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A Escrileitura é que nos compõe:
cada qual tece o seu sonho.

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Sumário
Prefácio ao Breviário
Sandra Mara Corazza
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E I S (currículo)

E
espaço
A transição do quadro para o espaço
Cristiano Bedin da Costa
31

Espaço do professonhar
Fabiano Neu
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[∞] Espaço [∑]


infraordinário
Máximo Daniel Lamela Adó
47

I
imagem
Imagem de escola:
Uhma Mvlier e o sequestro de Oneirante
Ana Carolina Acom
Ester Maria Dreher Heuser
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7
A pele abotoada no ventre da noite boceja
Marina dos Reis
65

Brevimagens sonhoescritas
Róger Albernaz De Araujo
Alberto d´Avila Coelho
73

S
signo
Signo de alcance: o sonho e a terra
Luiz Daniel Rodrigues Dinarte
83

Você não gostaria de ser forte?


Paola Zordan
91

A interpretação dos signos


Silas Borges Monteiro
Karen Elisabete Rosa Nodari
99

A I C E (didática)

A
autor
Amei um sonho?
Angélica Vier Munhoz
Fabiane Olegário
111

8
Sem insônia:
como o autor se desfaz em seu próprio sonho
Gabriel Sausen Feil
119

Breve almanaque dos sonhos


Julio Groppa Aquino
127

I
infantil
Infantil: um corpo-máquina de escrever sonhos em educação
Daniele Noal Gai
137

Infantil das Sete Peles


Deniz Nicolay
145

Infantil, o sonho de Frederico Nietzsche


Luciano Bedin da Costa
Emília Carvalho Leitão Biato
153

C
currículo
Em maio, tem mar de gente com tsunami e interceptações
Ada Kroef
163

O currículo-sonho e as práticas de escrileituras


Larisa da Veiga Vieira Bandeira
Polyana Olini
171

E se o currículo sonhasse?
Três dicas e uma precaução para um currículo transgressor
Luciane Uberti
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E
educador
Sonhos de uma infância da docência:
fabulações de aulas-cenários de um educador
Ana Paula Patrocinio Holzmeister
Gisely Mara Favalessa
189

Educador em aula, sobre a escritura e a pedagogia


Marcos da Rocha Oliveira
197

Dos sonhos da Senhora Sohnospska


Maria Idalina Krause de Campos
205

Posfácio ao Breviário
Kanka Alves Rodrigues
213

Punhados de bibliografia
221

Autores – Bios de sonho


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Prefácio ao Breviário
Sandra Mara Corazza

De eterno e belo há apenas o sonho.


Por que estamos falando ainda?
Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...
(Álvaro de Campos)

1. Carta-convite
ão é porque trate de sonhos que este livro não seja total-
mente baseado em fatos reais. Em 21 de fevereiro de
2019, escrevi e enviei a carta-convite para iniciar o Bre-
viário dos sonhos em educação, da qual constava, mais ou me-
nos, o seguinte texto.
* Amigos e amigas. A proposta é escrever um livro intitulado Bre-
viário dos sonhos em educação. Vocês estão convidados como autores
de capítulos. Cada capítulo corresponderá a um elemento de EIS AICE
(Espaço, Imagem, Signo para Currículo; Autor, Infantil, Currículo e
Educador para Didática). EIS AICE como aquilo que ninguém sabe di-
reito o que é; mas que é preciso ainda elaborar para desovar. Por isso,
EIS AICE será transformado em sonhos.
O que é um sonho? O sonho é o que a poesia diz que o sonho é. É
aquela coisa estranha que é bem real, quando acontece; mas que, dele,
só podemos falar après-coup. Logo, o sonho é desde sempre a interpre-
tação do sonho. Assim. Simples. Cada um mostrará o que é um sonho
em educação. Serão três capítulos-sonho para cada elemento de EIS
AICE. Cada capítulo estará disposto no Sumário de acordo com a se-
quência correspondente ao elemento de EIS AICE escolhido pelo autor.
Um capítulo terá até 7 páginas. E nunca mais do que 7. Afi-
nal é um Breviário. Breviário é resumo, sumário, síntese, sinopse,
abreviação; livro habitual ou leitura predileta; livro de porte fácil,
reduzido, contendo, por exemplo, os ofícios que os sacerdotes de-
veriam ler todos os dias, mesmo quando estivessem em viagem. Ler
pelo mesmo breviário (figurado) significa ter as mesmas ideias que
outrem. Um breviário é feito de orações, mantras, poemas curtos,
aforismos, máximas. É um livro que pode ser aberto a qualquer
hora, em qualquer lugar e em qualquer página; e, então, ser guar-
dado para ser retomado em outro momento. Na Igreja, abarcou
salmodias, cursus, preces das horas, horas canônicas, ofício divino,
Horologion (relógio – Livro das Horas). O II Concílio do Vaticano
de 1963, que fez a Reforma Litúrgica Católica, considerou que a
expressão Breviário não tinha relação com a natureza da oração,

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passando a usar Liturgia das Horas, cujo conteúdo era o seguinte:
1) Ofício de Leitura (vigília noturna de leitura); 2) Laudes Matutinas
(oração da manhã); 3) Tércia (à 3ª hora, meio da manhã); 4) Sexta
(à 6ª hora, isto é, ao meio dia); 5) Noa (à 9ª hora, isto é, a meio da
tarde); 6) Vésperas (entardecer, à hora do aparecimento da estrela
Vésper, a estrela da tarde); 7) Completas (ao deitar).
Já, no que tange ao (obsessivo) número 7 dos elementos de
EIS AICE, temos que ele é batata. Das bruxas. Elementais. Artes.
Sábios da Grécia. Adormecidos de Éfeso. Colinas de Roma. Selos.
Notas musicais. Anões da Branca de Neve. Cabritinhos no relógio.
Pitágoras. Plêiades. Pecados capitais. Pragas do Egito. Maravilhas
do mundo. Braços do candelabro judeu. Chacras. Linhas dos orixás.
Glândulas endócrinas. Cores do arco-íris. Dias de criação do mundo.
Trombetas do Apocalipse. Buracos da cabeça. Palmos de sepultura.
O prazo para escrever os sonhos? Não deve tardar. Que tempo
quase não há (embora ele seja a substância da qual somos feitos).
Afinal, parte-se do princípio que todo mundo tem sonhos disponí-
veis. Se não, seríamos vítimas dos sonhos dos outros. (Boa esta do
Deleuze.) Então tá. Feito. Grata. Muito. Desejo que embarquemos
juntos outra vez. Agora, na Nau dos Sonhos. Nós, os Loucos da Edu-
cação, os Imprudentes da Docência, os Desajuizados da Aula. Ou, me-
lhor, nós, os Sonhantes Perplexos Ativos: breves, concisos, sucintos,
lacônicos, lapidares, exatos, precisos.

2. Propósito de chama
Como organizadora deste Breviário, o meu propósito não é es-
tudar sonhadores com seus sonhos, como se estes fossem cartas
enigmáticas artificiosas e engenhosamente construídas. Morreria
de tédio se tivesse de realizar pesquisas junto a sonhadores, que o
são por praticarem o sonhar. Só estudo o sonho e suas maravilhas
longevas. Não aquele que integra o dormir, nem aquele que idea-
liza, que evade ou que indica o destino; estudo o sonho que pre-
para livros e que pesquisa. O sonho operante, portanto, feito sem
vergonha, que faz falar fantasisticamente: — Eu sonho, eu sonho,
tão amiúde, que me vejo a-traduzir o arquivo, por excelência, da do-
cência.
Uma exuberância volátil procede, assim, da escrileitura dos
sonhos vividos por quem pratica a Docência: possibilidade fanta-
siosa de Aula, do seu funcionamento, da sua operância, apresenta-
dos, na sequência arbitrada pelo fonético e grafemático EIS AICE
— 21 capítulos escritos por 30 professonhadores (palavra do Neu).

3. Sete estrutural
EIS AICE, que dá estrutura ao livro, é chamado bloco de pensa-

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mento — paragrama, quase signo, compósito textual, Gestalt, conceito
(eisaiceano), trans-semiótica, regime ideogrâmico, cadeia fônica, algo-
ritmo —; bloco formado por duas unidades analíticas e operatórias
(EIS AICE) — imagens, séries, ideogramas —; e unidades constituídas
por sete elementos (E I S A I C E) — partes, figuras, símbolos, células,
gramas, pictogramas, grafemas —; sendo EIS uma tradução do currí-
culo da diferença e AICE uma tradução da didática da diferença.
Também denominamos EIS AICE palimpsesto, como figura
poética, que percorre a pele do texto visível para delinear outro
olhar, enquanto campo escópico de vários sentidos possíveis; ou
mesmo galáxia significante, como constelação advinda dos seus
significantes (eisaiceanos); os quais demandam a necessidade
de fazer um recorte entre os elementos para delimitar o senti-
do do bloco. Assim, EIS AICE é uma intertextualização, formada
pela transcriação específica dos professores, como um caminho
da sintaxe tradutória da arte, da ciência e da filosofia (sabedo-
ria), que expressa a intepretação da tradição no presente do cur-
rículo e da didática.
Entre tantos paradoxos e pontos nonsense, EIS AICE também
é considerado uma escrita criptográfica. Neste caso, à primeira
vista, as sete letras, as duas unidades e o próprio conjunto pare-
cem impenetráveis. Mas, quando os seus símbolos são remetidos
a um alfabeto ou a outro sistema constituído, o enigma deixa de
ser insolúvel; já que todos os criptogramas são, a princípio, deci-
fráveis, visto a sua natureza linguageira criada.
EIS AICE é, desse modo, uma forma organizada do caos. Mas
também pode ser natureza. Talvez toda a emoção que o habita re-
sida na tensão textual que avança pelo bloco, indo de uma unidade
ou de um elemento a outro. Logo, quanto mais constatamos que
não conhecemos EIS AICE, mais importante é descobrir aquilo
que dele não sabemos. Desejaríamos constituir um sistema lógico,
mas EIS AICE seria feito, simplesmente, de acontecimentos fortui-
tos, sem nenhum plano e método, de modo que sua análise ultra-
passaria a nossa capacidade, resultando em um legítimo impasse.
Ocorre que EIS AICE é pontuado com letras de uma álgebra
que lhe é própria, fórmula do arquivo da docência da diferença.
A que necessidade correspondem aquilo que, nesse arquivo, po-
demos denominar edutemas, didatemas ou curritemas (eisaicea-
nos)? Nossas pesquisas-docências encontram uma necessidade
imperiosa de borrar a fantasmagoria, de reduzir a imaginarização
correlativa de qualquer compreensão; e, dessa maneira, formali-
zar a experiência curricular e didática, para lhes atribuir alguns
pontos transmissíveis. Pois o dar sentido excessivo, como costu-
ma ser feito na literatura de formação de professores, nos pareceu
sempre um ato religioso, como uma maneira de evitar aquilo que

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é intraduzível (a-traduzir) em nosso ofício.
EIS AICE pode, tão-somente, produzir algum efeito de signifi-
cação, similar ao da poesia, como uma centelha criadora; desde que
deixemos a palavra criação ligada à metáfora poética, o que a leva a
adquirir uma conotação (re)produtiva. Pode ser, também, que EIS
AICE funcione como Witz; isto é, como um jogo engenhoso de espí-
rito, mot d’esprit, dito de espírito, trocadilho, chiste, anedota, piada,
graça; ou, então, como lapso, ato falho, sintoma ou sonho.
Esse jogo engenhoso seria um teatro, não de realidade nem
de ideias, mas de posições e de locais, como uma fábrica de pro-
dução da didática e do currículo tradutórios. Jogo que delira, por
meio do arquivo EIS AICE, o mundo inteiro; e, quando o faz, cons-
trói agenciamentos múltiplos. EIS AICE seria, nessa medida, uma
possibilidade sempre aberta de reativar a máquina revolucionária,
que atesta as capacidades de abertura e de criação dos professores,
as quais ajudam a combater os conservadorismos e retrocessos que
assombram o nosso mundo.
EIS AICE é, ainda, pensado como um septograma ou hepta-
grama, ou seja, uma estrela composta por 7 (sete) retas e 7 pon-
tas. Como um símbolo mágico, utilizado em muitos rituais de bru-
xaria, que expressa a harmonia do cosmos, as 7 cores do arco-íris
e as 7 zonas planetárias; também ressoam, nele, a Estrela Élfica,
os 7 dias da semana, os 7 chakras, os 7 metais alquímicos, as 7
notas musicais, os 7 planetas antigos — Sol, Lua e as cinco estre-
las errantes: Júpiter, Vênus, Mercúrio, Marte e Saturno. Pode, tam-
bém, configurar o novo sistema solar, distante cerca de quarenta
(40) anos luz da Terra, composto por 7 exoplanetas, que orbitam
em torno de uma estrela anã e fria.
Pensamos ainda que o número 7 de EIS AICE pode ser tribu-
tário de um antigo número semi sagrado, que junta o quatro (4) e
o três (3) do cosmo com seu deus e que os pitagóricos chamavam
de o número do tempo certo; visto que, tanto o homem quanto o
cosmo têm quatro naturezas criadas e três naturezas divinas.
Além disso, há uma vantagem dessas singelas letrinhas E I S A I
C E: elas (quase) não podem servir de apoio interpretativo, embora
possam esclarecer o professor em suas ações. Não incidem sobre o
que um professor diz e faz, mas sobre o funcionamento do elo social
e subjetivo que compõem a docência e a pesquisa tradutórias. Na
melhor das hipóteses, podemos nos servir delas para escrever um
Prefácio ou um livro como estes, mas não podemos comunicá-las ou
delas fazer regras institucionais. Dessa maneira, a teoria (eisaicea-
na) não pode ditar regras, apenas fornecer os eixos que permitem
revelar os pontos de articulação de nossas ações como professores.
Em outro compasso, EIS AICE pode ser uma noção, uma ideia,
um argumento, um erro, um esquecimento; em suma, um capítulo

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na educação, que evitaria a parafrenização da linguagem dos pe-
dagogos, políticos, militantes, pesquisadores. Isso porque EIS AICE
luta contra o trabalho de repressão no nível da expressão, cujo ob-
jetivo é parar o trabalho de questionamento — trabalho incessante
e transbordante, dobrado sobre o movimento real das coisas curri-
culares e dos seres didáticos.
Ora, é que EIS AICE não é intelectual. Não é moral. Não é edu-
cacional. É uma operação. EIS AICE rearruma coisas na pesquisa
e na docência. Assim como a cirurgia rearruma coisas no corpo.
Como um mecânico de automóveis rearruma coisas sob a tampa do
motor de um carro. EIS AICE é impessoal e radical desse jeito. E as
mudanças conseguidas são muito pequenas. Vivemos nossas vidas
de professores de acordo com a compulsão à repetição dos clichês
e EIS AICE só consegue ir até o ponto de livrar-nos dessa compul-
são. EIS AICE deixa o professor com um pouco mais de liberdade de
pensar e de agir do que tinha antes. Mas quão mais? Ora, em vez de
seguir diretamente o meridiano, o professor irá cinco graus, dez, ou
quem sabe, quinze graus para a esquerda ou para a direita. Isso se
EIS AICE empurrá-lo com muita firmeza; mas não mais do que isso.
EIS AICE é enlouquecedor em seu mistério e desanimador em sua
força. EIS AICE nos ocupa. Como se vê.

4. Pontos de sonho
> Desde o alvorecer da humanidade, o sonho nos visita, quan-
do menos o esperamos. O danado nunca avisa quando vai aparecer
ao sonhante. > O que é sonhar? Há muitos séculos, esta pergunta
acende discussões científicas, teológicas, populares e práticas de
decifração. O sonho é matéria de experiência analítica nas ciências
humanas, médicas, psicológicas, cognitivas, conjecturais. É móvel
de inúmeras produções no cinema, artes visuais, publicidade, se-
miótica, literatura, religião. > Na Antiguidade, a análise dos sonhos
integrou as técnicas de existência. As imagens dos sonhos eram
consideradas signos de realidade ou mensagens do futuro. Decifrar
os sonhos sempre teve um grande valor para a vida prática da hu-
manidade. > Sonhos deixam impressões de angústia, medo, pavor,
prazer, satisfação, alegria. Contam histórias fantásticas e irreais.
Criam esperanças e promessas de felicidade. Mostram algo que se
almeja e que apenas ao ser sonhado é realizado. Carreiam premoni-
ções, medo, azar e fatalidades. Instigam a curiosidade. Alimentam a
vontade de saber sobre significações do próprio desejo. > Os so-
nhos andam, com pés alados, na calada da noite. Dizem como são o
sono dos deuses e, por vezes, a sua fala. Os sonhos são a recompen-
sa da fruição de dormir. Proliferam mascarados. À luz do dia, mos-
tram a sua cara em devaneios e pensamentos que nos assustam.

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Expressam desejos que estendem dedos contrafeitos e carcomidos
desde os escombros de cada história pessoal. Reeditam o passado
soterrado pelo esquecimento dos fatos ou da velhice. Os sonhos in-
sistem e resistem à própria extinção. > Sonhamos, simplesmente.
Sonhamos desde que nascemos. Antes de sermos considerados re-
cém-nascidos, inclusive? É a morte um sono sem sensações, um re-
pouso, um descanso em paz? É a morte um sono? Ou o jacente da
arte funerária, o requiescens sonha ainda? A vida é sonho? Ou so-
nhamos a vida? O sonho nos põe diante de questões que clamam
por sentido e por respostas, que costumam não chegar. Isso quando
não for o próprio sonho a questão indecídivel. > Costumamos bor-
rar o sonho e viver realizando o seu apagamento. Nunca o possuí-
mos, pois somos nós a sua possessão. Não sonhamos o sonho, so-
mos cavalgados por ele. Nessa cavalgada panteísta e energética,
tornamos o sonho excêntrico a nós mesmos, fazendo dele algo bem
distante ou o último elemento a ser tematizado. > Como aquilo que
não cessa de não se inscrever, os fragmentos erráticos, deslocados,
distorcidos e irruptivos do sonho, que escapam à censura, o denun-
ciam como sendo, a um só tempo, estrangeiro e profundamente fa-
miliar. > Não existe nada mais Unheimliche do que o sonho. > Assim
como a poesia, o sonho não é apenas uma espécie estranha de coisa
humana. Talvez nem chegue a ser uma coisa. Dele, não podemos dar
testemunho. Ao sonhar, nunca estamos seguros daquilo que esta-
mos fazendo, não conseguimos dizer que estamos sonhando. Quan-
do podemos constatar que sonhamos, já é tarde demais, pois acor-
damos, e o sonho é findo. Logo, temos razões para desconfiar que,
talvez, nunca tenhamos sonhado. Ou que, ao contrário, toda a nossa
vida, com as suas paixões, não passou de nada mais do que um so-
nho. > Assim, quando relatamos, escrevemos, desenhamos, dança-
mos, performamos ou construímos a imagem de um sonho, dize-
mos que foi sonho; mas, talvez, tenha sido somente uma experiência
singular, à qual damos o nome de sonho. > A cena do sonho se apre-
senta como uma imagem hiper-realista ou surrealista; de todo
modo, é uma manifestação ordinária. > O sonho não é uma prestidi-
gitação, produzida pela inconsciência, que ilude, mente, deforma ou
encobre significados preexistentes. Não é uma fachada ou uma cor-
tina, que veda significados que se ocultam à consciência. O sonho
não nos engana nem ilude. O sonho sempre diz tudo aquilo que pre-
tende dizer. Diz bem demais aquilo que diz. Mesmo que pareça mal
dito, o sonho possui a sua própria fala (palavras, gestos, escrita)
onírica; a qual, aliás, integra o sistema linguageiro no qual estamos
já imersos. > Franqueado pela consciência, todo sonho surge e é
organizado como uma cena. Cena feita como no teatro. Freud disse:
— Ein anderer Schauplatz. E Lacan traduziu: o sonho enquanto uma
outra cena, que corresponde ao inconsciente como o discurso do

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Outro; isto é, como a linguagem, com os seus possíveis e equívocos.
> Cena onírica, na qual, sonho e sonhador estão subsumidos. Tanto
que há estudiosos (freudianos) que concebem o sonho como a re-
petição do mesmo, de modo que sonhar seria uma compulsão à re-
petição. Para essa concepção, existe apenas um único sonho que é
repetido na historicidade do sujeito. E suas inúmeras variações n’,
n”, n’” ... marcariam a diferença = n + 1. Enquanto para outros (jun-
guianos), os sonhos produzem um sistema arcaico de expressões,
figuras típicas, coletivas, arquetípicas. > Sonhar não é apenas ter
sonhos, desejos ou imaginação, ensinava Dom Juan de Castañeda.
Sonhar é um processo e uma sensação no corpo, por meio dos
quais, percebemos outros universos e novas dimensões são aber-
tas. Os feiticeiros, deliberadamente, usam a arte do sonhar: um con-
junto de práticas para recondicionar nossas capacidades energéti-
cas de perceber o mundo. > Dormimos porque precisamos sonhar
e, assim, realizar uma aprendizagem in-consciente, que enxerta sua
seiva em nossa vida psíquica, sempre faminta de alegria e de felici-
dade. > Para acionar a Aula, nós, professores, sonhamos com os ele-
mentos componentes do Arquivo da Docência, quais sejam: Espaço,
Imagem e Signo (que compõem o processo tradutório do Currícu-
lo); além de Autor, Infantil, Currículo e Educador (que formam o da
Didática). > A Aula é a cena manifesta dos sonhos de professores e
de alunos. Lá, nos sonhamos, enquanto sonhamos a matéria. Algu-
mas vezes, sonhamos juntos. Em outras, trocamos equivalências de
um sonho para o outro. Por muitas vezes, cavamos diferenças entre
os sonhos. A Aula é a casa da artistagem do sonhar. > Cada Aula so-
nhada tem de lidar com o inexprimível da linguagem. A cada vez
que alguém diz: — Eu tive um sonho, é o seu exercício linguageiro
que rearma uma outra cena. > Não há modelo, nem mágica, nem
lógica, nem ciência, nem leis fundamentais da formação nem da de-
cifração dos sonhos. > Nos sonhos de Aula, alucinamos o sujeito, o
fazer e o pensar; isto é, explodimos o (lacaniano) objeto a. > Os so-
nhos são multidimensionais e transindividuais. > Em cada aurora,
sofremos perdas, pois ficam mais vazias nossas botijas de pensares
misteriosos e de sentires magoados. E com menos valia queda o
nosso odre de segredos e dores que refluíram nos sonhos. > O so-
nho é fonte e sumidouro, broto e poda, fio d’água e ralo. > Se tem
algo que não interessa ao sonho é a distinção entre realidade e ir-
realidade, consciente e inconsciente, fantasia ou fato, estado dor-
mente ou desperto. O sonho é empirista transcendental: desrealiza
e surrealiza. > O sonho é uma rede comunista que trança toda a
humanidade numa união explícita: todos sonham e nunca deixam
de sonhar. > Deveríamos usar o dístico: — Sonhantes de todos os
países, Uní-Vos! > O sonho não é figuração de objeto ou de coisa, não
é um quebra-cabeça, nem uma simples letra: é um rébus. > Como

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um rébus, a ingratidão do sonho é deixar a nosso cargo sua inter-
pretação e crítica. > Só que, contado em palavras, o sonho continua
sendo rébus: o sonhador até consegue falar ou escrever o sonho,
mas não sabe lê-lo. > A maior parte dos sonhos fica sem tradução;
isto é, permanece em condição de a-traduzir, visto ser indizível e
impronunciável. > O sonho é um paradoxo: fala-se dele, mas ele não
tem como não ser dito; resultando que dele não se pode não falar. >
Para que o sonho de Aula se faça texto necessita de nós, professo-
res, seus autores estrangeiros. > Habita o sonho um clamor por ser
falado, lido, escrito. Pois é da sua natureza exigir a própria tradu-
ção. > Somos aqueles que, trabalhando com a Docência, jogam com
os desejos evanescentes armados pelos sonhos. Por isso, os fascis-
tas dizem que sonhamos acordados. > O sonho de Aula agarra-se
como um parasita ao professor; o qual, fica com ele comprometido
no âmbito do labor do sonho (Traumarbeit). > Cada língua falada
em Aula possui a sua própria linguagem de sonho. > Assim como
um sonho é intraduzível em outras línguas, também uma Aula só
pode ser traduzida em sua própria linguagem de sonho. > Já que
traduzir o intraduzível do arquivo da matéria do sonho de Aula é a
nossa principal tarefa como professores, estamos sempre implica-
dos em um novo trabalho de criação. > O fala-ser do sonho é a lin-
guagem por-vir da vigília. > Do sonho nada sabemos de antemão,
nem depois, não tendo sobre ele nenhum controle. > Sonhos são
cortes, tomadas, ajustes, mixagem, edição, experiências dementa-
das e esquartejadas, crias do relâmpago e mucos do trovão. > Pode-
mos transpassar Lacan e dizer: o sonho não é um bom anjo, estru-
turado como uma linguagem; mas é um demônio, tão abusado
quanto alíngua. > Não há metalinguagem dos sonhos. A linguagem
forma os sonhos ao recombinar elementos da Aula, de modo que os
sonhos repitam a diferença, criando-a por meio da repetição. > As-
sim como ocorre neste Breviário: sonhos e educação são rearranja-
dos, recombinados, reencadeados, redispostos.

5. Viver a Aula
Em Aula, vivemos o sonho ou o estado de vigília? Mas, quem
disse que a vigília seria o oposto do sono? E se ela nada mais fosse
do que um sonho anterior ou a mera passagem de um sonho a ou-
tro? Talvez, a Aula aconteça num estado intervalar intermediário
entre sonhar e relatar que sonhamos, entre viver a Aula e contar
que a vivemos. Num sonho, admitimos estar traduzindo a matéria
original do mundo em uma experiência onírica. Ou deveríamos co-
locar a Aula sob suspeição, já que as palavras de nosso relato po-
dem estar sendo diversas daquelas que empregaríamos em outra
condição? Onde traduzimos a matéria de Aula? Num sonho, pode-

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ríamos responder, ou, então, numa ilusão que devesse ser corrigi-
da. Parece que em nenhum dos casos (se é que são dois), visto ser
impossível verificar a correção da nossa tradução. Como sonho, a
tradução da Aula coloca-se numa espécie diferente de tempo e de
espaço: sonho dentro do sonho.
O problema é que não temos acesso direto ao Sonho de Aula.
Só temos acesso ao relato de uma experiência do tipo estranho. Re-
cordar um sonho e relatá-lo é recordar coisas reais? Um sonho é
semelhante à experiência consciente de Aula? Situação curiosa fa-
zer de uma Aula um palco para nossas aventuras oníricas. Talvez
sejamos, mesmo, professores de sonho, que agem como se fossem
professores reais, que ficam à procura de alunos de sonho, em oca-
siões indefinidas, visto que os sonhos transcendem os conceitos
cotidianos de tempo e espaço. Se a Aula tem o seu tempo e espa-
ços diferentes dos normais, talvez, nada haja de surpreendente em
o aluno chegar três horas atrasado; em o professor dormir a aula
toda; em dezenas de pardais subirem nas classes; em uma matilha
de lobos entrar pela porta da Aula, trazendo a diretora, a secretária,
a coordenadora pedagógica e a merendeira da escola na boca.
Logo, são numerosas as circunstâncias: a do sonho, a do relato,
a da realidade, a dos professores, a dos alunos, a dos funcionários. O
professor costuma ingressar na tradução, entrar no texto, se deixar
possuir por um autor ou por um conceito. Nesses seus sonhos, a
latitude e a longitude, bem como o centro da Terra e suas palavras
não se movimentam mais como comumente. O professor escorrega
na neve da Aula-Sonho; anda como marionete de cabeça para bai-
xo; entalha garranchos na madeira da mesa com uma faca; os gatos
devoram morcegos e os restos da Última Ceia; os postes urinam nos
cachorros na Muralha da China; o guarda do zoológico espia na ja-
nela da frente; atrás da porta, existe um balaio de indagações irres-
pondíveis; no lustre, aloja-se um celeiro de causalidades oníricas;
no lodo, rastejam estranhas noções; no espelho, aparece uma classe
que, se arrastada, transforma-se em um poço; na lenha da cozinha,
respingam gotas de sangue de corpos vivos do tamanho de moedas;
nas peles frias e rígidas de todos, há experiências perturbadoras
demais para serem traduzidas.
Ora, com manchas de tinta preta, junto com furos de ferimen-
tos no papel, agarramos a cauda oscilante da sonda onírica da do-
cência. Bem fundo no ouvido e no olho, enfiamos um lápis, perfu-
rando os cérebros, para que atribuam à docência uma existência,
na qual as regras do mundo e as leis da natureza sejam diversas e
alteradas. Na superfície lisa de nossa dura-máter cerebral, encon-
tramos um único, malformado e pulsante olho, uma narina, três
unhas e cinco dentes. Não abafamos pronunciamentos sem senti-

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do, mas desnorteamos os sentidos de um Professor-Pesquisador de
Sonho. Pode, no entanto, essa entidade receber tal denominação e
continuar sendo Professor? Quando sonha, alguém é uma alguma
coisa, tem uma identidade? Conquanto muitas coisas aconteçam
em sonhos, algumas delas seriam lógica e epistemologicamente im-
possíveis, do tipo avaliar a alteração de sua altura colocando a mão
na própria cabeça. Diz o Professor-Sonhador: — Acontece que digo
o que traduzo e não o que sonho.
Dissipamos elevada energia ao sonhar uma Aula, talvez mais
do que em uma construção teórica articulada. Graças a esse So-
nho de Aula, participamos de espetáculos grotescos e maravilho-
sos; vagamos entre esferas sem causalidade como deuses ébrios;
mergulhamos no infinito; assistimos a uma explosão insuportável
de cores; aguentamos uma fantasmagoria sinistra; atravessamos
tempos tortuosos e espaços assustadores; convivemos com todos
os mortos que julgávamos bem finados; encaramos dificuldades
metafísicas e inextricabilidades físicas.

6. Não voltar
Em Aula: sonho com não conseguir voltar para casa, não ir
adiante na viagem, não chegar ao destino; a fealdade, a crueldade,
a estupidez e a cretinice humanas; o sofá de Jung e a monarquia
austríaca; o décimo sétimo dia sem sono de Murakami; as Mulhe-
res de Bukowski e as barrancas traiçoeiras de Uraricoera; Plutão
raptando Prosérpina e o jesuitismo das sensações; liberdade e res-
peito, amizade, ternura e reconhecimento; um amor de vida inteira
e meia dúzia e mais de netos; A cena do ódio de Almada-Negreiros,
poeta sensacionista e Narciso do Egipto; as pedras do Pórtico de
Necronomicon e os Sermões de Antonio Vieira; a introdução de dois
parágrafos do Capítulo 6 de A interpretação dos sonhos de Freud;
Lutero pregando e Atena nascendo armada da cabeça de Zeus; os
cadáveres dos pântanos e o prado do Bode; ser besta e ter bigo-
des; ser, simultaneamente, o homem e a mulher que dão um passeio
à beira-rio; o rinoceronte do livro Educação pelo arquivo de Julio
Groppa; ferro em brasa e o frio do Inferno masdeísta; o antigo ana-
lista te olhando com uma lente estroboscópica; estigmas e unguen-
tos, partidos e revoluções; a infância que era para ser paraíso e a
morte de berço; ser enterrado vivo até os gargumilhos e o tráfico
humano; hordas de palavras e conversas infinitas; o sacrilégio de
querer o poder divino de ser tudo; o Dicionário das ideias feitas em
educação; parágrafos longos e ar insalubre; textos malfeitos e re-
sumos perfeitos; a frase perfeita, a frase perfeita, a frase perfeita
— Ajude-me, Flaubert; as Passagens parisienses de Benjamin; muti-
lação e esfolamento, centauros e cruzados; Game of Thrones; som-

22
bras de pegadas e sobras de estacas; pelos das crinas de cavalo que
entopem a garganta; buracos na parede, incestos, Édipo, Anjo da
Guarda, ouro, prata e sangue da barata; Maldoror e um personagem
próprio de nome Fouror; chefe da Alfândega e avião caindo; fanáti-
cos no cérebro e vermes no coração; ratos e crianças correndo atrás
do Flautista de Hamelin; as sombras de O inominável de Lovecraft;
Zaratustra julgando e escadas ruindo; o sinistro dos pios e o som
de esquadrões de pardais no céu, em A metade sombria de Stephen
King; O poço e o pêndulo de Edgar Alan Poe; os monstros mais as-
sustadores que se escondem em minh’alma; cheiro de sangue e car-
ne em decomposição nos campos de guerras; desabamentos e tiro
perdido no Rio de Janeiro; ser serva na Idade Média; arrancar peles
e cascas, roer unhas, comer cera de ouvido e tufos de cabelo; A mis-
celânea original (banquete de banalidades) de Ben Schott; couves
e esterco, gatos pretos e abutres; palhaços, membros lassos e gran-
des olhos baços; O medo de Al Berto e morrer/viver de medo; no es-
paço incolor mais real do sonho, as caras e os gestos da repartição
heteronímica de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e
Álvaro de Campos; a vida das formas, Cronópios e Famas; Macondo
e Marancagalha; saca-rolha, abridor de lata, furador, chave de pa-
rafuso e pé-de-cabra na gaveta de Molly; Caninos brancos de Jack
London; os sonhos dos corvos e dos lobos de Hilda Hilst; a mãe de
Cosme chamando-o para jantar, em O barão nas árvores de Calvino;
a sala da lareira do apartamento da 27 rue de Fleurus de Gertrude
Stein e Alice Toklas; A volta do parafuso de Henry James; tigres, es-
pelhos e labirintos de Borges; O livro por vir de Blanchot e o derra-
deiro livro a ser lido (ai, ai, ai, que dó, que pena, que lástima); Catatu
de Leminski e O cânone ocidental de Bloom; o repouso das almas
no Paraíso de Turpin e de Rolando; os adormecidos do Eliseu, nas
frescas pradarias que os regatos banham; Virgílio e o seu reino de
simulacros, sede do sono, das sombras e da noite adormecedora;
Manifesto do surrealismo de André Breton (o de 1924); O conto da
aia de Margaret Atwood; o panóptico de Bentham e Os sonhos de
Kafka; Perro semihundido e Los caprichos de Goya; touvas, pintalou-
vas e momirratos grilvando sobre o gramilvo de Carroll; drapeados
e costureirinhas, o grito da seda e um alienista muito louco; o so-
nhador de vela de Bachelard; o Canto 17 da Odisséia de Homero; o
antepenúltimo parágrafo de Faulkner da página 154, em O intruso,
tradução de Leonardo Fróes; As tentações de Santo Antão de Flau-
bert; 4321 de Paul Austen; a última tradução de Rubens Figueiredo
de Crime e castigo de Dostoievski; a carcaça velha de Baudelaire e o
Childermas; Manual do dândi, Ao farol e Ética, traduzidos por Tomaz
Tadeu; tropeçar na mesma pedra e brigar outra e outra vez; não ter
sapatos e acordar chorando, não ter pernas e pedir socorro; preces,
litanias, invectivas; reflexão, união, comunidade, coletivo, assem-

23
bleias sem fim; essência, imanência, transcendência; gralha, teixo,
galhos em rendição, gotas de chuva; tulipas e rododendros, Babel
e arquivos; os olhos encobertos e arredondados de William Blake
olhando os Provérbios do Inferno; Moisés sonhando diante da sarça
ardente e a bacia de bronze com cabeça cortada; o beijo, como vés-
pera do escarro, de Augusto dos Anjos; bom senso, bons propósitos,
boas intenções e não conseguir domesticar a raiva; a indignação e
o azinhavre do condor; citações em destaque, aspas e referências; o
forno do fogão de Sylvia Plath no dia 11 de fevereiro de 1963; o dia
11 de setembro de 1973 e Il pleut sur Santiago; a batida professo-
ral de Terence Fletcher do Whiplash; agendas furadas, derrubadas,
assassinadas; a voluta das asas negras das moscas varejeiras, lixo,
escória, veia ruim, tripas furadas, pernas necrosadas, dejeções ver-
des, pólipos de reentrâncias, larvas telúricas de caos, tutanos laza-
rentos, carniças das charqueadas; outras eras, cósmicos segredos e
quilométricas tênias solitárias; gaveta cheia de cadernos de notas
que daria para preencher somente tendo dez vidas; os discursos da
imaginação de Louis Aragon; epitáfios, inventários, listas, ordem e
a reunião de abelhas; a beleza da criação humana; para qualquer
lado, sem dogmatismo; a atualidade do ditado espanhol Cría cuer-
vos y te sacarán los ojos; sol morto, goma úmida, aposentadoria,
morte e desassossego.

7. Onda de fantasias
Uma onda de fantasias se desencadeou com esse convite para
30 almas escreverem seus 21 sonhos em Educação. Fizemos todo
o possível para não perder a orientação e para descobrir caminhos
textuais, inclusive o das desleituras. Estávamos mergulhados, sem
nenhuma ajuda, num mundo totalmente estranho, enigmático e
artificioso, onde tudo parecia difícil e incompreensível. Vivíamos
na tensão extrema da necessidade de escolher aqueles sonhos que
nunca soubemos que critérios usar para selecionar. Tínhamos a im-
pressão de que sete blocos gigantescos de gelo desabavam sobre
o Breviário, quebrando em pedaços EIS AICE. Ou, então, que sete
pombos brancos enormes levavam cada pedaço de EIS AICE para
além dos sete mares, das sete montanhas, das sete florestas e das
casas dos sete anões. Outra hora, eram os sete elementos de EIS
AICE, como partes de fonemas, palavras ou frases, que estavam dis-
postos sobre a tábula smaragdina da lenda alquimista de Trisme-
gisto, com seus dois sóis e uma lua, trazendo, finalmente, a solução
alquímica — a qual, entretanto, não nos era possível alcançar.
Por vezes, o bloco EIS AICE transformava-se em uma alameda
merovíngia de sarcófagos. Quem estaria enterrado ali? Outras ve-
zes, EIS AICE parecia um ninho de caixas chinesas que não termina-

24
vam ou um corredor infindo de espelhos. O Céu, morto de saudade,
não parava de abraçar a Terra e as tempestades se sucediam. Vários
sonhantes sucumbiram nessa luta. Não havia fio condutor. Só tre-
mores físicos e toras mentais espetadas nas cabeças. Sob o limiar
da consciência, tudo era vivo no labor dos sonhos: em sua vivência,
experiência e aprendizagem. Cada um abandonou-se à própria que-
da. Cada um cavou a própria armadilha. E caiu dentro. Escuridão to-
tal. Água gelada alcançava-nos os joelhos. Parecia um transcurso de
sangue. Nele, um escaravelho negro nadava. Na caverna, havia uma
fila de tílias. Tochas, candelabros e archotes surgiam. Tínhamos de
subir degraus de pedra branca, escrupulosamente limpos. Existia,
ainda, um gigante, um espadachim, um bufão cruel, um austero ve-
lhote holandês, um filósofo eminente, um sábio de renome que ves-
tia um casaco Tudor, uma jovem da alta nobreza, uma criada casta e
um tímido e terno adolescente. Todos passavam sob um pórtico que
era fornalha. Sobre o respectivo arco pairava escrito: Palácio das
Aulas Alucinatórias – Templo das Palavras-Pontes Criadoras.
Nisso, a professora, nascida em Antuérpia, Samara van den
Ende bateu a aldrava. Seu perfume era de carvalho. Trazia em uma
mão um jarro de seiva vegetal. Na outra mão carregava um ninho
de pássaros de fogo. De sua bolsa saía vapor sem que houvesse pa-
vio. Seu vestido era feito de sebo, cera e óleo, com cores violentas:
amarelo de girassóis, preto de obsidiana e púrpura de moluscos
do Mediterrâneo. Seus sapatos eram feitos de achas de lenha. Do
seu cabelo pingava um sumo de frutos. Sua boca soltava fagulhas.
Dos seus olhos escapavam faíscas verdes de esmeraldas. A porta
se abriu. Seu rosto se alongava e se afilava num nevoeiro. Shadow,
alguém gritou. Samara ia perdendo a coesão. Arrebentou. Do seu
antigo organismo, pularam cinco jararacas nefastas; dez jaguatiri-
cas silenciosas; nove mil larvas brancas e gordas, delirantemente
inchadas de dejetos e de podridão; cinco mil urubus cobertos de
urina e de vômito; e mais de cinquenta mil borboletas da espécie
Niphanda fusca, em busca de ninhos alheios para colocar seus ovos.
E cair fora.

Que sonhos...Eu não sei se sonhei...


Que naus partiram, para onde?
(Álvaro de Campos)

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CURRÍCULO

EIS
espaço
imagem
signo

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E
espaço

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Cristiano Bedin da Costa

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Espaço do professonhar
Fabiano Neu

D
e um modo quase proustiano, durante muito tempo, costu-
mava deitar-me cedo. Em uma espécie de rito de acrisola-
mento, curvava-me sob a minha própria concha e obriga-
va-me ao exercício excessivo de fazer nada. Uma prática radical de
ócio diligente, por assim dizer. Medida propedêutica de preparação
do terreno dos sonhos de Professor. O ato de fazer nada pode mui-
to bem ser confundido e reduzido ao de não fazer nada; todavia,
há entre os dois tipos uma diferença significativa na qualidade da
atenção (aplicação do espírito) despendida; por isso, a necessidade
primeira é, obviamente, a de tomar tento. E não há tarefa mais ár-
dua do que a de uma atenção que dá conta de si.
No não fazer nada, a atenção é colocada passivamente à mercê
de elementos de uma história pessoal, à facilidade dos traços mais
próximos e reconhecíveis, identificando-se assim com as divaga-
ções familiares que emergem e orbitam na troposfera subjetiva.
Nesse âmbito, não há quase diferenciação entre uma coisa qualquer
e sua imagem mental — sendo esta mediadora daquela — e prati-
camente todo estímulo externo vem colado a uma resposta auto-
mática, e por isso mesmo, apaziguadora. O não fazer nada continua
sendo parte do negócio (nec otium, negação do ócio), pois está no
mesmo registro e obedece a mesma lógica de utilidade.
Por outro lado, o ato vigoroso e incessante de fazer nada
empenha-se na expressão de um vazio potencial — prática essa
que é diversa e até mesmo oposta à vontade de nada nietzschiana
— sendo esse vazio um tipo de Ungrund infundado, anterior às
formas e transbordante de vontade de potência. Separarás a terra
do fogo, o sutil do espesso, suavemente, com grande engenho, dizia
a Tábua de Hermes. Nesse procedimento, a atenção ativamente
descola-se da identificação naturalizada — algo que, na maioria
dos casos, ocorre de um modo acidental —, separa-se e distancia-
-se das imagens pessoais e dos pensamentos de boa vontade e
observa-os de longe, como resíduos de consciência. Desatrela o
ato de perceber da imagem das coisas percebidas. Dessa forma, na
medida do afastamento entre a atenção errante e a densidade ob-
jetiva — que observada de longe mostra-se informe — instaura-se
um espaço liso, de distância não-métrica e de extrema plasticida-
de. Espaço de criação, campo do sonhar ativo.
Tal operação de ócio aplicado, que integra a arte do professo-
nhar — da qual tratarei brevemente, no final deste escrito — me
veio a partir da experimentação de três sonhos estrangeiros, ou

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seja, sonhos que não pertencem à configuração onírica ordinária
— posto que não resultam de uma atenção cativa — e nos quais
persiste, de um modo veemente, a presença de micro abismos não-
-reconhecidos (Unerkannte) que retornam diferença.
Fernando Pessoa, poeta-magista e sonhador contumaz, por
intermédio de Bernardo Soares, um de seus outramentos, dizia,
como quem revela uma fórmula mágica, que para realizar um so-
nho é preciso esquecê-lo, distrair dele a atenção. Por isso realizar é
não realizar. Portanto, a preparação onírica exige uma mudança
de tração que amplie esse espaço sub-representativo imanente e,
como efeito, crie condições para a eclosão de sonhos de uma outra
esfera. Esfera essa, que apesar de estar sempre presente, encon-
tra-se inacessível, pois — ironicamente — passamos o tempo de
uma vida sentados sobre ela, buscando-a como imagem fora dela
mesma, como quem faz odes a um silêncio que sempre se furta ao
canto a ele endereçado.
Os sonhos estrangeiros são contados nas linhas que se seguem.

Primeiro sonho: O ouroboros de Apolônio.


Disparador possível: Morte de um espírito familiar.
Descrição aproximada: Encontrava-me em uma paisagem pla-
na, semelhante a um deserto cinza e sem dunas. A diferença entre
o céu e a terra era evidenciada apenas pela mudança de tonalidade
que marcava aquilo que, aparentemente, seria o horizonte. Acima,
pairavam dois astros, que presumi se tratarem do sol e da lua, mas
bem maiores do que de costume, talvez mais próximos. Fixar o
olhar sobre eles e acompanhar a lentidão de seus movimentos fina-
mente sincronizados, acarretava em meu corpo sonhador uma sen-
sação desconfortável de cócegas na região do plexo solar, de modo
que a maneira mais adequada de os observar era de soslaio. A lu-
minosidade do ambiente tinha tons de um lusco-fusco crepuscular.
Notei à minha esquerda, à distância de 10 côvados, o surgimento
repentino de um homem de barbas brancas, seminu, enrolado ape-
nas em um velho manto de lã fina, que sem dizer palavra, lançou um
pequeno livro aos meus pés. Sem que precisasse olhar para baixo, a
imagem do livro apareceu no meu campo de visão. Na capa, de cor
verde-esmeralda, estava escrito em tinta prateada: Nuctemeron, do
Professor Apolônio de Tiana. O livro abriu-se na parte intitulada de
Sexta Hora e, com um sobressalto, comecei a ler involuntariamente,
em voz alta: O espírito permanece imóvel; vê os monstros infernais
caminharem contra ele e não se atemoriza. Eu ouvia a minha voz
como se viesse de fora, como se ricocheteasse naqueles astros tão
próximos e retornasse como eco, que também causavam vibrações
em meu abdômen. O livro então fechou-se e desapareceu de minha

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vista como fumaça. O homem afastou-se lentamente e deitou-se no
chão, arcando-se em semicírculo e cobrindo-se inteiramente com o
manto, que agora brilhava. Uma ponta nos pés e a outra na cabeça,
tomando a forma de um ouroboros, a serpente que morde a própria
cauda. A forma flutuou e diminuiu de tamanho à medida que subia;
assim que tomou sua posição nas alturas, exatamente entre os as-
tros que pareciam com o sol e a lua, girou em sentido anti-horário
de uma maneira extremamente precisa — como se estivesse en-
caixada a algum eixo invisível — até atingir uma velocidade verti-
ginosa que provocou um efeito devastador em minha consciência.
Era como se minha existência estivesse sendo sugada para o centro
daquele vórtex, sem possibilidade alguma de retorno.
Então, fui sacudido pelo medo e assim despertei.

Segundo sonho: Uma Aula na cabeça.


