com elas. Não devemos deixar de considerar a
quem o Senhor Jesus chamou “bem-aventurados” no começo do
sermão. Aqueles que são abençoados pelo nosso Sumo Sacerdote
são verdadeiramente benditos.
Jesus chamou bem-aventurados aos humildes de espírito.
Referia-se aos humildes, modestos quanto a seu autoconceito,
autorrebaixados. Apontava para os que estão profundamente
convictos de sua própria pecaminosidade diante de Deus. Aqueles
que não “são sábios aos seus próprios olhos, e prudentes em seu
próprio conceito” (Is 5.21). Esses não se consideram “ricos e
abastados” (Ap 3.17); não ficam fantasiando que não precisam de
nada. Antes, consideram-se infelizes, miseráveis, pobres, cegos e
nus. Todos esses são bem-aventurados! No alfabeto do
cristianismo, a humildade é a primeira letra. Devemos começar bem
por baixo, se quisermos atingir grandes alturas espirituais.
O Senhor Jesus também chamou bem-aventurados àqueles
que choram. Com isso, ele quis dar a entender aqueles que se
entristecem por causa do pecado, e que também se lamentam
diariamente por causa de suas próprias falhas. São esses que se
preocupam mais com o pecado do que com qualquer outra coisa na
face da terra. A memória dessas coisas os deixa profundamente
tristes. Tal carga lhes parece intolerável. Bem-aventurados são
todos esses. “Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito
quebrantado; a um coração compungido e contrito, não o
desprezarás, ó Deus” (Sl 51.17). Algum dia, eles não mais
derramarão lágrimas, “porque serão consolados”.
O Senhor Jesus também chama bem-aventurados aos mansos.
Ele tinha em mente aqueles cujo espírito é paciente e satisfeito,
aqueles que se dispõem a ter pouca honra neste mundo e que são
capazes de sofrer injustiças sem guardar ressentimentos. Os que
dificilmente se deixam irritar. Como Lázaro na parábola, eles estão
contentes em esperar pelas boas coisas que Deus tem para dar.
Bem-aventurados são todos esses! No longo prazo, eles nunca são
os perdedores. Chegará o dia em que “reinarão sobre a terra” (Ap
5.10).
O Senhor Jesus chama de bem-aventurados os que têm fome
e sede de justiça, os que desejam, acima de tudo, ajustar-se à
mente do Senhor. Eles anelam não tanto por se tornar ricos,
poderosos ou eruditos, mas por ser santos. Bem-aventurados são
todos esses! Um dia terão o suficiente do que desejam. Um dia
acordarão revestidos à semelhança de Deus e serão satisfeitos (Sl
17.15).
Jesus chama de bem-aventurados os misericordiosos, os que
se mostram compassivos para com seus semelhantes. Eles têm
compaixão de todos que sofrem, seja pelo pecado, seja pelas
adversidades, e desejam ternamente suavizar tais sofrimentos.
Praticam boas obras e esforçam-se para fazer o bem. Bem-
aventurados são todos esses! Tanto nesta vida como na vindoura,
terão uma rica colheita.
O Senhor Jesus também considerou bem-aventurados os que
são limpos de coração. Ao assim dizer, ele pensava naqueles que
não almejam apenas ter uma conduta externa correta, mas, sim, a
santidade interior. Esses não se satisfazem com a mera exibição
externa de religiosidade. Antes, esforçam-se para manter o coração
e a consciência isentos de ofensa, desejando servir a Deus com o
espírito e com o homem interior. Bem-aventurados são todos esses!
O coração é o próprio homem. “O homem vê o exterior, porém o
Senhor, o coração” (1Sm 16.7). Quanto mais a mente estiver voltada
às coisas espirituais, maior comunhão terá o homem com Deus.
O Senhor Jesus chama bem-aventurados aos pacificadores, ou
seja, aqueles que exercem sua influência pessoal a fim de promover
a paz e o amor; tanto em particular como em público, em casa ou no
estrangeiro. São os que se esforçam para que todos os homens se
amem mutuamente, ensinando aquele evangelho que diz: “o
cumprimento da lei é o amor” (Rm 13.10). Bem-aventurados são
todos esses, pois estão realizando a mesma obra que o Filho de
Deus iniciou quando veio à terra pela primeira vez, e que terminará
em sua segunda vinda.
Por fim, o Senhor Jesus chama bem-aventurados aos
perseguidos por causa da justiça, aos que são alvo de zombaria e
risos, aos desprezados e àqueles que sofrem abuso somente
porque se esforçam para viver como verdadeiros crentes. Bem-
aventurados são todos esses! Eles bebem do mesmo cálice do qual
o Mestre bebeu. Eles o estão confessando perante os homens, e
ele, por sua vez, haverá de confessá-los perante Deus Pai e os
anjos no último dia. “É grande o vosso galardão nos céus.”
Essas são as oito pedras fundamentais que o Senhor Jesus
lançou, logo no começo de seu Sermão da Montanha. Oito grandes
verdades, oito grandes testes foram colocados diante de nós.
Marquemos bem cada um deles e, assim, aprenderemos a
sabedoria!
Aprendamos quão inteiramente contrários aos princípios deste
mundo são os princípios ensinados por Cristo. É inútil tentar negar
esse fato. São princípios diametralmente opostos entre si. O mundo
menospreza as próprias virtudes que nosso Senhor Jesus exaltou.
Orgulho, falta de consideração, espírito de exaltação, mundanismo,
formalismo, egoísmo e falta de amor, que proliferam neste mundo
por toda a parte, são coisas que o Senhor Jesus condenou.
Aprendamos, da mesma forma, quão tristemente diferentes da
vida prática de muitos “cristãos” professos são os ensinos de Jesus
Cristo. Onde encontraremos, entre os que frequentam os cultos nas
igrejas locais, homens e mulheres que se esforcem para viver
segundo os padrões acerca dos quais acabamos de ler?
Infelizmente, existem muitas razões para temer que um grande
número de pessoas batizadas seja totalmente ignorante acerca do
que o Novo Testamento contém!
Acima de tudo, aprendamos quão santos e espirituais todos os
crentes deveriam ser. Jamais deveriam ter como alvo qualquer
padrão inferior ao do Sermão da Montanha. O cristianismo é
eminentemente uma religião prática. A sã doutrina é sua raiz e seu
fundamento, mas seu fluxo deveria sempre ser uma vida santa. E,
se quisermos saber o que é uma vida santa, consideremos então,
com frequência, quem são aqueles a quem Jesus chamou “bem-
aventurados”.
O caráter dos verdadeiros crentes; o ensino de
Cristo e o Antigo Testamento
Leia Mateus 5.13-20

N esses versículos, o Senhor Jesus aborda dois assuntos. Um


deles é o caráter que os verdadeiros crentes precisam
defender e manter neste mundo. O outro é a relação entre as
doutrinas que ele ensinava e os ensinos do Antigo Testamento. É
muito importante termos uma visão bem clara sobre ambos os
assuntos.
Neste mundo, os verdadeiros cristãos devem ser como o sal.
Ora, o sal tem um sabor bem peculiar, diferente de qualquer outra
coisa. Quando misturado com outras substâncias, preserva da
corrupção. O sal transmite um pouco de seu sabor a tudo com que é
misturado. Só é útil enquanto preserva o sabor; do contrário, para
nada mais serve. Somos crentes verdadeiros? Atentemos para
nossa posição e nossos deveres neste mundo!
Os verdadeiros crentes devem viver como luzes neste mundo.
A propriedade da luz é ser totalmente diferente das trevas. A menor
centelha em uma sala escura pode ser vista prontamente. Dentre
todas as coisas criadas, a luz é a mais útil. A luz fertiliza o solo. A
luz guia. A luz reanima. A luz foi a primeira coisa que Deus trouxe à
existência. Sem a luz, este mundo seria um vazio obscuro. Somos
crentes verdadeiros? Nesse caso, consideremos novamente a
nossa posição e as nossas responsabilidades!
Se essas palavras têm algum significado, então, certamente,
Jesus tenciona nos ensinar, com essas duas figuras, sal e luz, que
precisa haver algo notório, distintivo e peculiar a respeito do nosso
caráter, se somos verdadeiros cristãos. Se desejamos ser
reconhecidos como pertencentes a Cristo, como o povo de Deus,
jamais poderemos passar a vida desocupados, pensando e vivendo
como fazem as demais pessoas neste mundo. Temos a graça
divina? Então ela precisa ser vista. Temos o Espírito Santo? Então
deve haver o fruto. Temos uma religião salvadora? Então, deve
haver uma diferença de hábitos e preferências, bem como uma
mentalidade diferente entre nós e aqueles que pensam segundo o
mundo. É perfeitamente claro que o cristianismo verdadeiro envolve
algo mais do que ser batizado e ir à igreja. “Sal” e “luz”,
evidentemente, implicam uma peculiaridade, tanto no coração como
na vida diária, tanto na fé como na prática. Se nos consideramos
salvos, devemos ousar ser singulares e diferentes da humanidade
em geral.
A relação entre o ensino de nosso Senhor e o ensino do Antigo
Testamento foi esclarecida por Jesus mediante uma sentença
incisiva: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim
para revogar, vim para cumprir”. Essas são palavras dignas de nota.
Elas foram muito importantes quando proferidas, porquanto davam
resposta à ansiedade natural dos judeus quanto a esse assunto.
São palavras que continuarão a ser extremamente importantes,
enquanto este mundo continuar, como um testemunho de que a
religião do Antigo Testamento e do Novo Testamento forma um todo
harmônico.
O Senhor Jesus veio a este mundo a fim de cumprir as
predições dos profetas, os quais, desde os tempos antigos, haviam
profetizado que, um dia, viria ao mundo um Salvador. E ele veio
para cumprir a lei cerimonial, tornando-se o grande sacrifício pelo
pecado, para o qual todas as oferendas da lei mosaica tinham
sempre apontado. Ele veio para cumprir a lei moral, prestando-lhe
obediência perfeita, o que nós mesmos jamais poderíamos ter feito.
Ele também cumpriu a lei pagando com seu sangue reconciliador a
penalidade por nossa quebra da lei, uma penalidade que nós jamais
poderíamos ter pago. De todas essas maneiras, ele exaltou a lei de
Deus, e tornou sua importância ainda mais evidente. Em suma, ele
engrandeceu a lei e a fez gloriosa (Is 42.21).
Existem profundas lições de sabedoria a serem aprendidas por
meio dessas palavras de nosso Senhor. Portanto, meditemos
cuidadosamente sobre elas, entesourando-as em nosso coração.
Tomemos cuidado para não desprezar o Antigo Testamento,
sob pretexto algum. Nunca devemos dar ouvidos àqueles que
recomendam pôr de lado o Antigo Testamento, como se fosse um
livro antiquado, obsoleto e inútil. A religião do Antigo Testamento é
um embrião do cristianismo. O Antigo Testamento é o evangelho em
botão; o Novo Testamento é o evangelho aberto em flor. O Antigo
Testamento é o evangelho brotando; o Novo Testamento é o
evangelho já em espiga formada. Os santos do Antigo Testamento
enxergaram muitas coisas como que por um espelho,
obscuramente. Porém, todos contemplavam pela fé o mesmo
Salvador, e foram guiados pelo mesmo Espírito Santo que hoje nos
guia. Essas não são questões de pouca importância. O ignorante
desprezo pelo Antigo Testamento dá origem a muita infidelidade.
Também devemos acautelar-nos em não desprezar a Lei dos
Dez Mandamentos. Nem por um instante sequer suponhamos que
essa lei foi posta de lado pelo evangelho, ou que os crentes nada
têm a ver com ela. A vinda de Cristo em nada alterou a posição dos
Dez Mandamentos, nem mesmo a largura de um fio de cabelo. O
que ela fez foi exaltar e destacar sua autoridade (Rm 3.31). A Lei
dos Dez Mandamentos é a medida eterna de Deus para o que é
certo e o que é errado. Por meio da lei, vem o conhecimento pleno
do pecado. Pela lei é que o Espírito mostra aos homens sua
necessidade de Cristo e os leva até ele.
Cristo deixou ao seu povo a Lei dos Dez Mandamentos como
norma e guia para uma vida santa. Em seu devido lugar, a Lei dos
Dez Mandamentos é tão importante quanto o “glorioso evangelho”.
A lei não pode salvar-nos. Não podemos ser justificados por ela.
Porém, jamais a desprezemos. O menosprezo pela Lei dos Dez
Mandamentos é um sintoma de ignorância e insanidade em nossa
religião. O verdadeiro crente tem “prazer na lei de Deus” (Rm 7.22).
Em último lugar, cuidemos em não supor que o evangelho
tenha rebaixado o padrão de santidade pessoal, ou que o cristão
não deva ser tão estrito e cuidadoso em sua conduta diária quanto o
eram os judeus. Esse é um engano terrível, mas que, infelizmente, é
muito comum.
Bem ao contrário, os santos do Novo Testamento deveriam
exceder em santidade os santos dos tempos antigos, pois estes só
tinham o Antigo Testamento para lhes servir de orientação. Quanto
mais luz temos, maior é nosso amor a Deus. Quanto mais
claramente enxergamos nosso pleno perdão em Cristo, mais
devemos trabalhar de coração para sua glória. Sabemos quanto
custou nossa redenção, melhor do que os santos do Antigo
Testamento souberam. Já lemos o que aconteceu no Getsêmani e
no Calvário, mas eles só viram essas coisas de modo indistinto e
obscuro, como algo que ainda estava prestes a acontecer. Que
jamais nos esqueçamos de nossas obrigações! O crente que se
satisfaz com um baixo padrão de santidade pessoal ainda tem muito
a aprender.
A espiritualidade da lei comprovada por três
exemplos
Leia Mateus 5.21-37

E sses versículos merecem a mais cuidadosa atenção por parte


de todos os leitores da Bíblia. Um correto entendimento das
doutrinas que eles contêm é fundamental ao cristianismo. Aqui, o
Senhor Jesus explica mais completamente o significado de suas
palavras “não vim para revogar a lei, vim para cumprir”. Ele nos
ensina que o evangelho magnifica a lei e exalta sua autoridade. Ele
nos mostra que a lei, conforme ele a tinha apresentado, era uma
regra muito mais espiritual e capaz de perscrutar o coração do que a
maioria dos judeus imaginava. E ele comprovava isso selecionando
três dos dez mandamentos, como exemplos para o que queria dizer.
Jesus expôs o sexto mandamento. Muitos israelitas pensavam
estar cumprindo essa parte da lei de Deus simplesmente por não
cometerem homicídio na prática. O Senhor Jesus, contudo, mostra
que as exigências desse mandamento vão muito além. Tal
mandamento condena até mesmo a linguagem iracunda e repleta
de rancor, especialmente quando utilizada sem motivo justificado.
Salientemos bem esse ponto. Podemos ser perfeitamente inocentes
no que tange a tirar a vida de outrem, mas tornar-nos culpados de
transgredir o sexto mandamento.
Jesus apresenta o sétimo mandamento. Muitos supunham
estar cumprindo essa parte da lei de Deus, apenas por não
praticarem adultério. Mas o Senhor Jesus nos ensina que podemos
quebrar esse mandamento em nossos pensamentos, em nosso
coração e em nossa imaginação, mesmo quando nossa conduta
exterior é moral e correta. O Deus com quem tratamos vê muito
além de nossas ações. Para ele, até mesmo um rápido lançar de
olhos pode ser pecado.
Jesus apresenta o terceiro mandamento. Muitos se iludiam
pensando estar cumprindo essa parte da lei de Deus, contanto que
não jurassem falsamente e cumprissem seus votos. Mas o Senhor
Jesus proíbe toda e qualquer espécie de juramento vão. Todo o
juramento em nome de coisas criadas, mesmo quando o nome de
Deus não está envolvido — todo juramento que tome Deus como
testemunha, exceto nas ocasiões mais solenes —, é um grande
pecado.Tudo isso é muito instrutivo. Esse ensinamento deveria
fazer-nos refletir com grande seriedade. Ele nos diz em alta voz
para que sondemos cuidadosamente nossos corações. Mas o que
nos ensina?
Ele nos ensina a tremenda santidade de Deus. Deus é um Ser
puríssimo e perfeitíssimo, que percebe falhas e imperfeições onde
os homens não veem coisa alguma. Deus lê os motivos de nossos
corações. Ele observa não somente nossos atos, como também
nossas palavras e nossos pensamentos. “Eis que te comprazes na
verdade no íntimo” (Sl 51.6). Quisera os homens considerassem
esse aspecto do caráter de Deus muito mais do que costumam
fazer! Então, não haveria lugar para o orgulho, para a justiça própria
e para a indiferença, se ao menos os homens vissem a Deus
“conforme ele é”.
Ele nos ensina a excessiva ignorância dos homens quanto às
realidades espirituais. Existem milhares e milhares de cristãos
professos, como é de temer, que não sabem mais a respeito dos
requisitos da lei de Deus do que os mais ignorantes judeus.
Conhecem a letra dos dez mandamentos suficientemente bem. Mas,
à semelhança do jovem rico, julgam-se guardadores da lei: “tudo
isso tenho observado, desde a minha juventude” (Mc 10.20). Para
eles, é inconcebível que se possam quebrar o sexto e o sétimo
mandamentos mesmo sem praticar algum ato exterior ou pecado
explícito. E assim vão vivendo, satisfeitos consigo mesmos e
plenamente contentes com sua minirreligião. Felizes mesmo são os
que realmente compreendem a lei de Deus.
O sexto mandamento nos ensina a enorme necessidade do
sangue expiatório de Jesus Cristo para nos salvar. Quais são os
homens ou as mulheres neste mundo que poderiam apresentar-se
diante de Deus e declarar-se “inocentes”? Há alguém que tenha
atingido a idade da razão sem haver quebrado os mandamentos
milhares de vezes? “Não há justo, nem sequer um” (Rm 3.10). Sem
um Mediador poderoso, todos nós seríamos condenados no dia do
juízo. A ignorância do real significado da lei é uma razão evidente
para tantas pessoas não darem valor ao evangelho, contentando-se
em viver um cristianismo mesquinho e formal. Elas não percebem o
rigor e a santidade dos dez mandamentos da lei de Deus. Se
percebessem esse fato, não descansariam enquanto não
estivessem seguras em Jesus Cristo.
Em último lugar, essa passagem nos ensina a enorme
importância de se evitar tudo que possa dar ocasião ao pecado. Se
realmente desejamos ser santos, diremos como o salmista:
“Guardarei os meus caminhos, para não pecar com a língua” (Sl
39.1). Precisamos estar prontos para resolver querelas e
desacordos, para que tais coisas não nos conduzam a pecados
ainda mais graves: “Como o abrir-se da represa assim é o começo
da contenda; desiste, pois, antes que haja rixas” (Pv 17.14).
Precisamos nos empenhar em crucificar nossa carne e mortificar
nossos membros. Devemos estar dispostos a fazer qualquer
sacrifício, e até mesmo a trazer sobre o corpo o incômodo físico,
antes de dar lugar ao pecado. Devemos guardar nossos lábios,
como que por um freio, e exercitar constante vigilância sobre nossas
palavras. Que os homens nos chamem de “muito restritos”, se assim
desejarem! Que digam que somos “por demais meticulosos”, se isso
lhes agrada! Não nos deixemos abalar com isso. Estamos apenas
fazendo aquilo que nosso Senhor Jesus Cristo nos manda, e, sendo
assim, não temos do que nos envergonhar.
A lei cristã do amor
Leia Mateus 5.38-48

N esse trecho, encontramos as normas de nosso Senhor Jesus


Cristo quanto à nossa conduta de uns para com os outros. Os
que desejarem saber como deveriam agir e sentir, no tocante ao
próximo, devem estudar com frequência esses versículos. Eles
merecem ser escritos em letras de ouro. Esses versículos têm sido
elogiados até mesmo pelos adversários do cristianismo.
Observemos atentamente o que eles contêm.
O Senhor Jesus proíbe qualquer coisa parecida com um
espírito vingativo, que não esteja disposto a perdoar. A inclinação
por se ressentir diante das ofensas, a prontidão em ficar ofendido,
uma disposição contenciosa e briguenta, a insistência em reivindicar
nossos direitos — tudo isso é contrário à mente de Cristo. O mundo
pode não perceber nada de errado nesses hábitos da mente. Tais
coisas, porém, não fazem parte do caráter do verdadeiro cristão.
Nosso Mestre disse: “Não resistais ao perverso”.
O Senhor Jesus nos manda cultivar um espírito de amor e
benevolência para com todos os homens. Devemos pôr de lado toda
malícia. Devemos pagar o mal com o bem e a maldição com
bênçãos. Jesus nos disse: “amai os vossos inimigos”. Outrossim,
não devemos amar somente de palavra, mas em verdade e de fato.
Devemos negar a nós mesmos e nos esforçar para sermos gentis e
corteses. “Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele
duas.” Compete-nos tolerar muita coisa, suportar muita coisa, em
vez de ofender ou prejudicar outras pessoas. Em todas as coisas,
devemos mostrar-nos altruístas. Nosso pensamento nunca deveria
ser: “Como é que as outras pessoas se comportam comigo?”. Pelo
contrário, deveria ser: “O que Cristo gostaria que eu fizesse?”.
Um padrão de conduta como esse poderia, à primeira vista,
parecer demasiadamente elevado. Porém, nunca nos deveríamos
contentar com um padrão inferior. Precisamos observar os dois
fortes argumentos com que nosso Senhor reforça essa parte de seu
ensino. Esses argumentos merecem séria atenção.
Inicialmente, porque, se não tivermos como alvo o espírito e a
atitude aqui recomendados, então ainda não somos filhos de Deus.
Nosso “Pai, que está nos céus”, é bom para todos. Ele envia chuvas
sobre bons e maus, igualmente. Ele faz o sol brilhar sobre todos os
homens, sem distinção. Ora, um filho deve ser como seu pai.
Porém, em que somos semelhantes a nosso Pai celeste, se não
somos capazes de demonstrar misericórdia e bondade para com
todos? Onde estão as evidências de que somos novas criaturas, se
não temos amor? Estão todas em falta. Isso é um sinal de que ainda
precisamos “nascer de novo” (Jo 3.7).
Se não almejamos ter o espírito e a atitude aqui
recomendados, então manifestamente ainda somos do mundo. Até
mesmo os que não têm nenhuma religião podem “amar aqueles que
os amam”. Eles podem fazer o bem e mostrar gentileza quando
seus afetos e interesses os movem nesse sentido. Porém, o crente
deveria ser dirigido por princípios mais elevados do que o interesse
próprio. Estamos procurando evitar esse teste? Achamos impossível
praticar o bem em favor de nossos inimigos? Se esse é o caso,
então podemos ter a certeza de que ainda não nos convertemos.
Enquanto isso prevalecer, ainda não teremos recebido “o Espírito
que vem de Deus” (1Co 2.12).Em tudo o que já vimos, existem
muitas coisas que clamam em alta voz por nossa solene reflexão.
Há poucas passagens nas Escrituras que tão bem se prestam a
despertar em nossas mentes tais pensamentos de contrição. Temos
aqui um amável quadro do cristão, tal como ele deveria ser.
Observando-o, não podemos deixar de sentir alguma dor. Todos
devemos admitir que esse quadro difere amplamente daquilo que o
crente costuma ser. Podemos depreender daí duas lições gerais.
Em primeiro lugar, se o espírito desses onze versículos fosse
mais continuamente relembrado pelos verdadeiros crentes, eles
recomendariam o cristianismo ao mundo de maneira muito mais
eficiente. Não podemos permitir-nos supor que as palavras dessa
passagem sejam superficiais e de pouca importância, nem mesmo
as mínimas coisas afirmadas. A realidade é outra. A devida atenção
ao espírito desse texto bíblico é que torna tão atrativa nossa religião
cristã. A negligência quanto às verdades ali contidas conduz à
deformação do cristianismo. Cortesia, gentileza, ternura e
consideração pelas outras pessoas são alguns dos melhores
ornamentos do caráter dos filhos de Deus. O mundo pode
compreender essas coisas mesmo quando as pessoas não são
capazes de compreender as doutrinas do cristianismo. Não existe
religião cristã na grosseria, na aspereza, na indelicadeza ou na falta
de civilidade. A perfeição do cristianismo prático consiste na atenção
que dispensamos tanto aos pequenos como aos grandes deveres
da santidade.
Em segundo lugar, se o espírito desses onze versículos tivesse
maior domínio e poder, quão mais feliz o mundo seria do que
realmente é! Quem não sabe que as discussões, as desavenças, o
egoísmo e a indelicadeza provocam metade das misérias que
afligem a humanidade? Quem não percebe que coisa alguma
tenderia mais a aumentar a felicidade entre os homens do que a
propagação do amor cristão, tal como é aqui recomendado por
nosso Senhor? Todos devemos lembrar-nos disso. Os que se
iludem pensando que a verdadeira religião tende a fazer os homens
infelizes estão grandemente enganados. A ausência da verdadeira
religião é a causa dessa infelicidade, e não sua prevalência. A
verdadeira religião exerce efeito diametralmente oposto. Ela tende a
promover a paz e o amor ao próximo, a gentileza e a boa vontade
entre as pessoas. Quanto mais os homens seguirem os ensinos do
Espírito Santo, mais se amarão mutuamente, e mais felizes serão.
Ostentação nas esmolas e na oração
Leia Mateus 6.1-8

N esse segmento do Sermão da Montanha, o Senhor Jesus nos


instruiu sobre duas questões. A primeira é quanto a dar
esmolas; a outra, quanto à oração. Ambas eram questões às quais
os judeus atribuíam grande importância. Ambas, por si mesmas,
merecem séria atenção de todos os que professam o cristianismo.
Observe que nosso Senhor assume como ponto pacífico que
todos os que se intitulam seus discípulos darão esmolas. Ele
assume como natural que eles pensarão ser um dever solene dar
esmolas de acordo com suas possibilidades, a fim de aliviar as
necessidades alheias. Aqui o único ponto abordado por Cristo é a
maneira como deveria ser cumprido esse dever. Essa é uma
importante lição. Ele condena a atitude de egoísmo mesquinho de
tantas pessoas, quanto à questão de dar dinheiro. Quantos são
“ricos para consigo mesmos”, mas são pobres para com Deus!
Muitos jamais dão um centavo para fazer o bem ao corpo e à alma
de outrem! Será que os tais, com essa mentalidade, têm algum
direito de ser chamados cristãos? Bem poderíamos duvidar desse
direito. Um Salvador sempre disposto a dar deveria ter discípulos
igualmente dispostos a contribuir.
Observe, uma vez mais, que nosso Senhor toma por certo que
todos que se intitulam seus discípulos serão pessoas de oração. Ele
assume que isso também é um ponto pacífico. Tão somente ele nos
dá orientações quanto à melhor maneira de orar. Essa é outra lição
que merece ser continuamente lembrada. A lição é clara: pessoas
que não oram não são cristãos genuínos. Não basta apenas
participar das orações na igreja, aos domingos, ou frequentar os
cultos de oração durante a semana, na igreja ou em família.
Também é preciso haver a oração particular, a sós com Deus. Sem
isso, podemos até estar arrolados como membros de alguma igreja
cristã, mas não somos membros vivos de Cristo.
Entretanto, quais são as normas deixadas para nossa
orientação a respeito de esmolas e oração? As regras são poucas e
simples, mas contêm muito material para nossa meditação.
Ao dar esmolas, tudo que é ostentação deveria ser abominado
e evitado. Não devemos dar como se desejássemos que todos
vissem quão caridosos e liberais somos, como se quiséssemos
receber os elogios de nossos semelhantes. Tudo que pareça
exibicionismo deve ser evitado. Devemos dar na quietude, fazendo
menos ruído possível a respeito de nossa caridade. Nosso propósito
deveria acompanhar o espírito daquele versículo: “Ignore a tua mão
esquerda o que faz a tua direita”.
Ao orar, nosso objetivo principal deveria ser o de estarmos a
sós com Deus. Deveríamos procurar algum lugar no qual nenhum
olho mortal nos pudesse ver, para que, então, pudéssemos
derramar o coração diante de Deus, com o sentimento de que
ninguém nos está vendo, senão Deus. Entretanto, essa é uma regra
que muitas pessoas consideram difícil seguir. Para os irmãos de
condição mais humilde, e para os que trabalham para outrem, é
quase impossível estar realmente sozinhos. Porém, essa é a norma
à qual todos nós precisamos esforçar-nos por obedecer. A
necessidade, em tais casos, com frequência é a mãe da invenção.
Quando uma pessoa tem o real desejo de encontrar um lugar no
qual possa estar em secreto com Deus, geralmente acabará por
encontrá-lo.
Em todos os nossos deveres, seja dar, seja orar, a questão
fundamental que nunca deveríamos esquecer é que estamos
tratando com um Deus que perscruta o coração e sabe todas as
coisas. Tudo que seja mera formalidade, afetação ou que não
provenha do coração é abominável e sem valor aos olhos de Deus.
Ele não leva em conta com quanto dinheiro contribuímos, ou o
número de palavras que usamos. O que realmente importa aos
olhos de Deus é a natureza dos motivos e o estado do coração.
Nosso Pai celeste “vê em secreto”.
Que todos nós lembremos essas coisas! Eis aqui uma pedra
que é a causa de naufrágio espiritual de muitas pessoas. Elas
bajulam a si mesmas com o pensamento de que tudo deve estar
certo com suas almas se ao menos desempenharem certa
quantidade de deveres religiosos. Esquecem-se de que Deus não
presta atenção à quantidade, mas, sim, à qualidade de nosso
serviço. O favor divino não pode ser comprado, conforme alguns
parecem supor, pela repetição formal de certo número de palavras,
ou por justiça própria, pagando alguma quantia em dinheiro a uma
instituição de caridade. No que temos posto o coração? Estamos
fazendo tudo, seja dar ou orar, “como ao Senhor, e não como a
homens” (Ef 6.7)? Será que compreendemos o que realmente
importa aos olhos do Senhor? Será que apenas e simplesmente
desejamos agradar àquele que “vê em secreto”, àquele que “pesa
todos os feitos na balança” (1Sm 2.3)? Estamos agindo com
sinceridade? Com perguntas desse tipo é que deveríamos sondar
diariamente nossas almas.
A oração do Pai-Nosso e o perdão mútuo
Leia Mateus 6.9-15

E sses versículos são poucos em número e podem ser lidos com


facilidade; no entanto, são de imensa importância. Eles contêm
o maravilhoso modelo de oração com que o Senhor Jesus supriu
seu povo e que, comumente, é chamado de “oração do Pai-Nosso”.
Talvez nenhuma outra porção das Escrituras seja tão
conhecida quanto esta. Suas palavras são conhecidas onde quer
que exista o cristianismo. Milhares e milhares de pessoas que nunca
viram uma Bíblia ou que nunca tiveram a oportunidade de ouvir o
evangelho puro estão familiarizadas com o “Pai-Nosso”. Quão mais
feliz seria o mundo se o espírito e o intuito dessa oração fossem tão
conhecidos quanto o são suas palavras! Talvez nenhuma outra
porção das Escrituras seja, ao mesmo tempo, tão simples e tão
completa quanto esta. Trata-se da primeira oração que aprendemos
na infância. Nisto consiste sua simplicidade: ela contém o princípio
de tudo aquilo que o mais desenvolvido filho de Deus possa desejar.
Nisto consiste sua plenitude: quanto mais ponderamos acerca de
suas palavras, mais sentimos que essa oração procede de Deus.
A oração do Pai-Nosso consiste em dez partes ou sentenças.
Há uma declaração que diz respeito ao Ser a quem oramos.
Existem três petições referentes ao nome de Deus, ao seu reino e à
sua vontade. Há quatro petições a respeito de nossas necessidades
diárias, nossos pecados, nossas debilidades e perigos. Há uma
declaração de nossos sentimentos a respeito do próximo. Há uma
atribuição final de louvor. Em todas essas partes da oração, somos
ensinados a dizer “nós” ou “nosso”. Devemos lembrar-nos das
outras pessoas tanto quanto de nós mesmos. Um livro poderia ser
escrito a respeito de cada uma das partes dessa oração, mas, no
momento, precisamos contentar-nos em observar sentença após
sentença, assinalando em que direção aponta cada uma delas.
A primeira sentença declara a quem devemos orar: “Pai nosso,
que estás nos céus”. Não devemos clamar a santos ou anjos, mas
exclusivamente ao Pai, o Pai eterno, o Pai dos espíritos, o Senhor
dos céus e da terra. Podemos chamá-lo de Pai no sentido de que
ele é nosso Criador, conforme fez o apóstolo Paulo, perante os
atenienses: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos [...]
dele também somos geração” (At 17.28). Nós também o chamamos
Pai no sentido mais elevado da Palavra, como o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo, porquanto Deus nos reconciliou consigo
mesmo por meio da morte de seu Filho, Jesus Cristo (Cl 1.20-22).
Nós professamos aquilo que os santos do Antigo Testamento,
se viam, viam como que por um espelho, ou seja, professamos ser
filhos de Deus mediante a fé em Cristo e professamos ter o “espírito
de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15). Isso
é algo que jamais devemos esquecer; se desejamos ser salvos,
devemos almejar essa filiação com Deus. Sem a fé no sangue de
Jesus Cristo, e sem a nossa união com ele, é inútil falarmos em
confiança na paternidade de Deus.
A segunda sentença consiste em uma petição concernente ao
nome de Deus: “santificado seja o teu nome”. Quando falamos no
“nome” de Deus, entendemos todos aqueles atributos divinos
através dos quais ele se tem revelado a nós — seu poder,
sabedoria, santidade, justiça, misericórdia e verdade. Quando
rogamos que esses atributos sejam “santificados”, pedimos que eles
se tornem conhecidos e glorificados. A glória de Deus é a primeira
coisa à qual os filhos de Deus deveriam aspirar. Esse foi o assunto
de uma das orações do próprio Senhor Jesus: “Pai, glorifica o teu
nome” (Jo 12.28). Esse é o propósito para o qual o mundo foi criado.
Essa é a finalidade para a qual os santos são chamados e
convertidos. A principal coisa que deveríamos buscar nesta vida é
que “em todas as cousas seja Deus glorificado” (1Pe 4.11).
A terceira sentença envolve uma petição acerca do reino de
Deus: “venha o teu reino”. Por “teu reino”, entendemos, inicialmente,
o reino da graça que Deus estabelece e mantém no coração de
todos os membros vivos do corpo de Cristo, por meio de seu
Espírito e de sua Palavra. Mas, principalmente, entendemos tratar-
se daquele reino de glória que um dia será estabelecido, quando o
Senhor Jesus vier pela segunda vez. Então, todos conhecerão o
Senhor, “desde o menor deles até ao maior” (Hb 8.11). Nessa
ocasião, o pecado, a tristeza e Satanás serão expulsos do mundo.
O judeus serão convertidos e virá a plenitude dos gentios (Rm
11.25), e será o tempo mais desejável que jamais existiu. Essa
petição, portanto, tem um lugar de proeminência dentro da oração
do Pai-Nosso.
A quarta sentença é uma petição concernente à vontade de
Deus: “faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu”. Nesse
ponto, oramos no sentido de que os homens obedeçam às leis de
Deus tão perfeita, pronta e incessantemente quanto os anjos no
céu. Rogamos que aqueles que agora não obedecem às leis de
Deus sejam ensinados a obedecer e que aqueles que obedecem o
façam ainda com maior empenho. Nossa mais autêntica felicidade
consiste na perfeita submissão à vontade de Deus; é demonstração
do mais elevado amor cristão orar no sentido de que toda a
humanidade possa conhecer a vontade de Deus, obedecer e
submeter-se a ela.
A quinta sentença é uma petição referente às nossas próprias
necessidades diárias: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Aqui,
somos ensinados a reconhecer nossa inteira dependência de Deus
para o suprimento de nossas necessidades diárias. Tal como Israel
precisava do maná diariamente, assim também precisamos
diariamente do nosso pão. Nós confessamos que somos pobres,
fracos, criaturas necessitadas, e suplicamos a Deus, nosso Criador,
que tome conta de nós. Pedimos pão como a mais simples de
nossas necessidades materiais; mas, nessa palavra, incluímos
todas as necessidades de nosso corpo.
A sexta sentença é uma petição a respeito de nossos pecados:
“perdoa-nos as nossas dívidas”. Confessamos que somos
pecadores e que precisamos receber diariamente o perdão por
nossas transgressões. Essa é uma parte da oração do Pai-Nosso
que merece ser especialmente relembrada. Ela condena toda justiça
própria e autojustificação. Aqui, somos instruídos a manter o hábito
contínuo de confissão junto ao trono da graça; e o hábito contínuo
de buscar misericórdia e remissão. Que isso jamais seja esquecido!
Precisamos “lavar os pés” diariamente (Jo 13.10).
A sétima sentença é uma declaração atinente aos nossos
sentimentos para com o próximo: rogamos ao Pai que nos perdoe
“as nossas dívidas assim como nós temos perdoado aos nossos
devedores”. Essa é a única declaração de um compromisso nosso
para com Deus que aparece em toda a oração, e a única parte da
oração na qual Jesus se detém para fazer um comentário posterior.
Jesus nos relembra que não devemos esperar receber o perdão
quando oramos com malícia ou rancor no coração para com os
outros. Orar com essa atitude mental é mero formalismo e
hipocrisia. É ainda pior do que hipocrisia. É como dizer: “Não me
perdoe”. Nossa oração nada vale sem amor. Não devemos esperar
ser perdoados se não conseguimos perdoar.
A oitava sentença é uma petição a respeito de nossas
fraquezas: “não nos deixes cair em tentação”. Ela nos ensina que, a
todo instante, podemos ser enganados e cair em transgressão. Ela
nos instrui a confessar nossas debilidades, a buscar a Deus para
nos sustentar e não nos deixar andar em pecado. Rogamos que ele,
que ordena todas as coisas no céu e na terra, não nos deixe incorrer
naquilo que é prejudicial às nossas almas, e que jamais permita que
sejamos tentados acima do que somos capazes de suportar (1Co
10.13).
A nona sentença é uma petição acerca dos perigos que nos
ameaçam: “livra-nos do mal”. Aqui, somos ensinados a pedir que
Deus nos livre do mal existente neste mundo, do mal que está
dentro de nossos próprios corações e, não menos importante, do
maligno, que é o diabo. Confessamos que, enquanto estamos no
corpo, estamos constantemente vendo, ouvindo e sentindo a
presença do mal. Ele está do nosso lado, dentro de nós e ao nosso
redor, em todo canto. Assim, rogamos a Deus, que é o único que
pode nos preservar, para que sejamos continuamente libertos do
poder do mal (Jo 17.15).
A última sentença é uma atribuição de louvor: “teu é o reino, o
poder e a glória”. Com essas palavras, declaramos nossa crença de
que os reinos deste mundo são legítima propriedade de nosso Pai
celestial, que a ele pertence todo o poder e que só ele merece
receber toda a glória. Concluímos a grande oração oferecendo ao
Senhor a profissão de nossos corações, de que lhe conferimos toda
honra e todo louvor, e nos regozijamos no fato de que ele é o Rei
dos reis e o Senhor dos senhores.
Agora, examinemos a nós mesmos, para saber se realmente
desejamos ter as coisas que somos ensinados a pedir nessa
oração. É de temer que milhares de pessoas repitam formalmente
essas palavras, dia após dia, sem jamais considerarem o que estão
dizendo. Elas não têm a menor preocupação com a glória, o reino
ou a vontade do Senhor. Não têm nenhum senso de dependência,
de pecaminosidade, de fraqueza pessoal ou de perigo. Não têm
amor nem compaixão para com seus inimigos. E, ainda assim,
repetem a oração do Pai-Nosso! As coisas não deveriam ser assim.
Que nós possamos tomar uma decisão e, com a ajuda de Deus,
fazer com que nossos lábios e nossos corações caminhem juntos!
Bem-aventurado é quem verdadeiramente pode chamar Deus de
Pai celestial, por intermédio de Jesus Cristo, seu Salvador, e que,
portanto, pode sinceramente dizer “Amém”, de todo o coração, a
tudo que a oração do Pai-Nosso contém.
A maneira correta de jejuar, o tesouro no céu e as
exortações
Leia Mateus 6.16-24

N essa parte do Sermão da Montanha, nosso Senhor nos fala de


três assuntos: o jejum, o mundanismo e a importância de se ter
um propósito bem definido no que diz respeito à religião.
O jejum, ou a abstinência ocasional de alimentos, a fim de
trazer o corpo em sujeição ao espírito, é uma prática
frequentemente mencionada na Bíblia e, em geral, vinculada à
oração. Davi jejuou quando seu filho recém-nascido adoeceu
gravemente. Daniel jejuava quando buscava uma orientação
especial da parte de Deus. Paulo e Barnabé jejuavam quando
apontavam os anciãos para as igrejas locais. Ester jejuou antes de
se apresentar ao rei Assuero. O jejum é um assunto sobre o qual
não encontramos nenhum mandamento direto no Novo Testamento.
Parece que é deixado a critério de cada um, se fará jejum ou não.
Nisso há grande sabedoria. Muitos homens pobres nunca têm o
suficiente para comer, e seria um insulto ordenar-lhes o jejum.
Muitos enfermos têm dificuldade de se alimentar bem, mesmo
dando toda atenção à dieta, e o jejum contribuiria para agravar
ainda mais a doença. Essa é uma questão em que cada um precisa
estar persuadido em sua própria mente, e não ser precipitado em
condenar os que não concordem com ele. Somente um ponto
jamais deve ser esquecido. Quem jejua deve fazê-lo em quietude,
em segredo e sem ostentação. Deve fazê-lo de maneira a não
parecer aos homens que jejua. Que não jejue para os homens, mas
para Deus!
O mundanismo é um dos maiores perigos que ameaçam a
alma do ser humano. Não causa admiração, portanto, que
encontremos nosso Senhor falando decididamente contra isso.
Trata-se de um inimigo insidioso, astuto e muito enganador. Parece
tão inocente dar atenção especial aos nossos negócios! Parece tão
inofensivo procurar a felicidade neste mundo, desde que estejamos
limpos dos pecados mais visíveis! No entanto, essa é uma pedra
contra a qual muitos podem naufragar para toda a eternidade. Eles
acumulam “tesouros sobre a terra” e se esquecem de ajuntar
“tesouros nos céus”. Que todos nos lembremos disso! Onde está
posto meu coração? O que amo acima de tudo? Meus maiores
afetos estão ligados às coisas deste mundo ou à realidade celestial?
A morte e a vida dependem da resposta que seremos capazes de
dar a essas indagações. Se nosso tesouro está sobre a terra,
nossos corações serão terrenos — “porque onde está o teu tesouro,
aí estará também o teu coração”.
Ter um propósito bem definido é um dos maiores segredos da
prosperidade espiritual. Se nossos olhos não veem distintamente,
não podemos caminhar sem tropeçar e cair. Se tentarmos trabalhar
para dois mestres diferentes, poderemos ter a certeza de não
satisfazer nem a um nem a outro. Acontece o mesmo a respeito de
nossas almas. Não podemos servir a Cristo e ao mundo ao mesmo
tempo. Isso simplesmente não pode ser feito. A arca da aliança e a
estátua de Dagom jamais permanecerão juntas. Deus deve ser Rei
sobre nossos corações. A Lei de Deus, sua vontade e seus
preceitos devem receber nossa primeira atenção. Então, e somente
então, todas as coisas se ajustarão em seus devidos lugares em
nosso homem interior. A menos que nossos corações estejam
assim, tão bem ordenados, tudo o mais estará em confusão: “Todo o
teu corpo estará em trevas”.
Com a instrução do Senhor acerca do jejum, aprendamos a
grande importância do contentamento em nossa religião. As
palavras “unge a cabeça e lava o rosto” são repletas de profundo
significado. Elas deveriam ensinar-nos a ter como alvo permitir que
os homens vejam que o cristianismo nos faz estar contentes. Jamais
nos esqueçamos de que não existe religião alguma em parecermos
melancólicos e tristes. Estamos insatisfeitos com Cristo e com o
serviço de seu reino? Certamente que não! Então, não tenhamos a
aparência de quem está insatisfeito.
Aprendamos, com base na advertência do Senhor acerca do
mundanismo, como é grande a necessidade que todos nós temos
de vigiar e orar contra um espírito mundano. O que a maioria dos
“cristãos” professos ao nosso redor está fazendo? Eles estão
acumulando “tesouros na terra”. Quanto a isso, não há dúvida. Seus
gostos, hábitos e procedimentos nos contam uma história digna de
temor: eles não estão ajuntando “tesouros no céu”. Oh, cuidemos
todos nós de não cair no inferno, somente porque damos atenção
excessiva a coisas que são perfeitamente legítimas! A transgressão
notória da lei de Deus mata seus milhares, e o mundanismo seus
dez milhares!
Aprendamos, com base no que nosso Senhor disse acerca dos
“olhos bons”, o verdadeiro segredo das falhas que tantos cristãos
parecem cometer em sua religião. Há fracassos por toda parte.
Existem milhares de pessoas, em nossas igrejas, que se sentem
desconfortáveis, irrequietas e insatisfeitas consigo mesmas, sem
nem mesmo saber o porquê. A razão disso está aqui revelada: elas
querem estar de bem com Deus e com o mundo. Estão tentando
agradar a Deus e aos homens, servir, ao mesmo tempo, a Cristo e
ao mundo. Não incorramos nesse erro. Que nós sejamos decididos
e radicais, inflexíveis seguidores de Cristo! Que nosso lema seja o
mesmo do apóstolo Paulo: “Uma cousa faço” (Fp 3.13). Então,
seremos cristãos felizes. Sentiremos o sol brilhando em nossas
faces! Coração, mente e consciência estarão todos cheios de luz.
Determinação é o segredo da felicidade na religião cristã. Seja um
crente decidido e, então, “todo o seu corpo será luminoso”.
A preocupação proibida com este mundo
Leia Mateus 6.25-34

E sses versículos revelam o misto de sabedoria e compaixão do


Senhor Jesus Cristo em seus ensinos. Ele conhece o coração
humano. Ele sabe que todos nós estamos prontos a desconsiderar
suas advertências contra o mundanismo, ao argumento de não
podermos evitar a ansiedade acerca das coisas desta vida. “Acaso
não precisamos suprir o necessário para nossas famílias? Será que
não precisamos atender às nossas necessidades materiais? Como
poderemos vencer na vida se dermos atenção principal às nossas
almas?” O Senhor Jesus previu esses pensamentos e nos forneceu
uma resposta.
Ele nos proíbe de manter um espírito de ansiedade e solicitude
quanto às coisas deste mundo. Por quatro vezes, ele nos diz: “Não
andeis ansiosos [...]” com a vida, com a alimentação, com o
vestuário e com o amanhã. “Não andeis ansiosos.” Em outras
palavras, não se preocupe demais; não fique demasiadamente
aflito. É correto fazer uma provisão cautelosa para o futuro; mas a
fadiga excessiva, a preocupação desgastante, a ansiedade que
atormenta — tudo isso está errado.
Jesus nos lembra do cuidado providencial que Deus
continuamente tem para com tudo que criou. Ele nos deu “vida”?
Então, certamente não permitirá que coisa alguma nos falte para a
manutenção dessa vida. Ele nos deu um corpo? Então, certamente
não nos deixará morrer por falta de agasalho. Ele, que nos deu o
ser, sem dúvida encontrará alimentos para nos sustentar.
Jesus mostra a inutilidade da ansiedade excessiva. Nossa vida
está inteiramente nas mãos de Deus. Nem mesmo toda a ansiedade
deste mundo nos fará viver um minuto além do tempo que Deus
determinou para nós. Não morreremos enquanto nossa obra não
estiver terminada.
Ele nos manda observar as “aves do céu”, a fim de recebermos
instrução. Elas não fazem qualquer provisão para o futuro: “não
semeiam, nem colhem [...]”. Elas não “ajuntam em celeiros” para
prevenir o futuro. Literalmente, as aves vivem, dia após dia, daquilo
que conseguem encontrar usando o instinto que Deus lhes deu.
Devemos aprender, com as aves, que Deus jamais permitirá cair em
miséria quem estiver cumprindo seu dever, no lugar em que Deus o
colocou.
Jesus também nos manda observar “os lírios do campo”. Ano
após ano, eles se adornam com as cores mais alegres, sem o
menor trabalho ou esforço. “Eles não trabalham nem fiam.” Deus,
por meio de seu infinito poder, os veste de beleza ímpar, a cada
estação. Esse mesmo Deus é o Pai de todos os crentes. Por que
deveriam duvidar de que ele é capaz de lhes prover as vestes
necessárias, tal como o faz com os lírios do campo? Ele, que toma
cuidado das flores do campo, as quais são passageiras, certamente
não negligenciará os corpos nos quais habitam almas imortais.Jesus
nos dá a entender que a excessiva preocupação com as coisas
deste mundo é algo extremamente indigno de um cristão. Uma
grande característica do paganismo é viver para o presente. Deixe
que os pagãos estejam ansiosos, se assim desejarem. Eles nada
sabem a respeito de um Pai celestial. Mas os cristãos, que têm
maior conhecimento e uma visão clara da realidade, devem dar
prova disso, por sua fé e seu contentamento. Quando perdemos
alguém que amamos, não devemos nos entristecer “como os
demais, que não têm esperança” (1Ts 4.13). Quando somos
tentados pelas ansiedades desta vida, não devemos estar por
demais preocupados, como se não tivéssemos nem Deus nem
Cristo.
Cristo nos ofereceu uma graciosa promessa, como um remédio
para a ansiedade de espírito. Ele nos garante que, se buscarmos
primeiro, e acima de tudo, um lugar no reino de graça e glória, então
todas as coisas de que realmente precisamos nos serão dadas.
Todas essas coisas vos serão “acrescentadas”, acima e além da
herança celestial. “Todas as cousas cooperam para o bem daqueles
que amam a Deus” (Rm 8.28). “O Senhor dá graça e glória; nenhum
bem sonega aos que andam retamente” (Sl 84.11).
Por fim, Jesus sela sua instrução sobre o assunto com uma das
mais sábias afirmações: “o amanhã trará os seus cuidados; basta ao
dia o seu próprio mal”. Não devemos carregar preocupações antes
do tempo próprio. Devemos atender às ocupações do dia de hoje e
deixar as preocupações do amanhã para quando raiar o novo dia.
Afinal, podemos morrer antes do amanhecer! A única coisa de que
podemos ter certeza é que, se o dia de amanhã nos trouxer uma
cruz, aquele que a envia pode, e irá, nos enviar a graça necessária
para carregá-la.
Em toda essa passagem, existe um tesouro de lições de ouro.
Procuremos usá-las em nossa vida diária. Que não apenas leiamos
essas lições, mas que também as ponhamos em prática! Vigiemos e
oremos contra um espírito ansioso e excessivamente preocupado.
Isso afeta profundamente nossa felicidade. Metade de nossas
misérias é causada pela ilusão de coisas que pensamos estar vindo
sobre nós. Metade das coisas que imaginamos estar vindo sobre
nós jamais acontece. Onde está nossa fé? Onde está a confiança
que temos nas palavras de nosso Salvador? Lendo esses
versículos, podemos nos envergonhar de nós mesmos, para, então,
examinar nossos corações. Contudo, podemos ter certeza de que
as palavras de Davi expressam uma grande verdade: “Fui moço, e
já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a
sua descendência a mendigar o pão” (Sl 37.25).
A censura é proibida; a oração é encorajada
Leia Mateus 7.1-12

A primeira parte desses versículos é uma das passagens bíblicas


que precisamos ter o cuidado de não forçar para além de seu devido
significado. Essa parte é frequentemente corrompida e aplicada de
modo errôneo pelos inimigos da verdadeira religião. É possível
pressionar de tal maneira as palavras da Bíblia que elas acabam
produzindo não o remédio espiritual, mas, sim, o veneno.
Nosso Senhor não tencionava de modo algum dizer que é
errado proferir um juízo desfavorável sobre a conduta e a opinião de
outras pessoas. Precisamos ter opiniões bem formadas e decididas.
Devemos julgar “todas as cousas” (1Ts 5.21). Devemos provar “os
espíritos” (1Jo 4.1). Tampouco Cristo quis dizer que é errado
reprovar os pecados e as faltas de outras pessoas, enquanto nós
mesmos não tenhamos atingido a perfeição e não estejamos
destituídos de falta. Tal interpretação seria uma contradição em
relação a outras passagens da Escritura. Isso tornaria impossível
condenar o erro e as falsas doutrinas. Seria um impedimento para
qualquer um que desejasse ser ministro do evangelho ou juiz. A
terra estaria nas mãos dos perversos (Jó 9.24). As heresias se
espalhariam. Os malfeitores se multiplicariam por toda a parte.
O que nosso Senhor condena é um espírito crítico que em tudo
encontra alguma falta. A prontidão em condenar as pessoas por
causa de pequenas coisas ou questões de pouca importância, o
hábito de fazer julgamentos duros e precipitados, a disposição em
exagerar os erros e as fraquezas do próximo, e de sempre pensar o
pior — isso tudo nosso Senhor nos proíbe. Essas coisas eram
comuns entre os fariseus, e continuam a ser comuns desde aquela
época, até hoje. Todos nós precisamos vigiar para não cairmos em
tal erro. O amor “tudo crê, tudo espera” das outras pessoas, e nós
deveríamos ser muito vagarosos em procurar defeitos em nosso
próximo. Esse é o verdadeiro amor cristão (1Co 13).
A segunda lição contida nessa passagem é a importância de se
ter discrição quanto à pessoa com quem falamos sobre os assuntos
de religião. Tudo é maravilhoso em seus devidos tempo e lugar.
Nosso zelo deve ser temperado por uma prudente consideração
acerca da ocasião, do lugar e das pessoas a quem nos dirigimos.
Salomão disse: “Não repreendas o escarnecedor, para que te não
aborreça” (Pv 9.8). Não é sábio abrir o coração com todo mundo a
respeito das coisas espirituais. Há muitos que, por causa de um
temperamento violento, ou de hábitos abertamente pervertidos, são
totalmente incapazes de dar valor às verdades do evangelho.
Podem até mesmo explodir de ira e cair em maior pecado se você
tentar fazer bem às suas almas. Mencionar o nome de Cristo a
essas pessoas é como lançar pérolas aos porcos. Isso não lhes faz
bem, mas, sim, mal. A tentativa só fará despertar nessas pessoas
toda a sua corrupção e deixá-las furiosas. Em suma, eles são como
os judeus de Corinto (At 18.6), ou como Nabal, acerca de quem
ficou registrado: “ele é filho de Belial, e não há quem lhe possa falar”
(1Sm 25.17).
É particularmente difícil usar essa lição de maneira adequada.
É preciso ter muita sabedoria para aplicá-la corretamente. A maioria
de nós inclina-se muito mais a errar por excesso de cautela do que
por excesso de entusiasmo. Em geral, tendemos muito mais a
lembrar “o tempo de estar calado” do que “o tempo de falar”. Não
obstante, essa é uma lição que deveria despertar em nós o espírito
de autoinquirição. Acaso, nós mesmos, às vezes, não
desencorajamos nossos amigos quando eles tentam nos dar bons
conselhos, pela nossa morosidade ou irritabilidade de
temperamento? Nunca obrigamos outras pessoas a se manter em
silêncio e a nada dizer, por causa do nosso orgulho ou impaciente
desprezo pelos conselhos que recebemos? Será que nunca nos
voltamos contra nossos gentis conselheiros, e os silenciamos com
nossa violência e ira? Infelizmente, com razão, podemos temer que
nós também temos errado quanto a essa questão!
A última lição contida nessa passagem é o dever de orar, e os
ricos encorajamentos à oração. Existe uma maravilhosa conexão
entre essa lição e aquela que a antecede. Queremos saber quando
estar em “silêncio” e quando “falar”? Quando devemos apresentar
as coisas “santas” e quando devemos expor nossas “pérolas”?
Então, devemos orar. Esse é um assunto ao qual, evidentemente, o
Senhor Jesus atribui grande importância. A linguagem que ele usa é
uma prova clara. Ele emprega três vocábulos diferentes para
exprimir a ideia de oração: “Pedi [...] buscai [...] batei [...]”. Jesus
reserva as maiores e mais ricas promessas para os que oram. “Pois
todo o que pede recebe.” Ele ilustra a disposição de Deus em ouvir
nossas orações mediante o argumento extraído da prática
corriqueira dos pais para com seus filhos. Ainda que os pais sejam
maus e egoístas por natureza, não negligenciam as necessidades
de seus filhos segundo a carne. Assim, muito mais um Deus de
amor e misericórdia atenderá aos clamores daqueles que são seus
filhos, mediante a graça.
Devemos dar atenção especial a essas palavras de nosso
Senhor a respeito da oração. Talvez poucos de seus ensinamentos
sejam tão bem conhecidos e tão frequentemente repetidos quanto
estes. Até mesmo os mais pobres e ignorantes são capazes de
dizer que “quem procura acha”. Mas de que adianta saber essas
coisas se não fazemos uso delas? O conhecimento não aprimorado
e que não é bem empregado servirá apenas para agravar nossa
condenação no dia do juízo.
Será que sabemos como pedir, buscar e bater? Por que razão
não saberíamos? Nada existe tão simples e claro quanto a oração,
se o homem realmente tem o desejo de orar. Mas, infelizmente, não
existe nada que os homens menos se disponham a fazer. Eles
fazem uso de muitas formas de religiosidade, cumprem muitas
ordenanças e fazem muitas coisas que estão certas, mas não estão
dispostos a orar. Todavia, sem oração, nenhuma alma jamais se
salvará.
Será que realmente oramos? Em caso contrário, quando
chegarmos à presença de Deus, ficaremos sem desculpa, a menos
que nos arrependamos em tempo. Não seremos condenados por
não fazer aquilo que não poderíamos ter feito, ou por não saber
aquilo que não poderíamos ter conhecido. Entretanto,
descobriremos que uma das principais razões pelas quais estamos
perdidos é porque nunca pedimos para ser salvos.
Será que de fato oramos? Então, devemos orar ainda mais,
sem nunca desanimar. Orar nunca é trabalho perdido, nem em vão.
Haverá um dia de produzir fruto, mesmo que se passe muito tempo.
Esta palavra de Jesus nunca falhou: “Pois todo o que pede recebe”.
A regra do dever para com o próximo; as duas
portas; advertências contra os falsos profetas
Leia Mateus 7.13-20

N esse segmento do Sermão da Montanha, nosso Senhor


direciona seu discurso a uma conclusão. Aqui, as lições que
ele enfatiza são gerais, amplas e repletas da mais profunda
sabedoria. Observemos tais lições, uma a uma.
Jesus lançou um princípio geral para nossa orientação, para
todas as questões duvidosas que surgem entre uma pessoa e outra.
Devemos fazer aos outros conforme desejamos que nos façam. Não
devemos tratar as outras pessoas da maneira como elas nos tratam.
Isso é mero egoísmo e paganismo. Devemos tratar as outras
pessoas conforme gostaríamos que elas nos tratassem. O
verdadeiro cristianismo é isso.
Essa, de fato, é uma regra de ouro! Ela não somente nos
proíbe toda malícia e vingança, todo exagero e falsidade; ela vai
muito além, e resolve uma centena de pontos difíceis que surgem
continuamente entre um homem e seu próximo, num mundo como
este. Ela torna desnecessário estabelecer uma série interminável de
pequenas regras para nossa conduta quanto a casos específicos.
Ela abrange todos os possíveis argumentos com um único e
poderoso princípio. Mostra-nos um padrão bem equilibrado e uma
medida pela qual todos nós podemos perceber, de imediato, o
próprio dever. Existe algo que não gostaríamos que alguém fizesse
contra nós? Então, jamais nos esqueçamos de que é exatamente
isso que não devemos fazer às outras pessoas. Haverá alguma
coisa que gostaríamos que outras pessoas fizessem por nós?
Então, é precisamente isso que devemos fazer em favor de outras
pessoas. Quantas questões intrincadas seriam decididas
prontamente se essa regra fosse honestamente praticada!
Em segundo lugar, nosso Senhor nos faz uma advertência
geral contra a maneira como muitos agem quanto à religião. Não
podemos ficar satisfeitos em seguir a moda e nadar na corrente
daqueles entre os quais vivemos. Jesus nos diz que o caminho que
conduz à vida eterna é apertado, e poucos são os que por ele
caminham. Ele nos diz que o caminho que conduz à perdição é
espaçoso e está repleto de viajantes. São muitos os que entram
pelo caminho largo.
Essas são verdades terríveis! Elas deveriam suscitar, em todos
os que as ouvem, um profundo autoexame no coração. “Em que
caminho estou seguindo? Em qual estrada estou viajando?” Todos
nós seguimos por um ou outro desses dois caminhos. Que Deus
nos dê um espírito honesto e inquisitivo, e nos mostre o que
realmente somos!
Deveríamos estar preocupados e temerosos se a nossa religião
é a mesma das multidões. Se o que de melhor poderíamos afirmar é
que nós “vamos aonde os outros estão indo, frequentamos a mesma
igreja e esperamos, no final, ser tão bem-sucedidos quanto os
outros”, estaremos literalmente pronunciando nossa própria
condenação. O que isso significa senão que estamos seguindo pelo
caminho largo? O que isso significa senão que estamos seguindo no
“caminho que conduz à perdição”? A essa altura, nossa religião não
é a que salva.
Não temos motivo algum para nos sentir desencorajados e
abatidos se a religião que professamos não é popular e se poucos
concordam conosco. Devemos lembrar as palavras de nosso
Senhor Jesus Cristo nesta passagem: “estreita é a porta”. O
arrependimento, a fé em Cristo e a santidade na vida nunca
estiveram na moda. O verdadeiro rebanho de Cristo sempre tem
sido pequeno. Não devemos estranhar se descobrirmos que somos
reputados como pessoas estranhas, esquisitas, fanáticas e de
mente estreita. Esse é o “caminho apertado”. Certamente é melhor
alguém entrar na vida eterna na companhia de uns poucos do que ir
para a perdição na companhia de muitos.
Em último lugar, o Senhor Jesus nos faz uma advertência geral
contra os falsos mestres da Igreja. Devemos nos acautelar dos
falsos profetas. A conexão entre essa passagem e a anterior é
impressionante. Queremos ficar bem longe do “caminho largo”?
Então, devemos estar precavidos contra os falsos profetas, pois eles
haverão de surgir. Eles começaram a aparecer já nos dias dos
apóstolos. Desde aquele tempo, as sementes do erro têm sido
lançadas. Desde então, eles têm aparecido continuamente.
Precisamos estar preparados contra eles, mantendo-nos sempre em
guarda.
Essa é uma advertência de que muito precisamos. Existem
milhares de pessoas que parecem estar sempre prontas a crer em
qualquer coisa que ouvirem, desde que venha dos lábios de alguém
que tenha o título de ministro religioso. Esquecem-se de que um
clérigo pode errar, tanto quanto um leigo. Eles não são infalíveis. O
que eles ensinam precisa ser confrontado com os ensinamentos das
Sagradas Escrituras. Só devemos seguir tais ministros, e crer no
que ensinam, enquanto as doutrinas por eles ensinadas
concordarem com a Bíblia, e nem um minuto a mais. Devemos
testá-los por “seus frutos”. Sã doutrina e vida santa são sinais
característicos dos verdadeiros profetas. Lembremo-nos disso. Os
erros de nossos ministros não justificam nossos próprios erros. “Se
um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco” (Mt 15.14).
Qual é a melhor salvaguarda contra falsos ensinamentos? Sem
sombra de dúvida, a resposta é o estudo regular da Palavra de
Deus, sempre acompanhado de uma oração que rogue a iluminação
do Espírito Santo. A Bíblia foi-nos outorgada para ser lâmpada para
nossos pés e luz para nossos caminhos (Sl 119.105). Deus não
permitirá que quem a ler corretamente caia em algum erro
irremediável. A negligência para com a Bíblia é que faz tantas
pessoas se tornarem presas fáceis do primeiro falso mestre que
aparecer. Tais pessoas querem nos fazer acreditar que não são
“estudadas”, nem têm a “pretensão” de exibir opiniões bem
formadas. A verdade é que são preguiçosas, negligenciam a leitura
da Bíblia e não querem ter o trabalho de pensar por si mesmas. Não
existe nada que forneça tantos seguidores para os falsos profetas
do que a preguiça espiritual, disfarçada sob uma capa de
humildade.
Que todos nós possamos sempre ter em mente a advertência
do Senhor! O mundo, o diabo e a carne não são os únicos perigos
no caminho do cristão. Existe outro: o “falso profeta”, o lobo
disfarçado em pele de ovelha. Feliz é quem estuda a Bíblia e ora, e
sabe a diferença entre a verdade e o engodo, na religião! Existe
uma diferença, e nós deveríamos reconhecê-la muito bem, fazendo
uso do conhecimento que nos foi outorgado.
A inutilidade da profissão religiosa sem a prática;
os dois construtores
Leia Mateus 7.21-29

O Senhor Jesus encerra o Sermão da Montanha com uma


aplicação penetrante. Sua admoestação abrange desde os falsos
profetas até os “professos” cristãos, desde os falsos mestres até os
ouvintes negligentes. Eis aqui uma palavra para todos. Que nós
possamos aplicá-la aos nossos próprios corações!
A primeira lição aqui é a inutilidade de uma profissão
meramente externa do cristianismo. Nem todos os que dizem
“Senhor, Senhor” entrarão no reino dos céus. Nem todos os que
professam o cristianismo, ou se dizem cristãos, serão salvos.
Prestemos atenção a este fato: para salvar uma alma, é preciso
muito mais do que a maioria das pessoas parece julgar necessário.
Podemos até ter sido batizados em nome de Cristo, e nos orgulhar
presunçosamente em nossos privilégios eclesiásticos. Podemos ser
donos de um grande conhecimento intelectual, e estar bem
satisfeitos com nossa condição. Podemos até mesmo ser
pregadores e mestres sobre outrem, e fazer “muitas obras
maravilhosas” em conexão com a igreja a que pertencemos. Mas,
durante todo esse tempo, temos praticado a vontade do Pai celeste?
Temos verdadeiramente nos arrependido? Temos realmente
confiado em Cristo e vivido vidas santas e humildes? Se assim não
for, a despeito de todos os nossos privilégios, e de nosso
cristianismo professo, perderemos o céu e seremos rejeitados para
todo o sempre. Ouviremos aquelas terríveis palavras: “Nunca vos
conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade”.O dia do
juízo final haverá de revelar coisas muito estranhas. As esperanças
de muitos dos que foram considerados grandes cristãos, quando em
vida, serão totalmente vãs. A corrupção de sua religião será
desmascarada e lançada ao opróbrio, perante os olhos do mundo
inteiro. Então, ficará provado que, para ser salvo, é necessário muito
mais do que apenas “uma profissão de fé”. Devemos praticar o
nosso cristianismo, tanto quanto professá-lo. Que nós, com
frequência, nos lembremos desse grande dia do juízo, e nos
julguemos a nós mesmos, para que não sejamos julgados e
condenados (1Co 11.31) pelo Senhor. Sem importar o que mais
sejamos, que nosso alvo consista em sermos reais, verdadeiros e
sinceros!
A segunda lição, nessa passagem, é um impressionante
quadro das duas classes de ouvintes — os que ouvem, mas não
praticam; e os que não apenas ouvem, mas também põem em
prática o que ouvem, com seus respectivos destinos traçados até o
fim.
Quem ouve o ensino cristão e põe em prática o que ouve é
como o “homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha”.
Ele não se contenta em apenas ouvir exortações ao
arrependimento, exortações a confiar em Cristo e a viver uma vida
santa. Ele, de fato, se arrepende. Ele realmente crê. Ele realmente
abandona a prática do mal, aprende a fazer o bem, abomina tudo
que é pecaminoso e apega-se ao que é bom. Ele não só é um
ouvinte, como também é um praticante (Tg 1.22).
E qual é o resultado de tudo isso? Em tempos de provação,
sua religião não o desampara. Os dilúvios de enfermidade, tristeza,
pobreza, desapontamento e desolações desabam sobre ele, mas
em vão. Sua alma permanece inabalável. Sua fé não cede terreno.
Nunca é destituída de conforto. Sua religião talvez lhe tenha custado
tribulações em tempos passados. Seus alicerces podem ter sido
erigidos com muito esforço e lágrimas. Para descobrir seu interesse
pessoal na pessoa de Cristo, talvez ele tenha passado muitos dias
de busca incessante, muitas horas de luta em oração. Porém, seus
labores não foram em vão. Agora ele colhe uma rica recompensa. A
religião verdadeira é aquela que é capaz de resistir à provação.
O homem que ouve o ensino cristão, mas nunca passa da
mera fase do ouvir, assemelha-se a “um homem insensato, que
edificou a sua casa sobre a areia”. Contenta-se unicamente em
ouvir e aprovar; porém, não vai além disso. Por ter alguns
sentimentos, convicções e desejos de natureza espiritual, ele
imagina que vai tudo bem com a sua alma. É nessas coisas que ele
confia. Ele nunca rompe, de fato, com o pecado ou põe de lado o
espírito mundano. Ele, na verdade, nunca se apropria de Cristo.
Nunca toma realmente a sua cruz. É ouvinte da verdade; nada mais
além disso.
E qual é o fim da religiosidade desse homem? Ela é
inteiramente demolida na primeira torrente de tribulações. Na hora
de maior necessidade, sua religião o desampara completamente,
como uma fonte que seca durante o verão. Ela o deixa em seco,
como um barco naufragado sobre um banco de areia — um
escândalo para a igreja, uma zombaria na boca do incrédulo e uma
miséria para si mesmo. A grande verdade é que o que custa pouco
vale pouco! Uma religião que nada nos custa, e que não consista
em outra coisa senão em ouvir sermões, sempre provará ser uma
atividade inútil, por fim.
É assim que termina o Sermão do Monte. Jamais se havia
pregado um sermão como esse anteriormente. Talvez jamais se
tenha pregado outro igual desde então. Cuidemos para que ele
tenha influência duradoura e permanente sobre nossa alma. Ele foi
dirigido tanto a nós como àqueles que primeiro o ouviram. Nós
somos os que terão de prestar contas pelas lições desse sermão,
lições que nos sondam o coração. O que pensamos a respeito
dessas lições não é questão de pouca importância. A palavra que
Jesus tem proferido, essa mesma palavra nos julgará no último dia
(Jo 12.48).
Curas de lepra, paralisia e febre
Leia Mateus 8.1-15

N o oitavo capítulo do evangelho de Mateus, são descritos nada


menos do que cinco milagres efetuados por nosso Senhor.
Nisso há uma maravilhosa concordância. Convinha que o maior
sermão jamais pregado fosse imediatamente seguido por uma forte
prova de que o pregador era o Filho de Deus. Aqueles que ouviram
o Sermão do Monte foram forçados a confessar que, assim como
“jamais alguém falou como este homem”, também ninguém jamais
fez tais prodígios.
Nos versículos que acabamos de ler, encontramos três grandes
milagres. Um leproso é curado com um toque da mão de Jesus. Um
paralítico é curado por uma palavra. E uma mulher, doente com
febre, recebe de volta, em um instante, a saúde e o vigor. Diante
desses três milagres, podemos perceber três notáveis lições.
Examinemos, pois, essas lições, guardando-as no coração.
Antes de tudo, aprendamos quão grande é o poder de nosso
Senhor Jesus Cristo. A lepra é uma das mais temíveis entre as
enfermidades que podem afetar o corpo de uma pessoa. O portador
dessa doença assemelhava-se a um morto-vivo. Era uma doença
que os médicos consideravam incurável (2Rs 5.7). Mesmo assim,
Jesus disse: “Fica limpo! E imediatamente ele ficou limpo da sua
lepra”. Curar uma pessoa da paralisia, sem ao menos tê-la visto,
apenas dizendo uma palavra, é fazer algo que nossas mentes nem
mesmo podem conceber. Ainda assim, Jesus ordenou, e a cura se
deu imediatamente. Dar a uma mulher acamada pela febre não
apenas o alívio da febre, mas também o imediato restabelecimento
de suas forças para trabalhar, é algo que ultrapassa as habilidades
de qualquer médico. No entanto, Jesus “tomou pela mão” a sogra de
Pedro e “a febre a deixou”. “Ela se levantou e passou a servi-lo.”
Essas são obras de quem é Todo-Poderoso. Não há como escapar
à conclusão lógica: “Isto é o dedo de Deus” (Êx 8.19).
Aqui, encontramos uma base bem ampla para a fé cristã! No
evangelho, somos instruídos a vir a Jesus, a confiar nele, a viver a
vida de fé em Jesus. Somos encorajados a depender de Jesus, a
lançar sobre ele todos os nossos cuidados, a apoiar nele todo o
peso de nossas almas. Podemos fazê-lo sem qualquer dúvida ou
temor. Jesus pode suportar tudo. Ele é uma rocha inabalável. Ele é
o Todo-Poderoso. Um antigo santo do Senhor declarou: “A minha fé
pode repousar com segurança sobre nenhum outro apoio, senão a
onipotência de Cristo”. Ele pode dar vida aos mortos, poder aos
fracos e multiplicar “as forças ao que não tem nenhum vigor” (Is
40.29). Confiemos nele e não toleremos qualquer receio. O mundo
está repleto de armadilhas. Nossos corações são fracos, mas, com
Jesus, nada é impossível.
Ademais, aprendamos quão misericordioso e compassivo é
nosso Senhor Jesus Cristo. As circunstâncias dos três casos que
ora consideramos eram todas diferentes. Ele ouviu a triste petição
do leproso: “Senhor, se quiseres, podes purificar-me”. Falaram-lhe
do servo do centurião, mas Jesus nunca o viu pessoalmente. Ele viu
a sogra de Pedro “acamada e ardendo em febre”, porém não lemos
que ela tenha dito uma única palavra. Não obstante, em cada caso o
coração de nosso Senhor Jesus Cristo mostra-se o mesmo. Ele,
prontamente, demonstrou misericórdia e a disposição de curar.
Cada uma dessas pessoas recebeu sua terna compaixão, e cada
uma recebeu a cura efetiva.
Eis aqui outro fortíssimo fundamento para nossa fé! Nosso
grande Sumo Sacerdote é extremamente gracioso. Ele pode
“compadecer-se das nossas fraquezas” (Hb 4.15). Ele jamais se
cansa de nos fazer o bem. Ele sabe que nós somos um povo fraco e
débil, em meio a um mundo atribulado e cansado. Ele está tão
pronto a ser paciente conosco e a nos ajudar quanto estava dois mil
anos atrás. Hoje continua sendo uma verdade, tanto quanto nos
tempos antigos, que ele “a ninguém despreza” (Jó 36.5). Nenhum
coração pode sensibilizar-se tanto por nós quanto o coração de
Cristo.
Em último lugar, aprendamos quão preciosa é a graça divina da
fé. Pouco sabemos a respeito do centurião descrito nesses
versículos. O nome dele, sua nacionalidade, sua história passada,
nada disso nos é informado. Entretanto, sabemos de uma coisa: ele
creu em Jesus. Declarou ele: “Senhor, não sou digno de que entres
em minha casa; mas apenas manda com uma palavra, e o meu
rapaz será curado”. Lembremo-nos de que ele creu, enquanto os
escribas e os fariseus eram incrédulos. Embora nascido gentio, ele
creu, enquanto o povo de Israel estava espiritualmente cego. A
respeito dele, nosso Senhor proferiu uma palavra de elogio que tem
sido lida por todo o mundo, desde aqueles dias até hoje: “Nem
mesmo em Israel achei fé como esta”.
Apeguemo-nos com firmeza a essa lição. Ela merece ser
relembrada. Crer no poder de Cristo e em sua boa vontade em
ajudar, e fazer uso prático dessa nossa crença, esse é um dom raro
e precioso. Devemos sempre estar agradecidos por termos esse
dom. Estarmos dispostos a vir a Jesus não tendo outra esperança, e
reconhecendo nossa condição de pecadores perdidos, entregando
nossas almas em suas mãos, é um grande privilégio. Sempre
devemos dar graças ao Senhor por essa disposição, pois é um dom
de Deus. Essa fé é melhor do que todos os demais dons ou
conhecimentos neste mundo. Muitos humildes pagãos agora
convertidos, que de nada sabem senão da doença do pecado na
alma, mas que confiam em Jesus, haverão de se assentar no céu,
enquanto muitos doutores em teologia serão rejeitados para
sempre. Verdadeiramente abençoados são os que creem!
O que cada um de nós sabe a respeito dessa fé? Essa é uma
grande questão. Nosso conhecimento pode ser pequeno, mas será
que realmente cremos? Nossas oportunidades para contribuir e
trabalhar pela causa de Cristo podem ser poucas, mas nós cremos?
Talvez não possamos pregar, nem escrever um livro, tampouco
argumentar em favor do evangelho, mas nós cremos? Que jamais
descansemos enquanto não pudermos responder afirmativamente a
essa pergunta! A fé em Jesus Cristo, para os filhos deste mundo,
parece ser algo bastante simples e insignificante. Eles não veem na
fé nada de grande ou importante. Entretanto, a fé em Cristo é
preciosíssima aos olhos de Deus e, tal como tudo que é precioso, é
rara. É pela fé que o cristão verdadeiro vive. Ele permanece na fé. É
pela fé que o cristão vence o mundo. Sem essa fé, ninguém pode
ser salvo.
Cristo e os cristãos professos; a tempestade
acalmada
Leia Mateus 8.16-27

