M editações no Evangelho de Mateus, de J. C. Ryle, tem sido
um livro amado e compartilhado por várias gerações de crentes, desde a sua primeira edição, em 1879. Esta obra contém uma simplicidade e uma espiritualidade que têm feito dela o comentário devocional clássico sobre os evangelhos, na opinião de um grande número de leitores. Buscando pôr à disposição do leitor moderno uma modalidade mais popular desta obra, foram removidos os textos bíblicos (antes impressos na íntegra), embora o leitor seja encorajado a ler cada passagem selecionada do começo ao fim, antes de iniciar a leitura das próprias meditações de Ryle. Também omitimos as notas de rodapé, nas quais Ryle abordava questões textuais de um modo mais crítico, embora sem conexão direta com a exposição propriamente dita. O texto usado é o da Edição Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil. Confiamos que esta nova edição das meditações devocionais de Ryle alcançará os mesmos alvos aos quais o autor se aplicou pessoalmente, a fim de que, “com uma oração fervorosa, possa promover a religião pura e sem mácula, ampliar o conhecimento de muitos sobre a pessoa de Jesus Cristo e ser um humilde instrumento na gloriosa tarefa de converter e de edificar almas imortais”. Os Editores A genealogia de Cristo Leia Mateus 1.1-17
É com esses versículos que tem início o Novo Testamento. Cumpre-
nos lê-los sempre com sentimentos sérios e solenes. O livro à nossa frente não contém a palavra de homens, mas, sim, a própria Palavra de Deus. Cada versículo foi escrito sob a inspiração do Espírito Santo. Agradeçamos diariamente a Deus por nos haver presenteado com as Sagradas Escrituras. O mais pobre brasileiro que compreenda sua Bíblia sabe mais sobre assuntos religiosos do que os mais sábios filósofos da Grécia ou de Roma. Não nos esqueçamos da grande responsabilidade que temos. Seremos todos julgados no último dia, de acordo com a luz que tivermos recebido. Daquele a quem muito foi dado, também muito será requerido. Leiamos nossas Bíblias com reverência e diligência, com a franca resolução de dar crédito e pôr em prática tudo aquilo que aprendermos. Não é algo de pouca importância a maneira como usamos esse livro. A vida ou a morte eterna dependem desse uso. Acima de tudo, oremos, com toda a humildade, rogando pela iluminação que nos é dada pelo Espírito Santo. Somente ele é capaz de aplicar a verdade aos nossos corações, permitindo-nos tirar proveito daquilo que ali tivermos lido. O Novo Testamento começa narrando a vida, a morte e a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Nenhuma outra porção da Bíblia é tão importante quanto essa, e nenhuma outra parte é tão plena e completa. Quatro evangelhos distintos contam a história dos feitos de Jesus Cristo e de sua morte. Por quatro vezes consecutivas, lemos as preciosas narrativas de suas realizações e de suas palavras. Quão agradecidos nos deveríamos mostrar por causa disso! Conhecer Cristo é ter a vida eterna. Confiar em Cristo é desfrutar a paz com Deus. Seguir os passos de Cristo é ser um crente verdadeiro. Estar com Cristo será o próprio céu. Ninguém pode alegar ouvir demais sobre Jesus Cristo. O evangelho de Mateus tem início com uma longa lista de nomes. Dezesseis versículos ocupam-se da genealogia de Abraão a Davi, e de Davi à família na qual nasceu o Senhor Jesus. Ninguém deve imaginar que esses versículos são inúteis. Em toda a Criação de Deus, coisa alguma é inútil. Tanto o musgo mais insignificante como os menores insetos atendem a alguma boa finalidade. De igual modo, coisa alguma é inútil na Bíblia Sagrada. Cada palavra foi outorgada por inspiração divina. Os capítulos e versículos que, à primeira vista, parecem destituídos de proveito foram todos dados com algum bom propósito. Examine novamente esses dezesseis versículos e você encontrará neles muitas lições úteis e instrutivas. Com base nessa lista de nomes, aprenda o fato de que Deus sempre cumpre sua Palavra. Deus havia prometido que, na descendência de Abraão, todas as famílias da terra seriam abençoadas. Deus havia prometido levantar um Salvador dentre os descendentes de Davi (Gn 12.3; Is 11.1). Esses dezesseis versículos, por conseguinte, provam que Jesus era filho de Davi e filho de Abraão, e que aquela promessa de Deus teve seu devido cumprimento. Pessoas ímpias, que não meditam nas coisas, deveriam relembrar essa lição e temer. Sem importar o que elas pensem, Deus haverá de cumprir sua Palavra. Se não se arrependerem, certamente perecerão. Aqueles que são crentes autênticos deveriam relembrar essa lição, consolando-se nela. Seu Pai celestial se mostrará fiel a todos os seus compromissos. Ele asseverou que salvará todos os que confiarem em Cristo. Ora, se ele afirmou isso, então certamente cumprirá sua Palavra. “Deus não é homem, para que minta” (Nm 23.19). “Ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13). Em seguida, com base nessa mesma lista de nomes, podemos aprender muito sobre a pecaminosidade e a corrupção da natureza humana. Observemos quantos pais piedosos, nessa lista de nomes, tiveram filhos ímpios e iníquos. Os nomes de Roboão e Jorão, de Amom e Jeconias, deveriam ensinar-nos lições humilhantes. Esses quatro tiveram pais piedosos. No entanto, eles mesmos foram homens malignos. A graça de Deus não é hereditária. É preciso algo mais do que apenas um bom exemplo e bons conselhos para que alguém se torne filho de Deus. Aqueles que nascem do alto não nascem nem “do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.13). Os pais dedicados à oração deveriam orar, dia e noite, para que seus filhos nasçam do Espírito. Aprenda, finalmente, com base nessa lista de nomes, quão grandes são a misericórdia e a compaixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Medite sobre quão contaminada e impura é a nossa natureza; e, então, pense na condescendência de Cristo, por haver nascido de mulher e ter-se feito “em semelhança de homens” (Fp 2.7). Alguns dos nomes sobre os quais lemos nessa lista nos fazem lembrar histórias tristes e vergonhosas. Alguns são de pessoas nunca mencionadas em qualquer outra porção das Escrituras. Porém, no fim da lista figura o nome do Senhor Jesus Cristo. Embora ele seja o Deus eterno, humilhou-se ao se tornar um ser humano, com a finalidade de prover a salvação dos pecadores. Jesus Cristo, “sendo rico, se fez pobre por amor de vós” (2Co 8.9). Deveríamos ler essa relação de nomes com um sentimento de gratidão. Vemos ali que nenhum daqueles que compartilham da natureza humana está fora do alcance da simpatia e da compaixão de Cristo. Nossos pecados talvez tenham sido tão negros e graves quanto os pecados de algumas pessoas mencionadas pelo apóstolo Mateus. Entretanto, tais pecados não podem fechar o céu para nós, se nos arrependermos e confiarmos no evangelho. Se Jesus não se envergonhou por nascer de uma mulher cuja árvore genealógica continha nomes como de alguns daqueles sobre quem pudemos ler hoje, então certamente não devemos pensar que ele haveria de se envergonhar por nos chamar “irmãos” e conferir-nos a vida eterna. A encarnação e o nome de Cristo Leia Mateus 1.18-25
E sses versículos começam revelando-nos duas grandes
verdades. Eles nos informam como o Senhor Jesus Cristo assumiu nossa natureza ao se tornar homem. Também nos informam que seu nascimento foi miraculoso. Sua mãe, Maria, era virgem. Esses são assuntos extremamente misteriosos. São profundezas para as quais não há sondagem que possam medi-las. São verdades que nenhuma mente humana é abrangente o bastante para entender. Não procuremos explicar coisas que estão acima de nossa débil razão. Contentemo-nos em crer com reverência, sem especular sobre questões que não somos capazes de entender. Para nós, crentes, é suficiente saber que, para aquele que criou o mundo, nada é impossível. Antes, devemos satisfazer- nos com a declaração constante no credo dos apóstolos: “Jesus Cristo foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu da virgem Maria”. Observemos a conduta de José, descrita nesses versículos. Trata-se de um belo exemplo de piedosa sabedoria e de terna consideração pelo próximo. Ele viu “a aparência de mal” naquela que estava comprometida a se casar com ele. Entretanto, José nada fez de precipitado. Esperou pacientemente até perceber como lhe convinha agir, de acordo com seu dever. Com toda a probabilidade, ele deixou a questão aos cuidados de Deus, em oração. “Aquele que crer não foge” (Is 28.16). A paciência de José foi graciosamente recompensada. Ele recebeu uma mensagem direta, da parte de Deus, sobre a razão de sua ansiedade e, de uma vez para sempre, foi aliviado de todos os seus temores. Quão bom é esperar em Deus! Quem, de todo o coração, deixou seus temores aos cuidados do Senhor em oração, para, então, vê-lo falhar? “Reconhece-o em todos os teus caminhos, e ele endireitará as tuas veredas” (Pv 3.6). Notemos os dois nomes conferidos a nosso Senhor nesses versículos. Um deles é Jesus; o outro, Emanuel. O primeiro desses nomes descreve seu ofício; o segundo, sua natureza. Ambos são profundamente interessantes. O nome Jesus significa “Salvador”. Trata-se do mesmo nome Josué, que aparece no Antigo Testamento. Foi dado a nosso Senhor porque “ele salvará o seu povo dos pecados deles”. Esse é o ofício especial do Senhor Jesus. Ele nos salva de nossa culpa do pecado, lavando-nos a alma em seu próprio sangue expiatório. Ele nos salva do domínio do pecado ao nos conferir, no próprio coração, o Espírito santificador. Ele nos salva da presença do pecado quando nos tira deste mundo para irmos descansar com ele. E, finalmente, ele nos salva das consequências do pecado ao nos proporcionar um glorioso corpo ressurreto, no último dia. O povo de Cristo é bendito e santo! Eles não são salvos das tristezas, da cruz e dos conflitos. Porém, são salvos do pecado, para todo o sempre. São purificados da culpa, mediante o sangue de Cristo. São habilitados para o céu mediante o Espírito de Cristo. Nisso consiste a salvação. Mas aquele que se apega ao pecado ainda não é salvo. Jesus é um nome que infunde muita coragem aos que vivem sobrecarregados de pecados. Aquele que é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores poderia ter-se feito conhecido, com toda a legitimidade, por algum título mais pomposo. Contudo, não quis fazê-lo. Os dirigentes deste mundo com frequência têm chamado a si mesmos por títulos como “grande”, “conquistador”, “herói”, “magnífico” e outros semelhantes. Mas o Filho de Deus contentou- se em chamar a si “Salvador”. As almas que desejarem a salvação podem achegar-se ao Pai, com ousadia, tendo acesso por meio de Jesus Cristo, com toda a confiança. Esse é seu ofício, e nisso ele se deleita — mostrar-se misericordioso. “Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17). Jesus é um nome peculiarmente doce e precioso para aqueles que são crentes. Com frequência, esse nome os tem beneficiado, quando o favor de reis e de príncipes teria sido ouvido por eles com pouco interesse. Esse nome tem-lhes dado a paz interior que o dinheiro não pode comprar. Esse nome lhes tem aliviado as consciências pesadas, conferindo descanso a seus corações entristecidos. O livro de Cantares refere-se à experiência de muitos crentes, ao asseverar: “como unguento derramado é o teu nome” (Ct 1.3). Feliz é a pessoa que confia não meramente em vagas noções a respeito da misericórdia e da bondade de Deus, mas no próprio “Jesus”. O outro nome que aparece nesses versículos não é menos interessante do que aquele que já destacamos. Esse é o nome conferido a nosso Senhor em vista de sua natureza, como “Deus que se manifestou em carne”. Ele é chamado Emanuel, ou seja, “Deus conosco”. Devemos cuidar para que sejam bem claras as noções que formamos sobre a natureza e a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo. Esse é um ponto que se reveste da mais capital importância. Deveríamos ter bem claro, em nossas mentes, que nosso Senhor é tão perfeito Deus quanto perfeito homem. Se chegarmos a perder de vista esse fundamento da verdade, poderemos cair vítimas de terríveis heresias. O nome “Emanuel”, pois, é que se reveste de todo o mistério que o circunda. Jesus é o “Deus conosco”. Ele assumiu a natureza humana igual à nossa, em todas as coisas, exceto apenas na tendência ao pecado. Mas, embora Jesus estivesse “conosco” em carne e sangue humanos, ao mesmo tempo ele nunca deixou de ser o verdadeiro Deus. Quando lemos os evangelhos, muitas vezes descobrimos que nosso Senhor era capaz de ficar cansado, de sentir fome e sede, como também podia chorar, gemer e sentir dor, como qualquer um de nós. Em tudo isso, podemos ver “o homem” Jesus Cristo. Percebemos a natureza humana que ele tomou para si mesmo ao nascer da virgem Maria. Entretanto, nesses mesmos quatro evangelhos, descobriremos que nosso Salvador conhecia os corações e os pensamentos dos homens, exercia autoridade sobre os demônios, podia fazer os mais espantosos milagres apenas com uma palavra, era servido pelos anjos, permitiu que um de seus discípulos o chamasse “Deus meu” e, igualmente, disse: “Antes que Abraão existisse, eu sou” (Jo 8.58). E também: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Em tudo isso, vemos “o Deus eterno”. Vemos aquele que “é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém” (Rm 9.5). Você deseja dispor de um seguro fundamento para sua fé e esperança? Nesse caso, jamais perca de vista a divindade de seu Salvador. Aquele em cujo sangue você foi ensinado a confiar é o Deus Todo-Poderoso. Toda a autoridade foi dada a Jesus Cristo, no céu e na terra. Ninguém poderá arrancar você da mão dele. Se você é um verdadeiro crente em Jesus, não permita que seu coração se perturbe ou atemorize. Você deseja contar com um doce consolo nas ocasiões de sofrimento e tribulação? Nesse caso, nunca perca de vista a humanidade de seu Salvador. Ele é o ser humano Jesus Cristo, que se deitou nos braços da virgem Maria quando era um pequenino infante e que conhece os corações humanos. Ele se deixa sensibilizar pelo senso de nossas fraquezas. Ele experimentou, pessoalmente, as tentações lançadas por Satanás. Ele precisou enfrentar a fome. Ele derramou lágrimas. Ele sentiu dor. Confie nele o tempo todo, em todas as suas aflições. Ele nunca haverá de desprezá-lo. Derrame diante dele, em oração, tudo que estiver em seu ser, e nada oculte dele. Ele é capaz de simpatizar profundamente com seu povo. Que esses pensamentos se aprofundem em nossas mentes! Bendigamos a Deus pelas encorajadoras verdades contidas no primeiro capítulo do Novo Testamento. Esse capítulo nos fala de alguém que salva “o seu povo dos pecados deles”. Porém, isso ainda não é tudo. Esse capítulo revela-nos que o Salvador é o “Emanuel”, o próprio Deus conosco; Deus manifesto em carne humana, idêntica à nossa. Essas são boas-novas. São autênticas boas-novas. Alimentemos nossos corações com essas verdades, por meio da fé, juntamente com ações de graças. Os sábios do Oriente Leia Mateus 2.1-12
N inguém sabe dizer quem foram esses “magos”. Seus nomes e
seu país de origem nos foram ocultados. Somos informados somente de que eles vieram “do Oriente”. Não sabemos dizer se eles eram caldeus ou árabes. Também não sabemos dizer se aprenderam a esperar o Cristo, informados por pessoas das dez tribos de Israel que foram para o cativeiro assírio, ou por causa das profecias de Daniel. Todavia, pouco importa saber quem foram eles. A questão que nos interessa mais são as riquíssimas instruções que recebemos por meio do relato bíblico sobre eles. Esses versículos demonstram que pode haver verdadeiros servos de Deus nos lugares onde menos esperamos encontrá-los. O Senhor Jesus conta com muitos servos “secretos”, como aqueles sábios antigos. A história deles sobre a terra talvez seja tão pouco conhecida quanto a história de Melquisedeque, de Jetro ou de Jó. Não obstante, seus nomes estão inscritos no Livro da Vida, e eles serão encontrados na companhia de Jesus Cristo, por ocasião de seu glorioso retorno. Faríamos bem em não esquecer isso. Não devemos olhar ao redor da terra para, então, dizermos, precipitadamente: “Tudo é esterilidade”. A graça divina não se limita a lugares e a famílias. O Espírito Santo pode conduzir almas aos pés de Cristo sem a ajuda de muitos meios externos. Os homens podem nascer em lugares distantes, como sucedeu àqueles sábios; no entanto, eles podem tornar-se “sábios para a salvação”. Neste exato instante, existem alguns que estão na jornada para o céu, e a respeito dos quais a Igreja e o mundo nada sabem. Eles vicejam em lugares secretos, como os lírios que crescem entre os espinhos e “desperdiçam a sua fragrância no ar do deserto”. Porém, Cristo os ama, e eles amam Cristo. Esses versículos também nos ensinam que nem sempre são aqueles que desfrutam os maiores privilégios religiosos que mais honram a Cristo. Poderíamos mesmo pensar que os escribas e os fariseus estariam entre os primeiros que se apressariam a ir até Belém, assim que se espalhou o rumor do nascimento do Salvador. Porém, não foi isso que aconteceu. Alguns poucos estrangeiros, vindos de alguma terra longínqua, foram os primeiros, se não quisermos mencionar os pastores referidos por Lucas, a se regozijar diante do nascimento do menino Jesus. “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1.11). Quão lamentável retrato da natureza humana temos aí! Com quanta frequência essa mesma atitude pode ser vista entre nós mesmos! Com quanta frequência as próprias pessoas que vivem mais perto dos meios da graça divina são justamente aquelas que mais os negligenciam! Há uma profunda verdade contida naquele antigo provérbio, que afirma: “Quanto mais perto da igreja, mais longe de Deus!”. A familiaridade com as realidades sagradas reveste-se de uma horrível tendência que leva os homens a desprezarem-nas. Existem muitas pessoas que, por razões de residência e de conveniência, deveriam ser as primeiras e as mais empenhadas na adoração ao Senhor Deus. No entanto, são sempre as últimas a fazê-lo. Por outro lado, existem aquelas que esperaríamos que fossem as últimas, mas que são sempre as primeiras. Esses versículos nos ensinam que pode haver um conhecimento meramente intelectual das Escrituras, sem o acompanhamento da graça divina no coração. Observe como o rei Herodes indagou dos sacerdotes e dos anciãos dos judeus acerca de “onde o Cristo deveria nascer”. Note também com que prontidão eles lhe deram a resposta, mostrando que estavam perfeitamente familiarizados com o teor das Sagradas Escrituras. Entretanto, eles mesmos nunca foram a Belém, em busca do Salvador, que estava prestes a nascer. Também não quiseram acreditar nele quando começou a ministrar entre o povo. Portanto, seus corações não estavam tão despertos quanto sua inteligência. Cuidemos para nunca nos satisfazer somente com um conhecimento mental. Esse conhecimento é excelente quando usado de forma correta. Não obstante, uma pessoa pode ser possuidora de um profundo conhecimento intelectual, mas perecer para sempre. Qual é o estado de nossos corações? Essa é a questão que realmente importa. Um pouco de graça é melhor do que muitos dotes, que, por si sós, não salvam ninguém. Mas a graça divina nos conduz à glória. A conduta dos magos, descrita neste capítulo, serve-nos de esplêndido exemplo de diligência espiritual. Quantas inconveniências e canseiras deve ter-lhes custado a viagem, desde a sua pátria distante até a casa na qual o menino Jesus foi encontrado por eles! Quantos quilômetros cansativos devem ter percorrido! A fadiga das viagens, no antigo Oriente, era muito maior do que nós, da moderna civilização, podemos compreender. Sem dúvida, o tempo que se perdia em uma viagem era muito mais dilatado do que acontece em nossos dias. Os perigos encontrados não eram poucos, nem pequenos. Nenhuma dessas coisas, contudo, fez os magos desistirem. Eles resolveram, em seus corações, que veriam aquele que nascera para ser o “Rei dos judeus”. E não descansaram até encontrá-lo. Assim, demonstraram que aquele adágio popular encerra uma grande verdade: “Sempre que houver boa vontade, será descoberto o caminho”. Quem dera que todos os crentes professos estivessem mais dispostos a seguir o bom exemplo dos magos! Onde está nossa abnegação? De que maneira nos temos preocupado com nossas próprias almas? Quanta diligência temos mostrado em seguir a Cristo? O que nos tem custado nossa religião? Essas são indagações seriíssimas que merecem nossa mais estrita consideração. Em último lugar, embora não menos importante, a conduta dos magos serviu de notável exemplo de fé. Eles confiaram em Cristo, ainda que nunca o tivessem visto. Mas isso não foi tudo. Creram nele mesmo depois de os escribas e os fariseus terem demonstrado sua incredulidade. Porém, nem mesmo isso foi tudo. Confiaram nele quando o viram como um pequeno menino, nos joelhos de Maria; e adoraram-no como a um rei. Esse foi o ponto culminante de sua fé. Não contemplaram qualquer milagre que pudesse convencê-los. Não ouviram qualquer ensino que tentasse persuadi-los. Não foram testemunhas de nenhum sinal de divindade ou de grandiosidade que os deixasse atônitos. A ninguém mais viram senão a um menino ainda pequeno, fraco e impotente, necessitado dos cuidados maternos como qualquer um de nós. A despeito disso, quando viram aquele Menino, creram estar diante do divino Salvador do mundo. E, “prostrando-se, o adoraram”. Em todas as Escrituras, não encontramos fé mais robusta do que a dos magos. Sua fé merece ser considerada no mesmo nível de fé do ladrão penitente. Este viu a morte de alguém que fora crucificado como se fosse um malfeitor; mas, a despeito disso, dirigiu-lhe um apelo, chamando-o “Senhor”. Os magos viram um menino ainda pequeno, no colo de uma mulher pobre; mas, não obstante, o adoraram, confessando ser ele o Cristo. Verdadeiramente bem-aventurados são aqueles que podem confiar dessa maneira! Lembremo-nos de que essa é a espécie de fé que Deus deleita-se em honrar. Podemos encontrar provas disso todos os dias. Onde quer que a Bíblia Sagrada seja lida, a conduta daqueles magos torna-se conhecida, sendo relatada em memória deles. Sigamos suas pegadas de fé. Não nos envergonhemos de confiar em Jesus e de nos confessar seus seguidores, mesmo que todas as pessoas ao nosso redor permaneçam na indiferença e na incredulidade. Não dispomos de mil evidências mais do que os magos dispuseram para crer que Jesus é o Cristo? Não há dúvida de que dispomos. No entanto, onde está a nossa fé? A fuga para o Egito e a residência em Nazaré Leia Mateus 2.13-23
O bserve, nessa passagem da Bíblia, quão verdadeiro é o fato
de que os governantes deste mundo raramente mostram-se amigáveis em relação à causa de Deus. O Senhor Jesus desceu do céu a fim de salvar os pecadores e, logo em seguida, conforme somos informados, o rei Herodes pôs-se a “procurar o menino para o matar”. A grandeza pessoal e as riquezas materiais servem de perigosa possessão para a alma. Aqueles que as buscam não sabem o que estão procurando. Essas coisas precipitam os homens em muitas tentações. Elas são favoráveis para encher o coração humano de orgulho, agrilhoando as afeições dos homens às coisas terrenas. “Não foram chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de nobre nascimento” (1Co 1.26). “Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas” (Lc 18.24). Você tem invejado os ricos e os importantes? Você tem dito em seu coração: “Gostaria de estar no lugar deles, com a posição e as riquezas que eles possuem”? Cuidado para não ceder diante desse tipo de sentimento. As próprias riquezas materiais que você tanto admira podem estar levando seus possuidores, gradualmente, a afundar no inferno. Um pouco mais de dinheiro poderia decretar sua ruína. Você poderia acabar caindo em todo excesso de crueldade e de iniquidades, à semelhança de Herodes. Por isso, “tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza” (Lc 12.15). “Contentai- vos com as cousas que tendes” (Hb 13.5). Por acaso você acredita que a causa de Cristo depende do poder e do patrocínio dos príncipes? Você está enganado. Eles raramente têm feito alguma coisa que realmente contribua para o avanço do cristianismo. Com muito maior frequência, eles se têm mostrado inimigos da verdade. “Não confieis em príncipes, nem nos filhos dos homens, em quem não há salvação” (Sl 146.3). Existem muitas pessoas cujas atitudes se assemelham às de Herodes. São poucas pessoas como o rei Josias, ou como Eduardo VI da Inglaterra, que procuraram fomentar a causa da religião. Observemos como o Senhor Jesus foi um “homem de dores”, desde a mais tenra infância. As tribulações vinham ao seu encontro desde que ele entrou neste mundo. Sua vida correu perigo, devido ao medo e à ira de Herodes. José e a mãe de Jesus tiveram de levá-lo para bem longe, à noite. Foi assim que eles fugiram “para o Egito”. Porém, isso serviu somente de tipo e figura simbólica de toda a experiência de Jesus neste mundo. As ondas de humilhação começaram a bater contra ele desde que ainda era um bebê que era amamentado.O Senhor Jesus é precisamente o Salvador de que necessitam aqueles que padecem e vivem na tristeza. Ele sabe muito bem o que queremos dizer quando lhe contamos, em oração, nossas tribulações. Ele é perfeitamente capaz de simpatizar conosco quando, sofrendo, debaixo de alguma cruel perseguição, clamamos a ele. Não devemos esconder dele coisa alguma. Devemos fazer dele um amigo íntimo. Derramemos diante de Jesus os gemidos de nossos corações. Ele tem grande experiência pessoal com as aflições. Observemos como a morte pode remover deste mundo os reis, como a quaisquer outros homens. Quando soa a hora de sua partida, os dirigentes de milhões de criaturas humanas não são capazes de permanecer em vida. O assassino de crianças impotentes precisa enfrentar a morte. Portanto, José e Maria acabaram recebendo a notícia de que Herodes já havia falecido. Imediatamente, regressaram, em segurança, à sua terra natal. Os crentes verdadeiros nunca deveriam deixar-se perturbar em demasia diante das perseguições que lhes movem os homens. Os crentes podem ser fracos, e seus inimigos, poderosos; mas, apesar disso, não deveriam mostrar-se medrosos. Antes, deveriam relembrar o fato de que “o júbilo dos perversos é breve, e a alegria dos ímpios, momentânea” (Jó 20.5). O que sucedeu aos Faraós, aos Neros e aos Dioclecianos que, em sua época, perseguiram ferozmente os servos de Deus? Onde estão alguns perseguidores mais recentes, como a sanguinária Maria I, da Inglaterra, ou Carlos IX, da França? Esses fizeram o máximo ao seu alcance para lançar a divina verdade por terra. Mas a verdade tornou a brotar, e continua vivendo, enquanto os perseguidores estão mortos e seus corpos já se dissolveram no solo. Por conseguinte, que não desmaie nenhum coração crente! A morte é uma poderosa niveladora de todos os homens, podendo retirar qualquer montanha do caminho da Igreja de Cristo. “O Senhor vive para sempre.” Seus inimigos são meros homens. A verdade sempre haverá de prevalecer. Notemos, em último lugar, quão grande lição de humildade nos é ensinada por meio do lugar no qual o Filho de Deus residiu quando esteve neste mundo. Ele vivia com sua mãe e com José em uma cidade chamada “Nazaré”. Nazaré era uma pequena aldeia da Galileia. Uma localidade obscura e remota, que não é mencionada no Antigo Testamento nem por uma única vez. Hebrom, Silo, Gibeom e Betel eram cidades muito mais importantes. Não obstante, o Senhor Jesus preteriu todas elas, preferindo viver em Nazaré. Ele fez isso por humildade. Em Nazaré, o Senhor Jesus habitou por trinta anos. Foi ali que passou da infância para a meninice e, depois, para a adolescência, até atingir a idade adulta. Pouco sabemos acerca de como Jesus passou esses trinta anos. Somos expressamente informados, entretanto, de que Jesus, ao descer para Nazaré em companhia de Maria e de José, “era-lhes submisso”. Sabemos também que, provavelmente, ele trabalhava em companhia de José, na carpintaria. Tão somente podemos adiantar que cerca de cinco sextos dos anos que nosso Salvador esteve na terra foram passados entre os pobres deste mundo, em retiro quase absoluto. Na verdade, ele fez isso por pura humildade. Aprendamos a ser sábios, por meio do exemplo deixado por nosso Salvador. Sempre nos mostramos por demais inclinados a buscar coisas grandiosas neste mundo. Descontinuemos essa prática. Obter uma boa posição profissional, um título e uma elevada posição social não são coisas tão importantes quanto pensa a maioria das pessoas. De fato, constitui um pecado grave ser ambicioso, mundano, orgulhoso e dotado de mentalidade carnal. Todavia, não é pecado ser pobre. Não importa tanto onde residimos, mas, sim, o que somos aos olhos do Senhor. Para onde iremos após a morte? Viveremos para sempre nos céus? Essas são as coisas dotadas de peso real, às quais deveríamos dar atenção. Acima de tudo, porém, esforcemo-nos por imitar a humildade demonstrada por nosso Salvador. O orgulho é o mais antigo e o mais disseminado dos pecados. A humildade é a mais rara e bela de todas as virtudes. Esforcemo-nos por ser humildes. Nosso conhecimento pode ser insuficiente. Nossa fé pode ser fraca. Nossas forças podem ser pequenas. Entretanto, se formos bons discípulos daquele que veio residir em Nazaré, então, seja como for, seremos humildes. O ministério de João Batista Leia Mateus 3.1-12
E sses doze versículos descrevem o ministério de João Batista, o
precursor de nosso Senhor Jesus Cristo. Esse é um ministério que merece nossa cuidadosa atenção. Poucos pregadores têm obtido tão notáveis resultados quanto ele. “Saíam a ter com ele Jerusalém, toda a Judeia e toda a circunvizinhança do Jordão”, conforme lemos em Mateus 3.5. Nenhum outro pregador jamais recebeu tão grandes elogios da parte do Cabeça da Igreja. Jesus chamou João Batista de “a lâmpada que ardia e alumiava” (Jo 5.35). O grande Supervisor de nossas almas declarou pessoalmente: “Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior do que João Batista” (Mt 11.11). Por conseguinte, estudemos as principais características do ministério dele. João Batista falava com clareza a respeito do pecado. Ensinava a absoluta necessidade de “arrependimento”, antes que alguém possa ser salvo. Ele anunciava que o arrependimento precisa ser comprovado por seus “frutos”. Advertia os homens de que nunca dependessem de meros privilégios externos ou da união externa com alguma igreja ou religião. É precisamente esse o ensinamento de que todos carecemos. Estamos naturalmente mortos, somos cegos e dormimos no tocante às realidades espirituais. Contentamo-nos com uma religião meramente formal, lisonjeando-nos a nós mesmos com a ideia de que, se frequentarmos alguma igreja, seremos salvos. É preciso que alguém nos diga que, a menos que nos arrependamos e nos convertamos, todos nós pereceremos. João Batista também falou com clareza a respeito de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele ensinou ao povo que, em breve, alguém “mais poderoso” do que ele apareceria. João Batista não passava de um servo; mas aquele que viria era o próprio Rei. João Batista só podia batizar “em água”; porém, aquele que viria após João batizaria “no Espírito Santo e no fogo”; além disso, tiraria pecados e, algum dia, haveria de voltar para julgar o mundo. Novamente, esse é o ensinamento do qual a natureza humana tanto precisa. Precisamos ser enviados diretamente a Jesus Cristo. No entanto, estamos sempre inclinados a parar muito aquém desse alvo. Queremos descansar nos vínculos com nossas igrejas locais, gozando regularmente os benefícios do ministério oficial. No entanto, deveríamos entender a absoluta necessidade de estarmos unidos ao próprio Cristo, mediante a fé. Ele é a fonte designada por Deus; nele encontramos a misericórdia, a graça, a vida e a paz. Cada um de nós precisa estabelecer um relacionamento pessoal com ele a respeito de nossa alma. O que sabemos acerca do Senhor Jesus? O que já obtivemos da parte dele? É de questões dessa ordem que depende nossa salvação eterna. João Batista manifestou-se claramente a respeito do Espírito Santo. Ele pregou, asseverando que existe o batismo no Espírito Santo. E ensinou que o ofício especial do Senhor Jesus é conferir o Espírito aos homens. Uma vez mais, esse é um ensinamento de que precisamos muito. Devemos compreender que o perdão dos pecados não é a única coisa necessária à salvação da alma. Ainda há outra coisa: o batismo de nossos corações por parte do Espírito Santo. Não precisa haver apenas a operação de Cristo em nosso favor; também deve haver a atuação do Espírito Santo em nós. Não somente devemos ter o direito de entrar no céu, mediante o sangue vertido por Cristo; também devemos ser preparados para o céu, por intermédio da atuação do Espírito de Cristo. Jamais devemos descansar enquanto não tivermos experimentado algo da experiência do batismo no Espírito Santo. O batismo em água é um grande privilégio nosso. Contudo, também devemos procurar desfrutar o batismo no Espírito Santo. João Batista falou claramente sobre o tremendo perigo que correm os impenitentes e os incrédulos. Advertiu os que o ouviam de que todos deveriam aguardar a “ira vindoura”. Pregou sobre um “fogo inextinguível”, no qual a palha, algum dia, ficará queimando eternamente. Mais uma vez, esse é um ensino bíblico extremamente importante. Todos nós precisamos ser claramente advertidos de que essa não é uma questão destituída de importância, como se pudéssemos arrepender-nos ou não. Pelo contrário, precisamos relembrar que existem tanto o inferno como o céu, e que a punição eterna espera pelos ímpios, da mesma maneira que a vida eterna destina-se aos piedosos. Somos incrivelmente inclinados a nos esquecer disso. Falamos sobre o amor e a misericórdia de Deus, mas não destacamos suficientemente sua justiça e santidade. Devemos usar de grande cautela quanto a esse particular. Não constitui gentileza autêntica disfarçar, diante das outras pessoas, os terrores do Senhor. É bom que todos nós saibamos que é possível às pessoas perderem-se eternamente, e que todos os que não querem converter-se estão à beira do abismo. Por último, João Batista referiu-se claramente à segurança desfrutada pelos crentes autênticos. Ele ensinou que existe um celeiro no qual serão recolhidos todos aqueles que pertencem a Jesus Cristo, como seu trigo, e que esses serão reunidos ali quando o Senhor Jesus vier pela segunda vez. De novo, esse é um ensino do qual a natureza humana precisa desesperadamente. Os melhores crentes carecem de muito encorajamento. Eles continuam vivendo em seu corpo. Vivem em um mundo caracterizado pela impiedade. Com frequência, são tentados pelo diabo. De vez em quando, é preciso que a memória deles seja despertada para o fato de que Jesus nunca os deixará, nem os abandonará. Ele haverá de conduzi-los, com toda a segurança, nesta vida, e, finalmente, haverá de encaminhá-los à glória eterna. Eles serão protegidos no dia da ira do Senhor. Estarão tão seguros quanto Noé esteve na arca. Que todas essas verdades lancem profundas raízes em nossos corações! Vivemos em uma época em que os falsos ensinos vêm à tona por todos os lados. Nunca nos deveríamos esquecer das principais características de um ministério evangélico fiel. Quão grande seria a felicidade da Igreja de Cristo se todos os seus ministros se parecessem mais com João Batista! O batismo de Cristo Leia Mateus 3.13-17
T emos aqui a narrativa do batismo de nosso Senhor Jesus
Cristo. Esse foi o primeiro passo dado por Jesus quando iniciou seu ministério terreno. Quando um sacerdote judeu começava a oficiar, com a idade de trinta anos, lavava-se com água. Quando nosso grande Sumo Sacerdote iniciou a grandiosa obra que veio realizar neste mundo, foi publicamente batizado. Nesses versículos, devemos aprender a considerar com reverência a ordenança cristã do batismo. Uma ordenança da qual o próprio Senhor Jesus participou não pode ser tida como algo de pouca importância. Uma ordenança à qual o grande Cabeça da Igreja submeteu-se sempre deveria ser honorável aos olhos dos crentes verdadeiros.Poucos pormenores da religião cristã têm sido alvo de tantas interpretações distorcidas quanto o batismo. Poucos desses detalhes têm requerido tanta defesa e tanto esclarecimento. Armemo-nos, portanto, com duas precauções de natureza geral. De um lado, tenhamos o cuidado de não atribuir à água do batismo valor supersticioso. Não podemos supor que a água do batismo opere como se fosse um encantamento. Não podemos esperar que todas as pessoas que são batizadas recebam automaticamente a graça de Deus no momento de seu batismo. Afirmar que todos que recebem o batismo obtêm um benefício idêntico e do mesmo nível, não importando nem um pouco se recebem a cerimônia com fé e oração ou no mais completo desinteresse, sim, afirmar tais coisas é contradizer as mais evidentes lições das Escrituras. Por outro lado, devemos ter o cuidado de não desonrar a ordenança do batismo. O batismo cristão é desonrado quando o tiramos de cena, não permitindo que se evidencie na congregação local. Uma ordenança que foi determinada pelo próprio Cristo não pode ser tratada dessa maneira. A admissão de todos os novos membros à igreja visível, quer jovens, quer adultos, é um acontecimento que deveria suscitar vívido interesse em qualquer assembleia evangélica. Esse é um evento que deveria invocar as mais fervorosas orações da parte de todos os crentes dedicados à oração. Quanto mais profundamente convictos ficarmos de que o batismo e a graça divina nem sempre estão ligados um ao outro, mais nos sentiremos impulsionados a orar coletivamente em favor de todos aqueles que forem batizados. O ato do batismo de nosso Senhor Jesus Cristo foi acompanhado por circunstâncias que se revestiram de uma solenidade bastante peculiar. Um batismo como o dele jamais voltará a ocorrer, por mais que dure este mundo. Lemos nas Escrituras acerca da presença de todas as três Pessoas da bendita Trindade. Deus Filho, tendo-se manifestado em carne humana, foi batizado. Deus Espírito Santo desceu na cena sob a forma corpórea de uma pomba, adejando sobre Jesus. E Deus Pai falou do céu, com voz audível. Em suma, encontramos ali a manifestação ou a presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Sem dúvida, deveríamos considerar esse fato um anúncio público de que a obra de Jesus Cristo resultava do conselho eterno de todas as três Pessoas divinas. Foram essas três Pessoas que, no começo da Criação, disseram: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1.26). Novamente, foi a Trindade inteira que, no início do evangelho, pareceu dizer: “Salvemos o homem”. Lemos que se fez ouvir “uma voz dos céus” por ocasião do batismo de nosso Senhor. Essa foi uma circunstância que se revestiu de singular solenidade. Nenhuma outra voz do céu jamais se fizera ouvir antes disso, exceto por ocasião da transmissão da lei mosaica, no monte Sinai. Ambas essas ocasiões foram marcadas por uma importância ímpar. Por conseguinte, pareceu conveniente, ao nosso Pai celestial, assinalar ambas essas oportunidades com uma honra toda peculiar. Tanto na introdução da lei como na introdução do evangelho, o próprio Deus Pai falou. Quão notáveis e profundamente instrutivas são as palavras de Deus Pai! “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo.” Por meio dessas palavras, ele declarou que Jesus é o divino Salvador, selado e nomeado para isso desde toda a eternidade, a fim de realizar a obra da redenção. Ele proclamou que aceitava Jesus como o único Mediador entre Deus e os homens. O Pai parecia estar publicando ao mundo que estava satisfeito com Cristo como a propiciação por nossos pecados, como nosso Substituto, como aquele que pagaria o preço do resgate pela família condenada de Adão e como o Cabeça de um povo remido. Em Cristo, Deus Pai via sua santa lei magnificada e honrada. Por meio dele, Deus pode ser “justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). Convém refletirmos cuidadosamente sobre essas palavras! Elas podem enriquecer extraordinariamente nossos pensamentos. São palavras que transbordam de paz, alegria, consolo e encorajamento para todos aqueles que se refugiam no Senhor Jesus Cristo, entregando-lhe suas almas para a salvação. Esses podem regozijar-se no pensamento de que, embora continuem pecadores em si mesmos, aos olhos de Deus são considerados justos. Deus Pai considera todos eles membros de seu Filho amado. Não percebe neles qualquer mácula e, por causa de seu Filho, fica satisfeito (2Pe 1.17). A tentação Leia Mateus 4.1-11
A pós o batismo de Jesus, o primeiro evento a ser registrado pelo
apóstolo Mateus, na vida do Senhor, foi a tentação. Trata-se de um assunto profundo e envolto em mistério. No relato bíblico a esse respeito, há muita coisa que não sabemos esclarecer. No entanto, na superfície da narrativa, existem lições práticas perfeitamente claras, às quais deveríamos prestar atenção. Em primeiro lugar, aprendamos que temos, no diabo, um inimigo real e poderoso. Ele não temeu desferir seus ataques nem mesmo contra o próprio Senhor Jesus. Por três vezes consecutivas, ele tentou o próprio Filho de Deus. Nosso Salvador foi conduzido ao deserto com o propósito de ser “tentado pelo diabo”. Foi por intermédio do diabo que o pecado entrou no mundo, no começo da história da humanidade. Foi o diabo que oprimiu Jó, enganou Davi e fez Pedro cair em perigoso pecado. A Bíblia intitula o diabo de “homicida”, “mentiroso” e “leão que ruge”. Aquele que é o adversário de nossas almas nunca dorme nem cochila. É ele que, por cerca de seis mil anos, vem realizando uma única obra nefanda: arruinar homens e mulheres, lançando-os no inferno. Ele é um ser cujas sutileza e astúcia ultrapassam toda a compreensão humana, de tal maneira que, com frequência, parece ser um “anjo de luz” (2Co 11.14).Cumpre-nos vigiar e orar diariamente acerca dos perversos estratagemas do diabo. Não existe inimigo pior do que aquele que nunca pode ser visto e que nunca morre; que está sempre perto de nós, onde quer que nos encontremos, e que vai conosco aonde quer que formos. Também não é coisa de pouca importância a maneira leviana e até humorística com que os homens se referem, de forma geral, ao diabo. Lembremo-nos a cada dia que, se quisermos ser salvos, não somente teremos de crucificar a carne e vencer o mundo, como também teremos de fazer conforme as Escrituras nos recomendam: “resisti ao diabo” (Tg 4.7). Em seguida, aprendamos que não devemos enfrentar a tentação como se fosse uma coisa estranha. “Não é o servo maior do que seu senhor” (Jo 15.20). Se Satanás atacou o próprio Jesus Cristo, então, sem dúvida, também atacará os crentes. Como seria bom, para todos os crentes, se eles se lembrassem dessa realidade. No entanto, frequentemente tendemos a esquecer isso. Com frequência, os crentes detectam maus pensamentos em suas mentes que eles poderiam afirmar que odeiam. Dúvidas, indagações e uma pecaminosa imaginação são coisas que lhes são sugeridas, contra o que todo o seu homem interior se revolta. Não devem permitir, contudo, que essas coisas destruam sua paz e os furtem de suas consolações. É necessário lembrar que o diabo existe, e não deveriam surpreender-se ao descobrir que ele está sempre bem perto deles. Ser vítima das tentações ainda não é incorrer em pecado. Pecamos somente quando cedemos diante das tentações, dando lugar ao pecado em nossos corações, algo que muito deveríamos temer. Convém aprendermos, em seguida, que a principal arma que devemos usar para resistir a Satanás é a Bíblia. Por nada menos de três vezes o grande adversário de nossas almas apresentou tentações diante de nosso Senhor. Por três vezes, o oferecimento diabólico foi repelido, sempre mediante o emprego de algum texto bíblico como motivação: “Está escrito”. Essa é apenas uma das muitas razões para sermos leitores diligentes das Sagradas Escrituras. A Palavra de Deus é a espada do Espírito (Ef 6.17). Jamais estaremos combatendo, como convém ao crente, enquanto não estivermos usando a Bíblia como nossa principal arma de ataque e defesa. A Palavra de Deus também é lâmpada para nossos pés. Jamais nos conservaremos no elevado caminho do Rei, que leva ao céu, se não estivermos andando iluminados por essa luz. Com toda a razão, podemos temer que, entre os crentes, a Bíblia não é lida de modo suficiente. Não basta possuirmos as Escrituras. É necessário lê-las e orar a respeito de nós mesmos. A Bíblia não nos fará bem algum se tão somente ficar guardada em nossos lares. Antes, precisamos estar familiarizados com o conteúdo das Escrituras, com seu texto armazenado em nossa mente e em nossa memória. O conhecimento bíblico nunca pode ser adquirido por mera intuição. Tal conhecimento só pode ser adquirido mediante a leitura regular, trabalhosa, diária, atenta e desperta. Queixamo-nos do tempo e do trabalho que isso nos custa? Se assim estivermos fazendo, então será sinal de que ainda não estamos aptos ao reino de Deus. Em último lugar, devemos aprender quanto nosso Senhor Jesus Cristo é um Salvador que simpatiza conosco. “Pois naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). A simpatia de Jesus por nós é uma verdade que deveria ser particularmente valorizada por todos os crentes. Eles poderão descobrir que essa é uma verdade que serve de fonte de poderosas consolações. Nunca deveriam esquecer-se de que eles contam com um poderoso Amigo nos céus, o qual simpatiza com eles em todas as tentações e provações pelas quais tiverem de passar. Ele sente, juntamente com eles, suas ansiedades espirituais. Os crentes são tentados por Satanás a desconfiar da bondade e dos cuidados de Deus por eles? Jesus também foi tentado desse modo. São tentados à presunção, em relação à misericórdia divina, arriscando- se desnecessariamente e sem garantias? Assim também Jesus foi tentado. São tentados a cometer algum grande pecado específico, como se isso lhes oferecesse alguma vantagem? Essa também foi uma das tentações que acometeram Jesus Cristo. São tentados a fazer alguma aplicação errônea das Escrituras, como justificativa para a prática do mal? Outro tanto sucedeu a Jesus. Ele é exatamente o Salvador do qual aqueles que são tentados precisam. Por conseguinte, os crentes devem refugiar-se no Senhor, pedindo- lhe ajuda e expondo, diante dele, todas as suas dificuldades. Então, haverão de descobrir que ele está sempre preparado a simpatizar com eles. Jesus pode entender todas as suas tristezas. Seria bom se todos nós reconhecêssemos, em nossa própria experiência diária, quanto vale um Salvador cheio de simpatia! Não há nada que se lhe possa comparar, neste nosso mundo frio e enganador. Aqueles que buscam encontrar a felicidade neste mundo e desprezam a religião revelada nas Escrituras não fazem a mínima ideia do verdadeiro consolo que estão perdendo. Começo do ministério de Cristo e a chamada dos primeiros discípulos Leia Mateus 4.12-25
N esses versículos, encontramos o começo do ministério de
nosso Senhor entre os homens. Ele dá início aos seus labores entre uma população ignorante e obscurecida. Ele escolhe os homens que serão seus companheiros e discípulos, confirmando seu ministério por meio de milagres, os quais chamam a atenção de “toda a Síria” e atraem grandes multidões para ouvi-lo. Observemos a maneira como nosso Senhor deu início à sua poderosa realização: “passou Jesus a pregar”. Não existe outra atividade tão honrada quanto a de um pregador. Não há trabalho humano tão importante para as almas dos homens. Esse é um ofício do qual o próprio Filho de Deus não se envergonhou. Por meio desse ofício, ele selecionou seus doze apóstolos. Foi um ofício que o apóstolo Paulo, já idoso, recomendou de maneira especial a Timóteo, quase em seu último alento: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não” (2Tm 4.2). Acima de qualquer outro, esse é o instrumento que Deus se agrada em usar na conversão e na edificação das almas humanas. Os dias mais resplandecentes da Igreja de Cristo sempre foram aqueles em que a pregação do evangelho foi mais honrada. Por outro lado, os dias mais negros da Igreja sempre têm sido aqueles em que a prédica foi desvalorizada. Honremos as ordenanças e as orações públicas nas igrejas locais e recorramos, reverentemente, a esses meios da graça divina. Porém, cuidemos em nunca permitir que essas práticas venham a tomar o lugar que pertence à pregação do evangelho. Prestemos atenção à primeira doutrina que o Senhor Jesus proclamou ao mundo. Ele começou afirmando: “Arrependei-vos”. A necessidade de arrependimento é um dos grandes fundamentos do cristianismo. É necessário pregarmos que toda a humanidade, sem exceção, se arrependa. Importantes ou não, ricos ou pobres, todos os homens têm caído em pecado e são culpados diante de Deus. Todos precisam arrepender-se e converter-se se porventura quiserem ser salvos. O verdadeiro arrependimento não é uma questão superficial. Antes, envolve a completa mudança do coração no que concerne ao pecado, uma transformação que se demonstra mediante santa contrição e humilhação, com a confissão sincera dos pecados, diante do trono da graça, e a quebra total dos hábitos pecaminosos, bem como do ódio permanente por todo pecado. Tal arrependimento é o acompanhante inseparável da fé salvadora em Jesus Cristo. Devemos valorizar grandemente essa doutrina. Ela se reveste de grande importância. Nenhum ensino cristão pode ser considerado sadio se não puser sempre em evidência “o arrependimento para com Deus e a fé em nosso Senhor Jesus Cristo” (At 20.21). Observemos também a classe de homens a quem o Senhor Jesus escolheu para ser seus discípulos. Eles pertenciam às camadas mais pobres e humildes da sociedade. Pedro, André, Tiago e João eram todos “pescadores”. A religião de nosso Senhor Jesus Cristo não visava somente aos ricos e cultos; destinava-se ao mundo todo, e a maior parte da humanidade sempre será pobre. A pobreza e a ignorância literária excluíam milhares de pessoas da atenção dos orgulhosos filósofos do mundo pagão. Mas isso não impede ninguém de ocupar até mesmo os mais altos escalões do ministério cristão. Certo homem é humilde? Ele sente o peso de seus pecados? Ele está disposto a ouvir a voz de Cristo e segui-lo? Nesse caso, ele pode ser o mais pobre dos pobres, mas, no reino dos céus, haverá de ocupar uma posição tão importante quanto qualquer outra pessoa. O intelecto e o dinheiro de nada valem sem a graça de Deus. A religião de Cristo deve ter tido sua origem no céu. Do contrário, nunca teria prosperado e se propagado por toda a terra, conforme tem sucedido. É inútil os incrédulos tentarem retrucar esse argumento. Ele não pode ser contestado. Uma religião que não lisonjeia os ricos, os grandes e os bem instruídos, uma religião que não dá margem às inclinações carnais do coração humano, uma religião cujos primeiros mestres foram pobres pescadores, destituídos de riquezas materiais, posição social ou poder, uma religião como essa jamais teria transformado o mundo se não procedesse de Deus. Por um lado, contemplamos os imperadores romanos e os sacerdotes do paganismo, com seus esplêndidos santuários! Por outro lado, vemos alguns poucos trabalhadores braçais, cristãos, sem grande instrução formal, mas anunciando o evangelho! Acaso já houve outros dois grupos tão diferentes entre si? Os que eram fracos mostraram-se fortes; e os que eram fortes mostraram-se fracos. O paganismo ruiu, e o cristianismo assumiu seu lugar. Portanto, o cristianismo deve proceder de Deus. Em último lugar, observemos o caráter geral dos milagres por meio dos quais nosso Senhor confirmou sua missão. Nessa passagem bíblica, esses milagres são vistos em geral. Porém, um pouco mais adiante, haveremos de vê-los descritos em particular. Mas qual é o caráter desses milagres? Eles foram alicerçados na misericórdia e na bondade. Nosso Senhor “percorria [...] toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo”. Esses milagres tiveram o propósito de nos ensinar quão poderoso é nosso Senhor. Aquele que era capaz de curar enfermos com um simples toque de mão e expelir demônios com uma palavra também é poderoso para “salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus” (Hb 7.25). Sim, ele é o Todo-Poderoso. Esses milagres têm, igualmente, a finalidade de servir de símbolos ou emblemas da habilidade de nosso Senhor como médico espiritual. Aquele diante de quem nenhuma enfermidade física mostrou-se incurável é poderoso para curar cada um dos males que afligem nossas almas. Não há coração partido que ele não saiba sarar. Não há ferida de consciência que ele não possa fazer cicatrizar. Todos nós somos indivíduos caídos, esmagados, despedaçados e atingidos por alguma praga, por causa do pecado. Mas Jesus, por meio de seu sangue e Espírito, pode curar-nos inteiramente. Tão somente devemos ir até ele. Esses milagres também têm o propósito de nos mostrar o coração de Jesus, o Salvador, extremamente compassivo. Ele não rejeitava ninguém que viesse até ele. Ele nunca rejeitou quem quer que fosse, por mais enfermo ou repugnante que estivesse. Seus ouvidos estavam sempre dispostos a dar atenção a todos, e ele estava sempre pronto a ajudar a todos com um coração terno. Não existe bondade que se possa comparar à sua. A compaixão de Jesus jamais falhará. Nunca nos deveríamos esquecer de que Jesus Cristo “ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre” (Hb 13.8)! Exaltado nos céus, à mão direita de Deus Pai, em coisa alguma ele se modificou. Ele continua perfeitamente capaz de salvar, igualmente disposto a nos acolher e da mesma maneira preparado para nos ajudar, tal como fazia vinte séculos atrás. Naqueles dias, teríamos colocado nossas petições diante dele? Façamos a mesma coisa hoje. Ele pode curar “toda sorte de doenças e enfermidades”. As bem-aventuranças Leia Mateus 5.1-12
O s três capítulos que têm início com esses versículos merecem
especial atenção da parte de todos os estudiosos da Bíblia. Esses capítulos contêm o que, em geral, chama-se “Sermão da Montanha”. Cada palavra do Senhor Jesus deveria ser reputada como preciosa por aqueles que se dizem crentes. É a voz de nosso supremo Pastor, a palavra do grande Superintendente e Cabeça da Igreja. É o Senhor quem está falando. É a palavra daquele que falava como ninguém jamais falou, a voz daquele por meio de quem seremos julgados no último dia. Queremos saber que tipo de pessoa deveria ser o crente? Queremos saber que caráter cristão deveria ser nosso alvo? Gostaríamos de saber qual conduta e quais hábitos mentais deveríamos cultivar como seguidores de Jesus? Nesse caso, estudemos com frequência o Sermão da Montanha. Meditemos constantemente sobre as sentenças de Cristo, e submetamo-nos à prova de acordo com elas. Não devemos deixar de considerar a quem o Senhor Jesus chamou “bem-aventurados” no começo do sermão. Aqueles que são abençoados pelo nosso Sumo Sacerdote são verdadeiramente benditos. Jesus chamou bem-aventurados aos humildes de espírito. Referia-se aos humildes, modestos quanto a seu autoconceito, autorrebaixados. Apontava para os que estão profundamente convictos de sua própria pecaminosidade diante de Deus. Aqueles que não “são sábios aos seus próprios olhos, e prudentes em seu próprio conceito” (Is 5.21). Esses não se consideram “ricos e abastados” (Ap 3.17); não ficam fantasiando que não precisam de nada. Antes, consideram-se infelizes, miseráveis, pobres, cegos e nus. Todos esses são bem-aventurados! No alfabeto do cristianismo, a humildade é a primeira letra. Devemos começar bem por baixo, se quisermos atingir grandes alturas espirituais. O Senhor Jesus também chamou bem-aventurados àqueles que choram. Com isso, ele quis dar a entender aqueles que se entristecem por causa do pecado, e que também se lamentam diariamente por causa de suas próprias falhas. São esses que se preocupam mais com o pecado do que com qualquer outra coisa na face da terra. A memória dessas coisas os deixa profundamente tristes. Tal carga lhes parece intolerável. Bem-aventurados são todos esses. “Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; a um coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus” (Sl 51.17). Algum dia, eles não mais derramarão lágrimas, “porque serão consolados”. O Senhor Jesus também chama bem-aventurados aos mansos. Ele tinha em mente aqueles cujo espírito é paciente e satisfeito, aqueles que se dispõem a ter pouca honra neste mundo e que são capazes de sofrer injustiças sem guardar ressentimentos. Os que dificilmente se deixam irritar. Como Lázaro na parábola, eles estão contentes em esperar pelas boas coisas que Deus tem para dar. Bem-aventurados são todos esses! No longo prazo, eles nunca são os perdedores. Chegará o dia em que “reinarão sobre a terra” (Ap 5.10). O Senhor Jesus chama de bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, os que desejam, acima de tudo, ajustar-se à mente do Senhor. Eles anelam não tanto por se tornar ricos, poderosos ou eruditos, mas por ser santos. Bem-aventurados são todos esses! Um dia terão o suficiente do que desejam. Um dia acordarão revestidos à semelhança de Deus e serão satisfeitos (Sl 17.15). Jesus chama de bem-aventurados os misericordiosos, os que se mostram compassivos para com seus semelhantes. Eles têm compaixão de todos que sofrem, seja pelo pecado, seja pelas adversidades, e desejam ternamente suavizar tais sofrimentos. Praticam boas obras e esforçam-se para fazer o bem. Bem- aventurados são todos esses! Tanto nesta vida como na vindoura, terão uma rica colheita. O Senhor Jesus também considerou bem-aventurados os que são limpos de coração. Ao assim dizer, ele pensava naqueles que não almejam apenas ter uma conduta externa correta, mas, sim, a santidade interior. Esses não se satisfazem com a mera exibição externa de religiosidade. Antes, esforçam-se para manter o coração e a consciência isentos de ofensa, desejando servir a Deus com o espírito e com o homem interior. Bem-aventurados são todos esses! O coração é o próprio homem. “O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (1Sm 16.7). Quanto mais a mente estiver voltada às coisas espirituais, maior comunhão terá o homem com Deus. O Senhor Jesus chama bem-aventurados aos pacificadores, ou seja, aqueles que exercem sua influência pessoal a fim de promover a paz e o amor; tanto em particular como em público, em casa ou no estrangeiro. São os que se esforçam para que todos os homens se amem mutuamente, ensinando aquele evangelho que diz: “o cumprimento da lei é o amor” (Rm 13.10). Bem-aventurados são todos esses, pois estão realizando a mesma obra que o Filho de Deus iniciou quando veio à terra pela primeira vez, e que terminará em sua segunda vinda. Por fim, o Senhor Jesus chama bem-aventurados aos perseguidos por causa da justiça, aos que são alvo de zombaria e risos, aos desprezados e àqueles que sofrem abuso somente porque se esforçam para viver como verdadeiros crentes. Bem- aventurados são todos esses! Eles bebem do mesmo cálice do qual o Mestre bebeu. Eles o estão confessando perante os homens, e ele, por sua vez, haverá de confessá-los perante Deus Pai e os anjos no último dia. “É grande o vosso galardão nos céus.” Essas são as oito pedras fundamentais que o Senhor Jesus lançou, logo no começo de seu Sermão da Montanha. Oito grandes verdades, oito grandes testes foram colocados diante de nós. Marquemos bem cada um deles e, assim, aprenderemos a sabedoria! Aprendamos quão inteiramente contrários aos princípios deste mundo são os princípios ensinados por Cristo. É inútil tentar negar esse fato. São princípios diametralmente opostos entre si. O mundo menospreza as próprias virtudes que nosso Senhor Jesus exaltou. Orgulho, falta de consideração, espírito de exaltação, mundanismo, formalismo, egoísmo e falta de amor, que proliferam neste mundo por toda a parte, são coisas que o Senhor Jesus condenou. Aprendamos, da mesma forma, quão tristemente diferentes da vida prática de muitos “cristãos” professos são os ensinos de Jesus Cristo. Onde encontraremos, entre os que frequentam os cultos nas igrejas locais, homens e mulheres que se esforcem para viver segundo os padrões acerca dos quais acabamos de ler? Infelizmente, existem muitas razões para temer que um grande número de pessoas batizadas seja totalmente ignorante acerca do que o Novo Testamento contém! Acima de tudo, aprendamos quão santos e espirituais todos os crentes deveriam ser. Jamais deveriam ter como alvo qualquer padrão inferior ao do Sermão da Montanha. O cristianismo é eminentemente uma religião prática. A sã doutrina é sua raiz e seu fundamento, mas seu fluxo deveria sempre ser uma vida santa. E, se quisermos saber o que é uma vida santa, consideremos então, com frequência, quem são aqueles a quem Jesus chamou “bem- aventurados”. O caráter dos verdadeiros crentes; o ensino de Cristo e o Antigo Testamento Leia Mateus 5.13-20
N esses versículos, o Senhor Jesus aborda dois assuntos. Um
deles é o caráter que os verdadeiros crentes precisam defender e manter neste mundo. O outro é a relação entre as doutrinas que ele ensinava e os ensinos do Antigo Testamento. É muito importante termos uma visão bem clara sobre ambos os assuntos. Neste mundo, os verdadeiros cristãos devem ser como o sal. Ora, o sal tem um sabor bem peculiar, diferente de qualquer outra coisa. Quando misturado com outras substâncias, preserva da corrupção. O sal transmite um pouco de seu sabor a tudo com que é misturado. Só é útil enquanto preserva o sabor; do contrário, para nada mais serve. Somos crentes verdadeiros? Atentemos para nossa posição e nossos deveres neste mundo! Os verdadeiros crentes devem viver como luzes neste mundo. A propriedade da luz é ser totalmente diferente das trevas. A menor centelha em uma sala escura pode ser vista prontamente. Dentre todas as coisas criadas, a luz é a mais útil. A luz fertiliza o solo. A luz guia. A luz reanima. A luz foi a primeira coisa que Deus trouxe à existência. Sem a luz, este mundo seria um vazio obscuro. Somos crentes verdadeiros? Nesse caso, consideremos novamente a nossa posição e as nossas responsabilidades! Se essas palavras têm algum significado, então, certamente, Jesus tenciona nos ensinar, com essas duas figuras, sal e luz, que precisa haver algo notório, distintivo e peculiar a respeito do nosso caráter, se somos verdadeiros cristãos. Se desejamos ser reconhecidos como pertencentes a Cristo, como o povo de Deus, jamais poderemos passar a vida desocupados, pensando e vivendo como fazem as demais pessoas neste mundo. Temos a graça divina? Então ela precisa ser vista. Temos o Espírito Santo? Então deve haver o fruto. Temos uma religião salvadora? Então, deve haver uma diferença de hábitos e preferências, bem como uma mentalidade diferente entre nós e aqueles que pensam segundo o mundo. É perfeitamente claro que o cristianismo verdadeiro envolve algo mais do que ser batizado e ir à igreja. “Sal” e “luz”, evidentemente, implicam uma peculiaridade, tanto no coração como na vida diária, tanto na fé como na prática. Se nos consideramos salvos, devemos ousar ser singulares e diferentes da humanidade em geral. A relação entre o ensino de nosso Senhor e o ensino do Antigo Testamento foi esclarecida por Jesus mediante uma sentença incisiva: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir”. Essas são palavras dignas de nota. Elas foram muito importantes quando proferidas, porquanto davam resposta à ansiedade natural dos judeus quanto a esse assunto. São palavras que continuarão a ser extremamente importantes, enquanto este mundo continuar, como um testemunho de que a religião do Antigo Testamento e do Novo Testamento forma um todo harmônico. O Senhor Jesus veio a este mundo a fim de cumprir as predições dos profetas, os quais, desde os tempos antigos, haviam profetizado que, um dia, viria ao mundo um Salvador. E ele veio para cumprir a lei cerimonial, tornando-se o grande sacrifício pelo pecado, para o qual todas as oferendas da lei mosaica tinham sempre apontado. Ele veio para cumprir a lei moral, prestando-lhe obediência perfeita, o que nós mesmos jamais poderíamos ter feito. Ele também cumpriu a lei pagando com seu sangue reconciliador a penalidade por nossa quebra da lei, uma penalidade que nós jamais poderíamos ter pago. De todas essas maneiras, ele exaltou a lei de Deus, e tornou sua importância ainda mais evidente. Em suma, ele engrandeceu a lei e a fez gloriosa (Is 42.21). Existem profundas lições de sabedoria a serem aprendidas por meio dessas palavras de nosso Senhor. Portanto, meditemos cuidadosamente sobre elas, entesourando-as em nosso coração. Tomemos cuidado para não desprezar o Antigo Testamento, sob pretexto algum. Nunca devemos dar ouvidos àqueles que recomendam pôr de lado o Antigo Testamento, como se fosse um livro antiquado, obsoleto e inútil. A religião do Antigo Testamento é um embrião do cristianismo. O Antigo Testamento é o evangelho em botão; o Novo Testamento é o evangelho aberto em flor. O Antigo Testamento é o evangelho brotando; o Novo Testamento é o evangelho já em espiga formada. Os santos do Antigo Testamento enxergaram muitas coisas como que por um espelho, obscuramente. Porém, todos contemplavam pela fé o mesmo Salvador, e foram guiados pelo mesmo Espírito Santo que hoje nos guia. Essas não são questões de pouca importância. O ignorante desprezo pelo Antigo Testamento dá origem a muita infidelidade. Também devemos acautelar-nos em não desprezar a Lei dos Dez Mandamentos. Nem por um instante sequer suponhamos que essa lei foi posta de lado pelo evangelho, ou que os crentes nada têm a ver com ela. A vinda de Cristo em nada alterou a posição dos Dez Mandamentos, nem mesmo a largura de um fio de cabelo. O que ela fez foi exaltar e destacar sua autoridade (Rm 3.31). A Lei dos Dez Mandamentos é a medida eterna de Deus para o que é certo e o que é errado. Por meio da lei, vem o conhecimento pleno do pecado. Pela lei é que o Espírito mostra aos homens sua necessidade de Cristo e os leva até ele. Cristo deixou ao seu povo a Lei dos Dez Mandamentos como norma e guia para uma vida santa. Em seu devido lugar, a Lei dos Dez Mandamentos é tão importante quanto o “glorioso evangelho”. A lei não pode salvar-nos. Não podemos ser justificados por ela. Porém, jamais a desprezemos. O menosprezo pela Lei dos Dez Mandamentos é um sintoma de ignorância e insanidade em nossa religião. O verdadeiro crente tem “prazer na lei de Deus” (Rm 7.22). Em último lugar, cuidemos em não supor que o evangelho tenha rebaixado o padrão de santidade pessoal, ou que o cristão não deva ser tão estrito e cuidadoso em sua conduta diária quanto o eram os judeus. Esse é um engano terrível, mas que, infelizmente, é muito comum. Bem ao contrário, os santos do Novo Testamento deveriam exceder em santidade os santos dos tempos antigos, pois estes só tinham o Antigo Testamento para lhes servir de orientação. Quanto mais luz temos, maior é nosso amor a Deus. Quanto mais claramente enxergamos nosso pleno perdão em Cristo, mais devemos trabalhar de coração para sua glória. Sabemos quanto custou nossa redenção, melhor do que os santos do Antigo Testamento souberam. Já lemos o que aconteceu no Getsêmani e no Calvário, mas eles só viram essas coisas de modo indistinto e obscuro, como algo que ainda estava prestes a acontecer. Que jamais nos esqueçamos de nossas obrigações! O crente que se satisfaz com um baixo padrão de santidade pessoal ainda tem muito a aprender. A espiritualidade da lei comprovada por três exemplos Leia Mateus 5.21-37
E sses versículos merecem a mais cuidadosa atenção por parte
de todos os leitores da Bíblia. Um correto entendimento das doutrinas que eles contêm é fundamental ao cristianismo. Aqui, o Senhor Jesus explica mais completamente o significado de suas palavras “não vim para revogar a lei, vim para cumprir”. Ele nos ensina que o evangelho magnifica a lei e exalta sua autoridade. Ele nos mostra que a lei, conforme ele a tinha apresentado, era uma regra muito mais espiritual e capaz de perscrutar o coração do que a maioria dos judeus imaginava. E ele comprovava isso selecionando três dos dez mandamentos, como exemplos para o que queria dizer. Jesus expôs o sexto mandamento. Muitos israelitas pensavam estar cumprindo essa parte da lei de Deus simplesmente por não cometerem homicídio na prática. O Senhor Jesus, contudo, mostra que as exigências desse mandamento vão muito além. Tal mandamento condena até mesmo a linguagem iracunda e repleta de rancor, especialmente quando utilizada sem motivo justificado. Salientemos bem esse ponto. Podemos ser perfeitamente inocentes no que tange a tirar a vida de outrem, mas tornar-nos culpados de transgredir o sexto mandamento. Jesus apresenta o sétimo mandamento. Muitos supunham estar cumprindo essa parte da lei de Deus, apenas por não praticarem adultério. Mas o Senhor Jesus nos ensina que podemos quebrar esse mandamento em nossos pensamentos, em nosso coração e em nossa imaginação, mesmo quando nossa conduta exterior é moral e correta. O Deus com quem tratamos vê muito além de nossas ações. Para ele, até mesmo um rápido lançar de olhos pode ser pecado. Jesus apresenta o terceiro mandamento. Muitos se iludiam pensando estar cumprindo essa parte da lei de Deus, contanto que não jurassem falsamente e cumprissem seus votos. Mas o Senhor Jesus proíbe toda e qualquer espécie de juramento vão. Todo o juramento em nome de coisas criadas, mesmo quando o nome de Deus não está envolvido — todo juramento que tome Deus como testemunha, exceto nas ocasiões mais solenes —, é um grande pecado.Tudo isso é muito instrutivo. Esse ensinamento deveria fazer-nos refletir com grande seriedade. Ele nos diz em alta voz para que sondemos cuidadosamente nossos corações. Mas o que nos ensina? Ele nos ensina a tremenda santidade de Deus. Deus é um Ser puríssimo e perfeitíssimo, que percebe falhas e imperfeições onde os homens não veem coisa alguma. Deus lê os motivos de nossos corações. Ele observa não somente nossos atos, como também nossas palavras e nossos pensamentos. “Eis que te comprazes na verdade no íntimo” (Sl 51.6). Quisera os homens considerassem esse aspecto do caráter de Deus muito mais do que costumam fazer! Então, não haveria lugar para o orgulho, para a justiça própria e para a indiferença, se ao menos os homens vissem a Deus “conforme ele é”. Ele nos ensina a excessiva ignorância dos homens quanto às realidades espirituais. Existem milhares e milhares de cristãos professos, como é de temer, que não sabem mais a respeito dos requisitos da lei de Deus do que os mais ignorantes judeus. Conhecem a letra dos dez mandamentos suficientemente bem. Mas, à semelhança do jovem rico, julgam-se guardadores da lei: “tudo isso tenho observado, desde a minha juventude” (Mc 10.20). Para eles, é inconcebível que se possam quebrar o sexto e o sétimo mandamentos mesmo sem praticar algum ato exterior ou pecado explícito. E assim vão vivendo, satisfeitos consigo mesmos e plenamente contentes com sua minirreligião. Felizes mesmo são os que realmente compreendem a lei de Deus. O sexto mandamento nos ensina a enorme necessidade do sangue expiatório de Jesus Cristo para nos salvar. Quais são os homens ou as mulheres neste mundo que poderiam apresentar-se diante de Deus e declarar-se “inocentes”? Há alguém que tenha atingido a idade da razão sem haver quebrado os mandamentos milhares de vezes? “Não há justo, nem sequer um” (Rm 3.10). Sem um Mediador poderoso, todos nós seríamos condenados no dia do juízo. A ignorância do real significado da lei é uma razão evidente para tantas pessoas não darem valor ao evangelho, contentando-se em viver um cristianismo mesquinho e formal. Elas não percebem o rigor e a santidade dos dez mandamentos da lei de Deus. Se percebessem esse fato, não descansariam enquanto não estivessem seguras em Jesus Cristo. Em último lugar, essa passagem nos ensina a enorme importância de se evitar tudo que possa dar ocasião ao pecado. Se realmente desejamos ser santos, diremos como o salmista: “Guardarei os meus caminhos, para não pecar com a língua” (Sl 39.1). Precisamos estar prontos para resolver querelas e desacordos, para que tais coisas não nos conduzam a pecados ainda mais graves: “Como o abrir-se da represa assim é o começo da contenda; desiste, pois, antes que haja rixas” (Pv 17.14). Precisamos nos empenhar em crucificar nossa carne e mortificar nossos membros. Devemos estar dispostos a fazer qualquer sacrifício, e até mesmo a trazer sobre o corpo o incômodo físico, antes de dar lugar ao pecado. Devemos guardar nossos lábios, como que por um freio, e exercitar constante vigilância sobre nossas palavras. Que os homens nos chamem de “muito restritos”, se assim desejarem! Que digam que somos “por demais meticulosos”, se isso lhes agrada! Não nos deixemos abalar com isso. Estamos apenas fazendo aquilo que nosso Senhor Jesus Cristo nos manda, e, sendo assim, não temos do que nos envergonhar. A lei cristã do amor Leia Mateus 5.38-48
N esse trecho, encontramos as normas de nosso Senhor Jesus
Cristo quanto à nossa conduta de uns para com os outros. Os que desejarem saber como deveriam agir e sentir, no tocante ao próximo, devem estudar com frequência esses versículos. Eles merecem ser escritos em letras de ouro. Esses versículos têm sido elogiados até mesmo pelos adversários do cristianismo. Observemos atentamente o que eles contêm. O Senhor Jesus proíbe qualquer coisa parecida com um espírito vingativo, que não esteja disposto a perdoar. A inclinação por se ressentir diante das ofensas, a prontidão em ficar ofendido, uma disposição contenciosa e briguenta, a insistência em reivindicar nossos direitos — tudo isso é contrário à mente de Cristo. O mundo pode não perceber nada de errado nesses hábitos da mente. Tais coisas, porém, não fazem parte do caráter do verdadeiro cristão. Nosso Mestre disse: “Não resistais ao perverso”. O Senhor Jesus nos manda cultivar um espírito de amor e benevolência para com todos os homens. Devemos pôr de lado toda malícia. Devemos pagar o mal com o bem e a maldição com bênçãos. Jesus nos disse: “amai os vossos inimigos”. Outrossim, não devemos amar somente de palavra, mas em verdade e de fato. Devemos negar a nós mesmos e nos esforçar para sermos gentis e corteses. “Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas.” Compete-nos tolerar muita coisa, suportar muita coisa, em vez de ofender ou prejudicar outras pessoas. Em todas as coisas, devemos mostrar-nos altruístas. Nosso pensamento nunca deveria ser: “Como é que as outras pessoas se comportam comigo?”. Pelo contrário, deveria ser: “O que Cristo gostaria que eu fizesse?”. Um padrão de conduta como esse poderia, à primeira vista, parecer demasiadamente elevado. Porém, nunca nos deveríamos contentar com um padrão inferior. Precisamos observar os dois fortes argumentos com que nosso Senhor reforça essa parte de seu ensino. Esses argumentos merecem séria atenção. Inicialmente, porque, se não tivermos como alvo o espírito e a atitude aqui recomendados, então ainda não somos filhos de Deus. Nosso “Pai, que está nos céus”, é bom para todos. Ele envia chuvas sobre bons e maus, igualmente. Ele faz o sol brilhar sobre todos os homens, sem distinção. Ora, um filho deve ser como seu pai. Porém, em que somos semelhantes a nosso Pai celeste, se não somos capazes de demonstrar misericórdia e bondade para com todos? Onde estão as evidências de que somos novas criaturas, se não temos amor? Estão todas em falta. Isso é um sinal de que ainda precisamos “nascer de novo” (Jo 3.7). Se não almejamos ter o espírito e a atitude aqui recomendados, então manifestamente ainda somos do mundo. Até mesmo os que não têm nenhuma religião podem “amar aqueles que os amam”. Eles podem fazer o bem e mostrar gentileza quando seus afetos e interesses os movem nesse sentido. Porém, o crente deveria ser dirigido por princípios mais elevados do que o interesse próprio. Estamos procurando evitar esse teste? Achamos impossível praticar o bem em favor de nossos inimigos? Se esse é o caso, então podemos ter a certeza de que ainda não nos convertemos. Enquanto isso prevalecer, ainda não teremos recebido “o Espírito que vem de Deus” (1Co 2.12).Em tudo o que já vimos, existem muitas coisas que clamam em alta voz por nossa solene reflexão. Há poucas passagens nas Escrituras que tão bem se prestam a despertar em nossas mentes tais pensamentos de contrição. Temos aqui um amável quadro do cristão, tal como ele deveria ser. Observando-o, não podemos deixar de sentir alguma dor. Todos devemos admitir que esse quadro difere amplamente daquilo que o crente costuma ser. Podemos depreender daí duas lições gerais. Em primeiro lugar, se o espírito desses onze versículos fosse mais continuamente relembrado pelos verdadeiros crentes, eles recomendariam o cristianismo ao mundo de maneira muito mais eficiente. Não podemos permitir-nos supor que as palavras dessa passagem sejam superficiais e de pouca importância, nem mesmo as mínimas coisas afirmadas. A realidade é outra. A devida atenção ao espírito desse texto bíblico é que torna tão atrativa nossa religião cristã. A negligência quanto às verdades ali contidas conduz à deformação do cristianismo. Cortesia, gentileza, ternura e consideração pelas outras pessoas são alguns dos melhores ornamentos do caráter dos filhos de Deus. O mundo pode compreender essas coisas mesmo quando as pessoas não são capazes de compreender as doutrinas do cristianismo. Não existe religião cristã na grosseria, na aspereza, na indelicadeza ou na falta de civilidade. A perfeição do cristianismo prático consiste na atenção que dispensamos tanto aos pequenos como aos grandes deveres da santidade. Em segundo lugar, se o espírito desses onze versículos tivesse maior domínio e poder, quão mais feliz o mundo seria do que realmente é! Quem não sabe que as discussões, as desavenças, o egoísmo e a indelicadeza provocam metade das misérias que afligem a humanidade? Quem não percebe que coisa alguma tenderia mais a aumentar a felicidade entre os homens do que a propagação do amor cristão, tal como é aqui recomendado por nosso Senhor? Todos devemos lembrar-nos disso. Os que se iludem pensando que a verdadeira religião tende a fazer os homens infelizes estão grandemente enganados. A ausência da verdadeira religião é a causa dessa infelicidade, e não sua prevalência. A verdadeira religião exerce efeito diametralmente oposto. Ela tende a promover a paz e o amor ao próximo, a gentileza e a boa vontade entre as pessoas. Quanto mais os homens seguirem os ensinos do Espírito Santo, mais se amarão mutuamente, e mais felizes serão. Ostentação nas esmolas e na oração Leia Mateus 6.1-8
N esse segmento do Sermão da Montanha, o Senhor Jesus nos
instruiu sobre duas questões. A primeira é quanto a dar esmolas; a outra, quanto à oração. Ambas eram questões às quais os judeus atribuíam grande importância. Ambas, por si mesmas, merecem séria atenção de todos os que professam o cristianismo. Observe que nosso Senhor assume como ponto pacífico que todos os que se intitulam seus discípulos darão esmolas. Ele assume como natural que eles pensarão ser um dever solene dar esmolas de acordo com suas possibilidades, a fim de aliviar as necessidades alheias. Aqui o único ponto abordado por Cristo é a maneira como deveria ser cumprido esse dever. Essa é uma importante lição. Ele condena a atitude de egoísmo mesquinho de tantas pessoas, quanto à questão de dar dinheiro. Quantos são “ricos para consigo mesmos”, mas são pobres para com Deus! Muitos jamais dão um centavo para fazer o bem ao corpo e à alma de outrem! Será que os tais, com essa mentalidade, têm algum direito de ser chamados cristãos? Bem poderíamos duvidar desse direito. Um Salvador sempre disposto a dar deveria ter discípulos igualmente dispostos a contribuir. Observe, uma vez mais, que nosso Senhor toma por certo que todos que se intitulam seus discípulos serão pessoas de oração. Ele assume que isso também é um ponto pacífico. Tão somente ele nos dá orientações quanto à melhor maneira de orar. Essa é outra lição que merece ser continuamente lembrada. A lição é clara: pessoas que não oram não são cristãos genuínos. Não basta apenas participar das orações na igreja, aos domingos, ou frequentar os cultos de oração durante a semana, na igreja ou em família. Também é preciso haver a oração particular, a sós com Deus. Sem isso, podemos até estar arrolados como membros de alguma igreja cristã, mas não somos membros vivos de Cristo. Entretanto, quais são as normas deixadas para nossa orientação a respeito de esmolas e oração? As regras são poucas e simples, mas contêm muito material para nossa meditação. Ao dar esmolas, tudo que é ostentação deveria ser abominado e evitado. Não devemos dar como se desejássemos que todos vissem quão caridosos e liberais somos, como se quiséssemos receber os elogios de nossos semelhantes. Tudo que pareça exibicionismo deve ser evitado. Devemos dar na quietude, fazendo menos ruído possível a respeito de nossa caridade. Nosso propósito deveria acompanhar o espírito daquele versículo: “Ignore a tua mão esquerda o que faz a tua direita”. Ao orar, nosso objetivo principal deveria ser o de estarmos a sós com Deus. Deveríamos procurar algum lugar no qual nenhum olho mortal nos pudesse ver, para que, então, pudéssemos derramar o coração diante de Deus, com o sentimento de que ninguém nos está vendo, senão Deus. Entretanto, essa é uma regra que muitas pessoas consideram difícil seguir. Para os irmãos de condição mais humilde, e para os que trabalham para outrem, é quase impossível estar realmente sozinhos. Porém, essa é a norma à qual todos nós precisamos esforçar-nos por obedecer. A necessidade, em tais casos, com frequência é a mãe da invenção. Quando uma pessoa tem o real desejo de encontrar um lugar no qual possa estar em secreto com Deus, geralmente acabará por encontrá-lo. Em todos os nossos deveres, seja dar, seja orar, a questão fundamental que nunca deveríamos esquecer é que estamos tratando com um Deus que perscruta o coração e sabe todas as coisas. Tudo que seja mera formalidade, afetação ou que não provenha do coração é abominável e sem valor aos olhos de Deus. Ele não leva em conta com quanto dinheiro contribuímos, ou o número de palavras que usamos. O que realmente importa aos olhos de Deus é a natureza dos motivos e o estado do coração. Nosso Pai celeste “vê em secreto”. Que todos nós lembremos essas coisas! Eis aqui uma pedra que é a causa de naufrágio espiritual de muitas pessoas. Elas bajulam a si mesmas com o pensamento de que tudo deve estar certo com suas almas se ao menos desempenharem certa quantidade de deveres religiosos. Esquecem-se de que Deus não presta atenção à quantidade, mas, sim, à qualidade de nosso serviço. O favor divino não pode ser comprado, conforme alguns parecem supor, pela repetição formal de certo número de palavras, ou por justiça própria, pagando alguma quantia em dinheiro a uma instituição de caridade. No que temos posto o coração? Estamos fazendo tudo, seja dar ou orar, “como ao Senhor, e não como a homens” (Ef 6.7)? Será que compreendemos o que realmente importa aos olhos do Senhor? Será que apenas e simplesmente desejamos agradar àquele que “vê em secreto”, àquele que “pesa todos os feitos na balança” (1Sm 2.3)? Estamos agindo com sinceridade? Com perguntas desse tipo é que deveríamos sondar diariamente nossas almas. A oração do Pai-Nosso e o perdão mútuo Leia Mateus 6.9-15
E sses versículos são poucos em número e podem ser lidos com