Disparador possível: Embriaguez com o espírito da Artemisia
Absinthium. Ósculos da Fada Verde.
Descrição aproximada: Prostrado em uma poltrona de camur-
ça, diante de uma janela imensa, da qual era possível observar a
garoa que batia no vidro grosso, conversava ao telefone com um
douto em Patafísica Aplicada, enquanto fazia rabiscos ao acaso em
um pequeno bloco de notas amarelo. Havia uma disposição fleu-
mática nas coisas; uma mornidão uterina que ensejava o desejo de
adormecer no interior do sono e de sonhar dentro do sonho, ainda
que isso pudesse significar algum tipo de morte. Minha atenção di-
vidia-se entre os movimentos e sons da chuva, os rabiscos ao léu, a
languidez do ambiente e a voz hipnótica do homem ao telefone, que
colocava forçosamente uma ênfase sibilante na pronúncia dos esses.
Era como se, em decorrência de um quebrantamento, os fragmen-
tos de atenção ordinária estivessem sendo sugados para a órbita
dos respectivos interesses, de maneira a abrir um espaço central,
dando vazão a um segundo tipo de atenção, inquebrantável, por
sua vez. O douto expunha a tese de que havia uma Aula na cabe-
ça, localizada mais precisamente no centro do meridiano cerebral.
Não era uma informação nova, pois constava, ainda que timidamen-
te, nos alfarrábios antigos de neuroanatomia; mas o fato era que
ninguém dava muita importância ao pormenor. Porém, para meu
amigo patafísico, tratava-se de um achado excepcional para o cam-
po das soluções imaginárias. Principalmente pela vizinhança que a
Aula tinha com glândula pineal; a mesma que Descartes dizia ser o
assento da alma — ponto de conjunção entre corpo e espírito, pro-
dutor de uma totalidade indiscernível — e que as filosofias orien-
tais chamavam de terceiro olho, Ajna Chakra, responsável por um
tipo de visão intuitiva, própria de um empirismo transcendental.

41
Mas o que mais deixava o meu interlocutor entusiasmado, era o
fato de que todo professor tinha uma aula na cabeça, mas essa
Aula não era um modelo, nem uma forma ou imagem fixa, nem
algum tipo de substância estável; mas tratava-se de um forame,
uma abertura arquetípica — com alguma ligação inaudita com o
pátio (αυλή) grego —, um espaço vazio intersticial, afirmador de
uma imanência completa entre os dois polos de uma unidade du-
plamente organizada. O seu aspecto objetivo e funcional na cons-
tituição anatômica era secundário; o que deveras importava era
a sua potencialidade como espaço de criação. Algo em mim sabia
que aquilo que a voz no telefone falava, dizia respeito à virtualida-
de espaço-temporal que eu estava experimentando, e me assustei,
como se estivesse sendo pego em um flagrante delito.
Tentei falar, mas não conseguia emitir nenhum som, então
imergi em profundidades onde a memória não chega.

Terceiro sonho: O nome perdido.


Disparador possível: A sincronicidade de um encontro fortuito.
Descrição aproximada: Deparava-me com uma carta estranha
ao restante dos objetos em cima da escrivaninha. Parece que sem-
pre estivera ali e que só agora eu conseguia perceber. De fato, no
sonho todos os elementos da cena eram-me familiares: a escriva-
ninha do tipo Xerife, com tampo deslizante e escaninhos diversos,
que exalava um cheiro de jacarandá; a datilografadora Underwood
preta, com detalhes em dourado e teclas desgastadas pelo uso —
faltando a barra de espaço; a caneca em peltre, com fundo de vidro,
que trazia resquícios de cerveja escura; e a metade de uma concha
de nautilus, com uma das extremidades quebrada e um pequeno
papel amarelo, dobrado, delicadamente encaixado em um dos re-
ceptáculos de madrepérola que se formavam entre as espiras. Fa-
miliaridade que desvaneceu-se logo ao despertar. A carta, porém,
era desconhecida ao sonho. O envelope, de aparência envelheci-
da, apresentava apenas um lacre de cera vermelha, autenticado
por um selo cujo símbolo lembrava a concha de nautilus pousada
na escrivaninha a minha frente. Enquanto os detalhes do cenário
eram nítidos — eu poderia perder-me rastreando com olhar tátil,
a concavidade de uma tecla da máquina de escrever —, o conteúdo
da missiva era de difícil apreensão. Havia um esfumaçamento, não
na carta, mas em minha leitura, no contato dos olhos sonhadores
com a matéria escrita. Como um trabalho de Sísifo, que rolava uma
pedra de mármore até quase atingir o cume de uma montanha, só
para vê-la escapar de suas mãos e retornar ao ponto de partida —
para assim ter de repetir todo o fastidioso processo ad infinitum —,
li e reli o texto incontáveis vezes, e a cada vez que chegava ao final

42
era obrigado a retomar, pois tudo escapava. Extremamente fatiga-
do das tentativas infrutíferas, larguei a carta sobre a escrivaninha
e impulsivamente peguei o papel amarelo dobrado na concha. Ao
abri-lo, constatei que era um esclarecimento, em poucas palavras,
do conteúdo inacessível da carta. O bilhete, que tinha a minha pró-
pria letra (ou que reconhecia como minha no âmbito do sonho),
dizia que se tratava de uma carta-convite para a escrita do capítulo
de um breviário sacrílego — pois se apropriava tradutoriamente das
coisas canônicas —, assinada por Salamandra, que carregava essa al-
cunha porque teria sido engendrada pela queima de um fogo aceso
no mesmo lugar por sete anos consecutivos, em conformidade com
o que dizem os comentadores cabalistas do Talmud e do Midrash. A
solicitação era de que fossem escritas sete páginas de conteúdo oní-
rico — nenhuma a mais e nenhuma a menos — acerca dos elementos
constituintes do nome de (?), portador de um enigma que, a despeito
de ser indecifrável, deveria ser invariavelmente decifrado.
Fui tomado por uma sensação de queda e, de chofre, acordei.

É prudente esquivar-se de medir os sentidos dos sonhos es-


trangeiros com a régua de sistemas interpretativos aprioristas
pertencentes a uma lógica de vigília, sob pena de um aplacamento
redutor de algo que é móbil e mobilizador e que se furta a todo
tipo de captura. Uma vez que tais sonhos outros não estão ancora-
dos na pessoa (sedimento consciente) do corpo sonhador, de pouco
ou nada servem as associações entre a carga imagética onírica e o
emaranhado subjetivo, pois os elementos visuais funcionam como
membros que se movem a partir de um centro de gravidade — se-
melhante ao que ocorre com as marionetes dançarinas de Kleist
— que, por sua vez, é vazio de sentidos prévios. Importam, então,
os micro abismos supurantes, os pontículos de falha na malha, as
pequenas rasgaduras no guarda-sol, que são como vórtices que
mantém em movimento o círculo de sortilégio do sonho em meio
ao cotidiano desperto, fazendo com que o desjejum seja posterga-
do indefinidamente para que, estando acordado, se possa falar do
sonho como se falasse de dentro do sono, tal como em Walter Benja-
min. Assim, o terreno de um sonho estrangeiro é marcado por uma
topologia de virtualidades intensivas, que não significam, mas que
são promotoras de impossibilidades de sentido.
Os três sonhos que engendraram as descrições aproximadas
tinham como traço comum uma potência de duração sensível. A vi-
vacidade dos detalhes, e principalmente as sensações hápticas, cos-
tumavam vir à tona sempre que evocadas. A impressão de vertigem
provocada pela velocidade arrebatadora do ouroboros; a indiscer-
nibilidade da carta, assim como a lacuna lethologica que impedia a
apreensão do nome, objeto do breviário — sensação inquietante da

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iminência de um desvelamento de algo que era familiar e estranho
ao mesmo tempo e que nunca ocorria; e a experimentação espaço-
-temporal da Aula estavam presentes como micro abismos irredutí-
veis e insondáveis e eram de uma realidade inconteste.
Estavam relacionados aos sonhos estrangeiros, eventos for-
tuitos que, de alguma forma, produziram quebras na linearidade
cotidiana e atuaram como disparadores possíveis. O choque, a em-
briaguez e o espanto pareciam ter efetuado um deslocamento ini-
cial, imperceptível, despregando a atenção das coisas habituais e
colocando-a em suspensão, de modo a facilitar sua deriva para uma
terra incognita dos sonhos. É esse movimento de despregar e sus-
pender — e consequentemente operar a ampliação de um espaço
de indeterminação, vazio potencial — causado primeiramente por
fatores acidentais, que se pretende reproduzir, propositalmente,
com procedimentos tais como o ato de fazer nada. Investimentos
em esforços de atenção a fim de criar condições de sonhos outros.
Não raro, tais esforços recaem justo naquilo que pretendem evitar,
tamanha a fissura que atrela a atenção a uma finalidade. O resulta-
do acaba sendo uma noite insone, contaminada por uma obsessão.
Fazer nada inclui abstrair o próprio desejo de fazer nada, assim
como a fixação em sonhar. Não se trata de carregar uma imagem do
vazio, mas de uma experimentação do próprio.
Don Juan, o nagual de Castañeda, dizia algo como: torne-se
acessível às potências; trate dos seus sonhos. O ato de fazer nada é
um tratamento que visa o professonhar. A arte do professonhar con-
siste em trazer para o espaço empírico da Aula, o spatium intensivo
do sonho, fazendo da Aula um prolongamento onírico, ponto inde-
terminado de intersecção entre os reinos curriculares e didáticos,
atual e virtual a um só tempo. O onírico, tal como é tomado pelo
professonhar, não é uma fuga do real, mas uma afirmação de que
o real é feito da mesma matéria dos sonhos, visto que, a realidade
apreendida por uma atenção cativa é apenas a ínfima parte de uma
multiplicidade inapreensível. Sonhar é afirmar o mais puro sentido
da terra e dar vazão às coisas do corpo sonhador. Professonhar é
fazer o mesmo, em meio a um arquivo educacional, sendo a Aula o
espaço primitivo de sonho, o pátio aberto entre os limites desse ar-
quivo. O professonhador é aquele que se dá o direito de sonhar e faz
de seu presente na realidade objetiva, uma via de expressão de sua
vontade de potência sonhadora. Atua como uma espécie de xamã
— aquele que enxerga no escuro —, que tem o pé direito no aspec-
to já sonhado do mundo e o esquerdo em um perpétuo a sonhar,
sendo ele mesmo uma passagem. Assim como ele está na Aula, a
Aula está nele e as duas instâncias estão em constante intercâm-
bio, intensiva e extensivamente, não por uma dádiva, mas por um
labor incessante de ampliação de seu espaço de sonho — trabalho

44
que não é da ordem do negócio, ainda que, engenhosamente, possa
estar aliado a ele. O praticante da arte do professonhar é portador
de uma constelação de micro abismos, trazidos de suas incursões
em territórios desconhecidos de sonho. Esses diminutos picos de
intensidade não têm a força imediata de mover o mundo, mas são
como os gritos das borboletas, como a zonas de intraduzibilidade
de um texto, como sussurros de alcova, ou seja, são da ordem dos
pequenos acontecimentos imperceptíveis — como dito por Deleuze a
partir de Nietzsche — , disparadores despretensiosos da formação
de novos mundos, evidências da presença do poético sob o histórico.
Por isso há tanto perigo em uma Aula sonhada a partir de espaços
outros. Por isso, durante muito tempo, costumava deitar-me cedo, de
um modo quase proustiano.

Citas
O texto vale-se de Du côté de chez Swann, em À la recherche du
temps perdu, de Marcel Proust; de Proust e os Signos, de Nietzsche e
a Filosofia, de Diferença e Repetição e de A gargalhada de Nietzsche,
de Gilles Deleuze; da noção de Ungrund, o abismo de pura potencia-
lidade, sem fundamento, escuro e irracional, em Jakob Böhme; da
Tábua de Esmeralda, de Hermes Trismegistus; da noção de Uner-
kannte, desconhecido ou não-reconhecido, atribuída ao umbigo
do sonho, em Sigmund Freud; de Textos Heterônimos, de Fernan-
do Pessoa; do Nuctemeron, de Apolônio de Tiana, encontrado em
Dogma e Ritual da Alta Magia, de Éliphas Lévi e da alusão ao uso
que Apolônio fazia de seu manto para isolar-se da Luz Astral; de
Oeuvres, de René Descartes, org. C. Adam e P. Tannery; de Princi-
ples of Physiological Psychology, de Wilhelm Wundt, traduzido por
Edward Titchener, que chama de Aula a parte anterior do terceiro
ventrículo do cérebro, conectora dos ventrículos laterais, conheci-
da também por Forame de Monro; de Sala de Desjejum, em Rua de
Mão Única, de Walter Benjamin; de Sobre o Teatro de Marionetes, de
Henrich von Kleis; de Wandlungen und Symbole der Libido, de Carl
Jung; de A arte do Sonhar de Carlos Castañeda; do Projeto de Pes-
quisa CNPq A-traduzir o Arquivo em Aula: Sonho Didático e Poética
Curricular, de Sandra Mara Corazza (Sa-lama-ndra) e do Arquivo da
LP 09, Filosofias da Diferença e Educação.

45
46
[∞] Espaço [∑]
infraordinário
Máximo Daniel Lamela Adó

Turning and turning in the widening gyre


The falcon cannot hear the falconer;
(The Second Coming - W. B. Yeats)

magino e sonho. Sonho e imagino a docência


em aula. Nesse gesto, indago o espaço da aula:
Aulæ; αὐλή (aulè). Um espaço de circulação da
linguagem, de linguagens.
Ao indagar o espaço da aula, em sonho, crio uma
instância de tempo-espaço ficcional que me possibi-
lita diferir como professor. Nessa ficção (sonho de O espaço da
professor ou professor de sonho), a noção de ficcio- aula, como
o espaço de
nal entra em causa, pois aí se cria como uma posição um ofício, de
textual e essa, a sua vez, transfigura-se como um es- um fazer, de
garçar de certas fronteiras. uma poética.
Nesse esgarçar de fronteiras — arrisco dizer Pensemos
em Queneau
— a realidade está tecida por ficções. A psicanálise, e o OuLiPo;
por exemplo, como nos diz Piglia em Crítica y fic- mas também
ción, está feita de sonhos, lembranças, citações. Essa em Valéry
forma da ficção cria uma relação específica com a e sua noção
de poética e,
verdade. Trata-se de uma noção de ficção que se também, por
cria em uma zona intermediária, zona onde se cru- que não, em
zam ficção e verdade. Heidegger e a
Zuhandenheit.
Nessa zona, um campo próprio para a ficção se
desfaz; tudo pode ser ficcionalizado, mas, ainda as-
sim, é necessário afirmar que nem tudo é ficção.
Nesse sonho em que indago o espaço da aula
circulam distintas vozes. São vozes do social e, tam-
bém, do imaginário e da imaginação. O que essas vo-
zes criam é um efeito. Um efeito da linguagem. Um
efeito desse espaço de circulação de vozes. Um efeito
que opera o pensamento como fingimento, como ato Sobre o
dubitativo e a instância de uma bifurcação. pensamento
como
Nessas condições de sonho a aula se apresenta
fingimento,
como um espaço propício ao pensamento. Uma vez ver Vilém
nele, em algum momento, uma encruzilhada se faz Flusser:
ver, como pudéssemos dizer com Schlegel, in media A dúvida.
res, é no meio do caminho que começa a filosofia.

47
Penso o espaço da aula como um espaço que provoca micro-
políticas da possessão, algo como um agenciamento entre corpos
humanos e não-humanos.
Quando, como professor, indago o espaço da aula, esse espaço
me indaga com suas matérias formadas e não-formadas. Paredes,
janelas, portas; cadeiras, mesas; dispositivos de interação; cores,
cheiros, luminosidade e temperatura. Corpos de desejo agindo uns
sobre os outros. Estados de humor. Tédio e animação de véspera.
Há, aí, todo um gesto calcado pela hereditariedade, imitação e
tradição de uma aparente função — aluno e professor — com que
me relaciono. Mas, também, tudo aquilo que repele essa posição
como função e, por isso, a faz diferir.
Nesse sonho, esse espaço auleiro se faz: literário, cinematográ-
fico, dançarino, dramático, gráfico; geométrico, estatístico, geográ-
fico, histórico, biológico. Espaço que se cria ao ser habitado e se
habita ao ser criado. Um espaço-percurso.
O espaço que interessa é o comum ao encontro, mas, também,
um espaço que possa colocar-se em ruína ao abrir fissuras nos en-
contros bem-formados, aqueles que se colocam na linha reta da lin-
guagem. Espaço aberto à interrupção da linha reta.
Talvez, o que se sonha, o que se quer sonhar, é o espaço da aula
como um espaço do heterogêneo e dos encontros com o impossível,
pois — como na enumeração disposta por Borges em “El idioma
analítico de John Wilkins”, destacada por Foucault no prefácio de
As palavras e as coisas, — quando o sonho de encontros insólitos
ganha voz, o espaço do impossível se cria no rumor da enumeração,
na disposição, não da vizinhança das coisas, mas do próprio lugar
onde elas possam avizinhar-se.
Sonho o espaço-aula como um lugar de avizinhamentos, um
espaço de ruptura e transgressão pela inserção do descontínuo e da
proliferação de signos provindos de lugares múltiplos.
Talvez, seja a existência desse espaço, como um lugar para o
comum e corriqueiro, o que mais importe. Um lugar em que possa-
mos interrogar o habitual de nossas vidas, o ordinário e o infraor-
dinário de nossas relações como viventes.
Viver, nos disse Georges Perec, é passar de um espaço a ou-
tro fazendo o possível para não esbarrar em nada. Nesse desviar
algo se passa.
Podemos passar mais de um terço de nossas vidas em aulas.
Quando professores essa proporção pode aumentar para dois terços.
Uma boa parte desse tempo se está sentado com um lápis na mão
[hoje seria mais verossímil afirmar: com um smartphone na mão].
O que se pode ver, anotar, ao viver todo esse tempo nesses es-
paços não é da ordem do extraordinário, mas, justamente, daquilo
que habitualmente não tomamos nota. Praticamente nada de es-

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trangeiro, grandioso ou impressionante. Todo esse tempo nesses
espaços nos levaria a extrair, nada mais, que um íntimo revivido.
(A la Proust?)

“Durar é mudar: a duração, o tempo, só existe por e para os


acontecimentos; e o eu, a duração da pessoa, só existe por e para a
série de seus estados interiores.”
“Durer, c’est changer : la durée, le temps, n’est que par et pour
les événement; et le moi, la durée de la personne, n’est que par et
pour la série de ses états intérieurs.”

ver.: G. Tarde, “La variation universel-


le”, texto publicado em 1895 em Essais et
mélanges sociologiques, Lyon/Paris: Storck/
Masson Éditeur, 1895. p. 392.
(versão brasileira com tradução para
o português de Paulo Neves em TARDE, G.
Monadologia e sociologia e outros ensaios.
São Paulo. Cosac Naify, 2007, p. 133-164)

“Não há duas colinas iguais, mas em qualquer lugar da terra a


planície é uma e a mesma.”
“No hay dos cerros iguales, pero en cualquier lugar de la tierra
la llanura es una y la misma.”

ver: J. L. Borges, “A utopia de um ho-


mem que está cansado”, texto publicado
originalmente no livro intitulado El libro de
arena conjunto de contos reunidos e publi-
cados em 1975.
(tradução nossa)

49
“Escrever: tentar meticulosamente reter alguma coisa, fazer
com que algo sobreviva: arrancar alguns fragmentos precisos ao
vazio que continuamente se cava, deixar em alguma parte um sulco,
um rastro, uma marca ou alguns signos.”
“Écrire : essayer méticuleusement de retenir quelque chose,
de faire survivre quelque chose : arracher quelques bribes precises
au vide qui se creuse, laisser, quelque part, un sillon, une trace, une
marque ou quelques signes.”

ver.: G. Perec, Espèces d’espaces : Jour-


nal d’um usager de l’espace. Livro publicado
em 1974 Paris: Éditions Galilée.
(tradução nossa)

Fazer de nossas leituras amorosas um pasticcio. Escrever per-


correndo a linha de um rastro; tremer na linha, tornar-se outro.


ESPAÇO
ESPAÇO ABERTO
ESPAÇO FECHADO
FALTA DE ESPAÇO
ESPAÇO LIVRE
ESPAÇO LISO
ESPAÇO EM BRANCO
ESPAÇO APERTADO
ESPAÇO ESTRIADO
EXCESSO DE ESPAÇO
ESPAÇO ORGANIZADO
ESPAÇO MORTO

50
EM TORNO DO ESPAÇO
ESPAÇO TENSO
ALEGRIA NO ESPAÇO
ESPAÇO OCUPADO
ESPAÇO ILUMINADO
ESPAÇO ÚMIDO
ESPAÇO QUENTE
ESPAÇO ÁRIDO
ESPAÇO FRIO
INTERNAUTAS NO ESPAÇO
ESPAÇO ESCURO
ESPAÇO DECADENTE
ESTUDANTES DO ESPAÇO
ESPAÇO OUTRO
ESPAÇO CONHECIDO
O CHEIRO DO ESPAÇO
OUTROS NO ESPAÇO
ESPAÇO AMIGO
ESPAÇO RETO
ESPAÇO NOSSO
AMONTOADO NO ESPAÇO
ESPAÇO SONORO
ESPAÇO CINEMATOGRÁFICO
ESPAÇO LITERÁRIO
ENCRUZILHADA NO ESPAÇO
ESPAÇO ATIVO
ESPAÇO REACIONÁRIO
FORÇAS DO ESPAÇO
ESPAÇO IMAGINÁRIO
ESPAÇO NOCIVO

51
ESPAÇO PREESCRITO
ESPAÇO ALUGADO
ESPAÇO ARRENDADO
ESPAÇO PERDIDO
SONHO DE ESPAÇO
ESPAÇO VIVIDO
ESPAÇO EXPERIMENTADO
VERTIGINOSO ESPAÇO
ESPAÇO DO SONHO
ESPAÇO DO RASTRO
ESPAÇO DA VIGÍLIA
AS MARGENS DO ESPAÇO
ESPAÇO DO RISCO
ESPAÇO DO INSTANTE
ESPAÇO DO BRILHO
ESPAÇO DO FIM
POÉTICAS DO ESPAÇO
ESPAÇO

Ou, se se prefere:

Uma voz-off: à direita, uma parede; à esquerda, uma parede; ao


fundo, uma parede; defronte, uma parede.
Tela preta. Fim da primeira cena.

***
Uma voz-off: à direita, uma porta; à esquerda, duas janelas; ao
fundo, um relógio; defronte, um quadro-negro.
Tela preta. Fim da segunda cena.

***
Uma voz-off: a quatro passos da porta há uma mesa; a três passos
da mesa uma fileira com oito carteiras escolares; a dois passos da
primeira fileira, outra com oito carteiras escolares; a dois passos da
segunda fileira, outra com oito carteiras escolares; a dois passos da

52
terceira fileira, outra com oito carteiras escolares; a dois passos da
quarta fileira, outra com oito carteiras escolares; a dois passos da
quinta fileira, outra com sete carteiras escolares; a dois passos da
sexta fileira, uma parede.
Tela preta. Fim da terceira cena.

***
Uma voz-off: No espaço da oitava carteira da sexta fileira, no chão,
há uma folha; nessa folha está desenhada uma porta.
Tela preta. Fim da quarta e última cena.

53
54
I
imagem

55
56
Imagem de escola:
Uhma Mvlier e o sequestro de Oneirante
Ana Carolina Acom
Ester Maria Dreher Heuser

U
hma Mvlier piscou, abriu os olhos, pálpebras pesadas. Aca-
bara de enxergar Oneirante, tem certeza que era ele, preso
em uma redoma enfeitiçada. Estava sem sua máscara e al-
gibeira, mas o reconheceu, era ele mesmo. Pegaram-no outra vez.
Lembra de um passado remoto quando ajudou a libertar o Sonho,
apreendido por uma seita que buscava invocar a Morte e, por enga-
no, sequestraram seu irmão. Estava distraída, seu carro falhou em
uma rua qualquer. Sequer tentou a partida na ignição. Parada, sem
dar a mínima às buzinas e xingamentos provenientes dos carros
que desviavam do seu, pensou na vida. Depois de um suspiro pro-
fundo, sorriu com os olhos ao dar-se conta da imagem seguinte que
lhe passou pela cabeça: sim, posso dizer que inventei uma vida de
professora. Há um tempo havia recuperado a serenidade, pois o que
pensou, pesquisou, escreveu até ali encontrou ressonâncias na viela
do bando. Todos-os-nomes inventados para a docência-pesquisa que
experimentou funcionaram também para outros, de um jeito ou
outro. Longe de ter produzido discípulos, descobriu companhei-
ros altivos e ativos que, com ela, não sem dores, aliviam fardos
do passado e criam tábuas de valores com olhos para o futuro;
rápidos, astutos e sagazes, tipo Odisseu, se recusam a morrer na
praia. Amigos desapegados do que já foi e do que foram, ao ponto
de jogarem fora seus poemas, contos, antigas convicções, opiniões
e planos de ensino para darem lugar a sempre outros didaticá-
rios de criação. Cúmplices inconformados, arrancadores de esta-
cas, vândalos e deformadores de heranças; sonhadores impulsi-
vos que possuem una disperata vitalità para sonhar e alimentar
sonhos coletivos, em bando. Cum panis com quem ela se senta à
mesa e os chama simplesmente de Os que. Os que, de espíritos
ainda não dominados pelo Princípio da Identidade Universal, a
acompanharam até ali, escrileituralmente, na tessitura de sonhos
que criaram muitos Sonhos de Escola, por meio de suas pesquisas
nascidas das fantasias que, como Guia Iniciático, engendram for-
mas e interseccionam vida e escrita, sem fazer com que a obra se
pareça com a vida, mas que a escrita conduza a vida. Sonhos que
não deixaram de, em certa medida, se transformar em Imagem de
Escola, matéria da qual as escolas são feitas, pois um sonho nunca
é só um sonho, muito menos na escola.

57
Uhma está apenas distraída. Não se trata de um sonho des-
perto. Dá-se conta disso quando volta sua atenção ao que acaba de
ver. Não dos ruídos da rua, mas da imagem-mental que lhe veio:
Oneirante, outro nome de Morpheus, o Rei do Sonhar, foi capturado.
Estava explicada a razão para sua insônia. Há noites não conseguia
ceder à hipnose do sonho. Há dias e noites insone, ela reparou que
o silêncio nas ruas aumentava. Era uma espécie de paz incômoda.
Aquela mesma paz a qual, certa feita, um gaúcho de nietzschiano
bigode se referiu ao se opor a um vendilhão da res publica. Uhma
começou a entender as razões de alguns corpos alquebrados, ou-
tros trêmulos, e mentes distorcidas que agora cruzavam a rua, num
andar sonambúlico, caírem adormecidos sobre seu carro enquan-
to outros, sem rumo, seguiam ziguezagueantes. Algo estranho se
passava. Lembrou-se de Constantin Von Economo, o psiquiatra que,
primeiro, no início do século passado, descreveu os sintomas da
misteriosa Doença do sono, a Encephalites lethargica, que rapida-
mente se espalhou pelo mundo e vitimou milhares de pessoas. As
pessoas adormeciam e não acordavam mais, presas em pesadelos
ou sonhos ininterruptos.
Imediatamente foi como se um ecrã baixasse frente aos seus
olhos e as imagens de horror fossem projetadas: a menina cana-
dense Ellie cai nos braços de Arthur, seu pai, e nunca mais desperta.
Assustado demais para dormir, Arthur soluça a fim de se manter
acordado até amanhecer, consegue ficar desperto, mas nada fala;
supersticiosos dizem que ele é um zumbi. O jamaicano Daniel Bus-
tamonte se aconchega em um canto para voltar ao seu sonho fa-
vorito; caminha sobre nuvens de algodão, mas, dessa vez, elas são
inconsistentes, frágeis, menos reais e, de repente, deixam de existir:
está condenado a cair; nunca mais alcançará a escadaria do castelo,
acima das montanhas azuis, que costumava visitar. Stefan Wasser-
man, soldado francês atormentado, não cede sequer para a mor-
fina; os médicos que acreditavam já terem visto todos os tipos de
neurose provocada pela guerra se perguntam: quanto tempo um
jovem pode se manter desperto? Principalmente se os pesadelos
se manifestam em plena luz do dia? Alguma coisa dentro de Stefan
morreu. No Brasil, anciãos despertos aguardam a morte como se
esperassem uma velha amiga. Dormindo ou acordada, cada vítima
está presa dentro de seu próprio corpo.
Com temor, Uhma fecha e abre seus olhos rapidamente para
espantar as imagens-movimento de sua mente. Não quer correr o
risco de ter o mesmo destino das vidas minúsculas históricas que,
por instantes, lhe fazem companhia. Quer crer que isso não mais
ocorrerá, pois faz muito tempo que os sintomas da epidemia mais
misteriosa da história não são notados. Cética como é, no entanto,
sabe que apesar de a causa ter sido descoberta recentemente, não

58
superestima a ciência nem subestima a natureza. Escolhe a epoché.
Algo mais urgente lhe ocorre, na forma de um sussurro ao ouvido:
“sonhos alheios são perigosos; o sonho daqueles que sonham diz
respeito aos que não sonha. Desconfie do sonho do outro, porque
se você for apanhada nele, estará em maus lençóis, ele é sempre
devorador. Sonhe você”.
Uhma volta o olhar aos dois rapazes deitados sobre o capô
de seu carro. Estão em sono profundo, no entanto agem. Ora fazem
gestos de artilheiros com sarcasmo, ora tremulam seus corpos
como se estivessem sendo alvejados, com o horror estampado nas
faces. O velho com a cara achatada sobre o para-brisa é a própria
expressão da dor; já o garoto que lhe dá a mão ri um riso vingativo.
Uhma reconhece o velho, por baixo daquelas rugas está o rosto do
professor mais abusivo e autoritário da escola em que ela fez ma-
gistério. A professora precisa sair dali, vira a chave na ignição, o
motor volta à vida e do rádio vem a música que conta a história de
Pink, o menino que não tolera ser mais um tijolo no muro, que, com
seus colegas, ateia fogo na escola e lança seu professor às chamas.
Enquanto cantarola na tentativa de criar um centro estável e calmo
no seio do caos lá de fora, lhe ocorre que as gentes que lhe fazem
companhia podem estar sonhando sonhos devoradores capazes de
engolir tudo de potente que sonhou, com Os que, para a educação
e para as escolas do mundo. Este lugar onde os mais velhos e res-
ponsáveis pelo mundo recebem os novos, os recém-chegados que
ainda não sabem o que é o mundo, e sonham juntos, criando pos-
sibilidades até então impensadas, com as matérias de seus sonhos.
Ao menos ela imaginava, e sonhava, que é isso uma escola. Essa era
ao menos parte da Imagem de Escola que tinha, independentemen-
te que ela funcionasse embaixo de um pé de mangueira ou numa
construção de pau-a-pique e chão batido ou em modernos prédios
tomados de tecnologias. Afinal de contas, importa acima de tudo
o que se passa no encontro entre uma professora, um ou muitos
alunos e alunas, em aula.
Sabe ela que, desde a universalização da escola, adultos e in-
fantes, ao longo de suas vidas, são acompanhados de algo que res-
soa como um eterno déjà vu: entrar em uma escola, em uma sala de
aula, não importa o lugar, é algo que nos pertence, constituído de
memórias e impressões nebulosas, claras, terríveis, maravilhosas.
Amores, inimigos de morte, melhores amigos, tragédias, alegrias
povoam este mundo de sentimentos que nos habita. Talvez, por
isso, nunca saiamos de verdade da escola. Sonhamos com a escola
quando a frequentamos ou quando há muito já tenhamos passado
por ela. Vez ou outra ela é cenário de pesadelos ou de toda sorte de
acontecimentos. Uma sala de aula mistura passado, presente e futu-
ro, e esta parece sua condição própria. Uhma divaga: como em um

59
filme de Alain Resnais vê o passado que se refere a um antigo pre-
sente obscuro e um futuro que consiste em incertezas. O presente
coexiste com um passado e futuro e todos fluem a partir da memó-
ria convertida em estado onírico. A relação da imagem atual com
as imagens-lembrança toma forma de flash-back. Percepção de um
circuito que vai do presente ao passado, depois nos traz de volta,
retornando a um estado cada vez mais profundo, mais inexorável
da situação presente. O movimento aberrante da memória de Uhma
revela a escola como tempo, trazendo infinitas possibilidades não
mais definidas apenas pela experiência, mas pelo fluxo mental que
resulta em movimento das memórias ou sonhos. Trata-se do pró-
prio movimento do mundo.
A sombra de uma lembrança aterradora faz Uhma se encher
de pavor. Infelizmente não se tratava de um mero sonho de alguém,
mas de um sonho coletivo que se realizou. Uhma lembra da escola
de Suzano. Uma chacina escolar é um pesadelo nefasto e sanguiná-
rio, o qual não parece verossímil e impossível de ganhar existência
fora do cinema. É como o mundo tétrico dos sonhos vazando pe-
sadelos abomináveis. Comprometendo assim, inclusive, o sono; le-
vando crianças, jovens e adultos a terem medo de dormir e sonhar,
tornando a vigília exaustiva e o sonho abominável. Ao pensar nisso,
Uhma se dá conta do sentido que pode ter a ideia de que o sonho é
uma terrível vontade de potência, de que cada um de nós é mais ou
menos vítima do sonho dos outros e se pergunta: como e onde es-
tão meus colegas professores? Não aqueles do Exército da Salvação,
os que habitam as fortalezas da bem-Aventurança Educacional, que
protegem a Boa-Vontade do Educador e que ensinam a Verdade.
Desses ela não quer saber, há muito. Deseja que eles partam para
o Céu, onde nada acontece, de mãos dadas com aqueles que enxo-
valham a educação e mantêm as escolas em condições indigentes.
Quer saber dos colegas professores infernais que habitam o olho
do furacão que é a multiplicidade da educação, com o seu caráter
transdisciplinar, transcultural e transpensamental; daqueles que,
frente ao escárnio de ministros e governantes, não dão um passo
atrás da convicção de sua elevada importância civilizatória que vi-
taliza tudo aquilo que permaneceria como letra morta nas biblio-
tecas, não fosse a tarefa transcriadora de cada um dar vitalidade
e ar fresco à herança que recebeu e passa adiante, transformada e
enriquecida com suas próprias nuances.
Uhma fecha os olhos e os abre no mesmo segundo, mas a ima-
gem que lhe surge parece durar horas, dias, não se sabe... Profes-
sores, em movimento transnacional, se mobilizam para encontrar
Oneirante. Sabem eles que sua profissão, o presente e o futuro
da Escola estão ameaçados se seus esforços fracassarem. Entre a
turba, Os que; iam aqueles que semeiam devaneios em campos de

60
espanto, ferozes e mais vivazes pela provocação e excitação com o
iminente retorno do Rei dos Sonhos.
A visão funciona como um calmante mais eficaz. Confirma que
com Uhma Mvlier muitos remam juntos no mesmo barco, numa
coletividade amiga, não porque se amam, mas porque partilham
alguma coisa, maquinam algo, uma nova estilística para atuar em
educação. Inventam uma docência-pesquisa capaz de produzir so-
nhos, de afirmar a sua singularidade e potência de autoria a partir
de EIS (Espaço, Imagem e Signos) AICE (Autor, Infantil, Currículo,
Educador), arquivo real, concreto e singular, constituinte da docên-
cia e da pesquisa, sujeito a traduções didáticas e curriculares que só
valem se forem atualizadas em nosso tempo, como um manancial
vivo de transcriação, com e para os alunos que vêm. Alunos que não
podem ser escolhidos, mas todos, e qualquer um, incluídos; com os
quais EIS AICE atua, local e relacionalmente, sem esperar por uma
realidade preexistente nem por um aluno ideal.
Os mesmos colegas professores de Uhma que, por meio do
arquivo EIS AICE, transcriam e produzem um intertexto a cada
vez que traduzem a arte, a ciência e a filosofia, expressando a
tradição, herdada e modificada por eles, passando-a adiante
por meio do currículo e da didática, agora se organizam para
encontrar Oneirante. Sabem que sem o Rei do Sonhar a Imagem
da Escola está condenada a desaparecer, isto porque ela é es-
paço onírico que, em mãos despóticas, pode tornar-se frágil e
esfacelar-se; pode vir a ser o espaço de pesadelos, chacinas, au-
toritarismo e vigilância. Ao menos aquela Imagem que produziu
uma rede complexa de outras imagens de escolas que não cabe
na Base Nacional Comum Curricular, nem pode ser medida pelas
provas e índices nacionais, porque não está em parte alguma,
mas presentifica ausências em presença etéreas.
Para Uhma, a escola é, por excelência, espaço de sonhos; o
professor, por sua vez, tal qual o sonho, transcria a vida, o mundo;
transmuta realidade em poesias, em números, em ciências... Sua
função é traduzir transcriadoramente. Sua criação é seu sonhar. To-
lher um professor é interromper sonhos, destruí-los. Não significa
apenas eliminar alunos-sonhadores, delírios juvenis, mas bagun-
çar os sonhos do mundo, fazer ruir uma sociedade naquilo que ela
tem de mais revolucionário, pois na Imagem de Escola que Uhma,
com Os que, delineia, está a capacidade de abertura e de criação dos
professores, as quais ajudam a combater os conservadorismos e os
retrocessos que nos assombram, deixando o futuro aberto para in-
finitas possibilidades e combinações a serem produzidas pelos alu-
nos que com eles transcriam. Combinações que produzirão novas
imagens alimentadas por aquela Imagem de Escola que dá lugar a
todos os elementos constituintes do mundo: ar, água, fogo e terra.

61
A docência-pesquisa está costurada ao Mestre dos Sonhos, li-
bertá-lo estava longe de ser um ato salvacionista ou heroico. Assim
como a educação, a escola e o Sonho não têm de serem salvos. A es-
cola é isso, espaço por si mesmo oneirante, onde o professor coloca
fogo, transgride, compõe métodos improváveis. Sra. Mvlier, em sua
docência-oneirante provocava estados anômalos, sua transcriação,
como o sonho, não se fazia por metáforas, mas em anamorfoses in-
constantes, transbordamento do real.
Uhma Mvlier não sabe por quanto tempo permaneceu em es-
tado dormente, ou se foi uma insônia perturbada por alucinações,
ou ainda uma pavorosa vigília. Mas ao escutar o sinal da escola,
acordou, estava em aula. Soube, na hora, que o Rei dos Sonhos re-
tornara ao seu castelo. Ela viu, sentia que Oneirante estava lá, quan-
do Os que quebraram o feitiço que o aprisionava. Sonhos e pesa-
delos não mais serão estancados, as fronteiras de seus domínios
estão, outra vez, protegidas. Cada sonho será sonhado, os pesadelos
não sairão do controle. Aliviada, concluiu que, outra vez, as pessoas
serão capazes de despertar e não ficarão presas permanentemen-
te em pesadelos. Com Oneirante livre, os sonhos estarão seguros,
seu espaço de fluxo constante, povoado de mistérios e segredos, no
qual pesadelos e loucuras rondam soltos; ele voltou a arbitrar esse
mundo que de alguma forma é contíguo às mentes sonhantes de
quem o habita.
O mundo dos sonhos é infinito, apesar das múltiplas forças que
tentam limitá-lo por todos os lados. A garantia de que os sonhos
seguirão seus fluxos não é movimento de salvação, mas manter o
espaço escolar como o topos, por excelência, onírico, composto de
paisagens reais, distorcidas, desfocadas, e em constante mutação,
dá a posse da aula ao professor-transcriador que canibaliza auto-
res, matérias, poesias e regurgita didáticas a fim de inventar possí-
veis. Uhma olhou para a parede rabiscada de desenhos e pichações,
lhe chamou atenção uma pequena anotação: “Como Oneirante, uma
professora transforma sonho em matéria, força cada elemento a se
traduzir em formas que podemos reconhecer neste mundo”.

Inspirações, citações e referências


Em sua maior parte, este texto está constituído de palavras,
pensamentos e ideias que recebemos de herança de alguns de To-
dos-os-nomes que dizem daquilo que nos constitui, sobretudo ao
que se refere a fazer docência-pesquisa a partir do que, há um tem-
po, recebeu o nome de arquivo EIS AICE, o qual cobre a produção do
grupo de pesquisa Dif – artistagens, fabulações, variações (desde
2002) e da Rede de Pesquisa Escrileituras da diferença em filosofia-
-educação (desde 2015). É preciso dizer que especialmente aquilo

62
que advém de Sandra Corazza, outro nome de Uhma Mvlier (“O M,
de mulher má, o mal dos males; o V, vaidade das vaidades; o L, de
luxúria das luxúrias; o I, ira das iras; o E, das Erínias, de fúria das
fúrias; o R, de ruína dos reinos” — isso no sentido mais afirmativo
possível de cada um dos termos que compõe seu sobrenome, o qual
talvez seja alcançado pela leitura de Para uma Filosofia do Inferno
da Educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins, de Sandra
Corazza, 2002, Editora Autêntica) é a principal força que nos desa-
fia a criar algo que tira a nós e o pensamento educacional dos gon-
zos. O que ela escreve, diz, mostra, faz, encoraja, grita, convida, em-
purra, puxa (e não arrasta, porque ela não convive com cadáveres)
é, para nós, matéria de muitos de nossos sonhos. Portanto, como
nos ensina O Bardo, somos feitas também de Uhma Mvlier-Sandra
Corazza. Além do referido livro, usamos outros da autora: O que se
transcria em educação?, UFRGS, 2013; Didaticário de criação: aula
cheia, UFRGS, 2012; Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-
-educação, UFRGS/Sulina, 2008; Uma vida de professora, UNIJUÍ,
2006, Linhas de escrita, Autêntica, 2004, este com Tomaz Tadeu e
Paola Zordan. Além dos artigos “A educação enxovalhada e o pão”,
2019, no prelo; “Uma introdução aos sete conceitos fundamentais
da docência-pesquisa tradutória: arquivo EIS AICE. In: Pro-Posições,
V. 29, N. 3 (88), set./dez. 2018. De Deleuze usamos noções de sonho
e imagem-sonho constantes em Cinema II - A Imagem-Tempo, pela
Brasiliense, 1990 e Dois regimes de loucos, pela editora 34, 2018.
O disparador para a história do rapto do Rei do Sonhar e a Doença
do sono é a HQ de Neil Gaiman: Sandman, v. 1. Panini Books, 2010
(edição definitiva). Sobre a misteriosa epidemia do início do século
XX pesquisamos em vários sites e dicionários de Medicina, os quais
confirmam a sua ocorrência e complexidade.

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64
A pele abotoada no ventre da noite boceja
Marina dos Reis

I
magem é um rosto e atende por duas vistas: a minha, a qual
vê uma outra que me avista e que me persegue. É tentativa
do corpo em imobilizar em um formato o encontro com o que
lhe apavora. O olhar é mimese opaca das percepções em turbulên-
cia. Enxerga se há tremores mínimos da retina ou do movimento
a se ver. Toda contemplação precisa criar a sua duração, isto é, o
espaço onde todas as coisas repousam, onde a beleza adormecida
possa desenvolver-se num sorriso uno-movente, num estilhaçado
de retalhos para fora. Com ou sem gritos de ataque, a imagem-
-tempo, do tipo que ocorre nos sonhos lembrados analiticamente,
liquida-se perfazendo o atalho à viação mais sensitiva. Tal imagem
carreia os afectos de mundo ao centro nevrálgico das dores do cor-
po — colmata-se na imanência instantânea, a qual, pelas voltas da
ínsula, convulsiona-se e emana a imagem novamente. Arquipélagos
circunvoluptuosos da materialidade elétrica.
A melancolia anamórfica da imaginação na revelação interna
efetiva-se negando aquilo que as originou, num jogo corta-luz que
dá a ver o que se vê, o nigra cerebral aciona em milissegundos os
circuitos, em especial da atenção e da visão. Os espaços precisam de
tempo. Gatilhos de arranque, a imagem. A Imagem-sonho, também
seriegênica de clichês onirofílicos, é quase-forma que se descola da
perspectiva sequencial tendenciosa — meu mundo nasce e mor-
re diante de mim, a meu modo, slides deslizam entre si, numa sala
escura. Atenta, que estamos aqui: tu, tua forma e a minha mente,
self. Vejo-te em brilho, desconexos espaços que mudam meu tempo,
porque há movimento. E união. Dimensão tempestiva que degrada
quaisquer formas icônicas, pois o gatilho infinitesimal do incons-
ciente detesta a linearidade. Do pensamento onírico, que se assu-
me assim, essas ações minam matéria real, para aprofundarem-
-se em relações com aquilo que sonham do corpo, topologia dos
orgânicos, imagens-topo não resignadas pela geometria piramidal
que ilude. A sua expressão é poesia dobrada, é química de criação,
revelação e apagamento. Essas dimensões são espaços que a cons-
ciência paradoxal abre à uma planificação do entendimento, que
cria também por isso um tempo e neles não-lugares para a rein-
terpretação da Vontade. O poeta sonhador anuncia imediatamente
suas transcriações ao deitar imagens no papel, paisagens-âncoras
que compelem sucessivos caminhos ao leitor-marinheiro, doa seu
pré-pensamento sob as cinzas de um fogo psíquico. Eu sou o fogo,
meu corpo é a escuridão. Um poema sem imagem, é possível? Um

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não-próprio-joyce, ele-uma-falta. Enxerto De-Outrem. Um encontro
poético nunca é menos que morno. Poema é mais que imagem, é
corpo duma humanidade, derramado do intraduzível que sonha.
Sonhar imagens ao poema é a recriação própria do sonho de um
afago involuntário que a poesia, sutilmente, toma para si. O poe-
ma arrasta com sua gravidade onírica as pestanas do leitor a ima-
ginar, e suas imagens poéticas, figuras, são rastejares que o corpo
do leitor redescobre, apaga e recria. Essas fagulhas que só a poesia
causa ao pensamento são exatamente como o início do sono, essa
instalação que se dá pela mínima abertura do corpo, pelo meio, no
umbigo-pomo, a uma condição que não conhece nada além do es-
panto. Essa sensibilidade mínima, irmã do instinto, é um tipo de
estado intermediário entre a fuga (loucura) e a entrada (realidade),
estado no qual deseja-se denominar de inspiração, o ar da combus-
tão sensual de um corpo sem órgãos. Não se trata do jogo binário
da intuição comum de acerto ou erro. O estado poético é capaz de
proporcionar uma suspensão do pensamento pela consciência mas
em limnóides inconscientes borrados, o corpo todo passa a pensar,
em abolição à linguagem da palavra, que a tudo engole e repete. A
língua do poeta nunca aprendeu a falar, mas o inverso: a palavra
segue a boca do poeta, ou a mão, em sonho de tinta. O poeta desa-
prende a cada transcriação para justamente re-criar tudo e outra
vez, condensando e deslocando as vidas e as vontades que poetiza,
inversamente ele as ri e as chora.
Os contornos visuais, morais ou táteis — por mais que fixados
num estabelecido estado — nos autenticam determinado horizonte
da imagem, ou a forma de um objeto, porém estão submetidos ao
nosso ponto de vista, que é sem referências porque é impossível
fixar quaisquer certezas. Nesse horizonte avistado, em suspensão,
há imagem se houver relação entre o que parece ser, a uma dada
distância, e o que é interpretado pelo observador, aquele que quer
ver. Muito perto tudo é grande e quase presencial. A imagem é au-
toral, portanto, uma leitura pictórica anterior se dá em um tempo e
dimensão singulares, em uma abertura individual que tenta confi-
gurar-se no presente, num espaço único, mas impossível. A imagem
é sempre o agora, mas de algo que não está, e precisa relacionar-
-se ao movimento da retina e de outras imagens, ou às interpreta-
ções infinitas do observador. O estático é o fim. O acontecimento é
a vontade de realização do contínuo que existe entre o consciente
e o inconsciente. No sonho sempre há certezas, duvidar pertence
à morte, lápide consistente, não-lugar para onde o poeta afila-se.
A espacialidade é um anseio à imagem; a angústia do corpo
cozinha a própria carne que deseja tocar e ser tocada, no encon-
tro que a imagem também pode representar, ou trazer presença. E,

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antes mesmo de qualquer contato, a projeção do espírito artístico
dá conforto ao contorno imaginado, cria as referências a partir do
próprio pensamento, tipificando e denominando a-partes que se
amontoam entre si para formar uma significação, plano de imagem,
o corpo-vermes-negros que rastejam depois da chuva. Assim uma
existência me pertence. Um descortinar do obscuro self que cria e
destrói possíveis; destrói para recriá-las em satisfação pela repeti-
ção do processo seminal imaginativo. O sonho é luz obscura saída
aos olhos que perspectivam a suspensão atemporal necessária à
criação daquilo que reconhece do corpo. É o corpo que imagina,
entoa barcarola flutuante, em águas femininas que permitem a pe-
netração do novo. A perspectiva fractual das imagens em miríades,
resultantes dessa imaginação ativa, compõe silenciosamente uma
comunicação ao espírito, um não-objeto de ondulações das tonali-
dades afetivas do sonhador, repletas de possibilidades de vida, de
presença, de vir-à-tona.1
A imagem galáctica é um universo restrito aos telescópios,
fantasias de sonho utópico a ver o que jamais de fato poderá ser
visto — e mais uma vez contornada é a luz que nos chega, como
se fôssemos a lamparina, um olho por vez. A imagem é adoração
inconsciente daquilo que somos incapazes de entender. O sonho ab-
sorve essa vontade vibracional do corpo e do espírito para que uma
realidade seja traduzida e não fotocopiada pelo sonhador. O sonho
é sacrifício de imagens conscientes ritualizadas pelo inconsciente,
espaço interno, fruto de nossa hominização. Não é espectral, não
é refletida: a imagem, ou imagens, do sonho, são uma completu-
de fragmentada inapreensível, em desacordo, e real demais. Des-
sa existência antessonho, que é embate de forças-códice do corpo
consigo, uma batalha imunológica entre aquilo que a consciência
moderna julga na vigília e aquilo que se revela do corpo, além da
interpretação linguística, emancipa-se do tipo sonhador. O ritmo
da imagem é dado pela cadência musical do espaço dispositivo em
sonho inconsistente, que modula a produção da imaginação. Ima-
gens resultam desse movimento tubular dançarino tridimensional
ou quadridimensional. Quando sonhamos, somos completos nesses
planos de onirocrítica criadora.
Não se refazem ou se rearranjam as imagens nos sonhos repe-
tidos, nunca será um clone, a repetição é a agonia do corpo à fala;
a cura corrói até que ela seja elaborada, no onírico labor. A feitura
onírica, no entanto, certifica-se de que se trata de um sonho: res-
piramos em seu núcleo, com escafandros. Tal exaustiva função in-
1 ϕαντασíα, tornar-se imagem e acabar-se. O rosto da lua é imagem da Terra
1
nua,ϕαντασíα, tornar-se
quase perfeita, imagem
e ávida e acabar-se.
por destruição. O rosto com
Nasce-se da lua é imagem
a cara para oda Terra
fora.
nua, quase perfeita, e ávida por destruição. Nasce-se com a cara para o fora.