N a primeira parte desses versículos, encontramos um notável


exemplo da sabedoria de nosso Senhor ao tratar com os que
manifestam a disposição de se tornar seus discípulos. Esse trecho
lança tanta luz sobre um assunto frequentemente mal compreendido
em nossos dias que merece consideração especial.
Um escriba ofereceu-se para seguir nosso Senhor aonde quer
que ele fosse. É uma proposta admirável, quando consideramos a
classe social à qual aquele homem pertencia e a ocasião em que foi
proferida. Mas a proposição recebe uma resposta igualmente
admirável, que não foi diretamente aceita, embora também não
tenha sido manifestamente rejeitada. Nosso Senhor tão somente faz
uma réplica solene: “as raposas têm seus covis e as aves do céu,
ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”.
Outro discípulo de nosso Senhor se apresentou em seguida,
pedindo que lhe fosse permitido sepultar o pai, antes de assumir
totalmente os deveres de discípulo. À primeira vista, tal pedido
parece natural e legítimo. Entretanto, a resposta dos lábios de nosso
Senhor não foi menos solene do que a primeira: “Segue-me, e deixa
aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”.
Há algo de profundamente impressionante em ambas as
respostas. Elas deveriam ser devidamente consideradas por todos
os que se professam cristãos. O ensinamento é bem claro: as
pessoas que manifestam o desejo de vir à frente, e que se
professam verdadeiros discípulos de Cristo, deveriam ser
claramente advertidas a “calcular o custo” antes de começar. Será
que estão preparadas para suportar as dificuldades? Estão prontas
a carregar a cruz? Se assim não é, tais pessoas ainda não estão
aptas para começar. As respostas de Jesus nos ensinam
claramente que há ocasiões em que o cristão precisa literalmente
desistir de tudo por amor a Cristo; assim, se necessário, até mesmo
os deveres tão importantes, como o sepultamento de pai ou mãe,
devem ser deixados ao encargo de outras pessoas. Sempre haverá
quem esteja pronto a com parecer em nosso lugar; mas tais deveres
em tempo nenhum podem ser comparados ao dever maior, que é o
de pregar o evangelho e trabalhar pela causa de Cristo no mundo.
Seria bom se essas palavras fossem lembradas com maior
constância nas igrejas. Bem podemos temer que essa lição esteja
sendo por demais negligenciada pelos ministros do evangelho, e
que muitas pessoas estejam sendo admitidas à plena comunhão na
igreja sem a devida advertência para “calcular o custo”. De fato,
nada tem causado maior dano ao cristianismo do que a prática de
encher as fileiras do exército de Cristo com qualquer voluntário que
esteja disposto a fazer uma pequena profissão de fé, e que possa
falar fluentemente de sua experiência religiosa. Infelizmente, tem-se
esquecido que os números apenas não significam poder. Pode
haver uma grande quantidade de mera religiosidade externa,
enquanto há muito pouco da verdadeira graça. Nunca nos
esqueçamos disso. Cuidemos para nada esconder aos recém-
convertidos e às pessoas que agora estão começando a buscar a
Deus. Não deixemos que se enganem com falsas expectativas.
Podemos dizer-lhe que receberão uma coroa de glória no fim, mas
também devemos dizer, não menos claramente, que existe uma
cruz a ser carregada dia após dia.
Na última parte desses versículos, aprendemos que a fé
salvadora com frequência está permeada de muita fraqueza e
instabilidade. Essa é uma lição que nos deixa humilhados, mas que
é deveras salutar.
O texto nos apresenta Jesus e os discípulos atravessando o
mar da Galileia em uma embarcação. Surge uma tempestade, e o
barco está em perigo de se encher de água pela violência das
ondas. Enquanto isso, nosso Senhor está dormindo. Os discípulos,
atemorizados, acordam Jesus e clamam por socorro. Ele atende ao
pedido e faz acalmar as águas com uma palavra, de modo que “fez-
se grande bonança”. Ao mesmo tempo, ele gentilmente censura a
ansiedade de seus discípulos: “Por que sois tímidos, homens de
pequena fé?”.
Temos aqui um retrato bastante nítido do coração de milhares
de crentes! Há tantos que, mesmo possuindo fé e amor suficientes
para abandonar tudo por causa de Cristo, e segui-lo aonde quer que
vá, ainda assim, estão cheios de temor na hora da provação!
Quantos têm graça suficiente para se voltar a Jesus em cada
dificuldade, clamando: “Senhor, salva-nos”, e ainda não têm graça
suficiente para ficar quietos na hora difícil e confiar que tudo está
bem? Verdadeiramente, o crente tem razão de estar sempre cingido
de humildade (1Pe 5.5).
Que a oração: “Senhor, aumenta-nos a fé”, sempre faça parte
de nossas petições diárias. Talvez nunca venhamos a conhecer a
fraqueza de nossa fé enquanto não formos postos na fornalha da
tribulação e da ansiedade. Felizes os que descobrem, por
experiência, que sua fé é capaz de resistir ao fogo, e que podem,
como Jó, dizer: “Ainda que ele me mate, nele esperarei” (Jó 13.15).
Temos razões grandiosas para agradecer a Deus por Jesus,
nosso grande Sumo Sacerdote, pois ele é muito compassivo e terno
de coração. Ele conhece nossa estrutura. Ele leva em conta nossas
enfermidades. Ele não lança fora seu povo por causa de defeitos.
Ele se compadece até mesmo dos que repreende. A oração, mesmo
de “pequena fé”, é ouvida e obtém resposta.
Expulsão de demônios na terra dos gadarenos
Leia Mateus 8. 28-34

O assunto desses sete versículos é profundo e misterioso. Aqui, a


expulsão do demônio é descrita com especial abundância de
detalhes. Essa é uma das passagens que lançam forte luz sobre um
assunto tão difícil e obscuro.
Vamos deixar bem estabelecido em nossa mente que o diabo
existe. Essa é uma terrível verdade, mas que é muito
desconsiderada. Existe um espírito invisível sempre próximo a nós,
poderoso e cheio de malícia interminável contra nossas almas.
Desde o princípio da Criação, ele tem-se esforçado em prejudicar o
homem. Até que o Senhor Jesus venha pela segunda vez e o
prenda, o diabo jamais cessará de tentar e causar dano. Nos dias
em que nosso Senhor estava sobre a terra, é evidente que o diabo
tinha um poder peculiar sobre os corpos de certos homens e
mulheres, como também sobre suas almas. Mesmo em nossos dias,
existe mais dessa possessão demoníaca corporal do que alguns
supõem existir, embora em um grau evidentemente menor do que
quando Cristo veio na carne. Porém, nunca nos deveríamos
esquecer que o diabo está sempre bem perto de nós em espírito, e
sempre pronto a nos assaltar o coração com tentações.
Em seguida, que nos conscientizemos de que o poder do diabo
é limitado. Embora ele seja tão poderoso, existe Alguém ainda mais
poderoso. Embora seja tão perspicaz e tão determinado em seu
intuito de prejudicar a humanidade, ele só pode agir com permissão.
Esses mesmos versículos nos mostram que os espíritos malignos
só podem ir de um lugar para outro e causar destruição até o tempo
que lhes foi permitido pelo Senhor dos Senhores: “Viestes aqui
atormentar-nos antes do tempo?”, perguntaram eles. Mesmo a
petição que fizeram a Jesus nos mostra que eles não podiam causar
dano nem mesmo aos porcos, a menos que Jesus, o Filho de Deus,
lhes desse permissão. “Manda-nos para a manada dos porcos”,
disseram eles.
Assim, deixemos firmemente estabelecido em nossas mentes
que nosso Senhor Jesus Cristo é o grande Libertador do homem em
relação ao poder do diabo. Ele não somente pode “remir-nos de
toda iniquidade”, como também deste “presente mundo mau” e do
diabo. Há muito tempo foi profetizado que o Senhor haveria de
esmagar a cabeça da serpente. Jesus começou a esmagar a
cabeça da serpente quando nasceu da virgem Maria. Ele triunfou
sobre a cabeça da serpente quando morreu na cruz. Ele mostrou
seu domínio total sobre Satanás, “curando a todos os oprimidos do
diabo”, quando estava sobre a terra (At 10.38). Nosso grande
recurso, em todos os ataques do diabo, é clamarmos ao Senhor
Jesus e buscarmos sua ajuda. Ele pode romper as cadeias que
Satanás lança à nossa volta e nos libertar. Ele pode expulsar
qualquer demônio que nos atormente o coração, tão certo como nos
dias da antiguidade. Seria realmente uma lástima saber que o diabo
existe e está sempre perto de nós, se não soubéssemos que Cristo
“pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo
sempre para interceder por eles” (Hb 7.25).
Não deixemos essa passagem sem observar o doloroso
mundanismo dos gadarenos, entre os quais foi operado o milagre da
expulsão de demônios. Os gadarenos rogaram ao Senhor Jesus
“que se retirasse da terra deles”. Eles não se sensibilizavam com
nada, a não ser com a perda de seus porcos. Pouco importava que
duas pobres criaturas, com duas almas imortais, tivessem sido
libertadas da escravidão de Satanás. Para eles, também não
importava que estivesse ali entre eles alguém muito superior ao
diabo, a saber, Jesus Cristo, o Filho de Deus. Não se importaram
com nada, senão com o fato de que a manada de porcos se afogara
e “que se lhes desfizera a esperança do lucro”. Na ignorância, os
gadarenos consideraram Jesus alguém que se colocava entre eles e
seus lucros, e só desejavam ficar livres dele.
Existe um número demasiadamente grande de pessoas como
os gadarenos. Há milhares de pessoas que não dão a mínima
importância a Cristo ou a Satanás, desde que possam ganhar mais
dinheiro e desfrutar um pouco mais das coisas deste mundo. Que
nós possamos estar livres desse espírito! Contra ele, que possamos
sempre vigiar e orar! Ele é muito comum e terrivelmente contagioso.
A cada nova manhã, relembremo-nos de que temos almas a serem
salvas e que, um dia, morreremos e teremos de enfrentar o
julgamento divino. Cuidemos em não amar o mundo mais do que a
Cristo. Que tomemos cuidado para não estorvar a salvação de
outras pessoas, por temor de que o processo da religião verdadeira
possa diminuir nossos ganhos ou nos trazer problemas.
A cura do paralítico; a chamada de Mateus, o
Publicano
Leia Mateus 9.1-13

O bservemos, na primeira parte dessa passagem, o


conhecimento que nosso Senhor tem dos pensamentos dos
homens. Alguns dos escribas acharam defeito nas palavras de
Jesus ao paralítico. Diziam secretamente, consigo: “Este blasfema”.
Provavelmente imaginavam que ninguém soubesse o que se
passava em suas mentes. Ainda precisavam aprender o fato de que
o Filho de Deus pode ler os corações e discernir os espíritos. Seu
pensamento malicioso foi publicamente desmascarado. Eles foram
abertamente expostos à vergonha.
Nisso, há uma importante lição para nós: “Todas as cousas
estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de
prestar contas” (Hb 4.13). Nada pode ser ocultado de Jesus Cristo.
O que pensamos às ocultas, quando ninguém nos vê? O que
pensamos quando estamos na igreja, parecendo tão sérios e
respeitosos? Sobre o que estamos pensando neste exato momento,
enquanto estas palavras passam diante de nossos olhos? Jesus
sabe. Jesus vê. Jesus registra tudo. Um dia, Jesus nos chamará
para a prestação de contas. Está escrito que Deus, por meio de
Cristo Jesus, julgará os segredos dos homens, de acordo com o
evangelho (Rm 2.16). Sem dúvida alguma, devemos ser muito
humildes quando consideramos essas coisas. Deveríamos a cada
dia agradecer a Deus pelo fato de o sangue de Cristo purificar-nos
de todo pecado. Deveríamos sempre clamar: “As palavras dos meus
lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua
presença, Senhor, rocha minha e redentor meu!” (Sl 19.14).
Em segundo lugar, observemos a maravilhosa chamada do
apóstolo Mateus para ser um discípulo de Cristo. Encontramos
sentado, na coletoria de impostos, o homem que, mais tarde,
escreveria o primeiro evangelho. Nós o vemos absorvido em sua
ocupação secular, talvez não pensando em outra coisa senão em
dinheiro e lucro. Subitamente, entretanto, recebe o chamado para
seguir a Jesus e tornar-se seu discípulo. Mateus obedece
imediatamente; apressa-se, não se detém (Sl 119.60) e obedece à
ordem de Cristo. Ele se levanta e segue Jesus.
Que seja um princípio bem estabelecido em nossa religião que,
para Cristo, nada é impossível! Ele pode tomar um coletor de
impostos e transformá-lo em apóstolo. Ele pode mudar qualquer
coração humano e fazer novas todas as coisas. Que nunca
desesperemos da salvação de quem quer que seja! Continuemos
orando, testemunhando e trabalhando para o bem das almas dos
piores homens. “A voz do Senhor é poderosa” (Sl 29.4). Quando o
Senhor diz, pelo poder do Espírito, “segue-me”, pode fazer os mais
endurecidos e os mais pecaminosos obedecerem.
Observemos a decisão de Mateus. Ele não esperou por uma
ocasião mais oportuna (At 24.25). Em consequência, obteve grande
recompensa. Ele escreveu um livro que se tornou conhecido em
todo o mundo. Tornou-se uma bênção para outras pessoas, além de
ser abençoado em sua própria alma. Ele deixou atrás de si um
nome que é mais conhecido do que o nome de príncipes e reis. O
homem mais rico do mundo ao morrer é logo esquecido. Porém,
enquanto durar o mundo, milhões de pessoas conhecerão o nome
de Mateus, o Publicano.
Em último lugar, notemos a preciosa declaração de nosso
Senhor a respeito de sua própria missão. Os fariseus acharam falta
nele, porquanto permitia que publicanos e pecadores estivessem em
sua companhia. Em sua cegueira orgulhosa, eles imaginavam que
um mestre enviado do céu jamais deveria entrar em contato com
pessoas dessa natureza. Eles ignoravam totalmente o grandioso
desígnio pelo qual o Messias viera a este mundo — para ser
Salvador, médico; para curar as almas enfermas pelo pecado. Eles
receberam dos lábios de nosso Senhor uma reprimenda, seguida de
palavras abençoadas: “não vim chamar justos, e, sim, pecadores ao
arrependimento”.
Certifiquemo-nos de compreender perfeitamente a doutrina
contida nessas palavras. O que é primariamente necessário para se
ter interesse em Cristo é sentirmos profundamente nossa própria
corrupção e estarmos dispostos a ir a Jesus para que sejamos
libertos. Não devemos ficar longe de Cristo — como muitos, em sua
ignorância, o fazem — somente porque nos sentimos maus, ímpios
e indignos. Devemos lembrar que ele veio ao mundo para salvar os
pecadores; e, se nos reconhecemos como tais, isso é bom. Feliz é
quem realmente entende que a principal qualificação para ir a Cristo
é um profundo senso de pecado!
Finalmente, se, pela graça de Deus, realmente entendemos a
gloriosa verdade de que Jesus Cristo veio para chamar os
pecadores, então que jamais nos esqueçamos disso. Não devemos
cultivar a ilusão de que crentes verdadeiros possam atingir um tal
estado de perfeição neste mundo a ponto de não mais precisarem
da mediação e da intercessão de Cristo. Éramos pecadores quando
viemos a Cristo; e pobres e necessitados pecadores continuaremos
a ser, enquanto vivermos, recebendo toda a graça de que dispomos,
a cada momento, da plenitude de Cristo. Mesmo na hora de nossa
morte, veremos que ainda somos pecadores, e estaremos tão
dependentes do sangue de Cristo quanto no primeiro dia em que
cremos.
Vinho novo e odres velhos; a ressurreição da filha
de Jairo
Leia Mateus 9.14-26

O
noivo”.
bservemos, nessa passagem, o gracioso nome pelo qual o
Senhor Jesus fala de si mesmo. Ele chama a si mesmo de “o

O que o noivo representa para sua noiva, o Senhor Jesus


representa para as almas de todos os que nele creem. Ele os ama
com amor profundo e eterno. Ele os toma para que vivam em união
consigo mesmo. Eles são um em Cristo, e Cristo une-se a eles. Ele
paga todos os débitos deles para com Deus. Ele lhes supre todas as
necessidades diárias. Ele simpatiza com eles em todas as
dificuldades. Ele suporta com paciência todas as inseguranças
deles, e não os rejeita por causa de algumas poucas fraquezas. Ele
os considera parte de si mesmo. Os que perseguem e prejudicam
os discípulos de Cristo estão perseguindo a ele mesmo. Um dia, o
Senhor haverá de compartilhar com seus remidos a glória que
recebeu da parte do Pai e, onde ele estiver, ali estarão também eles.
Tais são os privilégios de todos os verdadeiros cristãos. Eles são a
noiva do Cordeiro (Ap 19.7). Essa é a porção à qual a fé dá acesso.
Por meio dessa fé, Deus une nossas pobres almas pecaminosas a
um precioso Noivo, e aqueles a quem Deus une jamais serão
separados. Verdadeiramente abençoados são os que creem!
Em segundo lugar, observemos como é sábio o princípio que o
Senhor estabelece para o tratamento de seus novos discípulos.
Houve alguns que acharam errado o fato de os seguidores de
Nosso Senhor não jejuarem, como faziam os discípulos de João
Batista. Nosso Senhor defende seus discípulos com um argumento
cheio de profunda sabedoria. Ele mostra que o jejum não seria
apropriado enquanto ele, que era o Noivo, estivesse em companhia
deles. Mas isso não é tudo. Jesus vai mais além, a fim de mostrar,
mediante duas parábolas, que os jovens principiantes na escola do
cristianismo devem ser tratados com gentileza. Eles precisam ser
ensinados gradativamente, na medida que possam suportar. Não
podemos esperar que possam receber tudo de uma vez.
Negligenciar essa regra seria uma tolice tão grande quanto guardar
“vinho novo em odres velhos”, ou pôr “remendo de pano novo em
vestido velho”.
Nisso há uma fonte de profunda sabedoria, que todos faríamos
bem em relembrar, para o ensino espiritual dos que têm pouca
experiência. Devemos ter o cuidado de não atribuir excessiva
importância às questões secundárias da religião. Não devemos
apressar-nos em exigir imediata conformidade a uma norma rígida
quanto a coisas indiferentes, enquanto os princípios elementares do
arrependimento e da fé não tiverem sido devidamente apreendidos.
Devemos orar por graça e bom senso cristão para nos guiarem
nesse assunto. O tato no relacionamento com os novos discípulos
de Cristo é um dom raro, mas muito proveitoso. Saber em que
devemos insistir desde o princípio, como absolutamente necessário,
e o que reservar para o futuro, quando o discípulo tiver alcançado
um conhecimento mais perfeito, essas são as maiores qualificações
de um instrutor de almas.
Em seguida, observemos quanto encorajamento nosso Senhor
dá, até mesmo à fé mais humilde. Nessa passagem, lemos que
certa mulher, afligida por uma grave enfermidade, veio por trás do
Senhor Jesus, em meio à multidão, e lhe tocou “na orla da veste”,
na esperança de que, se assim o fizesse, seria curada de seu
flagelo. A mulher não proferiu uma palavra, pedindo auxílio. Ela não
fez nenhuma confissão pública de fé. No entanto, confiava que, se
ao menos tocasse nas vestes de Jesus, ficaria curada. E foi o que
sucedeu. Oculta naquele seu ato, havia uma preciosa semente de fé
em Jesus, elogiada por nosso Senhor. A mulher foi
instantaneamente curada e voltou para casa em paz. Nas palavras
de um antigo escritor: “Veio em tremores, mas saiu em triunfo”.
Guardemos na mente essa história. Ela pode nos ajudar
poderosamente em alguma hora de necessidade. Nossa fé talvez
seja fraca. Nossa coragem pode ser pequena. Nossa apreensão do
evangelho e de suas promessas talvez seja frágil e estremecida.
Porém, a grande pergunta, afinal, é esta: “Na realidade, confiamos
somente em Cristo? Olhamos para Jesus, e somente para Jesus,
para receber perdão e paz?”. Se assim acontece conosco, isso é um
bom sinal. Embora não possamos tocar em suas vestes, podemos
tocar no coração de Jesus. Uma fé assim salva a alma. A fé fraca é
menos consoladora do que a fé vigorosa. A fé fraca vai nos levar
para o céu com muito menos regozijo do que teríamos se fôssemos
totalmente confiantes. Mas a fé, embora fraca, dá-nos os benefícios
de Cristo, tanto quanto a fé mais vigorosa. Quem ao menos tocar
nas vestes de Jesus sob hipótese nenhuma perecerá.
Em último lugar, observemos nessa passagem o poder infinito
de nosso Senhor. Ele devolve a vida a uma pessoa morta. Quão
admirável deve ter sido aquela cena! Quem, ao ter visto uma pessoa
morrer, poderá esquecer-se da imobilidade, do silêncio e da frieza
quando o fôlego da vida abandona o corpo? Quem pode esquecer o
horrível sentimento de que uma coisa terrível aconteceu e que um
enorme abismo foi aberto entre nós e a pessoa falecida? Eis,
porém, que nosso Senhor entra no quarto em que jaz o corpo da
menina, e chama de volta o espírito ao seu tabernáculo terrestre. O
pulso começa a bater novamente. Os olhos veem outra vez. A
respiração novamente vem e vai. A filha do chefe da sinagoga está
viva novamente, restituída a seu pai e sua mãe. Manifestara-se ali a
verdadeira onipotência! Ninguém poderia ter realizado tal feito
senão aquele que, no princípio, criou o homem, e que tem todo o
poder no céu e na terra.
Esse é um aspecto da verdade que nunca poderemos
conhecer bem demais. Quanto mais claramente vemos o poder de
Cristo, mais aptos estamos para experimentar a paz do evangelho.
Nossa condição poderá ser penosa. Nosso coração pode ser fraco.
Talvez sintamos grande dificuldade em prosseguir a jornada neste
mundo. Nossa fé pode parecer-nos demasiadamente fraca para nos
conduzir ao céu. Porém, meditando a respeito de Jesus, tomemos
coragem, e não nos deixemos arrastar pelo desânimo. Maior é
aquele que é por nós do que todos que são contra nós. Nosso
Salvador pode ressuscitar os mortos. Nosso Salvador é Todo-
Poderoso.
A cura de dois cegos; Jesus se compadece da
multidão; o dever dos discípulos
Leia Mateus 9.27-38

N esse texto, há quatro lições que merecem atenção especial.


Vamos examiná-las sucessivamente.
Antes de tudo, marquemos bem que, algumas vezes, uma fé
poderosa em Cristo pode ser encontrada onde menos se suspeita.
Quem poderia imaginar que dois cegos pudessem chamar nosso
Senhor de “Filho de Davi”? Naturalmente, eles não tinham visto os
milagres realizados por Jesus. Só podem ter tomado conhecimento
dele mediante o que outras pessoas lhes diziam. Porém, os olhos
de seu entendimento foram iluminados, embora seus olhos físicos
continuassem em trevas. E, assim, perceberam a verdade que os
escribas e os fariseus não foram capazes de perceber.
Compreenderam que Jesus de Nazaré era o Messias. Creram que
ele podia curá-los.
Um exemplo assim mostra-nos que jamais nos deveríamos
desesperar da salvação eterna de qualquer pessoa somente porque
vive em circunstâncias que são desfavoráveis à sua conversão. A
graça divina é mais forte do que as circunstâncias. A vida piedosa
não depende meramente de condições vantajosas aparentes. O
Espírito Santo pode proporcionar fé e mantê-la em ativo exercício,
sem dinheiro ou educação formal, mas apenas utilizando-se de
escassos meios de graça. Sem o Espírito Santo, um homem pode
conhecer todos os mistérios e viver sob a plena influência do
evangelho, e, ainda assim, estar perdido. Veremos cenas muito
estranhas no último dia. Pessoas de condição humilde mostrarão ter
crido no Filho de Davi, ao passo que homens ricos, cheios de
erudição universitária, mostrarão ter vivido e morrido como os
fariseus, na mais dura incredulidade. Muitos dos que agora são os
últimos serão os primeiros, e muitos dos que agora são primeiros
serão últimos (Mt 20.16).
A seguir, vejamos o fato de que nosso Senhor Jesus Cristo
tinha uma grande experiência com enfermidades e doenças.
“Percorria Jesus todas as cidades e povoados”, fazendo o bem. Ele
foi testemunha ocular de todos os males herdados pela carne. Ele
viu doenças de todo tipo, variedade e descrição. Entrou em contato
com toda sorte de doenças e sofrimentos físicos. E, por mais
repugnantes que fossem, não se sentiu repelido por ter de tratar
com qualquer das pobres vítimas desses sofrimentos. Nenhuma
doença era por demais repelente para ele curar. Ele curava “toda
sorte de doenças e enfermidades”.
Podemos obter grande consolo desse fato. Cada um de nós
habita em um corpo débil e frágil. Nunca sabemos quanto
sofrimento ainda precisaremos contemplar enquanto nos
assentamos à beira do leito de enfermidades de amigos e parentes
queridos. Nunca sabemos quantos sofrimentos teremos nós
mesmos de passar antes de nossa morte. No entanto, armemo-nos,
a todo instante, com o precioso pensamento de que Jesus é
especialmente apto para ser o Amigo dos doentes. Esse nosso
grande Sumo Sacerdote, a quem devemos recorrer para termos
perdão e paz com Deus, está eminentemente qualificado para se
compadecer de um corpo dolorido, bem como para sarar uma
consciência culpada. Os olhos daquele que é o Rei dos reis muitas
vezes se compadeceram dos enfermos. Este mundo pouco ou nada
se importa com os doentes e, geralmente, procura manter-se
afastado. Mas o Senhor Jesus tem cuidado especial pelos
enfermos. Ele é o primeiro a visitá-los e a dizer-lhes: “Eis que estou
à porta e bato”. Felizes são aqueles que ouvem a sua voz e deixam-
no entrar!
Assinalamos, em seguida, a terna preocupação de nosso
Senhor com as almas negligenciadas. Quando estava neste mundo,
Jesus viu “multidões” que vagavam, como “ovelhas que não têm
pastor”, e seu coração moveu-se de compaixão. Ele as via
negligenciadas por aqueles que, na época, deveriam ter sido seus
mestres. Ele via uma multidão de pessoas ignorantes, sem
esperança, desamparadas, morrendo sem estar preparadas para a
morte. Essa visão levou Jesus à profunda compaixão. Aquele
coração amoroso não podia ver essas coisas sem se comover.
Quais são nossos sentimentos quando vemos pessoas nessa
mesma condição? Essa é a pergunta que deveria surgir em nossa
mente. Há um grande número de pessoas nessas condições, que
podemos ver por toda a parte. Há milhões de idólatras e pagãos na
terra, milhões de iludidos islamitas, milhões de católicos
supersticiosos romanos. Há também milhares de protestantes
ignorantes, vivendo bem junto a nós. Sentimo-nos grandemente
preocupados com tais almas? Sentimos profundamente a carência
espiritual dessas pessoas? Ansiamos por vê-las aliviadas dessas
carências? Essas são perguntas sérias e que exigem resposta. É
fácil desprezar as missões aos pagãos, bem como àqueles que
trabalham em favor dos incrédulos. Porém, quem não sente
profundamente pela alma dos não convertidos certamente não pode
ter a mente de Cristo (1Co 2.16).
Destaquemos, em último lugar, que há um solene dever para
todos os crentes que desejam fazer o bem à porção ainda não
convertida da humanidade. Eles são incumbidos de sempre orar
para que o Senhor levante mais homens para o trabalho da
conversão das almas. Parece mesmo que esta petição deve fazer
parte de nossas orações diárias: “Rogai, pois, ao Senhor da seara
que mande trabalhadores para a sua seara”.
Se sabemos orar, tomemos como uma questão de consciência
jamais nos esquecer dessa solene incumbência que nos foi dada
por nosso Senhor. Fixemos bem em nossa mente que essa é uma
das maneiras mais seguras de se praticar o bem e refrear o mal. O
trabalho pessoal em favor de almas é bom. Contribuir com a obra
missionária é bom. Mas o melhor de tudo é orar. Pela oração,
alcançamos aquele sem o qual todo o trabalho e todo o dinheiro
disponível são inúteis. Mediante a oração, obtemos a ajuda do
Espírito Santo. O dinheiro pode financiar. As universidades podem
conferir erudição. As congregações podem eleger obreiros, e as
autoridades eclesiásticas, ordená-los. Porém, somente o Espírito
Santo pode fazer os verdadeiros ministros do evangelho ou levantar
os obreiros leigos para a seara espiritual, obreiros que não têm de
que se envergonhar. Jamais nos esqueçamos de que, se desejamos
fazer o bem à humanidade, nosso primeiro dever é orar!
O envio dos primeiros pregadores cristãos
Leia Mateus 10.1-15

E ste capítulo é particularmente solene. Aqui, lemos sobre a


primeira ordenação que teve lugar na Igreja de Cristo. O
Senhor Jesus escolhe e envia seus doze apóstolos. Temos aqui a
primeira incumbência conferida a ministros cristãos recém-
consagrados. O Senhor Jesus mesmo foi quem os ordenou. Nunca
houve uma ordenação tão importante!
Há três lições que se destacam com proeminência nos
primeiros quinze versículos deste capítulo. Vamos examiná-las pela
ordem.
Em primeiro lugar, somos ensinados de que nem todos os
ministros do evangelho são, necessariamente, homens bons. Vemos
nosso Senhor escolhendo Judas Iscariotes para ser um de seus
apóstolos. Não podemos duvidar de que aquele que conhecia tão
bem os corações conhecia também o caráter de cada um dos
homens a quem escolheu. No entanto, ele incluiu na lista dos
apóstolos um homem que era um traidor!
Faremos bem em sempre lembrar esse fato. A ordenação para
o ministério não confere a graça salvadora do Espírito Santo.
Homens ordenados não são necessariamente convertidos. Não
devemos considerá-los infalíveis, seja na doutrina, seja na prática.
Não podemos fazer deles papas ou ídolos, e, insensatamente, levá-
los a ocupar o lugar de Jesus Cristo. Antes, devemos considerá-los
homens “sujeitos às mesmas paixões que nós”, sujeitos às mesmas
fraquezas, e que diariamente necessitam da mesma graça divina.
Não devemos pensar que é impossível que eles pratiquem coisas
muito ruins, nem devemos esperar que estejam acima dos danos
causados por bajulação, cobiça e atrativos deste mundo. Devemos
testar os ensinamentos desses homens por meio da Palavra de
Deus, e imitá-los na medida em que eles seguem Cristo, nunca mais
do que isso. Acima de tudo, porém, devemos orar por eles, para que
sejam sucessores, não de Judas Iscariotes, mas, sim, de Tiago e de
João. É coisa seriíssima ser um ministro do evangelho! Os ministros
precisam de muita oração a seu favor.Em seguida, vemos que a
grande obra de um ministro de Jesus Cristo é fazer o bem. Ele é
enviado para buscar as “ovelhas perdidas”, para proclamar as boas-
novas, para aliviar os que estão em sofrimento, para diminuir a
tristeza e aumentar o regozijo. A vida de um ministro deve
caracterizar-se pelo dar, mais do que pelo receber.
Esse é um padrão de vida elevado e muito peculiar ao
ministério cristão. Portanto, que seja bem sopesado e
cuidadosamente examinado. Antes de tudo, é evidente que a vida
de um fiel ministro de Cristo não pode ser uma vida fácil. Todo
ministro de Cristo deve dispor-se a gastar seu corpo e sua mente,
seu tempo e suas energias na tarefa para a qual foi chamado. A
preguiça e a frivolidade são intoleráveis em qualquer profissão, mas
são piores ainda no ofício da sentinela de almas. Também está claro
que a posição dos ministros de Cristo não coincide com aquilo que,
muitas vezes, pessoas ignorantes lhes atribuem e que, infelizmente,
certos ministros reivindicam para si. Eles não são ordenados para
dominar, mas para servir. Não lhes compete tanto exercer domínio
sobre a igreja quanto suprir as necessidades de seus membros e
servir a eles (2Co 1.24). Bom seria para a causa da verdadeira
religião se tais coisas fossem bem compreendidas! Metade dos
males do cristianismo surge de noções equivocadas a respeito do
ofício do ministro.
Em último lugar, vemos que é muito perigoso negligenciar os
oferecimentos do evangelho. “Menos rigor haverá para Sodoma e
Gomorra, no dia do juízo”, do que para aqueles que já ouviram a
verdade acerca de Cristo, mas não a receberam.
Essa é uma doutrina que tem sido temivelmente negligenciada,
embora mereça a mais séria consideração de nossa parte. Os
homens inclinam-se, lamentavelmente, a se esquecer de que não é
necessário cometer pecados gravíssimos para que uma alma seja
arruinada para todo o sempre. Basta que a pessoa continue ouvindo
o evangelho mas não crendo, escutando mas não arrependendo-se,
vindo à igreja mas não vindo a Cristo; assim, pouco a pouco,
acabará no inferno! Todos nós seremos julgados de acordo com a
luz que recebemos. Ouvir as boas-novas da “grande salvação”, mas
negligenciá-las, é um dos piores pecados que podemos cometer (Jo
16.9).
O que estamos fazendo com o evangelho? Essa é a indagação
que cada um que lê essa passagem bíblica deve fazer diante de sua
própria consciência. Suponhamos que nós mesmos sejamos
pessoas decentes e respeitáveis, corretas e morais em todas as
relações da vida, e constantes em nossa aproximação formal aos
meios de graça. Quanto a essas coisas, tudo está muito bem.
Entretanto, isso seria tudo que pode ser dito a nosso respeito?
Estamos realmente acolhendo o amor à verdade? Cristo está
habitando em nossos corações, por meio da fé? Caso contrário,
estamos correndo um terrível perigo. Estamos sendo muito mais
culpados do que os homens de Sodoma, os quais jamais ouviram o
evangelho. Um dia, podemos descobrir que, a despeito de toda a
nossa regularidade, moralidade e correção, estamos perdidos para
sempre. O fato de termos vivido sob a luz plena dos privilégios
cristãos e de termos ouvido a pregação fiel do evangelho, semana
após semana, isso apenas não nos livrará da condenação. Tem de
haver a experiência pessoal com Cristo. Precisamos receber
pessoalmente a verdade de Cristo. É preciso existir uma união vital
com ele. Devemos tornar-nos seus servos e discípulos. Sem isso, a
pregação do evangelho só faz aumentar nossa responsabilidade,
tornando-nos ainda mais culpados, e, por fim, nos fará afundar
ainda mais profundamente no inferno.
É difícil ouvir essas declarações. Porém, as palavras das
Escrituras que temos acabado de ler são claras e inequívocas. Elas
são todas verdadeiras.
Instruções aos primeiros pregadores cristãos
Leia Mateus 10.16-23

A s verdades contidas nesses versículos deveriam ser


ponderadas por todos os que procuram fazer o que é direito
neste mundo. Para o egoísta, que não se importa com mais nada
além de seu próprio bem-estar e conforto, talvez pareça haver bem
pouca coisa nesses versículos. Para o ministro do evangelho, bem
como para todos que buscam salvar almas, esses versículos
deveriam estar repletos de interesse. Não há dúvida de que há
muita coisa neles que se aplicava especialmente aos dias dos
apóstolos. Mas há também muita coisa que tem aplicação para
todas as épocas.
Antes de mais nada, aprendemos que os que quiserem
trabalhar na obra do Senhor devem ser moderados quanto às suas
expectativas. Não devem pensar que um sucesso universal
acompanhará seus esforços. Pelo contrário, devem esperar
encontrar muita oposição. Devem ter em mente o fato de que serão
odiados, perseguidos e maltratados, e isso até mesmo da parte de
seus parentes mais próximos. Com frequência, eles se sentirão
como ovelhas entre os lobos.Tenhamos isso sempre em mente. Não
importa se estamos pregando, ensinando ou visitando uma casa,
não importa se estamos escrevendo ou dando conselhos, ou
qualquer outra coisa que estejamos fazendo, deve ser um
pensamento constante não esperarmos mais do que as Escrituras e
a experiência garantem.
A natureza humana é muito mais iníqua e corrupta do que
pensamos. O poder do mal é maior do que supomos. É inútil
imaginar que todos perceberão o que é melhor para eles, e que
acreditarão no que lhes dissermos. Isso seria uma expectativa muito
elevada, e nós ficaríamos desapontados. Feliz é o obreiro de Cristo
que compreende essas coisas desde o início, e que não sente
necessidade de aprendê-las mediante amarga experiência. Aqui
está a razão secreta pela qual muitos têm dado as costas para a
boa causa, depois de terem parecido tão cheios de zelo no princípio.
Começaram com expectativas muito elevadas. Não calcularam o
preço. Caíram no mesmo equívoco do grande reformador alemão,
que confessou ter-se esquecido do fato de que “o velho Adão era
forte demais para o jovem Melancthon”.
Por outra parte, compreendemos que os que desejam fazer o
bem têm necessidade de orar por sabedoria, bom senso e uma
mente sadia. Nosso Senhor diz aos seus discípulos: para serem
“prudentes como as serpentes e símplices como as pombas”.
Também disse que, se fossem perseguidos em alguma cidade, era
legítimo “fugir para outra”.
Poucas foram as instruções dadas por nosso Senhor tão
difíceis de praticar corretamente quanto essa. Jesus demarcou uma
linha entre dois extremos, mas é necessário ter um grande
discernimento para que possamos defini-la. Um desses extremos é
evitar a perseguição, mantendo-nos calados e conservando nossa
religião inteiramente para nós mesmos. Não devemos errar nessa
direção. O outro extremo é cortejar a perseguição, forçar nossa
religião sobre todas as pessoas que encontramos, sem levar em
conta o lugar, a hora ou as circunstâncias. Também somos
advertidos a não errar nessa direção. Bem podemos questionar:
“Quem, porém, é suficiente para estas cousas?”. Temos a
necessidade de clamar ao único e sábio Deus, rogando-lhe
sabedoria.
O extremo para o qual a maioria dos homens se inclina nos
dias atuais é o silêncio, a covardia, deixando os demais
imperturbados. Essa suposta prudência tende a se degenerar em
uma conduta caracterizada pela negligência, ou mesmo pela mais
franca infidelidade. Com demasiada frequência, estamos dispostos
a assumir que, para determinadas pessoas, é inútil tentar fazer o
bem. Justificamo-nos em não envidar esforços para o bem das
almas dessas pessoas, dizendo que seria indiscrição,
inconveniência ou que seria uma ofensa desnecessária, ou que isso
seria uma agressão contra as pessoas. Vigiemos, pois, e ponhamo-
nos em guarda contra essa atitude. Em geral, a preguiça e o diabo
são a verdadeira explicação para essa atitude. Sem dúvida, é
agradável para a carne e o sangue ceder a essa atitude, pois nos
poupa de muitas dificuldades. Entretanto, aqueles que cedem diante
dela geralmente desperdiçam grandes oportunidades de serviço.
Por outro lado, é impossível negarmos que existe um zelo
santo e justo, “porém não com entendimento” (Rm 10.2). É
perfeitamente possível ofender desnecessariamente as pessoas,
cometer grandes equívocos e despertar intensa oposição, que
poderia ter sido evitada com um pouco de prudência, um
procedimento sábio e o exercício de bom senso. Tenhamos o
cuidado de não nos tornar culpados a esse respeito. Podemos ter
certeza de que a sabedoria cristã existe e que é inteira mente
distinta das sutilezas jesuíticas e do procedimento carnal. Que todos
nós procuremos obter essa sabedoria! Nosso Senhor Jesus Cristo
não requer de nós que nos desfaçamos de nosso bom senso
quando procuramos trabalhar para ele. Sempre haverá bastante
ofensa em nossa religião cristã, não importa o que façamos; porém,
não devemos aumentar as possibilidades disso
desnecessariamente. “Portanto, vede prudentemente como andais,
não como néscios, e, sim, como sábios” (Ef 5.15).
De fato, os crentes no Senhor Jesus não oram o suficiente por
um espírito de sabedoria, juízo e bom senso. Eles tendem a pensar
que, se já receberam a graça divina, então já têm tudo de que
precisam. Esquecem-se de que um coração agraciado deveria orar
para ser pleno de sabedoria, assim como do Espírito Santo (At 6.3).
Lembremos que muita graça e bom senso talvez sejam uma das
mais raras combinações existentes. A vida de Davi e o ministério do
apóstolo Paulo, contudo, são provas notáveis de que essa
combinação é possível. Nisso, como em todas as demais coisas,
nosso Senhor Jesus Cristo, pessoalmente, é nosso mais perfeito
exemplo. Ninguém jamais se mostrou tão fiel quanto ele. No
entanto, ninguém jamais foi tão verdadeiramente sábio. Façamos de
Cristo nosso modelo e andemos nos passos dele.
Advertências aos primeiros pregadores cristãos
Leia Mateus 10.24-33

F azer a obra de Deus neste mundo é uma tarefa muito difícil!


Todos que a empreendem descobrem isso por experiência
própria. É preciso ter muita coragem, fé, paciência e perseverança.
Satanás lutará vigorosamente para manter seu reino. A natureza
humana é desesperadamente corrupta. Praticar o mal é fácil. O
difícil é fazer o bem.
O Senhor Jesus sabia disso muito bem quando enviou seus
discípulos para pregar o evangelho pela primeira vez. Mesmo que
eles não soubessem o que os esperava, o Senhor sabia. Ele teve o
cuidado de lhes dar uma lista de palavras de encorajamento, a fim
de animá-los quando se sentissem abatidos. Missionários exaustos
no país distante, ou ministros que se sentem esgotados, mesmo
trabalhando em seu próprio país, professores desalentados e
evangelistas desanimados, todos fariam bem em estudar com
frequência os nove versículos dessa passagem. Observemos o que
eles contêm.
Os que trabalham na obra de Deus não devem esperar ter
melhor sucesso. “O discípulo não está acima de seu mestre, nem o
servo acima de seu senhor.” O Senhor Jesus foi caluniado e
rejeitado por aqueles a quem viera beneficiar. Não havia erros em
sua doutrina. Não havia defeitos em seu método de transmitir a
instrução. Mesmo assim, ele foi odiado e chamado Belzebu. Poucos
creram nele e se importaram com o que ele dizia. Não temos o
direito de ficar surpresos se nós, cujos melhores esforços são
permeados de tantas imperfeições, formos tratados da mesma
maneira que Jesus Cristo o foi. Se não nos importarmos com o
mundo, ele também não se importará conosco. Mas, se intentarmos
o bem-estar espiritual dos homens, então nos odiarão, como fizeram
com nosso grande Mestre.
Os que procuram fazer o bem devem esperar com paciência
pelo dia do juízo. “Nada há encoberto que não venha a ser revelado;
nem oculto que não venha a ser conhecido.” Precisam saber que
serão mal compreendidos, difamados, vilipendiados, caluniados e
maltratados neste mundo. No entanto, não devem deixar de
trabalhar somente porque seus motivos são mal interpretados e o
caráter deles é ferozmente atacado. Devem lembrar-se
continuamente de que todas essas injustiças serão devidamente
corrigidas, no último dia. Os segredos do coração de todos os
homens serão, então, desvendados. Ele “fará sobressair a tua
justiça como a luz, e o teu direito como o sol ao meio-dia” (Sl 37.6).
Por fim, a pureza das intenções dos crentes, a sabedoria dos
labores deles e a retidão da causa que defendem se manifestarão
diante do mundo inteiro. Por conseguinte, continuemos trabalhando
constante e tranquilamente. Talvez os homens não nos
compreendam, opondo-se com veemência a nós. Porém, o dia do
juízo já se aproxima velozmente. Afinal, a justiça nos será feita. O
Senhor, quando voltar ao mundo, “não somente trará à plena luz as
cousas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios
dos corações; e então cada um receberá o seu louvor da parte de
Deus” (1Co 4.5).
Os que procuram fazer o bem devem temer mais a Deus do
que os homens. Os homens podem ferir-nos o corpo, mas isso é o
máximo que podem fazer. Não podem ir mais longe do que isso.
Mas Deus “pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o
corpo”. Se andamos pelo caminho de nosso dever religioso,
podemos ser ameaçados com a perda de nossa reputação,
propriedades e tudo o que torna a vida agradável. Se andamos
corretamente, não devemos temer essas ameaças. Assim como
Daniel e seus três amigos, devemos submeter-nos a qualquer coisa
necessária para não desagradar a Deus e ferir a consciência. Talvez
seja difícil suportar a ira dos homens, mas a ira de Deus é
muitíssimo pior. O temor ao homem pode fazer-nos cair em alguma
armadilha. Mas nós precisamos repelir esse temor com um princípio
muito poderoso: o temor a Deus. O bondoso Coronel Gardiner
disse: “Temo a Deus, portanto não preciso temer a mais ninguém”.
Os que procuram fazer o bem devem trazer na mente o
cuidado providencial que Deus tem por seus filhos. Coisa alguma
pode acontecer neste mundo sem a permissão de Deus. Na
verdade, nada acontece por acaso, acidente ou sorte. “Quanto a vós
outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados.” O caminho
do dever pode às vezes nos conduzir a grandes perigos. Nossa
saúde e a própria vida podem ser ameaçadas quando avançamos
no cumprimento do dever. Portanto, que nos consolemos mediante
o pensamento de que tudo que nos circunda está nas mãos de
Deus! Corpo, alma e caráter, tudo está entregue aos cuidados do
Senhor. Nenhuma enfermidade nos poderá atingir, ninguém nos
poderá ferir, a menos que ele permita. Podemos dizer
confiantemente a tudo que nos ameace: “Nenhuma autoridade terias
sobre mim se de cima não te fosse dada” (Jo 19.11).
Finalmente, os que procuram fazer o bem devem relembrar
continuamente o dia em que se encontrarão com o Senhor para
receber a parte que lhes cabe. Se desejam que Cristo os reconheça
e os confesse diante do trono de seu Pai, precisam confessar diante
dos homens seu nome, e não envergonhar-se dele. Fazer isso
poderá custar-nos muita coisa. Pode trazer contra nós riso,
escárnio, perseguição e zombaria. Porém, mesmo que zombem de
nós, lembremo-nos de que temos um galardão no céu. Não nos
esqueçamos do grande e temível dia da prestação de contas, e não
tenhamos receio de mostrar aos homens que amamos a Cristo e
que desejamos que eles também o amem.
Que esses encorajamentos fiquem entesourados no coração
de todos os que trabalham na causa de Cristo, qualquer que seja o
ofício! O Senhor conhece as dificuldades de seus servos, e disse
essas palavras a fim de consolá-los. Ele cuida de todos os que nele
creem, especialmente daqueles que trabalham em sua causa e se
esforçam para fazer o bem. Que todos nós possamos ser contados
entre os obreiros de Cristo! Todo crente pode fazer alguma coisa, se
tentar. Sempre há algo que cada um pode fazer. Cada um de nós
deve ter a visão e a vontade de fazer a obra do Senhor.
Palavras de encorajamento aos primeiros
pregadores cristãos
Leia Mateus 10.34-42

N esses versículos, o grande Cabeça da Igreja conclui a primeira


incumbência que determinou àqueles que estava enviando
para divulgar seu evangelho. Jesus declarou três grandiosas
verdades, que formam uma apropriada conclusão ao seu discurso.
Em primeiro lugar, Cristo ordena que nos lembremos que o
evangelho nem sempre instaurará a paz e a concórdia onde for
anunciado. “Não vim trazer paz, mas espada.” O objetivo da
primeira vinda de Cristo à terra não foi o de inaugurar um reino
milenar, dentro do qual todos teriam uma única atitude mental;
antes, ele veio trazer o evangelho, que haveria de provocar divisões
e contendas. Não temos o direito de nos sentir surpresos se essa
predição vai sendo incessantemente cumprida. Não devemos
estranhar se o evangelho chegar a dividir famílias inteiras,
separando até mesmo os parentes mais chegados. Com certeza,
esse será o resultado do evangelho em muitos casos, por causa da
arraigada corrupção do coração humano. Enquanto um homem crê
e outro permanece na incredulidade, enquanto um homem resolve
desistir de seus pecados, mas outro está resolvido a continuar no
pecado, o resultado da pregação do evangelho será a divisão. Não
devemos culpar o evangelho, mas, sim, o coração do homem.
Nesses ensinamentos, há uma profunda verdade, embora seja
constantemente esquecida e negligenciada. Muitos falam em termos
vagos acerca de unidade, harmonia e paz na Igreja de Cristo, como
se devêssemos esperar por essas coisas, sacrificando todo o resto.
Tais pessoas fariam bem em lembrar as palavras de nosso Senhor.
Não há dúvida de que a unidade e a paz são bênçãos poderosas.
Deveríamos buscar alcançá-las, orando por elas e até mesmo
desistindo de tudo o mais para as obtermos, excetuando a bondade
e uma boa consciência. Porém, é um sonho vão supormos que as
igrejas de Cristo terão grande unidade e paz, antes que venha o
Milênio.
Em segundo lugar, nosso Senhor nos diz que os verdadeiros
cristãos devem estar preparados para as tribulações neste mundo.
Se somos ministros ou ouvintes, se ensinamos ou somos
ensinados, isso não faz muita diferença. Temos de levar nossa
“cruz”. Devemos estar dispostos a perder até mesmo a própria vida
por amor a Cristo. Devemos submeter-nos à perda do favor dos
homens, suportar as dificuldades e negar a nós mesmos muitas
vezes ou, então, jamais chegaremos ao céu. Enquanto o mundo, o
diabo e nossos próprios corações forem como são, as coisas têm de
ser assim.
Descobriremos quão útil é relembrar-nos dessa lição, para,
então, transmiti-la aos nossos semelhantes. Poucas coisas são mais
prejudiciais à religião do que as expectativas exageradas e
desproporcionais. Certas pessoas esperam encontrar uma medida
de conforto mundano no serviço de Cristo, embora não tenham o
direito de esperar. E, não encontrando o que esperavam, sentem-se
tentadas a desistir, desgostosas, da religião. Feliz é quem
compreende que, embora o cristianismo traga uma coroa no final da
carreira, também traz uma cruz para o caminho.Por fim, nosso
Senhor nos alegra com a declaração de que até mesmo o menor
serviço prestado àqueles que trabalham em sua causa será
observado e recompensado por Deus. “E quem der de beber, ainda
que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser
este meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum
perderá o seu galardão.”
Nessa promessa, há algo maravilhoso. Ela nos ensina que os
olhos de nosso grande Mestre estão perenemente fixos sobre
aqueles que trabalham para ele e procuram fazer o bem. Parece
que essas pessoas trabalham sem que sejam notadas, sem que
sejam consideradas. O trabalho dos pregadores e missionários, dos
professores e dos que visitam os pobres pode parecer de pouco
valor e insignificante, em comparação com os ofícios de reis e
parlamentares, de generais e estadistas. Mas não é insignificante
aos olhos de Deus. Ele observa quem ajuda seus servos e quem se
opõe a eles. Ele observa quem é dócil para seus ministros, como
Lídia agiu com Paulo, e quem põe obstáculos no caminho, como
Diótrefes fez contra o apóstolo João. Toda a experiência diária dos
discípulos de Cristo fica registrada enquanto trabalham na seara do
Mestre. Tudo fica registrado no grande livro das obras e tudo será
revelado no dia do juízo. O copeiro-mor esqueceu-se de José
depois de ter sido restaurado a seu cargo. Mas o Senhor Jesus
jamais se esquece de qualquer um de seu povo. Ele dirá a muitos,
que menos esperam por isso, no dia da ressurreição: “Tive fome e
me destes de comer; tive sede e me destes de beber” (Mt 25.35).
Ao encerrarmos o estudo desse capítulo, perguntamos a nós
mesmos como consideramos a obra e a causa de Cristo neste
mundo. Estamos ajudando ou dificultando essa obra? Estamos
ajudando de alguma maneira os profetas e os “justos”do Senhor?
Estamos auxiliando esses pequeninos? Estamos pondo obstáculos
no caminho ou estamos encorajando os obreiros do Senhor,
procurando animá-los? Essas são perguntas muito sérias. Os que
oferecem o “copo de água fria” sempre que têm a oportunidade
agem bem e com sabedoria. Porém, agem ainda melhor aqueles
que trabalham ativamente na obra do Senhor. Que todos nós nos
esforcemos por deixar este mundo melhor do que aquele em que
nascemos! Isso é ter a mente de Cristo. Isso é descobrir
pessoalmente o valor das maravilhas contidas neste capítulo.
João envia mensageiros a Jesus
Leia Mateus 11.1-15

A primeira coisa que nos chama a atenção nessa passagem é a


mensagem que João Batista envia a nosso Senhor Jesus Cristo. Ele
mandou dois de seus discípulos perguntarem a Jesus: “És tu aquele
que estava para vir, ou havemos de esperar outro?”.
Essa indagação não foi gerada por dúvida ou incredulidade de
João Batista. Faríamos uma grave injustiça àquele grande santo do
Senhor se interpretássemos a pergunta dessa maneira. Ela foi
formulada visando ao benefício dos discípulos de João. Teve a
finalidade de lhes oferecer a oportunidade de ouvir dos próprios
lábios de Cristo a evidência de sua missão divina. Sem dúvida, João
Batista sentiu que seu próprio ministério estava terminado. Alguma
coisa, em seu íntimo, lhe segredava que ele jamais sairia do cárcere
de Herodes; pelo contrário, ele sentia que ali morreria. João
lembrou-se dos ciúmes e das invejas, motivados pela ignorância,
que haviam surgido entre seus discípulos e os de Cristo. Logo,
escolheu o curso mais provável para esses ciúmes serem
dissipados para sempre. Enviou alguns de seus seguidores para
que estivessem “ouvindo e vendo” por si mesmos o que Jesus fazia.
A conduta de João Batista oferece um exemplo extraordinário
para professores, pais e ministros, quando estão chegando ao final
de sua carreira. Sua principal preocupação deveria ser a respeito
das almas que eles deixarão atrás de si neste mundo. E o grande
desejo deles deveria ser persuadir essas almas a se apegar a
Cristo. A morte daqueles que nos têm guiado e instruído neste
mundo sempre deveria produzir esse efeito. Deveria fazer com que
nos apegássemos ainda mais firmemente àquele que nunca mais
morrerá, que continuará para sempre e tem um “sacerdócio
imutável” (Hb 7.24).
Outra coisa que requer nossa atenção, nesse texto, é o
elevado testemunho dado por nosso Senhor no tocante ao caráter
de João Batista. Nenhum homem jamais recebeu tamanha
aprovação quanto essa que Jesus dá a seu amigo que fora
aprisionado. “Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior
do que João Batista.” Nos dias de seu ministério público, João havia
confessado ousadamente a Jesus, perante os homens, mostrando
ser ele o Cordeiro de Deus. Agora, Jesus declarava abertamente
que João Batista era mais do que um mero profeta.
Sem dúvida, havia alguns que estavam inclinados a fazer
pouco-caso de João Batista, em parte por ignorância da natureza do
ministério de João e, em parte, por não terem compreendido a
finalidade da pergunta que ele mandara fazer a Jesus. Nosso
Senhor silenciou esses astuciosos com a declaração a respeito de
João Batista. Jesus lhes disse que não deveriam pensar que João
fosse um homem tímido, vacilante e instável, “um caniço agitado
pelo vento”. Se assim pensassem, estariam totalmente enganados.
João Batista foi uma testemunha poderosa e inflexível da verdade.
Jesus diz que não deveriam supor que João fosse mundano de
coração, apreciador dos palácios reais e da vida fácil. Se assim
estivessem pensando, estariam cometendo um grande erro. João
era um abnegado pregador do arrependimento, que preferiria ser
vítima da ira de um rei a deixar de reprovar os pecados deste. Em
suma, Jesus queria que todos soubessem que João Batista era
“muito mais do que profeta”. João era alguém a quem Deus tinha
dado maior honra do que a todos os profetas do Antigo Testamento.
Na verdade, aqueles profetas haviam profetizado a respeito de
Cristo, mas morreram sem tê-lo visto. João não somente profetizou
a respeito dele, como também o viu face a face. Os profetas haviam
predito que os dias do Filho do homem certamente chegariam e o
Messias apareceria neste mundo. João foi testemunha ocular
desses dias e também um honroso instrumento de preparação dos
homens para esses dias. Aos profetas, foi ordenado predizer que o
Messias “como cordeiro seria levado ao matadouro”, e seria
“cortado da terra dos viventes”. Mas a João Batista fora outorgado
apontar pessoalmente para ele e dizer: “Eis o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo!”.
Há algo de belíssimo e consolador para os verdadeiros crentes
nesse testemunho de nosso Senhor sobre João Batista. Vemos o
interesse que nosso grande Cabeça sente quanto à vida e ao
caráter de todos os seus membros. Vemos quanta honra ele está
pronto a conceder a todo trabalho e labor que os crentes
desempenham, em favor de sua causa. É uma doce antecipação da
confissão que ele fará de seus discípulos perante o mundo inteiro
reunido, quando ele os apresentará inculpáveis diante do trono de
seu Pai, no dia final.
Sabemos, realmente, o que significa trabalhar para Cristo? Já
nos sentimos desanimados e derrotados, como se não
estivéssemos fazendo nenhum bem e ninguém se importasse
conosco? Já nos sentimos tentados a dizer, quando postos de lado
por alguma enfermidade, ou quando retirados de cena pela
providência divina: “Será que tenho trabalhado em vão, gastando
minhas forças inutilmente?”. Enfrentemos tais pensamentos
relembrando o que Jesus disse acerca de João Batista. Recordemo-
nos de que há alguém que registra diariamente tudo que fazemos
em favor dele, e que se agrada mais do trabalho de seus servos do
que eles próprios imaginam. A mesma língua que prestou
testemunho a respeito de João Batista, quando este estava na
prisão, também dará testemunho de todo o seu povo, no último dia.
Ele dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que
vos está preparado desde a fundação do mundo”. Então, as
testemunhas fiéis descobrirão, para sua admiração e grande
surpresa, que jamais proferiram uma única palavra em favor de seu
Mestre pela qual não venham a receber recompensa.
A insensatez dos incrédulos; o perigo de não se
usar a luz
Leia Mateus 11.16-24

E ssas declarações do Senhor Jesus foram provocadas pelo


estado em que se encontrava a nação judaica naquela época.
Elas também falam conosco, em alto e bom som, tanto quanto com
os judeus. As palavras de Jesus projetam uma intensa luz sobre
determinados aspectos do caráter do homem natural. Elas nos
ensinam sobre o perigoso estado em que se encontram muitas
almas imortais hoje em dia.
A primeira parte desses versículos mostra-nos a insensatez de
muitas pessoas não convertidas quanto às questões religiosas. Os
judeus, na época de Jesus Cristo, encontravam falta em qualquer
mestre que Deus lhes enviasse. Primeiro apareceu João Batista,
pregando o arrependimento — um homem austero que se mantinha
afastado da sociedade e vivia como um asceta. Mas isso satisfez
aos judeus? Não! Ao contrário, acharam falta nele e disseram: “Tem
demônio”. Então, veio Jesus, o próprio Filho de Deus, pregando o
evangelho, vivendo como faziam outros homens quaisquer, sem
praticar nenhuma das austeridades peculiares a João Batista. E isso
satisfez aos judeus? Não! Novamente acharam falta e disseram:
“Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e
pecadores!”. Em suma, eles eram perversos e tão difíceis de
contentar quanto crianças teimosas.
É um fato lamentável que sempre existam milhares de
professos cristãos tão insensatos quanto aqueles judeus. Eles são
tão perversos quanto difíceis de contentar. Em tudo o que
ensinamos ou pregamos eles encontram alguma falha. Sem
importar qual seja nossa maneira de viver, eles estão insatisfeitos.
Se falamos da salvação mediante a graça e da justificação pela fé,
imediatamente eles clamam contra nossa doutrina, como se fosse
licenciosa e antinomiana. Falamos da santidade que o evangelho
requer? Prontamente, eles dizem que somos por demais estritos e
exigentes, como se quiséssemos ser justos demais. Estamos
alegres? Eles nos acusam de leviandade. Mostramo-nos graves e
sérios? Então, eles nos rotulam como melancólicos e azedos.
Mantemo-nos afastados de bailes, de corridas e de eventos
esportivos? Então, eles nos denunciam como puritanos,
exclusivistas e conservadores. Comemos, bebemos e nos vestimos
como as demais pessoas e frequentamos eventos sociais e outras
atividades seculares? Então, eles insinuam, zombeteiramente, que
não veem qualquer diferença entre nós e aqueles que não seguem
qualquer religião, dizendo que não somos melhores do que os
demais homens. Ora, o que é tudo isso senão a reiteração da
conduta daqueles judeus incrédulos? “Nós vos tocamos flauta, e
não dançastes; entoamos lamentações, e não pranteastes.” Aquele
que disse essas palavras conhecia perfeitamente bem o coração do
homem.
A verdade incontestável é que os verdadeiros cristãos não
devem esperar que homens não convertidos estejam satisfeitos,
seja com a fé, seja com a conduta dos crentes. Se assim o fizerem,
estarão esperando o que não podem mesmo receber da parte dos
perdidos. Os crentes precisam preparar-se mentalmente para ouvir
objeções, argumentos ardilosos e desculpas tolas, não importa quão
santamente estejam vivendo. Com toda a razão, afirmou Quesnel:
“Não importa quais medidas os homens bons tomem, jamais
conseguirão escapar das censuras do mundo. A melhor coisa a
fazer é não se deixar atingir por essas censuras”. Afinal, o que as
Escrituras dizem? “O pendor da carne é inimizade contra Deus” (Rm
8.7). “Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de
Deus [...]” (1Co 2.14). Essa é a explicação para todo esse assunto.
A segunda parte desses versículos mostra-nos a enorme
iniquidade da impenitência proposital. Nosso Senhor declarou que
“haverá menor rigor” para Tiro, Sidom e Sodoma, no dia do juízo, do
que para aquelas cidades que tinham ouvido os sermões e
contemplado os milagres de Jesus, mas não se arrependeram.
Essa declaração se reveste de uma solenidade toda especial.
Examinemo-la, pois, detidamente. Pensemos, por alguns instantes,
em quanta imoralidade, devassidão, idolatria e escuridão espiritual
deve ter havido em Tiro e Sidom. Relembremos a indizível
iniquidade de Sodoma. Recordemo-nos de que as cidades
designadas por nosso Senhor — Corazim, Betsaida e Cafarnaum —
provavelmente não eram piores do que quaisquer outras cidades da
Judeia, e que, seja como for, eram muito melhores, moralmente
falando, do que Tiro, Sidom ou Sodoma. Então, observemos que os
habitantes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum se encontrarão no
mais profundo inferno, porquanto, embora tenham ouvido o
evangelho, não se arrependeram, e mesmo dispondo de grandes
vantagens religiosas, não tiraram proveito delas. Quão terrível soa
tudo isso!
Por certo, essas palavras deveriam fazer tinir os ouvidos de
todos os que ouvem regularmente a pregação do evangelho, mas
não querem converter-se. Quão grande é a culpa desses homens
diante de Deus! Quão tremendo é o perigo espiritual em que se
acham, dia após dia! Por mais decentes, morais e respeitáveis que
possam ser suas vidas, na verdade eles são mais culpados aos
olhos de Deus do que os moradores de Tiro e Sidom, ou do que
algum miserável habitante de Sodoma. Aquela gente não dispunha
de qualquer luz espiritual, mas estes últimos negligenciam a luz
espiritual que lhes é proporcionada. Aqueles nunca tiveram a
oportunidade de ouvir o evangelho, mas estes não querem
obedecer-lhe. O coração daquela gente da antiguidade talvez
chegasse a se sensibilizar se tivessem desfrutado os mesmos
privilégios destes últimos. Tiro e Sidom “se teriam arrependido com
pano de saco e cinza”, e Sodoma teria “permanecido até o dia de
hoje”. O coração dessas pessoas, mesmo sob a luz intensa do
evangelho, permanece frio e inabalável. Só podemos tirar de tudo
isso uma única e dolorosa conclusão: a culpa dessas pessoas será
muito maior do que a daqueles antigos, no último dia. Com profunda
verdade, observou um pastor inglês: “Entre todos os agravantes dos
nossos pecados, não há nada mais hediondo do que ouvirmos, com
frequência, qual é o nosso dever”.
Que todos meditemos frequentemente a respeito de Corazim,
Betsaida e Cafarnaum! Que fique bem estabelecido em nossas
mentes que o fato de apenas ouvirmos e gostarmos do evangelho
não é suficiente. Precisamos ir além. Devemos fazer o que Jesus
disse: “arrependei-vos e convertei-vos”. Precisamos, realmente,
valer-nos de Cristo, unindo-nos espiritualmente a ele. Enquanto não
fizermos assim, estaremos em grave perigo. No fim, haverá menos
rigor para os moradores de Tiro, Sidom e Gomorra, que não ouviram
o evangelho, do que para os que agora vivem no Brasil e ouvem o
evangelho, mas morrem na incredulidade.
A grandeza de Cristo; o amplo convite do
evangelho
Leia Mateus 11.25-30

P oucas passagens existem, nos quatro evangelhos, que sejam


mais importantes do que esta. Há poucos trechos bíblicos que
contenham, em tão poucos versículos, tantas e tão preciosas
verdades. Que Deus nos dê olhos para ver e coração para apreciar
o grande valor dessas verdades!
Em primeiro lugar, aprendemos quão excelente é a atitude
mental de ser simples e despretensioso como uma criança, e de
estar pronto para receber a instrução. Em oração, nosso Senhor
disse a Deus Pai: “Ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos,
e as revelaste aos pequeninos”.
Não nos compete tentar explicar por que alguns recebem e
creem no evangelho, enquanto outros não o fazem. A soberania de
Deus quanto a isso é um profundo mistério, de maneira que não
somos capazes de sondá-la. Mas, seja como for, há algo na Bíblia
que se destaca como uma grande verdade prática, da qual jamais
nos deveríamos esquecer. O evangelho geralmente está oculto
daqueles que são “sábios a seus próprios olhos, e prudentes em
seu próprio conceito” (Is 5.21). Em geral, o evangelho é revelado
aos humildes e despretensiosos, que estão dispostos a aprender. As
palavras da virgem Maria estão se cumprindo constantemente:
“Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos” (Lc 1.53).
Vigiemos nosso coração quanto ao orgulho, em todas as suas
manifestações — o orgulho intelectual, o orgulho das riquezas, o
orgulho em face de nossa própria bondade, o orgulho de nossos
próprios méritos. Coisa alguma tende a manter mais um homem fora
do céu, impedindo-o de ver a Cristo, do que o orgulho. Enquanto
imaginarmos que somos alguma coisa, jamais seremos salvos.
Oremos pedindo humildade e, então, a cultivemos. Procuremos
conhecer a nós mesmos de maneira correta, descobrindo nossa
verdadeira condição diante de um Deus santo. O início do caminho
para o céu é quando sentimos que estamos no caminho do inferno
e, então, nos dispomos a ser ensinados pelo Espírito Santo. Um dos
primeiros passos no caminho da salvação é perguntar, como Saulo
de Tarso fez: “Que farei, Senhor?” (At 22.10). Dificilmente há outra
afirmação de nosso Senhor que seja tão frequentemente repetida
quanto esta: “[...] o que se exalta será humilhado; mas o que se
humilha será exaltado” (Lc 18.14).
Em segundo lugar, aprendamos, com base nesses versículos,
a grandiosidade e a majestade de nosso Senhor Jesus Cristo. A
linguagem de nosso Senhor quanto a esse assunto é profunda e
maravilhosa. Ele disse: “Tudo me foi entregue por meu Pai.
Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai
senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. Ao ler
esses versículos, bem podemos dizer: “Tal conhecimento é
maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não posso
atingi-lo”. Podemos vislumbrar um pouco da perfeita união existente
entre a primeira e a segunda pessoa da Trindade. Vemos algo da
incomensurável superioridade do Senhor Jesus, sobre todos os que
não passam de meros homens. Não obstante, depois de havermos
dito tudo isso, devemos confessar que existem alturas e
profundidades nesse versículo que estão muito além de nossa débil
compreensão. Podemos apenas admirá-las no espírito de crianças
pequenas. Contudo, ainda assim, sentimos que metade dessas
coisas jamais foi contada ao mortal.
Entretanto, devemos ver, nessas palavras de Jesus, a grande
verdade prática de que todo poder e autoridade, em tudo que diz
respeito à salvação de nossas almas, está nas mãos de nosso
Senhor Jesus Cristo. “Tudo me foi entregue por meu Pai.” Ele tem a
chave. Para ir ao céu, precisamos ir até ele. Ele é a porta:
precisamos entrar por intermédio dele. Ele é o pastor das ovelhas:
precisamos ouvir sua voz e segui-lo, se não quisermos perecer no
deserto. Ele é o médico das almas: precisamos consultá-lo, se
quisermos ser curados da praga do pecado. Ele é o pão da vida:
precisamos nos alimentar dele, se quisermos que nossas almas
sejam satisfeitas. Ele é a luz: devemos andar após ele, se não nos
quisermos desviar-nos para as trevas. Ele é a fonte da vida:
precisamos lavar-nos em seu sangue, se quisermos ser purificados
e estar preparados para o grande dia da prestação de contas.
Benditas e gloriosas são essas verdades! Se temos Cristo, temos
todas as coisas (1 Co 3.22).
Por fim, com base nessa passagem, aprendemos como é
amplo e pleno o convite do evangelho de Cristo. Os últimos três
versículos do capítulo, que encerram essa lição, são realmente
preciosos. Eles vêm ao encontro do trêmulo pecador, que indaga:
“Cristo revela o amor do Pai para alguém como eu?”. Esses versos
são um precioso encorajamento e merecem ser lidos com especial
atenção. Por quase dois mil anos, eles têm sido uma bênção para o
mundo, e têm beneficiado milhões de pessoas. Não há uma única
sentença, nesses versículos, que não contenha pensamentos
preciosos.
Observe quem são aqueles a quem Jesus convida. Ele não se
dirige àqueles que se sentem justos e dignos em si mesmos. Ao
contrário, dirige-se a “todos os que estais cansados e
sobrecarregados”. Essa é uma descrição bastante ampla. Abrange
multidões neste mundo cansativo. Todos os que sentem um peso no
coração, todos que desejam tomar-se livres de alguma carga do
pecado, de alguma carga de tristeza, de alguma carga de ansiedade
ou de remorso — todos estão convidados a vir a Cristo, não importa
quem sejam ou o que já tenham sido na vida.
Note, em seguida, a graciosa oferta que Jesus faz: “Eu vos
aliviarei [...] e achareis descanso para as vossas almas.” Quão
animadoras e confortantes são essas palavras! A falta de
tranquilidade é uma das grandes características do mundo. A
pressa, o vexame, o fracasso e os desapontamentos nos
confrontam por todos os lados. Mas há esperança. Existe uma arca
de refúgio para o cansado, tal como houve para a pomba solta por
Noé. Em Cristo, encontramos descanso — descanso para a
consciência e para o coração, descanso fundamentado no perdão
de todo pecado, descanso que é resultado da paz com Deus.Veja
quão simples é o pedido que Jesus faz aos que estão cansados e
sobrecarregados. “Vinde a mim [...] tomai sobre vós o meu jugo [...]
aprendei de mim [...].” Jesus não interpôs nenhuma condição difícil
de ser atendida. Ele nada fala sobre obras a serem realizadas, ou
de merecimentos, para que alguém possa receber seus dons. Ele
somente nos pede para irmos até ele como estamos, com todos os
nossos pecados, entregando-nos aos seus cuidados, como
criancinhas dispostas a receber seu ensino. É como se Jesus
dissesse: “Não busqueis alívio nos homens. Não espereis que vos
apareça alguma ajuda, vinda de outra direção. Tais e quais sois,
neste mesmo dia, vinde a mim”.
Observe, igualmente, quão encorajadora descrição Jesus faz
de si mesmo. Ele diz: “Sou manso e humilde de coração”. Com
frequência, os santos de Deus têm experimentado quão verazes são
essas palavras. Maria e Marta, em Betânia, Pedro, após a sua
queda, os discípulos após a ressurreição e Tomé depois de sua fria
incredulidade — todos eles provaram da “humildade e da gentileza
de Cristo”. Esse é o único lugar em toda a Escritura em que se faz
menção ao “coração”’ de Jesus. Essa é uma declaração que nunca
deveríamos esquecer.
Em último lugar, observe a encorajadora consideração que
Jesus dá ao serviço prestado a ele. Ele diz: “O meu jugo é suave e o
meu fardo é leve”. Sem dúvida, existe uma cruz para ser carregada
quando seguimos Cristo. Indubitavelmente, existem provações e
testes a serem enfrentados, e batalhas a serem travadas. Mas os
consolos do evangelho ultrapassam em muito o peso da cruz.
Comparado com o serviço ao mundo e ao pecado, comparado com
o jugo das cerimônias judaicas e com a escravidão às superstições
humanas, o serviço prestado a Cristo é muitas vezes mais leve e
fácil. O jugo de Cristo não é carga maior do que as penas o são
para a ave que as possui. Os mandamentos de Cristo “não são
penosos” (1Jo 5.3). “Os seus caminhos são caminhos deliciosos, e
todas as suas veredas, paz” (Pv 3.17).
Agora vem a solene pergunta: Já aceitamos, pessoalmente,
esse convite? Acaso não temos pecados a serem perdoados ou
tristezas a serem removidas ou feridas de consciência a serem
saradas? Se temos, ouçamos atentamente a voz de Jesus Cristo.
Ele fala conosco como falou aos judeus. “Vinde a mim [...]", essa é a
chave para a verdadeira felicidade. Eis o segredo de ter um coração
leve. Tudo depende e gira em torno da aceitação dessa oferta que
Cristo faz.
Que jamais estejamos satisfeitos enquanto não soubermos e
sentirmos que já fomos a Cristo pela fé, buscando nele o descanso,
e que cada dia estamos indo até ele em busca de novos
suprimentos da graça divina! Se já fomos até ele, aprendamos a nos
apegar a ele ainda mais intimamente. Mas, se ainda não fomos até
ele, então que o façamos agora mesmo! A palavra de Cristo jamais
falhará: “O que vem a mim de modo nenhum o lançarei fora” (Jo
6.37).
A verdadeira doutrina do sábado sem os erros
judaicos
Leia Mateus 12.1-13

O grande assunto que aparece com proeminência nessa passagem


é o dia de sábado. Esse era um assunto sobre o qual prevaleciam
estranhas opiniões entre os judeus, na época de nosso Senhor. Os
fariseus haviam feito muitos acréscimos ao que as Escrituras
ensinavam a respeito do assunto e sobrecarregaram o verdadeiro
caráter desse dia com as tradições humanas. Esse também é um
assunto acerca do qual diversas opiniões têm sido defendidas nas
igrejas de Cristo, e a respeito do qual atualmente existem entre os
homens grandes diferenças. Vejamos o que podemos aprender a
esse respeito, com base nos ensinos de nosso Senhor, nesses
versículos.
Em primeiro lugar, fixemos na mente, como um princípio
solidamente estabelecido, que nosso Senhor Jesus Cristo não anula
a observância de um dia semanal de descanso sabático. Nem aqui
nem em qualquer outro trecho dos quatro evangelhos isso acontece.
Frequentemente encontramos ensinos de Cristo acerca das
distorções judaicas atinentes ao sábado, mas jamais achamos uma
palavra sequer ensinando que os discípulos de Cristo não devem
observar o dia do descanso.
É importantíssimo notar esse fato. Os equívocos que se têm
originado de uma consideração superficial das declarações de
nosso Senhor acerca do sábado não são nem pequenos nem
poucos. Milhares de pessoas têm chegado à conclusão precipitada
de que os cristãos nada têm a ver com o quarto mandamento da lei,
e que ele não é obrigatório, da mesma forma que não é obrigatória a
lei mosaica dos sacrifícios de animais. Todavia, nada existe nas
páginas do Novo Testamento que justifique essa conclusão.
A verdade patente é que nosso Senhor não aboliu a lei do
sábado. Tão somente ele a liberou das interpretações incorretas,
purificando-a de adições inventadas pelos homens. Jesus não
arrancou do decálogo o quarto mandamento. Apenas o desnudou
das miseráveis tradições pelas quais os fariseus haviam incrustado
o dia, transformando-o em uma carga insuportável, em vez de ser
uma bênção. Jesus deixou o quarto mandamento exatamente onde
o encontrou, ou seja, como parte integrante da eterna lei de Deus,
da qual não se pode retirar nem mesmo um til, e a qual jamais
passará. Que nunca nos esqueçamos disso!
Em segundo lugar, fixemos bem em nossas mentes que nosso
Senhor Jesus Cristo permite que todas as obras de real
necessidade e as obras de misericórdia sejam feitas no dia do
sábado. Esse é um princípio abundantemente firmado na passagem
bíblica que ora consideramos. Encontramos nosso Senhor
justificando seus discípulos por colherem espigas em dia de sábado.
Era um ato permitido nas Escrituras (Dt 23.25). Eles estavam
famintos e necessitados de comida. Portanto, não seria possível
culpá-los. Vemos o Senhor Jesus frisando a legitimidade da cura de
um homem enfermo, em dia de sábado. O homem estava
padecendo de uma dolorosa enfermidade. Nesse caso, não era
desobediência ao quarto mandamento prestar alívio. Jamais
deveríamos descansar de fazer o bem.
São salientes e irretorquíveis os argumentos por intermédio dos
quais nosso Senhor dá apoio à legitimidade de toda e qualquer obra
necessária ou de misericórdia, em dia de sábado. Quando acusado
pelos fariseus de ter quebrado a lei junto com seus discípulos, Jesus
lembra-os como Davi e seus homens, quando necessitados de
alimentos, haviam comido dos pães da proposição que estavam no
tabernáculo. Ele os faz relembrar de como os sacerdotes são
obrigados a trabalhar aos sábados, no templo, abatendo animais e
oferecendo sacrifícios. Também os fez lembrar de que até mesmo
uma ovelha deveria ser ajudada a sair de um buraco em um dia de
sábado, em vez de se permitir que ali ficasse e morresse.
Acima de tudo, porém, Jesus estabelece o grande princípio de
que nenhuma ordenança de Deus deve ser pressionada sobre nós
de modo que nos obrigue a negligenciar os claros deveres da
caridade para com o próximo. “Misericórdia quero, e não
holocaustos.” A primeira tábua da lei não deve ser interpretada de
tal maneira que nos force a desobedecer à segunda. O quarto
mandamento não deve ser explicado de maneira a nos tornar
insensíveis e destituídos de misericórdia para com o próximo. Há
uma profunda sabedoria em tudo isso. Lembremo-nos de que
“jamais alguém falou como este homem” (Jo 7.46).
Ao deixarmos esse assunto, cuidemos para que jamais
sejamos tentados a menosprezar a santidade do sábado cristão.
Tenhamos cuidado para não fazer das instruções de nosso gracioso
Senhor uma desculpa para a profanação do dia de descanso. Não
abusemos da liberdade que ele assinalou tão claramente para nós,
fingindo que fazemos obras necessárias e de misericórdia no dia do
Senhor, as quais, em verdade, fazemos para satisfazer nosso
próprio egoísmo.
Há um grande motivo para advertirmos as pessoas quanto a
isso. Os erros dos fariseus, no tocante ao dia do Senhor, tendiam a
um extremo. Os erros dos cristãos tendem ao outro extremo. Os
fariseus fingiam querer aumentar a santidade do dia. Os cristãos,
com grande frequência, dispõem-se a subtrair a santidade do dia,
agindo de maneira irreverente, profana e ociosa.
Que cada um de nós vigie a própria conduta quanto a essa
questão. O cristianismo verdadeiro está intimamente ligado à
observância autêntica do dia do Senhor. Que jamais nos
esqueçamos de que nosso grande alvo deveria ser obediência ao
mandamento que diz: “Lembra-te do dia de sábado, para o
santificar”. As obras de necessidade e misericórdia podem ser
feitas. Jesus disse: “É lícito fazer bem”. Porém, dedicar o dia do
Senhor ao mero lazer, ao ócio ou ao mundo é contrário à lei de
Deus. Tal atitude é contrária ao exemplo de Cristo, além de ser um
pecado contra um mandamento claro de Deus.
A iniquidade dos fariseus; descrição encorajadora
do caráter de Cristo
Leia Mateus 12.14-21