facilidade; no entanto, são de imensa importância. Eles contêm o maravilhoso modelo de oração com que o Senhor Jesus supriu seu povo e que, comumente, é chamado de “oração do Pai-Nosso”. Talvez nenhuma outra porção das Escrituras seja tão conhecida quanto esta. Suas palavras são conhecidas onde quer que exista o cristianismo. Milhares e milhares de pessoas que nunca viram uma Bíblia ou que nunca tiveram a oportunidade de ouvir o evangelho puro estão familiarizadas com o “Pai-Nosso”. Quão mais feliz seria o mundo se o espírito e o intuito dessa oração fossem tão conhecidos quanto o são suas palavras! Talvez nenhuma outra porção das Escrituras seja, ao mesmo tempo, tão simples e tão completa quanto esta. Trata-se da primeira oração que aprendemos na infância. Nisto consiste sua simplicidade: ela contém o princípio de tudo aquilo que o mais desenvolvido filho de Deus possa desejar. Nisto consiste sua plenitude: quanto mais ponderamos acerca de suas palavras, mais sentimos que essa oração procede de Deus. A oração do Pai-Nosso consiste em dez partes ou sentenças. Há uma declaração que diz respeito ao Ser a quem oramos. Existem três petições referentes ao nome de Deus, ao seu reino e à sua vontade. Há quatro petições a respeito de nossas necessidades diárias, nossos pecados, nossas debilidades e perigos. Há uma declaração de nossos sentimentos a respeito do próximo. Há uma atribuição final de louvor. Em todas essas partes da oração, somos ensinados a dizer “nós” ou “nosso”. Devemos lembrar-nos das outras pessoas tanto quanto de nós mesmos. Um livro poderia ser escrito a respeito de cada uma das partes dessa oração, mas, no momento, precisamos contentar-nos em observar sentença após sentença, assinalando em que direção aponta cada uma delas. A primeira sentença declara a quem devemos orar: “Pai nosso, que estás nos céus”. Não devemos clamar a santos ou anjos, mas exclusivamente ao Pai, o Pai eterno, o Pai dos espíritos, o Senhor dos céus e da terra. Podemos chamá-lo de Pai no sentido de que ele é nosso Criador, conforme fez o apóstolo Paulo, perante os atenienses: “Pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos [...] dele também somos geração” (At 17.28). Nós também o chamamos Pai no sentido mais elevado da Palavra, como o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, porquanto Deus nos reconciliou consigo mesmo por meio da morte de seu Filho, Jesus Cristo (Cl 1.20-22). Nós professamos aquilo que os santos do Antigo Testamento, se viam, viam como que por um espelho, ou seja, professamos ser filhos de Deus mediante a fé em Cristo e professamos ter o “espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai” (Rm 8.15). Isso é algo que jamais devemos esquecer; se desejamos ser salvos, devemos almejar essa filiação com Deus. Sem a fé no sangue de Jesus Cristo, e sem a nossa união com ele, é inútil falarmos em confiança na paternidade de Deus. A segunda sentença consiste em uma petição concernente ao nome de Deus: “santificado seja o teu nome”. Quando falamos no “nome” de Deus, entendemos todos aqueles atributos divinos através dos quais ele se tem revelado a nós — seu poder, sabedoria, santidade, justiça, misericórdia e verdade. Quando rogamos que esses atributos sejam “santificados”, pedimos que eles se tornem conhecidos e glorificados. A glória de Deus é a primeira coisa à qual os filhos de Deus deveriam aspirar. Esse foi o assunto de uma das orações do próprio Senhor Jesus: “Pai, glorifica o teu nome” (Jo 12.28). Esse é o propósito para o qual o mundo foi criado. Essa é a finalidade para a qual os santos são chamados e convertidos. A principal coisa que deveríamos buscar nesta vida é que “em todas as cousas seja Deus glorificado” (1Pe 4.11). A terceira sentença envolve uma petição acerca do reino de Deus: “venha o teu reino”. Por “teu reino”, entendemos, inicialmente, o reino da graça que Deus estabelece e mantém no coração de todos os membros vivos do corpo de Cristo, por meio de seu Espírito e de sua Palavra. Mas, principalmente, entendemos tratar- se daquele reino de glória que um dia será estabelecido, quando o Senhor Jesus vier pela segunda vez. Então, todos conhecerão o Senhor, “desde o menor deles até ao maior” (Hb 8.11). Nessa ocasião, o pecado, a tristeza e Satanás serão expulsos do mundo. O judeus serão convertidos e virá a plenitude dos gentios (Rm 11.25), e será o tempo mais desejável que jamais existiu. Essa petição, portanto, tem um lugar de proeminência dentro da oração do Pai-Nosso. A quarta sentença é uma petição concernente à vontade de Deus: “faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu”. Nesse ponto, oramos no sentido de que os homens obedeçam às leis de Deus tão perfeita, pronta e incessantemente quanto os anjos no céu. Rogamos que aqueles que agora não obedecem às leis de Deus sejam ensinados a obedecer e que aqueles que obedecem o façam ainda com maior empenho. Nossa mais autêntica felicidade consiste na perfeita submissão à vontade de Deus; é demonstração do mais elevado amor cristão orar no sentido de que toda a humanidade possa conhecer a vontade de Deus, obedecer e submeter-se a ela. A quinta sentença é uma petição referente às nossas próprias necessidades diárias: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Aqui, somos ensinados a reconhecer nossa inteira dependência de Deus para o suprimento de nossas necessidades diárias. Tal como Israel precisava do maná diariamente, assim também precisamos diariamente do nosso pão. Nós confessamos que somos pobres, fracos, criaturas necessitadas, e suplicamos a Deus, nosso Criador, que tome conta de nós. Pedimos pão como a mais simples de nossas necessidades materiais; mas, nessa palavra, incluímos todas as necessidades de nosso corpo. A sexta sentença é uma petição a respeito de nossos pecados: “perdoa-nos as nossas dívidas”. Confessamos que somos pecadores e que precisamos receber diariamente o perdão por nossas transgressões. Essa é uma parte da oração do Pai-Nosso que merece ser especialmente relembrada. Ela condena toda justiça própria e autojustificação. Aqui, somos instruídos a manter o hábito contínuo de confissão junto ao trono da graça; e o hábito contínuo de buscar misericórdia e remissão. Que isso jamais seja esquecido! Precisamos “lavar os pés” diariamente (Jo 13.10). A sétima sentença é uma declaração atinente aos nossos sentimentos para com o próximo: rogamos ao Pai que nos perdoe “as nossas dívidas assim como nós temos perdoado aos nossos devedores”. Essa é a única declaração de um compromisso nosso para com Deus que aparece em toda a oração, e a única parte da oração na qual Jesus se detém para fazer um comentário posterior. Jesus nos relembra que não devemos esperar receber o perdão quando oramos com malícia ou rancor no coração para com os outros. Orar com essa atitude mental é mero formalismo e hipocrisia. É ainda pior do que hipocrisia. É como dizer: “Não me perdoe”. Nossa oração nada vale sem amor. Não devemos esperar ser perdoados se não conseguimos perdoar. A oitava sentença é uma petição a respeito de nossas fraquezas: “não nos deixes cair em tentação”. Ela nos ensina que, a todo instante, podemos ser enganados e cair em transgressão. Ela nos instrui a confessar nossas debilidades, a buscar a Deus para nos sustentar e não nos deixar andar em pecado. Rogamos que ele, que ordena todas as coisas no céu e na terra, não nos deixe incorrer naquilo que é prejudicial às nossas almas, e que jamais permita que sejamos tentados acima do que somos capazes de suportar (1Co 10.13). A nona sentença é uma petição acerca dos perigos que nos ameaçam: “livra-nos do mal”. Aqui, somos ensinados a pedir que Deus nos livre do mal existente neste mundo, do mal que está dentro de nossos próprios corações e, não menos importante, do maligno, que é o diabo. Confessamos que, enquanto estamos no corpo, estamos constantemente vendo, ouvindo e sentindo a presença do mal. Ele está do nosso lado, dentro de nós e ao nosso redor, em todo canto. Assim, rogamos a Deus, que é o único que pode nos preservar, para que sejamos continuamente libertos do poder do mal (Jo 17.15). A última sentença é uma atribuição de louvor: “teu é o reino, o poder e a glória”. Com essas palavras, declaramos nossa crença de que os reinos deste mundo são legítima propriedade de nosso Pai celestial, que a ele pertence todo o poder e que só ele merece receber toda a glória. Concluímos a grande oração oferecendo ao Senhor a profissão de nossos corações, de que lhe conferimos toda honra e todo louvor, e nos regozijamos no fato de que ele é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores. Agora, examinemos a nós mesmos, para saber se realmente desejamos ter as coisas que somos ensinados a pedir nessa oração. É de temer que milhares de pessoas repitam formalmente essas palavras, dia após dia, sem jamais considerarem o que estão dizendo. Elas não têm a menor preocupação com a glória, o reino ou a vontade do Senhor. Não têm nenhum senso de dependência, de pecaminosidade, de fraqueza pessoal ou de perigo. Não têm amor nem compaixão para com seus inimigos. E, ainda assim, repetem a oração do Pai-Nosso! As coisas não deveriam ser assim. Que nós possamos tomar uma decisão e, com a ajuda de Deus, fazer com que nossos lábios e nossos corações caminhem juntos! Bem-aventurado é quem verdadeiramente pode chamar Deus de Pai celestial, por intermédio de Jesus Cristo, seu Salvador, e que, portanto, pode sinceramente dizer “Amém”, de todo o coração, a tudo que a oração do Pai-Nosso contém. A maneira correta de jejuar, o tesouro no céu e as exortações Leia Mateus 6.16-24
N essa parte do Sermão da Montanha, nosso Senhor nos fala de
três assuntos: o jejum, o mundanismo e a importância de se ter um propósito bem definido no que diz respeito à religião. O jejum, ou a abstinência ocasional de alimentos, a fim de trazer o corpo em sujeição ao espírito, é uma prática frequentemente mencionada na Bíblia e, em geral, vinculada à oração. Davi jejuou quando seu filho recém-nascido adoeceu gravemente. Daniel jejuava quando buscava uma orientação especial da parte de Deus. Paulo e Barnabé jejuavam quando apontavam os anciãos para as igrejas locais. Ester jejuou antes de se apresentar ao rei Assuero. O jejum é um assunto sobre o qual não encontramos nenhum mandamento direto no Novo Testamento. Parece que é deixado a critério de cada um, se fará jejum ou não. Nisso há grande sabedoria. Muitos homens pobres nunca têm o suficiente para comer, e seria um insulto ordenar-lhes o jejum. Muitos enfermos têm dificuldade de se alimentar bem, mesmo dando toda atenção à dieta, e o jejum contribuiria para agravar ainda mais a doença. Essa é uma questão em que cada um precisa estar persuadido em sua própria mente, e não ser precipitado em condenar os que não concordem com ele. Somente um ponto jamais deve ser esquecido. Quem jejua deve fazê-lo em quietude, em segredo e sem ostentação. Deve fazê-lo de maneira a não parecer aos homens que jejua. Que não jejue para os homens, mas para Deus! O mundanismo é um dos maiores perigos que ameaçam a alma do ser humano. Não causa admiração, portanto, que encontremos nosso Senhor falando decididamente contra isso. Trata-se de um inimigo insidioso, astuto e muito enganador. Parece tão inocente dar atenção especial aos nossos negócios! Parece tão inofensivo procurar a felicidade neste mundo, desde que estejamos limpos dos pecados mais visíveis! No entanto, essa é uma pedra contra a qual muitos podem naufragar para toda a eternidade. Eles acumulam “tesouros sobre a terra” e se esquecem de ajuntar “tesouros nos céus”. Que todos nos lembremos disso! Onde está posto meu coração? O que amo acima de tudo? Meus maiores afetos estão ligados às coisas deste mundo ou à realidade celestial? A morte e a vida dependem da resposta que seremos capazes de dar a essas indagações. Se nosso tesouro está sobre a terra, nossos corações serão terrenos — “porque onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração”. Ter um propósito bem definido é um dos maiores segredos da prosperidade espiritual. Se nossos olhos não veem distintamente, não podemos caminhar sem tropeçar e cair. Se tentarmos trabalhar para dois mestres diferentes, poderemos ter a certeza de não satisfazer nem a um nem a outro. Acontece o mesmo a respeito de nossas almas. Não podemos servir a Cristo e ao mundo ao mesmo tempo. Isso simplesmente não pode ser feito. A arca da aliança e a estátua de Dagom jamais permanecerão juntas. Deus deve ser Rei sobre nossos corações. A Lei de Deus, sua vontade e seus preceitos devem receber nossa primeira atenção. Então, e somente então, todas as coisas se ajustarão em seus devidos lugares em nosso homem interior. A menos que nossos corações estejam assim, tão bem ordenados, tudo o mais estará em confusão: “Todo o teu corpo estará em trevas”. Com a instrução do Senhor acerca do jejum, aprendamos a grande importância do contentamento em nossa religião. As palavras “unge a cabeça e lava o rosto” são repletas de profundo significado. Elas deveriam ensinar-nos a ter como alvo permitir que os homens vejam que o cristianismo nos faz estar contentes. Jamais nos esqueçamos de que não existe religião alguma em parecermos melancólicos e tristes. Estamos insatisfeitos com Cristo e com o serviço de seu reino? Certamente que não! Então, não tenhamos a aparência de quem está insatisfeito. Aprendamos, com base na advertência do Senhor acerca do mundanismo, como é grande a necessidade que todos nós temos de vigiar e orar contra um espírito mundano. O que a maioria dos “cristãos” professos ao nosso redor está fazendo? Eles estão acumulando “tesouros na terra”. Quanto a isso, não há dúvida. Seus gostos, hábitos e procedimentos nos contam uma história digna de temor: eles não estão ajuntando “tesouros no céu”. Oh, cuidemos todos nós de não cair no inferno, somente porque damos atenção excessiva a coisas que são perfeitamente legítimas! A transgressão notória da lei de Deus mata seus milhares, e o mundanismo seus dez milhares! Aprendamos, com base no que nosso Senhor disse acerca dos “olhos bons”, o verdadeiro segredo das falhas que tantos cristãos parecem cometer em sua religião. Há fracassos por toda parte. Existem milhares de pessoas, em nossas igrejas, que se sentem desconfortáveis, irrequietas e insatisfeitas consigo mesmas, sem nem mesmo saber o porquê. A razão disso está aqui revelada: elas querem estar de bem com Deus e com o mundo. Estão tentando agradar a Deus e aos homens, servir, ao mesmo tempo, a Cristo e ao mundo. Não incorramos nesse erro. Que nós sejamos decididos e radicais, inflexíveis seguidores de Cristo! Que nosso lema seja o mesmo do apóstolo Paulo: “Uma cousa faço” (Fp 3.13). Então, seremos cristãos felizes. Sentiremos o sol brilhando em nossas faces! Coração, mente e consciência estarão todos cheios de luz. Determinação é o segredo da felicidade na religião cristã. Seja um crente decidido e, então, “todo o seu corpo será luminoso”. A preocupação proibida com este mundo Leia Mateus 6.25-34
E sses versículos revelam o misto de sabedoria e compaixão do
Senhor Jesus Cristo em seus ensinos. Ele conhece o coração humano. Ele sabe que todos nós estamos prontos a desconsiderar suas advertências contra o mundanismo, ao argumento de não podermos evitar a ansiedade acerca das coisas desta vida. “Acaso não precisamos suprir o necessário para nossas famílias? Será que não precisamos atender às nossas necessidades materiais? Como poderemos vencer na vida se dermos atenção principal às nossas almas?” O Senhor Jesus previu esses pensamentos e nos forneceu uma resposta. Ele nos proíbe de manter um espírito de ansiedade e solicitude quanto às coisas deste mundo. Por quatro vezes, ele nos diz: “Não andeis ansiosos [...]” com a vida, com a alimentação, com o vestuário e com o amanhã. “Não andeis ansiosos.” Em outras palavras, não se preocupe demais; não fique demasiadamente aflito. É correto fazer uma provisão cautelosa para o futuro; mas a fadiga excessiva, a preocupação desgastante, a ansiedade que atormenta — tudo isso está errado. Jesus nos lembra do cuidado providencial que Deus continuamente tem para com tudo que criou. Ele nos deu “vida”? Então, certamente não permitirá que coisa alguma nos falte para a manutenção dessa vida. Ele nos deu um corpo? Então, certamente não nos deixará morrer por falta de agasalho. Ele, que nos deu o ser, sem dúvida encontrará alimentos para nos sustentar. Jesus mostra a inutilidade da ansiedade excessiva. Nossa vida está inteiramente nas mãos de Deus. Nem mesmo toda a ansiedade deste mundo nos fará viver um minuto além do tempo que Deus determinou para nós. Não morreremos enquanto nossa obra não estiver terminada. Ele nos manda observar as “aves do céu”, a fim de recebermos instrução. Elas não fazem qualquer provisão para o futuro: “não semeiam, nem colhem [...]”. Elas não “ajuntam em celeiros” para prevenir o futuro. Literalmente, as aves vivem, dia após dia, daquilo que conseguem encontrar usando o instinto que Deus lhes deu. Devemos aprender, com as aves, que Deus jamais permitirá cair em miséria quem estiver cumprindo seu dever, no lugar em que Deus o colocou. Jesus também nos manda observar “os lírios do campo”. Ano após ano, eles se adornam com as cores mais alegres, sem o menor trabalho ou esforço. “Eles não trabalham nem fiam.” Deus, por meio de seu infinito poder, os veste de beleza ímpar, a cada estação. Esse mesmo Deus é o Pai de todos os crentes. Por que deveriam duvidar de que ele é capaz de lhes prover as vestes necessárias, tal como o faz com os lírios do campo? Ele, que toma cuidado das flores do campo, as quais são passageiras, certamente não negligenciará os corpos nos quais habitam almas imortais.Jesus nos dá a entender que a excessiva preocupação com as coisas deste mundo é algo extremamente indigno de um cristão. Uma grande característica do paganismo é viver para o presente. Deixe que os pagãos estejam ansiosos, se assim desejarem. Eles nada sabem a respeito de um Pai celestial. Mas os cristãos, que têm maior conhecimento e uma visão clara da realidade, devem dar prova disso, por sua fé e seu contentamento. Quando perdemos alguém que amamos, não devemos nos entristecer “como os demais, que não têm esperança” (1Ts 4.13). Quando somos tentados pelas ansiedades desta vida, não devemos estar por demais preocupados, como se não tivéssemos nem Deus nem Cristo. Cristo nos ofereceu uma graciosa promessa, como um remédio para a ansiedade de espírito. Ele nos garante que, se buscarmos primeiro, e acima de tudo, um lugar no reino de graça e glória, então todas as coisas de que realmente precisamos nos serão dadas. Todas essas coisas vos serão “acrescentadas”, acima e além da herança celestial. “Todas as cousas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28). “O Senhor dá graça e glória; nenhum bem sonega aos que andam retamente” (Sl 84.11). Por fim, Jesus sela sua instrução sobre o assunto com uma das mais sábias afirmações: “o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal”. Não devemos carregar preocupações antes do tempo próprio. Devemos atender às ocupações do dia de hoje e deixar as preocupações do amanhã para quando raiar o novo dia. Afinal, podemos morrer antes do amanhecer! A única coisa de que podemos ter certeza é que, se o dia de amanhã nos trouxer uma cruz, aquele que a envia pode, e irá, nos enviar a graça necessária para carregá-la. Em toda essa passagem, existe um tesouro de lições de ouro. Procuremos usá-las em nossa vida diária. Que não apenas leiamos essas lições, mas que também as ponhamos em prática! Vigiemos e oremos contra um espírito ansioso e excessivamente preocupado. Isso afeta profundamente nossa felicidade. Metade de nossas misérias é causada pela ilusão de coisas que pensamos estar vindo sobre nós. Metade das coisas que imaginamos estar vindo sobre nós jamais acontece. Onde está nossa fé? Onde está a confiança que temos nas palavras de nosso Salvador? Lendo esses versículos, podemos nos envergonhar de nós mesmos, para, então, examinar nossos corações. Contudo, podemos ter certeza de que as palavras de Davi expressam uma grande verdade: “Fui moço, e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão” (Sl 37.25). A censura é proibida; a oração é encorajada Leia Mateus 7.1-12
A primeira parte desses versículos é uma das passagens bíblicas
que precisamos ter o cuidado de não forçar para além de seu devido significado. Essa parte é frequentemente corrompida e aplicada de modo errôneo pelos inimigos da verdadeira religião. É possível pressionar de tal maneira as palavras da Bíblia que elas acabam produzindo não o remédio espiritual, mas, sim, o veneno. Nosso Senhor não tencionava de modo algum dizer que é errado proferir um juízo desfavorável sobre a conduta e a opinião de outras pessoas. Precisamos ter opiniões bem formadas e decididas. Devemos julgar “todas as cousas” (1Ts 5.21). Devemos provar “os espíritos” (1Jo 4.1). Tampouco Cristo quis dizer que é errado reprovar os pecados e as faltas de outras pessoas, enquanto nós mesmos não tenhamos atingido a perfeição e não estejamos destituídos de falta. Tal interpretação seria uma contradição em relação a outras passagens da Escritura. Isso tornaria impossível condenar o erro e as falsas doutrinas. Seria um impedimento para qualquer um que desejasse ser ministro do evangelho ou juiz. A terra estaria nas mãos dos perversos (Jó 9.24). As heresias se espalhariam. Os malfeitores se multiplicariam por toda a parte. O que nosso Senhor condena é um espírito crítico que em tudo encontra alguma falta. A prontidão em condenar as pessoas por causa de pequenas coisas ou questões de pouca importância, o hábito de fazer julgamentos duros e precipitados, a disposição em exagerar os erros e as fraquezas do próximo, e de sempre pensar o pior — isso tudo nosso Senhor nos proíbe. Essas coisas eram comuns entre os fariseus, e continuam a ser comuns desde aquela época, até hoje. Todos nós precisamos vigiar para não cairmos em tal erro. O amor “tudo crê, tudo espera” das outras pessoas, e nós deveríamos ser muito vagarosos em procurar defeitos em nosso próximo. Esse é o verdadeiro amor cristão (1Co 13). A segunda lição contida nessa passagem é a importância de se ter discrição quanto à pessoa com quem falamos sobre os assuntos de religião. Tudo é maravilhoso em seus devidos tempo e lugar. Nosso zelo deve ser temperado por uma prudente consideração acerca da ocasião, do lugar e das pessoas a quem nos dirigimos. Salomão disse: “Não repreendas o escarnecedor, para que te não aborreça” (Pv 9.8). Não é sábio abrir o coração com todo mundo a respeito das coisas espirituais. Há muitos que, por causa de um temperamento violento, ou de hábitos abertamente pervertidos, são totalmente incapazes de dar valor às verdades do evangelho. Podem até mesmo explodir de ira e cair em maior pecado se você tentar fazer bem às suas almas. Mencionar o nome de Cristo a essas pessoas é como lançar pérolas aos porcos. Isso não lhes faz bem, mas, sim, mal. A tentativa só fará despertar nessas pessoas toda a sua corrupção e deixá-las furiosas. Em suma, eles são como os judeus de Corinto (At 18.6), ou como Nabal, acerca de quem ficou registrado: “ele é filho de Belial, e não há quem lhe possa falar” (1Sm 25.17). É particularmente difícil usar essa lição de maneira adequada. É preciso ter muita sabedoria para aplicá-la corretamente. A maioria de nós inclina-se muito mais a errar por excesso de cautela do que por excesso de entusiasmo. Em geral, tendemos muito mais a lembrar “o tempo de estar calado” do que “o tempo de falar”. Não obstante, essa é uma lição que deveria despertar em nós o espírito de autoinquirição. Acaso, nós mesmos, às vezes, não desencorajamos nossos amigos quando eles tentam nos dar bons conselhos, pela nossa morosidade ou irritabilidade de temperamento? Nunca obrigamos outras pessoas a se manter em silêncio e a nada dizer, por causa do nosso orgulho ou impaciente desprezo pelos conselhos que recebemos? Será que nunca nos voltamos contra nossos gentis conselheiros, e os silenciamos com nossa violência e ira? Infelizmente, com razão, podemos temer que nós também temos errado quanto a essa questão! A última lição contida nessa passagem é o dever de orar, e os ricos encorajamentos à oração. Existe uma maravilhosa conexão entre essa lição e aquela que a antecede. Queremos saber quando estar em “silêncio” e quando “falar”? Quando devemos apresentar as coisas “santas” e quando devemos expor nossas “pérolas”? Então, devemos orar. Esse é um assunto ao qual, evidentemente, o Senhor Jesus atribui grande importância. A linguagem que ele usa é uma prova clara. Ele emprega três vocábulos diferentes para exprimir a ideia de oração: “Pedi [...] buscai [...] batei [...]”. Jesus reserva as maiores e mais ricas promessas para os que oram. “Pois todo o que pede recebe.” Ele ilustra a disposição de Deus em ouvir nossas orações mediante o argumento extraído da prática corriqueira dos pais para com seus filhos. Ainda que os pais sejam maus e egoístas por natureza, não negligenciam as necessidades de seus filhos segundo a carne. Assim, muito mais um Deus de amor e misericórdia atenderá aos clamores daqueles que são seus filhos, mediante a graça. Devemos dar atenção especial a essas palavras de nosso Senhor a respeito da oração. Talvez poucos de seus ensinamentos sejam tão bem conhecidos e tão frequentemente repetidos quanto estes. Até mesmo os mais pobres e ignorantes são capazes de dizer que “quem procura acha”. Mas de que adianta saber essas coisas se não fazemos uso delas? O conhecimento não aprimorado e que não é bem empregado servirá apenas para agravar nossa condenação no dia do juízo. Será que sabemos como pedir, buscar e bater? Por que razão não saberíamos? Nada existe tão simples e claro quanto a oração, se o homem realmente tem o desejo de orar. Mas, infelizmente, não existe nada que os homens menos se disponham a fazer. Eles fazem uso de muitas formas de religiosidade, cumprem muitas ordenanças e fazem muitas coisas que estão certas, mas não estão dispostos a orar. Todavia, sem oração, nenhuma alma jamais se salvará. Será que realmente oramos? Em caso contrário, quando chegarmos à presença de Deus, ficaremos sem desculpa, a menos que nos arrependamos em tempo. Não seremos condenados por não fazer aquilo que não poderíamos ter feito, ou por não saber aquilo que não poderíamos ter conhecido. Entretanto, descobriremos que uma das principais razões pelas quais estamos perdidos é porque nunca pedimos para ser salvos. Será que de fato oramos? Então, devemos orar ainda mais, sem nunca desanimar. Orar nunca é trabalho perdido, nem em vão. Haverá um dia de produzir fruto, mesmo que se passe muito tempo. Esta palavra de Jesus nunca falhou: “Pois todo o que pede recebe”. A regra do dever para com o próximo; as duas portas; advertências contra os falsos profetas Leia Mateus 7.13-20
N esse segmento do Sermão da Montanha, nosso Senhor
direciona seu discurso a uma conclusão. Aqui, as lições que ele enfatiza são gerais, amplas e repletas da mais profunda sabedoria. Observemos tais lições, uma a uma. Jesus lançou um princípio geral para nossa orientação, para todas as questões duvidosas que surgem entre uma pessoa e outra. Devemos fazer aos outros conforme desejamos que nos façam. Não devemos tratar as outras pessoas da maneira como elas nos tratam. Isso é mero egoísmo e paganismo. Devemos tratar as outras pessoas conforme gostaríamos que elas nos tratassem. O verdadeiro cristianismo é isso. Essa, de fato, é uma regra de ouro! Ela não somente nos proíbe toda malícia e vingança, todo exagero e falsidade; ela vai muito além, e resolve uma centena de pontos difíceis que surgem continuamente entre um homem e seu próximo, num mundo como este. Ela torna desnecessário estabelecer uma série interminável de pequenas regras para nossa conduta quanto a casos específicos. Ela abrange todos os possíveis argumentos com um único e poderoso princípio. Mostra-nos um padrão bem equilibrado e uma medida pela qual todos nós podemos perceber, de imediato, o próprio dever. Existe algo que não gostaríamos que alguém fizesse contra nós? Então, jamais nos esqueçamos de que é exatamente isso que não devemos fazer às outras pessoas. Haverá alguma coisa que gostaríamos que outras pessoas fizessem por nós? Então, é precisamente isso que devemos fazer em favor de outras pessoas. Quantas questões intrincadas seriam decididas prontamente se essa regra fosse honestamente praticada! Em segundo lugar, nosso Senhor nos faz uma advertência geral contra a maneira como muitos agem quanto à religião. Não podemos ficar satisfeitos em seguir a moda e nadar na corrente daqueles entre os quais vivemos. Jesus nos diz que o caminho que conduz à vida eterna é apertado, e poucos são os que por ele caminham. Ele nos diz que o caminho que conduz à perdição é espaçoso e está repleto de viajantes. São muitos os que entram pelo caminho largo. Essas são verdades terríveis! Elas deveriam suscitar, em todos os que as ouvem, um profundo autoexame no coração. “Em que caminho estou seguindo? Em qual estrada estou viajando?” Todos nós seguimos por um ou outro desses dois caminhos. Que Deus nos dê um espírito honesto e inquisitivo, e nos mostre o que realmente somos! Deveríamos estar preocupados e temerosos se a nossa religião é a mesma das multidões. Se o que de melhor poderíamos afirmar é que nós “vamos aonde os outros estão indo, frequentamos a mesma igreja e esperamos, no final, ser tão bem-sucedidos quanto os outros”, estaremos literalmente pronunciando nossa própria condenação. O que isso significa senão que estamos seguindo pelo caminho largo? O que isso significa senão que estamos seguindo no “caminho que conduz à perdição”? A essa altura, nossa religião não é a que salva. Não temos motivo algum para nos sentir desencorajados e abatidos se a religião que professamos não é popular e se poucos concordam conosco. Devemos lembrar as palavras de nosso Senhor Jesus Cristo nesta passagem: “estreita é a porta”. O arrependimento, a fé em Cristo e a santidade na vida nunca estiveram na moda. O verdadeiro rebanho de Cristo sempre tem sido pequeno. Não devemos estranhar se descobrirmos que somos reputados como pessoas estranhas, esquisitas, fanáticas e de mente estreita. Esse é o “caminho apertado”. Certamente é melhor alguém entrar na vida eterna na companhia de uns poucos do que ir para a perdição na companhia de muitos. Em último lugar, o Senhor Jesus nos faz uma advertência geral contra os falsos mestres da Igreja. Devemos nos acautelar dos falsos profetas. A conexão entre essa passagem e a anterior é impressionante. Queremos ficar bem longe do “caminho largo”? Então, devemos estar precavidos contra os falsos profetas, pois eles haverão de surgir. Eles começaram a aparecer já nos dias dos apóstolos. Desde aquele tempo, as sementes do erro têm sido lançadas. Desde então, eles têm aparecido continuamente. Precisamos estar preparados contra eles, mantendo-nos sempre em guarda. Essa é uma advertência de que muito precisamos. Existem milhares de pessoas que parecem estar sempre prontas a crer em qualquer coisa que ouvirem, desde que venha dos lábios de alguém que tenha o título de ministro religioso. Esquecem-se de que um clérigo pode errar, tanto quanto um leigo. Eles não são infalíveis. O que eles ensinam precisa ser confrontado com os ensinamentos das Sagradas Escrituras. Só devemos seguir tais ministros, e crer no que ensinam, enquanto as doutrinas por eles ensinadas concordarem com a Bíblia, e nem um minuto a mais. Devemos testá-los por “seus frutos”. Sã doutrina e vida santa são sinais característicos dos verdadeiros profetas. Lembremo-nos disso. Os erros de nossos ministros não justificam nossos próprios erros. “Se um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco” (Mt 15.14). Qual é a melhor salvaguarda contra falsos ensinamentos? Sem sombra de dúvida, a resposta é o estudo regular da Palavra de Deus, sempre acompanhado de uma oração que rogue a iluminação do Espírito Santo. A Bíblia foi-nos outorgada para ser lâmpada para nossos pés e luz para nossos caminhos (Sl 119.105). Deus não permitirá que quem a ler corretamente caia em algum erro irremediável. A negligência para com a Bíblia é que faz tantas pessoas se tornarem presas fáceis do primeiro falso mestre que aparecer. Tais pessoas querem nos fazer acreditar que não são “estudadas”, nem têm a “pretensão” de exibir opiniões bem formadas. A verdade é que são preguiçosas, negligenciam a leitura da Bíblia e não querem ter o trabalho de pensar por si mesmas. Não existe nada que forneça tantos seguidores para os falsos profetas do que a preguiça espiritual, disfarçada sob uma capa de humildade. Que todos nós possamos sempre ter em mente a advertência do Senhor! O mundo, o diabo e a carne não são os únicos perigos no caminho do cristão. Existe outro: o “falso profeta”, o lobo disfarçado em pele de ovelha. Feliz é quem estuda a Bíblia e ora, e sabe a diferença entre a verdade e o engodo, na religião! Existe uma diferença, e nós deveríamos reconhecê-la muito bem, fazendo uso do conhecimento que nos foi outorgado. A inutilidade da profissão religiosa sem a prática; os dois construtores Leia Mateus 7.21-29
O Senhor Jesus encerra o Sermão da Montanha com uma
aplicação penetrante. Sua admoestação abrange desde os falsos profetas até os “professos” cristãos, desde os falsos mestres até os ouvintes negligentes. Eis aqui uma palavra para todos. Que nós possamos aplicá-la aos nossos próprios corações! A primeira lição aqui é a inutilidade de uma profissão meramente externa do cristianismo. Nem todos os que dizem “Senhor, Senhor” entrarão no reino dos céus. Nem todos os que professam o cristianismo, ou se dizem cristãos, serão salvos. Prestemos atenção a este fato: para salvar uma alma, é preciso muito mais do que a maioria das pessoas parece julgar necessário. Podemos até ter sido batizados em nome de Cristo, e nos orgulhar presunçosamente em nossos privilégios eclesiásticos. Podemos ser donos de um grande conhecimento intelectual, e estar bem satisfeitos com nossa condição. Podemos até mesmo ser pregadores e mestres sobre outrem, e fazer “muitas obras maravilhosas” em conexão com a igreja a que pertencemos. Mas, durante todo esse tempo, temos praticado a vontade do Pai celeste? Temos verdadeiramente nos arrependido? Temos realmente confiado em Cristo e vivido vidas santas e humildes? Se assim não for, a despeito de todos os nossos privilégios, e de nosso cristianismo professo, perderemos o céu e seremos rejeitados para todo o sempre. Ouviremos aquelas terríveis palavras: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade”.O dia do juízo final haverá de revelar coisas muito estranhas. As esperanças de muitos dos que foram considerados grandes cristãos, quando em vida, serão totalmente vãs. A corrupção de sua religião será desmascarada e lançada ao opróbrio, perante os olhos do mundo inteiro. Então, ficará provado que, para ser salvo, é necessário muito mais do que apenas “uma profissão de fé”. Devemos praticar o nosso cristianismo, tanto quanto professá-lo. Que nós, com frequência, nos lembremos desse grande dia do juízo, e nos julguemos a nós mesmos, para que não sejamos julgados e condenados (1Co 11.31) pelo Senhor. Sem importar o que mais sejamos, que nosso alvo consista em sermos reais, verdadeiros e sinceros! A segunda lição, nessa passagem, é um impressionante quadro das duas classes de ouvintes — os que ouvem, mas não praticam; e os que não apenas ouvem, mas também põem em prática o que ouvem, com seus respectivos destinos traçados até o fim. Quem ouve o ensino cristão e põe em prática o que ouve é como o “homem prudente que edificou a sua casa sobre a rocha”. Ele não se contenta em apenas ouvir exortações ao arrependimento, exortações a confiar em Cristo e a viver uma vida santa. Ele, de fato, se arrepende. Ele realmente crê. Ele realmente abandona a prática do mal, aprende a fazer o bem, abomina tudo que é pecaminoso e apega-se ao que é bom. Ele não só é um ouvinte, como também é um praticante (Tg 1.22). E qual é o resultado de tudo isso? Em tempos de provação, sua religião não o desampara. Os dilúvios de enfermidade, tristeza, pobreza, desapontamento e desolações desabam sobre ele, mas em vão. Sua alma permanece inabalável. Sua fé não cede terreno. Nunca é destituída de conforto. Sua religião talvez lhe tenha custado tribulações em tempos passados. Seus alicerces podem ter sido erigidos com muito esforço e lágrimas. Para descobrir seu interesse pessoal na pessoa de Cristo, talvez ele tenha passado muitos dias de busca incessante, muitas horas de luta em oração. Porém, seus labores não foram em vão. Agora ele colhe uma rica recompensa. A religião verdadeira é aquela que é capaz de resistir à provação. O homem que ouve o ensino cristão, mas nunca passa da mera fase do ouvir, assemelha-se a “um homem insensato, que edificou a sua casa sobre a areia”. Contenta-se unicamente em ouvir e aprovar; porém, não vai além disso. Por ter alguns sentimentos, convicções e desejos de natureza espiritual, ele imagina que vai tudo bem com a sua alma. É nessas coisas que ele confia. Ele nunca rompe, de fato, com o pecado ou põe de lado o espírito mundano. Ele, na verdade, nunca se apropria de Cristo. Nunca toma realmente a sua cruz. É ouvinte da verdade; nada mais além disso. E qual é o fim da religiosidade desse homem? Ela é inteiramente demolida na primeira torrente de tribulações. Na hora de maior necessidade, sua religião o desampara completamente, como uma fonte que seca durante o verão. Ela o deixa em seco, como um barco naufragado sobre um banco de areia — um escândalo para a igreja, uma zombaria na boca do incrédulo e uma miséria para si mesmo. A grande verdade é que o que custa pouco vale pouco! Uma religião que nada nos custa, e que não consista em outra coisa senão em ouvir sermões, sempre provará ser uma atividade inútil, por fim. É assim que termina o Sermão do Monte. Jamais se havia pregado um sermão como esse anteriormente. Talvez jamais se tenha pregado outro igual desde então. Cuidemos para que ele tenha influência duradoura e permanente sobre nossa alma. Ele foi dirigido tanto a nós como àqueles que primeiro o ouviram. Nós somos os que terão de prestar contas pelas lições desse sermão, lições que nos sondam o coração. O que pensamos a respeito dessas lições não é questão de pouca importância. A palavra que Jesus tem proferido, essa mesma palavra nos julgará no último dia (Jo 12.48). Curas de lepra, paralisia e febre Leia Mateus 8.1-15
N o oitavo capítulo do evangelho de Mateus, são descritos nada
menos do que cinco milagres efetuados por nosso Senhor. Nisso há uma maravilhosa concordância. Convinha que o maior sermão jamais pregado fosse imediatamente seguido por uma forte prova de que o pregador era o Filho de Deus. Aqueles que ouviram o Sermão do Monte foram forçados a confessar que, assim como “jamais alguém falou como este homem”, também ninguém jamais fez tais prodígios. Nos versículos que acabamos de ler, encontramos três grandes milagres. Um leproso é curado com um toque da mão de Jesus. Um paralítico é curado por uma palavra. E uma mulher, doente com febre, recebe de volta, em um instante, a saúde e o vigor. Diante desses três milagres, podemos perceber três notáveis lições. Examinemos, pois, essas lições, guardando-as no coração. Antes de tudo, aprendamos quão grande é o poder de nosso Senhor Jesus Cristo. A lepra é uma das mais temíveis entre as enfermidades que podem afetar o corpo de uma pessoa. O portador dessa doença assemelhava-se a um morto-vivo. Era uma doença que os médicos consideravam incurável (2Rs 5.7). Mesmo assim, Jesus disse: “Fica limpo! E imediatamente ele ficou limpo da sua lepra”. Curar uma pessoa da paralisia, sem ao menos tê-la visto, apenas dizendo uma palavra, é fazer algo que nossas mentes nem mesmo podem conceber. Ainda assim, Jesus ordenou, e a cura se deu imediatamente. Dar a uma mulher acamada pela febre não apenas o alívio da febre, mas também o imediato restabelecimento de suas forças para trabalhar, é algo que ultrapassa as habilidades de qualquer médico. No entanto, Jesus “tomou pela mão” a sogra de Pedro e “a febre a deixou”. “Ela se levantou e passou a servi-lo.” Essas são obras de quem é Todo-Poderoso. Não há como escapar à conclusão lógica: “Isto é o dedo de Deus” (Êx 8.19). Aqui, encontramos uma base bem ampla para a fé cristã! No evangelho, somos instruídos a vir a Jesus, a confiar nele, a viver a vida de fé em Jesus. Somos encorajados a depender de Jesus, a lançar sobre ele todos os nossos cuidados, a apoiar nele todo o peso de nossas almas. Podemos fazê-lo sem qualquer dúvida ou temor. Jesus pode suportar tudo. Ele é uma rocha inabalável. Ele é o Todo-Poderoso. Um antigo santo do Senhor declarou: “A minha fé pode repousar com segurança sobre nenhum outro apoio, senão a onipotência de Cristo”. Ele pode dar vida aos mortos, poder aos fracos e multiplicar “as forças ao que não tem nenhum vigor” (Is 40.29). Confiemos nele e não toleremos qualquer receio. O mundo está repleto de armadilhas. Nossos corações são fracos, mas, com Jesus, nada é impossível. Ademais, aprendamos quão misericordioso e compassivo é nosso Senhor Jesus Cristo. As circunstâncias dos três casos que ora consideramos eram todas diferentes. Ele ouviu a triste petição do leproso: “Senhor, se quiseres, podes purificar-me”. Falaram-lhe do servo do centurião, mas Jesus nunca o viu pessoalmente. Ele viu a sogra de Pedro “acamada e ardendo em febre”, porém não lemos que ela tenha dito uma única palavra. Não obstante, em cada caso o coração de nosso Senhor Jesus Cristo mostra-se o mesmo. Ele, prontamente, demonstrou misericórdia e a disposição de curar. Cada uma dessas pessoas recebeu sua terna compaixão, e cada uma recebeu a cura efetiva. Eis aqui outro fortíssimo fundamento para nossa fé! Nosso grande Sumo Sacerdote é extremamente gracioso. Ele pode “compadecer-se das nossas fraquezas” (Hb 4.15). Ele jamais se cansa de nos fazer o bem. Ele sabe que nós somos um povo fraco e débil, em meio a um mundo atribulado e cansado. Ele está tão pronto a ser paciente conosco e a nos ajudar quanto estava dois mil anos atrás. Hoje continua sendo uma verdade, tanto quanto nos tempos antigos, que ele “a ninguém despreza” (Jó 36.5). Nenhum coração pode sensibilizar-se tanto por nós quanto o coração de Cristo. Em último lugar, aprendamos quão preciosa é a graça divina da fé. Pouco sabemos a respeito do centurião descrito nesses versículos. O nome dele, sua nacionalidade, sua história passada, nada disso nos é informado. Entretanto, sabemos de uma coisa: ele creu em Jesus. Declarou ele: “Senhor, não sou digno de que entres em minha casa; mas apenas manda com uma palavra, e o meu rapaz será curado”. Lembremo-nos de que ele creu, enquanto os escribas e os fariseus eram incrédulos. Embora nascido gentio, ele creu, enquanto o povo de Israel estava espiritualmente cego. A respeito dele, nosso Senhor proferiu uma palavra de elogio que tem sido lida por todo o mundo, desde aqueles dias até hoje: “Nem mesmo em Israel achei fé como esta”. Apeguemo-nos com firmeza a essa lição. Ela merece ser relembrada. Crer no poder de Cristo e em sua boa vontade em ajudar, e fazer uso prático dessa nossa crença, esse é um dom raro e precioso. Devemos sempre estar agradecidos por termos esse dom. Estarmos dispostos a vir a Jesus não tendo outra esperança, e reconhecendo nossa condição de pecadores perdidos, entregando nossas almas em suas mãos, é um grande privilégio. Sempre devemos dar graças ao Senhor por essa disposição, pois é um dom de Deus. Essa fé é melhor do que todos os demais dons ou conhecimentos neste mundo. Muitos humildes pagãos agora convertidos, que de nada sabem senão da doença do pecado na alma, mas que confiam em Jesus, haverão de se assentar no céu, enquanto muitos doutores em teologia serão rejeitados para sempre. Verdadeiramente abençoados são os que creem! O que cada um de nós sabe a respeito dessa fé? Essa é uma grande questão. Nosso conhecimento pode ser pequeno, mas será que realmente cremos? Nossas oportunidades para contribuir e trabalhar pela causa de Cristo podem ser poucas, mas nós cremos? Talvez não possamos pregar, nem escrever um livro, tampouco argumentar em favor do evangelho, mas nós cremos? Que jamais descansemos enquanto não pudermos responder afirmativamente a essa pergunta! A fé em Jesus Cristo, para os filhos deste mundo, parece ser algo bastante simples e insignificante. Eles não veem na fé nada de grande ou importante. Entretanto, a fé em Cristo é preciosíssima aos olhos de Deus e, tal como tudo que é precioso, é rara. É pela fé que o cristão verdadeiro vive. Ele permanece na fé. É pela fé que o cristão vence o mundo. Sem essa fé, ninguém pode ser salvo. Cristo e os cristãos professos; a tempestade acalmada Leia Mateus 8.16-27
N a primeira parte desses versículos, encontramos um notável
exemplo da sabedoria de nosso Senhor ao tratar com os que manifestam a disposição de se tornar seus discípulos. Esse trecho lança tanta luz sobre um assunto frequentemente mal compreendido em nossos dias que merece consideração especial. Um escriba ofereceu-se para seguir nosso Senhor aonde quer que ele fosse. É uma proposta admirável, quando consideramos a classe social à qual aquele homem pertencia e a ocasião em que foi proferida. Mas a proposição recebe uma resposta igualmente admirável, que não foi diretamente aceita, embora também não tenha sido manifestamente rejeitada. Nosso Senhor tão somente faz uma réplica solene: “as raposas têm seus covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. Outro discípulo de nosso Senhor se apresentou em seguida, pedindo que lhe fosse permitido sepultar o pai, antes de assumir totalmente os deveres de discípulo. À primeira vista, tal pedido parece natural e legítimo. Entretanto, a resposta dos lábios de nosso Senhor não foi menos solene do que a primeira: “Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”. Há algo de profundamente impressionante em ambas as respostas. Elas deveriam ser devidamente consideradas por todos os que se professam cristãos. O ensinamento é bem claro: as pessoas que manifestam o desejo de vir à frente, e que se professam verdadeiros discípulos de Cristo, deveriam ser claramente advertidas a “calcular o custo” antes de começar. Será que estão preparadas para suportar as dificuldades? Estão prontas a carregar a cruz? Se assim não é, tais pessoas ainda não estão aptas para começar. As respostas de Jesus nos ensinam claramente que há ocasiões em que o cristão precisa literalmente desistir de tudo por amor a Cristo; assim, se necessário, até mesmo os deveres tão importantes, como o sepultamento de pai ou mãe, devem ser deixados ao encargo de outras pessoas. Sempre haverá quem esteja pronto a com parecer em nosso lugar; mas tais deveres em tempo nenhum podem ser comparados ao dever maior, que é o de pregar o evangelho e trabalhar pela causa de Cristo no mundo. Seria bom se essas palavras fossem lembradas com maior constância nas igrejas. Bem podemos temer que essa lição esteja sendo por demais negligenciada pelos ministros do evangelho, e que muitas pessoas estejam sendo admitidas à plena comunhão na igreja sem a devida advertência para “calcular o custo”. De fato, nada tem causado maior dano ao cristianismo do que a prática de encher as fileiras do exército de Cristo com qualquer voluntário que esteja disposto a fazer uma pequena profissão de fé, e que possa falar fluentemente de sua experiência religiosa. Infelizmente, tem-se esquecido que os números apenas não significam poder. Pode haver uma grande quantidade de mera religiosidade externa, enquanto há muito pouco da verdadeira graça. Nunca nos esqueçamos disso. Cuidemos para nada esconder aos recém- convertidos e às pessoas que agora estão começando a buscar a Deus. Não deixemos que se enganem com falsas expectativas. Podemos dizer-lhe que receberão uma coroa de glória no fim, mas também devemos dizer, não menos claramente, que existe uma cruz a ser carregada dia após dia. Na última parte desses versículos, aprendemos que a fé salvadora com frequência está permeada de muita fraqueza e instabilidade. Essa é uma lição que nos deixa humilhados, mas que é deveras salutar. O texto nos apresenta Jesus e os discípulos atravessando o mar da Galileia em uma embarcação. Surge uma tempestade, e o barco está em perigo de se encher de água pela violência das ondas. Enquanto isso, nosso Senhor está dormindo. Os discípulos, atemorizados, acordam Jesus e clamam por socorro. Ele atende ao pedido e faz acalmar as águas com uma palavra, de modo que “fez- se grande bonança”. Ao mesmo tempo, ele gentilmente censura a ansiedade de seus discípulos: “Por que sois tímidos, homens de pequena fé?”. Temos aqui um retrato bastante nítido do coração de milhares de crentes! Há tantos que, mesmo possuindo fé e amor suficientes para abandonar tudo por causa de Cristo, e segui-lo aonde quer que vá, ainda assim, estão cheios de temor na hora da provação! Quantos têm graça suficiente para se voltar a Jesus em cada dificuldade, clamando: “Senhor, salva-nos”, e ainda não têm graça suficiente para ficar quietos na hora difícil e confiar que tudo está bem? Verdadeiramente, o crente tem razão de estar sempre cingido de humildade (1Pe 5.5). Que a oração: “Senhor, aumenta-nos a fé”, sempre faça parte de nossas petições diárias. Talvez nunca venhamos a conhecer a fraqueza de nossa fé enquanto não formos postos na fornalha da tribulação e da ansiedade. Felizes os que descobrem, por experiência, que sua fé é capaz de resistir ao fogo, e que podem, como Jó, dizer: “Ainda que ele me mate, nele esperarei” (Jó 13.15). Temos razões grandiosas para agradecer a Deus por Jesus, nosso grande Sumo Sacerdote, pois ele é muito compassivo e terno de coração. Ele conhece nossa estrutura. Ele leva em conta nossas enfermidades. Ele não lança fora seu povo por causa de defeitos. Ele se compadece até mesmo dos que repreende. A oração, mesmo de “pequena fé”, é ouvida e obtém resposta. Expulsão de demônios na terra dos gadarenos Leia Mateus 8. 28-34
O assunto desses sete versículos é profundo e misterioso. Aqui, a
expulsão do demônio é descrita com especial abundância de detalhes. Essa é uma das passagens que lançam forte luz sobre um assunto tão difícil e obscuro. Vamos deixar bem estabelecido em nossa mente que o diabo existe. Essa é uma terrível verdade, mas que é muito desconsiderada. Existe um espírito invisível sempre próximo a nós, poderoso e cheio de malícia interminável contra nossas almas. Desde o princípio da Criação, ele tem-se esforçado em prejudicar o homem. Até que o Senhor Jesus venha pela segunda vez e o prenda, o diabo jamais cessará de tentar e causar dano. Nos dias em que nosso Senhor estava sobre a terra, é evidente que o diabo tinha um poder peculiar sobre os corpos de certos homens e mulheres, como também sobre suas almas. Mesmo em nossos dias, existe mais dessa possessão demoníaca corporal do que alguns supõem existir, embora em um grau evidentemente menor do que quando Cristo veio na carne. Porém, nunca nos deveríamos esquecer que o diabo está sempre bem perto de nós em espírito, e sempre pronto a nos assaltar o coração com tentações. Em seguida, que nos conscientizemos de que o poder do diabo é limitado. Embora ele seja tão poderoso, existe Alguém ainda mais poderoso. Embora seja tão perspicaz e tão determinado em seu intuito de prejudicar a humanidade, ele só pode agir com permissão. Esses mesmos versículos nos mostram que os espíritos malignos só podem ir de um lugar para outro e causar destruição até o tempo que lhes foi permitido pelo Senhor dos Senhores: “Viestes aqui atormentar-nos antes do tempo?”, perguntaram eles. Mesmo a petição que fizeram a Jesus nos mostra que eles não podiam causar dano nem mesmo aos porcos, a menos que Jesus, o Filho de Deus, lhes desse permissão. “Manda-nos para a manada dos porcos”, disseram eles. Assim, deixemos firmemente estabelecido em nossas mentes que nosso Senhor Jesus Cristo é o grande Libertador do homem em relação ao poder do diabo. Ele não somente pode “remir-nos de toda iniquidade”, como também deste “presente mundo mau” e do diabo. Há muito tempo foi profetizado que o Senhor haveria de esmagar a cabeça da serpente. Jesus começou a esmagar a cabeça da serpente quando nasceu da virgem Maria. Ele triunfou sobre a cabeça da serpente quando morreu na cruz. Ele mostrou seu domínio total sobre Satanás, “curando a todos os oprimidos do diabo”, quando estava sobre a terra (At 10.38). Nosso grande recurso, em todos os ataques do diabo, é clamarmos ao Senhor Jesus e buscarmos sua ajuda. Ele pode romper as cadeias que Satanás lança à nossa volta e nos libertar. Ele pode expulsar qualquer demônio que nos atormente o coração, tão certo como nos dias da antiguidade. Seria realmente uma lástima saber que o diabo existe e está sempre perto de nós, se não soubéssemos que Cristo “pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). Não deixemos essa passagem sem observar o doloroso mundanismo dos gadarenos, entre os quais foi operado o milagre da expulsão de demônios. Os gadarenos rogaram ao Senhor Jesus “que se retirasse da terra deles”. Eles não se sensibilizavam com nada, a não ser com a perda de seus porcos. Pouco importava que duas pobres criaturas, com duas almas imortais, tivessem sido libertadas da escravidão de Satanás. Para eles, também não importava que estivesse ali entre eles alguém muito superior ao diabo, a saber, Jesus Cristo, o Filho de Deus. Não se importaram com nada, senão com o fato de que a manada de porcos se afogara e “que se lhes desfizera a esperança do lucro”. Na ignorância, os gadarenos consideraram Jesus alguém que se colocava entre eles e seus lucros, e só desejavam ficar livres dele. Existe um número demasiadamente grande de pessoas como os gadarenos. Há milhares de pessoas que não dão a mínima importância a Cristo ou a Satanás, desde que possam ganhar mais dinheiro e desfrutar um pouco mais das coisas deste mundo. Que nós possamos estar livres desse espírito! Contra ele, que possamos sempre vigiar e orar! Ele é muito comum e terrivelmente contagioso. A cada nova manhã, relembremo-nos de que temos almas a serem salvas e que, um dia, morreremos e teremos de enfrentar o julgamento divino. Cuidemos em não amar o mundo mais do que a Cristo. Que tomemos cuidado para não estorvar a salvação de outras pessoas, por temor de que o processo da religião verdadeira possa diminuir nossos ganhos ou nos trazer problemas. A cura do paralítico; a chamada de Mateus, o Publicano Leia Mateus 9.1-13
O bservemos, na primeira parte dessa passagem, o
conhecimento que nosso Senhor tem dos pensamentos dos homens. Alguns dos escribas acharam defeito nas palavras de Jesus ao paralítico. Diziam secretamente, consigo: “Este blasfema”. Provavelmente imaginavam que ninguém soubesse o que se passava em suas mentes. Ainda precisavam aprender o fato de que o Filho de Deus pode ler os corações e discernir os espíritos. Seu pensamento malicioso foi publicamente desmascarado. Eles foram abertamente expostos à vergonha. Nisso, há uma importante lição para nós: “Todas as cousas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas” (Hb 4.13). Nada pode ser ocultado de Jesus Cristo. O que pensamos às ocultas, quando ninguém nos vê? O que pensamos quando estamos na igreja, parecendo tão sérios e respeitosos? Sobre o que estamos pensando neste exato momento, enquanto estas palavras passam diante de nossos olhos? Jesus sabe. Jesus vê. Jesus registra tudo. Um dia, Jesus nos chamará para a prestação de contas. Está escrito que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgará os segredos dos homens, de acordo com o evangelho (Rm 2.16). Sem dúvida alguma, devemos ser muito humildes quando consideramos essas coisas. Deveríamos a cada dia agradecer a Deus pelo fato de o sangue de Cristo purificar-nos de todo pecado. Deveríamos sempre clamar: “As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, Senhor, rocha minha e redentor meu!” (Sl 19.14). Em segundo lugar, observemos a maravilhosa chamada do apóstolo Mateus para ser um discípulo de Cristo. Encontramos sentado, na coletoria de impostos, o homem que, mais tarde, escreveria o primeiro evangelho. Nós o vemos absorvido em sua ocupação secular, talvez não pensando em outra coisa senão em dinheiro e lucro. Subitamente, entretanto, recebe o chamado para seguir a Jesus e tornar-se seu discípulo. Mateus obedece imediatamente; apressa-se, não se detém (Sl 119.60) e obedece à ordem de Cristo. Ele se levanta e segue Jesus. Que seja um princípio bem estabelecido em nossa religião que, para Cristo, nada é impossível! Ele pode tomar um coletor de impostos e transformá-lo em apóstolo. Ele pode mudar qualquer coração humano e fazer novas todas as coisas. Que nunca desesperemos da salvação de quem quer que seja! Continuemos orando, testemunhando e trabalhando para o bem das almas dos piores homens. “A voz do Senhor é poderosa” (Sl 29.4). Quando o Senhor diz, pelo poder do Espírito, “segue-me”, pode fazer os mais endurecidos e os mais pecaminosos obedecerem. Observemos a decisão de Mateus. Ele não esperou por uma ocasião mais oportuna (At 24.25). Em consequência, obteve grande recompensa. Ele escreveu um livro que se tornou conhecido em todo o mundo. Tornou-se uma bênção para outras pessoas, além de ser abençoado em sua própria alma. Ele deixou atrás de si um nome que é mais conhecido do que o nome de príncipes e reis. O homem mais rico do mundo ao morrer é logo esquecido. Porém, enquanto durar o mundo, milhões de pessoas conhecerão o nome de Mateus, o Publicano. Em último lugar, notemos a preciosa declaração de nosso Senhor a respeito de sua própria missão. Os fariseus acharam falta nele, porquanto permitia que publicanos e pecadores estivessem em sua companhia. Em sua cegueira orgulhosa, eles imaginavam que um mestre enviado do céu jamais deveria entrar em contato com pessoas dessa natureza. Eles ignoravam totalmente o grandioso desígnio pelo qual o Messias viera a este mundo — para ser Salvador, médico; para curar as almas enfermas pelo pecado. Eles receberam dos lábios de nosso Senhor uma reprimenda, seguida de palavras abençoadas: “não vim chamar justos, e, sim, pecadores ao arrependimento”. Certifiquemo-nos de compreender perfeitamente a doutrina contida nessas palavras. O que é primariamente necessário para se ter interesse em Cristo é sentirmos profundamente nossa própria corrupção e estarmos dispostos a ir a Jesus para que sejamos libertos. Não devemos ficar longe de Cristo — como muitos, em sua ignorância, o fazem — somente porque nos sentimos maus, ímpios e indignos. Devemos lembrar que ele veio ao mundo para salvar os pecadores; e, se nos reconhecemos como tais, isso é bom. Feliz é quem realmente entende que a principal qualificação para ir a Cristo é um profundo senso de pecado! Finalmente, se, pela graça de Deus, realmente entendemos a gloriosa verdade de que Jesus Cristo veio para chamar os pecadores, então que jamais nos esqueçamos disso. Não devemos cultivar a ilusão de que crentes verdadeiros possam atingir um tal estado de perfeição neste mundo a ponto de não mais precisarem da mediação e da intercessão de Cristo. Éramos pecadores quando viemos a Cristo; e pobres e necessitados pecadores continuaremos a ser, enquanto vivermos, recebendo toda a graça de que dispomos, a cada momento, da plenitude de Cristo. Mesmo na hora de nossa morte, veremos que ainda somos pecadores, e estaremos tão dependentes do sangue de Cristo quanto no primeiro dia em que cremos. Vinho novo e odres velhos; a ressurreição da filha de Jairo Leia Mateus 9.14-26
O noivo”. bservemos, nessa passagem, o gracioso nome pelo qual o Senhor Jesus fala de si mesmo. Ele chama a si mesmo de “o
O que o noivo representa para sua noiva, o Senhor Jesus
representa para as almas de todos os que nele creem. Ele os ama com amor profundo e eterno. Ele os toma para que vivam em união consigo mesmo. Eles são um em Cristo, e Cristo une-se a eles. Ele paga todos os débitos deles para com Deus. Ele lhes supre todas as necessidades diárias. Ele simpatiza com eles em todas as dificuldades. Ele suporta com paciência todas as inseguranças deles, e não os rejeita por causa de algumas poucas fraquezas. Ele os considera parte de si mesmo. Os que perseguem e prejudicam os discípulos de Cristo estão perseguindo a ele mesmo. Um dia, o Senhor haverá de compartilhar com seus remidos a glória que recebeu da parte do Pai e, onde ele estiver, ali estarão também eles. Tais são os privilégios de todos os verdadeiros cristãos. Eles são a noiva do Cordeiro (Ap 19.7). Essa é a porção à qual a fé dá acesso. Por meio dessa fé, Deus une nossas pobres almas pecaminosas a um precioso Noivo, e aqueles a quem Deus une jamais serão separados. Verdadeiramente abençoados são os que creem! Em segundo lugar, observemos como é sábio o princípio que o Senhor estabelece para o tratamento de seus novos discípulos. Houve alguns que acharam errado o fato de os seguidores de Nosso Senhor não jejuarem, como faziam os discípulos de João Batista. Nosso Senhor defende seus discípulos com um argumento cheio de profunda sabedoria. Ele mostra que o jejum não seria apropriado enquanto ele, que era o Noivo, estivesse em companhia deles. Mas isso não é tudo. Jesus vai mais além, a fim de mostrar, mediante duas parábolas, que os jovens principiantes na escola do cristianismo devem ser tratados com gentileza. Eles precisam ser ensinados gradativamente, na medida que possam suportar. Não podemos esperar que possam receber tudo de uma vez. Negligenciar essa regra seria uma tolice tão grande quanto guardar “vinho novo em odres velhos”, ou pôr “remendo de pano novo em vestido velho”. Nisso há uma fonte de profunda sabedoria, que todos faríamos bem em relembrar, para o ensino espiritual dos que têm pouca experiência. Devemos ter o cuidado de não atribuir excessiva importância às questões secundárias da religião. Não devemos apressar-nos em exigir imediata conformidade a uma norma rígida quanto a coisas indiferentes, enquanto os princípios elementares do arrependimento e da fé não tiverem sido devidamente apreendidos. Devemos orar por graça e bom senso cristão para nos guiarem nesse assunto. O tato no relacionamento com os novos discípulos de Cristo é um dom raro, mas muito proveitoso. Saber em que devemos insistir desde o princípio, como absolutamente necessário, e o que reservar para o futuro, quando o discípulo tiver alcançado um conhecimento mais perfeito, essas são as maiores qualificações de um instrutor de almas. Em seguida, observemos quanto encorajamento nosso Senhor dá, até mesmo à fé mais humilde. Nessa passagem, lemos que certa mulher, afligida por uma grave enfermidade, veio por trás do Senhor Jesus, em meio à multidão, e lhe tocou “na orla da veste”, na esperança de que, se assim o fizesse, seria curada de seu flagelo. A mulher não proferiu uma palavra, pedindo auxílio. Ela não fez nenhuma confissão pública de fé. No entanto, confiava que, se ao menos tocasse nas vestes de Jesus, ficaria curada. E foi o que sucedeu. Oculta naquele seu ato, havia uma preciosa semente de fé em Jesus, elogiada por nosso Senhor. A mulher foi instantaneamente curada e voltou para casa em paz. Nas palavras de um antigo escritor: “Veio em tremores, mas saiu em triunfo”. Guardemos na mente essa história. Ela pode nos ajudar poderosamente em alguma hora de necessidade. Nossa fé talvez seja fraca. Nossa coragem pode ser pequena. Nossa apreensão do evangelho e de suas promessas talvez seja frágil e estremecida. Porém, a grande pergunta, afinal, é esta: “Na realidade, confiamos somente em Cristo? Olhamos para Jesus, e somente para Jesus, para receber perdão e paz?”. Se assim acontece conosco, isso é um bom sinal. Embora não possamos tocar em suas vestes, podemos tocar no coração de Jesus. Uma fé assim salva a alma. A fé fraca é menos consoladora do que a fé vigorosa. A fé fraca vai nos levar para o céu com muito menos regozijo do que teríamos se fôssemos totalmente confiantes. Mas a fé, embora fraca, dá-nos os benefícios de Cristo, tanto quanto a fé mais vigorosa. Quem ao menos tocar nas vestes de Jesus sob hipótese nenhuma perecerá. Em último lugar, observemos nessa passagem o poder infinito de nosso Senhor. Ele devolve a vida a uma pessoa morta. Quão admirável deve ter sido aquela cena! Quem, ao ter visto uma pessoa morrer, poderá esquecer-se da imobilidade, do silêncio e da frieza quando o fôlego da vida abandona o corpo? Quem pode esquecer o horrível sentimento de que uma coisa terrível aconteceu e que um enorme abismo foi aberto entre nós e a pessoa falecida? Eis, porém, que nosso Senhor entra no quarto em que jaz o corpo da menina, e chama de volta o espírito ao seu tabernáculo terrestre. O pulso começa a bater novamente. Os olhos veem outra vez. A respiração novamente vem e vai. A filha do chefe da sinagoga está viva novamente, restituída a seu pai e sua mãe. Manifestara-se ali a verdadeira onipotência! Ninguém poderia ter realizado tal feito senão aquele que, no princípio, criou o homem, e que tem todo o poder no céu e na terra. Esse é um aspecto da verdade que nunca poderemos conhecer bem demais. Quanto mais claramente vemos o poder de Cristo, mais aptos estamos para experimentar a paz do evangelho. Nossa condição poderá ser penosa. Nosso coração pode ser fraco. Talvez sintamos grande dificuldade em prosseguir a jornada neste mundo. Nossa fé pode parecer-nos demasiadamente fraca para nos conduzir ao céu. Porém, meditando a respeito de Jesus, tomemos coragem, e não nos deixemos arrastar pelo desânimo. Maior é aquele que é por nós do que todos que são contra nós. Nosso Salvador pode ressuscitar os mortos. Nosso Salvador é Todo- Poderoso. A cura de dois cegos; Jesus se compadece da multidão; o dever dos discípulos Leia Mateus 9.27-38
N esse texto, há quatro lições que merecem atenção especial.
Vamos examiná-las sucessivamente. Antes de tudo, marquemos bem que, algumas vezes, uma fé poderosa em Cristo pode ser encontrada onde menos se suspeita. Quem poderia imaginar que dois cegos pudessem chamar nosso Senhor de “Filho de Davi”? Naturalmente, eles não tinham visto os milagres realizados por Jesus. Só podem ter tomado conhecimento dele mediante o que outras pessoas lhes diziam. Porém, os olhos de seu entendimento foram iluminados, embora seus olhos físicos continuassem em trevas. E, assim, perceberam a verdade que os escribas e os fariseus não foram capazes de perceber. Compreenderam que Jesus de Nazaré era o Messias. Creram que ele podia curá-los. Um exemplo assim mostra-nos que jamais nos deveríamos desesperar da salvação eterna de qualquer pessoa somente porque vive em circunstâncias que são desfavoráveis à sua conversão. A graça divina é mais forte do que as circunstâncias. A vida piedosa não depende meramente de condições vantajosas aparentes. O Espírito Santo pode proporcionar fé e mantê-la em ativo exercício, sem dinheiro ou educação formal, mas apenas utilizando-se de escassos meios de graça. Sem o Espírito Santo, um homem pode conhecer todos os mistérios e viver sob a plena influência do evangelho, e, ainda assim, estar perdido. Veremos cenas muito estranhas no último dia. Pessoas de condição humilde mostrarão ter crido no Filho de Davi, ao passo que homens ricos, cheios de erudição universitária, mostrarão ter vivido e morrido como os fariseus, na mais dura incredulidade. Muitos dos que agora são os últimos serão os primeiros, e muitos dos que agora são primeiros serão últimos (Mt 20.16). A seguir, vejamos o fato de que nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma grande experiência com enfermidades e doenças. “Percorria Jesus todas as cidades e povoados”, fazendo o bem. Ele foi testemunha ocular de todos os males herdados pela carne. Ele viu doenças de todo tipo, variedade e descrição. Entrou em contato com toda sorte de doenças e sofrimentos físicos. E, por mais repugnantes que fossem, não se sentiu repelido por ter de tratar com qualquer das pobres vítimas desses sofrimentos. Nenhuma doença era por demais repelente para ele curar. Ele curava “toda sorte de doenças e enfermidades”. Podemos obter grande consolo desse fato. Cada um de nós habita em um corpo débil e frágil. Nunca sabemos quanto sofrimento ainda precisaremos contemplar enquanto nos assentamos à beira do leito de enfermidades de amigos e parentes queridos. Nunca sabemos quantos sofrimentos teremos nós mesmos de passar antes de nossa morte. No entanto, armemo-nos, a todo instante, com o precioso pensamento de que Jesus é especialmente apto para ser o Amigo dos doentes. Esse nosso grande Sumo Sacerdote, a quem devemos recorrer para termos perdão e paz com Deus, está eminentemente qualificado para se compadecer de um corpo dolorido, bem como para sarar uma consciência culpada. Os olhos daquele que é o Rei dos reis muitas vezes se compadeceram dos enfermos. Este mundo pouco ou nada se importa com os doentes e, geralmente, procura manter-se afastado. Mas o Senhor Jesus tem cuidado especial pelos enfermos. Ele é o primeiro a visitá-los e a dizer-lhes: “Eis que estou à porta e bato”. Felizes são aqueles que ouvem a sua voz e deixam- no entrar! Assinalamos, em seguida, a terna preocupação de nosso Senhor com as almas negligenciadas. Quando estava neste mundo, Jesus viu “multidões” que vagavam, como “ovelhas que não têm pastor”, e seu coração moveu-se de compaixão. Ele as via negligenciadas por aqueles que, na época, deveriam ter sido seus mestres. Ele via uma multidão de pessoas ignorantes, sem esperança, desamparadas, morrendo sem estar preparadas para a morte. Essa visão levou Jesus à profunda compaixão. Aquele coração amoroso não podia ver essas coisas sem se comover. Quais são nossos sentimentos quando vemos pessoas nessa mesma condição? Essa é a pergunta que deveria surgir em nossa mente. Há um grande número de pessoas nessas condições, que podemos ver por toda a parte. Há milhões de idólatras e pagãos na terra, milhões de iludidos islamitas, milhões de católicos supersticiosos romanos. Há também milhares de protestantes ignorantes, vivendo bem junto a nós. Sentimo-nos grandemente preocupados com tais almas? Sentimos profundamente a carência espiritual dessas pessoas? Ansiamos por vê-las aliviadas dessas carências? Essas são perguntas sérias e que exigem resposta. É fácil desprezar as missões aos pagãos, bem como àqueles que trabalham em favor dos incrédulos. Porém, quem não sente profundamente pela alma dos não convertidos certamente não pode ter a mente de Cristo (1Co 2.16). Destaquemos, em último lugar, que há um solene dever para todos os crentes que desejam fazer o bem à porção ainda não convertida da humanidade. Eles são incumbidos de sempre orar para que o Senhor levante mais homens para o trabalho da conversão das almas. Parece mesmo que esta petição deve fazer parte de nossas orações diárias: “Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara”. Se sabemos orar, tomemos como uma questão de consciência jamais nos esquecer dessa solene incumbência que nos foi dada por nosso Senhor. Fixemos bem em nossa mente que essa é uma das maneiras mais seguras de se praticar o bem e refrear o mal. O trabalho pessoal em favor de almas é bom. Contribuir com a obra missionária é bom. Mas o melhor de tudo é orar. Pela oração, alcançamos aquele sem o qual todo o trabalho e todo o dinheiro disponível são inúteis. Mediante a oração, obtemos a ajuda do Espírito Santo. O dinheiro pode financiar. As universidades podem conferir erudição. As congregações podem eleger obreiros, e as autoridades eclesiásticas, ordená-los. Porém, somente o Espírito Santo pode fazer os verdadeiros ministros do evangelho ou levantar os obreiros leigos para a seara espiritual, obreiros que não têm de que se envergonhar. Jamais nos esqueçamos de que, se desejamos fazer o bem à humanidade, nosso primeiro dever é orar! O envio dos primeiros pregadores cristãos Leia Mateus 10.1-15
E ste capítulo é particularmente solene. Aqui, lemos sobre a
primeira ordenação que teve lugar na Igreja de Cristo. O Senhor Jesus escolhe e envia seus doze apóstolos. Temos aqui a primeira incumbência conferida a ministros cristãos recém- consagrados. O Senhor Jesus mesmo foi quem os ordenou. Nunca houve uma ordenação tão importante! Há três lições que se destacam com proeminência nos primeiros quinze versículos deste capítulo. Vamos examiná-las pela ordem. Em primeiro lugar, somos ensinados de que nem todos os ministros do evangelho são, necessariamente, homens bons. Vemos nosso Senhor escolhendo Judas Iscariotes para ser um de seus apóstolos. Não podemos duvidar de que aquele que conhecia tão bem os corações conhecia também o caráter de cada um dos homens a quem escolheu. No entanto, ele incluiu na lista dos apóstolos um homem que era um traidor! Faremos bem em sempre lembrar esse fato. A ordenação para o ministério não confere a graça salvadora do Espírito Santo. Homens ordenados não são necessariamente convertidos. Não devemos considerá-los infalíveis, seja na doutrina, seja na prática. Não podemos fazer deles papas ou ídolos, e, insensatamente, levá- los a ocupar o lugar de Jesus Cristo. Antes, devemos considerá-los homens “sujeitos às mesmas paixões que nós”, sujeitos às mesmas fraquezas, e que diariamente necessitam da mesma graça divina. Não devemos pensar que é impossível que eles pratiquem coisas muito ruins, nem devemos esperar que estejam acima dos danos causados por bajulação, cobiça e atrativos deste mundo. Devemos testar os ensinamentos desses homens por meio da Palavra de Deus, e imitá-los na medida em que eles seguem Cristo, nunca mais do que isso. Acima de tudo, porém, devemos orar por eles, para que sejam sucessores, não de Judas Iscariotes, mas, sim, de Tiago e de João. É coisa seriíssima ser um ministro do evangelho! Os ministros precisam de muita oração a seu favor.Em seguida, vemos que a grande obra de um ministro de Jesus Cristo é fazer o bem. Ele é enviado para buscar as “ovelhas perdidas”, para proclamar as boas- novas, para aliviar os que estão em sofrimento, para diminuir a tristeza e aumentar o regozijo. A vida de um ministro deve caracterizar-se pelo dar, mais do que pelo receber. Esse é um padrão de vida elevado e muito peculiar ao ministério cristão. Portanto, que seja bem sopesado e cuidadosamente examinado. Antes de tudo, é evidente que a vida de um fiel ministro de Cristo não pode ser uma vida fácil. Todo ministro de Cristo deve dispor-se a gastar seu corpo e sua mente, seu tempo e suas energias na tarefa para a qual foi chamado. A preguiça e a frivolidade são intoleráveis em qualquer profissão, mas são piores ainda no ofício da sentinela de almas. Também está claro que a posição dos ministros de Cristo não coincide com aquilo que, muitas vezes, pessoas ignorantes lhes atribuem e que, infelizmente, certos ministros reivindicam para si. Eles não são ordenados para dominar, mas para servir. Não lhes compete tanto exercer domínio sobre a igreja quanto suprir as necessidades de seus membros e servir a eles (2Co 1.24). Bom seria para a causa da verdadeira religião se tais coisas fossem bem compreendidas! Metade dos males do cristianismo surge de noções equivocadas a respeito do ofício do ministro. Em último lugar, vemos que é muito perigoso negligenciar os oferecimentos do evangelho. “Menos rigor haverá para Sodoma e Gomorra, no dia do juízo”, do que para aqueles que já ouviram a verdade acerca de Cristo, mas não a receberam. Essa é uma doutrina que tem sido temivelmente negligenciada, embora mereça a mais séria consideração de nossa parte. Os homens inclinam-se, lamentavelmente, a se esquecer de que não é necessário cometer pecados gravíssimos para que uma alma seja arruinada para todo o sempre. Basta que a pessoa continue ouvindo o evangelho mas não crendo, escutando mas não arrependendo-se, vindo à igreja mas não vindo a Cristo; assim, pouco a pouco, acabará no inferno! Todos nós seremos julgados de acordo com a luz que recebemos. Ouvir as boas-novas da “grande salvação”, mas negligenciá-las, é um dos piores pecados que podemos cometer (Jo 16.9). O que estamos fazendo com o evangelho? Essa é a indagação que cada um que lê essa passagem bíblica deve fazer diante de sua própria consciência. Suponhamos que nós mesmos sejamos pessoas decentes e respeitáveis, corretas e morais em todas as relações da vida, e constantes em nossa aproximação formal aos meios de graça. Quanto a essas coisas, tudo está muito bem. Entretanto, isso seria tudo que pode ser dito a nosso respeito? Estamos realmente acolhendo o amor à verdade? Cristo está habitando em nossos corações, por meio da fé? Caso contrário, estamos correndo um terrível perigo. Estamos sendo muito mais culpados do que os homens de Sodoma, os quais jamais ouviram o evangelho. Um dia, podemos descobrir que, a despeito de toda a nossa regularidade, moralidade e correção, estamos perdidos para sempre. O fato de termos vivido sob a luz plena dos privilégios cristãos e de termos ouvido a pregação fiel do evangelho, semana após semana, isso apenas não nos livrará da condenação. Tem de haver a experiência pessoal com Cristo. Precisamos receber pessoalmente a verdade de Cristo. É preciso existir uma união vital com ele. Devemos tornar-nos seus servos e discípulos. Sem isso, a pregação do evangelho só faz aumentar nossa responsabilidade, tornando-nos ainda mais culpados, e, por fim, nos fará afundar ainda mais profundamente no inferno. É difícil ouvir essas declarações. Porém, as palavras das Escrituras que temos acabado de ler são claras e inequívocas. Elas são todas verdadeiras. Instruções aos primeiros pregadores cristãos Leia Mateus 10.16-23
A s verdades contidas nesses versículos deveriam ser
ponderadas por todos os que procuram fazer o que é direito neste mundo. Para o egoísta, que não se importa com mais nada além de seu próprio bem-estar e conforto, talvez pareça haver bem pouca coisa nesses versículos. Para o ministro do evangelho, bem como para todos que buscam salvar almas, esses versículos deveriam estar repletos de interesse. Não há dúvida de que há muita coisa neles que se aplicava especialmente aos dias dos apóstolos. Mas há também muita coisa que tem aplicação para todas as épocas. Antes de mais nada, aprendemos que os que quiserem trabalhar na obra do Senhor devem ser moderados quanto às suas expectativas. Não devem pensar que um sucesso universal acompanhará seus esforços. Pelo contrário, devem esperar encontrar muita oposição. Devem ter em mente o fato de que serão odiados, perseguidos e maltratados, e isso até mesmo da parte de seus parentes mais próximos. Com frequência, eles se sentirão como ovelhas entre os lobos.Tenhamos isso sempre em mente. Não importa se estamos pregando, ensinando ou visitando uma casa, não importa se estamos escrevendo ou dando conselhos, ou qualquer outra coisa que estejamos fazendo, deve ser um pensamento constante não esperarmos mais do que as Escrituras e a experiência garantem. A natureza humana é muito mais iníqua e corrupta do que pensamos. O poder do mal é maior do que supomos. É inútil imaginar que todos perceberão o que é melhor para eles, e que acreditarão no que lhes dissermos. Isso seria uma expectativa muito elevada, e nós ficaríamos desapontados. Feliz é o obreiro de Cristo que compreende essas coisas desde o início, e que não sente necessidade de aprendê-las mediante amarga experiência. Aqui está a razão secreta pela qual muitos têm dado as costas para a boa causa, depois de terem parecido tão cheios de zelo no princípio. Começaram com expectativas muito elevadas. Não calcularam o preço. Caíram no mesmo equívoco do grande reformador alemão, que confessou ter-se esquecido do fato de que “o velho Adão era forte demais para o jovem Melancthon”. Por outra parte, compreendemos que os que desejam fazer o bem têm necessidade de orar por sabedoria, bom senso e uma mente sadia. Nosso Senhor diz aos seus discípulos: para serem “prudentes como as serpentes e símplices como as pombas”. Também disse que, se fossem perseguidos em alguma cidade, era legítimo “fugir para outra”. Poucas foram as instruções dadas por nosso Senhor tão difíceis de praticar corretamente quanto essa. Jesus demarcou uma linha entre dois extremos, mas é necessário ter um grande discernimento para que possamos defini-la. Um desses extremos é evitar a perseguição, mantendo-nos calados e conservando nossa religião inteiramente para nós mesmos. Não devemos errar nessa direção. O outro extremo é cortejar a perseguição, forçar nossa religião sobre todas as pessoas que encontramos, sem levar em conta o lugar, a hora ou as circunstâncias. Também somos advertidos a não errar nessa direção. Bem podemos questionar: “Quem, porém, é suficiente para estas cousas?”. Temos a necessidade de clamar ao único e sábio Deus, rogando-lhe sabedoria. O extremo para o qual a maioria dos homens se inclina nos dias atuais é o silêncio, a covardia, deixando os demais imperturbados. Essa suposta prudência tende a se degenerar em uma conduta caracterizada pela negligência, ou mesmo pela mais franca infidelidade. Com demasiada frequência, estamos dispostos a assumir que, para determinadas pessoas, é inútil tentar fazer o bem. Justificamo-nos em não envidar esforços para o bem das almas dessas pessoas, dizendo que seria indiscrição, inconveniência ou que seria uma ofensa desnecessária, ou que isso seria uma agressão contra as pessoas. Vigiemos, pois, e ponhamo- nos em guarda contra essa atitude. Em geral, a preguiça e o diabo são a verdadeira explicação para essa atitude. Sem dúvida, é agradável para a carne e o sangue ceder a essa atitude, pois nos poupa de muitas dificuldades. Entretanto, aqueles que cedem diante dela geralmente desperdiçam grandes oportunidades de serviço. Por outro lado, é impossível negarmos que existe um zelo santo e justo, “porém não com entendimento” (Rm 10.2). É perfeitamente possível ofender desnecessariamente as pessoas, cometer grandes equívocos e despertar intensa oposição, que poderia ter sido evitada com um pouco de prudência, um procedimento sábio e o exercício de bom senso. Tenhamos o cuidado de não nos tornar culpados a esse respeito. Podemos ter certeza de que a sabedoria cristã existe e que é inteira mente distinta das sutilezas jesuíticas e do procedimento carnal. Que todos nós procuremos obter essa sabedoria! Nosso Senhor Jesus Cristo não requer de nós que nos desfaçamos de nosso bom senso quando procuramos trabalhar para ele. Sempre haverá bastante ofensa em nossa religião cristã, não importa o que façamos; porém, não devemos aumentar as possibilidades disso desnecessariamente. “Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e, sim, como sábios” (Ef 5.15). De fato, os crentes no Senhor Jesus não oram o suficiente por um espírito de sabedoria, juízo e bom senso. Eles tendem a pensar que, se já receberam a graça divina, então já têm tudo de que precisam. Esquecem-se de que um coração agraciado deveria orar para ser pleno de sabedoria, assim como do Espírito Santo (At 6.3). Lembremos que muita graça e bom senso talvez sejam uma das mais raras combinações existentes. A vida de Davi e o ministério do apóstolo Paulo, contudo, são provas notáveis de que essa combinação é possível. Nisso, como em todas as demais coisas, nosso Senhor Jesus Cristo, pessoalmente, é nosso mais perfeito exemplo. Ninguém jamais se mostrou tão fiel quanto ele. No entanto, ninguém jamais foi tão verdadeiramente sábio. Façamos de Cristo nosso modelo e andemos nos passos dele. Advertências aos primeiros pregadores cristãos Leia Mateus 10.24-33
F azer a obra de Deus neste mundo é uma tarefa muito difícil!