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fluenciará o imaginar, que coordena o corpo imerso no inconscien-
te. Um pesadelo poderá ser resultado do sufocamento do ser, e as
imagens-resto serão de temor, pavor, medo de morrer, imagens que
o sonho persegue para destruí-las, pela angústia da repetição. O Sr.
Alp Liliputius Ephialtes tenta romper a portinhola, mas fica preso
no reflexo da lâmina afiada e apurada pela luz dormente. Contar o
sonho em palavras pode ser uma maneira de diluir o seu caráter de
pesadelo, por isso nos repetimos. Contar é aumentar o sangue do
sonho para nutrir as novas imagem-movimento, os fosfenos da pri-
meira imaginação da pupila. Nos céus com bocas iluminadas, a mãe
láctea inspira fogueiras a queimar os reflexos das águas dos olhos
da nossa extensão animal, em devir-sonar é preciso desligar-se do
julgamento por demais humano. No umbigo, no estômago, o sonho
é a imagem da fome a fome.
As imagens memoradas do sonho são o que lhe autentica?
Restos, vestígios, indícios que estacionam porque fotografados pela
mente sonhadora como uma tentativa de se reconectar à sua pró-
pria velocidade vígil, a imagem-tempo desejosa, para o posterior
restauro de si em toda a sua existência consciente, vertida da ani-
ma, do centro espectador, sendo que cada imagem é compressão
máxima do tempo, uma ficção, uma autoria de mundo. Sonhar é
estabelecer-se sem referências no caos das associações infinitesi-
mais de percepções sutis, pois tudo começa minimamente, mole-
cularmente, do núcleo às direções inapreensíveis. As imagens cap-
turadas, vertidas do excesso da imaginação, são uma tentativa do
inconsciente de estabelecer um plano atual cenográfico e coerente
nesse virtual onírico do caos, a poética surge por tenta emoldurar
o imagético tomado do atemporal e do a-material. Esse cenário é o
que será rememorado pela consciência na vigília, a qual poderá fic-
cionalizar, ou melhor, autoficcionalizar o sonhador, num processo
incessável de individuação artística.
A fluidez veloz do sonho nos surpreende não apenas pelas
não-imagens, todo o corpo que dorme e sonha dramatiza-se, e as
imagens restauradas na vigília, pela consciência que as qualifica,
as quantifica e lhes dá uma sequência que muitas vezes ordena o
sonho diferentemente do sonhado, as reforma, dá forma, enforma,
enfim, julga peças dignas de classificação, mesmo cacos de um vaso
chinês. Criação onirocrítica pelas percepções sentidas e lembradas
pelo corpo, a qual estabelece o mito individual por imagens, mas
também por potências de criação e não por ideias-prontas. Um
cuidado: julgamentos e punições, a ver. Porém, o mundo sonhado,
que modeliza a existência real, é muitas vezes ignorado pelo corpo
acordado pela Besteira, por cair na armadilha de julgar-se cometer
um atentado por contemplar e valorar o primitivo devir-infantil
fantasioso do sonho.

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Imago: Força. Produto. Implica. Substituição. Valores. Imagem.
Impressão. Dobras. Não se repete. Fora.
Imagem-além-vulto corporizada pela aparência do desejo, re-
volutos fragmentos evocados por um eterno hipocondríaco, espíri-
to artístico capaz de permeabilizar-se e de plasmar-se no não-lugar,
nas casinholas precárias colmatadas de barro, ou nas plantações
díspares do território, que se derretem sob as chuvas sazonais.
Imago não-serpente, não-céu. Mitema. Performance. A Embriaguez
que num instante sonha é poesia. E passa. Algibeira do sonhador
carregada de sensíveis não-certezas, cheia de sintomas, donde
transcriações evoluem do eu, do não-eu, da baleia-eu, do quadro-
-negro-eu, das notas ignorantes-eu, das passagens permissivas-eu.
Tontas de caos, imagens ascendem do sonhador, reassumindo esca-
mas, bicos e asas, lançando flechas de seus arcos de fogo, desvane-
cendo-se imediatamente na mais profunda solidão do sonhaquífero
que é o corpo: uma fonte não-aparente, impura e restaurada, liquor,
i-magem que se contempla num espelho feminino que não brilha
e, por medo de se perder, já não é. A Morte nos confere dormindo.
Imagem, resto mnemônico, senão fissura entre a angústia e a von-
tade. Aparentes tessituras de satisfação-insatisfação que sonham
as irradiadas imagens de transmutação mítica da conjunção amor-
-ódio, num preparo alquímico:

Fome de sonho sonhado


Alimento que interpreto, repito, alimento que interpreto
Pela terceira vez me alimento de ti: manifesto, pele à dentro
Luz, castigo, dor, gozo: ainda sem saber sonhar, sonho a origem
informe
Confundem-me, assim, nossas experiências, e colho os olhos so-
nhados
Maduros, caídos em minha testa ampla, pela manhã
Ar falta-me no sonho
mas respiro na água, de sobra
Paisagem e desaparecimento num instante medido entre dois
céus
Entre as latitudes, bordas que se afastam quanto mais se apro-
ximam
Adormeço, rainha, repito que adormeço, régia presença
E em abundância a água me cala, mais uma vez estou dormindo,
majestade
Quem és tu, minha necessidade?
Altura de largas estações, mundo que não vi mas comemoro,
imagem

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Repito: corpo-ausente que não vi. 2
Na educação onírica, por essa intuição ascendente da água
viva e profunda, crivam-nos as Aulas-Sonhos, aparições neuróticas
de experiências arcaicas do docente sonhador, numa velocidade
de recordação semelhante à do trauma. Interpretação e controle à
docência enquanto em recuperação: ao cantar, narrar, escriler ou
esquecer um sonho, imagens são destruídas enquanto as experiên-
cias são artistadas. É nessa ilusão que há a fome a-traduzir: a ima-
gem pouco me lê, o sonho é a negação da imagem dada.
Na perspectiva do pensamento sem imagem, dispensa-se ma-
terialidade pura, já que é possível produzir quaisquer pensamen-
tos a partir da própria maquinaria interna, que é a-material, cujo
acesso obscuro ocorre numa inconsistência entre a consciência e
o inconsciente, pelo próprio criador. A Intenção intuitiva primei-
ra, sem nome, que se reconecta com o todo, apropria-se da volta
da imaginação e, no seu passo regresso, de restauro, de repetição,
de trilha em meandros, deixa índices intraduzíveis que flutuam à
superfície consciente, para respirar. Assim, violentam o pensar: ao
iconografarem-se. Não há língua nem linguagem no pensamento,
mas emoções, por isso mesmo a linguagem é impensável, e o pen-
samento independe dela. As imagens são um sinal da imaginação,
um miriorama mental, marcado pela duração desse trabalho, dura-
ção de pensamento que fere sinapses, que as ordena, que as grava
em tecidos imagéticos de eletricidade palpável, mas intraduzível.
Assim, as imagens criadas a partir dessa elaboração do pensar são
aproximações simbólicas da poética onírica, inventiva, primordial
do espírito e do corpo. Imagens que são organizadas pelo rigor do
espírito que pensa o sonho, com seus artefatos e demais referências:
as imagens desse respiro pensamental ao chegarem à consciência
como signos, intensidades, fragmentos, revigoram o próprio pen-
samento à vontade tradutória, à pulsão de criar ou de destruir as
inquietantes perguntas intraduzíveis que vibram do corpo, e que
não cessam. Por isso o sono vem, virtude que se doa. E a decisão,
também a imagética, é emocional.
As imagens oníricas relacionam-se entre si, numa fábula cuja
diegese é de combinação infinita, podendo estender-se na eloquên-
cia de uma pele dormente sensível à luz, que se deixa morrer no
deveniente do inconsciente. Tentativa primordial do espírito para
recuperar as coisas mortas da realidade, e percebê-las — todas as
moléculas que viviam plenas em sua imaterialidade muito rápida,
o espírito as re-potencializa, as desacelera, no drama do conteúdo

2 Se o sonho me dá a imagem da fome, também me alimenta, me rejuvenesce e,


2 Se o sonho verme
quietamente, me dá asilente
imagem da fome,
inchado também
de águas me alimenta,
alcalinas, me rejuvenesce
corrói-me e,
as pálpebras.
quietamente,
Afrouxado vermeosilente
é, assim, inchado
espírito de águas alcalinas, corrói-me as pálpebras.
sonhador.
Afrouxado é, assim, o espírito sonhador.

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não necessariamente elaborado para uma visão, mas para uma sen-
sação também de valor estético, uma poética concreta que se tra-
duz pelo inverificável real, ao sonhador.
A noite cinza. Descalça caminho em terras de campo-santo,
rumo a uma estrada criada graças aos corpos mortos, que empur-
raram as terras para o lado dos vivos. Debaixo do braço esquerdo,
carrego um brinquedo, o que me dá prazer — um cavalinho de ma-
deira revestido com couro em pelo, branco e marrom, pele pregada
por tachinhas. Não vejo o rosto do cavalinho, e o mantenho sob a
axila sinistra, seguindo pela estrada para buscar a entrada de mi-
nha casa. Porém, todas as fachadas são idênticas, de dois andares,
cheias de grades de ferro retorcidas e cinza, com espessas folhas
variegadas disfarçando as entradas e impedindo de se ver dentro
das habitações. Percebo que a estrada é inacabável, e que me esque-
ci onde habito, mas uma das sacadas de repente se mostra limpa,
sem heras, já abaulada, um balcão digno aos aposentos, quando me
lembro que ali mora o alemão da feira, o pai das gêmeas, o qual
nunca me dirigiu a palavra senão para cumprimentar-me, sorrindo
alegre. E retorno ao início da estrada, volto à necrópole, pés em ter-
ras já úmidas, sem brinquedo, sem lembrar que quero voltar à casa.
Imagem-origem que me aborrece, esquecimento do lar que me li-
berta. Ao acordar, a lembrança primeira foi o caminho das sacadas
as mesmas, e o cavalinho subalterno.
Ritual imaginário da afeição, imagens movediças de afectos e
afecções do corpo anunciam nossas ausências e mortes, pedem-nos
passagem e são presentificadas na matéria de projeções que nar-
ram o si-mesmo ou um aquilo mesmo.
Sonh’Imagem é luz quase-recuperável, noção quase-exata de
duração temporal, índices construídos e desmoronados simulta-
neamente, distinguíveis ou não, deslizando nas camadas filtrantes
na dissonância oneiron, em não-lugares. A imagem é transcriação
vígil da imaterialidade rebelde do sonho.
Pijamas não têm botões.

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Brevimagens sonhoescritas
Róger Albernaz De Araujo
Alberto d’Avila Coelho

Sensasonhos
edaços de tempo rebatem em lascas de espaços que saltam
aos olhos e transversam o corpo em rastros de memórias
rarefeitas entre dias e noites. Olhos fechados. Abertos. O ar
entra pelas frestas das portas. Esvai-se pelas rachaduras das
paredes. Tudo parece todo tempo demasiado fragmentário e
as imagens que tomam corpo nascem com olhos esbugalhados,
sons inaudíveis de estômagos revirados, palavras sem traçados, so-
nhos estilhaçados. Sentidos escorrem pela face. Pingam fuligens
por entre os dedos. Escondem-se nos bolsos e na dobradura de joe-
lhos em curvatura. Fragmentos. Ouriçam as sensações. Silenciosas
fabulam composições distorcidas. Movediços e libidinosos, raquíti-
cos ruídos espraiam sonhografismos itinerantes. Um travesseiro
acomoda a língua calada. O dorso retrai. Um salivar saltitante. Pala-
vras empilhadas perseguem à margem. Pernas entrelaçadas pres-
sionam pensamentos borrados. Linha desfavorece ângulo. Ponto
transborda bordas. Imagens vazam sonhos. Sonhos acariciam ima-
gens. Sonhos são sobressaltos. Pegadas de pés descalços.

Devaneios tortos, uma canção


Da moldura talhada em madeira de lei saiam faíscas, queima-
vam a tela que há séculos retinha o rosto da menina, conservado em
óleo, em gema, em pele-luz-carmim, tudo aplicado sobre um fundo
escuro que não deixava ver o branco das coisas. De que adiantou,
se agora era só fogo cobrindo tudo com uma nuvem dissipada de
fumaça tóxica a lacrimejar olhos vitrificados? Preto fosco profundo
a tomar o lugar da menina conservada em óleo e cor. Era carmim
quando não eram as faíscas. Parecia que quase nada mudava antes
do acontecer na moldura. Parecia. Aparências. Um amarelo em pon-
tos minúsculos era o que brilhava no fundo do olho, na íris-pupila
que olhava o fogo a consumir. A menina intactamente assistia-se,
dizia-se, gritava-se. E o que se podia ouvir? Nem um pio, dentro de
uma sala tão grande e cheia de eco como aquela. Dizem, ouvi dizer,
que um fogo robusto começou por sua boca, com labaredas flame-
jantes em cortes de vidro de um gótico comprido a suplicar o amor
do pai. E tudo ia mudando, e não sei, seria possível ver flores negras
subirem, pétalas gravitando como naquele foguete da NASA onde
se come sem pegar em nada. Só uma boca mordendo o ar, pernas

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para o ar, uma boca abrindo em direção à parede enquanto o crois-
sant esfarela, quando os olhos refletem a parede, também amarela.
Pouco sobrou da menina conservada em óleo e cor. Agora, um
fio de cabelo sustenta o peso da humanidade e ressoa o som re-
corrente do risco de algo romper. Isso, um fio de cabelo, sim. Fio
brilhoso tratado a óleo de argan, tensiona o som de um silêncio, de
um tom sem início e nem fim. Um fio. Fio tortuoso. Um fio de cabelo,
sim. A moldura, agora, depois da chama contém mais nada, segu-
ra ainda menos. Assim, os interrompidos saltam longe, léguas até.
Repicam. Pudera, tanto tempo presos! Tudo segue o “embora”. Uns
dizem que foi culpa do dragão, outros não dizem. Mas, que bando
de idiotas! Como um dragãozinho bebê poderia danificar superfí-
cies tão duras e ásperas, desprovidas de um cuidado de porcela-
na? Há durezas invioláveis que vivem séculos sem sofrerem um
arranhão sequer. De tudo destruído, se ficarmos nus, com as palmas
das mãos sobre o piso negro de fuligem e os joelhos fazendo uma
pressão bem no osso, não resistiremos ao desejo de fazer nossas
narinas chegarem bem perto das frestas. Naquelas linhas paralelas
sobrevém um substrato de esperança que deixa camadas espessas
e bem opacas assumirem um leito ao longo da sala. Dizem os novos
gnósticos, seguidores de Simão, o samaritano, que esta fuligem tem
ligações com o mal e deve ser desprezada. E que não venha a ciên-
cia tentar explicar com seus racionalismos reticentes o que cabe ao
transcender e intuir desposar.

Pó de giz
Curioso, havia um presente estendido, o tempo passando,
como os postes nas estradas. Sempre no abandono de um [ins-
tante], logo um outro vinha, a seguir. Verde grama com planície.
O deslocar do ponteiro no painel... 100... 120... 140... A linha agora
lá fora se afastava na medida mesma em que se tentasse tocá-la.
Horizontalmente. Tudo ocorrendo ali. Para que se tem pressa? O
tempo é pontual. São dez e meia e parece que vai ficar assim mes-
mo. Tempo passando.
Depois de tantos solavancos a estrada ainda não se fechou,
não costurou o zíper, nem o rasgo de arame farpado daquela outra
vez que ainda cicatriza na pele fina de menino-aprendiz. Quando
foi era domingo. Como no caminho do desenho aqui também se vê
uma estradinha ziguezagueando até o alto.
É, os adultos conservam amigos, por muitos anos.
A estrada seguia até a velha escola que a gente ia para ver,
pela janela de vidro fosco, a sala. As cadeirinhas bem pequenas
amontoadas num canto, o quadro-negro gigante marcado ainda
por um pozinho fino, entranhado no preto da tinta fosca, tudo

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dando um ar de tempo encerrado, contido em uma sala. Proteção.
No raio de sol que entrava um facho de poeirinha flutuava. Ainda
o pó de giz que tomava conta.
A professora! A dona, aposentada e vaidosa, guardava-se lá
dentro e, o que tinha de madeira e ferro, o que tinha de memória,
de afeto, de sonho. Quanto a chave da sala? “Não lembro”, dizia ela
dissimulada, fazendo pouco caso da nossa vontade de entrar. Di-
zia que não sabia, que tinha perdido, que teria deixado em algum
móvel, em alguma gaveta.
Gostaria que ela tivesse dito que, caso a chave fosse encon-
trada, estando em alguma superfície ela guardaria uma marca de
poeira. Assim, que a pegássemos, mas com todo o cuidado, pois
seria a chave-marca-pó que abriria a escola. Escola de uma sala
só. E todos sairiam correndo a procurar, mas cuidando para não
sujarem a casa com os pés de barro. Ouviríamos sua voz desapare-
cendo, ficando lá no fundo. Mas não, da velha professora só vinha
uma cara ranzinza, meio blasé, nem aí para nossas aventuras, so-
nhos de fim de semana, começo de vida.
No mesmo dia, na mesma hora, na atenção desviada ouviu-se
os passos de um galope, e era um passarinho a se equilibrar nas
costas do cavalo-bufão. Era dia de festa. Todos a ostentarem suas
meias brancas. Lembro que uma delas estava manchada de san-
gue. Dava para ver bem certinho o vermelho no branco. A infecção
viria mais cedo ou mais tarde.
Comia-se em baixo das árvores. Pátio sem cercas. Vão. Per-
dia-se de vista o Pampa. O olhar batendo em cada tronco (laranjei-
ras, abacateiros, butiás, pitangueiras) pintando em tons de cascas
o vento. A vista via-se bater em cada um, um ponto à frente. E
perdia-se. Uma bola, um sol, uma casinha bem em cima da linha,
seguiam estampando o passo do onírico.

De baixo para cima


Sempre impressionou a todos aquela caixa de madeira gigan-
te. Quando chegou foi um evento e tanto. Muitos homens a coor-
denar uma ação de Sessão da Tarde. Caminhões, correntes, vozes,
músculos. E desde então se aprendeu que a curiosidade pode viver
uma eternidade. Até hoje aquela caixa se mantém intacta. Tábuas
pregadas envolvem um interior, misteriosamente, sem ninguém sa-
ber o que ele esconde. Aqui fora são olhos de criança boba a ver o
mundo de baixo para cima. Corríamos para encontrar uma fresta,
um espacinho por onde se pudesse ver. O que tem aí? Eternidade é
uma caixa bem grande que ninguém sabe o que se esconde dentro,
e isso dura toda uma vida. O que vale uma caixa bem grande se não
sabemos o que tem dentro? O “dentro” da caixa me acompanha. Por

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eu não saber não me desprendo. E só por isso “vale”. Só por uma
única vez alguém disse que era uma máquina para a merenda. Mas
não se sabe mais onde anda esta pessoa.

Só podia ser coisa de gentinha


Só podia. Só podia. Era o que se sabia que se dizia lá embaixo.
Estávamos no terceiro andar de um prédio cheio de janelas. Bem
no centro da cidade. Janelas para nós gigantes, que ocupavam me-
tade da parede da sala, do meio até o teto. Quando se ficava sem
professora corríamos para as janelas. Lá de cima víamos o mundo.
Assim, sonhos chegavam de fora.
Quando podemos ver bem de cima parece que sonhos exis-
tem. Ou poderão existir.
A paisagem alcançava longe, quase dava para ver de onde saía-
mos todos os dias. Nossas casas. De lá, a divisão da terra com o céu era
misteriosa. As nuvens se desenhando por todo céu até onde o corpo
podia ver se arriscando no parapeito. Os telhados tinham tons de la-
ranja. Velhas telhas que se compunham com os cinzas dos amiantos.
No cantinho de um pátio, dava para ver uma casinha [de cachorro],
esmagadinha, raramente ele aparecia sozinho. Numa certa hora, saía
correndo em alta velocidade, andando em voltas como se puxasse uma
carruagem naqueles circos antigos romanos. Era quando os donos da
casa chegavam.
Baixava-se, mas só nos intervalos. E ficávamos invisíveis. Não ha-
via misturas. Alguns olhares à espreita. Nenhum de nós entrava na fila
do bar para comprar merenda. Até corríamos muito por entre aquelas
colunas de um concreto duro de cortar o supercílio. E o sangue que não
estancava? Quantos pontos? Vivíamos de favor. Ganhamos uma sala de
aula. Quatro paredes e uma boa vontade. Dias difíceis. Ficávamos lá no
alto, só nós naquele andar, em um corredor que se duplicava nas lajo-
tas reluzentes, que brilhavam com a luz. Parecia não ter fim. Extensão
medida em léguas a disparar em direção a um nada. Sem futuro. Mas,
e os sonhos? As alas vazias, quanto desperdício. No mínimo mais umas
doze turmas poderiam ocupar tudo aquilo. E seríamos muitos. Vivía-
mos lá, mas sem pertencer. Como um cão que vagueia pela rua sem ser.
De onde são os cães? De casas? De pátios a esperar o dono? De selvas?
De parques? Onde nascem os cães?
“Gentinha” não me fazia sentido naquela época. O tempo do reló-
gio passou. E um tempo, um vivido cheio [de esperança], não sei bem,
ficou signo, ficou pele marcada, ficou lágrima trancada... e tudo isso se
fez outra vida, vazou por espacinhos apertados. E vingou. Como? Por
vingança? Não, por vingar. Não do que tenha sido feito, mas de outras
coisas, bem menos a de que nasceu. Matéria de sonho que vira, que
transvasa, que se torna um vivido cheio de outros sonhos.

76
Quem pode entrar?
O barco avançava muito. Furioso. E abriu-se as portas batendo
no marco até romper o pino que segura dois ocos. O de baixo e o de
cima pareciam iguais. Tudo estava na água, no reino subaquático
líquido mole, mole, mole. E se por a mão na correnteza e deixar os
dedos rasgarem o úmido do amido? E se corrermos na frente disfar-
çando como na amarelinha e pular no que seria o céu? Haveria de se
pisotear os tapetes encharcados para ter certeza de que não esta-
ríamos perdidos. Mas quem seria o primeiro a fazê-lo? Ora, aquele
que tem no sonho um lugar para ficar!

Quem pode sair?


Entre um estalo da porta e uma coberta que trança os pés gé-
lidos naquele quadrilátero de menos de quatro metros quadrados,
forma-se um plano de silêncio por entre a bruma de um sono, que
se anuncia em um disfarçado sussurro de preguiça. A luz que corta
a diagonal do quadrilátero de pouco mais de doze metros quadra-
dos reserva em um de seus cantos um objeto ereto em uma penca
de roupas que parecem dormir à sombra. Um corpo revira para um
lado, enquanto outro revira para o outro, e um espelho de corpos
que preenche a coreografia do epílogo de mais um dia cheio, que
beija a noite vazia. Mais um quadrilátero dentro de outro, esse den-
tro de outro, e dentro de outro e de outro e outro, outros. Múltiplos
quadros, repetidamente alternam espaços sobrepostos. Consomem
o tempo em soluços de imagens quebradas entre a luz e as sombras.
Sobram silhuetas mal resolvidas de percepções fugidias, que se
apagam antes de se poder tocar. Aquela sensação do corpo que foge
do próprio corpo em um espasmo de queda que projeta o intestino
em direção ao esôfago toma o topo da cena e engasga a língua. So-
bressalta o corpo em um sentido sem igual. Metros quadrados cor-
rem fio abaixo. Um vácuo de sensações sem sentido pinga pescoço
abaixo. Rasga o peito que engole o sono e esbugalha olhos cansados
desejosos de sonhos.

Quem pode voltar?


A porta ringe. Outra vez, o cobertor de lã macia. O edredom
verde enreda-se nos pés amarelados que sobressaem em uma hi-
potenusa. Triangula o corpo em dois limites que pressionam os
formigantes entre dedos quentes. Atritam no desespero de sonhos.
Prescindem de um sono que não marca hora. Dias e noites se repe-
tem. Quadricula-se tempo e espaço. Determinam. Modos modulam
determinantes. Aquele corpo. Retorcido. Algum requerido. Sonhar
diferente. Vida. Uma. Teima em tomar conta dos dias.

77
Quem pode sonhar?
Seria o sonho um ópio? Do tipo que faz do corpo adormecido
de olhos abertos a alma vívida que acorda sapiente de um sentido?
Para vida? Sempre me deparei com esse limite difuso que separa e
atrela o dia e a noite. Uma dança confusa que deixa tudo claro ao
ponto de restar o gosto escuro de não ter para onde ir. Em tempos
idos, isso pouco fazia sentido. Essa coisa de despertar da noite e de
adormecer do dia, de algum modo estranho me enfraquecia. Muitos
pensamentos dispersos com os quais muito pouco podia lidar. Até
que em um dia qualquer, naquele momento em que a noite se faz
limite do dia, dobrei-me aos apelos dos sonhos mais loucos. Eles
já não se escondiam. Resolviam. Sem pudor qualquer. Apareciam.
Tempos e espaços quaisquer. Assim parecia. Parecia loucura. Lou-
cura lidar. Foge. Toma conta. Cena de um cotidiano. Vida. Tom difu-
so. Inconstante. Lapsos. Desrazão e intempéries de desejos. Aconte-
ce. Sonhar acordado produz momentos não muito comuns. Furam
a carne. Destroçam os olhos. Ressecam a língua. Trincam os ossos.

Sonhos abertos
Sonhar. Sonhar de olhos abertos. Requer energia. Uma ainda
maior. Na claridade se escondem perigos, medos. Alguns dos mais
temidos. Fraquezas. Daquelas mais escondidas. Então, sonhar aber-
to. Sonho enroscado como a vida. Sonho momento de vida. Afirma.
Vida. Assim a céu aberto. Vida. Desnudada de adversativas quais-
quer. Potência. Tipo caro e singular. Potência. Tipo aquela que não
se encontra em uma prateleira qualquer. Fabricar. Produzir. Inven-
tar. De olhos abertos. Sonhar.

Linhas em sonhos
Nos miligramas alguma coisa se esconde. Isso atrai. Muitos
pacotinhos. Uma singular e nítida provocação. Um jogo. Atração.
Sedução. Desejo. Provocação. Isso. Pacotinhos. Cada um, uma sen-
tença. Um oferece um sonho. Modo. Sonhar. Habitar. Sonhos. Des-
velam, desembrulham, descarregam. Sobre. Tonelada de possíveis.
Soterram, sufocam, acabam. Comigo. Outros. E se for isso mesmo?
E se for isso, isso que me força a abrir-me aos sonhos? Jogo. Jorro.
Jejuo. Até então relutava. Desconhecia. Desejo. Desprender. Voar a
céu aberto. Deixar se sonhar? Deixar de ser um para ser outros?
Sonhei com outros de mim. Aposto com a vida. Algum valor. Sepa-
rações. Coisas. Desapego. Pretensões. Desistências Lutas óbvias.
A substância do sonho é feita de. “Deu branco”. De que são feitos
nossos sonhos? Como os subterrâneos sonham-se? Sonha-se vida?
Sonho. Matéria. Vida. Ponto. Linha.

78
Sonhar-se
Quatro horas. Madrugada. Sem sono. Anda. De um lado. Outro.
Três passos. À direita. Antes, três à esquerda. Cantarolando pen-
samentos. Proliferam. Vozes. Muitas. Simultâneas. Ruído. Estôma-
go retorce. Fome. Quatro horas. Catatônico. Velocidade! Sente-se.
Olhos. Pouco enxergam. Retos. Obtusos. Dor. Cabeça. Estranheza.
Falta! Estreiteza. Perceber falta. Sempre! Pensa. Tempo. Perde o
ritmo. Ritos e signos. Mitos. Fecha os olhos. Anseia. Um próximo.
Minuto. Mente! O tempo todo. Muito. Todo tempo. Mente. Quer o
que não pode. Sempre! Acha que não pode. Sempre. Desiste. Dor-
me. Sonha. Continua com fome. Sempre! Não aventura. Fica com
fome. Relógio continua. Obstinado movimento viciado. Cada pon-
teiro um ritmo. Compassos. Segundo atravessa o minuto. Circulam.
Movimento uno. Três séries paralelas convergem. Linha de tempo.
Funcionam sobrepostas. Mente faz parte da órbita. Gira ao som do
tempo. Pensamentos. Deslocados. Fragmentos esvaem. Vazio. Qua-
se nada. Uma saída. Procura. Senta à beira da cama. Toca o chão.
Ponta dos dedos. Suavemente. Deseja ficar em pé. Deseja deitar.
Deseja ficar. Corpo lateja. Pulsam os ossos. Permanece à distância.
Eterno compasso. A porta tem olhos. Observam. Um passo. Muda-
ria. Dias. Noites. Na diagonal um espelho. Sorria seu sonho. Sem
fome. Estômago em silêncio. Porta aberta. Sonhava-se.

Referenciar-se
Um pedaço de página de Deleuze (2006, A ilha deserta); uma pitada
de Beckett (2009, O inominável) sacudida com Artaud; e o conjunto co-
locado em suspenso, preso por um fino fio de uma haste de hortelã. Um
outro Nietzsche, o que vem de 2012 (Assim, falou Zaratustra), esfrega as
mãos enquanto mistura um pouco de Kerouac com Klossowski, um pouco
de “On the Road: pé na estrada” (2015) com “Sade - meu próximo” (1985),
sem esquecer a trama do tempo com Clarice na “Descoberta do mundo”
(1999), Lautréamont em “Os cantos de Maldoror” (2005), Pizarnik com
“Os trabalhos e as noites” (2018) e Batalle na “História do olho” (2003),
tudo em um círculo de amêndoas agrupadas em um terrário de suculen-
tas. Chamuscado por labaredas linguarescas uma silhueta fina e afiada se
esgueira e mexe um caldeirão rubro; palavras borbulham em imagens
de silêncio e gritaria. 2019, Corazza? Tudo junto, mais um pouco, nem se
sabe; de onde, para onde, porquê; e fazem diferença para se poder sonhar
por escrito, por imagem, por delírio, por vontade.

79
80
S
signo

81
82
Signo de alcance: o sonho e a terra
Luiz Daniel Rodrigues Dinarte

C
amadas. Buscar (ainda) um pluralismo, suspender o ato-
mismo perceptivo e reencontrar as conexões entre as ideias
e o desejo em um campo de imanência do pensar e do agir.
Ambições. Decorrência dos esforços coletivos em reinventar a do-
cência e reescrever o currículo, e cujos movimentos anteriores,
embora tenham servido como disparadores de novas formas de
vida no campo da educação, encontraram seus estreitamentos em
sintaxes, em linguagens que acabaram murchando em negação e
enrijecendo em ordens. Por isso, traduzir a tradição e transgredir
o cânone. E o espaço da aula não seria somente aquele da sala, do
conteúdo e da disciplina, seria preciso, para seguir um projeto de
repetição da diferença, fazer rebater aquele pluralismo já aventa-
do exatamente nessas acumulações. Para tanto, o sonho, como uma
camada pintada sobre a aula, sobre a língua da docência. Tingir os
signos da docência. Descer a outros níveis.

Sonho. As línguas impossíveis em pleno ato. Mas, antes dessa


coroação, um leito, um ninho, uma mão suspensa a recolher ele-
mentos disparatados. Despeja-se a água, mesmo quando tudo é
secura, e toda matéria é eventualmente obliterada por escassez
e por uma fome planetária. Seria desejoso haver um instante ao
menos, diário, ou qualquer outro ciclo, em que se resolva determi-
nar como o limite entre avidez e privação, estando-se apto a pisar
sobre uma nuvem e materializar uma flor? Se por muito tempo
sonhar foi um privilégio e um constrangimento, reservado aos
poetas e, portanto, demonizado e condicionado a agenciamentos
históricos e psicológicos, seria necessário, ao contrário, pesqui-
sar o material e o matérico do devaneio. Penso que seria até mais
constrangedor caso fosse relegado à alusão o que se quer afirmar
como direito. De todo modo, condições são exatamente os limites
com que a fantasia busca jogar um jogo de repetição — um fingi-
mento de ausência, sempre ali, mas a espera se faz encanto ainda
maior, em função dessa mesma ausência.

Traço. O quadro sem tela, o movimento aparente da percep-


ção, a condensação misteriosa, a flor da ilusão, os prismas da vida,
a fome poética, o rastejar nas nuvens. Eis que, ao meio-dia, ergue-se
a poeira do chão e o horizonte se perde: um panneau, um muro de
almofadas, uma pétala que se agiganta e a tudo recobre com sua
seda leitosa. A selvageria de uma síntese que apaga todo persona-

83
gem e todo o fenômeno. Preferir não é melhor do que apostar. Nu
ou vestido para a guerra, à sorte de uma cisão a que agarramos com
uma mão só, o escultor tem sempre mãos sujas, e se alimenta sem
as lavar. Não há tela limpa. Não há, melhor dizendo, tela alguma.
O pensamento é extensivo à mão. Mexer na terra e beber da água,
muito embora estilhaçados, mais terra e água do que bocas e lín-
guas. Somos uma face negra entretidos com o futuro traçado. Por
isso, a-traçar e a-traduzir.

Percepção. O signo são todos os signos. Há um arco de exis-


tência do qual não se poderia prescindir, mesmo que cada signo
manifeste as primícias meramente anunciadas de um infinito va-
riavelmente interdito. De qualquer maneira, os signos se dão sem-
pre inteiros, num susto, numa encarnação facilmente interpretada
como violência do ser, mas que, em sua varredura carnal, em suas
gradações, o alcançável e legível, pouco importa a iluminação, tudo
segue um doce destino — a suave dança da morte. Por isso: epifania
= resmungo, chatice; inspiração = não se pode mais dizer que seja
algo de fato, não mais (not even a thing...); sonho = as janelas se
mesclam, um buraco no chão acomoda infinitas passagens, as nu-
vens descem e os corpos atravessam paredes, possibilidade de sele-
ções alargadas dos mundos e seus signos (uma função matemática
se apresenta como um balé, etc.); som = a média frequência de uma
ilusão privativa, ao ponto de termos cunhado a noção de realidade
em ambiências sonoras (realidade como conceito auditivo: salão
burguês repleto de vozes misturadas, as trilhas sonoras, os ruídos
da “natureza”). Tanto é que a escuta se tornou o espaço de decisão
e dos mais altos julgamentos (silêncio — a cidade dorme; o modo
de encantamento — as sereias e os concertos; as frases encadeadas
— a loucura, a sanidade, a aula, a autoridade, a democracia, o livre-
-arbítrio e por aí vai...).

Estética/assombro. Digamos por ora que se trata de modos de


existência, essas chaves que descortinam as faces do mundo. Não é
sem receio que as nomeio, uma vez que é sabido o quanto tais faces
estão, geralmente, opostas umas às outras, e que é somente no modo
(?) possibilitado pelo sonho que os valores, as normas sociais, os
ruídos e os demônios dão a ver seus conchavos. Assim, como numa
cena de guerra, como velhos conhecidos, ensejam a perplexidade, e
as grandes rotações e delírios separados pela geografia e pelas eras,
fazem-se ali, no curso de um tempo espesso, ocupado, massudo. So-
nhar não é comprimir toda a História, mas a História não poderia
transcorrer sem que os signos efetuassem giros, variações e aniqui-
lamentos somente visíveis aos sonhadores, porque a eles pertence
o modo diferencial, absurdo e sobrenatural por excelência. Não ha-

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via sido o Sono, deus da tranquilidade, em sua caverna enevoada de
um torpor irresistível, que, ordenado por Juno, enviou Morfeu para
que se apresentasse para Alcíone, fazendo-se passar pelo fantasma
de Ceix? Transmutados em aves, novas faces (novos modos) se des-
cobrem, enquanto o leito do deus Sono está repleto de figuras que
pairam no ar. Modos que multiplicam e imitam a realidade. Mas não
é um céu de formas, muito pelo contrário, já que o leito desse deus
tão silencioso se estende na escuridão de uma caverna, de cuja aber-
tura jorra um narcótico, como um vômito demoníaco, encharcando a
terra de delírio. É de baixo que Morfeu se ergue e parte para visitar
os sonhos dos homens. Da profundeza infernal às almas entalhadas
pelo sofrimento, um jogo de transformações que a vigília só conhece
o rosto e alguma memória. Então, penso eu, talvez o sonho seja de
fato o modo mais profícuo da existência.

Patuidade. Ordenados junto aos objetos, os signos são rebai-


xados à condição de entulho. Elevados às formas intangíveis, per-
dem sua força revolucionária. Não há mais ordem, não há mais cen-
tro. Os deuses, domesticados, exercitam uma linguagem dispersa,
nem coletiva nem individual. O sonho deixou de ser o espaço de
arranjo dos seres incompossíveis e se tornou refúgio da linguagem.
Isso se torna um problema uma vez que a vigília já não permite o
diálogo nem o monólogo (a identidade se dilui e a coletividade se
virtualiza), e, em momentos de sufoco, recorremos a Morfeu (quem
diria...) para que adentremos novamente algum mundo que nos
apresente nossa própria face. Gozar do onirismo é, claro, também
redescobrir os conflitos outrora mitigados pela palidez do mundo
moderno. Por isso a tradução e a transgressão. Um espírito ativo se
descobre rodeado por outros. Em lugar de nossa morna coletivida-
de, sonhar, mesmo que seja um luxo passageiro, sonhar.

Insetos. Línguas são faladas. Aptidões físicas, exercitadas.


Ritmos, experimentados e talentos são tranquilamente expressos,
como se sempre estivessem ali. Na verdade, sempre ali estiveram,
e a vigília nos ocupa com seus limites e nos constrange em seu or-
denamento, o fatiamento da história e de um tempo que nos faz
escapar do passado. E os costumes, tanto etnologicamente como
em termos de “leis da física”, estão condenados à sorte dos encon-
tros, para que as disposições inscritas em nossas almas consigam
quiçá expressar suas existências — as comédias da compleição
humana! Sonhar não é dispor dos signos em uma versão onírica,
é criar signos. Lembro de um sonho em que eu havia aprendido a
falar fluentemente o cantonês. Dessa língua, claro, eu não chegava a
pronunciar palavras, mas ritmos e tons, e estes também não corres-
pondiam com precisão aos do idioma da província de Cantão exceto

85
por alguma memória auditiva de poucas frases com que eventual-
mente eu tenha tido contato. Daí que o sonho é de uma precisão
paradoxal como modo de existência. O meu cantonês tocava em zo-
nas erógenas de uma função que enfim encontrava o seu meio. Mas,
fundamentalmente, somos como os insetos: programas, marcas de
uma inscrição antepassada, a preparação para certos eventos, cer-
tas imagens, certos ritmos — uma estética da existência transborda
os limites do toque e do tocado, do visto e do encenado, do perigo
e do ataque. A insuficiência atávica é igualmente posta à prova. E a
saída é uma criação, a única via possível, a criação. Todo o desdo-
bramento é apenas minimamente previsto no nosso código heredi-
tário. Desde que se inventou a migração entre planos de existência,
entre paisagem e caverna, entre ruídos e voz, e, de maneira mais
contemporânea, entre olho e papel, a expressão, toda ela, nada mais
é do que um sonho em que uma promessa é encenada. E não se sabe
o que exatamente foi prometido.

Poema. Um modo de aparecimento, o poema é um problema


de superfície e de limites. Aquilo que era alcançado pelo braço, ao
nível pré-linguístico e instintivamente determinado, ainda guarda-
va suas zonas de esvaziamento, seja em função de uma insuficiên-
cia motriz ou de condições exógenas, e assim permaneceu sob o
arco corporal até que se tenha descoberto a possibilidade de fazer
do nada uma zona aquém ou além, ou melhor, até que o ritmo se
descolasse e autorizasse meios distintos de aparecimento. Muito
anterior à picturalidade, ritmo deve ser entendido como o antípo-
da dos ciclos da natureza, uma vez que nele o que há são repetições,
mas repetições apesar da gravidade e a despeito das demais forças
atuantes em um universo de concorrências. Um ritmo expresso:
isso é um poema. Em algum ponto, em algum limite provavelmente
compartilhado, mas que somente um indivíduo ou grupo, quando
desfrutou da co-ocorrência de certos ritmos e de certos ímpetos,
assistiu um plano diverso erigir-se. E foi deste acontecimento que
todas as condições de sua edificação foram expressas em um mes-
mo golpe. Aí os ritmos da natureza se tornaram outros, de outra
espécie, e cada distância inalcançada era imediatamente rebatida
nessa superfície. À herança do corpo, à sorte da desolação e da so-
lidão, respondeu-se com um traçado, primeiro no corpo próprio,
depois em todos os outros entes. E cada vez que se conseguia ris-
car por sobre o vão entre ímpeto e o ritmo, convencionou-se cha-
mar isso de poema.

Proposição. É claro que o traço deve ser entendido no seu sen-


tido lato. A corcunda é traço que se expressa posturalmente, assim
como o refúgio, quando nas tempestades, só será traçado em fun-

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ção do resguardo de algum valor já inscrito na superfície autogera-
dora dos signos. Mas traçar sobre o vazio de uma superfície, seja a
medição da dureza da rocha ou alguma técnica de pincelada (elas
se igualam), é como um gesto de retorno a problemas anteriores
que, carecendo de nova feita, efetuam ligações e regimes no novo
meio, assim, o mundo é, a cada vez, um outro. Assim é que se disse,
sempre muito oportunamente, que a dialética é o motor da Histó-
ria, que os corpos se atraem e que pensar sugere existência. Note-se
que os exemplos, aparentemente irônicos por seus regimes diver-
sos de abstração e pela aceleração dos gestos poéticos que deixam
em seus rastros, apesar de tudo, não deixam de ser acompanhados
de uma zona acoplada de inflexão do traço, seus ditos filosofemas.
Seja um silogismo, ou, melhor ainda, seja uma proposição do tipo
((p → q) p) → q. Temos que o modus ponens inicia com um elemen-
to condicionante que já altera a patuidade, ou seja, a condição de
existência, a existência brilhante e sua manifestação nos espíritos,
sob o pretexto de uma ordenação do sistema formal, imanente e
de aridade = n. Se pensarmos em termos de “rastro”, o q como ele-
mento condicionado, corresponde ao traçado que erra, que dança,
saltando para dentro e para fora da existência, uma vez que sugere
uma anterioridade formal da qual só participa virtualmente e por
um histórico causal e contrastivo. Há uma exmanência a ser resol-
vida em um novo meio formal para aí fixar limites propriamente
sistêmicos. Nisso consiste o gérmen de todos os traçados modais
(aos quais eu também chamaria de signos de alcance ou signais).

Gesto. Signo é dispositivo, é aposta e promessa. Poema não é


feito de signos. Poema é um signo. É a mesma etiologia que gover-
na o poema e o corpo. Por isso o gesto como poética não consiste
em uma insistência temática. É a axiologia das extensões e das
promessas. É muito mais fisiológico do que psicológico. O alimen-
to alcançado pela pata anterior não poderia ficar abandonado a
qualquer sorte, logo, é todo o conjunto que alcança, e nisso um
espírito nasce como um sopro. O gesto é o que envolve, é concha.
O material é imanente ao espiritual porque um gesto alcança algo
até então inalcançável. Então qual é a segmentação exata, que nos
permitiria entrever o gesto mais elementar e comum (quando
compartilhamos os meios com os vertebrados inferiores e mes-
mo com os moluscos) e o pluralismo, o aumento de relações na
fg? É uma mera diferença de velocidades, uma vez que as conchas
existenciais (as patuidades) abrigam uma série de argumentos
que ganham uma forma linear geral que tende à morte — não há
promessa, mas alcance e preservação. Por outro lado, o gesto co-
municativo é também um tipo de alcance, mas já na ordem mítica
da conservação. O nome é um gesto cuja promessa de futuro foi

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aparentemente realizada (apesar de retornar como dispersão, afi-
nal, não há nome que seja totalmente particular).