A primeira coisa que nos chama a atenção nessa passagem é a


desesperada iniquidade do coração humano. Silenciados e
derrotados pelos argumentos de nosso Senhor, os fariseus foram
afundando cada vez mais no pecado. Eles, retirando-se,
“conspiravam contra ele, em como lhe tirariam a vida”.
Que maldade havia praticado nosso Senhor para ser tratado
daquela maneira? Nenhuma, de modo algum. Eles não podiam
fazer acusação legítima contra ele. Jesus era santo, inocente, sem
mácula e separado dos pecadores. Seus dias eram passados
inteiramente na prática do bem. Nenhuma acusação podia ser
levantada contra seus ensinamentos. Ele havia provado que sua
doutrina concordava com as Escrituras e com a razão, e nenhuma
resposta fora dada aos seus argumentos. Não obstante, pouco
importava quão perfeitamente ele vivesse ou ensinasse. Ele era
odiado.
Assim é a natureza humana, manifestando-se em suas cores
verdadeiras. O coração não convertido odeia Deus e mostrará esse
ódio sempre que ousar ou tiver uma oportunidade favorável. Sempre
perseguirá as testemunhas de Deus. Desagrada-lhe todos os que
manifestam algo da mente de Deus ou que tenham sido renovados
segundo sua imagem. Por que tantos profetas do Senhor foram
mortos? Por que os nomes dos apóstolos foram rejeitados pelos
judeus como malignos? Por que os primeiros mártires cristãos foram
executados? Por que João Huss, Jerônimo de Praga, Ridley e
Latimer foram queimados na fogueira? Não por causa de algum
pecado que houvessem cometido; nem por causa de alguma
iniquidade que tivessem praticado. Todos sofreram porque eram
homens piedosos. A natureza humana não convertida odeia os
homens de Deus porque odeia o próprio Deus.
Os crentes verdadeiros nunca devem ficar surpresos, pois
recebem o mesmo tratamento que Jesus recebeu. “Irmãos, não vos
maravilheis se o mundo vos odeia” (1Jo 3.13). Nem a coerência
mais perfeita ou o caminhar mais chegado a Deus isentam o crente
da inimizade do homem natural. O crente não precisa torturar sua
mente com a fantasia de que, se tivesse menos faltas e mais
coerência, todos os homens certamente o amariam. Tal pensamento
envolve um tremendo equívoco. Devemos lembrar-se de que nunca
houve um homem perfeito na terra, senão um só, e que ele não foi
amado, mas, sim, odiado. Não é das fraquezas do crente que o
mundo desgosta, mas de sua bondade. Não são os remanescentes
da antiga natureza humana que provocam a inimizade dos homens
deste mundo, mas, antes, é a exibição da nova natureza.
Lembremo-nos dessas verdades e sejamos pacientes. O mundo
odiou Cristo e continuará odiando os crentes.
A outra coisa que nos chama a atenção nessa passagem é a
encorajadora descrição do caráter de nosso Senhor Jesus Cristo,
que o apóstolo Mateus extraiu da profecia de Isaías. “Não esmagará
a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega.”
O que devemos entender com as expressões “cana quebrada”
e “torcida que fumega”? Sem dúvida alguma, a linguagem do profeta
é figurada. O que essas duas expressões significam? Aqui, a
explicação mais simples parece ser que o Espírito Santo estava
descrevendo pessoas cuja graça no momento é fraca, cujo
arrependimento é débil e cuja fé é pequena. Em relação a essas
pessoas, o Senhor Jesus Cristo se mostrará muito terno e
compassivo. Embora a cana quebrada seja frágil, não será
esmagada. Por menor que seja a torcida que fumega, não será
apagada. Esta é verdade permanente no reino da graça divina: uma
graça fraca, uma fé fraca e um arrependimento fraco são todos
preciosos aos olhos de nosso Senhor. “Deus é mui grande, contudo
a ninguém despreza” (Jó 36.5).
A doutrina aqui salientada é plena de consolo e conforto. Para
os milhares de crentes em todas as igrejas de Cristo, essa doutrina
deveria representar grande paz e esperança. Em cada
congregação, há alguns que ouvem o evangelho, mas estão à beira
de desistir da própria salvação, porquanto suas forças lhes parecem
poucas. Estão cheios de temor e desalento, porquanto seu
conhecimento, fé, esperança e amor parecem bem pequenos e
insignificantes. Que esses crentes sejam consolados por essa
passagem bíblica! Que eles saibam que a fé, embora fraca, confere
ao seu possuidor interesse real e verdadeiro em Cristo, tanto quanto
a fé mais robusta, embora não forneça o mesmo gozo. Há vida
biológica em um recém-nascido tanto quanto em um homem
plenamente adulto. Há fogo em uma fagulha tanto quanto nas
chamas mais ardentes. Mesmo o menor grau de graça divina é uma
possessão que dura para sempre. A graça divina nos vem do céu e
é preciosa aos olhos de nosso Senhor. Jamais será rejeitada.
Acaso Satanás faz pouco-caso dos primeiros passos do
arrependimento para com Deus e da fé em nosso Senhor Jesus
Cristo? Não! Pelo contrário, ele é tomado de grande ira, porque
percebe que seu tempo está se tornando cada vez mais curto.
Acaso os anjos de Deus consideram com desdém os primeiros
sinais de penitência para com Deus, em Cristo? Não, de maneira
alguma! Há júbilo entre os anjos quando os pecadores se
arrependem. Acaso o Senhor Jesus mostra desinteresse quando a
fé é pequena, e o arrependimento, fraco? Não, é certo que não! No
momento em que uma “cana quebrada” como Saulo de Tarso
começa a clamar a Deus, eis que o Senhor lhe envia Ananias,
porque “ele está orando” (At 9.11). Erramos gravemente quando não
encorajamos os primeiros passos de uma alma em direção a Cristo.
Que os ignorantes deste mundo escarneçam e zombem, se assim o
quiserem fazer! Podemos estar certos de que as “canas quebradas”
e as “torcidas que fumegam” são muito preciosas aos olhos de
nosso Senhor.
Que todos nós entesouremos essas verdades no coração,
utilizando-as nos momentos de necessidade, tanto em nosso
proveito como no de outras pessoas. Deveria ser um conceito bem
firme em nossa religião cristã que uma fagulha é melhor do que a
escuridão, e que uma pequena fé é melhor do que nenhuma fé. Há
quem despreze “o dia dos humildes começos”? (Zc 4.10), mas
esses humildes começos não são desprezados por Cristo; e
também não deveriam ser desprezados pelos crentes.
A blasfêmia dos adversários de Cristo; o pecado
contra o conhecimento; as palavras vãs
Leia Mateus 12.22-37

E ssa passagem das Escrituras contém “cousas difíceis de


entender” (2Pe 3.16). O pecado contra o Espírito Santo, em
particular, nunca foi devidamente explicado, nem mesmo pelos
teólogos mais eruditos. Não é difícil demonstrar, a partir das
Escrituras, no que esse pecado não consiste. Difícil é demonstrar
claramente o que é esse pecado. Contudo, não precisamos ficar
surpresos. A Bíblia não seria o Livro de Deus se não contivesse
trechos mais profundos, aqui e ali, que nenhum ser humano é capaz
de perscrutar. Cumpre-nos agradecer a Deus pelas lições de
sabedoria a serem extraídas, até mesmo de versículos como estes,
acima; lições que até mesmo os iletrados podem compreender
facilmente.
Aprendamos, nesses versículos, antes de mais nada, que não
existe coisa alguma por demais blasfema para os homens
endurecidos e preconceituosos dizerem contra o cristianismo. Nosso
Senhor expele um demônio e, imediatamente, os fariseus declaram
que ele faz isso “pelo poder de Belzebu, maioral dos demônios”. A
acusação foi simplesmente absurda. Nosso Senhor, pois, mostra ser
uma falta de bom senso supor que o diabo ajudaria a derrubar seu
próprio reino, dizendo: “Se Satanás expele a Satanás, dividido está
contra si mesmo”. Todavia, para os incrédulos, não parece ser um
exagero quando dizem as coisas mais absurdas e ilógicas contra a
religião cristã. Os fariseus não foram os únicos que perderam de
vista a lógica, o bom senso e o equilíbrio, quando se trata de atacar
o evangelho de Cristo.
Por mais estranha que pareça tal acusação, com frequência
tem sido feita contra os servos do Senhor. Os inimigos dos crentes
têm sido forçados a confessar que os servos de Deus estão
realizando uma obra no mundo, e que está produzindo efeito. Os
resultados do labor cristão deixam perplexos os incrédulos. Eles não
podem negar esse fato. Assim, o que poderiam dizer? Dizem
exatamente aquilo que os fariseus disseram a respeito de nosso
Senhor: “Tem demônio”. Os mais antigos hereges disseram coisas
desse tipo contra Atanásio. Os católicos romanos espalharam
rumores dessa espécie a respeito de Martinho Lutero. E coisas
assim continuarão sendo ditas, enquanto o mundo existir.
Nunca deveríamos surpreender-nos quando acusações
horrendas são feitas, sem causa, contra os melhores homens. “Se
chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus
domésticos?” Esse é um antigo estratagema. Quando os
argumentos de um crente não podem ser retrucados, e suas boas
obras não podem ser negadas, então o último recurso dos ímpios é
tentar denegrir o caráter do crente. Se isso é o que está nos
acontecendo, suportemos tudo com paciência. Se temos Cristo e
uma boa consciência, podemos estar contentes. Falsas acusações
não impedirão nossa entrada no céu. Nosso caráter será mostrado
em suas verdadeiras luzes, no último dia.
Em segundo lugar, reconhecemos por esses versículos que é
impossível a neutralidade em religião. Jesus disse: “Quem não é por
mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha”. Muitos, em
toda a história da Igreja de Cristo, têm tido a necessidade de ser
confrontados com essas palavras de nosso Senhor. Eles se
esforçam para manter um meio-termo em sua religião. Não são tão
maus quanto muitos pecadores; porém, também não são santos.
Eles sentem a veracidade do evangelho de Cristo, quando este lhes
é apresentado, mas têm receio de confessar o que sentem. Visto
que têm tais sentimentos, bajulam a si mesmos, pensando que não
são tão ruins quanto os outros. Não obstante, estão aquém do
padrão de fé e conduta que Jesus estabeleceu. Decididamente, eles
não estão posicionados do lado de Cristo, mas também não se
declaram abertamente contra ele. Nosso Senhor adverte a todos
esses que se encontram em uma posição extremamente perigosa.
Em termos de religião, existem somente dois lados, somente dois
partidos. Estamos do lado de Cristo, trabalhando em sua causa? Se
assim não é, estamos contra ele. Estamos fazendo o bem neste
mundo? Se não fazemos o bem, fazemos o mal.
O princípio aqui lançado é de natureza tal que deveria
interessar a todos nós. Estabeleçamos com firmeza em nossas
mentes que jamais teremos paz e faremos o bem a outras pessoas
a menos que sejamos francos e resolutos em nosso cristianismo.
Até agora, o ensino de Gamaliel e de Erasmo jamais trouxe
felicidade e serventia a quem quer que seja, nem jamais o fará.
Em terceiro lugar, notemos a excessiva iniquidade dos pecados
cometidos contra o conhecimento. Essa é uma conclusão prática,
que parece fluir naturalmente das palavras de nosso Senhor acerca
da blasfêmia contra o Espírito Santo. Por mais difíceis que nos
pareçam essas palavras, parece justo pensarmos que provam a
existência de níveis variados de pecaminosidade. As ofensas que
derivam da ignorância a respeito da verdadeira missão do Filho do
Homem não serão punidas com tanta severidade quanto as ofensas
cometidas contra a luz maior que possuímos, nessa nossa
dispensação do Espírito Santo. Quanto maior for a luz espiritual,
maior será a culpa de quem a rejeita. Quanto mais claro for o
conhecimento que um homem tiver da natureza do evangelho, maior
será seu pecado, se ele se recusa a se arrepender e crer.
A doutrina aqui ensinada também aparece em outras partes
das Sagradas Escrituras. O escritor da epístola aos Hebreus disse:
“É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados [...]
sim, é impossível outra vez renová-los para o arrependimento [...]
porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos
recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício
pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo
[...]” (Hb 6.4-7 e 10.26-27). Essa é uma doutrina a respeito da qual
encontramos provas lamentáveis por toda a parte. Os filhos não
convertidos de pais crentes, os empregados não convertidos que
trabalham para famílias piedosas, os membros não convertidos de
congregações evangélicas são as pessoas mais difíceis de
impressionar em toda a terra. Parece que já se tornaram
insensíveis. A mesma chama que amolece a cera endurece o barro.
Essa é uma doutrina que recebe uma terrível confirmação na
história de pessoas que terminaram seus dias de maneira realmente
desesperada. Faraó, Saul, Acabe, Judas Iscariotes, Juliano e
Francisco Spira são ilustrações temíveis daquilo que nosso Senhor
quis dizer. Em todos esses casos, houve uma combinação de claro
conhecimento da verdade e deliberada rejeição de Cristo. Em cada
um, havia iluminação na mente, ódio à verdade, no coração. O fim
de cada uma dessas pessoas parece ter sido a escuridão das trevas
para sempre.
Que Deus nos dê o desejo de usar o conhecimento de que já
dispomos, seja ele grande ou pequeno! Que tomemos o cuidado de
não negligenciar as oportunidades para desenvolver o
conhecimento que já temos! Temos luz? Então vivamos de acordo
com essa luz. Conhecemos a verdade? Então andemos na verdade.
Essa é a melhor salvaguarda contra o pecado imperdoável.
Em último lugar, aproveitemos o ensino sobre a imensa
importância do cuidado que devemos ter com as palavras que
falamos diariamente. Nosso Senhor nos informa que, “de toda
palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no dia
de juízo”. E acrescenta: “Pelas tuas palavras serás justificado, e
pelas tuas palavras serás condenado”.
Poucas declarações de Cristo são capazes de sondar tão
profundamente nossos corações quanto estas. Talvez nenhuma
outra coisa exista a que os homens deem tão pouca atenção quanto
suas próprias palavras. Eles passam suas atividades diárias falando
e conversando sem pensar e sem refletir, e parecem imaginar que,
se fizerem o que é direito, pouco importa o que dizem.
Porém, é assim mesmo? Nossas palavras são tão
completamente insignificantes e sem importância? Em vista de uma
passagem bíblica como esta, não ousaríamos afirmar tal coisa.
Nossas palavras evidenciam o estado de nosso coração, e isso é
tão certo quanto o gosto da água evidencia o estado de seu
manancial. “A boca fala do que está cheio o coração.” Os lábios só
proferem aquilo que a mente concebe. Nossas palavras formarão
um assunto para inquisição contra nós, no dia do julgamento final.
Teremos de prestar contas tanto de nossas declarações como de
nossos atos. De fato, essas são considerações muito solenes. Se
não existisse qualquer outro texto na Bíblia, este, por si só, deveria
convencer-nos do fato de que todos somos culpados diante do
Senhor e de que precisamos de uma justiça muito superior à nossa
— a justiça de Cristo (Fp 3.9).
Que nos mostremos humildes, enquanto lemos essa
passagem, ao relembrarmos os tempos passados! Quantas
palavras ociosas, tolas, vãs, levianas, frívolas, pecaminosas e sem
proveito todos nós temos dito! Quantas e quantas palavras temos
usado, as quais, como ervas daninhas, têm-se espalhado por uma
grande área, semeando mal duradouro no coração de outras
pessoas! Conforme disse um homem de Deus no passado, quando
nos encontramos com nossos amigos, com quanta frequência
“nossas palavras servem somente para, mais tarde, nos
arrependermos delas!”. Há uma profunda verdade no que Burkitt
disse: “Uma zombaria profana, ou um escárnio ateu, podem grudar
na mente daqueles que os ouvirem, muito depois que já morreu a
língua que os proferiu. Uma palavra dita é fisicamente transitória,
mas é moralmente permanente”. Salomão escreveu: “A morte e a
vida estão no poder da língua” (Pv 18.21).
Mostremo-nos vigilantes, no tocante aos nossos dias
vindouros, depois de havermos lido esse trecho bíblico acerca de
nossas palavras. Resolvamos, com a ajuda da graça divina, ser
mais cautelosos e equilibrados quanto ao uso que fizermos da
língua, sobre como haveremos de usar as palavras. Oremos
diariamente para que nossa palavra “seja sempre agradável,
temperada com sal” (Cl 4.6). A cada manhã, digamos juntamente
com o santificado Davi: “Disse comigo mesmo: Guardarei os meus
caminhos, para não pecar com a língua” (Sl 39.1). Clamemos, como
Davi, ao forte por força: “Põe guarda, Senhor, à minha boca; vigia a
porta dos meus lábios” (Sl 141.3). Foi com grande razão que Tiago
escreveu: “Se alguém não tropeça no falar é perfeito varão” (Tg 3.2).
O poder da incredulidade; reformas imperfeitas e
incompletas; o amor de Cristo por seus discípulos
Leia Mateus 12.38-50

O começo dessa passagem é um daqueles trechos que ilustram


admiravelmente a veracidade da história do Antigo Testamento.
Nosso Senhor menciona a rainha do Sul como uma pessoa real,
alguém que tinha vivido e morrido. Ele se refere à história de Jonas
e à sua miraculosa preservação no ventre do grande peixe como
fatos inegáveis. Não nos esqueçamos disso, pois há pessoas que
dizem crer nos escritos do Novo Testamento, mas, ao mesmo
tempo, zombam dos acontecimentos registrados no Antigo
Testamento, como se fossem meras fábulas. Tais indivíduos
esquecem-se de que, assim fazendo, lançam desdém sobre o
próprio Cristo. Quanto à sua autoridade, o Antigo e o Novo
Testamento permanecem de pé ou caem juntamente. O mesmo
Espírito Santo que inspirou homens para escrever sobre Salomão e
Jonas também inspirou os evangelistas a escreverem a história de
Jesus Cristo. Essas não são questões sem importância nestes
nossos dias. Que tais coisas fiquem bem gravadas em nossas
mentes!
A primeira lição prática que requer nossa atenção, nesses
versículos, é o espantoso poder da incredulidade. Observemos
como os escribas e fariseus solicitaram de nosso Senhor que lhes
mostrasse um número maior de milagres: “Mestre, queremos ver de
tua parte algum sinal”. Eles fingiam que só desejavam receber
maiores e mais evidências convincentes, a fim de se deixarem
persuadir e se tornar discípulos. Eles fecharam os olhos aos
inúmeros milagres que Jesus já havia realizado. Não era suficiente
para eles que Jesus tivesse curado os enfermos e purificado os
leprosos, ressuscitado os mortos e expulsado os demônios. Eles
ainda não estavam persuadidos. Ainda exigiam mais provas. Não
queriam enxergar aquilo que nosso Senhor mostrou claramente em
sua resposta, ou seja, que eles não tinham disposição real para crer.
Já havia evidência suficiente para convencê-los, mas eles não
queriam ser convencidos.
Na Igreja de Cristo, há muitos que se encontram exatamente
nas mesmas condições espirituais desses escribas e fariseus. Eles
bajulam a si mesmos, dizendo que só precisam de um pouco mais
de provas para se tornar cristãos decididos. Imaginam que, se sua
razão e seu intelecto ao menos fossem alimentados por mais alguns
argumentos, imediatamente desistiriam de tudo para seguir a causa
de Cristo, tomando a cruz e seguindo-o. Mas, enquanto isso, ficam
apenas esperando. Infeliz cegueira a deles! Não querem mesmo ver
a grande quantidade de evidências ao seu redor. A verdade
insofismável é que eles não querem deixar-se convencer.
Que todos nos ponhamos em guarda contra essa atitude de
incredulidade! Esse é um mal crescente nos dias que correm. A
ausência de uma fé simples, como a de uma criança, é uma das
características marcantes em nossos tempos, em todos os níveis da
sociedade. A verdadeira explicação para muitas coisas estranhas,
que nos espantam, na conduta de homens de influência nas igrejas
e no governo das nações, é a evidente falta de fé. Homens que não
acreditam naquilo que Deus diz na Bíblia têm, necessariamente, de
assumir uma conduta vacilante e indecisa nas questões morais e
religiosas: “Se não crerdes, certamente não permanecereis” (Is 7.9).
A segunda lição prática que encontramos nesses versículos é o
imenso perigo de uma reforma religiosa imperfeita e parcial.
Notemos quão horrível quadro nosso Senhor pintou sobre o homem
para quem retorna o espírito imundo, depois de já tê-lo deixado.
Quão assustadoras são as palavras: “Voltarei para minha casa,
donde saí”! Quão vívida a descrição: “E, tendo voltado, a encontra
vazia, varrida e ornamentada”! Quão tremenda é a conclusão: “E
leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele [...] e o último
estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro”! É um
quadro repleto de dolorosa significação. Que nós o examinemos
cuidadosamente e, assim, aprendamos a ter sabedoria!
É indiscutível que, nesse quadro, temos uma figura da História
da Igreja e da nação judaica, no tempo da primeira vinda de Cristo à
terra. Chamados como foram, no início, para sair do Egito e ser o
povo todo peculiar de Deus, parece que os judeus jamais perderam
inteiramente a tendência de adorar ídolos. Sendo posteriormente
remidos do cativeiro da Babilônia, parece que nunca
corresponderam à bondade de Deus. Despertados como haviam
sido, pela pregação de João Batista, o arrependimento parece ter
sido superficial. Nos dias em que o Senhor Jesus lhes falava, eles
se haviam tornado, como nação, mais duros e perversos do que
nunca. A vulgaridade da adoração aos ídolos cedera lugar a um
mero formalismo morto. Sete outros espíritos, piores que o primeiro,
tinham vindo apossar-se deles. Seu último estado foi rapidamente
se tornando pior do que o primeiro. Loucamente, atiraram-se a uma
guerra rebelde contra Roma. A Judeia transformou-se em uma
autêntica Babel de confusão. Jerusalém foi tomada. O templo foi
destruído. Os judeus foram dispersos por todo o mundo.
Também é muito provável que esse seja um quadro da história
da Igreja cristã, como um todo. Libertados como foram das trevas do
paganismo mediante a pregação do evangelho, os crentes jamais
chegaram a viver à altura da luz que receberam. Revivificadas como
muitas foram, por ocasião da Reforma Protestante, nenhuma das
igrejas de Cristo tem chegado a fazer uso correto de todos os seus
privilégios, nem têm avançado “até a perfeição”. Todas ficaram mais
ou menos aquém do padrão, acomodadas à própria escória. Todas
se têm mostrado prontas a estar satisfeitas com reformas
meramente externas. E agora há dolorosos sintomas, em quase
todo lugar, de que o espírito maligno tem retornado à sua antiga
casa, e está preparando uma insurreição de infidelidade e doutrinas
falsas, como nunca se viu até hoje. Entre a incredulidade de certos
segmentos da Igreja e a superstição formal em outros, tudo parece
estar pronto para alguma terrível manifestação do anticristo. É de se
temer sobremaneira que o último estado das professas igrejas
cristãs venha a se mostrar muito pior do que o primeiro.
O mais triste, e o pior de tudo, é que temos aqui, nesse quadro,
a história de muitos homens e mulheres. Houve pessoas que, por
certo tempo, pareciam estar sob a influência de fortes sentimentos
religiosos. Elas mudaram de vida. Puseram de lado muitas coisas
ruins. Adotaram muitas coisas boas. No entanto, pararam nesse
ponto e não mais avançaram, e pouco a pouco foram perdendo
completamente seu cristianismo. Assim, o espírito maligno voltou e
encontrou a casa vazia, varrida e adornada, e agora essas pessoas
são piores do que jamais foram. Parecem ter a consciência
cauterizada. O sentimento religioso parece inteiramente destruído.
Parecem ser homens entregues a uma mente corrompida.
Poderíamos mesmo afirmar que, agora, “é impossível outra vez
renová-los para arrependimento” (Hb 6.6). Ninguém se mostra tão
desesperadamente ímpio quanto aqueles que, após terem
experimentado fortes convicções religiosas, voltaram de novo ao
pecado e ao mundo.
Se amamos a vida, oremos para que essas lições fiquem
profundamente gravadas em nossas mentes. Que jamais nos
contentemos com uma reforma parcial da vida, sem uma inteira
conversão a Deus e sem a mortificação do corpo inteiro do pecado!
É algo excelente esforçarmo-nos para expulsar o pecado de nosso
coração. Todavia, sejamos cuidadosos, para que, em lugar do
pecado, demos acolhida à graça de Deus. Certifiquemo-nos de que
não somente nos temos libertado do antigo inquilino, o diabo, como
também de que já temos em nós o Espírito Santo.
A última lição prática que vem ao nosso encontro, nesses
versículos, é o terno afeto com que o Senhor Jesus considera seus
verdadeiros discípulos. Observe como ele se refere a todos os que
cumprem a vontade de Deus Pai, que está nos céus. Jesus diz:
“Qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu
irmão, irmã e mãe”. Quão graciosas são essas palavras! Quem
pode conceber a profundeza do amor de nosso querido Senhor para
com seus parentes segundo a carne? Era um amor puro e altruísta.
Deve ter sido um amor poderoso, um amor que ultrapassa os limites
da compreensão humana. Não obstante, aprendemos aqui que
todos os crentes verdadeiros são considerados seus parentes. Ele
os ama, sente profundamente acerca deles, cuida deles, como
membros de sua família, ossos de seus ossos e carne de sua carne.
Aqui, há uma advertência solene contra todos os que zombam
e perseguem os verdadeiros cristãos por causa da religião deles.
Tais pessoas não pensam no que estão fazendo. Estão perseguindo
os parentes próximos do Rei dos reis. Descobrirão, no último dia,
que escarneceram daqueles a quem o Juiz de toda a terra considera
“meu irmão, irmã e mãe”.
Nisso há um rico encorajamento para todos os crentes. Eles
são muito mais preciosos aos olhos do Senhor do que aos seus
próprios olhos. A fé pode ser débil, o arrependimento pode não ser
muito profundo e a força pode ser pequena. Eles podem ser pobres
e necessitados neste mundo. Entretanto, no último versículo deste
capítulo, há um “qualquer” que deveria alegrá-los: “Qualquer” que
crê é um parente próximo de Jesus Cristo. Nosso Irmão mais velho
haverá de providenciar para o tempo e a eternidade, sem jamais
rejeitar a quem crê. Não há nenhum membro da família dos remidos
de quem o Senhor não se lembre. No Egito, José proveu ricamente
para todos os seus parentes; Jesus proverá para os seus.
A parábola do semeador
Leia Mateus 13.1-23

E sse capítulo é marcante pelo número de parábolas que contém.


Sete notáveis ilustrações da verdade espiritual são aqui
apresentadas pelo grande Cabeça da Igreja, com base na natureza.
Ao assim fazer, Jesus nos mostra que o ensino religioso pode obter
preciosos subsídios de tudo quanto existe na Criação. Aqueles que
quiserem “achar palavras agradáveis” (Ec 12.10) não devem
esquecer esse fato.
A parábola do semeador, que inicia este capítulo, é uma
daquelas que admitem uma aplicação bastante abrangente. Essa
parábola está se cumprindo continuamente diante de nossos
próprios olhos. Onde quer que a Palavra de Deus esteja sendo
anunciada ou exposta, e as pessoas estejam reunidas para ouvi-la,
as declarações de nosso Senhor nessa parábola provam-se
verdadeiras. Elas descrevem o que acontece, via de regra, em todas
as congregações em que a Palavra de Deus é pregada.
Antes de qualquer outra coisa, aprendamos com essa parábola
que o trabalho do pregador assemelha-se muito ao trabalho de um
semeador. Tal como o semeador, o pregador precisa semear boa
semente, se deseja ver frutos. Ele precisa semear a pura Palavra de
Deus, e não as tradições da Igreja ou as doutrinas humanas. Sem
isso, o esforço do pregador será em vão. Ele pode ir de um lado
para outro, parecendo dizer muito e trabalhar muito em seus
deveres ministeriais, a cada semana. Porém, não haverá colheita de
almas para o céu, nenhum resultado vivo, nenhuma conversão.
Assim como o semeador, o pregador precisa ser diligente. Não
pode poupar esforços. Precisa lançar mão de todos os meios
possíveis para fazer seu trabalho prosperar. Ele deve, com
paciência, “semear junto a todas as águas” (Is 32.20) e semear na
esperança de uma boa colheita. Deve pregar a Palavra “quer seja
oportuno, quer não” (2Tm 4.2). Ele não pode deixar-se deter por
dificuldades e desencorajamentos. “Quem somente observa o vento
nunca semeará” (Ec 11.4). Não há dúvida de que o sucesso de um
pregador não depende exclusivamente de seus esforços e de sua
diligência; mas, sem labor e diligência, o sucesso dificilmente será
alcançado.
Tal como o semeador, o pregador também não pode transmitir
vida. Ele pode espalhar a semente que lhe foi confiada; mas não
pode ordenar que ela cresça. Ele pode oferecer a palavra da
verdade a um povo, mas não pode fazer as pessoas receberem a
palavra nem produzir fruto espiritual. Produzir vida é prerrogativa
soberana de Deus: “O espírito é o que vivifica” (Jo 6.63). Somente
Deus pode “dar o crescimento” (1 Co 3.7).
Que essas coisas estejam abrigadas no fundo de nosso
coração! Ser um verdadeiro ministro da Palavra de Deus não é algo
de pouca importância. É fácil ser um obreiro formal e preguiçoso na
Igreja. Mas ser um semeador fiel é muito difícil. Os pregadores
devem ser especialmente lembrados em nossas orações.
Em seguida, aprendamos que há várias maneiras de se ouvir a
Palavra de Deus inutilmente. Podemos escutar um sermão com os
corações endurecidos, como o chão “à beira do caminho”, sem
preocupação, sem cuidado, sem refletir sobre o estado de nossa
própria alma. Cristo crucificado pode ser afetuosamente exposto
diante de nós, e podemos ouvir seus sofrimentos com total
indiferença, como um assunto no qual não temos nenhum interesse.
Com a mesma rapidez que as palavras chegam aos nossos
ouvidos, o diabo pode arrancá-las de nós, e então regressamos aos
nossos lares como se nem mesmo tivéssemos ouvido algum
sermão. Infelizmente, existem muitos ouvintes desse tipo! Deles, é
possível dizer, tal como foi dito acerca dos ídolos da antiguidade:
“Têm olhos e não veem; têm ouvidos e não ouvem” (Sl 135.16-17).
A verdade parece não exercer efeito no coração deles.
Podemos ouvir um sermão com prazer, enquanto a impressão
produzida em nós é apenas temporária e de pouca duração. Nosso
coração, como o “solo rochoso”, pode produzir um mundo de
sentimentos e boas resoluções. Porém, durante todo o tempo, pode
não haver raízes profundas em nossa alma, de maneira que o
primeiro vento frio de oposição ou tentação pode fazer secar nossa
aparente religião. Infelizmente, existem muitos ouvintes dessa
classe! A mera apreciação dos sermões não é sinal da presença da
graça divina. Milhares de pessoas batizadas são como os judeus
dos dias de Ezequiel: “Eis que tu és para eles como quem canta
canções de amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem
as tuas palavras, mas não as põem por obra” (Ez 33.32).
Podemos ouvir um sermão aprovando cada palavra, mas não
tirar dele benefício real, em consequência da absorvente influência
exercida pelo mundo sobre nós. Nosso coração, tal como o solo
recoberto de espinhos, pode deixar-se afogar pelos cuidados,
prazeres e propósitos mundanos. Podemos realmente apreciar o
evangelho e desejar obedecer a ele, mas, insensivelmente, não dar
oportunidade ao evangelho para produzir fruto, permitindo que
outras coisas venham ocupar lugar em nossos afetos e, assim, sem
o percebermos, tomar conta de nosso coração. Infelizmente,
também existem muitos ouvintes dessa natureza! Eles conhecem
bem a verdade. Esperam, um dia, ser cristãos decididos. Porém,
jamais chegam ao ponto de desistir de tudo por amor a Cristo. Eles
nunca tomam a decisão de “buscar em primeiro lugar o reino de
Deus”; e, por isso mesmo, acabam morrendo em seus pecados.
Esses são pontos que deveríamos pesar cuidadosamente.
Nunca deveríamos esquecer de que existem várias maneiras de se
ouvir a Palavra, sem proveito. Não basta vir à igreja para ouvir a
pregação; podemos ouvir e estar desatentos. Não basta prestar
atenção; as impressões podem ser apenas temporárias, tão
superficiais que logo se dissipam. Também não basta que nossas
impressões não sejam meramente passageiras. Elas poderão
continuar sem produzir resultado, em consequência de nosso
obstinado apego a este mundo. Verdadeiramente, “enganoso é o
coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente
corrupto, quem o conhecerá?”(Jr 17.9).
Em último lugar, deixemo-nos ensinar, alicerçados nessa
parábola, que só há uma evidência de que estamos ouvindo
corretamente a Palavra de Deus. A evidência é produzir fruto. O
fruto aqui referido é o fruto do Espírito. Arrependimento para com
Deus, fé no Senhor Jesus Cristo, santidade de vida e de caráter,
dedicação à oração, humildade, amor cristão, mente espiritual —
essas são as únicas provas satisfatórias de que a semente da
Palavra de Deus está realizando o trabalho que lhe é próprio em
nossas almas. Sem essas provas, nossa religião é vã, por melhor
que seja nossa profissão de fé, e não será melhor do que o bronze
que soa ou o címbalo que retine. Cristo disse: “Eu vos designei para
que vades e deis frutos, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15.16).
Não há outra porção nessa parábola que seja tão importante
quanto esta. Jamais nos deveríamos contentar com uma ortodoxia
infrutífera, ou com a simples e fria manutenção de corretos pontos
de vista teológicos. Não podemos satisfazer-nos somente com um
conhecimento claro, com sentimentos calorosos e uma decente
profissão cristã. Devemos cuidar para que o evangelho que
professamos amar esteja realmente produzindo “fruto” em nossos
corações e em nossas vidas. Nisso é que consiste o verdadeiro
cristianismo. As palavras do apóstolo Tiago deveriam soar
frequentemente em nossos ouvidos: “Tornai-vos, pois, praticantes
da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos”
(Tg 1.22).
Que não passemos sem fazer a nós mesmos uma importante
indagação: “Como estamos ouvindo a Palavra de Deus?”. Vivemos
em um país que se declara cristão. Vamos à igreja domingo após
domingo, e ouvimos sermões. Com que atitude ouvimos? Que efeito
a pregação está exercendo sobre nosso caráter? Podemos apontar
para qualquer coisa que mereça o nome de “fruto”?
Podemos estar seguros de que, para chegar ao céu, por fim, é
preciso algo mais do que ir à igreja regularmente aos domingos e
escutar os pregadores. A Palavra de Deus precisa ser acolhida em
nosso coração e tornar-se a regra de nossa conduta. Ela deve
produzir influência prática sobre nosso caráter, algo que se torne
aparente em nosso comportamento exterior. Se não estiver
sucedendo assim, a pregação da palavra servirá tão somente para
aumentar ainda mais nossa condenação no dia do juízo.
A parábola do trigo e do joio
Leia Mateus 13.24-43

A parábola do trigo e do joio, que ocupa a parte principal desses


versículos, reveste-se de particular importância em nossos dias. Ela
tem o propósito eminente de corrigir as expectativas muito altas que
muitos cristãos têm quanto ao efeito das missões cristãs no
estrangeiro e à pregação do evangelho em sua pátria. Que
possamos dar, portanto, a essa parábola a atenção que merece!
Em primeiro lugar, essa parábola nos ensina que o bem e o mal
sempre serão achados juntos na igreja, até o fim do mundo. A igreja
visível nos é apresentada como um corpo misto. Trata-se de um
“campo” vasto no qual crescem, lado a lado, o trigo e o joio.
Devemos estar preparados para encontrar crentes e incrédulos,
convertidos e não convertidos, os “filhos do reino” e os “filhos do
maligno”, todos misturados uns aos outros, em todas as
congregações de pessoas batizadas.
Nem mesmo a mais pura e fiel pregação do evangelho
conseguirá impedir esse estado de coisas, o qual tem existido em
todos os séculos da Igreja. Tal foi a experiência dos primeiros pais
da Igreja; tal foi a experiência dos reformadores; e continua a ser a
experiência dos melhores ministros do evangelho, até hoje. Nunca
houve uma igreja local ou assembleia cristã cujos membros fossem
todos “trigo”. O diabo, o grande inimigo de nossas almas, sempre
teve o cuidado de semear o “joio”.
A disciplina eclesiástica mais prudente e estrita não impedirá
essa situação. Qualquer que seja a denominação, todas,
igualmente, descobrem que é assim que se passa. Sem importar o
que façamos para purificar uma igreja, jamais conseguiremos obter
uma comunhão perfeitamente pura. O joio sempre será encontrado
no meio do trigo. Hipócritas e enganadores se infiltrarão
sorrateiramente. E o pior de tudo é que, se nos mostramos
exageradamente zelosos em nosso esforço de obter a pureza,
fazemos mais mal do que bem.
Corremos o risco de encorajar muitos Judas Iscariotes e o risco
de esmagar muitas “canas quebradas”. Em nosso afã de “arrancar o
joio”, corremos o risco de arrancar “também com ele o trigo”. Tal
zelo não está de acordo com o entendimento, e tem, com
frequência, causado muito dano. Quem não se importa com o que
acontece ao trigo, contanto que possa desarraigar o joio, demonstra
possuir bem pouco da mente de Cristo. Afinal de contas, há uma
profunda verdade na caridosa declaração de Agostinho: “Os que
hoje são joio amanhã poderão ser trigo”.
Sentimo-nos inclinados a esperar pela conversão do mundo
inteiro por meio do trabalho dos missionários e ministros do
evangelho? Que tenhamos essa parábola sempre diante de nós, e
nos acautelemos dessa ideia! Dentro da presente ordem de coisas,
jamais veremos transformados em trigo todos os habitantes da terra.
O trigo e o joio continuarão a “crescer juntos até à colheita”. Os
reinos deste mundo jamais se tornarão o reino de Cristo, nem o
Milênio começará até que o próprio Rei retorne.Sentimo-nos
perturbados pelo argumento zombeteiro dos incrédulos, de que o
cristianismo não pode ser uma religião verdadeira, visto que existem
tantos crentes falsos? Que tenhamos em mente essa parábola e
permaneçamos inabaláveis! Digamos ao incrédulo que sua
zombaria desse estado de coisas não nos surpreende, de maneira
alguma. Nosso Senhor nos preparou para isso há quase dois mil
anos. Ele previu e predisse que sua Igreja seria um campo
contendo, não somente trigo, mas também joio.
Sentimo-nos tentados a abandonar uma igreja evangélica por
outra porque vemos que muitos de seus membros não são
convertidos? Se for esse o caso, lembremo-nos dessa parábola e
tenhamos muito cuidado com nossas atitudes. De modo algum
encontraremos uma igreja perfeita. Poderíamos passar a vida inteira
migrando de uma igreja para outra, sofrendo perene
desapontamento. Não importa aonde formos, ou a igreja que
frequentemos, sempre encontraremos o joio.
Em segundo lugar, a parábola nos ensina que haverá o dia da
separação entre os membros piedosos e os membros ímpios da
igreja visível, no fim do mundo. O presente estado de coisas não
continuará para sempre. O trigo e o joio serão separados ao final. O
Senhor Jesus “enviará seus anjos”, no dia de seu segundo advento.
Eles, então, recolherão os que se professam cristãos, formando dois
grupos distintos. Esses poderosos ceifeiros celestiais não se
enganarão no que estiverem fazendo. Haverão de discernir, com
juízo infalível, entre o justo e o ímpio, colocando cada qual em seu
próprio grupo. Os santos e fiéis servos de Cristo receberão glória,
honra e vida eterna. Os mundanos, os ímpios, os descuidados e os
não convertidos serão lançados dentro da “fornalha acesa”, onde
receberão opróbrio e eterna tribulação.
Há algo de peculiarmente solene nessa parte da parábola. O
significado de tais palavras não admite equívoco. Nosso Senhor fala
com palavras de singular clareza, como se quisesse nos
impressionar profundamente com a seriedade da questão. Ele
conclui a parábola com a seguinte expressão: “Quem tem ouvidos
para ouvir, ouça”.
Que o ímpio estremeça ao ler esta parábola! Que ele veja, por
meio dessa linguagem assustadora, sua própria condenação certa,
a menos que se arrependa e se converta. Compreenda que está
semeando a desgraça eterna para si próprio se prosseguir em sua
negligência quanto às coisas de Deus. Que ele reflita que seu
destino final consistirá em ser recolhido entre os feixes de joio, a fim
de ser queimado! Sem dúvida, uma perspectiva horrenda como
essa deveria fazer qualquer pessoa meditar. Conforme disse Baxter:
“Não devemos interpretar erroneamente a paciência de Deus para
com os ímpios”.
Que o crente em Cristo console-se com a leitura dessa
parábola! Que entenda que há felicidade e segurança, preparadas
para ele, no grande e temível dia do Senhor! A voz do arcanjo e a
trombeta de Deus não haverão de aterrorizá-lo. Pelo contrário,
serão uma convocação para a cena que, desde há muito, o crente
deseja contemplar: uma igreja perfeita e uma perfeita comunhão dos
santos.
Quão lindo será o aspecto do corpo de Cristo, a Igreja, quando,
afinal, tiver sido separada dos ímpios! Que bonito parecerá, então, o
trigo, recolhido no “celeiro” de Deus, quando, finalmente, todo o joio
tiver sido retirado do meio deles! Quão brilhantemente
resplandecerá a graça divina quando não mais estiver sendo
obscurecida pelo incessante contato com os mundanos e os não
convertidos! Os justos são pouco conhecidos no dia de hoje. O
mundo não vê neles qualquer beleza, como também não viu beleza
alguma no Mestre e Senhor deles: “Por essa razão o mundo não
nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo” (1Jo 3.1).
Porém, um dia, “os justos resplandecerão como o sol, no reino de
seu Pai”. Nas palavras de Matthew Henry: “A santificação deles será
perfeita e a sua justificação se tornará pública”. E também lemos em
Colossenses 3.4: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar,
então vós também sereis manifestados com ele, em glória”.
As parábolas do tesouro, da pérola e da rede
Leia Mateus 13.44-50

A s parábolas do “tesouro oculto no campo” e do homem que


“negocia e procura boas pérolas” parecem ter como alvo
transmitir a mesma mensagem. Contudo, diferenciam-se quanto a
uma notável particularidade. O “tesouro” foi encontrado ao acaso,
por quem não procurava por ele. A “pérola” foi encontrada somente
após uma busca muito diligente, por quem buscava boas pérolas.
Entretanto, a conduta de ambos os descobridores foi exatamente a
mesma. Ambos “venderam tudo” com o propósito de fazer de sua
propriedade o objeto achado. É precisamente quanto a esse
particular que a instrução, em ambas as parábolas, é a mesma.
As duas parábolas visam ensinar que, se um homem está
realmente convencido da importância da salvação, haverá de
desistir de tudo o mais, para ganhar Cristo e a vida eterna. Qual foi
a conduta daqueles dois homens que nosso Senhor descreve? O
primeiro estava persuadido da existência de um tesouro “oculto no
campo”, o qual haveria de recompensá-lo ricamente se ele
comprasse o tal campo, sem se importar com quanto teria de pagar.
O outro ficou persuadido de que a “pérola” que havia achado era tão
imensamente valiosa que lhe conviria vender tudo o que tinha a fim
de adquiri-la. Ambos estavam convencidos de haver encontrado
algo de imenso valor. Ambos se dispuseram a fazer um grande
sacrifício para que se tornassem possuidores daquelas riquezas.
Talvez outras pessoas estranhassem essa atitude. Outros poderiam
julgar aqueles dois homens uns tolos por haverem pago tão elevada
soma em dinheiro pelo campo e a pérola. Porém, eles sabiam o que
estavam comprando. E tinham a certeza de que estavam fazendo
um excelente negócio.
Você pode ver, nessa simples ilustração, a conduta de um
verdadeiro cristão. Ele é o que é, e faz o que faz, em sua religião,
por estar totalmente persuadido de que vale a pena. Ele abandona o
mundo. Despe-se do velho homem. Esquece-se das vãs
companhias de sua vida passada. Como Mateus, ele desiste de
tudo e, como Paulo, ele a “tudo considera perda”, por causa de
Cristo. E por quê? Porque está convencido de que Cristo vai
recompensá-lo por tudo que ele estiver deixando para trás. Ele vê
em Jesus Cristo um tesouro de valor inestimável. Cristo é a pérola
preciosa. Ele fará qualquer coisa para ganhar Cristo. Nisso, consiste
a verdadeira fé. Esse é o sinal da genuína operação do Espírito
Santo.
Observe, nessas duas parábolas, a verdadeira razão para a
conduta de muitas pessoas não convertidas! Em se tratando de
religião, elas são o que são porque não estão plenamente
persuadidas de que vale a pena ser diferente. Evitam a decisão.
Retraem-se de tomar sua cruz. Vacilam entre duas opiniões. Não
desejam comprometer-se. Não vêm ousadamente para o lado de
Cristo. Mas por quê? Por não estarem convencidas de que essa é a
solução. Elas não estão seguras de que “o tesouro” está bem na
sua frente. Não estão convencidas de que a “pérola” vale tanto
assim. Ainda não conseguem tomar a resolução de “vender tudo”
para que possam ter Cristo. E assim, com frequência, acabam
perecendo eternamente! Quando alguém não se dispõe a abrir mão
de tudo por causa de Cristo, temos de chegar à triste conclusão de
que essa pessoa não recebeu a graça divina.
A parábola da rede que é lançada ao mar tem alguns pontos
em comum com a parábola do trigo e do joio. Sua finalidade é
instruirnos no tocante a uma questão importantíssima: a verdadeira
natureza da igreja visível de Cristo.
A pregação do evangelho era como uma grande rede lançada
em meio ao mar deste mundo. A Igreja professa, que haveria de ser
colhida pela rede, seria um corpo misto. A rede haveria de apanhar
peixes de todo tipo, bons e ruins. No seio da Igreja, haveria cristãos
de diversas categorias, convertidos e não convertidos, tanto falsos
como autênticos. A separação entre os bons e os maus viria com
certeza, mas não antes do fim do mundo. Esse foi o relato que o
grande Mestre deu a seus discípulos a respeito das igrejas que eles
haveriam de fundar.
É de suma importância que as lições contidas nessa parábola
estejam profundamente gravadas em nossa mente. Dificilmente há
outro assunto no cristianismo acerca do qual se cometam erros tão
grandes quanto esse a respeito da natureza da igreja visível. Talvez
não exista nenhum outro assunto em que os erros sejam tão
perigosos para a alma.
Aprendamos, com essa parábola, que todas as assembleias de
cristãos professos devem ser consideradas corpos mistos. Todas
contêm peixes bons e ruins, convertidos e não convertidos, filhos de
Deus e filhos deste mundo, que devem ser descritos e tratados de
forma distinta uns dos outros. Dizer a todas as pessoas batizadas
que elas nasceram de novo, que possuem o Espírito de Deus, que
são santas e membros do corpo de Cristo, na luz de uma parábola
como esta, é algo inconcebível. Esse pode ser um modo lisonjeiro e
bajulador de tratar com as pessoas, mas é difícil que venha a fazer
o bem ou salvar uma alma. É uma maneira calculada de promover a
justiça própria e ninar os pecadores dormentes. Tal tratamento
subverte o pleno ensinamento de Cristo e é nocivo para as almas.
Já tivemos a oportunidade de ouvir tal doutrina? Nesse caso,
lembremo-nos da “rede”.
Finalmente, que tenhamos como princípio nunca estar
satisfeitos com uma ligação meramente externa com a igreja.
Podemos estar dentro da rede, mas não pertencer a Jesus Cristo.
Milhares de pessoas recebem a água do batismo sem que jamais
sejam lavadas na água da vida. Muitos participam da comunhão do
pão e do vinho à mesa do Senhor, mas nunca se alimentam de
Cristo, pela fé. Somos convertidos? Somos “peixes bons”? Essa é a
grande pergunta, a qual, finalmente, demanda uma resposta. Dentro
em pouco, a rede será arrastada para a praia. Então, o caráter da
religião de cada homem será finalmente exposto. Haverá eterna
separação entre os peixes bons e os ruins. Haverá uma “fornalha de
fogo” para os ímpios. Certamente, conforme asseverou Baxter:
“Essas palavras tão claras precisam mais ser recebidas e cridas do
que explicadas”.
Cristo é desprezado em sua própria terra; o
perigo da incredulidade
Leia Mateus 13.51-58

A primeira coisa que deveríamos observar nesses versículos é a


penetrante pergunta com que nosso Senhor conclui as sete
admiráveis parábolas desse capítulo. Ele pergunta: “Entendestes
todas estas cousas?”.
A aplicação pessoal tem sido chamada de “alma” da pregação.
Um sermão sem aplicação é como uma carta enviada sem o
endereço do destinatário. Ela pode ter sido muito bem escrita,
corretamente datada e assinada. Porém, não tem valor algum, pois
nunca chega ao seu destino. A pergunta de nosso Senhor é o
exemplo admirável de uma aplicação que realmente perscruta o
coração dos ouvintes: “Entendestes?”.
A mera formalidade do ato de ouvir um sermão de nada
aproveita ao homem, a menos que ele entenda seu significado. Em
nada seria melhor do que ouvir o sopro de uma trombeta ou o ritmo
de um tambor. Poderia, com igual proveito, participar de uma missa
católica em latim! É preciso que o intelecto da pessoa seja posto
para funcionar, e seu coração, tocado. As ideias precisam ser
absorvidas pela mente. O ouvinte deve levar consigo as sementes
de novos pensamentos. Sem isso, ele ouvirá em vão.É muito
importante deixar bem claro esse ponto. Existe muita ignorância
sobre toda essa questão. Há milhares de pessoas que frequentam
regularmente a igreja, pensando que, com isso, já cumpriram seus
deveres religiosos sem nunca sair com uma ideia ou uma impressão
gravada em suas mentes e em seus corações. Se lhes
perguntássemos, após terem voltado para casa, no domingo, o que
aprenderam na igreja, não poderiam dizer nenhuma palavra a esse
respeito. E, se as examinássemos, no final de um ano, quanto ao
conhecimento religioso adquirido no decurso desse prazo,
descobriríamos que continuam tão ignorantes quanto os pagãos.
Vigiemos nossas almas quanto a essa questão. Levemos
conosco, para as reuniões nas igrejas, não somente nossos corpos,
mas também nossas mentes, nossos corações e nossas
consciências. E sempre perguntemos a nós mesmos: “O que foi que
aproveitei desse sermão? O que aprendi de novo? Quais verdades
ficaram gravadas em minha mente?”. Sem dúvida, o intelecto não é
tudo em matéria de religião. Mas isso não significa que não tenha
importância. O coração é, inquestionavelmente, o ponto principal.
Todavia, nunca nos deveríamos esquecer do fato de que o Espírito
Santo geralmente chega ao coração através da mente. Ouvintes
sonolentos, preguiçosos e desatentos dificilmente se convertem.
A segunda coisa que deveríamos notar nesses versículos é o
estranho tratamento que nosso Senhor recebeu em sua própria
terra. Ao chegar à cidade de Nazaré, onde fora criado, “ensinava-os
na sinagoga”. Seus ensinamentos, não há dúvida, continuaram a ser
o que sempre foram: “Jamais alguém falou como este homem” (Jo
7.46). Porém, não teve efeito sobre os habitantes de Nazaré. Eles
se “maravilhavam”, mas os corações permaneciam intocados.
Diziam: “Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe
Maria?”. Assim, pois, desprezaram a Jesus por estarem tão bem
familiarizados com ele. “Escandalizavam-se nele”, e essa atitude
arrancou de nosso Senhor esta notável observação: “Não há profeta
sem honra senão na sua terra e na sua casa”.
Vamos ver, nesse relato, uma triste visão da natureza humana
aberta diante de nossos olhos. Todos nos inclinamos a desprezar as
misericórdias das quais somos alvo, se estamos acostumados com
elas e as consideramos sem importância. A Bíblia e outros livros de
cunho religioso vão se tornando cada vez mais comuns em nosso
país; temos os meios da graça e a pregação do evangelho, que
ouvimos a cada semana; tudo isso, porém, está sujeito a ser
subestimado. É lamentavelmente verdadeiro que, no terreno
religioso, mais do que em qualquer outro aspecto das atividades
humanas, “a familiaridade gera desrespeito”, como diz o ditado. Os
homens esquecem-se de que a verdade é verdade, não importa
quão antiga e comum possa parecer, e a desprezam por causa de
sua antiguidade. Que pena! Assim fazendo, provocam a Deus, para
que não nos mostre a verdade.
Acaso nos admiramos com o fato de que os parentes, servos e
vizinhos de pessoas piedosas nem sempre se convertem? Ficamos
perplexos porque as congregações de eminentes pregadores do
evangelho geralmente são seus ouvintes mais duros e
impenitentes? Não nos admiremos mais de coisas assim.
Observemos a experiência de nosso Senhor em Nazaré e tornemo-
nos mais sábios.
Acaso nos iludimos, pensando que, se apenas tivéssemos visto
e ouvido Jesus Cristo pessoalmente, teríamos sido seus fiéis
discípulos? Pensamos que, se tivéssemos vivido perto dele e sido
testemunhas oculares de seu ministério, não teríamos ficado
indecisos, oscilantes e indiferentes para com a religião? Não
pensemos mais dessa maneira. Observemos os habitantes de
Nazaré e tornemo-nos sábios.
A última coisa que deveríamos notar nesses versículos é a
natureza destrutiva da incredulidade. Esse capítulo termina com
estas espantosas palavras: “E não fez ali muitos milagres, por causa
da incredulidade deles”.
Observe que, nessa palavra — incredulidade —, está o
segredo da ruína eterna de multidões de almas! Perecem para todo
o sempre porque não querem crer. Nada mais existe, no céu ou na
terra, que impeça sua salvação. Os pecados, não importa quantos
sejam, podem todos ser perdoados. O amor do Pai está pronto para
receber essas pessoas. O sangue de Cristo está pronto para
purificá-las. O poder do Espírito está sempre à disposição para
renová-las. Porém, uma grande barreira se interpõe — eles não
querem crer: “Não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40).
Que todos nós estejamos em guarda contra esse maldito
pecado! Ele é a antiga raiz do pecado, que provocou a Queda do
homem. Embora cortado da vida de todo verdadeiro filho de Deus,
pelo poder do Espírito, ele está sempre pronto a brotar e voltar a
florescer. Existem três grandes inimigos contra os quais os filhos de
Deus deveriam lutar diariamente em oração: orgulho, mundanismo e
incredulidade. Mas, desses três, nenhum é pior do que a
incredulidade.
O martírio de João Batista
Leia Mateus 14.1-12

N essa passagem, encontramos uma página extraída do livro dos


mártires de Deus: a história da morte de João Batista. A
iniquidade do rei Herodes, a corajosa repreensão que João lhe deu,
o consequente encarceramento do fiel reprovador e as lamentáveis
circunstâncias em que o santo de Deus foi executado — tudo ficou
registrado para nosso aprendizado. “Preciosa é aos olhos do Senhor
a morte dos seus santos” (Sl 116.15).
A narrativa da execução de João Batista foi contada em
maiores detalhes por Marcos do que por Mateus. Para o momento,
parece suficiente extrair duas lições gerais da narrativa de Mateus, e
fixar nossa atenção exclusivamente nisso.
Em primeiro lugar, aprendamos, nesses versículos, o grande
poder da consciência. O rei Herodes ouviu da “fama de Jesus” e,
então, disse aos que o serviam: “Este é João Batista; ele
ressuscitou dos mortos e, por isso, nele operam forças miraculosas”.
Herodes, pois, lembrou-se das maldades que havia cometido contra
aquele homem santo, e seu coração angustiou-se profundamente. O
coração do monarca dizia-lhe que ele havia repelido o santo
conselho do profeta e cometido um homicídio pérfido e abominável.
O coração lhe dizia que, embora já tivesse matado João Batista, o
dia do acerto de contas ainda estava por vir. Ele e João Batista
ainda voltariam a se encontrar. Com toda a razão, afirmou o bispo
Hall: “Um homem ímpio não precisa de outro atormentador,
sobretudo no caso de crimes de sangue, mais do que seu próprio
coração”.
Em todos os seres humanos, há uma consciência natural. Que
isso jamais seja esquecido! Embora nasçamos neste mundo como
criaturas decaídas, perdidas e desesperadamente iníquas, Deus
cuidou para que houvesse sempre uma testemunha contra nós, em
nosso próprio peito. Ela é um pobre guia cego, sem a ajuda do
Espírito Santo. Não pode salvar ninguém. Não pode conduzir
alguém a Cristo. Ela pode ser cauterizada e pisada aos pés. Porém,
em todos os homens existe uma consciência que os acusa ou os
justifica; e a Bíblia e a experiência humana são testemunhos disso
(Rm 2.15).
A consciência pode fazer até mesmo os reis sentirem-se
miseráveis quando repelem obstinadamente seus avisos. A
consciência pode encher os príncipes deste mundo de temor e
pavor, conforme sucedeu a Félix quando Paulo estava pregando. É
mais fácil encarcerar e decapitar o pregador do que abafar o sermão
e a repreensão que clamam dentro do próprio coração. As
testemunhas de Deus podem ser postas de lado, mas o testemunho
prestado por elas com frequência sobrevive, e continua agindo
ainda por muito tempo. Os profetas de Deus não vivem para
sempre, mas suas palavras sobrevivem a eles (2Tm 2.9; Zc 1.5-6).
Que os insensatos e os ímpios não se esqueçam disso, para
que não transgridam suas próprias consciências! Saibam que “o
pecado vos há de achar” (Nm 32.23). Podem rir, zombar, escarnecer
da religião por algum tempo. Podem até dizer: “Quem tem medo?
Onde está a grande iniquidade de nossas ações?”. Não perdem por
esperar! Estão semeando a miséria para si mesmos e, cedo ou
tarde, terão uma colheita amarga. Sua própria maldade haverá de
alcançá-los um dia. Assim como Herodes, descobrirão que é muito
mau e amargo pecar contra Deus (Jr 2.19).
Que os ministros e mestres se lembrem de que há nos homens
uma consciência e, assim, trabalhem com mais ousadia ainda. A
instrução dada nem sempre é perdida, simplesmente porque parece
não produzir fruto imediatamente. O ensinamento nunca é perdido,
embora às vezes, aparentemente, tenha sido em vão, parecendo-
nos que ninguém deu ouvidos e o ensinamento foi logo esquecido.
Existe uma consciência naquelas pessoas que ouvem nossos
sermões. Existe uma consciência nas crianças que frequentam
nossas escolas. Muitos sermões e ensinos ainda serão lembrados
mesmo depois da morte de quem os predicou, como na história de
João Batista. Milhares de pessoas sabem que estamos com a
razão, mas, tal como Herodes, não ousam admitir isso.
Em segundo lugar, aprendamos que os filhos de Deus não
devem esperar que sua recompensa seja dada neste mundo. Se já
houve um caso de piedade autêntica que não foi galardoada neste
mundo, isso se deu com João Batista. Pense por um momento no
homem que ele foi durante sua breve carreira e, então, lembre-se do
trágico fim que lhe sobreveio. Ele era profeta do Altíssimo e maior
do que qualquer um dentre os nascidos de mulher; no entanto, foi
aprisionado como um malfeitor! A vida dele foi cortada por uma
morte violenta, antes dos trinta e quatro anos: a luz que brilhava foi
apagada, e o pregador fiel foi assassinado por estar cumprindo seu
dever — e tudo isso para satisfazer o ódio de uma mulher adúltera,
e por ordem de um tirano caprichoso! Se já houve no mundo um
acontecimento que desse motivo para o ignorante dizer “De que
aproveita servir a Deus?”, foi esse.
Mas são coisas assim que nos mostram que, um dia, haverá
um julgamento. O Deus dos espíritos de toda carne haverá de
instaurar um tribunal, finalmente, e retribuirá a cada um de acordo
com suas obras. O sangue de João Batista e do apóstolo Tiago, o
sangue de Estêvão, de Policarpo, de João Huss, de Ridley e de
Latimer serão ainda requeridos de seus algozes. Está tudo
devidamente registrado no livro de Deus. “A terra descobrirá o
sangue que embebeu e já não encobrirá aqueles que foram mortos”
(Is 26.21). O mundo ainda saberá que existe um Deus que é o Juiz
de toda a terra.
Que todos os verdadeiros cristãos se lembrem de que o melhor
ainda está por vir! Não consideremos coisa estranha se a parte que
nos cabe, no presente, forem os sofrimentos. Esse é um período de
provação. Ainda estamos na escola preparatória. Estamos
aprendendo paciência, longanimidade, gentileza e mansidão; coisas
que dificilmente poderíamos aprender se já tivéssemos recebido a
melhor parte. Mas existe um descanso eterno que ainda está para
começar. Esperemos tranquilos até que ele chegue. Ele dará a
compensação de tudo. “Porque a nossa leve e momentânea
tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda
comparação” (2Co 4.17).
O milagre dos pães e peixes
Leia Mateus 14.13-21

E sses nove versículos contêm um dos maiores milagres de


nosso Senhor Jesus Cristo: a multiplicação de cinco pães e
dois peixes para “cinco mil homens, além de mulheres e crianças”.
De todos os milagres realizados por nosso Senhor, nenhum outro é
tão repetidamente mencionado no Novo Testamento. Mateus,
Marcos, Lucas e João referem-se todos a esse prodígio. É evidente
que esse acontecimento tem por intuito receber nossa mais especial
atenção. Observemo-lo, pois, com atenção e vejamos o que
podemos aprender.
Em primeiro lugar, esse milagre é uma prova incontestável do
poder divino de nosso Senhor. Saciar a fome de mais de cinco mil
pessoas, contando apenas com cinco pães e dois peixes, é algo
manifestamente impossível sem uma multiplicação sobrenatural. Era
algo que nenhum mágico, impostor ou falso profeta jamais teriam
intentado fazer. Um impostor poderia simular a cura de um doente
ou a ressuscitação de um morto, e, com truques e enganos, talvez
conseguisse iludir as pessoas mais simples. Mas nenhum impostor
tentaria realizar uma obra tão grandiosa quanto esta que está aqui
registrada. Saberia perfeitamente bem que não poderia persuadir
dez mil pessoas de que estavam satisfeitas, quando, na realidade,
continuavam famintas. Ele seria desmascarado no mesmo instante.
Não obstante, essa foi a poderosa obra que nosso Senhor
realmente concretizou, por meio da qual deu provas conclusivas de
que era Deus. Ele fez existir, do nada, pães e peixes já preparados;
comida verdadeira, que era possível podia ver e tocar, em
quantidade suficiente para satisfazer dez mil pessoas, a partir de
uma porção que mal seria suficiente para cinco pessoas. Sem
dúvida, estaríamos cegos se não percebêssemos nesse
acontecimento a mão daquele que “dá alimento a toda carne” e que
fez o mundo e tudo que nele existe. O poder de criar é prerrogativa
exclusiva de Deus.
Precisamos apegar-nos firmemente a passagens como essa.
Temos a obrigação de entesourar na mente cada evidência do poder
divino de nosso Senhor. O homem não convertido, frio e ortodoxo
talvez veja bem pouco nesse relato. Mas o verdadeiro crente
deveria guardá-lo em sua memória. Que o crente medite sobre este
mundo, o diabo e seu próprio coração, e aprenda a agradecer a
Deus pelo fato de o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, ser Todo-
Poderoso.
Em segundo lugar, esse milagre é um exemplo notável da
compaixão de nosso Senhor para com os homens. Ele viu uma
multidão em um lugar deserto, quase a desmaiar de fome. Ele sabia
que muitos deles não tinham verdadeira fé nem amor para com ele.
Seguiam-no meramente por curiosidade ou por costume, ou, então,
por algum outro motivo igualmente inferior (Jo 6.26). Mas nosso
Senhor teve compaixão de toda aquela gente. Todos foram
saciados. Todos participaram do alimento miraculosamente
providenciado. Todos “comeram e se fartaram”, e ninguém foi
embora faminto.
Notemos o bondoso coração de nosso Senhor Jesus Cristo,
volvendo-se para os pecadores. Desde os dias da antiguidade, ele
continua sempre o mesmo: “Senhor, Senhor Deus compassivo,
clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade” (Êx
34.6). Ele não trata com os homens de acordo com os pecados
deles, nem lhes retribui na medida das iniquidades de cada um.
Mesmo aos seus próprios inimigos, ele cumula de benefícios. Por
isso, ninguém será tão indesculpável no dia do juízo quanto aqueles
que forem achados impenitentes. A bondade do Senhor conduz ao
arrependimento (Rm 2.4). Em todo o seu relacionamento com os
homens no mundo, Jesus mostrou “ter prazer na misericórdia” (Mq
7.18). Que nos esforcemos por ser semelhantes a ele! Quesnel
escreveu: “Deveríamos ter abundância de piedade e compaixão
para com as almas enfermas”.
Por último, esse milagre é uma vívida ilustração da suficiência
do evangelho para satisfazer as necessidades da alma de toda a
humanidade. Todos os milagres de nosso Senhor, sem dúvida, têm
algum significado figurativo profundo e ensinam grandes verdades
espirituais. No entanto, devemos tratá-los com reverência e
discrição. É preciso tomar cuidado para não fazer como muitos dos
antigos mestres, que viam alegorias até mesmo onde não fora esse
o intuito do Espírito Santo. Contudo, se existe um milagre que, além
de seu sentido literal, também tem um sentido figurado bem
manifesto, é justamente desse milagre que estamos tratando: o
milagre da multiplicação dos pães e dos peixes.
O que a multidão faminta em um lugar deserto representa para
nós? Simboliza a humanidade inteira. Os filhos dos homens formam
uma gigantesca companhia de pecadores que estão perecendo,
famintos, em meio a um mundo hostil, desamparados, caminhando
sem esperança rumo à destruição. Todos nós nos desgarramos,
como ovelhas perdidas (Is 53.6). Por natureza, estamos longe,
muito longe de Deus. Nossos olhos não conseguem perceber toda a
extensão do perigo que corremos. A realidade de cada ser humano
é como diz a Bíblia: “Tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu”
(Ap 3.17). Entre nós e a perdição eterna, só existe um passo.
O que os pães e peixes representam? Pareciam inadequados
para atender à necessidade daquele momento; mas, por meio de
um milagre, tornaram-se suficientes para alimentar cerca de dez mil
pessoas! Eles são como figuras da doutrina de Cristo crucificado em
favor de pecadores, como Substituto vicário, que, pela sua morte,
fez expiação pelos pecados. Para o homem natural, essa doutrina
parece ser a debilidade em pessoa. Cristo crucificado era para os
judeus uma pedra de tropeço, e para os gregos, loucura (1Co 1.23).
No entanto, Cristo crucificado tem demonstrado ser o pão de Deus,
que desceu do céu para dar vida ao mundo (Jo 6.33). A história da
cruz tem satisfeito amplamente as necessidades espirituais do
homem, em todo lugar em que tem sido pregada. Milhares de
pessoas, de todas as classes sociais, idade ou nacionalidade são
testemunhas de que o evangelho é o poder e a sabedoria de Deus ”
(1Co 1.24). Todos têm provado do pão da vida e têm sido saciados.
Eles têm descoberto que Jesus é “verdadeira comida” e “verdadeira
bebida” (Jo 6.55).
Meditemos demoradamente sobre essas verdades. Há grande
profundidade em todos os atos de nosso Senhor Jesus Cristo que
ficaram registrados, e que ninguém, até hoje, conseguiu sondar
devidamente. Existem tesouros de rica instrução em todas as suas
palavras e procedimentos que ninguém explorou por completo até
agora. Muitas passagens dos evangelhos são como a nuvem que o
servo de Elias viu (1Rs 18.44). Quanto mais as examinamos,
maiores e mais importantes nos parecem. Nas Escrituras Sagradas,
há uma plenitude inexaurível. Parece que outros escritos tornam-se
triviais quando nos familiarizamos com eles. Mas, em relação à
Bíblia, quanto mais a lemos, mais rica se torna para nós.
Cristo anda sobre o mar
Leia Mateus 14.22-36

O relato contido nesses versículos reveste-se de singular interesse.


O milagre aqui registrado demonstra o caráter de Jesus Cristo
quanto ao seu povo. O poder e a misericórdia do Senhor Jesus,
bem como a combinação de fé e incredulidade, que caracteriza até
mesmo seus melhores discípulos, são maravilhosamente ilustrados.
Em primeiro lugar, com esse milagre, aprendemos sobre o
absoluto domínio que nosso Salvador tem sobre todas as coisas
criadas. Vemos Jesus “andando por sobre o mar”, como se
estivesse caminhando em terra seca. As ondas agitadas, que
jogavam o barquinho dos discípulos de lá para cá, obedeceram ao
Filho de Deus e tornaram-se sólidas debaixo de seus pés. Aquela
superfície líquida, que se agitava ao menor sopro de vento,
sustentava os pés de nosso Redentor como se fossem uma rocha.
Para nossas pobres e débeis mentes, o acontecimento todo é
incompreensível. A cena de dois pés caminhando sobre a superfície
do mar, segundo nos informa Doddridge, era o símbolo de algo
impossível para os egípcios. O cientista nos dirá que é uma
impossibilidade física um corpo material de carne e osso andar
sobre a água. Para nós, entretanto, basta-nos saber que assim
sucedeu. Basta-nos lembrar que, para ele, que criou os mares no
princípio, deve ter sido perfeitamente fácil caminhar sobre as ondas,
quando ele assim o quis.
Aqui, há um encorajamento para todos os verdadeiros cristãos.
Que os crentes saibam que não existe nenhuma coisa criada que
não esteja sujeita ao controle de Cristo! Todas as coisas servem
juntamente ao Senhor. Ele pode permitir que seu povo seja
submetido a teste por algum tempo, atirado de um lado para outro
pelo temporal das tribulações. É possível que ele venha em socorro
deles mais tarde do que gostariam, já “na quarta vigília da noite”.
Entretanto, que os crentes jamais se esqueçam de que os ventos,
as ondas e os temporais são todos servos de Cristo! Nada acontece
sem a permissão de Cristo. “O Senhor nas alturas é mais poderoso
do que o bramido das grandes águas, do que os poderosos
vagalhões do mar” (Sl 93.4). Porventura, sentimo-nos alguma vez
tentados a clamar, como fez Jonas: “A corrente das águas me
cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de
mim” (Jn 2.3)? Lembremo-nos de que as ondas pertencem a ele.
Esperemos com paciência. Talvez ainda possamos contemplar
Jesus vindo em nossa direção e “andando por sobre o mar”.
Em segundo lugar, aprendemos com esse milagre o poder que
Jesus pode conferir aos que nele confiam. Vemos Simão Pedro
saindo do barco e andando sobre as águas, à semelhança de seu
Senhor. Que prova maravilhosa da divindade de nosso Senhor!
Caminhar sobre as águas, ele mesmo, já fora um tremendo milagre.
Mas capacitar um pobre e fraco discípulo a fazer o mesmo foi um
milagre maior ainda.
Existe um profundo significado nessa parte da narrativa. Ela
nos mostra quão grandes coisas nosso Senhor pode fazer pelos que
ouvem sua voz e o seguem. Ele pode capacitá-los a realizar coisas
que antes pensariam ser impossíveis. Ele pode conduzi-los em meio
às dificuldades e tribulações que, sem ele, jamais ousariam
enfrentar. Ele pode outorgar-lhes forças para caminhar por meio do
fogo e da água sem qualquer dano, triunfando em meio à
adversidade. Moisés no Egito, Daniel na Babilônia, os santos da
casa de Nero, todos são exemplos de seu imenso poder. Se
estamos servindo a Cristo, não tenhamos temor de nada! As águas
podem parecer profundas. Mas, se Jesus nos diz: “Vinde!”, não
temos razão para temer. “Aquele que crê em mim fará também as
obras que eu faço, e outras maiores fará” (Jo 14.12).
Em terceiro lugar, aprendemos quantas tribulações os
discípulos de Cristo atraem contra si mesmos por falta de fé. Por
algum tempo, vemos Pedro andando corajosamente por sobre as
águas. Todavia, ao prestar atenção “na força do vento”, deixa-se
invadir pelo medo e começa a afundar. A fraqueza da carne
prevalece sobre o desejo do espírito. Pedro esquece as
maravilhosas provas que, havia pouco, presenciara da bondade e
do poder de seu Senhor. Ele não considerou que o mesmo
Salvador, que o capacitara a dar o primeiro passo, era poderoso
para sustentá-lo para sempre. Não refletiu que agora estava mais
perto de Cristo do que quando dera o primeiro passo. O medo
ofuscou-lhe a memória. O temor confundiu-lhe o raciocínio. Ele não
pensava em mais nada, senão no vento, nas ondas e em seu perigo
imediato; e sua fé retrocedeu: “Salva-me, Senhor!”.
Quão vívido é o quadro que encontramos aqui sobre a
experiência de tantos crentes! Quantas pessoas têm fé suficiente
para dar o primeiro passo em direção à Cristo, mas não têm fé
suficiente para seguir em frente! Assustam-se diante das provações
e dos perigos que parecem postar-se no caminho. Elas olham para
os inimigos que as circundam, bem como para as dificuldades que
parecem cercá-las na caminhada. Prestam mais atenção às
circunstâncias do que a Jesus e, imediatamente, começam a
afundar. Seu coração desmaia. Suas esperanças se dissipam. Seu
ânimo desaparece. E por que tudo isso? Cristo ainda é o mesmo!
Os inimigos dos cristãos não são maiores agora do que o foram no
passado. Isso acontece porque, como Pedro, os crentes deixam de
olhar para Jesus e, assim, dão lugar à incredulidade. Deixam-se
dominar pelo pensamento acerca de seus adversários, em vez de
pensar a respeito de Cristo. Que guardemos no coração esse
ensinamento e, assim, aprendamos a sabedoria!
Em último lugar, aprendamos quão misericordioso é o Senhor
Jesus Cristo para com os crentes fracos. Nós o vemos prontamente
a estender a mão para salvar Pedro, tão logo este lhe pediu socorro.
Jesus não deixa que Pedro colha o fruto de sua própria
incredulidade e afunde nas águas profundas. Parece que todo o
empenho de Jesus é considerar as dificuldades de Pedro e salvá-lo
imediatamente. A reprovação é moderada e gentil: “Homem de
pequena fé, por que duvidaste?”.
Observe, na conclusão desse milagre, as enormes mansidão e
benignidade de Cristo. Ele pode muito tolerar e perdoar quando vê a
verdadeira graça divina operando no coração de um homem. Assim
como a mãe trata gentilmente seu filho, e não o rejeita por causa de
seus pequenos caprichos e petulâncias, também o Senhor Jesus
trata seu povo com ternura. Ele já amava e se compadecia de seu
povo antes mesmo da conversão; e, depois da conversão, ele ama
e se compadece ainda mais. Jesus reconhece as debilidades
daqueles que lhe pertencem, demonstrando grande paciência para
com eles. Ele quer que saibamos que a dúvida não prova que uma
pessoa não tem fé, mas somente que essa fé é pequena. Mas,
mesmo quando nossa fé é pequena, o Senhor está sempre pronto
para nos ajudar. “Quando eu digo: Resvala-me o pé, a tua
benignidade, Senhor, me sustém” (Sl 94.18).
Em tudo isso, existem muitas razões que encorajam a servir a
Cristo! Quem pode ter receio de iniciar a carreira cristã, tendo um
Salvador como o Senhor Jesus? Se cairmos, ele nos reerguerá. Se
errarmos, ele nos trará de volta ao reto caminho. A misericórdia de
Jesus jamais se apartará completamente de nós. Ele tem dito: “De
maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5).
Ele cumprirá a sua palavra. Que tão somente nos lembremos de
que, embora não desprezemos a pequena fé, não devemos cruzar
os braços e estar contentes com ela! Nossa oração sempre deveria
ser: “Senhor, aumenta-nos a fé” (Lc 17.5).
A hipocrisia dos escribas e fariseus; o perigo das
tradições
Leia Mateus 15.1-9

N esses versículos, temos um diálogo entre nosso Senhor Jesus


Cristo e certos escribas e fariseus. À primeira vista, o assunto
pode parecer de pouco interesse para os dias de hoje. Mas, muito
pelo contrário, os princípios dos fariseus não morrem. Nessa
conversa, existem verdades de profunda importância.
Antes de tudo, aprendemos que os hipócritas geralmente dão
grande importância a coisas meramente exteriores. A denúncia
desses escribas e fariseus é uma ilustração notável desse
pormenor. Eles trouxeram uma acusação contra os discípulos.
Porém, qual era a natureza dessa acusação? Não era um problema
de cobiça ou justiça própria, nem uma acusação de falsidade ou
falta de caridade da parte dos discípulos. Tampouco era que eles
tivessem desobedecido a qualquer princípio da lei de Deus. A
acusação era: “Por que transgridem os teus discípulos a tradição
dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem”. Os
discípulos não estavam observando uma regra de alguma mera
autoridade humana, que algum judeu antigo havia inventado! Nisso,
consistia toda a gravidade da ofensa!
Acaso vemos algo do espírito dos fariseus nos dias de hoje?
Infelizmente, vemos demais essa atitude. Existem milhares de assim
chamados “cristãos” que parecem não se importar com a religião de
seu próximo, desde que possam concordar quanto às questões
externas. O vizinho adota uma forma de culto igual à deles? Esse
vizinho pode imitar seu falar e comentar um pouco acerca de suas
doutrinas favoritas? Se pode, estão satisfeitos, mesmo que não haja
evidência de ele ser convertido. Se não pode, estão sempre
achando defeitos e não podem falar dele amistosamente, muito
embora ele possa estar servindo a Cristo melhor do que eles
mesmos. Tenhamos muito cuidado com essa atitude. Ela é a
essência da hipocrisia. Que nosso princípio seja o seguinte: “O reino
de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no
Espírito Santo”! (Rm 14.17).
Em seguida, aprendemos, com base nesses versículos, que é
grande o perigo para quem tenta acrescentar qualquer coisa à
Palavra de Deus. Sempre que alguém decide fazer qualquer adição
à Bíblia, provavelmente acabará valorizando mais suas próprias
adições do que as Escrituras.
Vemos esse ponto grandemente destacado na resposta de
nosso Senhor à acusação dos fariseus contra os discípulos. Ele diz:
“Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por
causa da vossa tradição?”. Jesus combate ousadamente todo o
sistema de se fazerem acréscimos à perfeita Palavra de Deus, como
se algo mais fosse necessário para a salvação... Ele desmascara a
tendência malévola desse sistema, citando um exemplo. Ele mostra
como, na realidade, as vangloriosas tradições dos fariseus estavam
destruindo a autoridade do quinto mandamento. Em suma, Jesus
declara a grande verdade que jamais deveria ser esquecida, de que
há uma tendência inerente em todas as tradições a invalidar a
Palavra de Deus (v. 6). É possível que os autores dessas tradições
não tivessem por escopo tal resultado. Talvez as suas intenções
tivessem sido puras. Mas, evidentemente, a doutrina de Cristo é
que, em todas as normas religiosas de autoridade meramente
humana, existe a tendência de usurpar a autoridade da Palavra de
Deus. Bucer fez uma observação solene: “Raramente se encontrará
um homem que, prestando atenção excessiva às invenções
humanas no campo da religião, não acabe depositando maior
confiança nelas do que na graça de Deus”.
Não temos visto provas lamentáveis dessa verdade no decurso
da história da Igreja de Cristo? Infelizmente, já vimos provas em
demasia. Conforme diz Baxter: “Os homens pensam que as leis de
Deus são por demais numerosas e estritas; no entanto, ainda fazem
outras leis, sendo meticulosos em cumpri-las”. Já não tivemos a
oportunidade de ler como alguns têm exaltado cânones, dogmas e
leis eclesiásticas muito acima da Palavra de Deus, punindo a
desobediência a essas regras com maior severidade do que a
pecados notórios como o alcoolismo e o jurar em vão? Já não
ouvimos falar da extravagante importância com que a igreja de
Roma considera os votos monásticos e de celibato, a observância
de festas e jejuns? Parece que tais coisas recebem muito maior
importância do que os deveres para com a família e o cumprimento
dos dez mandamentos. Já não ouvimos falar de pessoas que se
preocupam mais em não comer carne na Quaresma do que com a
vida imoral ou o assassinato? Em nosso próprio país, acaso não
observamos como tantos parecem fazer o denominacionalismo o
assunto mais importante do cristianismo e consideram a assim
chamada “membresia” na igreja matéria de muito maior peso do que
o arrependimento, a fé, a santidade e as graças do Espírito Santo?
Essas são perguntas que só podem receber uma única e triste
resposta. O espírito dos fariseus ainda está vivo, mesmo depois de
quase vinte séculos se terem passado. A disposição de invalidar a
Palavra de Deus, por meio de tradições humanas, encontra-se não
somente entre judeus, mas igualmente entre cristãos evangélicos.
Na prática, a tendência de exaltar invenções humanas acima da
Palavra de Deus continua prevalecendo de maneira temerária. Que
possamos vigiar e estar precavidos contra essa tendência!
Lembremo-nos de que nenhuma tradição ou instituição religiosa de
feitura humana jamais poderá desculpar-nos pela negligência de
determinados deveres, nem justificar a desobediência a qualquer
mandamento explícito da Palavra de Deus.
Alicerçados nesses versículos, podemos aprender, em último
lugar, que a adoração religiosa que Deus deseja é a adoração no
íntimo, que parte do coração. Podemos perceber isso pela citação
que nosso Senhor faz do livro de Isaías: “Este povo honra-me com
os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29.13).
O coração é a questão central no relacionamento entre marido
e mulher, entre amigo e amigo, entre pai e filho. O coração deve ser
o ponto principal em todas as relações entre Deus e a alma. Qual é
a primeira coisa de que precisamos para ser crentes? Um novo
coração. Qual sacrifício Deus nos pede para nos trazer a ele? Um
coração quebrantado e contrito. O que é a verdadeira circuncisão?
A circuncisão do coração. O que é a obediência genuína? A
obediência de coração. O que é a fé salvadora? Crer de todo o
coração. Onde Cristo deveria habitar? Em nossos corações, pela fé.
Qual é a principal petição que a Sabedoria faz a cada pessoa? “Dá-
me, filho meu, o teu coração” (Pv 23.26).
Ao concluirmos o estudo dessa passagem, façamos uma
autoaveriguação honesta do estado de nosso próprio coração.
Deixemos perfeitamente estabelecido, em nossa mente, que toda e
qualquer adoração formal a Deus, seja em público, seja em
particular, será totalmente inútil se o coração estiver longe de Deus.
Os joelhos dobrados, a cabeça abaixada, os améns em voz alta, o
capítulo lido diariamente, a frequência regular à Ceia do Senhor —
tudo isso é em vão e sem proveito se nossos afetos estiverem
presos ao pecado, aos prazeres, ao dinheiro ou ao mundo. A
pergunta de nosso Senhor Jesus Cristo demanda uma resposta
satisfatória, antes que possamos ser salvos. Ele indaga a cada um
de nós: “Tu me amas?” (Jo 21.17).
Os falsos mestres; o coração é a fonte do pecado
Leia Mateus 15.10-20