Todos que a empreendem descobrem isso por experiência própria. É preciso ter muita coragem, fé, paciência e perseverança. Satanás lutará vigorosamente para manter seu reino. A natureza humana é desesperadamente corrupta. Praticar o mal é fácil. O difícil é fazer o bem. O Senhor Jesus sabia disso muito bem quando enviou seus discípulos para pregar o evangelho pela primeira vez. Mesmo que eles não soubessem o que os esperava, o Senhor sabia. Ele teve o cuidado de lhes dar uma lista de palavras de encorajamento, a fim de animá-los quando se sentissem abatidos. Missionários exaustos no país distante, ou ministros que se sentem esgotados, mesmo trabalhando em seu próprio país, professores desalentados e evangelistas desanimados, todos fariam bem em estudar com frequência os nove versículos dessa passagem. Observemos o que eles contêm. Os que trabalham na obra de Deus não devem esperar ter melhor sucesso. “O discípulo não está acima de seu mestre, nem o servo acima de seu senhor.” O Senhor Jesus foi caluniado e rejeitado por aqueles a quem viera beneficiar. Não havia erros em sua doutrina. Não havia defeitos em seu método de transmitir a instrução. Mesmo assim, ele foi odiado e chamado Belzebu. Poucos creram nele e se importaram com o que ele dizia. Não temos o direito de ficar surpresos se nós, cujos melhores esforços são permeados de tantas imperfeições, formos tratados da mesma maneira que Jesus Cristo o foi. Se não nos importarmos com o mundo, ele também não se importará conosco. Mas, se intentarmos o bem-estar espiritual dos homens, então nos odiarão, como fizeram com nosso grande Mestre. Os que procuram fazer o bem devem esperar com paciência pelo dia do juízo. “Nada há encoberto que não venha a ser revelado; nem oculto que não venha a ser conhecido.” Precisam saber que serão mal compreendidos, difamados, vilipendiados, caluniados e maltratados neste mundo. No entanto, não devem deixar de trabalhar somente porque seus motivos são mal interpretados e o caráter deles é ferozmente atacado. Devem lembrar-se continuamente de que todas essas injustiças serão devidamente corrigidas, no último dia. Os segredos do coração de todos os homens serão, então, desvendados. Ele “fará sobressair a tua justiça como a luz, e o teu direito como o sol ao meio-dia” (Sl 37.6). Por fim, a pureza das intenções dos crentes, a sabedoria dos labores deles e a retidão da causa que defendem se manifestarão diante do mundo inteiro. Por conseguinte, continuemos trabalhando constante e tranquilamente. Talvez os homens não nos compreendam, opondo-se com veemência a nós. Porém, o dia do juízo já se aproxima velozmente. Afinal, a justiça nos será feita. O Senhor, quando voltar ao mundo, “não somente trará à plena luz as cousas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá o seu louvor da parte de Deus” (1Co 4.5). Os que procuram fazer o bem devem temer mais a Deus do que os homens. Os homens podem ferir-nos o corpo, mas isso é o máximo que podem fazer. Não podem ir mais longe do que isso. Mas Deus “pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo”. Se andamos pelo caminho de nosso dever religioso, podemos ser ameaçados com a perda de nossa reputação, propriedades e tudo o que torna a vida agradável. Se andamos corretamente, não devemos temer essas ameaças. Assim como Daniel e seus três amigos, devemos submeter-nos a qualquer coisa necessária para não desagradar a Deus e ferir a consciência. Talvez seja difícil suportar a ira dos homens, mas a ira de Deus é muitíssimo pior. O temor ao homem pode fazer-nos cair em alguma armadilha. Mas nós precisamos repelir esse temor com um princípio muito poderoso: o temor a Deus. O bondoso Coronel Gardiner disse: “Temo a Deus, portanto não preciso temer a mais ninguém”. Os que procuram fazer o bem devem trazer na mente o cuidado providencial que Deus tem por seus filhos. Coisa alguma pode acontecer neste mundo sem a permissão de Deus. Na verdade, nada acontece por acaso, acidente ou sorte. “Quanto a vós outros, até os cabelos todos da cabeça estão contados.” O caminho do dever pode às vezes nos conduzir a grandes perigos. Nossa saúde e a própria vida podem ser ameaçadas quando avançamos no cumprimento do dever. Portanto, que nos consolemos mediante o pensamento de que tudo que nos circunda está nas mãos de Deus! Corpo, alma e caráter, tudo está entregue aos cuidados do Senhor. Nenhuma enfermidade nos poderá atingir, ninguém nos poderá ferir, a menos que ele permita. Podemos dizer confiantemente a tudo que nos ameace: “Nenhuma autoridade terias sobre mim se de cima não te fosse dada” (Jo 19.11). Finalmente, os que procuram fazer o bem devem relembrar continuamente o dia em que se encontrarão com o Senhor para receber a parte que lhes cabe. Se desejam que Cristo os reconheça e os confesse diante do trono de seu Pai, precisam confessar diante dos homens seu nome, e não envergonhar-se dele. Fazer isso poderá custar-nos muita coisa. Pode trazer contra nós riso, escárnio, perseguição e zombaria. Porém, mesmo que zombem de nós, lembremo-nos de que temos um galardão no céu. Não nos esqueçamos do grande e temível dia da prestação de contas, e não tenhamos receio de mostrar aos homens que amamos a Cristo e que desejamos que eles também o amem. Que esses encorajamentos fiquem entesourados no coração de todos os que trabalham na causa de Cristo, qualquer que seja o ofício! O Senhor conhece as dificuldades de seus servos, e disse essas palavras a fim de consolá-los. Ele cuida de todos os que nele creem, especialmente daqueles que trabalham em sua causa e se esforçam para fazer o bem. Que todos nós possamos ser contados entre os obreiros de Cristo! Todo crente pode fazer alguma coisa, se tentar. Sempre há algo que cada um pode fazer. Cada um de nós deve ter a visão e a vontade de fazer a obra do Senhor. Palavras de encorajamento aos primeiros pregadores cristãos Leia Mateus 10.34-42
N esses versículos, o grande Cabeça da Igreja conclui a primeira
incumbência que determinou àqueles que estava enviando para divulgar seu evangelho. Jesus declarou três grandiosas verdades, que formam uma apropriada conclusão ao seu discurso. Em primeiro lugar, Cristo ordena que nos lembremos que o evangelho nem sempre instaurará a paz e a concórdia onde for anunciado. “Não vim trazer paz, mas espada.” O objetivo da primeira vinda de Cristo à terra não foi o de inaugurar um reino milenar, dentro do qual todos teriam uma única atitude mental; antes, ele veio trazer o evangelho, que haveria de provocar divisões e contendas. Não temos o direito de nos sentir surpresos se essa predição vai sendo incessantemente cumprida. Não devemos estranhar se o evangelho chegar a dividir famílias inteiras, separando até mesmo os parentes mais chegados. Com certeza, esse será o resultado do evangelho em muitos casos, por causa da arraigada corrupção do coração humano. Enquanto um homem crê e outro permanece na incredulidade, enquanto um homem resolve desistir de seus pecados, mas outro está resolvido a continuar no pecado, o resultado da pregação do evangelho será a divisão. Não devemos culpar o evangelho, mas, sim, o coração do homem. Nesses ensinamentos, há uma profunda verdade, embora seja constantemente esquecida e negligenciada. Muitos falam em termos vagos acerca de unidade, harmonia e paz na Igreja de Cristo, como se devêssemos esperar por essas coisas, sacrificando todo o resto. Tais pessoas fariam bem em lembrar as palavras de nosso Senhor. Não há dúvida de que a unidade e a paz são bênçãos poderosas. Deveríamos buscar alcançá-las, orando por elas e até mesmo desistindo de tudo o mais para as obtermos, excetuando a bondade e uma boa consciência. Porém, é um sonho vão supormos que as igrejas de Cristo terão grande unidade e paz, antes que venha o Milênio. Em segundo lugar, nosso Senhor nos diz que os verdadeiros cristãos devem estar preparados para as tribulações neste mundo. Se somos ministros ou ouvintes, se ensinamos ou somos ensinados, isso não faz muita diferença. Temos de levar nossa “cruz”. Devemos estar dispostos a perder até mesmo a própria vida por amor a Cristo. Devemos submeter-nos à perda do favor dos homens, suportar as dificuldades e negar a nós mesmos muitas vezes ou, então, jamais chegaremos ao céu. Enquanto o mundo, o diabo e nossos próprios corações forem como são, as coisas têm de ser assim. Descobriremos quão útil é relembrar-nos dessa lição, para, então, transmiti-la aos nossos semelhantes. Poucas coisas são mais prejudiciais à religião do que as expectativas exageradas e desproporcionais. Certas pessoas esperam encontrar uma medida de conforto mundano no serviço de Cristo, embora não tenham o direito de esperar. E, não encontrando o que esperavam, sentem-se tentadas a desistir, desgostosas, da religião. Feliz é quem compreende que, embora o cristianismo traga uma coroa no final da carreira, também traz uma cruz para o caminho.Por fim, nosso Senhor nos alegra com a declaração de que até mesmo o menor serviço prestado àqueles que trabalham em sua causa será observado e recompensado por Deus. “E quem der de beber, ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão.” Nessa promessa, há algo maravilhoso. Ela nos ensina que os olhos de nosso grande Mestre estão perenemente fixos sobre aqueles que trabalham para ele e procuram fazer o bem. Parece que essas pessoas trabalham sem que sejam notadas, sem que sejam consideradas. O trabalho dos pregadores e missionários, dos professores e dos que visitam os pobres pode parecer de pouco valor e insignificante, em comparação com os ofícios de reis e parlamentares, de generais e estadistas. Mas não é insignificante aos olhos de Deus. Ele observa quem ajuda seus servos e quem se opõe a eles. Ele observa quem é dócil para seus ministros, como Lídia agiu com Paulo, e quem põe obstáculos no caminho, como Diótrefes fez contra o apóstolo João. Toda a experiência diária dos discípulos de Cristo fica registrada enquanto trabalham na seara do Mestre. Tudo fica registrado no grande livro das obras e tudo será revelado no dia do juízo. O copeiro-mor esqueceu-se de José depois de ter sido restaurado a seu cargo. Mas o Senhor Jesus jamais se esquece de qualquer um de seu povo. Ele dirá a muitos, que menos esperam por isso, no dia da ressurreição: “Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber” (Mt 25.35). Ao encerrarmos o estudo desse capítulo, perguntamos a nós mesmos como consideramos a obra e a causa de Cristo neste mundo. Estamos ajudando ou dificultando essa obra? Estamos ajudando de alguma maneira os profetas e os “justos”do Senhor? Estamos auxiliando esses pequeninos? Estamos pondo obstáculos no caminho ou estamos encorajando os obreiros do Senhor, procurando animá-los? Essas são perguntas muito sérias. Os que oferecem o “copo de água fria” sempre que têm a oportunidade agem bem e com sabedoria. Porém, agem ainda melhor aqueles que trabalham ativamente na obra do Senhor. Que todos nós nos esforcemos por deixar este mundo melhor do que aquele em que nascemos! Isso é ter a mente de Cristo. Isso é descobrir pessoalmente o valor das maravilhas contidas neste capítulo. João envia mensageiros a Jesus Leia Mateus 11.1-15
A primeira coisa que nos chama a atenção nessa passagem é a
mensagem que João Batista envia a nosso Senhor Jesus Cristo. Ele mandou dois de seus discípulos perguntarem a Jesus: “És tu aquele que estava para vir, ou havemos de esperar outro?”. Essa indagação não foi gerada por dúvida ou incredulidade de João Batista. Faríamos uma grave injustiça àquele grande santo do Senhor se interpretássemos a pergunta dessa maneira. Ela foi formulada visando ao benefício dos discípulos de João. Teve a finalidade de lhes oferecer a oportunidade de ouvir dos próprios lábios de Cristo a evidência de sua missão divina. Sem dúvida, João Batista sentiu que seu próprio ministério estava terminado. Alguma coisa, em seu íntimo, lhe segredava que ele jamais sairia do cárcere de Herodes; pelo contrário, ele sentia que ali morreria. João lembrou-se dos ciúmes e das invejas, motivados pela ignorância, que haviam surgido entre seus discípulos e os de Cristo. Logo, escolheu o curso mais provável para esses ciúmes serem dissipados para sempre. Enviou alguns de seus seguidores para que estivessem “ouvindo e vendo” por si mesmos o que Jesus fazia. A conduta de João Batista oferece um exemplo extraordinário para professores, pais e ministros, quando estão chegando ao final de sua carreira. Sua principal preocupação deveria ser a respeito das almas que eles deixarão atrás de si neste mundo. E o grande desejo deles deveria ser persuadir essas almas a se apegar a Cristo. A morte daqueles que nos têm guiado e instruído neste mundo sempre deveria produzir esse efeito. Deveria fazer com que nos apegássemos ainda mais firmemente àquele que nunca mais morrerá, que continuará para sempre e tem um “sacerdócio imutável” (Hb 7.24). Outra coisa que requer nossa atenção, nesse texto, é o elevado testemunho dado por nosso Senhor no tocante ao caráter de João Batista. Nenhum homem jamais recebeu tamanha aprovação quanto essa que Jesus dá a seu amigo que fora aprisionado. “Entre os nascidos de mulher, ninguém apareceu maior do que João Batista.” Nos dias de seu ministério público, João havia confessado ousadamente a Jesus, perante os homens, mostrando ser ele o Cordeiro de Deus. Agora, Jesus declarava abertamente que João Batista era mais do que um mero profeta. Sem dúvida, havia alguns que estavam inclinados a fazer pouco-caso de João Batista, em parte por ignorância da natureza do ministério de João e, em parte, por não terem compreendido a finalidade da pergunta que ele mandara fazer a Jesus. Nosso Senhor silenciou esses astuciosos com a declaração a respeito de João Batista. Jesus lhes disse que não deveriam pensar que João fosse um homem tímido, vacilante e instável, “um caniço agitado pelo vento”. Se assim pensassem, estariam totalmente enganados. João Batista foi uma testemunha poderosa e inflexível da verdade. Jesus diz que não deveriam supor que João fosse mundano de coração, apreciador dos palácios reais e da vida fácil. Se assim estivessem pensando, estariam cometendo um grande erro. João era um abnegado pregador do arrependimento, que preferiria ser vítima da ira de um rei a deixar de reprovar os pecados deste. Em suma, Jesus queria que todos soubessem que João Batista era “muito mais do que profeta”. João era alguém a quem Deus tinha dado maior honra do que a todos os profetas do Antigo Testamento. Na verdade, aqueles profetas haviam profetizado a respeito de Cristo, mas morreram sem tê-lo visto. João não somente profetizou a respeito dele, como também o viu face a face. Os profetas haviam predito que os dias do Filho do homem certamente chegariam e o Messias apareceria neste mundo. João foi testemunha ocular desses dias e também um honroso instrumento de preparação dos homens para esses dias. Aos profetas, foi ordenado predizer que o Messias “como cordeiro seria levado ao matadouro”, e seria “cortado da terra dos viventes”. Mas a João Batista fora outorgado apontar pessoalmente para ele e dizer: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”. Há algo de belíssimo e consolador para os verdadeiros crentes nesse testemunho de nosso Senhor sobre João Batista. Vemos o interesse que nosso grande Cabeça sente quanto à vida e ao caráter de todos os seus membros. Vemos quanta honra ele está pronto a conceder a todo trabalho e labor que os crentes desempenham, em favor de sua causa. É uma doce antecipação da confissão que ele fará de seus discípulos perante o mundo inteiro reunido, quando ele os apresentará inculpáveis diante do trono de seu Pai, no dia final. Sabemos, realmente, o que significa trabalhar para Cristo? Já nos sentimos desanimados e derrotados, como se não estivéssemos fazendo nenhum bem e ninguém se importasse conosco? Já nos sentimos tentados a dizer, quando postos de lado por alguma enfermidade, ou quando retirados de cena pela providência divina: “Será que tenho trabalhado em vão, gastando minhas forças inutilmente?”. Enfrentemos tais pensamentos relembrando o que Jesus disse acerca de João Batista. Recordemo- nos de que há alguém que registra diariamente tudo que fazemos em favor dele, e que se agrada mais do trabalho de seus servos do que eles próprios imaginam. A mesma língua que prestou testemunho a respeito de João Batista, quando este estava na prisão, também dará testemunho de todo o seu povo, no último dia. Ele dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”. Então, as testemunhas fiéis descobrirão, para sua admiração e grande surpresa, que jamais proferiram uma única palavra em favor de seu Mestre pela qual não venham a receber recompensa. A insensatez dos incrédulos; o perigo de não se usar a luz Leia Mateus 11.16-24
E ssas declarações do Senhor Jesus foram provocadas pelo
estado em que se encontrava a nação judaica naquela época. Elas também falam conosco, em alto e bom som, tanto quanto com os judeus. As palavras de Jesus projetam uma intensa luz sobre determinados aspectos do caráter do homem natural. Elas nos ensinam sobre o perigoso estado em que se encontram muitas almas imortais hoje em dia. A primeira parte desses versículos mostra-nos a insensatez de muitas pessoas não convertidas quanto às questões religiosas. Os judeus, na época de Jesus Cristo, encontravam falta em qualquer mestre que Deus lhes enviasse. Primeiro apareceu João Batista, pregando o arrependimento — um homem austero que se mantinha afastado da sociedade e vivia como um asceta. Mas isso satisfez aos judeus? Não! Ao contrário, acharam falta nele e disseram: “Tem demônio”. Então, veio Jesus, o próprio Filho de Deus, pregando o evangelho, vivendo como faziam outros homens quaisquer, sem praticar nenhuma das austeridades peculiares a João Batista. E isso satisfez aos judeus? Não! Novamente acharam falta e disseram: “Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!”. Em suma, eles eram perversos e tão difíceis de contentar quanto crianças teimosas. É um fato lamentável que sempre existam milhares de professos cristãos tão insensatos quanto aqueles judeus. Eles são tão perversos quanto difíceis de contentar. Em tudo o que ensinamos ou pregamos eles encontram alguma falha. Sem importar qual seja nossa maneira de viver, eles estão insatisfeitos. Se falamos da salvação mediante a graça e da justificação pela fé, imediatamente eles clamam contra nossa doutrina, como se fosse licenciosa e antinomiana. Falamos da santidade que o evangelho requer? Prontamente, eles dizem que somos por demais estritos e exigentes, como se quiséssemos ser justos demais. Estamos alegres? Eles nos acusam de leviandade. Mostramo-nos graves e sérios? Então, eles nos rotulam como melancólicos e azedos. Mantemo-nos afastados de bailes, de corridas e de eventos esportivos? Então, eles nos denunciam como puritanos, exclusivistas e conservadores. Comemos, bebemos e nos vestimos como as demais pessoas e frequentamos eventos sociais e outras atividades seculares? Então, eles insinuam, zombeteiramente, que não veem qualquer diferença entre nós e aqueles que não seguem qualquer religião, dizendo que não somos melhores do que os demais homens. Ora, o que é tudo isso senão a reiteração da conduta daqueles judeus incrédulos? “Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não pranteastes.” Aquele que disse essas palavras conhecia perfeitamente bem o coração do homem. A verdade incontestável é que os verdadeiros cristãos não devem esperar que homens não convertidos estejam satisfeitos, seja com a fé, seja com a conduta dos crentes. Se assim o fizerem, estarão esperando o que não podem mesmo receber da parte dos perdidos. Os crentes precisam preparar-se mentalmente para ouvir objeções, argumentos ardilosos e desculpas tolas, não importa quão santamente estejam vivendo. Com toda a razão, afirmou Quesnel: “Não importa quais medidas os homens bons tomem, jamais conseguirão escapar das censuras do mundo. A melhor coisa a fazer é não se deixar atingir por essas censuras”. Afinal, o que as Escrituras dizem? “O pendor da carne é inimizade contra Deus” (Rm 8.7). “Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus [...]” (1Co 2.14). Essa é a explicação para todo esse assunto. A segunda parte desses versículos mostra-nos a enorme iniquidade da impenitência proposital. Nosso Senhor declarou que “haverá menor rigor” para Tiro, Sidom e Sodoma, no dia do juízo, do que para aquelas cidades que tinham ouvido os sermões e contemplado os milagres de Jesus, mas não se arrependeram. Essa declaração se reveste de uma solenidade toda especial. Examinemo-la, pois, detidamente. Pensemos, por alguns instantes, em quanta imoralidade, devassidão, idolatria e escuridão espiritual deve ter havido em Tiro e Sidom. Relembremos a indizível iniquidade de Sodoma. Recordemo-nos de que as cidades designadas por nosso Senhor — Corazim, Betsaida e Cafarnaum — provavelmente não eram piores do que quaisquer outras cidades da Judeia, e que, seja como for, eram muito melhores, moralmente falando, do que Tiro, Sidom ou Sodoma. Então, observemos que os habitantes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum se encontrarão no mais profundo inferno, porquanto, embora tenham ouvido o evangelho, não se arrependeram, e mesmo dispondo de grandes vantagens religiosas, não tiraram proveito delas. Quão terrível soa tudo isso! Por certo, essas palavras deveriam fazer tinir os ouvidos de todos os que ouvem regularmente a pregação do evangelho, mas não querem converter-se. Quão grande é a culpa desses homens diante de Deus! Quão tremendo é o perigo espiritual em que se acham, dia após dia! Por mais decentes, morais e respeitáveis que possam ser suas vidas, na verdade eles são mais culpados aos olhos de Deus do que os moradores de Tiro e Sidom, ou do que algum miserável habitante de Sodoma. Aquela gente não dispunha de qualquer luz espiritual, mas estes últimos negligenciam a luz espiritual que lhes é proporcionada. Aqueles nunca tiveram a oportunidade de ouvir o evangelho, mas estes não querem obedecer-lhe. O coração daquela gente da antiguidade talvez chegasse a se sensibilizar se tivessem desfrutado os mesmos privilégios destes últimos. Tiro e Sidom “se teriam arrependido com pano de saco e cinza”, e Sodoma teria “permanecido até o dia de hoje”. O coração dessas pessoas, mesmo sob a luz intensa do evangelho, permanece frio e inabalável. Só podemos tirar de tudo isso uma única e dolorosa conclusão: a culpa dessas pessoas será muito maior do que a daqueles antigos, no último dia. Com profunda verdade, observou um pastor inglês: “Entre todos os agravantes dos nossos pecados, não há nada mais hediondo do que ouvirmos, com frequência, qual é o nosso dever”. Que todos meditemos frequentemente a respeito de Corazim, Betsaida e Cafarnaum! Que fique bem estabelecido em nossas mentes que o fato de apenas ouvirmos e gostarmos do evangelho não é suficiente. Precisamos ir além. Devemos fazer o que Jesus disse: “arrependei-vos e convertei-vos”. Precisamos, realmente, valer-nos de Cristo, unindo-nos espiritualmente a ele. Enquanto não fizermos assim, estaremos em grave perigo. No fim, haverá menos rigor para os moradores de Tiro, Sidom e Gomorra, que não ouviram o evangelho, do que para os que agora vivem no Brasil e ouvem o evangelho, mas morrem na incredulidade. A grandeza de Cristo; o amplo convite do evangelho Leia Mateus 11.25-30
P oucas passagens existem, nos quatro evangelhos, que sejam
mais importantes do que esta. Há poucos trechos bíblicos que contenham, em tão poucos versículos, tantas e tão preciosas verdades. Que Deus nos dê olhos para ver e coração para apreciar o grande valor dessas verdades! Em primeiro lugar, aprendemos quão excelente é a atitude mental de ser simples e despretensioso como uma criança, e de estar pronto para receber a instrução. Em oração, nosso Senhor disse a Deus Pai: “Ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos”. Não nos compete tentar explicar por que alguns recebem e creem no evangelho, enquanto outros não o fazem. A soberania de Deus quanto a isso é um profundo mistério, de maneira que não somos capazes de sondá-la. Mas, seja como for, há algo na Bíblia que se destaca como uma grande verdade prática, da qual jamais nos deveríamos esquecer. O evangelho geralmente está oculto daqueles que são “sábios a seus próprios olhos, e prudentes em seu próprio conceito” (Is 5.21). Em geral, o evangelho é revelado aos humildes e despretensiosos, que estão dispostos a aprender. As palavras da virgem Maria estão se cumprindo constantemente: “Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos” (Lc 1.53). Vigiemos nosso coração quanto ao orgulho, em todas as suas manifestações — o orgulho intelectual, o orgulho das riquezas, o orgulho em face de nossa própria bondade, o orgulho de nossos próprios méritos. Coisa alguma tende a manter mais um homem fora do céu, impedindo-o de ver a Cristo, do que o orgulho. Enquanto imaginarmos que somos alguma coisa, jamais seremos salvos. Oremos pedindo humildade e, então, a cultivemos. Procuremos conhecer a nós mesmos de maneira correta, descobrindo nossa verdadeira condição diante de um Deus santo. O início do caminho para o céu é quando sentimos que estamos no caminho do inferno e, então, nos dispomos a ser ensinados pelo Espírito Santo. Um dos primeiros passos no caminho da salvação é perguntar, como Saulo de Tarso fez: “Que farei, Senhor?” (At 22.10). Dificilmente há outra afirmação de nosso Senhor que seja tão frequentemente repetida quanto esta: “[...] o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado” (Lc 18.14). Em segundo lugar, aprendamos, com base nesses versículos, a grandiosidade e a majestade de nosso Senhor Jesus Cristo. A linguagem de nosso Senhor quanto a esse assunto é profunda e maravilhosa. Ele disse: “Tudo me foi entregue por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai; e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. Ao ler esses versículos, bem podemos dizer: “Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim: é sobremodo elevado, não posso atingi-lo”. Podemos vislumbrar um pouco da perfeita união existente entre a primeira e a segunda pessoa da Trindade. Vemos algo da incomensurável superioridade do Senhor Jesus, sobre todos os que não passam de meros homens. Não obstante, depois de havermos dito tudo isso, devemos confessar que existem alturas e profundidades nesse versículo que estão muito além de nossa débil compreensão. Podemos apenas admirá-las no espírito de crianças pequenas. Contudo, ainda assim, sentimos que metade dessas coisas jamais foi contada ao mortal. Entretanto, devemos ver, nessas palavras de Jesus, a grande verdade prática de que todo poder e autoridade, em tudo que diz respeito à salvação de nossas almas, está nas mãos de nosso Senhor Jesus Cristo. “Tudo me foi entregue por meu Pai.” Ele tem a chave. Para ir ao céu, precisamos ir até ele. Ele é a porta: precisamos entrar por intermédio dele. Ele é o pastor das ovelhas: precisamos ouvir sua voz e segui-lo, se não quisermos perecer no deserto. Ele é o médico das almas: precisamos consultá-lo, se quisermos ser curados da praga do pecado. Ele é o pão da vida: precisamos nos alimentar dele, se quisermos que nossas almas sejam satisfeitas. Ele é a luz: devemos andar após ele, se não nos quisermos desviar-nos para as trevas. Ele é a fonte da vida: precisamos lavar-nos em seu sangue, se quisermos ser purificados e estar preparados para o grande dia da prestação de contas. Benditas e gloriosas são essas verdades! Se temos Cristo, temos todas as coisas (1 Co 3.22). Por fim, com base nessa passagem, aprendemos como é amplo e pleno o convite do evangelho de Cristo. Os últimos três versículos do capítulo, que encerram essa lição, são realmente preciosos. Eles vêm ao encontro do trêmulo pecador, que indaga: “Cristo revela o amor do Pai para alguém como eu?”. Esses versos são um precioso encorajamento e merecem ser lidos com especial atenção. Por quase dois mil anos, eles têm sido uma bênção para o mundo, e têm beneficiado milhões de pessoas. Não há uma única sentença, nesses versículos, que não contenha pensamentos preciosos. Observe quem são aqueles a quem Jesus convida. Ele não se dirige àqueles que se sentem justos e dignos em si mesmos. Ao contrário, dirige-se a “todos os que estais cansados e sobrecarregados”. Essa é uma descrição bastante ampla. Abrange multidões neste mundo cansativo. Todos os que sentem um peso no coração, todos que desejam tomar-se livres de alguma carga do pecado, de alguma carga de tristeza, de alguma carga de ansiedade ou de remorso — todos estão convidados a vir a Cristo, não importa quem sejam ou o que já tenham sido na vida. Note, em seguida, a graciosa oferta que Jesus faz: “Eu vos aliviarei [...] e achareis descanso para as vossas almas.” Quão animadoras e confortantes são essas palavras! A falta de tranquilidade é uma das grandes características do mundo. A pressa, o vexame, o fracasso e os desapontamentos nos confrontam por todos os lados. Mas há esperança. Existe uma arca de refúgio para o cansado, tal como houve para a pomba solta por Noé. Em Cristo, encontramos descanso — descanso para a consciência e para o coração, descanso fundamentado no perdão de todo pecado, descanso que é resultado da paz com Deus.Veja quão simples é o pedido que Jesus faz aos que estão cansados e sobrecarregados. “Vinde a mim [...] tomai sobre vós o meu jugo [...] aprendei de mim [...].” Jesus não interpôs nenhuma condição difícil de ser atendida. Ele nada fala sobre obras a serem realizadas, ou de merecimentos, para que alguém possa receber seus dons. Ele somente nos pede para irmos até ele como estamos, com todos os nossos pecados, entregando-nos aos seus cuidados, como criancinhas dispostas a receber seu ensino. É como se Jesus dissesse: “Não busqueis alívio nos homens. Não espereis que vos apareça alguma ajuda, vinda de outra direção. Tais e quais sois, neste mesmo dia, vinde a mim”. Observe, igualmente, quão encorajadora descrição Jesus faz de si mesmo. Ele diz: “Sou manso e humilde de coração”. Com frequência, os santos de Deus têm experimentado quão verazes são essas palavras. Maria e Marta, em Betânia, Pedro, após a sua queda, os discípulos após a ressurreição e Tomé depois de sua fria incredulidade — todos eles provaram da “humildade e da gentileza de Cristo”. Esse é o único lugar em toda a Escritura em que se faz menção ao “coração”’ de Jesus. Essa é uma declaração que nunca deveríamos esquecer. Em último lugar, observe a encorajadora consideração que Jesus dá ao serviço prestado a ele. Ele diz: “O meu jugo é suave e o meu fardo é leve”. Sem dúvida, existe uma cruz para ser carregada quando seguimos Cristo. Indubitavelmente, existem provações e testes a serem enfrentados, e batalhas a serem travadas. Mas os consolos do evangelho ultrapassam em muito o peso da cruz. Comparado com o serviço ao mundo e ao pecado, comparado com o jugo das cerimônias judaicas e com a escravidão às superstições humanas, o serviço prestado a Cristo é muitas vezes mais leve e fácil. O jugo de Cristo não é carga maior do que as penas o são para a ave que as possui. Os mandamentos de Cristo “não são penosos” (1Jo 5.3). “Os seus caminhos são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas, paz” (Pv 3.17). Agora vem a solene pergunta: Já aceitamos, pessoalmente, esse convite? Acaso não temos pecados a serem perdoados ou tristezas a serem removidas ou feridas de consciência a serem saradas? Se temos, ouçamos atentamente a voz de Jesus Cristo. Ele fala conosco como falou aos judeus. “Vinde a mim [...]", essa é a chave para a verdadeira felicidade. Eis o segredo de ter um coração leve. Tudo depende e gira em torno da aceitação dessa oferta que Cristo faz. Que jamais estejamos satisfeitos enquanto não soubermos e sentirmos que já fomos a Cristo pela fé, buscando nele o descanso, e que cada dia estamos indo até ele em busca de novos suprimentos da graça divina! Se já fomos até ele, aprendamos a nos apegar a ele ainda mais intimamente. Mas, se ainda não fomos até ele, então que o façamos agora mesmo! A palavra de Cristo jamais falhará: “O que vem a mim de modo nenhum o lançarei fora” (Jo 6.37). A verdadeira doutrina do sábado sem os erros judaicos Leia Mateus 12.1-13
O grande assunto que aparece com proeminência nessa passagem
é o dia de sábado. Esse era um assunto sobre o qual prevaleciam estranhas opiniões entre os judeus, na época de nosso Senhor. Os fariseus haviam feito muitos acréscimos ao que as Escrituras ensinavam a respeito do assunto e sobrecarregaram o verdadeiro caráter desse dia com as tradições humanas. Esse também é um assunto acerca do qual diversas opiniões têm sido defendidas nas igrejas de Cristo, e a respeito do qual atualmente existem entre os homens grandes diferenças. Vejamos o que podemos aprender a esse respeito, com base nos ensinos de nosso Senhor, nesses versículos. Em primeiro lugar, fixemos na mente, como um princípio solidamente estabelecido, que nosso Senhor Jesus Cristo não anula a observância de um dia semanal de descanso sabático. Nem aqui nem em qualquer outro trecho dos quatro evangelhos isso acontece. Frequentemente encontramos ensinos de Cristo acerca das distorções judaicas atinentes ao sábado, mas jamais achamos uma palavra sequer ensinando que os discípulos de Cristo não devem observar o dia do descanso. É importantíssimo notar esse fato. Os equívocos que se têm originado de uma consideração superficial das declarações de nosso Senhor acerca do sábado não são nem pequenos nem poucos. Milhares de pessoas têm chegado à conclusão precipitada de que os cristãos nada têm a ver com o quarto mandamento da lei, e que ele não é obrigatório, da mesma forma que não é obrigatória a lei mosaica dos sacrifícios de animais. Todavia, nada existe nas páginas do Novo Testamento que justifique essa conclusão. A verdade patente é que nosso Senhor não aboliu a lei do sábado. Tão somente ele a liberou das interpretações incorretas, purificando-a de adições inventadas pelos homens. Jesus não arrancou do decálogo o quarto mandamento. Apenas o desnudou das miseráveis tradições pelas quais os fariseus haviam incrustado o dia, transformando-o em uma carga insuportável, em vez de ser uma bênção. Jesus deixou o quarto mandamento exatamente onde o encontrou, ou seja, como parte integrante da eterna lei de Deus, da qual não se pode retirar nem mesmo um til, e a qual jamais passará. Que nunca nos esqueçamos disso! Em segundo lugar, fixemos bem em nossas mentes que nosso Senhor Jesus Cristo permite que todas as obras de real necessidade e as obras de misericórdia sejam feitas no dia do sábado. Esse é um princípio abundantemente firmado na passagem bíblica que ora consideramos. Encontramos nosso Senhor justificando seus discípulos por colherem espigas em dia de sábado. Era um ato permitido nas Escrituras (Dt 23.25). Eles estavam famintos e necessitados de comida. Portanto, não seria possível culpá-los. Vemos o Senhor Jesus frisando a legitimidade da cura de um homem enfermo, em dia de sábado. O homem estava padecendo de uma dolorosa enfermidade. Nesse caso, não era desobediência ao quarto mandamento prestar alívio. Jamais deveríamos descansar de fazer o bem. São salientes e irretorquíveis os argumentos por intermédio dos quais nosso Senhor dá apoio à legitimidade de toda e qualquer obra necessária ou de misericórdia, em dia de sábado. Quando acusado pelos fariseus de ter quebrado a lei junto com seus discípulos, Jesus lembra-os como Davi e seus homens, quando necessitados de alimentos, haviam comido dos pães da proposição que estavam no tabernáculo. Ele os faz relembrar de como os sacerdotes são obrigados a trabalhar aos sábados, no templo, abatendo animais e oferecendo sacrifícios. Também os fez lembrar de que até mesmo uma ovelha deveria ser ajudada a sair de um buraco em um dia de sábado, em vez de se permitir que ali ficasse e morresse. Acima de tudo, porém, Jesus estabelece o grande princípio de que nenhuma ordenança de Deus deve ser pressionada sobre nós de modo que nos obrigue a negligenciar os claros deveres da caridade para com o próximo. “Misericórdia quero, e não holocaustos.” A primeira tábua da lei não deve ser interpretada de tal maneira que nos force a desobedecer à segunda. O quarto mandamento não deve ser explicado de maneira a nos tornar insensíveis e destituídos de misericórdia para com o próximo. Há uma profunda sabedoria em tudo isso. Lembremo-nos de que “jamais alguém falou como este homem” (Jo 7.46). Ao deixarmos esse assunto, cuidemos para que jamais sejamos tentados a menosprezar a santidade do sábado cristão. Tenhamos cuidado para não fazer das instruções de nosso gracioso Senhor uma desculpa para a profanação do dia de descanso. Não abusemos da liberdade que ele assinalou tão claramente para nós, fingindo que fazemos obras necessárias e de misericórdia no dia do Senhor, as quais, em verdade, fazemos para satisfazer nosso próprio egoísmo. Há um grande motivo para advertirmos as pessoas quanto a isso. Os erros dos fariseus, no tocante ao dia do Senhor, tendiam a um extremo. Os erros dos cristãos tendem ao outro extremo. Os fariseus fingiam querer aumentar a santidade do dia. Os cristãos, com grande frequência, dispõem-se a subtrair a santidade do dia, agindo de maneira irreverente, profana e ociosa. Que cada um de nós vigie a própria conduta quanto a essa questão. O cristianismo verdadeiro está intimamente ligado à observância autêntica do dia do Senhor. Que jamais nos esqueçamos de que nosso grande alvo deveria ser obediência ao mandamento que diz: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar”. As obras de necessidade e misericórdia podem ser feitas. Jesus disse: “É lícito fazer bem”. Porém, dedicar o dia do Senhor ao mero lazer, ao ócio ou ao mundo é contrário à lei de Deus. Tal atitude é contrária ao exemplo de Cristo, além de ser um pecado contra um mandamento claro de Deus. A iniquidade dos fariseus; descrição encorajadora do caráter de Cristo Leia Mateus 12.14-21
A primeira coisa que nos chama a atenção nessa passagem é a
desesperada iniquidade do coração humano. Silenciados e derrotados pelos argumentos de nosso Senhor, os fariseus foram afundando cada vez mais no pecado. Eles, retirando-se, “conspiravam contra ele, em como lhe tirariam a vida”. Que maldade havia praticado nosso Senhor para ser tratado daquela maneira? Nenhuma, de modo algum. Eles não podiam fazer acusação legítima contra ele. Jesus era santo, inocente, sem mácula e separado dos pecadores. Seus dias eram passados inteiramente na prática do bem. Nenhuma acusação podia ser levantada contra seus ensinamentos. Ele havia provado que sua doutrina concordava com as Escrituras e com a razão, e nenhuma resposta fora dada aos seus argumentos. Não obstante, pouco importava quão perfeitamente ele vivesse ou ensinasse. Ele era odiado. Assim é a natureza humana, manifestando-se em suas cores verdadeiras. O coração não convertido odeia Deus e mostrará esse ódio sempre que ousar ou tiver uma oportunidade favorável. Sempre perseguirá as testemunhas de Deus. Desagrada-lhe todos os que manifestam algo da mente de Deus ou que tenham sido renovados segundo sua imagem. Por que tantos profetas do Senhor foram mortos? Por que os nomes dos apóstolos foram rejeitados pelos judeus como malignos? Por que os primeiros mártires cristãos foram executados? Por que João Huss, Jerônimo de Praga, Ridley e Latimer foram queimados na fogueira? Não por causa de algum pecado que houvessem cometido; nem por causa de alguma iniquidade que tivessem praticado. Todos sofreram porque eram homens piedosos. A natureza humana não convertida odeia os homens de Deus porque odeia o próprio Deus. Os crentes verdadeiros nunca devem ficar surpresos, pois recebem o mesmo tratamento que Jesus recebeu. “Irmãos, não vos maravilheis se o mundo vos odeia” (1Jo 3.13). Nem a coerência mais perfeita ou o caminhar mais chegado a Deus isentam o crente da inimizade do homem natural. O crente não precisa torturar sua mente com a fantasia de que, se tivesse menos faltas e mais coerência, todos os homens certamente o amariam. Tal pensamento envolve um tremendo equívoco. Devemos lembrar-se de que nunca houve um homem perfeito na terra, senão um só, e que ele não foi amado, mas, sim, odiado. Não é das fraquezas do crente que o mundo desgosta, mas de sua bondade. Não são os remanescentes da antiga natureza humana que provocam a inimizade dos homens deste mundo, mas, antes, é a exibição da nova natureza. Lembremo-nos dessas verdades e sejamos pacientes. O mundo odiou Cristo e continuará odiando os crentes. A outra coisa que nos chama a atenção nessa passagem é a encorajadora descrição do caráter de nosso Senhor Jesus Cristo, que o apóstolo Mateus extraiu da profecia de Isaías. “Não esmagará a cana quebrada, nem apagará a torcida que fumega.” O que devemos entender com as expressões “cana quebrada” e “torcida que fumega”? Sem dúvida alguma, a linguagem do profeta é figurada. O que essas duas expressões significam? Aqui, a explicação mais simples parece ser que o Espírito Santo estava descrevendo pessoas cuja graça no momento é fraca, cujo arrependimento é débil e cuja fé é pequena. Em relação a essas pessoas, o Senhor Jesus Cristo se mostrará muito terno e compassivo. Embora a cana quebrada seja frágil, não será esmagada. Por menor que seja a torcida que fumega, não será apagada. Esta é verdade permanente no reino da graça divina: uma graça fraca, uma fé fraca e um arrependimento fraco são todos preciosos aos olhos de nosso Senhor. “Deus é mui grande, contudo a ninguém despreza” (Jó 36.5). A doutrina aqui salientada é plena de consolo e conforto. Para os milhares de crentes em todas as igrejas de Cristo, essa doutrina deveria representar grande paz e esperança. Em cada congregação, há alguns que ouvem o evangelho, mas estão à beira de desistir da própria salvação, porquanto suas forças lhes parecem poucas. Estão cheios de temor e desalento, porquanto seu conhecimento, fé, esperança e amor parecem bem pequenos e insignificantes. Que esses crentes sejam consolados por essa passagem bíblica! Que eles saibam que a fé, embora fraca, confere ao seu possuidor interesse real e verdadeiro em Cristo, tanto quanto a fé mais robusta, embora não forneça o mesmo gozo. Há vida biológica em um recém-nascido tanto quanto em um homem plenamente adulto. Há fogo em uma fagulha tanto quanto nas chamas mais ardentes. Mesmo o menor grau de graça divina é uma possessão que dura para sempre. A graça divina nos vem do céu e é preciosa aos olhos de nosso Senhor. Jamais será rejeitada. Acaso Satanás faz pouco-caso dos primeiros passos do arrependimento para com Deus e da fé em nosso Senhor Jesus Cristo? Não! Pelo contrário, ele é tomado de grande ira, porque percebe que seu tempo está se tornando cada vez mais curto. Acaso os anjos de Deus consideram com desdém os primeiros sinais de penitência para com Deus, em Cristo? Não, de maneira alguma! Há júbilo entre os anjos quando os pecadores se arrependem. Acaso o Senhor Jesus mostra desinteresse quando a fé é pequena, e o arrependimento, fraco? Não, é certo que não! No momento em que uma “cana quebrada” como Saulo de Tarso começa a clamar a Deus, eis que o Senhor lhe envia Ananias, porque “ele está orando” (At 9.11). Erramos gravemente quando não encorajamos os primeiros passos de uma alma em direção a Cristo. Que os ignorantes deste mundo escarneçam e zombem, se assim o quiserem fazer! Podemos estar certos de que as “canas quebradas” e as “torcidas que fumegam” são muito preciosas aos olhos de nosso Senhor. Que todos nós entesouremos essas verdades no coração, utilizando-as nos momentos de necessidade, tanto em nosso proveito como no de outras pessoas. Deveria ser um conceito bem firme em nossa religião cristã que uma fagulha é melhor do que a escuridão, e que uma pequena fé é melhor do que nenhuma fé. Há quem despreze “o dia dos humildes começos”? (Zc 4.10), mas esses humildes começos não são desprezados por Cristo; e também não deveriam ser desprezados pelos crentes. A blasfêmia dos adversários de Cristo; o pecado contra o conhecimento; as palavras vãs Leia Mateus 12.22-37
E ssa passagem das Escrituras contém “cousas difíceis de
entender” (2Pe 3.16). O pecado contra o Espírito Santo, em particular, nunca foi devidamente explicado, nem mesmo pelos teólogos mais eruditos. Não é difícil demonstrar, a partir das Escrituras, no que esse pecado não consiste. Difícil é demonstrar claramente o que é esse pecado. Contudo, não precisamos ficar surpresos. A Bíblia não seria o Livro de Deus se não contivesse trechos mais profundos, aqui e ali, que nenhum ser humano é capaz de perscrutar. Cumpre-nos agradecer a Deus pelas lições de sabedoria a serem extraídas, até mesmo de versículos como estes, acima; lições que até mesmo os iletrados podem compreender facilmente. Aprendamos, nesses versículos, antes de mais nada, que não existe coisa alguma por demais blasfema para os homens endurecidos e preconceituosos dizerem contra o cristianismo. Nosso Senhor expele um demônio e, imediatamente, os fariseus declaram que ele faz isso “pelo poder de Belzebu, maioral dos demônios”. A acusação foi simplesmente absurda. Nosso Senhor, pois, mostra ser uma falta de bom senso supor que o diabo ajudaria a derrubar seu próprio reino, dizendo: “Se Satanás expele a Satanás, dividido está contra si mesmo”. Todavia, para os incrédulos, não parece ser um exagero quando dizem as coisas mais absurdas e ilógicas contra a religião cristã. Os fariseus não foram os únicos que perderam de vista a lógica, o bom senso e o equilíbrio, quando se trata de atacar o evangelho de Cristo. Por mais estranha que pareça tal acusação, com frequência tem sido feita contra os servos do Senhor. Os inimigos dos crentes têm sido forçados a confessar que os servos de Deus estão realizando uma obra no mundo, e que está produzindo efeito. Os resultados do labor cristão deixam perplexos os incrédulos. Eles não podem negar esse fato. Assim, o que poderiam dizer? Dizem exatamente aquilo que os fariseus disseram a respeito de nosso Senhor: “Tem demônio”. Os mais antigos hereges disseram coisas desse tipo contra Atanásio. Os católicos romanos espalharam rumores dessa espécie a respeito de Martinho Lutero. E coisas assim continuarão sendo ditas, enquanto o mundo existir. Nunca deveríamos surpreender-nos quando acusações horrendas são feitas, sem causa, contra os melhores homens. “Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos?” Esse é um antigo estratagema. Quando os argumentos de um crente não podem ser retrucados, e suas boas obras não podem ser negadas, então o último recurso dos ímpios é tentar denegrir o caráter do crente. Se isso é o que está nos acontecendo, suportemos tudo com paciência. Se temos Cristo e uma boa consciência, podemos estar contentes. Falsas acusações não impedirão nossa entrada no céu. Nosso caráter será mostrado em suas verdadeiras luzes, no último dia. Em segundo lugar, reconhecemos por esses versículos que é impossível a neutralidade em religião. Jesus disse: “Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha”. Muitos, em toda a história da Igreja de Cristo, têm tido a necessidade de ser confrontados com essas palavras de nosso Senhor. Eles se esforçam para manter um meio-termo em sua religião. Não são tão maus quanto muitos pecadores; porém, também não são santos. Eles sentem a veracidade do evangelho de Cristo, quando este lhes é apresentado, mas têm receio de confessar o que sentem. Visto que têm tais sentimentos, bajulam a si mesmos, pensando que não são tão ruins quanto os outros. Não obstante, estão aquém do padrão de fé e conduta que Jesus estabeleceu. Decididamente, eles não estão posicionados do lado de Cristo, mas também não se declaram abertamente contra ele. Nosso Senhor adverte a todos esses que se encontram em uma posição extremamente perigosa. Em termos de religião, existem somente dois lados, somente dois partidos. Estamos do lado de Cristo, trabalhando em sua causa? Se assim não é, estamos contra ele. Estamos fazendo o bem neste mundo? Se não fazemos o bem, fazemos o mal. O princípio aqui lançado é de natureza tal que deveria interessar a todos nós. Estabeleçamos com firmeza em nossas mentes que jamais teremos paz e faremos o bem a outras pessoas a menos que sejamos francos e resolutos em nosso cristianismo. Até agora, o ensino de Gamaliel e de Erasmo jamais trouxe felicidade e serventia a quem quer que seja, nem jamais o fará. Em terceiro lugar, notemos a excessiva iniquidade dos pecados cometidos contra o conhecimento. Essa é uma conclusão prática, que parece fluir naturalmente das palavras de nosso Senhor acerca da blasfêmia contra o Espírito Santo. Por mais difíceis que nos pareçam essas palavras, parece justo pensarmos que provam a existência de níveis variados de pecaminosidade. As ofensas que derivam da ignorância a respeito da verdadeira missão do Filho do Homem não serão punidas com tanta severidade quanto as ofensas cometidas contra a luz maior que possuímos, nessa nossa dispensação do Espírito Santo. Quanto maior for a luz espiritual, maior será a culpa de quem a rejeita. Quanto mais claro for o conhecimento que um homem tiver da natureza do evangelho, maior será seu pecado, se ele se recusa a se arrepender e crer. A doutrina aqui ensinada também aparece em outras partes das Sagradas Escrituras. O escritor da epístola aos Hebreus disse: “É impossível, pois, que aqueles que uma vez foram iluminados [...] sim, é impossível outra vez renová-los para o arrependimento [...] porque, se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo [...]” (Hb 6.4-7 e 10.26-27). Essa é uma doutrina a respeito da qual encontramos provas lamentáveis por toda a parte. Os filhos não convertidos de pais crentes, os empregados não convertidos que trabalham para famílias piedosas, os membros não convertidos de congregações evangélicas são as pessoas mais difíceis de impressionar em toda a terra. Parece que já se tornaram insensíveis. A mesma chama que amolece a cera endurece o barro. Essa é uma doutrina que recebe uma terrível confirmação na história de pessoas que terminaram seus dias de maneira realmente desesperada. Faraó, Saul, Acabe, Judas Iscariotes, Juliano e Francisco Spira são ilustrações temíveis daquilo que nosso Senhor quis dizer. Em todos esses casos, houve uma combinação de claro conhecimento da verdade e deliberada rejeição de Cristo. Em cada um, havia iluminação na mente, ódio à verdade, no coração. O fim de cada uma dessas pessoas parece ter sido a escuridão das trevas para sempre. Que Deus nos dê o desejo de usar o conhecimento de que já dispomos, seja ele grande ou pequeno! Que tomemos o cuidado de não negligenciar as oportunidades para desenvolver o conhecimento que já temos! Temos luz? Então vivamos de acordo com essa luz. Conhecemos a verdade? Então andemos na verdade. Essa é a melhor salvaguarda contra o pecado imperdoável. Em último lugar, aproveitemos o ensino sobre a imensa importância do cuidado que devemos ter com as palavras que falamos diariamente. Nosso Senhor nos informa que, “de toda palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no dia de juízo”. E acrescenta: “Pelas tuas palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás condenado”. Poucas declarações de Cristo são capazes de sondar tão profundamente nossos corações quanto estas. Talvez nenhuma outra coisa exista a que os homens deem tão pouca atenção quanto suas próprias palavras. Eles passam suas atividades diárias falando e conversando sem pensar e sem refletir, e parecem imaginar que, se fizerem o que é direito, pouco importa o que dizem. Porém, é assim mesmo? Nossas palavras são tão completamente insignificantes e sem importância? Em vista de uma passagem bíblica como esta, não ousaríamos afirmar tal coisa. Nossas palavras evidenciam o estado de nosso coração, e isso é tão certo quanto o gosto da água evidencia o estado de seu manancial. “A boca fala do que está cheio o coração.” Os lábios só proferem aquilo que a mente concebe. Nossas palavras formarão um assunto para inquisição contra nós, no dia do julgamento final. Teremos de prestar contas tanto de nossas declarações como de nossos atos. De fato, essas são considerações muito solenes. Se não existisse qualquer outro texto na Bíblia, este, por si só, deveria convencer-nos do fato de que todos somos culpados diante do Senhor e de que precisamos de uma justiça muito superior à nossa — a justiça de Cristo (Fp 3.9). Que nos mostremos humildes, enquanto lemos essa passagem, ao relembrarmos os tempos passados! Quantas palavras ociosas, tolas, vãs, levianas, frívolas, pecaminosas e sem proveito todos nós temos dito! Quantas e quantas palavras temos usado, as quais, como ervas daninhas, têm-se espalhado por uma grande área, semeando mal duradouro no coração de outras pessoas! Conforme disse um homem de Deus no passado, quando nos encontramos com nossos amigos, com quanta frequência “nossas palavras servem somente para, mais tarde, nos arrependermos delas!”. Há uma profunda verdade no que Burkitt disse: “Uma zombaria profana, ou um escárnio ateu, podem grudar na mente daqueles que os ouvirem, muito depois que já morreu a língua que os proferiu. Uma palavra dita é fisicamente transitória, mas é moralmente permanente”. Salomão escreveu: “A morte e a vida estão no poder da língua” (Pv 18.21). Mostremo-nos vigilantes, no tocante aos nossos dias vindouros, depois de havermos lido esse trecho bíblico acerca de nossas palavras. Resolvamos, com a ajuda da graça divina, ser mais cautelosos e equilibrados quanto ao uso que fizermos da língua, sobre como haveremos de usar as palavras. Oremos diariamente para que nossa palavra “seja sempre agradável, temperada com sal” (Cl 4.6). A cada manhã, digamos juntamente com o santificado Davi: “Disse comigo mesmo: Guardarei os meus caminhos, para não pecar com a língua” (Sl 39.1). Clamemos, como Davi, ao forte por força: “Põe guarda, Senhor, à minha boca; vigia a porta dos meus lábios” (Sl 141.3). Foi com grande razão que Tiago escreveu: “Se alguém não tropeça no falar é perfeito varão” (Tg 3.2). O poder da incredulidade; reformas imperfeitas e incompletas; o amor de Cristo por seus discípulos Leia Mateus 12.38-50
O começo dessa passagem é um daqueles trechos que ilustram
admiravelmente a veracidade da história do Antigo Testamento. Nosso Senhor menciona a rainha do Sul como uma pessoa real, alguém que tinha vivido e morrido. Ele se refere à história de Jonas e à sua miraculosa preservação no ventre do grande peixe como fatos inegáveis. Não nos esqueçamos disso, pois há pessoas que dizem crer nos escritos do Novo Testamento, mas, ao mesmo tempo, zombam dos acontecimentos registrados no Antigo Testamento, como se fossem meras fábulas. Tais indivíduos esquecem-se de que, assim fazendo, lançam desdém sobre o próprio Cristo. Quanto à sua autoridade, o Antigo e o Novo Testamento permanecem de pé ou caem juntamente. O mesmo Espírito Santo que inspirou homens para escrever sobre Salomão e Jonas também inspirou os evangelistas a escreverem a história de Jesus Cristo. Essas não são questões sem importância nestes nossos dias. Que tais coisas fiquem bem gravadas em nossas mentes! A primeira lição prática que requer nossa atenção, nesses versículos, é o espantoso poder da incredulidade. Observemos como os escribas e fariseus solicitaram de nosso Senhor que lhes mostrasse um número maior de milagres: “Mestre, queremos ver de tua parte algum sinal”. Eles fingiam que só desejavam receber maiores e mais evidências convincentes, a fim de se deixarem persuadir e se tornar discípulos. Eles fecharam os olhos aos inúmeros milagres que Jesus já havia realizado. Não era suficiente para eles que Jesus tivesse curado os enfermos e purificado os leprosos, ressuscitado os mortos e expulsado os demônios. Eles ainda não estavam persuadidos. Ainda exigiam mais provas. Não queriam enxergar aquilo que nosso Senhor mostrou claramente em sua resposta, ou seja, que eles não tinham disposição real para crer. Já havia evidência suficiente para convencê-los, mas eles não queriam ser convencidos. Na Igreja de Cristo, há muitos que se encontram exatamente nas mesmas condições espirituais desses escribas e fariseus. Eles bajulam a si mesmos, dizendo que só precisam de um pouco mais de provas para se tornar cristãos decididos. Imaginam que, se sua razão e seu intelecto ao menos fossem alimentados por mais alguns argumentos, imediatamente desistiriam de tudo para seguir a causa de Cristo, tomando a cruz e seguindo-o. Mas, enquanto isso, ficam apenas esperando. Infeliz cegueira a deles! Não querem mesmo ver a grande quantidade de evidências ao seu redor. A verdade insofismável é que eles não querem deixar-se convencer. Que todos nos ponhamos em guarda contra essa atitude de incredulidade! Esse é um mal crescente nos dias que correm. A ausência de uma fé simples, como a de uma criança, é uma das características marcantes em nossos tempos, em todos os níveis da sociedade. A verdadeira explicação para muitas coisas estranhas, que nos espantam, na conduta de homens de influência nas igrejas e no governo das nações, é a evidente falta de fé. Homens que não acreditam naquilo que Deus diz na Bíblia têm, necessariamente, de assumir uma conduta vacilante e indecisa nas questões morais e religiosas: “Se não crerdes, certamente não permanecereis” (Is 7.9). A segunda lição prática que encontramos nesses versículos é o imenso perigo de uma reforma religiosa imperfeita e parcial. Notemos quão horrível quadro nosso Senhor pintou sobre o homem para quem retorna o espírito imundo, depois de já tê-lo deixado. Quão assustadoras são as palavras: “Voltarei para minha casa, donde saí”! Quão vívida a descrição: “E, tendo voltado, a encontra vazia, varrida e ornamentada”! Quão tremenda é a conclusão: “E leva consigo outros sete espíritos, piores do que ele [...] e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro”! É um quadro repleto de dolorosa significação. Que nós o examinemos cuidadosamente e, assim, aprendamos a ter sabedoria! É indiscutível que, nesse quadro, temos uma figura da História da Igreja e da nação judaica, no tempo da primeira vinda de Cristo à terra. Chamados como foram, no início, para sair do Egito e ser o povo todo peculiar de Deus, parece que os judeus jamais perderam inteiramente a tendência de adorar ídolos. Sendo posteriormente remidos do cativeiro da Babilônia, parece que nunca corresponderam à bondade de Deus. Despertados como haviam sido, pela pregação de João Batista, o arrependimento parece ter sido superficial. Nos dias em que o Senhor Jesus lhes falava, eles se haviam tornado, como nação, mais duros e perversos do que nunca. A vulgaridade da adoração aos ídolos cedera lugar a um mero formalismo morto. Sete outros espíritos, piores que o primeiro, tinham vindo apossar-se deles. Seu último estado foi rapidamente se tornando pior do que o primeiro. Loucamente, atiraram-se a uma guerra rebelde contra Roma. A Judeia transformou-se em uma autêntica Babel de confusão. Jerusalém foi tomada. O templo foi destruído. Os judeus foram dispersos por todo o mundo. Também é muito provável que esse seja um quadro da história da Igreja cristã, como um todo. Libertados como foram das trevas do paganismo mediante a pregação do evangelho, os crentes jamais chegaram a viver à altura da luz que receberam. Revivificadas como muitas foram, por ocasião da Reforma Protestante, nenhuma das igrejas de Cristo tem chegado a fazer uso correto de todos os seus privilégios, nem têm avançado “até a perfeição”. Todas ficaram mais ou menos aquém do padrão, acomodadas à própria escória. Todas se têm mostrado prontas a estar satisfeitas com reformas meramente externas. E agora há dolorosos sintomas, em quase todo lugar, de que o espírito maligno tem retornado à sua antiga casa, e está preparando uma insurreição de infidelidade e doutrinas falsas, como nunca se viu até hoje. Entre a incredulidade de certos segmentos da Igreja e a superstição formal em outros, tudo parece estar pronto para alguma terrível manifestação do anticristo. É de se temer sobremaneira que o último estado das professas igrejas cristãs venha a se mostrar muito pior do que o primeiro. O mais triste, e o pior de tudo, é que temos aqui, nesse quadro, a história de muitos homens e mulheres. Houve pessoas que, por certo tempo, pareciam estar sob a influência de fortes sentimentos religiosos. Elas mudaram de vida. Puseram de lado muitas coisas ruins. Adotaram muitas coisas boas. No entanto, pararam nesse ponto e não mais avançaram, e pouco a pouco foram perdendo completamente seu cristianismo. Assim, o espírito maligno voltou e encontrou a casa vazia, varrida e adornada, e agora essas pessoas são piores do que jamais foram. Parecem ter a consciência cauterizada. O sentimento religioso parece inteiramente destruído. Parecem ser homens entregues a uma mente corrompida. Poderíamos mesmo afirmar que, agora, “é impossível outra vez renová-los para arrependimento” (Hb 6.6). Ninguém se mostra tão desesperadamente ímpio quanto aqueles que, após terem experimentado fortes convicções religiosas, voltaram de novo ao pecado e ao mundo. Se amamos a vida, oremos para que essas lições fiquem profundamente gravadas em nossas mentes. Que jamais nos contentemos com uma reforma parcial da vida, sem uma inteira conversão a Deus e sem a mortificação do corpo inteiro do pecado! É algo excelente esforçarmo-nos para expulsar o pecado de nosso coração. Todavia, sejamos cuidadosos, para que, em lugar do pecado, demos acolhida à graça de Deus. Certifiquemo-nos de que não somente nos temos libertado do antigo inquilino, o diabo, como também de que já temos em nós o Espírito Santo. A última lição prática que vem ao nosso encontro, nesses versículos, é o terno afeto com que o Senhor Jesus considera seus verdadeiros discípulos. Observe como ele se refere a todos os que cumprem a vontade de Deus Pai, que está nos céus. Jesus diz: “Qualquer que fizer a vontade de meu Pai celeste, esse é meu irmão, irmã e mãe”. Quão graciosas são essas palavras! Quem pode conceber a profundeza do amor de nosso querido Senhor para com seus parentes segundo a carne? Era um amor puro e altruísta. Deve ter sido um amor poderoso, um amor que ultrapassa os limites da compreensão humana. Não obstante, aprendemos aqui que todos os crentes verdadeiros são considerados seus parentes. Ele os ama, sente profundamente acerca deles, cuida deles, como membros de sua família, ossos de seus ossos e carne de sua carne. Aqui, há uma advertência solene contra todos os que zombam e perseguem os verdadeiros cristãos por causa da religião deles. Tais pessoas não pensam no que estão fazendo. Estão perseguindo os parentes próximos do Rei dos reis. Descobrirão, no último dia, que escarneceram daqueles a quem o Juiz de toda a terra considera “meu irmão, irmã e mãe”. Nisso há um rico encorajamento para todos os crentes. Eles são muito mais preciosos aos olhos do Senhor do que aos seus próprios olhos. A fé pode ser débil, o arrependimento pode não ser muito profundo e a força pode ser pequena. Eles podem ser pobres e necessitados neste mundo. Entretanto, no último versículo deste capítulo, há um “qualquer” que deveria alegrá-los: “Qualquer” que crê é um parente próximo de Jesus Cristo. Nosso Irmão mais velho haverá de providenciar para o tempo e a eternidade, sem jamais rejeitar a quem crê. Não há nenhum membro da família dos remidos de quem o Senhor não se lembre. No Egito, José proveu ricamente para todos os seus parentes; Jesus proverá para os seus. A parábola do semeador Leia Mateus 13.1-23
E sse capítulo é marcante pelo número de parábolas que contém.