Signo partido. Sobre a suposta cisão, um exemplo lúdico: o


primata bebe água à beira de um córrego, levando as mãos cheias
em forma de concha até a boca. Eis que um côco despenca de uma
palmeira e se parte em duas metades. Aí está! A água será armaze-
nada para ser bebida ao anoitecer, e mesmo que evapore ou seja
consumida por outro animal, cumpriu com sua jornada espiritual e
retornará como um espírito... úmido. Mas onde há cisão, se o sinal
gestual (o signal) não é em si promessa de nada? Mesmo no nome
(algum gesto manual, possivelmente acompanhado de algum gru-
nhido, terá identificado o novo objeto, que desponta no horizonte
da experiência, e hoje é consumido na região semântica das bacias,
cantis e taças), mesmo no significante em sua face mais luminosa, a
dispersão é a ameaça mais comum (a fruta perecerá, mas as mãos,
essas morrerão junto com o espírito). A umidade no deserto é uma
miragem, a ponto de o horizonte parecer brilhar como água. É um
outro tipo de pluralidade: ao invés do gesto concha, mais próximo
da mão e que se estende em direção ao presente, se substitui uma
extensão ao futuro. Nisso, também um tipo de formação de concha,
mas em forma de projeção ou promessa. Nesses termos, por exem-
plo, o signo aparece como resto de uma metafísica, do inalcançável.
Por isso: o rastejar dos caramujos ≡ a mão escrevendo; o gesto sig-
nificante ≅ a mão impotente, os braços curtos, o leve toque em um
sistema misterioso, quimérico.

Quimera. Antagonismo do signo e do poema, quando se espe-


ra mais do que a preservação de um presente vivo. O gesto é este,
e apenas um: buscar o alimento, leva-lo à boca. O fato de Lautréa-
mont ter encarnado o infortúnio de uma época inteira não anulou a
pergunta sobre os limites do signo, e mesmo animalizado, mesmo
feminizado (tratou-se dos cachorros e das cadelas) não escondeu a
miséria, a qual nós mesmos temos bebido até o afogo. As tentativas
têm sido inúmeras, no sentido de adiantar as promessas e fazer de
cada uma o teste de suas insuficiências. A questão da ciência é, de
certa forma, essa mesma, muito embora a via escolhida tenha sido a
da sistematização de signos (como se estes não constituíssem pro-
messas embaralhadas e ainda mais diversificadas em cada nível —
problema insolúvel, constatação paralisante: há níveis). Da filosofia
espera-se, igualmente, um pouco além do que ela é capaz de ofere-
cer, haja vista a espera necessária e que todo filósofo é domado até
que tenha por natural e desejável a espera. Desse modo, a promessa
se condensa em: a coruja noturna; os antípodas da meia-noite; a
boemia; e, fundamentalmente, as filosofias do amanhã e seus acor-

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dos com a psicologia. Para desviar da prescrição temática ou direti-
va, uma vez que em relação à arte não é esse o seu comportamento,
ao sonho se deve rejeitar o lugar de reserva da razão, destinado aos
prisioneiros e deuses do sistema, para que estes possam escapar,
vez ou outra, de si próprios. Ao contrário, o sonho como camada,
tinta e orvalho, faz retornar a dimensão operatória que acompanha
univocamente as confrontações mais simples e as mais complexas
da linguagem. Desde seres unicelulares até a inteligência artificial,
a produção de tela sempre parcial, sempre cambiante em função
de modos de existência infinitos. Tela sonhada, não projetada, mas
modo de contestação onde a vida se diferencia das persistências e
se iguala à potência. Não será necessária uma fórmula de aproxi-
mação para que as acumulações cotidianas sejam sonhadas. O so-
nho não é feito de símbolos e suas relações com o real. É que isso
nos conduziria a compromissos demasiadamente esperançosos, e
isso já está implícito quando evocamos a linguagem, mesmo que
de maneira plural em formas e técnicas. Entre imagem e grafismo,
por exemplo, é necessária toda uma descrição regional dos signos
discursivos e visuais estabelecendo tramas e dinamismos. Não bas-
ta verificar o aparecimento de uma descrição visual na literatura.
Pesquisa-sonho é outra coisa. A tela vem ocupar o traço de união
vida-sonho. Como nos ideogramas, cuja tela não é um fundo, mas, o
que é muito diferente, o alcance do traço em dada superfície.

Síntese. Quimera: besta híbrida, catarse da ingenuidade. So-


nho: signos prometidos e dispersos condensados sob a concha de
uma vida que insiste. Traço: o gesto de alcance da mão, sob (e ape-
sar de) a elipse de uma teologia da linguagem. Signos: qualquer
um, desde que sob o manto sacro da existência. Palavra: a parte
psicológica de um processo telúrico. Poema: quando a escuridão
das florestas (os sonhos) desenvolve suas ligações, úmidas e que
expressa uma camada prateada, tocada por mãos que conhecem a
terra. Tela: superfície traçada, toda uma rede de intermeios, toda
uma tessitura, planetária.

Textos devorados. BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar.


Tradução José Américo Motta Pessanha. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1994. CORAZZA, Sandra Mara. Os Cantos de Fouror: escrilei-
tura em filosofia-educação. Porto Alegre: UFRGS; Sulina, 2007. LA-
POUJADE, David. As existências mínimas. Tradução Hortencia Santos
Lencastre. São Paulo: n-1 edições, 2017. LAUTRÉAMONT. Oeuvres
Complètes. Paris: Gallimard, 2009. OVÍDIO. Metamorfoses (volume
I). Tradução Domingos Lucas Dias. Lisboa: Nova Vega, 2008.

89
90
Você não gostaria de ser forte?
Paola Zordan

RÁGIL
Olho. Osso. Papel. Pele. Humor. Palavra. Flor. Caqui. Velhice.
Feto. Folha. Figo.
O impreciso.
A simulação.
Carne.
Qualquer noção de beleza.
Brinco.
Faço colares.
Dar qualidade a qualquer coisa é sempre correr o risco de se equivocar.
Frágil é um adjetivo. Mas também é um alerta nas caixas dentro das quais
coisas que prezamos permanecerem inteiras são guardadas. De algum
modo este alerta se torna um signo. FRÁGIL indica a condição mesma de
um objeto, embora o que se tenha é apenas uma caixa. CUIDADO. Há um
conteúdo precioso, mesmo que sejam apenas ovos. Frágil, portanto, está
implicado num valor. Valor, bem sabemos quando acondicionamos uma
porcelana ordinária tão cara a nossa alma, que passa longe de estimativa
monetária e do valor mercantil a que qualquer corpo ou objeto se sub-
mete. O valor daquilo que pode ser frágil, como bem sabemos que é a
vida, passa longe de preços, pois é um apreço que somente nosso pensar
e aquilo que nos faz bater o coração pode exprimir.

Nas qualidades da cor


Níveas, esbranquiçadas, claras.
Cor é luz.
Amareladas
Alaranjadas
Rubras
Escarlates
Purpúreas
Violáceas
Ciânicas
Azuladas
Esverdeadas
Assombreadas
Escuras

Língua dionisíaca pinta.

Terra. Ocre, marrom.

91
Do que impressiona
Outono, primavera, onde estivermos, na meia estação os dias
ficam mais cálidos, os humores amenos, as vontades infinitas. Os
carrões na garagem não dizem nada. Não interessam quantos são os
metros quadrados. Bela vista não cura saudades. Títulos não fazem
acelerar o coração. Prêmios e suas indicações, por mais merecidos
que sejam, não traduzem o teor do trabalho. Maravilhas são prósta-
tas curadas. A boa condução clínica e cirúrgica facilita a vida de muita
gente. Contar as horas pelo número de pessoas atendidas e resolução
de problemas alheios é o único modo de organizar a vida sem ter que
fugir das responsabilidades. Listas de tarefas evitam que demandas
deixem de ser cumpridas. Podar os galhos permite uma circulação
saudável. Sentar em volta do fogo para conversar é a melhor maneira
de trocar experiências. Andar a cavalo é tão bom quanto atravessar
o trânsito numa moto. Ter os copos exatos potencializa a fruição das
bebidas. Evitar que a louça quebre é ter a aparelhagem inteira. Fa-
zer cento e vinte minutos de aeróbica por semana é o jeito mais ga-
rantido de manter o fôlego. Aparar as unhas serve para parecermos
menos bichos. Deleuze assumiu ser animal. Quando não há lagostas
ficamos com os escorpiões. Deixar as lagartas comerem toda a couve
é alimentar futuras borboletas. Enquanto nascerem cogumelos no
quintal as zonas temperadas continuam em seu equilíbrio. Sentir os
ventos que me sacodem desde criança é saber que vivo perto de um
litoral maluco. Quando está para acabar o verão aparecem arco-íris.
Há verões que acabam mais de uma vez. Há calores que invadem os
invernos. A geada aumenta o cheiro de húmus ácido adocicado das
gramas. O cheiro de um ar salino que vaga sobre os lajeados do pam-
pa. Porto Alegre erige misérias e fracassos. Brasília, São Paulo, Curi-
tiba, Montreal, todas as cidades cabem numa só família. Todo mundo
sabe que o Brasil é grande e há muito mais mundo ainda. Muitos
quartos, camas, gente, toda essa roupa que passa pelas máquinas.
Toalhas que enxugam respingos de festa. Um arranjo na mesa cele-
bra. Comer certo é escolher pouco. Colher rosas exige cuidado. Plan-
tar é uma benção. Abraçar, uma necessidade. Respeitar o espaço se
torna a total aprendizagem. Ver outra coisa no pé de um cálice não
passa de um vício artista. Compartilhar vira o artifício para achar-
mos que estamos todos juntos. Guardar segredos desafia os impa-
cientes. Fazer surpresas ajuda os desacreditados. Colecionar é mos-
trar o mesmo em muitos. Reparar nas notícias tira a paz. Esperar por
atualizações não vale a pena. Ouvir as canções que amamos basta.

Perguntas rasgam sonhos


Desapego é o que tentamos quando algo querido se espatifa.
Quando o que queremos some. Perde-se o que se ama. Nem sempre

92
é fácil, afinal, nos apegamos no pressentimento da eminente extin-
ção daquilo que queremos. A poesia desse FRÁGIL mostra exata-
mente isso: cuidado, embale, carregue com atenção.
Ventre prenhe. Tudo pode se romper, a qualquer momento
se morre.
Respiro. Há algo mais frágil do que os alvéolos? As doenças
nos colocam numa relação com a exiguidade da vida. Na imperma-
nência da carne acumulamos nossos arquivos. Os que não querem
provas da nossa paixão talvez destruam tudo. Mas nossa paixão re-
siste em arquivos que nem são nossos. Quem ama sangra e isso de
alguma forma sempre volta. Num amor exaurido de forças, cheio de
valor, num apreço sem tamanho, em forças sem dimensões. Pode se
dizer que amor assim é forte, mas o que dele temos não passa de
carne famélica por eternidade. E se eternizar pelos outros é o des-
tino de todo e qualquer amor. Seja gerador de filhos, seguidores ou
leitores ocasionais. Amor entre corpos, amor que nem sempre está
perto da carne, amor que faz da carne texto. Mordo a língua para
sentir a consistência muscular abaixo da pele aveludada.
O fio que se rompe.
Devia começar com a fragilidade do que fica entre. E não é bem
uma coisa e nem outra. Os críticos acham isso muito vanguarda,
mas estar entre dispõe o corpo a cair nos abismos que cortam um
campo de outro. No nosso caso, a filosofia, a literatura, a arte, a
educação. Por mais pontes que existam nessas áreas, aquilo que as
sedimenta é completamente diferente. O que vem a ser educação
não é algo tão fácil de responder, assim como o que vem a ser arte.
As contas caem.
Podemos partir de qualquer tempo da história da civilização
e ver como se vivia a arte, encontrar diferentes conceitos de arte, e
perceber como a educação se fazia somente em função do desenvol-
vimento de artes. Mas hoje, institucionalizada, a educação tende a
se configurar longe das artes, da cultura, da vontade que cria. Obri-
gatória, submete quase toda população mundial num modo de vida
escolarizado, confinado a decorações e condecorações na maior
parte das vezes inexpressivas e inúteis. Mas as escolas estão aí, as
instituições educacionais são modelo de civilidade e progresso so-
cial, ficar longe delas e não fazer nada para mudar seria covardia
demais para quem a Educação compete.
Correr para ajuntar continhas espelhadas não reconstituirá
teu colar.
Única coisa que um artista sabe é que melhor seria só fazer
artes.
E uma saraivada de mitos cai nas máximas de toda hora:
“ninguém vive de arte”, “arte não serve para nada”, “arte só vale

93
para entendidos”, “a obra só existe se houver público”. Quem esco-
lhe ser professor?
Faltam lugares. Essa falta quase todo mundo que vive, principal-
mente quando num planeta os números da população começam a ficar
desproporcionais à quantidade de área. Espaços possíveis de serem ha-
bitados, caixas onde é possível viver. Um lugar para respirar, um cantinho
onde você não se sinta um cadáver engavetado.
Mais que política, esse lugar de vida é poiesis. Tem a ver com o conceito
de dobra, o conteúdo da expressão, o desenvolvimento de um estilo e uma
série de coisas que dizem da arte, da vida e da educação. Veja o conceito de
subjetivação. Somos educados, não apenas nas escolas, a viver em determi-
nados tipos de espaços. São espaços públicos, institucionais, domésticos,
mais ou menos perto de elementos da natureza, construídos de diversas
maneiras, apresentando estilos de arquitetar e modos de vida. Marcados
pelo tempo dividido em horários e períodos, que podem variar, mas man-
tém um ritmo de preenchimento de populações específicas em determina-
dos espaços, como os urbanos, configurados pelo trânsito de uma quanti-
dade de corpos e os espaços de circulação restrita, como prédios públicos
e edificações privadas, onde seríamos capazes de listar os corpos encontra-
dos. Essência da percepção humana, podemos encontrar fragilidades em
todos os espaços. Frágil é sempre o humano à mercê de seus fluxos. Dando
signos, ensignando, apreendendo e ignorando. Sem horas
Não se trata exatamente de territórios, porque o que falha aqui não
diz de combates, dominação de uma língua, análise de discursos. Trato
de uma prática e essa, ainda que viva no institucional, não vive senão em
espaços ínfimos como caixas, malas, gavetas, armários, arquivos. Coisas
que se guardam. Frágil é abrir pastas para preparar uma aula. Não que
pesquisar nos livros seja algo mais forte. Na percepção das coisas, condi-
cionada a certos espaços, a única força que precisamos fazer que valha
é suportar a completa falta de espaço. Existe algo mais frágil e sujeito à
extinção do que o arquivo que exige uma conservação rigorosa e que
está ocupando espaço?
Onde colocar a produção? Como manter acervos?
Por que tais coisas, que tomam tantas horas, interessam? Por que
alguém iria se ocupar com tal espólio? Quando contaremos os materiais?
Para que juntar tudo isso?
tempo
abstração engolidora
submissões
inadimplências
demências
em escores vários

94
Não contaremos. Não contar é uma opção, uma forma de resis-
tência. Subjugados a contar, fazemos da contagem signo de forças
que ninguém, sem nomes e números, conta. Não podemos contabi-
lizar o que se faz bonito, gostar de alguma coisa é estar compatível
com tonalidades, riscos, expressões. Achar bonito, julgando som,
imagem e sentimento, torna qualquer juízo totalmente aleatório.
Amar os monstros garante que nada ruim nos acontecerá. Para afe-
rir beleza se coloca no corpo um tabulamento de simetrias, contras-
tes, aberturas e sombreamentos. A beleza conta com medidas exa-
tas, na risca de padrões, espaçamentos harmônicos e em acordo. O
belo é uma medida, mas não algo que se conte. Porque o que temos
que contar sempre, para podermos existir, é a terra. Matéria sem
forma para se medir belezas. Fonte de riquezas, extinguível, nossa
água e nosso chão.

Filha da terra
Fostes educada para ser bela, mas não ganhaste os instrumen-
tos que te possibilitariam alcançar a correta dimensão. Sequer te
deram as coordenadas para atravessar os mares e conhecer a imen-
sidão do próprio pensamento. Seria muito bom não precisar se es-
forçar, se deixando levar como folha ao vento. Nada te faz sucumbir.

Desconto
Sendo inegavelmente feia, só te restam as palavras para criar
alguma beleza.

Tudo o que você quer ser


Você quer ser mais do que um conceito. Algo com mais sentido
do que aquilo que você representa. Você quer ser o ideal. Mais do
que apenas beleza. Forma jamais atingida na fragilidade da carne,
essa que tanto dizem realizar-se senão em sórdido simulacro. Você
não quer ser ilusão. Mas vive de idolatrias. A ponto de estampar o
fetiche. Amuleto visual carregado para se atingir bênçãos do céu
nessa anômala vida na terra. Para isso, toda uma via crucis do cor-
po. Você quer ser tanto como Clarice. Bela também nas palavras.
Você quer extrair a questão, mesmo que para isso precise de muita
maquiagem. Você quer ser mais que a máscara. Você quer uma ver-
dade estabelecida. Sem o problema de como essa moral é fixada.
Crucificada numa marca que gruda. Tatuar um monstro: a peque-
na mulher objeto de cabelos loiros. Com a deusa dourada ornando
a pele, você quer ser Susi, Polly, Bratz, Helena, Mary, Linda. Você
quer ser Cristo e ter os poderes de Deus. Eugenia social: o modelo
precisa ser encarnado. Você quer a certeza de um credo e Deus lhe

95
dá um aspecto jamais conformado em organismo. Você quer ser
o divino feito carne, a coisa toda posta no corpo. Que sofre as
dores do mundo e mesmo assim segue em frente de salto alto.
Incômodos da reprodução de modelos, barulho da propagação
de estereótipos, acúmulo de lixo. Derramamento letal de seivas
sagradas. Fluxo de encontros violentos, o sangue se esparrama
na pele como imagens estanques na superfície da terra. Sempre
a mesma personagem, sempre a mesma historieta motivo de
vaso. Sempre o padrão grego. Sempre essa ânfora de gozos pro-
metidos. Você acaba por jejuar e fingir que está no deserto, você
decide não mais pintar os cabelos, você decide não se machucar
mais. Então você cai e se fere muito. A cruz que todo corpo car-
rega simplesmente porque inventa a própria força para, sempre
sozinho, se recuperar. Mesmo que os ferimentos não passem
de procedimento cirúrgico para adequar os órgãos ao que você
quer. Mas tudo o que você buscou para seu corpo terminará coa-
gulado e podre e não existirá escultura ou pintura em sua derme
outrora aderente. Exterminado, o invólucro não dissolve o tipo e
perdura no tempo. A intensidade de uma criação na extensão das
eras: a mulher desejada, o padecimento, o cristianismo. A per-
versão do brinquedo, idealização modelar, no existir de um co-
letivo esquizo. E Barbie dá medo. Você quer ser Barbie não para
ser como a Barbie porque ser uma boneca é completamente im-
possível. Você quer ser amada. Só isso. Adorada como o Salvador.
Ressuscitada cada vez que uma menina abrir a sua caixa. Viver
numa alegria de flores e cintilâncias, num mundo cor-de-rosa
ao som de canções bonitas, enfeitada com acessórios de arrasar.
Você queria ser adorada, comprada a qualquer preço, colecio-
nada como relíquia, virar toda uma cultura. Seu culto de femi-
nilidade e perfeição. Sua íntima ascese para aceitar o que você
mesmo é. Nesse formato fatal. Com o par certo. Beto, Bob, Ken,
Rich, Félix, Max. Deslizando sobre rodas no mais límpido sorriso.
Porém você sabe o quanto é horrível porque em seu mundo tudo
não é mais do que cenário de plástico e informação impressa
em papelão. Você quer ser mais do que um desenho para peças
industriais. Você quer casa e carro, crianças, bichinhos e ami-
zades. Você quer ter uma linha inteira de produtos. Você quer
ser a gatinha do pedaço, você quer ser satisfeita a qualquer pre-
ço. Você também quer ter profissão e todas as garantias. Você
se submete a tudo. Você quer ser leve, agradável, personalizada.
Seu roxo não pode ser de dor. Vermelhidões devem ser pondera-
das. Todo seu estudo é dominar a luz. Essa que tudo o que quer é
apenas brilhar. Nem que para isso tenha que aniquilar a matéria.
E usar riscos cruzados em ângulos precisos como símbolo para
suportar o despojamento de corpos. Crux et lux. Você quer ser

96
mais do que uma fôrma. Você quer ser mais do que uma imagem.
Você quer ser mais do que uma silhueta. Você quer estética, não
importa o que ela apresente. Só que você quer ser tudo que não
incomode, por mais incômodos que o que você quer exija. Então
você não pode ser derme, nem carne e nem arte. Tudo o que você
quer ser é sacrifício. Tudo o que você quer ser é ato, enquanto
tudo que você consegue ser é pathos.

Precursões
Esse texto foi composto após muitas e muitas horas com Cla-
rice Lispector, Caio Fernando Abreu e Hilda Hilst. Tantas leituras
que fica complicado referendar precisamente. Sem Sandra Mara
Corazza, seus textos, suas aulas, seus mil sonhos feiticeiros e seus
seis netos, estas palavras jamais existiriam. Com Nietzsche, num ir
e vir em suas obras, numa leitura anacrônica de aforismos, tentei
uma escrita leve. Suas cores vieram do livro Do espiritual na arte,
do russo Wassily Kandinsky que, ao virar uma pintura de ponta-
-cabeça, dizem ter descoberto a abstração. Mas tudo começou com
o trabalho Vaso Grego, da artista Vânia Mombach, minha amiga,
aquela tão quieta e recolhida que alguns acham ser invisível. Ela
fotografou, no Rio de Janeiro, uma moça cujas costas eram cobertas
pelo logotipo rosa cheio de flores clichês da boneca Barbie e trans-
forma, com manipulação digital, a superfície tatuada em um vaso
grego, alternando a forma torso-vaso com uma de suas fotografias
de hematomas, série ligada a uma exploração do corpo, própria a
todas as obras de Vânia. Os registros de traumas epiteliais aconte-
ceram atravessado pelo conceito derme pictórica, advindo da minha
tese. Orientada pela demônia organizadora deste livro, apresentan-
do os astroblemas abissais de uma educação dionisíaca, a tese foi
defendida com os monstros de Deleuze (dobrado no Foucault de As
palavras e as coisas), com o Exu Guattari e com a Salamanca do Ja-
rau, em 2004. O “impressionado” que me fez mostrar a inoperância
dos carrões na garagem, entre outras frases ao estilo de as coisas de
Arnaldo Antunes (quando publicado pela Iluminuras, em 1993) é
Rodrigo Grazziotin Silveira, criador de cavalos, diretor comercial de
uma construtora e incorporadora de Porto Alegre, no século passa-
do aluno meu na escola básica, o qual prescreveu dessa categoria
ao nos reencontramos em 2017. E quem cura próstatas e próstatas,
mantendo a potência dos operados, é Ricardo André Zordan, uro-
logista, médico do Hospital Moinhos de Vento, mestre em Patologia,
pai de duas filhas, ocupador crônico do corpo que aqui escreve.

97
98
A interpretação dos signos
Silas Borges Monteiro
Karen Elisabete Rosa Nodari

O
§1
que torna possível sonhar em Educação? Uma tarefa situada
na contramão do que apregoa o status quo, tendo em vis-
ta a atual avalanche de más notícias que invadem a mídia
a seu respeito: desde os baixos índices de desempenho nacionais
nas provas internacionais, a legião de jovens em idade escolar que
está fora tanto da educação formal como do mercado de trabalho,
a agressão de professores por alunos e até mesmo por suas famí-
lias. Fatos que compõem um cenário sombrio que mais parece um
pesadelo educacional do qual ansiamos por acordar. Afinal, seria
possível passar uma vida indo e voltando da escola, entrando e
saindo dos períodos que integram o horário escolar, participar das
inúmeras reuniões pedagógicas, das reuniões com pais, dos Conse-
lhos de Classe e não sonhar? O que dispara os sonhos que temos, ao
longo de uma vida docente, com o currículo e seus componentes:
Espaços, Imagens e Signos (EIS) e com a didática e seus elementos:
Autor, Infantil, Currículo e Educador (AICE)?
Sonho que não se relaciona ao processo psíquico, nem o de
visão noturna, ou meio de prever o futuro, muito menos espaço de
teofania, mas aquele que coloca em ação as energias cognitivas do
inconsciente, ao projetar algo amparado na utopia. E assim, ao fazer
a vida fluir o sonhador possa romper com a sua estagnação e pesadu-
me. Além disso, ao colocar a Educação em movimento, o sonhador/
Educador é capaz de se ver livre dos afetos tristes e das lamúrias que
o cercam. Durante um longo tempo, os sonhos foram desprezados
pela ciência, pela história da humanidade, como expressões simpló-
rias e alógicas de uma mente adormecida. Foi com a psicanálise que
o sonho recuperou uma posição privilegiada de algo que tem valor.
Sabemos que o uso popular aproxima sonhador e poeta. Em
comum, os dois mergulham fundo nas águas da fantasia, avessos
a necessidade de desempenho que nos rege. Desde muito tempo
imaginação onírica e imaginação poética são igualadas. Tanto o so-
nho como a poesia são do domínio do mythos e não do logos, ao
mergulharem numa lógica da ambiguidade, acionando insuspeitas
forças psíquicas. Além disso, por operarem sensorialmente a pala-
vra é apanhada na sua materialidade. A quase impossibilidade de
se traduzir poesia reside, como diz Mallarmé, no fato dela não ser
feita de ideias, mas de palavras. Paralelamente, o sonho não é for-
mado por ideias, mas imagens. Aristóteles já abordava a questão da

99
imaginação nos domínios da sensibilidade, desde o Tratado sobre
a alma, como no Tratado sobre a memória e a reminiscência. Po-
rém, seja nas palavras vistas como coisas, quanto as imagens são
reconduzidas, a um modo lógico-discursivo, no irrefreável impulso
interpretativo que poema e sonho provocam.

§2
Quando sonhamos nos tornamos poetas pois utilizamos os re-
cursos da figurabilidade, a imagem sensível, estabelecemos analogias
que não se impõem à primeira vista, vemos o que Walter Benjamin
nomeia de “semelhanças invisíveis”. Uma vez que, pela proximidade
das fontes inconscientes temos acesso a um conhecimento que pode-
ria ser classificado como intuitivo, cujo sentido etimológico significa
ver de dentro: in (dentro) + tour (ver), no inglês insight.
No entanto, o respeito que é dado ao sonho é anterior a Freud
− pai da psicanálise, pois no tratado Sobre a alma de Aristóteles
(encontramos a articulação da imaginação ao desejo: “E a imagi-
nação (φαντασία), quando move, não move sem o desejo” (Livro
III, 10). Sendo assim, entre o mythos e o logos, entre a ficção e a
realidade sonhamos com o fogo. Perpétua chama em movimento…
Elemento associado tanto aos poderes criadores como aos destrui-
dores da vida, adorado por muitos povos como divindade. A labare-
da sagrada pertencia aos deuses gregos até Prometeu: aquele que
compreende antes, tê-la roubado e dado aos mortais. Um ato de
amor e civilizatório pelo qual o deus humanizador foi condenado e
punido, eternamente. Se temos a agricultura, o número, a matemá-
tica, a medicina, a escrita e sua interpretação é graças a transgres-
são do titã. Nas palavras de Ricoeur (1977, 26): “Onde quer que um
homem sonhe, profetize ou poetize, outro se segue para interpre-
tar”. E interpretamos os sonhos. E interpretamos signos.

§3
Em 1900, Nietzsche morreu, Die Traumdeutung nasceu e permi-
tiu Foucault dizer, em uma palestra de 1975, “parece-me que Marx,
Nietzsche e Freud não multiplicaram de forma alguma os símbolos
no mundo ocidental. Não deram um sentido novo a coisas que não o
tinham. Modificaram, na realidade a natureza do símbolo e mudaram
a forma geralmente usada de interpretar o símbolo” (1997, 18). Qual
seria a natureza do símbolo? Parece ser: σημεῖον, que diz sobre uma
marca pela qual algo é conhecido, como uma verruga no rosto, como
uma cicatriz no queixo, como o amor pelo cinema, como a pontuali-
dade obsessiva da hora da caminhada. Se σημεῖον pode ser semióti-
co, Marx, Nietzsche e Freud foram além: modificaram os σύμβολους.
Esperem!, σημεῖον é diferente de σύμβολον, ou não?; σημεῖον
é marca, como quando se diz: marca de pontuação; σύμβολον é jun-

100
ção, ou seja, cada uma das metades ou de peças correspondentes de
um ἀστράγαλος ou outro objeto; e como se sabe, ἀστράγαλος é a
primeira vértebra cervical que se articula com a região occipital do
crânio e o sustenta: assuntos de Ἄτλας. Qual? O monte na África oci-
dental, conhecido como pilar do céu? O oceano Atlântico? O eixo da
terra? O número 10 dos pitagóricos? O gigantesco irmão mais velho
de Prometeu, governador do litoral escarpado conhecido por Atlânti-
da? Qual a natureza do σύμβολον? Ou queria Foucault dizer — e nos-
so descuido não tomou a palavra no primeiro momento — συμβόλή?
Συμβόλή é vir junto, reunir, ajuntar. Mas, o que estava sepa-
rado? Teriam M & N & & Freud juntado o que estava separado? Ou
modificaram o modo de juntar coisas separadas? Estavam separa-
das? Se sim, teriam elas sido efeito de διαβολος? Se συμβόλή é jun-
tar, διαβολ ή é separar o que estava junto? Há algo diabólico no sím-
bolo? Símbolo é interseção? O visível de uma realidade invisível?
Por que se ouve calúnia quando se diz διαβολή? A calúnia divide?
Não, escreveu Aristóteles (2005):

ὧν μὲν οὖν ἕνεκα ἀδικοῦσιν, ταῦτ᾽ Tais são, certamente, os motivos que a
ἐστίν: πῶς δὲ ἔχοντες καὶ τίνας, injustiça traz para si no exato momen-
λέγωμεν νῦν. to em que é feita. (1.12 [1])

καὶ τοὺς διαβεβλημένους ἢ εὐδια- Aos caluniados, e que facilmente se


βόλους: οἱ τοιοῦτοι γὰρ οὔτε προ- calúnia: pois não acusam por temor
αιροῦνται, φοβούμενοι τοὺς κριτάς, dos juízes, mesmo se fizerem, não os
οὔτε δύνανται πείθειν, ὡς μισούμενοι persuadem; contam-se os odiados e os
καὶ φθονούμενοι. invejados. (1.12 [22])

§4
Alvos da calúnia (διαβεβλημένους) são injustiçados
(ἀδικοῦσιν) pois invejados (φθονούμενοι). Um leitor de Aristóteles
escreveu: διάβολόν τι: aliquid invidiae: inveja-a-algo ou alguinvejá-
vel; em Aquino (2010, 489) se lê:

Quia in conatu invidiae est aliquid O esforço da inveja é algo com prin-
tanquam principium, et aliquid tan- cípio, e algo com meio, e algo com
quam medium, et aliquid tanquam término.
terminus.

Em Spinoza (2015, 244) se lê:

Quod si verò hæc ratio obscurius vi- Para que a razão não veja com obs-
deatur, age concedamus, illum cona- curidade, siga em frente: o esforço
tum se movendi aliquid esse præter movente de algo é sua própria lei, e a
ipsas leges, & naturam motûs. natureza do movimento.

Seria φθονέω a própria lei de διαβολή? A inveja deixaria de


ser aliquid moral a fim de ganhar potência?, como Bento escreveu
em outro livro (2016, Livro III):

101
Propositio VII. Conatus, quo unaquœ- Proposição 7: O esforço pelo qual
que res in suo esse perseverare cona- cada coisa se esforça por perseverar
tur, nihil est prœter ipsius rei actua- em seu ser nada mais é do que a sua
lem essentiam. essência atual.

Qual o conatus dos φθονούμενοι? Consumir-se a si mesmos? O


que se tanto inveja dos invejados? Qual o seu símbolo: cão, morce-
go, gavião, açor, serpente, escorpião, dragão?
invidia inveja
invideo invejar
in video in ver
videor se ver

De qualquer modo os invejados tem o esforço para se ver em


algo — com princípio, meio e término — a ponto de sem justiça
serem caluniados. Já se ouviu dizer que Atena era invejosa. Calúnia!
Foi corajosa ao auxiliar Prometeu a roubar o fogo dos deuses, mas
ao que tudo indica, não suportava desrespeito. Uma só vez se viu
nela um conatus para um adolescente desver o que não (de)via ter
visto. Pobre rapaz, viu a deusa em banho! Se com Agostinho isso
tivesse ocorrido, saberíamos como estava a brilhar sua luz interior:
“Quantas vezes, na adolescência, ardi em desejos de me satisfazer
em prazeres infernais” (1973, 357) Mas, não; um garoto, ainda sem
barba, de nome Tirésias, perdeu a visão da luz do Sol para ganhar a
visão da luz interior. (CALÍMACO, 1980) Ao que o Bispo-de-Hipo-
na (1973, 352) responde: com pessoas de opiniões contraditórias
“depende da fraqueza de quem enxerga e que não pode consultar
sobre todas as coisas a luz interior”: essa é uma solução a Tirésias?
Serviria isso como interpretação dos signos da luz interior?

§5
Diga mais: “A vida da interpretação, pelo contrário, é o crer
que não há mais do que interpretações.” (1997, p. 26). Aprendido
de Nietzsche, o francês deve ter se lembrado quando Fritz escreveu
entre final de 1886 e a primavera de 1887:

(...) só há fatos” eu diria: não, precisamente fatos não há, só interpretações.


Não podemos constatar nenhum fato “em si”: talvez seja um disparate que-
rer algo assim. “Tudo é subjetivo”, vós dizeis: mas já isso é interpretação, o
“sujeito” não é nada dado, mas algo acrescentado poeticamente, colocado
aí por detrás (2013, p. 262).

De qualquer modo, a tensão entre signos-interpretados con-


tra signos-usados tem efeito civilizador. Uma vez que é pela via da
interpretação que o signo força o pensamento a pensar e o abre a
novas interpretações. Tal como uma colcha que junta retalhos de
memória e as tece aleatoriamente, como Aracne, que ao ver seu len-

102
ço destruído por Atena, enforcou-se de tristeza. Sendo, logo depois,
transformada em um inseto pela deusa e a corda que lhe sufocava
virar uma teia. Tecidos de signos aracnêmicos, nascidos da falta de
ar transformado em pesadelo. Assim, como em sonhos, os signos
podem ser feitos de material aleatório sem encapsulá-lo na via de
mão dupla do significado-significante, como se houvesse uma re-
lação comensálica amentando ou conjurando uma presença que já
não é e talvez nunca tenha sido. Ambos, signo e sonho se furtam a
um todo, não cabem no logos e não se permitem totalizar, por mais
que as indagações por significados queiram atingir a exatidão cir-
cunstancial de sua produção, como, por exemplo, hábeis oniroman-
cistas perguntavam (2019):

Habuistine in hac nocte copulam con- Tiveste nessa noite copulação conju-
jugalem ante vel post somnium? gal antes ou depois do sonho?

Aracne indagada: copulates? Usastes a teia da forca para copular?


Sonhas com o que a de-vir?: cópula ou sufocamento? Como interpretas?

§6
Derrida leva adiante as indagações sobre o logos: o vê dando
as cartas mais do que a mão lhe permite. Ao longo do modo como
se conta a história de tudo que sucedeu ao jeito de falar-pensar dos
gregos o logos deu as cartas como um croupier, quando, na visão do
filósofo que queria ser jogador de futebol profissional, o jogo deve-
ria ser descentralizado. Esse centramento do logos como aquele que
dá significado, portanto, instaura o signo, alimenta uma fantasia de
que o símbolo-imagem-som é um veículo de transporte de carga cujo
conteúdo é composto de pacotes muito bem organizados e empilha-
dos de todos os sentidos possíveis. O logos de certo modo, é do que
trata a ordenação do logos como operador de sentido do pensamen-
to e do mundo. Assim, ele dirá que a filosofia, e portanto a metafísica
ocidental, é logocêntrica, pois ela é determinada a partir de um fun-
damento: “todos os nomes do fundamento, do princípio ou do cen-
tro, sempre designaram o invariante de uma presença” (1971, 231)
A presença é garantida pela imagem sonora? É a presença estrutura
de origem? Seriam signos composições de cadeias suplementares?

§7
Susan nasceu e morreu sob o signo de Capricórnio; quem rege
Capricórnio é Saturno. Pois, sob o signo de Saturno, a americana
sabia que o sexto planeta, a partir do Sol, mostra as fraquezas de
quem ele rege, pelos conflitos trazidos; mas, as pessoas capricor-
nianas também sabem que o Astro (seria a cápsula de azitromicina
di-hidratada?) é capaz de tornar os sonhos em realidade. Quando
escreveu sobre um virginiano, nascido em Berlin, redigiu: “Benja-

103
min analisa ambos os papéis segundo a teoria da melancolia. Uma
característica do temperamento saturnino é a lentidão”. Referência
ao texto Origem do drama trágico alemão, onde o berlinês de famí-
lia judaica registrou: “este mundo árabe haveria de ser o transmis-
sor de uma outra ciência helenística que alimentou a doutrina do
melancólico: a astrologia”. E arremata: pessoas nascidas sob a in-
fluência de Saturno são predispostas ao ânimo melancólico. Sontag
(1981, 66) vira-se a outro e escreve:

But while [Artaud] denouncing the Mas enquanto [Artaud] denuncia a so-
society that imprisons the mad, and ciedade que aprisiona o louco e afir-
affirming madness as the outward ma a loucura como o signo exterior
sign of a profound spiritual exile, he de um profundo exílio espiritual, ele
never suggests that there is anything jamais sugere que exista algo de liber-
liberating in losing one’s mind. tador em se perder o juízo.

Loucura é signo, escreve Sontag. Se a sociedade aprisiona al-


guns deles, não pensa que Artaud tenha achado libertador seu exí-
lio espiritual: nada romantizado. Outro entre em cena. Nietzsche,
um típico libriano, escreveu: “Comunicar um estado, uma tensão
interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo desses sig-
nos - eis o sentido de todo estilo” (1995, p. 57) De trás pra frente:
o estilo tem no tempo dos signos pathológicos o seu sentido. É isso
exilante (by Mirk Oh)? O bom estilo “não se equivoca nos signos, no
tempo dos signos”.

§8
Um português pega sua pena, entre sonhos, fantasmas, poeti-
sa: “O sonho é ver as formas invisíveis”. Como saber “se é sonho, se
realidade, se uma mistura de sonho e vida”? É preciso haver sonho?
Que valor há no real? Em que nos servem signos? “Ah, nessa terra
também, também O mal não cessa, não dura o bem”. Servem signos
à educação? Melancolia saturnina? Pintura de Francisco Goya: “O
sonho da razão produz monstros”.

§9
1º de janeiro de 2019. Não foi nesse dia; mas bem poderia ter sido.

Notas bibliográficas
A parte introdutória do texto que discorre sobre as caracterís-
ticas do sonho, a sua importância para a humanidade e relaciona
o sonho com a poesia tem como fonte o artigo de Meneses, Adélia
Bezerra: O sonho e a literatura: mundo grego. Psicol. USP [online].
2000, vol.11, n.2, pp.187-209. A aproximação entre sonho e me-
mória foi baseada na tese de João Cabral de Melo Neto, intitulada
Considerações sobre o poeta dormindo, apresentada no Congres-

104
so de poesia do Recife, em 1941. Quanto ao mito de Prometeu e a
participação de Atena foram embasadas nas seguintes obras: Bul-
finch, Thomas. O livro da mitologia: A idade da fábula. São Paulo:
Martin Claret, 2013., Hamilton, Edith. Mitologia. São Paulo: Câmara
brasileira do livro, 1999., Graves, Robert. The Greek Myths, London:
Pinguin Books, 1992. E, sobre a questão do símbolo foi consultado a
obra de Lurker, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2003. A citação de Paul Ricouer pertence a obra: Da in-
terpretação: Rio de Janeiro: Imago, 1977. Um segundo movimento
foi feito com dicionários, principalmente a) LIDDELL, Henry Geor-
ge; SCOTT, Robert; JONES, Henry Stuart. A Greek English Lexicon.
Oxford: Clarendon Press 1996; b) LITTRÉ, Émile. Dictionnaire de la
langue française. Abrégé du Dictionnaire de É. Littré. Paris: Hachet-
te et Cie, 1883; c) DROSDOWSKI, Günther. Duden Deutsches Uni-
versalwörterbuch. Mannheim: Bibliographisches Institut, 1989; d)
GAFFIOT, Félix. Dictionnaire Latin Français. Paris: Hachette, 1990.
Por fim, por memória e garimpo: a) AGOSTINHO. Confissões. De
magistro (do mestre). São Paulo: Abril Cultural, 1973; b) AQUINO,
Tomás de. Suma Teológica V. (Trad. Aldo Vannucchi; Bernardino
Schreiber, et al) São Paulo: Edições Loyola, 2012; c) ARISTÓTELES.
Retórica. (Trad. Manuel Alexandre Júnior; Paulo Farmhouse Alber-
to, et al) Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005; d) CA-
LÍMACO. Himnos, epigramas y fragmentos. (Trad. Luis Alberto de
Cuenca e Máximo Brioso Sánchez) Madrid: Editorial Gredos, 1980;
e) DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. (Trad. Maria Bea-
triz Marques Nizza da Silva) São Paulo: Editora Perspectiva, 1971;
f) FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum philoso-
ficum. (Trad. Jorge Lima Barreto) São Paulo: Princípio, 1997; g)
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. (Trad. Paulo César
de Souza) São Paulo: Companhia das Letras, 2019; h) NIETZSCHE,
Friedrich. Fragmentos póstumos: 1887-1889: volume VI. (Trad.
Marco Antônio Casanova) Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2013; i) NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o
que é. (Trad. Paulo César de Souza) São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1995; j) PESSOA, Fernando. Obra poética de Fernando Pessoa:
volume 1. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016; k) SONTAG, Susan.
Under the sign of Saturn. New York: Vintage Books Edition, 1981;
l) SPINOZA, Baruch. Ética. (Trad. Tomaz Tadeu) Belo Horizonte: Au-
têntica Editora, 2016; m) SPINOZA, Baruch. Princípios da filosofia
cartesiana e pensamentos metafísicos. (Trad. Homero Santiago e
Luís César Guimarães Oliva) São Paulo: Autêntica, 2015.

105
106
DIDÁTICA

AICE
autor
infantil
currículo
educador
107
108
A
autor

109
110
Amei um sonho?
Angélica Vier Munhoz
Fabiane Olegário

C
1876
om 110 versos rimados, Stéphane Mallarmé publica, em for-
ma de monólogo, o poema onírico L’Après-midi d’un faune. A
obra poética apresenta os delírios sexuais de um fauno que,
ao avistar ninfas na floresta, se deixa envolver por seu doce encan-
to, procurando-as em vão, ao som de sua flauta. Cansado, adormece
e alcança no sonho o que na realidade permaneceu distante.

Essas ninfas, desejo eternizar.


Tão claro,
Seu ligeiro encarnado volitando no ar
Preso de densos sonos.
Amei um sonho?
Minha dúvida, plena de noite, se extingue
Em folhagem sutil, que representa os próprios
Bosques, prova, ai de mim! Que, só, eu me ofertava
Como triunfo, a falta ideal de rosas.
Reflitamos...
Ou se essas damas que censuras
Simbolizam o aspirar de teus falsos sentidos! [...]
(Stéphane Mallarmé, 1876)

1894
Claude Debussy compõe o poema sinfônico Prélude à l’Après-
-midi d’un faune. Apesar de não usar o poema de Mallarmé como le-
tra, pois se trata de uma peça puramente orquestral, utiliza o tom,
as imagens e o intraduzível dos versos mallarmeanos como referên-
cia. Por meio de harmonia não funcional, alternando movimentos de
sons e silêncio, e com uma singularidade orquestral, Debussy move
os desejos e os sonhos de um fauno, roubando elogios do poeta.

Sua ilustração da tarde de uma vida selvagem não apresentaria


dissonância com o meu texto, se não ir mais longe,
realmente na nostalgia e na luz, com finesse, com riqueza.
(Stéphane Mallarmé, 1894)

1912
Nada de virtuosidades, nada de cenários espetaculares ou fi-
gurinos. Sete ninfas e um fauno dançam a provocação, a atração,

111
o sonho e o desejo. Um fauno, meio homem, meio animal, figura
humana com chifres, cauda e pernas de bode, reclina-se sobre uma
paisagem rupestre e então toca a sua flauta. Depois, para, observa,
afasta a flauta de sua boca, repousa-a no chão, eleva-se e caminha
em direção a um farto cacho de uvas, recolhe as uvas, simula comê-
-las. Esse é o primeiro ato de L’Après-midi d’un faune, poema coreo-
grafado por Vaslav Nijinski. Erótico e onírico, como o poema de
Mallarmé, Nijinski apresenta um fauno hipersexualizado, com seus
desejos explícitos e uma série de movimentos eróticos que se inse-
rem na composição musical de Debussy. A inquietante ausência de
tudo que até então compunha um espetáculo de balé desconcerta o
público na estreia da obra. Como interpretar? Pergunta o público.
O espetáculo, de simplicidade assustadora, sem um único passo de
dança clássica, apresentado em menos de dez minutos, mostra uma
técnica profundamente impura e inédita para a época.

L’Après-midi d’un faune será apenas a fonte da minha inspiração.


Eu quero traduzi-la do meu jeito
(Vaslav Nijinski, 1983)

1914
Adolf de Meyer, conhecido por fotografar os balés russos, regis-
tra a coreografia L’Après-midi d’un faune de Nijinski. Para recompor
o balé em movimento, De Meyer corta, sobrepõe e mescla imagens,
utilizando duas técnicas fotográficas. As fotos são tiradas com uma
câmera fotográfica que envolve o uso de grandes placas de vidro. Os
negativos de prata são retocados, retrabalhados e então passados​​
em prensas especiais, cujos rolos são impressos em tinta preta. Por
fim, o material é publicado em um livro de arte pelo decorador Paul
Iribe, em 1914, em Paris, e Nijisnki participa de seu financiamento.
O álbum é hoje conhecido como um arquivo da reconstituição da
coreografia de Nijinski e encontra-se no Musée d’Orsay, em Paris.

“Os experimentos técnicos sobre o jogo de luz mergulham difusamen-


te na pose e no enquadramento dos corpos.
Esse estilo de sonho se adapta ao luxo de meu universo”.
(Adolf de Meyer, 1914)

2007
A coreógrafa francesa Dominique Brun e a Associação Ligne de
Sorcière criam o filme Le faune — un film ou la fabrique de l’archive,
no qual destacam as múltiplas atualizações e recriações da obra de
Mallarmé. A leitura do poema epônimo, L’Après-midi d’un faune, feita
por Eve Couturier, a coreografia de Nijinsky, transcrita em sistema
de notação Rudolf Laban e interpretada por bailarinos contemporâ-

112
neos, a música de Debussy, as fotografias de Adolf de Meyer e, ain-
da, as entrevistas com Frédéric Durieux sobre Debussy e de Jacques
Rancière sobre Mallarmé compõem a narrativa fílmica, por meio de
uma hibridização artística que transversaliza linguagens.