E xistem duas declarações notáveis do Senhor Jesus nessa


passagem. Uma diz respeito às falsas doutrinas; a outra refere-
se ao coração humano. Ambas merecem nossa mais plena atenção.
No que concerne às falsas doutrinas, nosso Senhor declarou
que é nosso dever nos opormos a elas, que a sua destruição final
está assegurada e que seus mestres deveriam ser abandonados.
Ele diz: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será
arrancada. Deixai-os”.
Examinando essa passagem, torna-se evidente que os
discípulos ficaram surpresos com a linguagem forte usada por nosso
Senhor contra os fariseus e suas tradições. Provavelmente os
discípulos estavam acostumados, desde a meninice, a pensar nos
fariseus como os mais sábios e mais excelentes dos homens.
Portanto, ficaram atônitos ao ouvir o Mestre denunciá-los como
hipócritas e transgressores dos mandamentos de Deus. “Sabes que
os fariseus se escandalizaram?”, perguntaram os discípulos a
Jesus. Em resposta a essa indagação, temos uma declaração
explanatória de nosso Senhor; uma declaração que talvez nunca
tenha recebido a atenção que merece.
O sentido claro das palavras de Jesus foi que as falsas
doutrinas, como as que eram ensinadas pelos fariseus, são como
uma planta pela qual não se deve demonstrar nenhuma
misericórdia. Elas são uma planta que o “Pai celestial não plantou”,
e que deve ser arrancada, não importa a ofensa que isso venha a
causar. Não seria caridade poupá-la, pois é prejudicial à alma
humana. O fato de ter sido plantada por homens importantes ou
instruídos de nada importava. Se tais ensinamentos contradizem a
Palavra de Deus, deveriam sofrer oposição, ser refutados e
rejeitados. Os discípulos de Cristo, portanto, precisam entender que
é justo resistir a todo e qualquer ensinamento que não provenha das
Escrituras, isolando e abandonando os instrutores que persistem no
erro. Cedo ou tarde, haveriam de descobrir que toda doutrina falsa
será totalmente desarraigada e lançada ao opróbrio; e não ficará de
pé senão aquilo que tiver sido fundamentado na Palavra de Deus.
Nessa afirmação de nosso Senhor, existem lições de profunda
sabedoria, que servem para projetar luz sobre o dever dos que se
professam cristãos. Examinemos de perto essas lições, para ver o
que temos a aprender. Foi a obediência prática a essa declaração
que produziu a bendita Reforma Protestante. Suas lições merecem
cuidadosa atenção.
Não enxergamos aqui o dever de resistir corajosamente a todo
ensinamento falso? Sem dúvida, sim. Nenhum receio de
escandalizar, nenhum temor de censura eclesiástica deveria fazer-
nos manter a paz enquanto a verdade de Deus estiver sendo
ameaçada. Se somos verdadeiros seguidores de nosso Senhor,
deveríamos ser corajosos na denúncia, como testemunhas
inflexíveis contra o erro. Alguém disse que “a verdade não deve ser
suprimida por serem os homens ímpios e cegos”.
Vemos, novamente, o dever de abandonar os falsos mestres,
se não desistem de suas doutrinas distorcidas? Sem sombra de
dúvida! Nenhuma falsa cortesia ou humildade hipócrita deveria
impedir-nos de nos retirarmos para longe dos ensinamentos de
qualquer pregador que contradiga a Palavra de Deus. Corremos
perigo quando nos submetemos a ensinamentos não bíblicos.
Nosso sangue será sobre nossas próprias cabeças. Nas palavras de
Whitby: “Nunca será certo seguir um cego e cair com ele no
barranco”.
Em último lugar, não vemos o dever de exercer paciência
quando da multiplicação dos ensinamentos falsos? Podemos
consolar-nos diante do fato de que esses ensinos falsos não
durarão muito. O próprio Deus defenderá a causa da verdade. Mais
cedo ou mais tarde, toda e qualquer heresia será arrancada pela
raiz. Não devemos lutar com armas carnais; pelo contrário, devemos
esperar e pregar, protestar e orar. Mais cedo ou mais tarde, como
disse Wycliffe, “a verdade haverá de prevalecer”.
No que diz respeito ao coração do homem, nosso Senhor
declara, nesses versos, que o coração é a verdadeira fonte de todo
pecado e contaminação. Os fariseus ensinavam que a santidade
dependia de comidas e bebidas, da lavagem do corpo e de
purificações. Eles afirmavam que todos que obedeciam a essas
tradições eram puros e limpos aos olhos de Deus, e que todos que
as negligenciavam eram impuros e pecaminosos. Nosso Senhor
derrubou por terra essa miserável doutrina ao mostrar que a
verdadeira fonte de toda contaminação não estava fora, mas, sim,
dentro do homem. “Do coração, procedem maus desígnios,
homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos,
blasfêmias. São essas as cousas que contaminam o homem”. Quem
quer servir a Deus corretamente precisa de algo muito mais
importante do que a simples lavagem do corpo. É preciso buscar um
coração puro.
Que pavoroso quadro da natureza humana encontramos aqui,
exposto por aquele que realmente sabe o que existe no homem!
Que horrível catálogo daquilo que se oculta em nosso interior! Que
lamentável lista de sementes do mal nosso Senhor desmascarou,
sementes profundamente arraigadas em cada um de nós e sempre
prontas a se manifestar vivas, a todo instante! O que os orgulhosos
e os justos a seus próprios olhos podem dizer quando leem uma
passagem como essa? Esse não é o retrato do coração de um
ladrão ou assassino. É uma descrição fiel e verdadeira do coração
de toda a humanidade. Que Deus nos permita refletir bem sobre
essa lição e aprender a sabedoria!
Que, para nós, seja uma resolução bem firmada que o estado
de nosso coração será o ponto principal em toda a nossa religião.
Que jamais nos contentemos em apenas frequentar uma igreja e
cumprir com as formalidades externas! Que procuremos por algo
muito mais profundo, com o desejo de possuir um coração “reto
diante de Deus” (At 8.21)! Um coração reto é aquele que foi
aspergido com o sangue de Cristo, renovado pelo Espírito Santo e
purificado por meio da fé. Que não descansemos enquanto não
encontrarmos dentro de nós o testemunho do Espírito, de que Deus
tem criado em nós um coração limpo e de que todas as coisas se
fizeram novas (Sl 51.10; 2Co 5.17)!
Finalmente, que tomemos a inflexível resolução de guardar o
coração com toda a diligência, por todos os dias de nossa vida (Pv
4.23)! Mesmo depois de ter sido renovado, nosso coração é fraco.
Ele é enganoso, mesmo depois de nos revestirmos do novo homem.
Nunca nos esqueçamos de que o perigo principal vem de dentro. O
mundo e o diabo, juntos, não nos podem causar tanto dano quanto
nosso próprio coração, se não vigiarmos e orarmos. Bem-
aventurado é quem se lembra diariamente das palavras de
Salomão: “O que confia no seu próprio coração é insensato” (Pv
28.26).
A mãe cananeia
Leia Mateus 15.21-28

O utro milagre de nosso Senhor está registrado nesses


versículos. As circunstâncias que o cercam são peculiarmente
interessantes, e vamos examiná-las em ordem. Cada palavra, nessa
narrativa, reveste-se de ricas instruções.
Inicialmente, vemos que a verdadeira fé pode às vezes ser
encontrada onde menos se espera. Uma mulher cananeia clama a
nosso Senhor, pedindo ajuda em favor de sua filha: “Senhor, Filho
de Davi, tem compaixão de mim!”. Se essa mulher vivesse em
Betânia ou Jerusalém, uma petição assim já teria demonstrado
grande fé. Mas, quando descobrimos que ela vinha dos “lados de
Tiro e Sidom”, uma oração assim bem pode encher-nos de surpresa.
Isso nos deveria ensinar que é a graça de Deus, e não o local, que
faz uma pessoa tornar-se crente. Podemos viver na família de um
profeta, como sucedeu com Geazi, servo de Eliseu, e ainda
continuar incrédulos e enamorados do mundo. Podemos residir em
meio à superstição e à obscura idolatria, como a menina escrava na
casa de Naamã, e ainda ser testemunhas fiéis de Deus e de seu
Cristo. Não nos desesperemos em relação à alma de alguém
somente porque se encontra em uma situação desfavorável. É
possível viver na costa de Tiro e Sidom e, ainda assim, ter um lugar
no reino de Deus.
Em segundo lugar, vemos que a aflição às vezes demonstra
ser uma bênção para a alma de uma pessoa. Sem dúvida, aquela
mãe cananeia fora severamente provada. Ela via sua filha querida
ser afligida por um demônio, sem poder ajudá-la. Mas essa
tribulação serviu para conduzi-la a Jesus Cristo e ensiná-la a orar.
Não fosse por essa aflição, ela poderia ter vivido e morrido em
ignorância despreocupada, sem jamais ter visto Jesus. Certamente,
foi bom para ela ter sido afligida (Sl 119.71).
Sublinhemos cuidadosamente essa verdade. Nada existe que
demonstre tanto nossa ignorância quanto nossa impaciência na
tribulação. Esquecemo-nos de que cada cruz no caminho é uma
mensagem de Deus, designada para que, no fim, sejamos
beneficiados. As provações destinam-se a nos fazer meditar, a nos
desligar deste mundo, a nos conduzir à Bíblia, a nos colocar de
joelhos diante de Deus. A saúde é algo bom, mas a enfermidade é
muito melhor quando nos aproxima de Deus. A prosperidade é uma
grande misericórdia divina; mas a adversidade manifesta maior
misericórdia, se nos leva até Cristo. Qualquer coisa é melhor do que
viver despreocupadamente e morrer em pecado. Mil vezes melhor é
sermos afligidos e fugirmos para Cristo, tal como aquela mãe
cananeia, do que vivermos tranquilamente e, por fim, morrermos
sem Cristo e sem esperança, como o “louco” homem rico (Lc 12.20).
Em terceiro lugar, notamos que o povo de Cristo com
frequência mostra-se menos misericordioso e compassivo do que
Cristo. A mulher acerca de quem estamos lendo não foi bem
recebida pelos discípulos. Talvez eles considerassem que uma
habitante da costa de Tiro e Sidom fosse indigna de receber ajuda
da parte do Mestre. Seja como for, o que disseram foi: “Despede-a”.
Existe demais dessa atitude entre os que se professam
crentes. Muitos tendem a desencorajar os que estão buscando
Cristo, em vez de ajudá-los a prosseguir. Estão dispostos a duvidar
da realidade da graça na vida de um principiante, por ser essa graça
ainda pequena, e prontos a tratá-lo como Saulo de Tarso foi tratado,
quando chegou a Jerusalém pela primeira vez, após a sua
conversão, “não acreditando que ele fosse discípulo” (At 9.26).
Cuidemos para nunca dar lugar a essa atitude. Procuremos ter mais
daquele mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus (Fp
2.5). Assim como ele, que nós sejamos gentis, bondosos e
encorajadores no modo de agir com aqueles que estão buscando a
salvação! Mas, acima de tudo, digamos continuamente aos homens
que eles não deveriam julgar Cristo com base nos cristãos.
Deixemos bem claro que existe muito mais no gracioso Mestre do
que nos melhores de seus servos. Pedro, Tiago e João podem dizer
a alguma alma aflita: “Despede-a”, mas tal palavra jamais saiu dos
lábios de Cristo. Ele pode, às vezes, deixar-nos esperando por um
longo tempo, conforme fez com aquela mulher. Porém, jamais nos
despedirá vazios.
Por último, vemos quanto encorajamento existe para
perseverarmos em oração, por nós mesmos e por outras pessoas. É
difícil concebermos uma ilustração mais apropriada dessa verdade
do que esta que se nos apresenta nessa passagem. A princípio, a
oração dessa mãe aflita parecia inteiramente despercebida. Jesus
“não lhe respondeu palavra”, mas ela continuou rogando. A
declaração que finalmente saiu dos lábios de Jesus tinha um tom
desencorajador: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da
casa de Israel”. Mesmo assim, ela insistiu na oração: “Senhor,
socorre-me!”. A segunda declaração foi ainda menos encorajadora
do que a primeira: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos
cachorrinhos”. E, embora tenha visto adiada sua esperança (Pv
13.12), ela não permitiu adoecer seu coração. Nem mesmo depois
disso a mulher silenciou. Ainda assim, ela faz um apelo para que
algumas migalhas de misericórdia lhe sejam concedidas. Sua
importunação finalmente obtém uma recompensa graciosa: “Ó
mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres”. A
promessa nunca falhou: “Buscai, e achareis” (Mt 7.7).
Lembremo-nos dessa narrativa quando estivermos orando por
nós mesmos. Algumas vezes somos tentados a pensar que não
obtemos qualquer proveito de nossas orações, e que seria melhor
desistir totalmente. Resistamos à tentação; ela vem do diabo. Que
confiemos e continuemos orando! Contra nossos pecados
repetitivos, contra o espírito mundano e contra as ciladas do diabo,
devemos continuar orando, sem desanimar. Prossigamos em
oração, pedindo forças para cumprir nossos deveres, graça para
enfrentar as provações e consolo em cada situação difícil.
Estejamos bem certos de que nenhum outro tempo é mais bem
empregado diariamente do que aquele que passamos em oração.
Jesus nos ouve e, no tempo determinado por ele, haverá de nos dar
a resposta.
Recordemos esse relato quando estivermos intercedendo por
outras pessoas. Temos filhos que desejamos ver convertidos?
Temos parentes e amigos que desejamos ver salvos? Sigamos,
então, o exemplo dessa mulher cananeia e apresentemos essas
pessoas diante dele noite e dia, e não descansemos enquanto não
obtivermos uma resposta. Pode ser que tenhamos de esperar por
longos anos. Pode parecer que estamos orando em vão e
intercedendo sem qualquer proveito. Todavia, jamais devemos
desistir. Confiemos que Jesus não muda. Ele, que atendeu àquela
mãe cananeia e lhe concedeu o que pedia, também nos ouvirá e,
um dia, nos dará uma resposta satisfatória e de paz.
Curas miraculosas feitas por Cristo
Leia Mateus 15.29-39

O início dessa passagem contém três pontos que merecem nossa


atenção especial. No momento, portanto, concentraremos a atenção
nesses pontos.
Em primeiro lugar, observemos como as pessoas fazem
maiores esforços para curar doenças físicas do que para obter a
cura de suas almas. Lemos que as multidões vinham a Jesus
“trazendo consigo coxos, aleijados, cegos, mudos...”. Muitos, sem
dúvida, tinham viajado muitos quilômetros e sofrido grande fadiga.
Poucas coisas são tão difíceis e trabalhosas quanto movimentar
pessoas enfermas. Porém, a esperança da cura estava em vista e,
para um homem doente, essa esperança é tudo.
Se nos admiramos com a conduta daquela gente, conhecemos
bem pouco da natureza humana. Não há razão alguma para
admiração. Aquelas pessoas sentiam que a saúde é a maior de
todas as bênçãos terrenas. Elas sentiam uma dor que, para elas,
era a mais difícil de todas as provações a suportar. Contra os
sentimentos, não há argumento. Uma pessoa sente suas forças se
esvaírem. Ela vê seu corpo ir emagrecendo e seu rosto empalidecer.
Percebe que seu apetite está se acabando. Resumindo, ela sabe
que está doente e que precisa de um médico. Mostre-lhe um médico
que possa consultar e que tenha a fama de jamais ter falhado, e tal
pessoa irá a ele sem demora.
Entretanto, não nos esqueçamos de que nossas almas estão
muito mais enfermas do que nossos corpos, e aprendamos uma
lição com base na conduta dessas pessoas. Nossas almas são
afligidas por uma enfermidade com raízes muito mais fundas, muito
mais complicadas, muito mais difíceis do que qualquer mal herdado
pela carne. Na verdade, nossas almas foram atacadas pela praga
do pecado. É preciso obter a cura, e uma cura eficaz e definitiva; do
contrário, pereceremos para sempre. Reconhecemos a veracidade
desse fato? Sentimos essa realidade? Estamos conscientes de
nossa enfermidade espiritual? Infelizmente, só há uma resposta
possível a essas perguntas! A maior parte da humanidade não sente
isso, de maneira nenhuma. Seus olhos estão cegos. Mostram-se
totalmente insensíveis diante do grave perigo. Para obter a saúde
física, os homens lotam a sala de espera dos médicos. Em prol da
saúde, eles empreendem longas viagens para encontrar ar mais
puro. Mas, quanto à saúde da alma, eles nem se preocupam com
isso. Verdadeiramente feliz é o homem ou a mulher que já descobriu
a enfermidade de sua alma! Essa pessoa não descansará enquanto
não tiver encontrado o Senhor Jesus. As dificuldades lhe parecerão
insignificantes, pois a vida, a própria vida eterna, está em jogo.
Considerará todas as coisas uma perda, contanto que possa ganhar
Cristo e ser curada.
Em segundo lugar, notemos a maravilhosa facilidade e o poder
com que nosso Senhor curava todos os que lhe eram trazidos.
Lemos que “o povo se maravilhou ao ver que os mudos falavam, os
aleijados recobravam a saúde, os coxos andavam e os cegos viam.
Então, glorificavam o Deus de Israel”.
Observe, nessas palavras, um símbolo vivo do poder de nosso
Senhor Jesus Cristo para curar as almas enfermas pelo pecado!
Não existe mal do coração que Cristo não possa curar. Não existe
problema espiritual que ele não possa vencer. A febre da
concupiscência, a paralisia do amor a este mundo, o vagaroso
câncer da indolência, a preguiça e a incredulidade, que é a doença
do coração — todas abrem caminho quando ele envia seu Santo
Espírito sobre uma pessoa, qualquer pessoa. Ele pode pôr nos
lábios do pecador um novo cântico e levá-lo a falar com amor
daquele mesmo evangelho que antes ele ridicularizava e contra o
qual blasfemava. Ele pode abrir os olhos do entendimento de um
homem, para ver o reino de Deus. Cristo pode abrir os ouvidos de
um homem para torná-lo desejoso de ouvir a voz de Cristo e segui-
lo aonde quer que ele vá. Ele pode outorgar poder espiritual ao
homem, que antes prosseguia pelo caminho largo que conduz à
perdição, para andar no caminho da vida. Ele pode fazer com que
as mãos que antes foram instrumentos do pecado agora sirvam a
ele e façam a sua vontade. O tempo dos milagres ainda continua.
Cada conversão é um milagre. Já testemunhamos um caso real de
conversão? Tenhamos a certeza de que, nessa conversão, vimos a
mão de Cristo operando. Devemos entender que tal milagre não é
menor do que se tivéssemos visto nosso Senhor fazendo os mudos
falarem ou os paralíticos andarem, quando andava na terra.
Gostaríamos de saber o que fazer, se desejássemos ser
salvos? Sentimo-nos adoentados na alma e queremos ser curados?
Só temos de ir até Cristo pela fé, rogando o alívio de que
precisamos. Ele não muda. Vinte séculos não fazem diferença para
ele. Nas alturas, à direita de Deus Pai, ele continua a ser o grande
Médico. Ele ainda “recebe pecadores” (Lc 15.2). Ele continua sendo
poderoso para curar!
Em terceiro lugar, observemos a transbordante compaixão de
nosso Senhor Jesus Cristo. Lemos que, “chamando Jesus os seus
discípulos, disse: Tenho compaixão desta gente”. Um grande
ajuntamento de homens e mulheres é sempre uma visão solene. O
fato de que cada um é um pecador que está morrendo, e de que
cada um tem uma alma que precisa ser salva, deveria mover nosso
coração. Parece que ninguém jamais se sensibilizou tanto diante de
uma multidão reunida quanto o Senhor Jesus Cristo.
É um fato curioso e impressionante que, de todos os
sentimentos experimentados por nosso Senhor quando ele estava
sobre a terra, nenhum outro seja tão frequentemente mencionado
quanto sua compaixão. Sua alegria, tristeza, gratidão, ira, admiração
e zelo — todos esses sentimentos ficaram ocasionalmente
registrados. Entretanto, nenhum deles é tão reiteradamente
mencionado quanto sua “compaixão”. Parece que o Espírito Santo
desejava destacar para nós a característica mais distintiva no
caráter e o sentimento predominante na mente de Jesus, enquanto
ele esteve entre os homens. Nove vezes, sem contar outras
expressões nas parábolas — sim, nove vezes o Espírito Santo fez
com que a palavra “compaixão” fosse escrita nos evangelhos.
Destaca-se algo de muito tocante e instrutivo nessa
circunstância. Nada ficou registrado por acaso na Palavra de Deus.
Há uma razão especial para o uso de cada expressão em particular.
A palavra “compaixão”, sem dúvida, foi especialmente selecionada
em nosso proveito. Ela deveria encorajar todos que hesitam em dar
os primeiros passos nos caminhos de Deus. O Salvador é cheio de
“compaixão” e os receberá graciosamente. Ele perdoará
gratuitamente. Nunca mais se lembrará das iniquidades passadas.
Ele suprirá abundantemente todas as necessidades. Não há motivo
para temer; a misericórdia de Cristo é como um poço profundíssimo,
do qual ninguém jamais encontrou o fundo.
Isso deveria ser um consolo para os santos e os servos do
Senhor quando se sentem cansados. Que eles se recordem de que
Jesus é cheio de “compaixão”! Ele sabe como é este mundo em que
vivemos. Ele conhece o corpo humano, com todas as suas
fragilidades. Ele conhece os artifícios do inimigo, Satanás. O Senhor
se compadece de seu povo. Portanto, que nunca se sintam
desanimados! Podem sentir que a debilidade, o fracasso e a
imperfeição estão estampados em tudo que fazem; não obstante,
nunca deveriam esquecer-se da palavra que diz: “as suas
misericórdias não têm fim” (Lm 3.22).
A inimizade dos escribas e fariseus, e a
advertência contra eles
Leia Mateus 16.1-12

N esses versículos, encontramos nosso Senhor assediado pela


incansável inimizade dos fariseus e saduceus. Via de regra,
essas duas seitas tinham inimizade entre si. Mas, quando
resolveram perseguir Cristo, aliaram-se uma à outra. Essa foi, com
certeza, uma aliança iníqua! No entanto, quão frequentemente
vemos a mesma coisa acontecendo em nossos dias! Pessoas de
hábitos e opiniões diametralmente opostas concordam em detestar
o evangelho e trabalham juntas para se opor ao seu progresso.
“Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1.9).
Nessa passagem bíblica, o primeiro assunto que merece
atenção especial é a repetição que nosso Senhor faz de palavras
por ele empregadas em uma ocasião anterior. Ele disse: “Uma
geração má e adúltera pede um sinal; e nenhum sinal lhe será dado,
senão o de Jonas”. Se voltarmos para Mateus 12.39, veremos que
Jesus já havia dito isso.
Essa repetição pode parecer, para alguns, algo superficial e
sem importância. Na verdade, não é assim. A repetição ilumina um
assunto importante que tem deixado perplexos muitos sinceros
estudiosos da Bíblia, razão pela qual deve ser atentamente
observada.
Essa reiteração nos mostra que nosso Senhor tinha o hábito de
dizer a mesma coisa mais de uma vez. Ele não se satisfazia em
dizer algo uma vez e nunca mais repetir. Está evidente que seu
costume era mencionar certas verdades repetidamente, a fim de
inculcá-las mais fundo na mente dos discípulos. Jesus sabia quão
débil é nossa memória para as coisas espirituais; ele sabia que
aquilo que ouvimos duas vezes, lembramos melhor do que aquilo
que ouvimos somente uma vez. Ele trazia de seu depósito coisas
novas e coisas velhas (Mt 13.52).
Ora, o que tudo isso nos ensina? Ensina-nos que não
precisamos esforçar-nos tanto para harmonizar entre si as
narrativas que lemos nos quatro evangelhos, conforme muitos se
dispõem a fazer. As declarações de nosso Senhor que aparecem
repetidas em Mateus e Lucas não tinham, necessariamente, sido
proferidas numa mesma ocasião e os eventos a que essas
declarações estão vinculadas não tinham de ser necessariamente
os mesmos. Mateus pode estar descrevendo um evento, enquanto
Lucas pode estar descrevendo outro. Mesmo assim, as palavras de
nosso Senhor em ambas as ocasiões podem ter sido precisamente
as mesmas. A tentativa de fazer coincidir dois eventos em um só,
por causa da semelhança das palavras, com frequência tem levado
os estudiosos da Bíblia a cair em grande dificuldade. É muito mais
seguro defender o ponto de vista aqui exposto, de que em diferentes
ocasiões nosso Senhor muitas vezes empregou as mesmas
palavras.
O segundo ponto que merece atenção é a solene advertência
que nosso Senhor oferece aos seus discípulos. Evidentemente, sua
mente ficou dolorida, por causa das falsas doutrinas que via entre os
judeus e a influência perniciosa que causavam. E aproveita a
oportunidade para exprimir uma palavra de admoestação: “Vede, e
acautelai-vos do fermento dos fariseus e saduceus”. Observemos
bem o conteúdo dessas palavras. A quem foi endereçado esse
aviso? Aos doze apóstolos, os primeiros ministros da Igreja de
Cristo, homens que haviam abandonado tudo por amor ao
evangelho! Até mesmo eles foram advertidos! Os melhores dos
homens não passam de homens e, a qualquer instante, podem cair
em tentação. “Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que não
caia” (1Co 10.12). Se amamos a vida e desejamos ver dias felizes,
jamais imaginemos que não precisamos desta advertência: “Vede, e
acautelai-vos!”.
E contra o que nosso Senhor adverte seus apóstolos? Contra a
“doutrina dos fariseus e saduceus”. Os fariseus, os evangelhos nos
dizem, eram formalistas e justos aos seus próprios olhos. Os
saduceus eram céticos, livres-pensadores ou tinham tendências
pagãs. Até mesmo Pedro, Tiago e João devem precaver-se contra
tais doutrinas! Na realidade, até mesmo o melhor e mais santo de
todos os crentes deve ficar em guarda contra as falsas doutrinas!
Qual é o simbolismo usado por nosso Senhor para descrever
as falsas doutrinas, acerca das quais adverte seus discípulos? Ele
emprega a figura do “fermento”. Tal como o fermento, essas
doutrinas podem parecer coisa pequena, em comparação com a
totalidade das verdades reveladas na Bíblia. Mas, tal como o
fermento, uma vez admitidas, elas ficariam operando em segredo e
em silêncio, e modificariam gradualmente todo o caráter da religião
com a qual se misturassem. Quanta significação frequentemente
está contida em uma única palavra! Não era apenas contra a
heresia patente, mas contra o “fermento” da heresia que os
apóstolos deviam acautelar-se.
Existe muito em tudo isso que clama em alta voz pela atenção
cuidadosa de todo crente professo. A advertência de nosso Senhor,
nessa passagem, tem sido vergonhosamente negligenciada. Teria
sido bom para a Igreja de Cristo se as advertências do evangelho
tivessem sido tão estudadas quanto suas promessas.
Lembremo-nos de que essa afirmação de nosso Senhor, sobre
o “fermento dos fariseus e saduceus”, visava a todos os séculos. Ela
não se destinava somente à geração que a ouviu pela primeira vez.
Foi designada em perpétuo benefício da Igreja de Cristo. Aquele
que a proferiu contemplava com visão profética a história futura do
cristianismo. O grande Médico sabia bem que as doutrinas dos
fariseus e saduceus seriam duas grandes enfermidades
debilitadoras da Igreja, até o fim do mundo. Ele queria que
soubéssemos que sempre haverá fariseus e saduceus nas fileiras
do cristianismo. Nunca deixarão de ter sucessores, e sua
descendência jamais se extinguirá. Eles podem tomar outros
nomes, mas a atitude deles permanecerá. Por isso Cristo nos diz:
“Vede, e acautelai-vos”.
Finalmente, que façamos uso pessoal dessa advertência,
mantendo um santo ciúme de nossas próprias almas! Lembremo-
nos de que vivemos em um mundo no qual o farisaísmo e o
saduceísmo estão continuamente esforçando-se por obter a
primazia na Igreja de Cristo. Alguns desejam acrescentar algo,
enquanto outros querem subtrair alguma coisa do evangelho.
Alguns desejam sepultá-lo, enquanto outros tentam reduzi-lo a
nada. Alguns gostariam de sufocar o evangelho através de muitas
adições, enquanto outros querem sangrá-lo até a morte, ao lhe
subtrair suas verdades. Esses grupos concordam apenas quanto a
uma questão: ambos desejam matar e destruir a vida do
cristianismo, o que, fatalmente, aconteceria se conseguissem
prevalecer. Contra tais erros, devemos vigiar, orar e ficar em guarda
permanente. Nada devemos acrescentar ou retirar do evangelho,
querendo agradar a falsos mestres modernos. Que nosso lema seja
“a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade” — nada
acrescentando e nada subtraindo à verdade!
A nobre confissão de Pedro
Leia Mateus 16.13-20

N essa passagem da Bíblia, há palavras que têm produzido


dolorosas diferenças e divisões entre os cristãos. Homens têm
lutado e contendido em torno de sua significação, a ponto de perder
de vista todo o amor cristão, não sem conseguir convencer uns aos
outros. Faremos um rápido exame dessas palavras controvertidas,
passando, então, para mais lições práticas.
O que devemos entender quando lemos essa admirável
afirmativa de Jesus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a
minha Igreja”? Será que Pedro em pessoa seria o fundamento da
Igreja que Cristo estava por edificar? Tal interpretação, para
dizermos o mínimo, parece extremamente improvável. Dizer que um
falível e inseguro filho de Adão se tornaria o alicerce do templo
espiritual não confere com a linguagem geral das Sagradas
Escrituras. Acima de tudo, não existe razão para o Senhor não ter
dito “sobre ti edificarei a minha igreja”, se isso fosse o que ele queria
dizer, em vez de ter dito: “sobre esta pedra...”.
Nessa passagem, o verdadeiro sentido da palavra “pedra”
parece ser a verdade do messiado e da divindade de nosso Senhor
que Pedro acabara de reconhecer. É como se Jesus houvesse dito:
“Com toda a razão, foste alcunhado de Pedro, ou pedra, porquanto
confessaste aquela verdade poderosa, sobre a qual, como sobre
uma rocha, edificarei a minha Igreja”.
Porém, o que devemos compreender quando lemos a
promessa que nosso Senhor faz a Pedro: “Dar-te-ei as chaves do
reino dos céus”? Teriam conferido a Pedro o direito de admitir as
almas no céu? Tal ideia é ilógica, porque esse ofício é prerrogativa
especial do próprio Jesus Cristo (Ap 1.18). Será, então, que Pedro
deveria ter primazia ou superioridade sobre os demais apóstolos?
Não há a menor prova de que tal significado tivesse sido atribuído a
essas palavras de Jesus, na época neotestamentária; nem há prova
de que Pedro tivesse qualquer autoridade ou dignidade superior aos
demais apóstolos.
Parece-nos que o verdadeiro sentido dessa promessa feita por
Cristo é que Pedro teria o privilégio especial de abrir, pela primeira
vez, a porta da salvação tanto aos judeus como aos gentios. E isso
cumpriu-se à risca quando ele anunciou o evangelho aos judeus, no
dia de Pentecostes, e quando visitou o gentio Cornélio em sua casa.
Em cada ocasião, Pedro utilizou as “chaves” e abriu
completamente a porta da fé. E, ao que tudo indica, Pedro tinha
plena consciência disso, pois afirmou: “Deus me escolheu dentre
vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do
evangelho e cressem” (At 15.7).
Finalmente, o que devemos entender quando lemos: “O que
ligares na terra terá sido ligado no céu; e o que desligares na terra
terá sido desligado nos céus”? O apóstolo teria recebido algum
poder de perdoar pecados e absolver os pecadores? Tal noção tão
somente deprecia o ofício especial de Jesus Cristo como nosso
grande Sumo Sacerdote. Jamais encontramos Pedro, ou qualquer
outro apóstolo, exercendo o poder de perdoar pecados. Eles sempre
encaminhavam as pessoas a Cristo, para o perdão.
O verdadeiro significado dessa promessa parece ser que Pedro
e os demais apóstolos seriam especialmente comissionados para
ensinar o caminho da salvação, com autoridade. Assim como os
sacerdotes do Antigo Testamento declaravam, com autoridade,
quem havia sido curado da lepra, também os apóstolos foram
nomeados para declarar e pronunciar com autoridade quem havia
sido perdoado de seus pecados. Além disso, eles seriam
especialmente inspirados para estabelecer regras e regulamentos
para a orientação da Igreja. Algumas coisas deviam ser “ligadas”, ou
proibidas, enquanto outras deviam ser “desligadas”, ou permitidas. A
decisão do concílio de Jerusalém, de que os gentios não
precisavam ser circuncidados, foi um bom exemplo do exercício
desse poder (At 15.19). Mas essa foi uma comissão especialmente
restrita aos apóstolos. Eles não tiveram sucessores, pois essa tarefa
começou e terminou com eles.
A respeito dessas palavras controvertidas, já dissemos o
suficiente para nossa edificação pessoal. Agora, vamos deixá-las
para trás, apenas lembrando-nos de que, em qualquer sentido em
que essas palavras sejam compreendidas, elas nada têm a ver com
a igreja de Roma. A partir de agora, voltaremos a atenção àqueles
pontos que dizem respeito mais diretamente às nossas almas.
Em primeiro lugar, vejamos a nobre confissão do apóstolo
Pedro. Em resposta à pergunta de Jesus Cristo “Quem dizeis que
eu sou?”, Pedro afirma: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
À primeira vista, um leitor descuidado nada poderá notar de
relevante nessas palavras do apóstolo. Parece extraordinário que
Pedro tivesse recebido tamanho elogio por sua resposta. Mas esse
pensamento surge da ignorância e da falta de melhor ponderação.
Os homens se esquecem de que é imensamente diferente crer na
missão divina de Cristo quando estamos em meio aos crentes do
que quando nos vemos em meio a judeus empedernidos e
incrédulos. A glória da confissão de Pedro está no fato de que ele a
apresentou quando poucos estavam a favor de Cristo, e muitos
estavam contra ele. Pedro fez sua confissão quando os líderes
religiosos de sua própria nação, os escribas, os sacerdotes e os
fariseus, todos declaravam-se contrários ao Senhor Jesus. Ele fez
sua confissão quando Jesus Cristo estava em “forma de servo” (Fp
2.7), sem riquezas materiais, sem a dignidade real e sem nenhuma
comprovação visível de sua realeza. Fazer uma confissão assim,
àquela altura dos acontecimentos, requeria fé intensa e firmeza de
caráter. A própria confissão, no dizer de Brentius, foi “um resumo de
todo o cristianismo, e um compêndio da verdadeira doutrina
religiosa”. Por isso nosso Senhor disse: “Bem-aventurado és, Simão
Barjonas...”.
Faríamos bem em imitar o zelo e a afeição sinceros que Pedro
exibiu, de todo o coração, nesse incidente. Talvez nos inclinemos
demais a menosprezar esse santo homem de Deus, por causa de
sua eventual instabilidade e a tríplice negação ao Senhor Jesus.
Mas esse é um grande erro. Apesar de todas as suas faltas, Pedro
era um servo fervoroso, resoluto e sincero de Cristo. Apesar de
todas as suas imperfeições, Pedro nos ofereceu um padrão que
muitos crentes fariam bem em imitar. Um zelo como o de Pedro
talvez passe por momentos de hesitação, faltando-lhe o impulso de
uma decisão mais firme. Um zelo como o de Pedro pode ser mal
orientado, e, algumas vezes, incorrer em equívoco. Todavia, um zelo
como o demonstrado por Pedro nunca deveria ser desprezado. Um
zelo assim desperta os sonolentos, anima os vagarosos e leva
outras pessoas à ação. Qualquer coisa é melhor do que a
indolência, a mornidão e o torpor na Igreja de Cristo. Quão mais feliz
seria o mundo cristão se contássemos com mais crentes parecidos
com Pedro e Martinho Lutero, e menos com Erasmo de Roterdã!
Em seguida, tenhamos certeza de haver compreendido o que
nosso Senhor quer dizer quando fala sobre sua Igreja. A Igreja que
Jesus prometeu edificar sobre a rocha é “a bem-aventurada
companhia de todos os fiéis”. Não se trata da igreja organizada e
visível em qualquer nação, estado ou localidade. Pelo contrário, a
Igreja é um corpo formado por crentes de todas as épocas, povos e
línguas. Ela é composta por todos que foram lavados no sangue de
Cristo, que foram revestidos da justiça de Cristo, renovados pelo
Espírito de Cristo, unidos a Cristo pela fé, sendo epístolas vivas de
Cristo. É uma igreja em que todos os membros são batizados no
Espírito Santo, sendo real e verdadeiramente santos. Essa Igreja
forma um corpo. Os que a ela pertencem estão unidos em atitudes e
pensamentos, defendem as mesmas verdades e creem nas
mesmas doutrinas básicas da salvação. A Igreja tem apenas uma
Cabeça, que é o próprio Senhor Jesus Cristo. “Ele é a cabeça do
corpo, da igreja...” (Cl 1.18).
Tenhamos muito cuidado para não errar quanto a esse assunto.
Poucas palavras são tão mal compreendidas quanto o vocábulo
“igreja”. Poucos equívocos têm prejudicado tanto a causa da religião
pura. A ignorância quanto a isso tem servido de solo fértil para
preconceitos, sectarismo e perseguição. Os homens têm brigado e
contendido acerca de denominações, como se, para obter a
salvação, fosse necessário pertencer a algum partido eclesiástico
em particular, e como se pertencer a algum desses partidos fosse
sinônimo de pertencer a Cristo. Durante todo esse tempo, eles têm
perdido de vista a igreja única verdadeira, fora da qual não existe
salvação. A denominação a que pertencemos nada significará no
dia final se não estivermos relacionados como membros da
verdadeira Igreja dos eleitos de Deus.
Em último lugar, salientamos as gloriosas promessas feitas por
nosso Senhor à sua Igreja. Ele diz: “As portas do inferno não
prevalecerão contra ela”. O significado dessa promessa é que o
poder de Satanás jamais destruirá o povo de Cristo. Aquele que
introduziu o pecado e a morte na primeira Criação, ao tentar Eva,
jamais introduzirá ruína na nova Criação, pela derrota dos crentes.
O corpo místico de Cristo jamais perecerá, nem decairá. Embora,
com frequência, seja perseguida, afligida, assediada e humilhada, a
Igreja jamais desaparecerá. Ela há de sobreviver à ira de faraós e
imperadores romanos. Uma igreja visível, como a de Éfeso, pode vir
a desaparecer, mas a Igreja verdadeira nunca morre. Tal como a
sarça que Moisés viu, ela pode queimar, mas nunca será
consumida. Cada um de seus membros será levado com segurança
à glória eterna. A despeito de quedas, fracassos e falhas, a despeito
do mundo, da carne e do diabo, nenhum membro da verdadeira
Igreja perecerá (Jo 10.28).
Pedro é repreendido
Leia Mateus 16.21-23

N o começo desses versículos, encontramos nosso Senhor


revelando a seus discípulos uma grande e espantosa verdade.
A verdade de sua morte na cruz, que se aproximava. Pela primeira
vez, ele apresenta o chocante anúncio de que deveria “seguir para
Jerusalém e sofrer muitas coisas [...] ser morto”. Ele não viera a este
mundo a fim de tomar posse de um reino, mas, sim, para morrer. Ele
não tinha vindo para reinar e ser servido, mas, sim, para derramar
seu sangue como sacrifício e dar sua vida como resgate em favor
de muitos.
Para nós, é quase impossível conceber quão estranha e
incompreensível essa revelação deve ter parecido aos discípulos de
Cristo. Como a maioria dos judeus, eles não podiam conceber a
ideia de um Messias sofredor. Não compreendiam que o capítulo 53
de Isaías precisava ser literalmente cumprido. Não percebiam que
todos os sacrifícios da lei mosaica tinham por finalidade apontar
para a morte do verdadeiro Cordeiro de Deus. Em nada mais
pensavam, senão na vinda gloriosa do Messias, a qual ainda terá
lugar, no fim do mundo. Eles pensavam tanto na coroa do Messias
que perderam de vista sua cruz. Fazemos bem em nos lembrar
disso. Uma compreensão correta desse fato derrama grande luz
sobre as lições que essa passagem contém.
Em primeiro lugar, aprendemos que pode haver muita
ignorância espiritual, mesmo em um verdadeiro discípulo de Cristo.
Não poderíamos obter prova mais clara disso do que na conduta do
apóstolo Pedro nessa ocasião. Ele tenta dissuadir nosso Senhor:
“Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá”.
Pedro não era capaz de perceber todo o propósito da primeira vinda
do Senhor Jesus a este mundo. Os olhos dele estavam cegos para
a necessidade da morte de nosso Senhor. Ele fez tudo que estava
ao seu alcance para tentar impedir a morte de Jesus! Não obstante,
sabemos que Pedro era um homem convertido. Ele cria
verdadeiramente que Jesus era o Messias, e seu coração era reto
aos olhos de Deus.Essas coisas têm por intuito nos ensinar que
tanto não devemos considerar bons homens como infalíveis,
somente porque são bons, como também não devemos supor que
lhes falte a graça divina, somente porque essa graça é pequena e
fraca. Um irmão pode possuir dons singulares e ser uma luz
brilhante e resplandecente na Igreja de Cristo. Mas não nos
esqueçamos de que ele é apenas um homem, e, como tal, está
sujeito a cometer grandes erros. Outro irmão, por sua vez, pode ter
um conhecimento limitado. Talvez não consiga ajuizar corretamente
acerca de muitos pontos doutrinários. Talvez ele erre tanto em atos
como em palavras. Ele tem fé em Cristo e o ama? Reconhece Cristo
como sua Cabeça? Se a resposta é positiva, devemos tratá-lo com
paciência. Aquilo que ele não percebe agora poderá enxergar mais
tarde. Como Pedro, talvez agora ele esteja obscurecido, mas, à
semelhança de Pedro, algum dia pode desfrutar da plena luz do
evangelho.
Em segundo lugar, aprendamos que não existe outra doutrina
das Escrituras tão profundamente importante quanto a doutrina da
morte expiatória de Cristo. A prova mais clara disso é a linguagem
empregada por nosso Senhor ao repreender Pedro. Jesus o chama
pelo horrível nome de “Satanás”, como se aquele apóstolo fosse um
adversário, ocupado na causa do diabo e procurando impedir sua
morte. Àquele que há pouco chamara “bem-aventurado”, Jesus diz:
“Arreda! Satanás; tu és para mim pedra de tropeço”. Ao homem cuja
nobre confissão de fé Jesus tinha recentemente elogiado, ele diz:
“Não cogitas das cousas de Deus, e, sim, das dos homens”.
Palavras mais fortes do que essas nunca saíram dos lábios de
nosso Senhor. O erro que provocou uma repreensão tão enérgica
de nosso amoroso Salvador, a um discípulo tão autêntico, deve ter
sido realmente um tremendo erro.
O fato é que nosso Senhor deseja que consideremos a
crucificação a verdade central do cristianismo. Uma visão correta de
sua morte vicária, e dos benefícios daí resultantes, é fundamental
para a religião bíblica. Que nunca nos esqueçamos disso! Em
questões de governo da igreja e formas de culto, alguns podem
divergir de nós, e, mesmo assim, chegar ao céu em segurança.
Quanto à questão da morte expiatória de Cristo como o caminho da
paz com Deus, a verdade é uma só. Se nos enganamos nesse
particular, estamos arruinados para sempre. O erro acerca de
muitos pontos de doutrina é apenas uma doença superficial. Mas o
erro acerca da morte de Cristo é uma doença fatal. Portanto,
firmemo-nos nesse ponto. Que coisa alguma nos desloque dessa
base firme! A soma de todas as nossas esperanças deve ser o fato
de que Cristo morreu por nós (lTs 5.10). Se desistimos dessa
doutrina, não dispomos mais de nenhuma esperança sólida.
A necessidade de abnegação; o valor da alma
Leia Mateus 16.24-28

A fim de percebermos a conexão desses versículos, devemos


lembrar as impressões equivocadas dos discípulos de nosso
Senhor, quanto aos propósitos de sua vinda ao mundo. Tal como
Pedro, eles não suportavam a ideia da crucificação. Pensavam que
Jesus viera ao mundo a fim de estabelecer um reino terrestre. Não
percebiam que lhe era necessário sofrer e morrer. Sonhavam com
honrarias seculares e recompensas temporais no serviço do Mestre.
Não entendiam que os verdadeiros cristãos, a exemplo de Jesus
Cristo, precisam ser experimentados nos sofrimentos. Nosso Senhor
corrige esses mal-entendidos, usando palavras peculiarmente
solenes, que faremos bem em guardar no coração.
Em primeiro lugar, devemos aprender que os homens precisam
estar decididos a enfrentar tribulação e negar a si mesmos, se
desejam seguir a Cristo. Nosso Senhor dissipa os caros sonhos de
seus discípulos, dizendo-lhes que seus seguidores devem “tomar a
cruz”. O glorioso reino pelo qual estavam esperando não haveria de
ser prontamente estabelecido. Seus seguidores precisam aceitar
previamente a perseguição e a aflição, se desejam servir ao Senhor.
Se desejam “salvar a sua vida”, precisam estar dispostos a “perdê-
la”.
É bom que compreendamos com clareza essa questão. Não
devemos ocultar de nós mesmos o fato de que o verdadeiro
cristianismo traz consigo uma cruz diária nesta vida, enquanto
oferece uma coroa de glória na vida futura. A carne precisa ser
diariamente crucificada. Precisamos resistir ao diabo dia após dia. O
mundo precisa ser vencido. Há uma guerra declarada e muitas
batalhas a vencer. Tudo isso é o acompanhamento inseparável da
verdadeira religião. O céu nunca será conquistado sem essas
batalhas. Nunca houve declaração mais veraz do que o antigo
ditado: “Nenhuma cruz, nenhuma coroa!”. Se nunca descobrimos
isso por experiência, nossa alma está em uma pobre condição.Em
segundo lugar, aprendamos nesses versículos que nada existe de
tão precioso quanto uma alma humana. Nosso Senhor nos ensina
essa lição, fazendo uma das mais solenes indagações contidas no
Novo Testamento. É uma pergunta tão conhecida e tão
frequentemente repetida que as pessoas, em geral, perdem de vista
seu caráter perscrutador. Mas é uma pergunta que deveria soar em
nossos ouvidos como uma trombeta, sempre que somos tentados a
negligenciar nossos interesses eternos: “Que aproveitará o homem
se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”
Só pode haver uma resposta a essa pergunta. Nada existe
sobre a terra ou debaixo da terra que possa compensar a perda de
nossa própria alma. Nada existe que o dinheiro seja capaz de
comprar, ou de o homem oferecer que possa ser mencionado em
comparação às nossas almas. O mundo, e tudo que nele está
contido, é apenas temporal. Ele está gradualmente desaparecendo,
perecendo e dissipando-se. A alma é eterna. Essa palavra é a
chave de toda a questão. Guardemo-la nas profundezas de nossos
corações. Estamos titubeantes em nossa religião? Acaso tememos
a cruz? O caminho nos parece muito estreito? Que as palavras de
nosso Senhor ressoem em nossos ouvidos: “Que aproveitará o
homem?”, e não mais duvidemos!
Por último, aprendamos que será na segunda vinda de Cristo
que receberemos a recompensa. “Porque o Filho do homem há de
vir na glória de seu Pai [...] e então retribuirá a cada um conforme as
suas obras”. Nessas palavras de Jesus, há profunda sabedoria
quando vistas em conexão com os versículos precedentes. Jesus
conhece o coração do homem. Ele sabe quão prontamente nos
deixamos desanimar e como, a exemplo do antigo povo de Israel,
ficamos impacientes no caminho (Nm 21.4). Por isso ele nos deixa
uma preciosa promessa. Ele nos lembra de que virá a este mundo
uma segunda vez, tão certo quanto veio pela primeira vez. Ele nos
diz que esse será o tempo em que seus discípulos receberão as
recompensas. Haverá glória, honra e galardões em abundância,
algum dia, para todos que têm servido e amado ao Senhor Jesus.
Mas isso será na dispensação do segundo advento, e não na
dispensação do primeiro. O que é amargo virá antes do que é doce,
e a cruz, antes da coroa. O primeiro advento foi a dispensação da
crucificação. O segundo é a dispensação do reino. Precisamos
submeter-nos a tomar parte com nosso Senhor em sua humilhação,
se queremos um dia compartilhar de sua glória.
Não deixemos para trás esses versículos sem primeiro
fazermos uma autoinquirição séria quanto aos assuntos que
contêm. Temos ouvido sobre a necessidade de tomar a cruz e de
negar a nós mesmos. Já tomamos nossa própria cruz? Estamos
carregando-a diariamente? Temos ouvido sobre o grande valor da
alma humana. Acaso vivemos como quem acredita nisso? Temos
ouvido sobre a segunda vinda de Cristo. Estamos aguardando esse
segundo advento com esperança e júbilo? Feliz é o homem que
pode dar respostas satisfatórias a essas perguntas.
A transfiguração
Leia Mateus 17.1-13

E sses versículos narram um dos mais notáveis acontecimentos


ocorridos durante o ministério terreno de nosso Senhor: aquele
evento comumente chamado “transfiguração”. A ordem em que esse
incidente ficou registrado é bela e instrutiva. A última porção do
capítulo anterior mostra-nos a cruz, que já surge no horizonte. Aqui,
porém, somos graciosamente brindados com a visão de algo sobre
nossa recompensa vindoura. Os corações dos discípulos, que tão
pouco tempo antes haviam sido profundamente entristecidos diante
da clara afirmação feita por Cristo, acerca de seus sofrimentos, logo
em seguida foram alegrados pela visão da glória de Jesus Cristo.
Devemos salientar esse ponto. Perdemos muito quando ignoramos
a conexão existente entre um capítulo e outro da Palavra de Deus.
Sem dúvida alguma, existem mistérios dentro da visão aqui
descrita. Porém, é forçoso que assim aconteça. Afinal, ainda
estamos no corpo físico. Nossos sentidos estão voltados às coisas
materiais e grosseiras deste planeta. Nossas ideias e nossa
percepção sobre corpos glorificados e sobre santos mortos são,
necessariamente, vagas e imprecisas. Por conseguinte,
contentemo-nos em assimilar as lições práticas que a transfiguração
de Jesus tenciona ensinar-nos.
Antes de qualquer outra coisa, nesses versículos encontramos
uma notável demonstração da glória com que Cristo e seu povo
aparecerão quando ele vier pela segunda vez. Não se pode tolerar
qualquer dúvida de que esse foi um dos principais objetivos dessa
admirável visão. O propósito era encorajar os discípulos, conferindo-
lhes um vislumbre das coisas boas que ainda teriam lugar. Aquele
rosto que “resplandecia como o sol” e aquelas vestes que se
tornaram “brancas como a luz” tiveram a finalidade de proporcionar
aos discípulos alguma ideia da majestade com que o Senhor Jesus
aparecerá neste mundo quando vier, pela segunda vez, juntamente
com todos os seus santos. Por assim dizer, uma beira do véu foi
erguida, a fim de mostrar aos discípulos a verdadeira dignidade de
seu Senhor e Mestre. Foi dessa maneira que eles puderam
entender que, se Jesus não havia aparecido neste mundo com a
figura majestosa de um monarca, isso devia-se tão somente ao fato
de que o tempo dele vestir seus trajes reais ainda não havia
chegado. É impossível extrairmos qualquer outra conclusão se
levarmos em conta a linguagem empregada pelo apóstolo Pedro,
quando ele escreveu sobre o assunto. Referindo-se claramente à
transfiguração, ele escreveu: “[...] nós mesmos fomos testemunhas
oculares da sua majestade” (2Pe 1.16).
Para nós, convém que a vindoura glória de Cristo e de seu
povo seja profundamente impressa em nossas mentes. Inclinamo-
nos, tristemente, a nos esquecer disso. Existem poucas indicações
visíveis dessa glória no mundo presente. Porquanto ainda não
vemos que todas as coisas estão postas sob os pés de nosso
Senhor. Por toda a parte, abundam o pecado, a incredulidade e a
superstição. Na prática, milhares estão dizendo: “Não queremos que
este [Jesus] reine sobre nós” (Lc 19.14). E também ainda não se
manifestou como se tornarão as pessoas que fazem parte do povo
de Cristo. Seus conflitos, cruzes, tribulações e debilidades, tudo isso
nos é perfeitamente evidente. Entretanto, há escassos sinais da
futura recompensa deles. Cuidemos, portanto, em não permitir que
surjam dúvidas quanto a essa particularidade. Silenciemos essas
dúvidas em nossos corações, lendo outra vez o relato da
transfiguração de Jesus Cristo. Para Jesus e para todos que nele
confiam, está reservada uma glória tão intensa que o coração
humano não é capaz de conceber agora. E não somente essa glória
nos foi prometida, como também conta com o testemunho de três
competentes testemunhas. Uma dessas testemunhas deixou
registrado por escrito: “[...] e vimos a sua glória, glória como do
unigênito do Pai” (Jo 1.14). Por certo, bem podemos acreditar
naquilo que foi visto por elas.
Em segundo lugar, nesses versículos encontramos uma prova
insofismável do fato da ressurreição do corpo e de que há vida
depois da morte física. Somos informados ali de que Moisés e Elias
apareceram juntamente com Jesus, de forma visível e gloriosa. Eles
foram vistos como corpos físicos. Foram ouvidos a dialogar com o
Senhor Jesus. Mil quatrocentos e oitenta anos já se haviam passado
desde que Moisés morrera e fora sepultado. E mais de novecentos
anos se haviam passado desde que Elias fora arrebatado para o
céu em um redemoinho. No entanto, eles foram vistos vivos por
Pedro, Tiago e João!
Devemos dar o máximo de atenção a essa visão. Ela merece
nossa cuidadosa atenção. Todos deveríamos sentir, quando
meditamos a respeito dessa visão, que o estado dos mortos é um
assunto deveras misterioso e profundo. Uns após outros, os mortos
são sepultados e desaparecem de nossa vista. Nós os depositamos
em seus estreitos túmulos, e nunca mais os vemos, e seus corpos
físicos acabam reduzidos a pó. Mas será que eles, realmente,
tornarão a viver? Poderemos vê-los de novo? Os sepulcros
devolverão os mortos neles contidos, no último dia? Essas são
perguntas que, ocasionalmente, atravessam a mente de algumas
pessoas, apesar de todas as claríssimas assertivas da Palavra de
Deus.
Ora, por ocasião da transfiguração de Jesus, deparamos com a
mais cristalina evidência de que os mortos, realmente, ressuscitarão
algum dia. Ali, encontramos dois homens que reapareceram na terra
em seus próprios corpos, embora já se tivessem passado séculos
que estavam separados da terra dos viventes. E é nisso que
encontramos a poderosa garantia da ressurreição final de todos os
seres humanos. Todos aqueles que já viveram neste mundo serão
novamente chamados à vida, a fim de prestar contas de tudo que
fizeram. Nenhuma dessas pessoas faltará. Não existe o
aniquilamento das almas. Todos que chegaram a dormir em Cristo
serão encontrados perfeitamente seguros — patriarcas, profetas,
apóstolos, mártires — até o mais humilde servo de Deus, de nossos
próprios dias. Embora, atualmente, sejam invisíveis para nós, todos
estão bem vivos para Deus. “Ora, Deus não é Deus de mortos, e,
sim, de vivos; porque para ele todos vivem” (Lc 20.38). Seus
espíritos estão vivos, tanto quanto nós mesmos estamos vivos; e
aparecerão de novo, em corpos glorificados, tão certamente quanto
Moisés e Elias apareceram no monte da transfiguração. De fato,
esses são pensamentos solenes. Existe uma ressurreição, e
homens como Félix devem tremer. Existe uma ressurreição, e
homens como Paulo devem regozijar-se.
Por último, nesses versículos, encontramos um notável
testemunho acerca da infinita superioridade de Cristo sobre todos
que nasceram de mulher. Esse foi um ponto fortemente frisado pela
voz, vinda do céu, que os discípulos ouviram. Pedro, perplexo e
atônito diante da visão celestial, sem saber o que dizer, propôs que
fossem erigidas três tendas no monte: uma para Cristo, outra para
Moisés e outra para Elias.
Na realidade, parece que Pedro queria situar o legislador e o
profeta lado a lado com o divino Mestre, como se os três fossem
iguais, porém vemos que essa proposta foi prontamente rechaçada,
da maneira mais extraordinária e impressionante. Uma nuvem
encobriu Moisés e Elias, e eles não mais puderam ser vistos. Ao
mesmo tempo, de dentro da nuvem, saiu uma voz que reiterou as
solenes palavras que João Batista ouvira, por ocasião do batismo de
nosso Senhor: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo:
a ele ouvi”. Essa voz teve por intuito mostrar a Pedro que há Alguém
muito superior a Moisés ou a Elias. Moisés foi um servo fiel de
Deus. Elias foi uma ousada testemunha que defendeu a verdade
divina. Mas Cristo é muito maior do que qualquer um deles, ou
mesmo que os dois juntos. Ele é o Salvador, para quem
continuamente apontavam a Lei e os Profetas. Ele é o verdadeiro
Profeta, a quem todos estão na obrigação de ouvir, conforme lhes
foi ordenado (Dt 18.15).
Moisés e Elias foram grandes homens em sua própria época.
Porém, Pedro e os outros dois apóstolos precisavam lembrar que,
quanto à natureza, à dignidade e ao ofício, eles estão muito abaixo
de Jesus. Cristo é o verdadeiro sol; mas eles foram apenas os
planetas que refletiram sua luz. Ele é a raiz; mas eles foram apenas
os ramos, dependentes da raiz. Ele é o Senhor, mas eles foram
apenas os servos. A bondade deles era toda derivada; mas a de
Cristo era sua própria, original. Moisés e os profetas, como homens
santos, merecem honra. Mas, se os discípulos desejam ser salvos,
devem ter unicamente Cristo como Mestre, e dar glória somente a
ele: “[...] a ele ouvi”.
Também devemos detectar nessas palavras uma grande lição
para toda a Igreja de Cristo. Em nossa natureza humana, manifesta-
se a constante tendência para “ouvirmos o homem”. Bispos, padres,
diáconos, cardeais, o papa, os concílios, pregadores e ministros de
grupos evangélicos são continuamente exaltados a uma posição
que Deus jamais tencionou que preenchessem, usurpando, assim, a
honra devida somente a Cristo, para todos os efeitos práticos. Por
causa dessa inclinação, todos nós devemos vigiar e montar guarda.
E que aquelas solenes palavras da visão fiquem ressoando em
nossos ouvidos: “ ... a ele ouvi”!
Os melhores homens não passam de homens, mesmo em seus
melhores momentos. Os patriarcas, os profetas e os apóstolos — os
mártires, os pais da Igreja, os reformadores, os puritanos —, todos
são meros pecadores, que precisam do Salvador — santos, úteis,
dignos de honra em seus respectivos lugares, mas apenas
pecadores, e nada mais. Nunca podemos permitir que eles sejam
interpostos entre nós e Cristo. Somente Jesus Cristo é “o Filho, em
quem o Pai se compraz”. Somente ele dispõe das chaves, que estão
em suas mãos, e somente ele é o “[...] Deus bendito para todo o
sempre. Amém” (Rm 9.5).
Certifiquemo-nos de que estamos ouvindo sua voz e seguindo-
o. Avaliemos todos os ensinamentos religiosos em conformidade
com o grau em que nos conduzem aos pés de Cristo. A essência da
religião que salva consiste nisto: ouvir Jesus Cristo.
A cura do jovem endemoninhado
Leia Mateus 17.14-21

N esse trecho bíblico, tomamos conhecimento de outro dos


grandiosos milagres realizados por Jesus Cristo. Ele curou um
jovem lunático, que vivia possuído por um demônio.
A primeira coisa que descobrimos nesses versículos é um
vívido quadro da horrenda influência que, algumas vezes, o
demônios exercem sobre os jovens. Ali, lemos a respeito do filho de
um homem que, além de “lunático”, também sofria muito. Um
espírito maligno o estava pressionando, tentando destruir seu corpo
e sua alma, “pois muitas vezes cai no fogo, e outras muitas, na
água”. Vemos aqui um daqueles casos de possessão demoníaca
que, embora fossem comuns nos dias de nosso Senhor na terra,
hoje em dia são encontrados com certa raridade. Porém, podemos
facilmente imaginar que, quando esses ataques aconteciam, sem
dúvida deixavam suas vítimas extremamente aflitas e agoniadas. Já
é doloroso ver os corpos daqueles a quem amamos esmagados
pelas enfermidades. E mais doloroso ainda deve ser ver o corpo e a
mente de algum ente querido totalmente debaixo da influência do
diabo! Disse o bispo Hall: “Fora do inferno, não pode haver
desgraça pior”.
Todavia, nunca nos deveríamos esquecer de que há muitas
maneiras de Satanás exercer controle espiritual entre os jovens, que
são tão lamentáveis quanto o caso que estamos considerando
nessa passagem. Há milhares e milhares de jovens que parecem
ter-se entregado completamente às sugestões de Satanás, tendo
ficado cativos à sua vontade. Esses jovens desfazem-se de todo o
temor de Deus e perdem todo o respeito por seus mandamentos.
Antes, servem a diversas concupiscências e prazeres distorcidos.
Atiram-se loucamente a todos os excessos e devassidões.
Recusam-se a ouvir os conselhos de seus progenitores, mestres ou
ministros do evangelho. Jogam para um lado todas as
preocupações com a própria saúde, com o próprio caráter e com a
própria respeitabilidade perante seus semelhantes. Fazem tudo que
está ao seu alcance, a fim de se arruinar de corpo e alma, no tempo
e na eternidade. São escravos voluntários de Satanás. Quem nunca
viu jovens nessas condições? Podem ser encontrados nas grandes
cidades e nas áreas rurais. Procedem tanto das classes abastadas
como das classes humildes. Certamente, esses jovens servem de
prova entristecedora de que, embora Satanás raramente tome
posse dos corpos dos homens nestes nossos dias, continua
exercendo domínio maléfico sobre as almas dos homens em geral.
Contudo, jamais nos deveríamos esquecer de que, nem
mesmo no caso de jovens nessa situação, deveríamos perder a
esperança. Antes, deveríamos recordar-nos de que nosso Senhor
Jesus Cristo é o Todo-Poderoso. Por pior que fosse o caso daquele
rapazinho, sobre quem lemos nesses versículos, ele foi “curado”, e
isso “desde aquela hora” mesma em que foi apresentado a Cristo!
Os pais, os mestres e os pregadores deveriam continuar orando em
favor dos jovens, mesmo quando eles exibem seu lado mais negro.
Por mais endurecidos que pareçam ser seus corações, ainda assim
tais corações poderão ser abrandados. Por mais desesperadora que
seja sua iniquidade no momento, ainda assim poderão ser curados.
À semelhança de John Newton, eles poderão chegar a se
arrepender e se converter, e seu último estado parecer melhor do
que o inicial. Quem é capaz de negar isso? Que, para nós, isso
constitua um princípio fixo, quando lemos a respeito dos milagres
realizados por nosso Senhor, que jamais desistamos de esperar
pela salvação de quem quer que seja!
Em segundo lugar, nesses versículos, encontramos um
extraordinário exemplo do efeito debilitador da incredulidade. Os
discípulos indagaram ansiosamente de nosso Senhor, ao notarem
que o demônio cedera diante do poder de Cristo: “Por que motivo
não pudemos expulsá-lo?”. E receberam uma resposta plena da
mais rica e proveitosa lição: “Por causa da pequenez da vossa fé”.
Eles desejavam conhecer o segredo de seu próprio e triste fracasso
na hora da necessidade? Era a falta de uma fé mais firme.
Ponderemos bem sobre esse incidente e aprendamos a ser
sábios. A fé é a chave do sucesso na guerra espiritual do crente. A
incredulidade é o caminho garantido da derrota. Se permitirmos que
nossa fé se enfraqueça e caia em decadência, todas as nossas
graças cristãs se debilitarão juntamente com ela. A coragem, a
paciência, a longanimidade e a esperança não demorarão para
murchar e desaparecer. A fé é a raiz da qual todas essas outras
virtudes dependem. Os mesmos israelitas que, em certa ocasião,
atravessaram triunfalmente o mar Vermelho, em outra oportunidade
encolheram-se diante do perigo como covardes, ao chegarem às
bordas da Terra Prometida. O Deus deles continuava o mesmo que
os tirara da servidão na terra do Egito. O líder deles era o mesmo
Moisés, que operara tantas maravilhas diante de seus olhos. No
entanto, a fé deles já não era mais a mesma. Eles tinham dado
margem a vergonhosas dúvidas acerca do amor e do poder do
Senhor Deus: “[...] não puderam entrar por causa da incredulidade”
(Hb 3.19).
Por último, vemos nesses versículos que o reino de Satanás
não pode ser derrubado sem muita luta e diligência. Parece ser essa
a lição com que se encerra a presente passagem. “Mas esta casta
não se expele senão por meio de oração e jejum.” Nessas palavras,
parece haver implícita uma reprimenda gentil de Jesus aos seus
discípulos. Talvez eles estivessem por demais entusiasmados com
os sucessos do passado. Ou talvez estivessem sendo menos
diligentes no uso dos meios da graça, em face da ausência de seu
Senhor, do que quando Cristo estava em sua companhia.
Independentemente de qual tenha sido a causa, eles receberam
uma indicação perfeitamente clara, da parte de nosso Senhor, de
que a guerra contra Satanás jamais deve ser travada de modo
superficial. Assim, foram instruídos quanto ao fato de que nenhuma
vitória sobre o príncipe deste mundo pode ser ganha de modo fácil.
Sem a oração fervorosa e sem a automortificação diligente, com
frequência haveremos de amargar fracasso e derrota.
A lição aqui ressaltada reveste-se de grande importância.
Afirmou Bullinger: “Eu gostaria que essa porção do evangelho nos
agradasse tanto quanto aquelas porções que nos concedem
liberdade”. Todos nos inclinamos a cumprir nossos atos devocionais
de maneira impensada e apenas formal. A exemplo do povo de
Israel, que estava envaidecido diante da queda das muralhas de
Jericó, estamos sempre dispostos a dizer a nós mesmos: “são
poucos os inimigos” (Js 7.3). Desse modo, pois, imaginamos que
não precisamos exercitar toda a nossa força espiritual. Mas
também, a exemplo de Israel, por muitas vezes somos obrigados a
experimentar, com amargor de espírito, que as batalhas espirituais
não são vencidas sem uma luta árdua. Em nenhuma hipótese a arca
do Senhor pode ser manuseada com irreverência. O trabalho do
Senhor não pode ser feito de maneira desleixada.
Que nunca nos esqueçamos das palavras de nosso Senhor
aos seus discípulos e que tenhamos como regra sempre colocá-las
em prática! No púlpito ou na plataforma, na Escola Dominical ou no
local de trabalho, no uso que fizermos de nossas orações
domésticas e da leitura da Bíblia, sempre devemos vigiar com
diligência sobre nossos próprios espíritos! Qualquer coisa que
estejamos fazendo, devemos fazer em conformidade com nossas
“forças” (Ec 9.10).
Constitui um erro fatal subestimar nossos adversários. Maior é
aquele que está conosco do que aquele que é contra nós. Mas, a
despeito disso, aquele que nos é contrário não deveria ser
subestimado quanto à sua periculosidade. Ele é o próprio príncipe
deste mundo. Ele é o forte homem armado que guarda a sua casa e
que não sai dela para dividir seus bens com alguém, senão depois
de muita luta. Não temos de combater contra carne e sangue, mas,
sim, contra principados e potestades. Portanto, precisamos revestir-
nos de toda a armadura de Deus. E não apenas nos revestirmos
dela, como também usá-la. Podemos ter a mais absoluta certeza de
que aqueles que obtêm o maior número de vitórias sobre o mundo,
a carne e o diabo são justamente aqueles que mais oram em
secreto, fazendo conforme Paulo: “Mas esmurro o meu corpo, e o
reduzo à escravidão” (1Co 9.27).
O peixe e a moeda do tributo
Leia Mateus 17.22-27

N esses versículos, transparece certa circunstância, dentro da


vida de nosso Senhor, que não foi narrada por qualquer dos
demais evangelistas, além de Mateus. Um milagre notável foi
efetuado, a fim de providenciar o necessário para o pagamento do
dinheiro do tributo, requerido para a manutenção do templo de
Jerusalém. Nessa narrativa, existem três pontos que se destacam e,
portanto, merecem nossa atenta observação.
Em primeiro lugar, observemos que nosso Senhor tinha perfeito
conhecimento de tudo que é dito e feito neste mundo. Lemos ali que
aqueles que “cobravam o imposto das duas dracmas” dirigiram-se a
Pedro e lhe perguntaram: “Não paga o vosso Mestre as duas
dracmas?”. E a resposta dada por Pedro foi a afirmativa: “Sim”. É
evidente que nosso Senhor não estava presente quando essa
pergunta foi formulada e essa resposta foi dada. No entanto, nem
bem Pedro chegou àquela casa, e o Senhor lhe foi logo
perguntando: “Simão, que te parece? De quem cobram os reis da
terra imposto ou tributo; dos seus filhos, ou dos estranhos?”. Dessa
maneira, pois, Jesus mostrou a Pedro que sabia da conversa que
esse apóstolo tivera com aqueles homens, como se ele estivesse
nas imediações, escutando tudo.
Existe algo de indescritível solenidade na ideia de que o
Senhor Jesus sabe de todas as coisas. Há um par de olhos que
acompanha toda a nossa conduta diária. Há alguém que escuta
todas as palavras que dizemos a cada dia. Todas as coisas estão
descobertas e patentes aos olhos daquele a quem teremos de
prestar contas. É simplesmente impossível nos ocultarmos dele. A
hipocrisia é perfeitamente inútil. Podemos enganar os pregadores.
Podemos fingir diante de nossos parentes e vizinhos. O Senhor, no
entanto, vê todas as coisas com clareza. Não podemos enganar a
Cristo. Deveríamos fazer um esforço para usar essa verdade de
modo prático.
Deveríamos esforçar-nos para viver como que diante dos olhos
do Senhor, conforme recomendado a Abraão: “anda na minha
presença” (Gn 17.1). Que nosso alvo diário seja nada dizer que não
gostaríamos que Cristo ouvisse, e nada fazer que não gostaríamos
que Cristo visse! De igual modo, deveríamos medir cada questão
difícil, sobre o que é certo ou errado, mediante um teste simples:
Como eu me comportaria se Jesus estivesse de pé, ao meu lado?
Um padrão assim não é extravagante nem absurdo. Também não é
uma norma capaz de interferir em qualquer dever ou relacionamento
em nossa vida. Interfere exclusivamente com o pecado. Feliz é
aquele que procura sentir a presença de seu Senhor, fazendo e
dizendo todas as coisas como se estivesse na presença dele.
Observemos ainda que nosso Senhor exerce seu infinito poder
sobre toda a Criação. Jesus fez de um peixe seu tesoureiro. Fez
uma criatura muda trazer o dinheiro do imposto, para satisfazer às
exigências do coletor. Com toda a razão, pois, Jerônimo comentou:
“Não sei o que mais admirar aqui, se a presciência de nosso Senhor
ou se a sua grandeza”.
Deparamos aqui com o cumprimento literal das palavras do
salmista: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão, e sob seus
pés tudo lhe puseste [...] as aves do céu e os peixes do mar, e tudo
o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8.6-8).
Temos aqui uma prova, dentre muitas outras, da majestade e
da grandeza de nosso Senhor Jesus Cristo. Somente ele, que foi o
Criador de todas as coisas, poderia exigir a obediência de todas as
suas criaturas. “Tudo foi criado por meio dele e para ele [...] nele
tudo subsiste” (Cl 1.16-17). O crente que parte para realizar a obra
de Cristo entre os incrédulos pode entregar-se, com toda a
confiança, aos cuidados de seu Senhor. Porquanto estará servindo
àquele que detém toda a autoridade, até mesmo sobre as feras da
terra. Quão maravilhoso é o pensamento que esse Senhor Todo-
Poderoso tenha condescendido em ser crucificado, a fim de salvar-
nos! Quão consolador é o pensamento que, quando ele vier ao
mundo, pela segunda vez, haverá de manifestar gloriosamente seu
poder sobre todas as coisas criadas, no mundo inteiro! “O lobo e o
cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será
a comida da serpente” (Is 65.25).
Por último, observemos, nesses versículos, a disposição de
nosso Senhor em fazer concessões, por não querer escandalizar
ninguém. Com toda a razão, Jesus poderia ter reivindicado isenção
do pagamento do dinheiro do tributo. Aquele que é o próprio Filho
de Deus com toda a justiça poderia ser dispensado de pagar pela
manutenção da casa de seu Pai. Aquele que se mostrou “maior que
o templo” poderia ser reconhecido como quem não precisava
contribuir para o sustento do templo. Nosso Senhor, entretanto, não
fez nada disso. Não reivindicou isenção. Pelo contrário, demonstrou
que desejava que Pedro pagasse o dinheiro que fora cobrado. Ao
mesmo tempo, porém, Jesus declarou seus motivos. Isso deveria
ser feito “para que não os escandalizemos”. A esse respeito, o bispo
Hall comentou: “Foi efetuado um milagre, a fim de que nem mesmo
um coletor de impostos ficasse escandalizado”.
Nesse incidente, o exemplo dado por nosso Senhor merece
toda a atenção da parte daqueles que se professam e se chamam
cristãos. Oculta-se uma profunda sabedoria naquelas cinco
palavras: “para que não os escandalizemos”. Elas nos ensinam,
com toda a clareza, que existem questões acerca das quais o povo
de Cristo deveria abafar as próprias opiniões, submetendo-se a
requisitos que talvez não aprovem plenamente, somente por não
quererem escandalizar a ninguém, nem “pôr tropeço diante do
evangelho de Cristo”. Dos direitos de Deus, é indubitável, jamais
deveríamos desistir; mas, de nossos próprios direitos,
ocasionalmente podemos desistir deles, com real proveito. Talvez
soe correto e pareça heroico estarmos continuamente a defender,
com tenacidade, nossos direitos. Porém, diante de uma passagem
bíblica como a que temos diante de nós, bem poderíamos duvidar
se tal tenacidade sempre é sábia e se reflete a mente de Cristo. Há
ocasiões em que o crente demonstra maior graça submetendo-se
do que oferecendo resistência.
Lembremo-nos dessa passagem na qualidade de cidadãos e
patriotas. Talvez não aprovemos todas as medidas políticas
adotadas por nossos governantes. Talvez discordemos de alguns
dos impostos que eles determinam. Mas, após tudo isso, a grande
indagação é: “Redundará em qualquer benefício para a causa da
religião cristã se eu resistir às autoridades constituídas? As medidas
decretadas por elas realmente estão prejudicando o bem-estar da
minha alma?”. Em caso negativo, fiquemos tranquilos, “para que
não os escandalizemos”.
Também devemos recordar esse trecho bíblico na qualidade de
membros da Igreja de Cristo. Talvez não gostemos de tudo que
ocorre nas cerimônias e nos ritos do grupo evangélico a que
pertencemos. Talvez pensemos que aqueles que nos governam
quanto às questões espirituais nem sempre se mostram sábios.
Mas, em última análise, os pontos sobre os quais nos sentimos
insatisfeitos são, realmente, de importância vital? Alguma das
grandes verdades do evangelho está sendo ameaçada? Em caso
contrário, fiquemos quietos, “para que não os escandalizemos”.
Lembremo-nos também dessa passagem na qualidade de
membros que fazem parte de uma sociedade. Dentro do círculo
social ao qual pertencemos, talvez existam regras e normas que
nós, como crentes que somos, entendemos como cansativas,
inúteis e sem proveito. Contudo, essas questões são fundamentais?
Elas prejudicam nossas almas? A causa da religião cristã seria
beneficiada de alguma maneira se nos recusássemos a anuir diante
de tais imposições? Em caso contrário, sujeitemo-nos
pacientemente a tais coisas, “para que não os escandalizemos”.
Teria sido muito bom, para a igreja e para o mundo, se essas
cinco palavras proferidas por nosso Senhor fossem estudadas com
mais afinco, ponderadas e postas em prática! Quem é capaz de
calcular o dano que tem sido feito contra a causa do evangelho por
aqueles escrúpulos mórbidos e por aquilo que muitos chamam de
consciência? Faríamos muito bem em relembrar o exemplo que o
grande apóstolo dos gentios nos deixou: “antes, suportamos tudo,
para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo” (1Co
9.12).
A necessidade da conversão e da humildade; a
realidade do inferno
Leia Mateus 18.1-14

