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Análise Social, vol.

XXXVIII (Primavera), 2003

diversas crenças que constituem mentos bem equilibrados, o leitor é


uma rede de significados. A explica- conduzido através de um percurso
ção diacrónica permite-nos, por con- que o vai aproximando ao bairro em
seguinte, perceber qual é a relação causa — a rumorosa, a histórica, a
condicional que se estabelece entre marinheira Alfama, coração da Lis-
uma tradição intelectual, a rede de boa antiga1... — e, sobretu do, a um
significados inicial, o dilema, e a rede tipo específico de configuração só-
de significados modificada. cio-cultural localmente enraizada que
À luz das considerações acima António Firmino da Costa designa
produzidas, pensamos ser fácil para por sociedade de bairro.
o leitor adivinhar qual a nossa opi- Apesar de esta investigação assu-
nião quanto a esta obra de Mark mir os contornos de um estudo de
Bevir. É uma referência incontorná- caso, metodologicamente assente na
vel para todos quantos procuram na pesquisa de terreno, este trabalho ul-
história das ideias mais do que uma trapassa em grande medida o próprio
mera narrativa de ideias passadas, bairro, sempre entendido como lugar
uma reconstrução histórica dos con- estratégico de investigação e nunca
ceitos com que lidamos todos os como noção auto-evidente. Bairro e
dias. Uma reconstrução que, como identidade cultural, noções centrais
neste livro, são encarados, pois,
explica Skinner em Liberty before
como algo a decifrar, a questionar,
Liberalism, nos permita olhar para
a problematizar, e nunca como enti-
estes conceitos (demasiado) familia-
dades existentes a priori. A identifi-
res com um distanciamento crítico
cação e análise minuciosa de todo
que só a história pode dar-nos.
um conjunto de processos exógenos,
endógenos e interlocais que partici-
FILIPE CARREIRA DA SILVA pam na construção social da identi-
dade cultural deste bairro — e, em
última análise, da própria cidade —
constituem, assim, o núcleo duro da
obra, que corresponde a uma tese de
António Firmino da Costa, Socieda- doutoramento em Sociologia defen-
de de Bairro. Dinâmicas Sociais dida no ISCTE em 1999.
da Identidade Cultural, Oeiras, Inspirando-se na conhecida obra
Celta, 1999, 539 páginas. de William F. White, Street Corner
Society (1943), sociedade de bairro
surge, deste modo, como uma con-
Brevemente, pode começar por figuração social de características
se apresentar este livro como um singulares (p. 142), não como um
estudo aprofundado e detalhado so-
bre a identidade cultural de Alfama, 1
Júlio de Castilho (1981 [1893]), A Ri-
um dos bairros mais emblemáticos beira de Lisboa, Lisboa, Câmara Municipal
da cidade de Lisboa. Em três anda- de Lisboa, vol. I, p. 199. 221
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ponto de partida, mas sim como um classes nobres e populares, militar e


ponto de chegada, sendo, por essa religioso, funcional e decorativo,
razão, um conceito inovador com etc.), decorrem de uma mistura de
possibilidades heurísticas óbvias. elementos provenientes de várias ins-
O livro organiza-se em três partes tâncias, como sejam o discurso his-
admiravelmente concebidas — na tórico, olisipográfico e turístico,
solidez e coerência internas, no rigor todo um leque de intervenções patri-
do argumento teórico, na clareza monializantes e folclorizantes ou até
metodológica, até na fluência e a sua própria «visitabilidade», através
limpidez de um eixo narrativo origi- da intensidade de visitas turísticas,
nal. Uma discussão sistemática, mi- festivas e escolares de que este bair-
nuciosa e bem actualizada da extensa ro é objecto (cap. 1).
bibliografia que se pode recensear Para além desta imagem, de certa
sobre os temas tratados tem ainda a forma oficial, do bairro, AFC preo-
vantagem de vir condensada em sin- cupa-se em dar conta do que é
téticas e muito elucidativas notas de Alfama para os seus habitantes e
pé-de-página, o que facilita clara- quem são estes habitantes... Aqui o
mente a leitura desta, já, obra de leitor entra em Alfama: Alfama de
referência de sociologia e, na minha contornos físicos algo imprecisos
opinião, também de antropologia ur- — embora polarizada pelas duas igre-
bana. jas que dão o nome às freguesias que
Num primeiro momento é a iden- lhe pertencem — tem uma determi-
tificação morfológica, social e cultu- nada configuração morfológica e po-
ral do bairro que está em causa, pro- pulacional que é descrita ao porme-
duzida por complexos processos de nor nos seus declives, na sua malha
contaminação recíproca entre o inte- urbana, nas suas casas e edifícios,
rior e o exterior desse lugar. Primei- na densidade da sua população e, so-
ro, a partir de um olhar exterior, ten- bretudo, na sua composição diversi-
tando perceber a sua grande ficada, nas suas actividades profissi-
visibilidade social, depois, com um onais, nas suas redes sociais, nos
olhar de dentro, profundamente co- seus retiros, nas suas colectividades,
nhecedor do seu interior. Os seus nas suas festas, no seu fado… en-
limites físicos e uma primeira carac- fim, nas múltiplas dimensões da sua
terização sócio-cultural constituem estruturação social que lhe dão essa
os grandes eixos temáticos desta pri- configuração especial de sociedade
meira parte. Assim, a sua visibilidade de bairro. Alfama revela-se assim
como facto socialmente construído e, nos seus contornos plásticos, nos
muito concretamente, a produção de seus núcleos de referência identitá-
uma imagem de marca nítida, en- ria e nas suas demarcações face a
quanto conjunto urbano típico (pela outros bairros e ao exterior (cap. 2).
malha urbana, mourisca e medieval, Após esta prévia identificação do
222 perfil das casas, mistura social entre bairro, o leitor é convidado a entrar
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nele, a conhecê-lo ao pormenor — feliz casamento. O cuidado extremo