“Decifrar L’Après-midi d’un faune permitiu-me descobrir a sua musi-


calidade, a sua modernidade, a sua autonomia, a sua sensualidade
e esta relação com a imobilidade que me tocou muito, porque fazia
parte da minha própria pesquisa.
Nesse trabalho retroativo encontrei meu próprio movimento [...].
Percebe-se que não se conhece nem o trabalho, nem o homem, mas o mito”.
(Dominique Brun, 2007)

***
Quantos mais poderão sonhar o sonho de Mallarmé? Serão
todos autores de um mesmo sonho? Como fazer durar um sonho?
Como manter viva uma obra de 1876? Sob quais formas ela pode
persistir no presente? Um poema, uma partitura musical, uma obra
coreográfica, um álbum fotográfico, um filme. Tornar e retornar.
Tudo se passa como se houvesse algo de insaturável. Em meio a
esse “onirismo ativo”, propomos três argumentos:
1. Reapropriar-se do que já fora apropriado. Partimos do pres-
suposto de que existe um gesto (nesse caso, um gesto onírico) pre-
cedente, de que é possível voltar-se criadoramente para o passa-
do, ativando possibilidades ainda não esgotadas em uma obra. O
sonho do fauno apresenta-se em muitas camadas, mas emerge de
uma mesma matriz — o poema de Mallarmé. Contudo, todas essas
camadas são lugares de incompreensibilidade, de um enigma que
não se reduz à interpretação, tampouco a uma busca de sentido
que supostamente serviria de aporte para interligar essas obras.
Trata-se de uma insistência em fazê-las perdurar, na medida em
que se entrecorta em meio a distintas reinterpretações. Tal vonta-
de de reinterpretação é um modo privilegiado de realização de um
campo imanente de inventividade ou, ao modo de André Lepecki, a
reivindicação de um reenactment como forma de rearticular o ar-
quivo e a vida, de produzir um arquivo em ato, de fazer retorná-lo
como forma de experimentação. Nesse caso, poderíamos indagar
se as fotografias e o vídeo seriam da mesma ordem do reenactment,
se assegurariam a reativação do arquivo ou até mesmo se seriam
instauradoras de obras novas, participando de seu funcionamento
estético. Afinal, trata-se de obras ou de documentação de obras?
Para Anne Benichou, essas novas imagens ativam as virtualidades
que a obra contém em sua reserva. Nessas apropriações plurais,
inventa-se, move-se, subverte-se um sonho para mostrar uma série
indefinida de sentidos. Reviram-se memórias e arquivos, sem exu-

113
mar uma história perdida para mostrá-la novamente. O sonho do
fauno revisitado frustra a quimera de uma proveniência original.
Rastreia-se, portanto, uma história feita de fragmentos e desconti-
nuidades para contradizer a lógica do legado. Filiação à memória,
mas também distorções e esquecimentos. O passado é olhado pelo
filtro do presente; os arquivos exumados e depois decifrados im-
põem descontinuidades nas quais escapam visões poéticas de um
passado do passado.
2. Anexar o sonho ao jogo do intraduzível. A coexistência do so-
nho de Mallarmé em gêneros diferentes — literário, musical, coreo-
gráfico, fotográfico, fílmico — revitaliza os faunos sob uma mesma
nomeação, da qual derivam palavras, notas, passos e imagens. Os
devaneios partem de outros devaneios, revigoram as imaginações
criadoras e intraduzíveis de um mesmo gesto. No poema L’Aprés-
-midi d’un faune, o poeta e o fauno já não se distinguem. Fundidos,
encontram-se em um jogo que se impõe entre o dito e a impossibi-
lidade de dizer, o nomeado e o inonimável, o traduzido e a força do
intraduzível. Insensíveis paradoxos que, insistentes e sedutores, se
movem entre a ingenuidade de deixar-se seduzir por um sonho in-
traduzível e a consciência de que um sonho é sempre uma ilusão e
um engano. “Desmaiar no sonho para, em seguida, voltar ao emba-
te”, diz Mallarmé. O poeta identifica-se com o fauno, mas o fauno é
vítima de ilusões, ao mesmo tempo em que também é ele a própria
ilusão. Nesse argumento, reside a proposição da impossibilidade
como aproximação do sonho intraduzível. A arte do intraduzível
como destino do sonho, via onírica, inebriante, sedutora, sussur-
rante, alcança a alma, precipita o que não se pode antever. Em meio
à impossibilidade de tradução, na qual persiste a força lancinan-
te da obra, é possível entender que o retorno de faunos e poetas
mostra a beleza mínima e arbitrária de um porvir manifesto pela
necessidade de perpetuar o texto apartado da verdade do original.
Trata-se de uma informação estética que não pode ser codificada,
tampouco revelada em um único sonho. Eis a sina de todo autor:
repetir os sonhos de outrem.
3. Sonhar a herança como condição de testemunho. Uma obra
não é propriedade instransponível daquele que se autodenomina
Autor. Ecoa a pergunta formulada por Foucault: o que é um autor?
Beckett, do outro lado do penhasco, parece responder com outra
pergunta: que importa quem fala? Anarquia dos signos, lúcida
embriaguez do autor, trânsito entre a tradição e a transcriação da
herança. De todo modo, herda-se um legado polifônico, instável,
transmissível em sua origem, fracassado quando se põe a garan-
tir a perpetuação e a reprodutibilidade eterna da obra primeira.
Abalo da tradição, dívida do herdeiro. Atitude estética, experiên-
cia concebida entre a potência do presente e a força do passado.

114
Diante do desvanecimento do rosto originário do pai, um teste-
munho irredutível do agora encontra-se inacessível e distante do
homem. Necessidade do sonho, é um dia sentir os lábios quen-
tes da morte junto aos seus. Antropofagia, córrego do desejo e da
vontade de subtração tradutória recriadora e crítica da matéria
devorada. Autor, sonhador, fantasiador, falsário, algoz, deturpador
de sonhos alheios, mergulha na escuridão plena da noite; seu ros-
to nunca é e jamais estará refletido no espelho; impossível vê-lo e
dizer seu primeiro nome. Malditos cruéis que brincam mascara-
dos, pois nada lhes resta, senão escutar o canto íntimo e perfuran-
te da sua natureza canibal.

***
Repetem-se outros faunos na arte repetidora, que encarna na
mão falsária do autor, conjunto de traços, desenhos de uma ter-
ceira pessoa, que nasce da junção entre nós e eles. A vida parece
ocupar-se de pequenos e múltiplos resíduos. Deles, arrancamos
a matéria do nosso fazer. Com um único golpe, satisfazemos as
necessidades íntimas, viscerais, inconfessáveis, de uma obra ina-
cabada. Reimpressão da obra primeira sugere incorporação das
dores e alegrias tantas vezes evocadas pelas letras. O banquete
de um espírito livre exige carnes frescas, banhadas a sangue e
devoradas por matilhas infiéis, traidoras e contrabandistas, que
sonham ao lado dos deuses da terra.
Sonhos serão sempre intraduzíveis? Triunfará, no sonho, o
autor? As guerras e as destruições constituirão as nascentes dos
sonhos? Talvez os sonhos só existam porque são da ordem do in-
traduzível. Ou porque, na tentativa de traduzi-los, descobrimos que
os seus sentidos só se aproximam pela via da língua, da matéria
bruta da linguagem. Então, novamente, percebemos que a tradução
de um sonho não implica a passagem de uma língua a outra, mas de
um corpo à língua, de um dito a um não dito, de um gesto a outro.
Trata-se, portanto, de um encontro que é também um desencontro,
pois é infiel à sua origem, infiel a si mesmo. No embate entre o
sonho e o autor, reside a incapacidade de dizer eu. Só há sonho, à
medida que se desfigurar o rosto do autor primeiro, se liquefizer o
nome próprio em prol de uma obra por vir, se percorrerem as mar-
gens até saturá-las, se saudar o conjunto de vozes que delas res-
soam. Estrangeiras e pouco reconhecíveis a si mesmas, tornam-se
ações necessárias, tomadas pelo autor como procedimentos diários
repetidos à deriva. Tais procedimentos sabotam e invalidam o eu,
que, arruinado, esfarelado, é devorado pela vontade de potência
afirmadora; logo, transmuta-se, transforma-se. Nesse processo de
mutação, o eu passa a grunhir, evocando a sua animalidade. Sabe
que é preciso morrer, cambiar a pele, vê-la secar, cair, para então

115
sentir os primeiros sinais de vida nova. Nada nos parece mais bru-
tal, belo e enigmático do que um rosto irrefletido no espelho, ou
então, uma voz que emite sons inaudíveis, inumanos, intoleráveis
às grandes orelhas. Sonho como morada das transformações do eu.
Isentos de nomes próprios, dotados de nós, autores sem rosto dese-
jam simplesmente testemunhar a obra pelas mãos de um autor de-
turpado, corrompido pela elevada potência do desfazimento. Aqui,
apenas nós e muitos faunos. Alguns ainda correm soltos; enquanto
alguns buscam uma saída, outros já se foram, e nem nós nem eles
sabem para onde. O fato é que perdemos as contas de quantos fau-
nos existem e de quantos poderão um dia existir. Não poderão ser
confundidos, jamais. Isso sabemos bem. Talvez uma única certeza
cambiante e insegura sobre os faunos. Ainda, nos vem de repente,
como uma lufada de ar quente, a ideia de que todos os faunos car-
regam o mesmo segredo: trata-se de confiar a sua alma ao mundo
poético, onde as falsificações reinam absolutas.

Ablações, roubos e referências


Para compor este texto, tomamos uma legião de vozes de auto-
res estimados. Ainda não sabemos bem ao certo se fomos nós que os
escolhemos ou se eles é que nos convocam a pensar. De todo modo,
citá-los tem sido, no nosso entendimento, uma forma de continuar
o que um dia escreveram em vida, de amá-los a ponto de vivificar a
obra. Ser digno de uma herança é alcançar o entendimento de que a
vida é ficção e depende de roubos e transformação do legado. Trou-
xemos para cá: a) MALLARMÉ, Stéphane. Mallarmé. Tradução de
Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. São Pau-
lo: Perspectiva, 1974. [p. 81-113]b) Lettre de Stéphane Mallarmé
à Claude Debussy datée du 23 décembre 1894, in Claude Debussy,
Correspondance: 1872-1918, Gallimard, 2005 [p.229]. c) BRO-
NISLAVA Nijinska, Mémoires. Tradução de Gérard Mannoni, Paris:
Ramsay, 1983, [p. 379]. d) MORIN, Alice. Quicksilver Brilliance: Adolf
de Meyer Photographs, Metropolitan Museum of Art, The Howard
Gilman Gallery, 4 décembre 2017-18 mars 2018. Transatlantica
Revue d’études américaines. American Studies Journal 1 | 2017. e)
BRUN, Dominique. Le Faune: Um Film ou La Fabrique de L’Archive.
Produção de Ligne de Sorcière, co-produção le CNDP, Direção Do-
minique Brun e Ivan Chaumeille. Paris, Scérén[CNDP], 2007. 1 Dvd,
120 min. color. son. https://dansercanalhistorique.fr/?q=content/
entretien-dominique-brun f) CAMPOS, Haroldo. Haroldo de Cam-
pos - Transcriação. Marcelo Tápia e Thelma Médici (Orgs). 1ed. São
Paulo: Perspectiva, 2013. g) FOUCAULT, Michel. O que é o autor? In:
FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos v. III: Estética, literatura e pintu-
ra. Tradução de Antonio Cascais e Edmundo Cordeiro. 2ed. Rio de

116
Janeiro: Forense Universitária, 2006. i) Para Anne Bénichou (2015),
reenactment refere-se aos fenômenos de recriação, reconstituição,
recuperação e outras formas de reativação viva de obras performa-
tivas do passado, eventos históricos ou fenômenos culturais. Esse
termo inglês é advindo do verbo francês réinterpréter. j) LEPECKI,
André. Le corps comme archive. Volonté de réinterpréter et sui-
vances de la danse. In: Recréer/Scripter. l) BÉNICHOU, Anne (org.)
Mémories et transmissions des oeuvres performatives et chorégra-
phiques contemporaines. Québec: Les presses du rée, 2015, p. 68
BÉNICHOU, Anne. Produire le document: Introduction. m) BÉNI-
CHOU, Anne (org.) Mémories et transmissions des oeuvres perfor-
matives et chorégraphiques contemporaines. Québec: Les presses
du rée, 2015, p. 129 n) BÉNICHOU, Anne. Produire le document: In-
troduction. o) BÉNICHOU, Anne (org.) Mémories et transmissions
des oeuvres performatives et chorégraphiques contemporaines.
Québec: Les presses du rée, 2015, p. 129 p) BACHELARD, Gaston.
O direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha. Rio
de Janeiro: Bertrand, 1994. q) MALLARMÉ, S. Oeuvres Complètes I.
Paris: Gallimard, 1998, p.154

117
118
Sem insônia: como o autor se
desfaz em seu próprio sonho
Gabriel Sausen Feil

utor-em-noite-sem-insônia dorme um sono denso; com-


pleta o ciclo todo: passa tranquilamente pelas cinco fases.
Na fase REM, seus olhos se movem rapidamente, como
deve ser. Através das fases, os sonhos se esboçam e o autor-
-em-noite-sem-insônia se desfaz. Isso pode acontecer de infini-
tas maneiras, mas este breviário expressa doze possibilidades:

1. Desfazer-se por desaparecimento


Na primeira fase do sono, quando o sonho apenas se ensaia em
rápidas cenas esfumaçadas, o corpo se solta e já começa a perver-
ter a mente sem a menor timidez. O autor-em-noite-sem-insônia
sente o movimento espasmódico de suas pernas quando, ao buscar
apoiar-se, o guarda-corpo de vidro da escadaria desaparece, deixa
de estar onde deveria ou parecia estar. O autor-em-noite-sem-insô-
nia escreve seu sonho, sonhando. Barthes e Foucault desamarram o
autor/sujeito de sua linguagem, de modo que o que se apresenta no
sonho é a abertura de um interstício onde o autor desaparece. Não
apenas o autor propriamente dito, mas as suas convicções - tais
como a posição e a presença do guarda-corpo de vidro -, e os seus
discernimentos em relação ao que está ou não está, como Alice em
relação ao Gato de Cheshire. O autor abandona, diz Foucault, “seu
papel de fundamento originário”; o autor não tem controle algum
sobre seu sonho; o sonho não se origina de sua cabeça, mas é a sua
cabeça que se conecta, agora mais intensamente, ao âmbito mais
fluído dos sonhos.

2. Desfazer-se por pantomima


A pantomima, diz Deleuze, é perversa, articula corpo e men-
te de modo disjuntivo e incoerente: o autor-em-noite-sem-insônia,
provavelmente já na terceira fase do sono, tenta correr e não conse-
gue; suas pernas estão absurdamente pesadas. Sua sensação é a de
desproporção, o peso não se justifica, é sem sentido, matemática e
historicamente. A razão diz que isso está errado, mostra para o cor-
po a clara impossibilidade da atual circunstância; o corpo, por sua
vez, prega-se ao chão com muita realidade, não abrindo mão dessa
imposição, dessa relação inegociável. Em outra noite, igualmente
sem insônia, o autor se sente acordado, ao menos pode enxergar
as paredes do quarto e a porta pendurada do armário, mas, horri-

119
pilantemente, não consegue se mexer e nem escutar, o seu corpo
parece não estar conectado à mente. Inicialmente, não consegue se-
quer respirar, mas, aos poucos, sente o movimento dos pulmões e
depois o leve mover de um dedo indicador. Somente se convence de
que ainda está vivo quando seus ouvidos se destrancam e passam a
ouvir o clássico ruído de seu velho ar condicionado.

3. Desfazer-se por hesitação


O autor-em-noite-sem-insônia se encontra injuriado consigo
mesmo por conta de nunca conseguir apanhar a bola; quando pa-
rece ter a chance, a bola acaba sendo levada pelo vento. Ele agora
se recorda de que essa situação já lhe ocorrera e que não expressa
uma boa sensação. Um campo aberto e plano, repleto de areia - não
a de praia ou a de dunas, branca, mas a colocada por caminhões-
-de-prefeitura em cima de chão batido, tornando-se escura, em tom
de terra - e algumas poucas pessoas sem camisas em uma tarde
nublada. Mas que agora, em que o vento parece ter acalmado-se,
finalmente pode se abaixar e agarrar a bola. Não há mais nenhum
obstáculo; é isto mesmo: basta fazer o último gesto. Ao tentar fazê-
-lo, não consegue, de modo que fica suspenso entre a sua própria
figura e o objeto, naquele cenário arenoso, amplo e nublado, com os
braços hesitando no ar.

4. Desfazer-se por composição múltipla


Característica recorrente dos sonhos do autor-em-noite-sem-
-insônia é a composição múltipla dos personagens, protagonistas e
coadjuvantes: um mesmo personagem se compõe a partir dos tra-
ços de diferentes pessoas, conhecidas ou desconhecidas. Os traços
misturam-se, de modo que não há um momento específico de mu-
dança; o autor sempre perde esse momento, dando-se por conta
do fenômeno somente ao acordar: “esta pata que não é nem direita
nem esquerda”, diz Deleuze. Neste sonho, nesta noite, o autor e seus
personagens atuam em cascatas: do geral para o particular. Assim,
um personagem é determinado como amigo antes de sê-lo especi-
ficamente este ou aquele amigo; tem o cabelo escuro antes de tê-lo
especificamente este ou aquele tom de escuro.

5. Desfazer-se por dissimulação


Nesta noite, Roberte, sua esposa, está diferente, de um jeito
em que o autor-em-noite-sem-insônia ama/deseja e odeia/afasta
ao mesmo tempo: ama o jeito por conta da performance da perso-
nagem; uma exibição incomum, surpreendentemente espontânea e
ousada; odeia o jeito em função de não ter qualquer controle sobre

120
os novos gestos da esposa, que desafiam a sua visão acostumada, já
codificada, a ter que recomeçar: uma nova perspectiva que instiga
uma sensação de liberdade e amplitude, mas também de perda sem
volta, de medo de arrepender-se.

6. Desfazer-se por inconveniência e insuficiência


Diz Foucault: “de um lado, disseram-me: você não descreve
Buffon convenientemente, e o que você diz sobre Marx é ridicula-
mente insuficiente em relação ao pensamento de Marx”. Ora, o au-
tor não toma outro autor como entidade íntegra; sempre o toma
de modo antropofágico, mastigando-o e, por consequência, trans-
formando-o: subtraindo alguns membros, acrescentando outros,
misturando substâncias que pertenciam ao objeto de mastigação
a outras vindas da acidez de seu próprio estômago canibal. Em
noite sem insônia, o autor não pode acreditar no que está acon-
tecendo, é tanta inconveniência, de modo que explode em raiva
como que dizendo “agora que já perdi a compostura, então, saio
de mim mesmo, perco a razão por completo”, descodificando a
gramática gestual. Tem consciência, por conta de experiências an-
teriores, de que depois da raiva sentirá vergonha de sua gestuali-
dade descontrolada; ainda assim, tal consciência não o impede de
expressar a incompostura. Ele grita, esbraveja, mas a outra pessoa
não reage, quando reagir seria tão simples e óbvio, quase natural.
A sua vontade, sem dúvida, é a de agredir. Esbraveja, até chora um
pouco (não apenas no sonho como também no travesseiro), mas
nada pode ser feito, nada é o suficiente.

7. Desfazer-se por vespa-e-orquídea


Em noite sem insônia, o autor, em sono profundo e marcante,
encontra/inventa a solução que precisa para o arranjo de sua nova
estratégia metodológica de avaliação, que irá explorar a capacidade
de escrita dos alunos de um modo em que estes não tendem ao tex-
to burocrático e protocolar. Sonha agora que está acordado e que
já olhou no celular que horas são, embora continue sonhando. Re-
pete para si a frase que seria de Foucault: claro, “afinal, Galileu não
tornou simplesmente possíveis aqueles que repetiram depois dele
as leis que ele havia formulado, mas tornou possíveis enunciados
bastante diferentes do que ele próprio havia dito”. Agora acorda e ri
de si mesmo, por estar sonhando com uma coisa dessas; além disso,
é claro que não é possível decorar um fragmento como esse e ainda
repeti-lo dormindo. Pela segunda vez, achou que estivesse acorda-
do quando segue sonhando. [As horas no celular ao lado]. O autor
de fato dá um jeito em seu problema metodológico de avaliação,
fica satisfeito com o seu arranjo inusitado, mas não é essa a grande

121
questão. A grande questão diz respeito ao fato de que, se por um
lado, parece óbvio que a solução não seria possível sem a participa-
ção de Foucault, por outro, a solução não se parece em nada com a
frase e sua intenção.

8. Desfazer-se por biografema


No sonho, o autor não reproduz e nem representa a sua vida,
mas se envolve em alguns detalhes e os preenche fantasiando/in-
ventando. É que o sonho é biografemático, ao estilo barthesiano.
Barthes não relaciona vida do autor e texto: é sempre a linguagem
que fala e não propriamente o autor. A vida serve apenas como um
instigador de texto, proporciona pormenores vazios que podem
ser preenchidos, também, em sonhos. A vida sopra esboços de de-
senhos, cenas, cenários, gostos, cheiros e sensações. O autor-em-
-noite-sem-insônia é Jack e anda ao lado do asfalto, escutando o
ruído de seus passos sobre a brita solta do acostamento. O autor-
-em-noite-sem-insônia agora é Roland vestindo seu casaco marrom
e seu cachecol igualmente brando. Antes de fumar o seu charuto em
frente aos velhos livros, puxa, com uma cordinha, a cesta de lanches
preparada por sua mãe, sempre muito prestativa. Antes de dormir,
o autor escuta um nome de pessoa - um nome qualquer, ordinário
- vindo da televisão desinteressante, ligada por nada; ao acordar, já
pela manhã, uma pessoa, que há muito não ocupava a sua atenção
conscienciosa - pessoa que responde pelo mesmo nome ordinário
-, parece-lhe tão presente, tão próxima.

9. Desfazer-se por agonia


Ao escrever, em sonho, o autor-em-noite-sem-insônia corre
atrás de um dentista; precisa encontrar, urgentemente, seu co-
nhecido-dentista. Por algum motivo, todos os seus dentes fron-
tais - em verdade, todos os dentes com exceção dos molares e dos
sisos - amoleceram a ponto de o próprio autor conseguir soltá-los
com seus dedos. Consegue fazer isso, aliás, com muita facilidade,
sem presença de dor e sangue, mas, por outro lado, a sensação
é desagradável, sensação de nudez-indesejada. Ao sorrir, sente-
-se, por conta da ausência dos dentes frontais e a manutenção dos
dentes do fundo, esteticamente, como um homem careca na frente
e cabeludo atrás.

10. Desfazer-se por produção


O sonho é produção de realidade, dizem Deleuze e Guattari, de
modo que se é verdade que é o autor que sonha, também é verda-
de que o autor que sonha não é o mesmo autor sonhado e não é o

122
mesmo autor que acorda e se recorda do sonho. Além disso, ainda
que seja o autor que sonha, não significa que seja ele o narrador do
sonho: a narrativa é coletiva, gritada por um bando de heterotopias
e agenciado por um indivíduo solitário com uma mão na terra e
outra no caos.

11. Desfazer-se por verdade do instante


Em noite sem insônia, o autor é despertado por um sonho sem
conteúdo, composto de um puro terror, de uma pura sensação de
terror. Nenhuma imagem, apenas uma sensação e um ruído extre-
mamente agudo, perturbador mas também íntimo. Todo sonho é
performático, dramático; performance e dramatização gestadas no
instante da própria produção do sonho. Em noite sem insônia, o au-
tor consegue voltar a dormir mesmo após o terror. Nesse segundo
ato, o autor, sonhando, interpreta o seu sonho; a sua interpretação
parece ser certeira e categórica: “é claro, trata-se de uma verdade
inquestionável e óbvia: é claro que foi por isso que acabei de ter
esse sonho!”. Sentindo o corpo como um saco de areia unido ao col-
chão, o autor-em-noite-sem-insônia sabe que acaba de sonhar em
sequência - como que por capítulos -, mas o conteúdo de tal sonho
lhe escapa de modo irrecuperável. O que fica é somente a precisão
do que sentiu e a certeza de que a motivação havia sido, momenta-
neamente, apreendida.

12. Desfazer-se por inversão de importância


Em momento levemente conflituoso de seu sono, a autor-em-
-noite-sem-insônia geme e range os dentes. Está incomodado por
não ter feito nada naquele momento em que o leitor ousou lhe dizer
tamanha incoerência. Não pode acreditar que optou pelo silêncio;
logo em frente a todo o auditório. O auditório deve ter percebido
o seu desembaraço e constrangimento. O pessoal da frente, sobre-
tudo, viu que, apesar do autor conservar uma expressão firme, o
leitor conseguiu abalá-lo. [O bebericar na garrafa de água mine-
ral; a caneta azul; a vontade de fazer xixi; as pessoas do protocolo
vestindo camisas brancas; o rapaz sentado no fundo com cara de
inteligente-desleixado]. Agora, o autor saberia exatamente o que
dizer, inclusive, saberia exprimir a resposta em tom adequado, na
dose certa entre a firmeza e a despreocupação. Ao acordar, pela ma-
nhã, o autor se recorda do conflito enfrentado por si mesmo nesse
último sonho, mas não consegue entender o porquê de tal sonho
ter conseguido lhe incomodar. Agora tudo parece tão tranquilo e
sob controle. Revisita, então, um pensamento já pensado por ele
mesmo em outras manhãs úmidas, em que a chuva da madrugada
parece ter acalmado os ânimos, humores e rumores: “durante a noi-

123
te, o que não tem importância, por vezes, é promovido a algo digno
de atenção; e o que tem importância de fato, ao menos em noites de
sonos profundos, permanece em reclusão, como que descansando
para voltar a importunar durante o vigília”.

Apropriações, menções e alusões


Este texto se apropria de conceitos, noções, argumentos, tira-
das e ideias de Gilles Deleuze de “Klossowski ou os corpos-lingua-
gens”, uma das apêndices de Lógica do sentido; de Deleuze e Félix
Guattari de Mil platôs (o entendimento de que o sonho produz e
não apenas representa e os conceitos de agenciamento e de dupla
articulação perpassam diferentes platôs e volumes); de Michel Fou-
cault de O que é um autor? e da conferência “De outros espaços”; e

124
de Roland Barthes de Sade, Fourier, Loyola e do ensaio “A morte do
autor”. O texto ainda faz menção à Alice no país das maravilhas, de
Lewis Carroll, e alusões a Diálogos, de Deleuze e Claire Parnet, a Ro-
berte, ce soir, de Pierre Klossowski, a On the road, de Jack Kerouac, e
aos movimentos do Bando de Orientação e Pesquisa (BOP), coorde-
nado por Sandra Mara Corazza. Foto: arquivo do autor.

125
126
Breve almanaque dos sonhos
Julio Groppa Aquino

E
m 1976, Libro de sueños de Jorge Luis Borges foi publicado
na Argentina; a versão brasileira da obra veio a público três
anos mais tarde. Trata-se de uma antologia — ou miscelâ-
nea, como o próprio prólogo a refere — em que são compilados 113
textos sobre os sonhos, recobrindo temporalidades e formatos es-
criturais bastante distintos entre si: a Bíblia, os mitos greco-roma-
nos, a filosofia chinesa, a literatura contemporânea e, entremeados
a eles, dez textos da própria lavra do escritor.
Borges instala-se no interior de um arquivo caudaloso e, em
alguns casos, de íngreme acesso. Nele, figuram personagens clás-
sicos desde Platão, Plutarco e Heródoto, passando por Pirandello,
Baudelaire e Lewis Carroll, até um tal Rodericus Bartius, autor
presumidamente inventado pelo próprio Borges. Com relação aos
escritores de língua portuguesa, apenas Eça de Queiroz é contem-
plado, ao passo que, curiosamente, Calderón de La Barca e Shakes-
peare são deixados de lado.
Ao movimentar tamanho conjunto de fontes díspares, com
vistas mais a uma catalogação desarrazoada do que a um enciclo-
pedismo paciente, o empreendimento do escritor argentino logra
gerar um primeiro efeito: a constatação de que os acontecimentos
afins ao domínio onírico dispensam toda forma de interpretação,
uma vez que o mero relato já consistiria em sua forma última e aca-
bada; um gênero autônomo, quiçá.
Segundo efeito: a saturação autoral. A partir de determinado
momento da obra, já não é mais possível saber quem fala, quando
fala e, sobretudo, do que se está a falar, precipitando uma inclemen-
te voragem das ideias, só ela capaz de atingir aquele ponto de fusão
em que todas as colorações se rendem ao branco. Trata-se, assim,
de fazer ouvidos moucos ao jugo autoral, ele próprio apenas uma
força variável ou, se se quiser, um elemento quebradiço na trama
histórica dos discursos.
O terceiro efeito do jogo borgeano, decorrente dos anterio-
res, é o chamado para que o leitor, por conta própria, se encar-
regue de dar continuidade à aventura por ele disparada. Efeito
rigorosamente onírico, talvez, em que o recomeço da ação é, ao
mesmo tempo, permanente e sempre incógnito. Sonha-se sem
fim, e não se pode evitá-lo.
Nessas bases, este breve almanaque foi tramado apenas com o
fito de “distrair o leitor curioso”, tal como Borges reputou seu inten-
to. Dessa vez, 13 fragmentos apenas.

127
I
Sonhei que estava sonhando / e que no meu sonho havia / um
outro sonho esculpido. / Os três sonhos superpostos / dir-se-iam
apenas elos / de uma infindável cadeia / de mitos organizados / em
derredor de um pobre eu. / Eu que, mal de mim! sonhava. / Sonha-
va que no meu sonho / retinha uma zona lúcida / para concretar
o fluido / como abstrair o maciço. / Sonhava que estava alerta, / e
mais do que alerta, lúdico, / e receptivo, e magnético, / e em torno
a mim se dispunham / possibilidades claras, / e, plástico, o ouro do
tempo / vinha cingir-me e dourar-me / para todo o sempre, para
/ um sempre que ambicionava / mas de todo o ser temia... / Ai de
mim, que mal sonhava. / Sonhei que os entes cativos / dessa livre
disciplina / plenamente floresciam / permutando o universo / uma
dileta substância / e um desejo apaziguado / de ser um com ser
milhares, / pois o centro era eu de tudo, / como era cada um dos
raios / desfechados para longe, / alcançando além da terra / ignota
região lunar, / na perturbadora rota / que antigos não palmilharam
/ mas ficou traçada em branco / nos mais velhos portulanos / e
no pó dos marinheiros / afogados em mar alto. / Sonhei que meu
sonho vinha / como a realidade mesma. / Sonhei que o sonho se
forma / não do que desejaríamos / ou de quanto silenciamos / em
meio a ervas crescidas, / mas do que vigia e fulge / em cada ardente
palavra / proferida sem malícia, / aberta como uma flor / se entrea-
bre: radiosamente. / Sonhei que o sonho existia / não dentro, fora
de nós, / e era tocá-lo e colhê-lo, / e sem demora sorvê-lo, / gastá-lo
sem vão receio / de que um dia se gastara. [Carlos Drummond de
Andrade, 1951]

II
Se o sonho é portador elas mais profundas significações hu-
manas, não o é na medida em que denuncia os mecanismos escon-
didos e que deles mostra as engrenagens inumanas, ele o é, pelo
contrário, na medida em que traz à luz a mais originária liberdade
do homem. E quando, por incansáveis repetições, ele diz o destino,
é porque ele chora a liberdade que se perdeu a si própria, o passado
indelével, e a existência decaída de seu próprio movimento em uma
determinação definitiva. [...] É preciso derrubar as perspectivas
familiares. Tomado em seu sentido rigoroso, o sonho não indica,
como seus elementos constituintes, uma imagem arcaica, um fan-
tasma, ou um mito hereditário; ele não faz destes sua matéria pri-
meira, e eles próprios não constituem sua significação última. Pelo
contrário, é ao sonho que todo ato de imaginação remete. O sonho
não é uma modalidade da imaginação; ele é sua condição primeira
de possibilidade. [Michel Foucault, 1954]

128
III
O bom da vida é para o cavalo, que vê capim e come. Então, dei-
tei, baixei o chapéu de tapa-cara. Eu vinha tão afogado. Dormi, dei-
tado num pelego. Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras,
vira flôr. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas
lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias.
Mas eu estava dormindo era para reconfirmar minha sorte. Hoje, sei.
E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada
árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando
conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adian-
te da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono.
Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é
absurdo — Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a
uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo,
só igual a ele mesmo nesta vida. Tinha notado minha idéia de fugir,
tinha me rastreado, me encontrado. Não sorriu, não falou nada. Eu
também não falei. O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto
de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios
em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço,
tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a
idéia da gente não dá para se entender — e acho que é por isso que a
gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando
meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar
feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum
sentimento, feito um decreto: — Que você em sua vida toda toda por
diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!...
— que era como se Diadorim estivesse dizendo. Montamos, viemos
voltando. E, digo ao senhor como foi que eu gostava de Diadorim: que
foi que, em hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de rir
dele. [João Guimarães Rosa, 1956]

IV
Quidquid luce luit, tenebris agit [o que aconteceu na luz, atua
nas trevas]: mas também o contrário. Aquilo que vivemos no so-
nho, e que nele vivemos repetidas vezes, termina por pertencer à
economia global de nossa alma, tanto quanto algo “realmente” vi-
vido: em virtude disso tornamo-nos mais ricos ou mais pobres, te-
mos uma necessidade a mais ou a menos, e afinal somos um pouco
guiados pelos hábitos de nossos sonhos, em plena luz do dia e até
nos momentos mais serenos do nosso espírito desperto. Supondo
que alguém voe com frequência nos sonhos e que enfim tome cons-
ciência, ao sonhar, de um poder e arte de voar que seria privilégio
seu, e sua felicidade mais particular e invejável: alguém que creia
poder realizar toda espécie de curvas e ângulos com o mais etéreo

129
impulso, que experimente a sensação de uma certa leveza divina,
de um “para cima” sem esforço e tensão, de um “para baixo” sem
condescendência e humilhação — sem gravidade! — como poderia
uma pessoa com tais expectativas e hábitos nos sonhos não achar
finalmente que a palavra “felicidade” tem cor e definição diferentes
também no seu dia claro? Como não teria ela um diferente — anseio
de felicidade? A “elevação”, tal como descrita pelos poetas, deve lhe
parecer, comparada a esse “voo”, demasiado terrena, muscular, vio-
lenta, demasiado “grave”. [Friedrich W. Nietzsche, 1886]

V
Eu tive um sonho esta noite que não quero esquecer, / por
isso o escrevo tal qual se deu: / era que me arrumava pra uma fes-
ta onde eu ia falar. / O meu cabelo limpo refletia vermelhos, / o
meu vestido era num tom de azul, cheio de panos, lindo, / o meu
corpo era jovem, as minhas pernas gostavam / do contato da seda.
Falava-se, ria-se, preparava-se. / Todo movimento era de espera e
aguardos, sendo / que depois de vestida, vesti por cima um casaco
/ e colhi do próprio sonho, pois de parte alguma / eu a vira brotar,
uma sempre-viva amarela, / que me encantou por seu miolo azul,
um azul / de céu limpo sem as reverberações, de um azul / sem o
“z”, que o “z” nesta palavra tisna. / Não digo azul, digo bleu, a ideia
exata / de sua seca maciez. Pus a flor no casaco / que só para isto
existiu, assim como o sonho inteiro. / Eu sonhei uma cor. / Agora,
sei. [Adélia Prado, 1976]

VI
Tem-se dito que dormir consiste em se isolar do mundo exte-
rior. Mas mostramos que o sono não fecha nossos sentidos às im-
pressões externas, que ele empresta delas os materiais da maior
parte dos sonhos. Tem-se visto ainda no sono um repouso dado
às funções superiores do pensamento, uma suspensão do raciocí-
nio. Não creio que isso seja mais exato. No sonho, nos tornamos
frequentemente indiferentes à lógica, mas não incapazes de lógica.
Eu quase diria, correndo o risco de beirar o paradoxo, que o erro
do sonhador é antes o de raciocinar muito. Ele evitaria o absurdo
se assistisse, como simples espectador, ao desfile de suas visões.
[...] Não é, pois, pela abolição do raciocínio, não mais que pelo fe-
chamento dos sentidos, que caracterizaremos o estado de sonho.
[Henri Bergson, 1901]

VII
É o fato de estarmos adormecidos que dá ao sonho aquelas
dimensões, aqueles ritmos de escafandristas às coisas que se de-
senrolam diante de nós. Aquelas distâncias, aqueles acontecimen-

130
tos nos quais não podemos intervir, diante dos quais somos invaria-
velmente o preso, o condenado, o perseguido. Contra os quais não
podemos de nenhum modo agir.
Não sei se será adiantar-se demais pelo terreno do “literá-
rio”, dizer que é possível reconhecer em todos esses elementos
que compõe o clima do sonho, esse clima que como o da poesia,
é um clima de tempestade, uma imagem da própria aparência do
homem adormecido. Ambos: os acontecimentos do sonho e o ho-
mem adormecido, profundamente marcados pela presença mes-
ma do sono, essa presença que não é de nenhum modo, apenas a
ausência de nossas vinte e quatro horas, mas a visão de um terri-
tório que não sabemos, do qual voltamos pesados, marcados por
essa nostalgia de mar alto, de “águas profundas”, para empregar
a tradução que Americo Torres Bandeira faz das desconhecidas
sensações nele provocadas por uma anestesia de clorofórmio.
Como não reconhecer essa presença do sono na atitude do corpo
de quem dorme, nessas poses não raro trágicas (irônicas), nas pa-
lavras que se quer balbuciar, na fisionomia em que adivinhamos,
inegavelmente, os sinais de uma contemplação, e que é sob outro
aspecto, um sinal de vida? [João Cabral de Melo Neto, 1941]

VIII
Limitamo-nos, frequentemente, a distinguir entre o devaneio
diurno, o sonho acordado, e o sonho do sono. Mas trata-se de uma
questão de cansaço e de descanso. Perdemos, assim, o terceiro es-
tado, talvez o mais importante: a insônia, a única adequada à noite,
e o sonho da insônia, que é uma questão de esgotamento. O esgo-
tado é o arregalado. Sonhamos no sono, mas sonhamos ao lado da
insônia. [...] Os dois esgotamentos, o lógico e o fisiológico, “a cabeça
e os pulmões”, como diz Kafka, se encontram a nossas costas. Kafka
e Beckett pouco se assemelham, mas têm em comum o sonho inso-
ne. No sonho da insônia não se trata de realizar o impossível, mas
de esgotar o possível, seja dando-lhe um máximo de extensão, que
permite tratá-lo como um real diurno acordado, à maneira de Kaf-
ka, seja, como Beckett, reduzindo-o a um mínimo que o submete ao
nada de uma noite sem sono. O sonho é o guardião da insônia, para
impedi-la de dormir. A insônia é o animal entocado, que se estende
tanto quanto os dias e se retrai com tanta força quanto a noite. Ater-
rorizante postura da insônia. [Gilles Deleuze, 1992]

IX
Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo. / São — tic-
tac visível — quatro horas de tardar o dia. / Abro a janela directa-
mente, no desespero da insónia. / E, de repente, humano, / O qua-
drado com cruz de uma janela iluminada! / Fraternidade na noite!

131
/ Fraternidade involuntária, incógnita, na noite! / Estamos ambos
despertos e a humanidade é alheia. / Dorme. Nós temos luz. / Quem
serás? Doente, moedeiro falso, insone simples como eu? / Não im-
porta. A noite eterna, informe, infinita, / Só tem, neste lugar, a hu-
manidade das nossas duas janelas, / O coração latente das nossas
duas luzes, / Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a
vida. / Sobre o parapeito da janela da traseira da casa, / Sentindo
húmida da noite a madeira onde agarro, / Debruço-me para o infi-
nito e, um pouco, para mim. / Nem galos gritando ainda no silêncio
definitivo! / Que fazes, camarada, da janela com luz? / Sonho, falta
de sono, vida? / Tom amarelo cheio da tua janela incógnita... / Tem
graça: não tens luz eléctrica. / Ó candeeiros de petróleo da minha
infância perdida! [Fernando Pessoa, 1931]

X
No meio da noite, em meu desamparo fui acometido por um
verdadeiro acesso de loucura, não conseguia mais dominar as aluci-
nações e tudo se fragmentava, até que no meio do maior apuro veio
em meu amparo a imagem de um chapéu preto de general napo-
leônico sendo enfiado sobre minha consciência e a refreando com
toda a força. Com isso meu coração disparou que foi uma beleza e
afastei o cobertor, embora a janela estivesse escancarada, e a noite,
bastante fria. [Franz Kafka, 1913]

XI
Sonho com pouca frequência; e então é com coisas fantásticas
e com quimeras, produzidas comumente por pensamentos agradá-
veis, mais ridículos que tristes. E tomo como verdade que os sonhos
são leais intérpretes de nossas inclinações; mas há arte em combi-
ná-los e entendê-los. Res quae in vita usurpant homines, cogitant,
curant, vident, quaeque agunt vigilantes, agitantque, ea sicut in som-
no accidunt, minus mirandum est. [As coisas que os homens utilizam
na vida corrente, e o que acordados eles pensam, acertam, veem,
fazem, examinam, também aparecem em sonho: nada de espantoso
nisso.]. [...] As histórias dizem que os atlantes nunca sonham: que
também não comem nada que tenha sido morto, o que acrescento
porque talvez seja a razão para que não sonhem. Pois Pitágoras or-
denava certa preparação da comida para ter sonhos apropriados.
Os meus são suaves: e não me trazem nenhuma agitação do corpo
nem expressão de voz. Vi vários em minha época serem fantastica-
mente agitados pelos sonhos. [Michel de Montaigne, 1580]

XII
Como se sabe, os sonhos são uma coisa muito estranha. Per-
cebemos neles, com uma clareza assustadora, com uma artística

132
elaboração, certos pormenores, ao passo que passamos outros
completamente por alto, como se não existissem, sucedendo
assim, por exemplo, com o tempo e com o espaço. Creio que os
sonhos não os sonha a razão, mas o desejo, não a cabeça, mas o
coração, e, no entanto, sobre que coisas tão complicadas passa
às vezes a minha razão, no sonho! Coisas absolutamente incom-
preensíveis. Por exemplo:
Há cinco anos que morreu o meu irmão, mas eu costumo vê-lo
frequentemente nos meus sonhos, toma parte em tudo quanto me
interessa, falamos longamente de tudo quanto se possa imaginar,
mas, ao mesmo tempo, tenho sempre a consciência e nunca me es-
queço um momento que há já muito tempo que o meu irmão está
morto e enterrado. Mas a que é devido o fato de eu não estranhar,
de maneira nenhuma, a sua presença? Que não me espante que o
morto se sente junto a mim e que me fale? Por que não se revolta
a minha razão? Mas já chega. Vou agora falar-lhes do meu sonho.
Sim, nesse tempo tive eu aquele sonho, o meu sonho de três de no-
vembro. Os senhores dir-me-ão, agora, que se tratou apenas de um
sonho. Mas é completamente indiferente que fosse um sonho ou
não fosse, uma vez que este sonho me tivesse revelado a verdade?
Porque uma vez que se reconheceu a verdade, depois que ela se
vê, já sabemos que é a verdade única, que fora dela não pode haver
nenhuma outra, quer estejamos adormecidos ou acordados. Pois
bem: se é um sonho, por mim, admito-o. Mas essa vida, que os se-
nhores tanto apreciam, estava eu disposto a deixá-la servindo-me
do suicídio, ao passo que o meu sonho, o meu sonho... ah, o meu so-
nho veio revelar-me uma vida nova, grande, maravilhosa! Atenção.
[Fiódor Dostoiévski, 1877]

XIII
Carrego o peso da lua, / Três paixões mal curadas, / Um saara
de páginas, / Essa infinita madrugada. / Viver de noite / Me fez se-
nhor do fogo. / A vocês, eu deixo o sono. / O sonho, não. / Esse, eu
mesmo carrego. [Paulo Leminsky, 1987]

133
134
I
infantil

135
136
Infantil: um corpo-máquina de
escrever sonhos em educação
Daniele Noal Gai

Sonhos em educação: numa encruzilhada

E
encontramos pelo menos 3 saídas
ste texto procedimental e simples deixa expostas as 3 saí-
das (definitivas e destruidoras) para os corpos máquinas de
escrever sonhos em educação. Rogamos, oramos, rezamos,
giramos, anunciamos, poemamos e escritapoesia fazemos: ainda,
sonhamos com educação pública. Alguns sonhos proféticos nos ex-
pandem, fazem durar e nos mudam (e empurram os tempos som-
brios). Liturgia dos sonhos é a encomenda. Interpretar cânticos,
esquizosonhar. Para desamarrar o que segura ou trava as entradas
e saídas dessa encruzilhada, pois que as máquinas de escrever so-
nhos em educação vazam por sobrevivência e vida: 3 saídas fixas da
encruzilhada da educação, com suas 7 proféticas marcas esfacela-
doras de corpos; sonhos prenúncios esquizos para a educação, com
7 autores e seus corpos máquinas de sonhos.

Sonhos prenúncios para a educação,


vazados de máquinas corpo de sonhos
Numa encruzilhada encontramos pelo menos 3 saídas. No
atual esquema que escreve e prescreve a educação e a escola
encontramos, mais do que há uns 3 anos atrás, a ortopedia, a
normalização, a terapêutica dos corpos. Nunca imaginamos, nós
das filosofias nômades da diferença, nem 2019 vezes por azar
pensaríamos, que ainda escreveríamos em nossas máquinas de
escrever sonhos em educação um texto rançoso, ressentido, com
chavões, feito de clichês e banhado no óbvio. Um tal Future-se
aponta-nos a encruzilhada. Quem consegue avistar horizontes

137
nas trevas? Sem qualquer perspectiva para pontes, atravessa-
mentos cambaleantes, danças nômades, corpos-rabo-de-lagar-
tixa (Gai, 2015), corpos maquininhas de sonhos, corpos disfor-
mes e sonhos de encanto em educação pública. Este tornou-se
nosso longo, pesado, depressivo e demorado Presente. Um pe-
sadelo para sair, com sorte, apegados na magia e na mística dos
sonhos possíveis, daqueles que ainda sonham quando, por me-
recimento, dormem.

Encruzilhada I ou II ou III
Sintomas e/ou Queixas Escolares
I. Nada dorme. Não durmo. Eles sonham dormir e sonhar.
Sonhos de escrita não dormem. Militantes em educação sonham.
A escritapoesia é feita de espírito de jogo e sonho.
II. Minha maquininha de escrever sonhos pulsa. “O pulso
pulsa”, dizia Arnaldo Antunes. Sonhos não dormem pois que pu-
lulam no pulso.
III. Os pensamentos sonham, e voam, e não se escrevem. O co-
ração não dorme, sonha. As noites e os sonhos são de escrita, dizia a
estudante de graduação. Minha máquina-corpo já não sonha dessa
forma, jovem!
IV. Os sonhos das minhas noites sozinho na cama são reais,
Professora. Dizia-me aquele guri marcado pela deficiência mental
e pela contação de histórias ditas como mentiras: eu apenas sonho,
não leio ou escrevo, e vejo as letrinhas desta máquina voando.
V. Sonho-te tal raspagem na tela branca. Durmo e sonho com
uma escrita que seja tatuagem. Sonhos de maquininhas de doces.
VI. Sem sono. Sem sossego no horário do soninho da tarde.
Preguiçosa, come letras, esquece os casacos: qual escrita serve a
esse corpo? Sonha com seu mundo da lua escrever e datilografar e
diagramar e ilustrar e encadernar.
VII. Quando já enferrujada fazia suas melhores aulas, trata-
vam-lhe como a Senhora Sonho. Que sonho d´aula! Participou da
construção de um arquivo de sonhos possíveis para a educação.

Encruzilhada I ou II ou III
Diagnósticos e/ou Avaliação Pedagógica
I. Sonhos não dormem. Realidade não existe. Muito menos a
verdade existe. Na máquina (infantil) de sonhos os sonhos intuem,
memorizam, aprendem, conversam, transformam.