A primeira coisa que nos é ensinada nesses quinze versículos é a


necessidade de conversão, manifestada sob a forma de humildade
como a de uma criança. Os discípulos apresentaram-se ao Senhor
com a seguinte indagação: “Quem é, porventura, o maior no reino
dos céus?”. Eles falaram como homens não bem iluminados,
impulsionados por muitas expectativas carnais. E receberam uma
resposta de modo a despertá-los de seus sonhos em plena luz do
dia — uma verdade que jaz nos próprios fundamentos do
cristianismo: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e
não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino
dos céus”.
Permitamos que essas palavras penetrem no fundo de nossos
corações. Sem conversão, também não há salvação. Todos nós
precisamos de uma mudança radical em nossa natureza. Por nós
mesmos, não teríamos nem fé, nem temor, nem amor para com
Deus. “Importa-vos nascer de novo” (Jo 3.7). Por nós mesmos,
somos totalmente despreparados para habitar na presença do
Senhor. O céu não seria céu para nós se não nos convertêssemos.
Isso se aplica com igual verdade a todas as fileiras, classes e
ordens da humanidade. Todos nós temos nascido no pecado e
somos filhos da ira, sem uma única exceção. Por isso mesmo,
precisamos nascer do alto, tornando-nos novas criaturas. É mister
que um coração novo comece a pulsar dentro de nós, que um
espírito novo nos seja insuflado. As coisas antigas precisam passar,
e todas as coisas devem ser renovadas. É algo excelente alguém
ser batizado em uma igreja evangélica e usufruir dos meios cristãos
da graça. Mas, antes de tudo, o que realmente importa é: Já nos
convertemos? Gostaríamos de saber se realmente estamos
convertidos? Conhecemos aquele teste por meio do qual podemos
submeter-nos à prova?
O sinal mais seguro de uma conversão autêntica é a
humildade. Se, na verdade, já recebemos o Espírito Santo de Deus,
então haveremos de reconhecer o fato por intermédio de uma
atitude mansa como a de uma criança; e, à semelhança das
crianças, haveremos de pensar a nosso próprio respeito com
modéstia, ao considerarmos nossas forças e nossa sabedoria, e
também porque nos mostraremos muito dependentes de nosso Pai
celeste. À semelhança das crianças, não buscaremos para nós
mesmos grandes coisas neste mundo; e, se tivermos alimentos,
vestes e o amor de nosso Pai dos céus, então ficaremos contentes.
Na verdade, esse é um teste que nos perscruta os corações! Ele
desmascara as distorções de muitas supostas conversões. É fácil
alguém converter-se de uma igreja para outra, de um conjunto de
opiniões para outro. Conversões dessa natureza jamais salvaram
uma alma sequer. Aquilo de que todos precisamos é converter-nos
do orgulho para a humildade, de elevados conceitos sobre nós
mesmos para pensamentos modestos a nosso respeito, do
autoconvencimento para a auto-humilhação e da mentalidade de um
fariseu para a mentalidade de um publicano. Se quisermos ter
qualquer esperança de salvação, então precisaremos experimentar
uma conversão desse alto nível. Porquanto essas são as
conversões operadas pelo Espírito Santo.
A próxima coisa que nos é ensinada nesses versículos é o
grande pecado que consiste em pôr pedras de tropeço no caminho
dos crentes. As palavras emitidas por nosso Senhor, sobre esse
assunto, foram peculiarmente solenes: “Ai do mundo por causa dos
escândalos [...] ai do homem pelo qual vem o escândalo”. Ora,
colocamos pedras de tropeço ou escândalos no caminho das almas
humanas sempre que fazemos qualquer coisa a fim de impedi-las
de se aproximar de Cristo, ou que poderiam forçá-las a se desviar
do caminho da salvação, ou que poderiam desgostá-las no tocante
ao cristianismo bíblico. Podemos fazer isso diretamente,
perseguindo, lançando no ridículo, fazendo oposição ou procurando
dissuadir os homens de servir a Cristo. Também podemos fazer isso
de modo indireto, se vivermos de maneira incoerente com a religião
que professamos, ou fazendo o cristianismo parecer repelente e
insatisfatório, mediante nossa própria conduta condenável. Sempre
que fizermos qualquer coisa desse tipo, conforme torna-se claro
pelas palavras de nosso Senhor, estaremos cometendo um pecado
grave.
Há algo de muito temível na doutrina aqui estabelecida por
Jesus Cristo. Tal doutrina deveria despertar em nós o desejo de
sondar cuidadosamente nossos corações. Temos a certeza de que
não estamos sendo prejudiciais a outras pessoas? Talvez não
estejamos perseguindo abertamente os servos de Cristo. Porém,
não estaríamos dando mau exemplo a nenhum deles, por meio de
nossa conduta? É horrível quando pensamos a respeito do grande
dano causado por alguém que professa falsamente seguir a religião
cristã. Essa pessoa estará pondo uma arma nas mãos dos
incrédulos. Estará suprindo os mundanos com uma desculpa para
se manterem na impenitência. Uma pessoa assim atrapalha aqueles
que estão em busca de salvação. Desencoraja os santos. Em suma,
age como um sermão vivo, em favor do diabo. Somente o último dia
haverá de desvendar toda a ruína sofrida pelas almas por causa dos
“escândalos” praticados no próprio seio da Igreja do Senhor. Uma
das acusações de Natã contra Davi foi a seguinte: “deste motivo a
que blasfemassem os inimigos do Senhor” (2Sm 12.14).
A próxima verdade que esses versículos nos mostram é a
realidade do castigo futuro, após a morte física. Duas expressões
incisivas foram empregadas por nosso Senhor quanto a esse
particular. Ele falou em alguém ser “lançado no fogo eterno” e
também em ser “lançado no inferno de fogo”. O significado dessas
palavras é claro e inequívoco. No mundo vindouro, existe um lugar
caracterizado por uma indescritível miséria, em que serão
encerrados todos que morrerem na impenitência e na incredulidade.
Nas Escrituras, por conseguinte, é-nos revelada uma “ardente
indignação” que, mais cedo ou mais tarde, haverá de devorar todos
os adversários de Deus (Hb 10.27). A mesma firme palavra que
garante o céu para todos que se arrependerem e converterem
também declara, sem rodeios, que há um inferno à espera dos
ímpios.
Que ninguém tente enganar-nos com vãs palavras sobre esse
assunto horrendo! Nesses últimos dias, têm surgido indivíduos que
professam negar a eternidade da punição futura, e que, assim,
repetem o antigo argumento do diabo, o qual disse: “É certo que não
morrereis” (Gn 3.4). Que nenhum desses falsos raciocínios nos
abale, por mais plausíveis que pareçam ser! Conservemo-nos firmes
nas veredas antigas. O Deus de amor e misericórdia também é o
Deus da justiça. Sem a menor sombra de dúvida, ele retribuirá. O
Dilúvio, dos dias de Noé, e a destruição da cidade de Sodoma
tiveram por finalidade mostrar-nos o que Deus fará, algum dia, no
futuro. Nenhuma boca jamais falou com tanta clareza sobre o
inferno como a do próprio Jesus Cristo. Os pecadores insensíveis
acabarão descobrindo, para sua própria perdição eterna, que existe
realmente a “ira do Cordeiro” (Ap 6.16).
A última coisa que podemos aprender, com base nesses
versículos, é o valor dado por Deus até o menor e mais fraco dos
crentes. “Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que
pereça um só destes pequeninos.” Essas palavras ficaram
registradas com o propósito de encorajar todos os crentes
verdadeiros, e não somente as criancinhas, como é lógico. A
conexão dessas palavras com a parábola sobre as cem ovelhas, em
que uma delas se desviou e se perdeu, parece esclarecer esse
ponto acima de qualquer sombra de dúvida. O propósito delas é
mostrar-nos que nosso Senhor Jesus é um Pastor que cuida
ternamente de cada alma entregue aos seus cuidados. Para ele, os
membros mais recentes, mais fracos e doentios de seu rebanho,
são tão preciosos quanto os mais robustos. Eles nunca perecerão.
Ninguém poderá arrancá-los da mão do Senhor. Ele mesmo haverá
de conduzi-los gentilmente pelos desertos deste mundo. Ele não
haverá de permitir que caminhem depressa demais, em um único
dia, a fim de que nenhum deles venha a perecer (Gn 33.13). Ele
haverá de fazê-los ultrapassar quaisquer dificuldades. Ele os
defenderá de todo e qualquer adversário. Estas palavras, ditas por
Jesus, serão literalmente cumpridas: “Não perdi nenhum dos que
me deste” (Jo 18.9). Ora, com um Salvador assim, quem precisa ter
medo de começar a ser um cristão decidido? Contando com um
Pastor desse quilate, que já iniciou em nós sua obra, quem poderia
temer uma possível rejeição?
Como resolver diferenças entre os crentes;
natureza da disciplina eclesiástica
Leia Mateus 18.15-20

A s palavras do Senhor Jesus contidas nesses versículos


encerram uma expressão que, com frequência, tem sido mal
aplicada. A ordem que afirma: “dize-o à igreja” tem sido interpretada
de tal maneira que chega a contradizer outras passagens da
Palavra de Deus. Tal ordem tem sido falsamente aplicada à
autoridade da igreja visível, quanto às questões doutrinárias, razão
pela qual tem servido de justificativa para o exercício de muita
tirania eclesiástica. Porém, os abusos contra as verdades das
Escrituras não deveriam tentar-nos a negligenciar seu uso correto.
Não devemos desprezar qualquer texto bíblico somente porque
alguns o têm pervertido e transformado em veneno.
Observemos, em primeiro lugar, quão admiráveis são as
normas determinadas por nosso Senhor para a solução de
divergências entre os irmãos. Se, lamentavelmente, tivermos sido
ofendidos por algum outro membro da Igreja de Cristo, o primeiro
passo a ser dado será visitá-lo e “argui-lo entre ti e ele só”, na
tentativa de corrigir a falha. Talvez esse irmão nos tenha ofendido
sem intenção, conforme aconteceu entre Abimeleque e Abraão (Gn
21.26). Sua conduta talvez admita uma ótima explicação, como
aquela que foi dada pelos membros das tribos de Rúben, Gade e
Manassés, quando erigiram um altar, ao retornarem para a sua
própria terra (Js 22.24). Seja como for, essa maneira amigável, fiel e
franca de entrar em entendimento é o curso mais provável para
ganharmos de volta algum irmão que nos tenha ofendido em
qualquer sentido. “A língua branda esmaga ossos” (Pv 25.15).
Quem pode garantir que aquele irmão não venha a reconhecer
imediatamente: “Eu estava errado”, para, em seguida, reparar seu
erro, desculpando-se conosco?
Entretanto, se essa maneira de proceder não produzir qualquer
bom resultado, um segundo passo deverá ser dado por nós. Nesse
caso, conforme Jesus disse, “toma ainda contigo uma ou duas
pessoas”, para que, mediante o depoimento dessas testemunhas,
seja procurada a solução diante do irmão ofensor. Talvez a
consciência desse irmão seja tocada e, assim, reconheça seu erro,
envergonhe-se e arrependa-se. Caso contrário, ainda assim,
disporemos do depoimento daquelas duas ou três testemunhas de
que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que nosso
irmão voltasse à sobriedade, pois se recusara a fazer na primeira
tentativa e, agora, novamente, na segunda.
Finalmente, se essa segunda tentativa tiver sido inútil, então
devemos relatar a questão inteira à congregação local da qual
fazemos parte, cumprindo, assim, a recomendação de Cristo: “dize-
o à igreja”. Talvez o coração que se mostrara inabalável na primeira
e na segunda tentativas renda-se por fim, diante do temor do
desmascaramento público. Mas, se o ofensor, ainda assim, não
quiser dobrar-se, então só nos restará uma conclusão a respeito do
estado daquele irmão: devemos considerá-lo, embora com tristeza,
como alguém que preferiu desfazer-se de todos os princípios
cristãos, deixando-se guiar pelos motivos inferiores que
impulsionam qualquer “gentio e publicano”.
Essa passagem é uma linda instância de sabedoria mesclada
com terna consideração, que se percebe no ensinamento de nosso
Senhor. Quanto conhecimento ele demonstrou possuir sobre a
natureza humana! Coisa alguma é tão prejudicial para a causa da
religião cristã quanto as desavenças entre os cristãos. Por
conseguinte, nenhuma pedra deveria ser deixada sem revirar,
nenhuma tribulação deveria ser evitada, se somente assim tais
desavenças cheguem a se tornar questões de domínio público.
Jesus, portanto, mostrou profunda e delicada preocupação com a
sensibilidade da pobre natureza humana! Muitos problemas
escandalosos poderiam ser evitados se estivéssemos mais
dispostos a praticar aquela regra que diz “entre ti e ele só”. Se essa
porção das instruções de Jesus fosse mais cuidadosamente
estudada e obedecida, iria traduzir-se em grande felicidade para a
igreja e para o mundo. Enquanto o mundo existir como é, sempre
haverá discórdias e divisões entre nós. Entretanto, quantas dessas
coisas seriam imediatamente extintas se o curso de ação
recomendado por Jesus, nesses versículos, fosse experimentado!
Em segundo lugar, observemos o claro argumento que
encontramos nesses versículos em favor do exercício da disciplina
em uma comunidade cristã. Nosso Senhor determinou que os
desacordos entre os crentes que não possam ser solucionados de
outra maneira sejam entregues à decisão da igreja local à qual
aqueles irmãos pertencem. Asseverou ele: “dize-o à igreja”.
Com base nesses fatos, é evidente que o Senhor tenciona que
cada local de crentes professos tome conhecimento da conduta
moral de seus membros, ou mediante a ação coletiva da
comunidade inteira, ou por meio de líderes e anciãos aos quais seja
delegada autoridade espiritual. Também é patente que ele queria
que cada congregação tivesse a autoridade de excluir membros
desobedientes e refratários, para que não participassem de suas
atividades normais, como a prática das ordenanças. Declarou o
Senhor Jesus: “E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se
recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e
publicano”. Jesus não disse uma única palavra sobre castigos
temporais ou sobre impedimentos civis. Penas de cunho espiritual
são as únicas que Jesus permitiu à sua igreja infligir. Mas, quando
essa aplicação é corretamente feita, tal punição não pode ser
considerada algo sem importância: “tudo o que ligardes na terra terá
sido ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra terá sido
desligado no céu”. Parece que essa é a substância do ensinamento
de nosso Senhor acerca da disciplina eclesiástica.
É inútil tentar negar que o assunto inteiro está circundado de
dificuldades. Sobre nenhuma outra particularidade a influência do
mundo tem pesado tanto sobre a ação das igrejas locais. Sobre
nenhum outro ponto as igrejas locais têm cometido tantos erros —
algumas vezes para o lado de uma indiferença sonolenta, e, outras
vezes, para o lado de uma cega severidade. Não há que se duvidar
de que a autoridade da exclusão tem sido temivelmente abusada e
pervertida; e, conforme Quesnel escreveu: “Deveríamos temer mais
os nossos pecados do que todas as exclusões no mundo”.
A despeito disso, é impossível negarmos, contando com uma
passagem como essa, que a disciplina eclesiástica harmoniza-se
com a mentalidade de Cristo, de tal maneira que, quando
devidamente exercida, visa promover o bem-estar e a higidez da
igreja. Não pode mesmo ser direito que toda variedade de
indivíduos, por mais ímpios e malignos que sejam, tenha permissão
para se achegar à mesa do Senhor sem que ninguém os impeça ou
proíba. Faz parte dos deveres mais solenes de todo crente usar sua
influência para tentar impedir a continuação desse estado de coisas.
Nunca poderemos conseguir uma perfeita comunhão neste mundo,
embora a pureza deva ser nosso grande alvo. Um padrão
crescentemente mais elevado de qualificações, para que alguém se
torne membro de uma igreja local, sempre será uma das melhores
evidências de uma igreja próspera.
Por último, observemos quão gracioso encorajamento Cristo
tem em relação àqueles que se reúnem em seu nome. Ele declarou:
“Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali
estou no meio deles”. Essa declaração serve de notável
comprovação indireta da divindade do Senhor Jesus. Pois somente
Deus pode estar em muitos lugares ao mesmo tempo.
Nessas palavras, também há uma grande consolação para
todos aqueles que apreciam reunir-se com outros crentes, com
propósitos de adoração religiosa. Em cada reunião de adoração
pública, em cada reunião de oração ou louvor, em cada reunião
missionária, em cada reunião de leitura da Bíblia, encontra-se
presente o próprio Rei dos reis, Jesus Cristo. Talvez nos sintamos
desencorajados, por muitas vezes, diante do pequeno número de
pessoas presentes aos cultos, em comparação com o grande
número que se reúne com propósitos seculares e mundanas. Outras
vezes, sentiremos dificuldade em suportar os insultos e o ridículo de
indivíduos de natureza maligna, que clamam como aqueles antigos
inimigos fizeram: “Que fazem esses fracos judeus?” (Ne 4.2).
Todavia, não temos razão para o desânimo. Pois podemos ficar
dependendo da palavra de promessa do Senhor Jesus. Em todas as
nossas reuniões, contaremos com a companhia do próprio Cristo.
Por outro lado, nessas palavras há uma solene repreensão
para todos aqueles que negligenciam a adoração pública a Deus, e
nunca se fazem presentes às reuniões com propósitos religiosos.
Esses estão voltando as costas à sociedade do Senhor dos
senhores. Eles perdem a oportunidade de se encontrar
pessoalmente com o próprio Cristo, na dimensão coletiva. De coisa
alguma lhes adianta tentar justificar-se de que as reuniões dos
crentes são assinaladas por defeitos e debilidades, ou que o crente
obtém tantas bênçãos ficando em casa quanto frequentando os
cultos na igreja. As palavras proferidas por nosso Senhor deveriam
silenciar todos os argumentos desse tipo. Sem dúvida, não
demonstram sabedoria aqueles indivíduos que falam com
escarninho de qualquer reunião em que Cristo se faz presente.
Bem poderíamos ponderar sobre todas essas coisas. Se já nos
reunimos com o povo de Deus, para efeitos espirituais, no passado,
então perseveremos nessa prática e não nos envergonhemos dela.
Se, até o momento, temos desprezado tais reuniões,
reconsideremos nossa maneira de agir e aprendamos a ser sábios.
A parábola do servo que não queria perdoar
Leia Mateus 18.21-35

N esses versículos, o Senhor Jesus abordou um assunto de


máxima importância: como devemos perdoar as ofensas.
Vivemos em um mundo maligno, e é inútil esperar que consigamos
escapar aos maus-tratos, por mais cuidadosamente que nos
comportemos. Saber como nos conduzir quando somos maltratados
é algo importantíssimo para nossas almas.
Em primeiro lugar, o Senhor Jesus estabeleceu uma regra
geral, de que devemos perdoar as outras pessoas ao máximo. Foi
Pedro quem apresentou a seguinte indagação: “Senhor, até quantas
vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete
vezes?”. E, em resposta, Jesus lhe disse: “Não te digo que até sete
vezes, mas até setenta vezes sete”.
A regra aqui estabelecida, naturalmente, precisa ser
interpretada com sobriedade. Nosso Senhor não quis dar a entender
que as transgressões contra as leis da terra e contra a boa ordem
social devam ser desconsideradas e passadas em silêncio. Ele
também não quis dizer que devamos permitir que as pessoas
cometam furtos e assaltos, e fiquem impunes. Tudo que ele quis
dizer é que devemos manter uma atitude geral de misericórdia,
disposta a perdoar nossos irmãos e semelhantes. Precisamos
tolerar muita coisa e suportar muitas injustiças, em vez de logo
entrarmos em conflito com nossos ofensores. Também devemos
afrouxar sobre muitas coisas, submetendo-nos a muitas imposições,
antes de entrarmos em choque com outras pessoas. E, de igual
modo, devemos repelir tudo que tem a aparência de malícia,
contenda, vingança e retaliação. Sentimentos dessa ordem servem
somente para os incrédulos. Mas, no caso de qualquer discípulo de
Cristo, são totalmente indignos.
Quão mais abençoada seria a vida neste mundo se essa norma
ditada por nosso Senhor fosse mais largamente reconhecida e
obedecida! Quantas das desgraças que sobrevêm à humanidade
são ocasionadas por disputas, querelas, ações judiciais e pela
obstinada tenacidade quanto àquilo que os homens costumam
intitular de “meus direitos”! Quantos conflitos entre os homens
poderiam ser evitados se ao menos os homens se dispusessem
mais ao perdão e desejassem mais que a paz imperasse! Nunca
nos deveríamos esquecer de que nenhuma fogueira pode continuar
queimando sem lenha. De igual forma, são necessárias duas
pessoas para que se inicie uma briga. Portanto, que cada uma das
duas pessoas resolva, pela graça de Deus, que não contribuirá para
que a briga tenha início e prossiga. Antes, devemos resolver pagar o
mal com o bem, e a maldição com a bênção, dissipando, assim,
toda inimizade e transformando nossos adversários em amigos (Rm
12.20). Era uma excelente qualidade de caráter do arcebispo
Cranmer que, quando alguém chegava a ofendê-lo, certamente
acabaria tornando-se amigo dele.
Em segundo lugar, nosso Senhor supriu-nos com dois
poderosos motivos para exercitar um espírito perdoador. Jesus
contou a história de um homem que devia uma gigantesca quantia a
seu senhor; mas, como não tinha “com que pagar”, chegado o
momento da prestação de contas, seu senhor compadeceu-se dele
“e perdoou-lhe a dívida”. E Jesus continuou dizendo que esse
mesmo homem, após haver sido perdoado, encontrando-se com um
companheiro seu que lhe devia uma importância insignificante,
recusou-se a perdoá-lo. Além disso, aquele servo exigiu que seu
conservo fosse lançado no cárcere, não querendo dispensar a
mínima parcela da dívida. Finalmente, conforme o Senhor Jesus
ajuntou, o castigo sobreveio àquele servo cruel, que não se
dispunha a perdoar. Porquanto, após lhe ter sido mostrada
misericórdia, ele também deveria ter-se mostrado misericordioso
para com seu semelhante. E o Senhor Jesus conclui sua parábola
com estas impressionantes palavras: “Assim também meu Pai
celeste vos fará se, do íntimo, não perdoar cada um a seu irmão”.
Nessa parábola de Jesus, fica patente que um dos motivos
para perdoarmos nossos semelhantes deveria ser a lembrança de
que todos precisamos ser perdoados diante de Deus. Dia após dia,
caímos em muitas transgressões e ficamos muito aquém do que
deveríamos ser, e “deixamos de fazer, e fazemos aquilo que não
deveríamos fazer”. Dia após dia, solicitamos de Deus misericórdia e
perdão. As ofensas que outras pessoas têm praticado contra nós
são coisas desprezíveis, em comparação com nossas gravíssimas
ofensas contra o Senhor. Sem dúvida, não condiz com nossa
condição de pobres criaturas pecaminosas, como somos, mostrar-
nos excessivamente severos, fazendo cobrança por causa de
pequenas falhas que nossos irmãos na fé cometem contra nós, ou
mostrando-nos inclinados a não perdoá-los prontamente.
Outra razão para que nos mostremos dispostos a perdoar
outras pessoas deveria ser a lembrança acerca do dia do
julgamento final, juntamente com o padrão que será utilizado
naquele dia, acerca de todos que forem julgados. Naquele dia, não
será dado o perdão para indivíduos que não se dispuseram a
perdoar seus semelhantes. Tais indivíduos, na verdade, não estão
aptos a viver no céu. Pois não seriam capazes de dar o devido valor
a um lugar de habitação no qual a “misericórdia” é o único título de
posse, um local em que a “misericórdia” é o tema de um cântico
perene. Sem dúvida, se estamos planejando ser um daqueles que
estarão de pé, à direita de Jesus, quando ele se sentar em seu trono
de glória, então teremos de aprender a ser perdoadores enquanto
ainda estamos neste mundo.
Que essas verdades lancem profundas raízes em nossos
corações! É um fato lamentável que poucos deveres cristãos
estejam sendo postos em prática com tanta parcimônia e má
vontade quanto o dever de perdoar o próximo. E é entristecedor
verificarmos quanto amargor de espírito, quanta falta de compaixão,
quanto despeito, quanta dureza e quanta falta de gentileza
manifestam-se entre os homens. No entanto, poucos deveres são
tantas vezes ressaltados, nas Escrituras do Novo Testamento,
quanto esse. Mas poucas outras falhas de caráter são capazes de
fechar tão definitivamente para um homem as portas do reino de
Deus quanto essa.
Queremos dar provas de que realmente fomos reconciliados
com Deus, lavados no sangue de Cristo, nascidos do alto pelo poder
do Espírito Santo e feitos filhos de Deus por adoção, em
consequência da graça divina? Então, não nos esqueçamos desse
passo bíblico. Seguindo o exemplo dado por nosso Pai celestial,
disponhamo-nos a perdoar nossos ofensores. Porventura fomos
ofendidos por alguém? Devemos perdoar essa pessoa, agora
mesmo. E conforme Leighton comentou: “Deveríamos perdoar
pouco a nós mesmos, e muito os outros”.Pretendemos ser
elementos benéficos à humanidade? Queremos exercer influência
positiva sobre nossos semelhantes, para que percebam quão
excelente é a religião cristã? Então, não nos esqueçamos dessa
passagem. Indivíduos que não se importam com as doutrinas cristãs
podem compreender perfeitamente bem o temperamento perdoador
de um crente.
Queremos desenvolver-nos pessoalmente na graça, tornando-
nos mais santos, em toda a nossa formação e em nossas palavras e
obras? Então, não nos esqueçamos dessa passagem. Nada
entristece tanto o Espírito Santo e obscurece tanto a alma quanto
deixar-se o indivíduo levar por um espírito rixento e pelo
temperamento que não se dispõe a perdoar (Ef 4.30-32).
O juízo de Cristo sobre o divórcio; a ternura de
Cristo com as crianças
Leia Mateus 19.1-15

N esses versículos, é-nos concedido perceber a mente de Cristo


acerca de dois assuntos de capital importância. O primeiro
versa sobre o relacionamento entre marido e mulher. E o segundo
diz respeito à maneira como deveríamos pensar acerca das
criancinhas, no que concerne às suas almas.
É difícil exagerar a importância desses dois assuntos. O bem-
estar das nações e a felicidade geral da sociedade humana estão
intimamente vinculados a pontos de vista corretos sobre essas
questões. As nações nada mais são do que uma coletânea de
muitas famílias. E a boa ordem das famílias depende inteiramente
de se conservar o mais elevado padrão de respeito pelos laços do
matrimônio e pelo correto treinamento das crianças. Deveríamos
mostrar-nos agradecidos diante do fato que, sobre ambas essas
questões, o grande Cabeça da Igreja pronunciou sua opinião de
maneira tão distinta.
No tocante ao casamento, nosso Senhor nos ensinou que a
união entre marido e mulher jamais deveria ser rompida, exceto pela
mais grave causa, como algum ato de infidelidade conjugal. Nos
dias em que nosso Senhor esteve neste mundo, o divórcio era
permitido entre os judeus, e isso pelos motivos mais superficiais e
frívolos. Essa prática, embora tolerada pela legislação mosaica, a
fim de impedir males ainda piores — como a crueldade ou o
homicídio —, gradualmente foi-se transformando em um
insuportável abuso, e, sem dúvida, dava margem a muita
imoralidade (Ml 2.14-16). A observação feita pelos discípulos de
nosso Senhor desvenda o estado deploravelmente baixo dos
sentimentos populares sobre o assunto. Os discípulos comentaram:
“Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não
convém casar”. Sem sombra de dúvida, o que eles queriam dizer
era algo como isto: “Se um homem não pode divorciar-se de sua
mulher por qualquer motivo, e a qualquer tempo, então é melhor
nem casar-se”. Uma linguagem dessas, nos lábios dos apóstolos de
Jesus, soa realmente estranha para nós!
Nosso Senhor apresentou um padrão inteiramente diferente
para servir de orientação a seus discípulos. Antes de qualquer outra
coisa, ele fundamentou seu juízo sobre a instituição original do
casamento. Para tanto, citou as palavras que aparecem no começo
do livro de Gênesis, em que estão descritas a criação do homem e a
união de Adão e Eva, como prova do fato de que nenhum outro
relacionamento humano deveria ser tão altamente considerado
como aquele entre um homem e sua esposa. O relacionamento
entre pais e filhos pode parecer muito íntimo; mas o relacionamento
entre marido e mulher ainda é mais íntimo. “Deixará o homem pai e
mãe, e se unirá à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.”
Em seguida, o Senhor reforçou esse conceito com suas próprias
palavras solenes: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o
homem”. E, finalmente, o Senhor fez uma gravíssima acusação, que
envolve a quebra do sétimo mandamento, mediante um novo
casamento, contraído após o divórcio obtido por motivos superficiais
e frívolos: “Quem repudiar sua mulher, não sendo causa de relações
sexuais ilícitas, e casar com outra, comete adultério”.
Torna-se evidente, portanto, com base no teor inteiro dessa
passagem, que a relação matrimonial deveria ser altamente
reverenciada e honrada entre o seguidores de Cristo. Trata-se de
uma relação que foi instituída no próprio paraíso, no período da
inocência do homem. E agora serve de figura simbólica predileta da
união mística entre Cristo e sua Igreja. Assim, trata-se de uma
relação que somente a morte é capaz de romper. Essa é uma
relação que, com a mais absoluta certeza, exercerá incalculável
influência, para a felicidade ou para a infelicidade, para o bem ou
para o mal, sobre aqueles que ela une. Nunca deveríamos assumir
tal relação de maneira frívola, superficial, sem exame prévio; pelo
contrário, somente com sobriedade, discrição e a devida
consideração dos fatos envolvidos. Lamentavelmente, é fato
comprovado que os casamentos efetuados sem seriedade são uma
das mais férteis causas da infelicidade, e, com grande frequência,
do pecado de muitas pessoas.
No que concerne às criancinhas, encontramos nosso Senhor
instruindo-nos, nesses versículos, mediante a palavra e a ação,
mediante o preceito e o exemplo. “Trouxeram-lhe então algumas
crianças, para que lhes impusesse as mãos, e orasse.”
Evidentemente, eram crianças bem pequenas, pequenas demais
para receber qualquer instrução, embora não pequenas demais para
que fossem beneficiadas pela oração em favor delas. Parece,
contudo, que os discípulos pensaram que o Senhor nunca se
rebaixaria a dar atenção àquelas criancinhas e repreenderam os
adultos que as haviam trazido. Todavia, isso provocou uma solene
declaração da parte do grande Cabeça da Igreja: “Deixai os
pequeninos, não os embaraceis de vir a mim, porque dos tais é o
reino dos céus”.
Há algo de interessantíssimo, tanto na linguagem como nos
atos de nosso Senhor, nessa passagem. Reconhecemos a fraqueza
e a debilidade, física e mental, das crianças pequeninas. De todas
as criaturas que nascem neste mundo, nenhuma é tão impotente e
dependente quanto um bebê humano. Sabemos quem era aquele
que deu tanta atenção aos infantes, tendo encontrado tempo
suficiente, em seu ativo ministério entre homens e mulheres adultos,
para orar em favor daquelas crianças, impondo-lhes “as mãos”.
Esse Alguém é o próprio filho de Deus, o grande Sumo Sacerdote, o
Rei dos reis, por intermédio de quem todas as coisas vieram à
existência, “o resplendor da glória e a expressão exata” do Ser de
Deus Pai. Que instrutivo quadro apresenta, diante de nossos olhos,
toda essa notável transação! Não admira que a maioria dos
membros da Igreja de Cristo sempre tenha visto, nessa passagem
bíblica, um poderoso, embora indireto, argumento em favor do
batismo infantil.
Com suporte nesses versículos, aprendamos que o Senhor
Jesus cuida ternamente das almas das criancinhas. É perfeitamente
provável que Satanás as odeie de modo todo especial. E também é
indubitável que Jesus as ame de modo todo especial. Embora tão
pequeninas, as crianças não estão abaixo de seus pensamentos e
de sua atenção. Seu poderoso coração reserva um lugar para o
bebezinho, em seu berço, tanto quanto para o monarca, em seu
trono. Jesus considera que cada criancinha traz, em potencial, em
seu corpinho, um princípio imorredouro, que sobreviverá às
pirâmides do Egito, e até mesmo ao sol e à lua, quando, por fim, se
apagarem. Ora, dispondo de uma passagem como esta, diante de
nós, sem dúvida podemos esperar a salvação de todos aqueles que
morrerem na infância, “[...] porque dos tais é o reino dos céus.”Por
último, extraiamos desses versículos um grande encorajamento
para ousar grandes coisas, procurando instruir nossas crianças na
religião cristã. Desde os mais tenros anos das crianças, tratemos
com elas como quem tem uma alma que pode vir a ser salva ou que
pode vir a se perder. E, assim, esforcemo-nos para conduzi-las aos
pés de Jesus Cristo. Precisamos familiarizar as crianças com a
Bíblia Sagrada assim que elas puderem compreender qualquer
coisa. Oremos por elas, e também oremos juntamente com elas,
ensinando-as a orar por si mesmas. Podemos ter a certeza de que
Jesus contemplará com prazer tais esforços de nossa parte, e que
ele haverá de abençoar as criancinhas. Podemos ter a certeza de
que tais esforços não são inúteis. Com frequência, a semente
semeada na infância brota somente após muitos dias. Feliz é a
igreja local cujas crianças recebem tanta atenção quanto os
membros adultos, que participam da plena comunhão! A bênção
daquele que foi crucificado certamente será concedida a qualquer
igreja local que costume agir desse modo! Jesus impôs suas mãos
sobre as criancinhas. E orou em favor delas.
O jovem rico
Leia Mateus 19.16-22

E sses versículos detalham um diálogo que teve lugar entre


nosso Senhor Jesus Cristo e um jovem que se aproximou dele,
a fim de lhe indagar sobre o caminho para a vida eterna. Tal como
toda conversação registrada nos evangelhos, entre nosso Senhor e
alguma pessoa qualquer, essa merece atenção especial. A salvação
é uma questão individual. Todos que desejam ser salvos precisam
entrar em questões particulares com Cristo acerca de suas próprias
almas.
Antes de qualquer coisa, alicerçados no caso desse jovem rico,
percebemos que uma pessoa pode ter o desejo de ser salva e,
mesmo assim, não vir a sê-lo. Ali estava um homem que, em um
período de incredulidade generalizada, veio falar com Cristo por sua
livre vontade. Ele não veio a fim de pedir a cura para alguma pessoa
enferma. Não veio para rogar em favor de alguma criança. Mas veio
para consultar Jesus sobre sua própria alma. Ele iniciou a conversa
com uma pergunta direta e franca: “Mestre, que farei eu de bom
para alcançar a vida eterna?”. Sem dúvida, haveríamos de pensar:
Eis aí um caso promissor. Esse jovem não é algum líder cheio de
preconceitos ou algum fariseu. Antes, é um interessado na salvação
de sua alma. No entanto, ao terminar seu diálogo com o Senhor
Jesus, o jovem rico “retirou-se triste”, e em porção alguma da Bíblia
lemos qualquer informação de que ele jamais se tenha convertido!
Nunca deveríamos perder de vista o fato de que, na religião
cristã, os bons sentimentos, por si sós, não refletem a presença da
graça de Deus. Pois podemos conhecer a verdade apenas
intelectualmente. Com frequência, a consciência nos espicaça.
Afetos religiosos podem ser despertados lá no íntimo, profundas
ansiedades podem brotar, acerca de nossas almas, e até mesmo
podemos derramar muitas lágrimas. Tudo isso, porém, ainda não é
a conversão. Isso não garante que a genuína obra salvadora do
Espírito Santo foi efetuada.
Infelizmente, isso ainda não é tudo que seria possível dizer a
respeito. Não somente os bons sentimentos, por si sós, não refletem
a graça divina, como também podem ser positivamente perigosos se
porventura nos contentarmos com eles e não passarmos dos
sentimentos à ação. Uma profunda observação daquele poderoso
mestre sobre as questões morais, o bispo Butler, é que as
impressões passivas, quando repetidas, frequentemente vão
perdendo aos poucos todo o poder. As ações por muitas vezes
reiteradas produzem apenas um hábito na mente humana. Se
cedermos por múltiplas vezes aos nossos sentimentos, sem nos
deixarmos conduzir à ação correspondente, finalmente não seremos
mais tocados.
Apliquemos essa lição às nossas próprias condições. Talvez
saibamos o que significa ser assaltado por temores, desejos e
anelos religiosos. Cuidemos para nunca depender dessas coisas.
Jamais fiquemos satisfeitos enquanto não contarmos com o
testemunho interior do Espírito, em nossos corações, de que
realmente nascemos de novo e somos novas criaturas. Que não
consigamos descansar enquanto não nos tivermos realmente
arrependido, tendo lançado mão da esperança que nos é proposta
no evangelho. É bom ter sentimentos. Mas é muito melhor
converter-se.
Em seguida, ainda com base no caso daquele jovem rico,
entendemos que as pessoas não convertidas são profundamente
ignorantes sobre os assuntos espirituais. Nosso Senhor fez aquele
jovem inquiridor meditar sobre o padrão eterno do que é certo e do
que é errado: a lei moral. Visto que o jovem havia falado tão
ousadamente em “fazer” algo, Jesus submeteu-o a teste, mediante
um conselho cuja finalidade era sondar o verdadeiro estado de seu
coração: “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os
mandamentos”. Jesus chegou mesmo a relembrar diante dele a
segunda tábua dos mandamentos da lei. Diante da resposta de
Jesus, o jovem retrucou prontamente e com toda a confiança: “Tudo
isso tenho observado; que me falta ainda?”. Tão completamente
ignorante mostrou-se ele no que se refere à profunda espiritualidade
dos estatutos de Deus que jamais duvidou de que os estava
cumprindo com toda a perfeição. Parecia totalmente inconsciente do
fato de que os mandamentos aplicam-se inclusive às palavras e aos
pensamentos do indivíduo, e não somente às suas ações. Portanto,
se Deus tivesse de entrar em juízo com ele, não poderia responder
“nem a uma de mil cousas” (Jó 9.3). Quão entenebrecida devia ser a
mente dele quanto à natureza da lei de Deus! Quão baixas deviam
ser suas ideias no tocante à santidade que Deus exige de nós!
É fato lamentável que uma ignorância parecida com a daquele
jovem seja tão comum entre os membros das igrejas evangélicas.
Existem milhares de pessoas batizadas que não sabem mais a
respeito das doutrinas fundamentais do cristianismo do que os mais
autênticos pagãos. Dezenas de milhares enchem nossos templos e
capelas toda semana, mas estão totalmente às escuras quanto à
verdadeira extensão da pecaminosidade humana. Esses se apegam
obstinadamente à antiga noção de que, de uma maneira ou de
outra, suas próprias obras serão capazes de salvá-los. Dessa forma,
quando os pastores os visitam em seus momentos finais, tais
indivíduos mostram-se tão cegos e ignorantes quanto quem nunca
teve a oportunidade de ouvir a pregação da verdade divina. Por
conseguinte, temos de reconhecer a verdade que estipula: “Ora, o
homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque
lhe são loucura” (1Co 2.14).
Por último, ainda firmados no caso do jovem rico, percebemos
que um ídolo afagado no coração pode arruinar uma alma para
sempre. Nosso Senhor, que sabia o que existe no homem,
finalmente mostrou ao jovem inquiridor qual era seu pecado
arraigado, que ele não queria largar. A mesma voz sondadora que
dissera à mulher samaritana “Vai, chama teu marido e vem cá” (Jo
4.16) disse agora ao jovem rico: “Vai, vende os teus bens, dá aos
pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me”. Isso
desmascarou de pronto o ponto fraco de seu caráter. A realidade
dos fatos era que, a despeito de todos os seus desejos e anelos
pela vida eterna, havia uma coisa que ele amava ainda mais do que
a sua alma, a saber, as riquezas materiais. Isso posto, o jovem rico
não passou na prova. Ele foi pesado na balança e foi achado em
falta. E a narrativa sobre ele termina com estas entristecedoras
palavras: “Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se
triste, por ser dono de muitas propriedades”.
Nesse relato, pois, deparamos com mais uma comprovação
daquela profunda verdade que afirma: “Porque o amor do dinheiro é
raiz de todos os males” (1Tm 6.10). Em nossa maneira de conceber,
devemos colocar esse jovem rico lado a lado com Judas Iscariotes e
com Ananias e Safira, para, em seguida, aprendermos a evitar a
cobiça. Infelizmente, esse é um recife contra o qual milhares de
pessoas naufragam. Dificilmente encontraríamos um ministro do
evangelho que não poderia apontar para muitos membros de sua
congregação e dizer que, humanamente falando, eles “não estão
longe do reino de Deus”. Não obstante, esses nunca parecem fazer
o menor progresso para mais perto do Senhor. Eles desejam. Eles
sentem muito. Eles são sinceros. Eles esperam. Porém, não saem
do lugar onde se encontram! E por quê? Porque apreciam
exageradamente o dinheiro.
Façamos um teste que sonde a nós mesmos, antes de
deixarmos para trás essa passagem. Vejamos de que maneira ela
afeta nossas almas. Somos honestos e sinceros acerca do desejo
que professamos ter, no sentido de sermos crentes verdadeiros?
Temos desistido de todos os nossos ídolos? Não haveria algum
pecado secreto, ao qual continuamos aferrados em silêncio,
recusando-nos a desistir dele? Não haveria alguma coisa, ou
alguém, que estejamos amando em particular mais do que a Cristo
e às nossas próprias almas? Essas são indagações que bradam,
clamando por resposta. A verdadeira explicação sobre o estado
insatisfatório de tão grande número de ouvintes do evangelho é que
eles estão presos à idolatria espiritual. O conselho do apóstolo João
aplica-se bem a eles: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”.
O perigo das riquezas; devemos abandonar tudo
por amor a Cristo
Leia Mateus 19.23-30

A primeira coisa que aprendemos, nesses versículos, é o imenso


perigo que as riquezas representam para a alma de quem as possui.
O Senhor Jesus declarou que “um rico dificilmente entrará no reino
dos céus”. Ele ainda foi mais longe: “É mais fácil passar um camelo
pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”,
recorrendo a um provérbio a fim de reforçar sua afirmação.
De todos os provérbios usados por nosso Senhor, poucos
soam mais surpreendentes do que esse. Poucos vão mais de
encontro às opiniões e aos preconceitos da humanidade. Poucos
são tão pouco cridos. No entanto, essas são palavras verdadeiras e
dignas de aceitação. Riquezas, que todos desejam obter, riquezas
pelas quais os homens labutam e se cansam, envelhecendo antes
do tempo — essas riquezas são uma possessão perigosíssima.
Elas, com frequência, causam grande dano à alma. Elas expõem os
homens a muitas tentações. Elas deturpam os pensamentos e as
afeições dos homens, atando pesados fardos ao coração e tornando
o caminho para o céu ainda mais difícil do que naturalmente é.
Estejamos precavidos contra o amor ao dinheiro. É possível
usar corretamente o dinheiro e fazer o bem com ele. Entretanto,
para cada um que faz uso correto do dinheiro, existem milhares que
fazem mau uso dele e causam dano tanto a si próprios como a
outrem. Que o homem mundano transforme o dinheiro em um ídolo
se quiser, e que até mesmo considere mais feliz quem tem mais
dinheiro! Mas os crentes, entretanto, que dizem possuir “um tesouro
no céu”, volvem o rosto resolutamente contra o espírito mundano a
esse respeito.
Oremos diariamente pelas almas das pessoas ricas. Elas não
devem ser invejadas; devem ser dignas de piedade, porque
carregam fardos pesados em sua caminhada cristã. Dentre todos os
homens, os ricos é que improvavelmente podem correr de maneira
a alcançar o prêmio (1Co 9.24). Em geral, sua prosperidade neste
mundo é sua perdição no mundo vindouro. São palavras muito
apropriadas as da litania da Igreja Anglicana: “Em todo o tempo de
nossa prosperidade, ó bom Senhor, livra-nos”.
A segunda coisa que aprendemos nessa passagem é o poder
soberano da graça de Deus sobre a alma humana. Os discípulos
ficaram perplexos quando ouviram a linguagem de nosso Senhor
acerca dos ricos. Era uma linguagem tão contrária a todos os
conceitos deles sobre as vantagens advindas da riqueza que
exclamaram com surpresa: “Sendo assim, quem pode ser salvo?”. A
resposta foi graciosa e instrutiva: “Isso é impossível aos homens,
mas, para Deus, tudo é possível”.
O Espírito Santo pode levar até os homens mais abastados a
procurar um tesouro no céu. Ele pode fazer com que até mesmo os
reis deponham suas coroas aos pés de Cristo e considerem todas
as coisas como perda, por amor ao reino de Deus. Disso, a Bíblia
nos oferece prova sobre prova. Abraão era muito rico, mas é o pai
dos fiéis. Moisés poderia ter sido um grande príncipe ou governador
no Egito, mas desistiu de todas as suas brilhantes perspectivas por
amor àquele que é invisível. Jó foi o homem mais rico do Oriente e,
mesmo assim, era um servo escolhido de Deus. Davi, Josafá, Josias
e Ezequias foram todos monarcas ricos, mas amaram mais o favor
divino do que as possessões terrenas. Eles nos mostraram que,
para Deus, não há “cousa demasiadamente difícil”, e que a fé pode
desenvolver-se até mesmo no solo mais impróprio.
Apeguemo-nos firmemente a essa doutrina sem jamais largá-
la. A posição e as circunstâncias externas de um homem não o
impedem de entrar no reino de Deus. Nunca nos desesperemos da
salvação de quem quer que seja. Sem dúvida, as pessoas ricas
carecem de uma graça especial e estão sujeitas a muitas tentações
peculiares. Mas o Senhor Deus de Abraão e de Moisés, de Jó e de
Davi, em nada mudou. Ele, que os salvou, a despeito de suas
riquezas, também pode salvar outros. “Agindo eu, quem o
impedirá?” (Is 43.13).
A última coisa que nos é dado a aprender nesses versículos é
o imenso encorajamento que o evangelho dá àqueles que desistem
de tudo por amor a Cristo. Somos informados de que Pedro indagou
ao Senhor o que ele e os demais apóstolos, tendo abandonado todo
o pouco que tinham por causa dele, haveriam de receber em troca.
Ele obteve a mais grata das respostas. Plena recompensa será
dada a todos os que se sacrificam por amor a Cristo. Cada um
“receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna”.
Existe algo bastante animador nessa promessa. Poucos são,
nos dias de hoje, os que são forçados a abandonar lares, parentes e
propriedades por causa da religião. Mesmo assim, são poucos os
fiéis ao seu Senhor que não têm, de uma maneira ou de outra,
passado por dificuldade. O escândalo da cruz ainda não cessou!
Risadas, ridículo, zombarias e perseguição familiar são, muitas
vezes, a porção de um crente. Em geral, ele perde o favor do
mundo. Com frequência, cargos e posições são postos em risco, por
causa de sua fidelidade ao evangelho de Cristo. Mas quem está
exposto a provações desse tipo pode consolar-se com a promessa
contida nesses versículos. Jesus anteviu a necessidade e por isso
deixou essa promessa para nosso consolo.
Podemos ter certeza de que ninguém será um real perdedor se
seguir Jesus Cristo. Pode parecer que o crente sofre desvantagem
por algum tempo, quando inicia sua caminhada de crente decidido.
Ele pode estar muito desanimado pelas aflições que lhe sobrevêm
por causa de sua fé. Mas pode estar certo de que, no longo prazo,
não será perdedor. Cristo pode nos dar amigos que vão mais do que
compensarnos pelos amigos perdidos. Cristo pode abrir corações e
lares para nós, muito mais acolhedores e hospitaleiros do que
aqueles que se fecham contra nós. Acima de tudo, Cristo pode dar-
nos paz de consciência, alegria interior, esperanças brilhantes e
sentimentos de felicidade que ultrapassarão qualquer prazer terreno
que abandonemos por amor a ele. Ele empenhou sua palavra de
Rei, garantindo que assim será. Essa palavra jamais falhou.
Portanto, confiemos e não tenhamos qualquer receio.
A parábola dos trabalhadores na vinha
Leia Mateus 20.1-16

E xistem inegáveis dificuldades na parábola contida nesses


versículos. A chave para explicá-las corretamente deve ser
buscada na passagem com que se encerrou o capítulo anterior. Lá,
encontramos o apóstolo Pedro fazendo uma pergunta importante a
nosso Senhor: “Nós tudo deixamos e te seguimos: que será, pois,
de nós?”. Vimos que Jesus lhe deu uma resposta notável. Ele fez
uma promessa especial a Pedro e aos demais discípulos: um dia,
eles haveriam de se assentar “em doze tronos para julgar as doze
tribos de Israel”. Ele também fez uma promessa geral, dirigida a
todos que sofrem perdas por amor a Cristo. Cada um deles
“receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna”.
Agora devemos lembrar que Pedro era judeu. Assim como a
maioria dos judeus, provavelmente ele fora treinado na quase total
ignorância quanto aos propósitos de Deus para a salvação dos
gentios. De fato, o livro de Atos nos mostra que foi preciso receber
uma visão celestial para que se dissipasse sua ignorância (At
10.28). Mais do que isso, devemos ter em mente o fato de que
Pedro e os outros discípulos eram fracos na fé e no conhecimento.
Provavelmente, eles tendiam a dar grande importância a seus
próprios sacrifícios por amor a Cristo, inclinando-se a atitudes de
justiça própria e presunção. Nosso Senhor conhecia bem todos
esses detalhes. Por isso, essa parábola tem em vista beneficiar
especialmente Pedro e seus companheiros. O Senhor fala daquilo
que estava no coração de seus discípulos. Ele percebeu qual era o
remédio necessário para aqueles corações e o aplicou sem demora.
Em poucas palavras, ele refreou o orgulho crescente em seus
corações, e lhes ensinou humildade.
Na exposição dessa parábola, não precisamos nos ocupar do
significado literal de “denário”, “praça”, “administrador” ou “hora”.
Tais indagações, com frequência, obscurecem o conselho mediante
palavras sem entendimento. Calovius disse, e com razão, que essa
teologia das parábolas não é argumentativa”. A opinião de
Crisóstomo merece nossa atenção. Ele escreveu: “Não é correto
esquadrinhar curiosamente cada palavra e cada minúcia em uma
parábola; devemos apreender o objetivo pelo qual foi composta, e
examiná-lo, e não nos atarefar com qualquer outra coisa”. Duas
lições principais, portanto, parecem sobressair nessa parábola,
abrangendo a finalidade geral de sua mensagem. Contentemo-nos,
pois, em compreender essas duas lições.
Em primeiro lugar, aprendemos que Deus exerce uma graça
livre, soberana e incondicional quando chama o povo que vai
professar seu nome na terra. Ele convoca as famílias da terra para a
comunhão na igreja visível, no tempo e da maneira que ele mesmo
escolhe.
Vemos essa verdade maravilhosamente ilustrada na história do
relacionamento de Deus com a humanidade. Vemos os filhos de
Israel sendo chamados e escolhidos para ser o povo de Deus já nos
primórdios da história. Posteriormente, muitos gentios foram
chamados pela pregação dos apóstolos. Nos dias de hoje, vemos
outros povos sendo alcançados mediante o labor dos missionários.
Ainda vemos, porém, muitos outros, como os chineses e hindus,
que continuam “desocupados”, porque ninguém os contratou. E qual
é a razão de tudo isso? Não sabemos. O que sabemos é que Deus
gosta de afastar da igreja o orgulho, não lhe dando ocasião para
jactância. Ele nunca permitirá que os ramos mais antigos de sua
igreja olhem com desdém para os ramos mais recentes. Hoje o
evangelho oferece o perdão e a paz com Deus, por meio de Jesus
Cristo, aos pagãos tanto quanto, em sua época, ao apóstolo Paulo.
Neste século, os convertidos das regiões distantes serão tão
plenamente admitidos no céu quanto o mais santo dos patriarcas,
que viveu há três mil e quinhentos anos. A antiga parede de
separação entre judeus e gentios foi derrubada. Não há nada que
impeça os pagãos crentes de ser, com os judeus crentes,
“coerdeiros [...] e coparticipantes da promessa em Cristo” (Ef 3.6).
Os gentios que se converterem na “hora undécima” serão
igualmente herdeiros da glória, tão legítimos quanto os judeus. Eles
se assentarão juntamente com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos
céus, enquanto muitos dos filhos do reino serão rejeitados. De fato,
“os últimos serão os primeiros”.
Em segundo lugar, aprendemos que, na salvação de pessoas,
como no chamamento das nações, Deus é Soberano e não presta
contas de seus atos. Ele tem misericórdia de quem lhe agrada ter
misericórdia, e isso também no tempo por ele mesmo determinado
(Rm 9.15).
Essa é uma verdade que vemos ilustrada em toda parte na
Igreja de Cristo, na experiência prática. Vemos um homem que é
chamado ao arrependimento e à fé ainda na infância, como
Timóteo, e que trabalha na vinha do Senhor por quarenta ou
cinquenta anos. Vemos outro homem que é chamado à “hora
undécima”, como o ladrão na cruz, salvo como um tição arrebatado
do fogo — um dia, um pecador endurecido e impenitente; no dia
seguinte, alguém que está no paraíso. Mesmo assim, o evangelho
nos permite crer que esses dois homens estão perdoados diante de
Deus. Ambos são igualmente lavados no sangue de Cristo e
revestidos da justiça de Cristo. Ambos estão igualmente justificados,
ambos são aceitos e ambos estarão à direita de Cristo no último dia.
Não há dúvida de que essa doutrina soa muito estranha aos
ouvidos do cristão ainda ignorante e inexperiente. Ela confunde o
orgulho da natureza humana. Ela não permite que o homem se
vanglorie em justiça própria. É uma doutrina rebaixadora e
niveladora, e pode suscitar muita murmuração. Mas é impossível
rejeitá-la, a menos que rejeitemos toda a Bíblia. A verdadeira fé em
Cristo, mesmo que só tenha um dia de idade, já justifica o homem
diante de Deus, tão completamente quanto a fé verdadeira de quem
tem seguido Cristo por cinquenta anos. A justiça com que Timóteo
se apresentará no dia do juízo é a mesma com que se apresentará
aquele ladrão que morreu na cruz ao lado de Jesus. Ambos serão
salvos exclusivamente pela graça, e ambos deverão tudo a Cristo.
Podemos não gostar disso, mas assim é a doutrina ensinada nessa
parábola; e não somente nessa parábola, mas em todo o Novo
Testamento. Feliz é quem recebe essa doutrina com humildade no
coração! Com razão, comentou o bispo Hall: “Se alguns têm motivos
para magnificar a generosidade de Deus, ninguém tem, por isso,
motivos para se queixar”.
Antes de passarmos adiante, armemo-nos de algumas
precauções que se fazem necessárias. Essa é uma porção das
Escrituras que tem sido, com frequência, pervertida e aplicada
erroneamente. Muitas vezes, os homens têm extraído dela algo que
não é leite, mas, sim, veneno.
Cuidemos de jamais supor, por algum detalhe dessa parábola,
que a salvação possa, em qualquer sentido, ser obtida mediante
boas obras. Supor algo assim é lançar por terra todo o ensinamento
bíblico. Tudo o que um crente receber no mundo vindouro será pela
graça, e não por dívida. Deus nunca está em dívida conosco, em
hipótese alguma. Mesmo depois de havermos feito tudo,
continuamos a ser servos inúteis (Lc 17.10).
Tomemos a precaução de não supor, refletindo sobre essa
parábola, que a distinção entre judeus e gentios tenha sido
inteiramente anulada pelo evangelho. Supor algo assim seria
contradizer muitas profecias inequívocas, tanto do Antigo
Testamento como no Novo Testamento. No tocante à justificação,
não há diferença entre crente judeu e crente gentio. No entanto,
Israel continua a ser um povo especial, e “não será reputado entre
as nações” (Nm 23.9). Deus ainda tem muitos propósitos
concernentes aos judeus, e que ainda estão por se cumprir.
Tenhamos o cuidado de não supor que todos os salvos
receberão idêntico peso de glória. Tal suposição contradiz muitos
textos claros das Escrituras. A propriedade comum de todos os
crentes é, sem dúvida, a justiça perfeita de Cristo. Mas nem todos
terão a mesma posição no céu. “Cada um receberá o seu galardão,
segundo o seu próprio trabalho” (1Co 3.8).
Finalmente, tenhamos o cuidado de não supor, com base
nessa parábola, que é seguro adiar o arrependimento para os
últimos anos da vida. Esse pensamento é uma ilusão das mais
perigosas. Quanto mais os homens se demoram em obedecer à voz
de Cristo, menor a probabilidade de vir a ser salvos. “Eis agora o
tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2Co 6.2).
Pouquíssimas pessoas são salvas no leito de morte. Um dos
ladrões sobre a cruz foi salvo para que ninguém se desesperasse
da salvação; mas somente um, para que ninguém tenha presunção.
Uma falsa confiança nas palavras “hora undécima” tem arruinado
milhares de almas.
Cristo anuncia sua morte, que se aproxima; o
misto de ignorância e fé nos verdadeiros
discípulos
Leia Mateus 20.17-23

A primeira coisa que nos convém observar nesses versículos é o


claro anúncio que o Senhor Jesus Cristo faz acerca de sua própria
morte, que se aproxima. Pela terceira vez, nós o encontramos
fazendo a seus discípulos a espantosa revelação de que ele, o
Mestre, operador de maravilhas, em breve terá de sofrer e morrer.
O Senhor Jesus sabia, desde o princípio, tudo o que o
aguardava. A traição de Judas Iscariotes, a feroz perseguição
movida pelos principais sacerdotes e escribas, o julgamento injusto,
sua entrega a Pilatos, as zombarias, os açoites, a coroa de
espinhos, a cruz, o fato de ter de ficar pendurado entre dois
malfeitores, os cravos, a ponta da lança — Jesus contemplava tudo
isso em sua mente como se fosse um retrato.
O conhecimento prévio agrava em muito os sofrimentos de
uma pessoa, conforme tão bem sabem aqueles que estão na
expectativa de uma intervenção cirúrgica perigosa. Mas nada disso
conseguiu abalar nosso Senhor. Ele diz: “Eu não fui rebelde, não me
retraí. Ofereci as costas aos que me feriam, e as faces aos que me
arrancavam os cabelos; não escondi o meu rosto dos que me
afrontavam e me cuspiam” (Is 50.5-6). Durante toda a vida, Jesus
contemplou o Calvário a distância, e, mesmo assim, caminhou
tranquilamente até ele, sem se desviar nem para a direita nem para
a esquerda. Certamente, jamais houve tristeza como a dele, ou
amor como o dele.
O Senhor Jesus foi um sofredor voluntário. Quando morreu na
cruz, não foi porque não tivesse o poder para evitar isso. Ele sofreu
propositalmente, por sua livre vontade (Jo 10.18). Ele sabia que,
sem o derramamento de seu sangue, não poderia haver remissão
dos pecados do homem. Ele tinha consciência de ser o Cordeiro de
Deus, que precisava morrer para tirar o pecado do mundo. Ele sabia
que sua morte era o sacrifício predeterminado, que tinha de ser
oferecido para fazer expiação pela iniquidade. E, mesmo sabendo
de tudo isso, ele caminhou voluntariamente até à cruz. Seu coração
estava decidido a cumprir a grandiosa obra que viera realizar neste
mundo. Ele tinha plena consciência de que tudo dependia de sua
própria morte, e que, sem ela, seus milagres e sua pregação nada
teriam feito, comparativamente, por este mundo. Não admira, pois,
que três vezes ele chamasse a atenção de seus discípulos para a
necessidade de sua morte. Bem-aventurados e felizes são os que
reconhecem o real significado e a importância dos sofrimentos de
Cristo!
A próxima coisa que deveríamos perceber nesses versículos é
o misto de ignorância e fé, que pode ser encontrado até mesmo nos
crentes mais bem-intencionados. Vemos a mãe de Tiago e João
aproximando-se de nosso Senhor com seus dois filhos e
apresentando em favor deles uma estranha petição. Ela pede que,
“no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e
o outro à tua esquerda”. Ela parece ter esquecido tudo que, havia
pouco, Jesus dissera sobre seus sofrimentos. A mente ambiciosa
dela só podia pensar na glória de Jesus. Os avisos claros de sua
crucificação também não foram acolhidos por seus filhos. Eles não
conseguiam pensar noutra coisa, senão no trono de Cristo e em seu
poder. Havia muita fé, da parte deles, nesse pedido, mas havia
também muita debilidade. Havia algo de elogiável no fato de que
eles podiam ver em Jesus de Nazaré um futuro rei. Mas era culpável
o fato de se terem esquecido de que ele deveria ser crucificado
antes que pudesse reinar. Verdadeiramente, a carne milita contra o
Espírito em todos os filhos de Deus. Com razão, pois, observou
Lutero: “A carne sempre procura ser glorificada, antes de ser
crucificada”.
Existem muitos crentes que se assemelham a essa mulher e
seus filhos. Eles veem em parte e conhecem em parte as coisas de
Deus. Têm fé suficiente para seguir a Cristo. Têm conhecimento
suficiente para odiar o pecado e deixar o mundo. Mesmo assim, há
muitas verdades do cristianismo que eles, lamentavelmente,
ignoram. Eles falam com ignorância, agem em ignorância e
cometem muitos e tristes equívocos. Eles conhecem as Escrituras
Sagradas apenas superficialmente, e o discernimento que têm,
quanto aos seus próprios corações, é muito pequeno. No entanto,
com base nesses versículos, devemos aprender a tratar gentilmente
essas pessoas, porquanto o Senhor as recebeu para si. Não
devemos considerá-las ímpias e destituídas da graça divina,
somente por causa de sua ignorância. Lembremo-nos de que pode
haver a verdadeira fé no fundo do coração, mesmo que haja tanto
entulho encobrindo-a. Precisamos refletir sobre o fato de que os
filhos de Zebedeu, cujo conhecimento era tão imperfeito a princípio,
mais tarde se tornaram colunas da Igreja de Cristo. Da mesma
forma, um homem pode começar sua carreira em meio a muita
ignorância e, mesmo assim, pode finalmente vir a se tornar um
homem poderoso nas Escrituras, um seguidor digno do exemplo de
Tiago e João.
Nesses versículos, a última coisa que deveríamos observar é a
solene reprovação com que nosso Senhor responde ao pedido da
mulher de Zebedeu e de seus dois filhos. O Senhor Jesus disse:
“Não sabeis o que pedis”. Eles haviam pedido para participar da
recompensa de seu Senhor; porém, não haviam considerado que
primeiro teriam de participar dos sofrimentos de seu Senhor (1Pe
4.13). Tinham-se esquecido de que os que querem estar em pé,
com Cristo na glória, precisam beber de seu cálice e ser batizados
em seus sofrimentos. Eles não compreendiam que só aqueles que
levam a cruz (e somente esses) receberão a coroa. Portanto, foi
com muita razão que nosso Senhor disse: “Não sabeis o que pedis”.
Mas, porventura, será que nós mesmos nunca incorremos
nesse equívoco? Nunca caímos no mesmo erro, fazendo pedidos
impensados e imprudentes? Não é verdade que, com frequência,
dizemos coisas em nossas orações sem antes “calcular o custo”, e
pedimos coisas sem antes refletir sobre tudo o que nossas petições
envolvem? Essas são perguntas que nos perscrutam o coração. É
de temer que muitos de nós não possam dar as respostas
satisfatórias.
Pedimos que nossa alma seja salva e vá para o céu quando
morrermos. Sem dúvida, esse é um bom pedido. Entretanto,
estamos preparados para tomar nossa cruz e seguir a Cristo?
Estamos dispostos a desistir do mundo por amor a Cristo? Estamos
preparados para nos despir do velho homem, revestindo-nos do
novo — a lutar, trabalhar e correr de modo a alcançar esse alvo?
(1Co 9.24). Estamos dispostos a suportar toda zombaria do mundo
e a padecer de dificuldades por amor à causa de Cristo? O que
diremos? Se não estamos assim preparados, nosso Senhor poderá
dizer a nós também: “Não sabeis o que pedis”.
Pedimos que Deus nos torne santos e bondosos. Esse, de fato,
é um bom pedido. Todavia, estamos preparados para ser
santificados mediante qualquer processo que o Senhor Deus, em
sua sabedoria, nos convoque a passar? Estamos prontos para ser
purificados por meio da aflição, para nos desapegar do mundo
mediante privações e para ser trazidos para mais perto de Deus
mediante perdas, enfermidades e tristezas? Ah! Essas são questões
difíceis. Se não estamos prontos para tudo isso, nosso Senhor bem
poderá dizer-nos: “Não sabeis o que pedis”.
Por fim, tomemos a solene resolução de considerar
atentamente o que estamos fazendo quando nos aproximamos de
Deus em oração. Procuremos evitar petições impensadas,
precipitadas, sobre as quais ainda não tenhamos considerado o
suficiente. Foi com muita razão que Salomão deixou registrado:
“Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a
pronunciar palavra alguma diante de Deus” (Ec 5.2).
O verdadeiro padrão de grandeza entre os
crentes
Leia Mateus 20.24-28

E sses versos são poucos em número, mas contêm lições de


grande importância para todos os verdadeiros cristãos.
Vejamos em que consistem.
Em primeiro lugar, aprendemos que, mesmo entre os
verdadeiros discípulos de Jesus, pode haver orgulho, ciúme e amor
à preeminência. O que as Escrituras dizem? “Ora, ouvindo isto os
dez, indignaram-se contra os dois irmãos.”
O orgulho é um dos mais antigos e mais danosos pecados da
humanidade. Foi por orgulho que os anjos caíram, pois “não
guardaram o seu estado original” (Jd 6). Foi por meio do orgulho
que Adão e Eva foram seduzidos a comer do fruto proibido. Eles
não estavam contentes com seu destino e pensaram que podiam
ser como Deus. O orgulho é o causador dos maiores danos sofridos
pelos santos de Deus depois da conversão. Hooker, com razão,
disse que “o orgulho é um vício que se apega tão teimosamente ao
coração humano que, se tivéssemos de nos desfazer de todas as
nossas faltas, uma a uma, sem dúvida descobriríamos que essa
seria a última e mais difícil de todas as faltas a “eliminar”. O bispo
Hall fez uma declaração curiosa, mas verdadeira: “O orgulho é a
vestimenta mais íntima, da qual nos despimos por último e que
vestimos primeiro”.
Em segundo lugar, aprendemos que uma vida de autonegação
e gentileza para com outrem é o verdadeiro segredo da grandeza no
reino de Cristo: “Quem quiser tornar-se grande entre vós será esse
o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, esse será
vosso servo”.
Os padrões deste mundo e os critérios do Senhor Jesus Cristo
são, de fato, muito diferentes. São mais do que diferentes; são
diametralmente opostos. Entre os filhos deste mundo, considera-se
grande aquele que tem mais terras, mais dinheiro, maior número de
servos, maior posição social e maior poder. Entre os filhos de Deus,
maior é quem mais faz a fim de promover a felicidade espiritual e
temporal de seus semelhantes. A verdadeira grandeza consiste não
em receber, mas em dar. Não consiste na aquisição egoísta de
bens, mas, sim, em conferir coisas boas aos semelhantes. Não em
sermos servidos, mas em servirmos. Não em nos assentarmos
enquanto outros ministram às nossas necessidades, mas em
sairmos para ministrar às necessidades alheias.
Os anjos percebem maior beleza no trabalho dos missionários
do que no trabalho de quem procura ouro numa região distante.
Eles se interessam muito mais pelos labores de homens como
Judson e Carey do que pelas vitórias dos generais, pelos discursos
dos políticos ou pelas decisões dos ministros de Estado. Lembremo-
nos disso! Tenhamos o cuidado de não procurar a falsa grandeza.
Que o nosso alvo seja somente aquilo que é verdadeiro! Podemos
saber com certeza que há profunda sabedoria nas palavras de
Jesus: “Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35).
Em terceiro lugar, aprendemos que o Senhor Jesus foi posto
como exemplo de todos os verdadeiros cristãos. O que as Escrituras
dizem? Deveríamos servir uns aos outros, “tal como o Filho do
homem, que não veio para ser servido, mas para servir”.
O Senhor Deus tem providenciado, misericordiosamente, tudo
que é necessário para a santificação de seu povo. Ele tem dado
preceitos claríssimos para os que seguem a santidade, bem como
os melhores motivos e as promessas mais encorajadoras. Isso,
porém, ainda não é tudo. Deus nos supriu com o exemplo e o
padrão mais perfeitos: a vida de seu próprio Filho. Ele nos manda
amoldar nossa vida de acordo com a vida de Jesus Cristo. Ele nos
manda caminhar, seguindo os passos de Cristo (1Pe 2.21). A vida
de Cristo é o modelo segundo o qual devemos esforçar-nos para
moldar nosso temperamento, nossas palavras e atitudes neste
mundo maligno. Meu Senhor teria falado comigo dessa maneira?
Meu Mestre teria agido desse modo? Essas são perguntas que
deveríamos fazer a nós mesmos diariamente.Quão humilhadora é,
para nós, essa verdade! Quanto exame de coração nos invoca a
fazer! Quão insistente é o chamamento para nos desembaraçarmos
“de todo peso, e do pecado que tenazmente nos assedia”! Quão
exemplares devem ser os que professam imitar Cristo! Que inútil é a
religião que leva um homem a se contentar com palavras vazias,
enquanto, em sua vida, não há pureza nem santidade! Que pena!
Aqueles que desconhecem Cristo como exemplo finalmente
descobrirão que também ele não os conhece como o povo que
salvou! “Aquele que diz que permanece nele, esse deve também
andar assim como ele andou” (1Jo 2.6).
Finalmente, aprendemos, nesses versículos, que a morte de
Cristo foi uma expiação pelo pecado. O que as Escrituras dizem?
Jesus Cristo veio para “dar a sua vida em resgate por muitos”.
Essa é a verdade mais poderosa na Bíblia. Cuidemos de nos
apegar firmemente a ela, sem jamais largá-la. Nosso Senhor Jesus
Cristo não morreu simplesmente como um mártir ou um exemplo
esplêndido de autossacrifício e negação de si mesmo. Quem não
pode ver mais do que isso na morte dele está muito aquém da
verdade. Esses perdem de vista a própria pedra fundamental do
cristianismo e deixam de receber a plena consolação do evangelho.
A morte de Cristo foi um sacrifício pelo pecado do homem. Ele
morreu para fazer expiação pela iniquidade do homem e expurgar
nossos pecados mediante a oferta de si mesmo. Ele morreu para
nos redimir da maldição que todos nós merecemos e para satisfazer
a justiça de Deus, que, se não fosse pela morte de Cristo, nos teria
condenado. Nunca nos esqueçamos disso!
Todos nós somos devedores por natureza. Devemos ao nosso
santo Criador dez mil talentos, e não somos capazes de pagar essa
dívida. Não podemos fazer expiação por nossas próprias
transgressões, visto que somos fracos e incapazes, e só
aumentamos, a cada dia que passa, nossa dívida insolúvel. Mas
bendito seja Deus! Aquilo que não podíamos fazer, Cristo fez por
nós quando veio a este mundo. Aquilo que não podíamos pagar,
Jesus pagou por nós total e cabalmente, ao morrer na cruz do
Calvário. Ele “a si mesmo se ofereceu” a Deus (Hb 9.14). “Cristo
morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para
conduzir-vos a Deus” (1Pe 3.18). Novamente, jamais nos
esqueçamos desse fato!
Não deixemos esses versículos sem perguntar a nós mesmos:
“Onde está nossa humildade? Qual é nossa ideia da verdadeira
grandeza pessoal? Qual exemplo estamos dando ao próximo? Qual
é a nossa esperança? A vida, a vida eterna, depende das respostas
que damos a essas indagações. Feliz é a pessoa verdadeiramente
humilde, que se esforça para praticar o bem, que caminha nos
passos de Jesus e confia inteiramente no resgate pago mediante o
sangue de Cristo. Assim é um verdadeiro crente!
A cura de dois cegos
Leia Mateus 20.29-34

N esses versículos, encontramos o quadro de um acontecimento


na vida de Cristo. Ele cura dois cegos que estavam assentados
à beira do caminho, perto de Jericó. As circunstâncias dessa
ocorrência contêm lições de profundo interesse, que todos os
crentes fariam bem em relembrar.
Antes de tudo, observemos que é possível encontrar muita fé
onde, às vezes, menos esperamos encontrar. Embora cegos,
aqueles dois homens acreditavam que Jesus tinha poder para
ajudá-los. Eles nunca tinham testemunhado qualquer dos milagres
de nosso Senhor. Conheciam-no somente de ouvir falar, e não
pessoalmente. Não obstante, tão logo ouviram que ele estava
passando, clamaram: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de
nós!”.
Tamanha fé bem pode servir para nos envergonhar. Mesmo
com todos os nossos livros de evidências, biografias de santos e
bibliotecas de teologia, pouquíssimos conhecem algo daquela
confiança simples como a de uma criança na misericórdia de Cristo
e no poder de Cristo! Até mesmo entre os crentes, com frequência o
grau da fé é estranhamente desproporcional aos privilégios
usufruídos. Muitas vezes, um homem inculto, que só pode ler seu
Novo Testamento com dificuldade, tem um espírito de resoluta
confiança na advocacia de Cristo, ao passo que teólogos que já
estudaram muito se veem assediados por dúvidas e
questionamentos. Os que, humanamente falando, deveriam ser os
primeiros muitas vezes são os últimos; e os últimos são os
primeiros.
Em seguida, notemos a sabedoria em aproveitar cada
oportunidade para o bem de nossa alma. Esses dois cegos estavam
“assentados à beira do caminho”. Se lá não estivessem,
provavelmente jamais teriam sido curados. Jesus nunca mais voltou
a Jericó, e eles jamais poderiam ter-se encontrado novamente com
ele.
Nesse fato tão simples, vemos a importância da diligência no
uso dos meios da graça. Nunca deveríamos negligenciar a casa de
Deus, nem deixar de nos reunir com o povo de Deus, tampouco
omitir a leitura da Bíblia ou abandonar a prática da oração individual.
Essas coisas, sem dúvida, não podem salvar-nos sem a atuação da
graça do Espírito Santo. Muitíssimos fazem uso disso, mas
permanecem mortos em delitos e pecados. Porém, é mediante o
uso desses meios de graça que as almas são convertidas e salvas.
Eles são os caminhos em que o Senhor Jesus anda. Os que se
assentam “à beira do caminho” são os que provavelmente serão
curados. Conhecemos as enfermidades de nossa alma? Temos
algum desejo de consultar o grande Médico? Em caso positivo, não
deveríamos esperar em inatividade, dizendo: “Se eu tiver de ser
salvo, serei salvo de qualquer maneira”. Pelo contrário, devemos
levantar-nos e ir para a estrada por onde Jesus passa. Quem pode
saber se logo não será a última vez que ele estará passando por
aqui? Assentemo-nos diariamente à beira do caminho.
Em terceiro lugar, observemos o valor do esforço e da
perseverança na busca por Cristo. Os dois cegos foram
repreendidos pela multidão que acompanhava nosso Senhor.
Disseram-lhes que se calassem, mas isso não seria suficiente para
silenciá-los. Eles sentiam quanto precisavam de ajuda. Em nada se
importaram com a reprovação recebida, pois “gritavam cada vez
mais: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós!”.
Nisso temos um exemplo sumamente importante. Não
devemos nos deixar deter pela oposição, nem ficar desencorajados
pelas dificuldades quando passamos a buscar a salvação de nossa
alma. Devemos “orar sempre e nunca esmorecer” (Lc 18.1).
Devemos recordar a parábola da viúva importuna, e a parábola do
homem que foi à casa do amigo à meia-noite, a fim de conseguir
pão emprestado. É dessa maneira que devemos insistir em nossas
preces diante do trono da graça, dizendo: “Não te deixarei ir se me
não abençoares” (Gn 32.26). Amigos, parentes e vizinhos podem
mesmo dizer coisas indelicadas e reprovar nosso zelo intenso.
Podemos até encontrar frieza e falta de simpatia no lugar em que
fomos procurar ajuda. Entretanto, que nada disso nos abale. Se
sentimos nossas enfermidades e desejamos ver Jesus, o grande
Médico; se conhecemos nossos pecados e queremos que ele nos
perdoe, então prossigamos. “O reino dos céus é tomado por
esforço, e os que se esforçam se apoderam dele” (Mt 11.12).
Finalmente, destaquemos quão gracioso o Senhor Jesus é
para com aqueles que o buscam. Parando Jesus, chamou-os. Ele,
gentilmente, perguntou o que desejavam, escutou a petição e fez o
que lhe pediram. “Condoído, Jesus tocou-lhes os olhos e,
imediatamente, recuperaram a vista.”
Deparamos aqui com uma ilustração daquela antiga verdade, a
misericórdia de Cristo para com os filhos dos homens, a qual nunca
podemos conhecer em sua plenitude. O Senhor Jesus não é apenas
um Salvador poderoso; ele também é misericordioso, gentil e
bondoso, e em um grau que vai além de nossa compreensão. Como
o apóstolo Paulo bem disse: “O amor de Cristo, que excede todo o
entendimento” (Ef 3.19). Assim como ele, oremos para conhecer
mais desse amor. Precisamos do amor de Cristo quando
principiamos na carreira cristã, penitentes temorosos e bebês na
graça divina. Precisamos desse amor, daí em diante, enquanto
seguimos pelo caminho estreito, muitas vezes errando, com
frequência tropeçando e nos sentindo desencorajados. Já no fim da
vida, ainda precisaremos desse amor, ao passarmos pelo vale da
sombra da morte. Por conseguinte, apeguemo-nos firmemente ao
amor de Cristo; seja esse amor nossa meditação diária. Até
despertarmos, já no outro mundo, nunca saberemos realmente
quanto devemos ao amor de Cristo.
A entrada triunfal em Jerusalém
Leia Mateus 21.1-11