nas suas práticas quotidianas e nas com que AFC contextualiza os dados
suas representações e, sobretudo, na quantificáveis a partir de um exce-
relação entre formas de estruturação lente e longo trabalho de campo e o
social e de produção da sua identidade rigor da análise que faz, criando in-
cultural. Nesta segunda parte do livro, dicadores facilmente compreensivos
três dimensões inter-relacionadas, — como, por exemplo, os sócio-
embora estrategicamente separadas, profissionais — que permitem a
são aprofundadas: cultura, classes, comparação, sem, no entanto, des-
interacção. virtuarem as pequenas diversidades e
Desta forma, a segunda parte nuances locais, enriquecem
constitui o seu núcleo estruturante, re- exponencialmente este trabalho. A
velando aqui, em todas as dimensões caracterização do tecido social
e matizes possíveis, o sentido profun- inigualitário deste bairro, com uma
do deste tipo específico de configura- população diversificada em termos
ção sócio-cultural territorialmente de origem, classe, sexo, género, ac-
enraizada: a sociedade de bairro. tividades sócio-profissionais, nível de
Primeiro, a dimensão cultural. As instrução, a identificação das múltiplas
práticas do fado amador, as marchas estratégias residenciais, familiares, mi-
populares, os arraiais e o carnaval, gratórias, que tornam o bairro um
enquanto formas singulares de cultu- entreposto de mobilidade social, le-
ra popular urbana, são exemplos vam o autor a caracterizar Alfama
paradigmáticos da intensa produção como um universo social popular,
cultural própria deste bairro. Os seus basicamente semelhante a outros ru-
protagonistas não só detêm uma for- rais, também por ele estudados. Com
ma específica de capital cultural efeito, o fenómeno de migração em
popular, como também se constitu- cadeia detectado entre aldeias da
em como mediadores que transitam cordilheira central e este bairro le-
e comunicam entre mundos cultural- vou-o a analisar ao detalhe
mente diferenciados, incorporando etnográfico percursos de migrantes
elementos diversos e sincréticos nes- que, num original processo de mobi-
sas formas culturais (cap. 3). lidade espacial e social entre estes
Depois, a dimensão da estratifica- dois territórios, se inseriram entre
ção social: a composição socialmente dois meios: urbano e rural. A percep-
estratificada da sua população e as ção de que as permanências da iden-
suas trajectórias de mobilidade. Aqui tidade cultural de Alfama coexistem
encontra-se uma das partes mais ge- com uma rotação populacional intensa
nialmente conseguidas do livro. A leva, finalmente, o autor a descobrir,
complementaridade entre a pesquisa progressivamente, a importância do
de tipo intensivo/qualitativo com os contexto social da vida local e a pro-
procedimentos de investigação exten- duzir essa noção tão feliz que é a de
siva e quantitativa compõe um muito quadro de interacção local (cap. 4). 223
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Por último, a sua dimensão inte- na, estilos relacionais próprios e uma
raccional: o bairro enquanto quadro persistente identidade cultural (caps.
de interacção — ou, por outras pala- 6 e 7).
vras, a importância do contexto local Após este breve e incompleto resu-
das interacções na constituição da mo, cabe ainda assinalar que Socieda-
sociedade de bairro alfamista e da de de Bairro constitui, na realidade,
sua identidade cultural. O quadro de um marco importante no quadro dos
interacção local caracteriza-se, assim, estudos urbanos portugueses. Embora
por traços de natureza morfológica, os bairros já tenham suscitado algu-
relacional e simbólica — carácter mas investigações no âmbito das ciên-
labiríntico da malha urbana, relação cias sociais (cf. p. 143), esta investi-
casa/rua, densidade de redes sociais gação apresenta algumas originalidades
locais, sítios de vizinhança, colectivi- notáveis. Gostaria de destacar quatro
dades, influência do patrocinato e delas.
clientelismo relacionado, por exem- Em primeiro lugar, a utilização de
plo, com as actividades portuárias e uma pluralidade de métodos e técni-
turísticas ou com os prolongamentos cas de pesquisa, articulando com uma
de instituições supralocais existentes maestria indiscutível a pesquisa de
no bairro, rivalidades intra e inter- terreno antropológica — da melhor
bairristas, formas de cultura popular que se tem feito mesmo no âmbito da