Sete notáveis ilustrações da verdade espiritual são aqui apresentadas pelo grande Cabeça da Igreja, com base na natureza. Ao assim fazer, Jesus nos mostra que o ensino religioso pode obter preciosos subsídios de tudo quanto existe na Criação. Aqueles que quiserem “achar palavras agradáveis” (Ec 12.10) não devem esquecer esse fato. A parábola do semeador, que inicia este capítulo, é uma daquelas que admitem uma aplicação bastante abrangente. Essa parábola está se cumprindo continuamente diante de nossos próprios olhos. Onde quer que a Palavra de Deus esteja sendo anunciada ou exposta, e as pessoas estejam reunidas para ouvi-la, as declarações de nosso Senhor nessa parábola provam-se verdadeiras. Elas descrevem o que acontece, via de regra, em todas as congregações em que a Palavra de Deus é pregada. Antes de qualquer outra coisa, aprendamos com essa parábola que o trabalho do pregador assemelha-se muito ao trabalho de um semeador. Tal como o semeador, o pregador precisa semear boa semente, se deseja ver frutos. Ele precisa semear a pura Palavra de Deus, e não as tradições da Igreja ou as doutrinas humanas. Sem isso, o esforço do pregador será em vão. Ele pode ir de um lado para outro, parecendo dizer muito e trabalhar muito em seus deveres ministeriais, a cada semana. Porém, não haverá colheita de almas para o céu, nenhum resultado vivo, nenhuma conversão. Assim como o semeador, o pregador precisa ser diligente. Não pode poupar esforços. Precisa lançar mão de todos os meios possíveis para fazer seu trabalho prosperar. Ele deve, com paciência, “semear junto a todas as águas” (Is 32.20) e semear na esperança de uma boa colheita. Deve pregar a Palavra “quer seja oportuno, quer não” (2Tm 4.2). Ele não pode deixar-se deter por dificuldades e desencorajamentos. “Quem somente observa o vento nunca semeará” (Ec 11.4). Não há dúvida de que o sucesso de um pregador não depende exclusivamente de seus esforços e de sua diligência; mas, sem labor e diligência, o sucesso dificilmente será alcançado. Tal como o semeador, o pregador também não pode transmitir vida. Ele pode espalhar a semente que lhe foi confiada; mas não pode ordenar que ela cresça. Ele pode oferecer a palavra da verdade a um povo, mas não pode fazer as pessoas receberem a palavra nem produzir fruto espiritual. Produzir vida é prerrogativa soberana de Deus: “O espírito é o que vivifica” (Jo 6.63). Somente Deus pode “dar o crescimento” (1 Co 3.7). Que essas coisas estejam abrigadas no fundo de nosso coração! Ser um verdadeiro ministro da Palavra de Deus não é algo de pouca importância. É fácil ser um obreiro formal e preguiçoso na Igreja. Mas ser um semeador fiel é muito difícil. Os pregadores devem ser especialmente lembrados em nossas orações. Em seguida, aprendamos que há várias maneiras de se ouvir a Palavra de Deus inutilmente. Podemos escutar um sermão com os corações endurecidos, como o chão “à beira do caminho”, sem preocupação, sem cuidado, sem refletir sobre o estado de nossa própria alma. Cristo crucificado pode ser afetuosamente exposto diante de nós, e podemos ouvir seus sofrimentos com total indiferença, como um assunto no qual não temos nenhum interesse. Com a mesma rapidez que as palavras chegam aos nossos ouvidos, o diabo pode arrancá-las de nós, e então regressamos aos nossos lares como se nem mesmo tivéssemos ouvido algum sermão. Infelizmente, existem muitos ouvintes desse tipo! Deles, é possível dizer, tal como foi dito acerca dos ídolos da antiguidade: “Têm olhos e não veem; têm ouvidos e não ouvem” (Sl 135.16-17). A verdade parece não exercer efeito no coração deles. Podemos ouvir um sermão com prazer, enquanto a impressão produzida em nós é apenas temporária e de pouca duração. Nosso coração, como o “solo rochoso”, pode produzir um mundo de sentimentos e boas resoluções. Porém, durante todo o tempo, pode não haver raízes profundas em nossa alma, de maneira que o primeiro vento frio de oposição ou tentação pode fazer secar nossa aparente religião. Infelizmente, existem muitos ouvintes dessa classe! A mera apreciação dos sermões não é sinal da presença da graça divina. Milhares de pessoas batizadas são como os judeus dos dias de Ezequiel: “Eis que tu és para eles como quem canta canções de amor, que tem voz suave e tange bem; porque ouvem as tuas palavras, mas não as põem por obra” (Ez 33.32). Podemos ouvir um sermão aprovando cada palavra, mas não tirar dele benefício real, em consequência da absorvente influência exercida pelo mundo sobre nós. Nosso coração, tal como o solo recoberto de espinhos, pode deixar-se afogar pelos cuidados, prazeres e propósitos mundanos. Podemos realmente apreciar o evangelho e desejar obedecer a ele, mas, insensivelmente, não dar oportunidade ao evangelho para produzir fruto, permitindo que outras coisas venham ocupar lugar em nossos afetos e, assim, sem o percebermos, tomar conta de nosso coração. Infelizmente, também existem muitos ouvintes dessa natureza! Eles conhecem bem a verdade. Esperam, um dia, ser cristãos decididos. Porém, jamais chegam ao ponto de desistir de tudo por amor a Cristo. Eles nunca tomam a decisão de “buscar em primeiro lugar o reino de Deus”; e, por isso mesmo, acabam morrendo em seus pecados. Esses são pontos que deveríamos pesar cuidadosamente. Nunca deveríamos esquecer de que existem várias maneiras de se ouvir a Palavra, sem proveito. Não basta vir à igreja para ouvir a pregação; podemos ouvir e estar desatentos. Não basta prestar atenção; as impressões podem ser apenas temporárias, tão superficiais que logo se dissipam. Também não basta que nossas impressões não sejam meramente passageiras. Elas poderão continuar sem produzir resultado, em consequência de nosso obstinado apego a este mundo. Verdadeiramente, “enganoso é o coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente corrupto, quem o conhecerá?”(Jr 17.9). Em último lugar, deixemo-nos ensinar, alicerçados nessa parábola, que só há uma evidência de que estamos ouvindo corretamente a Palavra de Deus. A evidência é produzir fruto. O fruto aqui referido é o fruto do Espírito. Arrependimento para com Deus, fé no Senhor Jesus Cristo, santidade de vida e de caráter, dedicação à oração, humildade, amor cristão, mente espiritual — essas são as únicas provas satisfatórias de que a semente da Palavra de Deus está realizando o trabalho que lhe é próprio em nossas almas. Sem essas provas, nossa religião é vã, por melhor que seja nossa profissão de fé, e não será melhor do que o bronze que soa ou o címbalo que retine. Cristo disse: “Eu vos designei para que vades e deis frutos, e o vosso fruto permaneça” (Jo 15.16). Não há outra porção nessa parábola que seja tão importante quanto esta. Jamais nos deveríamos contentar com uma ortodoxia infrutífera, ou com a simples e fria manutenção de corretos pontos de vista teológicos. Não podemos satisfazer-nos somente com um conhecimento claro, com sentimentos calorosos e uma decente profissão cristã. Devemos cuidar para que o evangelho que professamos amar esteja realmente produzindo “fruto” em nossos corações e em nossas vidas. Nisso é que consiste o verdadeiro cristianismo. As palavras do apóstolo Tiago deveriam soar frequentemente em nossos ouvidos: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22). Que não passemos sem fazer a nós mesmos uma importante indagação: “Como estamos ouvindo a Palavra de Deus?”. Vivemos em um país que se declara cristão. Vamos à igreja domingo após domingo, e ouvimos sermões. Com que atitude ouvimos? Que efeito a pregação está exercendo sobre nosso caráter? Podemos apontar para qualquer coisa que mereça o nome de “fruto”? Podemos estar seguros de que, para chegar ao céu, por fim, é preciso algo mais do que ir à igreja regularmente aos domingos e escutar os pregadores. A Palavra de Deus precisa ser acolhida em nosso coração e tornar-se a regra de nossa conduta. Ela deve produzir influência prática sobre nosso caráter, algo que se torne aparente em nosso comportamento exterior. Se não estiver sucedendo assim, a pregação da palavra servirá tão somente para aumentar ainda mais nossa condenação no dia do juízo. A parábola do trigo e do joio Leia Mateus 13.24-43
A parábola do trigo e do joio, que ocupa a parte principal desses
versículos, reveste-se de particular importância em nossos dias. Ela tem o propósito eminente de corrigir as expectativas muito altas que muitos cristãos têm quanto ao efeito das missões cristãs no estrangeiro e à pregação do evangelho em sua pátria. Que possamos dar, portanto, a essa parábola a atenção que merece! Em primeiro lugar, essa parábola nos ensina que o bem e o mal sempre serão achados juntos na igreja, até o fim do mundo. A igreja visível nos é apresentada como um corpo misto. Trata-se de um “campo” vasto no qual crescem, lado a lado, o trigo e o joio. Devemos estar preparados para encontrar crentes e incrédulos, convertidos e não convertidos, os “filhos do reino” e os “filhos do maligno”, todos misturados uns aos outros, em todas as congregações de pessoas batizadas. Nem mesmo a mais pura e fiel pregação do evangelho conseguirá impedir esse estado de coisas, o qual tem existido em todos os séculos da Igreja. Tal foi a experiência dos primeiros pais da Igreja; tal foi a experiência dos reformadores; e continua a ser a experiência dos melhores ministros do evangelho, até hoje. Nunca houve uma igreja local ou assembleia cristã cujos membros fossem todos “trigo”. O diabo, o grande inimigo de nossas almas, sempre teve o cuidado de semear o “joio”. A disciplina eclesiástica mais prudente e estrita não impedirá essa situação. Qualquer que seja a denominação, todas, igualmente, descobrem que é assim que se passa. Sem importar o que façamos para purificar uma igreja, jamais conseguiremos obter uma comunhão perfeitamente pura. O joio sempre será encontrado no meio do trigo. Hipócritas e enganadores se infiltrarão sorrateiramente. E o pior de tudo é que, se nos mostramos exageradamente zelosos em nosso esforço de obter a pureza, fazemos mais mal do que bem. Corremos o risco de encorajar muitos Judas Iscariotes e o risco de esmagar muitas “canas quebradas”. Em nosso afã de “arrancar o joio”, corremos o risco de arrancar “também com ele o trigo”. Tal zelo não está de acordo com o entendimento, e tem, com frequência, causado muito dano. Quem não se importa com o que acontece ao trigo, contanto que possa desarraigar o joio, demonstra possuir bem pouco da mente de Cristo. Afinal de contas, há uma profunda verdade na caridosa declaração de Agostinho: “Os que hoje são joio amanhã poderão ser trigo”. Sentimo-nos inclinados a esperar pela conversão do mundo inteiro por meio do trabalho dos missionários e ministros do evangelho? Que tenhamos essa parábola sempre diante de nós, e nos acautelemos dessa ideia! Dentro da presente ordem de coisas, jamais veremos transformados em trigo todos os habitantes da terra. O trigo e o joio continuarão a “crescer juntos até à colheita”. Os reinos deste mundo jamais se tornarão o reino de Cristo, nem o Milênio começará até que o próprio Rei retorne.Sentimo-nos perturbados pelo argumento zombeteiro dos incrédulos, de que o cristianismo não pode ser uma religião verdadeira, visto que existem tantos crentes falsos? Que tenhamos em mente essa parábola e permaneçamos inabaláveis! Digamos ao incrédulo que sua zombaria desse estado de coisas não nos surpreende, de maneira alguma. Nosso Senhor nos preparou para isso há quase dois mil anos. Ele previu e predisse que sua Igreja seria um campo contendo, não somente trigo, mas também joio. Sentimo-nos tentados a abandonar uma igreja evangélica por outra porque vemos que muitos de seus membros não são convertidos? Se for esse o caso, lembremo-nos dessa parábola e tenhamos muito cuidado com nossas atitudes. De modo algum encontraremos uma igreja perfeita. Poderíamos passar a vida inteira migrando de uma igreja para outra, sofrendo perene desapontamento. Não importa aonde formos, ou a igreja que frequentemos, sempre encontraremos o joio. Em segundo lugar, a parábola nos ensina que haverá o dia da separação entre os membros piedosos e os membros ímpios da igreja visível, no fim do mundo. O presente estado de coisas não continuará para sempre. O trigo e o joio serão separados ao final. O Senhor Jesus “enviará seus anjos”, no dia de seu segundo advento. Eles, então, recolherão os que se professam cristãos, formando dois grupos distintos. Esses poderosos ceifeiros celestiais não se enganarão no que estiverem fazendo. Haverão de discernir, com juízo infalível, entre o justo e o ímpio, colocando cada qual em seu próprio grupo. Os santos e fiéis servos de Cristo receberão glória, honra e vida eterna. Os mundanos, os ímpios, os descuidados e os não convertidos serão lançados dentro da “fornalha acesa”, onde receberão opróbrio e eterna tribulação. Há algo de peculiarmente solene nessa parte da parábola. O significado de tais palavras não admite equívoco. Nosso Senhor fala com palavras de singular clareza, como se quisesse nos impressionar profundamente com a seriedade da questão. Ele conclui a parábola com a seguinte expressão: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça”. Que o ímpio estremeça ao ler esta parábola! Que ele veja, por meio dessa linguagem assustadora, sua própria condenação certa, a menos que se arrependa e se converta. Compreenda que está semeando a desgraça eterna para si próprio se prosseguir em sua negligência quanto às coisas de Deus. Que ele reflita que seu destino final consistirá em ser recolhido entre os feixes de joio, a fim de ser queimado! Sem dúvida, uma perspectiva horrenda como essa deveria fazer qualquer pessoa meditar. Conforme disse Baxter: “Não devemos interpretar erroneamente a paciência de Deus para com os ímpios”. Que o crente em Cristo console-se com a leitura dessa parábola! Que entenda que há felicidade e segurança, preparadas para ele, no grande e temível dia do Senhor! A voz do arcanjo e a trombeta de Deus não haverão de aterrorizá-lo. Pelo contrário, serão uma convocação para a cena que, desde há muito, o crente deseja contemplar: uma igreja perfeita e uma perfeita comunhão dos santos. Quão lindo será o aspecto do corpo de Cristo, a Igreja, quando, afinal, tiver sido separada dos ímpios! Que bonito parecerá, então, o trigo, recolhido no “celeiro” de Deus, quando, finalmente, todo o joio tiver sido retirado do meio deles! Quão brilhantemente resplandecerá a graça divina quando não mais estiver sendo obscurecida pelo incessante contato com os mundanos e os não convertidos! Os justos são pouco conhecidos no dia de hoje. O mundo não vê neles qualquer beleza, como também não viu beleza alguma no Mestre e Senhor deles: “Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo” (1Jo 3.1). Porém, um dia, “os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu Pai”. Nas palavras de Matthew Henry: “A santificação deles será perfeita e a sua justificação se tornará pública”. E também lemos em Colossenses 3.4: “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então vós também sereis manifestados com ele, em glória”. As parábolas do tesouro, da pérola e da rede Leia Mateus 13.44-50
A s parábolas do “tesouro oculto no campo” e do homem que
“negocia e procura boas pérolas” parecem ter como alvo transmitir a mesma mensagem. Contudo, diferenciam-se quanto a uma notável particularidade. O “tesouro” foi encontrado ao acaso, por quem não procurava por ele. A “pérola” foi encontrada somente após uma busca muito diligente, por quem buscava boas pérolas. Entretanto, a conduta de ambos os descobridores foi exatamente a mesma. Ambos “venderam tudo” com o propósito de fazer de sua propriedade o objeto achado. É precisamente quanto a esse particular que a instrução, em ambas as parábolas, é a mesma. As duas parábolas visam ensinar que, se um homem está realmente convencido da importância da salvação, haverá de desistir de tudo o mais, para ganhar Cristo e a vida eterna. Qual foi a conduta daqueles dois homens que nosso Senhor descreve? O primeiro estava persuadido da existência de um tesouro “oculto no campo”, o qual haveria de recompensá-lo ricamente se ele comprasse o tal campo, sem se importar com quanto teria de pagar. O outro ficou persuadido de que a “pérola” que havia achado era tão imensamente valiosa que lhe conviria vender tudo o que tinha a fim de adquiri-la. Ambos estavam convencidos de haver encontrado algo de imenso valor. Ambos se dispuseram a fazer um grande sacrifício para que se tornassem possuidores daquelas riquezas. Talvez outras pessoas estranhassem essa atitude. Outros poderiam julgar aqueles dois homens uns tolos por haverem pago tão elevada soma em dinheiro pelo campo e a pérola. Porém, eles sabiam o que estavam comprando. E tinham a certeza de que estavam fazendo um excelente negócio. Você pode ver, nessa simples ilustração, a conduta de um verdadeiro cristão. Ele é o que é, e faz o que faz, em sua religião, por estar totalmente persuadido de que vale a pena. Ele abandona o mundo. Despe-se do velho homem. Esquece-se das vãs companhias de sua vida passada. Como Mateus, ele desiste de tudo e, como Paulo, ele a “tudo considera perda”, por causa de Cristo. E por quê? Porque está convencido de que Cristo vai recompensá-lo por tudo que ele estiver deixando para trás. Ele vê em Jesus Cristo um tesouro de valor inestimável. Cristo é a pérola preciosa. Ele fará qualquer coisa para ganhar Cristo. Nisso, consiste a verdadeira fé. Esse é o sinal da genuína operação do Espírito Santo. Observe, nessas duas parábolas, a verdadeira razão para a conduta de muitas pessoas não convertidas! Em se tratando de religião, elas são o que são porque não estão plenamente persuadidas de que vale a pena ser diferente. Evitam a decisão. Retraem-se de tomar sua cruz. Vacilam entre duas opiniões. Não desejam comprometer-se. Não vêm ousadamente para o lado de Cristo. Mas por quê? Por não estarem convencidas de que essa é a solução. Elas não estão seguras de que “o tesouro” está bem na sua frente. Não estão convencidas de que a “pérola” vale tanto assim. Ainda não conseguem tomar a resolução de “vender tudo” para que possam ter Cristo. E assim, com frequência, acabam perecendo eternamente! Quando alguém não se dispõe a abrir mão de tudo por causa de Cristo, temos de chegar à triste conclusão de que essa pessoa não recebeu a graça divina. A parábola da rede que é lançada ao mar tem alguns pontos em comum com a parábola do trigo e do joio. Sua finalidade é instruirnos no tocante a uma questão importantíssima: a verdadeira natureza da igreja visível de Cristo. A pregação do evangelho era como uma grande rede lançada em meio ao mar deste mundo. A Igreja professa, que haveria de ser colhida pela rede, seria um corpo misto. A rede haveria de apanhar peixes de todo tipo, bons e ruins. No seio da Igreja, haveria cristãos de diversas categorias, convertidos e não convertidos, tanto falsos como autênticos. A separação entre os bons e os maus viria com certeza, mas não antes do fim do mundo. Esse foi o relato que o grande Mestre deu a seus discípulos a respeito das igrejas que eles haveriam de fundar. É de suma importância que as lições contidas nessa parábola estejam profundamente gravadas em nossa mente. Dificilmente há outro assunto no cristianismo acerca do qual se cometam erros tão grandes quanto esse a respeito da natureza da igreja visível. Talvez não exista nenhum outro assunto em que os erros sejam tão perigosos para a alma. Aprendamos, com essa parábola, que todas as assembleias de cristãos professos devem ser consideradas corpos mistos. Todas contêm peixes bons e ruins, convertidos e não convertidos, filhos de Deus e filhos deste mundo, que devem ser descritos e tratados de forma distinta uns dos outros. Dizer a todas as pessoas batizadas que elas nasceram de novo, que possuem o Espírito de Deus, que são santas e membros do corpo de Cristo, na luz de uma parábola como esta, é algo inconcebível. Esse pode ser um modo lisonjeiro e bajulador de tratar com as pessoas, mas é difícil que venha a fazer o bem ou salvar uma alma. É uma maneira calculada de promover a justiça própria e ninar os pecadores dormentes. Tal tratamento subverte o pleno ensinamento de Cristo e é nocivo para as almas. Já tivemos a oportunidade de ouvir tal doutrina? Nesse caso, lembremo-nos da “rede”. Finalmente, que tenhamos como princípio nunca estar satisfeitos com uma ligação meramente externa com a igreja. Podemos estar dentro da rede, mas não pertencer a Jesus Cristo. Milhares de pessoas recebem a água do batismo sem que jamais sejam lavadas na água da vida. Muitos participam da comunhão do pão e do vinho à mesa do Senhor, mas nunca se alimentam de Cristo, pela fé. Somos convertidos? Somos “peixes bons”? Essa é a grande pergunta, a qual, finalmente, demanda uma resposta. Dentro em pouco, a rede será arrastada para a praia. Então, o caráter da religião de cada homem será finalmente exposto. Haverá eterna separação entre os peixes bons e os ruins. Haverá uma “fornalha de fogo” para os ímpios. Certamente, conforme asseverou Baxter: “Essas palavras tão claras precisam mais ser recebidas e cridas do que explicadas”. Cristo é desprezado em sua própria terra; o perigo da incredulidade Leia Mateus 13.51-58
A primeira coisa que deveríamos observar nesses versículos é a
penetrante pergunta com que nosso Senhor conclui as sete admiráveis parábolas desse capítulo. Ele pergunta: “Entendestes todas estas cousas?”. A aplicação pessoal tem sido chamada de “alma” da pregação. Um sermão sem aplicação é como uma carta enviada sem o endereço do destinatário. Ela pode ter sido muito bem escrita, corretamente datada e assinada. Porém, não tem valor algum, pois nunca chega ao seu destino. A pergunta de nosso Senhor é o exemplo admirável de uma aplicação que realmente perscruta o coração dos ouvintes: “Entendestes?”. A mera formalidade do ato de ouvir um sermão de nada aproveita ao homem, a menos que ele entenda seu significado. Em nada seria melhor do que ouvir o sopro de uma trombeta ou o ritmo de um tambor. Poderia, com igual proveito, participar de uma missa católica em latim! É preciso que o intelecto da pessoa seja posto para funcionar, e seu coração, tocado. As ideias precisam ser absorvidas pela mente. O ouvinte deve levar consigo as sementes de novos pensamentos. Sem isso, ele ouvirá em vão.É muito importante deixar bem claro esse ponto. Existe muita ignorância sobre toda essa questão. Há milhares de pessoas que frequentam regularmente a igreja, pensando que, com isso, já cumpriram seus deveres religiosos sem nunca sair com uma ideia ou uma impressão gravada em suas mentes e em seus corações. Se lhes perguntássemos, após terem voltado para casa, no domingo, o que aprenderam na igreja, não poderiam dizer nenhuma palavra a esse respeito. E, se as examinássemos, no final de um ano, quanto ao conhecimento religioso adquirido no decurso desse prazo, descobriríamos que continuam tão ignorantes quanto os pagãos. Vigiemos nossas almas quanto a essa questão. Levemos conosco, para as reuniões nas igrejas, não somente nossos corpos, mas também nossas mentes, nossos corações e nossas consciências. E sempre perguntemos a nós mesmos: “O que foi que aproveitei desse sermão? O que aprendi de novo? Quais verdades ficaram gravadas em minha mente?”. Sem dúvida, o intelecto não é tudo em matéria de religião. Mas isso não significa que não tenha importância. O coração é, inquestionavelmente, o ponto principal. Todavia, nunca nos deveríamos esquecer do fato de que o Espírito Santo geralmente chega ao coração através da mente. Ouvintes sonolentos, preguiçosos e desatentos dificilmente se convertem. A segunda coisa que deveríamos notar nesses versículos é o estranho tratamento que nosso Senhor recebeu em sua própria terra. Ao chegar à cidade de Nazaré, onde fora criado, “ensinava-os na sinagoga”. Seus ensinamentos, não há dúvida, continuaram a ser o que sempre foram: “Jamais alguém falou como este homem” (Jo 7.46). Porém, não teve efeito sobre os habitantes de Nazaré. Eles se “maravilhavam”, mas os corações permaneciam intocados. Diziam: “Não é este o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria?”. Assim, pois, desprezaram a Jesus por estarem tão bem familiarizados com ele. “Escandalizavam-se nele”, e essa atitude arrancou de nosso Senhor esta notável observação: “Não há profeta sem honra senão na sua terra e na sua casa”. Vamos ver, nesse relato, uma triste visão da natureza humana aberta diante de nossos olhos. Todos nos inclinamos a desprezar as misericórdias das quais somos alvo, se estamos acostumados com elas e as consideramos sem importância. A Bíblia e outros livros de cunho religioso vão se tornando cada vez mais comuns em nosso país; temos os meios da graça e a pregação do evangelho, que ouvimos a cada semana; tudo isso, porém, está sujeito a ser subestimado. É lamentavelmente verdadeiro que, no terreno religioso, mais do que em qualquer outro aspecto das atividades humanas, “a familiaridade gera desrespeito”, como diz o ditado. Os homens esquecem-se de que a verdade é verdade, não importa quão antiga e comum possa parecer, e a desprezam por causa de sua antiguidade. Que pena! Assim fazendo, provocam a Deus, para que não nos mostre a verdade. Acaso nos admiramos com o fato de que os parentes, servos e vizinhos de pessoas piedosas nem sempre se convertem? Ficamos perplexos porque as congregações de eminentes pregadores do evangelho geralmente são seus ouvintes mais duros e impenitentes? Não nos admiremos mais de coisas assim. Observemos a experiência de nosso Senhor em Nazaré e tornemo- nos mais sábios. Acaso nos iludimos, pensando que, se apenas tivéssemos visto e ouvido Jesus Cristo pessoalmente, teríamos sido seus fiéis discípulos? Pensamos que, se tivéssemos vivido perto dele e sido testemunhas oculares de seu ministério, não teríamos ficado indecisos, oscilantes e indiferentes para com a religião? Não pensemos mais dessa maneira. Observemos os habitantes de Nazaré e tornemo-nos sábios. A última coisa que deveríamos notar nesses versículos é a natureza destrutiva da incredulidade. Esse capítulo termina com estas espantosas palavras: “E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles”. Observe que, nessa palavra — incredulidade —, está o segredo da ruína eterna de multidões de almas! Perecem para todo o sempre porque não querem crer. Nada mais existe, no céu ou na terra, que impeça sua salvação. Os pecados, não importa quantos sejam, podem todos ser perdoados. O amor do Pai está pronto para receber essas pessoas. O sangue de Cristo está pronto para purificá-las. O poder do Espírito está sempre à disposição para renová-las. Porém, uma grande barreira se interpõe — eles não querem crer: “Não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40). Que todos nós estejamos em guarda contra esse maldito pecado! Ele é a antiga raiz do pecado, que provocou a Queda do homem. Embora cortado da vida de todo verdadeiro filho de Deus, pelo poder do Espírito, ele está sempre pronto a brotar e voltar a florescer. Existem três grandes inimigos contra os quais os filhos de Deus deveriam lutar diariamente em oração: orgulho, mundanismo e incredulidade. Mas, desses três, nenhum é pior do que a incredulidade. O martírio de João Batista Leia Mateus 14.1-12
N essa passagem, encontramos uma página extraída do livro dos
mártires de Deus: a história da morte de João Batista. A iniquidade do rei Herodes, a corajosa repreensão que João lhe deu, o consequente encarceramento do fiel reprovador e as lamentáveis circunstâncias em que o santo de Deus foi executado — tudo ficou registrado para nosso aprendizado. “Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos” (Sl 116.15). A narrativa da execução de João Batista foi contada em maiores detalhes por Marcos do que por Mateus. Para o momento, parece suficiente extrair duas lições gerais da narrativa de Mateus, e fixar nossa atenção exclusivamente nisso. Em primeiro lugar, aprendamos, nesses versículos, o grande poder da consciência. O rei Herodes ouviu da “fama de Jesus” e, então, disse aos que o serviam: “Este é João Batista; ele ressuscitou dos mortos e, por isso, nele operam forças miraculosas”. Herodes, pois, lembrou-se das maldades que havia cometido contra aquele homem santo, e seu coração angustiou-se profundamente. O coração do monarca dizia-lhe que ele havia repelido o santo conselho do profeta e cometido um homicídio pérfido e abominável. O coração lhe dizia que, embora já tivesse matado João Batista, o dia do acerto de contas ainda estava por vir. Ele e João Batista ainda voltariam a se encontrar. Com toda a razão, afirmou o bispo Hall: “Um homem ímpio não precisa de outro atormentador, sobretudo no caso de crimes de sangue, mais do que seu próprio coração”. Em todos os seres humanos, há uma consciência natural. Que isso jamais seja esquecido! Embora nasçamos neste mundo como criaturas decaídas, perdidas e desesperadamente iníquas, Deus cuidou para que houvesse sempre uma testemunha contra nós, em nosso próprio peito. Ela é um pobre guia cego, sem a ajuda do Espírito Santo. Não pode salvar ninguém. Não pode conduzir alguém a Cristo. Ela pode ser cauterizada e pisada aos pés. Porém, em todos os homens existe uma consciência que os acusa ou os justifica; e a Bíblia e a experiência humana são testemunhos disso (Rm 2.15). A consciência pode fazer até mesmo os reis sentirem-se miseráveis quando repelem obstinadamente seus avisos. A consciência pode encher os príncipes deste mundo de temor e pavor, conforme sucedeu a Félix quando Paulo estava pregando. É mais fácil encarcerar e decapitar o pregador do que abafar o sermão e a repreensão que clamam dentro do próprio coração. As testemunhas de Deus podem ser postas de lado, mas o testemunho prestado por elas com frequência sobrevive, e continua agindo ainda por muito tempo. Os profetas de Deus não vivem para sempre, mas suas palavras sobrevivem a eles (2Tm 2.9; Zc 1.5-6). Que os insensatos e os ímpios não se esqueçam disso, para que não transgridam suas próprias consciências! Saibam que “o pecado vos há de achar” (Nm 32.23). Podem rir, zombar, escarnecer da religião por algum tempo. Podem até dizer: “Quem tem medo? Onde está a grande iniquidade de nossas ações?”. Não perdem por esperar! Estão semeando a miséria para si mesmos e, cedo ou tarde, terão uma colheita amarga. Sua própria maldade haverá de alcançá-los um dia. Assim como Herodes, descobrirão que é muito mau e amargo pecar contra Deus (Jr 2.19). Que os ministros e mestres se lembrem de que há nos homens uma consciência e, assim, trabalhem com mais ousadia ainda. A instrução dada nem sempre é perdida, simplesmente porque parece não produzir fruto imediatamente. O ensinamento nunca é perdido, embora às vezes, aparentemente, tenha sido em vão, parecendo- nos que ninguém deu ouvidos e o ensinamento foi logo esquecido. Existe uma consciência naquelas pessoas que ouvem nossos sermões. Existe uma consciência nas crianças que frequentam nossas escolas. Muitos sermões e ensinos ainda serão lembrados mesmo depois da morte de quem os predicou, como na história de João Batista. Milhares de pessoas sabem que estamos com a razão, mas, tal como Herodes, não ousam admitir isso. Em segundo lugar, aprendamos que os filhos de Deus não devem esperar que sua recompensa seja dada neste mundo. Se já houve um caso de piedade autêntica que não foi galardoada neste mundo, isso se deu com João Batista. Pense por um momento no homem que ele foi durante sua breve carreira e, então, lembre-se do trágico fim que lhe sobreveio. Ele era profeta do Altíssimo e maior do que qualquer um dentre os nascidos de mulher; no entanto, foi aprisionado como um malfeitor! A vida dele foi cortada por uma morte violenta, antes dos trinta e quatro anos: a luz que brilhava foi apagada, e o pregador fiel foi assassinado por estar cumprindo seu dever — e tudo isso para satisfazer o ódio de uma mulher adúltera, e por ordem de um tirano caprichoso! Se já houve no mundo um acontecimento que desse motivo para o ignorante dizer “De que aproveita servir a Deus?”, foi esse. Mas são coisas assim que nos mostram que, um dia, haverá um julgamento. O Deus dos espíritos de toda carne haverá de instaurar um tribunal, finalmente, e retribuirá a cada um de acordo com suas obras. O sangue de João Batista e do apóstolo Tiago, o sangue de Estêvão, de Policarpo, de João Huss, de Ridley e de Latimer serão ainda requeridos de seus algozes. Está tudo devidamente registrado no livro de Deus. “A terra descobrirá o sangue que embebeu e já não encobrirá aqueles que foram mortos” (Is 26.21). O mundo ainda saberá que existe um Deus que é o Juiz de toda a terra. Que todos os verdadeiros cristãos se lembrem de que o melhor ainda está por vir! Não consideremos coisa estranha se a parte que nos cabe, no presente, forem os sofrimentos. Esse é um período de provação. Ainda estamos na escola preparatória. Estamos aprendendo paciência, longanimidade, gentileza e mansidão; coisas que dificilmente poderíamos aprender se já tivéssemos recebido a melhor parte. Mas existe um descanso eterno que ainda está para começar. Esperemos tranquilos até que ele chegue. Ele dará a compensação de tudo. “Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação” (2Co 4.17). O milagre dos pães e peixes Leia Mateus 14.13-21
E sses nove versículos contêm um dos maiores milagres de
nosso Senhor Jesus Cristo: a multiplicação de cinco pães e dois peixes para “cinco mil homens, além de mulheres e crianças”. De todos os milagres realizados por nosso Senhor, nenhum outro é tão repetidamente mencionado no Novo Testamento. Mateus, Marcos, Lucas e João referem-se todos a esse prodígio. É evidente que esse acontecimento tem por intuito receber nossa mais especial atenção. Observemo-lo, pois, com atenção e vejamos o que podemos aprender. Em primeiro lugar, esse milagre é uma prova incontestável do poder divino de nosso Senhor. Saciar a fome de mais de cinco mil pessoas, contando apenas com cinco pães e dois peixes, é algo manifestamente impossível sem uma multiplicação sobrenatural. Era algo que nenhum mágico, impostor ou falso profeta jamais teriam intentado fazer. Um impostor poderia simular a cura de um doente ou a ressuscitação de um morto, e, com truques e enganos, talvez conseguisse iludir as pessoas mais simples. Mas nenhum impostor tentaria realizar uma obra tão grandiosa quanto esta que está aqui registrada. Saberia perfeitamente bem que não poderia persuadir dez mil pessoas de que estavam satisfeitas, quando, na realidade, continuavam famintas. Ele seria desmascarado no mesmo instante. Não obstante, essa foi a poderosa obra que nosso Senhor realmente concretizou, por meio da qual deu provas conclusivas de que era Deus. Ele fez existir, do nada, pães e peixes já preparados; comida verdadeira, que era possível podia ver e tocar, em quantidade suficiente para satisfazer dez mil pessoas, a partir de uma porção que mal seria suficiente para cinco pessoas. Sem dúvida, estaríamos cegos se não percebêssemos nesse acontecimento a mão daquele que “dá alimento a toda carne” e que fez o mundo e tudo que nele existe. O poder de criar é prerrogativa exclusiva de Deus. Precisamos apegar-nos firmemente a passagens como essa. Temos a obrigação de entesourar na mente cada evidência do poder divino de nosso Senhor. O homem não convertido, frio e ortodoxo talvez veja bem pouco nesse relato. Mas o verdadeiro crente deveria guardá-lo em sua memória. Que o crente medite sobre este mundo, o diabo e seu próprio coração, e aprenda a agradecer a Deus pelo fato de o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, ser Todo- Poderoso. Em segundo lugar, esse milagre é um exemplo notável da compaixão de nosso Senhor para com os homens. Ele viu uma multidão em um lugar deserto, quase a desmaiar de fome. Ele sabia que muitos deles não tinham verdadeira fé nem amor para com ele. Seguiam-no meramente por curiosidade ou por costume, ou, então, por algum outro motivo igualmente inferior (Jo 6.26). Mas nosso Senhor teve compaixão de toda aquela gente. Todos foram saciados. Todos participaram do alimento miraculosamente providenciado. Todos “comeram e se fartaram”, e ninguém foi embora faminto. Notemos o bondoso coração de nosso Senhor Jesus Cristo, volvendo-se para os pecadores. Desde os dias da antiguidade, ele continua sempre o mesmo: “Senhor, Senhor Deus compassivo, clemente e longânimo, e grande em misericórdia e fidelidade” (Êx 34.6). Ele não trata com os homens de acordo com os pecados deles, nem lhes retribui na medida das iniquidades de cada um. Mesmo aos seus próprios inimigos, ele cumula de benefícios. Por isso, ninguém será tão indesculpável no dia do juízo quanto aqueles que forem achados impenitentes. A bondade do Senhor conduz ao arrependimento (Rm 2.4). Em todo o seu relacionamento com os homens no mundo, Jesus mostrou “ter prazer na misericórdia” (Mq 7.18). Que nos esforcemos por ser semelhantes a ele! Quesnel escreveu: “Deveríamos ter abundância de piedade e compaixão para com as almas enfermas”. Por último, esse milagre é uma vívida ilustração da suficiência do evangelho para satisfazer as necessidades da alma de toda a humanidade. Todos os milagres de nosso Senhor, sem dúvida, têm algum significado figurativo profundo e ensinam grandes verdades espirituais. No entanto, devemos tratá-los com reverência e discrição. É preciso tomar cuidado para não fazer como muitos dos antigos mestres, que viam alegorias até mesmo onde não fora esse o intuito do Espírito Santo. Contudo, se existe um milagre que, além de seu sentido literal, também tem um sentido figurado bem manifesto, é justamente desse milagre que estamos tratando: o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. O que a multidão faminta em um lugar deserto representa para nós? Simboliza a humanidade inteira. Os filhos dos homens formam uma gigantesca companhia de pecadores que estão perecendo, famintos, em meio a um mundo hostil, desamparados, caminhando sem esperança rumo à destruição. Todos nós nos desgarramos, como ovelhas perdidas (Is 53.6). Por natureza, estamos longe, muito longe de Deus. Nossos olhos não conseguem perceber toda a extensão do perigo que corremos. A realidade de cada ser humano é como diz a Bíblia: “Tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu” (Ap 3.17). Entre nós e a perdição eterna, só existe um passo. O que os pães e peixes representam? Pareciam inadequados para atender à necessidade daquele momento; mas, por meio de um milagre, tornaram-se suficientes para alimentar cerca de dez mil pessoas! Eles são como figuras da doutrina de Cristo crucificado em favor de pecadores, como Substituto vicário, que, pela sua morte, fez expiação pelos pecados. Para o homem natural, essa doutrina parece ser a debilidade em pessoa. Cristo crucificado era para os judeus uma pedra de tropeço, e para os gregos, loucura (1Co 1.23). No entanto, Cristo crucificado tem demonstrado ser o pão de Deus, que desceu do céu para dar vida ao mundo (Jo 6.33). A história da cruz tem satisfeito amplamente as necessidades espirituais do homem, em todo lugar em que tem sido pregada. Milhares de pessoas, de todas as classes sociais, idade ou nacionalidade são testemunhas de que o evangelho é o poder e a sabedoria de Deus ” (1Co 1.24). Todos têm provado do pão da vida e têm sido saciados. Eles têm descoberto que Jesus é “verdadeira comida” e “verdadeira bebida” (Jo 6.55). Meditemos demoradamente sobre essas verdades. Há grande profundidade em todos os atos de nosso Senhor Jesus Cristo que ficaram registrados, e que ninguém, até hoje, conseguiu sondar devidamente. Existem tesouros de rica instrução em todas as suas palavras e procedimentos que ninguém explorou por completo até agora. Muitas passagens dos evangelhos são como a nuvem que o servo de Elias viu (1Rs 18.44). Quanto mais as examinamos, maiores e mais importantes nos parecem. Nas Escrituras Sagradas, há uma plenitude inexaurível. Parece que outros escritos tornam-se triviais quando nos familiarizamos com eles. Mas, em relação à Bíblia, quanto mais a lemos, mais rica se torna para nós. Cristo anda sobre o mar Leia Mateus 14.22-36
O relato contido nesses versículos reveste-se de singular interesse.
O milagre aqui registrado demonstra o caráter de Jesus Cristo quanto ao seu povo. O poder e a misericórdia do Senhor Jesus, bem como a combinação de fé e incredulidade, que caracteriza até mesmo seus melhores discípulos, são maravilhosamente ilustrados. Em primeiro lugar, com esse milagre, aprendemos sobre o absoluto domínio que nosso Salvador tem sobre todas as coisas criadas. Vemos Jesus “andando por sobre o mar”, como se estivesse caminhando em terra seca. As ondas agitadas, que jogavam o barquinho dos discípulos de lá para cá, obedeceram ao Filho de Deus e tornaram-se sólidas debaixo de seus pés. Aquela superfície líquida, que se agitava ao menor sopro de vento, sustentava os pés de nosso Redentor como se fossem uma rocha. Para nossas pobres e débeis mentes, o acontecimento todo é incompreensível. A cena de dois pés caminhando sobre a superfície do mar, segundo nos informa Doddridge, era o símbolo de algo impossível para os egípcios. O cientista nos dirá que é uma impossibilidade física um corpo material de carne e osso andar sobre a água. Para nós, entretanto, basta-nos saber que assim sucedeu. Basta-nos lembrar que, para ele, que criou os mares no princípio, deve ter sido perfeitamente fácil caminhar sobre as ondas, quando ele assim o quis. Aqui, há um encorajamento para todos os verdadeiros cristãos. Que os crentes saibam que não existe nenhuma coisa criada que não esteja sujeita ao controle de Cristo! Todas as coisas servem juntamente ao Senhor. Ele pode permitir que seu povo seja submetido a teste por algum tempo, atirado de um lado para outro pelo temporal das tribulações. É possível que ele venha em socorro deles mais tarde do que gostariam, já “na quarta vigília da noite”. Entretanto, que os crentes jamais se esqueçam de que os ventos, as ondas e os temporais são todos servos de Cristo! Nada acontece sem a permissão de Cristo. “O Senhor nas alturas é mais poderoso do que o bramido das grandes águas, do que os poderosos vagalhões do mar” (Sl 93.4). Porventura, sentimo-nos alguma vez tentados a clamar, como fez Jonas: “A corrente das águas me cercou; todas as tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de mim” (Jn 2.3)? Lembremo-nos de que as ondas pertencem a ele. Esperemos com paciência. Talvez ainda possamos contemplar Jesus vindo em nossa direção e “andando por sobre o mar”. Em segundo lugar, aprendemos com esse milagre o poder que Jesus pode conferir aos que nele confiam. Vemos Simão Pedro saindo do barco e andando sobre as águas, à semelhança de seu Senhor. Que prova maravilhosa da divindade de nosso Senhor! Caminhar sobre as águas, ele mesmo, já fora um tremendo milagre. Mas capacitar um pobre e fraco discípulo a fazer o mesmo foi um milagre maior ainda. Existe um profundo significado nessa parte da narrativa. Ela nos mostra quão grandes coisas nosso Senhor pode fazer pelos que ouvem sua voz e o seguem. Ele pode capacitá-los a realizar coisas que antes pensariam ser impossíveis. Ele pode conduzi-los em meio às dificuldades e tribulações que, sem ele, jamais ousariam enfrentar. Ele pode outorgar-lhes forças para caminhar por meio do fogo e da água sem qualquer dano, triunfando em meio à adversidade. Moisés no Egito, Daniel na Babilônia, os santos da casa de Nero, todos são exemplos de seu imenso poder. Se estamos servindo a Cristo, não tenhamos temor de nada! As águas podem parecer profundas. Mas, se Jesus nos diz: “Vinde!”, não temos razão para temer. “Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e outras maiores fará” (Jo 14.12). Em terceiro lugar, aprendemos quantas tribulações os discípulos de Cristo atraem contra si mesmos por falta de fé. Por algum tempo, vemos Pedro andando corajosamente por sobre as águas. Todavia, ao prestar atenção “na força do vento”, deixa-se invadir pelo medo e começa a afundar. A fraqueza da carne prevalece sobre o desejo do espírito. Pedro esquece as maravilhosas provas que, havia pouco, presenciara da bondade e do poder de seu Senhor. Ele não considerou que o mesmo Salvador, que o capacitara a dar o primeiro passo, era poderoso para sustentá-lo para sempre. Não refletiu que agora estava mais perto de Cristo do que quando dera o primeiro passo. O medo ofuscou-lhe a memória. O temor confundiu-lhe o raciocínio. Ele não pensava em mais nada, senão no vento, nas ondas e em seu perigo imediato; e sua fé retrocedeu: “Salva-me, Senhor!”. Quão vívido é o quadro que encontramos aqui sobre a experiência de tantos crentes! Quantas pessoas têm fé suficiente para dar o primeiro passo em direção à Cristo, mas não têm fé suficiente para seguir em frente! Assustam-se diante das provações e dos perigos que parecem postar-se no caminho. Elas olham para os inimigos que as circundam, bem como para as dificuldades que parecem cercá-las na caminhada. Prestam mais atenção às circunstâncias do que a Jesus e, imediatamente, começam a afundar. Seu coração desmaia. Suas esperanças se dissipam. Seu ânimo desaparece. E por que tudo isso? Cristo ainda é o mesmo! Os inimigos dos cristãos não são maiores agora do que o foram no passado. Isso acontece porque, como Pedro, os crentes deixam de olhar para Jesus e, assim, dão lugar à incredulidade. Deixam-se dominar pelo pensamento acerca de seus adversários, em vez de pensar a respeito de Cristo. Que guardemos no coração esse ensinamento e, assim, aprendamos a sabedoria! Em último lugar, aprendamos quão misericordioso é o Senhor Jesus Cristo para com os crentes fracos. Nós o vemos prontamente a estender a mão para salvar Pedro, tão logo este lhe pediu socorro. Jesus não deixa que Pedro colha o fruto de sua própria incredulidade e afunde nas águas profundas. Parece que todo o empenho de Jesus é considerar as dificuldades de Pedro e salvá-lo imediatamente. A reprovação é moderada e gentil: “Homem de pequena fé, por que duvidaste?”. Observe, na conclusão desse milagre, as enormes mansidão e benignidade de Cristo. Ele pode muito tolerar e perdoar quando vê a verdadeira graça divina operando no coração de um homem. Assim como a mãe trata gentilmente seu filho, e não o rejeita por causa de seus pequenos caprichos e petulâncias, também o Senhor Jesus trata seu povo com ternura. Ele já amava e se compadecia de seu povo antes mesmo da conversão; e, depois da conversão, ele ama e se compadece ainda mais. Jesus reconhece as debilidades daqueles que lhe pertencem, demonstrando grande paciência para com eles. Ele quer que saibamos que a dúvida não prova que uma pessoa não tem fé, mas somente que essa fé é pequena. Mas, mesmo quando nossa fé é pequena, o Senhor está sempre pronto para nos ajudar. “Quando eu digo: Resvala-me o pé, a tua benignidade, Senhor, me sustém” (Sl 94.18). Em tudo isso, existem muitas razões que encorajam a servir a Cristo! Quem pode ter receio de iniciar a carreira cristã, tendo um Salvador como o Senhor Jesus? Se cairmos, ele nos reerguerá. Se errarmos, ele nos trará de volta ao reto caminho. A misericórdia de Jesus jamais se apartará completamente de nós. Ele tem dito: “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5). Ele cumprirá a sua palavra. Que tão somente nos lembremos de que, embora não desprezemos a pequena fé, não devemos cruzar os braços e estar contentes com ela! Nossa oração sempre deveria ser: “Senhor, aumenta-nos a fé” (Lc 17.5). A hipocrisia dos escribas e fariseus; o perigo das tradições Leia Mateus 15.1-9
N esses versículos, temos um diálogo entre nosso Senhor Jesus
Cristo e certos escribas e fariseus. À primeira vista, o assunto pode parecer de pouco interesse para os dias de hoje. Mas, muito pelo contrário, os princípios dos fariseus não morrem. Nessa conversa, existem verdades de profunda importância. Antes de tudo, aprendemos que os hipócritas geralmente dão grande importância a coisas meramente exteriores. A denúncia desses escribas e fariseus é uma ilustração notável desse pormenor. Eles trouxeram uma acusação contra os discípulos. Porém, qual era a natureza dessa acusação? Não era um problema de cobiça ou justiça própria, nem uma acusação de falsidade ou falta de caridade da parte dos discípulos. Tampouco era que eles tivessem desobedecido a qualquer princípio da lei de Deus. A acusação era: “Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem”. Os discípulos não estavam observando uma regra de alguma mera autoridade humana, que algum judeu antigo havia inventado! Nisso, consistia toda a gravidade da ofensa! Acaso vemos algo do espírito dos fariseus nos dias de hoje? Infelizmente, vemos demais essa atitude. Existem milhares de assim chamados “cristãos” que parecem não se importar com a religião de seu próximo, desde que possam concordar quanto às questões externas. O vizinho adota uma forma de culto igual à deles? Esse vizinho pode imitar seu falar e comentar um pouco acerca de suas doutrinas favoritas? Se pode, estão satisfeitos, mesmo que não haja evidência de ele ser convertido. Se não pode, estão sempre achando defeitos e não podem falar dele amistosamente, muito embora ele possa estar servindo a Cristo melhor do que eles mesmos. Tenhamos muito cuidado com essa atitude. Ela é a essência da hipocrisia. Que nosso princípio seja o seguinte: “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo”! (Rm 14.17). Em seguida, aprendemos, com base nesses versículos, que é grande o perigo para quem tenta acrescentar qualquer coisa à Palavra de Deus. Sempre que alguém decide fazer qualquer adição à Bíblia, provavelmente acabará valorizando mais suas próprias adições do que as Escrituras. Vemos esse ponto grandemente destacado na resposta de nosso Senhor à acusação dos fariseus contra os discípulos. Ele diz: “Por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição?”. Jesus combate ousadamente todo o sistema de se fazerem acréscimos à perfeita Palavra de Deus, como se algo mais fosse necessário para a salvação... Ele desmascara a tendência malévola desse sistema, citando um exemplo. Ele mostra como, na realidade, as vangloriosas tradições dos fariseus estavam destruindo a autoridade do quinto mandamento. Em suma, Jesus declara a grande verdade que jamais deveria ser esquecida, de que há uma tendência inerente em todas as tradições a invalidar a Palavra de Deus (v. 6). É possível que os autores dessas tradições não tivessem por escopo tal resultado. Talvez as suas intenções tivessem sido puras. Mas, evidentemente, a doutrina de Cristo é que, em todas as normas religiosas de autoridade meramente humana, existe a tendência de usurpar a autoridade da Palavra de Deus. Bucer fez uma observação solene: “Raramente se encontrará um homem que, prestando atenção excessiva às invenções humanas no campo da religião, não acabe depositando maior confiança nelas do que na graça de Deus”. Não temos visto provas lamentáveis dessa verdade no decurso da história da Igreja de Cristo? Infelizmente, já vimos provas em demasia. Conforme diz Baxter: “Os homens pensam que as leis de Deus são por demais numerosas e estritas; no entanto, ainda fazem outras leis, sendo meticulosos em cumpri-las”. Já não tivemos a oportunidade de ler como alguns têm exaltado cânones, dogmas e leis eclesiásticas muito acima da Palavra de Deus, punindo a desobediência a essas regras com maior severidade do que a pecados notórios como o alcoolismo e o jurar em vão? Já não ouvimos falar da extravagante importância com que a igreja de Roma considera os votos monásticos e de celibato, a observância de festas e jejuns? Parece que tais coisas recebem muito maior importância do que os deveres para com a família e o cumprimento dos dez mandamentos. Já não ouvimos falar de pessoas que se preocupam mais em não comer carne na Quaresma do que com a vida imoral ou o assassinato? Em nosso próprio país, acaso não observamos como tantos parecem fazer o denominacionalismo o assunto mais importante do cristianismo e consideram a assim chamada “membresia” na igreja matéria de muito maior peso do que o arrependimento, a fé, a santidade e as graças do Espírito Santo? Essas são perguntas que só podem receber uma única e triste resposta. O espírito dos fariseus ainda está vivo, mesmo depois de quase vinte séculos se terem passado. A disposição de invalidar a Palavra de Deus, por meio de tradições humanas, encontra-se não somente entre judeus, mas igualmente entre cristãos evangélicos. Na prática, a tendência de exaltar invenções humanas acima da Palavra de Deus continua prevalecendo de maneira temerária. Que possamos vigiar e estar precavidos contra essa tendência! Lembremo-nos de que nenhuma tradição ou instituição religiosa de feitura humana jamais poderá desculpar-nos pela negligência de determinados deveres, nem justificar a desobediência a qualquer mandamento explícito da Palavra de Deus. Alicerçados nesses versículos, podemos aprender, em último lugar, que a adoração religiosa que Deus deseja é a adoração no íntimo, que parte do coração. Podemos perceber isso pela citação que nosso Senhor faz do livro de Isaías: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Is 29.13). O coração é a questão central no relacionamento entre marido e mulher, entre amigo e amigo, entre pai e filho. O coração deve ser o ponto principal em todas as relações entre Deus e a alma. Qual é a primeira coisa de que precisamos para ser crentes? Um novo coração. Qual sacrifício Deus nos pede para nos trazer a ele? Um coração quebrantado e contrito. O que é a verdadeira circuncisão? A circuncisão do coração. O que é a obediência genuína? A obediência de coração. O que é a fé salvadora? Crer de todo o coração. Onde Cristo deveria habitar? Em nossos corações, pela fé. Qual é a principal petição que a Sabedoria faz a cada pessoa? “Dá- me, filho meu, o teu coração” (Pv 23.26). Ao concluirmos o estudo dessa passagem, façamos uma autoaveriguação honesta do estado de nosso próprio coração. Deixemos perfeitamente estabelecido, em nossa mente, que toda e qualquer adoração formal a Deus, seja em público, seja em particular, será totalmente inútil se o coração estiver longe de Deus. Os joelhos dobrados, a cabeça abaixada, os améns em voz alta, o capítulo lido diariamente, a frequência regular à Ceia do Senhor — tudo isso é em vão e sem proveito se nossos afetos estiverem presos ao pecado, aos prazeres, ao dinheiro ou ao mundo. A pergunta de nosso Senhor Jesus Cristo demanda uma resposta satisfatória, antes que possamos ser salvos. Ele indaga a cada um de nós: “Tu me amas?” (Jo 21.17). Os falsos mestres; o coração é a fonte do pecado Leia Mateus 15.10-20
E xistem duas declarações notáveis do Senhor Jesus nessa
passagem. Uma diz respeito às falsas doutrinas; a outra refere- se ao coração humano. Ambas merecem nossa mais plena atenção. No que concerne às falsas doutrinas, nosso Senhor declarou que é nosso dever nos opormos a elas, que a sua destruição final está assegurada e que seus mestres deveriam ser abandonados. Ele diz: “Toda planta que meu Pai celestial não plantou será arrancada. Deixai-os”. Examinando essa passagem, torna-se evidente que os discípulos ficaram surpresos com a linguagem forte usada por nosso Senhor contra os fariseus e suas tradições. Provavelmente os discípulos estavam acostumados, desde a meninice, a pensar nos fariseus como os mais sábios e mais excelentes dos homens. Portanto, ficaram atônitos ao ouvir o Mestre denunciá-los como hipócritas e transgressores dos mandamentos de Deus. “Sabes que os fariseus se escandalizaram?”, perguntaram os discípulos a Jesus. Em resposta a essa indagação, temos uma declaração explanatória de nosso Senhor; uma declaração que talvez nunca tenha recebido a atenção que merece. O sentido claro das palavras de Jesus foi que as falsas doutrinas, como as que eram ensinadas pelos fariseus, são como uma planta pela qual não se deve demonstrar nenhuma misericórdia. Elas são uma planta que o “Pai celestial não plantou”, e que deve ser arrancada, não importa a ofensa que isso venha a causar. Não seria caridade poupá-la, pois é prejudicial à alma humana. O fato de ter sido plantada por homens importantes ou instruídos de nada importava. Se tais ensinamentos contradizem a Palavra de Deus, deveriam sofrer oposição, ser refutados e rejeitados. Os discípulos de Cristo, portanto, precisam entender que é justo resistir a todo e qualquer ensinamento que não provenha das Escrituras, isolando e abandonando os instrutores que persistem no erro. Cedo ou tarde, haveriam de descobrir que toda doutrina falsa será totalmente desarraigada e lançada ao opróbrio; e não ficará de pé senão aquilo que tiver sido fundamentado na Palavra de Deus. Nessa afirmação de nosso Senhor, existem lições de profunda sabedoria, que servem para projetar luz sobre o dever dos que se professam cristãos. Examinemos de perto essas lições, para ver o que temos a aprender. Foi a obediência prática a essa declaração que produziu a bendita Reforma Protestante. Suas lições merecem cuidadosa atenção. Não enxergamos aqui o dever de resistir corajosamente a todo ensinamento falso? Sem dúvida, sim. Nenhum receio de escandalizar, nenhum temor de censura eclesiástica deveria fazer- nos manter a paz enquanto a verdade de Deus estiver sendo ameaçada. Se somos verdadeiros seguidores de nosso Senhor, deveríamos ser corajosos na denúncia, como testemunhas inflexíveis contra o erro. Alguém disse que “a verdade não deve ser suprimida por serem os homens ímpios e cegos”. Vemos, novamente, o dever de abandonar os falsos mestres, se não desistem de suas doutrinas distorcidas? Sem sombra de dúvida! Nenhuma falsa cortesia ou humildade hipócrita deveria impedir-nos de nos retirarmos para longe dos ensinamentos de qualquer pregador que contradiga a Palavra de Deus. Corremos perigo quando nos submetemos a ensinamentos não bíblicos. Nosso sangue será sobre nossas próprias cabeças. Nas palavras de Whitby: “Nunca será certo seguir um cego e cair com ele no barranco”. Em último lugar, não vemos o dever de exercer paciência quando da multiplicação dos ensinamentos falsos? Podemos consolar-nos diante do fato de que esses ensinos falsos não durarão muito. O próprio Deus defenderá a causa da verdade. Mais cedo ou mais tarde, toda e qualquer heresia será arrancada pela raiz. Não devemos lutar com armas carnais; pelo contrário, devemos esperar e pregar, protestar e orar. Mais cedo ou mais tarde, como disse Wycliffe, “a verdade haverá de prevalecer”. No que diz respeito ao coração do homem, nosso Senhor declara, nesses versos, que o coração é a verdadeira fonte de todo pecado e contaminação. Os fariseus ensinavam que a santidade dependia de comidas e bebidas, da lavagem do corpo e de purificações. Eles afirmavam que todos que obedeciam a essas tradições eram puros e limpos aos olhos de Deus, e que todos que as negligenciavam eram impuros e pecaminosos. Nosso Senhor derrubou por terra essa miserável doutrina ao mostrar que a verdadeira fonte de toda contaminação não estava fora, mas, sim, dentro do homem. “Do coração, procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São essas as cousas que contaminam o homem”. Quem quer servir a Deus corretamente precisa de algo muito mais importante do que a simples lavagem do corpo. É preciso buscar um coração puro. Que pavoroso quadro da natureza humana encontramos aqui, exposto por aquele que realmente sabe o que existe no homem! Que horrível catálogo daquilo que se oculta em nosso interior! Que lamentável lista de sementes do mal nosso Senhor desmascarou, sementes profundamente arraigadas em cada um de nós e sempre prontas a se manifestar vivas, a todo instante! O que os orgulhosos e os justos a seus próprios olhos podem dizer quando leem uma passagem como essa? Esse não é o retrato do coração de um ladrão ou assassino. É uma descrição fiel e verdadeira do coração de toda a humanidade. Que Deus nos permita refletir bem sobre essa lição e aprender a sabedoria! Que, para nós, seja uma resolução bem firmada que o estado de nosso coração será o ponto principal em toda a nossa religião. Que jamais nos contentemos em apenas frequentar uma igreja e cumprir com as formalidades externas! Que procuremos por algo muito mais profundo, com o desejo de possuir um coração “reto diante de Deus” (At 8.21)! Um coração reto é aquele que foi aspergido com o sangue de Cristo, renovado pelo Espírito Santo e purificado por meio da fé. Que não descansemos enquanto não encontrarmos dentro de nós o testemunho do Espírito, de que Deus tem criado em nós um coração limpo e de que todas as coisas se fizeram novas (Sl 51.10; 2Co 5.17)! Finalmente, que tomemos a inflexível resolução de guardar o coração com toda a diligência, por todos os dias de nossa vida (Pv 4.23)! Mesmo depois de ter sido renovado, nosso coração é fraco. Ele é enganoso, mesmo depois de nos revestirmos do novo homem. Nunca nos esqueçamos de que o perigo principal vem de dentro. O mundo e o diabo, juntos, não nos podem causar tanto dano quanto nosso próprio coração, se não vigiarmos e orarmos. Bem- aventurado é quem se lembra diariamente das palavras de Salomão: “O que confia no seu próprio coração é insensato” (Pv 28.26). A mãe cananeia Leia Mateus 15.21-28
O utro milagre de nosso Senhor está registrado nesses
versículos. As circunstâncias que o cercam são peculiarmente interessantes, e vamos examiná-las em ordem. Cada palavra, nessa narrativa, reveste-se de ricas instruções. Inicialmente, vemos que a verdadeira fé pode às vezes ser encontrada onde menos se espera. Uma mulher cananeia clama a nosso Senhor, pedindo ajuda em favor de sua filha: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim!”. Se essa mulher vivesse em Betânia ou Jerusalém, uma petição assim já teria demonstrado grande fé. Mas, quando descobrimos que ela vinha dos “lados de Tiro e Sidom”, uma oração assim bem pode encher-nos de surpresa. Isso nos deveria ensinar que é a graça de Deus, e não o local, que faz uma pessoa tornar-se crente. Podemos viver na família de um profeta, como sucedeu com Geazi, servo de Eliseu, e ainda continuar incrédulos e enamorados do mundo. Podemos residir em meio à superstição e à obscura idolatria, como a menina escrava na casa de Naamã, e ainda ser testemunhas fiéis de Deus e de seu Cristo. Não nos desesperemos em relação à alma de alguém somente porque se encontra em uma situação desfavorável. É possível viver na costa de Tiro e Sidom e, ainda assim, ter um lugar no reino de Deus. Em segundo lugar, vemos que a aflição às vezes demonstra ser uma bênção para a alma de uma pessoa. Sem dúvida, aquela mãe cananeia fora severamente provada. Ela via sua filha querida ser afligida por um demônio, sem poder ajudá-la. Mas essa tribulação serviu para conduzi-la a Jesus Cristo e ensiná-la a orar. Não fosse por essa aflição, ela poderia ter vivido e morrido em ignorância despreocupada, sem jamais ter visto Jesus. Certamente, foi bom para ela ter sido afligida (Sl 119.71). Sublinhemos cuidadosamente essa verdade. Nada existe que demonstre tanto nossa ignorância quanto nossa impaciência na tribulação. Esquecemo-nos de que cada cruz no caminho é uma mensagem de Deus, designada para que, no fim, sejamos beneficiados. As provações destinam-se a nos fazer meditar, a nos desligar deste mundo, a nos conduzir à Bíblia, a nos colocar de joelhos diante de Deus. A saúde é algo bom, mas a enfermidade é muito melhor quando nos aproxima de Deus. A prosperidade é uma grande misericórdia divina; mas a adversidade manifesta maior misericórdia, se nos leva até Cristo. Qualquer coisa é melhor do que viver despreocupadamente e morrer em pecado. Mil vezes melhor é sermos afligidos e fugirmos para Cristo, tal como aquela mãe cananeia, do que vivermos tranquilamente e, por fim, morrermos sem Cristo e sem esperança, como o “louco” homem rico (Lc 12.20). Em terceiro lugar, notamos que o povo de Cristo com frequência mostra-se menos misericordioso e compassivo do que Cristo. A mulher acerca de quem estamos lendo não foi bem recebida pelos discípulos. Talvez eles considerassem que uma habitante da costa de Tiro e Sidom fosse indigna de receber ajuda da parte do Mestre. Seja como for, o que disseram foi: “Despede-a”. Existe demais dessa atitude entre os que se professam crentes. Muitos tendem a desencorajar os que estão buscando Cristo, em vez de ajudá-los a prosseguir. Estão dispostos a duvidar da realidade da graça na vida de um principiante, por ser essa graça ainda pequena, e prontos a tratá-lo como Saulo de Tarso foi tratado, quando chegou a Jerusalém pela primeira vez, após a sua conversão, “não acreditando que ele fosse discípulo” (At 9.26). Cuidemos para nunca dar lugar a essa atitude. Procuremos ter mais daquele mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus (Fp 2.5). Assim como ele, que nós sejamos gentis, bondosos e encorajadores no modo de agir com aqueles que estão buscando a salvação! Mas, acima de tudo, digamos continuamente aos homens que eles não deveriam julgar Cristo com base nos cristãos. Deixemos bem claro que existe muito mais no gracioso Mestre do que nos melhores de seus servos. Pedro, Tiago e João podem dizer a alguma alma aflita: “Despede-a”, mas tal palavra jamais saiu dos lábios de Cristo. Ele pode, às vezes, deixar-nos esperando por um longo tempo, conforme fez com aquela mulher. Porém, jamais nos despedirá vazios. Por último, vemos quanto encorajamento existe para perseverarmos em oração, por nós mesmos e por outras pessoas. É difícil concebermos uma ilustração mais apropriada dessa verdade do que esta que se nos apresenta nessa passagem. A princípio, a oração dessa mãe aflita parecia inteiramente despercebida. Jesus “não lhe respondeu palavra”, mas ela continuou rogando. A declaração que finalmente saiu dos lábios de Jesus tinha um tom desencorajador: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”. Mesmo assim, ela insistiu na oração: “Senhor, socorre-me!”. A segunda declaração foi ainda menos encorajadora do que a primeira: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos”. E, embora tenha visto adiada sua esperança (Pv 13.12), ela não permitiu adoecer seu coração. Nem mesmo depois disso a mulher silenciou. Ainda assim, ela faz um apelo para que algumas migalhas de misericórdia lhe sejam concedidas. Sua importunação finalmente obtém uma recompensa graciosa: “Ó mulher, grande é a tua fé! Faça-se contigo como queres”. A promessa nunca falhou: “Buscai, e achareis” (Mt 7.7). Lembremo-nos dessa narrativa quando estivermos orando por nós mesmos. Algumas vezes somos tentados a pensar que não obtemos qualquer proveito de nossas orações, e que seria melhor desistir totalmente. Resistamos à tentação; ela vem do diabo. Que confiemos e continuemos orando! Contra nossos pecados repetitivos, contra o espírito mundano e contra as ciladas do diabo, devemos continuar orando, sem desanimar. Prossigamos em oração, pedindo forças para cumprir nossos deveres, graça para enfrentar as provações e consolo em cada situação difícil. Estejamos bem certos de que nenhum outro tempo é mais bem empregado diariamente do que aquele que passamos em oração. Jesus nos ouve e, no tempo determinado por ele, haverá de nos dar a resposta. Recordemos esse relato quando estivermos intercedendo por outras pessoas. Temos filhos que desejamos ver convertidos? Temos parentes e amigos que desejamos ver salvos? Sigamos, então, o exemplo dessa mulher cananeia e apresentemos essas pessoas diante dele noite e dia, e não descansemos enquanto não obtivermos uma resposta. Pode ser que tenhamos de esperar por longos anos. Pode parecer que estamos orando em vão e intercedendo sem qualquer proveito. Todavia, jamais devemos desistir. Confiemos que Jesus não muda. Ele, que atendeu àquela mãe cananeia e lhe concedeu o que pedia, também nos ouvirá e, um dia, nos dará uma resposta satisfatória e de paz. Curas miraculosas feitas por Cristo Leia Mateus 15.29-39
O início dessa passagem contém três pontos que merecem nossa
atenção especial. No momento, portanto, concentraremos a atenção nesses pontos. Em primeiro lugar, observemos como as pessoas fazem maiores esforços para curar doenças físicas do que para obter a cura de suas almas. Lemos que as multidões vinham a Jesus “trazendo consigo coxos, aleijados, cegos, mudos...”. Muitos, sem dúvida, tinham viajado muitos quilômetros e sofrido grande fadiga. Poucas coisas são tão difíceis e trabalhosas quanto movimentar pessoas enfermas. Porém, a esperança da cura estava em vista e, para um homem doente, essa esperança é tudo. Se nos admiramos com a conduta daquela gente, conhecemos bem pouco da natureza humana. Não há razão alguma para admiração. Aquelas pessoas sentiam que a saúde é a maior de todas as bênçãos terrenas. Elas sentiam uma dor que, para elas, era a mais difícil de todas as provações a suportar. Contra os sentimentos, não há argumento. Uma pessoa sente suas forças se esvaírem. Ela vê seu corpo ir emagrecendo e seu rosto empalidecer. Percebe que seu apetite está se acabando. Resumindo, ela sabe que está doente e que precisa de um médico. Mostre-lhe um médico que possa consultar e que tenha a fama de jamais ter falhado, e tal pessoa irá a ele sem demora. Entretanto, não nos esqueçamos de que nossas almas estão muito mais enfermas do que nossos corpos, e aprendamos uma lição com base na conduta dessas pessoas. Nossas almas são afligidas por uma enfermidade com raízes muito mais fundas, muito mais complicadas, muito mais difíceis do que qualquer mal herdado pela carne. Na verdade, nossas almas foram atacadas pela praga do pecado. É preciso obter a cura, e uma cura eficaz e definitiva; do contrário, pereceremos para sempre. Reconhecemos a veracidade desse fato? Sentimos essa realidade? Estamos conscientes de nossa enfermidade espiritual? Infelizmente, só há uma resposta possível a essas perguntas! A maior parte da humanidade não sente isso, de maneira nenhuma. Seus olhos estão cegos. Mostram-se totalmente insensíveis diante do grave perigo. Para obter a saúde física, os homens lotam a sala de espera dos médicos. Em prol da saúde, eles empreendem longas viagens para encontrar ar mais puro. Mas, quanto à saúde da alma, eles nem se preocupam com isso. Verdadeiramente feliz é o homem ou a mulher que já descobriu a enfermidade de sua alma! Essa pessoa não descansará enquanto não tiver encontrado o Senhor Jesus. As dificuldades lhe parecerão insignificantes, pois a vida, a própria vida eterna, está em jogo. Considerará todas as coisas uma perda, contanto que possa ganhar Cristo e ser curada. Em segundo lugar, notemos a maravilhosa facilidade e o poder com que nosso Senhor curava todos os que lhe eram trazidos. Lemos que “o povo se maravilhou ao ver que os mudos falavam, os aleijados recobravam a saúde, os coxos andavam e os cegos viam. Então, glorificavam o Deus de Israel”. Observe, nessas palavras, um símbolo vivo do poder de nosso Senhor Jesus Cristo para curar as almas enfermas pelo pecado! Não existe mal do coração que Cristo não possa curar. Não existe problema espiritual que ele não possa vencer. A febre da concupiscência, a paralisia do amor a este mundo, o vagaroso câncer da indolência, a preguiça e a incredulidade, que é a doença do coração — todas abrem caminho quando ele envia seu Santo Espírito sobre uma pessoa, qualquer pessoa. Ele pode pôr nos lábios do pecador um novo cântico e levá-lo a falar com amor daquele mesmo evangelho que antes ele ridicularizava e contra o qual blasfemava. Ele pode abrir os olhos do entendimento de um homem, para ver o reino de Deus. Cristo pode abrir os ouvidos de um homem para torná-lo desejoso de ouvir a voz de Cristo e segui- lo aonde quer que ele vá. Ele pode outorgar poder espiritual ao homem, que antes prosseguia pelo caminho largo que conduz à perdição, para andar no caminho da vida. Ele pode fazer com que as mãos que antes foram instrumentos do pecado agora sirvam a ele e façam a sua vontade. O tempo dos milagres ainda continua. Cada conversão é um milagre. Já testemunhamos um caso real de conversão? Tenhamos a certeza de que, nessa conversão, vimos a mão de Cristo operando. Devemos entender que tal milagre não é menor do que se tivéssemos visto nosso Senhor fazendo os mudos falarem ou os paralíticos andarem, quando andava na terra. Gostaríamos de saber o que fazer, se desejássemos ser salvos? Sentimo-nos adoentados na alma e queremos ser curados? Só temos de ir até Cristo pela fé, rogando o alívio de que precisamos. Ele não muda. Vinte séculos não fazem diferença para ele. Nas alturas, à direita de Deus Pai, ele continua a ser o grande Médico. Ele ainda “recebe pecadores” (Lc 15.2). Ele continua sendo poderoso para curar! Em terceiro lugar, observemos a transbordante compaixão de nosso Senhor Jesus Cristo. Lemos que, “chamando Jesus os seus discípulos, disse: Tenho compaixão desta gente”. Um grande ajuntamento de homens e mulheres é sempre uma visão solene. O fato de que cada um é um pecador que está morrendo, e de que cada um tem uma alma que precisa ser salva, deveria mover nosso coração. Parece que ninguém jamais se sensibilizou tanto diante de uma multidão reunida quanto o Senhor Jesus Cristo. É um fato curioso e impressionante que, de todos os sentimentos experimentados por nosso Senhor quando ele estava sobre a terra, nenhum outro seja tão frequentemente mencionado quanto sua compaixão. Sua alegria, tristeza, gratidão, ira, admiração e zelo — todos esses sentimentos ficaram ocasionalmente registrados. Entretanto, nenhum deles é tão reiteradamente mencionado quanto sua “compaixão”. Parece que o Espírito Santo desejava destacar para nós a característica mais distintiva no caráter e o sentimento predominante na mente de Jesus, enquanto ele esteve entre os homens. Nove vezes, sem contar outras expressões nas parábolas — sim, nove vezes o Espírito Santo fez com que a palavra “compaixão” fosse escrita nos evangelhos. Destaca-se algo de muito tocante e instrutivo nessa circunstância. Nada ficou registrado por acaso na Palavra de Deus. Há uma razão especial para o uso de cada expressão em particular. A palavra “compaixão”, sem dúvida, foi especialmente selecionada em nosso proveito. Ela deveria encorajar todos que hesitam em dar os primeiros passos nos caminhos de Deus. O Salvador é cheio de “compaixão” e os receberá graciosamente. Ele perdoará gratuitamente. Nunca mais se lembrará das iniquidades passadas. Ele suprirá abundantemente todas as necessidades. Não há motivo para temer; a misericórdia de Cristo é como um poço profundíssimo, do qual ninguém jamais encontrou o fundo. Isso deveria ser um consolo para os santos e os servos do Senhor quando se sentem cansados. Que eles se recordem de que Jesus é cheio de “compaixão”! Ele sabe como é este mundo em que vivemos. Ele conhece o corpo humano, com todas as suas fragilidades. Ele conhece os artifícios do inimigo, Satanás. O Senhor se compadece de seu povo. Portanto, que nunca se sintam desanimados! Podem sentir que a debilidade, o fracasso e a imperfeição estão estampados em tudo que fazem; não obstante, nunca deveriam esquecer-se da palavra que diz: “as suas misericórdias não têm fim” (Lm 3.22). A inimizade dos escribas e fariseus, e a advertência contra eles Leia Mateus 16.1-12
N esses versículos, encontramos nosso Senhor assediado pela
incansável inimizade dos fariseus e saduceus. Via de regra, essas duas seitas tinham inimizade entre si. Mas, quando resolveram perseguir Cristo, aliaram-se uma à outra. Essa foi, com certeza, uma aliança iníqua! No entanto, quão frequentemente vemos a mesma coisa acontecendo em nossos dias! Pessoas de hábitos e opiniões diametralmente opostas concordam em detestar o evangelho e trabalham juntas para se opor ao seu progresso. “Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1.9). Nessa passagem bíblica, o primeiro assunto que merece atenção especial é a repetição que nosso Senhor faz de palavras por ele empregadas em uma ocasião anterior. Ele disse: “Uma geração má e adúltera pede um sinal; e nenhum sinal lhe será dado, senão o de Jonas”. Se voltarmos para Mateus 12.39, veremos que Jesus já havia dito isso. Essa repetição pode parecer, para alguns, algo superficial e sem importância. Na verdade, não é assim. A repetição ilumina um assunto importante que tem deixado perplexos muitos sinceros estudiosos da Bíblia, razão pela qual deve ser atentamente observada. Essa reiteração nos mostra que nosso Senhor tinha o hábito de dizer a mesma coisa mais de uma vez. Ele não se satisfazia em dizer algo uma vez e nunca mais repetir. Está evidente que seu costume era mencionar certas verdades repetidamente, a fim de inculcá-las mais fundo na mente dos discípulos. Jesus sabia quão débil é nossa memória para as coisas espirituais; ele sabia que aquilo que ouvimos duas vezes, lembramos melhor do que aquilo que ouvimos somente uma vez. Ele trazia de seu depósito coisas novas e coisas velhas (Mt 13.52). Ora, o que tudo isso nos ensina? Ensina-nos que não precisamos esforçar-nos tanto para harmonizar entre si as narrativas que lemos nos quatro evangelhos, conforme muitos se dispõem a fazer. As declarações de nosso Senhor que aparecem repetidas em Mateus e Lucas não tinham, necessariamente, sido proferidas numa mesma ocasião e os eventos a que essas declarações estão vinculadas não tinham de ser necessariamente os mesmos. Mateus pode estar descrevendo um evento, enquanto Lucas pode estar descrevendo outro. Mesmo assim, as palavras de nosso Senhor em ambas as ocasiões podem ter sido precisamente as mesmas. A tentativa de fazer coincidir dois eventos em um só, por causa da semelhança das palavras, com frequência tem levado os estudiosos da Bíblia a cair em grande dificuldade. É muito mais seguro defender o ponto de vista aqui exposto, de que em diferentes ocasiões nosso Senhor muitas vezes empregou as mesmas palavras. O segundo ponto que merece atenção é a solene advertência que nosso Senhor oferece aos seus discípulos. Evidentemente, sua mente ficou dolorida, por causa das falsas doutrinas que via entre os judeus e a influência perniciosa que causavam. E aproveita a oportunidade para exprimir uma palavra de admoestação: “Vede, e acautelai-vos do fermento dos fariseus e saduceus”. Observemos bem o conteúdo dessas palavras. A quem foi endereçado esse aviso? Aos doze apóstolos, os primeiros ministros da Igreja de Cristo, homens que haviam abandonado tudo por amor ao evangelho! Até mesmo eles foram advertidos! Os melhores dos homens não passam de homens e, a qualquer instante, podem cair em tentação. “Aquele, pois, que pensa estar em pé, veja que não caia” (1Co 10.12). Se amamos a vida e desejamos ver dias felizes, jamais imaginemos que não precisamos desta advertência: “Vede, e acautelai-vos!”. E contra o que nosso Senhor adverte seus apóstolos? Contra a “doutrina dos fariseus e saduceus”. Os fariseus, os evangelhos nos dizem, eram formalistas e justos aos seus próprios olhos. Os saduceus eram céticos, livres-pensadores ou tinham tendências pagãs. Até mesmo Pedro, Tiago e João devem precaver-se contra tais doutrinas! Na realidade, até mesmo o melhor e mais santo de todos os crentes deve ficar em guarda contra as falsas doutrinas! Qual é o simbolismo usado por nosso Senhor para descrever as falsas doutrinas, acerca das quais adverte seus discípulos? Ele emprega a figura do “fermento”. Tal como o fermento, essas doutrinas podem parecer coisa pequena, em comparação com a totalidade das verdades reveladas na Bíblia. Mas, tal como o fermento, uma vez admitidas, elas ficariam operando em segredo e em silêncio, e modificariam gradualmente todo o caráter da religião com a qual se misturassem. Quanta significação frequentemente está contida em uma única palavra! Não era apenas contra a heresia patente, mas contra o “fermento” da heresia que os apóstolos deviam acautelar-se. Existe muito em tudo isso que clama em alta voz pela atenção cuidadosa de todo crente professo. A advertência de nosso Senhor, nessa passagem, tem sido vergonhosamente negligenciada. Teria sido bom para a Igreja de Cristo se as advertências do evangelho tivessem sido tão estudadas quanto suas promessas. Lembremo-nos de que essa afirmação de nosso Senhor, sobre o “fermento dos fariseus e saduceus”, visava a todos os séculos. Ela não se destinava somente à geração que a ouviu pela primeira vez. Foi designada em perpétuo benefício da Igreja de Cristo. Aquele que a proferiu contemplava com visão profética a história futura do cristianismo. O grande Médico sabia bem que as doutrinas dos fariseus e saduceus seriam duas grandes enfermidades debilitadoras da Igreja, até o fim do mundo. Ele queria que soubéssemos que sempre haverá fariseus e saduceus nas fileiras do cristianismo. Nunca deixarão de ter sucessores, e sua descendência jamais se extinguirá. Eles podem tomar outros nomes, mas a atitude deles permanecerá. Por isso Cristo nos diz: “Vede, e acautelai-vos”. Finalmente, que façamos uso pessoal dessa advertência, mantendo um santo ciúme de nossas próprias almas! Lembremo- nos de que vivemos em um mundo no qual o farisaísmo e o saduceísmo estão continuamente esforçando-se por obter a primazia na Igreja de Cristo. Alguns desejam acrescentar algo, enquanto outros querem subtrair alguma coisa do evangelho. Alguns desejam sepultá-lo, enquanto outros tentam reduzi-lo a nada. Alguns gostariam de sufocar o evangelho através de muitas adições, enquanto outros querem sangrá-lo até a morte, ao lhe subtrair suas verdades. Esses grupos concordam apenas quanto a uma questão: ambos desejam matar e destruir a vida do cristianismo, o que, fatalmente, aconteceria se conseguissem prevalecer. Contra tais erros, devemos vigiar, orar e ficar em guarda permanente. Nada devemos acrescentar ou retirar do evangelho, querendo agradar a falsos mestres modernos. Que nosso lema seja “a verdade, toda a verdade, e nada mais que a verdade” — nada acrescentando e nada subtraindo à verdade! A nobre confissão de Pedro Leia Mateus 16.13-20
N essa passagem da Bíblia, há palavras que têm produzido
dolorosas diferenças e divisões entre os cristãos. Homens têm lutado e contendido em torno de sua significação, a ponto de perder de vista todo o amor cristão, não sem conseguir convencer uns aos outros. Faremos um rápido exame dessas palavras controvertidas, passando, então, para mais lições práticas. O que devemos entender quando lemos essa admirável afirmativa de Jesus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”? Será que Pedro em pessoa seria o fundamento da Igreja que Cristo estava por edificar? Tal interpretação, para dizermos o mínimo, parece extremamente improvável. Dizer que um falível e inseguro filho de Adão se tornaria o alicerce do templo espiritual não confere com a linguagem geral das Sagradas Escrituras. Acima de tudo, não existe razão para o Senhor não ter dito “sobre ti edificarei a minha igreja”, se isso fosse o que ele queria dizer, em vez de ter dito: “sobre esta pedra...”. Nessa passagem, o verdadeiro sentido da palavra “pedra” parece ser a verdade do messiado e da divindade de nosso Senhor que Pedro acabara de reconhecer. É como se Jesus houvesse dito: “Com toda a razão, foste alcunhado de Pedro, ou pedra, porquanto confessaste aquela verdade poderosa, sobre a qual, como sobre uma rocha, edificarei a minha Igreja”. Porém, o que devemos compreender quando lemos a promessa que nosso Senhor faz a Pedro: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus”? Teriam conferido a Pedro o direito de admitir as almas no céu? Tal ideia é ilógica, porque esse ofício é prerrogativa especial do próprio Jesus Cristo (Ap 1.18). Será, então, que Pedro deveria ter primazia ou superioridade sobre os demais apóstolos? Não há a menor prova de que tal significado tivesse sido atribuído a essas palavras de Jesus, na época neotestamentária; nem há prova de que Pedro tivesse qualquer autoridade ou dignidade superior aos demais apóstolos. Parece-nos que o verdadeiro sentido dessa promessa feita por Cristo é que Pedro teria o privilégio especial de abrir, pela primeira vez, a porta da salvação tanto aos judeus como aos gentios. E isso cumpriu-se à risca quando ele anunciou o evangelho aos judeus, no dia de Pentecostes, e quando visitou o gentio Cornélio em sua casa. Em cada ocasião, Pedro utilizou as “chaves” e abriu completamente a porta da fé. E, ao que tudo indica, Pedro tinha plena consciência disso, pois afirmou: “Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho e cressem” (At 15.7). Finalmente, o que devemos entender quando lemos: “O que ligares na terra terá sido ligado no céu; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus”? O apóstolo teria recebido algum poder de perdoar pecados e absolver os pecadores? Tal noção tão somente deprecia o ofício especial de Jesus Cristo como nosso grande Sumo Sacerdote. Jamais encontramos Pedro, ou qualquer outro apóstolo, exercendo o poder de perdoar pecados. Eles sempre encaminhavam as pessoas a Cristo, para o perdão. O verdadeiro significado dessa promessa parece ser que Pedro e os demais apóstolos seriam especialmente comissionados para ensinar o caminho da salvação, com autoridade. Assim como os sacerdotes do Antigo Testamento declaravam, com autoridade, quem havia sido curado da lepra, também os apóstolos foram nomeados para declarar e pronunciar com autoridade quem havia sido perdoado de seus pecados. Além disso, eles seriam especialmente inspirados para estabelecer regras e regulamentos para a orientação da Igreja. Algumas coisas deviam ser “ligadas”, ou proibidas, enquanto outras deviam ser “desligadas”, ou permitidas. A decisão do concílio de Jerusalém, de que os gentios não precisavam ser circuncidados, foi um bom exemplo do exercício desse poder (At 15.19). Mas essa foi uma comissão especialmente restrita aos apóstolos. Eles não tiveram sucessores, pois essa tarefa começou e terminou com eles. A respeito dessas palavras controvertidas, já dissemos o suficiente para nossa edificação pessoal. Agora, vamos deixá-las para trás, apenas lembrando-nos de que, em qualquer sentido em que essas palavras sejam compreendidas, elas nada têm a ver com a igreja de Roma. A partir de agora, voltaremos a atenção àqueles pontos que dizem respeito mais diretamente às nossas almas. Em primeiro lugar, vejamos a nobre confissão do apóstolo Pedro. Em resposta à pergunta de Jesus Cristo “Quem dizeis que eu sou?”, Pedro afirma: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. À primeira vista, um leitor descuidado nada poderá notar de relevante nessas palavras do apóstolo. Parece extraordinário que Pedro tivesse recebido tamanho elogio por sua resposta. Mas esse pensamento surge da ignorância e da falta de melhor ponderação. Os homens se esquecem de que é imensamente diferente crer na missão divina de Cristo quando estamos em meio aos crentes do que quando nos vemos em meio a judeus empedernidos e incrédulos. A glória da confissão de Pedro está no fato de que ele a apresentou quando poucos estavam a favor de Cristo, e muitos estavam contra ele. Pedro fez sua confissão quando os líderes religiosos de sua própria nação, os escribas, os sacerdotes e os fariseus, todos declaravam-se contrários ao Senhor Jesus. Ele fez sua confissão quando Jesus Cristo estava em “forma de servo” (Fp 2.7), sem riquezas materiais, sem a dignidade real e sem nenhuma comprovação visível de sua realeza. Fazer uma confissão assim, àquela altura dos acontecimentos, requeria fé intensa e firmeza de caráter. A própria confissão, no dizer de Brentius, foi “um resumo de todo o cristianismo, e um compêndio da verdadeira doutrina religiosa”. Por isso nosso Senhor disse: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas...”. Faríamos bem em imitar o zelo e a afeição sinceros que Pedro exibiu, de todo o coração, nesse incidente. Talvez nos inclinemos demais a menosprezar esse santo homem de Deus, por causa de sua eventual instabilidade e a tríplice negação ao Senhor Jesus. Mas esse é um grande erro. Apesar de todas as suas faltas, Pedro era um servo fervoroso, resoluto e sincero de Cristo. Apesar de todas as suas imperfeições, Pedro nos ofereceu um padrão que muitos crentes fariam bem em imitar. Um zelo como o de Pedro talvez passe por momentos de hesitação, faltando-lhe o impulso de uma decisão mais firme. Um zelo como o de Pedro pode ser mal orientado, e, algumas vezes, incorrer em equívoco. Todavia, um zelo como o demonstrado por Pedro nunca deveria ser desprezado. Um zelo assim desperta os sonolentos, anima os vagarosos e leva outras pessoas à ação. Qualquer coisa é melhor do que a indolência, a mornidão e o torpor na Igreja de Cristo. Quão mais feliz seria o mundo cristão se contássemos com mais crentes parecidos com Pedro e Martinho Lutero, e menos com Erasmo de Roterdã! Em seguida, tenhamos certeza de haver compreendido o que nosso Senhor quer dizer quando fala sobre sua Igreja. A Igreja que Jesus prometeu edificar sobre a rocha é “a bem-aventurada companhia de todos os fiéis”. Não se trata da igreja organizada e visível em qualquer nação, estado ou localidade. Pelo contrário, a Igreja é um corpo formado por crentes de todas as épocas, povos e línguas. Ela é composta por todos que foram lavados no sangue de Cristo, que foram revestidos da justiça de Cristo, renovados pelo Espírito de Cristo, unidos a Cristo pela fé, sendo epístolas vivas de Cristo. É uma igreja em que todos os membros são batizados no Espírito Santo, sendo real e verdadeiramente santos. Essa Igreja forma um corpo. Os que a ela pertencem estão unidos em atitudes e pensamentos, defendem as mesmas verdades e creem nas mesmas doutrinas básicas da salvação. A Igreja tem apenas uma Cabeça, que é o próprio Senhor Jesus Cristo. “Ele é a cabeça do corpo, da igreja...” (Cl 1.18). Tenhamos muito cuidado para não errar quanto a esse assunto. Poucas palavras são tão mal compreendidas quanto o vocábulo “igreja”. Poucos equívocos têm prejudicado tanto a causa da religião pura. A ignorância quanto a isso tem servido de solo fértil para preconceitos, sectarismo e perseguição. Os homens têm brigado e contendido acerca de denominações, como se, para obter a salvação, fosse necessário pertencer a algum partido eclesiástico em particular, e como se pertencer a algum desses partidos fosse sinônimo de pertencer a Cristo. Durante todo esse tempo, eles têm perdido de vista a igreja única verdadeira, fora da qual não existe salvação. A denominação a que pertencemos nada significará no dia final se não estivermos relacionados como membros da verdadeira Igreja dos eleitos de Deus. Em último lugar, salientamos as gloriosas promessas feitas por nosso Senhor à sua Igreja. Ele diz: “As portas do inferno não prevalecerão contra ela”. O significado dessa promessa é que o poder de Satanás jamais destruirá o povo de Cristo. Aquele que introduziu o pecado e a morte na primeira Criação, ao tentar Eva, jamais introduzirá ruína na nova Criação, pela derrota dos crentes. O corpo místico de Cristo jamais perecerá, nem decairá. Embora, com frequência, seja perseguida, afligida, assediada e humilhada, a Igreja jamais desaparecerá. Ela há de sobreviver à ira de faraós e imperadores romanos. Uma igreja visível, como a de Éfeso, pode vir a desaparecer, mas a Igreja verdadeira nunca morre. Tal como a sarça que Moisés viu, ela pode queimar, mas nunca será consumida. Cada um de seus membros será levado com segurança à glória eterna. A despeito de quedas, fracassos e falhas, a despeito do mundo, da carne e do diabo, nenhum membro da verdadeira Igreja perecerá (Jo 10.28). Pedro é repreendido Leia Mateus 16.21-23