E sses versículos narram um momento muito importante na vida


de nosso Senhor Jesus Cristo: sua entrada pública em
Jerusalém, pela última vez antes de ser crucificado.
Há algo de peculiarmente notável nesse incidente na história
de nosso Senhor. A narrativa é como a descrição do retorno de um
conquistador real à sua própria cidade. Multidões o acompanham,
formando uma espécie de procissão triunfal. Altos clamores e
expressões de louvor são ouvidos ao redor de Jesus. “Toda a cidade
se alvoroçou.” O episódio inteiro é totalmente diferente do curso
anterior da vida de nosso Senhor. Do princípio ao fim, foi
curiosamente diferente do que era comum àquele sobre quem
estava escrito: “Não clamará nem gritará, nem fará ouvir a sua voz
na praça” (Is 42.2). Aquele que, em outras ocasiões, se ausentava
da multidão, e que dizia aos que por ele eram curados: “Olha, não
digas nada a ninguém” (Mc 1.44). No entanto, todo esse
acontecimento admite uma explicação. Não é difícil detectar os
motivos dessa entrada pública e triunfal. Vejamos quais são.
Na verdade, nosso Senhor sabia bem que o tempo de seu
ministério terreno estava prestes a acabar. Ele sabia que já se
aproximava a hora em que deveria concluir a poderosa obra que
viera realizar, morrendo na cruz por nossos pecados. Ele sabia que
suas andanças estavam terminadas e que, para completar seu
ministério terreno, só lhe restava ser oferecido como sacrifício sobre
o Calvário. Sabendo de tudo isso, Jesus não mais procurou manter
segredo, como anteriormente. Sabendo de tudo isso, ele houve por
bem entrar pública e solenemente no lugar em que seria entregue à
morte. Não convinha que o Cordeiro de Deus viesse secretamente e
em silêncio, para ser morto no Calvário. Antes que fosse oferecido o
grande sacrifício pelos pecados do mundo, era correto que todos os
olhos contemplassem a vítima. Convinha que o ato mais importante
na vida de nosso Senhor fosse concretizado com tanta notoriedade
quanto possível. Por isso Jesus fez sua entrada triunfal. Por isso ele
atraiu para si os olhos admirados de toda a multidão. Por isso toda a
Jerusalém se alvoroçou. O sangue expiatório do Cordeiro de Deus
estava prestes a ser derramado. E esse sacrifício não devia ser feito
em segredo, “nalgum recanto” (At 26.26).
É bom relembrar essas coisas. O real significado da conduta de
nosso Senhor, nesse período, não é considerado suficientemente
por muitos que leem essa passagem. Devemos considerar as lições
práticas para as quais esses versículos parecem apontar.
Em primeiro lugar, temos um exemplo do conhecimento perfeito
de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele enviou dois de seus discípulos a
uma aldeia, e disse-lhes que lá encontrariam o jumentinho no qual
ele haveria de montar. Ele lhes deu uma palavra para falar aos
donos do animal; e, por causa dessa palavra, o jumentinho lhe seria
enviado. E tudo aconteceu exatamente como Jesus predissera.
Coisa alguma está escondida dos olhos de nosso Senhor. Para
ele, não há segredos. A sós ou acompanhados, de dia ou de noite,
em particular ou em público, Jesus tem conhecimento de todos os
nossos caminhos. Ele, que viu Natanael sob a figueira, em nada
mudou. Não importa o lugar, por mais que nos retiremos da
sociedade humana, jamais estaremos longe dos olhos de Jesus
Cristo.
Esse é um pensamento que deveria exercer um efeito refreador
e santificador em nossa alma. Todos sabemos da influência que a
presença dos governantes tem sobre os cidadãos deste mundo. A
própria natureza nos ensina a refrear nossa língua e nosso
comportamento quando estamos diante de um rei. O senso do
perfeito conhecimento que nosso Senhor Jesus Cristo tem, de tudo
que fazemos, deveria surtir o mesmo efeito em nossos corações.
Que nada façamos que não gostaríamos que Cristo visse, e que
nada digamos que não gostaríamos que Cristo ouvisse! Procuremos
viver e conduzir-nos de modo a nos lembrarmos continuamente da
presença de Cristo. Que nos comportemos da mesma forma que
faríamos se tivéssemos caminhado com Cristo na companhia de
Tiago e João, junto ao mar da Galileia. Esse é o modo de sermos
treinados para o céu. No céu, “estaremos para sempre com o
Senhor” (1Ts 4.17).
Em segundo lugar, temos um exemplo da maneira como as
profecias sobre a primeira vinda de nosso Senhor foram cumpridas.
Somos informados de que essa entrada triunfal cumpria a predição
de Zacarias: “Eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde,
montado em jumento” (Zc 9.9).
Parece que essa predição teve cumprimento literal e exato. As
palavras que o profeta falou mediante o Espírito Santo não tiveram
cumprimento figurado. Tal como ele disse, assim mesmo aconteceu.
Conforme ele predissera, assim foi feito. Quinhentos e cinquenta
anos se haviam passado desde que a predição foi feita e, quando
chegou o tempo determinado, o Messias desde há muito prometido,
literalmente entrou em Sião montado em um jumentinho. Entretanto,
não há que se duvidar de que a maioria dos habitantes de
Jerusalém nada percebeu nessa circunstância. O véu estava posto
sobre o coração deles. Nós, porém, não somos deixados em dúvida
no que diz respeito ao cumprimento dessa profecia. É-nos dito
claramente, que “isso aconteceu para se cumprir o que foi dito, por
intermédio do profeta”.
Ao verificar o cumprimento da palavra de Deus em tempos
passados, sem dúvida cumpre-nos formar uma ideia sobre como
será o cumprimento das profecias futuras. Podemos esperar que as
profecias acerca da segunda vinda de Cristo sejam cumpridas tão
literalmente quanto foram as profecias do primeiro advento. Em sua
primeira vinda, Jesus veio a este mundo em pessoa, literalmente.
Na segunda vez, ele virá em pessoa, literalmente. Na primeira, ele
veio em humilhação, literalmente para sofrer. Na segunda vez, ele
virá em glória, literalmente para reinar. Cada predição a respeito das
coisas que acompanharam o primeiro advento teve cumprimento
literal. O mesmo sucederá quando ele voltar a este mundo. Tudo
que foi predito sobre a restauração dos judeus, sobre o julgamento
dos ímpios, sobre a incredulidade do mundo e o agrupamento dos
eleitos, tudo isso se cumprirá à risca. Nunca nos esqueçamos disso!
No estudo das profecias que ainda não se cumpriram, é de suma
importância ter um princípio fixo de interpretação.
Finalmente, observemos nesses versículos uma notável
demonstração de que o favor humano não tem valor algum. Dentre
toda a multidão que cercava o Senhor Jesus quando ele entrou em
Jerusalém, ninguém ficou ao lado dele quando foi entregue nas
mãos de homens iníquos. Muitos gritaram “Hosana!” e, quatro dias
mais tarde, “Fora! Fora! Crucifica-o!” (Jo 19.15).
Mas esse é um retrato fiel da natureza humana. É uma prova
da tamanha insensatez que é dar maior valor ao louvor do homem
do que ao louvor que vem de Deus. Na verdade, coisa alguma é tão
inconstante e incerta quanto a popularidade. Ela está aqui hoje, mas
amanhã já terá desaparecido. A popularidade é como um alicerce
sobre a areia, que certamente transformará quem sobre ela
construir. Que não façamos caso dela. Pelo contrário, busquemos o
favor daquele que “ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre”
(Hb 13.8). Jesus nunca muda. Ele amará até o fim aqueles a quem
ama. Seu favor perdura para sempre.
Expulsão dos vendilhões do templo; a figueira
infrutífera
Leia Mateus 21.12-22

T emos, nesses versículos, um relato de dois acontecimentos


notáveis na história de nosso Senhor. Em ambos os casos,
havia algo de eminentemente simbólico e típico. Cada um deles é
uma figura de realidades espirituais. Sob a superfície, estão lições
de solene instrução.
O primeiro acontecimento que requer nossa atenção é a visita
de nosso Senhor ao templo. Ele encontrou a casa de seu Pai em
uma condição que verdadeiramente retratava a condição geral da
igreja judaica: tudo fora de ordem e fora de curso. Ele viu os átrios
daquele edifício sagrado sendo desgraçadamente profanados por
transações mundanas. O comércio de compra e venda estava
acontecendo dentro das próprias muralhas do templo. Lá estavam
os vendedores, prontos para suprir os judeus que vinham de países
distantes com qualquer sacrifício que desejassem oferecer. Lá
estavam os cambistas, prontos para trocar o dinheiro estrangeiro
por moeda corrente da nação. Bois, ovelhas, cabras e pombas
estavam lá expostos, como se o lugar fosse um mercado. Era
possível ouvir o tilintar das moedas, como se aqueles átrios
sagrados fossem um banco ou uma casa de câmbio. Assim foram
as cenas vistas pelos olhos do Senhor. Jesus contemplou tudo
aquilo com santa indignação. “Expulsou a todos os que ali vendiam
e compravam; também derrubou as mesas dos cambistas”. Não
houve resistência, porquanto sabiam que ele estava certo. Também
não houve objeção, pois todos sentiam que ele estava apenas
reformando um abuso notório, que tinha sido aviltantemente
permitido por amor ao lucro. Jesus teve boas razões para dizer aos
mercadores espantados enquanto fugiam: “Está escrito: minha casa
será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil
de salteadores”.
Nessa ocasião, deveríamos detectar, na conduta de nosso
Senhor, um notável exemplo do que ele fará quando vier pela
segunda vez. Ele vai purificar sua igreja visível tal como purificou o
templo. Ele a limpará de tudo que a contamina e gera iniquidade, e
expulsará do meio dela os mundanos. Jesus não permitirá que o
adorador do dinheiro ou o amante do lucro estejam naquele templo
glorioso que ele finalmente haverá de exibir perante o mundo. Que
todos nós vivamos na expectativa diária de sua vinda! Devemos
julgar a nós mesmos, a fim de não sermos condenados e rejeitados
naquele dia de exame e triagem! Deveríamos sempre estudar
aquelas palavras de Malaquias: “Quem pode suportar o dia da sua
vinda? E quem subsistirá quando ele aparecer? Porque ele é como
o fogo do ourives e como a potassa dos lavandeiros” (Ml 3.2).
O segundo evento que chama nossa atenção nesses
versículos é a maldição sobre a figueira infrutífera. Somos
informados de que Jesus, “vendo uma figueira à beira do caminho,
aproximou-se dela; e, não tendo achado senão folhas, disse-lhe:
Nunca mais nasça fruto de ti. E a figueira secou imediatamente”.
Esse é um incidente quase sem paralelo em todo o ministério de
nosso Senhor. Essa é praticamente a única ocasião em que vemos
Jesus fazer uma de suas criaturas sofrer, a fim de, com isso, ensinar
uma verdade espiritual. Naquela figueira ressecada, havia uma lição
que nos perscruta o coração. Ela prega um sermão que todos nós
faríamos bem em escutar.
Aquela figueira, recoberta de folhas porém sem frutos, era uma
notória figura da igreja judaica quando nosso Senhor veio à terra. A
igreja judaica tinha tudo para ser um espetáculo impressionante: o
templo, o sacerdócio, o culto diário, as festas anuais, as Escrituras
do Antigo Testamento, os turnos dos levitas, os sacrifícios da manhã
e da tarde. Porém, por trás dessa folhagem exuberante, a igreja
judaica estava completamente destituída de frutos. Não havia graça,
fé, amor, humildade, espiritualidade ou santidade real, nem
disposição para receber o seu Messias (Jo 1.11). E, assim como a
figueira, a igreja judaica não tardaria a secar. Ela haveria de ser
despida de todos os seus ornamentos exteriores, e seus membros
seriam dispersos por toda a face da terra. Jerusalém seria
destruída; o templo seria queimado; o sacrifício diário seria
interrompido. A árvore haveria de secar até às raízes. E foi isso
mesmo que aconteceu. Nunca houve um tipo simbólico que se
cumprisse tão literalmente. Em cada judeu errante, podemos ver um
ramo dessa figueira que foi derrubada.
Porém, não podemos parar aqui. Desse evento, podemos
extrair outras instruções. Essas coisas foram escritas tanto para os
judeus como por nossa causa.
Cada ramo infrutífero da igreja visível de Jesus Cristo não está
em um tremendo perigo de se tomar uma figueira seca? Sem a
menor dúvida! Altos privilégios e posições eclesiásticas,
desacompanhados de santidade entre o povo; confiança exagerada
em concílios, bispos, liturgias e cerimônias, enquanto o
arrependimento e fé são negligenciados. Tais coisas têm aniquilado
muitas igrejas no passado, e podem ainda destruir muitas outras.
Onde estão igrejas como as de Éfeso, Sardes, Cartago e Hipona,
que, em seu tempo, foram tão famosas? Todas desapareceram.
Elas tinham folhagem, mas não frutificavam. A maldição de nosso
Senhor veio sobre elas, e tornaram-se figueiras secas. Saiu o
decreto divino: “Cortai a árvore, e destruí-a” (Dn 4.23). Lembremo-
nos disso! Tenhamos todo o cuidado de evitar o orgulho eclesiástico.
“Não te ensoberbeças, mas teme” (Rm 11.20).
Por fim, uma pessoa que se diz cristã, mas não produz fruto
algum, não estaria em um perigo terrível, podendo tornar-se uma
figueira seca? Não há que se duvidar disso. Enquanto se contenta
com a mera folhagem da religião (com um nome de quem vive, ao
mesmo tempo que está morto, e tendo apenas a forma de piedade
sem poder), a alma da pessoa está em grande perigo. Enquanto se
satisfizer em ir à igreja e participar da Ceia do Senhor, e ser
chamado de “cristão”; enquanto seu coração não tiver sido
transformado e não houver abandonado seus pecados, está
diariamente provocando Deus a cortar a árvore irremediavelmente.
Fruto, fruto — o fruto do Espírito é a única prova segura de que
estamos unidos a Jesus Cristo, salvos e a caminho do céu. Que
esse pensamento lance raízes profundas em nossos corações e
jamais seja esquecido!
A resposta de Cristo aos fariseus que
questionavam sua autoridade; os dois filhos
Leia Mateus 21.23-32

E sses versículos contêm um diálogo entre nosso Senhor Jesus


Cristo e os principais sacerdotes e anciãos do povo. Aqueles
amargos adversários de toda a retidão viram a sensação que a
entrada triunfal em Jerusalém e a purificação do templo haviam
provocado. Imediatamente, eles cercaram nosso Senhor, como
abelhas, procurando um motivo para levantar acusação contra ele.
Observemos, em primeiro lugar, como os inimigos da verdade
estão sempre preparados para questionar a autoridade de todos que
se conduzem melhor do que eles próprios. Os principais dos
sacerdotes não tinham uma única palavra que dizer contra os
ensinamentos de nosso Senhor. Não podiam fazer sequer uma
acusação contra a vida e a conduta de Jesus e seus seguidores.
Por isso, trataram de questionar sua comissão divina, indagando:
“Com que autoridade fazes estas cousas? E quem te deu essa
autoridade?”.
Idêntica acusação com frequência tem sido lançada contra os
servos do Senhor, quando eles procuram refrear o progresso da
corrupção eclesiástica. É uma velha artimanha, por meio da qual os
filhos deste mundo têm muitas vezes tentado impedir o avanço de
reformas e reavivamentos. É uma espada que muitas vezes foi
brandida contra a face dos reformadores, dos puritanos e
metodistas, séculos atrás. É uma flecha envenenada que, com
frequência, é atirada contra os missionários e obreiros leigos hoje
em dia. Não são poucos aqueles que em nada se importam com a
manifesta bênção de Deus sobre o trabalho de um homem, se tal
homem não foi enviado pela seita ou pela denominação a que
pertence. Não importa se Deus tem realizado muitas conversões em
sua seara pela instrumentalidade de um humilde obreiro, eles
prosseguem questionando: “Com que autoridade fazes estas
cousas?”.
O sucesso desse obreiro nada significa; eles querem saber
quem o enviou. As grandes coisas que têm sido feitas nada
significam; eles querem ver seu diploma. Não devemos ficar nem
surpresos nem desanimados quando ouvimos coisas Assim. Essa
mesma argumentação foi levantada contra o próprio Jesus Cristo.
“Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1.9).
Observemos, em segundo lugar, a sabedoria consumada com
que nosso Senhor replicou à indagação que lhe fora dirigida. Os
adversários lhe haviam perguntado com que autoridade ele fazia
tais coisas. Ao que tudo indica, tencionavam fazer de sua resposta
um motivo de acusação contra ele. O Senhor, porém, sabia quais
eram as verdadeiras intenções da pergunta e por isso respondeu:
“Eu também vos farei uma pergunta; se me responderdes, também
eu vos direi com que autoridade faço estas cousas. Donde era o
batismo de João? Do céu ou dos homens?”.
Devemos entender claramente que, nessa resposta de nosso
Senhor, não havia evasiva. Supor que Jesus estivesse fugindo à
pergunta seria um grande erro. A pergunta que usou como resposta
foi, na realidade, uma inquirição a seus inimigos. Jesus sabia que
eles não ousariam negar que João Batista fora um homem enviado
por Deus. Ele sabia que, uma vez admitida essa verdade, só tinha
de relembrá-los do testemunho de João Batista sobre a sua pessoa.
João não havia declarado que Jesus era “o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo”? João Batista não havia ensinado que ele,
Jesus, era quem haveria de batizar “com o Espírito Santo”? Em
suma, a pergunta de nosso Senhor foi um golpe certeiro na
consciência de seus inimigos. Uma vez admitida a autoridade divina
da missão de João Batista, eles também teriam de admitir a
autoridade divina de Jesus Cristo. Reconhecendo que João Batista
fora enviado do céu, eles também teriam de reconhecer que Jesus
era o Cristo.
Oremos para que, neste mundo hostil, seja-nos proporcionada
a mesma sabedoria que foi demonstrada aqui por nosso Senhor.
Sem dúvida, devemos seguir a determinação do apóstolo Pedro:
“Estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos
pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com
mansidão e temor” (1Pe 3.15). Não devemos encolher-nos diante de
um questionamento a respeito dos princípios que regem nossa
santa religião. Devemos sempre estar preparados para defender e
explicar nossa prática, a qualquer tempo. Contudo, lembremo-nos
de que, para isso, é necessário ter sabedoria. Em defesa de uma
boa causa, devemos procurar falar sabiamente. As palavras de
Salomão merecem consideração: “Não respondas ao insensato
segundo a sua estultícia, para que não te faças semelhante a ele”
(Pv 26.4).
Por último, observemos que grande encorajamento nosso
Senhor oferece àqueles que se arrependem. Vemos isso salientado
claramente na parábola dos dois filhos. Ambos receberam a ordem
de ir trabalhar na vinha de seu pai. Um dos filhos, como os
cerimoniosos fariseus, fingiu estar disposto a obedecer, mas
realmente não foi. O outro, como os devassos publicanos, por algum
tempo recusou-se abertamente a obedecer, mas depois arrependeu-
se e foi. “Qual dos dois”, pergunta nosso Senhor, “fez a vontade do
pai?”. Até mesmo seus inimigos foram obrigados a responder: “O
segundo”.
Que se torne um princípio bem estabelecido em nosso
cristianismo que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo está
infinitamente disposto a receber os pecadores penitentes. Não
importa o que um homem tenha sido no passado. Se ele se
arrepende e vem a Cristo, então as coisas antigas já passaram, e
eis que tudo se faz novo. Não importa quão elevada e autoconfiante
possa ser a religiosidade de um homem. Se ele não desiste
realmente de seus pecados, sua religião não passa de abominação
aos olhos de Deus, e ele mesmo ainda está sob a maldição divina.
Se, até agora, temos sido grandes pecadores, que então
tomemos coragem! Basta que nos arrependamos e confiemos em
Cristo, e então haverá esperança. Que possamos encorajar outras
pessoas a se arrepender! Mantenhamos bem aberta a porta, para
que até mesmo o principal dos pecadores possa entrar. A Palavra
jamais falhará: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e
justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça”
(1Jo 1.9).
A parábola dos lavradores maus
Leia Mateus 21.33-46

A parábola contida nesses versículos foi proferida com especial


referência aos judeus. Eles são os lavradores aqui mencionados. Os
pecados deles é que estão retratados aqui. Disso, não há dúvida,
pois está escrito que “era a respeito deles que Jesus falava”.
Mas não devemos nos exaltar, dizendo que essa parábola nada
contém para os gentios. Nela, estão contidas lições tanto para os
judeus como para nós. Vejamos quais são.
Antes de tudo, vemos os privilégios distintivos que Deus se
agrada em proporcionar a certas nações. Ele escolheu Israel como
seu povo peculiar. Ele os separou das outras nações da terra, e lhes
concedeu incontáveis bênçãos. Ele deu a Israel revelações de si
mesmo, enquanto o restante da humanidade continuava em trevas.
Ele deu aos israelitas a lei, as alianças e os oráculos de Deus,
enquanto os outros povos foram deixados como estavam. Em suma,
Deus tratou com os judeus à semelhança de como um homem trata
de um pedaço de terra que cerca e cultiva, enquanto todos os
campos ao redor são deixados sem cultivo, como terras devolutas.
A vinha do Senhor era a casa de Israel (Is 5.7).
E, quanto a nós, não temos nenhum privilégio? Sem dúvida,
temos muitos. Temos a Bíblia, e a liberdade, cada um de nós, para
lê-la. Temos o evangelho e a permissão de escutar e crer. Dispomos
de abundantes misericórdias espirituais, acerca das quais bilhões de
homens nada sabem. Quão agradecidos deveríamos ser! O mais
pobre entre nós pode dizer a cada manhã: “Há bilhões de almas
imortais que estão em pior situação do que eu. Quem sou eu para
ser diferente? Bendize ao Senhor, ó minha alma!”.
Em seguida, percebemos como as nações fazem mau uso dos
privilégios de que dispõem. Quando o Senhor separou os israelitas
dentre os outros povos, tinha o direito de esperar que eles serviriam
a ele e obedeceriam às suas leis. Quando um homem cultiva uma
vinha, tem o direito de esperar frutos. Mas Israel não retribuiu
adequadamente todas as misericórdias divinas. Eles se misturaram
com os pagãos e aprenderam caminhos pecaminosos. Eles se
endureceram no pecado e na incredulidade. Voltaram-se para os
ídolos. Não guardaram as ordenanças de Deus. Desprezaram o
templo de Deus. Recusaram-se a ouvir os profetas de Deus.
Maltrataram aqueles a quem Deus enviou para chamá-los ao
arrependimento. E, finalmente, levaram sua iniquidade a um ponto
extremo, matando o próprio Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo.
E o que nós estamos fazendo com nossos privilégios? Essa é
uma pergunta muita séria, e que deveria nos fazer refletir. É digno
de temor que nossa nação não esteja vivendo de acordo com a luz
e as muitas misericórdias que já temos recebido. Devemos
confessar, envergonhados, que milhões de nós parecem estar
vivendo totalmente sem Deus neste mundo. Devemos reconhecer
que, em muitas cidades e povoados, Cristo parece não ter nenhum
discípulo, e parece não haver ninguém que creia na Bíblia. É inútil
cerrarmos os olhos diante desses fatos. O fruto que o Senhor está
recebendo de sua vinha, em nosso país, comparado com o que
deveria ser, é desgraçadamente pequeno. Temos razões para
pensar que somos tão provocadores quanto os judeus, aos olhos do
Senhor.
Em seguida, vemos o terrível acerto de contas que, algumas
vezes, Deus faz com nações e igrejas que usam mal seus
privilégios. Chegou, finalmente, o tempo em que a longanimidade de
Deus para com seu povo se esgotou. Quarenta anos após a morte
de nosso Senhor, o cálice de suas iniquidades transbordou, e eles
receberam um pesado castigo por seus muitos pecados. Jerusalém,
a cidade santa, foi destruída. O templo foi queimado. Eles mesmos
foram espalhados por toda a face da terra. O reino de Deus foi
tirado e entregue a um povo que lhe produzisse os respectivos
frutos.
Será que o mesmo acontecerá conosco? Virão os juízos de
Deus sobre essa nação, por causa de sua infidelidade em face de
tantas misericórdias? Quem pode dizer? Só podemos afirmar aquilo
que o profeta disse: “Tu, ó Senhor, o sabes” (Jr 15.15). Porém,
sabemos que o julgamento tem sobrevindo a muitas igrejas e
nações nos últimos mil e novecentos anos. O reino de Deus foi
tirado das igrejas cristãs no norte da África. O poder do islamismo
tomou o lugar da maior parte das antigas igrejas cristãs no Oriente.
Por isso, convém que todos os crentes intercedam insistentemente
em favor de nosso país. Nada ofende tanto a Deus quanto a
negligência em relação aos nossos privilégios. Muito nos tem sido
dado, e muito nos será requerido.
Por último, vemos o poder da consciência até mesmo sobre os
ímpios. Os principais sacerdotes e anciãos descobriram, por fim,
que a parábola de nosso Senhor visava especialmente a eles.
Aquelas últimas palavras haviam sido cortantes demais para que
não fossem percebidas. Eles “entenderam que era a respeito deles
que Jesus falava”.
Em cada congregação, existem muitos ouvintes do evangelho
que se encontram exatamente nas mesmas condições desses
infelizes judeus. Eles sabem que é verdade aquilo que ouvem,
domingo após domingo. Eles sabem que estão errados, e sabem
que cada sermão os condena ainda mais. Contudo, não têm a
vontade nem a coragem de reconhecer isso. São muito orgulhosos
e muito amigos do mundo para confessar os erros passados, tomar
a cruz e seguir Cristo! Devemos tomar precaução contra esse
horrendo estado mental. O dia final provará que houve muito mais
consciências perturbadas entre os ouvintes do que jamais os
pregadores desconfiaram. Haverá milhares e milhares de pecadores
que, como os principais dos sacerdotes judeus, foram condenados
pela própria consciência, mas que, mesmo assim, morreram sem se
converter.
A parábola das bodas
Leia Mateus 22.1-14

A parábola relatada nesses versículos tem um significado muito


amplo. Em sua aplicação primária, inquestionavelmente ela aponta
para os judeus. Porém, não podemos limitá-la somente a eles, pois
contém lições que perscrutam o coração de todos aqueles a quem o
evangelho é pregado. Trata-se de um quadro espiritual que, ainda
hoje, fala conosco, se é que temos ouvidos para ouvir. A observação
de Olshausen é sábia e verídica: “As parábolas são como pedras
preciosas de múltiplas facetas, cortadas de modo a lançar seu brilho
em mais de uma direção”.
Observemos, em primeiro lugar, que a salvação anunciada no
evangelho é comparada a uma festa de casamento. O Senhor Jesus
nos fala de “um rei que celebrou as bodas de seu filho”.
No evangelho, existe uma provisão completa para todas as
necessidades da alma humana. Há um suprimento de tudo que se
faz necessário para aliviar a fome e a sede espiritual. Perdão, paz
com Deus, uma viva esperança neste mundo, glória no mundo
vindouro, essas são bênçãos retratadas diante de nossos olhos em
rica abundância. Trata-se de “um banquete de cousas gordurosas”
(Is 25.6).
Toda essa provisão deve-se ao amor manifestado pelo Filho de
Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor. Ele deseja nos unir a si mesmo,
restaurar-nos à família de Deus como filhos queridos, vestir-nos com
sua própria justiça, dar-nos uma posição em seu reinado e nos
apresentar como inculpáveis perante o trono de seu Pai, no último
dia. O evangelho, em suma, é uma oferta de pão para o faminto, de
alegria para o triste, de um lar para o desprezado e de um amigo
para o perdido. O evangelho são boas-novas. Deus oferece
identificar-se com o homem pecador, mediante seu Filho querido.
Jamais nos esqueçamos: “Nisso consiste o amor, não em que nós
tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o
seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10).
Em segundo lugar, assinalemos que os convites do evangelho
são amplos, plenos, generosos e ilimitados. Nessa parábola, o
Senhor Jesus nos conta que os servos disseram aos convidados:
“Tudo está pronto; vinde para as bodas”. Da parte de Deus, não há
nada faltando para a salvação da alma dos pecadores. Ninguém
jamais poderá dizer, no fim, que foi por culpa de Deus que não se
salvou. O Pai está pronto para amar e acolher. O Filho está pronto
para perdoar e limpar de toda a culpa. O Espírito está pronto para
santificar e renovar. Os anjos estão prontos para se regozijar diante
de cada pecador que retorna ao caminho reto. A graça está pronta
para assisti-lo. A Bíblia está pronta para instruí-lo. O céu está pronto
para ser seu lar eterno. Só uma coisa é necessária: que o próprio
pecador esteja desejoso de ser salvo. Que isso, também, jamais
seja esquecido! Que não fiquemos debatendo e perdendo-nos em
minúcias acerca desse assunto tão simples! Deus sempre será
achado inocente do sangue de todas as almas perdidas. O
evangelho sempre fala dos pecadores como seres responsáveis e
que terão de prestar contas a Deus. O evangelho coloca uma porta
aberta diante de toda a humanidade. Ninguém está excluído desse
convite uni versal. Embora seja eficaz somente para os que creem,
é suficiente para a humanidade inteira. Embora poucos sejam
aqueles que entram pela porta estreita, todos são igualmente
convidados a entrar por ela.
Em terceiro lugar, notemos que a salvação oferecida pelo
evangelho é rejeitada por muitos daqueles a quem ela oferecida. O
Senhor Jesus nos conta que os convidados, chamados pelos servos
do rei, “não se importaram e se foram”.
Existem milhares de ouvintes do evangelho que em nada se
beneficiam dele. Eles ouvem a pregação domingo após domingo,
ano após ano, mas não creem para a salvação de sua alma. Eles
não sentem necessidade especial do evangelho. Não veem beleza
especial nele. Talvez não cheguem a odiar, nem a se opor, nem
façam oposição ao evangelho. Porém, não o recebem em seu
coração. Há outras coisas de que eles gostam muito mais. Seu
dinheiro, suas terras, seus negócios e seus prazeres são todos
assuntos muito mais interessantes para eles do que a salvação da
alma. Esse é um estado mental deplorável, porém bastante comum.
Que examinemos nosso próprio coração e tomemos o cuidado para
assim também não ocorrer com ele! O pecado notório pode matar
seus milhares, mas a indiferença e a negligência em relação ao
evangelho matam seus dez milhares. Multidões se verão no inferno,
não tanto porque desobedeceram abertamente aos dez
mandamentos, mas porque fizeram pouco-caso da verdade. Cristo
morreu por eles na cruz, mas eles o negligenciaram.
Por último, observemos que todos que professam falsamente a
religião cristã serão detectados, desmascarados e condenados
eternamente, no último dia. O Senhor Jesus nos conta que, quando,
finalmente, chegaram os convidados para as bodas, o rei entrou
para ver os que estavam às mesas, e “notou ali um homem que não
trazia veste nupcial”. O rei perguntou ao homem como este havia
entrado, vestido inadequadamente, mas não obteve resposta.
Ordenou, então, o rei a seus servos: “Amarrai-o de pés e mãos, e
lançai-o para fora, nas trevas”.
Enquanto o mundo existir, sempre haverá alguns falsos
membros na Igreja de Cristo. Nessa parábola, segundo disse
Quesnel, “um único expulso representa todos os demais que serão
expulsos”. É impossível lermos o coração dos homens.
Enganadores e hipócritas nunca serão totalmente excluídos do meio
dos verdadeiros cristãos. Desde que uma pessoa professe
obediência ao evangelho e tenha uma vida externamente correta,
não ousamos afirmar categoricamente que tal pessoa não esteja
justificada por Cristo. Entretanto, não haverá dúvida no dia do juízo.
O olho infalível de Deus vai discernir quem é do seu povo e quem
não é. Coisa alguma, senão a fé verdadeira, será capaz de subsistir
ao fogo do julgamento. Todo e qualquer cristianismo espúrio será
pesado na balança e achado em falta. Ninguém, senão os
verdadeiros crentes, participará da ceia das bodas do Cordeiro. Ao
hipócrita, de nada valerá ter falado muito sobre religião e ter tido a
reputação de ser um cristão eminente entre os homens. Seu triunfo
não perdurará. Ele será despido de toda a sua plumagem
emprestada, e ficará nu e trêmulo perante o tribunal de Deus —
mudo, condenado por si mesmo, sem esperança e sem salvação.
Ele será lançado nas trevas exteriores, em opróbrio, colhendo,
assim, aquilo que semeou em vida. O Senhor Jesus disse que “ali
haverá choro e ranger de dentes”.
Devemos aprender a sabedoria por meio dos quadros dessa
parábola e ser diligentes em procurar confirmar nossa vocação e
eleição (1Pe 1.10). A nós, também é dito: “Tudo está pronto; vinde
para as bodas”. Tenhamos o cuidado de não recusar aquele que fala
(Hb 12.25). Não durmamos como os demais; pelo contrário,
vigiemos e sejamos sóbrios (1Ts 5.6). O tempo urge. Em breve, o
Rei entrará para ver os convidados. Já recebemos ou não a veste
nupcial? Já nos revestimos de Cristo? Essa é a grande indagação
levantada por essa parábola. Que jamais descansemos enquanto
não pudermos dar uma resposta satisfatória a essa pergunta! Que
essas palavras soem diariamente em nossos ouvidos e nos sondem
o coração: “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos”!
Os fariseus e a questão do tributo
Leia Mateus 22.15-22

N essa passagem, encontramos o primeiro de uma série de


ataques sutis desfechados contra nosso Senhor nos últimos
dias de seu ministério terrestre. Seus adversários mortíferos, os
fariseus, notaram a imensa influência que ele estava obtendo, tanto
por seus milagres como por sua pregação. Eles estavam
determinados a silenciá-lo ou a tirar-lhe a vida. Por esse motivo,
procuravam “como surpreendê-lo em alguma palavra”. Eles lhe
enviaram discípulos juntamente com os herodianos, com o propósito
de apanhá-lo em perguntas difíceis. Desejavam encurralá-lo para
que dissesse algo que servisse de motivo para uma acusação. Mas
o esquema, conforme somos informados nesses versículos, falhou
por completo. O movimento resultou em nada, e retiraram-se em
confusão.
A primeira coisa que nos chama a atenção nesses versículos é
a linguagem bajuladora com que nosso Senhor foi abordado por
seus adversários. Disseram-lhe: “Mestre, sabemos que és
verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus, de acordo com a
verdade, sem te importares com quem quer que seja, porque não
olhas a aparência dos homens”. Como aqueles fariseus e
herodianos falavam bem! Que palavras lisonjeiras e doces! Eles
pensaram, sem dúvida, que, com boas palavras e belos discursos,
conseguiriam fazer nosso Senhor descuidar-se do que dizia. Deles,
bem seria possível dizer: “A sua boca era mais macia que a
manteiga, porém no coração havia guerra; as suas palavras eram
mais brandas que o azeite, contudo eram espadas
desembainhadas” (Sl 55.21).
Convém que todos os crentes estejam em guarda contra a
bajulação. Estamos grandemente enganados se supomos que as
únicas armas no arsenal de Satanás são a perseguição e os maus-
tratos. Esse inimigo engenhoso dispõe de outros dispositivos para
nos prejudicar, os quais ele sabe manejar muito bem. Ele sabe
como envenenar as almas mediante a gentileza sedutora deste
mundo, sempre que não consegue amedrontálas por meio do dardo
inflamado e da espada. Não sejamos ignorantes quanto a seus
artifícios. É mediante uma paz fingida que ele destrói a muitos.
Tendemos demais a esquecer essa verdade. Negligenciamos
os muitos exemplos que Deus nos deu nas Escrituras para nosso
aprendizado. O que levou Sansão à derrota? Não foi o exército dos
filisteus, mas, sim, o amor fingido de uma mulher filisteia. O que
levou Salomão a se desviar? Não foi a força de inimigos externos,
mas, sim, a adulação de suas numerosas esposas. Qual foi a causa
do maior erro do rei Ezequias? Não foi a espada de Senaqueribe
nem as ameaças de Rabsaqué, mas, sim, as lisonjas dos
embaixadores da Babilônia.
Lembremo-nos dessas coisas e estejamos em guarda. Com
frequência, a paz causa mais ruína às nações do que a guerra. As
coisas doces causam muito mais doenças do que as amargas. O
calor leva o soldado a tirar sua armadura com mais rapidez do que o
vento polar. Tomemos precaução contra os bajuladores! Satanás
nunca é tão perigoso como quando aparece em forma de anjo de
luz. O mundo nunca nos é tão perigoso como quando sorri para nós.
Quando Judas traiu o Senhor, ele o fez com um beijo. O crente que
é imune à desaprovação do mundo faz bem; mas o crente que é
imune à bajulação do mundo, esse faz melhor.
A segunda coisa que nos chama a atenção nesses versículos é
a maravilhosa sabedoria da resposta que nosso Senhor deu aos
seus inimigos. Os fariseus e herodianos perguntaram se era legítimo
pagar tributo a César ou não. Eles, sem dúvida, pensaram ter
apresentado uma pergunta à qual nosso Senhor não poderia
responder sem lhes dar um ponto de vantagem. Se ele
simplesmente respondesse que era legítimo pagar tributo, eles o
teriam denunciado ao povo como alguém que desonrava os
privilégios de Israel, como alguém que não considerava os filhos de
Abraão homens livres, e, sim, um povo sujeito a uma potência
estrangeira. Por outro lado, se ele respondesse que não era legítimo
pagar tributos, eles o teriam denunciado aos romanos como um
instigador de sedições e um rebelde contra César, alguém que se
recusava a pagar os tributos. Entretanto, a conduta habilidosa de
nosso Senhor deixou seus adversários totalmente desconcertados.
Ele pede para ver o dinheiro do tributo e pergunta de quem é a
efígie na moeda. “De César”, respondem. Usuários que eram
daquele dinheiro, com a efígie e a inscrição de César, eles
reconheciam que César tinha autoridade sobre eles, visto que a
moeda corrente é cunhada pelos governantes da terra na qual
vigora. Em seguida, eles receberam uma resposta conclusiva e
irrefutável: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é
de Deus”.
O princípio estabelecido nessas bem conhecidas palavras
revestese de profunda importância. Há uma obediência que todo
crente deve ao governo civil da nação da qual é cidadão, em todas
as questões que não sejam de natureza puramente espiritual. Ele
pode não aprovar todos os requerimentos desse governo civil, mas
deve submeter-se às leis da comunidade enquanto estiverem em
vigor. É preciso “dar a César o que é de César”.
Mas há também uma obediência que o crente deve ao Deus da
Bíblia, em todas as questões que sejam puramente espirituais.
Nenhuma perda material, nenhuma inabilidade civil, nem qualquer
desprazer das autoridades que existem, nada disso jamais deveria
tentar um crente a fazer coisas que as Escrituras claramente
proíbem. A situação pode ser muito difícil. Ele pode ter de sofrer
muitas coisas por motivo de consciência. Mas ele jamais deve fugir
dos requisitos inequívocos das Escrituras. Se César cunha um novo
evangelho, não se deve obedecer a esse evangelho. Devemos dar
“a Deus o que é de Deus”.
Esse é, inquestionavelmente, um assunto de grande dificuldade
e delicadeza. É certo que a Igreja não deve tentar abarcar o Estado.
Também é certo que o Estado não deve tentar engolfar a Igreja.
Talvez nenhum outro assunto tenha causado tanta provação para
homens conscienciosos; talvez nenhum outro assunto tenha
causado tanta divergência entre os homens de bem quanto a
fixação de onde terminam as coisas “de César” e onde começam as
“coisas de Deus”. Por um lado, o poder civil tem muitas vezes
usurpado terrivelmente os direitos de consciência (como ocorreu
com os puritanos, que sofreram durante a infeliz dinastia Stuart, na
Inglaterra). Por outro lado, o poder eclesiástico tem frequentemente
estendido suas reivindicações de modo extravagante, a ponto de
tomar em suas mãos o cetro de César (como a Igreja romana fez no
passado).
Para que possa fazer um correto julgamento sobre todas as
questões dessa natureza, cada verdadeiro crente deveria orar
constantemente, pedindo a sabedoria que vem do alto. A pessoa
sincera, que diariamente busca a graça divina e o bom senso, nunca
errará gravemente, pois Deus não permitirá que isso aconteça.
Os saduceus e a questão da ressurreição
Leia Mateus 22.23-33

E ssa passagem descreve uma conversa entre nosso Senhor


Jesus Cristo e os saduceus. Esses homens infelizes, que
afirmavam “não haver ressurreição”, como os fariseus e herodianos,
tentaram embaraçar nosso Senhor com questões difíceis. Eles,
também procuravam “surpreendê-lo em alguma palavra” e uma
forma de manchar a reputação dele entre o povo. Porém, assim
como os fariseus, eles também ficaram inteiramente frustrados.
Em primeiro lugar, observemos que as objeções absurdas e
céticas às verdades bíblicas são um fenômeno antigo. Os saduceus
desejavam demonstrar o absurdo da doutrina da ressurreição e da
vida futura. Por isso, vieram até nosso Senhor com uma história que
provavelmente foi inventada para a ocasião. Disseram-lhe que certa
mulher se casara com sete irmãos sucessivamente, e todos eles
morreram sem deixar filhos. Então, perguntaram de quem ela seria
esposa no mundo vindouro, quando todos ressuscitassem... O
objetivo da pergunta era claro e transparente. Na realidade, o que
eles queriam mesmo era lançar a doutrina da ressurreição no
ridículo. Queriam insinuar que a ressurreição traria muita confusão,
contenda e uma desordem inconveniente se, após a morte, homens
e mulheres houvessem de reviver.
Nunca nos deveríamos surpreender se chegarmos a encontrar
semelhantes objeções em relação às doutrinas bíblicas,
especialmente aquelas doutrinas que dizem respeito ao outro
mundo. Provavelmente nunca faltarão homens irracionais
ocupando-se de coisas que não se veem e criando dificuldades
imaginárias a fim de desculpar sua própria incredulidade. Casos
supostos são uma das estratégias favoritas em que as mentes
incrédulas gostam de se firmar. A pessoa, muitas vezes, cria uma
sombra imaginária em sua mente e passa a lutar contra ela, como
se essa sombra representasse a verdade real. Em geral, uma
mentalidade desse tipo se recusará a olhar para a avassaladora
massa de evidências claras em que se alicerça o cristianismo, e irá
agarrar-se à única dificuldade que, para ela, parece insolúvel. O
falar e os argumentos de pessoas assim jamais deveriam abalar
nossa fé, nem por um instante sequer.
Em primeiro lugar, devemos lembrar que a religião cristã
forçosamente envolve verdades profundas e misteriosas, e que até
mesmo uma criança pode formular perguntas às quais o maior dos
filósofos não é capaz de responder. Em seguida, precisamos
lembrar-nos de que há incontáveis verdades na Bíblia que são
claras e inequívocas. A essas verdades é que devemos atentar em
primeiro lugar, crendo e obedecendo. Se assim fizermos, podemos
ter certeza de que muitas das coisas que agora são ininteligíveis
ainda virão a ser desvendadas. Podemos ter a certeza de que aquilo
que não sabemos agora vamos compreender depois (Jo 13.7).
Em segundo lugar, observemos que texto notável nosso
Senhor apresenta como prova da realidade de uma vida futura. Ele
apresenta aos saduceus as palavras que Deus falou a Moisés
desde a sarça ardente: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de
lsaque e o Deus de Jacó” (Êx 3.6). E Jesus ainda acrescenta: “Ele
não é Deus de mortos, e, sim, de vivos”. Ora, no tempo em que
Moisés ouviu tais palavras, Abraão, Isaque e Jacó já estavam
mortos e sepultados por muitos anos. Dois séculos se haviam
passado desde que Jacó, o último dos três, fora sepultado. Não
obstante, Deus falou a respeito deles como ainda sendo seu povo, e
acerca de si mesmo como ainda sendo o Deus deles. Ele não disse:
“eu era o Deus de Abraão”, mas, sim, “Eu sou”.
É possível que, com frequência, nos sintamos tentados a
duvidar das verdades da ressurreição e da vida futura. Infelizmente,
é fácil aceitar uma verdade apenas em tese, sem compreender suas
implicações práticas. Devemos nos conscientizar de que os mortos
ainda estão vivos. Eles desapareceram de nossos olhos e já não
habitam mais neste mundo. Mas, aos olhos de Deus, eles estão
vivos e, um dia, deixarão a sepultura para receber a sentença
eterna. Não existe aniquilamento; tal ideia não passa de uma
miserável ilusão. Sol, lua, estrelas, as montanhas rochosas e o mar
profundo algum dia serão reduzidos a nada. Porém, a criancinha
mais fraca e pobre deste mundo haverá de viver para todo o sempre
no mundo vindouro. Que jamais nos esqueçamos disso! Feliz é
quem pode dizer de coração o que o credo niceno afirma: “Espero
pela ressurreição dos mortos e pela vida no mundo vindouro”.
Observemos, por fim, o relato que nosso Senhor dá acerca da
situação de homens e mulheres, após a ressurreição. Ele silencia as
objeções fantasiosas dos saduceus demonstrando que eles
estavam totalmente equivocados quanto ao verdadeiro caráter do
estado ressurreto. Eles supunham que a ressurreição tem de ser,
necessariamente, uma existência carnal, grosseira, como a que a
humanidade vive aqui na terra. Entretanto, nosso Senhor lhes diz
que, no mundo vindouro, receberemos um corpo real e material,
mas de constituição inteiramente diferente e com necessidades
muito diversas das que temos agora. Lembremo-nos de que Jesus
falou somente a respeito dos salvos; ele deixou de mencionar o
estado dos perdidos. Jesus afirma: “Porque na ressurreição nem
casam nem se dão em casamento; são, porém, como os anjos no
céu”.
Conhecemos pouquíssimo acerca da vida futura no céu. É
possível que nossas ideias mais claras sobre o céu sejam aquelas
tiradas da consideração daquilo que o céu não será. Será um
estado em que nunca mais teremos nem fome nem sede.
Enfermidades, dor e doenças não serão conhecidas. Debilidade,
velhice e morte não terão lugar. Casamentos, nascimentos e uma
constante sucessão de habitantes já não serão mais necessários.
Aqueles que forem admitidos no céu lá haverão de habitar para
sempre. E, passando para os aspectos afirmativos, é-nos dito
claramente que seremos “como os anjos no céu”. A exemplo deles,
serviremos a Deus de maneira perfeita, sem qualquer cansaço. Tal
como eles, estaremos para sempre na presença de Deus. Como
eles, nosso deleite sempre será cumprir a vontade do Senhor. E,
como eles, daremos toda a glória ao Cordeiro. Todas essas são
coisas muito profundas, mas todas são verdadeiras.
Estamos preparados para essa vida? Se admitidos no céu,
será que apreciaríamos essa vida? A companhia e o serviço de
Deus seriam agradáveis para nós? A ocupação dos anjos seria algo
em que nos deleitaríamos?
Essas são perguntas solenes. Se esperamos ir para o céu
quando ressuscitarmos no outro mundo, nosso coração deve ser
celestial desde já, quando vivemos nesta terra (Cl 3.1-4).
A questão do grande mandamento; a pergunta de
Cristo a seus inimigos
Leia Mateus 22.34-46

N o começo dessa passagem, encontramos nosso Senhor


respondendo à pergunta de um intérprete da lei, que lhe havia
indagado qual era “o grande mandamento na lei”. A pergunta não
fora feita com espírito amigável. Porém, temos razões para
agradecer pelo fato de ela ter sido feita, porque provocou da parte
de nosso Senhor uma resposta cheia de instruções preciosas.
Vemos que o bem pode derivar até do mal.
Destaquemos quão admirável sumário esses versículos contêm
acerca de nosso dever para com Deus e com o próximo. Jesus diz:
“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua
alma e de todo o teu entendimento”. Ele diz, outra vez: “Amarás o
teu próximo como a ti mesmo”. E acrescenta: “Desses dois
mandamentos, dependem toda a lei e os profetas”.
Quão simples são essas duas regras, mas também quão
abrangentes! São compostas de poucas palavras, mas apresentam
um significado profundo! Quão humilhantes e condenadoras elas
são! Como demonstram nossa necessidade diária de receber
misericórdia e expiação no precioso sangue de Cristo! Feliz seria a
humanidade se essas regras fossem conhecidas e praticadas com
mais frequência!
O amor é o grande segredo da verdadeira obediência a Deus.
Quando sentirmos em relação a ele o que as crianças sentem em
relação a um pai querido, então nos deleitaremos em cumprir sua
vontade. Então, seus mandamentos não serão penosos, e não
trabalharemos para ele como se fôssemos escravos, com medo do
açoite. Teremos prazer em procurar observar suas leis e
lamentaremos quando as transgredirmos. Ninguém trabalha tão
bem quanto os que trabalham por amor. O temor ao castigo ou o
desejo de uma recompensa são princípios de menor motivação.
Cumprem melhor a vontade de Deus aqueles que fazem isso de
coração. Gostaríamos de treinar corretamente as crianças? Nesse
caso, devemos ensiná-las a amar a Deus.
O amor é o grande segredo da conduta reta para com nossos
semelhantes. Aquele que ama o próximo se recusará a lhe causar
qualquer dano proposital, seja em sua pessoa, caráter ou
propriedade. Contudo, não para por aí. Em todos os sentidos,
desejará fazer-lhe o bem. De todos os meios, promoverá seu
conforto e sua felicidade. Procurará aliviar suas tristezas e fomentar
suas alegrias. Se alguém ama, sentimos confiança nessa pessoa.
Sabemos que ela jamais nos fará mal intencionalmente e que,
durante todo o tempo de necessidade, será nossa amiga.
Gostaríamos de ensinar as crianças a se comportar corretamente
com outras pessoas? Então, devemos ensiná-las a amar a todos
como a si mesmas, e fazer aos outros aquilo que gostariam que os
outros lhes fizessem.
Porém, como obteremos esse amor por Deus? Não se trata de
um sentimento natural. Já nascemos pecadores e, corno pecadores,
temos medo de Deus. Como, então, é possível amá-lo? Jamais
poderemos amar realmente a Deus enquanto não estivermos em
paz com ele, por intermédio de Cristo. Quando soubermos que
nossos pecados estão perdoados, e que nós mesmos estamos
reconciliados com nosso santo Criador, então, e só então,
haveremos de amá-lo, e teremos em nós o espírito filial de adoção.
A fé em Cristo é a verdadeira fonte do amor a Deus. Ama mais
quem mais sente quanto lhe foi perdoado. “Nós amamos porque ele
nos amou primeiro” (1Jo 4.19).
E como poderemos obter esse amor em relação ao próximo?
Esse também não é um sentimento natural. Já nascemos egoístas,
odiosos e odiando-nos uns aos outros (Tt 3.3). Jamais amaremos
corretamente nosso próximo enquanto nosso coração não for
transformado pelo Espírito Santo. Precisamos nascer de novo.
Precisamos despir-nos do velho homem, revestir-nos do novo
homem e receber a mente de Cristo. Então, e somente então, nosso
coração insensível conhecerá o verdadeiro amor que vem de Deus
e se estende a todos. O fruto do Espírito é amor (Gl 5.22).
Que possamos entesourar essas verdades no coração! Nos
dias em que vivemos, há muita conversa vaga acerca do amor e da
caridade. Os homens asseveram que admiram essas qualidades e
que gostariam de vê-las cultivadas; no entanto, odeiam os únicos
princípios capazes de promover essas virtudes. Permaneçamos nas
veredas antigas. Não teremos frutos nem flores se não tivermos
raízes. Não poderemos ter amor a Deus e aos homens sem fé em
Cristo e sem regeneração. A maneira certa de se ensinar o
verdadeiro amor neste mundo consiste em ensinar sobre a expiação
de Cristo e sobre as operações do Espírito Santo em nossas almas.
A conclusão dessa passagem contém uma pergunta de nosso
Senhor aos fariseus. Após haver respondido com perfeita sabedoria
às indagações de seus adversários, por fim ele também lhes dirige
uma pergunta: “Que pensais vós do Cristo? De quem é filho?”. E
eles respondem imediatamente: “De Davi”. Jesus, então, lhes pede
que expliquem por que Davi, no livro de Salmos, o chama de Senhor
(Sl 110.1). “Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?”.
Imediatamente, os inimigos foram silenciados: “Ninguém podia
responder palavra”.
Os escribas e os fariseus, sem dúvida, estavam familiarizados
com o salmo citado, mas não eram capazes de explicar sua
aplicação. Ele só podia ser explicado mediante o reconhecimento da
preexistência e da divindade do Messias. E isso era algo que os
fariseus não estavam dispostos a admitir. A única ideia com que
podiam conceber o Messias era a de que ele seria um homem
qualquer, semelhante a eles mesmos. Assim, e de uma só vez, ficou
exposta a visão baixa e carnal que esses homens tinham acerca da
verdadeira natureza do Cristo. Igualmente, ficou exposta sua
ignorância das Escrituras, as quais eles julgavam conhecer mais do
que os outros homens. E Mateus pôde escrever, guiado pelo
Espírito Santo: “Nem ousou alguém, a partir daquele dia, fazer-lhe
perguntas”.
Não deixemos para trás esses versículos sem fazermos uso
prático da solene pergunta de nosso Senhor: “O que pensais vós do
Cristo?”. O que pensamos de sua Pessoa e ofícios? O que
pensamos de sua vida, e o que pensamos de sua morte por nós, na
cruz? O que pensamos de sua ressurreição, ascensão e intercessão
por nós, à direita de Deus? Já temos experiência de que ele é
gracioso? Já nos apegamos a ele por meio da fé? Já descobrimos,
por experiência própria, que ele é precioso para nossa alma? Será
que podemos verdadeiramente dizer: Ele é meu Redentor e meu
Salvador, meu Pastor e meu Amigo?
Essas são perguntas muito sérias. Que não descansemos
enquanto não pudermos dar a elas uma resposta satisfatória! De
nada nos aproveitará ler a respeito de Cristo se não formos unidos a
ele mediante uma fé viva. Uma vez mais, pois, façamos um teste de
nossa religião, perguntando: “Que pensais vós do Cristo?”
Advertência contra o ensino dos escribas e
fariseus
Leia Mateus 23.1-12

E stamos iniciando um capítulo que, em certo sentido, é o mais


marcante em todos os quatro evangelhos. Contém as últimas
palavras que o Senhor Jesus falou dentro das muralhas do templo.
São palavras que consistem de uma desmanteladora exposição dos
fariseus e escribas, além de uma reprimenda contundente às suas
doutrinas e práticas. Tendo pleno conhecimento de que seu tempo
na terra estava chegando ao fim, nosso Senhor não deixa de tornar
pública sua opinião acerca dos principais mestres da nação judaica.
Sabendo que, em breve, deixaria de estar com seus seguidores, e
que estes ficariam como ovelhas entre lobos, Jesus os adverte
claramente a respeito dos falsos pastores por quem estavam
cercados.
O capítulo inteiro é um sinal marcante de firmeza e fidelidade
na denúncia do erro. É uma prova contundente de que até mesmo o
coração mais amoroso pode usar uma linguagem que transmita a
mais severa repreensão. Acima de tudo, esse capítulo é uma
grande evidência da culpa em que os mestres infiéis incorrem. Esse
capítulo deve ser uma advertência e um farol para todos os
ministros religiosos, enquanto houver mundo. Aos olhos de Cristo,
nenhum pecado é tão maligno quanto os pecados desses falsos
mestres.
Nos doze versículos que iniciam esse capítulo, vemos, em
primeiro lugar, o dever de fazermos uma distinção entre o ofício de
um mestre e o exemplo pessoal desse mestre. Os escribas e
fariseus se assentaram na “cadeira de Moisés”. Fiéis ou infiéis, o
fato é que eles ocupavam a posição de mestres públicos principais
da religião judaica. Embora preenchessem, de modo indigno, essa
posição de autoridade, seu ofício lhes conferia respeito. Porém,
enquanto o ofício deveria ser respeitado, o mau exemplo de vida
daqueles mestres não deveria ser imitado. Os ensinamentos deviam
ser observados até onde contassem com o respaldo das Escrituras;
mas não deveria haver obediência se tais ensinamentos entrassem
em contradição com a Palavra de Deus. Segundo as palavras de
Brentius, os escribas e fariseus “deveriam ser ouvidos enquanto
estivessem ensinando o que Moisés ensinara”, e nada mais além
disso. Pelo teor inteiro do capítulo, evidencia-se que esse era o
pensamento de Jesus. São denunciadas nessa passagem tanto a
falsa doutrina como a falsa vida prática.
Aqui, o dever que nos é recomendado reveste-se de grande
importância. Existe, na mente humana, a tendência constante a cair
em extremos. Se não consideramos o ofício de um ministro com
veneração idólatra, tendemos a tratá-lo com desprezo indecente.
Precisamos manternos em guarda contra ambos os extremos. Por
mais que desaprovemos os procedimentos de um ministro do
evangelho, ou por mais que discordemos de seus ensinamentos,
nunca nos deveríamos esquecer de respeitar seu ofício. Devemos
mostrar que podemos honrar a comissão ministerial, não importa o
que pensemos sobre o ministro. É digno de nota o exemplo de
Paulo, em certa ocasião: “Não sabia, irmãos, que ele é sumo
sacerdote; porque está escrito: ‘Não falarás mal de uma autoridade
do teu povo’” (At 23.5).
Nesses versículos, percebemos, em segundo lugar, que a
inconsistência, a ostentação e o amor à preeminência entre os
cristãos são atitudes especialmente desagradáveis a Cristo. No
tocante à inconsistência, é notável que a primeiríssima coisa que
nosso Senhor diz, a respeito dos fariseus, é: eles “dizem e não
fazem”. Eles requeriam de outros aquilo que eles mesmos não
praticavam. Quanto à ostentação, nosso Senhor declara que eles
faziam todas as suas obras “com o fim de serem vistos dos
homens”. Eles tinham seus filactérios (ou tiras de pergaminho com
textos escritos, que muitos judeus usavam em seu vestuário) feitos
de tamanho exagerado. As “franjas” de suas vestes (que Moisés
havia ordenado para os israelitas como uma lembrança de Deus —
Nm 15.38) tinham uma largura extravagante. E tudo isso era feito
para chamar a atenção e fazer as pessoas pensarem quão santos
eram os escribas e fariseus. Quanto ao amor à preeminência, nosso
Senhor nos diz que os fariseus amavam ocupar “o primeiro lugar”
em público, e gostavam de ser tratados mediante títulos lisonjeiros.
Nosso Senhor, entretanto, reprova todas as atitudes
semelhantes. E nos recomenda que vigiemos e oremos,
precavendo-nos contra tais atitudes. Esses são pecados que
arruínam a própria alma: “Como podeis crer, vós os que aceitais
glória uns dos outros, e contudo não procurais a glória que vem do
Deus único?” (Jo 5.44). Muito mais feliz teria sido a história da igreja
visível de Cristo se essa passagem tivesse sido mais
profundamente considerada e se houvesse mais obediência
implícita a seu espírito. Os fariseus não são as únicas pessoas que
têm imposto medidas austeras a outras pessoas, fingindo, por meio
do traje, possuir uma santidade patente, ao mesmo tempo que
apreciam os elogios humanos. Os anais da história eclesiástica
mostram que um número muito grande de cristãos tem seguido de
perto aqueles religiosos. Lembremo-nos disso e sejamos sábios! É
perfeitamente possível que um cidadão batizado de nossos dias
seja dotado de um espírito decididamente farisaico.
Em terceiro lugar, nesses versículos, vemos que os crentes
jamais devem dar a homem algum os títulos e as honras que são
devidos exclusivamente a Deus e ao seu Cristo. Jesus disse: “A
ninguém sobre a terra chameis vosso pai”. A norma aqui
estabelecida deve ser interpretada com a devida restrição
escriturística. Não somos proibidos de estimar grandemente e amar
os ministros do evangelho, por causa do trabalho que realizam (1Ts
5.13). O próprio apóstolo Paulo, um dos mais humildes santos de
Deus, chamou Tito de “verdadeiro filho segundo a fé” e disse aos
coríntios: “eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus” (1Co
4.15).
Mesmo assim, devemos ter o cuidado de não dar
insensatamente aos ministros um lugar e uma honra que não lhes
pertencem. Jamais devemos permitir que eles se interponham entre
nós e Cristo. Até mesmo os melhores dentre os melhores não são
infalíveis. Eles não são sacerdotes que possam fazer expiação por
nós; não são mediadores que possam cuidar dos interesses de
nossa alma diante de Deus. Eles são homens sujeitos às mesmas
paixões que nós, e que precisam ser lavados no mesmo sangue
expiatório de Cristo e precisam do mesmo Espírito renovador;
homens separados para um alto e santo chamamento, mas, ainda,
afinal de contas, apenas homens. Jamais nos esqueçamos dessas
coisas. Tais medidas acauteladoras sempre nos serão úteis. Pois a
natureza humana sempre preferirá depender de algum ministro do
evangelho, que é visível, a depender do Cristo invisível.
Por último, vemos que não existe graça divina que devesse
distinguir o crente tanto quanto a humildade. Quem deseja ser
grande aos olhos de Cristo deve ter um propósito inteiramente
diferente daquele dos fariseus. O alvo do crente não deve ser tanto
mandar quanto servir à igreja. Baxter disse muito bem: “Na igreja, a
grandeza consiste em sermos grandemente prestativos”. O desejo
dos fariseus era receber honra e ser chamados de “mestres”. O
desejo do cristão deve ser o de fazer o bem, e dar a si mesmo, e
tudo que possua, para o serviço de outrem. Sem dúvida, esse é um
alvo elevado, mas jamais deveríamos contentar-nos com um padrão
inferior. O exemplo de nosso bendito Senhor e o mandamento
deixado nas epístolas dos apóstolos, ambos requerem de nós que
estejamos revestidos de humildade (1Pe 5.5).
Procuremos cultivar essa graça bendita, dia após dia.
Nenhuma outra virtude cristã é mais bela, por mais que seja
desprezada pelo mundo. Nenhuma dá tanta evidência da fé
salvadora e da verdadeira conversão a Deus. Nenhuma é tão
frequentemente elogiada por nosso Senhor. Dentre todas as
palavras de Jesus, dificilmente encontraremos uma declaração que
seja repetida com tanta frequência quanto esta, que encerra a
passagem que estamos lendo: “Quem a si mesmo se humilhar será
exaltado”.
Oito acusações contra os escribas e fariseus
Leia Mateus 23.13-33

N esses versículos, temos as acusações de nosso Senhor contra


os mestres judeus, arranjadas em oito segmentos. Em pé, no
templo, e rodeado por uma multidão que o escutava, Jesus
denuncia publicamente os erros principais dos escribas e fariseus,
sem poupar palavras. Por oito vezes, ele usa a solene expressão “ai
de vós”. Por sete vezes, ele os chama de “hipócritas”. Por duas
vezes, intitula-os de “guias cegos”. Por duas vezes, chama-os de
“insensatos e cegos” e uma vez os intitula como “serpentes, raça de
víboras”.
Atentemos bem para essa linguagem. Ela nos ensina uma lição
solene: quão completamente abominável é, aos olhos de Deus, o
espírito de escribas e fariseus, não importa a forma como se
manifeste. Façamos um exame breve das oito acusações trazidas
por nosso Senhor e procuremos extrair da passagem inteira alguma
instrução geral.
O primeiro ai nessa lista é dirigido contra a sistemática
oposição dos escribas e fariseus ao progresso do evangelho. Eles
“fechavam” o reino dos céus diante dos homens. Nem eles
entravam, nem deixavam que outros entrassem. Tinham rejeitado a
voz de João Batista, que os advertia. Recusaram-se a reconhecer
Jesus como Messias, quando ele apareceu. Eles procuravam tolher
os judeus que se aproximavam de Jesus. Eles mesmos não criam
no evangelho, e faziam tudo para impedir que outros cressem. Isso
era um grande pecado.
O segundo ai na lista é dirigido contra a cobiça e o espírito de
autoengrandecimento dos escribas e fariseus. Eles “devoravam” as
casas das viúvas e, como justificativa, faziam “longas orações”. Eles
tiravam proveito da credulidade de mulheres fracas e desprotegidas,
mediante a simulação de devoção profunda, até que essas
mulheres os considerassem guias espirituais. Não hesitavam em
abusar dessa influência assim, maliciosamente conseguida, com
vistas à obtenção de vantagens pessoais, fazendo da religião um
motivo para ganhar dinheiro. Novamente, esse era um grande
pecado.
O terceiro ai da lista é dirigido contra o zelo dos escribas e
fariseus na obtenção de partidários. Eles rodeavam “o mar e a terra
para fazer um prosélito”. Trabalhavam incessantemente para que
homens se vinculassem ao seu partido e adotassem suas opiniões.
E faziam isso não com a finalidade de beneficiar as almas ou de
trazê-las para Deus. Faziam tudo somente com a finalidade de
engrossar as fileiras de sua seita, ganhar mais prosélitos e
conquistar maior importância. Aquele zelo religioso tinha por origem
o sentimento sectarista, e não o amor a Deus. Esse também era um
grande pecado.
O quarto ai dessa lista é dirigido contra as doutrinas dos
escribas e fariseus a respeito de juramentos. Eles estabeleciam
distinções sutis entre um tipo de juramento e outro. Mais tarde, eles
seguiam o mesmo ensino defendido pelos jesuítas de que alguns
juramentos tinham de ser cumpridos; outros, não. Eles atribuíam
maior importância aos juramentos feitos “pelo ouro” oferecido ao
templo do que aos juramentos “pelo templo” propriamente dito.
Dessa forma, desprezavam o terceiro mandamento e promoviam
seus próprios interesses quando faziam com que os homens
superestimassem o valor dos donativos e ofertas. Esse também era
um grande pecado.
O quinto ai é dirigido à prática dos escribas e fariseus, no
sentido de exaltar as coisas menos importantes acima das questões
realmente sérias da religião, pondo as últimas coisas em primeiro
lugar, e as primeiras por último. Assim, faziam grande questão de
separar o dízimo da hortelã, como se nunca fossem suficientemente
estritos na observância da lei de Deus. Não obstante,
negligenciavam, ao mesmo tempo, grandes e claros deveres
morais, tais como a justiça, o amor e a honestidade. De novo, esse
era um grande pecado.
O sexto e o sétimo ais têm muito em comum para que
possamos separá-los aqui. Eles são dirigidos contra uma
característica geral da religião dos escribas. Para eles, a pureza
exterior e a decência estavam acima da santificação interior e da
pureza de coração. Tinham como um dever religioso limpar o
“exterior” de copos e pratos, porém negligenciavam seu próprio
homem interior. Eles eram como sepulcros caiados, limpos e belos
externamente, mas, por dentro, cheios de corrupção. Por fora,
pareciam justos, mas, por dentro, estavam cheios de hipocrisia e
iniquidade. Esse também era um grande pecado.
O último ai dessa lista é dirigido contra a veneração fingida que
os escribas e fariseus demonstravam pela memória dos santos já
mortos. Eles edificavam os sepulcros dos profetas e adornavam os
túmulos dos justos. No entanto, por sua própria vida, eles provavam
ter a mesma mentalidade daqueles que haviam matado os profetas.
Pela sua própria conduta diária, eles davam evidência de que
preferiam os santos mortos aos santos vivos. Os mesmos homens
que fingiam honrar os profetas mortos não viam qualquer beleza em
um Cristo vivo. Esse também era um grande pecado.
Em tudo isso, temos um quadro melancólico que nosso Senhor
nos dá acerca dos mestres judeus. Ele nos deveria fazer sentir
tristeza e humilhação, pois é uma temível exibição da anatomia
mórbida da natureza humana. É um quadro que, infelizmente, tem
sido reproduzido muitas vezes na História da Igreja cristã. No
caráter dos escribas e fariseus, não há um único ponto em que não
se possa verificar facilmente que pessoas autointituladas cristãs têm
com frequência adotado o mesmo procedimento.
Nessa passagem inteira, podemos ver a deplorável situação
espiritual em que se encontrava a nação judaica quando nosso
Senhor estava sobre a terra. Se assim eram os mestres, quão
grande deve ter sido a escuridão miserável daqueles que por eles
eram ensinados! Verdadeiramente, a iniquidade de Israel havia
atingido o ponto máximo. Já era mais do que chegado o tempo de o
Sol da Justiça aparecer e o evangelho ser pregado.
Com base em toda essa passagem, aprendemos quão
abominável é a hipocrisia aos olhos de Deus. Os escribas e fariseus
não foram acusados de ser ladrões ou assassinos, mas, sim, de ser
hipócritas até o âmago de seu ser. Independentemente do que mais
sejamos em nossa religião cristã, tomemos a firme resolução de que
jamais usaremos uma capa de disfarce. Que em tudo sejamos
honestos e reais!
Aprendamos, mediante toda essa passagem, quão
terrivelmente perigosa é a posição de um ministro infiel! Já é
bastante ruim sermos nós mesmos cegos; mil vezes pior é atuar
como um guia cego. De todos os homens, ninguém é tão
iniquamente culpado quanto um ministro não convertido, e ninguém
será julgado com tanta severidade. Há um ditado solene que se
refere a esse tipo de pastor: “Ele se assemelha a um navegador
incompetente — não naufraga sozinho”.
Finalmente, devemos ter o cuidado de não supor, com base
nessa passagem, que o mais seguro, em se tratando de religião, é
não declarar religião alguma. Isso equivale a cair em um extremo
perigoso. Somente porque alguns homens são hipócritas, isso não
significa que não exista a verdadeira profissão cristã. Nem todo
dinheiro é ruim somente porque existe muita moeda falsa.
Assim, que nenhuma hipocrisia nos impeça de confessar a
Cristo, ou nos afaste de nossa firmeza, se é que já temos feito
confissão de Jesus Cristo! Prossigamos, olhando sempre para
Jesus e descansando nele, orando diariamente para que sejamos
resguardados de todo erro, e dizendo com o salmista: “Seja o meu
coração irrepreensível nos teus decretos” (Sl 119.80).
Últimas palavras públicas de Jesus aos judeus
Leia Mateus 23.34-39

E sses versículos formam a conclusão do discurso de nosso


Senhor Jesus Cristo acerca dos escribas e fariseus. São as
últimas palavras que, como Mestre, falou publicamente ao povo. A
ternura e a compaixão que caracterizam nosso Senhor
resplandecem, de forma magnífica, no término de seu ministério.
Embora tivesse deixado seus adversários ainda na incredulidade,
Jesus demonstrou até o fim que os amava e tinha compaixão deles.
Em primeiro lugar, escudados nesses versículos, aprendemos
que Deus frequentemente usa de grande condescendência para
com os ímpios. Ele enviou aos judeus “profetas, sábios e escribas”.
Ele lhes fez reiteradas advertências. Enviou-lhes mensagem após
mensagem. Não permitiu que continuassem pecando sem
repreensão. Eles jamais poderiam dizer que não haviam sido
avisados quando agiam mal.
Em geral, é dessa maneira que Deus lida com os professos
ainda não convertidos. Ele nunca os deixa perecer em seus
pecados sem antes chamá-los ao arrependimento. Ele bate às
portas de seus corações mediante enfermidades e aflições. Ele
assedia suas consciências por meio de sermões ou pelo conselho
de amigos. Ele abre a sepultura diante deles e os intima a
considerar seus caminhos, roubando-lhes os ídolos em que confiam.
Com frequência, entretanto, não sabem o que tudo isso significa.
Quase sempre estão cegos e surdos a todas as graciosas
mensagens de Deus. Contudo, finalmente haverão de perceber a
mão de Deus, embora talvez seja tarde demais. Descobrirão que
“Deus fala de um modo, sim de dois modos, mas o homem não
atenta para isso” (Jó 33.14). Descobrirão que, a exemplo dos
judeus, eles também tiveram profetas, sábios e escribas que lhes
foram enviados. Em cada ato da Providência, havia uma voz a dizer:
“Convertei-vos, convertei-vos [...] por que haveis de morrer?” (Ez
33.11).
Aprendemos, em segundo lugar, que Deus observa o
tratamento que seus mensageiros e ministros recebem e, um dia,
fará a prestação de contas. Os judeus, como nação, muitas vezes
dispensaram aos servos do Senhor o tratamento mais infame.
Sempre os trataram como inimigos, porque os mensageiros de Deus
lhes diziam a verdade. A alguns, haviam perseguido; a outros,
haviam açoitado; e, a outros ainda, haviam até mesmo executado.
Talvez pensassem que nenhuma prestação de contas lhes seria
requerida. Jesus, entretanto, diz aos judeus que eles estavam
enganados. Tudo que faziam era acompanhado de perto pelos
olhos de Deus. Havia uma mão que registrava em livros eternos
todo o sangue inocente que derramavam. As últimas palavras de
Zacarias, que foi morto entre o santuário e o altar, seriam
comprovadas oitocentos e cinquenta anos mais tarde. Ao morrer, ele
dissera: “O Senhor o verá, e o retribuirá” (2Cr 24.22).
Mais alguns anos e haveria um grande derramamento de
sangue em Jerusalém, como o mundo jamais tinha visto igual. A
cidade santa seria destruída. A nação que havia assassinado tantos
profetas seria, ela mesma, devastada pela fome, pela pestilência e
pela espada. Mesmo os que conseguissem escapar seriam
dispersos pelos quatro ventos e, à semelhança de Caim, o
assassino, se tornariam fugitivos e vagabundos na terra. Todos
sabemos quão literalmente essas afirmações foram cumpridas.
Jesus bem disse: “Em verdade [...] todas estas cousas hão de vir
sobre a presente geração”.
Convém que sublinhemos claramente essa lição. Sempre
estamos demasiadamente aptos a pensar que “o passado é
passado”, e que as coisas que já aconteceram e estão consumadas
e ultrapassadas jamais serão revolvidas outra vez. Esquecemo-nos,
entretanto, que, para Deus “um dia é como mil anos, e mil anos
como um dia” (2Pe 3.8), e os eventos de mil anos atrás estão tão
frescos aos olhos do Senhor quanto os acontecimentos desta
mesma hora. Deus requer aquilo que se oculta no passado e, acima
de tudo, haverá de requerer dos homens o tratamento dado aos
seus santos. O sangue dos cristãos primitivos, derramado pelos
imperadores romanos; o sangue dos valdenses e albigenses, das
vítimas no massacre de são Bartolomeu; o sangue dos mártires que
foram queimados na fogueira por ocasião da Reforma e o sangue
dos que foram mortos pela Inquisição — tudo, tudo isso será
considerado na prestação de contas. Segundo diz um velho ditado,
“as mós da justiça divina moem devagar, porém moem muito fino”.
O mundo ainda verá que “há um Deus, com efeito, que julga na
terra” (Sl 58.11).
Que aqueles que perseguem o povo de Deus tomem
precaução quanto àquilo que estão fazendo! Que se saiba que
todos os que prejudicam, ridicularizam, zombam ou caluniam a
outras pessoas, por motivo de sua religião, cometem um grande
pecado. Cristo toma conhecimento de cada um que persegue seu
próximo por ter uma vida mais correta do que ele, porque ora, lê a
sua Bíblia e pensa sobre o bem de sua alma. Vivo está quem
declarou: “Aquele que tocar em vós toca na menina do seu olho” (Zc
2.8). O dia do juízo mostrará que o Rei dos reis fará com que todos
os que insultam os servos de Deus prestem contas.
Por último, nesses versículos aprendemos que aqueles que se
perdem para sempre perdem-se por sua própria culpa. As palavras
de nosso Senhor Jesus Cristo são muito marcantes: “Quis eu reunir
os teus filhos [...] e vós não o quisestes!”. Há algo nessa declaração
que merece nossa atenção especial. Ela projeta luz sobre um
assunto misterioso e que, em geral, é obscurecido pelas explicações
humanas. É uma declaração que nos mostra como Cristo tem
sentimentos de piedade e misericórdia por muitos que não são
salvos; e mostra-nos que o grande segredo da ruína de um homem
é sua própria falta de vontade. Impotente como é por natureza,
incapaz de ter de si mesmo sequer um bom pensamento e
desprovido de poder em si mesmo para crer e invocar a Deus, ainda
assim o homem parece ter uma poderosa habilidade para arruinar a
própria alma. Incapacitado de praticar o bem, ele se mantém como
um poderoso praticante do mal. Dizemos, e com razão, que uma
pessoa nada pode por si mesma; mas sempre devemos lembrar que
a sede dessa incapacidade é sua própria vontade. Ninguém pode
despertar em si mesmo a vontade de se arrepender e crer; mas todo
homem tem, por natureza, a vontade de rejeitar Cristo e seguir seu
próprio caminho desviado; e se, por fim, não for salvo, tão somente
ficará provado que essa vontade foi a causa de sua perdição. Jesus
Cristo disse: “Não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40).
Deixemos esse assunto com a confiante reflexão de que, para
Cristo, nada é impossível. Até mesmo o coração mais empedernido
pode ser transformado. Sem dúvida, a graça divina é irresistível.
Porém, jamais nos esqueçamos de que a Bíblia fala do homem
como um ser responsável, dizendo acerca de alguns: “vós sempre
resistis ao Espírito Santo” (At 7.51).
Entendamos que a ruína dos que se perdem não é porque
Cristo não esteja disposto a salvá-los, nem porque eles queiram ser
salvos mas não conseguem sê-lo. Eles não são salvos porque não
querem vir a Cristo. Devemos tomar como base a verdade
ressaltada nessa passagem! Cristo deseja reunir a si os filhos dos
homens, mas eles não querem ser reunidos. Cristo deseja salvar os
homens, mas eles não querem ser salvos. Que seja um princípio
bem estabelecido em nossa religião que a salvação do homem —
se salvo — deve-se inteiramente a Deus, enquanto sua ruína — se
perdido — deve-se inteiramente a ele mesmo. A maldade que está
em nós é, em sua inteireza, nossa maldade. E o bem, se é que
temos algum, esse procede inteiramente de Deus. No mundo
vindouro, os salvos atribuirão toda a glória a Deus, e os perdidos
descobrirão que eles mesmos destruíram a si próprios (Os 13.9).
Profecia sobre a destruição de Jerusalém, a
segunda vinda de Cristo e o fim do mundo
Leia Mateus 24.1-14

C om esses catorze versículos, inicia-se um capítulo repleto de


profecias, das quais uma grande parte ainda não foi cumprida.
Trata-se, em verdade, de profecias que deveriam ser profundamente
interessantes para todos os verdadeiros cristãos. Esse é um
assunto acerca do qual o Espírito Santo diz que fazemos bem em
atender (2Pe 1.19).
Todas as passagens proféticas das Escrituras deveriam ser
abordadas com profunda humildade e fervorosa oração, buscando o
ensinamento do Espírito Santo. Em nenhum outro ponto existem
homens de bem que discordam tão inteiramente quanto no caso da
interpretação das profecias. Sobre nenhuma outra questão, os
preconceitos de uma classe, o dogmatismo de outra e as
extravagâncias de uma terceira têm contribuído tanto para furtar a
igreja das verdades designadas por Deus para lhe serem uma
bênção. Com razão, pois, escreveu Olshausen: “O que o homem
não vê ou não deixa de ver quando deseja fazer prevalecer suas
próprias opiniões favoritas?”.
Para compreender a intenção de todo esse capítulo, devemos
manter cuidadosamente em vista a questão que suscitou esse
discurso de nosso Senhor. Ao deixarem o templo pela última vez, os
discípulos, impelidos pelo sentimento natural dos judeus, haviam
chamado a atenção de seu Mestre para as esplêndidas construções
de que o templo era composto. Mas, para grande surpresa e
perplexidade deles, Jesus lhes assevera que tudo aquilo estava
prestes a ser destruído. Essas palavras ficaram profundamente
gravadas na mente dos discípulos. Eles vieram a Jesus quando este
estava assentado no monte das Oliveiras e lhe pediram com
ansiedade evidente: “Diz-nos quando sucederão estas coisas, e que
sinal haverá da tua vinda e da consumação do século”.
É nessa petição que encontramos a chave para a compreensão
do tema da profecia que temos à nossa frente, abrangendo três
pontos: 1) a destruição de Jerusalém; 2) a segunda vinda de Cristo;
3) o fim do mundo. Esses três pontos estão, indubitavelmente,
entrelaçados em algumas partes deste capítulo; tão entrelaçados
que é difícil separar e desembaraçá-los uns dos outros. Mas os três
aparecem distintamente e, sem eles, não é possível explicar
satisfatoriamente esse capítulo.
Os primeiros catorze versículos da profecia ocupam-se de
lições de natureza geral, de largo alcance e aplicação. São lições
que parecem aplicar-se com igual força, tanto para o final da era
judaica como para o final da dispensação cristã, sendo o primeiro
evento notavelmente simbólico do segundo. São lições que
demandam atenção especial de nossa parte, “de nós outros sobre
quem os fins dos séculos têm chegado” (1Co 10.11). Vejamos,
então, quais são essas lições.
A primeira lição geral que se nos apresenta é a advertência
contra o engano. As primeiríssimas palavras de Jesus são: “Vede
que ninguém vos engane”. Não poderíamos conceber uma
advertência mais necessária do que essa. Satanás conhece bem o
valor da profecia e tem sempre procurado lançar o assunto em
descrédito. Os escritos de Josefo comprovam quantos falsos
cristãos e quantos falsos profetas surgiram antes da destruição de
Jerusalém. É possível demonstrar facilmente como os olhos dos
homens estão continuamente cegos, de muitas maneiras, nestes
nossos dias, no que tange às ocorrências futuras. O mormonismo
tem sido muito usado como argumento para se rejeitar toda a
doutrina da segunda vinda de Cristo. Assim, vigiemos e ponhamo-
nos em guarda.
Que ninguém nos engane quanto aos principais fatos da
profecia ainda não cumprida, dizendo-nos que são coisas
impossíveis! Que ninguém nos engane quanto à maneira como virão
a acontecer, afirmando que são improváveis e contrárias à
experiência passada. Que nenhum homem nos engane quanto ao
tempo em que serão cumpridas as profecias, fixando datas ou
asseverando que primeiro deveríamos aguardar pela conversão da
humanidade inteira. Em todos esses particulares, que o sentido
claro das Escrituras seja nossa única norma, e não as tradições da
interpretação humana! Nunca nos envergonhemos de dizer que
esperamos o cumprimento literal das profecias ainda não
cumpridas.
Sejamos francos em reconhecer que existem muitas coisas que
não entendemos, mas, mesmo assim, mantenhamos tenazmente
nossa posição. Que creiamos muito, esperemos e não duvidemos
de que um dia tudo se tomará claro! Acima de tudo, lembremo-nos
de que a primeira vinda do Messias, para sofrer, foi o evento mais
improvável que alguém poderia ter concebido. E não duvidemos de
que, assim como ele veio literalmente, em pessoa, para sofrer,
assim, também literalmente, há de voltar, em pessoa, para reinar.
A segunda grande lição diante de nós é um aviso contra as
expectativas exageradas e extravagantes acerca das coisas que
devem acontecer antes que venha o fim. Essa é uma advertência
tão profundamente importante quanto a anterior. Se ela não tivesse
sido tão negligenciada, a Igreja teria tido uma história muito mais
feliz!
Não devemos esperar por um reino de paz universal, felicidade
e prosperidade antes que o fim aconteça. Se estamos esperando
por essa bonança, ficaremos muito desiludidos. Nosso Senhor nos
manda esperar por guerras, fomes, terremotos e perseguições. É
inútil esperar pela paz enquanto o Príncipe da Paz não retornar.
Então, e só então, as espadas serão transformadas em arados, e as
nações não mais aprenderão a guerra. Somente então, a terra dará
seu fruto (Is 2.4; Sl 67.6).
Não devemos esperar um tempo universal de pureza
doutrinária e prática, na igreja de Cristo, antes que venha o fim. Se o
fizermos, estaremos grandemente equivocados. Nosso Senhor nos
manda ficar na expectativa do aparecimento de falsos profetas, da
multiplicação da iniquidade e do esfriamento do amor de quase
todos. A verdade nunca será recebida por todos os cristãos
professos e a santidade jamais será a norma entre os homens
enquanto o grande Cabeça da Igreja não retornar e enquanto
Satanás não for preso. Então, e só então, haverá uma Igreja
gloriosa, sem defeito e sem mácula (Ef 5.27).
Não devemos esperar que o mundo todo vá se converter antes
que o fim aconteça. Estaremos grandemente equivocados. Será
pregado o evangelho por todo o mundo, para o testemunho de todas
as nações. Porém, não devemos pensar que o evangelho será crido
universalmente. Esse evangelho irá “constituir um povo” (At 15.14)
onde quer que seja fielmente pregado, e esses serão testemunhas
de Cristo. Todavia, a plena convocação das nações não ocorrerá até
que Cristo venha. Então, e somente então, a terra se encherá do
conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar (Hc 2.14).
Guardemos essas coisas no coração, e nunca nos
esqueçamos delas. São verdades extremamente relevantes para o
tempo presente. Aprendamos a moderar nossas expectativas no
tocante a qualquer organização existente na Igreja de Cristo e,
assim, seremos poupados de muito desapontamento. Apressemo-
nos em propagar o evangelho no mundo, pois o tempo é curto, não
longo. A noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Tempos difíceis
nos esperam. Heresias e perseguições podem, em breve,
enfraquecer e distrair as igrejas. Em breve, uma guerra feroz de
princípios pode convulsionar as nações. Em breve, as portas que
agora estão abertas para a prática do bem podem cerrar-se para
sempre. Nossos olhos podem ainda ver o sol do cristianismo pôr-se
entre as nuvens e tempestades no horizonte, como ocorreu com o
sol do judaísmo. Acima de tudo, anelemos pelo retorno de nosso
Senhor. E com um coração disposto a orar diariamente: Vem,
Senhor Jesus!
Continuação das profecias sobre as misérias que
viriam no primeiro e no segundo cercos a
Jerusalém
Leia Mateus 24.15-28