urbana, como o fado e as marchas,
própria antropologia — com procedi-
etc. (cap. 5).
mentos de investigação extensiva e
A terceira e última parte do livro
quantitativa. O pormenor etnográfico
ocupa-se das transformações recen-
surge de uma forma sistemática, a
tes do bairro e da identificação do
relativizar o dado estatístico e, mais
que permaneceu e do que mudou ao
do que isso, o próprio trabalho de
longo dos cerca de vinte anos de ob-
servação continuada que constituem campo acaba por funcionar como o
o substrato empírico desta investiga- grande regulador das técnicas de aná-
ção. Aqui as mudanças económicas e lise quantitativa. A teoria é sempre
as recomposições sócio-profissionais, empiricamente baseada.
o nascimento de uma cultura Em segundo lugar, o contributo
mediática e de novos estilos de vida para um melhor conhecimento de
e, muito particularmente, o processo formas de cultura popular especifica-
de reabilitação urbana iniciado nos mente urbanas, ganho indiscutível
anos 80 são analisados detalhadamen- para o próprio conhecimento da urba-
te, etnograficamente, no sentido de nidade de uma cidade como Lisboa.
encontrar as persistências que, ape- Sabendo nós que os estudos urbanos
sar destes vectores de mudança social, estão ainda demasiado impregnados
fazem com que Alfama se continue a de mitos e preconceitos sobre formas
caracterizar como uma sociedade de de urbanidade, decorrentes do sobre-
bairro, cuja configuração cultural apre- conhecimento de certas cidades e de
224 senta formas de cultura popular urba- certos estilos de urbanidade, este fac-
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to, por si só, contribui não só para o Alfama, com a sua identidade forte,
desenvolvimento da antropologia ur- não se torna, por essa razão, um
bana como parte integrante de uma ghetto ou um enclave, também as
teoria comparativa das sociedades disciplinas das ciências sociais não
humanas como, sobretudo, alimenta precisam de se fechar em fronteiras
e enriquece toda uma discussão rígidas para preservarem a sua identi-
aprofundada sobre a própria natureza dade…
do urbano de um modo não etnocên-
trico e culturalmente relativizador. GRAÇA ÍNDIAS CORDEIRO
Em terceiro lugar, este estudo é
exemplar do ponto de vista de uma
ética do trabalho científico. O envol-
vimento de AFC com a realidade es-
tudada, enquanto mediador entre as Maurizio Viroli, Republicanesimo,
populações estudadas e os lugares de Bari, Laterza, 1999.
decisão e de influência, revela um
estilo de pesquisa científica radicada
Este livro de Maurizio Viroli 1
na solidariedade interpessoal e na ac-
constitui mais uma peça na actual
ção cívica. Mostra de uma forma
revalorização do republicanismo.
exemplar como um trabalho pode ser,
Grande especialista de história das
ao mesmo tempo, academicamente ir-
ideias políticas da Europa moderna,
repreensível, socialmente útil e esteti-
Viroli procura reconstituir aquilo a
camente agradável.
que chama o republicanismo clássi-
Por último, talvez a nota de origi-
co, que filia nas correntes dominan-
nalidade mais importante, que se tes da política romana (Tito Lívio e
prende com uma postura de abertura Cícero), mas, sobretudo, na sensibili-
disciplinar particularmente simpática dade política das repúblicas italianas,
para com a antropologia. Ao longo mais tarde teorizadas por Maquiavel e
deste texto não é apenas invocada a por Guicciardini. É justamente esta
importância que a antropologia assu- evocação do seu momento mais clás-
miu ao longo da sua formação cien- sico que, na opinião de Viroli, permite
tífica. Na sua prática de investiga-
ção, AFC rompe com algumas
1
tradicionais barreiras disciplinares, N. 1945, professor em Princeton
revelando, no seu melhor, como a («Politics»), Machiavelli and Republicanism
(org., com Gisela Bock e Quentin Skinner),
ciência é, de facto, um sistema aber- Dalla politica alla ragion di stato, La scienza
to capaz de estabelecer pontes e in- del governo tra XIII e XVII secolo, 1993, Per
corporar teorias, métodos e estilos amore della patria, 1995, Il sorriso di
Nicolò. Storia di Machiavelli, 1998, e inter-
de conhecimento de várias discipli-
venções como comentador político: http://
nas. E deixa bem patente que, do www.swif.uniba.it/lei/rassegna/viroli.htm
mesmo modo que o bairro de (2001-6-14) (1994). 225

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