N o começo desses versículos, encontramos nosso Senhor
revelando a seus discípulos uma grande e espantosa verdade. A verdade de sua morte na cruz, que se aproximava. Pela primeira vez, ele apresenta o chocante anúncio de que deveria “seguir para Jerusalém e sofrer muitas coisas [...] ser morto”. Ele não viera a este mundo a fim de tomar posse de um reino, mas, sim, para morrer. Ele não tinha vindo para reinar e ser servido, mas, sim, para derramar seu sangue como sacrifício e dar sua vida como resgate em favor de muitos. Para nós, é quase impossível conceber quão estranha e incompreensível essa revelação deve ter parecido aos discípulos de Cristo. Como a maioria dos judeus, eles não podiam conceber a ideia de um Messias sofredor. Não compreendiam que o capítulo 53 de Isaías precisava ser literalmente cumprido. Não percebiam que todos os sacrifícios da lei mosaica tinham por finalidade apontar para a morte do verdadeiro Cordeiro de Deus. Em nada mais pensavam, senão na vinda gloriosa do Messias, a qual ainda terá lugar, no fim do mundo. Eles pensavam tanto na coroa do Messias que perderam de vista sua cruz. Fazemos bem em nos lembrar disso. Uma compreensão correta desse fato derrama grande luz sobre as lições que essa passagem contém. Em primeiro lugar, aprendemos que pode haver muita ignorância espiritual, mesmo em um verdadeiro discípulo de Cristo. Não poderíamos obter prova mais clara disso do que na conduta do apóstolo Pedro nessa ocasião. Ele tenta dissuadir nosso Senhor: “Tem compaixão de ti, Senhor; isso de modo algum te acontecerá”. Pedro não era capaz de perceber todo o propósito da primeira vinda do Senhor Jesus a este mundo. Os olhos dele estavam cegos para a necessidade da morte de nosso Senhor. Ele fez tudo que estava ao seu alcance para tentar impedir a morte de Jesus! Não obstante, sabemos que Pedro era um homem convertido. Ele cria verdadeiramente que Jesus era o Messias, e seu coração era reto aos olhos de Deus.Essas coisas têm por intuito nos ensinar que tanto não devemos considerar bons homens como infalíveis, somente porque são bons, como também não devemos supor que lhes falte a graça divina, somente porque essa graça é pequena e fraca. Um irmão pode possuir dons singulares e ser uma luz brilhante e resplandecente na Igreja de Cristo. Mas não nos esqueçamos de que ele é apenas um homem, e, como tal, está sujeito a cometer grandes erros. Outro irmão, por sua vez, pode ter um conhecimento limitado. Talvez não consiga ajuizar corretamente acerca de muitos pontos doutrinários. Talvez ele erre tanto em atos como em palavras. Ele tem fé em Cristo e o ama? Reconhece Cristo como sua Cabeça? Se a resposta é positiva, devemos tratá-lo com paciência. Aquilo que ele não percebe agora poderá enxergar mais tarde. Como Pedro, talvez agora ele esteja obscurecido, mas, à semelhança de Pedro, algum dia pode desfrutar da plena luz do evangelho. Em segundo lugar, aprendamos que não existe outra doutrina das Escrituras tão profundamente importante quanto a doutrina da morte expiatória de Cristo. A prova mais clara disso é a linguagem empregada por nosso Senhor ao repreender Pedro. Jesus o chama pelo horrível nome de “Satanás”, como se aquele apóstolo fosse um adversário, ocupado na causa do diabo e procurando impedir sua morte. Àquele que há pouco chamara “bem-aventurado”, Jesus diz: “Arreda! Satanás; tu és para mim pedra de tropeço”. Ao homem cuja nobre confissão de fé Jesus tinha recentemente elogiado, ele diz: “Não cogitas das cousas de Deus, e, sim, das dos homens”. Palavras mais fortes do que essas nunca saíram dos lábios de nosso Senhor. O erro que provocou uma repreensão tão enérgica de nosso amoroso Salvador, a um discípulo tão autêntico, deve ter sido realmente um tremendo erro. O fato é que nosso Senhor deseja que consideremos a crucificação a verdade central do cristianismo. Uma visão correta de sua morte vicária, e dos benefícios daí resultantes, é fundamental para a religião bíblica. Que nunca nos esqueçamos disso! Em questões de governo da igreja e formas de culto, alguns podem divergir de nós, e, mesmo assim, chegar ao céu em segurança. Quanto à questão da morte expiatória de Cristo como o caminho da paz com Deus, a verdade é uma só. Se nos enganamos nesse particular, estamos arruinados para sempre. O erro acerca de muitos pontos de doutrina é apenas uma doença superficial. Mas o erro acerca da morte de Cristo é uma doença fatal. Portanto, firmemo-nos nesse ponto. Que coisa alguma nos desloque dessa base firme! A soma de todas as nossas esperanças deve ser o fato de que Cristo morreu por nós (lTs 5.10). Se desistimos dessa doutrina, não dispomos mais de nenhuma esperança sólida. A necessidade de abnegação; o valor da alma Leia Mateus 16.24-28
A fim de percebermos a conexão desses versículos, devemos
lembrar as impressões equivocadas dos discípulos de nosso Senhor, quanto aos propósitos de sua vinda ao mundo. Tal como Pedro, eles não suportavam a ideia da crucificação. Pensavam que Jesus viera ao mundo a fim de estabelecer um reino terrestre. Não percebiam que lhe era necessário sofrer e morrer. Sonhavam com honrarias seculares e recompensas temporais no serviço do Mestre. Não entendiam que os verdadeiros cristãos, a exemplo de Jesus Cristo, precisam ser experimentados nos sofrimentos. Nosso Senhor corrige esses mal-entendidos, usando palavras peculiarmente solenes, que faremos bem em guardar no coração. Em primeiro lugar, devemos aprender que os homens precisam estar decididos a enfrentar tribulação e negar a si mesmos, se desejam seguir a Cristo. Nosso Senhor dissipa os caros sonhos de seus discípulos, dizendo-lhes que seus seguidores devem “tomar a cruz”. O glorioso reino pelo qual estavam esperando não haveria de ser prontamente estabelecido. Seus seguidores precisam aceitar previamente a perseguição e a aflição, se desejam servir ao Senhor. Se desejam “salvar a sua vida”, precisam estar dispostos a “perdê- la”. É bom que compreendamos com clareza essa questão. Não devemos ocultar de nós mesmos o fato de que o verdadeiro cristianismo traz consigo uma cruz diária nesta vida, enquanto oferece uma coroa de glória na vida futura. A carne precisa ser diariamente crucificada. Precisamos resistir ao diabo dia após dia. O mundo precisa ser vencido. Há uma guerra declarada e muitas batalhas a vencer. Tudo isso é o acompanhamento inseparável da verdadeira religião. O céu nunca será conquistado sem essas batalhas. Nunca houve declaração mais veraz do que o antigo ditado: “Nenhuma cruz, nenhuma coroa!”. Se nunca descobrimos isso por experiência, nossa alma está em uma pobre condição.Em segundo lugar, aprendamos nesses versículos que nada existe de tão precioso quanto uma alma humana. Nosso Senhor nos ensina essa lição, fazendo uma das mais solenes indagações contidas no Novo Testamento. É uma pergunta tão conhecida e tão frequentemente repetida que as pessoas, em geral, perdem de vista seu caráter perscrutador. Mas é uma pergunta que deveria soar em nossos ouvidos como uma trombeta, sempre que somos tentados a negligenciar nossos interesses eternos: “Que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?” Só pode haver uma resposta a essa pergunta. Nada existe sobre a terra ou debaixo da terra que possa compensar a perda de nossa própria alma. Nada existe que o dinheiro seja capaz de comprar, ou de o homem oferecer que possa ser mencionado em comparação às nossas almas. O mundo, e tudo que nele está contido, é apenas temporal. Ele está gradualmente desaparecendo, perecendo e dissipando-se. A alma é eterna. Essa palavra é a chave de toda a questão. Guardemo-la nas profundezas de nossos corações. Estamos titubeantes em nossa religião? Acaso tememos a cruz? O caminho nos parece muito estreito? Que as palavras de nosso Senhor ressoem em nossos ouvidos: “Que aproveitará o homem?”, e não mais duvidemos! Por último, aprendamos que será na segunda vinda de Cristo que receberemos a recompensa. “Porque o Filho do homem há de vir na glória de seu Pai [...] e então retribuirá a cada um conforme as suas obras”. Nessas palavras de Jesus, há profunda sabedoria quando vistas em conexão com os versículos precedentes. Jesus conhece o coração do homem. Ele sabe quão prontamente nos deixamos desanimar e como, a exemplo do antigo povo de Israel, ficamos impacientes no caminho (Nm 21.4). Por isso ele nos deixa uma preciosa promessa. Ele nos lembra de que virá a este mundo uma segunda vez, tão certo quanto veio pela primeira vez. Ele nos diz que esse será o tempo em que seus discípulos receberão as recompensas. Haverá glória, honra e galardões em abundância, algum dia, para todos que têm servido e amado ao Senhor Jesus. Mas isso será na dispensação do segundo advento, e não na dispensação do primeiro. O que é amargo virá antes do que é doce, e a cruz, antes da coroa. O primeiro advento foi a dispensação da crucificação. O segundo é a dispensação do reino. Precisamos submeter-nos a tomar parte com nosso Senhor em sua humilhação, se queremos um dia compartilhar de sua glória. Não deixemos para trás esses versículos sem primeiro fazermos uma autoinquirição séria quanto aos assuntos que contêm. Temos ouvido sobre a necessidade de tomar a cruz e de negar a nós mesmos. Já tomamos nossa própria cruz? Estamos carregando-a diariamente? Temos ouvido sobre o grande valor da alma humana. Acaso vivemos como quem acredita nisso? Temos ouvido sobre a segunda vinda de Cristo. Estamos aguardando esse segundo advento com esperança e júbilo? Feliz é o homem que pode dar respostas satisfatórias a essas perguntas. A transfiguração Leia Mateus 17.1-13
E sses versículos narram um dos mais notáveis acontecimentos
ocorridos durante o ministério terreno de nosso Senhor: aquele evento comumente chamado “transfiguração”. A ordem em que esse incidente ficou registrado é bela e instrutiva. A última porção do capítulo anterior mostra-nos a cruz, que já surge no horizonte. Aqui, porém, somos graciosamente brindados com a visão de algo sobre nossa recompensa vindoura. Os corações dos discípulos, que tão pouco tempo antes haviam sido profundamente entristecidos diante da clara afirmação feita por Cristo, acerca de seus sofrimentos, logo em seguida foram alegrados pela visão da glória de Jesus Cristo. Devemos salientar esse ponto. Perdemos muito quando ignoramos a conexão existente entre um capítulo e outro da Palavra de Deus. Sem dúvida alguma, existem mistérios dentro da visão aqui descrita. Porém, é forçoso que assim aconteça. Afinal, ainda estamos no corpo físico. Nossos sentidos estão voltados às coisas materiais e grosseiras deste planeta. Nossas ideias e nossa percepção sobre corpos glorificados e sobre santos mortos são, necessariamente, vagas e imprecisas. Por conseguinte, contentemo-nos em assimilar as lições práticas que a transfiguração de Jesus tenciona ensinar-nos. Antes de qualquer outra coisa, nesses versículos encontramos uma notável demonstração da glória com que Cristo e seu povo aparecerão quando ele vier pela segunda vez. Não se pode tolerar qualquer dúvida de que esse foi um dos principais objetivos dessa admirável visão. O propósito era encorajar os discípulos, conferindo- lhes um vislumbre das coisas boas que ainda teriam lugar. Aquele rosto que “resplandecia como o sol” e aquelas vestes que se tornaram “brancas como a luz” tiveram a finalidade de proporcionar aos discípulos alguma ideia da majestade com que o Senhor Jesus aparecerá neste mundo quando vier, pela segunda vez, juntamente com todos os seus santos. Por assim dizer, uma beira do véu foi erguida, a fim de mostrar aos discípulos a verdadeira dignidade de seu Senhor e Mestre. Foi dessa maneira que eles puderam entender que, se Jesus não havia aparecido neste mundo com a figura majestosa de um monarca, isso devia-se tão somente ao fato de que o tempo dele vestir seus trajes reais ainda não havia chegado. É impossível extrairmos qualquer outra conclusão se levarmos em conta a linguagem empregada pelo apóstolo Pedro, quando ele escreveu sobre o assunto. Referindo-se claramente à transfiguração, ele escreveu: “[...] nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade” (2Pe 1.16). Para nós, convém que a vindoura glória de Cristo e de seu povo seja profundamente impressa em nossas mentes. Inclinamo- nos, tristemente, a nos esquecer disso. Existem poucas indicações visíveis dessa glória no mundo presente. Porquanto ainda não vemos que todas as coisas estão postas sob os pés de nosso Senhor. Por toda a parte, abundam o pecado, a incredulidade e a superstição. Na prática, milhares estão dizendo: “Não queremos que este [Jesus] reine sobre nós” (Lc 19.14). E também ainda não se manifestou como se tornarão as pessoas que fazem parte do povo de Cristo. Seus conflitos, cruzes, tribulações e debilidades, tudo isso nos é perfeitamente evidente. Entretanto, há escassos sinais da futura recompensa deles. Cuidemos, portanto, em não permitir que surjam dúvidas quanto a essa particularidade. Silenciemos essas dúvidas em nossos corações, lendo outra vez o relato da transfiguração de Jesus Cristo. Para Jesus e para todos que nele confiam, está reservada uma glória tão intensa que o coração humano não é capaz de conceber agora. E não somente essa glória nos foi prometida, como também conta com o testemunho de três competentes testemunhas. Uma dessas testemunhas deixou registrado por escrito: “[...] e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). Por certo, bem podemos acreditar naquilo que foi visto por elas. Em segundo lugar, nesses versículos encontramos uma prova insofismável do fato da ressurreição do corpo e de que há vida depois da morte física. Somos informados ali de que Moisés e Elias apareceram juntamente com Jesus, de forma visível e gloriosa. Eles foram vistos como corpos físicos. Foram ouvidos a dialogar com o Senhor Jesus. Mil quatrocentos e oitenta anos já se haviam passado desde que Moisés morrera e fora sepultado. E mais de novecentos anos se haviam passado desde que Elias fora arrebatado para o céu em um redemoinho. No entanto, eles foram vistos vivos por Pedro, Tiago e João! Devemos dar o máximo de atenção a essa visão. Ela merece nossa cuidadosa atenção. Todos deveríamos sentir, quando meditamos a respeito dessa visão, que o estado dos mortos é um assunto deveras misterioso e profundo. Uns após outros, os mortos são sepultados e desaparecem de nossa vista. Nós os depositamos em seus estreitos túmulos, e nunca mais os vemos, e seus corpos físicos acabam reduzidos a pó. Mas será que eles, realmente, tornarão a viver? Poderemos vê-los de novo? Os sepulcros devolverão os mortos neles contidos, no último dia? Essas são perguntas que, ocasionalmente, atravessam a mente de algumas pessoas, apesar de todas as claríssimas assertivas da Palavra de Deus. Ora, por ocasião da transfiguração de Jesus, deparamos com a mais cristalina evidência de que os mortos, realmente, ressuscitarão algum dia. Ali, encontramos dois homens que reapareceram na terra em seus próprios corpos, embora já se tivessem passado séculos que estavam separados da terra dos viventes. E é nisso que encontramos a poderosa garantia da ressurreição final de todos os seres humanos. Todos aqueles que já viveram neste mundo serão novamente chamados à vida, a fim de prestar contas de tudo que fizeram. Nenhuma dessas pessoas faltará. Não existe o aniquilamento das almas. Todos que chegaram a dormir em Cristo serão encontrados perfeitamente seguros — patriarcas, profetas, apóstolos, mártires — até o mais humilde servo de Deus, de nossos próprios dias. Embora, atualmente, sejam invisíveis para nós, todos estão bem vivos para Deus. “Ora, Deus não é Deus de mortos, e, sim, de vivos; porque para ele todos vivem” (Lc 20.38). Seus espíritos estão vivos, tanto quanto nós mesmos estamos vivos; e aparecerão de novo, em corpos glorificados, tão certamente quanto Moisés e Elias apareceram no monte da transfiguração. De fato, esses são pensamentos solenes. Existe uma ressurreição, e homens como Félix devem tremer. Existe uma ressurreição, e homens como Paulo devem regozijar-se. Por último, nesses versículos, encontramos um notável testemunho acerca da infinita superioridade de Cristo sobre todos que nasceram de mulher. Esse foi um ponto fortemente frisado pela voz, vinda do céu, que os discípulos ouviram. Pedro, perplexo e atônito diante da visão celestial, sem saber o que dizer, propôs que fossem erigidas três tendas no monte: uma para Cristo, outra para Moisés e outra para Elias. Na realidade, parece que Pedro queria situar o legislador e o profeta lado a lado com o divino Mestre, como se os três fossem iguais, porém vemos que essa proposta foi prontamente rechaçada, da maneira mais extraordinária e impressionante. Uma nuvem encobriu Moisés e Elias, e eles não mais puderam ser vistos. Ao mesmo tempo, de dentro da nuvem, saiu uma voz que reiterou as solenes palavras que João Batista ouvira, por ocasião do batismo de nosso Senhor: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo: a ele ouvi”. Essa voz teve por intuito mostrar a Pedro que há Alguém muito superior a Moisés ou a Elias. Moisés foi um servo fiel de Deus. Elias foi uma ousada testemunha que defendeu a verdade divina. Mas Cristo é muito maior do que qualquer um deles, ou mesmo que os dois juntos. Ele é o Salvador, para quem continuamente apontavam a Lei e os Profetas. Ele é o verdadeiro Profeta, a quem todos estão na obrigação de ouvir, conforme lhes foi ordenado (Dt 18.15). Moisés e Elias foram grandes homens em sua própria época. Porém, Pedro e os outros dois apóstolos precisavam lembrar que, quanto à natureza, à dignidade e ao ofício, eles estão muito abaixo de Jesus. Cristo é o verdadeiro sol; mas eles foram apenas os planetas que refletiram sua luz. Ele é a raiz; mas eles foram apenas os ramos, dependentes da raiz. Ele é o Senhor, mas eles foram apenas os servos. A bondade deles era toda derivada; mas a de Cristo era sua própria, original. Moisés e os profetas, como homens santos, merecem honra. Mas, se os discípulos desejam ser salvos, devem ter unicamente Cristo como Mestre, e dar glória somente a ele: “[...] a ele ouvi”. Também devemos detectar nessas palavras uma grande lição para toda a Igreja de Cristo. Em nossa natureza humana, manifesta- se a constante tendência para “ouvirmos o homem”. Bispos, padres, diáconos, cardeais, o papa, os concílios, pregadores e ministros de grupos evangélicos são continuamente exaltados a uma posição que Deus jamais tencionou que preenchessem, usurpando, assim, a honra devida somente a Cristo, para todos os efeitos práticos. Por causa dessa inclinação, todos nós devemos vigiar e montar guarda. E que aquelas solenes palavras da visão fiquem ressoando em nossos ouvidos: “ ... a ele ouvi”! Os melhores homens não passam de homens, mesmo em seus melhores momentos. Os patriarcas, os profetas e os apóstolos — os mártires, os pais da Igreja, os reformadores, os puritanos —, todos são meros pecadores, que precisam do Salvador — santos, úteis, dignos de honra em seus respectivos lugares, mas apenas pecadores, e nada mais. Nunca podemos permitir que eles sejam interpostos entre nós e Cristo. Somente Jesus Cristo é “o Filho, em quem o Pai se compraz”. Somente ele dispõe das chaves, que estão em suas mãos, e somente ele é o “[...] Deus bendito para todo o sempre. Amém” (Rm 9.5). Certifiquemo-nos de que estamos ouvindo sua voz e seguindo- o. Avaliemos todos os ensinamentos religiosos em conformidade com o grau em que nos conduzem aos pés de Cristo. A essência da religião que salva consiste nisto: ouvir Jesus Cristo. A cura do jovem endemoninhado Leia Mateus 17.14-21
N esse trecho bíblico, tomamos conhecimento de outro dos
grandiosos milagres realizados por Jesus Cristo. Ele curou um jovem lunático, que vivia possuído por um demônio. A primeira coisa que descobrimos nesses versículos é um vívido quadro da horrenda influência que, algumas vezes, o demônios exercem sobre os jovens. Ali, lemos a respeito do filho de um homem que, além de “lunático”, também sofria muito. Um espírito maligno o estava pressionando, tentando destruir seu corpo e sua alma, “pois muitas vezes cai no fogo, e outras muitas, na água”. Vemos aqui um daqueles casos de possessão demoníaca que, embora fossem comuns nos dias de nosso Senhor na terra, hoje em dia são encontrados com certa raridade. Porém, podemos facilmente imaginar que, quando esses ataques aconteciam, sem dúvida deixavam suas vítimas extremamente aflitas e agoniadas. Já é doloroso ver os corpos daqueles a quem amamos esmagados pelas enfermidades. E mais doloroso ainda deve ser ver o corpo e a mente de algum ente querido totalmente debaixo da influência do diabo! Disse o bispo Hall: “Fora do inferno, não pode haver desgraça pior”. Todavia, nunca nos deveríamos esquecer de que há muitas maneiras de Satanás exercer controle espiritual entre os jovens, que são tão lamentáveis quanto o caso que estamos considerando nessa passagem. Há milhares e milhares de jovens que parecem ter-se entregado completamente às sugestões de Satanás, tendo ficado cativos à sua vontade. Esses jovens desfazem-se de todo o temor de Deus e perdem todo o respeito por seus mandamentos. Antes, servem a diversas concupiscências e prazeres distorcidos. Atiram-se loucamente a todos os excessos e devassidões. Recusam-se a ouvir os conselhos de seus progenitores, mestres ou ministros do evangelho. Jogam para um lado todas as preocupações com a própria saúde, com o próprio caráter e com a própria respeitabilidade perante seus semelhantes. Fazem tudo que está ao seu alcance, a fim de se arruinar de corpo e alma, no tempo e na eternidade. São escravos voluntários de Satanás. Quem nunca viu jovens nessas condições? Podem ser encontrados nas grandes cidades e nas áreas rurais. Procedem tanto das classes abastadas como das classes humildes. Certamente, esses jovens servem de prova entristecedora de que, embora Satanás raramente tome posse dos corpos dos homens nestes nossos dias, continua exercendo domínio maléfico sobre as almas dos homens em geral. Contudo, jamais nos deveríamos esquecer de que, nem mesmo no caso de jovens nessa situação, deveríamos perder a esperança. Antes, deveríamos recordar-nos de que nosso Senhor Jesus Cristo é o Todo-Poderoso. Por pior que fosse o caso daquele rapazinho, sobre quem lemos nesses versículos, ele foi “curado”, e isso “desde aquela hora” mesma em que foi apresentado a Cristo! Os pais, os mestres e os pregadores deveriam continuar orando em favor dos jovens, mesmo quando eles exibem seu lado mais negro. Por mais endurecidos que pareçam ser seus corações, ainda assim tais corações poderão ser abrandados. Por mais desesperadora que seja sua iniquidade no momento, ainda assim poderão ser curados. À semelhança de John Newton, eles poderão chegar a se arrepender e se converter, e seu último estado parecer melhor do que o inicial. Quem é capaz de negar isso? Que, para nós, isso constitua um princípio fixo, quando lemos a respeito dos milagres realizados por nosso Senhor, que jamais desistamos de esperar pela salvação de quem quer que seja! Em segundo lugar, nesses versículos, encontramos um extraordinário exemplo do efeito debilitador da incredulidade. Os discípulos indagaram ansiosamente de nosso Senhor, ao notarem que o demônio cedera diante do poder de Cristo: “Por que motivo não pudemos expulsá-lo?”. E receberam uma resposta plena da mais rica e proveitosa lição: “Por causa da pequenez da vossa fé”. Eles desejavam conhecer o segredo de seu próprio e triste fracasso na hora da necessidade? Era a falta de uma fé mais firme. Ponderemos bem sobre esse incidente e aprendamos a ser sábios. A fé é a chave do sucesso na guerra espiritual do crente. A incredulidade é o caminho garantido da derrota. Se permitirmos que nossa fé se enfraqueça e caia em decadência, todas as nossas graças cristãs se debilitarão juntamente com ela. A coragem, a paciência, a longanimidade e a esperança não demorarão para murchar e desaparecer. A fé é a raiz da qual todas essas outras virtudes dependem. Os mesmos israelitas que, em certa ocasião, atravessaram triunfalmente o mar Vermelho, em outra oportunidade encolheram-se diante do perigo como covardes, ao chegarem às bordas da Terra Prometida. O Deus deles continuava o mesmo que os tirara da servidão na terra do Egito. O líder deles era o mesmo Moisés, que operara tantas maravilhas diante de seus olhos. No entanto, a fé deles já não era mais a mesma. Eles tinham dado margem a vergonhosas dúvidas acerca do amor e do poder do Senhor Deus: “[...] não puderam entrar por causa da incredulidade” (Hb 3.19). Por último, vemos nesses versículos que o reino de Satanás não pode ser derrubado sem muita luta e diligência. Parece ser essa a lição com que se encerra a presente passagem. “Mas esta casta não se expele senão por meio de oração e jejum.” Nessas palavras, parece haver implícita uma reprimenda gentil de Jesus aos seus discípulos. Talvez eles estivessem por demais entusiasmados com os sucessos do passado. Ou talvez estivessem sendo menos diligentes no uso dos meios da graça, em face da ausência de seu Senhor, do que quando Cristo estava em sua companhia. Independentemente de qual tenha sido a causa, eles receberam uma indicação perfeitamente clara, da parte de nosso Senhor, de que a guerra contra Satanás jamais deve ser travada de modo superficial. Assim, foram instruídos quanto ao fato de que nenhuma vitória sobre o príncipe deste mundo pode ser ganha de modo fácil. Sem a oração fervorosa e sem a automortificação diligente, com frequência haveremos de amargar fracasso e derrota. A lição aqui ressaltada reveste-se de grande importância. Afirmou Bullinger: “Eu gostaria que essa porção do evangelho nos agradasse tanto quanto aquelas porções que nos concedem liberdade”. Todos nos inclinamos a cumprir nossos atos devocionais de maneira impensada e apenas formal. A exemplo do povo de Israel, que estava envaidecido diante da queda das muralhas de Jericó, estamos sempre dispostos a dizer a nós mesmos: “são poucos os inimigos” (Js 7.3). Desse modo, pois, imaginamos que não precisamos exercitar toda a nossa força espiritual. Mas também, a exemplo de Israel, por muitas vezes somos obrigados a experimentar, com amargor de espírito, que as batalhas espirituais não são vencidas sem uma luta árdua. Em nenhuma hipótese a arca do Senhor pode ser manuseada com irreverência. O trabalho do Senhor não pode ser feito de maneira desleixada. Que nunca nos esqueçamos das palavras de nosso Senhor aos seus discípulos e que tenhamos como regra sempre colocá-las em prática! No púlpito ou na plataforma, na Escola Dominical ou no local de trabalho, no uso que fizermos de nossas orações domésticas e da leitura da Bíblia, sempre devemos vigiar com diligência sobre nossos próprios espíritos! Qualquer coisa que estejamos fazendo, devemos fazer em conformidade com nossas “forças” (Ec 9.10). Constitui um erro fatal subestimar nossos adversários. Maior é aquele que está conosco do que aquele que é contra nós. Mas, a despeito disso, aquele que nos é contrário não deveria ser subestimado quanto à sua periculosidade. Ele é o próprio príncipe deste mundo. Ele é o forte homem armado que guarda a sua casa e que não sai dela para dividir seus bens com alguém, senão depois de muita luta. Não temos de combater contra carne e sangue, mas, sim, contra principados e potestades. Portanto, precisamos revestir- nos de toda a armadura de Deus. E não apenas nos revestirmos dela, como também usá-la. Podemos ter a mais absoluta certeza de que aqueles que obtêm o maior número de vitórias sobre o mundo, a carne e o diabo são justamente aqueles que mais oram em secreto, fazendo conforme Paulo: “Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão” (1Co 9.27). O peixe e a moeda do tributo Leia Mateus 17.22-27
N esses versículos, transparece certa circunstância, dentro da
vida de nosso Senhor, que não foi narrada por qualquer dos demais evangelistas, além de Mateus. Um milagre notável foi efetuado, a fim de providenciar o necessário para o pagamento do dinheiro do tributo, requerido para a manutenção do templo de Jerusalém. Nessa narrativa, existem três pontos que se destacam e, portanto, merecem nossa atenta observação. Em primeiro lugar, observemos que nosso Senhor tinha perfeito conhecimento de tudo que é dito e feito neste mundo. Lemos ali que aqueles que “cobravam o imposto das duas dracmas” dirigiram-se a Pedro e lhe perguntaram: “Não paga o vosso Mestre as duas dracmas?”. E a resposta dada por Pedro foi a afirmativa: “Sim”. É evidente que nosso Senhor não estava presente quando essa pergunta foi formulada e essa resposta foi dada. No entanto, nem bem Pedro chegou àquela casa, e o Senhor lhe foi logo perguntando: “Simão, que te parece? De quem cobram os reis da terra imposto ou tributo; dos seus filhos, ou dos estranhos?”. Dessa maneira, pois, Jesus mostrou a Pedro que sabia da conversa que esse apóstolo tivera com aqueles homens, como se ele estivesse nas imediações, escutando tudo. Existe algo de indescritível solenidade na ideia de que o Senhor Jesus sabe de todas as coisas. Há um par de olhos que acompanha toda a nossa conduta diária. Há alguém que escuta todas as palavras que dizemos a cada dia. Todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem teremos de prestar contas. É simplesmente impossível nos ocultarmos dele. A hipocrisia é perfeitamente inútil. Podemos enganar os pregadores. Podemos fingir diante de nossos parentes e vizinhos. O Senhor, no entanto, vê todas as coisas com clareza. Não podemos enganar a Cristo. Deveríamos fazer um esforço para usar essa verdade de modo prático. Deveríamos esforçar-nos para viver como que diante dos olhos do Senhor, conforme recomendado a Abraão: “anda na minha presença” (Gn 17.1). Que nosso alvo diário seja nada dizer que não gostaríamos que Cristo ouvisse, e nada fazer que não gostaríamos que Cristo visse! De igual modo, deveríamos medir cada questão difícil, sobre o que é certo ou errado, mediante um teste simples: Como eu me comportaria se Jesus estivesse de pé, ao meu lado? Um padrão assim não é extravagante nem absurdo. Também não é uma norma capaz de interferir em qualquer dever ou relacionamento em nossa vida. Interfere exclusivamente com o pecado. Feliz é aquele que procura sentir a presença de seu Senhor, fazendo e dizendo todas as coisas como se estivesse na presença dele. Observemos ainda que nosso Senhor exerce seu infinito poder sobre toda a Criação. Jesus fez de um peixe seu tesoureiro. Fez uma criatura muda trazer o dinheiro do imposto, para satisfazer às exigências do coletor. Com toda a razão, pois, Jerônimo comentou: “Não sei o que mais admirar aqui, se a presciência de nosso Senhor ou se a sua grandeza”. Deparamos aqui com o cumprimento literal das palavras do salmista: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão, e sob seus pés tudo lhe puseste [...] as aves do céu e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8.6-8). Temos aqui uma prova, dentre muitas outras, da majestade e da grandeza de nosso Senhor Jesus Cristo. Somente ele, que foi o Criador de todas as coisas, poderia exigir a obediência de todas as suas criaturas. “Tudo foi criado por meio dele e para ele [...] nele tudo subsiste” (Cl 1.16-17). O crente que parte para realizar a obra de Cristo entre os incrédulos pode entregar-se, com toda a confiança, aos cuidados de seu Senhor. Porquanto estará servindo àquele que detém toda a autoridade, até mesmo sobre as feras da terra. Quão maravilhoso é o pensamento que esse Senhor Todo- Poderoso tenha condescendido em ser crucificado, a fim de salvar- nos! Quão consolador é o pensamento que, quando ele vier ao mundo, pela segunda vez, haverá de manifestar gloriosamente seu poder sobre todas as coisas criadas, no mundo inteiro! “O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente” (Is 65.25). Por último, observemos, nesses versículos, a disposição de nosso Senhor em fazer concessões, por não querer escandalizar ninguém. Com toda a razão, Jesus poderia ter reivindicado isenção do pagamento do dinheiro do tributo. Aquele que é o próprio Filho de Deus com toda a justiça poderia ser dispensado de pagar pela manutenção da casa de seu Pai. Aquele que se mostrou “maior que o templo” poderia ser reconhecido como quem não precisava contribuir para o sustento do templo. Nosso Senhor, entretanto, não fez nada disso. Não reivindicou isenção. Pelo contrário, demonstrou que desejava que Pedro pagasse o dinheiro que fora cobrado. Ao mesmo tempo, porém, Jesus declarou seus motivos. Isso deveria ser feito “para que não os escandalizemos”. A esse respeito, o bispo Hall comentou: “Foi efetuado um milagre, a fim de que nem mesmo um coletor de impostos ficasse escandalizado”. Nesse incidente, o exemplo dado por nosso Senhor merece toda a atenção da parte daqueles que se professam e se chamam cristãos. Oculta-se uma profunda sabedoria naquelas cinco palavras: “para que não os escandalizemos”. Elas nos ensinam, com toda a clareza, que existem questões acerca das quais o povo de Cristo deveria abafar as próprias opiniões, submetendo-se a requisitos que talvez não aprovem plenamente, somente por não quererem escandalizar a ninguém, nem “pôr tropeço diante do evangelho de Cristo”. Dos direitos de Deus, é indubitável, jamais deveríamos desistir; mas, de nossos próprios direitos, ocasionalmente podemos desistir deles, com real proveito. Talvez soe correto e pareça heroico estarmos continuamente a defender, com tenacidade, nossos direitos. Porém, diante de uma passagem bíblica como a que temos diante de nós, bem poderíamos duvidar se tal tenacidade sempre é sábia e se reflete a mente de Cristo. Há ocasiões em que o crente demonstra maior graça submetendo-se do que oferecendo resistência. Lembremo-nos dessa passagem na qualidade de cidadãos e patriotas. Talvez não aprovemos todas as medidas políticas adotadas por nossos governantes. Talvez discordemos de alguns dos impostos que eles determinam. Mas, após tudo isso, a grande indagação é: “Redundará em qualquer benefício para a causa da religião cristã se eu resistir às autoridades constituídas? As medidas decretadas por elas realmente estão prejudicando o bem-estar da minha alma?”. Em caso negativo, fiquemos tranquilos, “para que não os escandalizemos”. Também devemos recordar esse trecho bíblico na qualidade de membros da Igreja de Cristo. Talvez não gostemos de tudo que ocorre nas cerimônias e nos ritos do grupo evangélico a que pertencemos. Talvez pensemos que aqueles que nos governam quanto às questões espirituais nem sempre se mostram sábios. Mas, em última análise, os pontos sobre os quais nos sentimos insatisfeitos são, realmente, de importância vital? Alguma das grandes verdades do evangelho está sendo ameaçada? Em caso contrário, fiquemos quietos, “para que não os escandalizemos”. Lembremo-nos também dessa passagem na qualidade de membros que fazem parte de uma sociedade. Dentro do círculo social ao qual pertencemos, talvez existam regras e normas que nós, como crentes que somos, entendemos como cansativas, inúteis e sem proveito. Contudo, essas questões são fundamentais? Elas prejudicam nossas almas? A causa da religião cristã seria beneficiada de alguma maneira se nos recusássemos a anuir diante de tais imposições? Em caso contrário, sujeitemo-nos pacientemente a tais coisas, “para que não os escandalizemos”. Teria sido muito bom, para a igreja e para o mundo, se essas cinco palavras proferidas por nosso Senhor fossem estudadas com mais afinco, ponderadas e postas em prática! Quem é capaz de calcular o dano que tem sido feito contra a causa do evangelho por aqueles escrúpulos mórbidos e por aquilo que muitos chamam de consciência? Faríamos muito bem em relembrar o exemplo que o grande apóstolo dos gentios nos deixou: “antes, suportamos tudo, para não criarmos qualquer obstáculo ao evangelho de Cristo” (1Co 9.12). A necessidade da conversão e da humildade; a realidade do inferno Leia Mateus 18.1-14
A primeira coisa que nos é ensinada nesses quinze versículos é a
necessidade de conversão, manifestada sob a forma de humildade como a de uma criança. Os discípulos apresentaram-se ao Senhor com a seguinte indagação: “Quem é, porventura, o maior no reino dos céus?”. Eles falaram como homens não bem iluminados, impulsionados por muitas expectativas carnais. E receberam uma resposta de modo a despertá-los de seus sonhos em plena luz do dia — uma verdade que jaz nos próprios fundamentos do cristianismo: “Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus”. Permitamos que essas palavras penetrem no fundo de nossos corações. Sem conversão, também não há salvação. Todos nós precisamos de uma mudança radical em nossa natureza. Por nós mesmos, não teríamos nem fé, nem temor, nem amor para com Deus. “Importa-vos nascer de novo” (Jo 3.7). Por nós mesmos, somos totalmente despreparados para habitar na presença do Senhor. O céu não seria céu para nós se não nos convertêssemos. Isso se aplica com igual verdade a todas as fileiras, classes e ordens da humanidade. Todos nós temos nascido no pecado e somos filhos da ira, sem uma única exceção. Por isso mesmo, precisamos nascer do alto, tornando-nos novas criaturas. É mister que um coração novo comece a pulsar dentro de nós, que um espírito novo nos seja insuflado. As coisas antigas precisam passar, e todas as coisas devem ser renovadas. É algo excelente alguém ser batizado em uma igreja evangélica e usufruir dos meios cristãos da graça. Mas, antes de tudo, o que realmente importa é: Já nos convertemos? Gostaríamos de saber se realmente estamos convertidos? Conhecemos aquele teste por meio do qual podemos submeter-nos à prova? O sinal mais seguro de uma conversão autêntica é a humildade. Se, na verdade, já recebemos o Espírito Santo de Deus, então haveremos de reconhecer o fato por intermédio de uma atitude mansa como a de uma criança; e, à semelhança das crianças, haveremos de pensar a nosso próprio respeito com modéstia, ao considerarmos nossas forças e nossa sabedoria, e também porque nos mostraremos muito dependentes de nosso Pai celeste. À semelhança das crianças, não buscaremos para nós mesmos grandes coisas neste mundo; e, se tivermos alimentos, vestes e o amor de nosso Pai dos céus, então ficaremos contentes. Na verdade, esse é um teste que nos perscruta os corações! Ele desmascara as distorções de muitas supostas conversões. É fácil alguém converter-se de uma igreja para outra, de um conjunto de opiniões para outro. Conversões dessa natureza jamais salvaram uma alma sequer. Aquilo de que todos precisamos é converter-nos do orgulho para a humildade, de elevados conceitos sobre nós mesmos para pensamentos modestos a nosso respeito, do autoconvencimento para a auto-humilhação e da mentalidade de um fariseu para a mentalidade de um publicano. Se quisermos ter qualquer esperança de salvação, então precisaremos experimentar uma conversão desse alto nível. Porquanto essas são as conversões operadas pelo Espírito Santo. A próxima coisa que nos é ensinada nesses versículos é o grande pecado que consiste em pôr pedras de tropeço no caminho dos crentes. As palavras emitidas por nosso Senhor, sobre esse assunto, foram peculiarmente solenes: “Ai do mundo por causa dos escândalos [...] ai do homem pelo qual vem o escândalo”. Ora, colocamos pedras de tropeço ou escândalos no caminho das almas humanas sempre que fazemos qualquer coisa a fim de impedi-las de se aproximar de Cristo, ou que poderiam forçá-las a se desviar do caminho da salvação, ou que poderiam desgostá-las no tocante ao cristianismo bíblico. Podemos fazer isso diretamente, perseguindo, lançando no ridículo, fazendo oposição ou procurando dissuadir os homens de servir a Cristo. Também podemos fazer isso de modo indireto, se vivermos de maneira incoerente com a religião que professamos, ou fazendo o cristianismo parecer repelente e insatisfatório, mediante nossa própria conduta condenável. Sempre que fizermos qualquer coisa desse tipo, conforme torna-se claro pelas palavras de nosso Senhor, estaremos cometendo um pecado grave. Há algo de muito temível na doutrina aqui estabelecida por Jesus Cristo. Tal doutrina deveria despertar em nós o desejo de sondar cuidadosamente nossos corações. Temos a certeza de que não estamos sendo prejudiciais a outras pessoas? Talvez não estejamos perseguindo abertamente os servos de Cristo. Porém, não estaríamos dando mau exemplo a nenhum deles, por meio de nossa conduta? É horrível quando pensamos a respeito do grande dano causado por alguém que professa falsamente seguir a religião cristã. Essa pessoa estará pondo uma arma nas mãos dos incrédulos. Estará suprindo os mundanos com uma desculpa para se manterem na impenitência. Uma pessoa assim atrapalha aqueles que estão em busca de salvação. Desencoraja os santos. Em suma, age como um sermão vivo, em favor do diabo. Somente o último dia haverá de desvendar toda a ruína sofrida pelas almas por causa dos “escândalos” praticados no próprio seio da Igreja do Senhor. Uma das acusações de Natã contra Davi foi a seguinte: “deste motivo a que blasfemassem os inimigos do Senhor” (2Sm 12.14). A próxima verdade que esses versículos nos mostram é a realidade do castigo futuro, após a morte física. Duas expressões incisivas foram empregadas por nosso Senhor quanto a esse particular. Ele falou em alguém ser “lançado no fogo eterno” e também em ser “lançado no inferno de fogo”. O significado dessas palavras é claro e inequívoco. No mundo vindouro, existe um lugar caracterizado por uma indescritível miséria, em que serão encerrados todos que morrerem na impenitência e na incredulidade. Nas Escrituras, por conseguinte, é-nos revelada uma “ardente indignação” que, mais cedo ou mais tarde, haverá de devorar todos os adversários de Deus (Hb 10.27). A mesma firme palavra que garante o céu para todos que se arrependerem e converterem também declara, sem rodeios, que há um inferno à espera dos ímpios. Que ninguém tente enganar-nos com vãs palavras sobre esse assunto horrendo! Nesses últimos dias, têm surgido indivíduos que professam negar a eternidade da punição futura, e que, assim, repetem o antigo argumento do diabo, o qual disse: “É certo que não morrereis” (Gn 3.4). Que nenhum desses falsos raciocínios nos abale, por mais plausíveis que pareçam ser! Conservemo-nos firmes nas veredas antigas. O Deus de amor e misericórdia também é o Deus da justiça. Sem a menor sombra de dúvida, ele retribuirá. O Dilúvio, dos dias de Noé, e a destruição da cidade de Sodoma tiveram por finalidade mostrar-nos o que Deus fará, algum dia, no futuro. Nenhuma boca jamais falou com tanta clareza sobre o inferno como a do próprio Jesus Cristo. Os pecadores insensíveis acabarão descobrindo, para sua própria perdição eterna, que existe realmente a “ira do Cordeiro” (Ap 6.16). A última coisa que podemos aprender, com base nesses versículos, é o valor dado por Deus até o menor e mais fraco dos crentes. “Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos.” Essas palavras ficaram registradas com o propósito de encorajar todos os crentes verdadeiros, e não somente as criancinhas, como é lógico. A conexão dessas palavras com a parábola sobre as cem ovelhas, em que uma delas se desviou e se perdeu, parece esclarecer esse ponto acima de qualquer sombra de dúvida. O propósito delas é mostrar-nos que nosso Senhor Jesus é um Pastor que cuida ternamente de cada alma entregue aos seus cuidados. Para ele, os membros mais recentes, mais fracos e doentios de seu rebanho, são tão preciosos quanto os mais robustos. Eles nunca perecerão. Ninguém poderá arrancá-los da mão do Senhor. Ele mesmo haverá de conduzi-los gentilmente pelos desertos deste mundo. Ele não haverá de permitir que caminhem depressa demais, em um único dia, a fim de que nenhum deles venha a perecer (Gn 33.13). Ele haverá de fazê-los ultrapassar quaisquer dificuldades. Ele os defenderá de todo e qualquer adversário. Estas palavras, ditas por Jesus, serão literalmente cumpridas: “Não perdi nenhum dos que me deste” (Jo 18.9). Ora, com um Salvador assim, quem precisa ter medo de começar a ser um cristão decidido? Contando com um Pastor desse quilate, que já iniciou em nós sua obra, quem poderia temer uma possível rejeição? Como resolver diferenças entre os crentes; natureza da disciplina eclesiástica Leia Mateus 18.15-20
A s palavras do Senhor Jesus contidas nesses versículos
encerram uma expressão que, com frequência, tem sido mal aplicada. A ordem que afirma: “dize-o à igreja” tem sido interpretada de tal maneira que chega a contradizer outras passagens da Palavra de Deus. Tal ordem tem sido falsamente aplicada à autoridade da igreja visível, quanto às questões doutrinárias, razão pela qual tem servido de justificativa para o exercício de muita tirania eclesiástica. Porém, os abusos contra as verdades das Escrituras não deveriam tentar-nos a negligenciar seu uso correto. Não devemos desprezar qualquer texto bíblico somente porque alguns o têm pervertido e transformado em veneno. Observemos, em primeiro lugar, quão admiráveis são as normas determinadas por nosso Senhor para a solução de divergências entre os irmãos. Se, lamentavelmente, tivermos sido ofendidos por algum outro membro da Igreja de Cristo, o primeiro passo a ser dado será visitá-lo e “argui-lo entre ti e ele só”, na tentativa de corrigir a falha. Talvez esse irmão nos tenha ofendido sem intenção, conforme aconteceu entre Abimeleque e Abraão (Gn 21.26). Sua conduta talvez admita uma ótima explicação, como aquela que foi dada pelos membros das tribos de Rúben, Gade e Manassés, quando erigiram um altar, ao retornarem para a sua própria terra (Js 22.24). Seja como for, essa maneira amigável, fiel e franca de entrar em entendimento é o curso mais provável para ganharmos de volta algum irmão que nos tenha ofendido em qualquer sentido. “A língua branda esmaga ossos” (Pv 25.15). Quem pode garantir que aquele irmão não venha a reconhecer imediatamente: “Eu estava errado”, para, em seguida, reparar seu erro, desculpando-se conosco? Entretanto, se essa maneira de proceder não produzir qualquer bom resultado, um segundo passo deverá ser dado por nós. Nesse caso, conforme Jesus disse, “toma ainda contigo uma ou duas pessoas”, para que, mediante o depoimento dessas testemunhas, seja procurada a solução diante do irmão ofensor. Talvez a consciência desse irmão seja tocada e, assim, reconheça seu erro, envergonhe-se e arrependa-se. Caso contrário, ainda assim, disporemos do depoimento daquelas duas ou três testemunhas de que fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para que nosso irmão voltasse à sobriedade, pois se recusara a fazer na primeira tentativa e, agora, novamente, na segunda. Finalmente, se essa segunda tentativa tiver sido inútil, então devemos relatar a questão inteira à congregação local da qual fazemos parte, cumprindo, assim, a recomendação de Cristo: “dize- o à igreja”. Talvez o coração que se mostrara inabalável na primeira e na segunda tentativas renda-se por fim, diante do temor do desmascaramento público. Mas, se o ofensor, ainda assim, não quiser dobrar-se, então só nos restará uma conclusão a respeito do estado daquele irmão: devemos considerá-lo, embora com tristeza, como alguém que preferiu desfazer-se de todos os princípios cristãos, deixando-se guiar pelos motivos inferiores que impulsionam qualquer “gentio e publicano”. Essa passagem é uma linda instância de sabedoria mesclada com terna consideração, que se percebe no ensinamento de nosso Senhor. Quanto conhecimento ele demonstrou possuir sobre a natureza humana! Coisa alguma é tão prejudicial para a causa da religião cristã quanto as desavenças entre os cristãos. Por conseguinte, nenhuma pedra deveria ser deixada sem revirar, nenhuma tribulação deveria ser evitada, se somente assim tais desavenças cheguem a se tornar questões de domínio público. Jesus, portanto, mostrou profunda e delicada preocupação com a sensibilidade da pobre natureza humana! Muitos problemas escandalosos poderiam ser evitados se estivéssemos mais dispostos a praticar aquela regra que diz “entre ti e ele só”. Se essa porção das instruções de Jesus fosse mais cuidadosamente estudada e obedecida, iria traduzir-se em grande felicidade para a igreja e para o mundo. Enquanto o mundo existir como é, sempre haverá discórdias e divisões entre nós. Entretanto, quantas dessas coisas seriam imediatamente extintas se o curso de ação recomendado por Jesus, nesses versículos, fosse experimentado! Em segundo lugar, observemos o claro argumento que encontramos nesses versículos em favor do exercício da disciplina em uma comunidade cristã. Nosso Senhor determinou que os desacordos entre os crentes que não possam ser solucionados de outra maneira sejam entregues à decisão da igreja local à qual aqueles irmãos pertencem. Asseverou ele: “dize-o à igreja”. Com base nesses fatos, é evidente que o Senhor tenciona que cada local de crentes professos tome conhecimento da conduta moral de seus membros, ou mediante a ação coletiva da comunidade inteira, ou por meio de líderes e anciãos aos quais seja delegada autoridade espiritual. Também é patente que ele queria que cada congregação tivesse a autoridade de excluir membros desobedientes e refratários, para que não participassem de suas atividades normais, como a prática das ordenanças. Declarou o Senhor Jesus: “E, se ele não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano”. Jesus não disse uma única palavra sobre castigos temporais ou sobre impedimentos civis. Penas de cunho espiritual são as únicas que Jesus permitiu à sua igreja infligir. Mas, quando essa aplicação é corretamente feita, tal punição não pode ser considerada algo sem importância: “tudo o que ligardes na terra terá sido ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado no céu”. Parece que essa é a substância do ensinamento de nosso Senhor acerca da disciplina eclesiástica. É inútil tentar negar que o assunto inteiro está circundado de dificuldades. Sobre nenhuma outra particularidade a influência do mundo tem pesado tanto sobre a ação das igrejas locais. Sobre nenhum outro ponto as igrejas locais têm cometido tantos erros — algumas vezes para o lado de uma indiferença sonolenta, e, outras vezes, para o lado de uma cega severidade. Não há que se duvidar de que a autoridade da exclusão tem sido temivelmente abusada e pervertida; e, conforme Quesnel escreveu: “Deveríamos temer mais os nossos pecados do que todas as exclusões no mundo”. A despeito disso, é impossível negarmos, contando com uma passagem como essa, que a disciplina eclesiástica harmoniza-se com a mentalidade de Cristo, de tal maneira que, quando devidamente exercida, visa promover o bem-estar e a higidez da igreja. Não pode mesmo ser direito que toda variedade de indivíduos, por mais ímpios e malignos que sejam, tenha permissão para se achegar à mesa do Senhor sem que ninguém os impeça ou proíba. Faz parte dos deveres mais solenes de todo crente usar sua influência para tentar impedir a continuação desse estado de coisas. Nunca poderemos conseguir uma perfeita comunhão neste mundo, embora a pureza deva ser nosso grande alvo. Um padrão crescentemente mais elevado de qualificações, para que alguém se torne membro de uma igreja local, sempre será uma das melhores evidências de uma igreja próspera. Por último, observemos quão gracioso encorajamento Cristo tem em relação àqueles que se reúnem em seu nome. Ele declarou: “Porque onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles”. Essa declaração serve de notável comprovação indireta da divindade do Senhor Jesus. Pois somente Deus pode estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Nessas palavras, também há uma grande consolação para todos aqueles que apreciam reunir-se com outros crentes, com propósitos de adoração religiosa. Em cada reunião de adoração pública, em cada reunião de oração ou louvor, em cada reunião missionária, em cada reunião de leitura da Bíblia, encontra-se presente o próprio Rei dos reis, Jesus Cristo. Talvez nos sintamos desencorajados, por muitas vezes, diante do pequeno número de pessoas presentes aos cultos, em comparação com o grande número que se reúne com propósitos seculares e mundanas. Outras vezes, sentiremos dificuldade em suportar os insultos e o ridículo de indivíduos de natureza maligna, que clamam como aqueles antigos inimigos fizeram: “Que fazem esses fracos judeus?” (Ne 4.2). Todavia, não temos razão para o desânimo. Pois podemos ficar dependendo da palavra de promessa do Senhor Jesus. Em todas as nossas reuniões, contaremos com a companhia do próprio Cristo. Por outro lado, nessas palavras há uma solene repreensão para todos aqueles que negligenciam a adoração pública a Deus, e nunca se fazem presentes às reuniões com propósitos religiosos. Esses estão voltando as costas à sociedade do Senhor dos senhores. Eles perdem a oportunidade de se encontrar pessoalmente com o próprio Cristo, na dimensão coletiva. De coisa alguma lhes adianta tentar justificar-se de que as reuniões dos crentes são assinaladas por defeitos e debilidades, ou que o crente obtém tantas bênçãos ficando em casa quanto frequentando os cultos na igreja. As palavras proferidas por nosso Senhor deveriam silenciar todos os argumentos desse tipo. Sem dúvida, não demonstram sabedoria aqueles indivíduos que falam com escarninho de qualquer reunião em que Cristo se faz presente. Bem poderíamos ponderar sobre todas essas coisas. Se já nos reunimos com o povo de Deus, para efeitos espirituais, no passado, então perseveremos nessa prática e não nos envergonhemos dela. Se, até o momento, temos desprezado tais reuniões, reconsideremos nossa maneira de agir e aprendamos a ser sábios. A parábola do servo que não queria perdoar Leia Mateus 18.21-35
N esses versículos, o Senhor Jesus abordou um assunto de
máxima importância: como devemos perdoar as ofensas. Vivemos em um mundo maligno, e é inútil esperar que consigamos escapar aos maus-tratos, por mais cuidadosamente que nos comportemos. Saber como nos conduzir quando somos maltratados é algo importantíssimo para nossas almas. Em primeiro lugar, o Senhor Jesus estabeleceu uma regra geral, de que devemos perdoar as outras pessoas ao máximo. Foi Pedro quem apresentou a seguinte indagação: “Senhor, até quantas vezes meu irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe? Até sete vezes?”. E, em resposta, Jesus lhe disse: “Não te digo que até sete vezes, mas até setenta vezes sete”. A regra aqui estabelecida, naturalmente, precisa ser interpretada com sobriedade. Nosso Senhor não quis dar a entender que as transgressões contra as leis da terra e contra a boa ordem social devam ser desconsideradas e passadas em silêncio. Ele também não quis dizer que devamos permitir que as pessoas cometam furtos e assaltos, e fiquem impunes. Tudo que ele quis dizer é que devemos manter uma atitude geral de misericórdia, disposta a perdoar nossos irmãos e semelhantes. Precisamos tolerar muita coisa e suportar muitas injustiças, em vez de logo entrarmos em conflito com nossos ofensores. Também devemos afrouxar sobre muitas coisas, submetendo-nos a muitas imposições, antes de entrarmos em choque com outras pessoas. E, de igual modo, devemos repelir tudo que tem a aparência de malícia, contenda, vingança e retaliação. Sentimentos dessa ordem servem somente para os incrédulos. Mas, no caso de qualquer discípulo de Cristo, são totalmente indignos. Quão mais abençoada seria a vida neste mundo se essa norma ditada por nosso Senhor fosse mais largamente reconhecida e obedecida! Quantas das desgraças que sobrevêm à humanidade são ocasionadas por disputas, querelas, ações judiciais e pela obstinada tenacidade quanto àquilo que os homens costumam intitular de “meus direitos”! Quantos conflitos entre os homens poderiam ser evitados se ao menos os homens se dispusessem mais ao perdão e desejassem mais que a paz imperasse! Nunca nos deveríamos esquecer de que nenhuma fogueira pode continuar queimando sem lenha. De igual forma, são necessárias duas pessoas para que se inicie uma briga. Portanto, que cada uma das duas pessoas resolva, pela graça de Deus, que não contribuirá para que a briga tenha início e prossiga. Antes, devemos resolver pagar o mal com o bem, e a maldição com a bênção, dissipando, assim, toda inimizade e transformando nossos adversários em amigos (Rm 12.20). Era uma excelente qualidade de caráter do arcebispo Cranmer que, quando alguém chegava a ofendê-lo, certamente acabaria tornando-se amigo dele. Em segundo lugar, nosso Senhor supriu-nos com dois poderosos motivos para exercitar um espírito perdoador. Jesus contou a história de um homem que devia uma gigantesca quantia a seu senhor; mas, como não tinha “com que pagar”, chegado o momento da prestação de contas, seu senhor compadeceu-se dele “e perdoou-lhe a dívida”. E Jesus continuou dizendo que esse mesmo homem, após haver sido perdoado, encontrando-se com um companheiro seu que lhe devia uma importância insignificante, recusou-se a perdoá-lo. Além disso, aquele servo exigiu que seu conservo fosse lançado no cárcere, não querendo dispensar a mínima parcela da dívida. Finalmente, conforme o Senhor Jesus ajuntou, o castigo sobreveio àquele servo cruel, que não se dispunha a perdoar. Porquanto, após lhe ter sido mostrada misericórdia, ele também deveria ter-se mostrado misericordioso para com seu semelhante. E o Senhor Jesus conclui sua parábola com estas impressionantes palavras: “Assim também meu Pai celeste vos fará se, do íntimo, não perdoar cada um a seu irmão”. Nessa parábola de Jesus, fica patente que um dos motivos para perdoarmos nossos semelhantes deveria ser a lembrança de que todos precisamos ser perdoados diante de Deus. Dia após dia, caímos em muitas transgressões e ficamos muito aquém do que deveríamos ser, e “deixamos de fazer, e fazemos aquilo que não deveríamos fazer”. Dia após dia, solicitamos de Deus misericórdia e perdão. As ofensas que outras pessoas têm praticado contra nós são coisas desprezíveis, em comparação com nossas gravíssimas ofensas contra o Senhor. Sem dúvida, não condiz com nossa condição de pobres criaturas pecaminosas, como somos, mostrar- nos excessivamente severos, fazendo cobrança por causa de pequenas falhas que nossos irmãos na fé cometem contra nós, ou mostrando-nos inclinados a não perdoá-los prontamente. Outra razão para que nos mostremos dispostos a perdoar outras pessoas deveria ser a lembrança acerca do dia do julgamento final, juntamente com o padrão que será utilizado naquele dia, acerca de todos que forem julgados. Naquele dia, não será dado o perdão para indivíduos que não se dispuseram a perdoar seus semelhantes. Tais indivíduos, na verdade, não estão aptos a viver no céu. Pois não seriam capazes de dar o devido valor a um lugar de habitação no qual a “misericórdia” é o único título de posse, um local em que a “misericórdia” é o tema de um cântico perene. Sem dúvida, se estamos planejando ser um daqueles que estarão de pé, à direita de Jesus, quando ele se sentar em seu trono de glória, então teremos de aprender a ser perdoadores enquanto ainda estamos neste mundo. Que essas verdades lancem profundas raízes em nossos corações! É um fato lamentável que poucos deveres cristãos estejam sendo postos em prática com tanta parcimônia e má vontade quanto o dever de perdoar o próximo. E é entristecedor verificarmos quanto amargor de espírito, quanta falta de compaixão, quanto despeito, quanta dureza e quanta falta de gentileza manifestam-se entre os homens. No entanto, poucos deveres são tantas vezes ressaltados, nas Escrituras do Novo Testamento, quanto esse. Mas poucas outras falhas de caráter são capazes de fechar tão definitivamente para um homem as portas do reino de Deus quanto essa. Queremos dar provas de que realmente fomos reconciliados com Deus, lavados no sangue de Cristo, nascidos do alto pelo poder do Espírito Santo e feitos filhos de Deus por adoção, em consequência da graça divina? Então, não nos esqueçamos desse passo bíblico. Seguindo o exemplo dado por nosso Pai celestial, disponhamo-nos a perdoar nossos ofensores. Porventura fomos ofendidos por alguém? Devemos perdoar essa pessoa, agora mesmo. E conforme Leighton comentou: “Deveríamos perdoar pouco a nós mesmos, e muito os outros”.Pretendemos ser elementos benéficos à humanidade? Queremos exercer influência positiva sobre nossos semelhantes, para que percebam quão excelente é a religião cristã? Então, não nos esqueçamos dessa passagem. Indivíduos que não se importam com as doutrinas cristãs podem compreender perfeitamente bem o temperamento perdoador de um crente. Queremos desenvolver-nos pessoalmente na graça, tornando- nos mais santos, em toda a nossa formação e em nossas palavras e obras? Então, não nos esqueçamos dessa passagem. Nada entristece tanto o Espírito Santo e obscurece tanto a alma quanto deixar-se o indivíduo levar por um espírito rixento e pelo temperamento que não se dispõe a perdoar (Ef 4.30-32). O juízo de Cristo sobre o divórcio; a ternura de Cristo com as crianças Leia Mateus 19.1-15
N esses versículos, é-nos concedido perceber a mente de Cristo
acerca de dois assuntos de capital importância. O primeiro versa sobre o relacionamento entre marido e mulher. E o segundo diz respeito à maneira como deveríamos pensar acerca das criancinhas, no que concerne às suas almas. É difícil exagerar a importância desses dois assuntos. O bem- estar das nações e a felicidade geral da sociedade humana estão intimamente vinculados a pontos de vista corretos sobre essas questões. As nações nada mais são do que uma coletânea de muitas famílias. E a boa ordem das famílias depende inteiramente de se conservar o mais elevado padrão de respeito pelos laços do matrimônio e pelo correto treinamento das crianças. Deveríamos mostrar-nos agradecidos diante do fato que, sobre ambas essas questões, o grande Cabeça da Igreja pronunciou sua opinião de maneira tão distinta. No tocante ao casamento, nosso Senhor nos ensinou que a união entre marido e mulher jamais deveria ser rompida, exceto pela mais grave causa, como algum ato de infidelidade conjugal. Nos dias em que nosso Senhor esteve neste mundo, o divórcio era permitido entre os judeus, e isso pelos motivos mais superficiais e frívolos. Essa prática, embora tolerada pela legislação mosaica, a fim de impedir males ainda piores — como a crueldade ou o homicídio —, gradualmente foi-se transformando em um insuportável abuso, e, sem dúvida, dava margem a muita imoralidade (Ml 2.14-16). A observação feita pelos discípulos de nosso Senhor desvenda o estado deploravelmente baixo dos sentimentos populares sobre o assunto. Os discípulos comentaram: “Se essa é a condição do homem relativamente à sua mulher, não convém casar”. Sem sombra de dúvida, o que eles queriam dizer era algo como isto: “Se um homem não pode divorciar-se de sua mulher por qualquer motivo, e a qualquer tempo, então é melhor nem casar-se”. Uma linguagem dessas, nos lábios dos apóstolos de Jesus, soa realmente estranha para nós! Nosso Senhor apresentou um padrão inteiramente diferente para servir de orientação a seus discípulos. Antes de qualquer outra coisa, ele fundamentou seu juízo sobre a instituição original do casamento. Para tanto, citou as palavras que aparecem no começo do livro de Gênesis, em que estão descritas a criação do homem e a união de Adão e Eva, como prova do fato de que nenhum outro relacionamento humano deveria ser tão altamente considerado como aquele entre um homem e sua esposa. O relacionamento entre pais e filhos pode parecer muito íntimo; mas o relacionamento entre marido e mulher ainda é mais íntimo. “Deixará o homem pai e mãe, e se unirá à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne.” Em seguida, o Senhor reforçou esse conceito com suas próprias palavras solenes: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem”. E, finalmente, o Senhor fez uma gravíssima acusação, que envolve a quebra do sétimo mandamento, mediante um novo casamento, contraído após o divórcio obtido por motivos superficiais e frívolos: “Quem repudiar sua mulher, não sendo causa de relações sexuais ilícitas, e casar com outra, comete adultério”. Torna-se evidente, portanto, com base no teor inteiro dessa passagem, que a relação matrimonial deveria ser altamente reverenciada e honrada entre o seguidores de Cristo. Trata-se de uma relação que foi instituída no próprio paraíso, no período da inocência do homem. E agora serve de figura simbólica predileta da união mística entre Cristo e sua Igreja. Assim, trata-se de uma relação que somente a morte é capaz de romper. Essa é uma relação que, com a mais absoluta certeza, exercerá incalculável influência, para a felicidade ou para a infelicidade, para o bem ou para o mal, sobre aqueles que ela une. Nunca deveríamos assumir tal relação de maneira frívola, superficial, sem exame prévio; pelo contrário, somente com sobriedade, discrição e a devida consideração dos fatos envolvidos. Lamentavelmente, é fato comprovado que os casamentos efetuados sem seriedade são uma das mais férteis causas da infelicidade, e, com grande frequência, do pecado de muitas pessoas. No que concerne às criancinhas, encontramos nosso Senhor instruindo-nos, nesses versículos, mediante a palavra e a ação, mediante o preceito e o exemplo. “Trouxeram-lhe então algumas crianças, para que lhes impusesse as mãos, e orasse.” Evidentemente, eram crianças bem pequenas, pequenas demais para receber qualquer instrução, embora não pequenas demais para que fossem beneficiadas pela oração em favor delas. Parece, contudo, que os discípulos pensaram que o Senhor nunca se rebaixaria a dar atenção àquelas criancinhas e repreenderam os adultos que as haviam trazido. Todavia, isso provocou uma solene declaração da parte do grande Cabeça da Igreja: “Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a mim, porque dos tais é o reino dos céus”. Há algo de interessantíssimo, tanto na linguagem como nos atos de nosso Senhor, nessa passagem. Reconhecemos a fraqueza e a debilidade, física e mental, das crianças pequeninas. De todas as criaturas que nascem neste mundo, nenhuma é tão impotente e dependente quanto um bebê humano. Sabemos quem era aquele que deu tanta atenção aos infantes, tendo encontrado tempo suficiente, em seu ativo ministério entre homens e mulheres adultos, para orar em favor daquelas crianças, impondo-lhes “as mãos”. Esse Alguém é o próprio filho de Deus, o grande Sumo Sacerdote, o Rei dos reis, por intermédio de quem todas as coisas vieram à existência, “o resplendor da glória e a expressão exata” do Ser de Deus Pai. Que instrutivo quadro apresenta, diante de nossos olhos, toda essa notável transação! Não admira que a maioria dos membros da Igreja de Cristo sempre tenha visto, nessa passagem bíblica, um poderoso, embora indireto, argumento em favor do batismo infantil. Com suporte nesses versículos, aprendamos que o Senhor Jesus cuida ternamente das almas das criancinhas. É perfeitamente provável que Satanás as odeie de modo todo especial. E também é indubitável que Jesus as ame de modo todo especial. Embora tão pequeninas, as crianças não estão abaixo de seus pensamentos e de sua atenção. Seu poderoso coração reserva um lugar para o bebezinho, em seu berço, tanto quanto para o monarca, em seu trono. Jesus considera que cada criancinha traz, em potencial, em seu corpinho, um princípio imorredouro, que sobreviverá às pirâmides do Egito, e até mesmo ao sol e à lua, quando, por fim, se apagarem. Ora, dispondo de uma passagem como esta, diante de nós, sem dúvida podemos esperar a salvação de todos aqueles que morrerem na infância, “[...] porque dos tais é o reino dos céus.”Por último, extraiamos desses versículos um grande encorajamento para ousar grandes coisas, procurando instruir nossas crianças na religião cristã. Desde os mais tenros anos das crianças, tratemos com elas como quem tem uma alma que pode vir a ser salva ou que pode vir a se perder. E, assim, esforcemo-nos para conduzi-las aos pés de Jesus Cristo. Precisamos familiarizar as crianças com a Bíblia Sagrada assim que elas puderem compreender qualquer coisa. Oremos por elas, e também oremos juntamente com elas, ensinando-as a orar por si mesmas. Podemos ter a certeza de que Jesus contemplará com prazer tais esforços de nossa parte, e que ele haverá de abençoar as criancinhas. Podemos ter a certeza de que tais esforços não são inúteis. Com frequência, a semente semeada na infância brota somente após muitos dias. Feliz é a igreja local cujas crianças recebem tanta atenção quanto os membros adultos, que participam da plena comunhão! A bênção daquele que foi crucificado certamente será concedida a qualquer igreja local que costume agir desse modo! Jesus impôs suas mãos sobre as criancinhas. E orou em favor delas. O jovem rico Leia Mateus 19.16-22
E sses versículos detalham um diálogo que teve lugar entre
nosso Senhor Jesus Cristo e um jovem que se aproximou dele, a fim de lhe indagar sobre o caminho para a vida eterna. Tal como toda conversação registrada nos evangelhos, entre nosso Senhor e alguma pessoa qualquer, essa merece atenção especial. A salvação é uma questão individual. Todos que desejam ser salvos precisam entrar em questões particulares com Cristo acerca de suas próprias almas. Antes de qualquer coisa, alicerçados no caso desse jovem rico, percebemos que uma pessoa pode ter o desejo de ser salva e, mesmo assim, não vir a sê-lo. Ali estava um homem que, em um período de incredulidade generalizada, veio falar com Cristo por sua livre vontade. Ele não veio a fim de pedir a cura para alguma pessoa enferma. Não veio para rogar em favor de alguma criança. Mas veio para consultar Jesus sobre sua própria alma. Ele iniciou a conversa com uma pergunta direta e franca: “Mestre, que farei eu de bom para alcançar a vida eterna?”. Sem dúvida, haveríamos de pensar: Eis aí um caso promissor. Esse jovem não é algum líder cheio de preconceitos ou algum fariseu. Antes, é um interessado na salvação de sua alma. No entanto, ao terminar seu diálogo com o Senhor Jesus, o jovem rico “retirou-se triste”, e em porção alguma da Bíblia lemos qualquer informação de que ele jamais se tenha convertido! Nunca deveríamos perder de vista o fato de que, na religião cristã, os bons sentimentos, por si sós, não refletem a presença da graça de Deus. Pois podemos conhecer a verdade apenas intelectualmente. Com frequência, a consciência nos espicaça. Afetos religiosos podem ser despertados lá no íntimo, profundas ansiedades podem brotar, acerca de nossas almas, e até mesmo podemos derramar muitas lágrimas. Tudo isso, porém, ainda não é a conversão. Isso não garante que a genuína obra salvadora do Espírito Santo foi efetuada. Infelizmente, isso ainda não é tudo que seria possível dizer a respeito. Não somente os bons sentimentos, por si sós, não refletem a graça divina, como também podem ser positivamente perigosos se porventura nos contentarmos com eles e não passarmos dos sentimentos à ação. Uma profunda observação daquele poderoso mestre sobre as questões morais, o bispo Butler, é que as impressões passivas, quando repetidas, frequentemente vão perdendo aos poucos todo o poder. As ações por muitas vezes reiteradas produzem apenas um hábito na mente humana. Se cedermos por múltiplas vezes aos nossos sentimentos, sem nos deixarmos conduzir à ação correspondente, finalmente não seremos mais tocados. Apliquemos essa lição às nossas próprias condições. Talvez saibamos o que significa ser assaltado por temores, desejos e anelos religiosos. Cuidemos para nunca depender dessas coisas. Jamais fiquemos satisfeitos enquanto não contarmos com o testemunho interior do Espírito, em nossos corações, de que realmente nascemos de novo e somos novas criaturas. Que não consigamos descansar enquanto não nos tivermos realmente arrependido, tendo lançado mão da esperança que nos é proposta no evangelho. É bom ter sentimentos. Mas é muito melhor converter-se. Em seguida, ainda com base no caso daquele jovem rico, entendemos que as pessoas não convertidas são profundamente ignorantes sobre os assuntos espirituais. Nosso Senhor fez aquele jovem inquiridor meditar sobre o padrão eterno do que é certo e do que é errado: a lei moral. Visto que o jovem havia falado tão ousadamente em “fazer” algo, Jesus submeteu-o a teste, mediante um conselho cuja finalidade era sondar o verdadeiro estado de seu coração: “Se queres, porém, entrar na vida, guarda os mandamentos”. Jesus chegou mesmo a relembrar diante dele a segunda tábua dos mandamentos da lei. Diante da resposta de Jesus, o jovem retrucou prontamente e com toda a confiança: “Tudo isso tenho observado; que me falta ainda?”. Tão completamente ignorante mostrou-se ele no que se refere à profunda espiritualidade dos estatutos de Deus que jamais duvidou de que os estava cumprindo com toda a perfeição. Parecia totalmente inconsciente do fato de que os mandamentos aplicam-se inclusive às palavras e aos pensamentos do indivíduo, e não somente às suas ações. Portanto, se Deus tivesse de entrar em juízo com ele, não poderia responder “nem a uma de mil cousas” (Jó 9.3). Quão entenebrecida devia ser a mente dele quanto à natureza da lei de Deus! Quão baixas deviam ser suas ideias no tocante à santidade que Deus exige de nós! É fato lamentável que uma ignorância parecida com a daquele jovem seja tão comum entre os membros das igrejas evangélicas. Existem milhares de pessoas batizadas que não sabem mais a respeito das doutrinas fundamentais do cristianismo do que os mais autênticos pagãos. Dezenas de milhares enchem nossos templos e capelas toda semana, mas estão totalmente às escuras quanto à verdadeira extensão da pecaminosidade humana. Esses se apegam obstinadamente à antiga noção de que, de uma maneira ou de outra, suas próprias obras serão capazes de salvá-los. Dessa forma, quando os pastores os visitam em seus momentos finais, tais indivíduos mostram-se tão cegos e ignorantes quanto quem nunca teve a oportunidade de ouvir a pregação da verdade divina. Por conseguinte, temos de reconhecer a verdade que estipula: “Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura” (1Co 2.14). Por último, ainda firmados no caso do jovem rico, percebemos que um ídolo afagado no coração pode arruinar uma alma para sempre. Nosso Senhor, que sabia o que existe no homem, finalmente mostrou ao jovem inquiridor qual era seu pecado arraigado, que ele não queria largar. A mesma voz sondadora que dissera à mulher samaritana “Vai, chama teu marido e vem cá” (Jo 4.16) disse agora ao jovem rico: “Vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu; depois vem, e segue-me”. Isso desmascarou de pronto o ponto fraco de seu caráter. A realidade dos fatos era que, a despeito de todos os seus desejos e anelos pela vida eterna, havia uma coisa que ele amava ainda mais do que a sua alma, a saber, as riquezas materiais. Isso posto, o jovem rico não passou na prova. Ele foi pesado na balança e foi achado em falta. E a narrativa sobre ele termina com estas entristecedoras palavras: “Tendo, porém, o jovem ouvido esta palavra, retirou-se triste, por ser dono de muitas propriedades”. Nesse relato, pois, deparamos com mais uma comprovação daquela profunda verdade que afirma: “Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males” (1Tm 6.10). Em nossa maneira de conceber, devemos colocar esse jovem rico lado a lado com Judas Iscariotes e com Ananias e Safira, para, em seguida, aprendermos a evitar a cobiça. Infelizmente, esse é um recife contra o qual milhares de pessoas naufragam. Dificilmente encontraríamos um ministro do evangelho que não poderia apontar para muitos membros de sua congregação e dizer que, humanamente falando, eles “não estão longe do reino de Deus”. Não obstante, esses nunca parecem fazer o menor progresso para mais perto do Senhor. Eles desejam. Eles sentem muito. Eles são sinceros. Eles esperam. Porém, não saem do lugar onde se encontram! E por quê? Porque apreciam exageradamente o dinheiro. Façamos um teste que sonde a nós mesmos, antes de deixarmos para trás essa passagem. Vejamos de que maneira ela afeta nossas almas. Somos honestos e sinceros acerca do desejo que professamos ter, no sentido de sermos crentes verdadeiros? Temos desistido de todos os nossos ídolos? Não haveria algum pecado secreto, ao qual continuamos aferrados em silêncio, recusando-nos a desistir dele? Não haveria alguma coisa, ou alguém, que estejamos amando em particular mais do que a Cristo e às nossas próprias almas? Essas são indagações que bradam, clamando por resposta. A verdadeira explicação sobre o estado insatisfatório de tão grande número de ouvintes do evangelho é que eles estão presos à idolatria espiritual. O conselho do apóstolo João aplica-se bem a eles: “Filhinhos, guardai-vos dos ídolos”. O perigo das riquezas; devemos abandonar tudo por amor a Cristo Leia Mateus 19.23-30
A primeira coisa que aprendemos, nesses versículos, é o imenso
perigo que as riquezas representam para a alma de quem as possui. O Senhor Jesus declarou que “um rico dificilmente entrará no reino dos céus”. Ele ainda foi mais longe: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus”, recorrendo a um provérbio a fim de reforçar sua afirmação. De todos os provérbios usados por nosso Senhor, poucos soam mais surpreendentes do que esse. Poucos vão mais de encontro às opiniões e aos preconceitos da humanidade. Poucos são tão pouco cridos. No entanto, essas são palavras verdadeiras e dignas de aceitação. Riquezas, que todos desejam obter, riquezas pelas quais os homens labutam e se cansam, envelhecendo antes do tempo — essas riquezas são uma possessão perigosíssima. Elas, com frequência, causam grande dano à alma. Elas expõem os homens a muitas tentações. Elas deturpam os pensamentos e as afeições dos homens, atando pesados fardos ao coração e tornando o caminho para o céu ainda mais difícil do que naturalmente é. Estejamos precavidos contra o amor ao dinheiro. É possível usar corretamente o dinheiro e fazer o bem com ele. Entretanto, para cada um que faz uso correto do dinheiro, existem milhares que fazem mau uso dele e causam dano tanto a si próprios como a outrem. Que o homem mundano transforme o dinheiro em um ídolo se quiser, e que até mesmo considere mais feliz quem tem mais dinheiro! Mas os crentes, entretanto, que dizem possuir “um tesouro no céu”, volvem o rosto resolutamente contra o espírito mundano a esse respeito. Oremos diariamente pelas almas das pessoas ricas. Elas não devem ser invejadas; devem ser dignas de piedade, porque carregam fardos pesados em sua caminhada cristã. Dentre todos os homens, os ricos é que improvavelmente podem correr de maneira a alcançar o prêmio (1Co 9.24). Em geral, sua prosperidade neste mundo é sua perdição no mundo vindouro. São palavras muito apropriadas as da litania da Igreja Anglicana: “Em todo o tempo de nossa prosperidade, ó bom Senhor, livra-nos”. A segunda coisa que aprendemos nessa passagem é o poder soberano da graça de Deus sobre a alma humana. Os discípulos ficaram perplexos quando ouviram a linguagem de nosso Senhor acerca dos ricos. Era uma linguagem tão contrária a todos os conceitos deles sobre as vantagens advindas da riqueza que exclamaram com surpresa: “Sendo assim, quem pode ser salvo?”. A resposta foi graciosa e instrutiva: “Isso é impossível aos homens, mas, para Deus, tudo é possível”. O Espírito Santo pode levar até os homens mais abastados a procurar um tesouro no céu. Ele pode fazer com que até mesmo os reis deponham suas coroas aos pés de Cristo e considerem todas as coisas como perda, por amor ao reino de Deus. Disso, a Bíblia nos oferece prova sobre prova. Abraão era muito rico, mas é o pai dos fiéis. Moisés poderia ter sido um grande príncipe ou governador no Egito, mas desistiu de todas as suas brilhantes perspectivas por amor àquele que é invisível. Jó foi o homem mais rico do Oriente e, mesmo assim, era um servo escolhido de Deus. Davi, Josafá, Josias e Ezequias foram todos monarcas ricos, mas amaram mais o favor divino do que as possessões terrenas. Eles nos mostraram que, para Deus, não há “cousa demasiadamente difícil”, e que a fé pode desenvolver-se até mesmo no solo mais impróprio. Apeguemo-nos firmemente a essa doutrina sem jamais largá- la. A posição e as circunstâncias externas de um homem não o impedem de entrar no reino de Deus. Nunca nos desesperemos da salvação de quem quer que seja. Sem dúvida, as pessoas ricas carecem de uma graça especial e estão sujeitas a muitas tentações peculiares. Mas o Senhor Deus de Abraão e de Moisés, de Jó e de Davi, em nada mudou. Ele, que os salvou, a despeito de suas riquezas, também pode salvar outros. “Agindo eu, quem o impedirá?” (Is 43.13). A última coisa que nos é dado a aprender nesses versículos é o imenso encorajamento que o evangelho dá àqueles que desistem de tudo por amor a Cristo. Somos informados de que Pedro indagou ao Senhor o que ele e os demais apóstolos, tendo abandonado todo o pouco que tinham por causa dele, haveriam de receber em troca. Ele obteve a mais grata das respostas. Plena recompensa será dada a todos os que se sacrificam por amor a Cristo. Cada um “receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna”. Existe algo bastante animador nessa promessa. Poucos são, nos dias de hoje, os que são forçados a abandonar lares, parentes e propriedades por causa da religião. Mesmo assim, são poucos os fiéis ao seu Senhor que não têm, de uma maneira ou de outra, passado por dificuldade. O escândalo da cruz ainda não cessou! Risadas, ridículo, zombarias e perseguição familiar são, muitas vezes, a porção de um crente. Em geral, ele perde o favor do mundo. Com frequência, cargos e posições são postos em risco, por causa de sua fidelidade ao evangelho de Cristo. Mas quem está exposto a provações desse tipo pode consolar-se com a promessa contida nesses versículos. Jesus anteviu a necessidade e por isso deixou essa promessa para nosso consolo. Podemos ter certeza de que ninguém será um real perdedor se seguir Jesus Cristo. Pode parecer que o crente sofre desvantagem por algum tempo, quando inicia sua caminhada de crente decidido. Ele pode estar muito desanimado pelas aflições que lhe sobrevêm por causa de sua fé. Mas pode estar certo de que, no longo prazo, não será perdedor. Cristo pode nos dar amigos que vão mais do que compensarnos pelos amigos perdidos. Cristo pode abrir corações e lares para nós, muito mais acolhedores e hospitaleiros do que aqueles que se fecham contra nós. Acima de tudo, Cristo pode dar- nos paz de consciência, alegria interior, esperanças brilhantes e sentimentos de felicidade que ultrapassarão qualquer prazer terreno que abandonemos por amor a ele. Ele empenhou sua palavra de Rei, garantindo que assim será. Essa palavra jamais falhou. Portanto, confiemos e não tenhamos qualquer receio. A parábola dos trabalhadores na vinha Leia Mateus 20.1-16