U m dos pontos importantes dessa profecia de nosso Senhor é a


tomada de Jerusalém pelos romanos. Esse evento grandioso
aconteceu cerca de quarenta anos depois de proferidas as palavras
que agora lemos. Uma completa narrativa do acontecimento
encontra-se nos escritos do historiador Josefo. Seus escritos são o
melhor comentário sobre as palavras de nosso Senhor, além de
uma prova notável da exatidão de cada pormenor nas predições de
Cristo. Os horrores e as misérias que os judeus suportaram durante
o cerco de sua cidade superam tudo que já foi registrado.
Verdadeiramente, aquele foi um tempo de tribulação, como desde o
princípio do mundo até agora não tem havido.
Alguns se surpreendem ao ver tamanha importância atribuída à
tomada de Jerusalém. Tais pessoas preferem considerar este
capítulo algo ainda não cumprido. Esquecem-se, porém, de que
Jerusalém e o templo eram o centro da antiga dispensação judaica.
Quando foram destruídos, chegou ao fim o antigo sistema mosaico.
O sacrifício diário, as festas anuais, o altar, o Santo dos Santos, o
sacerdócio — tudo isso era parte essencial da religião revelada, até
que Cristo veio; mas não mais depois disso. Quando ele morreu na
cruz, a finalidade de todas essas partes foi terminada. Estavam
agora mortas, e só restava que fossem sepultadas. Porém, não
convinha que isso fosse feito silenciosamente. Bem poderíamos
esperar que o fim de uma dispensação dada com tanta solenidade,
no monte Sinai, fosse marcado por uma solenidade peculiar.
Nesse sentido, era de se esperar que a destruição do templo
santo, onde tantos santos do Antigo Testamento tinham visto a
“sombra dos bens vindouros” (Hb 10.1), fosse assunto de uma
profecia. E de fato foi. O Senhor Jesus prediz especialmente a
desolação no “lugar santo”. O grande Sumo Sacerdote descreve o
fim de uma dispensação que tinha sido o preceptor para trazer
homens a Cristo.
No entanto, não devemos supor que essa parte da profecia de
nosso Senhor tenha sido inteiramente cumprida na primeira tomada
de Jerusalém. É mais provável que as palavras de nosso Senhor
tenham uma aplicação mais ampla e ainda mais profunda. É mais
provável que se apliquem a um segundo cerco a Jerusalém, ainda
por acontecer, quando Israel já tiver retornado à sua própria terra; e
que se apliquem a uma segunda tribulação, a vir sobre os
habitantes de Israel e que só será detida pelo retomo de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Para alguns, uma visão semelhante dessa passagem pode
parecer surpreendente. Mas os que duvidam da correção dessa
interpretação fariam bem em estudar o último capítulo do profeta
Zacarias e o último capítulo de Daniel. Esses dois capítulos contêm
descrições solenes e lançam luz sobre os versículos que ora
estudamos e sua conexão com os versículos que vêm em seguida.
Resta-nos agora considerar as lições contidas nessa
passagem, para nossa edificação pessoal. São lições claras e
inequívocas. Nelas, pelo menos, não há obscuridade.
Antes de tudo, vemos que fugir do perigo pode, algumas vezes,
ser o dever explícito de um crente. Nosso Senhor ordenou
pessoalmente ao seu povo que fugisse em determinadas
circunstâncias. Sem dúvida, o servo de Cristo não deve ser um
covarde. Ele deve confessar seu Mestre diante dos homens e estar
disposto a morrer, se necessário, pela causa da verdade. Mas, do
servo de Cristo, não se requer que se atire para dentro do perigo, a
menos que isso faça parte de seu dever. Ele não deve envergonhar-
se de usar meios racionais para prover sua segurança pessoal
quando nenhum bem seria conseguido caso ele morresse em seu
posto. Há profunda sabedoria nessa lição. Os verdadeiros mártires
cristãos nem sempre são aqueles que cortejam a morte e têm o afã
de ser queimados ou decapitados. Há ocasiões em que o crente
demonstra maior graça ao ficar quieto, esperando, orando e
aguardando o tempo oportuno, do que desafiando seus adversários
e atirando-se na batalha. Que nós possamos ter a sabedoria para
agir nos tempos de perseguição! Tanto é possível ser impetuoso
quanto ser covarde, e é possível perder a própria serventia quando
se é muito exasperado ou muito passivo.
Em segundo lugar, observemos que, ao entregar essa profecia,
nosso Senhor faz menção especial ao sábado. Ele diz: “Orai para
que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado”.
Esse é um fato que merece nossa atenção. Vivemos em uma
época em que a obrigação de honrar o sábado é frequentemente
negada, até mesmo pelos bons cristãos. Eles nos dizem que o
sábado não é mais obrigatório para nós, como não o são as leis
cerimoniais. É difícil enxergar como tal ponto de vista pode ser
conciliado com as palavras de nosso Senhor nessa ocasião solene.
Quando predisse a destruição final do templo e das cerimônias
mosaicas, parece que Jesus mencionou intencionalmente o sábado,
como se quisesse marcar com honra esse dia. Parece que ele dá a
entender que, embora seu povo houvesse de ser absolvido do jugo
dos sacrifícios e das ordenanças, para eles ainda restava a guarda
do sábado (Hb 4.9). Os defensores do dia do Senhor devem
lembrar-se cuidadosamente desse texto, pois é uma passagem de
grande peso.
Em terceiro lugar, vemos que os eleitos de Deus sempre são
objetos especiais do cuidado de Deus. Por duas vezes nessa
passagem, o Senhor faz menção a eles. “Por causa dos escolhidos”,
os dias da tribulação serão “abreviados”. Não será possível enganar
os “eleitos”. Aqueles a quem Deus escolheu para a salvação,
mediante Cristo, são os que Deus ama especialmente neste mundo.
Eles são as joias de toda a humanidade. Deus tem maior cuidado
com eles do que com os reis que se assentam nos tronos, se são
reis não convertidos.
Deus ouve as orações dos eleitos. Ele ordena todos os
acontecimentos entre as nações, e as causas de guerras, para o
bem e a santificação de seus escolhidos. Ele os guarda por meio do
Espírito, e não permite que nem homem nem demônio os
arranquem de sua mão protetora. Não importa qual tribulação venha
sobre o mundo, os eleitos de Deus estão seguros! Que jamais
repousemos enquanto não tivermos a certeza de pertencer ao
número dos bem-aventurados. E nenhum ser humano pode provar
que não é um dos eleitos. As promessas do evangelho se estendem
a todos. Portanto, esforcemo-nos para confirmar nossa vocação e
eleição! (2Pe 1.10). Os eleitos de Deus são um povo que clama a
ele noite e dia. Quando Paulo viu a fé, a esperança e o amor dos
tessalonicenses, então reconheceu que eram eleitos da parte de
Deus (1Ts 1.4; Lc 18.7).
Finalmente, vemos, nesses versículos, que, seja quando for
que aconteça, a segunda vinda de Cristo será um acontecimento
muito súbito. Será como o relâmpago que “sai do oriente e se
mostra até no ocidente”.
Essa é uma verdade prática que deveríamos ter sempre em
mente. Sabemos, pelas Escrituras, que nosso Senhor Jesus Cristo
em pessoa há de retomar a este mundo. Também sabemos que ele
virá em um tempo de grande tribulação. Mas o momento preciso —
dia, hora, mês e ano — está oculto para nós. Somente sabemos que
será um acontecimento repentino. Nosso dever, portanto, é viver
sempre preparados para a volta de Cristo. Que andemos pela fé, e
não por vista! Creiamos em Cristo, sirvamos a Cristo, sigamos a
Cristo e o amemos. Assim vivendo, não importa o momento em que
Cristo retorne, estaremos prontos para encontrá-lo.
Descrição do segundo advento
Leia Mateus 24.29-35

N essa parte da profecia, nosso Senhor descreve sua própria


segunda vinda para julgar o mundo. Isso, ao menos, é o que
naturalmente se deduz dessa passagem. Qualquer interpretação
menos abrangente parece-nos uma distorção violenta da linguagem
da Escritura. Se as palavras solenes aqui empregadas significam
apenas a vinda dos exércitos romanos a Jerusalém, então podemos
dar uma explicação semelhante a qualquer outro evento na Bíblia. O
evento aqui descrito é algo de muito maior importância do que a
marcha de qualquer exército terreno. Não é outra coisa senão o ato
final que encerrará essa dispensação, o segundo advento de Jesus
Cristo, em pessoa.
Esses versos nos ensinam, em primeiro lugar, que, quando o
Senhor Jesus regressar a este mundo, virá com glória e majestade
peculiares. Ele virá “sobre as nuvens do céu com poder e muita
glória”. Na sua presença, o próprio sol, a lua e as estrelas perderão
seu resplendor, e “os poderes dos céus serão abalados”.
A segunda vinda pessoal de Jesus Cristo será tão diferente da
primeira quanto possível. Ele veio na primeira vez como homem de
tristezas, cercado de aflições. Nasceu em uma manjedoura, em
Belém, pequenino e humilde, e assumiu a forma de servo, tendo
sido desprezado e rejeitado pelos homens desde o início. Ele foi
traído e entregue nas mãos de homens iníquos, condenado por um
julgamento injusto, escarnecido, açoitado, coroado de espinhos e,
por fim, crucificado entre dois ladrões. Na segunda vez, ele virá
como Rei de toda a terra, com toda a majestade real. Os príncipes e
grandes homens deste mundo haverão de comparecer diante de
seu trono, para receber a sentença eterna. Diante dele, toda boca
se calará, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que
Jesus Cristo é o Senhor. Jamais nos esqueçamos disso. Sem
importar o que os homens possam fazer no presente, não
permanecerá zombaria alguma, nem haverá escárnios contra Cristo,
tampouco haverá infidelidade alguma no dia do juízo. Os servos do
Senhor Jesus podem esperar com paciência. Um dia, seu Mestre
será reconhecido como Rei dos reis, por todo o mundo.
Esses versículos nos ensinam, em segundo lugar, que, quando
Cristo retornar a este mundo, cuidará inicialmente de seu povo, os
crentes. Ele enviará “seus anjos” e estes “reunirão seus escolhidos”.
No dia do julgamento final, os verdadeiros crentes gozarão de
perfeita segurança. Nem um único fio de cabelo lhes cairá por terra.
Nem um único osso do corpo místico de Cristo será quebrado.
Houve uma arca para Noé no dia do Dilúvio; houve uma Zoar para
Ló quando Sodoma foi destruída; e haverá em Jesus um
esconderijo para todos os crentes, quando a ira de Deus,
finalmente, descarregar-se sobre este mundo vil. Os poderosos
anjos, que se regozijavam no céu a cada vez que um pecador se
arrependia, haverão de, alegremente, recolher o povo de Deus para
o encontro com o Senhor, nos ares. Sem dúvida, esse dia será
terrível; mas os crentes podem aguardá-lo sem temor.
No dia do juízo, os verdadeiros cristãos serão, por fim, todos
reunidos. Os santos de todos os séculos e de todos os idiomas
serão recolhidos dentre todas as nações. Todos estarão lá, desde o
justo Abel, até a última alma que se converter a Deus; desde o mais
antigo patriarca até a criança que é salva. Portanto, meditemos
sobre quão feliz será esse encontro, quando a família de Deus
estiver toda reunida! Se tem sido agradável nos encontrarmos
ocasionalmente com um ou dois crentes aqui na terra, mais
agradável ainda será nos reunirmos no céu a uma multidão
inumerável, que ninguém pode contar! Certamente podemos
contentar-nos em carregar a cruz e suportar a dor de uma
separação por alguns anos, pois viajamos rumo a um dia em que
nos encontraremos e já não haverá mais separações.
Em terceiro lugar, esses versículos nos ensinam que, até que
Cristo retorne a este mundo, os judeus serão sempre um povo
separado. Nosso Senhor nos diz que “não passará esta geração
sem que tudo isto aconteça”. A existência contínua dos judeus como
uma nação distinta é, inegavelmente, um grande milagre. É uma
daquelas evidências da veracidade da Bíblia que os incrédulos
jamais conseguem anular. Sem uma pátria, sem rei, sem governo,
espalhados e dispersos pelo mundo por cerca de dezenove séculos,
os judeus nunca são absorvidos entre os povos dos países em que
vivem; “é povo que habita só” (Nm 23.9). A única explicação para
isso é o dedo protetor de Deus. A nação judaica permanece de pé
diante do mundo, como uma resposta esmagadora para a
incredulidade, e como um livro vivo que evidencia a veracidade da
Bíblia. Contudo, não deveríamos reputar os judeus apenas como
testemunhas da verdade das Escrituras. Deveríamos contemplá-los
como uma garantia contínua de que, um dia, o Senhor Jesus voltará
outra vez. Tal como a ordenança da Ceia do Senhor, os judeus são
um testemunho da realidade do segundo advento, na mesma
medida que são testemunhas do primeiro advento. Não nos
esqueçamos disso. Em cada judeu errante, contemplemos uma
prova viva de que a Bíblia é verdadeira e de que, um dia, Cristo
haverá de retornar.
Finalmente, esses versículos nos ensinam que as predições de
nosso Senhor certamente se cumprirão. Ele disse: “Passarão o céu
e a terra, porém as minhas palavras não passarão”. Nosso Senhor
conhecia bem a incredulidade natural da natureza humana. Ele
sabia que, nos últimos dias, surgiriam zombadores, dizendo: “Onde
está a promessa da sua vinda?” (2Pe 3.4). Jesus sabia que, quando
retornasse, a fé seria rara entre os seres humanos. Ele anteviu o
grande número de pessoas que iriam rejeitar, com desprezo,
aquelas predições solenes que acabara de fazer, como improváveis,
absurdas e impossíveis.
O Senhor adverte a todos nós, céticos, acerca de pensamentos
assim, com uma advertência de peculiar solenidade. Ele nos diz que
suas palavras haverão de se cumprir no tempo exato; e não
“passarão” sem cumprimento, não importa o que os homens
possam pensar ou dizer a respeito. Todos nós devemos aceitar no
coração essa advertência! Vivemos em uma época de grande
incredulidade. Poucos creram no relato da primeira vinda do Senhor,
e poucos creem no relato de sua segunda vinda (Is 53.1).
Acautelemo-nos, pois, dessa infecção e creiamos no Senhor, para a
salvação de nossa alma. Não estamos lendo fábulas
astuciosamente inventadas, mas, sim, verdades profundas e
importantíssimas. Que Deus nos dê um coração capaz de crer
nessas verdades!
Os dias anteriores à segunda vinda;
recomendação à vigilância
Leia Mateus 24.36-51

N esses versículos, o primeiro assunto a requerer nossa atenção


é o quadro horrendo sobre o estado do mundo quando o
Senhor Jesus voltar. O mundo não terá sido convertido quando
Cristo voltar. Será encontrado nas mesmas condições em que
estava no dia do Dilúvio. Quando veio o Dilúvio, os homens estavam
comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento,
absorvidos em suas atividades mundanas e inteiramente surdos às
repetidas advertências feitas por Noé. Não acreditavam na
possibilidade de um Dilúvio. Recusavam-se a crer que houvesse
algum perigo. No entanto, subitamente veio o Dilúvio “e os levou a
todos”. Todos que não se encontravam com Noé, no interior da arca,
pereceram. Todos foram varridos, de uma vez e para sempre, sem
perdão, não convertidos, despreparados para o encontro com Deus.
E nosso Senhor diz que “assim será também a vinda do Filho do
Homem”.
Sublinhemos essa passagem e a entesouremos nas
profundezas do coração. Há muitas opiniões estranhas sobre esse
assunto, até mesmo entre os homens bons. Não devemos enganar-
nos, imaginando que, antes do retorno do Senhor, todos os homens
virão a se converter ou que a terra se encherá do conhecimento de
Deus. Não sonhemos, supondo que o fim de todas as coisas não
possa estar próximo porque ainda há muita iniquidade, tanto na
igreja como no mundo em geral. Tais concepções são
expressamente contraditadas nessa passagem. Os dias de Noé são
um exemplo verdadeiro dos dias em que Jesus Cristo retornará.
Milhões de professos cristãos serão desmascarados como
insensatos, incrédulos, sem Deus e sem Cristo, mundanos e
desqualificados para o encontro com o Juiz. Tenhamos muito
cuidado para que não sejamos encontrados entre os tais.
Nesse trecho, a segunda coisa que exige nossa atenção é a
completa separação que haverá quando o Senhor Jesus voltar. Por
duas vezes, lemos que “um será tomado, e deixado o outro”. No
presente, o piedoso e o ímpio estão misturados e convivem
juntamente. Nas igrejas, nas cidades, nos campos e por toda a
parte, os filhos de Deus e os filhos deste mundo estão lado a lado.
Mas isso não será sempre assim. No dia do retorno de nosso
Senhor, haverá, enfim, uma completa divisão. Em um momento,
num piscar de olhos, ao ressoar a última trombeta, cada um desses
grupos será separado do outro para sempre. Esposas serão
separadas dos maridos; os pais, dos filhos; os irmãos, das irmãs; os
patrões, de seus empregados; e os pregadores, de seus ouvintes.
Não haverá tempo para palavras de despedida nem para
arrependimento quando o Senhor Jesus voltar. Cada qual será
tomado como estiver, e ceifará conforme o que tiver semeado. Os
crentes serão arrebatados para a glória, a honra e a vida eterna. Os
incrédulos serão deixados para trás, para a vergonha e o desprezo
eternos. Bem-aventurados serão aqueles que estão unidos de
coração, seguindo a Cristo! Sua unidade jamais será quebrada e
perdurará por toda a eternidade. Quem pode descrever a felicidade
daqueles que forem arrebatados quando o Senhor retornar? Quem
pode imaginar a miséria daqueles que forem deixados para trás?
Devemos pensar nessas coisas e considerar nossos caminhos.
A última coisa que nos chama a atenção nesses versículos é o
dever prático de vigiar, diante da expectativa em relação à segunda
vinda de Cristo. Nosso Senhor diz: “Vigiai, porque não sabeis em
que dia vem o vosso Senhor [...] ficai também vós apercebidos;
porque, à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá”.
Esse é um elemento que nosso bendito Mestre insta com
frequência que observemos. Dificilmente encontramos Jesus
aludindo à sua segunda vinda sem acrescentar uma recomendação:
“vigiai”. Ele conhece a dormência de nossa própria natureza. Ele
sabe quão rapidamente nos esquecemos dos assuntos mais
solenes da religião. Ele sabe quão incessantemente Satanás
trabalha para obscurecer a gloriosa doutrina da segunda vinda. Ele
nos arma com exortações poderosas para que examinemos o
próprio coração, para que estejamos atentos e, assim, não
venhamos a sofrer a ruína eterna. Que todos nós possamos dar
ouvidos a essas exortações!
Os verdadeiros cristãos devem viver como atalaias. O dia do
Senhor virá como um ladrão à noite. Os crentes deveriam esforçar-
se para estar sempre de prontidão. Deveriam comportar-se como
sentinelas de um exército em território inimigo. Deveriam tomar a
resolução de, pela graça de Deus, não dormir em seus postos. Há
um texto do apóstolo Paulo que merece atenta consideração:
“Assim, pois, não durmamos como os demais; pelo contrário,
vigiemos e sejamos sóbrios” (1Ts 5.6).
Os verdadeiros cristãos devem viver como bons servos cujo
senhor encontra-se ausente. Devem esforçar-se para estar sempre
prontos para o retorno de seu Senhor. Jamais devem ceder diante
do pensamento “Meu Senhor demora-se”. Eles devem procurar
manter-se em uma atitude de coração que possa, de uma vez por
todas, dar-lhe uma recepção calorosa e cheia de amor, não importa
o momento em que ele venha. Há uma vasta profundidade na
declaração do Senhor: “Bem-aventurado aquele servo a quem seu
senhor, quando vier, achar fazendo assim”. Se não estamos prontos
para, a qualquer momento, receber o Senhor que volta, bem
podemos questionar se somos verdadeiros crentes em Jesus ou
não.
Encerremos esse capítulo com sentimentos solenes. Aquilo
que acabamos de ler requer de nós uma grande sondagem de
coração. Procuremos assegurar-nos de que realmente estamos em
Cristo e de que temos uma arca de salvação para quando o dia da
ira irromper sobre o mundo. Esforcemo-nos para viver de maneira a
sermos declarados “benditos” naquele dia final, e não sermos
lançados fora para sempre. E não menos importante: apaguemos de
nossa mente a ideia generalizada de que a profecia ainda não
cumprida é algo para especulação, e não para a vida prática. Se
essas coisas não são para a vida prática, então simplesmente não
existe religião prática. João disse: “A si mesmo se purifica todo o
que nele tem esta esperança, assim como ele é puro” (1Jo 3.3).
A parábola das dez virgens
Leia Mateus 25.1-13

E ste capítulo é a continuação do discurso profético de nosso


Senhor, no monte das Oliveiras. O tempo a que o discurso se
refere é evidente e inequívoco. Do início ao fim, há uma contínua
alusão à segunda vinda de Cristo e ao fim do mundo.
O capítulo está dividido em três seções. Na primeira, nosso
Senhor usa sua própria segunda vinda como argumento para a
vigilância e a sinceridade na religião. Ele faz isso por meio da
parábola das dez virgens. Na segunda seção, ele usa sua segunda
vinda como argumento para a diligência e a fidelidade. Ele faz isso
mediante a parábola dos talentos. Na terceira, ele resume tudo pela
descrição do grande dia do juízo, uma passagem que, por sua
beleza e majestade, não tem igual no Novo Testamento.
A parábola das dez virgens contém lições peculiarmente
solenes e despertadoras. Vejamos quais são.
Antes de mais nada, vemos que a segunda vinda de Cristo
encontrará a Igreja como um corpo misto, contendo bons e maus
elementos. A igreja professante é comparada a “dez virgens que,
tomando as suas lâmpadas, saíram para se encontrar com o noivo”.
Todas tinham sua lâmpada, mas apenas cinco dispunham de azeite
para alimentar a chama. Todas professavam ter um objetivo em
vista, mas apenas cinco eram verdadeiramente sábias, enquanto as
outras eram insensatas. A igreja visível encontra-se nessa mesma
condição. Todos os seus membros são batizados em nome de
Jesus Cristo, mas nem todos ouvem a voz de Cristo e o seguem.
Todos são chamados cristãos e professam seguir a religião cristã;
mas nem todos têm a graça do Espírito Santo no coração, e não são
aquilo que professam ser. Nossos próprios olhos são testemunhas
disso. O Senhor Jesus nos diz que assim será até que ele venha.
Observemos atentamente essa descrição. É um quadro que
nos humilha. Apesar de todas as nossas pregações e orações,
apesar de toda nossa visitação e de nossos ensinamentos, depois
de todo o esforço missionário no estrangeiro e dos meios de graça
de que dispúnhamos em nossa pátria, muitas dessas pessoas se
acharão, no último dia, mortas em seus delitos e pecados. A
iniquidade e a incredulidade da natureza humana constituem um
assunto acerca do qual todos nós ainda temos muito a aprender.
Em seguida, vemos que a segunda vinda de Cristo, seja
quando for, pegará os homens de surpresa. Essa verdade nos é
apresentada na parábola de maneira impressionante. À meia-noite,
quando as virgens estavam sonolentas e dormentes, ouviu-se um
grito: “Eis o noivo! Saí ao seu encontro”.
Também será assim quando Jesus voltar ao mundo. Ele
encontrará a maioria da humanidade totalmente incrédula e
despreparada. Ele encontrará uma grande parte de seu povo em um
estado de alma indolente e sonolento. Os negócios estarão
seguindo normalmente, na cidade e no campo, exatamente como
agora. A política, o comércio, a agricultura, a compra, a venda e a
busca do prazer estarão controlando a atenção dos homens,
exatamente como agora. Os ricos ainda estarão banqueteando-se
suntuosamente, e os pobres, murmurando e reclamando. As igrejas
ainda estarão cheias de divisões e disputando acerca de
insignificâncias, e as controvérsias teológicas ainda estarão em
voga. Pregadores ainda estarão chamando os homens ao
arrependimento, e o povo, adiando o dia da decisão. Em meio a
tudo isso, o Senhor, em pessoa, aparecerá repentinamente. Na hora
em que ninguém imaginar, o mundo, surpreso, será intimado a
cessar todas as suas atividades e comparecer diante de seu Rei
legítimo. Existe algo de indizivelmente terrível nesse pensamento,
mas assim está escrito e assim será. Um ministro do evangelho
afirmou, ao morrer: “Nenhum de nós está mais do que meio
acordado”.
A seguir, vemos que, quando o Senhor voltar, muitos
descobrirão o valor da religião salvadora, porém já muito tarde. A
parábola nos diz que, quando veio o noivo, as virgens insensatas
disseram às sábias: “Dai-nos do vosso azeite, porque nossas
lâmpadas estão se apagando”. E diz-nos mais: como as sábias não
dispunham de azeite para lhes ceder, as insensatas saíram “para
comprar”. Finalmente, a parábola nos diz que, quando voltaram, a
porta já estava fechada e elas clamaram em vão para que fosse
aberta: “Senhor, senhor, abre-nos a porta!”. Todas essas expressões
são emblemas impressionantes das coisas vindouras. Tomemos
precaução para que tais coisas não se tornem verdadeiras em
nossa própria experiência, pois isso seria nossa ruína eterna.
Podemos estar certos de que, um dia, haverá no mundo uma
completa mudança de opinião quanto à necessidade de um
cristianismo decidido. No presente (todos devemos estar cientes
disso), a maioria dos que se professam cristãos em nada se
preocupa com a validade de seu cristianismo. Eles não têm nenhum
senso de pecado. Não têm nenhum amor a Cristo. Nada sabem
sobre o nascer de novo. Para essas pessoas, arrependimento e fé,
graça e santidade são meras palavras e nomes. São assuntos
indiferentes ou dos quais não gostam. Mas, um dia, todo esse
estado de coisas chegará ao fim. Conhecimento, convicção, o valor
da alma e a necessidade de um Salvador — tudo isso eclodirá no
último dia na mente dos homens, como um relâmpago. Infelizmente,
já será tarde demais! Será muito tarde para estar à procura de
azeite quando o Senhor retornar. Os erros que não tiverem sido
corrigidos até aquele dia serão irrevogáveis.
Somos escarnecidos, perseguidos e julgados insensatos por
causa de nossa religião? Sejamos pacientes e oremos por aqueles
que nos perseguem. Eles não sabem o que estão fazendo. Um dia,
com certeza, vão mudar de atitude. Pode ser que ainda os
escutemos confessar que nós fomos sábios, e eles, insensatos. Um
dia, o mundo inteiro reconhecerá que os santos de Deus fizeram
uma escolha sábia.
Nessa parábola, em último lugar, vemos que, quando Cristo
retornar, os crentes verdadeiros receberão uma rica recompensa por
tudo que sofreram por amor ao Mestre. Somos informados de que,
quando veio o noivo, “as que estavam apercebidas entraram com
ele para as bodas; e fechou-se a porta”.
Somente os verdadeiros crentes estarão prontos por ocasião
do segundo advento. Lavados no sangue da expiação, revestidos da
justiça de Cristo, renovados pelo Espírito Santo, os remidos irão ao
encontro de seu Senhor com ousadia, e tomarão lugar na ceia das
bodas do Cordeiro para, dali, não mais sair. Sem dúvida, essa é
uma perspectiva bendita.Os remidos estarão na companhia de seu
Senhor, com aquele que os amou e que a si mesmo se entregou por
eles, que os sustentou e guiou durante a peregrinação terrestre,
aquele a quem amaram verdadeiramente e a quem seguiram
fielmente sobre a terra, embora em meio a muitas fraquezas e
muitas lágrimas. Sem dúvida, essa também é uma perspectiva
bendita.
A porta será fechada — fechada sobre toda dor e tristeza,
fechada para todo este mundo malvado e ímpio, fechada para as
tentações do diabo, fechada para todas as dúvidas e todos os
temores —, enfim fechada, para nunca mais ser aberta. Sem
dúvida, podemos dizer outra vez que essa é uma perspectiva
bendita.
Lembremo-nos dessas coisas, pois merecem nossa meditação.
Todas são verdadeiras. O crente pode sofrer muita tribulação, mas
tem diante de si uma abundância de consolações. A tristeza pode
durar por uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer (Sl 30.5).
Certamente, o dia do retorno de Cristo trará a compensação por
tudo.
Deixemos para trás essa parábola com a firme determinação
de jamais nos contentarmos com algo menos do que a graça divina
habitando em nossos corações. A lâmpada e o nome de cristão, a
profissão cristã e as ordenanças do cristianismo, todos são bons e
têm seu devido lugar; porém não representam o mais necessário de
todas as coisas. Que não descansemos enquanto não estivermos
certos de ter o “azeite” do Espírito em nosso coração!
A parábola dos talentos
Leia Mateus 25.14-30

A parábola dos talentos assemelha-se à parábola das dez virgens.


Ambas direcionam nossos pensamentos para o mesmo e importante
acontecimento: a segunda vinda de Jesus Cristo. Ambas nos falam
das mesmas pessoas — os membros da Igreja professa de Cristo.
As virgens e os servos representam um só e o mesmo povo, mas
esse povo é considerado de um ângulo diferente, retratando-se
diferentes aspectos de sua atuação. A lição prática de cada
parábola é o principal ponto de diferença. A vigilância é a nota-
chave da primeira parábola, enquanto a diligência é a ênfase da
segunda. A história sobre as virgens exorta a Igreja a vigiar; a
história sobre os talentos conclama a Igreja a trabalhar.
Essa parábola nos ensina, em primeiro lugar, que todos os
cristãos recebem algo da parte de Deus. Somos todos “servos” de
Deus. Todos nós temos “talentos” que nos foram confiados. A
palavra “talento” tem sido curiosamente distorcida quanto ao seu
significado original. Em geral, só é aplicada a pessoas notáveis por
sua habilidade ou dons. São as chamadas pessoas “talentosas”.
Porém, esse uso da expressão é mera invenção moderna. No
sentido que nosso Senhor atribuiu ao termo nessa parábola, a
palavra aplica-se a todas as pessoas batizadas, sem distinção. Aos
olhos de Deus, todos nós temos talentos. Somos todos pessoas
talentosas.
Qualquer coisa pela qual possamos glorificar a Deus constitui
um talento. Nossos dons, nossa influência, nosso dinheiro, nosso
conhecimento, nossa saúde, nossa força, nosso tempo, nossos
sentidos, nosso raciocínio, nosso intelecto, nossa memória, nossos
afetos, nossos privilégios como membros da Igreja de Cristo, nossas
vantagens como possuidores da Bíblia — todos, todos são talentos.
De onde vieram essas coisas? Quem no-las outorgou? Por qual
motivo somos o que somos? Por que não somos vermes que se
arrastam sobre a terra? Há somente uma resposta a todas essas
perguntas. Tudo o que temos é por empréstimo de Deus. Nós
somos mordomos de Deus. Somos devedores a Deus. Que esse
pensamento se abrigue na profundeza de nosso coração.
Em segundo lugar, aprendemos que muitos fazem mau uso dos
privilégios e das misericórdias recebidos de Deus. Na parábola,
lemos acerca de um servo que “abriu uma cova e escondeu o
dinheiro do seu senhor”. Esse homem representa uma grande
parcela da humanidade.
Ocultar nosso talento é negligenciar as oportunidades que
temos de glorificar a Deus. Os que desprezam a Bíblia negligenciam
a oração e não guardam o dia do Senhor; os incrédulos, os sensuais
e os que seguem o pensamento do mundo; os frívolos, os
imprudentes e os que buscam prazeres, os que amam o dinheiro, os
cobiçosos e os autoindulgentes — todos, igualmente, estão
enterrando no chão o dinheiro de seu Senhor. Todos receberam
alguma luz, porém não a utilizam. Todos poderiam ser melhores e
mais úteis do que são, mas estão roubando diariamente a Deus.
Deus lhes confiou muitas coisas, e eles não lhe dão nenhum
retorno. As palavras de Daniel a Belsazar são notavelmente
aplicáveis a toda pessoa não convertida: “A Deus, em cuja mão está
a tua vida, e todos os teus caminhos, a ele não glorificaste” (Dn
5.23).
Em terceiro lugar, aprendemos que todos os que se professam
cristãos um dia haverão de prestar contas a Deus. A parábola nos
diz que, “depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e
ajustou contas com eles”.
Há um julgamento à espera de cada um de nós. Se não há
julgamento, as palavras da Bíblia não têm significado. Negar isso
implica tratar com leviandade as Escrituras. Há um julgamento que
nos aguarda, de acordo com nossas obras, e será seguro, estrito e
inevitável. Importantes ou não, ricos ou pobres, eruditos ou incultos,
todos teremos de comparecer diante do tribunal de Deus e receber
nossa sentença eterna. Não haverá escapatória. Esconder-se será
impossível. Nós e Deus haveremos, enfim, de nos encontrar face a
face. Teremos de prestar contas de cada privilégio que nos foi
concedido e de cada raio de luz desfrutado. Descobriremos, por fim,
que somos tratados como criaturas responsáveis que terão de
prestar contas e que, a quem muito é dado, muito lhe será exigido
(Lc 12.48). Lembremo-nos dessa verdade por todos os dias de
nossa vida. Que julguemos a nós mesmos para que não sejamos
condenados pelo Senhor! (1Co 11.31-32).
Em quarto lugar, aprendemos que os verdadeiros crentes
receberão uma abundante recompensa no grande dia da prestação
de contas. A parábola nos diz que os servos que haviam empregado
bem o dinheiro de seu Senhor foram elogiados: “Servo bom e fiel
[...] entra no gozo do teu senhor”. Essas palavras estão cheias de
conforto para todos os crentes e nos enchem de admiração e
surpresa. O melhor de todos os crentes é apenas uma pobre e frágil
criatura, e precisa do sangue de expiação todos os dias de sua vida.
Entretanto, o menor e mais pobre de todos os crentes descobrirá,
naquele dia, que é contado entre os servos de Cristo, e que seu
labor não foi vão no Senhor. Ele descobrirá, para sua surpresa, que
os olhos de seu Senhor enxergavam maior beleza do que ele
mesmo enxergava em seus esforços para agradar ao Senhor. Verá
que cada hora passada no serviço de Cristo e cada palavra dita em
favor de Cristo ficaram registradas em um livro de memórias. Que
os crentes se lembrem dessas coisas e, assim, tomem coragem! A
cruz pode ser pesada agora, mas a recompensa gloriosa trará
compensação por tudo. Disse Leighton: “Aqui, algumas partículas
de gozo entram em nós; mas, no céu, seremos nós que entraremos
no gozo”.
Por último, aprendemos que todos os membros infrutíferos da
Igreja de Cristo serão condenados e lançados fora no dia do juízo. A
parábola nos diz que o servo que enterrou o dinheiro de seu senhor
foi condenado como “mau e negligente”, “inútil”, sendo lançado
“para fora, nas trevas”. E o Senhor acrescenta estas solenes
palavras: “Ali haverá choro e ranger de dentes”.
No último dia, não haverá desculpa para um crente professo e
não convertido. As razões com que agora ele imagina justificar a si
mesmo se mostrarão inúteis e vãs. Naquele dia, ficará comprovado
que o Juiz de toda a terra agiu com justiça. A ruína do homem
perdido será devida exclusivamente a ele mesmo. As palavras de
nosso Senhor, “sabias que...”, deveriam soar bem alto nos ouvidos
de muitos homens, compungindo-lhes o coração. Milhares de
pessoas estão vivendo sem Cristo e sem conversão, e fazendo de
conta que nada podem fazer a respeito. Mas elas sabem o tempo
todo, em sua própria consciência, que são culpadas. Estão
enterrando seu talento. Não estão fazendo tudo o que podem.
Felizes são os que descobrem essa realidade a tempo. No último
dia, tudo será desvendado.
Pela graça de Deus, passemos adiante com a firme resolução
de nunca nos contentarmos com o cristianismo apenas de nome,
sem vida prática. Cumpre-nos não apenas falar sobre religião, mas
também agir. Não devemos apenas sentir a importância da religião;
devemos também fazer algo a respeito. A parábola não diz que o
servo inútil era um homicida ou um ladrão, nem mesmo afirma que
ele desperdiçava o dinheiro de seu senhor. Mas ele não fez nada, e
essa foi a sua ruína. Tomemos precaução contra um cristianismo do
tipo “nada a fazer”. Tal cristianismo não procede do Espírito de
Deus. “Não ter feito nenhum mal”, diz Baxter, “é elogio para uma
pedra, mas não para um homem”.
O julgamento final
Leia Mateus 25.31-46

N esses versículos, nosso Senhor Jesus Cristo descreve o dia do


julgamento final e algumas das principais circunstâncias
referentes a esse dia. Em toda a Bíblia, existem poucas passagens
mais solenes e que tanto nos perscrutam o coração. Que possamos
lê-la com a atenção séria e profunda que ela merece!
Notemos, em primeiro lugar, quem será o Juiz no último dia.
Lemos que será “o Filho do Homem”, o próprio Jesus Cristo.
O mesmo Jesus que nasceu na manjedoura, em Belém, e
tomou sobre si a forma de servo; que foi desprezado e rejeitado
pelos homens e, com frequência, não tinha onde reclinar a cabeça;
que foi condenado, esmurrado, açoitado e pregado na cruz pelos
príncipes deste mundo — esse mesmo Jesus irá julgar, ele mesmo,
o mundo, quando vier em sua glória. O Pai confiou a ele todo o
julgamento (Jo 5.22). Diante dele, finalmente, todo joelho se dobrará
e toda língua confessará que ele é o Senhor (Fp 2.10-11).
Que os crentes meditem a esse respeito e se consolem! Aquele
que se assentará no trono, naquele grande e espantoso dia, será o
Salvador, o Pastor, o Sumo Sacerdote, o Irmão mais velho e o
Amigo dos crentes. Quando o virem, não terão motivos para se
alarmar.
Que os não convertidos meditem sobre isso e temam! Quem os
julgará será o próprio Cristo, cujo evangelho agora desprezam, e
cujos convites graciosos recusam-se a ouvir. Quão grande
perplexidade sofrerão se persistirem na incredulidade e morrerem
em seus pecados! Ser condenado no último dia por um juiz qualquer
já seria horrível. Porém, ser condenado por aquele que desejava
salvá-los será verdadeiramente terrível. Com muita razão, o salmista
disse: “Beijai o Filho para que se não irrite” (Sl 2.12).
Em segundo lugar, observemos quem será julgado naquele dia.
Lemos que “todas as nações serão reunidas” diante de Cristo.
Todos que já viveram um dia terão de prestar contas de si mesmos
diante do tribunal de Cristo. Todos terão de obedecer à intimação do
grande Rei e receber sua respectiva sentença. Os que não querem
adorar a Cristo neste mundo descobrirão que terão de se apresentar
diante de seu grande tribunal, quando ele voltar para julgar o
mundo.
Todos os julgados serão divididos em duas grandes categorias.
Não haverá mais distinção entre reis e súditos, patrões e
empregados, ou clérigos e pregadores independentes. Não se fará
menção alguma a denominações ou partidos religiosos, porquanto
todas as distinções do passado terão sido eliminadas. Graça ou
nenhuma graça, conversão ou não conversão, fé ou nenhuma fé,
essas serão as únicas distinções que prevalecerão naquele dia.
Todos que forem achados em Cristo serão postos entre as ovelhas,
à sua direita. E todos que não forem achados em Cristo serão
colocados entre os bodes, à sua esquerda. Como disse Sherlock:
“As distinções que agora fazemos de nada nos adiantarão, a menos
que tenhamos o cuidado de ser achados entre o número das
ovelhas de Cristo, quando ele vier para julgar o mundo”.
Em terceiro lugar, observemos de que maneira o julgamento
será conduzido no último dia. Aqui, há particularidades notáveis
sobre o assunto. Vejamos, pois, quais são.
O juízo final será um julgamento de acordo com as evidências.
As obras dos homens serão as testemunhas que serão trazidas à
frente, sobretudo suas obras de caridade. A questão a ser
esclarecida será não apenas o que dissemos, mas também o que
fizemos; não será meramente aquilo que professamos, mas aquilo
que houvermos praticado. Inquestionavelmente, nossas obras não
nos justificarão diante de Deus. Somos justificados pela fé, sem as
obras da lei. Mas a autenticidade de nossa fé será testada pela
qualidade de nossa vida. A fé que não tem obras por si só está
morta (Tg 2.17).
O juízo final será um julgamento que trará alegria para todos os
verdadeiros crentes. Eles ouvirão aquelas preciosas palavras:
“Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino”. Eles serão
propriedade do Mestre, e ele os confessará diante do Pai e dos
santos anjos. Descobrirão que o salário que ele dá aos seus é um
reino — e nada menos que isso. O menor, menos importante e mais
pobre da família de Deus terá uma coroa de glória e será rei.
O juízo final será um julgamento que trará confusão sobre
todos os não convertidos. Eles ouvirão aquelas palavras horríveis:
“Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Eles serão
rejeitados pelo grande Cabeça da Igreja, diante do mundo inteiro
reunido. E descobrirão que, assim como semearam para a carne, da
carne ceifarão corrupção. Não queriam ouvir a Cristo, quando dizia:
“Vinde a mim, e eu vos aliviarei”, e agora terão de ouvi-lo dizer:
“Apartai-vos de mim, para o fogo eterno”. Não quiseram tomar nos
ombros a cruz de Cristo e, portanto, não haverá lugar para eles em
seu reino.
O juízo final será um julgamento que revelará notavelmente o
caráter tanto dos salvos como dos perdidos. Aqueles à direita de
Cristo, suas ovelhas, continuarão “revestidos de humildade”; e
ficarão surpresos ao ouvir o Senhor mencionar e aprovar qualquer
obra que tenham realizado. Do lado esquerdo, os que não foram de
Cristo continuarão cegos em sua justiça própria. Não se mostrarão
sensíveis à sua negligência a Cristo. “Senhor”, dirão, “quando foi
que te vimos e não te assistimos?” Que esse pensamento possa
penetrar em nossos corações! O caráter moral desenvolvido neste
mundo será uma possessão eterna no mundo vindouro. Com o
mesmo caráter que o homem tem ao morrer, haverá também de
ressuscitar.
Observemos, por último, quais serão os resultados finais do dia
do julgamento. Disso, somos informados por meio de palavras que
nunca deveriam ser esquecidas: “E irão estes para o castigo eterno,
porém os justos para a vida eterna”.
Terminado o julgamento, o estado de coisas será imutável e
sem-fim. Tanto a miséria dos perdidos como a felicidade dos salvos,
ambas serão fixadas para sempre. Que ninguém nos engane quanto
a isso! Isso está claramente revelado nas Escrituras. A eternidade
de Deus, a eternidade do céu e a eternidade do inferno, todas estão
alicerçadas em um mesmo fundamento. Tão certo quanto Deus é
eterno, também o céu é um dia interminável, sem noite, e o inferno é
uma noite interminável, sem dia.
Quem descreverá a bem-aventurança da vida eterna? Ela
ultrapassa em muito o poder da concepção humana. Só pode ser
medida por contraste e comparação. Por exemplo, um eterno
descanso após guerra e conflito; a eterna companhia dos santos,
depois de ter batalhado contra um mundo maligno; um corpo
eternamente glorioso e que nunca mais sentirá enfermidade; a
eterna contemplação de Jesus Cristo, face a face, sendo que,
anteriormente, só havia o ouvir e o crer. De fato, tudo isso é bem-
aventurança. Mas metade de tudo isso ainda está para ser contada.
Quem descreverá as misérias da punição eterna? Trata-se de
algo totalmente indescritível e inconcebível. A eterna dor no corpo; a
dor aguda de uma consciência acusadora; a eterna sociedade dos
ímpios com o diabo e seus anjos; a eterna lembrança das
oportunidades negligenciadas e de Cristo desprezado; a eterna
perspectiva de um futuro aborrecido e sem esperança. Tudo isso é
miséria, de fato; o suficiente para fazer nossos ouvidos tinirem e o
sangue gelar em nossas veias. Mesmo assim, esse quadro não é
nada em comparação à realidade.
Encerremos o comentário desses versículos com uma séria
autoinquirição. Perguntemos a nós mesmos de que lado de Cristo
provavelmente estaremos no último dia. Estaremos à sua direita ou
à sua esquerda? Feliz é quem não descansa até que possa dar uma
resposta satisfatória a essa pergunta.
A mulher que ungiu nosso Senhor
Leia Mateus 26.1-13

E stamos nos aproximando da cena final do ministério terreno de


nosso Senhor Jesus Cristo. Até essa altura, temos lido de suas
declarações e de seus feitos. Daqui em diante, vamos ler acerca de
seus sofrimentos e de sua morte. Até agora, nós o temos visto como
o grande Profeta; daqui em diante, nós o veremos como o grande
Sumo Sacerdote.
Essa é uma porção das Escrituras que deveria ser lida com
especial atenção e reverência. O lugar no qual pisamos é terra
santa. Vemos aqui como o Descendente da mulher esmagou a
cabeça da serpente. Vemos aqui o grande sacrifício, para o qual
apontavam todos os sacrifícios do Antigo Testamento. Vemos aqui
como foi vertido o sangue que nos “purifica de todo pecado”, como
foi morto o Cordeiro que “tira o pecado do mundo”. Vemos revelado,
na morte de Cristo, o grande mistério de como Deus pode ser justo
e, mesmo assim, justificar o ímpio. Não nos causa admiração o fato
de que todos os quatro evangelhos contenham um relato completo
desse evento maravilhoso. Acerca de outros detalhes da história de
nosso Senhor, descobrimos que, frequentemente, quando um
evangelista fala, os outros três fazem silêncio. Mas, quando
chegamos à crucificação, temos um relato minuciosamente descrito
por todos os quatro evangelistas.
Nos versículos que acabamos de ler, observemos, em primeiro
lugar, como o Senhor é cuidadoso ao chamar a atenção de seus
discípulos para sua própria morte. Ele lhes disse: “Sabeis que daqui
a dois dias celebrar-se-á a Páscoa; e o Filho do Homem será
entregue para ser crucificado”.
É impossível não notar a conexão dessas palavras com o
capítulo anterior. Pouco antes, Nosso Senhor falava de sua segunda
vinda em poder e glória, no fim do mundo. Ele estava descrevendo o
julgamento final e todos aqueles terríveis acontecimentos. Estivera
falando de si mesmo como o Juiz diante de cujo trono todas as
nações serão reunidas. E então, subitamente, sem pausa ou
intervalo, Jesus começa a falar de sua crucificação. Enquanto as
predições maravilhosas de sua glória final ainda ressoavam nos
ouvidos dos discípulos, ele lhes fala, mais uma vez, dos sofrimentos
que viriam em breve. Relembra-os de que deve morrer como oferta
pelo pecado antes de reinar como Rei; de que deve fazer a
expiação na cruz antes de receber a coroa.
Não há como exagerar a importância da morte expiatória de
Cristo. Ela é o fato central na Palavra de Deus, para o qual nossos
olhos espirituais deveriam estar sempre atentos. Sem o
derramamento do sangue de Cristo, não há remissão de pecados.
Essa é a verdade fundamental, da qual depende o sistema inteiro do
cristianismo. Sem ela, o evangelho é como uma arca sem a quilha;
como um belo edifício sem os alicerces; é como um sistema solar
sem sol.
Que valorizemos grandemente a encarnação de nosso Senhor
e seu exemplo, seus milagres, suas parábolas, seus ensinamentos
e seus feitos; mas, acima de tudo, valorizemos muito a sua morte.
Deleitemo-nos na esperança de sua segunda vinda pessoal e
seu reinado milenar, mas lembremo-nos de que essas verdades
benditas não são mais importantes do que a expiação realizada na
cruz. Afinal de contas, esta é a verdade central das Escrituras:
“Cristo morreu pelos nossos pecados” (1Co 15.3). Lembremo-nos
dessa verdade, dia após dia. Alimentemos com ela, diariamente,
nossas almas. Alguns, como os antigos gregos, podem até
escarnecer da doutrina e chamá-la de “loucura”. Mas jamais nos
envergonhemos de dizer, com Paulo: “Longe esteja de mim gloriar-
me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6.14).
Observemos nesses versículos, em segundo lugar, quanta
honra o Senhor Jesus ama conceder àqueles que o honram. Lemos
que, quando Jesus estava “em casa de Simão, o leproso”, uma
mulher aproximou-se, estando ele à mesa, e lhe derramou sobre a
cabeça um frasco de unguento preciosíssimo. Ela fez isso, sem
dúvida, por reverência e afeição. Tinha recebido de Jesus um
benefício espiritual, e por isso nenhum sacrifício pessoal era grande
demais para honrar o Senhor como retribuição. Não obstante, o ato
daquela mulher levou alguns dos circunstantes a reprová-la, quando
viram o que fizera. Chamaram aquilo de “desperdício”. Disseram
que talvez teria sido melhor vender o unguento e dar o dinheiro aos
pobres. Mas, prontamente, o Senhor repreendeu aqueles homens
insensíveis e críticos. Jesus disse-lhes: “Ela praticou uma boa ação
para comigo”, ação que ele aceitava e aprovava. E Jesus foi mais
além, fazendo uma predição notável: “Onde for pregado em todo o
mundo este evangelho, será também contado o que ela fez, para
memória sua”.
Nesse pequeno incidente, notamos quão perfeitamente nosso
Senhor conhecia os acontecimentos futuros e quão facilmente pode
conferir honra a alguém. Essa profecia, a respeito daquela mulher,
está sendo cumprida a cada dia diante de nossos olhos. Onde quer
que o evangelho de Mateus seja lido, torna-se conhecido o que essa
mulher fez. Os feitos e os títulos de muitos monarcas, imperadores e
generais estão completamente esquecidos, como se tivessem sido
escritos sobre areia. Porém, o ato de gratidão de uma humilde
mulher crente está registrado em centenas de idiomas diferentes e é
conhecido em todo o mundo. O elogio dos homens dura somente
alguns dias, mas o elogio de Cristo permanece para sempre. O
caminho para a honra duradoura consiste em dar honra a Cristo.
Por último, mas não menos importante, vemos nesse incidente
um bendito antegozo das coisas que estão para acontecer no dia do
juízo final. Naquele grande dia, nenhuma honra prestada a Cristo
nesta terra terá sido esquecida por ele. Os discursos dos oradores
parlamentares, os feitos heroicos dos guerreiros, as obras de poetas
e pintores nem serão mencionados. Mas a mínima obra que o
crente mais fraco tiver feito em favor de Cristo ou de seu povo
estará registrada num livro de memórias eternas. Nem uma única
palavra ou atitude gentil, nem um único copo de água fria ou frasco
de perfume, nada deixará de ser registrado no livro. Talvez ela não
tivesse ouro e prata; talvez não tivesse posição social, poder e
influência, mas, se ela amava Cristo, se confessava Cristo e se
trabalhava por Cristo, sua memória estará registrada no céu. Ela
será elogiada diante dos mundos reunidos.
Sabemos o que significa trabalhar por Cristo? Se sabemos,
tenhamos coragem e trabalhemos ainda mais. Qual encorajamento
haveríamos de desejar maior do que este que encontramos aqui? O
mundo pode rir de nós e nos ridicularizar. Nossos motivos podem
ser mal interpretados, e nossa conduta, deturpada. Nossos
sacrifícios por amor a Cristo podem ser chamados de “desperdício”
— desperdício de tempo, desperdício de dinheiro, desperdício de
energia. Porém, que nada disso nos abale! Os olhos daquele que
esteve na casa de Simão, em Betânia, estão postos sobre nós. Ele
vê tudo que fazemos por ele e fica satisfeito. Portanto, “sede firmes,
inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que,
no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1Co 15.58).
O falso apóstolo e seu pecado arraigado
Leia Mateus 26.14-25

N o começo dessa passagem, vemos como nosso Senhor Jesus


Cristo foi traído e entregue nas mãos de seus inimigos mortais.
Os sacerdotes e escribas, embora ansiosos por vê-lo morto, não
sabiam como concretizar seu propósito, pois temiam uma revolta
entre o povo. Então, surgiu um instrumento apropriado, oferecendo-
se para levar adiante seus intentos: Judas Iscariotes. Esse falso
apóstolo dispôs-se a trair seu Mestre por trinta moedas de prata.
Em toda a História, há poucas páginas mais escuras do que as
do caráter e da conduta de Judas Iscariotes. Não há pior evidência
da pecaminosidade do homem. Um de nossos poetas já disse que
“uma criança ingrata é mais cortante do que as presas de uma
serpente”. Mas o que diríamos sobre um discípulo que se dispôs a
trair seu próprio Mestre, de um apóstolo que foi capaz de vender
Cristo? Certamente essa não foi a parte menos amarga do cálice de
sofrimentos que nosso Senhor bebeu.
Com base nesses versículos, em primeiro lugar cumpre-nos
aprender que um homem pode desfrutar de grandes privilégios e
fazer uma grande confissão e, mesmo assim, o tempo todo seu
coração pode não estar correto diante de Deus. Judas Iscariotes
dispunha dos mais elevados privilégios religiosos possíveis. Foi
escolhido para ser apóstolo e companheiro de Cristo. Foi
testemunha ocular dos milagres de nosso Senhor e ouvinte de seus
sermões. Ele viu aquilo que Moisés e Abraão jamais viram, e ouviu
o que Davi e Isaías nunca ouviram. Viveu na companhia dos onze
apóstolos. Foi cooperador de Pedro e João. Porém, a despeito de
tudo isso, seu coração nunca foi mudado; ele se apegava a um
pecado de estimação.
Judas Iscariotes fazia uma respeitável profissão religiosa.
Quanto à sua conduta externa, tudo era correto, apropriado e
coerente. Como os demais apóstolos, ele parecia crer e desistir de
tudo por amor a Cristo. Ele também fora enviado para pregar e
realizar milagres. Parece que nenhum dos onze suspeitou de que
Judas era um hipócrita. Quando nosso Senhor disse: “um dentre vós
me trairá”, ninguém falou: “Será Judas?”. Não obstante, durante
todo aquele tempo, seu coração nunca foi mudado.
Deveríamos observar essas coisas. Elas servem para nos
humilhar e instruir. Assim como a mulher de Ló, Judas foi posto
como um farol para toda a Igreja. Que pensemos frequentemente a
respeito dele e digamos, enquanto meditarmos, “sonda-me, ó Deus,
e conhece o meu coração [...] vê se há em mim algum caminho
mau” (Sl 139.23-24). Tomemos a resolução, pela graça de Deus, de
nunca nos contentar com qualquer coisa menos do que uma
conversão completa e genuína do coração.
Em segundo lugar, aprendamos, com base nesses versículos,
que o amor ao dinheiro é uma das maiores armadilhas para a alma
de um homem. Não podemos imaginar uma prova mais evidente
dessa verdade do que o caso de Judas. Aquela pergunta infame,
“Que me quereis dar?”, revela o pecado secreto que foi a ruína de
Judas. Ele havia desistido de muita coisa por causa de Cristo, mas
não havia desistido de sua cobiça.
As palavras do apóstolo Paulo deveriam soar com frequência
em nossos ouvidos: “O amor do dinheiro é raiz de todos os males”
(1Tm 6.10). A História da Igreja está repleta de ilustrações dessa
verdade. Foi por dinheiro que José foi vendido por seus irmãos. Por
dinheiro, Sansão foi traído e entregue aos filisteus. Por dinheiro,
Geazi enganou Naamã e mentiu para Elizeu. Por dinheiro, Ananias
e Safira tentaram ludibriar o apóstolo Pedro. Por dinheiro, o Filho de
Deus foi entregue nas mãos dos ímpios. Parece extraordinário que a
causa de tantos males seja tão amada pelos homens.
Que todos nós estejamos precavidos contra o amor ao
dinheiro! Em nossos dias, o mundo está cheio desse amor. A praga
está por toda parte. Milhares de pessoas que abominariam a ideia
de adorar uma imagem de escultura não se envergonham de fazer
do ouro um ídolo. Todos nós estamos sujeitos a essa infecção, do
menor ao maior de nós. Podemos amar dinheiro mesmo sem
possuí-lo, da mesma maneira que podemos possuir dinheiro sem
amá-lo. Esse é um mal que opera de forma enganadora. Leva-nos
em cativeiro antes mesmo de nos darmos conta de que já estamos
presos em suas cadeias. Uma vez que permitimos que o amor ao
dinheiro nos domine, ele irá endurecer, paralisar, cauterizar,
congelar, enferrujar e secar nossa alma. Isso aconteceu até mesmo
com um apóstolo de Cristo. Cuidemos para que também não
aconteça conosco. Um pequeno vazamento pode afundar um
grande navio. Um único pecado não mortificado pode arruinar uma
alma.
Deveríamos lembrar-nos com frequência de palavras solenes
como estas: “Que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e
perder a sua alma?”; “nada temos trazido para o mundo, nem cousa
alguma podemos levar dele”. Nossa oração diária deveria ser “não
me dês nem a pobreza nem a riqueza; dá-me o pão que me for
necessário” (Pv 30.8). Nosso alvo constante deveria ser o
enriquecimento na graça. Os que querem ficar ricos em possessões
mundanas frequentemente descobrem, mais tarde, que fizeram a
pior das barganhas. A exemplo de Esaú, trocaram uma porção
eterna por uma pequena gratificação temporária. Assim como Judas
Iscariotes, venderam-se à perdição eterna.
Nesses versículos, aprendemos, por último, a situação
desesperada de todos que morrem sem se converter. As palavras
de nosso Senhor, a respeito do assunto, são peculiarmente solenes.
Ele disse acerca de Judas: “Melhor lhe fora não haver nascido!”.
Essa afirmativa admite apenas uma interpretação. Ela nos
ensina claramente que é melhor nunca viver do que viver neste
mundo sem ter fé e morrer sem a graça divina. Morrer em tal estado
significa ruína para todo o sempre. Trata-se de uma queda sem
recuperação. É uma perda absolutamente irreparável. No inferno,
não haverá possibilidade de mudança. O abismo entre céu e inferno
é enorme, e ninguém pode atravessá-lo.
Essa declaração nunca poderia ter sido usada se houvesse
alguma verdade na doutrina da salvação universal. Se realmente
fosse verdade que, mais cedo ou mais tarde, todos os seres
humanos alcançarão o céu e que, cedo ou tarde, o inferno não terá
mais habitantes, então jamais poderia ter sido dito que seria melhor
um homem “não haver nascido”, conforme Jesus disse. O próprio
inferno perderia seus terrores se viesse a ter um fim. O próprio
inferno se tornaria um lugar suportável se, após milhões de anos,
houvesse esperança de liberdade e de o condenado ir para o céu.
Porém, a salvação universal não encontra fundamento nas
Escrituras. O ensino da Palavra de Deus sobre o assunto é claro e
explícito. Há um “verme” que não morre e um “fogo” que não se
apaga (Mc 9.44). “Se alguém não nascer de novo” (Jo 3.3),
desejará, um dia, nunca ter nascido. Escreveu Burkitt: “Melhor não
existir do que não existir em Cristo”.
Apeguemo-nos firmemente a essa verdade, sem deixá-la
escapar. Sempre existem pessoas com aversão à realidade e à
eternidade do inferno. Vivemos em uma época em que a
benevolência mórbida leva muitos homens a exagerar a misericórdia
de Deus à custa da justiça de Deus; e falsos mestres ousam falar de
um “amor de Deus que ultrapassa até mesmo o inferno”.
Ofereçamos resistência a essa espécie de ensino, movidos por um
santo zelo, e permaneçamos fiéis à doutrina da Sagrada Escritura.
Que não nos envergonhemos de andar nas antigas veredas, crendo
que há um Deus eterno, um céu eterno e um inferno eterno. Se nos
afastarmos dessa crença, estaremos admitindo a cunha afiada do
ceticismo e, por fim, acabaremos negando qualquer doutrina do
evangelho. Entre a crença na eternidade do inferno e a infidelidade
evidente, não há ligação. Acerca disso, podemos estar tranquilos.
A Ceia do Senhor e os primeiros participantes
Leia Mateus 26.26-35

E sses versículos descrevem a instituição da ordenança da Ceia


do Senhor. Nosso Senhor sabia bem as coisas que estavam
diante de si e, graciosamente, escolheu a última noite de quietude
que podia ter, antes da crucificação, como ocasião para conceder
um dom à sua Igreja, antes de partir. Quão preciosa, mais tarde,
deve ter parecido essa ordenança, quando os discípulos se
lembraram dos acontecimentos daquela noite! Quão lamentável
saber que nenhuma outra ordenança tem provocado uma
controvérsia tão feroz ou tem sido tão tristemente mal compreendida
como essa ordenança da Ceia do Senhor. Ela deveria ter unificado a
Igreja, mas nossos pecados a têm transformado em motivo de
divisões. Com frequência, aquilo que visava ao nosso bem tem sido
transformado em ocasião de tropeço.
A primeira coisa que nos chama a atenção nesses versículos é
a correta significação das palavras de nosso Senhor, “isto é o meu
corpo”, “isto é o meu sangue”. É desnecessário dizer que esse
assunto tem causado divisão na igreja visível de Cristo. Muitos
volumes de teologia controvertida já foram escritos a esse respeito,
mas não deveríamos deixar de ter uma opinião bem formada sobre
o assunto, somente porque os teólogos têm disputado, divergindo
entre si. A compreensão equivocada dessas palavras de Cristo já
originou muitas superstições deploráveis.
O nítido sentido das palavras de nosso Senhor parece ser o
seguinte: “Este pão representa o meu corpo. Este vinho representa
o meu sangue”. Jesus não quis dizer que o pão oferecido a seus
discípulos era, real e literalmente, seu corpo. Também não quis dar
a entender que o vinho era, literalmente, seu sangue. Firmemo-nos
nessa interpretação, pois ela conta com o apoio de diversas razões
importantes.
A conduta dos discípulos, na Ceia do Senhor, proíbe-nos de
crer que o pão que receberam fosse o corpo de Cristo e que o vinho
fosse seu sangue. Eles todos eram judeus, ensinados, desde a
infância, a crer que era pecado ingerir a carne juntamente com o
sangue (Dt 12.23-25). No entanto, nada existe nessa narrativa
bíblica que demonstre que tenham ficado chocados com as palavras
de nosso Senhor. Evidentemente, eles não viram mudança no pão e
no vinho.
Nossos próprios sentidos, hoje, impedem-nos de acreditar que,
na celebração da Ceia do Senhor, ocorra modificação no pão e no
vinho. Nosso paladar nos diz que esses elementos são real e
literalmente aquilo com que se parecem. A Bíblia nos manda crer
em fatos que ultrapassam nosso entendimento, mas nunca ordena
que creiamos naquilo que contradiz nossos sentidos.
A verdadeira doutrina acerca da natureza humana de nosso
Senhor proíbe-nos de crer que o pão, na Ceia do Senhor, possa ser
seu corpo, ou o vinho, seu sangue. O corpo natural de Jesus não
pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Se o corpo de
Cristo pudesse estar reclinado à mesa e, ao mesmo tempo, ser
ingerido pelos discípulos, seria perfeitamente claro que aquele não
seria um corpo humano, como o nosso. Isso é algo que jamais
devemos admitir, nem ao menos por um instante. A glória do
cristianismo é que o nosso Redentor é homem perfeito e Deus
perfeito.
Finalmente, o caráter da linguagem empregada por nosso
Senhor durante a Ceia torna inteiramente desnecessário
interpretarmos suas palavras de forma literal. A Bíblia está cheia de
expressões semelhantes, às quais ninguém pensa em dar uma
interpretação que não seja figurativa. Por exemplo, nosso Senhor
fala de si mesmo como a “porta” e a “videira”, e sabemos que ele
está usando símbolos e figuras quando fala desse modo. Portanto,
não há incoerência em supor que ele falou em linguagem figurativa
quando instituiu a Ceia do Senhor. E temos ainda maior direito de
assim pensar quando nos lembramos das graves objeções que
advêm de uma interpretação literal.
Que guardemos essas coisas em mente, e não nos
esqueçamos delas. Numa época em que as heresias tanto se
multiplicam, é bom estarmos bem armados. Pontos de vista
confusos e ignorantes acerca do significado da linguagem das
Escrituras são uma grande causa de erros doutrinários.
A segunda coisa que exige nossa atenção, nesses versículos,
é o propósito e o objetivo para a Ceia do Senhor ter sido instituída.
Novamente, esse é um assunto em torno do qual prevalece muita
obscuridade. A ordenança da Ceia do Senhor tem sido considerada
algo misterioso e que ultrapassa o entendimento. A linguagem vaga
e floreada com que muitos escritores se permitem abordar essa
ordenança tem causado imenso dano ao cristianismo. Nada existe,
na narrativa original da instituição da Ceia, que possa justificar
interpretações desse tipo. Quanto mais simples for nossa
compreensão acerca do propósito dessa ordenança, mais bíblica
será.
A Ceia do Senhor não é um sacrifício. Nela, não há oblação,
nenhuma oferenda de coisa alguma; apenas nossos louvores,
orações e ações de graças. Desde o dia em que Jesus morreu, não
há necessidade de qualquer outra oferenda pelo pecado. Com uma
única oferta, ele aperfeiçoou para sempre todos que estão sendo
santificados (Hb 10.14). Sacerdotes, altares e sacrifícios deixaram
de ser necessários quando o Cordeiro de Deus ofereceu a si
mesmo. Tais ofícios e instituições chegaram ao seu momento final;
sua utilidade cessou para sempre.
A Ceia do Senhor não tem poder de conferir benefícios aos que
dela participam se essas pessoas não se aproximarem com fé. O
mero ato formal de comer o pão e beber o vinho será
completamente inútil, a menos que seja feito com um coração reto.
Acima de tudo, essa é uma ordenança para a alma já vivificada, e
não para aquela que está morta; é uma ordenança para os
convertidos, e não para os não convertidos.
A Ceia do Senhor foi ordenada para ser memorial contínuo do
sacrifício da morte de Cristo até a sua volta. Os benefícios que ela
concede são espirituais, e não físicos. Seus efeitos devem ser
procurados em nosso homem interior. Sua finalidade é lembrarnos,
mediante elementos visíveis e tangíveis, ou seja, o pão e o vinho,
que o oferecimento do corpo e do sangue de Cristo por nós, na cruz,
é a única expiação pelo pecado e é a vida da alma de um crente.
Seus propósitos consistem em ajudar nossa fé débil, para que
tenhamos um relacionamento mais próximo com nosso Senhor
crucificado, e nos assistir e alimentar de maneira espiritual do corpo
e do sangue de Cristo. Trata-se, portanto, de uma ordenança para
os pecadores remidos, e não para anjos que nunca caíram.
Recebendo-a, declaramos publicamente nosso senso de culpa e
nossa necessidade de um Salvador, nossa confiança em Jesus e
nosso amor por ele, nosso desejo de viver alicerçados sobre ele e
nossa esperança de viver com ele. Participando da Ceia dessa
forma, veremos que nosso arrependimento será mais profundo;
nossa fé, fortalecida; nossa esperança, avivada; e nosso amor,
aumentado; nossos pecados costumeiros se enfraquecerão, e as
graças divinas serão intensificadas. Isso, portanto, aproxima-nos
mais de Jesus Cristo.
Tenhamos em mente essas coisas. Elas precisam ser
relembradas nesses nossos últimos dias. Nada existe em nossa
religião que estejamos tão prontos a perverter e entender mal
quanto aquelas partes que envolvem nossos sentidos. Tudo aquilo
que pudermos tocar com as mãos e ver com os olhos, tendemos a
transformar em um ídolo, ou esperar dessas coisas algum benefício,
como se fosse por mágica. Vigiemos, sobretudo, no que diz respeito
à Ceia do Senhor, contra essa nossa tendência. Acima de tudo,
como diz a homilia, tomemos cuidado para “que o memorial não
seja transformado em sacrifício”.
Nessa passagem, a última coisa a merecer uma breve nota é o
caráter dos que participaram da primeira Ceia. Essa é uma
particularidade repleta de consolo e instrução. O pequeno grupo
que, pela primeira vez, recebeu do Senhor a ministração da Ceia
era composto pelos apóstolos a quem ele havia escolhido para
acompanhá-lo durante seu ministério terreno. Eram homens pobres
e iletrados, que amavam Cristo, mas eram todos igualmente fracos,
tanto na fé como no conhecimento. Eles não compreendiam o
significado pleno das afirmações e dos atos de seu Mestre. Não
conheciam a fragilidade de seus próprios corações. Pensavam estar
preparados para morrer em companhia de Jesus; mesmo assim,
naquela mesma noite, todos o deixaram e fugiram. Nosso Senhor
sabia de tudo isso perfeitamente bem. O estado real de seus
corações não lhe era desconhecido. Mesmo assim, ele não lhes
negou a participação na Ceia.
Há um grande ensinamento nessa circunstância. Ela nos
mostra claramente que não devemos impor um grande
conhecimento e um grande vigor espiritual como qualificativos
indispensáveis à participação na Ceia do Senhor. Um homem pode
conhecer bem pouco e não ser mais do que uma criança em termos
de vigor espiritual, mas não deve, por isso, ser excluído da mesa do
Senhor. Esse homem realmente se ressente de seus pecados? Ele
realmente ama Cristo? Tem o desejo autêntico de servir a ele? Se
assim for, devemos recebê-lo e encorajá-lo. Sem dúvida, devemos
fazer todo o possível para excluir os comungantes indignos.
Nenhuma pessoa alheia à graça de Deus deveria participar da Ceia
do Senhor, mas devemos ter cuidado de não rejeitar aquele a quem
Cristo não rejeitou. Não há sabedoria em nos mostrarmos mais
estritos do que nosso Senhor e seus apóstolos.
Passemos adiante, fazendo uma séria autoinquirição de nossa
própria conduta a respeito da Ceia do Senhor. Nós nos afastamos
dela quando está sendo celebrada? Nesse caso, como podemos
justificar nossa conduta? Não podemos alegar que não se trata de
uma ordenança necessária. Dizer isso significa desprezar o próprio
Jesus Cristo e declarar que não obedecemos a ele. Também não
podemos alegar que nos sentimos indignos de participar da mesa
do Senhor. Afirmar isso é o mesmo que declarar que estamos
despreparados para a morte, despreparados para nos encontrar
com Deus. Essas são considerações extremamente solenes. Todos
os que não participam da Ceia do Senhor deveriam ponderá-las
bem.
Temos o hábito de vir à Ceia do Senhor? Nesse caso, com que
atitude fazemos isso? Achegamo-nos a ela de forma inteligente e
humilde, com fé no coração? Compreendemos, na verdade, o que
nos propomos a fazer? Sentimos, efetivamente, nossa
pecaminosidade e nossa necessidade de Jesus Cristo? Desejamos
viver uma vida realmente cristã e professar realmente a fé cristã?
Feliz o homem que pode dar respostas satisfatórias a essas
indagações. Que ele siga em frente e persevere!
A agonia no Getsêmani
Leia Mateus 26.36-46

O s versículos que acabamos de ler descrevem aquilo que é


comumente chamado de a “paixão” de Cristo no Getsêmani. É
uma passagem que, sem dúvida, contém profundidades e mistérios.
Deveríamos lê-la com reverência e admiração, pois nela há muitas
coisas que não podemos compreender inteiramente.
Por que encontramos nosso Senhor muito entristecido e
angustiado, conforme lemos nesse trecho? Como devemos
entender suas palavras: “A minha alma está profundamente triste
até à morte?”. Por que vemos Jesus distanciar-se de seus
discípulos e prostrar-se com o rosto em terra, a fim de dirigir ao Pai
fortes clamores em oração por três vezes? Por que o Todo-
Poderoso Filho de Deus, que fizera tantos milagres, estava agora
tão triste e inquieto? Por que Jesus, que veio ao mundo para morrer,
agora quase desmaiava diante da aproximação da morte? Qual é
porquê de tudo isso?
Só existe uma única resposta razoável a essas indagações. O
peso que estava sobre a alma de nosso Senhor não era o temor da
morte e de suas agonias. Milhares de pessoas têm sofrido os mais
terríveis sofrimentos físicos, morrendo sem emitir um único gemido,
e, sem dúvida, poderia ter sido assim com nosso Senhor. Mas o
peso real, que tanto entristecia o coração de Jesus, era o peso do
pecado do mundo, que, naquele momento, parecia estar pesando
sobre ele com força peculiar. Era a carga de nossa culpa que lhe
estava sendo imputada, que agora estava sendo lançada sobre ele,
como era posta sobre a cabeça do Cordeiro da expiação. Não há
coração humano que possa conceber quão grande era essa carga.
Só Deus o sabe! Bem podia falar a litania grega sobre “os
sofrimentos desconhecidos de Cristo”. E as palavras de Scott sobre
esse assunto provavelmente são corretas: “Cristo, naqueles
momentos, suportava uma penúria tão intensa (como aquela que os
espíritos condenados sofrem) quanto era possível suportar, sem
deixar de ter uma consciência pura, um amor perfeito por Deus e
pelos homens, e uma confiança segura na consumação gloriosa”.
No entanto, por mais misteriosa que nos possa parecer essa
etapa na história de nosso Senhor, não devemos deixar de observar
as preciosas lições de instrução prática nela contidas. Vejamos,
pois, quais são essas lições.
Em primeiro lugar, aprendamos que a oração é o melhor
remédio prático que podemos usar nos tempos de tribulação. Vemos
que Cristo mesmo orou quando sua alma estava angustiada. Todos
os crentes verdadeiros deveriam fazer o mesmo.
As tribulações são um cálice do qual todos nós precisamos
beber neste mundo de pecado. “O homem nasce para o enfado
como as faíscas das brasas voam para cima” (Jo 5.7). Não
podemos evitar isso. Dentre todas as criaturas, nenhuma é tão
vulnerável quanto o homem. Nosso corpo, nossa mente, nossa
família, nossos negócios, nossos amigos, são várias portas por
onde a tribulação pode vir. Até mesmo o mais santificado dos filhos
de Deus não pode declarar-se uma exceção. A exemplo de seu
Senhor, os crentes, com grande frequência, são “homens de dores”
(Is 53.3).
Qual seria a primeira coisa que deveríamos fazer quando nos
sentimos atribulados? Deveríamos orar. À semelhança de Jó,
devemos prostrar-nos e adorar o Senhor (Jó 1.20). Tal como
Ezequiel, devemos expor nossas dificuldades diante do Senhor (2Rs
19.14). A primeira pessoa a quem deveríamos pedir ajuda é ao
nosso Deus. Deveríamos contar ao nosso Pai, que está nos céus,
todas as nossas aflições. Deveríamos confiar que coisa alguma é
por demais pequena ou trivial para ser colocada diante dele,
contanto que façamos isso com inteira submissão à sua vontade.
Uma das características da fé consiste em nada ocultar de nosso
melhor Amigo. Assim agindo, podemos ter a certeza de que
obteremos sua resposta. “Se for possível”, e se a coisa solicitada
contribuir para a glória de Deus, então nosso pedido nos será
outorgado. O espinho na carne será removido de nós ou, então, a
graça divina nos será proporcionada, a fim de que possamos
suportar o espinho, segundo se deu com o apóstolo Paulo (2Co
12.9). Registremos essa lição, para os tempos de necessidade. É
perfeitamente veraz a declaração: “A oração é um remédio que
alivia as preocupações”.
Em segundo lugar, aprendemos que a inteira submissão de
nossa vontade à vontade de Deus deveria ser um de nossos
principais alvos neste mundo. As palavras de nosso Senhor são um
belo exemplo da atitude que devemos cultivar quanto a essa
questão. Ele diz: “Não seja como eu quero, e, sim, como tu queres”.
Uma vontade descontrolada e não santificada é uma grande
causa de infelicidade na vida. Isso pode ser visto até mesmo na vida
dos pequenos infantes. É algo que já nasce conosco. Todos nós
gostamos de fazer as coisas à nossa própria maneira. Desejamos e
queremos muitas coisas, mas nos esquecemos de que somos
totalmente ignorantes acerca do que é melhor para nós, e de que
somos incapazes de escolher por nós mesmos. Feliz é quem já
aprendeu a não ter desejos, e estar contente em qualquer situação.
Essa é uma lição que só aprendemos lentamente e, como o
apóstolo Paulo, não devemos aprendê-la na escola do homem
mortal, mas na escola de Cristo (Fp 4.11).
Desejamos saber se já nascemos de novo e se estamos
crescendo na graça? Nesse caso, vejamos o que acontece no
tocante à nossa vontade. Somos capazes de suportar
desapontamentos? Somos capazes de tolerar com paciência os
testes inesperados e os desgostos que nos sobrevêm? Podemos
ver frustrados nossos planos de estimação e projetos, sem
murmuração e sem queixas? Podemos nos assentar em silêncio e
sofrer calmamente, tanto quanto estar envolvidos em intensa
atividade? Essas são questões que comprovam se realmente temos
a mente de Cristo. Nunca deveríamos nos esquecer de que
sentimentos calorosos e disposições alegres não são as evidências
mais verdadeiras da graça divina. A vontade mortificada é uma
possessão muito mais valiosa. Nem mesmo nosso Senhor se
regozijava em todas as situações, mas sempre podia dizer: “Façase
a tua vontade”.
Por último, aprendamos que existe grande fraqueza até mesmo
nos verdadeiros discípulos de Cristo, e que eles precisam vigiar e
orar a esse respeito. Vemos Pedro, Tiago e João, três apóstolos
escolhidos, dormindo quando deveriam estar vigiando e orando.
Também vemos nosso Senhor dirigindo-se a eles com estas
palavras solenes: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o
espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”.
Há uma dupla natureza em todos os crentes. Convertidos,
renovados e santificados como são, ainda assim eles carregam
consigo uma massa de corrupção, um corpo de pecado. Paulo
refere-se a isso quando assevera: “[...] encontro a lei de que o mal
reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer
na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que,
guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do
pecado [...]” (Rm 7.21-23). A experiência de todos os verdadeiros
cristãos, em todos os séculos, confirma isso. Eles encontram dentro
de si dois princípios contrários e uma batalha contínua entre ambos.
Nosso Senhor alude a esses dois princípios quando se dirige aos
discípulos dormentes. Ele chama a um de “carne” e, ao outro, de
“espírito”: “O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”.
Mas nosso Senhor procurou desculpar essa fraqueza em seus
discípulos? Longe de nós pensar tal coisa. Os que chegam a essa
conclusão interpretam muito mal o que ele quis dizer. Jesus usa
essa mesma fraqueza como argumento para a vigilância e a oração.
Ele nos ensina que o próprio fato de estarmos cercados de tanta
fraqueza deveria despertar-nos continuamente para “vigiar e orar”.
Se desejamos seguir a verdadeira religião cristã, jamais nos
esqueçamos dessa lição. Se desejamos andar com Deus
confortavelmente e não cair, como sucedeu a Davi e Pedro, então
nunca nos esqueçamos de vigiar e orar. Que vivamos como
soldados em território inimigo, montando guarda permanente! Nunca
caminhamos com demasiada cautela. Nunca exercemos cuidado
em demasia por nossa alma. O mundo é muito traiçoeiro. O diabo
está sempre muito ocupado. Que as palavras de nosso Senhor
soem em nossos ouvidos diariamente, como uma trombeta! Talvez o
espírito possa estar pronto, mas a carne é sempre muito fraca.
Portanto, vigiemos sempre e oremos sempre.
O beijo do falso apóstolo; a submissão voluntária
de Jesus Cristo
Leia Mateus 26.47-56

