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DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p213
pode decidir se o vendedor está (ou não) questões quando o poeta Deley de Acari,
dentro da legalidade. Como os trabalhos um dos “intelectuais das margens” que
demonstram, o policial atua por meio do a autora analisa, toma para si a tarefa de
poder discricionário, próprio de suas ati- transmitir pedagogicamente a ideia de
vidades, que se soma à ilegibilidade das que os moradores de favelas têm o direi-
leis, suas brechas e alterações. Imbricado to de denunciar as agressões arbitrárias
com mafiosos, traficantes de drogas e realizadas pela polícia.
milicianos, o policial está no centro das A discussão de Myrian Sepúlveda
relações de força e dos jogos de acordos dos Santos se dá em torno da espetacu-
e negociações que envolvem chantagens, larização das implosões de presídios e
compras de proteção e formas de extor- da invisibilização das violências em seu
sões que flexionam a aplicação das leis. interior. O policial aparece em seu texto
O policial também é um ator dos ora como ouvidoria da Polícia Militar,
dispositivos de violência e terror nas ora como aquele que pratica torturas e
cidades contemporâneas. A partir do mortes no interior desses espaços. São
adiamento de uma audiência judicial, eles, junto com agentes penitenciários,
que integra o julgamento de policiais moradores dos arredores das prisões e
que cometeram assassinatos, Adriana familiares de presos que percebem, em
Vianna analisa os processos de constru- seu cotidiano, as ambivalências de um
ção de subjetividades na dolorosa espera sistema que se caracteriza pela violência,
dos familiares da vítima por uma nova a tortura e o terror.
audiência. O sofrimento de familiares, Carly Machado discute a polícia por
advindo da morte de um filho, se soma meio do sofrimento daquele que produz
à figura fantasmagórica do policial que violência. Inseridos em uma cartografia
cometeu o assassinato e está livre, às moral e em uma complexa política das
possíveis violações que podem ocorrer emoções que classifica quem pode sofrer,
sobre aqueles que demandam por justiça o policial é correntemente colocado do
e o “tempo de espera”, marcado por dor, lado dos “sem sentimentos”. No entan-
desânimo, cansaço e pelas adversidades to, quando Machado analisa a Tropa de
que impedem a reparação. Louvor do Ministério do Batalhão de
A questão da violência trabalhada por Operações Especiais da Polícia Militar
Juliana Farias está na aplicação dos “au- (banda gospel do Bope), o sofrimento
tos-de-resistência” que oficializam a mor- aparece como construtor de moralidades
te de moradores de favelas e periferias. e masculinidades, e sofrer significa su-
Essas mortes provocadas por policiais portar a morte para obter salvação, perdão
são contrapostas pelos familiares atra- e esperança. Como agente nos processos
vés dos exames de laudos cadavéricos, de construção de moralidades e mascu-
que muitas vezes apontam o contrário linidades, o policial surge nos textos de
do que foi registrado como causa mortis. Michel Misse e César Teixeira a partir
Neste complicado jogo de veridificação, das relações sociais que se desenrolam no
Farias nos apresenta como familiares de contexto de “violência urbana”. Impor-
vítimas constroem estratégias de visibili- tante ator na produção da sujeição crimi-
zação dessas mortes, que variam entre a nal e presente nos discursos oficiais que
exposição pública e o trabalho artesanal separam quem está na “vida do crime” e
de reunir provas da inocência da vítima quem tem uma “vida normal”, o policial
e de sua execução. Em alguma medida, o está inserido nas práticas de produção de
trabalho de Amanda Dias resvala nestas subjetividades que se entrelaçam às ações
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religiosas e de ONGs, que mantêm como de favelas produz como efeito a gestão da
pano de fundo o espectro do bandido. vida local e a administração dos conflitos.
Outros dispositivos entram nas cenas No argumento da autora, o policiamento
urbanas através da figura do policial. de permanência tem modificado as dinâ-
O texto de Rafael Soares Gonçalves micas de violências, a lógica da guerra,
destaca como esse personagem está no as formas de segregação e as escalas de
centro da gestão de territórios associados cidadania.
à especulação imobiliária. A instalação O repertório gramatical operado por
de Unidades de Polícias Pacificadoras moradores de condomínios fechados na
(UPPs) em algumas favelas do Rio de zona oeste do Rio de Janeiro aciona a
Janeiro é analisada pelo autor como parte figura do policial na construção de gra-
de uma rede estratégica de valorização de dações de moralidades, cidadanias e hu-
territórios de favelas e seu entorno, envol- manidades. Jussara Freire analisa como
vida nas dinâmicas dos mega eventos e membros das camadas médias urbanas
no interior das lógicas de turismo. Como consideram legítimas a intervenção poli-
explorado por Bianca Freire-Medeiros, cial em favelas e a permanência da polícia
essa nova lógica de turismo incorpora nesses espaços associados ao crime e à
formas de “turismo em favelas”, exerci- criminalidade. No entanto, o policial não
das naquelas que estão sob intervenção é bem vindo nos condomínios fechados,
da Polícia Militar. Comparando favelas cuja presença contaminaria moralmente
no Brasil e townships na África do Sul, aquele espaço dos “contribuintes” con-
a autora analisa as relações de poder no siderados por si mesmos “cidadãos de
campo do turismo associadas à lógica primeira categoria”.