E xistem inegáveis dificuldades na parábola contida nesses
versículos. A chave para explicá-las corretamente deve ser buscada na passagem com que se encerrou o capítulo anterior. Lá, encontramos o apóstolo Pedro fazendo uma pergunta importante a nosso Senhor: “Nós tudo deixamos e te seguimos: que será, pois, de nós?”. Vimos que Jesus lhe deu uma resposta notável. Ele fez uma promessa especial a Pedro e aos demais discípulos: um dia, eles haveriam de se assentar “em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel”. Ele também fez uma promessa geral, dirigida a todos que sofrem perdas por amor a Cristo. Cada um deles “receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna”. Agora devemos lembrar que Pedro era judeu. Assim como a maioria dos judeus, provavelmente ele fora treinado na quase total ignorância quanto aos propósitos de Deus para a salvação dos gentios. De fato, o livro de Atos nos mostra que foi preciso receber uma visão celestial para que se dissipasse sua ignorância (At 10.28). Mais do que isso, devemos ter em mente o fato de que Pedro e os outros discípulos eram fracos na fé e no conhecimento. Provavelmente, eles tendiam a dar grande importância a seus próprios sacrifícios por amor a Cristo, inclinando-se a atitudes de justiça própria e presunção. Nosso Senhor conhecia bem todos esses detalhes. Por isso, essa parábola tem em vista beneficiar especialmente Pedro e seus companheiros. O Senhor fala daquilo que estava no coração de seus discípulos. Ele percebeu qual era o remédio necessário para aqueles corações e o aplicou sem demora. Em poucas palavras, ele refreou o orgulho crescente em seus corações, e lhes ensinou humildade. Na exposição dessa parábola, não precisamos nos ocupar do significado literal de “denário”, “praça”, “administrador” ou “hora”. Tais indagações, com frequência, obscurecem o conselho mediante palavras sem entendimento. Calovius disse, e com razão, que essa teologia das parábolas não é argumentativa”. A opinião de Crisóstomo merece nossa atenção. Ele escreveu: “Não é correto esquadrinhar curiosamente cada palavra e cada minúcia em uma parábola; devemos apreender o objetivo pelo qual foi composta, e examiná-lo, e não nos atarefar com qualquer outra coisa”. Duas lições principais, portanto, parecem sobressair nessa parábola, abrangendo a finalidade geral de sua mensagem. Contentemo-nos, pois, em compreender essas duas lições. Em primeiro lugar, aprendemos que Deus exerce uma graça livre, soberana e incondicional quando chama o povo que vai professar seu nome na terra. Ele convoca as famílias da terra para a comunhão na igreja visível, no tempo e da maneira que ele mesmo escolhe. Vemos essa verdade maravilhosamente ilustrada na história do relacionamento de Deus com a humanidade. Vemos os filhos de Israel sendo chamados e escolhidos para ser o povo de Deus já nos primórdios da história. Posteriormente, muitos gentios foram chamados pela pregação dos apóstolos. Nos dias de hoje, vemos outros povos sendo alcançados mediante o labor dos missionários. Ainda vemos, porém, muitos outros, como os chineses e hindus, que continuam “desocupados”, porque ninguém os contratou. E qual é a razão de tudo isso? Não sabemos. O que sabemos é que Deus gosta de afastar da igreja o orgulho, não lhe dando ocasião para jactância. Ele nunca permitirá que os ramos mais antigos de sua igreja olhem com desdém para os ramos mais recentes. Hoje o evangelho oferece o perdão e a paz com Deus, por meio de Jesus Cristo, aos pagãos tanto quanto, em sua época, ao apóstolo Paulo. Neste século, os convertidos das regiões distantes serão tão plenamente admitidos no céu quanto o mais santo dos patriarcas, que viveu há três mil e quinhentos anos. A antiga parede de separação entre judeus e gentios foi derrubada. Não há nada que impeça os pagãos crentes de ser, com os judeus crentes, “coerdeiros [...] e coparticipantes da promessa em Cristo” (Ef 3.6). Os gentios que se converterem na “hora undécima” serão igualmente herdeiros da glória, tão legítimos quanto os judeus. Eles se assentarão juntamente com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus, enquanto muitos dos filhos do reino serão rejeitados. De fato, “os últimos serão os primeiros”. Em segundo lugar, aprendemos que, na salvação de pessoas, como no chamamento das nações, Deus é Soberano e não presta contas de seus atos. Ele tem misericórdia de quem lhe agrada ter misericórdia, e isso também no tempo por ele mesmo determinado (Rm 9.15). Essa é uma verdade que vemos ilustrada em toda parte na Igreja de Cristo, na experiência prática. Vemos um homem que é chamado ao arrependimento e à fé ainda na infância, como Timóteo, e que trabalha na vinha do Senhor por quarenta ou cinquenta anos. Vemos outro homem que é chamado à “hora undécima”, como o ladrão na cruz, salvo como um tição arrebatado do fogo — um dia, um pecador endurecido e impenitente; no dia seguinte, alguém que está no paraíso. Mesmo assim, o evangelho nos permite crer que esses dois homens estão perdoados diante de Deus. Ambos são igualmente lavados no sangue de Cristo e revestidos da justiça de Cristo. Ambos estão igualmente justificados, ambos são aceitos e ambos estarão à direita de Cristo no último dia. Não há dúvida de que essa doutrina soa muito estranha aos ouvidos do cristão ainda ignorante e inexperiente. Ela confunde o orgulho da natureza humana. Ela não permite que o homem se vanglorie em justiça própria. É uma doutrina rebaixadora e niveladora, e pode suscitar muita murmuração. Mas é impossível rejeitá-la, a menos que rejeitemos toda a Bíblia. A verdadeira fé em Cristo, mesmo que só tenha um dia de idade, já justifica o homem diante de Deus, tão completamente quanto a fé verdadeira de quem tem seguido Cristo por cinquenta anos. A justiça com que Timóteo se apresentará no dia do juízo é a mesma com que se apresentará aquele ladrão que morreu na cruz ao lado de Jesus. Ambos serão salvos exclusivamente pela graça, e ambos deverão tudo a Cristo. Podemos não gostar disso, mas assim é a doutrina ensinada nessa parábola; e não somente nessa parábola, mas em todo o Novo Testamento. Feliz é quem recebe essa doutrina com humildade no coração! Com razão, comentou o bispo Hall: “Se alguns têm motivos para magnificar a generosidade de Deus, ninguém tem, por isso, motivos para se queixar”. Antes de passarmos adiante, armemo-nos de algumas precauções que se fazem necessárias. Essa é uma porção das Escrituras que tem sido, com frequência, pervertida e aplicada erroneamente. Muitas vezes, os homens têm extraído dela algo que não é leite, mas, sim, veneno. Cuidemos de jamais supor, por algum detalhe dessa parábola, que a salvação possa, em qualquer sentido, ser obtida mediante boas obras. Supor algo assim é lançar por terra todo o ensinamento bíblico. Tudo o que um crente receber no mundo vindouro será pela graça, e não por dívida. Deus nunca está em dívida conosco, em hipótese alguma. Mesmo depois de havermos feito tudo, continuamos a ser servos inúteis (Lc 17.10). Tomemos a precaução de não supor, refletindo sobre essa parábola, que a distinção entre judeus e gentios tenha sido inteiramente anulada pelo evangelho. Supor algo assim seria contradizer muitas profecias inequívocas, tanto do Antigo Testamento como no Novo Testamento. No tocante à justificação, não há diferença entre crente judeu e crente gentio. No entanto, Israel continua a ser um povo especial, e “não será reputado entre as nações” (Nm 23.9). Deus ainda tem muitos propósitos concernentes aos judeus, e que ainda estão por se cumprir. Tenhamos o cuidado de não supor que todos os salvos receberão idêntico peso de glória. Tal suposição contradiz muitos textos claros das Escrituras. A propriedade comum de todos os crentes é, sem dúvida, a justiça perfeita de Cristo. Mas nem todos terão a mesma posição no céu. “Cada um receberá o seu galardão, segundo o seu próprio trabalho” (1Co 3.8). Finalmente, tenhamos o cuidado de não supor, com base nessa parábola, que é seguro adiar o arrependimento para os últimos anos da vida. Esse pensamento é uma ilusão das mais perigosas. Quanto mais os homens se demoram em obedecer à voz de Cristo, menor a probabilidade de vir a ser salvos. “Eis agora o tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2Co 6.2). Pouquíssimas pessoas são salvas no leito de morte. Um dos ladrões sobre a cruz foi salvo para que ninguém se desesperasse da salvação; mas somente um, para que ninguém tenha presunção. Uma falsa confiança nas palavras “hora undécima” tem arruinado milhares de almas. Cristo anuncia sua morte, que se aproxima; o misto de ignorância e fé nos verdadeiros discípulos Leia Mateus 20.17-23
A primeira coisa que nos convém observar nesses versículos é o
claro anúncio que o Senhor Jesus Cristo faz acerca de sua própria morte, que se aproxima. Pela terceira vez, nós o encontramos fazendo a seus discípulos a espantosa revelação de que ele, o Mestre, operador de maravilhas, em breve terá de sofrer e morrer. O Senhor Jesus sabia, desde o princípio, tudo o que o aguardava. A traição de Judas Iscariotes, a feroz perseguição movida pelos principais sacerdotes e escribas, o julgamento injusto, sua entrega a Pilatos, as zombarias, os açoites, a coroa de espinhos, a cruz, o fato de ter de ficar pendurado entre dois malfeitores, os cravos, a ponta da lança — Jesus contemplava tudo isso em sua mente como se fosse um retrato. O conhecimento prévio agrava em muito os sofrimentos de uma pessoa, conforme tão bem sabem aqueles que estão na expectativa de uma intervenção cirúrgica perigosa. Mas nada disso conseguiu abalar nosso Senhor. Ele diz: “Eu não fui rebelde, não me retraí. Ofereci as costas aos que me feriam, e as faces aos que me arrancavam os cabelos; não escondi o meu rosto dos que me afrontavam e me cuspiam” (Is 50.5-6). Durante toda a vida, Jesus contemplou o Calvário a distância, e, mesmo assim, caminhou tranquilamente até ele, sem se desviar nem para a direita nem para a esquerda. Certamente, jamais houve tristeza como a dele, ou amor como o dele. O Senhor Jesus foi um sofredor voluntário. Quando morreu na cruz, não foi porque não tivesse o poder para evitar isso. Ele sofreu propositalmente, por sua livre vontade (Jo 10.18). Ele sabia que, sem o derramamento de seu sangue, não poderia haver remissão dos pecados do homem. Ele tinha consciência de ser o Cordeiro de Deus, que precisava morrer para tirar o pecado do mundo. Ele sabia que sua morte era o sacrifício predeterminado, que tinha de ser oferecido para fazer expiação pela iniquidade. E, mesmo sabendo de tudo isso, ele caminhou voluntariamente até à cruz. Seu coração estava decidido a cumprir a grandiosa obra que viera realizar neste mundo. Ele tinha plena consciência de que tudo dependia de sua própria morte, e que, sem ela, seus milagres e sua pregação nada teriam feito, comparativamente, por este mundo. Não admira, pois, que três vezes ele chamasse a atenção de seus discípulos para a necessidade de sua morte. Bem-aventurados e felizes são os que reconhecem o real significado e a importância dos sofrimentos de Cristo! A próxima coisa que deveríamos perceber nesses versículos é o misto de ignorância e fé, que pode ser encontrado até mesmo nos crentes mais bem-intencionados. Vemos a mãe de Tiago e João aproximando-se de nosso Senhor com seus dois filhos e apresentando em favor deles uma estranha petição. Ela pede que, “no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e o outro à tua esquerda”. Ela parece ter esquecido tudo que, havia pouco, Jesus dissera sobre seus sofrimentos. A mente ambiciosa dela só podia pensar na glória de Jesus. Os avisos claros de sua crucificação também não foram acolhidos por seus filhos. Eles não conseguiam pensar noutra coisa, senão no trono de Cristo e em seu poder. Havia muita fé, da parte deles, nesse pedido, mas havia também muita debilidade. Havia algo de elogiável no fato de que eles podiam ver em Jesus de Nazaré um futuro rei. Mas era culpável o fato de se terem esquecido de que ele deveria ser crucificado antes que pudesse reinar. Verdadeiramente, a carne milita contra o Espírito em todos os filhos de Deus. Com razão, pois, observou Lutero: “A carne sempre procura ser glorificada, antes de ser crucificada”. Existem muitos crentes que se assemelham a essa mulher e seus filhos. Eles veem em parte e conhecem em parte as coisas de Deus. Têm fé suficiente para seguir a Cristo. Têm conhecimento suficiente para odiar o pecado e deixar o mundo. Mesmo assim, há muitas verdades do cristianismo que eles, lamentavelmente, ignoram. Eles falam com ignorância, agem em ignorância e cometem muitos e tristes equívocos. Eles conhecem as Escrituras Sagradas apenas superficialmente, e o discernimento que têm, quanto aos seus próprios corações, é muito pequeno. No entanto, com base nesses versículos, devemos aprender a tratar gentilmente essas pessoas, porquanto o Senhor as recebeu para si. Não devemos considerá-las ímpias e destituídas da graça divina, somente por causa de sua ignorância. Lembremo-nos de que pode haver a verdadeira fé no fundo do coração, mesmo que haja tanto entulho encobrindo-a. Precisamos refletir sobre o fato de que os filhos de Zebedeu, cujo conhecimento era tão imperfeito a princípio, mais tarde se tornaram colunas da Igreja de Cristo. Da mesma forma, um homem pode começar sua carreira em meio a muita ignorância e, mesmo assim, pode finalmente vir a se tornar um homem poderoso nas Escrituras, um seguidor digno do exemplo de Tiago e João. Nesses versículos, a última coisa que deveríamos observar é a solene reprovação com que nosso Senhor responde ao pedido da mulher de Zebedeu e de seus dois filhos. O Senhor Jesus disse: “Não sabeis o que pedis”. Eles haviam pedido para participar da recompensa de seu Senhor; porém, não haviam considerado que primeiro teriam de participar dos sofrimentos de seu Senhor (1Pe 4.13). Tinham-se esquecido de que os que querem estar em pé, com Cristo na glória, precisam beber de seu cálice e ser batizados em seus sofrimentos. Eles não compreendiam que só aqueles que levam a cruz (e somente esses) receberão a coroa. Portanto, foi com muita razão que nosso Senhor disse: “Não sabeis o que pedis”. Mas, porventura, será que nós mesmos nunca incorremos nesse equívoco? Nunca caímos no mesmo erro, fazendo pedidos impensados e imprudentes? Não é verdade que, com frequência, dizemos coisas em nossas orações sem antes “calcular o custo”, e pedimos coisas sem antes refletir sobre tudo o que nossas petições envolvem? Essas são perguntas que nos perscrutam o coração. É de temer que muitos de nós não possam dar as respostas satisfatórias. Pedimos que nossa alma seja salva e vá para o céu quando morrermos. Sem dúvida, esse é um bom pedido. Entretanto, estamos preparados para tomar nossa cruz e seguir a Cristo? Estamos dispostos a desistir do mundo por amor a Cristo? Estamos preparados para nos despir do velho homem, revestindo-nos do novo — a lutar, trabalhar e correr de modo a alcançar esse alvo? (1Co 9.24). Estamos dispostos a suportar toda zombaria do mundo e a padecer de dificuldades por amor à causa de Cristo? O que diremos? Se não estamos assim preparados, nosso Senhor poderá dizer a nós também: “Não sabeis o que pedis”. Pedimos que Deus nos torne santos e bondosos. Esse, de fato, é um bom pedido. Todavia, estamos preparados para ser santificados mediante qualquer processo que o Senhor Deus, em sua sabedoria, nos convoque a passar? Estamos prontos para ser purificados por meio da aflição, para nos desapegar do mundo mediante privações e para ser trazidos para mais perto de Deus mediante perdas, enfermidades e tristezas? Ah! Essas são questões difíceis. Se não estamos prontos para tudo isso, nosso Senhor bem poderá dizer-nos: “Não sabeis o que pedis”. Por fim, tomemos a solene resolução de considerar atentamente o que estamos fazendo quando nos aproximamos de Deus em oração. Procuremos evitar petições impensadas, precipitadas, sobre as quais ainda não tenhamos considerado o suficiente. Foi com muita razão que Salomão deixou registrado: “Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus” (Ec 5.2). O verdadeiro padrão de grandeza entre os crentes Leia Mateus 20.24-28
E sses versos são poucos em número, mas contêm lições de
grande importância para todos os verdadeiros cristãos. Vejamos em que consistem. Em primeiro lugar, aprendemos que, mesmo entre os verdadeiros discípulos de Jesus, pode haver orgulho, ciúme e amor à preeminência. O que as Escrituras dizem? “Ora, ouvindo isto os dez, indignaram-se contra os dois irmãos.” O orgulho é um dos mais antigos e mais danosos pecados da humanidade. Foi por orgulho que os anjos caíram, pois “não guardaram o seu estado original” (Jd 6). Foi por meio do orgulho que Adão e Eva foram seduzidos a comer do fruto proibido. Eles não estavam contentes com seu destino e pensaram que podiam ser como Deus. O orgulho é o causador dos maiores danos sofridos pelos santos de Deus depois da conversão. Hooker, com razão, disse que “o orgulho é um vício que se apega tão teimosamente ao coração humano que, se tivéssemos de nos desfazer de todas as nossas faltas, uma a uma, sem dúvida descobriríamos que essa seria a última e mais difícil de todas as faltas a “eliminar”. O bispo Hall fez uma declaração curiosa, mas verdadeira: “O orgulho é a vestimenta mais íntima, da qual nos despimos por último e que vestimos primeiro”. Em segundo lugar, aprendemos que uma vida de autonegação e gentileza para com outrem é o verdadeiro segredo da grandeza no reino de Cristo: “Quem quiser tornar-se grande entre vós será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós, esse será vosso servo”. Os padrões deste mundo e os critérios do Senhor Jesus Cristo são, de fato, muito diferentes. São mais do que diferentes; são diametralmente opostos. Entre os filhos deste mundo, considera-se grande aquele que tem mais terras, mais dinheiro, maior número de servos, maior posição social e maior poder. Entre os filhos de Deus, maior é quem mais faz a fim de promover a felicidade espiritual e temporal de seus semelhantes. A verdadeira grandeza consiste não em receber, mas em dar. Não consiste na aquisição egoísta de bens, mas, sim, em conferir coisas boas aos semelhantes. Não em sermos servidos, mas em servirmos. Não em nos assentarmos enquanto outros ministram às nossas necessidades, mas em sairmos para ministrar às necessidades alheias. Os anjos percebem maior beleza no trabalho dos missionários do que no trabalho de quem procura ouro numa região distante. Eles se interessam muito mais pelos labores de homens como Judson e Carey do que pelas vitórias dos generais, pelos discursos dos políticos ou pelas decisões dos ministros de Estado. Lembremo- nos disso! Tenhamos o cuidado de não procurar a falsa grandeza. Que o nosso alvo seja somente aquilo que é verdadeiro! Podemos saber com certeza que há profunda sabedoria nas palavras de Jesus: “Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35). Em terceiro lugar, aprendemos que o Senhor Jesus foi posto como exemplo de todos os verdadeiros cristãos. O que as Escrituras dizem? Deveríamos servir uns aos outros, “tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir”. O Senhor Deus tem providenciado, misericordiosamente, tudo que é necessário para a santificação de seu povo. Ele tem dado preceitos claríssimos para os que seguem a santidade, bem como os melhores motivos e as promessas mais encorajadoras. Isso, porém, ainda não é tudo. Deus nos supriu com o exemplo e o padrão mais perfeitos: a vida de seu próprio Filho. Ele nos manda amoldar nossa vida de acordo com a vida de Jesus Cristo. Ele nos manda caminhar, seguindo os passos de Cristo (1Pe 2.21). A vida de Cristo é o modelo segundo o qual devemos esforçar-nos para moldar nosso temperamento, nossas palavras e atitudes neste mundo maligno. Meu Senhor teria falado comigo dessa maneira? Meu Mestre teria agido desse modo? Essas são perguntas que deveríamos fazer a nós mesmos diariamente.Quão humilhadora é, para nós, essa verdade! Quanto exame de coração nos invoca a fazer! Quão insistente é o chamamento para nos desembaraçarmos “de todo peso, e do pecado que tenazmente nos assedia”! Quão exemplares devem ser os que professam imitar Cristo! Que inútil é a religião que leva um homem a se contentar com palavras vazias, enquanto, em sua vida, não há pureza nem santidade! Que pena! Aqueles que desconhecem Cristo como exemplo finalmente descobrirão que também ele não os conhece como o povo que salvou! “Aquele que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele andou” (1Jo 2.6). Finalmente, aprendemos, nesses versículos, que a morte de Cristo foi uma expiação pelo pecado. O que as Escrituras dizem? Jesus Cristo veio para “dar a sua vida em resgate por muitos”. Essa é a verdade mais poderosa na Bíblia. Cuidemos de nos apegar firmemente a ela, sem jamais largá-la. Nosso Senhor Jesus Cristo não morreu simplesmente como um mártir ou um exemplo esplêndido de autossacrifício e negação de si mesmo. Quem não pode ver mais do que isso na morte dele está muito aquém da verdade. Esses perdem de vista a própria pedra fundamental do cristianismo e deixam de receber a plena consolação do evangelho. A morte de Cristo foi um sacrifício pelo pecado do homem. Ele morreu para fazer expiação pela iniquidade do homem e expurgar nossos pecados mediante a oferta de si mesmo. Ele morreu para nos redimir da maldição que todos nós merecemos e para satisfazer a justiça de Deus, que, se não fosse pela morte de Cristo, nos teria condenado. Nunca nos esqueçamos disso! Todos nós somos devedores por natureza. Devemos ao nosso santo Criador dez mil talentos, e não somos capazes de pagar essa dívida. Não podemos fazer expiação por nossas próprias transgressões, visto que somos fracos e incapazes, e só aumentamos, a cada dia que passa, nossa dívida insolúvel. Mas bendito seja Deus! Aquilo que não podíamos fazer, Cristo fez por nós quando veio a este mundo. Aquilo que não podíamos pagar, Jesus pagou por nós total e cabalmente, ao morrer na cruz do Calvário. Ele “a si mesmo se ofereceu” a Deus (Hb 9.14). “Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus” (1Pe 3.18). Novamente, jamais nos esqueçamos desse fato! Não deixemos esses versículos sem perguntar a nós mesmos: “Onde está nossa humildade? Qual é nossa ideia da verdadeira grandeza pessoal? Qual exemplo estamos dando ao próximo? Qual é a nossa esperança? A vida, a vida eterna, depende das respostas que damos a essas indagações. Feliz é a pessoa verdadeiramente humilde, que se esforça para praticar o bem, que caminha nos passos de Jesus e confia inteiramente no resgate pago mediante o sangue de Cristo. Assim é um verdadeiro crente! A cura de dois cegos Leia Mateus 20.29-34
N esses versículos, encontramos o quadro de um acontecimento
na vida de Cristo. Ele cura dois cegos que estavam assentados à beira do caminho, perto de Jericó. As circunstâncias dessa ocorrência contêm lições de profundo interesse, que todos os crentes fariam bem em relembrar. Antes de tudo, observemos que é possível encontrar muita fé onde, às vezes, menos esperamos encontrar. Embora cegos, aqueles dois homens acreditavam que Jesus tinha poder para ajudá-los. Eles nunca tinham testemunhado qualquer dos milagres de nosso Senhor. Conheciam-no somente de ouvir falar, e não pessoalmente. Não obstante, tão logo ouviram que ele estava passando, clamaram: “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de nós!”. Tamanha fé bem pode servir para nos envergonhar. Mesmo com todos os nossos livros de evidências, biografias de santos e bibliotecas de teologia, pouquíssimos conhecem algo daquela confiança simples como a de uma criança na misericórdia de Cristo e no poder de Cristo! Até mesmo entre os crentes, com frequência o grau da fé é estranhamente desproporcional aos privilégios usufruídos. Muitas vezes, um homem inculto, que só pode ler seu Novo Testamento com dificuldade, tem um espírito de resoluta confiança na advocacia de Cristo, ao passo que teólogos que já estudaram muito se veem assediados por dúvidas e questionamentos. Os que, humanamente falando, deveriam ser os primeiros muitas vezes são os últimos; e os últimos são os primeiros. Em seguida, notemos a sabedoria em aproveitar cada oportunidade para o bem de nossa alma. Esses dois cegos estavam “assentados à beira do caminho”. Se lá não estivessem, provavelmente jamais teriam sido curados. Jesus nunca mais voltou a Jericó, e eles jamais poderiam ter-se encontrado novamente com ele. Nesse fato tão simples, vemos a importância da diligência no uso dos meios da graça. Nunca deveríamos negligenciar a casa de Deus, nem deixar de nos reunir com o povo de Deus, tampouco omitir a leitura da Bíblia ou abandonar a prática da oração individual. Essas coisas, sem dúvida, não podem salvar-nos sem a atuação da graça do Espírito Santo. Muitíssimos fazem uso disso, mas permanecem mortos em delitos e pecados. Porém, é mediante o uso desses meios de graça que as almas são convertidas e salvas. Eles são os caminhos em que o Senhor Jesus anda. Os que se assentam “à beira do caminho” são os que provavelmente serão curados. Conhecemos as enfermidades de nossa alma? Temos algum desejo de consultar o grande Médico? Em caso positivo, não deveríamos esperar em inatividade, dizendo: “Se eu tiver de ser salvo, serei salvo de qualquer maneira”. Pelo contrário, devemos levantar-nos e ir para a estrada por onde Jesus passa. Quem pode saber se logo não será a última vez que ele estará passando por aqui? Assentemo-nos diariamente à beira do caminho. Em terceiro lugar, observemos o valor do esforço e da perseverança na busca por Cristo. Os dois cegos foram repreendidos pela multidão que acompanhava nosso Senhor. Disseram-lhes que se calassem, mas isso não seria suficiente para silenciá-los. Eles sentiam quanto precisavam de ajuda. Em nada se importaram com a reprovação recebida, pois “gritavam cada vez mais: Senhor, Filho de Davi, tem misericórdia de nós!”. Nisso temos um exemplo sumamente importante. Não devemos nos deixar deter pela oposição, nem ficar desencorajados pelas dificuldades quando passamos a buscar a salvação de nossa alma. Devemos “orar sempre e nunca esmorecer” (Lc 18.1). Devemos recordar a parábola da viúva importuna, e a parábola do homem que foi à casa do amigo à meia-noite, a fim de conseguir pão emprestado. É dessa maneira que devemos insistir em nossas preces diante do trono da graça, dizendo: “Não te deixarei ir se me não abençoares” (Gn 32.26). Amigos, parentes e vizinhos podem mesmo dizer coisas indelicadas e reprovar nosso zelo intenso. Podemos até encontrar frieza e falta de simpatia no lugar em que fomos procurar ajuda. Entretanto, que nada disso nos abale. Se sentimos nossas enfermidades e desejamos ver Jesus, o grande Médico; se conhecemos nossos pecados e queremos que ele nos perdoe, então prossigamos. “O reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele” (Mt 11.12). Finalmente, destaquemos quão gracioso o Senhor Jesus é para com aqueles que o buscam. Parando Jesus, chamou-os. Ele, gentilmente, perguntou o que desejavam, escutou a petição e fez o que lhe pediram. “Condoído, Jesus tocou-lhes os olhos e, imediatamente, recuperaram a vista.” Deparamos aqui com uma ilustração daquela antiga verdade, a misericórdia de Cristo para com os filhos dos homens, a qual nunca podemos conhecer em sua plenitude. O Senhor Jesus não é apenas um Salvador poderoso; ele também é misericordioso, gentil e bondoso, e em um grau que vai além de nossa compreensão. Como o apóstolo Paulo bem disse: “O amor de Cristo, que excede todo o entendimento” (Ef 3.19). Assim como ele, oremos para conhecer mais desse amor. Precisamos do amor de Cristo quando principiamos na carreira cristã, penitentes temorosos e bebês na graça divina. Precisamos desse amor, daí em diante, enquanto seguimos pelo caminho estreito, muitas vezes errando, com frequência tropeçando e nos sentindo desencorajados. Já no fim da vida, ainda precisaremos desse amor, ao passarmos pelo vale da sombra da morte. Por conseguinte, apeguemo-nos firmemente ao amor de Cristo; seja esse amor nossa meditação diária. Até despertarmos, já no outro mundo, nunca saberemos realmente quanto devemos ao amor de Cristo. A entrada triunfal em Jerusalém Leia Mateus 21.1-11
E sses versículos narram um momento muito importante na vida
de nosso Senhor Jesus Cristo: sua entrada pública em Jerusalém, pela última vez antes de ser crucificado. Há algo de peculiarmente notável nesse incidente na história de nosso Senhor. A narrativa é como a descrição do retorno de um conquistador real à sua própria cidade. Multidões o acompanham, formando uma espécie de procissão triunfal. Altos clamores e expressões de louvor são ouvidos ao redor de Jesus. “Toda a cidade se alvoroçou.” O episódio inteiro é totalmente diferente do curso anterior da vida de nosso Senhor. Do princípio ao fim, foi curiosamente diferente do que era comum àquele sobre quem estava escrito: “Não clamará nem gritará, nem fará ouvir a sua voz na praça” (Is 42.2). Aquele que, em outras ocasiões, se ausentava da multidão, e que dizia aos que por ele eram curados: “Olha, não digas nada a ninguém” (Mc 1.44). No entanto, todo esse acontecimento admite uma explicação. Não é difícil detectar os motivos dessa entrada pública e triunfal. Vejamos quais são. Na verdade, nosso Senhor sabia bem que o tempo de seu ministério terreno estava prestes a acabar. Ele sabia que já se aproximava a hora em que deveria concluir a poderosa obra que viera realizar, morrendo na cruz por nossos pecados. Ele sabia que suas andanças estavam terminadas e que, para completar seu ministério terreno, só lhe restava ser oferecido como sacrifício sobre o Calvário. Sabendo de tudo isso, Jesus não mais procurou manter segredo, como anteriormente. Sabendo de tudo isso, ele houve por bem entrar pública e solenemente no lugar em que seria entregue à morte. Não convinha que o Cordeiro de Deus viesse secretamente e em silêncio, para ser morto no Calvário. Antes que fosse oferecido o grande sacrifício pelos pecados do mundo, era correto que todos os olhos contemplassem a vítima. Convinha que o ato mais importante na vida de nosso Senhor fosse concretizado com tanta notoriedade quanto possível. Por isso Jesus fez sua entrada triunfal. Por isso ele atraiu para si os olhos admirados de toda a multidão. Por isso toda a Jerusalém se alvoroçou. O sangue expiatório do Cordeiro de Deus estava prestes a ser derramado. E esse sacrifício não devia ser feito em segredo, “nalgum recanto” (At 26.26). É bom relembrar essas coisas. O real significado da conduta de nosso Senhor, nesse período, não é considerado suficientemente por muitos que leem essa passagem. Devemos considerar as lições práticas para as quais esses versículos parecem apontar. Em primeiro lugar, temos um exemplo do conhecimento perfeito de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele enviou dois de seus discípulos a uma aldeia, e disse-lhes que lá encontrariam o jumentinho no qual ele haveria de montar. Ele lhes deu uma palavra para falar aos donos do animal; e, por causa dessa palavra, o jumentinho lhe seria enviado. E tudo aconteceu exatamente como Jesus predissera. Coisa alguma está escondida dos olhos de nosso Senhor. Para ele, não há segredos. A sós ou acompanhados, de dia ou de noite, em particular ou em público, Jesus tem conhecimento de todos os nossos caminhos. Ele, que viu Natanael sob a figueira, em nada mudou. Não importa o lugar, por mais que nos retiremos da sociedade humana, jamais estaremos longe dos olhos de Jesus Cristo. Esse é um pensamento que deveria exercer um efeito refreador e santificador em nossa alma. Todos sabemos da influência que a presença dos governantes tem sobre os cidadãos deste mundo. A própria natureza nos ensina a refrear nossa língua e nosso comportamento quando estamos diante de um rei. O senso do perfeito conhecimento que nosso Senhor Jesus Cristo tem, de tudo que fazemos, deveria surtir o mesmo efeito em nossos corações. Que nada façamos que não gostaríamos que Cristo visse, e que nada digamos que não gostaríamos que Cristo ouvisse! Procuremos viver e conduzir-nos de modo a nos lembrarmos continuamente da presença de Cristo. Que nos comportemos da mesma forma que faríamos se tivéssemos caminhado com Cristo na companhia de Tiago e João, junto ao mar da Galileia. Esse é o modo de sermos treinados para o céu. No céu, “estaremos para sempre com o Senhor” (1Ts 4.17). Em segundo lugar, temos um exemplo da maneira como as profecias sobre a primeira vinda de nosso Senhor foram cumpridas. Somos informados de que essa entrada triunfal cumpria a predição de Zacarias: “Eis aí te vem o teu Rei, justo e salvador, humilde, montado em jumento” (Zc 9.9). Parece que essa predição teve cumprimento literal e exato. As palavras que o profeta falou mediante o Espírito Santo não tiveram cumprimento figurado. Tal como ele disse, assim mesmo aconteceu. Conforme ele predissera, assim foi feito. Quinhentos e cinquenta anos se haviam passado desde que a predição foi feita e, quando chegou o tempo determinado, o Messias desde há muito prometido, literalmente entrou em Sião montado em um jumentinho. Entretanto, não há que se duvidar de que a maioria dos habitantes de Jerusalém nada percebeu nessa circunstância. O véu estava posto sobre o coração deles. Nós, porém, não somos deixados em dúvida no que diz respeito ao cumprimento dessa profecia. É-nos dito claramente, que “isso aconteceu para se cumprir o que foi dito, por intermédio do profeta”. Ao verificar o cumprimento da palavra de Deus em tempos passados, sem dúvida cumpre-nos formar uma ideia sobre como será o cumprimento das profecias futuras. Podemos esperar que as profecias acerca da segunda vinda de Cristo sejam cumpridas tão literalmente quanto foram as profecias do primeiro advento. Em sua primeira vinda, Jesus veio a este mundo em pessoa, literalmente. Na segunda vez, ele virá em pessoa, literalmente. Na primeira, ele veio em humilhação, literalmente para sofrer. Na segunda vez, ele virá em glória, literalmente para reinar. Cada predição a respeito das coisas que acompanharam o primeiro advento teve cumprimento literal. O mesmo sucederá quando ele voltar a este mundo. Tudo que foi predito sobre a restauração dos judeus, sobre o julgamento dos ímpios, sobre a incredulidade do mundo e o agrupamento dos eleitos, tudo isso se cumprirá à risca. Nunca nos esqueçamos disso! No estudo das profecias que ainda não se cumpriram, é de suma importância ter um princípio fixo de interpretação. Finalmente, observemos nesses versículos uma notável demonstração de que o favor humano não tem valor algum. Dentre toda a multidão que cercava o Senhor Jesus quando ele entrou em Jerusalém, ninguém ficou ao lado dele quando foi entregue nas mãos de homens iníquos. Muitos gritaram “Hosana!” e, quatro dias mais tarde, “Fora! Fora! Crucifica-o!” (Jo 19.15). Mas esse é um retrato fiel da natureza humana. É uma prova da tamanha insensatez que é dar maior valor ao louvor do homem do que ao louvor que vem de Deus. Na verdade, coisa alguma é tão inconstante e incerta quanto a popularidade. Ela está aqui hoje, mas amanhã já terá desaparecido. A popularidade é como um alicerce sobre a areia, que certamente transformará quem sobre ela construir. Que não façamos caso dela. Pelo contrário, busquemos o favor daquele que “ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre” (Hb 13.8). Jesus nunca muda. Ele amará até o fim aqueles a quem ama. Seu favor perdura para sempre. Expulsão dos vendilhões do templo; a figueira infrutífera Leia Mateus 21.12-22
T emos, nesses versículos, um relato de dois acontecimentos
notáveis na história de nosso Senhor. Em ambos os casos, havia algo de eminentemente simbólico e típico. Cada um deles é uma figura de realidades espirituais. Sob a superfície, estão lições de solene instrução. O primeiro acontecimento que requer nossa atenção é a visita de nosso Senhor ao templo. Ele encontrou a casa de seu Pai em uma condição que verdadeiramente retratava a condição geral da igreja judaica: tudo fora de ordem e fora de curso. Ele viu os átrios daquele edifício sagrado sendo desgraçadamente profanados por transações mundanas. O comércio de compra e venda estava acontecendo dentro das próprias muralhas do templo. Lá estavam os vendedores, prontos para suprir os judeus que vinham de países distantes com qualquer sacrifício que desejassem oferecer. Lá estavam os cambistas, prontos para trocar o dinheiro estrangeiro por moeda corrente da nação. Bois, ovelhas, cabras e pombas estavam lá expostos, como se o lugar fosse um mercado. Era possível ouvir o tilintar das moedas, como se aqueles átrios sagrados fossem um banco ou uma casa de câmbio. Assim foram as cenas vistas pelos olhos do Senhor. Jesus contemplou tudo aquilo com santa indignação. “Expulsou a todos os que ali vendiam e compravam; também derrubou as mesas dos cambistas”. Não houve resistência, porquanto sabiam que ele estava certo. Também não houve objeção, pois todos sentiam que ele estava apenas reformando um abuso notório, que tinha sido aviltantemente permitido por amor ao lucro. Jesus teve boas razões para dizer aos mercadores espantados enquanto fugiam: “Está escrito: minha casa será chamada casa de oração; vós, porém, a transformais em covil de salteadores”. Nessa ocasião, deveríamos detectar, na conduta de nosso Senhor, um notável exemplo do que ele fará quando vier pela segunda vez. Ele vai purificar sua igreja visível tal como purificou o templo. Ele a limpará de tudo que a contamina e gera iniquidade, e expulsará do meio dela os mundanos. Jesus não permitirá que o adorador do dinheiro ou o amante do lucro estejam naquele templo glorioso que ele finalmente haverá de exibir perante o mundo. Que todos nós vivamos na expectativa diária de sua vinda! Devemos julgar a nós mesmos, a fim de não sermos condenados e rejeitados naquele dia de exame e triagem! Deveríamos sempre estudar aquelas palavras de Malaquias: “Quem pode suportar o dia da sua vinda? E quem subsistirá quando ele aparecer? Porque ele é como o fogo do ourives e como a potassa dos lavandeiros” (Ml 3.2). O segundo evento que chama nossa atenção nesses versículos é a maldição sobre a figueira infrutífera. Somos informados de que Jesus, “vendo uma figueira à beira do caminho, aproximou-se dela; e, não tendo achado senão folhas, disse-lhe: Nunca mais nasça fruto de ti. E a figueira secou imediatamente”. Esse é um incidente quase sem paralelo em todo o ministério de nosso Senhor. Essa é praticamente a única ocasião em que vemos Jesus fazer uma de suas criaturas sofrer, a fim de, com isso, ensinar uma verdade espiritual. Naquela figueira ressecada, havia uma lição que nos perscruta o coração. Ela prega um sermão que todos nós faríamos bem em escutar. Aquela figueira, recoberta de folhas porém sem frutos, era uma notória figura da igreja judaica quando nosso Senhor veio à terra. A igreja judaica tinha tudo para ser um espetáculo impressionante: o templo, o sacerdócio, o culto diário, as festas anuais, as Escrituras do Antigo Testamento, os turnos dos levitas, os sacrifícios da manhã e da tarde. Porém, por trás dessa folhagem exuberante, a igreja judaica estava completamente destituída de frutos. Não havia graça, fé, amor, humildade, espiritualidade ou santidade real, nem disposição para receber o seu Messias (Jo 1.11). E, assim como a figueira, a igreja judaica não tardaria a secar. Ela haveria de ser despida de todos os seus ornamentos exteriores, e seus membros seriam dispersos por toda a face da terra. Jerusalém seria destruída; o templo seria queimado; o sacrifício diário seria interrompido. A árvore haveria de secar até às raízes. E foi isso mesmo que aconteceu. Nunca houve um tipo simbólico que se cumprisse tão literalmente. Em cada judeu errante, podemos ver um ramo dessa figueira que foi derrubada. Porém, não podemos parar aqui. Desse evento, podemos extrair outras instruções. Essas coisas foram escritas tanto para os judeus como por nossa causa. Cada ramo infrutífero da igreja visível de Jesus Cristo não está em um tremendo perigo de se tomar uma figueira seca? Sem a menor dúvida! Altos privilégios e posições eclesiásticas, desacompanhados de santidade entre o povo; confiança exagerada em concílios, bispos, liturgias e cerimônias, enquanto o arrependimento e fé são negligenciados. Tais coisas têm aniquilado muitas igrejas no passado, e podem ainda destruir muitas outras. Onde estão igrejas como as de Éfeso, Sardes, Cartago e Hipona, que, em seu tempo, foram tão famosas? Todas desapareceram. Elas tinham folhagem, mas não frutificavam. A maldição de nosso Senhor veio sobre elas, e tornaram-se figueiras secas. Saiu o decreto divino: “Cortai a árvore, e destruí-a” (Dn 4.23). Lembremo- nos disso! Tenhamos todo o cuidado de evitar o orgulho eclesiástico. “Não te ensoberbeças, mas teme” (Rm 11.20). Por fim, uma pessoa que se diz cristã, mas não produz fruto algum, não estaria em um perigo terrível, podendo tornar-se uma figueira seca? Não há que se duvidar disso. Enquanto se contenta com a mera folhagem da religião (com um nome de quem vive, ao mesmo tempo que está morto, e tendo apenas a forma de piedade sem poder), a alma da pessoa está em grande perigo. Enquanto se satisfizer em ir à igreja e participar da Ceia do Senhor, e ser chamado de “cristão”; enquanto seu coração não tiver sido transformado e não houver abandonado seus pecados, está diariamente provocando Deus a cortar a árvore irremediavelmente. Fruto, fruto — o fruto do Espírito é a única prova segura de que estamos unidos a Jesus Cristo, salvos e a caminho do céu. Que esse pensamento lance raízes profundas em nossos corações e jamais seja esquecido! A resposta de Cristo aos fariseus que questionavam sua autoridade; os dois filhos Leia Mateus 21.23-32
E sses versículos contêm um diálogo entre nosso Senhor Jesus
Cristo e os principais sacerdotes e anciãos do povo. Aqueles amargos adversários de toda a retidão viram a sensação que a entrada triunfal em Jerusalém e a purificação do templo haviam provocado. Imediatamente, eles cercaram nosso Senhor, como abelhas, procurando um motivo para levantar acusação contra ele. Observemos, em primeiro lugar, como os inimigos da verdade estão sempre preparados para questionar a autoridade de todos que se conduzem melhor do que eles próprios. Os principais dos sacerdotes não tinham uma única palavra que dizer contra os ensinamentos de nosso Senhor. Não podiam fazer sequer uma acusação contra a vida e a conduta de Jesus e seus seguidores. Por isso, trataram de questionar sua comissão divina, indagando: “Com que autoridade fazes estas cousas? E quem te deu essa autoridade?”. Idêntica acusação com frequência tem sido lançada contra os servos do Senhor, quando eles procuram refrear o progresso da corrupção eclesiástica. É uma velha artimanha, por meio da qual os filhos deste mundo têm muitas vezes tentado impedir o avanço de reformas e reavivamentos. É uma espada que muitas vezes foi brandida contra a face dos reformadores, dos puritanos e metodistas, séculos atrás. É uma flecha envenenada que, com frequência, é atirada contra os missionários e obreiros leigos hoje em dia. Não são poucos aqueles que em nada se importam com a manifesta bênção de Deus sobre o trabalho de um homem, se tal homem não foi enviado pela seita ou pela denominação a que pertence. Não importa se Deus tem realizado muitas conversões em sua seara pela instrumentalidade de um humilde obreiro, eles prosseguem questionando: “Com que autoridade fazes estas cousas?”. O sucesso desse obreiro nada significa; eles querem saber quem o enviou. As grandes coisas que têm sido feitas nada significam; eles querem ver seu diploma. Não devemos ficar nem surpresos nem desanimados quando ouvimos coisas Assim. Essa mesma argumentação foi levantada contra o próprio Jesus Cristo. “Nada há, pois, novo debaixo do sol” (Ec 1.9). Observemos, em segundo lugar, a sabedoria consumada com que nosso Senhor replicou à indagação que lhe fora dirigida. Os adversários lhe haviam perguntado com que autoridade ele fazia tais coisas. Ao que tudo indica, tencionavam fazer de sua resposta um motivo de acusação contra ele. O Senhor, porém, sabia quais eram as verdadeiras intenções da pergunta e por isso respondeu: “Eu também vos farei uma pergunta; se me responderdes, também eu vos direi com que autoridade faço estas cousas. Donde era o batismo de João? Do céu ou dos homens?”. Devemos entender claramente que, nessa resposta de nosso Senhor, não havia evasiva. Supor que Jesus estivesse fugindo à pergunta seria um grande erro. A pergunta que usou como resposta foi, na realidade, uma inquirição a seus inimigos. Jesus sabia que eles não ousariam negar que João Batista fora um homem enviado por Deus. Ele sabia que, uma vez admitida essa verdade, só tinha de relembrá-los do testemunho de João Batista sobre a sua pessoa. João não havia declarado que Jesus era “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”? João Batista não havia ensinado que ele, Jesus, era quem haveria de batizar “com o Espírito Santo”? Em suma, a pergunta de nosso Senhor foi um golpe certeiro na consciência de seus inimigos. Uma vez admitida a autoridade divina da missão de João Batista, eles também teriam de admitir a autoridade divina de Jesus Cristo. Reconhecendo que João Batista fora enviado do céu, eles também teriam de reconhecer que Jesus era o Cristo. Oremos para que, neste mundo hostil, seja-nos proporcionada a mesma sabedoria que foi demonstrada aqui por nosso Senhor. Sem dúvida, devemos seguir a determinação do apóstolo Pedro: “Estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós, fazendo-o, todavia, com mansidão e temor” (1Pe 3.15). Não devemos encolher-nos diante de um questionamento a respeito dos princípios que regem nossa santa religião. Devemos sempre estar preparados para defender e explicar nossa prática, a qualquer tempo. Contudo, lembremo-nos de que, para isso, é necessário ter sabedoria. Em defesa de uma boa causa, devemos procurar falar sabiamente. As palavras de Salomão merecem consideração: “Não respondas ao insensato segundo a sua estultícia, para que não te faças semelhante a ele” (Pv 26.4). Por último, observemos que grande encorajamento nosso Senhor oferece àqueles que se arrependem. Vemos isso salientado claramente na parábola dos dois filhos. Ambos receberam a ordem de ir trabalhar na vinha de seu pai. Um dos filhos, como os cerimoniosos fariseus, fingiu estar disposto a obedecer, mas realmente não foi. O outro, como os devassos publicanos, por algum tempo recusou-se abertamente a obedecer, mas depois arrependeu- se e foi. “Qual dos dois”, pergunta nosso Senhor, “fez a vontade do pai?”. Até mesmo seus inimigos foram obrigados a responder: “O segundo”. Que se torne um princípio bem estabelecido em nosso cristianismo que o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo está infinitamente disposto a receber os pecadores penitentes. Não importa o que um homem tenha sido no passado. Se ele se arrepende e vem a Cristo, então as coisas antigas já passaram, e eis que tudo se faz novo. Não importa quão elevada e autoconfiante possa ser a religiosidade de um homem. Se ele não desiste realmente de seus pecados, sua religião não passa de abominação aos olhos de Deus, e ele mesmo ainda está sob a maldição divina. Se, até agora, temos sido grandes pecadores, que então tomemos coragem! Basta que nos arrependamos e confiemos em Cristo, e então haverá esperança. Que possamos encorajar outras pessoas a se arrepender! Mantenhamos bem aberta a porta, para que até mesmo o principal dos pecadores possa entrar. A Palavra jamais falhará: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9). A parábola dos lavradores maus Leia Mateus 21.33-46
A parábola contida nesses versículos foi proferida com especial
referência aos judeus. Eles são os lavradores aqui mencionados. Os pecados deles é que estão retratados aqui. Disso, não há dúvida, pois está escrito que “era a respeito deles que Jesus falava”. Mas não devemos nos exaltar, dizendo que essa parábola nada contém para os gentios. Nela, estão contidas lições tanto para os judeus como para nós. Vejamos quais são. Antes de tudo, vemos os privilégios distintivos que Deus se agrada em proporcionar a certas nações. Ele escolheu Israel como seu povo peculiar. Ele os separou das outras nações da terra, e lhes concedeu incontáveis bênçãos. Ele deu a Israel revelações de si mesmo, enquanto o restante da humanidade continuava em trevas. Ele deu aos israelitas a lei, as alianças e os oráculos de Deus, enquanto os outros povos foram deixados como estavam. Em suma, Deus tratou com os judeus à semelhança de como um homem trata de um pedaço de terra que cerca e cultiva, enquanto todos os campos ao redor são deixados sem cultivo, como terras devolutas. A vinha do Senhor era a casa de Israel (Is 5.7). E, quanto a nós, não temos nenhum privilégio? Sem dúvida, temos muitos. Temos a Bíblia, e a liberdade, cada um de nós, para lê-la. Temos o evangelho e a permissão de escutar e crer. Dispomos de abundantes misericórdias espirituais, acerca das quais bilhões de homens nada sabem. Quão agradecidos deveríamos ser! O mais pobre entre nós pode dizer a cada manhã: “Há bilhões de almas imortais que estão em pior situação do que eu. Quem sou eu para ser diferente? Bendize ao Senhor, ó minha alma!”. Em seguida, percebemos como as nações fazem mau uso dos privilégios de que dispõem. Quando o Senhor separou os israelitas dentre os outros povos, tinha o direito de esperar que eles serviriam a ele e obedeceriam às suas leis. Quando um homem cultiva uma vinha, tem o direito de esperar frutos. Mas Israel não retribuiu adequadamente todas as misericórdias divinas. Eles se misturaram com os pagãos e aprenderam caminhos pecaminosos. Eles se endureceram no pecado e na incredulidade. Voltaram-se para os ídolos. Não guardaram as ordenanças de Deus. Desprezaram o templo de Deus. Recusaram-se a ouvir os profetas de Deus. Maltrataram aqueles a quem Deus enviou para chamá-los ao arrependimento. E, finalmente, levaram sua iniquidade a um ponto extremo, matando o próprio Filho de Deus, o Senhor Jesus Cristo. E o que nós estamos fazendo com nossos privilégios? Essa é uma pergunta muita séria, e que deveria nos fazer refletir. É digno de temor que nossa nação não esteja vivendo de acordo com a luz e as muitas misericórdias que já temos recebido. Devemos confessar, envergonhados, que milhões de nós parecem estar vivendo totalmente sem Deus neste mundo. Devemos reconhecer que, em muitas cidades e povoados, Cristo parece não ter nenhum discípulo, e parece não haver ninguém que creia na Bíblia. É inútil cerrarmos os olhos diante desses fatos. O fruto que o Senhor está recebendo de sua vinha, em nosso país, comparado com o que deveria ser, é desgraçadamente pequeno. Temos razões para pensar que somos tão provocadores quanto os judeus, aos olhos do Senhor. Em seguida, vemos o terrível acerto de contas que, algumas vezes, Deus faz com nações e igrejas que usam mal seus privilégios. Chegou, finalmente, o tempo em que a longanimidade de Deus para com seu povo se esgotou. Quarenta anos após a morte de nosso Senhor, o cálice de suas iniquidades transbordou, e eles receberam um pesado castigo por seus muitos pecados. Jerusalém, a cidade santa, foi destruída. O templo foi queimado. Eles mesmos foram espalhados por toda a face da terra. O reino de Deus foi tirado e entregue a um povo que lhe produzisse os respectivos frutos. Será que o mesmo acontecerá conosco? Virão os juízos de Deus sobre essa nação, por causa de sua infidelidade em face de tantas misericórdias? Quem pode dizer? Só podemos afirmar aquilo que o profeta disse: “Tu, ó Senhor, o sabes” (Jr 15.15). Porém, sabemos que o julgamento tem sobrevindo a muitas igrejas e nações nos últimos mil e novecentos anos. O reino de Deus foi tirado das igrejas cristãs no norte da África. O poder do islamismo tomou o lugar da maior parte das antigas igrejas cristãs no Oriente. Por isso, convém que todos os crentes intercedam insistentemente em favor de nosso país. Nada ofende tanto a Deus quanto a negligência em relação aos nossos privilégios. Muito nos tem sido dado, e muito nos será requerido. Por último, vemos o poder da consciência até mesmo sobre os ímpios. Os principais sacerdotes e anciãos descobriram, por fim, que a parábola de nosso Senhor visava especialmente a eles. Aquelas últimas palavras haviam sido cortantes demais para que não fossem percebidas. Eles “entenderam que era a respeito deles que Jesus falava”. Em cada congregação, existem muitos ouvintes do evangelho que se encontram exatamente nas mesmas condições desses infelizes judeus. Eles sabem que é verdade aquilo que ouvem, domingo após domingo. Eles sabem que estão errados, e sabem que cada sermão os condena ainda mais. Contudo, não têm a vontade nem a coragem de reconhecer isso. São muito orgulhosos e muito amigos do mundo para confessar os erros passados, tomar a cruz e seguir Cristo! Devemos tomar precaução contra esse horrendo estado mental. O dia final provará que houve muito mais consciências perturbadas entre os ouvintes do que jamais os pregadores desconfiaram. Haverá milhares e milhares de pecadores que, como os principais dos sacerdotes judeus, foram condenados pela própria consciência, mas que, mesmo assim, morreram sem se converter. A parábola das bodas Leia Mateus 22.1-14
A parábola relatada nesses versículos tem um significado muito
amplo. Em sua aplicação primária, inquestionavelmente ela aponta para os judeus. Porém, não podemos limitá-la somente a eles, pois contém lições que perscrutam o coração de todos aqueles a quem o evangelho é pregado. Trata-se de um quadro espiritual que, ainda hoje, fala conosco, se é que temos ouvidos para ouvir. A observação de Olshausen é sábia e verídica: “As parábolas são como pedras preciosas de múltiplas facetas, cortadas de modo a lançar seu brilho em mais de uma direção”. Observemos, em primeiro lugar, que a salvação anunciada no evangelho é comparada a uma festa de casamento. O Senhor Jesus nos fala de “um rei que celebrou as bodas de seu filho”. No evangelho, existe uma provisão completa para todas as necessidades da alma humana. Há um suprimento de tudo que se faz necessário para aliviar a fome e a sede espiritual. Perdão, paz com Deus, uma viva esperança neste mundo, glória no mundo vindouro, essas são bênçãos retratadas diante de nossos olhos em rica abundância. Trata-se de “um banquete de cousas gordurosas” (Is 25.6). Toda essa provisão deve-se ao amor manifestado pelo Filho de Deus, Jesus Cristo, nosso Senhor. Ele deseja nos unir a si mesmo, restaurar-nos à família de Deus como filhos queridos, vestir-nos com sua própria justiça, dar-nos uma posição em seu reinado e nos apresentar como inculpáveis perante o trono de seu Pai, no último dia. O evangelho, em suma, é uma oferta de pão para o faminto, de alegria para o triste, de um lar para o desprezado e de um amigo para o perdido. O evangelho são boas-novas. Deus oferece identificar-se com o homem pecador, mediante seu Filho querido. Jamais nos esqueçamos: “Nisso consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou, e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1Jo 4.10). Em segundo lugar, assinalemos que os convites do evangelho são amplos, plenos, generosos e ilimitados. Nessa parábola, o Senhor Jesus nos conta que os servos disseram aos convidados: “Tudo está pronto; vinde para as bodas”. Da parte de Deus, não há nada faltando para a salvação da alma dos pecadores. Ninguém jamais poderá dizer, no fim, que foi por culpa de Deus que não se salvou. O Pai está pronto para amar e acolher. O Filho está pronto para perdoar e limpar de toda a culpa. O Espírito está pronto para santificar e renovar. Os anjos estão prontos para se regozijar diante de cada pecador que retorna ao caminho reto. A graça está pronta para assisti-lo. A Bíblia está pronta para instruí-lo. O céu está pronto para ser seu lar eterno. Só uma coisa é necessária: que o próprio pecador esteja desejoso de ser salvo. Que isso, também, jamais seja esquecido! Que não fiquemos debatendo e perdendo-nos em minúcias acerca desse assunto tão simples! Deus sempre será achado inocente do sangue de todas as almas perdidas. O evangelho sempre fala dos pecadores como seres responsáveis e que terão de prestar contas a Deus. O evangelho coloca uma porta aberta diante de toda a humanidade. Ninguém está excluído desse convite uni versal. Embora seja eficaz somente para os que creem, é suficiente para a humanidade inteira. Embora poucos sejam aqueles que entram pela porta estreita, todos são igualmente convidados a entrar por ela. Em terceiro lugar, notemos que a salvação oferecida pelo evangelho é rejeitada por muitos daqueles a quem ela oferecida. O Senhor Jesus nos conta que os convidados, chamados pelos servos do rei, “não se importaram e se foram”. Existem milhares de ouvintes do evangelho que em nada se beneficiam dele. Eles ouvem a pregação domingo após domingo, ano após ano, mas não creem para a salvação de sua alma. Eles não sentem necessidade especial do evangelho. Não veem beleza especial nele. Talvez não cheguem a odiar, nem a se opor, nem façam oposição ao evangelho. Porém, não o recebem em seu coração. Há outras coisas de que eles gostam muito mais. Seu dinheiro, suas terras, seus negócios e seus prazeres são todos assuntos muito mais interessantes para eles do que a salvação da alma. Esse é um estado mental deplorável, porém bastante comum. Que examinemos nosso próprio coração e tomemos o cuidado para assim também não ocorrer com ele! O pecado notório pode matar seus milhares, mas a indiferença e a negligência em relação ao evangelho matam seus dez milhares. Multidões se verão no inferno, não tanto porque desobedeceram abertamente aos dez mandamentos, mas porque fizeram pouco-caso da verdade. Cristo morreu por eles na cruz, mas eles o negligenciaram. Por último, observemos que todos que professam falsamente a religião cristã serão detectados, desmascarados e condenados eternamente, no último dia. O Senhor Jesus nos conta que, quando, finalmente, chegaram os convidados para as bodas, o rei entrou para ver os que estavam às mesas, e “notou ali um homem que não trazia veste nupcial”. O rei perguntou ao homem como este havia entrado, vestido inadequadamente, mas não obteve resposta. Ordenou, então, o rei a seus servos: “Amarrai-o de pés e mãos, e lançai-o para fora, nas trevas”. Enquanto o mundo existir, sempre haverá alguns falsos membros na Igreja de Cristo. Nessa parábola, segundo disse Quesnel, “um único expulso representa todos os demais que serão expulsos”. É impossível lermos o coração dos homens. Enganadores e hipócritas nunca serão totalmente excluídos do meio dos verdadeiros cristãos. Desde que uma pessoa professe obediência ao evangelho e tenha uma vida externamente correta, não ousamos afirmar categoricamente que tal pessoa não esteja justificada por Cristo. Entretanto, não haverá dúvida no dia do juízo. O olho infalível de Deus vai discernir quem é do seu povo e quem não é. Coisa alguma, senão a fé verdadeira, será capaz de subsistir ao fogo do julgamento. Todo e qualquer cristianismo espúrio será pesado na balança e achado em falta. Ninguém, senão os verdadeiros crentes, participará da ceia das bodas do Cordeiro. Ao hipócrita, de nada valerá ter falado muito sobre religião e ter tido a reputação de ser um cristão eminente entre os homens. Seu triunfo não perdurará. Ele será despido de toda a sua plumagem emprestada, e ficará nu e trêmulo perante o tribunal de Deus — mudo, condenado por si mesmo, sem esperança e sem salvação. Ele será lançado nas trevas exteriores, em opróbrio, colhendo, assim, aquilo que semeou em vida. O Senhor Jesus disse que “ali haverá choro e ranger de dentes”. Devemos aprender a sabedoria por meio dos quadros dessa parábola e ser diligentes em procurar confirmar nossa vocação e eleição (1Pe 1.10). A nós, também é dito: “Tudo está pronto; vinde para as bodas”. Tenhamos o cuidado de não recusar aquele que fala (Hb 12.25). Não durmamos como os demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios (1Ts 5.6). O tempo urge. Em breve, o Rei entrará para ver os convidados. Já recebemos ou não a veste nupcial? Já nos revestimos de Cristo? Essa é a grande indagação levantada por essa parábola. Que jamais descansemos enquanto não pudermos dar uma resposta satisfatória a essa pergunta! Que essas palavras soem diariamente em nossos ouvidos e nos sondem o coração: “Muitos são chamados, mas poucos escolhidos”! Os fariseus e a questão do tributo Leia Mateus 22.15-22
N essa passagem, encontramos o primeiro de uma série de
ataques sutis desfechados contra nosso Senhor nos últimos dias de seu ministério terrestre. Seus adversários mortíferos, os fariseus, notaram a imensa influência que ele estava obtendo, tanto por seus milagres como por sua pregação. Eles estavam determinados a silenciá-lo ou a tirar-lhe a vida. Por esse motivo, procuravam “como surpreendê-lo em alguma palavra”. Eles lhe enviaram discípulos juntamente com os herodianos, com o propósito de apanhá-lo em perguntas difíceis. Desejavam encurralá-lo para que dissesse algo que servisse de motivo para uma acusação. Mas o esquema, conforme somos informados nesses versículos, falhou por completo. O movimento resultou em nada, e retiraram-se em confusão. A primeira coisa que nos chama a atenção nesses versículos é a linguagem bajuladora com que nosso Senhor foi abordado por seus adversários. Disseram-lhe: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que ensinas o caminho de Deus, de acordo com a verdade, sem te importares com quem quer que seja, porque não olhas a aparência dos homens”. Como aqueles fariseus e herodianos falavam bem! Que palavras lisonjeiras e doces! Eles pensaram, sem dúvida, que, com boas palavras e belos discursos, conseguiriam fazer nosso Senhor descuidar-se do que dizia. Deles, bem seria possível dizer: “A sua boca era mais macia que a manteiga, porém no coração havia guerra; as suas palavras eram mais brandas que o azeite, contudo eram espadas desembainhadas” (Sl 55.21). Convém que todos os crentes estejam em guarda contra a bajulação. Estamos grandemente enganados se supomos que as únicas armas no arsenal de Satanás são a perseguição e os maus- tratos. Esse inimigo engenhoso dispõe de outros dispositivos para nos prejudicar, os quais ele sabe manejar muito bem. Ele sabe como envenenar as almas mediante a gentileza sedutora deste mundo, sempre que não consegue amedrontálas por meio do dardo inflamado e da espada. Não sejamos ignorantes quanto a seus artifícios. É mediante uma paz fingida que ele destrói a muitos. Tendemos demais a esquecer essa verdade. Negligenciamos os muitos exemplos que Deus nos deu nas Escrituras para nosso aprendizado. O que levou Sansão à derrota? Não foi o exército dos filisteus, mas, sim, o amor fingido de uma mulher filisteia. O que levou Salomão a se desviar? Não foi a força de inimigos externos, mas, sim, a adulação de suas numerosas esposas. Qual foi a causa do maior erro do rei Ezequias? Não foi a espada de Senaqueribe nem as ameaças de Rabsaqué, mas, sim, as lisonjas dos embaixadores da Babilônia. Lembremo-nos dessas coisas e estejamos em guarda. Com frequência, a paz causa mais ruína às nações do que a guerra. As coisas doces causam muito mais doenças do que as amargas. O calor leva o soldado a tirar sua armadura com mais rapidez do que o vento polar. Tomemos precaução contra os bajuladores! Satanás nunca é tão perigoso como quando aparece em forma de anjo de luz. O mundo nunca nos é tão perigoso como quando sorri para nós. Quando Judas traiu o Senhor, ele o fez com um beijo. O crente que é imune à desaprovação do mundo faz bem; mas o crente que é imune à bajulação do mundo, esse faz melhor. A segunda coisa que nos chama a atenção nesses versículos é a maravilhosa sabedoria da resposta que nosso Senhor deu aos seus inimigos. Os fariseus e herodianos perguntaram se era legítimo pagar tributo a César ou não. Eles, sem dúvida, pensaram ter apresentado uma pergunta à qual nosso Senhor não poderia responder sem lhes dar um ponto de vantagem. Se ele simplesmente respondesse que era legítimo pagar tributo, eles o teriam denunciado ao povo como alguém que desonrava os privilégios de Israel, como alguém que não considerava os filhos de Abraão homens livres, e, sim, um povo sujeito a uma potência estrangeira. Por outro lado, se ele respondesse que não era legítimo pagar tributos, eles o teriam denunciado aos romanos como um instigador de sedições e um rebelde contra César, alguém que se recusava a pagar os tributos. Entretanto, a conduta habilidosa de nosso Senhor deixou seus adversários totalmente desconcertados. Ele pede para ver o dinheiro do tributo e pergunta de quem é a efígie na moeda. “De César”, respondem. Usuários que eram daquele dinheiro, com a efígie e a inscrição de César, eles reconheciam que César tinha autoridade sobre eles, visto que a moeda corrente é cunhada pelos governantes da terra na qual vigora. Em seguida, eles receberam uma resposta conclusiva e irrefutável: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. O princípio estabelecido nessas bem conhecidas palavras revestese de profunda importância. Há uma obediência que todo crente deve ao governo civil da nação da qual é cidadão, em todas as questões que não sejam de natureza puramente espiritual. Ele pode não aprovar todos os requerimentos desse governo civil, mas deve submeter-se às leis da comunidade enquanto estiverem em vigor. É preciso “dar a César o que é de César”. Mas há também uma obediência que o crente deve ao Deus da Bíblia, em todas as questões que sejam puramente espirituais. Nenhuma perda material, nenhuma inabilidade civil, nem qualquer desprazer das autoridades que existem, nada disso jamais deveria tentar um crente a fazer coisas que as Escrituras claramente proíbem. A situação pode ser muito difícil. Ele pode ter de sofrer muitas coisas por motivo de consciência. Mas ele jamais deve fugir dos requisitos inequívocos das Escrituras. Se César cunha um novo evangelho, não se deve obedecer a esse evangelho. Devemos dar “a Deus o que é de Deus”. Esse é, inquestionavelmente, um assunto de grande dificuldade e delicadeza. É certo que a Igreja não deve tentar abarcar o Estado. Também é certo que o Estado não deve tentar engolfar a Igreja. Talvez nenhum outro assunto tenha causado tanta provação para homens conscienciosos; talvez nenhum outro assunto tenha causado tanta divergência entre os homens de bem quanto a fixação de onde terminam as coisas “de César” e onde começam as “coisas de Deus”. Por um lado, o poder civil tem muitas vezes usurpado terrivelmente os direitos de consciência (como ocorreu com os puritanos, que sofreram durante a infeliz dinastia Stuart, na Inglaterra). Por outro lado, o poder eclesiástico tem frequentemente estendido suas reivindicações de modo extravagante, a ponto de tomar em suas mãos o cetro de César (como a Igreja romana fez no passado). Para que possa fazer um correto julgamento sobre todas as questões dessa natureza, cada verdadeiro crente deveria orar constantemente, pedindo a sabedoria que vem do alto. A pessoa sincera, que diariamente busca a graça divina e o bom senso, nunca errará gravemente, pois Deus não permitirá que isso aconteça. Os saduceus e a questão da ressurreição Leia Mateus 22.23-33
E ssa passagem descreve uma conversa entre nosso Senhor
Jesus Cristo e os saduceus. Esses homens infelizes, que afirmavam “não haver ressurreição”, como os fariseus e herodianos, tentaram embaraçar nosso Senhor com questões difíceis. Eles, também procuravam “surpreendê-lo em alguma palavra” e uma forma de manchar a reputação dele entre o povo. Porém, assim como os fariseus, eles também ficaram inteiramente frustrados. Em primeiro lugar, observemos que as objeções absurdas e céticas às verdades bíblicas são um fenômeno antigo. Os saduceus desejavam demonstrar o absurdo da doutrina da ressurreição e da vida futura. Por isso, vieram até nosso Senhor com uma história que provavelmente foi inventada para a ocasião. Disseram-lhe que certa mulher se casara com sete irmãos sucessivamente, e todos eles morreram sem deixar filhos. Então, perguntaram de quem ela seria esposa no mundo vindouro, quando todos ressuscitassem... O objetivo da pergunta era claro e transparente. Na realidade, o que eles queriam mesmo era lançar a doutrina da ressurreição no ridículo. Queriam insinuar que a ressurreição traria muita confusão, contenda e uma desordem inconveniente se, após a morte, homens e mulheres houvessem de reviver. Nunca nos deveríamos surpreender se chegarmos a encontrar semelhantes objeções em relação às doutrinas bíblicas, especialmente aquelas doutrinas que dizem respeito ao outro mundo. Provavelmente nunca faltarão homens irracionais ocupando-se de coisas que não se veem e criando dificuldades imaginárias a fim de desculpar sua própria incredulidade. Casos supostos são uma das estratégias favoritas em que as mentes incrédulas gostam de se firmar. A pessoa, muitas vezes, cria uma sombra imaginária em sua mente e passa a lutar contra ela, como se essa sombra representasse a verdade real. Em geral, uma mentalidade desse tipo se recusará a olhar para a avassaladora massa de evidências claras em que se alicerça o cristianismo, e irá agarrar-se à única dificuldade que, para ela, parece insolúvel. O falar e os argumentos de pessoas assim jamais deveriam abalar nossa fé, nem por um instante sequer. Em primeiro lugar, devemos lembrar que a religião cristã forçosamente envolve verdades profundas e misteriosas, e que até mesmo uma criança pode formular perguntas às quais o maior dos filósofos não é capaz de responder. Em seguida, precisamos lembrar-nos de que há incontáveis verdades na Bíblia que são claras e inequívocas. A essas verdades é que devemos atentar em primeiro lugar, crendo e obedecendo. Se assim fizermos, podemos ter certeza de que muitas das coisas que agora são ininteligíveis ainda virão a ser desvendadas. Podemos ter a certeza de que aquilo que não sabemos agora vamos compreender depois (Jo 13.7). Em segundo lugar, observemos que texto notável nosso Senhor apresenta como prova da realidade de uma vida futura. Ele apresenta aos saduceus as palavras que Deus falou a Moisés desde a sarça ardente: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de lsaque e o Deus de Jacó” (Êx 3.6). E Jesus ainda acrescenta: “Ele não é Deus de mortos, e, sim, de vivos”. Ora, no tempo em que Moisés ouviu tais palavras, Abraão, Isaque e Jacó já estavam mortos e sepultados por muitos anos. Dois séculos se haviam passado desde que Jacó, o último dos três, fora sepultado. Não obstante, Deus falou a respeito deles como ainda sendo seu povo, e acerca de si mesmo como ainda sendo o Deus deles. Ele não disse: “eu era o Deus de Abraão”, mas, sim, “Eu sou”. É possível que, com frequência, nos sintamos tentados a duvidar das verdades da ressurreição e da vida futura. Infelizmente, é fácil aceitar uma verdade apenas em tese, sem compreender suas implicações práticas. Devemos nos conscientizar de que os mortos ainda estão vivos. Eles desapareceram de nossos olhos e já não habitam mais neste mundo. Mas, aos olhos de Deus, eles estão vivos e, um dia, deixarão a sepultura para receber a sentença eterna. Não existe aniquilamento; tal ideia não passa de uma miserável ilusão. Sol, lua, estrelas, as montanhas rochosas e o mar profundo algum dia serão reduzidos a nada. Porém, a criancinha mais fraca e pobre deste mundo haverá de viver para todo o sempre no mundo vindouro. Que jamais nos esqueçamos disso! Feliz é quem pode dizer de coração o que o credo niceno afirma: “Espero pela ressurreição dos mortos e pela vida no mundo vindouro”. Observemos, por fim, o relato que nosso Senhor dá acerca da situação de homens e mulheres, após a ressurreição. Ele silencia as objeções fantasiosas dos saduceus demonstrando que eles estavam totalmente equivocados quanto ao verdadeiro caráter do estado ressurreto. Eles supunham que a ressurreição tem de ser, necessariamente, uma existência carnal, grosseira, como a que a humanidade vive aqui na terra. Entretanto, nosso Senhor lhes diz que, no mundo vindouro, receberemos um corpo real e material, mas de constituição inteiramente diferente e com necessidades muito diversas das que temos agora. Lembremo-nos de que Jesus falou somente a respeito dos salvos; ele deixou de mencionar o estado dos perdidos. Jesus afirma: “Porque na ressurreição nem casam nem se dão em casamento; são, porém, como os anjos no céu”. Conhecemos pouquíssimo acerca da vida futura no céu. É possível que nossas ideias mais claras sobre o céu sejam aquelas tiradas da consideração daquilo que o céu não será. Será um estado em que nunca mais teremos nem fome nem sede. Enfermidades, dor e doenças não serão conhecidas. Debilidade, velhice e morte não terão lugar. Casamentos, nascimentos e uma constante sucessão de habitantes já não serão mais necessários. Aqueles que forem admitidos no céu lá haverão de habitar para sempre. E, passando para os aspectos afirmativos, é-nos dito claramente que seremos “como os anjos no céu”. A exemplo deles, serviremos a Deus de maneira perfeita, sem qualquer cansaço. Tal como eles, estaremos para sempre na presença de Deus. Como eles, nosso deleite sempre será cumprir a vontade do Senhor. E, como eles, daremos toda a glória ao Cordeiro. Todas essas são coisas muito profundas, mas todas são verdadeiras. Estamos preparados para essa vida? Se admitidos no céu, será que apreciaríamos essa vida? A companhia e o serviço de Deus seriam agradáveis para nós? A ocupação dos anjos seria algo em que nos deleitaríamos? Essas são perguntas solenes. Se esperamos ir para o céu quando ressuscitarmos no outro mundo, nosso coração deve ser celestial desde já, quando vivemos nesta terra (Cl 3.1-4). A questão do grande mandamento; a pergunta de Cristo a seus inimigos Leia Mateus 22.34-46
N o começo dessa passagem, encontramos nosso Senhor
respondendo à pergunta de um intérprete da lei, que lhe havia indagado qual era “o grande mandamento na lei”. A pergunta não fora feita com espírito amigável. Porém, temos razões para agradecer pelo fato de ela ter sido feita, porque provocou da parte de nosso Senhor uma resposta cheia de instruções preciosas. Vemos que o bem pode derivar até do mal. Destaquemos quão admirável sumário esses versículos contêm acerca de nosso dever para com Deus e com o próximo. Jesus diz: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento”. Ele diz, outra vez: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E acrescenta: “Desses dois mandamentos, dependem toda a lei e os profetas”. Quão simples são essas duas regras, mas também quão abrangentes! São compostas de poucas palavras, mas apresentam um significado profundo! Quão humilhantes e condenadoras elas são! Como demonstram nossa necessidade diária de receber misericórdia e expiação no precioso sangue de Cristo! Feliz seria a humanidade se essas regras fossem conhecidas e praticadas com mais frequência! O amor é o grande segredo da verdadeira obediência a Deus. Quando sentirmos em relação a ele o que as crianças sentem em relação a um pai querido, então nos deleitaremos em cumprir sua vontade. Então, seus mandamentos não serão penosos, e não trabalharemos para ele como se fôssemos escravos, com medo do açoite. Teremos prazer em procurar observar suas leis e lamentaremos quando as transgredirmos. Ninguém trabalha tão bem quanto os que trabalham por amor. O temor ao castigo ou o desejo de uma recompensa são princípios de menor motivação. Cumprem melhor a vontade de Deus aqueles que fazem isso de coração. Gostaríamos de treinar corretamente as crianças? Nesse caso, devemos ensiná-las a amar a Deus. O amor é o grande segredo da conduta reta para com nossos semelhantes. Aquele que ama o próximo se recusará a lhe causar qualquer dano proposital, seja em sua pessoa, caráter ou propriedade. Contudo, não para por aí. Em todos os sentidos, desejará fazer-lhe o bem. De todos os meios, promoverá seu conforto e sua felicidade. Procurará aliviar suas tristezas e fomentar suas alegrias. Se alguém ama, sentimos confiança nessa pessoa. Sabemos que ela jamais nos fará mal intencionalmente e que, durante todo o tempo de necessidade, será nossa amiga. Gostaríamos de ensinar as crianças a se comportar corretamente com outras pessoas? Então, devemos ensiná-las a amar a todos como a si mesmas, e fazer aos outros aquilo que gostariam que os outros lhes fizessem. Porém, como obteremos esse amor por Deus? Não se trata de um sentimento natural. Já nascemos pecadores e, corno pecadores, temos medo de Deus. Como, então, é possível amá-lo? Jamais poderemos amar realmente a Deus enquanto não estivermos em paz com ele, por intermédio de Cristo. Quando soubermos que nossos pecados estão perdoados, e que nós mesmos estamos reconciliados com nosso santo Criador, então, e só então, haveremos de amá-lo, e teremos em nós o espírito filial de adoção. A fé em Cristo é a verdadeira fonte do amor a Deus. Ama mais quem mais sente quanto lhe foi perdoado. “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4.19). E como poderemos obter esse amor em relação ao próximo? Esse também não é um sentimento natural. Já nascemos egoístas, odiosos e odiando-nos uns aos outros (Tt 3.3). Jamais amaremos corretamente nosso próximo enquanto nosso coração não for transformado pelo Espírito Santo. Precisamos nascer de novo. Precisamos despir-nos do velho homem, revestir-nos do novo homem e receber a mente de Cristo. Então, e somente então, nosso coração insensível conhecerá o verdadeiro amor que vem de Deus e se estende a todos. O fruto do Espírito é amor (Gl 5.22). Que possamos entesourar essas verdades no coração! Nos dias em que vivemos, há muita conversa vaga acerca do amor e da caridade. Os homens asseveram que admiram essas qualidades e que gostariam de vê-las cultivadas; no entanto, odeiam os únicos princípios capazes de promover essas virtudes. Permaneçamos nas veredas antigas. Não teremos frutos nem flores se não tivermos raízes. Não poderemos ter amor a Deus e aos homens sem fé em Cristo e sem regeneração. A maneira certa de se ensinar o verdadeiro amor neste mundo consiste em ensinar sobre a expiação de Cristo e sobre as operações do Espírito Santo em nossas almas. A conclusão dessa passagem contém uma pergunta de nosso Senhor aos fariseus. Após haver respondido com perfeita sabedoria às indagações de seus adversários, por fim ele também lhes dirige uma pergunta: “Que pensais vós do Cristo? De quem é filho?”. E eles respondem imediatamente: “De Davi”. Jesus, então, lhes pede que expliquem por que Davi, no livro de Salmos, o chama de Senhor (Sl 110.1). “Se Davi, pois, lhe chama Senhor, como é ele seu filho?”. Imediatamente, os inimigos foram silenciados: “Ninguém podia responder palavra”. Os escribas e os fariseus, sem dúvida, estavam familiarizados com o salmo citado, mas não eram capazes de explicar sua aplicação. Ele só podia ser explicado mediante o reconhecimento da preexistência e da divindade do Messias. E isso era algo que os fariseus não estavam dispostos a admitir. A única ideia com que podiam conceber o Messias era a de que ele seria um homem qualquer, semelhante a eles mesmos. Assim, e de uma só vez, ficou exposta a visão baixa e carnal que esses homens tinham acerca da verdadeira natureza do Cristo. Igualmente, ficou exposta sua ignorância das Escrituras, as quais eles julgavam conhecer mais do que os outros homens. E Mateus pôde escrever, guiado pelo Espírito Santo: “Nem ousou alguém, a partir daquele dia, fazer-lhe perguntas”. Não deixemos para trás esses versículos sem fazermos uso prático da solene pergunta de nosso Senhor: “O que pensais vós do Cristo?”. O que pensamos de sua Pessoa e ofícios? O que pensamos de sua vida, e o que pensamos de sua morte por nós, na cruz? O que pensamos de sua ressurreição, ascensão e intercessão por nós, à direita de Deus? Já temos experiência de que ele é gracioso? Já nos apegamos a ele por meio da fé? Já descobrimos, por experiência própria, que ele é precioso para nossa alma? Será que podemos verdadeiramente dizer: Ele é meu Redentor e meu Salvador, meu Pastor e meu Amigo? Essas são perguntas muito sérias. Que não descansemos enquanto não pudermos dar a elas uma resposta satisfatória! De nada nos aproveitará ler a respeito de Cristo se não formos unidos a ele mediante uma fé viva. Uma vez mais, pois, façamos um teste de nossa religião, perguntando: “Que pensais vós do Cristo?” Advertência contra o ensino dos escribas e fariseus Leia Mateus 23.1-12
E stamos iniciando um capítulo que, em certo sentido, é o mais
marcante em todos os quatro evangelhos. Contém as últimas palavras que o Senhor Jesus falou dentro das muralhas do templo. São palavras que consistem de uma desmanteladora exposição dos fariseus e escribas, além de uma reprimenda contundente às suas doutrinas e práticas. Tendo pleno conhecimento de que seu tempo na terra estava chegando ao fim, nosso Senhor não deixa de tornar pública sua opinião acerca dos principais mestres da nação judaica. Sabendo que, em breve, deixaria de estar com seus seguidores, e que estes ficariam como ovelhas entre lobos, Jesus os adverte claramente a respeito dos falsos pastores por quem estavam cercados. O capítulo inteiro é um sinal marcante de firmeza e fidelidade na denúncia do erro. É uma prova contundente de que até mesmo o coração mais amoroso pode usar uma linguagem que transmita a mais severa repreensão. Acima de tudo, esse capítulo é uma grande evidência da culpa em que os mestres infiéis incorrem. Esse capítulo deve ser uma advertência e um farol para todos os ministros religiosos, enquanto houver mundo. Aos olhos de Cristo, nenhum pecado é tão maligno quanto os pecados desses falsos mestres. Nos doze versículos que iniciam esse capítulo, vemos, em primeiro lugar, o dever de fazermos uma distinção entre o ofício de um mestre e o exemplo pessoal desse mestre. Os escribas e fariseus se assentaram na “cadeira de Moisés”. Fiéis ou infiéis, o fato é que eles ocupavam a posição de mestres públicos principais da religião judaica. Embora preenchessem, de modo indigno, essa posição de autoridade, seu ofício lhes conferia respeito. Porém, enquanto o ofício deveria ser respeitado, o mau exemplo de vida daqueles mestres não deveria ser imitado. Os ensinamentos deviam ser observados até onde contassem com o respaldo das Escrituras; mas não deveria haver obediência se tais ensinamentos entrassem em contradição com a Palavra de Deus. Segundo as palavras de Brentius, os escribas e fariseus “deveriam ser ouvidos enquanto estivessem ensinando o que Moisés ensinara”, e nada mais além disso. Pelo teor inteiro do capítulo, evidencia-se que esse era o pensamento de Jesus. São denunciadas nessa passagem tanto a falsa doutrina como a falsa vida prática. Aqui, o dever que nos é recomendado reveste-se de grande importância. Existe, na mente humana, a tendência constante a cair em extremos. Se não consideramos o ofício de um ministro com veneração idólatra, tendemos a tratá-lo com desprezo indecente. Precisamos manternos em guarda contra ambos os extremos. Por mais que desaprovemos os procedimentos de um ministro do evangelho, ou por mais que discordemos de seus ensinamentos, nunca nos deveríamos esquecer de respeitar seu ofício. Devemos mostrar que podemos honrar a comissão ministerial, não importa o que pensemos sobre o ministro. É digno de nota o exemplo de Paulo, em certa ocasião: “Não sabia, irmãos, que ele é sumo sacerdote; porque está escrito: ‘Não falarás mal de uma autoridade do teu povo’” (At 23.5). Nesses versículos, percebemos, em segundo lugar, que a inconsistência, a ostentação e o amor à preeminência entre os cristãos são atitudes especialmente desagradáveis a Cristo. No tocante à inconsistência, é notável que a primeiríssima coisa que nosso Senhor diz, a respeito dos fariseus, é: eles “dizem e não fazem”. Eles requeriam de outros aquilo que eles mesmos não praticavam. Quanto à ostentação, nosso Senhor declara que eles faziam todas as suas obras “com o fim de serem vistos dos homens”. Eles tinham seus filactérios (ou tiras de pergaminho com textos escritos, que muitos judeus usavam em seu vestuário) feitos de tamanho exagerado. As “franjas” de suas vestes (que Moisés havia ordenado para os israelitas como uma lembrança de Deus — Nm 15.38) tinham uma largura extravagante. E tudo isso era feito para chamar a atenção e fazer as pessoas pensarem quão santos eram os escribas e fariseus. Quanto ao amor à preeminência, nosso Senhor nos diz que os fariseus amavam ocupar “o primeiro lugar” em público, e gostavam de ser tratados mediante títulos lisonjeiros. Nosso Senhor, entretanto, reprova todas as atitudes semelhantes. E nos recomenda que vigiemos e oremos, precavendo-nos contra tais atitudes. Esses são pecados que arruínam a própria alma: “Como podeis crer, vós os que aceitais glória uns dos outros, e contudo não procurais a glória que vem do Deus único?” (Jo 5.44). Muito mais feliz teria sido a história da igreja visível de Cristo se essa passagem tivesse sido mais profundamente considerada e se houvesse mais obediência implícita a seu espírito. Os fariseus não são as únicas pessoas que têm imposto medidas austeras a outras pessoas, fingindo, por meio do traje, possuir uma santidade patente, ao mesmo tempo que apreciam os elogios humanos. Os anais da história eclesiástica mostram que um número muito grande de cristãos tem seguido de perto aqueles religiosos. Lembremo-nos disso e sejamos sábios! É perfeitamente possível que um cidadão batizado de nossos dias seja dotado de um espírito decididamente farisaico. Em terceiro lugar, nesses versículos, vemos que os crentes jamais devem dar a homem algum os títulos e as honras que são devidos exclusivamente a Deus e ao seu Cristo. Jesus disse: “A ninguém sobre a terra chameis vosso pai”. A norma aqui estabelecida deve ser interpretada com a devida restrição escriturística. Não somos proibidos de estimar grandemente e amar os ministros do evangelho, por causa do trabalho que realizam (1Ts 5.13). O próprio apóstolo Paulo, um dos mais humildes santos de Deus, chamou Tito de “verdadeiro filho segundo a fé” e disse aos coríntios: “eu, pelo evangelho, vos gerei em Cristo Jesus” (1Co 4.15). Mesmo assim, devemos ter o cuidado de não dar insensatamente aos ministros um lugar e uma honra que não lhes pertencem. Jamais devemos permitir que eles se interponham entre nós e Cristo. Até mesmo os melhores dentre os melhores não são infalíveis. Eles não são sacerdotes que possam fazer expiação por nós; não são mediadores que possam cuidar dos interesses de nossa alma diante de Deus. Eles são homens sujeitos às mesmas paixões que nós, e que precisam ser lavados no mesmo sangue expiatório de Cristo e precisam do mesmo Espírito renovador; homens separados para um alto e santo chamamento, mas, ainda, afinal de contas, apenas homens. Jamais nos esqueçamos dessas coisas. Tais medidas acauteladoras sempre nos serão úteis. Pois a natureza humana sempre preferirá depender de algum ministro do evangelho, que é visível, a depender do Cristo invisível. Por último, vemos que não existe graça divina que devesse distinguir o crente tanto quanto a humildade. Quem deseja ser grande aos olhos de Cristo deve ter um propósito inteiramente diferente daquele dos fariseus. O alvo do crente não deve ser tanto mandar quanto servir à igreja. Baxter disse muito bem: “Na igreja, a grandeza consiste em sermos grandemente prestativos”. O desejo dos fariseus era receber honra e ser chamados de “mestres”. O desejo do cristão deve ser o de fazer o bem, e dar a si mesmo, e tudo que possua, para o serviço de outrem. Sem dúvida, esse é um alvo elevado, mas jamais deveríamos contentar-nos com um padrão inferior. O exemplo de nosso bendito Senhor e o mandamento deixado nas epístolas dos apóstolos, ambos requerem de nós que estejamos revestidos de humildade (1Pe 5.5). Procuremos cultivar essa graça bendita, dia após dia. Nenhuma outra virtude cristã é mais bela, por mais que seja desprezada pelo mundo. Nenhuma dá tanta evidência da fé salvadora e da verdadeira conversão a Deus. Nenhuma é tão frequentemente elogiada por nosso Senhor. Dentre todas as palavras de Jesus, dificilmente encontraremos uma declaração que seja repetida com tanta frequência quanto esta, que encerra a passagem que estamos lendo: “Quem a si mesmo se humilhar será exaltado”. Oito acusações contra os escribas e fariseus Leia Mateus 23.13-33