N esses versículos, vemos que o cálice dos sofrimentos de nosso


Senhor Jesus Cristo começa a se encher. Nós o vemos traído
por um de seus discípulos, abandonado pelos demais e aprisionado
por seus inimigos de morte. Certamente, nunca houve tristezas
como aquelas que ele sofreu. Não nos esqueçamos, quando da
leitura desse trecho da Bíblia, que nossos pecados foram a causa
dessas tristezas! Jesus foi “entregue por causa das nossas
transgressões” (Rm 4.25).
Em primeiro lugar, notemos, nesses versículos, como o
relacionamento entre Jesus e seus discípulos foi marcado por uma
graciosa afabilidade. Esse ponto é demonstrado pela circunstância
profundamente comovedora, no momento da traição de nosso
Senhor. Quando Judas Iscariotes ofereceu-se para guiar a multidão
ao lugar no qual seu Mestre estava, ele lhes deu um sinal, mediante
o qual poderiam distinguir Jesus dentre os discípulos, mesmo sob a
fraca luz da lua. Ele disse: “Aquele a quem eu beijar, é esse;
prendei-o”. E, assim, chegando-se a Jesus, disse: “Salve, Mestre!”,
e o beijou. Esse fato simples revela os termos afetuosos com que os
discípulos se associavam a Jesus. Nos países orientais, é costume,
quando dois amigos se encontram, saudar-se com um ósculo (Êx
18.7; 1Sm 20.41). Parece, portanto, que, quando Judas beijou
Jesus, estava apenas fazendo o que todos os apóstolos eram
habituados a fazer quando encontravam o Mestre, após uma
ausência.
Devemos tirar, dessa pequena circunstância, conforto para
nossas próprias almas. Nosso Senhor Jesus Cristo é um Salvador
gracioso e afável. Ele não é “homem severo”, repelindo os
pecadores e mantendo-os a distância. Ele não é um ser tão
diferente de nós, em natureza, que tenhamos de considerá-lo com
assombro, mais do que com afeto. Ao contrário, ele deseja que o
tenhamos na conta de um irmão mais velho e de um querido amigo.
Seu coração, lá no céu, ainda é o mesmo que era neste mundo. Ele
é sempre manso, misericordioso e afável para com os homens
humildes. Confiemos nele, e não tenhamos receio.
Em segundo lugar, observemos como nosso Senhor condena
aqueles que pensam em usar armas carnais em defesa dele ou de
sua causa. Ele reprova um de seus discípulos por ferir um servo do
sumo sacerdote. Ele diz: “Embainha a tua espada”. E acrescenta
uma declaração solene, de perpétua significação: “Todos os que
lançam mão da espada, à espada perecerão”.
A espada tem uma utilização legítima e peculiar. Ela pode ser
empregada com justiça na defesa de nações contra a opressão. Ela
pode tornar-se necessária para evitar confusão, saque ou rapina em
um país. Mas jamais deve ser empregada na propagação e na
manutenção do evangelho. O cristianismo não pode ser imposto
mediante derramamento de sangue, nem podemos obrigar as
pessoas a crerem. A Igreja teria tido uma história mais feliz se essa
sentença fosse lembrada com mais frequência. Existem poucos
países na cristandade em que esse erro não tem sido cometido, na
tentativa de modificar as opiniões religiosas dos homens mediante
compulsão, penalidades, encarceramento e morte. E quais são os
efeitos disso? As páginas da história nos dão a resposta. Não houve
guerras mais sangrentas do que as motivadas pelo choque de
opiniões religiosas. Com muita frequência, infelizmente, os próprios
homens que promovem essas guerras são mortos na batalha.
Nunca nos deveríamos esquecer disso. As armas da milícia cristã
não são carnais, mas, sim, espirituais (2Co 10.4).
Em seguida, observemos como nosso Senhor deixou-se fazer
prisioneiro por sua própria e livre vontade. Ele não foi levado cativo
por não poder escapar. Para ele, teria sido fácil dispersar seus
inimigos pelo vento, se assim tivesse querido fazer. “Acaso pensas”,
disse ele a um discípulo, “que não posso rogar a meu Pai, e ele me
mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos? Como,
pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve
suceder?”.
Nessas palavras, vemos o segredo de sua submissão
voluntária aos inimigos. Ele veio com o propósito de cumprir os
símbolos e as promessas das Escrituras do Antigo Testamento, para
que, cumprindo-os, providenciasse salvação para o mundo. Ele veio
intencionalmente, para ser o verdadeiro Cordeiro de Deus, o
Cordeiro pascal. Veio para ser o bode expiatório, sobre o qual
seriam postas as iniquidades do povo. Seu coração estava resolvido
a realizar essa grande obra. Para isso, era necessário que fosse
“velado o seu poder” (Hc 3.4) por algum tempo. Para fazer essa
obra, ele se tornou um sofredor voluntário. Ele foi preso, julgado,
condenado e crucificado inteiramente por sua própria vontade.
Guardemos na mente esse fato, pois, nele, há muito
encorajamento para nós. O sofredor voluntário também será um
Salvador voluntário. O Filho de Deus, Todo-Poderoso, que consentiu
em ser preso pelos homens e levado cativo quando poderia tê-los
impedido apenas com uma palavra, certamente estará pronto para
salvar as almas que correrem para ele. Uma vez mais, portanto,
devemos aprender a confiar nele, sem receio.
Por último, notemos quão pouco os crentes reconhecem a
fraqueza de seus próprios corações, até que sejam provados. Na
conduta dos apóstolos, temos uma triste ilustração dessa verdade.
Os versículos que acabamos de ler se concluem com as seguintes
palavras: “Então os discípulos todos, deixando-o, fugiram”. Todos
esqueceram as confiantes afirmações feitas por eles mesmos,
poucas horas antes. Esqueceram-se de que tinham declarado sua
disposição de morrer com seu Mestre. Esqueceram-se de tudo,
menos do perigo que agora os encarava de frente. O temor da
morte os dominou e, “deixando-o, fugiram”.
Quantos cristãos já fizeram o mesmo! Sob a influência de
sentimentos agitados, eles prometeram jamais se envergonhar de
Cristo! Depois da Ceia do Senhor, ou de algum sermão poderoso,
ou de algum congresso cristão, eles saíram cheios de zelo e amor,
prontos para dizer a todos que procuravam acautelá-los acerca da
possibilidade de desvio: “Pois que é teu servo, este cão, para fazer
tão grandes coisas?” (2Rs 8.13). No entanto, em poucos dias,
aqueles sentimentos esfriaram e desapareceram. Veio uma
provação e eles caíram diante dela. Abandonaram a Cristo.
Nessa passagem, aprendamos preciosas lições de humildade e
autoabatimento. Resolvamos, pois, pela graça de Deus, cultivar um
espírito de humildade e autodesconfiança. Em nossas mentes,
conscientizemo-nos de que nada existe de tão ruim que o melhor de
nós não possa fazer, a menos que vigiemos, oremos e estejamos
amparados pela graça de Deus. Que uma de nossas orações diárias
seja: “Sustenta-me, e serei salvo” (Sl 119.117)!
Cristo diante do concílio judaico
Leia Mateus 26.57-68

N esses versículos, lemos como nosso Senhor Jesus Cristo foi


levado a Caifás, o sumo sacerdote, e solenemente declarado
culpado. Convinha que assim fosse, pois o grande dia da expiação
havia chegado. O maravilhoso símbolo do bode expiatório estava
prestes a ser completamente cumprido. Era apropriado que o sumo
sacerdote fizesse sua parte e imputasse o pecado sobre a cabeça
da vítima, antes que ela fosse levada para a crucificação. Que
possamos meditar sobre essas coisas e compreendê-las bem!
Havia um profundo significado em cada etapa da paixão de nosso
Senhor.
Observemos, nesses versículos, que os maiorais dos
sacerdotes foram os agentes principais que conspiraram para a
morte de nosso Senhor. Devemos recordar que não foi tanto o povo
judeu que suscitou essa obra de impiedade, mas, sim, Caifás e seus
companheiros, os principais sacerdotes.
Nisso, vemos um fato instrutivo, merecedor de toda a nossa
atenção. Trata-se de uma prova evidente de que elevados ofícios
eclesiásticos não isentam ninguém de graves erros doutrinários ou
de pecados tremendos. Os sacerdotes judeus podiam traçar sua
ascendência desde Aarão, e eram seus legítimos sucessores. Seu
ofício caracterizava-se por santidade e responsabilidades
peculiares. Mesmo assim, esses mesmos homens foram os
assassinos de Cristo!
Tenhamos o cuidado de não considerar infalível nenhum
ministro religioso. Sua ordenação pela igreja, por mais autorizada
que seja, não é garantia de que ele não possa nos desviar do
caminho e até mesmo arruinar nossas almas. O ensino e a conduta
de todos os ministros precisam ser checados pela Palavra de Deus.
Eles devem ser seguidos enquanto estiverem sendo fiéis à Bíblia,
nem um pouco além disso. A máxima estabelecida em Isaías deve
ser nossa diretriz: “À lei e ao testemunho!” (Is 8.20).
Em segundo lugar, observemos que nosso Senhor declarou
abertamente, ao concílio judaico, sua própria messianidade e sua
futura vinda gloriosa. Hoje, nenhum judeu não convertido pode
dizer-nos que seus antepassados foram deixados na ignorância
quanto ao fato de Jesus ser o Messias. A resposta de nosso Senhor
à solene adjuração do sumo sacerdote foi uma declaração
suficiente. Ele afirma claramente, diante do concílio, ser o “Cristo, o
Filho de Deus”. E vai além, advertindo-os de que, embora ainda não
tivesse aparecido em glória, conforme esperavam que o Messias
tivesse feito, chegaria o dia em que apareceria desse modo. “Eu vos
declaro que desde agora vereis o Filho do homem assentado à
direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.” Eles
ainda veriam aquele mesmo Jesus de Nazaré, a quem estavam
julgando em seu tribunal, aparecer um dia em toda a majestade,
como Rei dos reis (Ap 1.7).
Um fato destacado, que não devemos deixar de notar, é que,
nas últimas palavras de nosso Senhor para os judeus, havia uma
predição de advertência acerca de sua própria segunda vinda.
Jesus lhes disse claramente que ainda haveriam de vê-lo em glória.
Sem dúvida, ele se referia ao sétimo capítulo de Daniel, na
linguagem que usou. Mas falava para ouvidos moucos.
Incredulidade, preconceitos e justiça própria cobriam aqueles judeus
como uma nuvem espessa. Nunca houve um caso tão grave de
cegueira espiritual. Por isso é que a litania da Igreja Anglicana
contém a seguinte oração: “De toda a cegueira [...] e dureza de
coração, ó bom Senhor, livra-nos”.
Em último lugar, observemos quanto falso testemunho e quanta
zombaria nosso Senhor precisou suportar diante do concílio judaico.
A falsidade e o ridículo são armas antigas e favoritas do diabo.
Satanás é “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44). Durante todo o
ministério terreno de nosso Senhor, vemos essas armas sendo
continuamente usadas contra ele. Jesus foi chamado de glutão,
bebedor de vinho e amigo de publicanos e pecadores. Foi
menosprezado e chamado de samaritano; e a cena final de sua vida
foi perfeitamente coerente com todo o teor passado. Satanás incitou
os adversários a acrescentarem insulto às agressões. Assim que
Jesus foi declarado culpado, choveu sobre ele toda a sorte de
indignidades: “Uns cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e
outros o esbofeteavam”. Eles diziam, em zombaria: Profetiza-nos, ó
Cristo, quem é que te bateu!”
Quão incrível e estranho tudo isso soa para nós! Quão
maravilhoso que o santo Filho de Deus se tenha submetido
voluntariamente a tais indignidades, a fim de redimir miseráveis
pecadores como nós! Quão maravilhoso é o fato de cada um dos
insultos contra Jesus ter sido predito setecentos anos antes de sua
ocorrência! Setecentos anos antes, Isaías tinha escrito: “Não
escondi o meu rosto dos que me afrontavam e me cuspiam” (Is
50.6).
Extraímos dessa passagem uma conclusão prática. Que jamais
nos surpreenda o fato de termos de enfrentar escárnio, ridículo e
calúnia, porque pertencemos a Jesus Cristo! O discípulo não é
maior que seu mestre, nem o servo é maior que seu Senhor. Se
mentiras e insultos foram lançados contra o nosso Salvador, não
temos de nos admirar quando as mesmas armas são
constantemente usadas contra seu povo. Uma das grandes
artimanhas de Satanás é denegrir o caráter dos homens de Deus e
fazê-los cair em descrédito. As vidas de Lutero, Cranmer, Calvino e
John Wesley são exemplos abundantes disso. Se, alguma vez,
formos chamados a sofrer desse modo, suportemos tudo com
paciência. Bebemos do mesmo cálice de que nosso amado Senhor
bebeu. Mas há uma grande diferença. No pior dos casos,
experimentamos apenas algumas poucas gotas amargas, mas ele
bebeu o cálice todo.
Pedro nega seu mestre
Leia Mateus 26.69-75

E sses versículos relatam um acontecimento notável e


profundamente instrutivo: a negação de Cristo, por parte do
apóstolo Pedro. Esse é um daqueles eventos que provam
indiretamente a veracidade da Bíblia. Se o evangelho fosse mera
invenção humana, nunca teríamos sido informados de que um de
seus principais pregadores foi tão fraco e pecador a ponto de negar
seu Mestre.
A primeira coisa que clama por nossa atenção é a natureza do
pecado de que Pedro se tornou culpado. Foi um grande pecado.
Vemos um homem que havia seguido Cristo por três anos,
destacando-se em sua profissão de fé e amor por ele, um homem
que havia recebido muitíssima misericórdia e amabilidade, e que
fora tratado por Cristo como um amigo familiar — vemos esse
homem negar três vezes que conhecia Jesus! Isso foi muito mau.
Foi um pecado cometido em circunstâncias agravantes. Ademais,
Pedro fora avisado claramente do perigo, e tinha ouvido a
advertência. Havia pouco tinha recebido pão e vinho das mãos de
nosso Senhor, e declarado em alta voz que, ainda que tivesse de
morrer com Cristo, jamais o negaria! Isso também foi muito mau.
O pecado foi cometido sob uma provocação aparentemente
pequena. Duas simples criadas fazem a declaração de que ele
estava com Jesus. Os que estavam ao lado dizem:
“Verdadeiramente, és também um deles”. Nenhuma ameaça parece
ter sido usada; nenhuma violência parece ter sido feita. No entanto,
isso foi suficiente para derrotar a fé de Pedro. Ele negou diante de
todos; negou com juramento e praguejou. Verdadeiramente, esse é
um quadro humilhante!
Frisemos bem essa história, guardando-a na memória, pois nos
ensina, com toda a clareza, que os melhores dos santos não
passam de homens — homens cercados de muitas fraquezas. Um
homem pode converter-se ao Senhor, ter fé, esperança e amor para
com Cristo, e, mesmo assim, ser apanhado em uma falta e sofrer
quedas terríveis. Isso nos mostra a necessidade da humildade.
Enquanto estamos no corpo, corremos perigo. A carne é fraca e o
diabo está sempre ativo. Jamais devemos pensar: “Eu não caio”.
Isso nos mostra o dever de usarmos a bondade para com os
irmãos na fé que erram. Não devemos classificar homens como
réprobos não convertidos somente porque, ocasionalmente,
tropeçam e erram. Antes, devemos lembrar-nos de Pedro, e corrigi-
los com um espírito de brandura (Gl 6.1).
A segunda coisa que demanda nossa atenção é a série de
passos pelos quais Pedro foi levado a negar seu Senhor. Esses
passos estão misericordiosamente registrados, para o nosso
aprendizado. O Espírito de Deus cuidou de tê-los por escrito, em
benefício perpétuo da Igreja de Cristo. Acompanhemos esses
passos, um a um.
O primeiro passo para a queda de Pedro foi a autoconfiança.
Ele disse: “Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o
serás para mim” (26.33). O segundo passo foi a indolência. Seu
Senhor lhe dissera para vigiar e orar; no entanto, em vez de
obedecer, Pedro dormiu. O terceiro passo foi acomodar-se
covardemente. Em vez de ficar ao lado de seu Senhor, ele primeiro
o abandonou e, depois “o seguia de longe”. O último passo foi
expor-se desnecessariamente a más companhias. Ele foi ao pátio
do sumo sacerdote e “assentou-se entre os serventuários”, como se
fosse apenas um deles. Então, veio a queda final: o juramento, os
impropérios e a tríplice negação. Por mais espantoso que pareça, o
coração de Pedro vinha se preparando para aquilo. Sua queda foi
puramente o fruto das sementes que ele mesmo havia semeado.
Colheu o fruto de seu próprio proceder (Jr 17.10).
Não nos esqueçamos dessa parte da história de Pedro. Trata-
se de uma grande lição para todos os que se professam cristãos.
Graves enfermidades raramente nos afetam o organismo sem a
demonstração prévia de uma série de sintomas. Para o crente,
grandes quedas raramente acontecem sem que tenha havido
anteriormente algum desvio secreto. A Igreja e o mundo às vezes
ficam chocados com a súbita má conduta de alguma figura
importante do cristianismo. Crentes são desencorajados e tropeçam
por causa disso. Os inimigos de Deus se regozijam e blasfemam.
Porém, se a verdade pudesse ser conhecida, a explicação para isso
geralmente seria o afastamento secreto de Deus. Os homens caem
em sua vida privada muito antes de caírem em público. A árvore
tomba com grande estrondo, mas a deterioração secreta, que leva à
queda, frequentemente não é descoberta até o momento da queda.
Por último, merece nossa atenção a tristeza que o pecado de
Pedro trouxe sobre ele. No final do capítulo, lemos: “E, saindo dali,
chorou amargamente”. Essas palavras merecem mais atenção do
que costumam receber. Milhares de pessoas leem a história do
pecado de Pedro sem dar importância às suas lágrimas e ao
arrependimento. Que possamos ter olhos para ver·e coração para
entender!
Nas lágrimas de Pedro, vemos a estreita ligação entre o
afastamento de Deus e a infelicidade. Um arranjo misericordioso de
Deus é que, em certo sentido, a santidade sempre será sua própria
recompensa. Um coração pesado e uma consciência perturbada,
uma esperança enevoada e uma colheita abundante de dúvidas
sempre serão a consequência de apostasia e inconsistência. As
palavras de Salomão descrevem a experiência inconsistente de
muitos filhos de Deus: “O infiel de coração dos seus próprios
caminhos se farta” (Pv 14.14). Portanto, que seja um princípio
fundamental de nossa religião cristã, se realmente amamos a paz
interior, que devemos andar sempre perto do Senhor.
Nas lágrimas amargas de Pedro, vemos a grande diferença
entre o hipócrita e o crente verdadeiro. Quando o hipócrita é vencido
pelo pecado, geralmente cai para nunca mais se levantar. Ele não
tem dentro de si nenhum princípio de vida para restaurá-lo. Mas,
quando o filho de Deus cai em pecado, levanta-se novamente e,
mediante verdadeiro arrependimento e pela graça de Deus, corrige
sua vida. Que ninguém se lisonjeie diante do pensamento de que
pode pecar impunemente, só porque Davi cometeu adultério e
Pedro negou seu Senhor. Não há dúvida de que esses dois santos
pecaram grandemente, mas não prosseguiram em seus pecados.
Eles se arrependeram grandemente também. Lamentaram
amargamente sua queda, abominaram e odiaram suas próprias
iniquidades. Seria bom se os homens imitassem esses santos de
Deus em seu arrependimento, tanto quanto em seus pecados.
Muitos estão familiarizados com a queda desses homens de Deus,
mas não com sua recuperação. Muitos, como Davi e Pedro, caíram
em pecado; mas não se arrependeram como Pedro e Davi.
A passagem inteira está cheia de lições que jamais deveríamos
esquecer. Professamos ter esperança em Cristo? Então,
observemos a fraqueza de um crente e os passos que levam até a
queda. Temos nos desviado lamentavelmente e abandonado nosso
primeiro amor? Lembremo-nos, então, de que o Salvador de Pedro
ainda vive. Há misericórdia para nós, tanto quanto houve para ele,
mas precisamos nos arrepender e buscar essa misericórdia, se
realmente desejamos encontrá-la. Voltemo-nos para Deus, e ele se
voltará para nós. Suas misericórdias não têm fim (Lm 3.22).
O fim de Judas Iscariotes
Leia Mateus 27.1-10

O início desse capítulo descreve como nosso Senhor Jesus Cristo


foi entregue nas mãos dos gentios. Os principais sacerdotes e
anciãos dos judeus o conduziram a Pôncio Pilatos, governador
romano. Podemos ver o dedo de Deus nesse incidente. Foi
determinado, por sua providência, que tanto gentios como judeus
estivessem envolvidos na morte de Cristo. Foi determinado, por sua
providência, que os sacerdotes confessassem publicamente que o
cetro se arredara de Judá. Eles não podiam condenar alguém sem a
permissão dos romanos. As palavras de Jacó, portanto, foram
cumpridas. O Messias, “Siló”, já havia chegado (Gn 49.10).
O assunto principal desses versos que lemos é o triste fim do
falso apóstolo, Judas Iscariotes. É um assunto cheio de
ensinamentos. Observemos atentamente o que ele contém.
O fim de Judas Iscariotes é uma prova clara da inocência de
Jesus, diante de todas as acusações levantadas contra ele. Se
havia alguma testemunha viva que pudesse apresentar evidências
contra nosso Senhor Jesus Cristo, Judas Iscariotes era esse
homem. Um apóstolo escolhido de Jesus, um companheiro
constante em todas as suas jornadas, um ouvinte de todo o seu
ensinamento, tanto em público como em particular, Judas era
alguém que saberia dizer se Jesus tinha feito algum mal, fosse por
palavra ou ação. Tendo-se tornado um desertor, um traidor de nosso
Senhor, entregando-o nas mãos dos inimigos, era de seu interesse,
na defesa de sua própria reputação, provar que Jesus era culpado.
Ele poderia disfarçar e desculpar sua própria conduta, se pudesse
demonstrar que seu antigo Mestre era um impostor e transgressor.
Por que, então, Judas não veio acusá-lo? Por que não se
apresentou diante do concílio judaico para especificar suas
acusações contra Jesus, se é que tinha qualquer acusação a fazer?
Por que não se aventurou a acompanhar os principais sacerdotes
até Pilatos, para provar aos romanos que Jesus era um malfeitor?
Só há uma resposta possível a essas perguntas. Judas não se
apresentou como testemunha porque sua consciência não lhe
permitiu fazer isso. Por mais maldoso que fosse, Judas sabia que
nada podia provar contra Cristo. Por mais iníquo que fosse, ele
sabia que seu Mestre era santo, inofensivo, inocente, verdadeiro e
sem culpa. Que isso nunca seja esquecido! A ausência de Judas
Iscariotes no julgamento de nosso Senhor é uma das muitas provas
de que o Cordeiro de Deus era sem mácula alguma, um homem
sem pecado.
Outrossim, vemos na morte de Judas que existe um tipo de
arrependimento que vem muito tarde. Lemos claramente que Judas
ficou “tocado de remorso”. Lemos até mesmo que ele foi aos
sacerdotes e disse: “Pequei, traindo sangue inocente”. Mesmo
assim, está claro que ele não se arrependeu para a salvação.
Esse é um ponto que merece especial atenção. Popularmente,
diz-se: “Nunca é tarde para se arrepender”. Isso é verdade somente
se o arrependimento for verdadeiro; porém, infelizmente, com
frequência o arrependimento tardio não é genuíno. Uma pessoa
pode sentir por seus pecados e se entristecer por eles, sentir uma
forte convicção de culpa e expressar profundo remorso, ser
atormentada pela consciência e demonstrar grande perturbação
mental; e, mesmo assim, a despeito disso tudo, não se arrepender
de coração. A razão desses sentimentos pode ser o perigo presente
e o temor da morte, e o Espírito Santo pode não ter realizado obra
alguma nessa pessoa.
Cuidemos para não confiar no arrependimento tardio. “Eis
agora o tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação”
(2Co 6.2). Um ladrão penitente foi salvo na hora da morte, para que
ninguém se desesperasse quanto à salvação; mas apenas um, para
que ninguém seja presumido. Que não desconsideremos qualquer
coisa que diga respeito à nossa salvação; acima de tudo, não
deixemos de lado o arrependimento mediante a ideia vã de que só
depende de nosso próprio poder. As palavras de Salomão sobre
esse assunto são realmente temíveis: “Então me invocarão, mas eu
não responderei; procurar-me-ão, porém não me hão de achar” (Pv
1.28).
Em seguida, observemos, na morte de Judas Iscariotes, quão
pouco conforto a iniquidade traz a uma pessoa no fim de sua vida.
Somos informados de que ele atirou para o santuário as trinta
moedas de prata, pelas quais tinha vendido seu Mestre, e saiu em
amargura de espírito. Esse dinheiro fora ganho de maneira penosa.
Não lhe trouxe prazer algum, mesmo quando já o tinha consigo. “Os
tesouros da impiedade de nada aproveitam” (Pv 10.2).
O pecado, na verdade, é o mais cruel de todos os senhores.
Ele faz muitas promessas maravilhosas, mas que não se
concretizam. Os prazeres que ele dá são momentâneos, enquanto
seus resultados são tristeza, remorso, autoacusação e, muitas
vezes, a própria morte. Os que semeiam para a carne colhem
corrupção.
Sentimo-nos tentados a cometer pecado? Lembremo-nos das
Escrituras: “O vosso pecado vos há de achar” (Nm 32.23). E, em
face disso, resistamos à tentação. Estejamos certos de que, cedo ou
tarde, nesta vida ou na vida futura, neste mundo ou no dia do juízo,
pecado e pecador terão de se encontrar face a face para uma
amarga prestação de contas. Estejamos seguros de que, de todas
as ocupações, o pecado é a mais desvantajosa. Judas, Acã, Geazi,
Ananias e Safira — todos descobriram isso à sua própria custa.
Com razão, o apóstolo Paulo indagou: “Naquele tempo que
resultados colhestes? Somente as cousas de que agora vos
envergonhais” (Rm 6.21).
Finalmente, notemos, no caso de Judas, a que fim miserável
um homem pode chegar se tem grandes privilégios e não os utiliza
corretamente. Somos informados de que esse infeliz “retirou-se e foi
enforcar-se”. Que morte horrível! Um apóstolo de Cristo, um ex-
pregador do evangelho, um companheiro de Pedro e João, cometeu
suicídio e, assim, precipitou-se à presença de Deus sem preparo e
sem perdão.
Nunca nos esqueçamos de que nenhum pecador é mais
pecaminoso do que aquele que peca contra a luz e contra o
conhecimento. Nenhum pecador é tão ofensivo a Deus quanto esse.
Quando olhamos para as Escrituras, notamos que nenhum pecador
tem sido tão frequentemente removido de súbito deste mundo, por
terríveis visitações da ira de Deus, quanto esse tipo. Lembremo-nos
da mulher de Ló, Faraó, Coré, Datã e Abirã, e Saul, rei de Israel.
Todos comprovam o que acabamos de dizer. Há uma declaração
solene de John Bunyan que diz: “Ninguém cai tão profundamente no
poço quanto aqueles que caem retrocedendo”. Está escrito em
Provérbios: “O homem que muitas vezes repreendido endurece a
cerviz será quebrantado de repente, sem que haja cura” (Pv 29.1).
Que todos possamos nos esforçar para viver de acordo com a luz
que já nos foi dada! Existe algo que é pecado contra o Espírito
Santo e não tem perdão: o claro conhecimento da verdade na
cabeça, combinado com o amor deliberado pelo pecado no coração.
Agora, em que estado nossos corações se encontram? Somos
tentados a confiar no nosso conhecimento e profissão religiosa,
como se isso bastasse? Lembremo-nos de Judas e tenhamos
cautela. Estamos inclinados a nos apegar ao mundo e dar ao
dinheiro lugar de proeminência em nossas mentes? De novo,
lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Estamos brincando
com algum pecado e enganando a nós mesmos, afirmando que
podemos deixar o arrependimento para mais tarde? Novamente,
lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Ele foi posto diante de
nós como um farol, para que olhemos bem para ele e não
naufraguemos na fé.
Cristo condenado diante de Pilatos
Leia Mateus 27.11-26

E sses versículos descrevem o comparecimento de nosso Senhor


diante de Pôncio Pilatos, o governador romano. Os amigos de
Deus devem ter ficado maravilhados ao ver aquele que, um dia, iria
julgar o mundo permitindo ser ele mesmo julgado e condenado. Ele,
“que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (Is
53.9). Ele, de cujos lábios Caifás e Pilatos um dia receberão a
sentença eterna, permitiu silenciosamente que uma sentença injusta
lhe fosse proferida. Esses sofrimentos em silêncio cumpriram as
palavras proféticas de Isaías: “Como ovelha, muda perante os seus
tosquiadores, ele não abriu a sua boca” (Is 53.7). Toda a paz e toda
a esperança dos crentes devem-se a esses sofrimentos em silêncio.
É por causa deles que os crentes terão ousadia no dia do
julgamento, pois nada poderiam alegar por si mesmos.
Pela conduta de Pilatos, aprendemos como é lastimável a
condição de um homem poderoso mas sem princípios. Pilatos,
aparentemente, tinha concluído que nosso Senhor nada fizera digno
de morte. Ele sabia que, “por inveja, o tinham entregado”. Caso
seguisse seu próprio julgamento, Pilatos provavelmente teria
rechaçado as acusações contra nosso Senhor, e o teria posto em
liberdade.
Pilatos, entretanto, era governador de um povo invejoso e
turbulento. Seu grande desejo era buscar a simpatia do povo e
agradá-lo. Pouco lhe importava quanto pecasse contra Deus e
contra a própria consciência, contanto que recebesse o aplauso dos
homens. Embora desejoso de salvar a vida de nosso Senhor, ele
temia que, ao assim fazer, acabasse ofendendo os judeus. Por isso,
depois de uma tentativa débil de desviar a fúria do povo, de Jesus
para Barrabás, e de uma tentativa ainda mais débil para satisfazer a
própria consciência, lavando publicamente as mãos, ele finalmente
veio a condenar aquele a quem ele mesmo chamara de “justo”. Ele
rejeitou a estranha e misteriosa advertência que sua esposa lhe
enviara depois de um sonho. Ele sufocou protestos de sua própria
consciência e entregou Jesus “para ser crucificado”.
Observe, nesse homem miserável, um emblema vivo de muitos
governantes deste mundo! Quantos há que têm consciência de que
seus atos públicos estão errados, mas, mesmo assim, não têm
coragem para agir de acordo com essa consciência! Eles temem o
povo. Receiam tornar-se motivo de risos. Não podem suportar a
impopularidade. Como peixes mortos, eles flutuam com a maré. O
louvor dos homens é o ídolo diante do qual se prostram, e a esse
ídolo sacrificam a consciência, a paz interior e a alma imortal.
Qualquer que seja nossa posição social nesta vida, devemos
ser guiados por princípio, e não por conveniência. O louvor dos
homens é algo pobre, débil e inconstante. Está aqui hoje, mas
amanhã já terá partido. Que nos esforcemos para agradar a Deus!
Então, pouco nos importará se agradamos ou não os demais. Se
tememos ao Senhor, então não precisamos ter receio de ninguém
mais.
Convém aprendermos, pela conduta dos judeus, nessa
passagem, a irremediável iniquidade da natureza humana. O
comportamento de Pilatos deu aos principais sacerdotes e anciãos a
oportunidade de reconsiderarem o que estavam fazendo. As
dificuldades que levantou acerca da condenação de nosso Senhor
fizeram com que eles tivessem tempo para pensar melhor. Mas os
inimigos de nosso Senhor não mudaram de ideia; antes, insistiram
na concretização de sua maldade. Rejeitaram a proposta de Pilatos.
Na verdade, entre um criminoso vil e Jesus, eles preferiram que o
primeiro fosse posto em liberdade. Clamaram em altas vozes pela
crucificação de nosso Senhor; e, afinal, assumiram sobre si mesmos
toda a culpa pela morte dele, com palavras de gravíssima
significação: “Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos!”.
Mas o que nosso Senhor havia feito para que os judeus o
odiassem tanto? Ele não era ladrão nem assassino. Não era
blasfemador contra Deus nem caluniador dos profetas. Sua vida
caracterizava-se pelo amor. Ele “andou por toda parte, fazendo o
bem e curando a todos os oprimidos do diabo” (At 10.38). Ele era
inocente de qualquer transgressão contra a lei de Deus ou dos
homens. Mesmo assim, os judeus o odiavam e não descansaram
enquanto não o viram morto! E odiavamno porque ele lhes dizia a
verdade. Odiavam-no porque ele testificava das obras más que
cometiam. Eles odiavam a luz porque ela tornava visíveis as trevas
em que viviam. Em suma, eles odiavam Cristo porque ele era justo,
e eles, iníquos; porque ele era santo, e eles, profanos; porque ele
testificava contra o pecado, e eles estavam determinados a
continuar agarrados aos seus pecados.
Observemos o seguinte: poucas coisas são tão pouco
percebidas e cridas quanto a corrupção da natureza humana. Os
homens imaginam que, se vissem uma pessoa perfeita, haveriam de
amá-la e admirá-la. Eles enganam a si mesmos, afirmando que é da
inconsistência dos que se dizem cristãos que não gostam, e não de
sua religião em si. Esquecem-se de que, quando um homem
realmente perfeito esteve neste mundo, na pessoa do Filho de
Deus, esse homem foi odiado e morto. Esse fato é suficiente para
provar a veracidade do que Jonathan Edwards disse: “Os homens
não convertidos matariam Deus se pudessem alcançá-lo”.
Jamais nos deveríamos surpreender diante da iniquidade
prevalente no mundo. Compete-nos lamentar tal iniquidade e
esforçarmo-nos para diminuí-la, mas nunca nos surpreender com
sua extensão. Nada há de tão perverso que o coração do homem
não possa conceber ou a mão do homem não possa fazer.
Enquanto estivermos vivos, devemos desconfiar de nosso próprio
coração. Mesmo quando renovado pelo Espírito Santo, “enganoso é
o coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente
corrupto” (Jr 17.9).
Os sofrimentos de Cristo nas mãos dos soldados
e a crucificação
Leia Mateus 27.27-44

E sses versículos descrevem os sofrimentos de nosso Senhor


Jesus Cristo depois de sua condenação por Pilatos — seus
sofrimentos nas mãos dos brutais soldados romanos e seu
sofrimento final, na cruz. São cenas que formam um maravilhoso
registro histórico. São maravilhosas quando nos lembramos do
Sofredor, o eterno Filho de Deus. São maravilhosas quando nos
lembramos das pessoas por quem esses sofrimentos foram
suportados. Nós e nossos pecados fomos a causa de todas essas
tristezas. “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1 Co. 15.3).
Antes de tudo, observemos a extensão e a realidade dos
sofrimentos de nosso Senhor. A lista de dores infligidas ao corpo de
nosso Senhor é, de fato, terrível. Raramente o corpo de uma pessoa
tem sofrido tantos maus-tratos durante as últimas horas de vida.
Mesmo os selvagens mais brutais, no refinamento de sua crueldade,
não poderiam ter acumulado piores torturas sobre um inimigo do
que aquelas acumuladas sobre a carne e os ossos de nosso amado
Mestre. Nunca nos esqueçamos de que Jesus tinha um corpo
humano autêntico, um corpo exatamente como o nosso, tão
sensível, tão vulnerável, tão capaz de sentir dor intensa quanto o
nosso. Vejamos, portanto, o que esse corpo padeceu.
Nosso Senhor, devemos lembrar, já havia passado a noite sem
dormir e suportado extrema fadiga. Ele tinha sido levado do
Getsêmani para o sinédrio judaico e, dali, para o tribunal de Pilatos.
Por duas vezes havia sido interrogado e por duas vezes havia sido
condenado injustamente. Já havia sido espancado e açoitado
cruelmente com varas. E agora, após todos esses padecimentos,
ele fora entregue nas mãos dos soldados romanos, um grupo de
homens que, sem dúvida, eram exercitados na crueldade, e de
quem menos poderíamos esperar delicadeza ou compaixão. Esses
homens brutais logo começaram a fazer o que bem queriam. Eles
reuniram em torno dele “toda a coorte”. Despiram-no de suas vestes
e, com escárnio, deram-lhe um manto escarlate. Trançaram uma
coroa de espinhos e, rindo, puseram-na sobre a cabeça dele. Então,
ajoelharam-se em escárnio, como se ele fosse o impostor de um rei.
Cuspiram nele. Bateram-lhe na cabeça com um caniço. Finalmente,
depois de o vestirem com suas próprias vestes, levaram-no para
fora da cidade, até um lugar chamado Gólgota, onde o crucificaram
entre dois ladrões.
Mas o que era uma crucificação? Vamos, pois, tentar imaginar
e entender esse mistério. A pessoa crucificada era deitada de
costas sobre uma escora de madeira sobre a qual a peça que
formava a cruz era pregada, perto de uma das extremidades; ou
sobre o tronco de uma árvore, com um formato que atendesse ao
mesmo propósito. As mãos da pessoa crucificada eram estendidas,
abertas, sobre os braços da cruz e atravessadas com pregos, os
quais, então, as prendiam à madeira. Os pés da vítima, igualmente,
eram pregados ao tronco principal da cruz. Depois que o corpo
estava assim, bem preso, a cruz era levantada e encravada
firmemente no solo. Ali ficava o infeliz sofredor, dependurado até
que as dores e a exaustão física trouxessem seu fim, e isso
lentamente, pois nenhum órgão vital era atingido, mas numa agonia
excruciante de pés e mãos feridos, com o corpo incapaz de se
mover. Essa era a morte por crucificação. Essa foi a morte que
Jesus enfrentou por nós! Durante seis longas horas, ele esteve
pendurado em frente à multidão — semidespido, sangrando da
cabeça aos pés, a cabeça ferida pelos espinhos, as costas
laceradas pelo chicote, mãos e pés traspassados pelos cravos, e,
ainda, a zombaria e o desprezo até o último instante, por parte dos
cruéis inimigos.
Meditemos com frequência sobre a cruz e a paixão de Cristo.
Não menos importante: lembremo-nos de que todos esses
sofrimentos horrendos foram experimentados sem murmuração.
Nenhuma palavra de impaciência saiu dos lábios de nosso Senhor.
Ele foi perfeito, tanto na vida como na morte. Até o último instante,
Satanás nada encontrou nele.
Em segundo lugar, salientemos que todos os sofrimentos de
nosso Senhor Jesus Cristo foram vicários. Jesus não sofreu em
razão de pecados próprios, mas por causa de nossos pecados. Ele
foi, notadamente, nosso Substituto em todos os sofrimentos pelos
quais passou.
Essa é uma verdade de grande importância. Sem ela, a
narrativa dos sofrimentos de nosso Senhor, com todos os seus
detalhes e pormenores, sempre nos pareceria misteriosa e
inexplicável. Entretanto, essa é uma verdade da qual as Escrituras
falam frequentemente, e nunca em tons incertos. Somos ensinados
que Cristo carregou “ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os
nossos pecados” (1Pe 2.24); que ele morreu pelos pecados, “o justo
pelos injustos” (1Pe 3.18); que ele não conhecia pecado, mas foi
feito pecado por nós, “para que nele fôssemos feitos justiça de
Deus” (2Co 5.21); que “ele se fez maldição em nosso lugar” (Gl
3.13), “para tirar os pecados de muitos” (Hb 9.28); que ele foi
“traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas
iniquidades”, mas “o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós
todos” (Is 53.5-6). Que todos nos lembremos constantemente
desses textos sagrados! Eles são pedras fundamentais do
evangelho.
Todavia, não devemos contentar-nos com uma crença vaga e
superficial de que os sofrimentos de Cristo na cruz foram vicários.
Devemos enxergar essa verdade em cada detalhe de sua Paixão.
Podemos acompanhá-lo do começo ao fim, desde o tribunal de
Pilatos até o momento de sua morte; e vê-lo, a cada passo, como
nosso poderoso Substituto, nosso Representante, nosso Cabeça,
nossa Garantia e nosso Fiador; nosso Amigo divino, que se propôs
a assumir nosso lugar e, pelo mérito de seus sofrimentos, comprar
nossa redenção. Ele foi chicoteado? Foi, para que, “pelas suas
pisaduras”, fôssemos sarados. Ele foi condenado, mesmo que
inocente? Sim, para que nós pudéssemos ser declarados inocentes,
embora fôssemos culpados. Ele recebeu uma coroa de espinhos?
Sim, para que pudéssemos ganhar a coroa da glória. Ele foi despido
de suas vestes? Sim, para que pudéssemos ser vestidos em eterna
justiça. Ele foi escarnecido e desprezado? Sim, para que fôssemos
considerados inocentes e justificados de todo pecado. Ele foi
declarado incapaz de salvar a si mesmo? Sim, para que pudesse
salvar a outrem, até o pior de todos. Ele teve a morte mais dolorosa
e infeliz? Sim, para que pudéssemos viver eternamente e ser
exaltados às maiores glórias. Devemos meditar demoradamente
sobre essas coisas. Vale a pena relembrá-las. O segredo para a paz
consiste na correta compreensão acerca dos sofrimentos vicários de
Cristo.
Passemos adiante da narrativa da Paixão de nosso Senhor
com sentimentos de profunda gratidão. Nossos pecados são
grandes e muitos, mas um grande sacrifício foi feito para expiá-los.
Havia um mérito infinito em todos os sofrimentos de Jesus Cristo.
Foram os sofrimentos de Alguém que era tanto homem como Deus.
Certamente é apropriado e correto — e nosso dever — louvar a
Deus diariamente, pela morte de Cristo.
Por fim, mas também muito importante, aprendamos, com base
no relato da Paixão de Cristo, a odiar o pecado intensamente. O
pecado foi a causa de todos os sofrimentos de nosso Salvador.
Nossos pecados é que trançaram a coroa de espinhos. Nossos
pecados é que cravaram os pregos em suas mãos e em seus pés.
Seu sangue foi derramado por causa de nossos pecados. Por certo,
o pensamento de Cristo crucificado nos deveria fazer repugnar todo
pecado. Com muita razão, diz a homilia da Paixão: “Que a imagem
de Cristo crucificado fique impressa para sempre em nossos
corações! Que ela desperte em nós profundo ódio pelo pecado,
provocando em nossas mentes o terno amor do Deus Todo-
Poderoso!”
A morte de Cristo e os sinais que a acompanham
Leia Mateus 27.45-56

N esses versículos, lemos a conclusão da Paixão de nosso


Senhor Jesus Cristo. Após seis horas de sofrimento
agonizante, ele foi obediente até a morte e “entregou o espírito”.
Três particularidades nessa narrativa demandam atenção especial.
Vamos observar esses três pontos.
Em primeiro lugar, observemos as palavras notáveis que Jesus
pronunciou, pouco antes de sua morte: “Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste?”. Existe um profundo mistério nessas
palavras, que nenhum mortal é capaz de sondar. Sem dúvida, elas
não foram ditas por nosso Senhor somente por causa da dor
corporal. Uma afirmação em contrário é totalmente insatisfatória, e
somente desonra nosso Salvador bendito. As palavras foram ditas
para exprimir a incrível pressão que havia sobre a sua alma e a
enorme carga dos pecados do mundo. Elas foram ditas para mostrar
como Jesus foi, verdadeira e literalmente, feito nosso substituto;
como ele foi feito pecado e maldição por nós, suportando sobre si
mesmo a ira justa de Deus contra os pecados do mundo. Naquele
momento terrível, a iniquidade de todos nós foi posta sobre ele, até
as últimas consequências. “Ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o
enfermar” (Is 53.10). Ele levou nossos pecados e tomou sobre si
nossas transgressões. Essa carga deve ter sido extremamente
pesada; real e literal foi a substituição efetuada por nosso Senhor
em nosso lugar, quando ele, mesmo sendo o eterno Filho de Deus,
foi capaz de dizer que tinha sido “desamparado” pelo Pai.
Que essa expressão de Jesus desça até o fundo de nossos
corações e não seja esquecida! Não poderíamos ter maior prova da
pecaminosidade do pecado e da natureza vicária dos sofrimentos de
Cristo do que esse seu grito angustiado: “Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste?”. Isso nos deveria levar a odiar o pecado e
nos encorajar a confiar em Cristo.
Em segundo lugar, notemos quão profunda significação está
contida nas palavras que descrevem os momentos finais de nosso
Senhor. Somos simplesmente informados de que ele “entregou o
espírito”. Nunca houve um último suspiro de tão grande importância
quanto esse. Nunca houve um evento do qual tanta coisa
dependesse. Os soldados romanos e a multidão espalhada ao redor
da cruz nada viram de extraordinário. Eles somente viram uma
pessoa morrendo como outras morrem, com toda a agonia usual e o
sofrimento que acompanhava uma crucificação. Eles desconheciam
totalmente os interesses eternos que estavam envolvidos em toda
aquela transação.
A morte de Cristo saldou completamente a enorme dívida que
os pecadores tinham para com Deus, abrindo a porta da vida eterna
para cada crente. Sua morte atendeu às justas reivindicações da
santa lei de Deus, para que Deus fosse justo e justificador do ímpio.
Essa morte não foi apenas um mero exemplo de autossacrifício,
mas, sim, uma completa expiação e propiciação pelo pecado do
homem, alterando a condição e as possibilidades futuras de toda a
humanidade. Essa morte solucionou o complicado problema de
como Deus pode ser perfeitamente santo e, ao mesmo tempo,
perfeitamente misericordioso. Ela abriu para o mundo uma fonte
purificadora para todo pecado e imundície. Foi uma vitória completa
sobre Satanás, tendo-o despojado abertamente. Ela desfez a
transgressão, fez expiação pela iniquidade e vindicou justiça eterna.
Ela demonstrou a pecaminosidade do pecado, pelo fato de ter sido
necessário um sacrifício tão grande para expiá-lo. Demonstrou o
amor de Deus pelos pecadores, pelo fato de ele ter enviado seu
próprio Filho para fazer a expiação. De fato, nunca houve — nem
poderia haver — outra morte como a de Jesus Cristo. Não admira,
portanto, que a terra tremesse quando Jesus morreu em nosso lugar
sobre a cruz maldita. O mundo inteiro foi sacudido e se maravilhou
quando a alma de Cristo foi posta como oferta pelo pecado (Is
53.10).
Por último, notemos ainda o milagre notável que ocorreu na
hora da morte de nosso Senhor, bem no interior do templo judaico.
As Escrituras nos dizem que “o véu do santuário se rasgou em duas
partes, de alto a baixo”. A cortina que separava o Santo dos Santos
do restante do templo foi rasgada de cima a baixo.
De todos os maravilhosos sinais que acompanharam a morte
de nosso Senhor, nenhum foi mais significativo que esse. Sem
dúvida, a escuridão ao meio-dia, e que durou três horas, foi um
acontecimento espantoso. O terremoto que fendeu as rochas
também foi um tremendo choque. Mas havia um significado naquele
súbito rompimento do véu, rasgado de alto a baixo, que atingiria o
coração de qualquer judeu inteligente. A consciência de Caifás, o
sumo sacerdote, devia estar mesmo cauterizada se as notícias
sobre o véu rasgado não o abalaram.
O rompimento do véu proclamava o fim e o passamento da lei
cerimonial. Era um sinal de que a antiga dispensação de sacrifícios
e ordenanças já não era mais necessária. Sua obra estava
completa, e sua utilidade acabou-se no momento em que Cristo
morreu. Não era mais necessário haver um sumo sacerdote,
aspersão de sangue e um propiciatório terrenos, nem a oferta de
incenso, tampouco um dia de expiação. O verdadeiro Sumo
Sacerdote tinha finalmente aparecido. O verdadeiro Cordeiro de
Deus tinha sido morto, e o verdadeiro propiciatório, revelado. As
figuras e sombras não eram mais necessárias. Que todos nos
lembremos disso! Estabelecer um altar, um sacrifício e um
sacerdócio, agora, é como acender uma lâmpada em pleno meio-
dia.
O rompimento do véu proclamava a abertura do caminho da
salvação para toda a humanidade. Até à morte de Cristo, o caminho
para a presença de Deus era desconhecido para os gentios e
apenas visto obscuramente pelos judeus. Mas Cristo, tendo-se
oferecido como sacrifício perfeito e obtido eterna redenção, acabara
com a escuridão e o mistério. Doravante, todos seriam convidados a
se aproximar de Deus com ousadia e vir a ele com confiança, pela
fé em Jesus. Uma porta fora aberta, e o caminho da vida estava
posto diante do mundo inteiro. Que todos possamos nos lembrar
disso! Desde a morte de Jesus, o caminho da paz nunca mais
deveria estar envolto em mistério. Não haveria nenhuma reserva. O
evangelho era a revelação de um mistério que estava oculto ao
longo dos séculos e das gerações. Por isso, envolver, no presente, a
religião em uma capa de mistério é equivocar-se quanto à maior
característica do cristianismo: a revelação.
Sempre que considerarmos a história da crucificação de Jesus,
façamos isso com o coração cheio de louvor. Louvemos a Deus pela
confiança de termos a crucificação como fundamento de nossa
esperança e perdão. Nossos pecados podem ser grandes e muitos,
mas o pagamento efetuado por nosso grande Substituto em muito
os ultrapassa a todos. Louvemos a Deus pela visão que a
crucificação nos dá acerca do amor do Pai celeste. Aquele que não
poupou seu próprio Filho — antes, por todos nós, o entregou —
certamente nos dará com ele todas as coisas (Rm 8.32).
Não menos importante, louvemos a Deus por vermos na
crucificação a simpatia de Jesus para com todo o seu povo, os
crentes. Ele sabe comover-se diante do sentimento de nossas
fraquezas. Ele sabe o que é sofrimento. Ele é exatamente o
Salvador que um corpo enfermo, com um coração fraco, requer, em
um mundo maligno.
O sepultamento de Cristo; as vãs precauções
para evitar sua ressurreição
Leia Mateus 27.57-66

E sses versículos contêm a narrativa do sepultamento de nosso


Senhor Jesus Cristo. Havia ainda uma etapa necessária para
assegurar o cumprimento da grande obra da redenção que nosso
Redentor empreendeu. Seu corpo santo, no qual ele carregou
nossos pecados sobre a cruz, ainda precisava ser depositado na
sepultura e ressuscitar. A ressurreição seria o selo e a pedra angular
de toda a sua obra.
A infinita sabedoria de Deus previu todas as objeções dos
incrédulos e infiéis, e tomou providências contra elas. Será que o
Filho de Deus realmente morreu? Ele realmente ressuscitou? Não
poderia ter havido alguma fraude no tocante à realidade de sua
morte? Não houve algum embuste ou logro quanto à realidade de
sua ressurreição? Todas essas e muitas objeções mais teriam sido
levantadas se a oportunidade para isso tivesse sido dada. Porém,
aquele que sabe qual será o fim das coisas desde o princípio
impediu a possibilidade de apresentação dessas objeções. Mediante
sua providência, que a tudo controla, Deus ordenou as coisas de
modo que a morte e o sepultamento de Jesus Cristo ficassem acima
de qualquer dúvida.
Pilatos deu permissão para o sepultamento. Um discípulo
amoroso envolveu o corpo em panos de linho e o depositou em um
túmulo novo, escavado na rocha, “no qual ninguém tinha sido ainda
posto” (Jo 19.41). Os próprios sacerdotes puseram uma guarda no
lugar em que o corpo tinha sido posto. Judeus e gentios, amigos e
inimigos — todos testificaram o grande fato de que Cristo realmente
morreu e foi sepultado. Esse é um fato que não pode ser
questionado. Ele foi realmente torturado, realmente sofreu,
realmente morreu e realmente foi sepultado. Guardemos isso bem,
pois são fatos que precisam ser lembrados.
Em primeiro lugar, aprendemos que nosso Senhor Jesus Cristo
tem amigos de quem pouco se sabe. Não encontraríamos um
exemplo mais marcante dessa verdade do que aquele que vemos
nessa passagem. Um homem chamado José de Arimateia se
apresenta, depois da morte de nosso Senhor, e pede permissão
para sepultá-lo. Nunca tínhamos ouvido acerca desse homem
anteriormente no ministério terreno de nosso Senhor.Depois disso,
nunca mais ouvimos falar a seu respeito. Nada mais sabemos,
senão que ele era um discípulo que amava Cristo e o honrou em
sua morte. Na ocasião em que os apóstolos haviam abandonado
nosso Senhor; quando era extremamente perigoso alguém mostrar
consideração pelo Senhor; quando parecia que nenhuma vantagem
terrena seria ganha pela confissão de um discipulado; foi numa
ocasião assim que José de Arimateia veio à frente com ousadia,
pediu o corpo de Jesus e o depositou em sua própria sepultura
nova.
Esse fato nos traz muito consolo e encorajamento. Ele nos
mostra que existem, aqui na terra, pessoas retraídas que conhecem
o Senhor e são conhecidas por ele, mas que são pouco conhecidas
pela igreja. Vemos que há diversidade de dons entre o povo de
Cristo. Alguns glorificam Cristo passivamente, enquanto outros o
glorificam ativamente. Alguns têm a vocação de edificar a igreja e
ocupar um lugar de projeção pública; há outros, como José de
Arimateia, que só vêm à frente nas ocasiões de especial
necessidade. Mas todos, individualmente, são guiados por um único
Espírito; todos, e cada um glorificando a Deus de diferentes
maneiras.
Que essas coisas nos ensinem a ter mais esperança! Devemos
crer que muitos ainda chegarão do Oriente e do Ocidente, e se
assentarão com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Pode
haver, em lugares ocultos da cristandade, muitos que, como
Simeão, Ana e José de Arimateia, no presente sejam bem pouco
conhecidos, mas que haverão de brilhar entre as joias preciosas do
Senhor Jesus, no dia de seu aparecimento.
Em segundo lugar, aprendemos que Deus pode transformar os
esquemas de homens maus e fazê-los trabalhar para sua própria
glória. Aprendemos essa lição de maneira impressionante, pela
conduta dos sacerdotes e fariseus depois do sepultamento de nosso
Senhor. A incansável inimizade desses homens infelizes não podia
cessar, nem mesmo quando o corpo de Jesus já estava na
sepultura. Eles se lembraram das palavras que Jesus dissera a
respeito de “ressuscitar” e resolveram tornar impossível sua
ressurreição dos mortos, julgando que poderiam mesmo impedi-lo.
Eles foram a Pilatos e obtiveram uma guarda de soldados romanos.
Puseram uma escolta no sepulcro e selaram oficialmente a pedra da
entrada. Em suma, fizeram o possível para que o sepulcro fosse
“guardado com segurança”.
Eles nem imaginavam o que estavam fazendo. Nem pensaram
que estavam providenciando a evidência mais completa da
veracidade da ressurreição de Jesus Cristo, que estava para
ocorrer. Na verdade, eles estavam tornando impossível provar a
ocorrência de qualquer fraude ou engano. A guarda, o selo e as
precauções, todos se tornaram testemunhas, depois de poucas
horas, do fato de que Cristo havia ressuscitado. Eles tanto poderiam
tentar parar o fluxo das marés ou impedir o nascimento do sol como
poderiam tentar impedir que Jesus ressurgisse da sepultura. Eles
foram pegos em sua própria astúcia (1Co 3.19). Seus próprios
estratagemas se transformaram em instrumentos de demonstração
da glória de Deus.
A História da Igreja de Cristo está repleta de exemplos
similares a esse. As próprias coisas que pareciam mais
desfavoráveis muitas vezes se transformaram em benefícios para o
povo de Deus. Que prejuízo trouxe à Igreja de Cristo a perseguição
que se levantou após a morte de Estêvão? (At 8.1-4). “Os que foram
dispersos iam por toda parte pregando a palavra.” Que mal o
encarceramento trouxe ao apóstolo Paulo? Sua prisão deu-lhe
tempo para escrever muitas de suas epístolas, que agora são lidas
em todo o mundo. Qual foi o prejuízo verdadeiro causado à Reforma
na Inglaterra pela perseguição da rainha Maria I, a Sanguinária? De
fato, o sangue dos mártires tomou-se a semente da Igreja. Que mal
a perseguição causa ao povo de Deus hoje em dia? Ela só nos faz
chegar mais perto de Cristo; só faz com que nos aproximemos cada
vez mais do trono da graça, da Bíblia e da oração.
Que todos os verdadeiros crentes guardem essas verdades em
seu coração e tenham coragem! Vivemos num mundo em que tudo
é controlado pela mão da perfeita Sabedoria, e no qual todas as
coisas estão cooperando continuamente para o bem do corpo de
Cristo. Os poderes deste mundo são meros instrumentos nas mãos
de Deus. Ele está sempre usando esses instrumentos para seus
próprios propósitos, quer tenham consciência disso ou não. São
instrumentos por meio dos quais Deus está lapidando e polindo as
pedras vivas de seu templo espiritual; e todos os planos e
esquemas dos inimigos somente resultarão em louvor ao Senhor.
Sejamos, pois, pacientes nos dias atribulados e escuros, e olhemos
para a frente. As mesmas coisas que agora parecem contra nós
estão todas trabalhando em conjunto para a glória de Deus. No
momento, vemos apenas a metade do que realmente acontece.
Dentro de pouco tempo, veremos tudo com mais clareza. Então,
descobriremos que toda perseguição que agora suportamos —
assim como a escolta ao sepulcro e o selo sobre a pedra — serve
para maior glória a Deus. Até mesmo a ira humana há de louvar a
Deus (Sl 76.10).
A ressurreição de Cristo
Leia Mateus 28.1-10

O assunto principal desses versículos é a ressurreição de nosso


Senhor Jesus Cristo dentre os mortos. Essa é uma das verdades
fundamentais em que se baseia o cristianismo, e por isso recebe
atenção especial em todos os quatro evangelhos. Todos os quatro
evangelistas descrevem minuciosamente como nosso Senhor foi
crucificado. Os quatro relatam, com não menos clareza, que ele
ressuscitou.
Não temos de nos admirar de tanta importância ser dada à
ressurreição de nosso Senhor. Ela é o selo e a pedra angular da
grande obra de redenção que ele veio efetuar. É a prova coroadora
de que ele pagou a dívida que se propôs a pagar em nosso favor; a
prova de que ele venceu a batalha que empreendeu para nos
libertar do inferno e de que foi aceito por nosso Pai celestial como
nosso Fiador e Substituto. Se ele jamais tivesse saído da prisão da
sepultura, que certeza teríamos de que nosso resgate foi
inteiramente pago? (1Co 15.17) Se ele nunca tivesse ressurgido de
seu conflito com o último inimigo, como poderíamos ter a confiança
de que ele venceu a morte e também aquele que tem o poder da
morte, ou seja, o diabo? (Hb 2.14) Mas, graças a Deus, não fomos
deixados em dúvida. O Senhor Jesus realmente “ressuscitou por
causa da nossa justificação” (Rm 4.25). Os crentes verdadeiros são
regenerados “para uma viva esperança mediante a ressurreição de
Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pe 1.3). Eles podem dizer com
toda a ousadia, juntamente com Paulo: “Quem os condenará? É
Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou” (Rm 8.34).
Somos gratos porque essa verdade maravilhosa de nossa
religião, a ressurreição de Cristo, está tão clara e plenamente
provada. Essa é uma circunstância impressionante, porque, de
todos os fatos ligados ao ministério terreno de nosso Senhor,
nenhum deles ficou tão incontestavelmente estabelecido quanto sua
ressurreição. A sabedoria de Deus, que conhece a incredulidade da
natureza humana, providenciou uma grande nuvem de testemunhas
sobre o assunto. Nunca houve um fato em que os amigos de Deus
resistissem tanto a crer quanto a ressurreição de Cristo. Nunca
houve um fato que os inimigos de Deus estivessem tão ansiosos por
contradizer. No entanto, apesar da incredulidade dos amigos e da
inimizade dos adversários, o fato ficou solidamente estabelecido.
Para uma mente justa e imparcial, as evidências serão sempre
irrefutáveis. Seria mesmo impossível provar qualquer coisa neste
mundo se nos recusássemos a crer que Jesus ressuscitou.
Observemos, nesses versículos, a glória e majestade com que
Cristo ressurgiu dentre os mortos. Somos informados de que houve
“um grande terremoto”, e “um anjo do Senhor desceu do céu,
chegou-se, removeu a pedra e assentou-se sobre ela”. Não
precisamos supor que nosso bendito Senhor precisasse da ajuda de
algum anjo, ao sair da sepultura. Não devemos duvidar, sequer por
um momento, que ele ressuscitou por seu próprio poder. Mas
aprouve a Deus que sua ressurreição fosse acompanhada e
seguida por sinais e maravilhas. Pareceu conveniente a Deus que a
terra estremecesse e aparecesse um anjo glorioso, quando o Filho
de Deus ressurgisse dentre os mortos como um Conquistador.
Não deixemos de ver, na maneira como nosso Senhor
ressuscitou, um tipo simbólico e uma garantia da ressurreição
daqueles que nele creem. A sepultura não conseguiu segurá-lo além
do tempo determinado, e o mesmo ocorrerá com os crentes. Um
anjo glorioso foi testemunha da ressurreição de Jesus, e anjos
gloriosos serão os mensageiros que recolherão os crentes quando
ressuscitarem. Jesus ressuscitou com um corpo renovado, mas com
um corpo — real, verdadeiro e material; da mesma forma, os
crentes terão um corpo glorioso e serão como ele, que é o Cabeça
de todos. “Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1
Jo 3.2).
Consolemo-nos com esse pensamento. Tribulações, tristezas e
perseguições, com frequência, são a porção que cabe ao povo de
Deus. Enfermidades, fraqueza e dor muitas vezes ferem e
desgastam seu pobre tabernáculo terreno. Mas o tempo favorável
está para vir. Que os crentes esperem com paciência, pois terão
uma ressurreição gloriosa! Quando vamos morrer, onde seremos
sepultados e que tipo de funeral teremos, essas são questões de
pequena importância. A grande pergunta a ser feita é esta: “Como
ressuscitaremos?”.
Observemos, em seguida, o terror que os inimigos de Cristo
sentiram no período de sua ressurreição. Quando viram o anjo, “os
guardas tremeram espavoridos, e ficaram como se estivessem
mortos”. Aqueles brutais soldados romanos, embora estivessem
acostumados a contemplar cenas chocantes e dramáticas, viram
algo que os deixou aterrorizados. Diante da visão de um anjo de
Deus, perderam de uma vez toda a coragem.
Novamente, vemos nesse fato um tipo e um símbolo das coisas
que ainda estão por vir. O que o descrente e o ímpio farão no dia
final, quando a trombeta soar e Cristo voltar em glória, para julgar o
mundo? O que farão quando virem todos os mortos, tanto grandes
como pequenos, saindo de seus túmulos, e todos os anjos de Deus
reunidos em torno do Grande Trono Branco? Quais temores e
terrores não se apossarão de suas almas quando descobrirem que
não mais poderão evitar a presença de Deus e, por fim, terão de
enfrentá-lo face a face? Ah, que todos os homens fossem sábios e
refletissem sobre seu fim! Que todos se lembrassem de que há uma
ressurreição e um julgamento, e que também existe a ira do
Cordeiro!
Em seguida, notemos as palavras de conforto que o anjo dirigiu
aos amigos de Cristo. Ele disse: “Não temais, porque sei que
buscais a Jesus, que foi crucificado”.
Essas palavras foram ditas com um profundo significado:
visavam animar o coração dos crentes de todos os séculos, diante
da certeza da ressurreição. A intenção dessas palavras é lembrar-
nos de que o verdadeiro crente não tem motivo algum para andar
alarmado, não importa o que possa acontecer neste mundo. O
Senhor aparecerá entre as nuvens do céu e, então, a terra será
consumida pelo fogo. Os sepulcros entregarão seus mortos e,
então, será o dia final. O julgamento terá início e os livros serão
abertos. Os anjos separarão o trigo da palha; eles farão a divisão
entre os bons e os maus peixes. Mas em tudo isso não há motivo
para os crentes estarem temerosos. Eles estarão sem qualquer
mancha ou culpa, revestidos da justiça de Cristo. Estarão a salvo na
verdadeira arca, e não serão feridos quando o dilúvio da ira de Deus
irromper sobre a terra. Será, então, que as palavras do Senhor terão
cumprimento completo: “Ora, ao começarem estas cousas a
suceder, exultai e erguei as vossas cabeças; porque a vossa
redenção se aproxima” (Lc 21.28). Então, os ímpios e incrédulos
verão quão verdadeira é a afirmação bíblica que diz: “Feliz é a
nação cujo Deus é o Senhor” (Sl 33.12).
Em último lugar, observemos a graciosa mensagem que o
Senhor Jesus enviou aos seus discípulos, depois da ressurreição.
Ele apareceu pessoalmente às mulheres que tinham ido prestar
honras ao seu corpo. As últimas junto à cruz e as primeiras junto ao
túmulo, elas foram as primeiras pessoas a ter o privilégio de ver
Jesus ressurreto. E receberam a incumbência de levar a boa-nova
aos discípulos. O primeiro pensamento de Jesus é para seu
pequeno rebanho, disperso: “Ide avisar a meus irmãos”.
Há algo muito tocante nestas simples palavras: “meus irmãos”.
Elas merecem mil pensamentos. Embora fracos, frágeis e tendentes
ao desvio como eram os discípulos, Jesus ainda os chama de
“irmãos”. Ele os conforta, como José fizera a seus irmãos que o
tinham vendido, dizendo: “Eu sou José, vosso irmão”. Por mais que
os discípulos tivessem falhado quanto à sua profissão de fé, por
mais que se tivessem acovardado, por temor dos homens, ainda
eram seus “irmãos”. Glorioso como era em si mesmo, o
Conquistador da morte, do inferno e da sepultura, o Filho de Deus
ainda é “manso e humilde de coração”. Ele chama seus discípulos
de “irmãos”.
Se conhecemos algo da verdadeira religião, podemos deixar
essa passagem levando conosco confortáveis pensamentos. Vemos
nas palavras de Cristo um encorajamento para confiar e não estar
temerosos. Nosso Salvador jamais se esquece de seu povo. Ele se
compadece de nossas enfermidades e não nos despreza. Ele
conhece nossas fraquezas e, mesmo assim, não nos rejeita. Nosso
grande Sumo Sacerdote é também nosso Irmão mais velho.
A incumbência final dada aos discípulos
Leia Mateus 28.11-20

E sses versículos formam a conclusão do evangelho de Mateus.


Começam mostrando-nos em que grande medida o preconceito
cego prejudica o crente, antes que ele creia na verdade pura.
Também nos mostram as fraquezas presentes nos corações de
alguns discípulos e como eles custaram a crer. A passagem se
encerra contando-nos algumas das últimas palavras de nosso
Senhor sobre a terra, palavras tão importantes que exigem e
merecem toda a nossa atenção.
Em primeiro lugar, devemos observar a honra conferida por
Deus a nosso Senhor Jesus Cristo. Nosso Senhor diz: “Toda a
autoridade me foi dada no céu e na terra”. Essa também é uma
verdade declarada por Paulo aos filipenses: “Deus o exaltou
sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome” (Fp
2.9). Essa é uma verdade que, em hipótese alguma, contradiz a
verdadeira noção da divindade de Cristo, conforme alguns, por
ignorância, têm imaginado. Trata-se simplesmente de uma
declaração de que, nos conselhos da Trindade eterna, Jesus, o
Filho do Homem, é designado herdeiro de todas as coisas e
Mediador entre Deus e os homens e de que a ele cabe a salvação
de todos os que são salvos; é uma declaração de que ele é a
grande fonte de misericórdia, graça, vida e paz. Foi por causa dessa
“alegria, que lhe estava proposta”, que ele “suportou a cruz” (Hb
12.2).
Com toda a reverência, apeguemo-nos decididamente a essa
verdade. Cristo é aquele que tem as chaves da morte e do inferno.
Cristo é o Sacerdote ungido, o único que pode absolver os
pecadores. Cristo é a fonte das águas vivas, o único que pode nos
purificar. Cristo é o Príncipe e Salvador, o único que pode outorgar
arrependimento e remissão de pecados. Nele, habita toda a
plenitude. Ele é o caminho, a porta, a luz, a vida, o Pastor, o altar de
refúgio. Aquele que tem o Filho tem a vida, e quem não tem o Filho
não tem a vida eterna. Que todos nós nos esforcemos para
entender isso! É certo que os homens podem facilmente pensar em
termos pequenos demais acerca de Deus Pai e de Deus Espírito
Santo, mas ninguém jamais pensou em termos demasiadamente
grandes a respeito de Cristo.
Observemos, em segundo lugar, o dever que Jesus incumbiu a
seus discípulos. Jesus lhes disse: “Ide, portanto, fazei discípulos de
todas as nações”. Eles não deveriam reter para si mesmos seu
conhecimento de Jesus Cristo; deveriam comunicá-lo a outras
pessoas. Não deveriam supor que a salvação fora revelada
exclusivamente aos judeus, e deviam torná-la conhecida do mundo
inteiro. Deveriam esforçar-se para fazer discípulos de todas as
nações e anunciar a todos os povos que Cristo havia morrido pelos
pecadores.
Nunca nos esqueçamos de que essa solene determinação
continua ainda em pleno vigor. É dever obrigatório de todo discípulo
de Cristo fazer tudo que seja possível, pessoalmente, ou pela
oração, para que outras pessoas venham a conhecer Cristo. Se
negligenciamos esse dever, onde está nossa fé? Onde está nosso
amor cristão? Se uma pessoa não tem o desejo de fazer o
evangelho conhecido no mundo inteiro, bem se pode questionar se
ela conhece mesmo o valor do evangelho.
Notemos, em terceiro lugar, a confissão pública que Jesus
requer daqueles que creem em seu evangelho. Ele disse aos
apóstolos que batizassem todos que recebessem como discípulos.
Quando lemos esse mandamento final de nosso Senhor, é muito
difícil entender como os homens podem evitar a conclusão de que o
batismo é necessário quando pode ser administrado. Parece
impossível explicar o significado dessa passagem como outra coisa
que não uma ordenança externa, a ser administrada a todos que se
unem à Igreja. Que o batismo externo não é algo absolutamente
necessário para a salvação, isso fica claramente demonstrado pelo
caso do ladrão penitente que morreu ao lado de Jesus. Ele foi para
o paraíso sem ter sido batizado. E que o batismo externo, apenas,
não transmite qualquer benefício espiritual, o caso de Simão, o
mago, o demonstra claramente. Embora batizado, ele permanecia
no “fel de amargura” e no “laço de iniquidade” (At 8.23). Porém, a
afirmação de que o batismo é uma questão totalmente indiferente e
que nem mesmo precisa ser usado, parece algo que não concorda
com as palavras de nosso Senhor nessa passagem.
Aqui, a lição prática e clara é a necessidade de uma confissão
pública de fé em Cristo. Não basta ser um discípulo secreto. Não
devemos nos envergonhar por deixar que os homens vejam de
quem somos e a quem servimos. Não devemos comportar-nos
como se não gostássemos de ser identificados como crentes;
devemos tomar a nossa cruz e confessar o nosso Mestre perante o
mundo. As palavras dele são muito solenes: “Porque qualquer que
[...] se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho
do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai
com os santos anjos” (Mc 8.38).
Em quarto lugar, sublinhemos a obediência que Jesus requer
de todos os que se declaram seus discípulos. Ele disse aos
apóstolos que ensinassem os novos discípulos a “guardar todas as
cousas”, tudo o que ele ordenou. Essa é uma expressão que
demonstra a inutilidade de um cristianismo apenas de nome e de
aparência; demonstra que somente devem ser contados como
verdadeiros cristãos aqueles que vivem em obediência prática à
Palavra e se esforçam para cumprir as coisas que ele ordenou.
Sozinhos, a água do batismo e o pão e o vinho da Ceia do Senhor
não salvarão a alma de ninguém. De nada adianta ir a uma igreja, e
ouvir os ministros de Cristo, e concordar com o evangelho, se a
nossa religião não vai além disso. Como está a nossa vida? Qual é
a nossa conduta diária, no lar e fora dele? O Sermão do Monte é
nossa regra e nosso padrão de conduta? Esforçamo-nos para copiar
o exemplo de Cristo? Procuramos fazer as coisas que ele ordenou?
Essas são perguntas que demandam respostas afirmativas se
somos realmente nascidos de novo e filhos de Deus. A obediência é
a única prova dessa realidade. A fé sem obras, por si só, está morta.
“Vós sois meus amigos”, diz Jesus, “se fazeis o que eu vos mando”
(Jo 15.14).
Em quinto lugar, assinalemos a solene menção à Trindade
bendita, que nosso Senhor faz nesses versículos. Ele manda batizar
“em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Esse é um
daqueles grandes textos bíblicos que, direta e claramente, ensinam
a poderosa doutrina da Trindade. O texto fala do Pai, do Filho e do
Espírito Santo como três pessoas distintas, e todos os três como
iguais. Assim como é o Pai, também é o Filho e o Espírito Santo.
Não obstante, os três são um.Para nós, essa verdade é um grande
mistério. Que nos seja suficiente receber e crer nessa doutrina, e
que nos abstenhamos de qualquer tentativa de explicação! É tolice
infantil recusar aceitação a alguma coisa simplesmente porque não
a entendemos. Nós somos como vermes que rastejam pelo chão
por um breve tempo; quando muito, pouco conhecemos a respeito
de Deus e da eternidade. Que seja suficiente recebermos no
coração a doutrina da Trindade em Unidade, com uma atitude
humilde e reverente, sem perguntas presunçosas! Creiamos que
nem mesmo uma única alma pecaminosa poderia ser salva sem a
operação conjunta de todas as três pessoas na bendita Trindade; e
regozijemo-nos porque Pai, Filho e Espírito Santo, que cooperaram
para criar o homem, também cooperam para sua salvação. Convém
que paremos por aqui. Podemos receber aquilo que não podemos
explicar teoricamente.
Finalmente, observemos nesses versículos a graciosa
promessa com que Jesus encerra suas palavras. Ele diz aos seus
discípulos: “Estou convosco todos os dias até à consumação do
século”. É impossível concebermos palavras mais consoladoras,
fortalecedoras, animadoras e santificadoras do que essas. Embora
deixados a sós, como crianças órfãs em um mundo frio e hostil, os
discípulos não deveriam julgar-se abandonados. O Mestre estaria
sempre com eles (“convosco”). Embora comissionados a realizar
uma obra tão dura quanto aquela para a qual Moisés fora enviado a
Faraó, eles não deveriam ficar desencorajados. Certamente, o
Mestre estaria “com eles”. Por conseguinte, não havia palavras mais
apropriadas. Nenhuma palavra poderia ser mais adequada à
posição daqueles primeiros discípulos. Também não é possível
imaginar uma palavra mais consoladora para os crentes de todos os
séculos.
Que todos os verdadeiros crentes se apossem dessas palavras
de Jesus e as tenham sempre em mente! Cristo está “conosco”
todos os dias. Cristo está “conosco” em todo lugar ao qual vamos.
Quando nasceu neste mundo, ele veio para ser “Emanuel, Deus
conosco”. Agora, quando chega ao fim de seu ministério terrestre e
está prestes a deixar o mundo, ele declara que é Emanuel, sempre
“conosco”. Ele está conosco diariamente para perdoar e absolver;
está conosco diariamente para santificar e fortalecer; está conosco
diariamente para defender e guardar; está conosco diariamente para
conduzir e guiar; está conosco nas tristezas e nas alegrias; está
conosco na saúde ou na enfermidade; está conosco na vida e na
morte; está conosco no tempo e na eternidade.
Qual maior consolação os crentes poderiam desejar do que
esta? Não importa o que aconteça, nunca estamos completamente
sozinhos ou sem amigos. Cristo está sempre conosco. Podemos
olhar para dentro da sepultura e dizer, com Davi: “Ainda que eu
ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum,
porque tu estás comigo” (Sl 23.4). Podemos olhar para além da
sepultura e dizer, com Paulo: “Estaremos para sempre com o
Senhor” (1Ts 4.17). Jesus o disse e o cumprirá: “Estou convosco
todos os dias até à consumação do século”. E igualmente: “De
maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5).
Não poderíamos pedir mais do que isso! Prossigamos, confiando
em Cristo e não tendo receio de coisa alguma. Ser um crente
verdadeiro é tudo. Não há quem tenha semelhante Rei, um tal
Sacerdote, um Companheiro tão constante e um Amigo assim,
infalível, como têm os verdadeiros servos de Jesus Cristo.

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