138
II. Memória se faz com sono, sonhos e trechos enferrujados de
nossos dias. Sonhos não se aceleram. Sonhos não aceleram.
III. Sem cura do sonho deste tipo de corpo, muito bobo. Soltar
o acúmulo de gases e respirar fundo, é coisa de louco.
IV. Sonhos proféticos. Sonhos anúncios de futuros. Premoni-
ção. Pressentimento. Bruxaria de quem escreve a vida, e encara a
morte. Sensibilidade. Sensitivo. Tem presságio. Sem prognóstico.
Agonia. Angústia. Ansiedade: a máquina infantil dos sonhos parou
paradoxalmente acelerada.
V. Resguardar seus sonhos no sossego do banho morno. És memó-
ria; és cheiro; és ranço; és coisa de sonho. Andar, andar, andar, para sonhar.
Máquina-corpo-infantil é espírito potencialmente sonhador.
VI. Sensibilidade de ver antes, é (mística ou mágica) da ordem
das máquinas-corpo-infantil.
VII. “Os espaços do sonhar, para o Aborígene do deserto, in-
cluem o ritual, o mito e a experiência onírica de encontros com
espíritos ancestrais totêmicos, que também são agentes materiais
que se transformam e todas as formas animadas e aspectos da terra
e do céu”. (Glowczewski, 2015, p. 31).

Encruzilhada I ou II ou III
Terapias e/ou Reforços Psicopedagógicos
I. “Basta sonhar. É preciso se deixar adormecer, assim, ino-
centemente, e deixar seu corpo dançar nesse estado onírico. Não
pensar no que faz ou deixar de fazer. Os olhos estão abertos mas,
vejam, são olhos de quem sonha. Não são aqueles olhos que não
conseguem nem se desviar, “oh, que lindo”. No sonho, podemos dia-
logar ainda que estejamos distantes, ainda que estejamos aparta-
dos, assim como não é preciso dizer “eu te amo” — a gente sabe”.
(Ohno, 2016, p. 190).
II. “Qual é o tempo do sonhar? O Sonhar é o presente, mas
também o “muito tempo atrás”. Para mim, este tempo que é tanto o
presente quanto “o muito tempo atrás” não é um tempo histórico,
mas um tempo de metamorfose. É um tempo dinâmico, porém um
tempo de transformação. [...] Um aborígene não diz que um territó-
rio lhe pertence, mas que ele pertence ao território. Um território
não se ocupa, a terra não está para ser conquistada, ela dá sentido
aos povos. É dinâmico e flutuante. Não é por acaso, a maior parte
dos territórios corresponde a jazidas minerais, há uma ligação en-
tre todos estes itinerários e o subsolo.” (Glowczewski, 2015, p. 57).

139
III. “Um motivo infantil típico é o sonho de crescer ou diminuir
infinitamente, ou passar de um para outro extremo como Alice no
País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Mas devo, novamente, acen-
tuar que são motivos a serem considerados dentro do contexto do
sonho, e não cifras de um código que se explicam por si mesmas.
[...] O sonho recorrente é digno de apreciação. Há casos em que as
pessoas sonham o mesmo sonho desde a infância até a idade adul-
ta. Esse tipo de sonho é em geral uma tentativa de compensação
para algum defeito particular que existe na atitude do sonhador em
relação à vida; ou pode datar de um trauma que tenha deixado algu-
ma marca. Pode também ser a antecipação de algum acontecimento
importante que está para acontecer”. (Jung, 2016, p.61-62)
IV. “O termo “profeta” — tomado do grego para designar
uma condição estranha à cultura grega — nos enganaria se nos
convidasse a fazer do nabi aquele que diz o futuro. A profecia
não é apenas uma fala futura. É uma dimensão da fala que a com-
promete em relação com o tempo muito mais importantes do
que a simples descoberta de certos acontecimentos vindouros.
Prever e anunciar algum futuro é pouca coisa, se esse futuro se
insere no curso ordinário da duração e se exprime na regularida-
de da linguagem. Mas a fala profética anuncia um futuro impos-
sível, ou faz do futuro que anuncia, e porque ela o enuncia, algo
de impossível, que não poderíamos viver e que deve transtornar
todos os dados seguros da existência. Quando a palavra se torna
profética, não é o futuro que é dado, é o presente que é retirado,
e toda possibilidade de uma presença firme, estável e durável”.
(Blanchot, 2005, p.113 – 114).
V. “É sobre o misterioso entendimento da profundidade
noturna que o diálogo se encerra, e por uma volta obscura, obs-
cura talvez para o próprio poeta, à figura proibida, a silenciosa
presença de baixo, que não é nem o sólido bem da terra, nem a
graça, desejo do espírito, mas a potência de uma paixão tene-
brosa, a única que lhe permitiu, outrora, ultrapassar as fron-
teiras, que o uniu à noite e lhe deu, ao mesmo tempo que a
revelação do impossível, a alegria e a embriaguez do desconhe-
cido: Quem foi que gritou? Ouço um grito na noite profunda!”
(Blanchot, 2005, p.110 – 114).
VI. “Tenho um pânico enorme da morte. Tenho medo de en-
contrar o desconhecido. Quando eu saía do corpo, um dia vi um go-
rila enorme, de três metros. Eu me agachei inteira, estava aqui nes-
se terraço. Sabe o que ele fez comigo? Um cafuné na minha cabeça.
Eu toda encolhida, como medo, e ele veio fazer um cafuné na minha
cabeça”. (Hilst, 2013, p. 209).

140
VII. “Em paz. Em tumulto às vezes, porque tudo é muito difícil. As
pessoas querem respostas como se eu fosse uma sábia — e eu não sou. Eu
leio Heidegger, Hegel, Kierkegaard, Wittgenstein e percebo que eles tam-
bém não têm uma resposta acalentadora pra gente”. (Hilst, 2013, p. 209).

EIS AICE: traduzir sonhos


I. EIS AICE (2019): traduzir em sonhos. Do bloco das le-
tras, o segundo bloco de letras. Do segundo bloco de letras, o
Infantil. O “i” de Infantil. O Infantil: a maquininha dos sonhos?
Um Infantil? Aquele das maquininhas de escrever a escrita dos
sonhos. O espírito infantil dos sonhos, um corpo-maquininha-
-de-escrever-a-escrita-enferrujadas. Corpos-rabo-de-lagartixa-
-infantil: quase máquinas. Sonhos digitados, datilografados em
máquinas [enferrujadas] que escrevem em meio as coisinhas
que fazem as coisas.
II. EIS AICE, Corazza? Sugere, roga, crê, sonharmos com Eis
Aice. Sim, sonhemos em educação. Diria eu, com força, 2019 vezes,
sonhemos, ainda, em educação pública. Da sigla, me dedicastes o
segundo bloco de letras, e o “i” torna-se meu nessa invenção de so-
nhos (de escrita) em educação? Pretendia tratar do “infantil” antes
que você propusesse a mim. Farei o tratamento à óleo (azeitando
para caber o sem cabimento de minha “escritapoesia” (Gai, 2015)),
uma vez que as dobradiças de minha escrita se fixaram há anos. Fa-
rei a minha escrita com as possibilidades de uma escrita da escrita
com a escrita desta escrita.
III. Lhe parece bem, “i”? Traz tuas imagens para esta produ-
ção (de) escrita? Neste atelier de corpos juntemos as ferrugens das
máquinas-corpos? Máquinas que ao lerem tomam um banho de es-
crita. Água e ferro combinam? Água e corpos e humidade, também
combinam pouco.
IV. A minha criança levou fungos da escrita forçada. Sim, na al-
fabetização do brincar a máquina Infantil fabrica potência, expande
e invade o alegre da vida.
V. Nas máquinas (corpo infantil) dos sonhos, de dias passa-
dos, um encontro, e com a escrita dos autores preferidos e únicos
da estante. No velho escritório havia uma máquina proibida e nela
aprendemos, os privilegiados, a cureosear e a desejar a escrita
que vaza em papéis.
VI. Entenda que sonhar é interpretar o vivo dos dias. O que
inclui relacionar-se com a materialização de um corpo outro em
seu convívio, com a morte inclusive. Não tenha medo, se espante

141
apenas. Um banho de ervas, o fogo para queimar o por vir, o aconte-
cimento, o que vem, o devir.
VII. Nas máquinas corpos infantis ainda se encontra sonhos
de escrita.

* Imagens do arquivo pessoal da autora. Dos escombros. Do


que ficou escondido. Daquilo que vive os que andam. Do que é feito
em educação em meio à vida. Das possibilidades da imagem como
disparadoras de artesania do pensamento em educação. Da escrita
coletiva de um projeto em duração. Dos sonhos escritos com afeto,
inteligência partilhada e muitas experienciações em educação (de
escola nômade, de escola indígena, de escola circense, de escola de
assentamento, de escola da rua, de escola quilombo, de escola fun-
dação, de escola católica, de escola waldorf, de escola desescolari-
zada etc.). Da memória de viagem do Projeto Geringonça (Faced/
Ufrgs) à Bienal del Juego (Montevideo/Uruguai/2017).

Referências
Antunes, Arnaldo. As Coisas. 2a ed. São Paulo: Iluminuras, 1993.
Blanchot, Maurice. / O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moi-
sés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. / Corazza, Sandra Mara. Uma
introdução aos sete conceitos fundamentais da docência-pesquisa
tradutória: arquivo EIS AICE. Revista Pro-Posições. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
-73072018000300092&lng=pt&tlng=pt. Acesso em agosto de 2019.
/ Glowczewski, Bárbara. Devires Totêmicos - Cosmopolítica do sonho.
Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: n-1 edições, 2015. /
Hilst, Hilda. Fico besta quando me entendem. São Paulo: Globo, 2013.
/ Jung, Carl G. O homem e seus símbolos. Tradução de Maria Lúcia Pi-
nho. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2016. / Ohno, Kazuo. Treino e(m)
poema. Tradução de Tae Suzuki. São Paulo: n-1 edições, 2016.

Outras Referências
Gai, Daniele Noal. Ética do Brincar. Tese de doutorado. Progra-

142
ma de Pós-graduação em Educação. Faculdade de Educação. Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, 2015. / Projeto Geringonça
(Pedagogias da diferença. Ecologias da vida). Programa de Exten-
são Universitária. Faculdade de Educação. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Disponível em: https://www.ufrgs.br/projeto-
geringonca/. Acesso em Agosto de 2019.

143
144
Infantil das Sete Peles
Deniz Nicolay

Qualquer filósofo falaria


como Buda certa vez,
ao lhe anunciarem o
nascimento de um filho:
“Nasceu-me Râhula, um
grilhão foi forjado para mim”
(Râhula significa aí “um
pequeno demônio”) [...]
(Friedrich Nietzsche).

Râhula: meu pequeno demônio


infância sobre a qual Buda se refere significa a materialização
do pensamento, uma existência real, concreta, repleta de sabo-
res e dissabores. Como existência concreta, ela pertence a um
tempo, a um lugar, a uma genealogia e, portanto, demarca um terri-
tório específico. E, sobre esse território, espalha-se uma infinidade
de práticas discursivas, de modos de subjetivação, de padrões cultu-
rais e morais. Ora, ao nascer, essa infância-bebê pertence à vida, a um
sistema familial cuja representação produz/enquadra cada elemento
em seu lugar. Por isso, para Buda, ela significa um “grilhão”, ou seja,
um elo de perpetuação genética, uma ligação natural de descendên-
cia e, em se tratando de cuidados, de dependência dos adultos. Em
razão disso, Râhula, seu pequeno demônio, simboliza uma prisão,
aquilo que pesa e conduz a vida ao caminho irreversível da sobrevi-
vência física, material.
Nietzsche (1), ao destacar a fala de Buda, descreve o sentido do
ideal ascético, ou seja, o abandono da vida comum, dos prazeres do
corpo em privilégio ao desenvolvimento espiritual. Como religião
niilista, o budismo prega uma interpretação dualista da existência,
do mundo. Nesse sentido, o verdadeiro caminho, para Buda, consis-
te em abandonar o lar, privar-se dos desejos rasos e de tudo mais
que a experiência mundana pode oferecer. E é esse modelo de vida
ascética que Nietzsche associa ao modelo de vida do filósofo, isto é,
quando este coopera com toda servidão, controla toda pulsão vital e
condena o corpo ao enfraquecimento dos instintos. Obviamente, ele
está descrevendo uma linhagem de filósofos que representa a tra-
dição socrático-platônica, os mesmos que trabalham na direção da
moral de rebanho e, também, da interiorização do sofrimento e da
dor. Por isso, ele aproxima esse perfil do decadente, uma tipologia es-
pecífica de sofredor que, na impossibilidade da ação afirmativa, aca-
ba canalizando a agressividade e a culpa. É assim que Buda, negando

145
seu pequeno demônio, também, nega a potência afirmativa da vida, a
alegria do acontecimento: o infantil.
Por isso, neste escrito, invocamos o “infantil das sete peles”,
aquele constituído por um estado de camadas moventes que, mesmo
umas se sobrepondo as outras, não podemos distinguir relações de
identidade, gênero ou herança familiar. Ele foge dos mecanismos de
codificação pedagógica, cultural ou social, visto que embaralha atri-
butos, detona o sentido, um embuste à consciência. Aliás, no senti-
do de consciência, nega a atividade gregária de pertencimento a um
povo X, ao escopo da chamada civilização ocidental cristã, porque
abdica de se conjugar como uma “boa alma” em meio a “tantas boas
almas” que compõem o rebanho. Ao contrário, ele afirma a diferen-
ça potencial, para tanto, desmistificando o sentido da linguagem, a
máscara do “eu” e a ficção do “outro”. E, ao invocá-lo como entidade
supra-histórica, pretendemos transvalorar o currículo (da educação
infantil), abdicando do “educar” e do “cuidar” em privilégio do ato de
“criar”. Mas de “criar” com o “corpo todo”, porque consideramos isso
a grande razão do ensino e da didática, acima de tudo na condição
de compor um currículo da diferença. Assim, tal entidade procura
transversalizar os conteúdos, operar como paradoxo da ação políti-
co-pedagógica para, desse modo, povoar as encruzilhadas da escola.
Então, ele se apresenta em peles como as máscaras do ator trá-
gico. Cada pele é usada em uma cena. E cada cena enseja o uso tran-
sitivo da memória instintiva, deslocando a associação entre o tempo
cronológico e o tempo vital. Ele permanece como acontecimento, de-
vir e, por isso, foge da doutrinação imposta pela tirania do sentido.
Essas peles são como fractais da matéria, ou seja, vulneráveis a efei-
tos de superfície, geradas pelo embate das forças em atuação. Elas
são em número de sete porque afrontam o idealismo e a perfeição da
moral do rebanho, povoando a outridade do pensamento. Compõem
esse número, além de Râhula, o menino capiroto, capetinha auspicio-
so, tinhosinho do papai, diabinho safado, coisinha ruim e, claro, não
podia faltar aquela pele que, mesmo os adultos, por vezes, costumam
usar; ora, trata-se da sua majestade: o luciferzinho delicado. Mas, por
enquanto, ele se veste da segunda pele.

Menino capiroto

S ua história atravessa gerações. É um personagem mítico-conceitual


da didática. Ocupa uma série de mitologias antigas, mas, também,
modernas e contemporâneas (atualmente, é confundido com o “bozi-
nho boca-suja”, outra entidade da qual não trataremos aqui por razões
de decoro filosófico). Entretanto é sempre pautado como o “negativo”,
o “estranho”, o “indecente”, o “imoral”, o “impertinente”... Ou seja: rara-
mente inspira uma versão oposta da história que não seja aquela provo-

146
cada pelo cunho moral, religioso. Como imoralista nato, ele partilha da
consciência aberta, não subjetivada por valores niilistas ou familiares.
Não pertence ao território da conhecida “pátria amada”, pois povoa o
campo transcendental da didática chamado de plano de imanência. É aí
que ele corre livre das amarras pedagógicas, aí ele dança, aí ele pula, aí
ele brinca. Nesse campo liso, livre de clichês e jargões epistemológicos,
não existe limitação de forma ou conteúdo, mas um feixe potencial de
devires que se estabelecem e formam um jugo de interpretação dando
vida, cor e movimento ao raciocínio. Tal raciocínio não segue regula-
ridade simétrica de linguagem, expressando-se de maneira factual ou
categorial. Ao contrário, toda forma de linguagem manifesta seu poder
de criação: a música, a arte, a dança, a filosofia, a ciência, mas, ainda,
linguagens outras. É nesse sentido que o menino capiroto, travestido de
daimon socrático-platônico, ofende nossos ouvidos com uma questão
avassaladora: “Tu és forte o suficiente para suportares ser criador?”.
Se a resposta for “sim”, prepare-se para o “jogo do redemoinho”,
ou seja, uma espécie de Roda de Ezequiel às avessas cujos valores pre-
concebidos são dinamitados na Lei do Eterno Retorno. Nessa lei não há
verdade que permaneça, nem maniqueísmo das intenções, tampouco
algum poder de imposição, pois é a dinâmica potencial do movimento
que anima a diferença. Nada permanece. Por isso, o menino capiroto
aparece e desaparece, está e não está, fala e cala, corre e para, desse
modo, é incapturável pelos artifícios da razão. Na verdade, ele segue o
princípio da lei: “12. Saí, ó crianças, sob as estrelas, & tomai vossa fartu-
ra de amor!” (2). É como sentir uma liberdade incomensurável, afirmar
a alegria do “sim” ativo contra toda forma de ressentimento. E aqueles
que lhe acusam de “indecente” não sabem da história, de um terço da
história: daquela contada pela “infância sem fim” contra o dispositivo
de infantilidade. Isto é: não há início, nem meio, nem fim, mas um con-
tinuum de produção desejante, uma alheamento do tempo cronológico
em proveito do tempo aiônico. Portanto, ele (o menino c.) não é o mal,
porém uma forma de expressão do mal que está em nós. Em alguns sis-
temas místicos religiosos, ele até é representado como “bom agouro”,
mas, claro, evoluindo, assim, para a terceira pele.

Capetinha auspicioso

M ais conhecido como o amuleto da sorte da Didática Artista. E,


semelhante a essa Didática, ele também faz Arte(s) no cenário
da educação infantil: foge das rotinas acabadas, anima práticas auto-
poiéticas, estabelece o sensível, o impessoal e o anárquico como pi-
lares do ensino; no entanto, quando não atendido na sua graça, cos-
pe, xinga, vira a mão em três dedinhos, faz aspinhas e joga pedras no
adulto docente-educador. Embora auspicioso, não é flor que se cheire.
Por sinal, às vezes, cheira a enxofre e a roupa mal-lavada. Outras vezes,

147
exala o perfume das flores do campo. O certo é que, como “artistador”
de espaços e tempos da infância, não suporta o modo programático de
pensar a vida, a cultura e a educação. Também não suporta uma escola
triste, calcada na sombra da indiferença e do medo. Porque o espaço da
escola é lugar de zonas de intensidade contínua, de conflitos de forças,
de passagens inesquecíveis sobre a complexa arte de entalhar o espírito
humano. Aliás, acusam-lhe de “sem alma” ou “sem espírito”. Mas o que
pode um espírito na educação, intrincado nas malhas da Didática Artis-
ta? Primeiro, há de se definir essa forma de “espírito”; e, segundo, qual o
grau da sua influência no dia a dia da prática pedagógica? Ora, sabemos
que o espírito que pesa é o espírito do ressentimento, e que Nietzsche,
por exemplo, divagava acerca do espírito livre (freier Geist), ou seja, um
estilo de pensamento que refuta todas as crenças, todas as formas de
julgamento moral. Ele é um “eu” liberto da razão cartesiana e da piedade
cristã. Sua tarefa é animar o plano da Suprarrealidade, povoar os sonhos
e dar cor à imaginação. Agora, em relação “ao grau de influência”, deve-
mos considerar que, a partir do Método do Informe (3), uma aula (na
educação infantil) não é mais a mesma. Com efeito, essa forma de aula
não é dada de antemão, nem segue à risca o conteúdo programático, mas
partilha da variação e da produção de significados. Isso quer dizer que o
espírito não é uma entidade metafísica, tampouco um manipulador de
consciências, mas uma força inspiradora da criação. Logo, chamá-lo de
“sem espírito” é uma calúnia. Ele é como um “Eu puro” (não cartesiano),
inocente, faz gracejos como o cãozinho que brinca com o papai. Por sinal,
fazendo gracejos, ele se veste de outra pele (a quarta).

Tinhosinho do papai

O problema da unidade molar e didática, o infantil de AICE, é a som-


bra da filiação representacional do pensamento. Existe uma insis-
tência familial, hereditária, orgânica, biológica em atribuir-lhe certa
descendência do mal. O velho Diabo, o Satã sacana, o Demônio da garoa,
o Grande Pã, além do Dionísio-macaco-velho, todos são personagens
que reivindicam grau de paternidade. Mas quem é o papai? A pergunta
é tão horrível quanto o artifício moral que se esconde nas malhas do
sentido. Ora, sob a pele de “tinhosinho do papai”, não significa que ali-
mente laços de paternidade. Tal identificação é péssima para afirmar o
princípio do retorno, uma vez que remete à noção de “imagem e seme-
lhança”, de “cópia-modelo”. Ao contrário, nascido na imensidão da noite
maldita, da matéria do caos e do fogo, ele “se abisma na diferença” e não
se reconhece mais como cópia, imagem ou modelo. Ele está próximo
do movimento do simulacro que funciona sobre si mesmo, animando
a produção do diverso. Nessa linha e, em cada passagem pela sala de
aula, ele rodopia em torno do “bom senso” das ideias prontas, fazendo-
-as girar como um pião de madeira. E, em cada giro, surge uma palavra,

148
uma ideia ou um conceito que se liberta do jugo gramatical. As palavras,
libertando-se da gramática, articulam pensamento e vida, reconstroem
o prazer do brincar-fazer, proliferam o non sens da razão. Além disso,
caso alguém insista na definição do sentido, ele define o movimento
numa palavra-valise, no mínimo, desconcertante: VIDARBO. E porque
tal palavra desconcerta o sujeito racional do logocentrismo oficial ou
a intenção das práticas pedagógicas? Porque não é possível capturá-
-la imediatamente. Entre vidas-obras acontece a criação artistadora, e
quanto menos pré-julgamento sobre a origem disso ou daquilo, mais
a mente abre-se para mundos empírico-transcendentais próximos do
sonho e da fantasia. Se a palavra fosse VIDIABO também seria um neo-
logismo incômodo, quiçá importuno para padrões de estética idealistas
ou românticos. No entanto são padrões impostos por concepções de
cunho filosófico-moral que, na maioria das vezes, não consideram as
transformações autopoiéticas da arte, pois “interpretar é interpretar-
-se, criticar é criticar-se” (4). Assim, “papai” é só mais uma interpreta-
ção. Não é o lobo do homem dos lobos de Freud, nem o artifício genético
da moral de rebanho, tampouco o “pai dos pobres” da ideologia prole-
tária. E, obviamente, nada da Santíssima Trindade, mas a quintessência
da paixão. De maneira mais renovada, tal paixão, anunciada em parte
na palavra-valise (VIDIABO), apresenta-se como a quinta pele.

Diabinho safado

D iabo é uma palavra odiosa. Tal expressão é considerada, pela maioria


das pessoas, como algo negativo. Tudo que há de ruim no mundo
está relacionado a ela ou é por meio dela que as coisas do mal acontecem.
Mas é só uma palavra demonizada no lugar-comum da tradição moral
cristã. Tanto das suas vertentes populares (Rabudo, Ditador, Cramunhão,
Aquele que Desvia, Tranca Ruas, Imundo, Bicho-Papão, o Coiso, Temer,
Azélélé, Idoso no Busão, Boleto bancário, Fila da lotérica, Tinhaco, Venti-
lador de teto, Ciscimulado...) quanto místicas (Ahriman, Apollyon, Bapho-
met, Beherit, Bile, Demogorgon, Drácula, Emma, Czernobog, Marduk...), a
palavra Diabo exerce fascínio e temor. Fascínio pelos mistérios, pela aura
fronteiriça entre o sagrado e o profano, pela expressão de poder. Temor
pelo pecado original, pelo sofrimento infinito da vida infernal, pela absor-
ção do espírito no magma da maldição. É uma palavra, portanto, que car-
rega significados conforme é dita, onde é dita, por quem é dita.
Mas qual seu significado no currículo? Há tempos sabemos de um
“Diabo do currículo”. E esse Diabo ocupa o currículo como figura emblemá-
tica, multifacetada pelas áreas do conhecimento humano e pela potência
do sentido. Dele, podemos dizer: que é “objeto de veneração e horror” (5).
Tais sentimentos ambíguos alimentam-se dos esforços dos trabalhadores e
das trabalhadoras da educação em afrontar a contracorrente das políticas
oficiais. Por exemplo, o ataque sistemático da moral cristã evangélica sobre

149
décadas de teoria pedagógica ou a promiscuidade do grande capital com o
estereótipo da família tradicional, do cidadão do bem (de bem). Nesse caso,
estaria o Diabo do lado do currículo oficial? Ele mesmo? Acreditamos que
não. Talvez exista um arquidemônio ianque de cabelos louros e gravata ver-
melha. O Diabo do currículo é mais esperto. Não se captura tão facilmente
nem veste terno branco. E, se ele é “do currículo”, quem ocupa, neste mo-
mento, a pele do infantil de AICE na Didática?
Numa palavra: o Diabinho safado. Ora, para além do Diabo na sua
versão infantil, ele simboliza todas as infâncias incorruptíveis e amorais.
Ele acompanha a infância desde que o mundo é mundo, jamais encarna-
do na forma de sujeito racional, mas como singularidade pré-individual,
ausente da linhagem familiar. Por isso, incorpora uma força expressiva
de negação de todas as formas de coerção do pensamento. Às vezes,
acusam-lhe de afrontar a lógica simétrica da sala de aula, debochar do
senhor educador, embaralhar os códigos e os conteúdos, tripudiar da
metodologia e da epistemologia, rabiscar palavras desconexas. Afinal,
ele pode tanto ser um “moleque descarado” quanto a potência perfor-
mativa da arte didática. No entanto, se contrariado na sua traquinagem,
pode converter-se no mal natural: como coisinha ruim que dizem que é.

Coisinha ruim

E sta é a sexta pele do infantil das sete peles. E, como uma pele mais
elaborada, curtida pelo calor do fogo infernal e amaciada nas águas do
rio Estige, ela suporta duras provações. Suporta, por exemplo, a confusão
acerca das noções de gênero e identidade que entrecruzam o campo da
educação infantil. Suporta o discurso hipócrita das correntes conservado-
ras (e liberais) sobre os investimentos na escola pública. Suporta, inclu-
sive, ser ludibriada pelo assalto de políticos e tecnocratas de plantão que
prometem o que não podem cumprir. Mas a pele também é só superfície
e, por isso, não se importa em moldar-se ao ambiente difícil. Entretanto o
Coisinha ruim, como infância-inatual, detesta ser confundido com um ve-
lho demônio hipócrita: o Coiso. O coisinha não é o coiso. Prova disso é que
ele não acata palavras de ordem, não aceita padrões de comportamento
nem crenças em deuses com os pés de barro. Ele é um compósito de forças
sem parâmetros definidos. Tais forças em profusão não se reconhecem
mais como uma forma subjetivada (como o infantil mor da Pedagogia, por
exemplo), mas recriam-se a cada acontecimento. E se o atributo de “ruim”
é definido por essa corrente de forças; isso significa que, no reino da doxa
cotidiana, o que prevalece é o lado negativo da personagem. Ou seja, vem
da memória popular certa forma de julgamento moral atribuída ao infan-
til da sexta pele. E sabemos, a partir do filósofo bigodudo, que essa moral
escrava é a responsável pelo desencadeamento de valores niilistas. Valo-
res que depreciam a potência criativa do infantil, na sua dinâmica de vida,
alegria e liberdade. Por isso, quem avalia o coisinha ruim pela visibilidade

150
epidérmica, desconsidera a extensão nobre x vil, o jogo permanente de
nossas pulsões. Quem olha dessa maneira distorce a interpretação, vira os
olhos para dentro de si mesmo e não reconhece o esforço da derme cria-
dora na profundidade da pele. Por isso, quem vê a cara do “chifrudinho”,
o infantil coisinha ruim, não vê a magia de seu largo coração. Em certo
ponto, ele até se torna delicado, vestindo outra pele.

Luciferzinho delicado

U ma estrela no alvor da manhã. O fruto do mal convertido em amor.


Adversário das almas puras e mestre dos grandes mistérios. Senhor
da matéria e andrógino multirracial. Pequeno Eros e líder de legiões. Po-
tência do falso e mentor da comunicação humana.
São muitas as formas de se referir a este emblemático personagem,
também conhecido como caluniador. Mas também caluniado pela falta
de sensibilidade humana, pela incompreensão da magia infantil. Ora,
todas as peles anteriores fundem-se nele, no sete peles. E, como conden-
sador da energia transluciferina, consideramos seu poder transcriador
uma forma de inspiração perene no território da Didática Informe. Aliás,
da primeira infância não leva nada; ao contrário, desfaz-se da educação
primeira para investir afectos na “educação profunda”(6). Por meio des-
sa educação, não segue conteúdos tradicionais nem repete o esquema
representacional das ideias prontas. Como matéria volátil, não é possível
aprisioná-lo entre as paredes da sala de aula. Ele se transforma em outra
coisa conforme o grau e o teor da interpretação. Nesse sentido, “não é
mais a forma-infância que se transforma, e sim a matéria de infância”
(7). Nessa transformação, o pensar de novo é possível, a fusão modela-
dora no campo da arte se abre para a criação de novas possibilidades de
ler, escrever e sentir e, por isso, torna-se delicada (como o luciferzinho),
ou seja, aberta para a multiplicidade do mundo.
Portanto, sete peles, sete sonhos, sete dias da semana, sete letras,
sete páginas, sete nomes, sete livros, sete artes, sete quedas, sete virtu-
des, sete pecados, sete cores, sete mares, sete notas musicais... Do infini-
to e dos vivos que golpeiam a vida que resiste e renasce.

Inspirações, citações e referências


A sequência das citações diretas, destacadas pelos números entre
parênteses, são as seguintes: (1) NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da
moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 97 et.
seq. (2) CROWLEY, Aleister. O livro da lei. Disponível em: www.dominio-
publico.gv.br/ download/texto/000011.pdf. Acesso em: 1° de jun. 2019.
(3, 4, 6 e 7) CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação?
Porto Alegre-RS; Doisa, 2013, p. 54, 59, 78, 81 et. seq. (5) CORAZZA, San-
dra Mara. Para uma filosofia do inferno na educação: Nietzsche, Deleuze e
outros malditos afins. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p. 63 et seq.

151
152
Infantil, o sonho de Frederico Nietzsche
Luciano Bedin da Costa
Emília Carvalho Leitão Biato

O
bserva atentamente o menino dormindo às custas do es-
trondo inverno que gela os arredores cinzas da cidadela. Em
imagens que se esvaem em furtacor, o pai observa os dedos
de mãe percorrerem suavemente as modulações da testa do garoto
ainda não crivada pelas preocupações do tempo. Dedos e testa se
confundem como a zona onde ma pequena vaga de sombra se esvai,
escapando das mãos como areia fina. Pela feição do infante, trata-se
de um sonho bom.

***
Frederico, próximo dos seus quatro anos de idade: Teu pai está
morto. O recado fúnebre lhe chega na pior hora de um dia, junto aos
terrorers da sala fechada, do silêncio e do abandono. Teu pai está
morto. Os sinos, os cantos, as invocações, as falas solenes de adeus,
o caixão envolvido sob as lajes da igreja, tudo isto lhe sacode por
muito tempo, talvez para sempre.

***
Nasce em 15 de outubro de 1844, em Roecken, próximo a Lut-
zen, onde seu pai era pastor. Após a morte prematura deste, sua
mãe se instala em Naumburg com seus dois filhos: Frederico, com
cinco anos, e sua irmã Elisabeth, com três [Joseph, o irmão mais
jovem, e o primeiro a morrer, não havia ainda nascido]. Na peque-
na cidade puritana e conservadora Frederico recebe sua primeira
educação. “Uma criança amável e solitária, extremamente obedien-
te e séria”. Seus camaradas o apelidam de “pastorzinho” pelo modo
emocionado como recita versos da bíblia.

***
“Meu pai morreu com trinta e seis anos: ele era suave, amá-
vel, mórbido, como um ser destinado a simplesmente passar —
antes uma bondosa lembrança da vida, do que a vida mesma. No
mesmo ano em que sua vida cessava, também a minha declinava:
aos trinta e seis anos atingi o ponto mais baixo da minha vitali-
dade. Abandonei minha cátedra na Basiléia, vivi o verão como
uma sombra em St. Moritz e o inverno seguinte, o mais pobre
em sol da minha vida, sendo uma sombra em Naumburg. Esse
foi o meu nadir: o andarilho e sua sombra. Indubitavelmente, eu
entendia de sombras”.

153
***
No interior de seus próprios sonhos ninguém deixa de ser um
andarilho. O espaço onírico é onde os acasos se interligam numa
trama de cacos improváveis.

***
Na desordem familiar onde se encontra jogado, segue um
pressentimento que agrava ainda mais sua própria desordem: ele
pressente uma segunda aflição, como um eco-sem-fim de O pai
está morto. Uma visão que lhe chega cavalgando os instantes de um
sonho: “Quando a copa de uma árvore é arrancada, ela fica seca e
despojada e os pássaros abandonam seus galhos. Nossa família ti-
nha sido arrancada de sua copa, toda alegria desvaneceu de nossos
corações, e uma tristeza profunda apoderou-se de nós. E nossas
feridas, as quais tinham cicatrizado a duras penas, de novo foram
dolorosamente abertas. Naquele tempo eu sonhava que ouvia o
órgão da igreja ressoar tristemente, como nos enterros. No sonho
eu procurava entender de onde vinha aquele som, e uma tumba se
abria rapidamente, e meu pai aparecia marchando em seu traje de
mortalha. Ele atravessa a igreja e chega até mim com uma pequena
criança nos braços. A tumba se abre de novo, meu pai se deita e o
mármore é fechado. Imediatamente o rugido do órgão cessa, e eu
me levanto. Nesta manhã contei o sonho para minha amada mãe.
Pouco tempo depois, meu pequeno irmão Joseph fica doente. Ele
tem um ataque nervoso e morre em poucas horas. Nossa tristeza foi
terrível. Meu sonho tinha se realizado com exatidão, o pequeno cor-
po do meu irmão foi depositado nos braços do meu pai. Após este
duplo mal, o senhor dos céus foi nossa consolação. Isso aconteceu
no final de janeiro de 1850”.

***
“Um Nietzsche não mente jamais”, carta de Frederico a sua irmã.

***
Em uma nota de 1862, prestes a completar dezoito anos, Fre-
derico escreve: “O que é mais interessante, talvez mais necessário
ao espírito, é se render ao passado que se apresenta aos olhos, so-
bretudo aos anos de nossa infância. Jamais conseguiremos obter
um julgamento claro sobre nós mesmos se não considerarmos as
circunstâncias de nossa educação, se não avaliarmos sua influência
sobre nossas vidas. Minha primeira vida em uma pacífica casa pas-
toral; a passagem de uma grande alegria à uma grande infelicidade:
o abandono da cidade natal. Entrei numa agitação da vida urbana,
tudo aquilo se agitava em mim com uma tamanha força que cada dia

154
eu a sentia ressoar em mim. Sério, situado nos extremos; apaixona-
damente sério, eu dizia, em todas minhas relações com os outros, da
dor e na alegria, no próprio jogo da vida mesmo”…

***
A primeira catástrofe tem uma importância capital. Em toda
sua vida, Frederico Nietzsche sentirá o chão tremer sob seus pés,
sendo perseguido por visões de colapso. Deus está morto, escre-
verá na angústia dos seus trinta anos, e seu grito será repetido
por muitos e muitos ecos. O grito não teria tamanha força deso-
ladora, talvez nem fosse escutado, se aquela criança não tivesse
sido machucada tão profundamente pelas palavras assustadoras:
O pai está morto.

***
Inquantificável é a duração de um sonho. A mão da mãe e
a testa ainda despreocupada do menino envolvem-se ao terror
das mortes do pai e do irmão mais novo. Repete-se a dor aos 14
anos: copa seca arrancada da árvore. Assim, a história, a pré-his-
tória, o passado não deixam opção melhor do que o rendimento
a eles, à trágica roda gigante horizontal a que chamamos de vida.
O sonho tão intenso do irmão nos braços do pai sulca o terreno
de cada célula do corpo, como se pudesse definir tons e nuances
da vida que seguiria. Há sabedoria no dizer que sim, no sim que
se diz a cada novo giro, a cada nova rodada. Amor fati. Amor ao
fato. Amor ao destino de um sonho. Menos como fantasmas e
mais como traços de quem escreve e constitui-se em movimento
de vida-obra: os sonhos alimentam o infante Frederico no filóso-
fo Nietzsche, e vice-versa.

***
Se Deus está morto, como então sobreviver à falta de sentido
de uma vida desampa(i)rada? Como sobreviver aos desígnios do
niilismo? Somente com o sim, dirá o filósofo. O imenso sim que in-
sistentemente retorna não nos deixa sossegar com as misérias da
vida assumida enquanto realidade ou pura vigília. Transmutar o
“foi assim” em “eu assim o desejei” pressupõe a aceitação não resig-
nada, afirmação do que [nos] acontece [sempre em acordo].

***
Acordar, estar em acordo com o sonho. Despedir-se de um estado
onírico levando-lhe o que há de mais precioso: o esquecimento. Acorda-
mos para que mais uma vez possamos exercer a faculdade de esquecer,
para que possamos comprovar nossa mais absoluta amnésia. Dormimos
porque somos amnésicos. Acordamos também pelo mesmo motivo.

155
***
Eu descobri que a velha humanidade e animalidade, e mes-
mo toda a pré-história e o passado de todo ser que sente, con-
tinua inventando, amando, odiando, raciocinando em mim — no
meio deste sonho acordei repentinamente, mas apenas para a
consciência de que sonho e tenho de prosseguir sonhando, para
não sucumbir: tal como o sonâmbulo tem de prosseguir o sonho
para não cair por terra.

***
Os sonhos permitem ao filósofo Nietzsche a criação de per-
sonagens, como por exemplo, o homem do conhecimento — que
lhe é caro. Serve-lhe de recurso para dar pequenos passos de um
lado ao outro, conforme a dança terrestre lhe exige. Assim, ele a
prolonga: o infantil vem ao filósofo pelos sonhos. O infantil, este
capaz de continuar inventando e raciocinando, este que traz a
força da morte do pai, em lápide compartilhada com o irmão,
para firmar o rompimento com o pensamento da metafísica oci-
dental e operar uma lógica radical na tomada da filosofia. Deus
não é o pai mas ambos estão mortos. Não que uma perda seja
compensada por algum ganho. Não há correspondência direta.
A dor torna-se ocupante, fertilizante, caotizante, substrato ao
nascimento de uma «estrela dançante». Vive, o infante Frederi-
co, em profusão sonhadora, a oferecer ao filósofo propriedades
imaginantes que lhe permitem a duração.

***
Em 1882, com trinta e oito anos [dois anos a mais do que a
idade do pai-morto], Frederico escreve: “Não sonhamos de modo
algum, ou então de modo interessante. — Assim também devemos
aprender a ficar acordados: de modo algum, ou de modo interes-
sante”. Parece ser necessário se render ao passado, respeitar ele-
mentos da infância, fazer a leitura do terreno sulcado na vida. O
estado de vigília pode trazer pequenos quartos de hora em estado
de ânimo elevado. São essas exceções que nos fazem tremer. Ficar
acordados nos coloca num “constante subir-degraus e, ao mesmo
tempo, descansar-nas-nuvens.”

***
Dez anos antes, em 1872, Nietzsche escreve O nascimento da
tragédia. Neste, a palavra sonho aparece quarenta e sete vezes, en-
volta ao jogo de forças apolíneo e dionisíaco. Em Apolo as imagens
conspiram. Com Dioniso elas se apagam. “Em sonho apareceram
primeiro, conforme a representação de Lucrécio, diante das al-

156
mas humanas, as esplendorosas figuras divinas; em sonho foi que
o grande plasmador viu a fascinante estrutura corporal de seres
super-humanos. Toda a arte da poesia e todo o poetar. Nada mais é
que interpretação de sonhos verazes”.

***
Ainda em O nascimento da tragédia: As imagens agradáveis e
amistosas não são as únicas que o sujeito experimenta dentro de
si com aquela onicompreensão, mas outrossim as sérias, sombrias,
tristes, escuras, as súbitas inibições, as zombarias do acaso, as in-
quietas expectativas, em suma, toda a “divina comédia” da vida,
com o seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de
sombras - pois a pessoa vive e sofre com tais cenas - mas tampouco
sem aquela fugaz sensação da aparência; e talvez alguns, como eu,
se lembrem de que, em meio aos perigos e sobressaltos dos sonhos,
por vezes tomaram-se de coragem e conseguiram exclamar: “ É um
sonho! Quero continuar a sonhá-lo! “. Assim como também me con-
taram a respeito de pessoas que foram capazes de levar adiante a
trama causal de um e mesmo sonho durante três ou mais noites
consecutivas: são fatos que prestam testemunho preciso de que o
nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós, colhe no sonho
uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade.

***
O pensamento nietzschiano então oscila na relação que esta-
belece com os sonhos. O infante nunca deixou de exigir sua cota de
existência ao filósofo. No que alguns críticos chamam de primeira
fase da obra de Nietzsche, de 1870 a 1876, a cultura e a arte surgem
como possibilidades de redenção da natureza e da vida. Em o Nas-
cimento da Tragédia a partir do espírito da música (1872), Sobre o
futuro de nossas instituições de Ensino (1872) e Schopenhauer como
Educador (1874) encontramos o filólogo apaixonado pelo trágico,
situando a arte como forma de restaurar a experiência trágica dos
gregos. A música, como os sonhos, surgem como nobres cálices
para que o transbordante-da-vida passeie por nós. Na segunda fase,
de 1876 a 1882, encontramos um Nietzsche positivista, estando o
homem científico como estado elevado em comparação ao homem
artista. Em Humano demasiado humano (1878), Aurora (1881) e
Gaia Ciência (1882) encontramos os sonhos numa perspectiva elu-
cidativa, capazes de tornar mais clara a experiência da vigília. Uma
ciência alegre [ou uma gaia ciência] é uma ciência capaz de domi-
nar sua própria embriaguez, driblando a grande noite dionisíaca
anunciada no período anterior. A terceira e última fase, de 1882 a
1889, parece dramatizar as três metamorfoses do espírito anun-
ciada por Zaratustra. Os sonhos ora são colocados como camelos,

157
ora colocados como leões, ora colocados como crianças. Em Assim
falou Zaratustra (1883), Além do bem e do mal (1886), Genealogia
da Moral (1887) e, sobretudo, nos panfletos de 1888, O Anticristo,
Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Nietzsche contra Wagner e O caso
Wagner, somos apresentados às várias metamorfoses do pensador.
Um sonho do tipo camelo é aquele que carrega consigo os valores
de seu tempo, de sua história e de sua cultura. Daí o sentido da figu-
ra do genealogista, este sonhador acordado de seu próprio sonho,
decifrador dos valores e cifras que nestes se impõem no tempo pre-
sente. O sonho do tipo leão encarna as lutas com os valores que
nos constituem: a invenção da figura do anticristo e do opositor aos
ídolos e ao próprio Wagner são bons exemplos disto. O infante. O
amnésico. O artista. O irascível. O insone. O sonhador. “Tornar-se o
que se é”, lema de seu Ecce Homo, pressupõe a coragem para dizer
[e querer] seu próprio fim, a vida [não como finitude] mas como
finalidade em si mesma. Vida como nada além do que um ou vários
jogos de força tencionando a si mesma. Sonhar e acordar. Acordar
para sonhar. Sonhar para acordar.

***
Sils Maria, em um dos seus últimos quartos antes do colapso
final de 1889. Um sonho trouxe a descoberta de que a história
continua inventando, amando, odiando e raciocinando. O quarto
oferece um infantil desalinho de cabelos suados no rosto de quem
estava brincando, expresso ainda no lençol branco, com cobertas
quentes a se avolumar por baixo. O tapete imprecisamente posi-
cionado nos riscos do assoalho; uma cadeira de quem está pres-
tes a sentar-se à mesa e a escrever — com luz artificial — novas
ideias das mesmas histórias, de temas sem fim. O menino Fre-
derico contempla a paisagem de onde vive Nietzsche, através de
grades informes, refletidas no espelho; paredes de madeira acon-
chegam sonhos. São infantes os nossos alunos - jovens, adultos,
crianças. E temos nós o infantil: o suor na cabeça, a mão e o olhar
de quem soube nos cuidar, a presteza desejosa de dizer, a vontade
de potência, como vontade de traduzir.

***
Ninguém jamais sonhou sozinho. A natureza reparadora e sa-
nadora do sonho ao certo é seu indelével espírito de coletividade.

Notas de fim
A ideia do título deste ensaio nos ocorreu ao escutarmos o
interessante disco La rêve de Nietzsche, de Jean-Rémy Guédon
(2011), uma fusão de jazz experimental com letras extraídas das

158
obras de Nietzsche. Os fragmentos que compõem nosso ensaio fo-
ram foram produzidos a partir de correspondências e livros do
filósofo [não necessariamente nessa ordem]: 1) NIETZSCHE, Frie-
drich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Por que sou tão
sábio, seção 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2) Gaia
Ciência. Aforismo 54, A consciência da aparência. Aforismo 232,
Sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 3) Assim falou Za-
ratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2011. 4) Lettres Choisies. Paris: Gallimard, 2008.
5) O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. Tentativa
de autocrítica. São Paulo: Companhia das letras, 1992. 6) HALÉVY,
Daniel. Nietzsche. Paris: Editions Bernard Grasset, 1944, p.36-38.
7) WALS, Georges. La vie de Frédéric Nietzsche: d’après sa corres-
pondence. Paris: Rieder Editeur, 1932.