N esses versículos, temos as acusações de nosso Senhor contra
os mestres judeus, arranjadas em oito segmentos. Em pé, no templo, e rodeado por uma multidão que o escutava, Jesus denuncia publicamente os erros principais dos escribas e fariseus, sem poupar palavras. Por oito vezes, ele usa a solene expressão “ai de vós”. Por sete vezes, ele os chama de “hipócritas”. Por duas vezes, intitula-os de “guias cegos”. Por duas vezes, chama-os de “insensatos e cegos” e uma vez os intitula como “serpentes, raça de víboras”. Atentemos bem para essa linguagem. Ela nos ensina uma lição solene: quão completamente abominável é, aos olhos de Deus, o espírito de escribas e fariseus, não importa a forma como se manifeste. Façamos um exame breve das oito acusações trazidas por nosso Senhor e procuremos extrair da passagem inteira alguma instrução geral. O primeiro ai nessa lista é dirigido contra a sistemática oposição dos escribas e fariseus ao progresso do evangelho. Eles “fechavam” o reino dos céus diante dos homens. Nem eles entravam, nem deixavam que outros entrassem. Tinham rejeitado a voz de João Batista, que os advertia. Recusaram-se a reconhecer Jesus como Messias, quando ele apareceu. Eles procuravam tolher os judeus que se aproximavam de Jesus. Eles mesmos não criam no evangelho, e faziam tudo para impedir que outros cressem. Isso era um grande pecado. O segundo ai na lista é dirigido contra a cobiça e o espírito de autoengrandecimento dos escribas e fariseus. Eles “devoravam” as casas das viúvas e, como justificativa, faziam “longas orações”. Eles tiravam proveito da credulidade de mulheres fracas e desprotegidas, mediante a simulação de devoção profunda, até que essas mulheres os considerassem guias espirituais. Não hesitavam em abusar dessa influência assim, maliciosamente conseguida, com vistas à obtenção de vantagens pessoais, fazendo da religião um motivo para ganhar dinheiro. Novamente, esse era um grande pecado. O terceiro ai da lista é dirigido contra o zelo dos escribas e fariseus na obtenção de partidários. Eles rodeavam “o mar e a terra para fazer um prosélito”. Trabalhavam incessantemente para que homens se vinculassem ao seu partido e adotassem suas opiniões. E faziam isso não com a finalidade de beneficiar as almas ou de trazê-las para Deus. Faziam tudo somente com a finalidade de engrossar as fileiras de sua seita, ganhar mais prosélitos e conquistar maior importância. Aquele zelo religioso tinha por origem o sentimento sectarista, e não o amor a Deus. Esse também era um grande pecado. O quarto ai dessa lista é dirigido contra as doutrinas dos escribas e fariseus a respeito de juramentos. Eles estabeleciam distinções sutis entre um tipo de juramento e outro. Mais tarde, eles seguiam o mesmo ensino defendido pelos jesuítas de que alguns juramentos tinham de ser cumpridos; outros, não. Eles atribuíam maior importância aos juramentos feitos “pelo ouro” oferecido ao templo do que aos juramentos “pelo templo” propriamente dito. Dessa forma, desprezavam o terceiro mandamento e promoviam seus próprios interesses quando faziam com que os homens superestimassem o valor dos donativos e ofertas. Esse também era um grande pecado. O quinto ai é dirigido à prática dos escribas e fariseus, no sentido de exaltar as coisas menos importantes acima das questões realmente sérias da religião, pondo as últimas coisas em primeiro lugar, e as primeiras por último. Assim, faziam grande questão de separar o dízimo da hortelã, como se nunca fossem suficientemente estritos na observância da lei de Deus. Não obstante, negligenciavam, ao mesmo tempo, grandes e claros deveres morais, tais como a justiça, o amor e a honestidade. De novo, esse era um grande pecado. O sexto e o sétimo ais têm muito em comum para que possamos separá-los aqui. Eles são dirigidos contra uma característica geral da religião dos escribas. Para eles, a pureza exterior e a decência estavam acima da santificação interior e da pureza de coração. Tinham como um dever religioso limpar o “exterior” de copos e pratos, porém negligenciavam seu próprio homem interior. Eles eram como sepulcros caiados, limpos e belos externamente, mas, por dentro, cheios de corrupção. Por fora, pareciam justos, mas, por dentro, estavam cheios de hipocrisia e iniquidade. Esse também era um grande pecado. O último ai dessa lista é dirigido contra a veneração fingida que os escribas e fariseus demonstravam pela memória dos santos já mortos. Eles edificavam os sepulcros dos profetas e adornavam os túmulos dos justos. No entanto, por sua própria vida, eles provavam ter a mesma mentalidade daqueles que haviam matado os profetas. Pela sua própria conduta diária, eles davam evidência de que preferiam os santos mortos aos santos vivos. Os mesmos homens que fingiam honrar os profetas mortos não viam qualquer beleza em um Cristo vivo. Esse também era um grande pecado. Em tudo isso, temos um quadro melancólico que nosso Senhor nos dá acerca dos mestres judeus. Ele nos deveria fazer sentir tristeza e humilhação, pois é uma temível exibição da anatomia mórbida da natureza humana. É um quadro que, infelizmente, tem sido reproduzido muitas vezes na História da Igreja cristã. No caráter dos escribas e fariseus, não há um único ponto em que não se possa verificar facilmente que pessoas autointituladas cristãs têm com frequência adotado o mesmo procedimento. Nessa passagem inteira, podemos ver a deplorável situação espiritual em que se encontrava a nação judaica quando nosso Senhor estava sobre a terra. Se assim eram os mestres, quão grande deve ter sido a escuridão miserável daqueles que por eles eram ensinados! Verdadeiramente, a iniquidade de Israel havia atingido o ponto máximo. Já era mais do que chegado o tempo de o Sol da Justiça aparecer e o evangelho ser pregado. Com base em toda essa passagem, aprendemos quão abominável é a hipocrisia aos olhos de Deus. Os escribas e fariseus não foram acusados de ser ladrões ou assassinos, mas, sim, de ser hipócritas até o âmago de seu ser. Independentemente do que mais sejamos em nossa religião cristã, tomemos a firme resolução de que jamais usaremos uma capa de disfarce. Que em tudo sejamos honestos e reais! Aprendamos, mediante toda essa passagem, quão terrivelmente perigosa é a posição de um ministro infiel! Já é bastante ruim sermos nós mesmos cegos; mil vezes pior é atuar como um guia cego. De todos os homens, ninguém é tão iniquamente culpado quanto um ministro não convertido, e ninguém será julgado com tanta severidade. Há um ditado solene que se refere a esse tipo de pastor: “Ele se assemelha a um navegador incompetente — não naufraga sozinho”. Finalmente, devemos ter o cuidado de não supor, com base nessa passagem, que o mais seguro, em se tratando de religião, é não declarar religião alguma. Isso equivale a cair em um extremo perigoso. Somente porque alguns homens são hipócritas, isso não significa que não exista a verdadeira profissão cristã. Nem todo dinheiro é ruim somente porque existe muita moeda falsa. Assim, que nenhuma hipocrisia nos impeça de confessar a Cristo, ou nos afaste de nossa firmeza, se é que já temos feito confissão de Jesus Cristo! Prossigamos, olhando sempre para Jesus e descansando nele, orando diariamente para que sejamos resguardados de todo erro, e dizendo com o salmista: “Seja o meu coração irrepreensível nos teus decretos” (Sl 119.80). Últimas palavras públicas de Jesus aos judeus Leia Mateus 23.34-39
E sses versículos formam a conclusão do discurso de nosso
Senhor Jesus Cristo acerca dos escribas e fariseus. São as últimas palavras que, como Mestre, falou publicamente ao povo. A ternura e a compaixão que caracterizam nosso Senhor resplandecem, de forma magnífica, no término de seu ministério. Embora tivesse deixado seus adversários ainda na incredulidade, Jesus demonstrou até o fim que os amava e tinha compaixão deles. Em primeiro lugar, escudados nesses versículos, aprendemos que Deus frequentemente usa de grande condescendência para com os ímpios. Ele enviou aos judeus “profetas, sábios e escribas”. Ele lhes fez reiteradas advertências. Enviou-lhes mensagem após mensagem. Não permitiu que continuassem pecando sem repreensão. Eles jamais poderiam dizer que não haviam sido avisados quando agiam mal. Em geral, é dessa maneira que Deus lida com os professos ainda não convertidos. Ele nunca os deixa perecer em seus pecados sem antes chamá-los ao arrependimento. Ele bate às portas de seus corações mediante enfermidades e aflições. Ele assedia suas consciências por meio de sermões ou pelo conselho de amigos. Ele abre a sepultura diante deles e os intima a considerar seus caminhos, roubando-lhes os ídolos em que confiam. Com frequência, entretanto, não sabem o que tudo isso significa. Quase sempre estão cegos e surdos a todas as graciosas mensagens de Deus. Contudo, finalmente haverão de perceber a mão de Deus, embora talvez seja tarde demais. Descobrirão que “Deus fala de um modo, sim de dois modos, mas o homem não atenta para isso” (Jó 33.14). Descobrirão que, a exemplo dos judeus, eles também tiveram profetas, sábios e escribas que lhes foram enviados. Em cada ato da Providência, havia uma voz a dizer: “Convertei-vos, convertei-vos [...] por que haveis de morrer?” (Ez 33.11). Aprendemos, em segundo lugar, que Deus observa o tratamento que seus mensageiros e ministros recebem e, um dia, fará a prestação de contas. Os judeus, como nação, muitas vezes dispensaram aos servos do Senhor o tratamento mais infame. Sempre os trataram como inimigos, porque os mensageiros de Deus lhes diziam a verdade. A alguns, haviam perseguido; a outros, haviam açoitado; e, a outros ainda, haviam até mesmo executado. Talvez pensassem que nenhuma prestação de contas lhes seria requerida. Jesus, entretanto, diz aos judeus que eles estavam enganados. Tudo que faziam era acompanhado de perto pelos olhos de Deus. Havia uma mão que registrava em livros eternos todo o sangue inocente que derramavam. As últimas palavras de Zacarias, que foi morto entre o santuário e o altar, seriam comprovadas oitocentos e cinquenta anos mais tarde. Ao morrer, ele dissera: “O Senhor o verá, e o retribuirá” (2Cr 24.22). Mais alguns anos e haveria um grande derramamento de sangue em Jerusalém, como o mundo jamais tinha visto igual. A cidade santa seria destruída. A nação que havia assassinado tantos profetas seria, ela mesma, devastada pela fome, pela pestilência e pela espada. Mesmo os que conseguissem escapar seriam dispersos pelos quatro ventos e, à semelhança de Caim, o assassino, se tornariam fugitivos e vagabundos na terra. Todos sabemos quão literalmente essas afirmações foram cumpridas. Jesus bem disse: “Em verdade [...] todas estas cousas hão de vir sobre a presente geração”. Convém que sublinhemos claramente essa lição. Sempre estamos demasiadamente aptos a pensar que “o passado é passado”, e que as coisas que já aconteceram e estão consumadas e ultrapassadas jamais serão revolvidas outra vez. Esquecemo-nos, entretanto, que, para Deus “um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pe 3.8), e os eventos de mil anos atrás estão tão frescos aos olhos do Senhor quanto os acontecimentos desta mesma hora. Deus requer aquilo que se oculta no passado e, acima de tudo, haverá de requerer dos homens o tratamento dado aos seus santos. O sangue dos cristãos primitivos, derramado pelos imperadores romanos; o sangue dos valdenses e albigenses, das vítimas no massacre de são Bartolomeu; o sangue dos mártires que foram queimados na fogueira por ocasião da Reforma e o sangue dos que foram mortos pela Inquisição — tudo, tudo isso será considerado na prestação de contas. Segundo diz um velho ditado, “as mós da justiça divina moem devagar, porém moem muito fino”. O mundo ainda verá que “há um Deus, com efeito, que julga na terra” (Sl 58.11). Que aqueles que perseguem o povo de Deus tomem precaução quanto àquilo que estão fazendo! Que se saiba que todos os que prejudicam, ridicularizam, zombam ou caluniam a outras pessoas, por motivo de sua religião, cometem um grande pecado. Cristo toma conhecimento de cada um que persegue seu próximo por ter uma vida mais correta do que ele, porque ora, lê a sua Bíblia e pensa sobre o bem de sua alma. Vivo está quem declarou: “Aquele que tocar em vós toca na menina do seu olho” (Zc 2.8). O dia do juízo mostrará que o Rei dos reis fará com que todos os que insultam os servos de Deus prestem contas. Por último, nesses versículos aprendemos que aqueles que se perdem para sempre perdem-se por sua própria culpa. As palavras de nosso Senhor Jesus Cristo são muito marcantes: “Quis eu reunir os teus filhos [...] e vós não o quisestes!”. Há algo nessa declaração que merece nossa atenção especial. Ela projeta luz sobre um assunto misterioso e que, em geral, é obscurecido pelas explicações humanas. É uma declaração que nos mostra como Cristo tem sentimentos de piedade e misericórdia por muitos que não são salvos; e mostra-nos que o grande segredo da ruína de um homem é sua própria falta de vontade. Impotente como é por natureza, incapaz de ter de si mesmo sequer um bom pensamento e desprovido de poder em si mesmo para crer e invocar a Deus, ainda assim o homem parece ter uma poderosa habilidade para arruinar a própria alma. Incapacitado de praticar o bem, ele se mantém como um poderoso praticante do mal. Dizemos, e com razão, que uma pessoa nada pode por si mesma; mas sempre devemos lembrar que a sede dessa incapacidade é sua própria vontade. Ninguém pode despertar em si mesmo a vontade de se arrepender e crer; mas todo homem tem, por natureza, a vontade de rejeitar Cristo e seguir seu próprio caminho desviado; e se, por fim, não for salvo, tão somente ficará provado que essa vontade foi a causa de sua perdição. Jesus Cristo disse: “Não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.40). Deixemos esse assunto com a confiante reflexão de que, para Cristo, nada é impossível. Até mesmo o coração mais empedernido pode ser transformado. Sem dúvida, a graça divina é irresistível. Porém, jamais nos esqueçamos de que a Bíblia fala do homem como um ser responsável, dizendo acerca de alguns: “vós sempre resistis ao Espírito Santo” (At 7.51). Entendamos que a ruína dos que se perdem não é porque Cristo não esteja disposto a salvá-los, nem porque eles queiram ser salvos mas não conseguem sê-lo. Eles não são salvos porque não querem vir a Cristo. Devemos tomar como base a verdade ressaltada nessa passagem! Cristo deseja reunir a si os filhos dos homens, mas eles não querem ser reunidos. Cristo deseja salvar os homens, mas eles não querem ser salvos. Que seja um princípio bem estabelecido em nossa religião que a salvação do homem — se salvo — deve-se inteiramente a Deus, enquanto sua ruína — se perdido — deve-se inteiramente a ele mesmo. A maldade que está em nós é, em sua inteireza, nossa maldade. E o bem, se é que temos algum, esse procede inteiramente de Deus. No mundo vindouro, os salvos atribuirão toda a glória a Deus, e os perdidos descobrirão que eles mesmos destruíram a si próprios (Os 13.9). Profecia sobre a destruição de Jerusalém, a segunda vinda de Cristo e o fim do mundo Leia Mateus 24.1-14
C om esses catorze versículos, inicia-se um capítulo repleto de
profecias, das quais uma grande parte ainda não foi cumprida. Trata-se, em verdade, de profecias que deveriam ser profundamente interessantes para todos os verdadeiros cristãos. Esse é um assunto acerca do qual o Espírito Santo diz que fazemos bem em atender (2Pe 1.19). Todas as passagens proféticas das Escrituras deveriam ser abordadas com profunda humildade e fervorosa oração, buscando o ensinamento do Espírito Santo. Em nenhum outro ponto existem homens de bem que discordam tão inteiramente quanto no caso da interpretação das profecias. Sobre nenhuma outra questão, os preconceitos de uma classe, o dogmatismo de outra e as extravagâncias de uma terceira têm contribuído tanto para furtar a igreja das verdades designadas por Deus para lhe serem uma bênção. Com razão, pois, escreveu Olshausen: “O que o homem não vê ou não deixa de ver quando deseja fazer prevalecer suas próprias opiniões favoritas?”. Para compreender a intenção de todo esse capítulo, devemos manter cuidadosamente em vista a questão que suscitou esse discurso de nosso Senhor. Ao deixarem o templo pela última vez, os discípulos, impelidos pelo sentimento natural dos judeus, haviam chamado a atenção de seu Mestre para as esplêndidas construções de que o templo era composto. Mas, para grande surpresa e perplexidade deles, Jesus lhes assevera que tudo aquilo estava prestes a ser destruído. Essas palavras ficaram profundamente gravadas na mente dos discípulos. Eles vieram a Jesus quando este estava assentado no monte das Oliveiras e lhe pediram com ansiedade evidente: “Diz-nos quando sucederão estas coisas, e que sinal haverá da tua vinda e da consumação do século”. É nessa petição que encontramos a chave para a compreensão do tema da profecia que temos à nossa frente, abrangendo três pontos: 1) a destruição de Jerusalém; 2) a segunda vinda de Cristo; 3) o fim do mundo. Esses três pontos estão, indubitavelmente, entrelaçados em algumas partes deste capítulo; tão entrelaçados que é difícil separar e desembaraçá-los uns dos outros. Mas os três aparecem distintamente e, sem eles, não é possível explicar satisfatoriamente esse capítulo. Os primeiros catorze versículos da profecia ocupam-se de lições de natureza geral, de largo alcance e aplicação. São lições que parecem aplicar-se com igual força, tanto para o final da era judaica como para o final da dispensação cristã, sendo o primeiro evento notavelmente simbólico do segundo. São lições que demandam atenção especial de nossa parte, “de nós outros sobre quem os fins dos séculos têm chegado” (1Co 10.11). Vejamos, então, quais são essas lições. A primeira lição geral que se nos apresenta é a advertência contra o engano. As primeiríssimas palavras de Jesus são: “Vede que ninguém vos engane”. Não poderíamos conceber uma advertência mais necessária do que essa. Satanás conhece bem o valor da profecia e tem sempre procurado lançar o assunto em descrédito. Os escritos de Josefo comprovam quantos falsos cristãos e quantos falsos profetas surgiram antes da destruição de Jerusalém. É possível demonstrar facilmente como os olhos dos homens estão continuamente cegos, de muitas maneiras, nestes nossos dias, no que tange às ocorrências futuras. O mormonismo tem sido muito usado como argumento para se rejeitar toda a doutrina da segunda vinda de Cristo. Assim, vigiemos e ponhamo- nos em guarda. Que ninguém nos engane quanto aos principais fatos da profecia ainda não cumprida, dizendo-nos que são coisas impossíveis! Que ninguém nos engane quanto à maneira como virão a acontecer, afirmando que são improváveis e contrárias à experiência passada. Que nenhum homem nos engane quanto ao tempo em que serão cumpridas as profecias, fixando datas ou asseverando que primeiro deveríamos aguardar pela conversão da humanidade inteira. Em todos esses particulares, que o sentido claro das Escrituras seja nossa única norma, e não as tradições da interpretação humana! Nunca nos envergonhemos de dizer que esperamos o cumprimento literal das profecias ainda não cumpridas. Sejamos francos em reconhecer que existem muitas coisas que não entendemos, mas, mesmo assim, mantenhamos tenazmente nossa posição. Que creiamos muito, esperemos e não duvidemos de que um dia tudo se tomará claro! Acima de tudo, lembremo-nos de que a primeira vinda do Messias, para sofrer, foi o evento mais improvável que alguém poderia ter concebido. E não duvidemos de que, assim como ele veio literalmente, em pessoa, para sofrer, assim, também literalmente, há de voltar, em pessoa, para reinar. A segunda grande lição diante de nós é um aviso contra as expectativas exageradas e extravagantes acerca das coisas que devem acontecer antes que venha o fim. Essa é uma advertência tão profundamente importante quanto a anterior. Se ela não tivesse sido tão negligenciada, a Igreja teria tido uma história muito mais feliz! Não devemos esperar por um reino de paz universal, felicidade e prosperidade antes que o fim aconteça. Se estamos esperando por essa bonança, ficaremos muito desiludidos. Nosso Senhor nos manda esperar por guerras, fomes, terremotos e perseguições. É inútil esperar pela paz enquanto o Príncipe da Paz não retornar. Então, e só então, as espadas serão transformadas em arados, e as nações não mais aprenderão a guerra. Somente então, a terra dará seu fruto (Is 2.4; Sl 67.6). Não devemos esperar um tempo universal de pureza doutrinária e prática, na igreja de Cristo, antes que venha o fim. Se o fizermos, estaremos grandemente equivocados. Nosso Senhor nos manda ficar na expectativa do aparecimento de falsos profetas, da multiplicação da iniquidade e do esfriamento do amor de quase todos. A verdade nunca será recebida por todos os cristãos professos e a santidade jamais será a norma entre os homens enquanto o grande Cabeça da Igreja não retornar e enquanto Satanás não for preso. Então, e só então, haverá uma Igreja gloriosa, sem defeito e sem mácula (Ef 5.27). Não devemos esperar que o mundo todo vá se converter antes que o fim aconteça. Estaremos grandemente equivocados. Será pregado o evangelho por todo o mundo, para o testemunho de todas as nações. Porém, não devemos pensar que o evangelho será crido universalmente. Esse evangelho irá “constituir um povo” (At 15.14) onde quer que seja fielmente pregado, e esses serão testemunhas de Cristo. Todavia, a plena convocação das nações não ocorrerá até que Cristo venha. Então, e somente então, a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar (Hc 2.14). Guardemos essas coisas no coração, e nunca nos esqueçamos delas. São verdades extremamente relevantes para o tempo presente. Aprendamos a moderar nossas expectativas no tocante a qualquer organização existente na Igreja de Cristo e, assim, seremos poupados de muito desapontamento. Apressemo- nos em propagar o evangelho no mundo, pois o tempo é curto, não longo. A noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Tempos difíceis nos esperam. Heresias e perseguições podem, em breve, enfraquecer e distrair as igrejas. Em breve, uma guerra feroz de princípios pode convulsionar as nações. Em breve, as portas que agora estão abertas para a prática do bem podem cerrar-se para sempre. Nossos olhos podem ainda ver o sol do cristianismo pôr-se entre as nuvens e tempestades no horizonte, como ocorreu com o sol do judaísmo. Acima de tudo, anelemos pelo retorno de nosso Senhor. E com um coração disposto a orar diariamente: Vem, Senhor Jesus! Continuação das profecias sobre as misérias que viriam no primeiro e no segundo cercos a Jerusalém Leia Mateus 24.15-28
U m dos pontos importantes dessa profecia de nosso Senhor é a
tomada de Jerusalém pelos romanos. Esse evento grandioso aconteceu cerca de quarenta anos depois de proferidas as palavras que agora lemos. Uma completa narrativa do acontecimento encontra-se nos escritos do historiador Josefo. Seus escritos são o melhor comentário sobre as palavras de nosso Senhor, além de uma prova notável da exatidão de cada pormenor nas predições de Cristo. Os horrores e as misérias que os judeus suportaram durante o cerco de sua cidade superam tudo que já foi registrado. Verdadeiramente, aquele foi um tempo de tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido. Alguns se surpreendem ao ver tamanha importância atribuída à tomada de Jerusalém. Tais pessoas preferem considerar este capítulo algo ainda não cumprido. Esquecem-se, porém, de que Jerusalém e o templo eram o centro da antiga dispensação judaica. Quando foram destruídos, chegou ao fim o antigo sistema mosaico. O sacrifício diário, as festas anuais, o altar, o Santo dos Santos, o sacerdócio — tudo isso era parte essencial da religião revelada, até que Cristo veio; mas não mais depois disso. Quando ele morreu na cruz, a finalidade de todas essas partes foi terminada. Estavam agora mortas, e só restava que fossem sepultadas. Porém, não convinha que isso fosse feito silenciosamente. Bem poderíamos esperar que o fim de uma dispensação dada com tanta solenidade, no monte Sinai, fosse marcado por uma solenidade peculiar. Nesse sentido, era de se esperar que a destruição do templo santo, onde tantos santos do Antigo Testamento tinham visto a “sombra dos bens vindouros” (Hb 10.1), fosse assunto de uma profecia. E de fato foi. O Senhor Jesus prediz especialmente a desolação no “lugar santo”. O grande Sumo Sacerdote descreve o fim de uma dispensação que tinha sido o preceptor para trazer homens a Cristo. No entanto, não devemos supor que essa parte da profecia de nosso Senhor tenha sido inteiramente cumprida na primeira tomada de Jerusalém. É mais provável que as palavras de nosso Senhor tenham uma aplicação mais ampla e ainda mais profunda. É mais provável que se apliquem a um segundo cerco a Jerusalém, ainda por acontecer, quando Israel já tiver retornado à sua própria terra; e que se apliquem a uma segunda tribulação, a vir sobre os habitantes de Israel e que só será detida pelo retomo de nosso Senhor Jesus Cristo. Para alguns, uma visão semelhante dessa passagem pode parecer surpreendente. Mas os que duvidam da correção dessa interpretação fariam bem em estudar o último capítulo do profeta Zacarias e o último capítulo de Daniel. Esses dois capítulos contêm descrições solenes e lançam luz sobre os versículos que ora estudamos e sua conexão com os versículos que vêm em seguida. Resta-nos agora considerar as lições contidas nessa passagem, para nossa edificação pessoal. São lições claras e inequívocas. Nelas, pelo menos, não há obscuridade. Antes de tudo, vemos que fugir do perigo pode, algumas vezes, ser o dever explícito de um crente. Nosso Senhor ordenou pessoalmente ao seu povo que fugisse em determinadas circunstâncias. Sem dúvida, o servo de Cristo não deve ser um covarde. Ele deve confessar seu Mestre diante dos homens e estar disposto a morrer, se necessário, pela causa da verdade. Mas, do servo de Cristo, não se requer que se atire para dentro do perigo, a menos que isso faça parte de seu dever. Ele não deve envergonhar- se de usar meios racionais para prover sua segurança pessoal quando nenhum bem seria conseguido caso ele morresse em seu posto. Há profunda sabedoria nessa lição. Os verdadeiros mártires cristãos nem sempre são aqueles que cortejam a morte e têm o afã de ser queimados ou decapitados. Há ocasiões em que o crente demonstra maior graça ao ficar quieto, esperando, orando e aguardando o tempo oportuno, do que desafiando seus adversários e atirando-se na batalha. Que nós possamos ter a sabedoria para agir nos tempos de perseguição! Tanto é possível ser impetuoso quanto ser covarde, e é possível perder a própria serventia quando se é muito exasperado ou muito passivo. Em segundo lugar, observemos que, ao entregar essa profecia, nosso Senhor faz menção especial ao sábado. Ele diz: “Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado”. Esse é um fato que merece nossa atenção. Vivemos em uma época em que a obrigação de honrar o sábado é frequentemente negada, até mesmo pelos bons cristãos. Eles nos dizem que o sábado não é mais obrigatório para nós, como não o são as leis cerimoniais. É difícil enxergar como tal ponto de vista pode ser conciliado com as palavras de nosso Senhor nessa ocasião solene. Quando predisse a destruição final do templo e das cerimônias mosaicas, parece que Jesus mencionou intencionalmente o sábado, como se quisesse marcar com honra esse dia. Parece que ele dá a entender que, embora seu povo houvesse de ser absolvido do jugo dos sacrifícios e das ordenanças, para eles ainda restava a guarda do sábado (Hb 4.9). Os defensores do dia do Senhor devem lembrar-se cuidadosamente desse texto, pois é uma passagem de grande peso. Em terceiro lugar, vemos que os eleitos de Deus sempre são objetos especiais do cuidado de Deus. Por duas vezes nessa passagem, o Senhor faz menção a eles. “Por causa dos escolhidos”, os dias da tribulação serão “abreviados”. Não será possível enganar os “eleitos”. Aqueles a quem Deus escolheu para a salvação, mediante Cristo, são os que Deus ama especialmente neste mundo. Eles são as joias de toda a humanidade. Deus tem maior cuidado com eles do que com os reis que se assentam nos tronos, se são reis não convertidos. Deus ouve as orações dos eleitos. Ele ordena todos os acontecimentos entre as nações, e as causas de guerras, para o bem e a santificação de seus escolhidos. Ele os guarda por meio do Espírito, e não permite que nem homem nem demônio os arranquem de sua mão protetora. Não importa qual tribulação venha sobre o mundo, os eleitos de Deus estão seguros! Que jamais repousemos enquanto não tivermos a certeza de pertencer ao número dos bem-aventurados. E nenhum ser humano pode provar que não é um dos eleitos. As promessas do evangelho se estendem a todos. Portanto, esforcemo-nos para confirmar nossa vocação e eleição! (2Pe 1.10). Os eleitos de Deus são um povo que clama a ele noite e dia. Quando Paulo viu a fé, a esperança e o amor dos tessalonicenses, então reconheceu que eram eleitos da parte de Deus (1Ts 1.4; Lc 18.7). Finalmente, vemos, nesses versículos, que, seja quando for que aconteça, a segunda vinda de Cristo será um acontecimento muito súbito. Será como o relâmpago que “sai do oriente e se mostra até no ocidente”. Essa é uma verdade prática que deveríamos ter sempre em mente. Sabemos, pelas Escrituras, que nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa há de retomar a este mundo. Também sabemos que ele virá em um tempo de grande tribulação. Mas o momento preciso — dia, hora, mês e ano — está oculto para nós. Somente sabemos que será um acontecimento repentino. Nosso dever, portanto, é viver sempre preparados para a volta de Cristo. Que andemos pela fé, e não por vista! Creiamos em Cristo, sirvamos a Cristo, sigamos a Cristo e o amemos. Assim vivendo, não importa o momento em que Cristo retorne, estaremos prontos para encontrá-lo. Descrição do segundo advento Leia Mateus 24.29-35
N essa parte da profecia, nosso Senhor descreve sua própria
segunda vinda para julgar o mundo. Isso, ao menos, é o que naturalmente se deduz dessa passagem. Qualquer interpretação menos abrangente parece-nos uma distorção violenta da linguagem da Escritura. Se as palavras solenes aqui empregadas significam apenas a vinda dos exércitos romanos a Jerusalém, então podemos dar uma explicação semelhante a qualquer outro evento na Bíblia. O evento aqui descrito é algo de muito maior importância do que a marcha de qualquer exército terreno. Não é outra coisa senão o ato final que encerrará essa dispensação, o segundo advento de Jesus Cristo, em pessoa. Esses versos nos ensinam, em primeiro lugar, que, quando o Senhor Jesus regressar a este mundo, virá com glória e majestade peculiares. Ele virá “sobre as nuvens do céu com poder e muita glória”. Na sua presença, o próprio sol, a lua e as estrelas perderão seu resplendor, e “os poderes dos céus serão abalados”. A segunda vinda pessoal de Jesus Cristo será tão diferente da primeira quanto possível. Ele veio na primeira vez como homem de tristezas, cercado de aflições. Nasceu em uma manjedoura, em Belém, pequenino e humilde, e assumiu a forma de servo, tendo sido desprezado e rejeitado pelos homens desde o início. Ele foi traído e entregue nas mãos de homens iníquos, condenado por um julgamento injusto, escarnecido, açoitado, coroado de espinhos e, por fim, crucificado entre dois ladrões. Na segunda vez, ele virá como Rei de toda a terra, com toda a majestade real. Os príncipes e grandes homens deste mundo haverão de comparecer diante de seu trono, para receber a sentença eterna. Diante dele, toda boca se calará, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor. Jamais nos esqueçamos disso. Sem importar o que os homens possam fazer no presente, não permanecerá zombaria alguma, nem haverá escárnios contra Cristo, tampouco haverá infidelidade alguma no dia do juízo. Os servos do Senhor Jesus podem esperar com paciência. Um dia, seu Mestre será reconhecido como Rei dos reis, por todo o mundo. Esses versículos nos ensinam, em segundo lugar, que, quando Cristo retornar a este mundo, cuidará inicialmente de seu povo, os crentes. Ele enviará “seus anjos” e estes “reunirão seus escolhidos”. No dia do julgamento final, os verdadeiros crentes gozarão de perfeita segurança. Nem um único fio de cabelo lhes cairá por terra. Nem um único osso do corpo místico de Cristo será quebrado. Houve uma arca para Noé no dia do Dilúvio; houve uma Zoar para Ló quando Sodoma foi destruída; e haverá em Jesus um esconderijo para todos os crentes, quando a ira de Deus, finalmente, descarregar-se sobre este mundo vil. Os poderosos anjos, que se regozijavam no céu a cada vez que um pecador se arrependia, haverão de, alegremente, recolher o povo de Deus para o encontro com o Senhor, nos ares. Sem dúvida, esse dia será terrível; mas os crentes podem aguardá-lo sem temor. No dia do juízo, os verdadeiros cristãos serão, por fim, todos reunidos. Os santos de todos os séculos e de todos os idiomas serão recolhidos dentre todas as nações. Todos estarão lá, desde o justo Abel, até a última alma que se converter a Deus; desde o mais antigo patriarca até a criança que é salva. Portanto, meditemos sobre quão feliz será esse encontro, quando a família de Deus estiver toda reunida! Se tem sido agradável nos encontrarmos ocasionalmente com um ou dois crentes aqui na terra, mais agradável ainda será nos reunirmos no céu a uma multidão inumerável, que ninguém pode contar! Certamente podemos contentar-nos em carregar a cruz e suportar a dor de uma separação por alguns anos, pois viajamos rumo a um dia em que nos encontraremos e já não haverá mais separações. Em terceiro lugar, esses versículos nos ensinam que, até que Cristo retorne a este mundo, os judeus serão sempre um povo separado. Nosso Senhor nos diz que “não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”. A existência contínua dos judeus como uma nação distinta é, inegavelmente, um grande milagre. É uma daquelas evidências da veracidade da Bíblia que os incrédulos jamais conseguem anular. Sem uma pátria, sem rei, sem governo, espalhados e dispersos pelo mundo por cerca de dezenove séculos, os judeus nunca são absorvidos entre os povos dos países em que vivem; “é povo que habita só” (Nm 23.9). A única explicação para isso é o dedo protetor de Deus. A nação judaica permanece de pé diante do mundo, como uma resposta esmagadora para a incredulidade, e como um livro vivo que evidencia a veracidade da Bíblia. Contudo, não deveríamos reputar os judeus apenas como testemunhas da verdade das Escrituras. Deveríamos contemplá-los como uma garantia contínua de que, um dia, o Senhor Jesus voltará outra vez. Tal como a ordenança da Ceia do Senhor, os judeus são um testemunho da realidade do segundo advento, na mesma medida que são testemunhas do primeiro advento. Não nos esqueçamos disso. Em cada judeu errante, contemplemos uma prova viva de que a Bíblia é verdadeira e de que, um dia, Cristo haverá de retornar. Finalmente, esses versículos nos ensinam que as predições de nosso Senhor certamente se cumprirão. Ele disse: “Passarão o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão”. Nosso Senhor conhecia bem a incredulidade natural da natureza humana. Ele sabia que, nos últimos dias, surgiriam zombadores, dizendo: “Onde está a promessa da sua vinda?” (2Pe 3.4). Jesus sabia que, quando retornasse, a fé seria rara entre os seres humanos. Ele anteviu o grande número de pessoas que iriam rejeitar, com desprezo, aquelas predições solenes que acabara de fazer, como improváveis, absurdas e impossíveis. O Senhor adverte a todos nós, céticos, acerca de pensamentos assim, com uma advertência de peculiar solenidade. Ele nos diz que suas palavras haverão de se cumprir no tempo exato; e não “passarão” sem cumprimento, não importa o que os homens possam pensar ou dizer a respeito. Todos nós devemos aceitar no coração essa advertência! Vivemos em uma época de grande incredulidade. Poucos creram no relato da primeira vinda do Senhor, e poucos creem no relato de sua segunda vinda (Is 53.1). Acautelemo-nos, pois, dessa infecção e creiamos no Senhor, para a salvação de nossa alma. Não estamos lendo fábulas astuciosamente inventadas, mas, sim, verdades profundas e importantíssimas. Que Deus nos dê um coração capaz de crer nessas verdades! Os dias anteriores à segunda vinda; recomendação à vigilância Leia Mateus 24.36-51
N esses versículos, o primeiro assunto a requerer nossa atenção
é o quadro horrendo sobre o estado do mundo quando o Senhor Jesus voltar. O mundo não terá sido convertido quando Cristo voltar. Será encontrado nas mesmas condições em que estava no dia do Dilúvio. Quando veio o Dilúvio, os homens estavam comendo e bebendo, casando-se e dando-se em casamento, absorvidos em suas atividades mundanas e inteiramente surdos às repetidas advertências feitas por Noé. Não acreditavam na possibilidade de um Dilúvio. Recusavam-se a crer que houvesse algum perigo. No entanto, subitamente veio o Dilúvio “e os levou a todos”. Todos que não se encontravam com Noé, no interior da arca, pereceram. Todos foram varridos, de uma vez e para sempre, sem perdão, não convertidos, despreparados para o encontro com Deus. E nosso Senhor diz que “assim será também a vinda do Filho do Homem”. Sublinhemos essa passagem e a entesouremos nas profundezas do coração. Há muitas opiniões estranhas sobre esse assunto, até mesmo entre os homens bons. Não devemos enganar- nos, imaginando que, antes do retorno do Senhor, todos os homens virão a se converter ou que a terra se encherá do conhecimento de Deus. Não sonhemos, supondo que o fim de todas as coisas não possa estar próximo porque ainda há muita iniquidade, tanto na igreja como no mundo em geral. Tais concepções são expressamente contraditadas nessa passagem. Os dias de Noé são um exemplo verdadeiro dos dias em que Jesus Cristo retornará. Milhões de professos cristãos serão desmascarados como insensatos, incrédulos, sem Deus e sem Cristo, mundanos e desqualificados para o encontro com o Juiz. Tenhamos muito cuidado para que não sejamos encontrados entre os tais. Nesse trecho, a segunda coisa que exige nossa atenção é a completa separação que haverá quando o Senhor Jesus voltar. Por duas vezes, lemos que “um será tomado, e deixado o outro”. No presente, o piedoso e o ímpio estão misturados e convivem juntamente. Nas igrejas, nas cidades, nos campos e por toda a parte, os filhos de Deus e os filhos deste mundo estão lado a lado. Mas isso não será sempre assim. No dia do retorno de nosso Senhor, haverá, enfim, uma completa divisão. Em um momento, num piscar de olhos, ao ressoar a última trombeta, cada um desses grupos será separado do outro para sempre. Esposas serão separadas dos maridos; os pais, dos filhos; os irmãos, das irmãs; os patrões, de seus empregados; e os pregadores, de seus ouvintes. Não haverá tempo para palavras de despedida nem para arrependimento quando o Senhor Jesus voltar. Cada qual será tomado como estiver, e ceifará conforme o que tiver semeado. Os crentes serão arrebatados para a glória, a honra e a vida eterna. Os incrédulos serão deixados para trás, para a vergonha e o desprezo eternos. Bem-aventurados serão aqueles que estão unidos de coração, seguindo a Cristo! Sua unidade jamais será quebrada e perdurará por toda a eternidade. Quem pode descrever a felicidade daqueles que forem arrebatados quando o Senhor retornar? Quem pode imaginar a miséria daqueles que forem deixados para trás? Devemos pensar nessas coisas e considerar nossos caminhos. A última coisa que nos chama a atenção nesses versículos é o dever prático de vigiar, diante da expectativa em relação à segunda vinda de Cristo. Nosso Senhor diz: “Vigiai, porque não sabeis em que dia vem o vosso Senhor [...] ficai também vós apercebidos; porque, à hora em que não cuidais, o Filho do homem virá”. Esse é um elemento que nosso bendito Mestre insta com frequência que observemos. Dificilmente encontramos Jesus aludindo à sua segunda vinda sem acrescentar uma recomendação: “vigiai”. Ele conhece a dormência de nossa própria natureza. Ele sabe quão rapidamente nos esquecemos dos assuntos mais solenes da religião. Ele sabe quão incessantemente Satanás trabalha para obscurecer a gloriosa doutrina da segunda vinda. Ele nos arma com exortações poderosas para que examinemos o próprio coração, para que estejamos atentos e, assim, não venhamos a sofrer a ruína eterna. Que todos nós possamos dar ouvidos a essas exortações! Os verdadeiros cristãos devem viver como atalaias. O dia do Senhor virá como um ladrão à noite. Os crentes deveriam esforçar- se para estar sempre de prontidão. Deveriam comportar-se como sentinelas de um exército em território inimigo. Deveriam tomar a resolução de, pela graça de Deus, não dormir em seus postos. Há um texto do apóstolo Paulo que merece atenta consideração: “Assim, pois, não durmamos como os demais; pelo contrário, vigiemos e sejamos sóbrios” (1Ts 5.6). Os verdadeiros cristãos devem viver como bons servos cujo senhor encontra-se ausente. Devem esforçar-se para estar sempre prontos para o retorno de seu Senhor. Jamais devem ceder diante do pensamento “Meu Senhor demora-se”. Eles devem procurar manter-se em uma atitude de coração que possa, de uma vez por todas, dar-lhe uma recepção calorosa e cheia de amor, não importa o momento em que ele venha. Há uma vasta profundidade na declaração do Senhor: “Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim”. Se não estamos prontos para, a qualquer momento, receber o Senhor que volta, bem podemos questionar se somos verdadeiros crentes em Jesus ou não. Encerremos esse capítulo com sentimentos solenes. Aquilo que acabamos de ler requer de nós uma grande sondagem de coração. Procuremos assegurar-nos de que realmente estamos em Cristo e de que temos uma arca de salvação para quando o dia da ira irromper sobre o mundo. Esforcemo-nos para viver de maneira a sermos declarados “benditos” naquele dia final, e não sermos lançados fora para sempre. E não menos importante: apaguemos de nossa mente a ideia generalizada de que a profecia ainda não cumprida é algo para especulação, e não para a vida prática. Se essas coisas não são para a vida prática, então simplesmente não existe religião prática. João disse: “A si mesmo se purifica todo o que nele tem esta esperança, assim como ele é puro” (1Jo 3.3). A parábola das dez virgens Leia Mateus 25.1-13
E ste capítulo é a continuação do discurso profético de nosso
Senhor, no monte das Oliveiras. O tempo a que o discurso se refere é evidente e inequívoco. Do início ao fim, há uma contínua alusão à segunda vinda de Cristo e ao fim do mundo. O capítulo está dividido em três seções. Na primeira, nosso Senhor usa sua própria segunda vinda como argumento para a vigilância e a sinceridade na religião. Ele faz isso por meio da parábola das dez virgens. Na segunda seção, ele usa sua segunda vinda como argumento para a diligência e a fidelidade. Ele faz isso mediante a parábola dos talentos. Na terceira, ele resume tudo pela descrição do grande dia do juízo, uma passagem que, por sua beleza e majestade, não tem igual no Novo Testamento. A parábola das dez virgens contém lições peculiarmente solenes e despertadoras. Vejamos quais são. Antes de mais nada, vemos que a segunda vinda de Cristo encontrará a Igreja como um corpo misto, contendo bons e maus elementos. A igreja professante é comparada a “dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram para se encontrar com o noivo”. Todas tinham sua lâmpada, mas apenas cinco dispunham de azeite para alimentar a chama. Todas professavam ter um objetivo em vista, mas apenas cinco eram verdadeiramente sábias, enquanto as outras eram insensatas. A igreja visível encontra-se nessa mesma condição. Todos os seus membros são batizados em nome de Jesus Cristo, mas nem todos ouvem a voz de Cristo e o seguem. Todos são chamados cristãos e professam seguir a religião cristã; mas nem todos têm a graça do Espírito Santo no coração, e não são aquilo que professam ser. Nossos próprios olhos são testemunhas disso. O Senhor Jesus nos diz que assim será até que ele venha. Observemos atentamente essa descrição. É um quadro que nos humilha. Apesar de todas as nossas pregações e orações, apesar de toda nossa visitação e de nossos ensinamentos, depois de todo o esforço missionário no estrangeiro e dos meios de graça de que dispúnhamos em nossa pátria, muitas dessas pessoas se acharão, no último dia, mortas em seus delitos e pecados. A iniquidade e a incredulidade da natureza humana constituem um assunto acerca do qual todos nós ainda temos muito a aprender. Em seguida, vemos que a segunda vinda de Cristo, seja quando for, pegará os homens de surpresa. Essa verdade nos é apresentada na parábola de maneira impressionante. À meia-noite, quando as virgens estavam sonolentas e dormentes, ouviu-se um grito: “Eis o noivo! Saí ao seu encontro”. Também será assim quando Jesus voltar ao mundo. Ele encontrará a maioria da humanidade totalmente incrédula e despreparada. Ele encontrará uma grande parte de seu povo em um estado de alma indolente e sonolento. Os negócios estarão seguindo normalmente, na cidade e no campo, exatamente como agora. A política, o comércio, a agricultura, a compra, a venda e a busca do prazer estarão controlando a atenção dos homens, exatamente como agora. Os ricos ainda estarão banqueteando-se suntuosamente, e os pobres, murmurando e reclamando. As igrejas ainda estarão cheias de divisões e disputando acerca de insignificâncias, e as controvérsias teológicas ainda estarão em voga. Pregadores ainda estarão chamando os homens ao arrependimento, e o povo, adiando o dia da decisão. Em meio a tudo isso, o Senhor, em pessoa, aparecerá repentinamente. Na hora em que ninguém imaginar, o mundo, surpreso, será intimado a cessar todas as suas atividades e comparecer diante de seu Rei legítimo. Existe algo de indizivelmente terrível nesse pensamento, mas assim está escrito e assim será. Um ministro do evangelho afirmou, ao morrer: “Nenhum de nós está mais do que meio acordado”. A seguir, vemos que, quando o Senhor voltar, muitos descobrirão o valor da religião salvadora, porém já muito tarde. A parábola nos diz que, quando veio o noivo, as virgens insensatas disseram às sábias: “Dai-nos do vosso azeite, porque nossas lâmpadas estão se apagando”. E diz-nos mais: como as sábias não dispunham de azeite para lhes ceder, as insensatas saíram “para comprar”. Finalmente, a parábola nos diz que, quando voltaram, a porta já estava fechada e elas clamaram em vão para que fosse aberta: “Senhor, senhor, abre-nos a porta!”. Todas essas expressões são emblemas impressionantes das coisas vindouras. Tomemos precaução para que tais coisas não se tornem verdadeiras em nossa própria experiência, pois isso seria nossa ruína eterna. Podemos estar certos de que, um dia, haverá no mundo uma completa mudança de opinião quanto à necessidade de um cristianismo decidido. No presente (todos devemos estar cientes disso), a maioria dos que se professam cristãos em nada se preocupa com a validade de seu cristianismo. Eles não têm nenhum senso de pecado. Não têm nenhum amor a Cristo. Nada sabem sobre o nascer de novo. Para essas pessoas, arrependimento e fé, graça e santidade são meras palavras e nomes. São assuntos indiferentes ou dos quais não gostam. Mas, um dia, todo esse estado de coisas chegará ao fim. Conhecimento, convicção, o valor da alma e a necessidade de um Salvador — tudo isso eclodirá no último dia na mente dos homens, como um relâmpago. Infelizmente, já será tarde demais! Será muito tarde para estar à procura de azeite quando o Senhor retornar. Os erros que não tiverem sido corrigidos até aquele dia serão irrevogáveis. Somos escarnecidos, perseguidos e julgados insensatos por causa de nossa religião? Sejamos pacientes e oremos por aqueles que nos perseguem. Eles não sabem o que estão fazendo. Um dia, com certeza, vão mudar de atitude. Pode ser que ainda os escutemos confessar que nós fomos sábios, e eles, insensatos. Um dia, o mundo inteiro reconhecerá que os santos de Deus fizeram uma escolha sábia. Nessa parábola, em último lugar, vemos que, quando Cristo retornar, os crentes verdadeiros receberão uma rica recompensa por tudo que sofreram por amor ao Mestre. Somos informados de que, quando veio o noivo, “as que estavam apercebidas entraram com ele para as bodas; e fechou-se a porta”. Somente os verdadeiros crentes estarão prontos por ocasião do segundo advento. Lavados no sangue da expiação, revestidos da justiça de Cristo, renovados pelo Espírito Santo, os remidos irão ao encontro de seu Senhor com ousadia, e tomarão lugar na ceia das bodas do Cordeiro para, dali, não mais sair. Sem dúvida, essa é uma perspectiva bendita.Os remidos estarão na companhia de seu Senhor, com aquele que os amou e que a si mesmo se entregou por eles, que os sustentou e guiou durante a peregrinação terrestre, aquele a quem amaram verdadeiramente e a quem seguiram fielmente sobre a terra, embora em meio a muitas fraquezas e muitas lágrimas. Sem dúvida, essa também é uma perspectiva bendita. A porta será fechada — fechada sobre toda dor e tristeza, fechada para todo este mundo malvado e ímpio, fechada para as tentações do diabo, fechada para todas as dúvidas e todos os temores —, enfim fechada, para nunca mais ser aberta. Sem dúvida, podemos dizer outra vez que essa é uma perspectiva bendita. Lembremo-nos dessas coisas, pois merecem nossa meditação. Todas são verdadeiras. O crente pode sofrer muita tribulação, mas tem diante de si uma abundância de consolações. A tristeza pode durar por uma noite, mas a alegria vem ao amanhecer (Sl 30.5). Certamente, o dia do retorno de Cristo trará a compensação por tudo. Deixemos para trás essa parábola com a firme determinação de jamais nos contentarmos com algo menos do que a graça divina habitando em nossos corações. A lâmpada e o nome de cristão, a profissão cristã e as ordenanças do cristianismo, todos são bons e têm seu devido lugar; porém não representam o mais necessário de todas as coisas. Que não descansemos enquanto não estivermos certos de ter o “azeite” do Espírito em nosso coração! A parábola dos talentos Leia Mateus 25.14-30
A parábola dos talentos assemelha-se à parábola das dez virgens.
Ambas direcionam nossos pensamentos para o mesmo e importante acontecimento: a segunda vinda de Jesus Cristo. Ambas nos falam das mesmas pessoas — os membros da Igreja professa de Cristo. As virgens e os servos representam um só e o mesmo povo, mas esse povo é considerado de um ângulo diferente, retratando-se diferentes aspectos de sua atuação. A lição prática de cada parábola é o principal ponto de diferença. A vigilância é a nota- chave da primeira parábola, enquanto a diligência é a ênfase da segunda. A história sobre as virgens exorta a Igreja a vigiar; a história sobre os talentos conclama a Igreja a trabalhar. Essa parábola nos ensina, em primeiro lugar, que todos os cristãos recebem algo da parte de Deus. Somos todos “servos” de Deus. Todos nós temos “talentos” que nos foram confiados. A palavra “talento” tem sido curiosamente distorcida quanto ao seu significado original. Em geral, só é aplicada a pessoas notáveis por sua habilidade ou dons. São as chamadas pessoas “talentosas”. Porém, esse uso da expressão é mera invenção moderna. No sentido que nosso Senhor atribuiu ao termo nessa parábola, a palavra aplica-se a todas as pessoas batizadas, sem distinção. Aos olhos de Deus, todos nós temos talentos. Somos todos pessoas talentosas. Qualquer coisa pela qual possamos glorificar a Deus constitui um talento. Nossos dons, nossa influência, nosso dinheiro, nosso conhecimento, nossa saúde, nossa força, nosso tempo, nossos sentidos, nosso raciocínio, nosso intelecto, nossa memória, nossos afetos, nossos privilégios como membros da Igreja de Cristo, nossas vantagens como possuidores da Bíblia — todos, todos são talentos. De onde vieram essas coisas? Quem no-las outorgou? Por qual motivo somos o que somos? Por que não somos vermes que se arrastam sobre a terra? Há somente uma resposta a todas essas perguntas. Tudo o que temos é por empréstimo de Deus. Nós somos mordomos de Deus. Somos devedores a Deus. Que esse pensamento se abrigue na profundeza de nosso coração. Em segundo lugar, aprendemos que muitos fazem mau uso dos privilégios e das misericórdias recebidos de Deus. Na parábola, lemos acerca de um servo que “abriu uma cova e escondeu o dinheiro do seu senhor”. Esse homem representa uma grande parcela da humanidade. Ocultar nosso talento é negligenciar as oportunidades que temos de glorificar a Deus. Os que desprezam a Bíblia negligenciam a oração e não guardam o dia do Senhor; os incrédulos, os sensuais e os que seguem o pensamento do mundo; os frívolos, os imprudentes e os que buscam prazeres, os que amam o dinheiro, os cobiçosos e os autoindulgentes — todos, igualmente, estão enterrando no chão o dinheiro de seu Senhor. Todos receberam alguma luz, porém não a utilizam. Todos poderiam ser melhores e mais úteis do que são, mas estão roubando diariamente a Deus. Deus lhes confiou muitas coisas, e eles não lhe dão nenhum retorno. As palavras de Daniel a Belsazar são notavelmente aplicáveis a toda pessoa não convertida: “A Deus, em cuja mão está a tua vida, e todos os teus caminhos, a ele não glorificaste” (Dn 5.23). Em terceiro lugar, aprendemos que todos os que se professam cristãos um dia haverão de prestar contas a Deus. A parábola nos diz que, “depois de muito tempo, voltou o senhor daqueles servos e ajustou contas com eles”. Há um julgamento à espera de cada um de nós. Se não há julgamento, as palavras da Bíblia não têm significado. Negar isso implica tratar com leviandade as Escrituras. Há um julgamento que nos aguarda, de acordo com nossas obras, e será seguro, estrito e inevitável. Importantes ou não, ricos ou pobres, eruditos ou incultos, todos teremos de comparecer diante do tribunal de Deus e receber nossa sentença eterna. Não haverá escapatória. Esconder-se será impossível. Nós e Deus haveremos, enfim, de nos encontrar face a face. Teremos de prestar contas de cada privilégio que nos foi concedido e de cada raio de luz desfrutado. Descobriremos, por fim, que somos tratados como criaturas responsáveis que terão de prestar contas e que, a quem muito é dado, muito lhe será exigido (Lc 12.48). Lembremo-nos dessa verdade por todos os dias de nossa vida. Que julguemos a nós mesmos para que não sejamos condenados pelo Senhor! (1Co 11.31-32). Em quarto lugar, aprendemos que os verdadeiros crentes receberão uma abundante recompensa no grande dia da prestação de contas. A parábola nos diz que os servos que haviam empregado bem o dinheiro de seu Senhor foram elogiados: “Servo bom e fiel [...] entra no gozo do teu senhor”. Essas palavras estão cheias de conforto para todos os crentes e nos enchem de admiração e surpresa. O melhor de todos os crentes é apenas uma pobre e frágil criatura, e precisa do sangue de expiação todos os dias de sua vida. Entretanto, o menor e mais pobre de todos os crentes descobrirá, naquele dia, que é contado entre os servos de Cristo, e que seu labor não foi vão no Senhor. Ele descobrirá, para sua surpresa, que os olhos de seu Senhor enxergavam maior beleza do que ele mesmo enxergava em seus esforços para agradar ao Senhor. Verá que cada hora passada no serviço de Cristo e cada palavra dita em favor de Cristo ficaram registradas em um livro de memórias. Que os crentes se lembrem dessas coisas e, assim, tomem coragem! A cruz pode ser pesada agora, mas a recompensa gloriosa trará compensação por tudo. Disse Leighton: “Aqui, algumas partículas de gozo entram em nós; mas, no céu, seremos nós que entraremos no gozo”. Por último, aprendemos que todos os membros infrutíferos da Igreja de Cristo serão condenados e lançados fora no dia do juízo. A parábola nos diz que o servo que enterrou o dinheiro de seu senhor foi condenado como “mau e negligente”, “inútil”, sendo lançado “para fora, nas trevas”. E o Senhor acrescenta estas solenes palavras: “Ali haverá choro e ranger de dentes”. No último dia, não haverá desculpa para um crente professo e não convertido. As razões com que agora ele imagina justificar a si mesmo se mostrarão inúteis e vãs. Naquele dia, ficará comprovado que o Juiz de toda a terra agiu com justiça. A ruína do homem perdido será devida exclusivamente a ele mesmo. As palavras de nosso Senhor, “sabias que...”, deveriam soar bem alto nos ouvidos de muitos homens, compungindo-lhes o coração. Milhares de pessoas estão vivendo sem Cristo e sem conversão, e fazendo de conta que nada podem fazer a respeito. Mas elas sabem o tempo todo, em sua própria consciência, que são culpadas. Estão enterrando seu talento. Não estão fazendo tudo o que podem. Felizes são os que descobrem essa realidade a tempo. No último dia, tudo será desvendado. Pela graça de Deus, passemos adiante com a firme resolução de nunca nos contentarmos com o cristianismo apenas de nome, sem vida prática. Cumpre-nos não apenas falar sobre religião, mas também agir. Não devemos apenas sentir a importância da religião; devemos também fazer algo a respeito. A parábola não diz que o servo inútil era um homicida ou um ladrão, nem mesmo afirma que ele desperdiçava o dinheiro de seu senhor. Mas ele não fez nada, e essa foi a sua ruína. Tomemos precaução contra um cristianismo do tipo “nada a fazer”. Tal cristianismo não procede do Espírito de Deus. “Não ter feito nenhum mal”, diz Baxter, “é elogio para uma pedra, mas não para um homem”. O julgamento final Leia Mateus 25.31-46
N esses versículos, nosso Senhor Jesus Cristo descreve o dia do
julgamento final e algumas das principais circunstâncias referentes a esse dia. Em toda a Bíblia, existem poucas passagens mais solenes e que tanto nos perscrutam o coração. Que possamos lê-la com a atenção séria e profunda que ela merece! Notemos, em primeiro lugar, quem será o Juiz no último dia. Lemos que será “o Filho do Homem”, o próprio Jesus Cristo. O mesmo Jesus que nasceu na manjedoura, em Belém, e tomou sobre si a forma de servo; que foi desprezado e rejeitado pelos homens e, com frequência, não tinha onde reclinar a cabeça; que foi condenado, esmurrado, açoitado e pregado na cruz pelos príncipes deste mundo — esse mesmo Jesus irá julgar, ele mesmo, o mundo, quando vier em sua glória. O Pai confiou a ele todo o julgamento (Jo 5.22). Diante dele, finalmente, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que ele é o Senhor (Fp 2.10-11). Que os crentes meditem a esse respeito e se consolem! Aquele que se assentará no trono, naquele grande e espantoso dia, será o Salvador, o Pastor, o Sumo Sacerdote, o Irmão mais velho e o Amigo dos crentes. Quando o virem, não terão motivos para se alarmar. Que os não convertidos meditem sobre isso e temam! Quem os julgará será o próprio Cristo, cujo evangelho agora desprezam, e cujos convites graciosos recusam-se a ouvir. Quão grande perplexidade sofrerão se persistirem na incredulidade e morrerem em seus pecados! Ser condenado no último dia por um juiz qualquer já seria horrível. Porém, ser condenado por aquele que desejava salvá-los será verdadeiramente terrível. Com muita razão, o salmista disse: “Beijai o Filho para que se não irrite” (Sl 2.12). Em segundo lugar, observemos quem será julgado naquele dia. Lemos que “todas as nações serão reunidas” diante de Cristo. Todos que já viveram um dia terão de prestar contas de si mesmos diante do tribunal de Cristo. Todos terão de obedecer à intimação do grande Rei e receber sua respectiva sentença. Os que não querem adorar a Cristo neste mundo descobrirão que terão de se apresentar diante de seu grande tribunal, quando ele voltar para julgar o mundo. Todos os julgados serão divididos em duas grandes categorias. Não haverá mais distinção entre reis e súditos, patrões e empregados, ou clérigos e pregadores independentes. Não se fará menção alguma a denominações ou partidos religiosos, porquanto todas as distinções do passado terão sido eliminadas. Graça ou nenhuma graça, conversão ou não conversão, fé ou nenhuma fé, essas serão as únicas distinções que prevalecerão naquele dia. Todos que forem achados em Cristo serão postos entre as ovelhas, à sua direita. E todos que não forem achados em Cristo serão colocados entre os bodes, à sua esquerda. Como disse Sherlock: “As distinções que agora fazemos de nada nos adiantarão, a menos que tenhamos o cuidado de ser achados entre o número das ovelhas de Cristo, quando ele vier para julgar o mundo”. Em terceiro lugar, observemos de que maneira o julgamento será conduzido no último dia. Aqui, há particularidades notáveis sobre o assunto. Vejamos, pois, quais são. O juízo final será um julgamento de acordo com as evidências. As obras dos homens serão as testemunhas que serão trazidas à frente, sobretudo suas obras de caridade. A questão a ser esclarecida será não apenas o que dissemos, mas também o que fizemos; não será meramente aquilo que professamos, mas aquilo que houvermos praticado. Inquestionavelmente, nossas obras não nos justificarão diante de Deus. Somos justificados pela fé, sem as obras da lei. Mas a autenticidade de nossa fé será testada pela qualidade de nossa vida. A fé que não tem obras por si só está morta (Tg 2.17). O juízo final será um julgamento que trará alegria para todos os verdadeiros crentes. Eles ouvirão aquelas preciosas palavras: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino”. Eles serão propriedade do Mestre, e ele os confessará diante do Pai e dos santos anjos. Descobrirão que o salário que ele dá aos seus é um reino — e nada menos que isso. O menor, menos importante e mais pobre da família de Deus terá uma coroa de glória e será rei. O juízo final será um julgamento que trará confusão sobre todos os não convertidos. Eles ouvirão aquelas palavras horríveis: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Eles serão rejeitados pelo grande Cabeça da Igreja, diante do mundo inteiro reunido. E descobrirão que, assim como semearam para a carne, da carne ceifarão corrupção. Não queriam ouvir a Cristo, quando dizia: “Vinde a mim, e eu vos aliviarei”, e agora terão de ouvi-lo dizer: “Apartai-vos de mim, para o fogo eterno”. Não quiseram tomar nos ombros a cruz de Cristo e, portanto, não haverá lugar para eles em seu reino. O juízo final será um julgamento que revelará notavelmente o caráter tanto dos salvos como dos perdidos. Aqueles à direita de Cristo, suas ovelhas, continuarão “revestidos de humildade”; e ficarão surpresos ao ouvir o Senhor mencionar e aprovar qualquer obra que tenham realizado. Do lado esquerdo, os que não foram de Cristo continuarão cegos em sua justiça própria. Não se mostrarão sensíveis à sua negligência a Cristo. “Senhor”, dirão, “quando foi que te vimos e não te assistimos?” Que esse pensamento possa penetrar em nossos corações! O caráter moral desenvolvido neste mundo será uma possessão eterna no mundo vindouro. Com o mesmo caráter que o homem tem ao morrer, haverá também de ressuscitar. Observemos, por último, quais serão os resultados finais do dia do julgamento. Disso, somos informados por meio de palavras que nunca deveriam ser esquecidas: “E irão estes para o castigo eterno, porém os justos para a vida eterna”. Terminado o julgamento, o estado de coisas será imutável e sem-fim. Tanto a miséria dos perdidos como a felicidade dos salvos, ambas serão fixadas para sempre. Que ninguém nos engane quanto a isso! Isso está claramente revelado nas Escrituras. A eternidade de Deus, a eternidade do céu e a eternidade do inferno, todas estão alicerçadas em um mesmo fundamento. Tão certo quanto Deus é eterno, também o céu é um dia interminável, sem noite, e o inferno é uma noite interminável, sem dia. Quem descreverá a bem-aventurança da vida eterna? Ela ultrapassa em muito o poder da concepção humana. Só pode ser medida por contraste e comparação. Por exemplo, um eterno descanso após guerra e conflito; a eterna companhia dos santos, depois de ter batalhado contra um mundo maligno; um corpo eternamente glorioso e que nunca mais sentirá enfermidade; a eterna contemplação de Jesus Cristo, face a face, sendo que, anteriormente, só havia o ouvir e o crer. De fato, tudo isso é bem- aventurança. Mas metade de tudo isso ainda está para ser contada. Quem descreverá as misérias da punição eterna? Trata-se de algo totalmente indescritível e inconcebível. A eterna dor no corpo; a dor aguda de uma consciência acusadora; a eterna sociedade dos ímpios com o diabo e seus anjos; a eterna lembrança das oportunidades negligenciadas e de Cristo desprezado; a eterna perspectiva de um futuro aborrecido e sem esperança. Tudo isso é miséria, de fato; o suficiente para fazer nossos ouvidos tinirem e o sangue gelar em nossas veias. Mesmo assim, esse quadro não é nada em comparação à realidade. Encerremos o comentário desses versículos com uma séria autoinquirição. Perguntemos a nós mesmos de que lado de Cristo provavelmente estaremos no último dia. Estaremos à sua direita ou à sua esquerda? Feliz é quem não descansa até que possa dar uma resposta satisfatória a essa pergunta. A mulher que ungiu nosso Senhor Leia Mateus 26.1-13
E stamos nos aproximando da cena final do ministério terreno de
nosso Senhor Jesus Cristo. Até essa altura, temos lido de suas declarações e de seus feitos. Daqui em diante, vamos ler acerca de seus sofrimentos e de sua morte. Até agora, nós o temos visto como o grande Profeta; daqui em diante, nós o veremos como o grande Sumo Sacerdote. Essa é uma porção das Escrituras que deveria ser lida com especial atenção e reverência. O lugar no qual pisamos é terra santa. Vemos aqui como o Descendente da mulher esmagou a cabeça da serpente. Vemos aqui o grande sacrifício, para o qual apontavam todos os sacrifícios do Antigo Testamento. Vemos aqui como foi vertido o sangue que nos “purifica de todo pecado”, como foi morto o Cordeiro que “tira o pecado do mundo”. Vemos revelado, na morte de Cristo, o grande mistério de como Deus pode ser justo e, mesmo assim, justificar o ímpio. Não nos causa admiração o fato de que todos os quatro evangelhos contenham um relato completo desse evento maravilhoso. Acerca de outros detalhes da história de nosso Senhor, descobrimos que, frequentemente, quando um evangelista fala, os outros três fazem silêncio. Mas, quando chegamos à crucificação, temos um relato minuciosamente descrito por todos os quatro evangelistas. Nos versículos que acabamos de ler, observemos, em primeiro lugar, como o Senhor é cuidadoso ao chamar a atenção de seus discípulos para sua própria morte. Ele lhes disse: “Sabeis que daqui a dois dias celebrar-se-á a Páscoa; e o Filho do Homem será entregue para ser crucificado”. É impossível não notar a conexão dessas palavras com o capítulo anterior. Pouco antes, Nosso Senhor falava de sua segunda vinda em poder e glória, no fim do mundo. Ele estava descrevendo o julgamento final e todos aqueles terríveis acontecimentos. Estivera falando de si mesmo como o Juiz diante de cujo trono todas as nações serão reunidas. E então, subitamente, sem pausa ou intervalo, Jesus começa a falar de sua crucificação. Enquanto as predições maravilhosas de sua glória final ainda ressoavam nos ouvidos dos discípulos, ele lhes fala, mais uma vez, dos sofrimentos que viriam em breve. Relembra-os de que deve morrer como oferta pelo pecado antes de reinar como Rei; de que deve fazer a expiação na cruz antes de receber a coroa. Não há como exagerar a importância da morte expiatória de Cristo. Ela é o fato central na Palavra de Deus, para o qual nossos olhos espirituais deveriam estar sempre atentos. Sem o derramamento do sangue de Cristo, não há remissão de pecados. Essa é a verdade fundamental, da qual depende o sistema inteiro do cristianismo. Sem ela, o evangelho é como uma arca sem a quilha; como um belo edifício sem os alicerces; é como um sistema solar sem sol. Que valorizemos grandemente a encarnação de nosso Senhor e seu exemplo, seus milagres, suas parábolas, seus ensinamentos e seus feitos; mas, acima de tudo, valorizemos muito a sua morte. Deleitemo-nos na esperança de sua segunda vinda pessoal e seu reinado milenar, mas lembremo-nos de que essas verdades benditas não são mais importantes do que a expiação realizada na cruz. Afinal de contas, esta é a verdade central das Escrituras: “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1Co 15.3). Lembremo-nos dessa verdade, dia após dia. Alimentemos com ela, diariamente, nossas almas. Alguns, como os antigos gregos, podem até escarnecer da doutrina e chamá-la de “loucura”. Mas jamais nos envergonhemos de dizer, com Paulo: “Longe esteja de mim gloriar- me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6.14). Observemos nesses versículos, em segundo lugar, quanta honra o Senhor Jesus ama conceder àqueles que o honram. Lemos que, quando Jesus estava “em casa de Simão, o leproso”, uma mulher aproximou-se, estando ele à mesa, e lhe derramou sobre a cabeça um frasco de unguento preciosíssimo. Ela fez isso, sem dúvida, por reverência e afeição. Tinha recebido de Jesus um benefício espiritual, e por isso nenhum sacrifício pessoal era grande demais para honrar o Senhor como retribuição. Não obstante, o ato daquela mulher levou alguns dos circunstantes a reprová-la, quando viram o que fizera. Chamaram aquilo de “desperdício”. Disseram que talvez teria sido melhor vender o unguento e dar o dinheiro aos pobres. Mas, prontamente, o Senhor repreendeu aqueles homens insensíveis e críticos. Jesus disse-lhes: “Ela praticou uma boa ação para comigo”, ação que ele aceitava e aprovava. E Jesus foi mais além, fazendo uma predição notável: “Onde for pregado em todo o mundo este evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua”. Nesse pequeno incidente, notamos quão perfeitamente nosso Senhor conhecia os acontecimentos futuros e quão facilmente pode conferir honra a alguém. Essa profecia, a respeito daquela mulher, está sendo cumprida a cada dia diante de nossos olhos. Onde quer que o evangelho de Mateus seja lido, torna-se conhecido o que essa mulher fez. Os feitos e os títulos de muitos monarcas, imperadores e generais estão completamente esquecidos, como se tivessem sido escritos sobre areia. Porém, o ato de gratidão de uma humilde mulher crente está registrado em centenas de idiomas diferentes e é conhecido em todo o mundo. O elogio dos homens dura somente alguns dias, mas o elogio de Cristo permanece para sempre. O caminho para a honra duradoura consiste em dar honra a Cristo. Por último, mas não menos importante, vemos nesse incidente um bendito antegozo das coisas que estão para acontecer no dia do juízo final. Naquele grande dia, nenhuma honra prestada a Cristo nesta terra terá sido esquecida por ele. Os discursos dos oradores parlamentares, os feitos heroicos dos guerreiros, as obras de poetas e pintores nem serão mencionados. Mas a mínima obra que o crente mais fraco tiver feito em favor de Cristo ou de seu povo estará registrada num livro de memórias eternas. Nem uma única palavra ou atitude gentil, nem um único copo de água fria ou frasco de perfume, nada deixará de ser registrado no livro. Talvez ela não tivesse ouro e prata; talvez não tivesse posição social, poder e influência, mas, se ela amava Cristo, se confessava Cristo e se trabalhava por Cristo, sua memória estará registrada no céu. Ela será elogiada diante dos mundos reunidos. Sabemos o que significa trabalhar por Cristo? Se sabemos, tenhamos coragem e trabalhemos ainda mais. Qual encorajamento haveríamos de desejar maior do que este que encontramos aqui? O mundo pode rir de nós e nos ridicularizar. Nossos motivos podem ser mal interpretados, e nossa conduta, deturpada. Nossos sacrifícios por amor a Cristo podem ser chamados de “desperdício” — desperdício de tempo, desperdício de dinheiro, desperdício de energia. Porém, que nada disso nos abale! Os olhos daquele que esteve na casa de Simão, em Betânia, estão postos sobre nós. Ele vê tudo que fazemos por ele e fica satisfeito. Portanto, “sede firmes, inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no Senhor, o vosso trabalho não é vão” (1Co 15.58). O falso apóstolo e seu pecado arraigado Leia Mateus 26.14-25
N o começo dessa passagem, vemos como nosso Senhor Jesus
Cristo foi traído e entregue nas mãos de seus inimigos mortais. Os sacerdotes e escribas, embora ansiosos por vê-lo morto, não sabiam como concretizar seu propósito, pois temiam uma revolta entre o povo. Então, surgiu um instrumento apropriado, oferecendo- se para levar adiante seus intentos: Judas Iscariotes. Esse falso apóstolo dispôs-se a trair seu Mestre por trinta moedas de prata. Em toda a História, há poucas páginas mais escuras do que as do caráter e da conduta de Judas Iscariotes. Não há pior evidência da pecaminosidade do homem. Um de nossos poetas já disse que “uma criança ingrata é mais cortante do que as presas de uma serpente”. Mas o que diríamos sobre um discípulo que se dispôs a trair seu próprio Mestre, de um apóstolo que foi capaz de vender Cristo? Certamente essa não foi a parte menos amarga do cálice de sofrimentos que nosso Senhor bebeu. Com base nesses versículos, em primeiro lugar cumpre-nos aprender que um homem pode desfrutar de grandes privilégios e fazer uma grande confissão e, mesmo assim, o tempo todo seu coração pode não estar correto diante de Deus. Judas Iscariotes dispunha dos mais elevados privilégios religiosos possíveis. Foi escolhido para ser apóstolo e companheiro de Cristo. Foi testemunha ocular dos milagres de nosso Senhor e ouvinte de seus sermões. Ele viu aquilo que Moisés e Abraão jamais viram, e ouviu o que Davi e Isaías nunca ouviram. Viveu na companhia dos onze apóstolos. Foi cooperador de Pedro e João. Porém, a despeito de tudo isso, seu coração nunca foi mudado; ele se apegava a um pecado de estimação. Judas Iscariotes fazia uma respeitável profissão religiosa. Quanto à sua conduta externa, tudo era correto, apropriado e coerente. Como os demais apóstolos, ele parecia crer e desistir de tudo por amor a Cristo. Ele também fora enviado para pregar e realizar milagres. Parece que nenhum dos onze suspeitou de que Judas era um hipócrita. Quando nosso Senhor disse: “um dentre vós me trairá”, ninguém falou: “Será Judas?”. Não obstante, durante todo aquele tempo, seu coração nunca foi mudado. Deveríamos observar essas coisas. Elas servem para nos humilhar e instruir. Assim como a mulher de Ló, Judas foi posto como um farol para toda a Igreja. Que pensemos frequentemente a respeito dele e digamos, enquanto meditarmos, “sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração [...] vê se há em mim algum caminho mau” (Sl 139.23-24). Tomemos a resolução, pela graça de Deus, de nunca nos contentar com qualquer coisa menos do que uma conversão completa e genuína do coração. Em segundo lugar, aprendamos, com base nesses versículos, que o amor ao dinheiro é uma das maiores armadilhas para a alma de um homem. Não podemos imaginar uma prova mais evidente dessa verdade do que o caso de Judas. Aquela pergunta infame, “Que me quereis dar?”, revela o pecado secreto que foi a ruína de Judas. Ele havia desistido de muita coisa por causa de Cristo, mas não havia desistido de sua cobiça. As palavras do apóstolo Paulo deveriam soar com frequência em nossos ouvidos: “O amor do dinheiro é raiz de todos os males” (1Tm 6.10). A História da Igreja está repleta de ilustrações dessa verdade. Foi por dinheiro que José foi vendido por seus irmãos. Por dinheiro, Sansão foi traído e entregue aos filisteus. Por dinheiro, Geazi enganou Naamã e mentiu para Elizeu. Por dinheiro, Ananias e Safira tentaram ludibriar o apóstolo Pedro. Por dinheiro, o Filho de Deus foi entregue nas mãos dos ímpios. Parece extraordinário que a causa de tantos males seja tão amada pelos homens. Que todos nós estejamos precavidos contra o amor ao dinheiro! Em nossos dias, o mundo está cheio desse amor. A praga está por toda parte. Milhares de pessoas que abominariam a ideia de adorar uma imagem de escultura não se envergonham de fazer do ouro um ídolo. Todos nós estamos sujeitos a essa infecção, do menor ao maior de nós. Podemos amar dinheiro mesmo sem possuí-lo, da mesma maneira que podemos possuir dinheiro sem amá-lo. Esse é um mal que opera de forma enganadora. Leva-nos em cativeiro antes mesmo de nos darmos conta de que já estamos presos em suas cadeias. Uma vez que permitimos que o amor ao dinheiro nos domine, ele irá endurecer, paralisar, cauterizar, congelar, enferrujar e secar nossa alma. Isso aconteceu até mesmo com um apóstolo de Cristo. Cuidemos para que também não aconteça conosco. Um pequeno vazamento pode afundar um grande navio. Um único pecado não mortificado pode arruinar uma alma. Deveríamos lembrar-nos com frequência de palavras solenes como estas: “Que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?”; “nada temos trazido para o mundo, nem cousa alguma podemos levar dele”. Nossa oração diária deveria ser “não me dês nem a pobreza nem a riqueza; dá-me o pão que me for necessário” (Pv 30.8). Nosso alvo constante deveria ser o enriquecimento na graça. Os que querem ficar ricos em possessões mundanas frequentemente descobrem, mais tarde, que fizeram a pior das barganhas. A exemplo de Esaú, trocaram uma porção eterna por uma pequena gratificação temporária. Assim como Judas Iscariotes, venderam-se à perdição eterna. Nesses versículos, aprendemos, por último, a situação desesperada de todos que morrem sem se converter. As palavras de nosso Senhor, a respeito do assunto, são peculiarmente solenes. Ele disse acerca de Judas: “Melhor lhe fora não haver nascido!”. Essa afirmativa admite apenas uma interpretação. Ela nos ensina claramente que é melhor nunca viver do que viver neste mundo sem ter fé e morrer sem a graça divina. Morrer em tal estado significa ruína para todo o sempre. Trata-se de uma queda sem recuperação. É uma perda absolutamente irreparável. No inferno, não haverá possibilidade de mudança. O abismo entre céu e inferno é enorme, e ninguém pode atravessá-lo. Essa declaração nunca poderia ter sido usada se houvesse alguma verdade na doutrina da salvação universal. Se realmente fosse verdade que, mais cedo ou mais tarde, todos os seres humanos alcançarão o céu e que, cedo ou tarde, o inferno não terá mais habitantes, então jamais poderia ter sido dito que seria melhor um homem “não haver nascido”, conforme Jesus disse. O próprio inferno perderia seus terrores se viesse a ter um fim. O próprio inferno se tornaria um lugar suportável se, após milhões de anos, houvesse esperança de liberdade e de o condenado ir para o céu. Porém, a salvação universal não encontra fundamento nas Escrituras. O ensino da Palavra de Deus sobre o assunto é claro e explícito. Há um “verme” que não morre e um “fogo” que não se apaga (Mc 9.44). “Se alguém não nascer de novo” (Jo 3.3), desejará, um dia, nunca ter nascido. Escreveu Burkitt: “Melhor não existir do que não existir em Cristo”. Apeguemo-nos firmemente a essa verdade, sem deixá-la escapar. Sempre existem pessoas com aversão à realidade e à eternidade do inferno. Vivemos em uma época em que a benevolência mórbida leva muitos homens a exagerar a misericórdia de Deus à custa da justiça de Deus; e falsos mestres ousam falar de um “amor de Deus que ultrapassa até mesmo o inferno”. Ofereçamos resistência a essa espécie de ensino, movidos por um santo zelo, e permaneçamos fiéis à doutrina da Sagrada Escritura. Que não nos envergonhemos de andar nas antigas veredas, crendo que há um Deus eterno, um céu eterno e um inferno eterno. Se nos afastarmos dessa crença, estaremos admitindo a cunha afiada do ceticismo e, por fim, acabaremos negando qualquer doutrina do evangelho. Entre a crença na eternidade do inferno e a infidelidade evidente, não há ligação. Acerca disso, podemos estar tranquilos. A Ceia do Senhor e os primeiros participantes Leia Mateus 26.26-35
E sses versículos descrevem a instituição da ordenança da Ceia