do empreendedorismo local como pos- Os textos de Véronique Boyer e José
sibilidade de os moradores de favela se Maurício Arruti são aqueles em que a
tornarem responsáveis por seu próprio figura do policial não está presente. No
negócio. entanto, podemos tecer outras “costuras”
No interior da lógica do mercado neo- através dos processos de produção de
liberal, cada indivíduo deveria tornar-se territorialidades. Boyer está preocupada
empreendedor e criador de seu próprio com os regimes de diferenciação e os re-
capital. Como nos mostra Lia de Mattos gistros de identificação dos quilombos na
Rocha, os “projetos sociais” direcionados Amazônia. Para a autora, o estado aciona
a jovens moradores de favelas, realizados categorias jurídicas que pressupõem a
por ONGs, muitas delas em áreas que identidade diferenciada dessas pessoas e,
estão sob a guarda dos policiais das UPPs, assim, cria novas fronteiras entre grupos,
atuam conjuntamente na repressão e na territórios e identificações. Arruti discute
disciplinarização de corpos e moralida- os dispositivos territoriais e populacionais
des. Dentre as ações policiais está o con- relacionados aos quilombos urbanos,
trole do espaço público, que acompanha analisando seu repertório discursivo.
as configurações dos mercados, funcio- Em seu trabalho, Arruti nos apresenta
nando como elemento moralizante no como certos agenciamentos discursivos
processo de classificação dos jovens que produzem uma diversidade de sentidos
são “recuperáveis” e os “não recuperá- que não podem ser dissociados de suas
veis”. A pesquisa de Márcia Pereira Leite bases históricas e sociais.
nos fala sobre a implantação dos postos Certamente o caminho escolhido para
de policiamento permanente das UPPs e o cruzamento dos textos não é o único
como essa nova forma de policiamento possível. Ficam guardadas para os futuros
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leitores novas “costuras” entre os traba- lógica, que pode ser apreciada a partir
lhos que enriquecerão os debates sobre de três eixos.
os dispositivos urbanos vigentes nas cida- Em um primeiro eixo, o livro apresen-
des contemporâneas. Antes de finalizar, ta os modos pelos quais o colecionismo
gostaria de destacar a relevância ética do século XVII imbrica-se com as rotas
e política dos textos, que fazem circular comerciais e de dominação colonial. Os
visões minoritárias sobre as cidades e objetos colecionáveis confundem-se com
sobre as violências presentes nas formas os itens de comércio, e as pessoas que
de governar as populações pobres. os trocam, com os agentes coloniais. Os
casos analisados do percurso da bacia de
prata e dos chapéus de Castor, trocados
DOI http://dx.doi.org/10.1590/0104-93132015v21n1p217 entre Nassau e representantes do Congo,
FRANÇOZO, Mariana de Campos. 2014. De apresentam as dinâmicas coloniais que
Olinda a Holanda: o gabinete de curiosi- punham em contato áreas tão distantes
dades de Nassau. Campinas, SP: Editora da quanto Holanda, África, Peru e Pernam-
Unicamp. 287 pp. buco e que fortaleciam o comércio de
açúcar e de escravos. Ainda sobre a bacia
de prata, a investigação da sua origem re-
Rita de Cássia M. Santos monta ao Peru. Segundo a autora, a bacia
Doutoranda do PPGAS/MN/UFRJ deve ter seguido para a África por meio
de comerciantes, lá utilizada para compra
A problematização da coleção de Maurí- de escravos e posteriormente presenteada
cio de Nassau, formada durante seus anos a Nassau. As coleções, como demonstra
de administração da possessão holandesa a autora, não são fixas e perenes, ao
no Nordeste do Brasil (1637-1644), é o contrário, o seu valor reside justamente
pano de fundo no qual Mariana Françozo no movimento. As trocas, as permutas, as
tece seu primoroso livro. Busca a autora inclusões eram frequentes e justificavam
reestabelecer as diferentes temporali- a sua importância.
dades da coleção em seus processos de Ainda nessa direção, Françozo analisa
formação, circulação e dispersão, apos- um conjunto de instigantes questões pos-
tando que o desenrolar dessa imbricada tas a partir da aplicação do conceito de
rede a guiará às conexões atlânticas que, dádiva às práticas colecionistas do século
no limite, identificam o colecionismo XVII. Elaborado por Marcel Mauss, o
do século XVII aos jogos políticos do conceito de dádiva buscava compreender
circuito colonial. Ao abordar o processo as implicações do sistema de trocas na
de formação e circulação da coleção de conformação das relações pessoais, dito
Nassau, Françozo permite entrever ainda de outro modo, como a troca de objetos
a dinâmica de produção de saberes sobre converte-se em laços pessoais. Aqui,
o Brasil nos Países Baixos da época Mo- Françozo o utiliza para compreender os
derna, observada e analisada a partir das sentidos e os significados das múltiplas
práticas sociais. doações que envolvem a formação da co-
Desdobramento de sua tese de douto- leção e sua posterior dispersão no contex-
ramento em antropologia pela Unicamp, to europeu e americano, entre europeus e
sob supervisão do ilustre professor John populações autóctones. Como resultado,
Monteiro, este trabalho combina uma percebemos os diferentes caminhos pelos
aguçada pesquisa histórica com uma quais Nassau, a partir de sua coleção,
criativa linha de investigação antropo- constrói um nome de prestígio, o bem