159
160
C
currículo

161
162
Em maio, tem mar de gente
com tsunami e interceptações
Ada Kroef

Dos Maios

A
lguém disse:
- O Sonho Acabou!
- Sentimos muito: o sonho acabou!
- O sonho de “Maio de 68” na França acabou?
Acabou, disseram, o sonho acabou!
- Acabou o sonho de uma Revolução Socialista? Este acabou!
Mais fácil imaginar o fim do planeta do que o fim do capital!!!
Sim, sim, sussurraram em um dos meus ouvidos. Num som de
microfone, numa Feira do Livro, desta vez, em Fortaleza – CE. Era
um homem grisalho, chamava-se Viveiros de Castro!
- Acabou Viveiros?
- Acabou, respondeu ele!
- Sinto muito, acabou!
- Acabou o sonho de Maio de 68?
Não, este não acabou, pensei...
Um acontecimento não acaba! Ele é incorporal e se efetua
nos corpos!
Penso que “Maio de 68” estava no movimento “Ocupa” das es-
colas de Ensino Médio e Universidades. O “Ocupa” acabou? Não, o
“Ocupa está em todo lugar! Nas ruas, nas lembranças, nos estágios
acadêmicos, nos nossos sonhos!
Sonhando com uma educação pública de maior qualidade,
ocupamos as ruas em maio de 2019. Outro maio, cinquenta e um
anos cronos os separam! Tempo-cronos. Mas, e o tempo aion? O
tempo das intensidades? Ah, este tempo, não tem como mensurar!!!
Não tem, também, como precisar! Onde o sonho acaba? Ou o sonho
não acabou???
Sonhar sempre me remeteu ao mar! São sonhos recorrentes!
Quase sempre sonho com o mar revolto, em maremotos, com os
tsunamis, invasão das águas em lugares “seguros”.
Aqui, no Brasil, forma-se um novo mar, mar de gente, em
2019!
Cidade de Fortaleza tem mar! O mar contorna parte frontei-
riça de Fortaleza, fronteira com outros continentes. Outros con-
tinentes, tiveram ‘Maio de 68”, também! E foi além do continente
europeu! Nós temos “Maio de 68” e “Maio de 2019”! Em defesa

163
da Educação Pública, em defesa das Universidades, da pesquisa,
escolas, instituições públicas, em resumo, em defesa do Estado
de Direito!!
Contra a reforma da previdência, contra todos os retrocessos e
todo tipo de opressão do Estado Repressor! Cidades de todo o con-
tinente chamado Brasil estavam nas ruas! Vários territórios habita-
vam as manifestações! O sonho em devir, sonho-processo, sonho-
-fluxo, sonho-acontecimento! Do caos ao cais? Prefiro a deriva do
caos, evadir do porto seguro da educação das verdades e certezas e
evadir das escolas fechadas em fronteiras fixas. Prefiro, sempre, os
contornos mutantes!
Boiar para descansar no balanço das marolas no aguardo do
movimento-sísmico. O mar de gente agita-se, um tsunami está por
vir, lavando as verdades com pretensão universal, compondo um
espaço liso, onde o horizonte é o plano, que na sua imanência, cria
conceitos por vizinhança.
Entre o céu e o mar, muitas linhas a traçar! Borrar a linha
do horizonte, pois, até onde vai o mar? Qual é o limite do céu?
Impossível distinguir, nem mesmo as ondinas, as fadas, as feiti-
ceiras do mar!
Naus a perder, embarcações a naufragar, esqueletos e carcaças
a enferrujar, iluminadas pelos faróis na névoa marítima! A ausência
de luz e da Lua, produzem os buracos-negros no mar. Habitar de
modo nômade, avistando sereias nas profundezas a mergulharem
no caos para catarem pérolas nos jardins marinhos.
Até onde vai a luz? Onde as sereias estão a brincar com colo-
ridos peixes, algas, crustáceos, caravelas em águas vivas que na-
dam nas superfícies. Quanto mais profundos os mergulhos, mais
assustadores, mais lúgrebes ficam os jardins. O abissal, os abis-
mos, o terrível, o desconhecido, o não-pensado do pensamento, o
que e ainda é bolha a-significante, tornam-se potência! Partículas
loucas compõem a multiplicidade de bolhas moleculares, mar-
-caótico, mar de gente!
O não pensado pode ser produzido no mar. Ele é molhado, en-
charcado, caótico, mutante, irreconhecível, imperceptível em suas
partículas. Haja bússolas, GPSs, nuvem para capturar estas partícu-
las infinitesimais que se ligam com as de “Maio de 68”!

Da subjetividade capitalística
As tentativas de cortes de verbas para a educação pública pelo
atual governo brasileiro e as ameaças de cortes, também, das disci-
plinas de sociologia e filosofia no currículo das escolas públicas me
fazem não querer parar de sonhar, não querer sair de um sonho de
uma nova escola e de um novo currículo, numa outra lógica que não

164
a destes governantes, que não chega nem nos princípios da Moder-
nidade. Vivemos uma espécie de era das trevas, de um retrocesso
absurdo em todos os níveis da existência! A produção de um certo
tipo de subjetividade impera, a subjetividade capitalística.
Esta subjetividade, a capitalística, consiste em um dos modos
de subjetivação, capturando os componentes heterogêneos com o
objetivo de tomá-los estereotipados através de sobrecodificações,
isto é, da produção de significados reduzidos e limitados, a fim de
garantir a reprodução da lógica dominante, da lógica do capital.
Os territórios capitalísticos correspondem à referência e ao
reconhecimento em um determinado padrão -subjetividade fecha-
da em si mesma, em identidades. Esta subjetividade, a capitalística,
investe na sujeição pelo controle do signo através da produção de
sentidos (modelos). Estereótipos são produzidos de forma seme-
lhante às linhas de montagens e incorporados nas existências par-
ticulares, modelando comportamentos, distribuindo as pessoas em
identidades já reconhecidas, padronizando ações pelas represen-
tações. Este é um processo de homogeneização onde as diferenças
são absorvidas e distribuídas em identidades, idades, sexos, etnias
com comportamentos preestabelecidos e previsíveis. Tal processo
consiste em um movimento de captura, de pasteurizaçã03, de ba-
nalização da subjetividade produzida, caracterizando um determi-
nado território que constitui a formação de quadros identitários,
ou seja, as identidades.
A educação e o currículo são instrumentos potentes e eficien-
tes para a produção de processos de subjetivação, assim, são dispo-
sitivos para a implementação deste tipo de subjetivação dominante.

Dos currículos navegantes


O currículo constitui a base central do ensino. Nele, hoje de-
positam-se várias perspectivas de transformações e/ou reformas,
reforçando-o enquanto alvo das ações pedagógicas e culturais.
A concepção moderna e disciplinar de sociedade utiliza a edu-
cação como um dos instrumentos para garantir a integração através
da participação dos indivíduos iguais, em unidades pertencentes a
uma totalidade. Esta educação visa assegurar a cidadania, organi-
zando uma espécie de programa, ordenado pelo currículo, que pre-
para para o exercício dos direitos e deveres. Tal concepção denota o
currículo como um “programa”, que visa atingir resultados.
O programa configura um roteiro de execuções que se encon-
tra associado às práticas disciplinares. Este roteiro objetiva um fim,
através de um percurso calculado que busca um melhor desempe-
nho. Para tanto, a disciplina faz-se necessária uma vez que, confor-
me Foucault, corresponde à arte das distribuições dos indivíduos

165
no espaço e no tempo, conformando uma técnica de poder “capaz
de compor forças para um aparelho eficiente”. A disciplina, além
de normalizar os indivíduos, distribui saberes, delimitando campos
do conhecimento como matérias (conteúdos) curriculares. Desta
forma segrega, diferencia e hierarquiza saberes e conhecimentos.
Como elemento que delineia os territórios identitários, o
currículo através da eleição do padrão e do reconhecimento pela
representação, opera por analogias, semelhanças e igualdades.
A operacionalização dos resultados desdobra-se na produção de
identidades, corroborando um maior controle através de uma su-
jeição subjetiva.
As propostas de currículo alternativas ou reformadoras, tais
como as que se utilizam de substratos como identidade e repre-
sentação, incrementam a subjetividade capitalística por extensão,
ampliando o repertório das identidades reconhecíveis. Os limites
dos territórios identitários são fronteiras fixas como muros sóli-
dos. Neles, existem frestas e rachaduras toleráveis à modificações
relativas, que não abalam seus alicerces selecionados enquanto
origem/essência.
Sonhando com um currículo como atalho, corte, um currículo-
-interceptado, navegante na superfície dos mares, abre-se um es-
pectro de possibilidades que modificam os limites e a lógica insti-
tuída pela subjetividade capitalística. Ele deixa de ser o centro da
ação pedagógica e passa ser zona de atravessamento nos mares, na
medida em que comporta muito mais do que matérias de um curso,
de difusão de conhecimento e de cultura, tomando-se um espaço
provisório de transformações.
Os cortes geram criações. Não há a fixidez constitutiva das re-
presentações que buscam preservar a origem, o ideal. Pelos cortes
passam os fluxos-desejos que se tomam incomensuráveis e incom-
paráveis porque não há mais padrões.
Não há mais muros que guardam essências, mas sim contor-
nos mutantes, dobras movediças. A concepção de um currículo na-
vegante produz um devir- catalisador, não mais escola, não consi-
dera o currículo como o centro da ação pedagógica e cultural, mas
como um atravessamento, uma máquina, investindo nas possibili-
dades de criação.
O currículo como programa pode ser comparado a uma rede. Po-
rém, não como uma rede, no sentido apontado por Foucault, com suas
descontinuidades, saltos, tensões e multiplicidades de cruzamentos
de fluxos, onde ocorre a dissolução do Eu e da origem. Ao contrário,
uma espécie de rede de encanamento com orientação predefinida que
organiza o escoamento dos fluxos-desejos: canaliza, barra, represa,
reorienta. A rede de encanamento “curricular” funciona como infra-
-estrutura básica do conhecimento com caráter funcional e produtivista.

166
No entanto, o currículo sonhado, o currículo navegante que
funciona como um corte, intercepta e provoca a ruptura dos canos,
fazendo jorrar, mesmo que momentaneamente, as linhas de fuga, as
diferenças, as singularidades. Não é mais possível apreender, redu-
zir ao currículo uma infinidade de multiplicidades. As desterritoria-
lizações podem ser reterritorializadas pela escola, pelo currículo,
pela cultura, pela subjetividade capitalística. Um devir-catalisador
no mar sonhado constitui arranjamentos maquínicos possíveis de
gerar desterritorializações, escapando de capturas e produzindo
novos devires, novas subjetividades, sempre de passagem ...
Currículos que fazem pensar, provocam o pensamento num
ato violento que produz deslocamentos. As disciplinas de sociolo-
gia e de filosofia são alvo de cortes no currículo porque foram inter-
cessoras qualitativas no movimento “Ocupa”. Os estudantes expe-
rimentaram novos modos de gerir uma escola, com a afirmação da
diferença e processos de singularização. As aulas, durante a ocupa-
ção, eram espaços de trocas de saberes e de realização de modos de
expressão do pensamento que extrapolaram as fronteiras discipli-
nares. Mostraram que é possível concretizar um sonho, um sonho
de uma nova escola, de um novo currículo

Das Interceptações
Somente o THE INTERCEPT do Brasil, através do jornalista
Glenn Geenwald consegue interceptar os fluxos comunicacionais,
fazendo emergir o lodo, o vergonhoso, o repugnante para a super-
fície! Hackers, os sabotadores contemporâneos da sociedade de
controle produzem novos modos de subjetivação, crivam o real,
produzindo pensamento-criação, não vontade de verdade. Ten-
sionam os limites e reforçam o mar como superfície de aconteci-
mentos. Mar de gente!
Palavras de ordem ecoam no meu sonho. Acordo! Palavra de
ordem em acontecimento? Não, não, combinam mais com eventos,
no sentido histórico linear!
Acontecimentos dizem de forças, correlações de forças ima-
nentes, acidentes, fissuras de descontinuidades, quebras, cortes,
proveniências, emergências e condições de possibilidades.
Quebram com a representação, rasgam o Mesmo, findam o Uno,
acabam com a identidade, terminam com a sucessão, rompem com os
fatos históricos, produzem fissuras e, por que não, novos currículos?
Fissuras no tempo!
Maio de 1968 na França quebra; emerge em um maio de 2019
no Brasil! Origem? Não, nada de origem. Proveniências! Outro jogo
de correlações de forças, novos poderes! Poder-força, poder-saber.
Saber forma de poder.

167
O som das vozes humanas, batucadas, ruas, ecoam em meu
corpo, chega a arrepiar! Vaia-coletiva, milhares de “imbecis inú-
teis” para tirar um imbecil útil! Asco, nojo! Efeitos de um modo de
poder que toma conta de continentes.. Um a um, irão desmoronar
de suas montanhas de verdades, onde criam fatos e forjam pro-
vas de pseudo negociatas escusas que levaram a prisões. A água
da Lava-Jato limparia tudo, sem deixar vestígios, esqueceram que
esta água tinha o lodo, o lodo das profundezas da nuvem. Deixa-
ram rastros! Estes foram cartografados em interceptações que
montaram um mapa.
O mapa da anticorrupção, torna-se o mapa da corrupção, de
Lava-Jato, passa a configurar a Vaza-Jato! Novas palavras de ordem
surgem, mas a potência da micropolítica, de um povo por vir inter-
ceptará os fluxos, produzindo novos currículos cortes navegantes,
novas direções e sentidos!
Não despertei ainda, movimentos-sonâmbulos, tateantes...
Quero continuar a sonhar! Pois, de um mar de gente, surge um tsu-
nami, a do dia 30 de maio de 2019 no Brasil!
Uma onda, um tsunami que se produz após o recuo da maré!
Maré-potência de estudantes, “servidores”, professores, reitores
eleitos, pais, familiares, currículos-cortes... Uma educação toda! Se
é que é possível...Ah! Depois, vieram mais, mais um mar de gente, os
da greve geral! Trabalhadores rurais, sem-teto, mulheres, LGBTTs,
movimentos sociais dos mais variados!
Sonhos recorrentes com o mar! Mar que invade, mar que en-
gole, mar-furioso! Faróis, casas, pontes, embarcações, carrega tudo
com muita força. Mar irreconhecível, tentam imprimir uma rostida-
de ao mar, mas ele resiste! Mar-demoníaco, lar de deuses e deusas!
Uma mãe-d´água enorme, água-viva emerge! Salta ao ar, abre-
-se e, como uma vidente, em sua transparência e filetes, mostra-me:
o sonho não acabou!!!!

RESISTIR, sempre!!! Num mar de gente!


Num tsunami!
Ninguém disse que seria fácil!

Texto escrito com um mar de gente, entre tantos, ilustração


de José Wellington de Barros Júnior, fotos da Mídia Ninja, sites da
Mídia Ninja, ela mesma e o site do THE INTERCEPT. DELEUZE,
Gilles. & GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? São Paulo, Editora
34, Coleção TRANS, Tradução de Bento Prado Jr. E Alberto Alonzo
Muñoz, 2010. Também, dos dois pensadores, Mil Platôs: capitalis-
mo e esquizofrenia. V.1 e V.5, da mesma editora. Só o DELEUZE,
Gilles. Convesações, São Paulo, Editora 34, Tradução de Peter Pál
Pelbart, Coleção TRANS, 2013. KROEF, Ada. Interceptando Currí-

168
culos: produzindo Novas Subjetividades. In Revista Educação &
Realidade, FACED, UFRGS, v.25, n.1, Porto Alegre, p.92-114, 2001.
FOUCALT, Michel. Microfísica do Poder. Organização, introdução
e revisão técnica de Roberto Machado, 7. edição, Rio de Janeiro-São
Paulo, Paz e Terra, 2018. ZOURABICHIVILI, F. Deleuze: Uma Filo-
sofia do Acontecimento. São Paulo, Editora 34, Tradução de Luiz B.
L. Orlandi, 2016. Ilustração de José Wellington Barros Júnior.

169
170
O currículo-sonho e as
práticas de escrileituras
Larisa Vieira da Veiga Bandeira
Polyana Olini

C
I
itamos, para iniciar a sonhar, o manuscrito Causas e razões
das ilhas desertas, datado dos anos 1950, em que Deleuze
(2006, p. 18) escreve sobre o duplo movimento de imaginar
e criar ilhas. Trata-se de zarpar para “sonhar ilhas, com angústia ou
alegria, pouco importa, é sonhar que se está separando, ou que já
se está separado, longe dos continentes, que se está só ou perdido;
ou então, é sonhar que se parte de zero, que se recria, que se reco-
meça”. Recomeçar, recriar, partir do zero, ficar longe daquilo que es-
tava próximo e capturado, e, tentar, em outra língua — falada pelo
Currículo e pela Didática —, tomar distância para olhar o já visto.

II
Tomamos emprestado da exposição de Corazza, na Colômbia,
em abril de 2019, os sentidos atribuídos por ela aos conceitos e pro-
posições sobre pesquisa e docência. Especificamente o quinto concei-
to, para apresentar uma série de, pelo menos, cinco movimentos des-
viantes do que é palpável, movimentos de sonho e poesia que fazem
pensar um currículo engendrado nas práticas de escrileituras: “1)
ficção, criação literária, fantasia, fantasmagoria, espectro; 2) tradu-
ção entre a criação literária e a teoria; 3) ideias são como sonhos; 4)
poesia como desvio da norma, da linguagem objetiva e constatativa.”
Na terceira proposição sobre a docência, no mesmo texto, Corazza
(2019, p. 3) encaminha um pra um questionamento ético, apontando
que para acontecer a “professoragem transcriadora” requer preser-
var a singularidade do intraduzível: “Traduzir um poema, um sonho,
é testemunhar uma relação com outros, na qual, a cada encontro, in-
ventamos, juntos, uma nova e única matéria”. Nós sonhamos, com Ela
e em composição de matilha, nas escrileituras de dissertações, teses e
artigos. Ousamos sonhar escrileituras na educação básica e no ensino
superior; sonhamos uma geografia do imaginário.

III
Sonhamos um currículo desalojado das formas de saber e das
forças de poder, um currículo inominável e tratado como multiplici-
dade. Sonhamos um currículo tensão, confronto, choque criador de
problemas e de uma nova sensibilidade, que se orienta “no tecido

171
fibroso da realidade” (Corazza, 2010, p. 144), que faz aí seus furos
e miniaturiza o majoritário. Sonha-se um currículo, pensando nas
diversas e infinitas possibilidades de respostas ao que, aqui, se con-
sidera currículo, que “indiferente à necessidade de ser reconhecido
nos limites de seus polos, que, por suas correntes, linhas e super-
fícies, não se deixa aprisionar correndo solto numa atmosfera de
errâncias” (Corazza, 2002, p. 3). Porque o currículo que é sonhado
se arrisca, nas incompatibilidades, nas semelhanças, nas disparida-
des. Criamos um currículo-sonho.

IV
Sonhamos em bando, em sono inquieto, sonho de noite longa
e agitada “porque estranhamos perpetuamente”. O impulso que nos
conduz em direção ao sonho, possibilita “enxergamos paradas, as-
sociações e agregados” (Corazza, 2010, p. 150). Sonhamos coletiva-
mente porque misturamos nossas práticas, escrevemos com muitas
mãos, dividimos traduções e travessias, afinal, é “pela interferência
de muitas práticas que as coisas se fazem, os seres, as imagens, os
conceitos, todos os gêneros do acontecimento” (Deleuze, 2005, p.
332). Na interferência das muitas práticas, que as coisas se dão,
nessa mistura, esse currículo-sonho “conecta-se com outras má-
quinas de pensar, de amar, de jogar, de cantar, de morrer, com todas
as que têm forças vivas para colocar em questão” (Corazza, 2002, p.
2). Esse currículo sonha “[...] com tudo o que já foi pensado, dito, es-
crito, sentido, e é amoroso com tudo que inventa, com os planos de
consistência que traça e linhas de fuga que estica” (Corazza, 2002,
p. 3). Tal sonho coletivo de um currículo é atravessado pela Didá-
tica, considerando que: “[...] não possuem existência separada, em-
bora sejam independentes [...] consubstanciam-se na Aula [...], para
engendrarem novas rearticulações de substância, matéria, forma,
conteúdo e expressão (Corazza, 2019, p. 1).

IV
No sonho coletivo de currículo, as práticas de escrileituras
criam didáticas e traduções educacionais, nas quais os docentes são
sonhadores, aqueles que agem, veem, ouvem, observam, traduzem,
leem, escrevem; suas capacidades motoras são imperceptíveis,
quase desnecessárias; as situações por ele integradas extravasam
o que é possível responder. Não se espera de docentes-sonhadores
conclusões para histórias, das quais já se sabem o fim ou resultados
para cálculos já conhecidos. Para estes docentes não se pergunta
quais as histórias que ainda são possíveis de escrever, ou como se
chega aos mesmos resultados com procedimentos “inovadores”. Há
situações, nas quais, as respostas não são mais possíveis e não se
exigem ações. Um currículo sonhado independe do que é possível

172
suportar pelos seus sonhadores; cria fendas por onde o insuportá-
vel aparece; torna visível o que não se pode ver; evidencia a imagem
inteira, sem metáfora e injustificável; agrega uma profunda intuição
vital e um estado decorrente de percepção alucinatória.

V
Os docentes-sonhadores sonham e se ocupam com as pessoas
que povoam o currículo, que modelam suas intensidades, a partir
das conversas nos corredores, nos pátios e nas salas, cujos diálogos
lhe dão vida e prazer de existir. É necessário traduzir um currículo-
-sonho que se efetue em imagens e espaços quaisquer, atingindo a
autonomia do absoluto. Um currículo que efetue mudanças nas re-
gularidades do tempo, já que tudo que muda encontra-se no tempo;
enquanto ele mesmo, o tempo, não muda, não pode mudar, a não
ser no tempo do infinito.

VI
Como docentes-sonhadores sonhamos um currículo em aula
e, portanto, lugarizado em conflitos, batalhas, lutas pequenas, ín-
fimas, minúsculas, que se reacendem ou que se iniciam, entre um
sonho e outro, nos espaços e nos tempos entre o sentar na classe e
a data que se escreve no quadro, lugar onde exige um pacto peda-
gógico, tácito, limpo, claro, que nos remete à Caetano Veloso: “O que
queres de mim não terás... Terás de mim o que não queres”.

VII
No exercício incessante de mudar as unidades de discurso da
educação, praticando o trabalho negativo, negando o conceito de
currículo e colocando em questão todas as sínteses acabadas e des-
conhecendo a validade de agrupamentos admitidos sem quaisquer
exames prévios, os docentes-sonhadores se aproximam das inquie-
tudes e incertezas. Não se sonha — assim como não se traduz — sem
correr riscos. Os docentes-sonhadores entre cochilos e despertares
sonham um currículo que se aproxime de tudo que o afete, para dele
se distinguir. Um currículo que, “produzido por movimentos a-subje-
tivos, auto-exilados da subjetividade capitalística e do seu vazio” (Co-
razza, 2008, p. 10), tenta — repetidas e incansáveis vezes — abalar a
banalidade e a vulgaridade que ele mesmo produz.

VIII
Sonhadores, os docentes misturam memórias e sonhos, pois re-
cuperam o passado para recria-lo, não para restitui-lo. A memória
alerta para o conforto das práticas arraigadas e das certezas consoli-
dadas, são necessários esforços e rememorações para apreender as
diferenças e o sonho oferece a possibilidade de variar, de recriar.

173
IX
O currículo-sonho “não aborrece ou entedia, nem transmite
a sensação de déjà vu” (Corazza, 2008, p. 10); efetua uma “fusão
do rasgo” e “uma complexidade não-totalizável” (Deleuze, 2005, p.
319); investe contra o trivial cotidiano, contra os agrupamentos e
recortes com os quais nos familiarizamos no território educacional,
movimenta-se na constante passagem de seus extremos e não teme
as circunstâncias excepcionais e incomuns.

X
Sonha-dores, de multiplicidade de currículos, em seus traves-
seiros, atravessados por sonhos já sonhados pela feiticeira, sonhos
que saíram de sua caixinha de mágicas junto com outros truques
surpreendentes. Truques que poderiam “ter-lhe custado a expul-
são da confraria dos curriculistas ortodoxos” (Tadeu, 2003) e que
segue fazendo composições coloridas, mesmo que jure e esconjure
que esta será a última e derradeira vez. Proveniente das composi-
ções da feiticeira, a diversidade tipológica de currículos desenca-
deia outra série de sonhos curriculares em constante devir.

XI
Imprevisível, incompreensível, surgindo de qualquer lugar,
ilegítimo e usurpador, errante e inconstante, contrário às leis do
assentamento curricular, o Currículo-louco “é cruel com tudo o que
já foi pensado, dito, escrito, sentido, embora amoroso com tudo o
que inventa, traça planos de consistência e estica linhas de fuga, dá
provas de outras interações com as crianças e as professoras, e vive
cada instante em relações de devir-imoderado em vez de estados
curriculares”. (Corazza, p. 21, 2003).

XII
O Currículo-louco é o que acomete professores e professo-
ras nos sonhos acompanhados de febre e calafrios, é o sonho que
confunde, alucina, aguarda em emboscada no cochilo dentro do
ônibus apinhado. Engendra-se com o ele outros sonhos, com seus
pontos cegos, com os seus olhos vazados pelas fagulhas de tantas
explosões causadas, o Currículo-louco fecunda, poliniza, contagia
outros sonhos.

XIII
Currículo “ervinhas frescas”, sonhado pelas professoras que já
foram “jardineiras” dos jardins das infâncias, e que também foram
as “tias” da “segunda casa” das crianças. Elas sabem que as “semen-
tinhas” plantadas na educação infantil não sobrevivem aos anos ini-

174
ciais, aos regramentos dos currículos oficiais, que as sementes nãos
resistem às manobras noturnas dos homens que decidem sobre a
educação, e sobre os cortes de orçamento. Sonham um currículo
feito em uma estufa protegida e resguardada, em meio à floresta
dos desejos dos infantes. Regam durante a noite as “ervinhas fres-
cas” que serão arremessadas nos pátios das escolas para que criem
raízes aéreas flexíveis, invisíveis.

XIV
Currículo “Corda Bamba”, sonhado pelos professores e pro-
fessoras de EJA, estes que ao caírem, sem rede que os salve, preci-
sam levantar-se rapidamente e seguir na lida da escola. O currículo
“Corda Bamba” é esticado entre um nível e outro de ensino e por ele
circulam aqueles que não terminam, aqueles que não conseguiram,
aqueles que perdemos. Aqueles que insistem, que repetem, que re-
tornam, e que se vão. O currículo sonhado deverá ser capaz de sus-
tentar os pesos, as medidas necessárias para o que é imensurável.
Deverá ser flexível o suficiente, para que aqueles que por ali circu-
lem possam testar as possibilidades de andar, sem temer mais uma
queda. Deverá suportar a escuridão, pois acontece nas noites, nas
faltas de luz, de material e de verba. Para o currículo “Corda Bamba”
sobra folego para tentar mais uma vez. Sobre as fibras esticadas de
seu tecido, a sola dos pés trêmulos, cansados, determinados, bai-
larinos, que se mantém no desequilíbrio trêmulo de uma dança de
passos instáveis.

XV
Currículo “Estranho Dissonante”, sonhado por professores do
Ensino Médio, que lidam com a patrulha silenciosa de suas aulas,
com os olhares tristonhos de seus alunos, com uma pressão cres-
cente pelo aumento de “conhecimentos” que a escola deve oferecer.
O conhecimento identificado como “o capital mais importante do
trabalhador nas novas formas de produção”. Professores que lidam
com o discurso — político, empresarial e midiático — que reforça
a ideia de que o ensino médio facilita a inserção no mercado do
trabalho, definido pelo potencial de empregabilidade que pode ga-
rantir ao sujeito em situação de aprendizagem. Estes professores
sonham com o que desafina, desafia, desatina, desacorda. Querem o
que provoca instabilidade, que causa sensação de movimento e ten-
são. Sonham com o que é ativo, dinâmico, transitivo, instável. Que-
rem que os seus propósitos apareçam de forma acidental. Querem
sonhar um currículo que desperte, que belisque para lembrar que
estamos vivos, que mantenha o sangue circulando e que incomode
por causar estranheza.

175
XVI
Um currículo é também um sonho de intervalos, de tons e se-
mitons, de escalas, de notas, musicais.

XVII
Há de se sonhar, por professoras e professoras, o currículo
“Conta-dor de Histórias”, que será currículo avesso ao vivido na
formação continuada, em seu encadeamento preguiçoso e presu-
mível, e à repetição de palestras requentadas de um ano para o
outro, nos programas que requerem dos professores adesão aos
planos de inovação que apenas invertem as antigas e mesmas or-
dens curriculares, avesso aos planos de governo, aos planos que
não se dão ao fim e ao cabo, que não se multiplicam, que são pesa-
dos e pesarosos, avesso aos que debocham e apequenam, aos que
impede o riso e a criação, avesso ao que impede os encontros e
que valoriza o senso comum.

XVIII
O currículo “Conta-dor de Histórias”, é sonho impregnado
de poesia, de movimento intensivo, de pontos em posição de sin-
gularidade, de continuada deformação, avesso às palavras de or-
dem, aos textos receitas de bolo, aos textos bula de remédio. Feito
de lascas de ossos do peito, de rabiscos feitos nos cadernos de
chamada, dos raios de sol que cruzam as janelas da sala de aula,
de “quereres guardados”, de “pensares apanhados”, de “sentires
desovados”, dá novos recortes às coisas e às ações assentadas e
novas experimentações de vida.

XIX
O currículo “Conta-dor de Histórias” é sonhado na escrita do
que não se pode dizer. Os professores sonha-dores desse currícu-
lo, encontram-se no sono noturno mais profundo, que apesar de
coletivo é anônimo, sem rostos, ou identidade, sem marcas ou re-
gistros. O sonho é uma escola que não exige o uso de uniforme que
identifique seus alunos, ou que produza certa familiaridade, avesso
aos códigos que harmonizam, o sonho desnuda seus sonhadores
tornando-os indiscerníveis em pele e ossos.

XX
Sem que seja necessário apresenta-dores, durante o dia, os
professores sonha-dores reconhecem-se nos corredores do co-
légio, nas salas de aula, nas bibliotecas. São os que gaguejam, os
deslocados, os desgarrados nas reuniões pedagógicas, os que não
sabem as respostas ou o sentido das coisas que oferecem respos-

176
tas iguais para problemas que são sempre os mesmos. “Detestam
a inércia pedagógica que os impele a repetir. Eles possuem como
guias iniciáticos suas paixões concretas.” (Corazza, p.128. 2016).
São conta-dores de histórias, pesquisa-dores, e contesta-dores,
são leitores. O currículo “Conta-dor de histórias” não reproduz
narrativas. Inventa, recria, revive, refina, mantendo-se atento aos
ouvi-dores, aproxima distâncias e transpõe culturas estrangeiras
umas às outras.

XXI
Da caixa de mágicas da feiticeira foram liberadas forças vi-
tais, que por meio de oficinas foram processadas pesquisas e cria-
ções, agenciando de inusitadas maneiras outras possibilidades de
pensar, ler, escrever e sonhar em educação. Desde então o sonho
curricular não inicia mais com “Era uma vez um professor, ou uma
professora...” agora seu início é: “Dessa vez somos muitos, uma
matilha, um bando...”

Referências
CORAZZA, Sandra Mara. O que quer um currículo? Pesquisas
pós-críticas em Educação. Petrópolis: Vozes, 2001. / CORAZZA,
Sandra Mara. Noologia do currículo: Vagamundo, o Problemático, e
Assentado, o resolvido. Educação & Realidade. Porto Alegre: Facul-
dade de Educação/UFRGS, V. 27 n. 2, jul./dez. 2002. [Dossiê Gilles
Deleuze]. / CORAZZA, Sandra Mara. Composições/Sandra Corazza e
Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. / CORAZZA, Sandra
Mara. Para pesquisar um currículo-nômade: múltiplos nomes em 51
fragmentos e XXV critérios de avaliação. 2008. [Texto digitado]. /
CORAZZA, Sandra Mara. (Org.). Fantasias de escritura: filosofia, edu-
cação, literatura. Porto Alegre: Editora Sulina, 2010. / CORAZZA,
Sandra Mara. 50 teses sobre Escrileitura. Publicado em Caderno de
Notas 8: ética e filosofia política em meio à diferença e ao Escrilei-
turas. Organizado por Ester Maria Dreher Heuser. Cascavel: Unioes-
te, 2016. / Conceitos, sentidos e proposições de pesquisa-docência.
2019. [Texto digitado]. / DELEUZE, Gilles. A imagem–tempo. (Trad.
Eloisa de Araujo Ribeiro) São Paulo: Brasiliense, 2005. / DELEUZE,
Gilles. Causas e razões das ilhas desertas (Trad. Luiz B. L. Orlandi).
In: A ilha deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006. /
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a Filosofia? (Trad. Bento
Prado Jr. e Alberto Alonso Munõz) Rio de Janeiro: Ed. 34, 2007.

177
178
E se o currículo sonhasse?
Três dicas e uma precaução
para um currículo transgressor
Luciane Uberti

E
ssa é uma pergunta que, de antemão, instiga a contra-sen-
sos. Por isso mesmo é boa para pensar. E lá o currículo so-
nha? Pergunta um curriculista indignado. Talvez seja para
criarmos outras formas de organizar o currículo, mais criativas,
mais ficcionais. Como o currículo vai ficcionar? Outro reclama. É
para planejar ficções no interior do conteúdo currícular, agora? Não
falta os que dizem: lá vêem aqueles malditos com questões pouco
claras e demasiadamente subjetivas.
Pensar implica transpor limites. Pensar concerne à análise dos
limites de um objeto qualquer do discurso, o que envolve, desde já,
a transposição mesma de tais limites. A graça está no fato de essa
transposição ser desconhecida e incerta. É essa transposição o que
impossibilita permanecermos inalterados. Portanto, ela modifica
aquele que pensa, ela vivifica, cria. Podemos nos perguntar sobre as
possibilidades de pensar para além dos limites da representação,
neste caso, no que se refere ao campo da Educação e do currículo.
Não importa se a pergunta é boa ou ruim, marxista ou niilista,
verdadeira ou falsa, importa o que ela provoca, o que ela ativa, que
agenciamentos compõe. Importa se ela aumenta ou diminui nossa
potência de agir. Não se está em busca de uma verdade que defina o
que é bom, justo ou belo. Antes de um protesto, trata-se de investir
na proliferação de outros sentidos a serem operados cada vez de
outra forma. Este é o motivo pelo qual não importa responder defi-
nitivamente se o currículo sonha ou não. Importa as possibilidades
criadas pelo «e se». E se o currículo sonhasse? E se o currículo fic-
cionasse, deslocasse, transpusesse seus limites?
Se, nos sonhos, os signos se tornam independentes dos objetos
que os emanam, é nos sonhos que a criação se potencializa. Para tal
exercício, qual seja: pensar nas possibilidades de o currículo sonhar
e, assim o fazendo, suspeitar sobre o que ficciona, descreve-se três
condições: abandonar a projeção, perder tempo, inventar concei-
tos. Embora as diferentes interpretações possíveis sejam improje-
táveis, essa tríade pode ser lida como demanda para um currículo
que sonha; sugestão de planejamento educacional; possibilidade
de ficção curricular; devaneios de quem voa; receita de transgres-
são no ensino. Enfim, vamos lá.

179
1. Abandonar a projeção
É um clichê na área da Educação afirmar que aprender não é
uma forma de o sujeito adaptar-se ao mundo, tampouco de reco-
nhecê-lo ou enquadrá-lo, mas uma forma de inventar o seu mundo.
Inventar o seu mundo é decifrar os signos que irrompem de forma
inesperada em nossa experiência. É a partir desse encontro com
os signos que é possível experimentar a problematização, quando
o diferencial do signo toca, cria um problema para o pensamento.
Com Deleuze, há sempre a violência de um signo que nos força a pro-
curar, que nos rouba a paz... Se é o acaso do encontro com o signo
que impõe a necessidade de pensar, esse encontro implica o pensa-
mento. Pode-se dizer que aquilo que ensina algo, só ensina porque
emite signos a decifrar. Aprender a costurar é ser sensível aos sig-
nos das linhas e das agulhas, dos sons das máquinas, dos cortes das
peças. Se assim for, não se aprende algo sem o encontro com um
signo, que força a interpretação, a decifração, o pensamento.
Importa ressaltar que os signos podem ser emitidos por sujeitos,
objetos, matérias, mas eles não são os sujeitos, os objetos e as matérias.
É neste ponto que o pensamento educacional, fundamentado no pen-
samento da representação, confunde o que signo provoca com o objeto
que ele designa. O que o signo provoca difere do objeto que ele designa.
Os signos que emanam da participação de um aluno do Ensino Médio
no Conselho Escolar não equivalem à existência de tal Conselho. Não é
o Conselho que fornece o sentido do signo, mas o sujeito que se depara
com um signo intempestivo, que lhe obriga a pensar. O fato é que o
signo exerce uma ação sobre a subjetividade que não é mediada pela
representação. Há quem diga: mas se os alunos participarem do Con-
selho vão ter a possibilidade de experimentar tais e tais signos, que
não experimentariam em outro lugar. Mas, ainda que a escola deter-
mine quais signos quer estimular, não há como projetar a irrupção dos
signos. Isso porque os signos são a presença da diferença no âmbito de
qualquer matéria, os quais poder devir da máquina de costura, de um
vaso de flor ou do quadro escolar.
É próprio à intencionalidade educativa determinar previamen-
te que signos, que aprendizagens quer estimular. Essa pré-determi-
nação, ao invés de considerar a possibilidade de encontro com o sig-
no, ao contrário, subsume a presença da diferença mesma do objeto,
ao tomá-lo apenas da perspectiva da identidade. A educação toma
a diferença desde a perspectiva da identidade porque necessita de
uma certa objetividade, precisa projetar o que o aluno deve apren-
der, precisa esperar que ele aprenda isto ou aquilo. Os alunos devem
participar do Conselho Escolar não para aprender o que quer que
seja, mas para aprender algo previamente delimitado, que pode estar
relacionado ao diálogo, à cidadania, à construção de uma sociedade

180
democrática, enfim, para aprender a ser cidadãos ativos e críticos.
Mas a impossibilidade intrínseca à intencionalidade educativa apon-
ta que a aprendizagem desse senso crítico, desse pensamento crítico
ou problematizador não é passível de projeção. Dito de outra forma:
não é possível conduzir os alunos de um determinado estado para
outro previamente almejado, pois a aprendizagem não consiste, sim-
plesmente, na passagem de um estado de não saber a um estado de
saber, pois ela não fornece condições práticas e objetivas de acesso
ao que denominamos ser esse saber.
O que provoca a aprendizagem em relação à tecelagem não
é simplesmente um bom professor de tricô ou o objeto máquina
de tricô. O que possibilita uma aprendizagem relaciona-se aos sig-
nos que tocam o aluno, para os quais ele se torna sensível, seja em
relação aos sons que dela emanam, ao prazer na confecção de um
blusão ou o entrecruzar dos fios no alinhavo das peças. São os sig-
nos que tocam o ser e não os objetos propriamente ditos. É essa
objetividade que simplifica o aprendizado na busca de encontrar
significados os mais explícitos possíveis. A sensibilidade aos signos
só pode desenvolver-se com a renúncia ao objetivismo, pois é ele
quem afirma que os objetos possuem o signo que emitem.
Considerar que a aprendizagem não é um estado passível de con-
dução, pois é um acontecimento imprevisível, um encontro, uma irrup-
ção do novo, não significa que ela não possa ocorrer quando incitada. O
fato é que a incitação não implica, necessariamente, num aprendizado.
Se toda a aprendizagem começa com a invenção aleatória de proble-
mas, aquilo que se refere à solução ou não de um ou de outro problema
é fato possível. O que se pode perguntar é se os problemas que são in-
ventados e experimentados pelos alunos são os mesmos para os quais
a escola busca solução. Decerto que não. É justamente por estarmos
enredados no pensamento da representação que nos colocarmos a ta-
refa hercúlea de projetar soluções para problemas não corresponden-
tes. Difícil é compreender que nosso limite está em organizar espaços-
-tempo que proliferam signos diversos, independentemente de nossa
atividade volitiva, e que eles podem provocar aprendizagens, por sua
vez, também diversas.

2. Perder tempo
Poderíamos dizer que um dos problemas na compreensão
da diferença, dimensão tão propalada na atualidade, está em, a par-
tir de uma racionalidade binária, anular a diferença mesma, opon-
do-a à identidade. Insistimos nas oposições binárias e nas hierar-
quizações científicas que abolem as interpretações divergentes, as
compreensões sobrepostas e contraditórias, justamente, o resulta-
do da criação. No espaço escolar, somos sábios em pré-determinar

181
o que um aluno aprende aqui a partir do que um professor ensina
acolá. Mal sabemos que é essa pré-determinação que, ao invés de
considerar a possibilidade de encontro com um signo, de agencia-
mento intempestivo, de violência que opera o novo, ao contrário,
tal pre-determinação subsume a presença da diferença mesma do
objeto, ao tomá-lo apenas da perspectiva da identidade.
Essa pré-determinação do aqui e do acolá desconsidera o que se
passa no meio, e o que se passa no meio é tudo o que importa, porque
é onde os signos se proliferam, tocam, movimentam-se e afetam. Ali
acontece o encontro. Um encontro que implica o pensamento e que
se dá como uma experimentação aleatória. Com Deleuze, toda a maté-
ria, todo o objeto emite signos a serem decifrados e interpretados. Um
signo se coloca como problema para o pensamento, e o aprendizado
exercita a interpretação de signos. Mas os signos não são propriedade
da matéria, tampouco estão nela contidos.
Alguém poderia perguntar: o encontro pode estar situado, en-
tão, entre o que o professor planejou ensinar em matemática, com
o uso do Material Dourado, por exemplo, e o que o aluno faz quando
está com o material em mãos? O melhor seria perguntar sobre o
que o material faz com o aluno, se faz, quando em suas mãos ou não.
E mais: a palavra material poderia ser substituída por outras pa-
lavras, como quadro, professora, giz, canetas, colegas. Isso porque
a aprendizagem não está na manipulação do material, como uma
pedagogia que valoriza o uso de materiais concretos viria a supor
(a aprendizagem da dezena e da centena, por exemplo, instigada
pelo uso do material, e portanto, determinada pela projeção). Não é
a manipulação dos dez cubos que estabelece a aprendizagem da de-
zena, porque os objetos de madeira e os signos que eles designam
não são a mesma coisa, ou seja, o objeto não é a morada do signo. É
como se Magritte dissesse: isto não é uma dezena!
O aprendizado, tomado como a experiência mesma de problema-
tização, não se confunde com a tarefa de recognição ou de reconheci-
mento, na medida em que ela não consiste em uma síntese entre as
capacidades mentais, seja de sensibilidade, de memória ou de imagi-
nação. O aluno de uma escola de ensino fundamental não experimenta
tal aprendizado ao participar da Assembléia Escolar porque sabe o que
fazer lá, porque a professora ensinou-o a importância de fazer reinvi-
dicações ou porque ela o ensinou a reconhecer quais seriam legítimas.
O aprendizado dele não está no fato de concordar com a professora
sobre a importância das reivindicações. Na experiência de problemati-
zação, essas capacidades mentais relacionam-se de formas múltiplas,
contrárias e divergentes. Desta perspectiva, é sempre o encontro com
o signo intempestivo que provoca, que incita o aprendizado.
O aluno aprende no encontro com os signos que esse ou outro es-
paço pode vir a lhe possibilitar, com aquilo que ele será forçado a pen-

182
sar a partir deste encontro. Pode ser incrivelmente desestabilizador ao
aluno traçar linhas de compreensão sobre a forma pela qual sentiu o
perfume daquela professora sentada ao lado, tão perto dele, na mesa
oval, durante a Assembléia Escolar. É neste sentido que podemos su-
por que o ato de pensar não se conduz naturalmente, porque ocorre no
encontro com um signo, que o obriga a pensar, que lhe dá o que pensar.
É por isso, também, que nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas,
de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio dos signos,
perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos.
Afinal, o que se quer dizer com isso: aprende-se perdendo
tempo? Ora, perder tempo não quer dizer que seja preciso fazer
nada nas escolas. Perder tempo refere-se ao objeto da aprendiza-
gem que, seja ela qual for, precisa de tempo para se efetuar. Perder
tempo em uma sala de aula é abandonar a objetividade e não o ob-
jetivo, é transpor aquele rigor pedagógico-conteudista, é fugir da
preocupação com o passar das horas em relação ao avanço da ma-
téria dada. É poder dançar com o pensamento, experimentar mais
encontros, bailar com as palavras, viver os acasos de uma aula, ter
os sonhos mais improváveis e menos sublimes em relação às ver-
dades profundas. O sentido dado a essa perda de tempo refere-se
ao objeto mesmo do aprendizado que, por um lado, não são os
conteúdos objetivos propostos numa organização curricular qual-
quer, e que, por outro, não retratam um resultado empreendido
pelo esforço da vontade.
É neste sentido que o fato de uma turma de alunos estar atenta
ao conteúdo sobre relevo, de uma aula de geografia não retrata, ne-
cessariamente, uma problematização do pensamento. Estar atento e
empenhado é sinal de aprendizado? Reproduzir o que a professora
diz é considerado um aprendizado? Ora, já há algum tempo as teorias
da educação, do currículo e de aprendizagem dizem que não, isso não
é sinônimo da aprendizagem - embora cada uma dê a sua interpre-
tação para o que compreende ser a aprendizagem. Mas qual é o ob-
jetivo da escola quando investe em determinados tipos de conheci-
mento? As heranças no campo da Educação descrevem as verdades
do seu tempo: ora objetiva a reprodução social, a ideologização, ora a
transformação, a multiculturalidade.
Podemos dizer que há diferentes elaborações teóricas no cam-
po da Educação que investem em tentativas de fugir aos métodos
tradicionais de ensino que apelam quase exclusivamente à memó-
ria, ainda que, grosso modo, a escolarização de massas suponha uma
transmissão massiva dos conteúdos do acervo cultural da humani-
dade. Exageros à parte, é possível afirmar que a escola deve garantir,
no mínimo, que o aluno diferencie relevo de logaritmos, samba de
sabão. É neste contexto que o perder tempo se torna impossível, afi-
nal, tem as provas a partir do 4º ano do Ensino Fundamental, tem

183
as avaliações processuais (embora sempre hierárquicas), tem o
vestibular no final do Ensino Médio. Os currículos escolares deixam
pouco espaço àquilo que não apela ao acúmulo de conhecimento. É
nesta organização curricular e didática que a escola recai na tarefa de
recognição e de reconhecimento, de forma a impedir, atrapalhar ou
boicotar o pensamento, o perder tempo que deixa afetar, a criação.

3. Inventar conceitos
E se a tarefa final de qualquer operação curricular fosse a de
inventar conceitos que dessem graça à vida? Se a tarefa pedagógi-
ca pudesse ser definida pela capacidade de criar reorientações do
pensamento, que ultrapassassem o senso comum e a lógica da re-
presentação? Se pudéssemos provocar o pensamento para além da
representação da realidade que precede a linguagem? Afinal, o ato
de criação não é apenas o de dar nomes às coisas, mas produzir suas
condições de visibilidade e de enunciação, orientando e direcionan-
do o que vemos e dizemos. Então, criar conceitos não é apenas inven-
tar uma nova palavra, mas criar um operador de pensamento.
Assim o currículo pode sonhar: se compreendermos os so-
nhos como uma instância em que os signos não estão diretamente
relacionados aos objetos que os emanam. Que tal? Um currículo
que sonha pode possibilitar encontros com signos diversos. Im-
porta que possibilite que os corpos se afetem, por meio de en-
contros com objetos, pessoas ou coisas, mas apenas como algo
experimental que se efetua no pensamento. O ato de pensar é
o próprio ato de traduzir um signo, pois traduz o que afeta, dá
sentido ao signo. É uma produção singular de pensamento, já que
pensar é experimentar. Mas não há relação entre o signo e o pen-
samento, há um encontro discordante, impulsionador, causador
de efeitos. Um efeito supõe corpos que se afetam uns aos outros.
E o signo causa isso, ele excede o pensar. Se é o acaso do encontro
entre corpos que impele o pensar, é justamente o impensado que
exige o pensamento, nele está a potência.
O que importa nesta experimentação sonhadora, ficcionadora,
transcriadora não é apenas afirmar algo sobre os conteúdos tra-
balhados (música, gramática, dança, teorias de currículo). O que
importa é o que os encontros possibilitados por estas empirias são
capazes de impor de pensamento e de interpretação aos que ali se
encontram. É preciso lembrar que o pensamento não se apóia nas
demandas racionais ou lógicas, mas nos signos, o que não mais re-
mete a algo transcendente ou conteúdo ideal. Parece imprescindí-
vel desassossegar as repetições sobre o relevo e as respostas previ-
síveis sobre logaritmos para criar condições de possibilidade para
algo novo ser criado.