do Senhor. Nosso Senhor sabia bem as coisas que estavam diante de si e, graciosamente, escolheu a última noite de quietude que podia ter, antes da crucificação, como ocasião para conceder um dom à sua Igreja, antes de partir. Quão preciosa, mais tarde, deve ter parecido essa ordenança, quando os discípulos se lembraram dos acontecimentos daquela noite! Quão lamentável saber que nenhuma outra ordenança tem provocado uma controvérsia tão feroz ou tem sido tão tristemente mal compreendida como essa ordenança da Ceia do Senhor. Ela deveria ter unificado a Igreja, mas nossos pecados a têm transformado em motivo de divisões. Com frequência, aquilo que visava ao nosso bem tem sido transformado em ocasião de tropeço. A primeira coisa que nos chama a atenção nesses versículos é a correta significação das palavras de nosso Senhor, “isto é o meu corpo”, “isto é o meu sangue”. É desnecessário dizer que esse assunto tem causado divisão na igreja visível de Cristo. Muitos volumes de teologia controvertida já foram escritos a esse respeito, mas não deveríamos deixar de ter uma opinião bem formada sobre o assunto, somente porque os teólogos têm disputado, divergindo entre si. A compreensão equivocada dessas palavras de Cristo já originou muitas superstições deploráveis. O nítido sentido das palavras de nosso Senhor parece ser o seguinte: “Este pão representa o meu corpo. Este vinho representa o meu sangue”. Jesus não quis dizer que o pão oferecido a seus discípulos era, real e literalmente, seu corpo. Também não quis dar a entender que o vinho era, literalmente, seu sangue. Firmemo-nos nessa interpretação, pois ela conta com o apoio de diversas razões importantes. A conduta dos discípulos, na Ceia do Senhor, proíbe-nos de crer que o pão que receberam fosse o corpo de Cristo e que o vinho fosse seu sangue. Eles todos eram judeus, ensinados, desde a infância, a crer que era pecado ingerir a carne juntamente com o sangue (Dt 12.23-25). No entanto, nada existe nessa narrativa bíblica que demonstre que tenham ficado chocados com as palavras de nosso Senhor. Evidentemente, eles não viram mudança no pão e no vinho. Nossos próprios sentidos, hoje, impedem-nos de acreditar que, na celebração da Ceia do Senhor, ocorra modificação no pão e no vinho. Nosso paladar nos diz que esses elementos são real e literalmente aquilo com que se parecem. A Bíblia nos manda crer em fatos que ultrapassam nosso entendimento, mas nunca ordena que creiamos naquilo que contradiz nossos sentidos. A verdadeira doutrina acerca da natureza humana de nosso Senhor proíbe-nos de crer que o pão, na Ceia do Senhor, possa ser seu corpo, ou o vinho, seu sangue. O corpo natural de Jesus não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Se o corpo de Cristo pudesse estar reclinado à mesa e, ao mesmo tempo, ser ingerido pelos discípulos, seria perfeitamente claro que aquele não seria um corpo humano, como o nosso. Isso é algo que jamais devemos admitir, nem ao menos por um instante. A glória do cristianismo é que o nosso Redentor é homem perfeito e Deus perfeito. Finalmente, o caráter da linguagem empregada por nosso Senhor durante a Ceia torna inteiramente desnecessário interpretarmos suas palavras de forma literal. A Bíblia está cheia de expressões semelhantes, às quais ninguém pensa em dar uma interpretação que não seja figurativa. Por exemplo, nosso Senhor fala de si mesmo como a “porta” e a “videira”, e sabemos que ele está usando símbolos e figuras quando fala desse modo. Portanto, não há incoerência em supor que ele falou em linguagem figurativa quando instituiu a Ceia do Senhor. E temos ainda maior direito de assim pensar quando nos lembramos das graves objeções que advêm de uma interpretação literal. Que guardemos essas coisas em mente, e não nos esqueçamos delas. Numa época em que as heresias tanto se multiplicam, é bom estarmos bem armados. Pontos de vista confusos e ignorantes acerca do significado da linguagem das Escrituras são uma grande causa de erros doutrinários. A segunda coisa que exige nossa atenção, nesses versículos, é o propósito e o objetivo para a Ceia do Senhor ter sido instituída. Novamente, esse é um assunto em torno do qual prevalece muita obscuridade. A ordenança da Ceia do Senhor tem sido considerada algo misterioso e que ultrapassa o entendimento. A linguagem vaga e floreada com que muitos escritores se permitem abordar essa ordenança tem causado imenso dano ao cristianismo. Nada existe, na narrativa original da instituição da Ceia, que possa justificar interpretações desse tipo. Quanto mais simples for nossa compreensão acerca do propósito dessa ordenança, mais bíblica será. A Ceia do Senhor não é um sacrifício. Nela, não há oblação, nenhuma oferenda de coisa alguma; apenas nossos louvores, orações e ações de graças. Desde o dia em que Jesus morreu, não há necessidade de qualquer outra oferenda pelo pecado. Com uma única oferta, ele aperfeiçoou para sempre todos que estão sendo santificados (Hb 10.14). Sacerdotes, altares e sacrifícios deixaram de ser necessários quando o Cordeiro de Deus ofereceu a si mesmo. Tais ofícios e instituições chegaram ao seu momento final; sua utilidade cessou para sempre. A Ceia do Senhor não tem poder de conferir benefícios aos que dela participam se essas pessoas não se aproximarem com fé. O mero ato formal de comer o pão e beber o vinho será completamente inútil, a menos que seja feito com um coração reto. Acima de tudo, essa é uma ordenança para a alma já vivificada, e não para aquela que está morta; é uma ordenança para os convertidos, e não para os não convertidos. A Ceia do Senhor foi ordenada para ser memorial contínuo do sacrifício da morte de Cristo até a sua volta. Os benefícios que ela concede são espirituais, e não físicos. Seus efeitos devem ser procurados em nosso homem interior. Sua finalidade é lembrarnos, mediante elementos visíveis e tangíveis, ou seja, o pão e o vinho, que o oferecimento do corpo e do sangue de Cristo por nós, na cruz, é a única expiação pelo pecado e é a vida da alma de um crente. Seus propósitos consistem em ajudar nossa fé débil, para que tenhamos um relacionamento mais próximo com nosso Senhor crucificado, e nos assistir e alimentar de maneira espiritual do corpo e do sangue de Cristo. Trata-se, portanto, de uma ordenança para os pecadores remidos, e não para anjos que nunca caíram. Recebendo-a, declaramos publicamente nosso senso de culpa e nossa necessidade de um Salvador, nossa confiança em Jesus e nosso amor por ele, nosso desejo de viver alicerçados sobre ele e nossa esperança de viver com ele. Participando da Ceia dessa forma, veremos que nosso arrependimento será mais profundo; nossa fé, fortalecida; nossa esperança, avivada; e nosso amor, aumentado; nossos pecados costumeiros se enfraquecerão, e as graças divinas serão intensificadas. Isso, portanto, aproxima-nos mais de Jesus Cristo. Tenhamos em mente essas coisas. Elas precisam ser relembradas nesses nossos últimos dias. Nada existe em nossa religião que estejamos tão prontos a perverter e entender mal quanto aquelas partes que envolvem nossos sentidos. Tudo aquilo que pudermos tocar com as mãos e ver com os olhos, tendemos a transformar em um ídolo, ou esperar dessas coisas algum benefício, como se fosse por mágica. Vigiemos, sobretudo, no que diz respeito à Ceia do Senhor, contra essa nossa tendência. Acima de tudo, como diz a homilia, tomemos cuidado para “que o memorial não seja transformado em sacrifício”. Nessa passagem, a última coisa a merecer uma breve nota é o caráter dos que participaram da primeira Ceia. Essa é uma particularidade repleta de consolo e instrução. O pequeno grupo que, pela primeira vez, recebeu do Senhor a ministração da Ceia era composto pelos apóstolos a quem ele havia escolhido para acompanhá-lo durante seu ministério terreno. Eram homens pobres e iletrados, que amavam Cristo, mas eram todos igualmente fracos, tanto na fé como no conhecimento. Eles não compreendiam o significado pleno das afirmações e dos atos de seu Mestre. Não conheciam a fragilidade de seus próprios corações. Pensavam estar preparados para morrer em companhia de Jesus; mesmo assim, naquela mesma noite, todos o deixaram e fugiram. Nosso Senhor sabia de tudo isso perfeitamente bem. O estado real de seus corações não lhe era desconhecido. Mesmo assim, ele não lhes negou a participação na Ceia. Há um grande ensinamento nessa circunstância. Ela nos mostra claramente que não devemos impor um grande conhecimento e um grande vigor espiritual como qualificativos indispensáveis à participação na Ceia do Senhor. Um homem pode conhecer bem pouco e não ser mais do que uma criança em termos de vigor espiritual, mas não deve, por isso, ser excluído da mesa do Senhor. Esse homem realmente se ressente de seus pecados? Ele realmente ama Cristo? Tem o desejo autêntico de servir a ele? Se assim for, devemos recebê-lo e encorajá-lo. Sem dúvida, devemos fazer todo o possível para excluir os comungantes indignos. Nenhuma pessoa alheia à graça de Deus deveria participar da Ceia do Senhor, mas devemos ter cuidado de não rejeitar aquele a quem Cristo não rejeitou. Não há sabedoria em nos mostrarmos mais estritos do que nosso Senhor e seus apóstolos. Passemos adiante, fazendo uma séria autoinquirição de nossa própria conduta a respeito da Ceia do Senhor. Nós nos afastamos dela quando está sendo celebrada? Nesse caso, como podemos justificar nossa conduta? Não podemos alegar que não se trata de uma ordenança necessária. Dizer isso significa desprezar o próprio Jesus Cristo e declarar que não obedecemos a ele. Também não podemos alegar que nos sentimos indignos de participar da mesa do Senhor. Afirmar isso é o mesmo que declarar que estamos despreparados para a morte, despreparados para nos encontrar com Deus. Essas são considerações extremamente solenes. Todos os que não participam da Ceia do Senhor deveriam ponderá-las bem. Temos o hábito de vir à Ceia do Senhor? Nesse caso, com que atitude fazemos isso? Achegamo-nos a ela de forma inteligente e humilde, com fé no coração? Compreendemos, na verdade, o que nos propomos a fazer? Sentimos, efetivamente, nossa pecaminosidade e nossa necessidade de Jesus Cristo? Desejamos viver uma vida realmente cristã e professar realmente a fé cristã? Feliz o homem que pode dar respostas satisfatórias a essas indagações. Que ele siga em frente e persevere! A agonia no Getsêmani Leia Mateus 26.36-46
O s versículos que acabamos de ler descrevem aquilo que é
comumente chamado de a “paixão” de Cristo no Getsêmani. É uma passagem que, sem dúvida, contém profundidades e mistérios. Deveríamos lê-la com reverência e admiração, pois nela há muitas coisas que não podemos compreender inteiramente. Por que encontramos nosso Senhor muito entristecido e angustiado, conforme lemos nesse trecho? Como devemos entender suas palavras: “A minha alma está profundamente triste até à morte?”. Por que vemos Jesus distanciar-se de seus discípulos e prostrar-se com o rosto em terra, a fim de dirigir ao Pai fortes clamores em oração por três vezes? Por que o Todo- Poderoso Filho de Deus, que fizera tantos milagres, estava agora tão triste e inquieto? Por que Jesus, que veio ao mundo para morrer, agora quase desmaiava diante da aproximação da morte? Qual é porquê de tudo isso? Só existe uma única resposta razoável a essas indagações. O peso que estava sobre a alma de nosso Senhor não era o temor da morte e de suas agonias. Milhares de pessoas têm sofrido os mais terríveis sofrimentos físicos, morrendo sem emitir um único gemido, e, sem dúvida, poderia ter sido assim com nosso Senhor. Mas o peso real, que tanto entristecia o coração de Jesus, era o peso do pecado do mundo, que, naquele momento, parecia estar pesando sobre ele com força peculiar. Era a carga de nossa culpa que lhe estava sendo imputada, que agora estava sendo lançada sobre ele, como era posta sobre a cabeça do Cordeiro da expiação. Não há coração humano que possa conceber quão grande era essa carga. Só Deus o sabe! Bem podia falar a litania grega sobre “os sofrimentos desconhecidos de Cristo”. E as palavras de Scott sobre esse assunto provavelmente são corretas: “Cristo, naqueles momentos, suportava uma penúria tão intensa (como aquela que os espíritos condenados sofrem) quanto era possível suportar, sem deixar de ter uma consciência pura, um amor perfeito por Deus e pelos homens, e uma confiança segura na consumação gloriosa”. No entanto, por mais misteriosa que nos possa parecer essa etapa na história de nosso Senhor, não devemos deixar de observar as preciosas lições de instrução prática nela contidas. Vejamos, pois, quais são essas lições. Em primeiro lugar, aprendamos que a oração é o melhor remédio prático que podemos usar nos tempos de tribulação. Vemos que Cristo mesmo orou quando sua alma estava angustiada. Todos os crentes verdadeiros deveriam fazer o mesmo. As tribulações são um cálice do qual todos nós precisamos beber neste mundo de pecado. “O homem nasce para o enfado como as faíscas das brasas voam para cima” (Jo 5.7). Não podemos evitar isso. Dentre todas as criaturas, nenhuma é tão vulnerável quanto o homem. Nosso corpo, nossa mente, nossa família, nossos negócios, nossos amigos, são várias portas por onde a tribulação pode vir. Até mesmo o mais santificado dos filhos de Deus não pode declarar-se uma exceção. A exemplo de seu Senhor, os crentes, com grande frequência, são “homens de dores” (Is 53.3). Qual seria a primeira coisa que deveríamos fazer quando nos sentimos atribulados? Deveríamos orar. À semelhança de Jó, devemos prostrar-nos e adorar o Senhor (Jó 1.20). Tal como Ezequiel, devemos expor nossas dificuldades diante do Senhor (2Rs 19.14). A primeira pessoa a quem deveríamos pedir ajuda é ao nosso Deus. Deveríamos contar ao nosso Pai, que está nos céus, todas as nossas aflições. Deveríamos confiar que coisa alguma é por demais pequena ou trivial para ser colocada diante dele, contanto que façamos isso com inteira submissão à sua vontade. Uma das características da fé consiste em nada ocultar de nosso melhor Amigo. Assim agindo, podemos ter a certeza de que obteremos sua resposta. “Se for possível”, e se a coisa solicitada contribuir para a glória de Deus, então nosso pedido nos será outorgado. O espinho na carne será removido de nós ou, então, a graça divina nos será proporcionada, a fim de que possamos suportar o espinho, segundo se deu com o apóstolo Paulo (2Co 12.9). Registremos essa lição, para os tempos de necessidade. É perfeitamente veraz a declaração: “A oração é um remédio que alivia as preocupações”. Em segundo lugar, aprendemos que a inteira submissão de nossa vontade à vontade de Deus deveria ser um de nossos principais alvos neste mundo. As palavras de nosso Senhor são um belo exemplo da atitude que devemos cultivar quanto a essa questão. Ele diz: “Não seja como eu quero, e, sim, como tu queres”. Uma vontade descontrolada e não santificada é uma grande causa de infelicidade na vida. Isso pode ser visto até mesmo na vida dos pequenos infantes. É algo que já nasce conosco. Todos nós gostamos de fazer as coisas à nossa própria maneira. Desejamos e queremos muitas coisas, mas nos esquecemos de que somos totalmente ignorantes acerca do que é melhor para nós, e de que somos incapazes de escolher por nós mesmos. Feliz é quem já aprendeu a não ter desejos, e estar contente em qualquer situação. Essa é uma lição que só aprendemos lentamente e, como o apóstolo Paulo, não devemos aprendê-la na escola do homem mortal, mas na escola de Cristo (Fp 4.11). Desejamos saber se já nascemos de novo e se estamos crescendo na graça? Nesse caso, vejamos o que acontece no tocante à nossa vontade. Somos capazes de suportar desapontamentos? Somos capazes de tolerar com paciência os testes inesperados e os desgostos que nos sobrevêm? Podemos ver frustrados nossos planos de estimação e projetos, sem murmuração e sem queixas? Podemos nos assentar em silêncio e sofrer calmamente, tanto quanto estar envolvidos em intensa atividade? Essas são questões que comprovam se realmente temos a mente de Cristo. Nunca deveríamos nos esquecer de que sentimentos calorosos e disposições alegres não são as evidências mais verdadeiras da graça divina. A vontade mortificada é uma possessão muito mais valiosa. Nem mesmo nosso Senhor se regozijava em todas as situações, mas sempre podia dizer: “Façase a tua vontade”. Por último, aprendamos que existe grande fraqueza até mesmo nos verdadeiros discípulos de Cristo, e que eles precisam vigiar e orar a esse respeito. Vemos Pedro, Tiago e João, três apóstolos escolhidos, dormindo quando deveriam estar vigiando e orando. Também vemos nosso Senhor dirigindo-se a eles com estas palavras solenes: “Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; o espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”. Há uma dupla natureza em todos os crentes. Convertidos, renovados e santificados como são, ainda assim eles carregam consigo uma massa de corrupção, um corpo de pecado. Paulo refere-se a isso quando assevera: “[...] encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque, no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado [...]” (Rm 7.21-23). A experiência de todos os verdadeiros cristãos, em todos os séculos, confirma isso. Eles encontram dentro de si dois princípios contrários e uma batalha contínua entre ambos. Nosso Senhor alude a esses dois princípios quando se dirige aos discípulos dormentes. Ele chama a um de “carne” e, ao outro, de “espírito”: “O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca”. Mas nosso Senhor procurou desculpar essa fraqueza em seus discípulos? Longe de nós pensar tal coisa. Os que chegam a essa conclusão interpretam muito mal o que ele quis dizer. Jesus usa essa mesma fraqueza como argumento para a vigilância e a oração. Ele nos ensina que o próprio fato de estarmos cercados de tanta fraqueza deveria despertar-nos continuamente para “vigiar e orar”. Se desejamos seguir a verdadeira religião cristã, jamais nos esqueçamos dessa lição. Se desejamos andar com Deus confortavelmente e não cair, como sucedeu a Davi e Pedro, então nunca nos esqueçamos de vigiar e orar. Que vivamos como soldados em território inimigo, montando guarda permanente! Nunca caminhamos com demasiada cautela. Nunca exercemos cuidado em demasia por nossa alma. O mundo é muito traiçoeiro. O diabo está sempre muito ocupado. Que as palavras de nosso Senhor soem em nossos ouvidos diariamente, como uma trombeta! Talvez o espírito possa estar pronto, mas a carne é sempre muito fraca. Portanto, vigiemos sempre e oremos sempre. O beijo do falso apóstolo; a submissão voluntária de Jesus Cristo Leia Mateus 26.47-56
N esses versículos, vemos que o cálice dos sofrimentos de nosso
Senhor Jesus Cristo começa a se encher. Nós o vemos traído por um de seus discípulos, abandonado pelos demais e aprisionado por seus inimigos de morte. Certamente, nunca houve tristezas como aquelas que ele sofreu. Não nos esqueçamos, quando da leitura desse trecho da Bíblia, que nossos pecados foram a causa dessas tristezas! Jesus foi “entregue por causa das nossas transgressões” (Rm 4.25). Em primeiro lugar, notemos, nesses versículos, como o relacionamento entre Jesus e seus discípulos foi marcado por uma graciosa afabilidade. Esse ponto é demonstrado pela circunstância profundamente comovedora, no momento da traição de nosso Senhor. Quando Judas Iscariotes ofereceu-se para guiar a multidão ao lugar no qual seu Mestre estava, ele lhes deu um sinal, mediante o qual poderiam distinguir Jesus dentre os discípulos, mesmo sob a fraca luz da lua. Ele disse: “Aquele a quem eu beijar, é esse; prendei-o”. E, assim, chegando-se a Jesus, disse: “Salve, Mestre!”, e o beijou. Esse fato simples revela os termos afetuosos com que os discípulos se associavam a Jesus. Nos países orientais, é costume, quando dois amigos se encontram, saudar-se com um ósculo (Êx 18.7; 1Sm 20.41). Parece, portanto, que, quando Judas beijou Jesus, estava apenas fazendo o que todos os apóstolos eram habituados a fazer quando encontravam o Mestre, após uma ausência. Devemos tirar, dessa pequena circunstância, conforto para nossas próprias almas. Nosso Senhor Jesus Cristo é um Salvador gracioso e afável. Ele não é “homem severo”, repelindo os pecadores e mantendo-os a distância. Ele não é um ser tão diferente de nós, em natureza, que tenhamos de considerá-lo com assombro, mais do que com afeto. Ao contrário, ele deseja que o tenhamos na conta de um irmão mais velho e de um querido amigo. Seu coração, lá no céu, ainda é o mesmo que era neste mundo. Ele é sempre manso, misericordioso e afável para com os homens humildes. Confiemos nele, e não tenhamos receio. Em segundo lugar, observemos como nosso Senhor condena aqueles que pensam em usar armas carnais em defesa dele ou de sua causa. Ele reprova um de seus discípulos por ferir um servo do sumo sacerdote. Ele diz: “Embainha a tua espada”. E acrescenta uma declaração solene, de perpétua significação: “Todos os que lançam mão da espada, à espada perecerão”. A espada tem uma utilização legítima e peculiar. Ela pode ser empregada com justiça na defesa de nações contra a opressão. Ela pode tornar-se necessária para evitar confusão, saque ou rapina em um país. Mas jamais deve ser empregada na propagação e na manutenção do evangelho. O cristianismo não pode ser imposto mediante derramamento de sangue, nem podemos obrigar as pessoas a crerem. A Igreja teria tido uma história mais feliz se essa sentença fosse lembrada com mais frequência. Existem poucos países na cristandade em que esse erro não tem sido cometido, na tentativa de modificar as opiniões religiosas dos homens mediante compulsão, penalidades, encarceramento e morte. E quais são os efeitos disso? As páginas da história nos dão a resposta. Não houve guerras mais sangrentas do que as motivadas pelo choque de opiniões religiosas. Com muita frequência, infelizmente, os próprios homens que promovem essas guerras são mortos na batalha. Nunca nos deveríamos esquecer disso. As armas da milícia cristã não são carnais, mas, sim, espirituais (2Co 10.4). Em seguida, observemos como nosso Senhor deixou-se fazer prisioneiro por sua própria e livre vontade. Ele não foi levado cativo por não poder escapar. Para ele, teria sido fácil dispersar seus inimigos pelo vento, se assim tivesse querido fazer. “Acaso pensas”, disse ele a um discípulo, “que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria neste momento mais de doze legiões de anjos? Como, pois, se cumpririam as Escrituras, segundo as quais assim deve suceder?”. Nessas palavras, vemos o segredo de sua submissão voluntária aos inimigos. Ele veio com o propósito de cumprir os símbolos e as promessas das Escrituras do Antigo Testamento, para que, cumprindo-os, providenciasse salvação para o mundo. Ele veio intencionalmente, para ser o verdadeiro Cordeiro de Deus, o Cordeiro pascal. Veio para ser o bode expiatório, sobre o qual seriam postas as iniquidades do povo. Seu coração estava resolvido a realizar essa grande obra. Para isso, era necessário que fosse “velado o seu poder” (Hc 3.4) por algum tempo. Para fazer essa obra, ele se tornou um sofredor voluntário. Ele foi preso, julgado, condenado e crucificado inteiramente por sua própria vontade. Guardemos na mente esse fato, pois, nele, há muito encorajamento para nós. O sofredor voluntário também será um Salvador voluntário. O Filho de Deus, Todo-Poderoso, que consentiu em ser preso pelos homens e levado cativo quando poderia tê-los impedido apenas com uma palavra, certamente estará pronto para salvar as almas que correrem para ele. Uma vez mais, portanto, devemos aprender a confiar nele, sem receio. Por último, notemos quão pouco os crentes reconhecem a fraqueza de seus próprios corações, até que sejam provados. Na conduta dos apóstolos, temos uma triste ilustração dessa verdade. Os versículos que acabamos de ler se concluem com as seguintes palavras: “Então os discípulos todos, deixando-o, fugiram”. Todos esqueceram as confiantes afirmações feitas por eles mesmos, poucas horas antes. Esqueceram-se de que tinham declarado sua disposição de morrer com seu Mestre. Esqueceram-se de tudo, menos do perigo que agora os encarava de frente. O temor da morte os dominou e, “deixando-o, fugiram”. Quantos cristãos já fizeram o mesmo! Sob a influência de sentimentos agitados, eles prometeram jamais se envergonhar de Cristo! Depois da Ceia do Senhor, ou de algum sermão poderoso, ou de algum congresso cristão, eles saíram cheios de zelo e amor, prontos para dizer a todos que procuravam acautelá-los acerca da possibilidade de desvio: “Pois que é teu servo, este cão, para fazer tão grandes coisas?” (2Rs 8.13). No entanto, em poucos dias, aqueles sentimentos esfriaram e desapareceram. Veio uma provação e eles caíram diante dela. Abandonaram a Cristo. Nessa passagem, aprendamos preciosas lições de humildade e autoabatimento. Resolvamos, pois, pela graça de Deus, cultivar um espírito de humildade e autodesconfiança. Em nossas mentes, conscientizemo-nos de que nada existe de tão ruim que o melhor de nós não possa fazer, a menos que vigiemos, oremos e estejamos amparados pela graça de Deus. Que uma de nossas orações diárias seja: “Sustenta-me, e serei salvo” (Sl 119.117)! Cristo diante do concílio judaico Leia Mateus 26.57-68
N esses versículos, lemos como nosso Senhor Jesus Cristo foi
levado a Caifás, o sumo sacerdote, e solenemente declarado culpado. Convinha que assim fosse, pois o grande dia da expiação havia chegado. O maravilhoso símbolo do bode expiatório estava prestes a ser completamente cumprido. Era apropriado que o sumo sacerdote fizesse sua parte e imputasse o pecado sobre a cabeça da vítima, antes que ela fosse levada para a crucificação. Que possamos meditar sobre essas coisas e compreendê-las bem! Havia um profundo significado em cada etapa da paixão de nosso Senhor. Observemos, nesses versículos, que os maiorais dos sacerdotes foram os agentes principais que conspiraram para a morte de nosso Senhor. Devemos recordar que não foi tanto o povo judeu que suscitou essa obra de impiedade, mas, sim, Caifás e seus companheiros, os principais sacerdotes. Nisso, vemos um fato instrutivo, merecedor de toda a nossa atenção. Trata-se de uma prova evidente de que elevados ofícios eclesiásticos não isentam ninguém de graves erros doutrinários ou de pecados tremendos. Os sacerdotes judeus podiam traçar sua ascendência desde Aarão, e eram seus legítimos sucessores. Seu ofício caracterizava-se por santidade e responsabilidades peculiares. Mesmo assim, esses mesmos homens foram os assassinos de Cristo! Tenhamos o cuidado de não considerar infalível nenhum ministro religioso. Sua ordenação pela igreja, por mais autorizada que seja, não é garantia de que ele não possa nos desviar do caminho e até mesmo arruinar nossas almas. O ensino e a conduta de todos os ministros precisam ser checados pela Palavra de Deus. Eles devem ser seguidos enquanto estiverem sendo fiéis à Bíblia, nem um pouco além disso. A máxima estabelecida em Isaías deve ser nossa diretriz: “À lei e ao testemunho!” (Is 8.20). Em segundo lugar, observemos que nosso Senhor declarou abertamente, ao concílio judaico, sua própria messianidade e sua futura vinda gloriosa. Hoje, nenhum judeu não convertido pode dizer-nos que seus antepassados foram deixados na ignorância quanto ao fato de Jesus ser o Messias. A resposta de nosso Senhor à solene adjuração do sumo sacerdote foi uma declaração suficiente. Ele afirma claramente, diante do concílio, ser o “Cristo, o Filho de Deus”. E vai além, advertindo-os de que, embora ainda não tivesse aparecido em glória, conforme esperavam que o Messias tivesse feito, chegaria o dia em que apareceria desse modo. “Eu vos declaro que desde agora vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu.” Eles ainda veriam aquele mesmo Jesus de Nazaré, a quem estavam julgando em seu tribunal, aparecer um dia em toda a majestade, como Rei dos reis (Ap 1.7). Um fato destacado, que não devemos deixar de notar, é que, nas últimas palavras de nosso Senhor para os judeus, havia uma predição de advertência acerca de sua própria segunda vinda. Jesus lhes disse claramente que ainda haveriam de vê-lo em glória. Sem dúvida, ele se referia ao sétimo capítulo de Daniel, na linguagem que usou. Mas falava para ouvidos moucos. Incredulidade, preconceitos e justiça própria cobriam aqueles judeus como uma nuvem espessa. Nunca houve um caso tão grave de cegueira espiritual. Por isso é que a litania da Igreja Anglicana contém a seguinte oração: “De toda a cegueira [...] e dureza de coração, ó bom Senhor, livra-nos”. Em último lugar, observemos quanto falso testemunho e quanta zombaria nosso Senhor precisou suportar diante do concílio judaico. A falsidade e o ridículo são armas antigas e favoritas do diabo. Satanás é “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.44). Durante todo o ministério terreno de nosso Senhor, vemos essas armas sendo continuamente usadas contra ele. Jesus foi chamado de glutão, bebedor de vinho e amigo de publicanos e pecadores. Foi menosprezado e chamado de samaritano; e a cena final de sua vida foi perfeitamente coerente com todo o teor passado. Satanás incitou os adversários a acrescentarem insulto às agressões. Assim que Jesus foi declarado culpado, choveu sobre ele toda a sorte de indignidades: “Uns cuspiram-lhe no rosto e lhe davam murros, e outros o esbofeteavam”. Eles diziam, em zombaria: Profetiza-nos, ó Cristo, quem é que te bateu!” Quão incrível e estranho tudo isso soa para nós! Quão maravilhoso que o santo Filho de Deus se tenha submetido voluntariamente a tais indignidades, a fim de redimir miseráveis pecadores como nós! Quão maravilhoso é o fato de cada um dos insultos contra Jesus ter sido predito setecentos anos antes de sua ocorrência! Setecentos anos antes, Isaías tinha escrito: “Não escondi o meu rosto dos que me afrontavam e me cuspiam” (Is 50.6). Extraímos dessa passagem uma conclusão prática. Que jamais nos surpreenda o fato de termos de enfrentar escárnio, ridículo e calúnia, porque pertencemos a Jesus Cristo! O discípulo não é maior que seu mestre, nem o servo é maior que seu Senhor. Se mentiras e insultos foram lançados contra o nosso Salvador, não temos de nos admirar quando as mesmas armas são constantemente usadas contra seu povo. Uma das grandes artimanhas de Satanás é denegrir o caráter dos homens de Deus e fazê-los cair em descrédito. As vidas de Lutero, Cranmer, Calvino e John Wesley são exemplos abundantes disso. Se, alguma vez, formos chamados a sofrer desse modo, suportemos tudo com paciência. Bebemos do mesmo cálice de que nosso amado Senhor bebeu. Mas há uma grande diferença. No pior dos casos, experimentamos apenas algumas poucas gotas amargas, mas ele bebeu o cálice todo. Pedro nega seu mestre Leia Mateus 26.69-75
E sses versículos relatam um acontecimento notável e
profundamente instrutivo: a negação de Cristo, por parte do apóstolo Pedro. Esse é um daqueles eventos que provam indiretamente a veracidade da Bíblia. Se o evangelho fosse mera invenção humana, nunca teríamos sido informados de que um de seus principais pregadores foi tão fraco e pecador a ponto de negar seu Mestre. A primeira coisa que clama por nossa atenção é a natureza do pecado de que Pedro se tornou culpado. Foi um grande pecado. Vemos um homem que havia seguido Cristo por três anos, destacando-se em sua profissão de fé e amor por ele, um homem que havia recebido muitíssima misericórdia e amabilidade, e que fora tratado por Cristo como um amigo familiar — vemos esse homem negar três vezes que conhecia Jesus! Isso foi muito mau. Foi um pecado cometido em circunstâncias agravantes. Ademais, Pedro fora avisado claramente do perigo, e tinha ouvido a advertência. Havia pouco tinha recebido pão e vinho das mãos de nosso Senhor, e declarado em alta voz que, ainda que tivesse de morrer com Cristo, jamais o negaria! Isso também foi muito mau. O pecado foi cometido sob uma provocação aparentemente pequena. Duas simples criadas fazem a declaração de que ele estava com Jesus. Os que estavam ao lado dizem: “Verdadeiramente, és também um deles”. Nenhuma ameaça parece ter sido usada; nenhuma violência parece ter sido feita. No entanto, isso foi suficiente para derrotar a fé de Pedro. Ele negou diante de todos; negou com juramento e praguejou. Verdadeiramente, esse é um quadro humilhante! Frisemos bem essa história, guardando-a na memória, pois nos ensina, com toda a clareza, que os melhores dos santos não passam de homens — homens cercados de muitas fraquezas. Um homem pode converter-se ao Senhor, ter fé, esperança e amor para com Cristo, e, mesmo assim, ser apanhado em uma falta e sofrer quedas terríveis. Isso nos mostra a necessidade da humildade. Enquanto estamos no corpo, corremos perigo. A carne é fraca e o diabo está sempre ativo. Jamais devemos pensar: “Eu não caio”. Isso nos mostra o dever de usarmos a bondade para com os irmãos na fé que erram. Não devemos classificar homens como réprobos não convertidos somente porque, ocasionalmente, tropeçam e erram. Antes, devemos lembrar-nos de Pedro, e corrigi- los com um espírito de brandura (Gl 6.1). A segunda coisa que demanda nossa atenção é a série de passos pelos quais Pedro foi levado a negar seu Senhor. Esses passos estão misericordiosamente registrados, para o nosso aprendizado. O Espírito de Deus cuidou de tê-los por escrito, em benefício perpétuo da Igreja de Cristo. Acompanhemos esses passos, um a um. O primeiro passo para a queda de Pedro foi a autoconfiança. Ele disse: “Ainda que venhas a ser um tropeço para todos, nunca o serás para mim” (26.33). O segundo passo foi a indolência. Seu Senhor lhe dissera para vigiar e orar; no entanto, em vez de obedecer, Pedro dormiu. O terceiro passo foi acomodar-se covardemente. Em vez de ficar ao lado de seu Senhor, ele primeiro o abandonou e, depois “o seguia de longe”. O último passo foi expor-se desnecessariamente a más companhias. Ele foi ao pátio do sumo sacerdote e “assentou-se entre os serventuários”, como se fosse apenas um deles. Então, veio a queda final: o juramento, os impropérios e a tríplice negação. Por mais espantoso que pareça, o coração de Pedro vinha se preparando para aquilo. Sua queda foi puramente o fruto das sementes que ele mesmo havia semeado. Colheu o fruto de seu próprio proceder (Jr 17.10). Não nos esqueçamos dessa parte da história de Pedro. Trata- se de uma grande lição para todos os que se professam cristãos. Graves enfermidades raramente nos afetam o organismo sem a demonstração prévia de uma série de sintomas. Para o crente, grandes quedas raramente acontecem sem que tenha havido anteriormente algum desvio secreto. A Igreja e o mundo às vezes ficam chocados com a súbita má conduta de alguma figura importante do cristianismo. Crentes são desencorajados e tropeçam por causa disso. Os inimigos de Deus se regozijam e blasfemam. Porém, se a verdade pudesse ser conhecida, a explicação para isso geralmente seria o afastamento secreto de Deus. Os homens caem em sua vida privada muito antes de caírem em público. A árvore tomba com grande estrondo, mas a deterioração secreta, que leva à queda, frequentemente não é descoberta até o momento da queda. Por último, merece nossa atenção a tristeza que o pecado de Pedro trouxe sobre ele. No final do capítulo, lemos: “E, saindo dali, chorou amargamente”. Essas palavras merecem mais atenção do que costumam receber. Milhares de pessoas leem a história do pecado de Pedro sem dar importância às suas lágrimas e ao arrependimento. Que possamos ter olhos para ver·e coração para entender! Nas lágrimas de Pedro, vemos a estreita ligação entre o afastamento de Deus e a infelicidade. Um arranjo misericordioso de Deus é que, em certo sentido, a santidade sempre será sua própria recompensa. Um coração pesado e uma consciência perturbada, uma esperança enevoada e uma colheita abundante de dúvidas sempre serão a consequência de apostasia e inconsistência. As palavras de Salomão descrevem a experiência inconsistente de muitos filhos de Deus: “O infiel de coração dos seus próprios caminhos se farta” (Pv 14.14). Portanto, que seja um princípio fundamental de nossa religião cristã, se realmente amamos a paz interior, que devemos andar sempre perto do Senhor. Nas lágrimas amargas de Pedro, vemos a grande diferença entre o hipócrita e o crente verdadeiro. Quando o hipócrita é vencido pelo pecado, geralmente cai para nunca mais se levantar. Ele não tem dentro de si nenhum princípio de vida para restaurá-lo. Mas, quando o filho de Deus cai em pecado, levanta-se novamente e, mediante verdadeiro arrependimento e pela graça de Deus, corrige sua vida. Que ninguém se lisonjeie diante do pensamento de que pode pecar impunemente, só porque Davi cometeu adultério e Pedro negou seu Senhor. Não há dúvida de que esses dois santos pecaram grandemente, mas não prosseguiram em seus pecados. Eles se arrependeram grandemente também. Lamentaram amargamente sua queda, abominaram e odiaram suas próprias iniquidades. Seria bom se os homens imitassem esses santos de Deus em seu arrependimento, tanto quanto em seus pecados. Muitos estão familiarizados com a queda desses homens de Deus, mas não com sua recuperação. Muitos, como Davi e Pedro, caíram em pecado; mas não se arrependeram como Pedro e Davi. A passagem inteira está cheia de lições que jamais deveríamos esquecer. Professamos ter esperança em Cristo? Então, observemos a fraqueza de um crente e os passos que levam até a queda. Temos nos desviado lamentavelmente e abandonado nosso primeiro amor? Lembremo-nos, então, de que o Salvador de Pedro ainda vive. Há misericórdia para nós, tanto quanto houve para ele, mas precisamos nos arrepender e buscar essa misericórdia, se realmente desejamos encontrá-la. Voltemo-nos para Deus, e ele se voltará para nós. Suas misericórdias não têm fim (Lm 3.22). O fim de Judas Iscariotes Leia Mateus 27.1-10
O início desse capítulo descreve como nosso Senhor Jesus Cristo
foi entregue nas mãos dos gentios. Os principais sacerdotes e anciãos dos judeus o conduziram a Pôncio Pilatos, governador romano. Podemos ver o dedo de Deus nesse incidente. Foi determinado, por sua providência, que tanto gentios como judeus estivessem envolvidos na morte de Cristo. Foi determinado, por sua providência, que os sacerdotes confessassem publicamente que o cetro se arredara de Judá. Eles não podiam condenar alguém sem a permissão dos romanos. As palavras de Jacó, portanto, foram cumpridas. O Messias, “Siló”, já havia chegado (Gn 49.10). O assunto principal desses versos que lemos é o triste fim do falso apóstolo, Judas Iscariotes. É um assunto cheio de ensinamentos. Observemos atentamente o que ele contém. O fim de Judas Iscariotes é uma prova clara da inocência de Jesus, diante de todas as acusações levantadas contra ele. Se havia alguma testemunha viva que pudesse apresentar evidências contra nosso Senhor Jesus Cristo, Judas Iscariotes era esse homem. Um apóstolo escolhido de Jesus, um companheiro constante em todas as suas jornadas, um ouvinte de todo o seu ensinamento, tanto em público como em particular, Judas era alguém que saberia dizer se Jesus tinha feito algum mal, fosse por palavra ou ação. Tendo-se tornado um desertor, um traidor de nosso Senhor, entregando-o nas mãos dos inimigos, era de seu interesse, na defesa de sua própria reputação, provar que Jesus era culpado. Ele poderia disfarçar e desculpar sua própria conduta, se pudesse demonstrar que seu antigo Mestre era um impostor e transgressor. Por que, então, Judas não veio acusá-lo? Por que não se apresentou diante do concílio judaico para especificar suas acusações contra Jesus, se é que tinha qualquer acusação a fazer? Por que não se aventurou a acompanhar os principais sacerdotes até Pilatos, para provar aos romanos que Jesus era um malfeitor? Só há uma resposta possível a essas perguntas. Judas não se apresentou como testemunha porque sua consciência não lhe permitiu fazer isso. Por mais maldoso que fosse, Judas sabia que nada podia provar contra Cristo. Por mais iníquo que fosse, ele sabia que seu Mestre era santo, inofensivo, inocente, verdadeiro e sem culpa. Que isso nunca seja esquecido! A ausência de Judas Iscariotes no julgamento de nosso Senhor é uma das muitas provas de que o Cordeiro de Deus era sem mácula alguma, um homem sem pecado. Outrossim, vemos na morte de Judas que existe um tipo de arrependimento que vem muito tarde. Lemos claramente que Judas ficou “tocado de remorso”. Lemos até mesmo que ele foi aos sacerdotes e disse: “Pequei, traindo sangue inocente”. Mesmo assim, está claro que ele não se arrependeu para a salvação. Esse é um ponto que merece especial atenção. Popularmente, diz-se: “Nunca é tarde para se arrepender”. Isso é verdade somente se o arrependimento for verdadeiro; porém, infelizmente, com frequência o arrependimento tardio não é genuíno. Uma pessoa pode sentir por seus pecados e se entristecer por eles, sentir uma forte convicção de culpa e expressar profundo remorso, ser atormentada pela consciência e demonstrar grande perturbação mental; e, mesmo assim, a despeito disso tudo, não se arrepender de coração. A razão desses sentimentos pode ser o perigo presente e o temor da morte, e o Espírito Santo pode não ter realizado obra alguma nessa pessoa. Cuidemos para não confiar no arrependimento tardio. “Eis agora o tempo sobremodo oportuno, eis agora o dia da salvação” (2Co 6.2). Um ladrão penitente foi salvo na hora da morte, para que ninguém se desesperasse quanto à salvação; mas apenas um, para que ninguém seja presumido. Que não desconsideremos qualquer coisa que diga respeito à nossa salvação; acima de tudo, não deixemos de lado o arrependimento mediante a ideia vã de que só depende de nosso próprio poder. As palavras de Salomão sobre esse assunto são realmente temíveis: “Então me invocarão, mas eu não responderei; procurar-me-ão, porém não me hão de achar” (Pv 1.28). Em seguida, observemos, na morte de Judas Iscariotes, quão pouco conforto a iniquidade traz a uma pessoa no fim de sua vida. Somos informados de que ele atirou para o santuário as trinta moedas de prata, pelas quais tinha vendido seu Mestre, e saiu em amargura de espírito. Esse dinheiro fora ganho de maneira penosa. Não lhe trouxe prazer algum, mesmo quando já o tinha consigo. “Os tesouros da impiedade de nada aproveitam” (Pv 10.2). O pecado, na verdade, é o mais cruel de todos os senhores. Ele faz muitas promessas maravilhosas, mas que não se concretizam. Os prazeres que ele dá são momentâneos, enquanto seus resultados são tristeza, remorso, autoacusação e, muitas vezes, a própria morte. Os que semeiam para a carne colhem corrupção. Sentimo-nos tentados a cometer pecado? Lembremo-nos das Escrituras: “O vosso pecado vos há de achar” (Nm 32.23). E, em face disso, resistamos à tentação. Estejamos certos de que, cedo ou tarde, nesta vida ou na vida futura, neste mundo ou no dia do juízo, pecado e pecador terão de se encontrar face a face para uma amarga prestação de contas. Estejamos seguros de que, de todas as ocupações, o pecado é a mais desvantajosa. Judas, Acã, Geazi, Ananias e Safira — todos descobriram isso à sua própria custa. Com razão, o apóstolo Paulo indagou: “Naquele tempo que resultados colhestes? Somente as cousas de que agora vos envergonhais” (Rm 6.21). Finalmente, notemos, no caso de Judas, a que fim miserável um homem pode chegar se tem grandes privilégios e não os utiliza corretamente. Somos informados de que esse infeliz “retirou-se e foi enforcar-se”. Que morte horrível! Um apóstolo de Cristo, um ex- pregador do evangelho, um companheiro de Pedro e João, cometeu suicídio e, assim, precipitou-se à presença de Deus sem preparo e sem perdão. Nunca nos esqueçamos de que nenhum pecador é mais pecaminoso do que aquele que peca contra a luz e contra o conhecimento. Nenhum pecador é tão ofensivo a Deus quanto esse. Quando olhamos para as Escrituras, notamos que nenhum pecador tem sido tão frequentemente removido de súbito deste mundo, por terríveis visitações da ira de Deus, quanto esse tipo. Lembremo-nos da mulher de Ló, Faraó, Coré, Datã e Abirã, e Saul, rei de Israel. Todos comprovam o que acabamos de dizer. Há uma declaração solene de John Bunyan que diz: “Ninguém cai tão profundamente no poço quanto aqueles que caem retrocedendo”. Está escrito em Provérbios: “O homem que muitas vezes repreendido endurece a cerviz será quebrantado de repente, sem que haja cura” (Pv 29.1). Que todos possamos nos esforçar para viver de acordo com a luz que já nos foi dada! Existe algo que é pecado contra o Espírito Santo e não tem perdão: o claro conhecimento da verdade na cabeça, combinado com o amor deliberado pelo pecado no coração. Agora, em que estado nossos corações se encontram? Somos tentados a confiar no nosso conhecimento e profissão religiosa, como se isso bastasse? Lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Estamos inclinados a nos apegar ao mundo e dar ao dinheiro lugar de proeminência em nossas mentes? De novo, lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Estamos brincando com algum pecado e enganando a nós mesmos, afirmando que podemos deixar o arrependimento para mais tarde? Novamente, lembremo-nos de Judas e tenhamos cautela. Ele foi posto diante de nós como um farol, para que olhemos bem para ele e não naufraguemos na fé. Cristo condenado diante de Pilatos Leia Mateus 27.11-26
E sses versículos descrevem o comparecimento de nosso Senhor
diante de Pôncio Pilatos, o governador romano. Os amigos de Deus devem ter ficado maravilhados ao ver aquele que, um dia, iria julgar o mundo permitindo ser ele mesmo julgado e condenado. Ele, “que nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca” (Is 53.9). Ele, de cujos lábios Caifás e Pilatos um dia receberão a sentença eterna, permitiu silenciosamente que uma sentença injusta lhe fosse proferida. Esses sofrimentos em silêncio cumpriram as palavras proféticas de Isaías: “Como ovelha, muda perante os seus tosquiadores, ele não abriu a sua boca” (Is 53.7). Toda a paz e toda a esperança dos crentes devem-se a esses sofrimentos em silêncio. É por causa deles que os crentes terão ousadia no dia do julgamento, pois nada poderiam alegar por si mesmos. Pela conduta de Pilatos, aprendemos como é lastimável a condição de um homem poderoso mas sem princípios. Pilatos, aparentemente, tinha concluído que nosso Senhor nada fizera digno de morte. Ele sabia que, “por inveja, o tinham entregado”. Caso seguisse seu próprio julgamento, Pilatos provavelmente teria rechaçado as acusações contra nosso Senhor, e o teria posto em liberdade. Pilatos, entretanto, era governador de um povo invejoso e turbulento. Seu grande desejo era buscar a simpatia do povo e agradá-lo. Pouco lhe importava quanto pecasse contra Deus e contra a própria consciência, contanto que recebesse o aplauso dos homens. Embora desejoso de salvar a vida de nosso Senhor, ele temia que, ao assim fazer, acabasse ofendendo os judeus. Por isso, depois de uma tentativa débil de desviar a fúria do povo, de Jesus para Barrabás, e de uma tentativa ainda mais débil para satisfazer a própria consciência, lavando publicamente as mãos, ele finalmente veio a condenar aquele a quem ele mesmo chamara de “justo”. Ele rejeitou a estranha e misteriosa advertência que sua esposa lhe enviara depois de um sonho. Ele sufocou protestos de sua própria consciência e entregou Jesus “para ser crucificado”. Observe, nesse homem miserável, um emblema vivo de muitos governantes deste mundo! Quantos há que têm consciência de que seus atos públicos estão errados, mas, mesmo assim, não têm coragem para agir de acordo com essa consciência! Eles temem o povo. Receiam tornar-se motivo de risos. Não podem suportar a impopularidade. Como peixes mortos, eles flutuam com a maré. O louvor dos homens é o ídolo diante do qual se prostram, e a esse ídolo sacrificam a consciência, a paz interior e a alma imortal. Qualquer que seja nossa posição social nesta vida, devemos ser guiados por princípio, e não por conveniência. O louvor dos homens é algo pobre, débil e inconstante. Está aqui hoje, mas amanhã já terá partido. Que nos esforcemos para agradar a Deus! Então, pouco nos importará se agradamos ou não os demais. Se tememos ao Senhor, então não precisamos ter receio de ninguém mais. Convém aprendermos, pela conduta dos judeus, nessa passagem, a irremediável iniquidade da natureza humana. O comportamento de Pilatos deu aos principais sacerdotes e anciãos a oportunidade de reconsiderarem o que estavam fazendo. As dificuldades que levantou acerca da condenação de nosso Senhor fizeram com que eles tivessem tempo para pensar melhor. Mas os inimigos de nosso Senhor não mudaram de ideia; antes, insistiram na concretização de sua maldade. Rejeitaram a proposta de Pilatos. Na verdade, entre um criminoso vil e Jesus, eles preferiram que o primeiro fosse posto em liberdade. Clamaram em altas vozes pela crucificação de nosso Senhor; e, afinal, assumiram sobre si mesmos toda a culpa pela morte dele, com palavras de gravíssima significação: “Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos!”. Mas o que nosso Senhor havia feito para que os judeus o odiassem tanto? Ele não era ladrão nem assassino. Não era blasfemador contra Deus nem caluniador dos profetas. Sua vida caracterizava-se pelo amor. Ele “andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos do diabo” (At 10.38). Ele era inocente de qualquer transgressão contra a lei de Deus ou dos homens. Mesmo assim, os judeus o odiavam e não descansaram enquanto não o viram morto! E odiavamno porque ele lhes dizia a verdade. Odiavam-no porque ele testificava das obras más que cometiam. Eles odiavam a luz porque ela tornava visíveis as trevas em que viviam. Em suma, eles odiavam Cristo porque ele era justo, e eles, iníquos; porque ele era santo, e eles, profanos; porque ele testificava contra o pecado, e eles estavam determinados a continuar agarrados aos seus pecados. Observemos o seguinte: poucas coisas são tão pouco percebidas e cridas quanto a corrupção da natureza humana. Os homens imaginam que, se vissem uma pessoa perfeita, haveriam de amá-la e admirá-la. Eles enganam a si mesmos, afirmando que é da inconsistência dos que se dizem cristãos que não gostam, e não de sua religião em si. Esquecem-se de que, quando um homem realmente perfeito esteve neste mundo, na pessoa do Filho de Deus, esse homem foi odiado e morto. Esse fato é suficiente para provar a veracidade do que Jonathan Edwards disse: “Os homens não convertidos matariam Deus se pudessem alcançá-lo”. Jamais nos deveríamos surpreender diante da iniquidade prevalente no mundo. Compete-nos lamentar tal iniquidade e esforçarmo-nos para diminuí-la, mas nunca nos surpreender com sua extensão. Nada há de tão perverso que o coração do homem não possa conceber ou a mão do homem não possa fazer. Enquanto estivermos vivos, devemos desconfiar de nosso próprio coração. Mesmo quando renovado pelo Espírito Santo, “enganoso é o coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9). Os sofrimentos de Cristo nas mãos dos soldados e a crucificação Leia Mateus 27.27-44
E sses versículos descrevem os sofrimentos de nosso Senhor
Jesus Cristo depois de sua condenação por Pilatos — seus sofrimentos nas mãos dos brutais soldados romanos e seu sofrimento final, na cruz. São cenas que formam um maravilhoso registro histórico. São maravilhosas quando nos lembramos do Sofredor, o eterno Filho de Deus. São maravilhosas quando nos lembramos das pessoas por quem esses sofrimentos foram suportados. Nós e nossos pecados fomos a causa de todas essas tristezas. “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1 Co. 15.3). Antes de tudo, observemos a extensão e a realidade dos sofrimentos de nosso Senhor. A lista de dores infligidas ao corpo de nosso Senhor é, de fato, terrível. Raramente o corpo de uma pessoa tem sofrido tantos maus-tratos durante as últimas horas de vida. Mesmo os selvagens mais brutais, no refinamento de sua crueldade, não poderiam ter acumulado piores torturas sobre um inimigo do que aquelas acumuladas sobre a carne e os ossos de nosso amado Mestre. Nunca nos esqueçamos de que Jesus tinha um corpo humano autêntico, um corpo exatamente como o nosso, tão sensível, tão vulnerável, tão capaz de sentir dor intensa quanto o nosso. Vejamos, portanto, o que esse corpo padeceu. Nosso Senhor, devemos lembrar, já havia passado a noite sem dormir e suportado extrema fadiga. Ele tinha sido levado do Getsêmani para o sinédrio judaico e, dali, para o tribunal de Pilatos. Por duas vezes havia sido interrogado e por duas vezes havia sido condenado injustamente. Já havia sido espancado e açoitado cruelmente com varas. E agora, após todos esses padecimentos, ele fora entregue nas mãos dos soldados romanos, um grupo de homens que, sem dúvida, eram exercitados na crueldade, e de quem menos poderíamos esperar delicadeza ou compaixão. Esses homens brutais logo começaram a fazer o que bem queriam. Eles reuniram em torno dele “toda a coorte”. Despiram-no de suas vestes e, com escárnio, deram-lhe um manto escarlate. Trançaram uma coroa de espinhos e, rindo, puseram-na sobre a cabeça dele. Então, ajoelharam-se em escárnio, como se ele fosse o impostor de um rei. Cuspiram nele. Bateram-lhe na cabeça com um caniço. Finalmente, depois de o vestirem com suas próprias vestes, levaram-no para fora da cidade, até um lugar chamado Gólgota, onde o crucificaram entre dois ladrões. Mas o que era uma crucificação? Vamos, pois, tentar imaginar e entender esse mistério. A pessoa crucificada era deitada de costas sobre uma escora de madeira sobre a qual a peça que formava a cruz era pregada, perto de uma das extremidades; ou sobre o tronco de uma árvore, com um formato que atendesse ao mesmo propósito. As mãos da pessoa crucificada eram estendidas, abertas, sobre os braços da cruz e atravessadas com pregos, os quais, então, as prendiam à madeira. Os pés da vítima, igualmente, eram pregados ao tronco principal da cruz. Depois que o corpo estava assim, bem preso, a cruz era levantada e encravada firmemente no solo. Ali ficava o infeliz sofredor, dependurado até que as dores e a exaustão física trouxessem seu fim, e isso lentamente, pois nenhum órgão vital era atingido, mas numa agonia excruciante de pés e mãos feridos, com o corpo incapaz de se mover. Essa era a morte por crucificação. Essa foi a morte que Jesus enfrentou por nós! Durante seis longas horas, ele esteve pendurado em frente à multidão — semidespido, sangrando da cabeça aos pés, a cabeça ferida pelos espinhos, as costas laceradas pelo chicote, mãos e pés traspassados pelos cravos, e, ainda, a zombaria e o desprezo até o último instante, por parte dos cruéis inimigos. Meditemos com frequência sobre a cruz e a paixão de Cristo. Não menos importante: lembremo-nos de que todos esses sofrimentos horrendos foram experimentados sem murmuração. Nenhuma palavra de impaciência saiu dos lábios de nosso Senhor. Ele foi perfeito, tanto na vida como na morte. Até o último instante, Satanás nada encontrou nele. Em segundo lugar, salientemos que todos os sofrimentos de nosso Senhor Jesus Cristo foram vicários. Jesus não sofreu em razão de pecados próprios, mas por causa de nossos pecados. Ele foi, notadamente, nosso Substituto em todos os sofrimentos pelos quais passou. Essa é uma verdade de grande importância. Sem ela, a narrativa dos sofrimentos de nosso Senhor, com todos os seus detalhes e pormenores, sempre nos pareceria misteriosa e inexplicável. Entretanto, essa é uma verdade da qual as Escrituras falam frequentemente, e nunca em tons incertos. Somos ensinados que Cristo carregou “ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados” (1Pe 2.24); que ele morreu pelos pecados, “o justo pelos injustos” (1Pe 3.18); que ele não conhecia pecado, mas foi feito pecado por nós, “para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21); que “ele se fez maldição em nosso lugar” (Gl 3.13), “para tirar os pecados de muitos” (Hb 9.28); que ele foi “traspassado pelas nossas transgressões, e moído pelas nossas iniquidades”, mas “o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (Is 53.5-6). Que todos nos lembremos constantemente desses textos sagrados! Eles são pedras fundamentais do evangelho. Todavia, não devemos contentar-nos com uma crença vaga e superficial de que os sofrimentos de Cristo na cruz foram vicários. Devemos enxergar essa verdade em cada detalhe de sua Paixão. Podemos acompanhá-lo do começo ao fim, desde o tribunal de Pilatos até o momento de sua morte; e vê-lo, a cada passo, como nosso poderoso Substituto, nosso Representante, nosso Cabeça, nossa Garantia e nosso Fiador; nosso Amigo divino, que se propôs a assumir nosso lugar e, pelo mérito de seus sofrimentos, comprar nossa redenção. Ele foi chicoteado? Foi, para que, “pelas suas pisaduras”, fôssemos sarados. Ele foi condenado, mesmo que inocente? Sim, para que nós pudéssemos ser declarados inocentes, embora fôssemos culpados. Ele recebeu uma coroa de espinhos? Sim, para que pudéssemos ganhar a coroa da glória. Ele foi despido de suas vestes? Sim, para que pudéssemos ser vestidos em eterna justiça. Ele foi escarnecido e desprezado? Sim, para que fôssemos considerados inocentes e justificados de todo pecado. Ele foi declarado incapaz de salvar a si mesmo? Sim, para que pudesse salvar a outrem, até o pior de todos. Ele teve a morte mais dolorosa e infeliz? Sim, para que pudéssemos viver eternamente e ser exaltados às maiores glórias. Devemos meditar demoradamente sobre essas coisas. Vale a pena relembrá-las. O segredo para a paz consiste na correta compreensão acerca dos sofrimentos vicários de Cristo. Passemos adiante da narrativa da Paixão de nosso Senhor com sentimentos de profunda gratidão. Nossos pecados são grandes e muitos, mas um grande sacrifício foi feito para expiá-los. Havia um mérito infinito em todos os sofrimentos de Jesus Cristo. Foram os sofrimentos de Alguém que era tanto homem como Deus. Certamente é apropriado e correto — e nosso dever — louvar a Deus diariamente, pela morte de Cristo. Por fim, mas também muito importante, aprendamos, com base no relato da Paixão de Cristo, a odiar o pecado intensamente. O pecado foi a causa de todos os sofrimentos de nosso Salvador. Nossos pecados é que trançaram a coroa de espinhos. Nossos pecados é que cravaram os pregos em suas mãos e em seus pés. Seu sangue foi derramado por causa de nossos pecados. Por certo, o pensamento de Cristo crucificado nos deveria fazer repugnar todo pecado. Com muita razão, diz a homilia da Paixão: “Que a imagem de Cristo crucificado fique impressa para sempre em nossos corações! Que ela desperte em nós profundo ódio pelo pecado, provocando em nossas mentes o terno amor do Deus Todo- Poderoso!” A morte de Cristo e os sinais que a acompanham Leia Mateus 27.45-56
N esses versículos, lemos a conclusão da Paixão de nosso
Senhor Jesus Cristo. Após seis horas de sofrimento agonizante, ele foi obediente até a morte e “entregou o espírito”. Três particularidades nessa narrativa demandam atenção especial. Vamos observar esses três pontos. Em primeiro lugar, observemos as palavras notáveis que Jesus pronunciou, pouco antes de sua morte: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Existe um profundo mistério nessas palavras, que nenhum mortal é capaz de sondar. Sem dúvida, elas não foram ditas por nosso Senhor somente por causa da dor corporal. Uma afirmação em contrário é totalmente insatisfatória, e somente desonra nosso Salvador bendito. As palavras foram ditas para exprimir a incrível pressão que havia sobre a sua alma e a enorme carga dos pecados do mundo. Elas foram ditas para mostrar como Jesus foi, verdadeira e literalmente, feito nosso substituto; como ele foi feito pecado e maldição por nós, suportando sobre si mesmo a ira justa de Deus contra os pecados do mundo. Naquele momento terrível, a iniquidade de todos nós foi posta sobre ele, até as últimas consequências. “Ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar” (Is 53.10). Ele levou nossos pecados e tomou sobre si nossas transgressões. Essa carga deve ter sido extremamente pesada; real e literal foi a substituição efetuada por nosso Senhor em nosso lugar, quando ele, mesmo sendo o eterno Filho de Deus, foi capaz de dizer que tinha sido “desamparado” pelo Pai. Que essa expressão de Jesus desça até o fundo de nossos corações e não seja esquecida! Não poderíamos ter maior prova da pecaminosidade do pecado e da natureza vicária dos sofrimentos de Cristo do que esse seu grito angustiado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. Isso nos deveria levar a odiar o pecado e nos encorajar a confiar em Cristo. Em segundo lugar, notemos quão profunda significação está contida nas palavras que descrevem os momentos finais de nosso Senhor. Somos simplesmente informados de que ele “entregou o espírito”. Nunca houve um último suspiro de tão grande importância quanto esse. Nunca houve um evento do qual tanta coisa dependesse. Os soldados romanos e a multidão espalhada ao redor da cruz nada viram de extraordinário. Eles somente viram uma pessoa morrendo como outras morrem, com toda a agonia usual e o sofrimento que acompanhava uma crucificação. Eles desconheciam totalmente os interesses eternos que estavam envolvidos em toda aquela transação. A morte de Cristo saldou completamente a enorme dívida que os pecadores tinham para com Deus, abrindo a porta da vida eterna para cada crente. Sua morte atendeu às justas reivindicações da santa lei de Deus, para que Deus fosse justo e justificador do ímpio. Essa morte não foi apenas um mero exemplo de autossacrifício, mas, sim, uma completa expiação e propiciação pelo pecado do homem, alterando a condição e as possibilidades futuras de toda a humanidade. Essa morte solucionou o complicado problema de como Deus pode ser perfeitamente santo e, ao mesmo tempo, perfeitamente misericordioso. Ela abriu para o mundo uma fonte purificadora para todo pecado e imundície. Foi uma vitória completa sobre Satanás, tendo-o despojado abertamente. Ela desfez a transgressão, fez expiação pela iniquidade e vindicou justiça eterna. Ela demonstrou a pecaminosidade do pecado, pelo fato de ter sido necessário um sacrifício tão grande para expiá-lo. Demonstrou o amor de Deus pelos pecadores, pelo fato de ele ter enviado seu próprio Filho para fazer a expiação. De fato, nunca houve — nem poderia haver — outra morte como a de Jesus Cristo. Não admira, portanto, que a terra tremesse quando Jesus morreu em nosso lugar sobre a cruz maldita. O mundo inteiro foi sacudido e se maravilhou quando a alma de Cristo foi posta como oferta pelo pecado (Is 53.10). Por último, notemos ainda o milagre notável que ocorreu na hora da morte de nosso Senhor, bem no interior do templo judaico. As Escrituras nos dizem que “o véu do santuário se rasgou em duas partes, de alto a baixo”. A cortina que separava o Santo dos Santos do restante do templo foi rasgada de cima a baixo. De todos os maravilhosos sinais que acompanharam a morte de nosso Senhor, nenhum foi mais significativo que esse. Sem dúvida, a escuridão ao meio-dia, e que durou três horas, foi um acontecimento espantoso. O terremoto que fendeu as rochas também foi um tremendo choque. Mas havia um significado naquele súbito rompimento do véu, rasgado de alto a baixo, que atingiria o coração de qualquer judeu inteligente. A consciência de Caifás, o sumo sacerdote, devia estar mesmo cauterizada se as notícias sobre o véu rasgado não o abalaram. O rompimento do véu proclamava o fim e o passamento da lei cerimonial. Era um sinal de que a antiga dispensação de sacrifícios e ordenanças já não era mais necessária. Sua obra estava completa, e sua utilidade acabou-se no momento em que Cristo morreu. Não era mais necessário haver um sumo sacerdote, aspersão de sangue e um propiciatório terrenos, nem a oferta de incenso, tampouco um dia de expiação. O verdadeiro Sumo Sacerdote tinha finalmente aparecido. O verdadeiro Cordeiro de Deus tinha sido morto, e o verdadeiro propiciatório, revelado. As figuras e sombras não eram mais necessárias. Que todos nos lembremos disso! Estabelecer um altar, um sacrifício e um sacerdócio, agora, é como acender uma lâmpada em pleno meio- dia. O rompimento do véu proclamava a abertura do caminho da salvação para toda a humanidade. Até à morte de Cristo, o caminho para a presença de Deus era desconhecido para os gentios e apenas visto obscuramente pelos judeus. Mas Cristo, tendo-se oferecido como sacrifício perfeito e obtido eterna redenção, acabara com a escuridão e o mistério. Doravante, todos seriam convidados a se aproximar de Deus com ousadia e vir a ele com confiança, pela fé em Jesus. Uma porta fora aberta, e o caminho da vida estava posto diante do mundo inteiro. Que todos possamos nos lembrar disso! Desde a morte de Jesus, o caminho da paz nunca mais deveria estar envolto em mistério. Não haveria nenhuma reserva. O evangelho era a revelação de um mistério que estava oculto ao longo dos séculos e das gerações. Por isso, envolver, no presente, a religião em uma capa de mistério é equivocar-se quanto à maior característica do cristianismo: a revelação. Sempre que considerarmos a história da crucificação de Jesus, façamos isso com o coração cheio de louvor. Louvemos a Deus pela confiança de termos a crucificação como fundamento de nossa esperança e perdão. Nossos pecados podem ser grandes e muitos, mas o pagamento efetuado por nosso grande Substituto em muito os ultrapassa a todos. Louvemos a Deus pela visão que a crucificação nos dá acerca do amor do Pai celeste. Aquele que não poupou seu próprio Filho — antes, por todos nós, o entregou — certamente nos dará com ele todas as coisas (Rm 8.32). Não menos importante, louvemos a Deus por vermos na crucificação a simpatia de Jesus para com todo o seu povo, os crentes. Ele sabe comover-se diante do sentimento de nossas fraquezas. Ele sabe o que é sofrimento. Ele é exatamente o Salvador que um corpo enfermo, com um coração fraco, requer, em um mundo maligno. O sepultamento de Cristo; as vãs precauções para evitar sua ressurreição Leia Mateus 27.57-66
E sses versículos contêm a narrativa do sepultamento de nosso
Senhor Jesus Cristo. Havia ainda uma etapa necessária para assegurar o cumprimento da grande obra da redenção que nosso Redentor empreendeu. Seu corpo santo, no qual ele carregou nossos pecados sobre a cruz, ainda precisava ser depositado na sepultura e ressuscitar. A ressurreição seria o selo e a pedra angular de toda a sua obra. A infinita sabedoria de Deus previu todas as objeções dos incrédulos e infiéis, e tomou providências contra elas. Será que o Filho de Deus realmente morreu? Ele realmente ressuscitou? Não poderia ter havido alguma fraude no tocante à realidade de sua morte? Não houve algum embuste ou logro quanto à realidade de sua ressurreição? Todas essas e muitas objeções mais teriam sido levantadas se a oportunidade para isso tivesse sido dada. Porém, aquele que sabe qual será o fim das coisas desde o princípio impediu a possibilidade de apresentação dessas objeções. Mediante sua providência, que a tudo controla, Deus ordenou as coisas de modo que a morte e o sepultamento de Jesus Cristo ficassem acima de qualquer dúvida. Pilatos deu permissão para o sepultamento. Um discípulo amoroso envolveu o corpo em panos de linho e o depositou em um túmulo novo, escavado na rocha, “no qual ninguém tinha sido ainda posto” (Jo 19.41). Os próprios sacerdotes puseram uma guarda no lugar em que o corpo tinha sido posto. Judeus e gentios, amigos e inimigos — todos testificaram o grande fato de que Cristo realmente morreu e foi sepultado. Esse é um fato que não pode ser questionado. Ele foi realmente torturado, realmente sofreu, realmente morreu e realmente foi sepultado. Guardemos isso bem, pois são fatos que precisam ser lembrados. Em primeiro lugar, aprendemos que nosso Senhor Jesus Cristo tem amigos de quem pouco se sabe. Não encontraríamos um exemplo mais marcante dessa verdade do que aquele que vemos nessa passagem. Um homem chamado José de Arimateia se apresenta, depois da morte de nosso Senhor, e pede permissão para sepultá-lo. Nunca tínhamos ouvido acerca desse homem anteriormente no ministério terreno de nosso Senhor.Depois disso, nunca mais ouvimos falar a seu respeito. Nada mais sabemos, senão que ele era um discípulo que amava Cristo e o honrou em sua morte. Na ocasião em que os apóstolos haviam abandonado nosso Senhor; quando era extremamente perigoso alguém mostrar consideração pelo Senhor; quando parecia que nenhuma vantagem terrena seria ganha pela confissão de um discipulado; foi numa ocasião assim que José de Arimateia veio à frente com ousadia, pediu o corpo de Jesus e o depositou em sua própria sepultura nova. Esse fato nos traz muito consolo e encorajamento. Ele nos mostra que existem, aqui na terra, pessoas retraídas que conhecem o Senhor e são conhecidas por ele, mas que são pouco conhecidas pela igreja. Vemos que há diversidade de dons entre o povo de Cristo. Alguns glorificam Cristo passivamente, enquanto outros o glorificam ativamente. Alguns têm a vocação de edificar a igreja e ocupar um lugar de projeção pública; há outros, como José de Arimateia, que só vêm à frente nas ocasiões de especial necessidade. Mas todos, individualmente, são guiados por um único Espírito; todos, e cada um glorificando a Deus de diferentes maneiras. Que essas coisas nos ensinem a ter mais esperança! Devemos crer que muitos ainda chegarão do Oriente e do Ocidente, e se assentarão com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos céus. Pode haver, em lugares ocultos da cristandade, muitos que, como Simeão, Ana e José de Arimateia, no presente sejam bem pouco conhecidos, mas que haverão de brilhar entre as joias preciosas do Senhor Jesus, no dia de seu aparecimento. Em segundo lugar, aprendemos que Deus pode transformar os esquemas de homens maus e fazê-los trabalhar para sua própria glória. Aprendemos essa lição de maneira impressionante, pela conduta dos sacerdotes e fariseus depois do sepultamento de nosso Senhor. A incansável inimizade desses homens infelizes não podia cessar, nem mesmo quando o corpo de Jesus já estava na sepultura. Eles se lembraram das palavras que Jesus dissera a respeito de “ressuscitar” e resolveram tornar impossível sua ressurreição dos mortos, julgando que poderiam mesmo impedi-lo. Eles foram a Pilatos e obtiveram uma guarda de soldados romanos. Puseram uma escolta no sepulcro e selaram oficialmente a pedra da entrada. Em suma, fizeram o possível para que o sepulcro fosse “guardado com segurança”. Eles nem imaginavam o que estavam fazendo. Nem pensaram que estavam providenciando a evidência mais completa da veracidade da ressurreição de Jesus Cristo, que estava para ocorrer. Na verdade, eles estavam tornando impossível provar a ocorrência de qualquer fraude ou engano. A guarda, o selo e as precauções, todos se tornaram testemunhas, depois de poucas horas, do fato de que Cristo havia ressuscitado. Eles tanto poderiam tentar parar o fluxo das marés ou impedir o nascimento do sol como poderiam tentar impedir que Jesus ressurgisse da sepultura. Eles foram pegos em sua própria astúcia (1Co 3.19). Seus próprios estratagemas se transformaram em instrumentos de demonstração da glória de Deus. A História da Igreja de Cristo está repleta de exemplos similares a esse. As próprias coisas que pareciam mais desfavoráveis muitas vezes se transformaram em benefícios para o povo de Deus. Que prejuízo trouxe à Igreja de Cristo a perseguição que se levantou após a morte de Estêvão? (At 8.1-4). “Os que foram dispersos iam por toda parte pregando a palavra.” Que mal o encarceramento trouxe ao apóstolo Paulo? Sua prisão deu-lhe tempo para escrever muitas de suas epístolas, que agora são lidas em todo o mundo. Qual foi o prejuízo verdadeiro causado à Reforma na Inglaterra pela perseguição da rainha Maria I, a Sanguinária? De fato, o sangue dos mártires tomou-se a semente da Igreja. Que mal a perseguição causa ao povo de Deus hoje em dia? Ela só nos faz chegar mais perto de Cristo; só faz com que nos aproximemos cada vez mais do trono da graça, da Bíblia e da oração. Que todos os verdadeiros crentes guardem essas verdades em seu coração e tenham coragem! Vivemos num mundo em que tudo é controlado pela mão da perfeita Sabedoria, e no qual todas as coisas estão cooperando continuamente para o bem do corpo de Cristo. Os poderes deste mundo são meros instrumentos nas mãos de Deus. Ele está sempre usando esses instrumentos para seus próprios propósitos, quer tenham consciência disso ou não. São instrumentos por meio dos quais Deus está lapidando e polindo as pedras vivas de seu templo espiritual; e todos os planos e esquemas dos inimigos somente resultarão em louvor ao Senhor. Sejamos, pois, pacientes nos dias atribulados e escuros, e olhemos para a frente. As mesmas coisas que agora parecem contra nós estão todas trabalhando em conjunto para a glória de Deus. No momento, vemos apenas a metade do que realmente acontece. Dentro de pouco tempo, veremos tudo com mais clareza. Então, descobriremos que toda perseguição que agora suportamos — assim como a escolta ao sepulcro e o selo sobre a pedra — serve para maior glória a Deus. Até mesmo a ira humana há de louvar a Deus (Sl 76.10). A ressurreição de Cristo Leia Mateus 28.1-10
O assunto principal desses versículos é a ressurreição de nosso
Senhor Jesus Cristo dentre os mortos. Essa é uma das verdades fundamentais em que se baseia o cristianismo, e por isso recebe atenção especial em todos os quatro evangelhos. Todos os quatro evangelistas descrevem minuciosamente como nosso Senhor foi crucificado. Os quatro relatam, com não menos clareza, que ele ressuscitou. Não temos de nos admirar de tanta importância ser dada à ressurreição de nosso Senhor. Ela é o selo e a pedra angular da grande obra de redenção que ele veio efetuar. É a prova coroadora de que ele pagou a dívida que se propôs a pagar em nosso favor; a prova de que ele venceu a batalha que empreendeu para nos libertar do inferno e de que foi aceito por nosso Pai celestial como nosso Fiador e Substituto. Se ele jamais tivesse saído da prisão da sepultura, que certeza teríamos de que nosso resgate foi inteiramente pago? (1Co 15.17) Se ele nunca tivesse ressurgido de seu conflito com o último inimigo, como poderíamos ter a confiança de que ele venceu a morte e também aquele que tem o poder da morte, ou seja, o diabo? (Hb 2.14) Mas, graças a Deus, não fomos deixados em dúvida. O Senhor Jesus realmente “ressuscitou por causa da nossa justificação” (Rm 4.25). Os crentes verdadeiros são regenerados “para uma viva esperança mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (1Pe 1.3). Eles podem dizer com toda a ousadia, juntamente com Paulo: “Quem os condenará? É Cristo Jesus quem morreu, ou antes, quem ressuscitou” (Rm 8.34). Somos gratos porque essa verdade maravilhosa de nossa religião, a ressurreição de Cristo, está tão clara e plenamente provada. Essa é uma circunstância impressionante, porque, de todos os fatos ligados ao ministério terreno de nosso Senhor, nenhum deles ficou tão incontestavelmente estabelecido quanto sua ressurreição. A sabedoria de Deus, que conhece a incredulidade da natureza humana, providenciou uma grande nuvem de testemunhas sobre o assunto. Nunca houve um fato em que os amigos de Deus resistissem tanto a crer quanto a ressurreição de Cristo. Nunca houve um fato que os inimigos de Deus estivessem tão ansiosos por contradizer. No entanto, apesar da incredulidade dos amigos e da inimizade dos adversários, o fato ficou solidamente estabelecido. Para uma mente justa e imparcial, as evidências serão sempre irrefutáveis. Seria mesmo impossível provar qualquer coisa neste mundo se nos recusássemos a crer que Jesus ressuscitou. Observemos, nesses versículos, a glória e majestade com que Cristo ressurgiu dentre os mortos. Somos informados de que houve “um grande terremoto”, e “um anjo do Senhor desceu do céu, chegou-se, removeu a pedra e assentou-se sobre ela”. Não precisamos supor que nosso bendito Senhor precisasse da ajuda de algum anjo, ao sair da sepultura. Não devemos duvidar, sequer por um momento, que ele ressuscitou por seu próprio poder. Mas aprouve a Deus que sua ressurreição fosse acompanhada e seguida por sinais e maravilhas. Pareceu conveniente a Deus que a terra estremecesse e aparecesse um anjo glorioso, quando o Filho de Deus ressurgisse dentre os mortos como um Conquistador. Não deixemos de ver, na maneira como nosso Senhor ressuscitou, um tipo simbólico e uma garantia da ressurreição daqueles que nele creem. A sepultura não conseguiu segurá-lo além do tempo determinado, e o mesmo ocorrerá com os crentes. Um anjo glorioso foi testemunha da ressurreição de Jesus, e anjos gloriosos serão os mensageiros que recolherão os crentes quando ressuscitarem. Jesus ressuscitou com um corpo renovado, mas com um corpo — real, verdadeiro e material; da mesma forma, os crentes terão um corpo glorioso e serão como ele, que é o Cabeça de todos. “Quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele” (1 Jo 3.2). Consolemo-nos com esse pensamento. Tribulações, tristezas e perseguições, com frequência, são a porção que cabe ao povo de Deus. Enfermidades, fraqueza e dor muitas vezes ferem e desgastam seu pobre tabernáculo terreno. Mas o tempo favorável está para vir. Que os crentes esperem com paciência, pois terão uma ressurreição gloriosa! Quando vamos morrer, onde seremos sepultados e que tipo de funeral teremos, essas são questões de pequena importância. A grande pergunta a ser feita é esta: “Como ressuscitaremos?”. Observemos, em seguida, o terror que os inimigos de Cristo sentiram no período de sua ressurreição. Quando viram o anjo, “os guardas tremeram espavoridos, e ficaram como se estivessem mortos”. Aqueles brutais soldados romanos, embora estivessem acostumados a contemplar cenas chocantes e dramáticas, viram algo que os deixou aterrorizados. Diante da visão de um anjo de Deus, perderam de uma vez toda a coragem. Novamente, vemos nesse fato um tipo e um símbolo das coisas que ainda estão por vir. O que o descrente e o ímpio farão no dia final, quando a trombeta soar e Cristo voltar em glória, para julgar o mundo? O que farão quando virem todos os mortos, tanto grandes como pequenos, saindo de seus túmulos, e todos os anjos de Deus reunidos em torno do Grande Trono Branco? Quais temores e terrores não se apossarão de suas almas quando descobrirem que não mais poderão evitar a presença de Deus e, por fim, terão de enfrentá-lo face a face? Ah, que todos os homens fossem sábios e refletissem sobre seu fim! Que todos se lembrassem de que há uma ressurreição e um julgamento, e que também existe a ira do Cordeiro! Em seguida, notemos as palavras de conforto que o anjo dirigiu aos amigos de Cristo. Ele disse: “Não temais, porque sei que buscais a Jesus, que foi crucificado”. Essas palavras foram ditas com um profundo significado: visavam animar o coração dos crentes de todos os séculos, diante da certeza da ressurreição. A intenção dessas palavras é lembrar- nos de que o verdadeiro crente não tem motivo algum para andar alarmado, não importa o que possa acontecer neste mundo. O Senhor aparecerá entre as nuvens do céu e, então, a terra será consumida pelo fogo. Os sepulcros entregarão seus mortos e, então, será o dia final. O julgamento terá início e os livros serão abertos. Os anjos separarão o trigo da palha; eles farão a divisão entre os bons e os maus peixes. Mas em tudo isso não há motivo para os crentes estarem temerosos. Eles estarão sem qualquer mancha ou culpa, revestidos da justiça de Cristo. Estarão a salvo na verdadeira arca, e não serão feridos quando o dilúvio da ira de Deus irromper sobre a terra. Será, então, que as palavras do Senhor terão cumprimento completo: “Ora, ao começarem estas cousas a suceder, exultai e erguei as vossas cabeças; porque a vossa redenção se aproxima” (Lc 21.28). Então, os ímpios e incrédulos verão quão verdadeira é a afirmação bíblica que diz: “Feliz é a nação cujo Deus é o Senhor” (Sl 33.12). Em último lugar, observemos a graciosa mensagem que o Senhor Jesus enviou aos seus discípulos, depois da ressurreição. Ele apareceu pessoalmente às mulheres que tinham ido prestar honras ao seu corpo. As últimas junto à cruz e as primeiras junto ao túmulo, elas foram as primeiras pessoas a ter o privilégio de ver Jesus ressurreto. E receberam a incumbência de levar a boa-nova aos discípulos. O primeiro pensamento de Jesus é para seu pequeno rebanho, disperso: “Ide avisar a meus irmãos”. Há algo muito tocante nestas simples palavras: “meus irmãos”. Elas merecem mil pensamentos. Embora fracos, frágeis e tendentes ao desvio como eram os discípulos, Jesus ainda os chama de “irmãos”. Ele os conforta, como José fizera a seus irmãos que o tinham vendido, dizendo: “Eu sou José, vosso irmão”. Por mais que os discípulos tivessem falhado quanto à sua profissão de fé, por mais que se tivessem acovardado, por temor dos homens, ainda eram seus “irmãos”. Glorioso como era em si mesmo, o Conquistador da morte, do inferno e da sepultura, o Filho de Deus ainda é “manso e humilde de coração”. Ele chama seus discípulos de “irmãos”. Se conhecemos algo da verdadeira religião, podemos deixar essa passagem levando conosco confortáveis pensamentos. Vemos nas palavras de Cristo um encorajamento para confiar e não estar temerosos. Nosso Salvador jamais se esquece de seu povo. Ele se compadece de nossas enfermidades e não nos despreza. Ele conhece nossas fraquezas e, mesmo assim, não nos rejeita. Nosso grande Sumo Sacerdote é também nosso Irmão mais velho. A incumbência final dada aos discípulos Leia Mateus 28.11-20
E sses versículos formam a conclusão do evangelho de Mateus.
Começam mostrando-nos em que grande medida o preconceito cego prejudica o crente, antes que ele creia na verdade pura. Também nos mostram as fraquezas presentes nos corações de alguns discípulos e como eles custaram a crer. A passagem se encerra contando-nos algumas das últimas palavras de nosso Senhor sobre a terra, palavras tão importantes que exigem e merecem toda a nossa atenção. Em primeiro lugar, devemos observar a honra conferida por Deus a nosso Senhor Jesus Cristo. Nosso Senhor diz: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”. Essa também é uma verdade declarada por Paulo aos filipenses: “Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome” (Fp 2.9). Essa é uma verdade que, em hipótese alguma, contradiz a verdadeira noção da divindade de Cristo, conforme alguns, por ignorância, têm imaginado. Trata-se simplesmente de uma declaração de que, nos conselhos da Trindade eterna, Jesus, o Filho do Homem, é designado herdeiro de todas as coisas e Mediador entre Deus e os homens e de que a ele cabe a salvação de todos os que são salvos; é uma declaração de que ele é a grande fonte de misericórdia, graça, vida e paz. Foi por causa dessa “alegria, que lhe estava proposta”, que ele “suportou a cruz” (Hb 12.2). Com toda a reverência, apeguemo-nos decididamente a essa verdade. Cristo é aquele que tem as chaves da morte e do inferno. Cristo é o Sacerdote ungido, o único que pode absolver os pecadores. Cristo é a fonte das águas vivas, o único que pode nos purificar. Cristo é o Príncipe e Salvador, o único que pode outorgar arrependimento e remissão de pecados. Nele, habita toda a plenitude. Ele é o caminho, a porta, a luz, a vida, o Pastor, o altar de refúgio. Aquele que tem o Filho tem a vida, e quem não tem o Filho não tem a vida eterna. Que todos nós nos esforcemos para entender isso! É certo que os homens podem facilmente pensar em termos pequenos demais acerca de Deus Pai e de Deus Espírito Santo, mas ninguém jamais pensou em termos demasiadamente grandes a respeito de Cristo. Observemos, em segundo lugar, o dever que Jesus incumbiu a seus discípulos. Jesus lhes disse: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações”. Eles não deveriam reter para si mesmos seu conhecimento de Jesus Cristo; deveriam comunicá-lo a outras pessoas. Não deveriam supor que a salvação fora revelada exclusivamente aos judeus, e deviam torná-la conhecida do mundo inteiro. Deveriam esforçar-se para fazer discípulos de todas as nações e anunciar a todos os povos que Cristo havia morrido pelos pecadores. Nunca nos esqueçamos de que essa solene determinação continua ainda em pleno vigor. É dever obrigatório de todo discípulo de Cristo fazer tudo que seja possível, pessoalmente, ou pela oração, para que outras pessoas venham a conhecer Cristo. Se negligenciamos esse dever, onde está nossa fé? Onde está nosso amor cristão? Se uma pessoa não tem o desejo de fazer o evangelho conhecido no mundo inteiro, bem se pode questionar se ela conhece mesmo o valor do evangelho. Notemos, em terceiro lugar, a confissão pública que Jesus requer daqueles que creem em seu evangelho. Ele disse aos apóstolos que batizassem todos que recebessem como discípulos. Quando lemos esse mandamento final de nosso Senhor, é muito difícil entender como os homens podem evitar a conclusão de que o batismo é necessário quando pode ser administrado. Parece impossível explicar o significado dessa passagem como outra coisa que não uma ordenança externa, a ser administrada a todos que se unem à Igreja. Que o batismo externo não é algo absolutamente necessário para a salvação, isso fica claramente demonstrado pelo caso do ladrão penitente que morreu ao lado de Jesus. Ele foi para o paraíso sem ter sido batizado. E que o batismo externo, apenas, não transmite qualquer benefício espiritual, o caso de Simão, o mago, o demonstra claramente. Embora batizado, ele permanecia no “fel de amargura” e no “laço de iniquidade” (At 8.23). Porém, a afirmação de que o batismo é uma questão totalmente indiferente e que nem mesmo precisa ser usado, parece algo que não concorda com as palavras de nosso Senhor nessa passagem. Aqui, a lição prática e clara é a necessidade de uma confissão pública de fé em Cristo. Não basta ser um discípulo secreto. Não devemos nos envergonhar por deixar que os homens vejam de quem somos e a quem servimos. Não devemos comportar-nos como se não gostássemos de ser identificados como crentes; devemos tomar a nossa cruz e confessar o nosso Mestre perante o mundo. As palavras dele são muito solenes: “Porque qualquer que [...] se envergonhar de mim e das minhas palavras, também o Filho do homem se envergonhará dele, quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos” (Mc 8.38). Em quarto lugar, sublinhemos a obediência que Jesus requer de todos os que se declaram seus discípulos. Ele disse aos apóstolos que ensinassem os novos discípulos a “guardar todas as cousas”, tudo o que ele ordenou. Essa é uma expressão que demonstra a inutilidade de um cristianismo apenas de nome e de aparência; demonstra que somente devem ser contados como verdadeiros cristãos aqueles que vivem em obediência prática à Palavra e se esforçam para cumprir as coisas que ele ordenou. Sozinhos, a água do batismo e o pão e o vinho da Ceia do Senhor não salvarão a alma de ninguém. De nada adianta ir a uma igreja, e ouvir os ministros de Cristo, e concordar com o evangelho, se a nossa religião não vai além disso. Como está a nossa vida? Qual é a nossa conduta diária, no lar e fora dele? O Sermão do Monte é nossa regra e nosso padrão de conduta? Esforçamo-nos para copiar o exemplo de Cristo? Procuramos fazer as coisas que ele ordenou? Essas são perguntas que demandam respostas afirmativas se somos realmente nascidos de novo e filhos de Deus. A obediência é a única prova dessa realidade. A fé sem obras, por si só, está morta. “Vós sois meus amigos”, diz Jesus, “se fazeis o que eu vos mando” (Jo 15.14). Em quinto lugar, assinalemos a solene menção à Trindade bendita, que nosso Senhor faz nesses versículos. Ele manda batizar “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Esse é um daqueles grandes textos bíblicos que, direta e claramente, ensinam a poderosa doutrina da Trindade. O texto fala do Pai, do Filho e do Espírito Santo como três pessoas distintas, e todos os três como iguais. Assim como é o Pai, também é o Filho e o Espírito Santo. Não obstante, os três são um.Para nós, essa verdade é um grande mistério. Que nos seja suficiente receber e crer nessa doutrina, e que nos abstenhamos de qualquer tentativa de explicação! É tolice infantil recusar aceitação a alguma coisa simplesmente porque não a entendemos. Nós somos como vermes que rastejam pelo chão por um breve tempo; quando muito, pouco conhecemos a respeito de Deus e da eternidade. Que seja suficiente recebermos no coração a doutrina da Trindade em Unidade, com uma atitude humilde e reverente, sem perguntas presunçosas! Creiamos que nem mesmo uma única alma pecaminosa poderia ser salva sem a operação conjunta de todas as três pessoas na bendita Trindade; e regozijemo-nos porque Pai, Filho e Espírito Santo, que cooperaram para criar o homem, também cooperam para sua salvação. Convém que paremos por aqui. Podemos receber aquilo que não podemos explicar teoricamente. Finalmente, observemos nesses versículos a graciosa promessa com que Jesus encerra suas palavras. Ele diz aos seus discípulos: “Estou convosco todos os dias até à consumação do século”. É impossível concebermos palavras mais consoladoras, fortalecedoras, animadoras e santificadoras do que essas. Embora deixados a sós, como crianças órfãs em um mundo frio e hostil, os discípulos não deveriam julgar-se abandonados. O Mestre estaria sempre com eles (“convosco”). Embora comissionados a realizar uma obra tão dura quanto aquela para a qual Moisés fora enviado a Faraó, eles não deveriam ficar desencorajados. Certamente, o Mestre estaria “com eles”. Por conseguinte, não havia palavras mais apropriadas. Nenhuma palavra poderia ser mais adequada à posição daqueles primeiros discípulos. Também não é possível imaginar uma palavra mais consoladora para os crentes de todos os séculos. Que todos os verdadeiros crentes se apossem dessas palavras de Jesus e as tenham sempre em mente! Cristo está “conosco” todos os dias. Cristo está “conosco” em todo lugar ao qual vamos. Quando nasceu neste mundo, ele veio para ser “Emanuel, Deus conosco”. Agora, quando chega ao fim de seu ministério terrestre e está prestes a deixar o mundo, ele declara que é Emanuel, sempre “conosco”. Ele está conosco diariamente para perdoar e absolver; está conosco diariamente para santificar e fortalecer; está conosco diariamente para defender e guardar; está conosco diariamente para conduzir e guiar; está conosco nas tristezas e nas alegrias; está conosco na saúde ou na enfermidade; está conosco na vida e na morte; está conosco no tempo e na eternidade. Qual maior consolação os crentes poderiam desejar do que esta? Não importa o que aconteça, nunca estamos completamente sozinhos ou sem amigos. Cristo está sempre conosco. Podemos olhar para dentro da sepultura e dizer, com Davi: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo” (Sl 23.4). Podemos olhar para além da sepultura e dizer, com Paulo: “Estaremos para sempre com o Senhor” (1Ts 4.17). Jesus o disse e o cumprirá: “Estou convosco todos os dias até à consumação do século”. E igualmente: “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei” (Hb 13.5). Não poderíamos pedir mais do que isso! Prossigamos, confiando em Cristo e não tendo receio de coisa alguma. Ser um crente verdadeiro é tudo. Não há quem tenha semelhante Rei, um tal Sacerdote, um Companheiro tão constante e um Amigo assim, infalível, como têm os verdadeiros servos de Jesus Cristo.
Pecado, Expiação e Salvação como Processo: três doutrinas bíblicas, três temas bíblicos que, postos e estudados em sequência, formatam um Processo muito frequente ao longo da Bíblia - Volume 2