184
Se assumíssemos que o trabalho pedagógico deveria ser não pe-
dagógico, deveria ser feito pelas bordas, pelo fora, jogando com o que
ele tem de tradicional, flertando com o que ele tem de crítico, brincan-
do com o que ele tem de transmissor, de construtivista, boicotando o
que ele tem de cerceador de pensamento e de criação? Se fizéssemos
o currículo deslocar suas forças e formas por meio de composições ge-
néricas e de variações antes impensáveis? Considerando os três domí-
nios de produção social, as artes, a ciência e a filosofia, não daríamos
aos diferentes campos a intensidade, o movimento e a possibilidade de
renovação? Com Corazza, se assim fosse, não possibilitaríamos perse-
verar na Educação, no Currículo e na docência?
Um professor não se limitaria a expôr conceitos aos alunos,
ele experimentaria conceituar, colocaria os conceitos à baila, faria
circular e agitaria signos no espaço escolar. Ele disporia e construi-
ria os conceitos mais uma e ainda outra vez, pois é preciso liberar o
pensamento daquilo que o impede e bloqueia o seu movimento sin-
gular. Se assim fosse, não estaríamos operando justamente a tarefa
ético-política proposta pelas filosofias da diferença (pensando com
Foucault, Derrida, Nietzsche e Deleuze, pelo menos), utilizando os
conceitos como ferramentas, como materiais tornados úteis, a cada
vez de outra forma, como heranças dignas de serem relançadas? A
luta aqui se dá em torno da criação de conceitos, de operar trans-
gressões singulares, e de sua operacionalização em potências con-
cretas que dão mais vida à vida.
Com todos eles e, mais de perto, com ela, aprendemos que a
militância deve ser produtiva, não de recusa, não de ressentimento,
mas de criação, de invenção de mundos, de modos de vida poten-
tes, de lutas pela afirmação da multiplicidade. Se pensar é tornar
o pensamento novamente possível, então, parece hora. É possível
sonhar ainda que em tempos obscuros. É possível achar um jeito de
inventar uma vida, ainda lá, que seja bela, porque ela ocorre na in-
tensidade do meio, em cada encontro, em uma composição sempre
singular, porque fugaz, efêmera.
Mas se, por um lado, o sonho potencializa a criação, por ou-
tro, ele desconhece a criatura. Aqui a precaução: e se o currículo
sonhasse? E se?

Inspirações
Muitas, em especial, ela: Sandra Mara Corazza,  Docência-pes-
quisa da diferença: poética do arquivo-mar. (Porto Alegre: Doisa,
UFRGS, 2017); O que se transcria em educação?, (UFRGS, 2013); e
ele: Gilles Deleuze, especialmente Proust e os signos (Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1987), e Diferença e Repetição (Rio de Janei-
ro: Graal, 1988).

185
186
E
educador

187
188
Sonhos de uma infância da docência:
fabulações de aulas-cenários de um educador
Ana Paula Patrocínio Holzmeister
Gisely Mara Favalessa

S
onhando segue-se em busca da ativação do campo vibrátil
em tempos de grandes constrangimentos do plano intensivo
do vivo. Um educador em nós segue percorrendo os limiares
de um corpo desejante ao cartografar os personagens que estão a
se configurar para ficcionar a aula em sua dramaturgia e os meios
pelos quais elas transitam fazendo vibrar a pesquisa e a criação
docente. Interroga-se, pois, sobre quais os elementos potenciais
que alimentam seus sonhos e sobre as relações de composição
que mantém aberta e sensível à vibratibilidade diante da presença
de um signo de arte.
Por quais sonhos irrompe-se um bloco de devir entre a infân-
cia das crianças e a infância da docência do educador capazes de
produzir percursos aprendentes que rompem com uma perspecti-
va existencial reacionária que tenta conter os fluxos inventivos da
vida? Segue o educador, a questionar-se.
Quais os sonhos que nos permite abrir às imagens psicodéli-
cas que se formam nas transformações paisagísticas em movimen-
to no campo da educação? Por quais sonhos estamos a criar signos
tradutores de matérias em movimentos?
Sonha-se na docência em fabular enunciações infantis capazes
de desenhar por efeitos dos movimentos de deslocamentos trans-
versais entre as dimensões da linguagem e do pensamento, terri-
tórios provisórios que possam fazer fluir os fluxos desejantes de
aprendizagens os quais traçam campos problemáticos por onde as
pesquisas se desdobram expandindo as práticas de linguagens para
além da recognição de imagens clichês.
Por essas práticas de linguagens diferenciais sonhamos em
uma aula, a docência na educação infantil, com as luzes, cores neons
e movimentos acrobáticos do Cirque para compor em uma imagem
tradutora e traidora a figura do Linhoto, o estranho. Estrangeiro, abo-
minável-amoroso personagem que traça linhas de escritas de carac-
terística expressiva-poética com as quais desenha o amor pelos pro-
cessos de diferenciação. Pelas molas de Linhoto cria-se espirais para
fazer passar outros processos de subjetivações inconformados com
linhas prescritivas fazendo nascer práticas formativas singulares.
Como um sonho, percorremos os DNAs dos corpos orgânicos
em busca das potências de um corpo intensivo e encontramos com

189
neurônios que dão forma aos zumbis que nos habitam. Desse modo,
por entre o cerebelo pulsa um desejo incontido por criar passagens
entre a vida e o processo de pré-individuação. Pontos de singulari-
dades pulsantes que vibram na intensidade do desejo de constitui-
ção de novas configurações corpóreas.
Rabiscamos, como quem rabisca a água, — ato fugaz, provi-
sório, efêmero — com o dedo, as pernas, o peito, a boca, as ideias...
Linhas que se insinuam por entre as formas, desfocam, tremulam o
espelho d’água, desenhando possíveis e criando ondas fluidas que
se refazem a cada rabiscar na água. Rabisco na água, forma-(de)
formação, imagens-forças que delineiam um currículo imanente.
O educador, essa ideia-corpo que rabisca a água, o faz para
expressar inusitadamente pensamentos crianceiros que dão vida
e ratificam o vivo. Rabisca por força intensiva das conversas-fabu-
lações as quais criam na projeção de um planejamento que nascem
em meio as linhas fabulatórias: cenários e personagens que dão
passagem, inauguram, imprimem corporeidade aos modos diferen-
ciais de pensamento-corpo desse mesmo educador.
Conversa-força-signo que enuncia os entre-(meios); devires
em atuação. Sonhamos com uma docência que exige o direito de
atuar na dramatização da didática e do currículo, fazendo passar
por entre-(meios) personagens e cenários. Problematizações inter-
pretativas de signos emergentes. Imagens-forças inusitadas, ines-
peradas, revolucionárias, libertadoras...
Nessa linha intensiva não queremos mais que os muros caiam,
as paredes fissurem... Queremos que elas se arrastem, se movam
de um lugar a outro, se juntem, se mostrem em castelos e cavernas,
sejam habitadas, como o fez Paul Klee (1937). Habitadas, construí-
das, deslocadas por esta força que a conversa fabulatória imprime
— por esta produção discursiva capaz de criar cenários, persona-
gens, mundos, vida. Encontra-se ideias, pensamentos, afetos, sons,
imagens; encontra-se também pessoas. A conversa, instaurada pelo
educador no exercício fabulatório da fabricação-invenção sonhado-
ra de uma aula, não está mais a serviço da informação, do decalque
da realidade, das representações, mas quer encontrar as enuncia-
ções provocativas de capturas, devires (Deleuze, 2004). E de um
canto ao outro de uma floresta inventada se vê passar um fluxo de-
sejante de combate:

— Lá vai o capitão do mato... Foge escravo eu sou muito mal!!!


— Não, capitão do mato, você não vai me pegar... sou mais rápi-
do e mais fooorte!!

Escravo e capitão se desterritorializam. Há um devir-escra-


vo no capitão e um devir-capitão no escravo, de formas distintas.

190
Numa dupla-captura, um pick-up (Deleuze, 2004), forma-se um
bloco que cria um plano de resistência, de luta por um modo de
existir, não há mais escravo e capitão e sim resistência e invenção.
Formam-se em meio ao encontro-aula-fabulação blocos: moventes,
fluidos, passageiros; há devires em transição. Nos entre-(meios)
das conversas, sobre aquilo que aqui realmente importa em uma
aula, - o encontro, as ideias, falas, pensamentos, desestabilização,
inquietação, espanto, transformação - dissolvem-se os binarismos:
crianças-professoras, crianças-crianças, professoras-professoras,
família-escola. Quem fala-ouve-responde-inventa-sonha-poetiza?
Em alguma medida todos são capturados. E as ideias são povoadas...
As crianças dizem sobre os modos de exploração do território,
seus mapas, suas linhas e trajetos. O cavalo e o escravo e o capitão e
a floresta expressam intensidades produzidas nos mapas traçados
no cavalgar pela geografia da floresta. O que diz o escravo fala mui-
to menos de uma representação da imagem do escravo, mas de um
percurso de fuga, de medo, de alegria, de diversão.
Palavras, sons, imagens, gestos enunciados em meio a aula-
-fabulação se liberam de suas funções linguísticas. Aión brinca com
o tempo, os números, a ordem dos ponteiros, com o passado, pre-
sente e futuro. O tempo aiónico designa a intensidade do tempo da
vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade não
numerável, nem sucessiva, mas intensiva. Brincam com o tempo,
pensamento e com a linguagem. Aión convoca a compreender a in-
fância para além de uma sucessão cronológica. Emerge a infância
do educador em sua condição da experiência. Viver a docência em
sua infância é que se abre campos de possíveis, capaz de rabiscar a
água, tremular a superfície, dissolver-se nela e desenhar-se nova-
mente. É o que fazem os poetas, os artistas, as crianças e o educador
em um devir infantil.

— Creeeedoo... O que é isso? E ele mesmo responde: Isso é pedra


animal.
— Mas o que é uma pedra animal?
— É uma pedra muchada!

O que essa enunciação diz sobre seus desejos, seus pensamen-


tos, suas formulações parecem ligar tudo a qualquer coisa, com
poucas inibições ou pudores, como alguém que gagueja a própria
língua (DELEUZE, 2004), isto é, traça linhas de fuga na própria lin-
guagem. Como um pensamento que vibra o corpo inteiro e se atua-
liza num discurso intensivo, potente de devires.
Os poetas e as crianças pequenas gaguejam. As docências
gaguejam para fazer passar entre as infâncias - imagens-textos a
serem decifrados. Fazem gaguejar a língua em seus encontros. As

191
infâncias das crianças e das docências artistam sobre aquilo que
está representado, as deslocam, criam passagens, formulam pensa-
mentos; brincam.
Nos preâmbulos da arte figuram imagens-personas, imagens-
-textos, imagens-cenários que ficcionam a realidade, não por uma fal-
sificação grosseira, mas pela criação tradutória, fabula outros mundos.
As conversas criam passagens para a ficção de processos nar-
rativos não lineares e nem mesmo representacionais. À medida que
se envolve, se é capturado. Esse modo de artistar a conversa não
trata de imaginação, fortuita ao tempo, à vida, às relações. Trata-se
de um campo de enunciação onde a fabulação encontra-se como
um plano de devires. Onde não se dissocia signo e sentido, onde se
situam potências, forças e fluxos em iminência, verdades provisó-
rias e inventadas por percursos de pesquisa desenhado pelo desli-
zamento transversal de um corpo mais amplo em composição. Não
se vê mais a criança e o docente, mas um corpo intensivo a traçar
um percurso aprendente de dimensão double face.
Fabular, então, é esta abertura infantil à vida; é pulsação. As
imagens-clichês dão vez às imagens fabulatórias que, ao habitarem
uma caverna ou uma cabana na rua, ao percorrer o corpo orgânico
pelas forças do intensivo, ao entrar em composição diferencial em
Soleil abrem passagem para configuração de uma máquina produ-
tora de outras tantas imagens-signos a serem interpretados, fazen-
do reencontrar o elo entre a vida e a ficção. Fabular é potência de
criação de mundos, habitáveis e visíveis (PIMENTEL, 2010).
Sonhamos, pois, na docência em fazer fluir o pensamento ca-
paz de manter ativo a vibração do corpo-educador para colorir o
cinza, agenciar-se a conversa e a infância aiónica, brincar, afetar-
-se pelos signos, produzir signos, ser capturado, criar mundos...
Fabular coloca-se por excelência sob a condição autopoiética hu-
mana. Quando o chacarú dançante que pendura nos cascos, dorme
embaixo da ponte e solta a bomba para acertar o monstro é enun-
ciado, cria-se um processo de produção subjetiva pelas forças cog-
nitivas de produção de pensamento. Pensamento que segue como
um trem que viaja sobre a linha, retilínea, firme e subitamente um
signo, um suspiro, um sorriso, um detalhe. Uma palavra puxa uma
alavanca e faz bifurcar seu trajeto: uma novidade, o intempestivo,
outra fabulação, outra imagem... Ele nada no mar e o tubarão come
ele. A vida faz perseverar o vivo, a atividade autônoma de existir, o
movimento de pensar. A fruição da alegria da criação que aumen-
tam o mundo e a potência do ser.
Imaginemos um gigante, imenso, grotesco e belo igualmente,
com grandes poros abertos, oxigenados, luminosos. Imaginemos
poder entrar e sair por estes poros, visitar suas intensidades, suas
vibrações, sons, imagens, cheiros. É isto que a fabulação faz no en-

192
contro aula. Aula-fabulação que faz crescer, agigantar-se, abrir-lhe
os poros, oxigenar as vias, faz pulsar, brincar, puxar as alavancas,
produzir discursos, neologismos, realidade provisórias...
Quem cria o gigante? Quem faz essa força extraordinária de
arquitetura altamente porosa, habitável, visível, desejável? Quem
o inventou? Como é possível inventar tantos gigantes: gigantes-
-cavernas, gigantes-cabanas, gigantes-ondas, gigantes-espaços
para vôos, gigantes... Quem será este famoso fabulador de aulas?
O que quer o gigante?
Ficcionar uma aula e ligá-la a vida, explorar o campo de possí-
veis, inventar um lugar, um mundo. O fabulador de aulas expressa
toda sua potência infantil, sua pesquisa, tradução criadora, para
junto com o outros fabuladores mover paredes, produzir cenários
criando fluxos de passagem por entre personagens, vilões, aranhas,
cozinheiros, múmias... O fabulador de aulas é aquele que produz, in-
terpreta e compartilha signos, que cria espaçostempos de capturas,
bifurcações, cenários desejantes de vida... Fabula sonhos. Dedica-se
a criar cenários de aprendizagens e problematizações para drama-
tizar a aula, a didática e o currículo.
Cenários são composições de matérias em fluxos, montagens
performáticas que expressam, em seu conjunto, um ambiente con-
vidativo a outros processos fabulativos. Movimentos desejantes
instaurados por um pensamento diferencial que se move pela força
do encontro ocasional com um signo, que lhe coloca a exigência de
interpretá-lo. Interpretação a qual instauram percursos de apren-
dizagens. Cenários são, pois, um conjunto de signos que forçam o
pensamento, que move o vivo. Um plano de encontros potenciais,
favoráveis à vida mais alegre e a produção de conhecimentos para
além-aquém dos processos recognitivos.
Ao produzir cenários de aprendizagens, a infância da docência
opera com uma Política Cognitiva Afetiva e Inventiva, a qual se ar-
ticula à luta pela afirmação ético-política do educador que diz res-
peito ao compromisso de ampliar a potência de pensar e agir dos
corpos. Ato revolucionário próprio do conhecimento que se refere
à plenitude e liberdade de se abrir à vida em sua condição essencial
de difenciar-se de si. Conhecimento das necessidades corpóreas e
intensivas que nos fazem desejar aprender.
O fabulador de aulas, de sonhos, imagens, lugares, cenários
cria possíveis para emergência devires e é arrastado por ele. Habi-
ta uma infância aiónica, portanto, corre-se riscos pois caminha so-
bre placas tectônicas sempre em tremulação por abalos sísmicos...
Corre-se riscos porque nunca sabe ao certo os territórios que estão
a fabular, fabulação que provocará outras fabulações... Corre-se os
riscos de habitar um plano aberto às novidades, ao intempestivo, ao
inusitado. Ser um fabulador de aulas é se manter ativo no exercício

193
de abertura a signos que provoquem imagens-fabuladoras, procu-
rando alimentar com as mais variadas iguarias o corpo sensível.
Devir-criança do educador que se expressa no agenciamento
aos movimentos minoritários que as infâncias produzem, abrir-se
aos exercícios crianceiros e produzir afectos, perceptos e funções
que fazem perpetuar o desejo de aprender, especialmente pelos
modos brincantes que a todo instante desenham linhas de fuga.
Devir-criança faz abrir porosidades nessa tal “vida adulta” deslo-
cando-se para outros lugares, para cavernas, ondas, cabanas, flores-
tas... É viver na docência uma potência criadora.
O fabulador toma de empréstimo esse modo de atuação (KAS-
TRUP, 2008) do pensamento particular das crianças, o brincar, que
ao experimentarem os signos emitidos por um certo plano susci-
tam devires inusitados. Nesse sentido, o brincar se coloca como um
movimento incessante de autopoiese, de autoprodução que faz da
fabulação seu modus operandi para a invenção de mundos e pro-
dução de pensamento, configurando-se, portanto, sempre de modo
encarnado e ativo de pensar.
Ao brincar, as infâncias do educador e das crianças, em seus
atos fabulatórios, são arrastados por devires que fazem birfurcar
toda e qualquer linearidade do pensamento e da história, criando
mundos e tantas existências possíveis que forem capazes de sonhar.
Brincando, ativam um pensamento fabulativo, faz emergir mundos
inusitados que ao serem pensados e habitados podem subverter
qualquer ordem escolar e social mais dura, friccionando as linhas
de vida em seus atravessamentos. Portanto, brincar é um ato revo-
lucionário de pensamento. Fabular uma aula também. A possibili-
dade de viver uma vida melhor, mais alegre e solidária se coloca a
cada cenário produzido, a cada conversa, a cada rabisco no espelho
d’água, a cada medo, sorriso, gritos e histórias contadas.
Uma aula, uma escola, uma rua: linhas de fuga são traçadas
a todo instante pelos atos de brincar, fabular, ficcionar uma aula.
Mapas são desenhados, afetos produzidos e experimentados; ca-
minhos sinuosos que ao serem rabiscados não cabem no papel so-
bre a mesa, mas se espalham por um pique, escorrem pelas tintas,
borbulham saborosamente nas panelinhas... Não cabem porque os
mapas são provisórios, se atualizam por formas e fluxos moventes,
escapam às formas, reterritorializam-se, envolvem-se pela matéria;
as proporções não são cronológicas, são intensivas e sensíveis.
Vamos distorcendo a imagem da aula pelas pinturas de uma
docência que procura artistar sua profissão como uma obra de arte,
o fabulador de aulas. Sonhando a aula, implicado por invenções
poéticas, pesquisando maneiras de fabular aulas, pois elas nunca
estão prontas. Vivenciando as cenas e inventando-as enquanto vive,
rascunhando as aulas durante seu fazer (CORAZZA, 2017)

194
Apostamos nos corpos que compõem blocos de devires infan-
tis para fazer passar as intensidades de um corpo revolucionário.
Apostamos na coragem de lutarmos contra nosso sedentarismo,
contra um pensamento que quer confirmar as certezas sobre a
aprendizagem da linguagem ignorando os limiares de produção
corpórea das infâncias em seus devires. Liberamos, assim, as pro-
duções de textos exclusivamente escritos no plano de uma folha de
papel para inscrevermos a si e o mundo em linhas desejantes de
uma vida que acontece e vibra no corpo. Corpo que escapa das salas
de aulas e ocupa os corredores, os pátios, a rua, os parques... Linhas
que atravessam muitas individuações afirmando cada percurso di-
ferencial de aprendizagem.
Afirmamos, pois, a aula-fabulação como lócus da produção
de alegria e vida e o planejamento ou ato de fabular como dispo-
sitivo fabulatório capaz de atualizar sonhos de uma linguagem
onde a palavra afirma o encontro, a amizade e o amor aos pro-
cessos de diferenciação.

Afetos...
Agenciamo-nos às ferramentas conceituais produzidas por al-
guns autores que têm habitado nossos sonhos, produzindo signos
que nos forçam a pensar, sonhar, delirar movimentos de produção
escriturística, sendo eles: a) CORAZZA, S. M. O DIREITO À POÉTICA
NA AULA: sonhos de tinta. In:38ª Reunião Nacional da ANPEd –
UFMA: São Luís/MA, 2017; b) DELEUZE, G. PARNET, C. Diálogos.
Lisboa: Relógio D’água editores, 2004; c) KASTRUP, V. A Cognição
Contemporânea e a Aprendizagem Inventiva. In: KASTRUP, V; PAS-
SOS, S.; TEDESCO, S. (Org.) Políticas da Cognição. Porto Alegre:
Sulina, 2008; d) PIMENTEL, M. R. Fabulação: a memória do futu-
ro. Tese de doutorado. 2010. (Doutorado em Letras) Programa de
Pós-Graduação em Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro; Paul Klee – Revolution des Viaductes 1937 - Óleo sobre
fundo de óleo sobre algodão sobre moldura de cunha, 060x050cm
– Hamburgo, Hamburger Kunstha.

195
196
Educador em aula,
sobre a escritura e a pedagogia
Marcos da Rocha Oliveira

I
Os tendões estavam ali. As mãos já haviam adquirido o cami-
nho e o modo de massageá-los após correr ou após algumas horas
na escrivaninha. As partes mais baixas de suas pernas sempre fo-
ram a maior certeza de sua vulnerabilidade, mesmo mais fortes e
flexíveis do que vinte anos atrás. Há certa satisfação, uma pequena
lembrança do início e uma gratidão para com o corpo que nunca
abandonara sua função no conjunto. A pele das mãos poderia estar
bem melhor. As pintas insistem. O queixo se ergue e o cheiro do café
com sua temperatura certa não embaça a vista. Breve desvio em
arco do olhar até os elefantes — uma piscadela cumprimenta-os.
Do encaixilhar da janela até sua mesa em um ritmo bom. Quase um
salto lento. Lembrou de Italo Calvino, da alegria em viver ali e, no
tom certo, com letra cursiva e a ponta do indicador, escreveu no ar
e pronunciou: festina lente. O gato está ali. O seu caminho é estar ali.

II
O trabalho não poderia ser melhor. Continha a dose certa
de contingências.

pelos espaços entre


as flores curvas

Essa era a lembrança do som e da fúria da aula, com um mar


e cor peculiares, ao receber o livro de Faulkner como orientação.
“É necessário para o modo como escreves tua pesquisa”. Aceitou
sem entender. Os bons tempos eram os sonhos e frases de hoje. Não
havia distinção.

Sinto-me como Haruki Murakami na janela diante do trem. Mi-


nhas pernas nunca estiveram tão fortes e flexíveis. Tenho cada vez
menos objetos. Cada vez mais os objetos são precisos. E cada vez mais
as palavras aparecem com certo trabalho cotidiano e insistência, não
por uma falsa dificuldade aduladora, mas por uma decisão constante
— que sempre me acompanhou (mas essa seria uma história muito
comprida e sem graça, de modo que prefiro não contá-la). De certa
forma, por toda a vida soube disso, e que daí derivaria qualquer “sorte”,
“talento” ou aptidão” que possam ser atribuídos a uma pessoa: traba-

197
lho cotidiano e insistência. Tudo bem, sei que é piegas e quase um es-
pectro de todo professor, figura romantizada da culpa e da moral, uma
celebração de si e de seu ofício pelas artimanhas de muitos “sempre”. E,
vamos jogar limpo, o “sempre” é uma boa marca de vitimização e ex-
purgo ao amor fati (mas essa seria uma elucubração muito comprida e
sem graça, de modo que também prefiro não fazê-la aqui).
Por sua vez, a decisão — que hoje se presentifica como algo que
sempre esteve por aqui — pode estar contida na seguinte tentativa
de descrição de uma sensação: ao mirar o movimento no horizonte e
imaginar os trabalhadores todos os dias, sinto-me privilegiado por
fazer aquilo que desejo. Essa é a cena. Escrever, para mim, nunca foi
um sofrimento e como vejo a vida hoje, não há motivo algum para
fazer algo que nos cause sofrimento ou que nos seja penoso. Posso até
ponderar o peso das contingências e as situações limites que sobrepu-
jam a vida. Mas ouso manter a radicalidade por um instante: não há
motivo algum para falsear algo que não nos caiba, mas existem todos
os motivos para conquistarmos o amor às nossas escolhas.
Intimamente, encaro a repetição do trabalho como o exercício
de um propósito: “Eu sou Murakami na janela diante do trem”, escre-
vo no Moleskine que ganhei de minha esposa (e novamente me sinto
um pouco ao lado do escritor e corredor, quase fora do tempo, ao
grafar, aqui, amorosamente “esposa”). “Sinto uma grande felicidade
nessa hora”. Uma frase limpa e precisa, conquistada com extrema sin-
ceridade e rigor.

***
Repouso a xícara de porcelana, uma das quatro que escolhemos
ter em casa, na mesinha que compramos na viagem; giro no calca-
nhar esquerdo convicto e de lá caminho até a escrivaninha para ter
a janela à minha frente. É assim. Mas tentarei ser mais exato e veloz.
O trabalho não poderia ser melhor. Contém a dose certa de con-
tingências. Sete páginas a serem lidas para o começo do seminário.
Gosto do formato. É possível estar, de pronto, como se estivesse em
uma conferência. Utilizo tal procedimento desde o início das aulas
abertas. Trato os começos de aulas e seminários um pouco como um
mantra, como um modo de achar o ritmo próprio ao que estará em
jogo. É assim, também, que faço quando decido escrever ou correr. É
preciso clamar um início que já esteja há muito presente, ecoando.
Cada um deve encontrar o seu, como um aliado, um guia especial.
Sem querer ter a mão para o rock, lembro das soluções de juven-
tude de Bob Dylan, ecoando a voz de certa eternidade: sua entona-
ção, seus improvisos e sua mão escrevendo só registram as vozes que
lhe atravessam — de modo que mesmo quando eu não compreendia
uma palavra sequer do idioma (ou quase isso) eu me emocionava ge-
nuinamente. Ao conhecer o idioma, a emoção se mantém em mim,

198
sustenta-se e atravessa-me. Penso, igualmente, no ritmo de corredo-
res como Eliud Kipchoge ou Emil Zátopek: embora não se pareçam
em nada, há ali uma eternidade que cria uma ancestralidade comum
àqueles que experimentam correr e, ao vê-los, também me emociono
genuinamente. Lembro-me, agora, o que ela me disse sobre Fernando
Pessoa no dia em que me presenteou com o primeiro Moleskine e a
caneta portátil que até hoje carrego: eu nunca mais esquecerei...
Para o que me proponho, escrever e estar em aula, a aula funcio-
na como um eco de eternidade. Meu corpo está ali, mas sou somente
como algo a flutuar. Não sei como explicar. Nada me pertence. Mas,
sinto que devo trabalhar e insistir muito para honrar as vozes que
ali circulam. E, assim, posso dizer “eu” como quem lê o rastro de um
monstrinho que carrega um exemplar da “Aventura semiológica”, de
Roland Barthes, ecoando pelo assoalho da oficina, do escritório ou da
universidade até se perder na rua. Tactactac...

III
As pernas se agitam em fole. É o trecho de alguns dias e algumas
horas do dia de hoje. A imagem de um monstro engraçado, parecido
com aqueles desenhos de Gilles Deleuze, correndo com um exemplar
vermelho de “Aventura...” o fazem sorrir. O gato fecha os olhos com
amor. Da escrivaninha para a escrivaninha, com o café. Na mesinha so-
mente as pedras certas. Retorna ao texto com dedos rápidos para apa-
gar — pensa como só a fala é contínua e como o ritmo é difícil de ser
alcançado ou mesmo mantido na escrita. Decide inserir mais três as-
teriscos e seguir: algo que sempre o faz agradecer à Maurice Blanchot.

***
“O Senhor Educador” e “O Pedagogo a Caminho Está” foram so-
luções de juventude, como já mencionei aqui. Vocês conhecem os tex-
tos de quando tratamos os depoimentos de oficina de um educador,
pesquisador e escritor. E pelo que recebi nas “seções menores” das
aulas abertas, um pouco mais privadas e de trabalho pedregoso, essa
desmontagem e inventário dos procedimentos lhes serviram de mui-
tas maneiras — até constranjo-me, confesso, das soluções textuais e
de algumas saídas que experimentei ao ver a perspicácia e maravilha
de alguns textos com os quais tive contato.
Quando digo “soluções de juventude”, quero ser claro, não apon-
to para uma fragilidade. É apenas um fato, uma narrativa do tra-
balho da escritura, do trabalho de pedagogo, de certo temário. Sem
muito pudor, perdoem-me, tudo que fiz em aula e escrevi poderia
estar ali contido. São exemplares de minha própria Biblioteca Peda-
gógica de Babel (sinto muito por isso, Jorge Francisco Isidoro Luis
Borges Acevedo!). Gosto de imaginar que eu esteja ao lado de alguns
professores, não para flanar pelos caminhos entre as plateias curvas

199
ou apregoar-me qualquer autoridade (pois ao citá-los vocês imedia-
tamente entenderão o quão embaraçosa seria qualquer tentativa
nesse sentido), mas para caminhar com minha própria comunidade
portátil, como quem carrega sua caderneta ou amuleto no bolso cer-
to. Após tais textos de juventude, criei a fantasia de reverberação de
minha Biblioteca Pedagógica de Babel em muitos e muitos trabalhos.
Quase uma década após defendê-los, li a seguinte frase no texto de
um querido professor e historiador português (que cada vez mais ad-
miro como escritor): “Como se houvesse ainda entre algumas das fi-
guras académicas conhecidas — casos concretos de Certeau, Deleuze,
Foucault e Barthes — um pedagogo em andamento, que se recusou
com a maior verticalidade ética a vestir a pele do transmissor, do di-
vulgador, do comentador da obra alheia”.
Agora vocês entendem.
Gosto de me imaginar como estando nessa escritura, uma vez
que “um pedagogo em andamento” é a transcriação lusa para minha
solução concreta “o pedagogo a caminho está”: Deleuze, Foucault,
Barthes (Certeau com Blanchot eludidos na segunda solução de ju-
ventude, pois impregnados na primeira: o educador como homo quo-
tidianus), bem como o próprio professor Jorge, San Cor, Haroldo de
Campos, Paul Valéry e Osman Lins também estavam no momento da
escritura de meus textos citados.

***
Mas isso não importa, certamente, ao trabalho de cada um de
vocês, aos problemas que constroem em suas pesquisas, em suas au-
las, na escritura.
Como proposto, prestarei-me a tentar honrar o convite e lugar
de fala como quem executa o cumprimento de uma tarefa, de um
modo, perdoem-me se soar impreciso, distraído e plenamente presen-
te — com a força e potência que Maurice Blanchot atribui à distração
como negligência essencial em “A conversa infinita”.

IV
O gato não está mais ali. Os olhos se levantam ao longe. So-
mente sabe que ele está enrolado na poltrona diante da janela, de
costas para a mesinha. Ele contém os mil sóis. O trabalho não pode-
ria ser melhor, ele repete. “Continha a dose certa de contingências”:
decidiu anotar. Mas o fato é que o pedido havia sido ardilosamen-
te construído, de modo que não era possível recusá-lo ou levá-lo a
bom termo. O caminho curvo era o único modo de prosseguir sem
ficar cansado ao ponto de não querer escrever durante a tarde.
Aproveitou-se do alcance de suas mãos. Iria digitar algumas anota-
ções (talvez presunçosas) como quem se aquece ou fica como parvo
a realizar os exercícios “educativos” antes de uma corrida.

200
Crio, ou tento criar, a aula como um espaço-tempo especial.
Repito uma longa preparação para executar poucos instantes de uma aula.
Preparo uma aula na solidão absoluta — ao ponto dela ser extremamen-
te povoada de encontros. É do fundo dessa solidão que crio uma aula.
Exerço sobre a construção da aula um rigor só concedido a algumas
formas poéticas.
Sobre um rigor de construção da aula, assenta a nota de uma ordem
no mundo — ou de uma abertura a ser produzida.
Construo a aula com rigor, para introduzir nela aquilo que é inerente
à vida: o princípio de imprevisto e aleatório.
Testo uma aula precavendo-me a garantir o máximo de imprevisibili-
dade durante o teste. Para a aula, como para o pensamento, o impre-
visto é o mais fecundo. Por isso, preparo-o.
Sou um pedagogo que as boas aulas sobre Pedagogia pouco interessa
e que as coisas reputadas “pedagógicas” por vezes entedia. Testo mi-
nhas aulas com este tédio e interesse.
Carrego somente os fragmentos necessários para retornar à aula (e
ao livro) em outro lugar.
Para uma aula carrego apenas uma valise, onde coloco tudo o que
encontro. Quanto às expectativas, interessa-me apenas que me colo-
quem, também, em uma valise.
Como se titular na cátedra de Pedagogia Portátil, possuo um axioma
que diz de meu desejo de estilo pedagógico: A aula deve caber em um
bolso e o seminário em uma valise.
Com uma valise e uma caderneta sou capaz de exercer o onirismo
ativo da liberdade de cátedra.
A aula sempre começa por algum lugar.
A fisicalidade de minha aula está no texto.
Uma aula é um romance-ideia por onde circula um monstro pura-
mente semiótico.
Escrevo minhas aulas para que enquanto operador de linguagem eu
funcione mais como escritor do que intelectual ou professor:
Esperam que eu fale, fantasio que escrevo.
Executo uma aula pois tenho dela uma verdadeira noção musical. E
boa ou má, não interrompemos a execução de uma música.
Que eu, o professor Barthes e o professor Deleuze tenhamos uma predile-
ção por Schumann não é espantoso. Na aula, tanto um quanto outro fa-
zemos com que o texto lido só possa ter sido escrito para aquele que o lê:

O verdadeiro pedagogo amador, sou eu.

A aula, diferentemente da conferência, é o espaço paciente


onde nada precisa ser combatido: apenas desorientado.
Ao escrever sobre a aula, posso executar a escritura de forma amado-
ra — como se estivesse em uma execução privada.

201
Sou pedagogo, escrevo.
É meu corpo que está na aula, mas a flutuar.

V
O gato estava na mesinha e as pedras permaneciam imóveis.
Levantou os olhos e respirou fundo. Quem dera sua aula fosse
apenas um jardim como o de Roland Barthes no “Império dos Sig-
nos”, e que cada um na aula pudesse vir a se perguntar: onde está
o homem, o trabalho, o pedagogo? Decidiu seguir considerando as
anotações como partes integrantes do texto, mas seria necessário
algum parágrafo para trazê-las à fala. Sentiu uma grande felicidade
nessa hora. Escrever nunca era um sofrimento, de modo que ele
podia escrever todos os dias e se alegrar todos os dias ao escrever
— sobre o próprio escrever, sobre aulas, sobre a pedagogia, sobre
anotações, sobre a imanência, sobre a escritura, sobre as pedras,
sobre correr, sobre textos imaginários, sobre palestras fictícias, so-
bre amar, sobre gatos, sobre livros, sobre autores, sobre música, so-
bre fragmentos, sobre abismos, sobre intervalos, sobre ritmo, sobre
como viver junto, sobre sonhos.

Pois bem, gostaria de imaginar que vocês pudessem anotar


aquilo que, por sua vez, eu anotei — como espécies de lições pedagó-
gicas particulares sobre a escritura e a pedagogia...

VI
Ergueu o rosto pois sentiu que ela estava chegando.
O sol parecia aquecê-lo como se aquele instante fosse seu tor-
rão de eternidade.

VII
O gato sorriu.

Escólios
A maioria das obras citadas são facilmente reconhecidas, pois
do texto podem ser extraídos o seu autor e o seu título (de Barthes,
Blanchot, Faulkner, Murakami, por exemplo). Para mais detalhes bi-
bliográficos e para uma maior orientação no que tange às obras (de
Haroldo de Campos, Sandra Corazza, Gilles Deleuze, por exemplo)
sugiro uma leitura rápida dos seguintes textos: “Biografemática do
homo quotidianus: O Senhor Educador”, disponível em <http://hdl.
handle.net/10183/21380>, “Método de dramatização da aula: o
que é a pedagogia, a didática, o currículo?”, disponível em <http://
hdl.handle.net/10183/94750>, “Aula com Maurice Blanchot: A pe-
dagogia e o cotidiano”, no livro organizado por Heuser, Corazza e

202
Aquino, intitulado “Aula com...em vias de uma didática da invenção”
e, quem sabe, até o texto “Pedagogia, cultura e erudição – texto e
docência na formação de professores”, que foi publicado no livro
“t3xto”, organizado por Feil, Oliveira e Feitosa, em 2019. Para ver a
cena e a citação presente no texto de nº III, ler o belo artigo de Jorge
Ramos do Ó, “Ouvir falar o pensamento, aprender a falar o pensa-
mento no interior da universidade: o testemunho dos “professores”
Michel Certeau, Gilles Deleuze, Michel Foucault e Roland Barthes”,
publicado no vol. 24 da “Revista Brasileira de Educação”, também
em 2019. Sobre a montagem do texto, a variação das vozes e o con-
teúdo, prefiro não sobrepor qualquer explicação além daquela que
o próprio conjunto do livro já possa ter suscitado. Sendo sincero,
sobre o texto, prefiro não sobrepor explicação qualquer — acho
que ele está bem sozinho, nunca precisou de mim.

203
204
Dos sonhos da Senhora Sohnospska
Maria Idalina Krause de Campos

T
rata-se de um texto experimental, uma micronovela que fler-
ta com o romance picaresco. Conta de maneira fragmentária
um tanto da vida e dos sonhos de uma educadora, a Sra. Soh-
nospska. Para compor a personagem retornei ao livro de Heinrich
Heine (1831) Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski, obra
que já tenciono trabalhar a algum tempo. Para esta produção de
escrita, tomei de empréstimo facetas do estilo literário heineano
— que preza o duelo verbal de um eu, subordinado ao si-mesmo
— abrindo um pretexto para dar voz às aventuras subjetivas e fi-
losóficas de nossa “heroína”. Penso que a literatura é um canal pre-
cioso para o educador sonhar aulas, o que por via de consequência
estimula o sonhar dos alunos. E foi assim que passei a concebê-la,
sua imagem começou a chegar como ondas diurnas e fugidias que
me rondavam enquanto eu lia e escrevia. À noite, a Sra. Sohnospska
vinha com sua textura descorada de um oceano desalumiado, para
acomodar-se no côncavo de minhas pálpebras, e juntas seguíamos
para essa praia mareada que precede os sonhos.

Livro Primeiro1
Capítulo I
Meu pai se chamava Sonhospski, e minha mãe Sohnospska de
quem herdei o nome. Eu filha legítima dos dois. Nasci na primavera
da década de sessenta no Porto de Sohnoswops. Minha velha avó
Sra. Tapeska, contou-me em minha infância diversas fábulas. E en-
quanto me fazia cafuné entoava uma canção levando-me ao sono.
Já no mundo onírico via sua grande boca banguela murmurando
cânticos e podia sentir o cheiro de sabão grosso de seu vestido de
Sherazade, que se misturava ao olor do campo de lavandas sonha-
do, por onde eu corria em disparada.
No tempo em que fui carregada no ventre de minha mãe, meu
pai se aproximava por vezes e fazia leituras da revista Seleções diante
da grande barriga. Daí, creio que venha minha inclinação para a leitu-
ra. Quiçá meu sentido de liberdade, de imaginação e de apreciação de
sonhos, possa ser atribuído a tais pré-leituras paternas, reforçada por
inúmeras histórias picantes contadas por minha tia Lelé. O que facili-
tava meu pensamento a se dirigir ao mundo metafísico, fazendo minha
mãe gritar: essa criatura está sempre comendo mosca!

1 O segundo livro não foi escrito, mas talvez quem sabe um dia será!

1 O segundo livro não foi escrito, mas talvez quem sabe um dia será!

205
Muitas vezes em criança na volta das aulas eu perdia a noção
do tempo e passeava solitária pela beira do rio que banhava o Por-
to de Sohnoswops. Pensando no que vinha aprendendo na escola,
queria me tornar professora e fazer feliz toda a humanidade. Nos
verões escaldantes, rabiscava versos sensuais — soturnos e hilá-
rios, em um bloco de infância — e por esta razão muitas vezes fi-
quei de castigo debaixo do alpendre na varanda dos fundos.
Já nessa época tive que suportar as penas, por minha re-
beldia de escrita e pelos meus sonhos utópicos de entreverler
para poetizar o mundo. Penas que eram aliviadas pela alegria
ao ouvir o trote da égua Bolívia, conduzindo meu avô Ordepski
em sua carroça de volta para casa. Pois sabia que às escondidas,
— depois de alimentar seu galo Teixerinha — ele me daria um
punhado de bala Gasosa.

Capítulo II
Entrando na idade adulta eu mesma preparei minha mochi-
la para arribar. A cada peça de roupa depositada, organizava meus
devaneios com relação à faculdade que iria cursar. Deixei para trás
uma porção de livros na estante, com certa tristeza tomei nas mãos
um Poe e abri aleatoriamente no poema Um Sonho

Em visões do breu nocturno e incerto Aquele sonho santo… visionário,


Sonhei com o prazer de outrora… Enquanto o mundo escarnecia,
Mas um sonho desperto, pela aurora, Me acalentou, tal chama que irradia
Deixou-me o coração deserto. Guiando uma alma solitária.

Que faz senão sonhar sempre acordado E embora aquela luz, na tempestade
Aquele que olha de soslaio E breu, tremesse lá distante…
As coisas em redor, e com um raio Que mais podia haver de tão brilhante
Apontado para o passado? No astro claro da Verdade?

Na noite que antecedeu minha partida, após o jantar regado


por vários conselhos familiares sobre os perigos e deveres, da vida,
tive o seguinte sonho:

Estava caminhando à beira-mar uma vez mais. Era noite e a lua


cheia trazia seus brilhos por sobre o oceano negro. Mirei ao longe
uma figura que se aproximava com a cabeça coberta por uma bur-
ca branca. Era uma jovem ninfa de cabelos de cachos verdes que
pairava sobre a encosta. Ela me fez sinais com as mãos em gestos
lânguidos, e suavemente inclinou sua cabeça na direção da minha.
Podia ver que ela era pálida, bela, com olhos de gato e exalava o aro-
ma de Cardo Marítimo. Então, sussurrou algo com sua voz bizarra:
“...............”! Não, não pude discernir suas palavras, devido ao barulho
da rebentação das ondas.

206
Cai da cama, com o coração aos saltos e com a carne tremeli-
cando, feito gelatina. O sol já estava a pino, e com ele parti em dire-
ção ao continente.
Capítulo III
Os prédios do campus universitário eram de uma arquitetura
variada. O das Ciências Humanas e Sociais, onde fiz a graduação em
filosofia era um dos mais antigos. Teto de pé alto nas salas de aula,
honrando a influência positivista de Augusto Comte presente no Es-
tado. Belos tempos aqueles, quando a novidade e o saber sorriam
para mim. ... Ah! Já faz tanto tempo! Quantas tolices, quantas noita-
das, quantos amores e quantos dissabores.
Apoquentação maior me ocorria pela quantidade de Cristos
crucificados que povoavam todos os espaços acadêmicos. Era mu-
dar o olhar de direção e lá estava ele e sua sangradura. Várias noites
ele me apareceu em sonhos e já não sangrava, tínhamos um diálogo
telepático sobre (sobre mesmo!) um monte de oliveiras. Pairáva-
mos no ar com pleno direito de sonhar, um status gratiae (estado
de graça). Por minha curiosidade latente, busquei a interpretação
para tal sonho, tempos depois em Jung. O monte significa ascensão,
e particularmente ascensão mística (= espiritual) até o cume, isto é,
até à proximidade do Espírito e ao lugar da Revelação.
Depois de formada aprumei meu espírito e montei em Sleip-
nir o cavalo de oito patas de Odin e vós digo que: não há nada
como o sonho a galope para criar um presente e ascender. Deixei
para trás meu cansaço, adeus Sócrates! Tomei como regra neste
instante que: pensar é mudar. O que me causava certa ansiedade,
uma vertigem Kierkegaardiana, porém, com auspícios de maior
liberdade para meu espírito.
Com a incursão em uma educação da diferença, rebentei al-
gemas por certo, retirei o bolor de minha psique travada. Minhas
percepções passaram a ser insones, dormia de olhos abertos. Dei-
-me conta de minha ignorância e que ela era falta de algo, uma falta
permissiva, como uma abertura possível para criar e dar vazão aos
meus anseios poéticos. Lia, escrevia e pesquisava à exaustão, fosse
de dia ou no breu da noite. Verdadeiro jardim das delícias onde ser-
penteava faceira e sem trégua. Apostando fichas num fazer vivível
onde toda a experiência tornava-se matéria didática para a educa-
ção do espírito. E discordar ou duvidar, quem há-de?

Capítulo IV
Mefistofélica experiência! Por causa dela saboreio com prazer
a natureza humana, com apetite e rigor dos famintos. Tenho parte
com os ogros e com os seres celestiais. Orcus e Pararadisus são dois
extremos de uma linha mundana que atravessa minhas vísceras de

207
educadora. Em minha cabeça há cornos e auréolas, mas não sou im-
permeável à dor e ao prazer de educar.
No trânsito entre currículo e didática vivo em um sonho den-
tro de outro sonho. Em minhas ações didáticas uso a literatura, a
filosofia e a arte, como um sonho dirigido, meus devaneios tornam-
-se matéria e método que compartilho com meus alunos.
Para ir além do dado, coloco em curso o método espiritográfi-
co oriundo de minha pesquisa e que funciona para: interpretar, ler
e escrever sobre arquivos de espíritos raros. Como Bernard Shaw
penso que: os homens veem as coisas como são, e dizem por quê?
Eu sonho com coisas que nunca foram e digo por que não?
Fica, pois claro que o método espiritográfico, foi sonhado na
pesquisa-educação. Age por extração de matérias, acompanhando
seus fluxos conectivos e usa o conhecimento como invenção o que
o torna aberto e infinito. Assim, manipulo arquivos (de vida e obra
de espíritos), deles bebo do que já sei (já traduzido), e busco o que
não sei (a-traduzir) afirmando: porque não?
Motivo pelo qual por vezes é preciso fechar os olhos para
adentrar à condição do êxtase, da única visão reveladora da ordem
da novidade, o sonho. Pois, de olhos abertos à percepção diária es-
gota-se muitas vezes no horror do já visto. Trata-se do contrário, de
colocar em um movimento oscilatório o espírito que lê e escreve,
fazendo do sonho um prelúdio imagético. São imagens que saem da
obscuridade e que servem a um plano de pensamento que é ficcio-
nalizado no espaço-aula.
Para tanto, há de se penetrar nos recessos de um assunto, das
coisas que nunca foram — entre sonho e vigília — para descobrir as
coisas mais simples e do mais amplo interesse literário. E o sonho é
o mais fecundo e acessível campo de exploração para quem deseja
investigar a faculdade de simbolização do homem. E feita a investi-
gação, crio novas imagens, além das capturadas pela minha oculari-
dade e passo a conceber uma poética que ultrapassa essa realidade.
O que se constitui como uma faculdade de sobre-humanidade, pois
aceito as tentações do devaneio criador de um onirismo ativo e li-
bertário, escrevo. É como um navegar sem garantias num arquipé-
lago — misterioso como o Triângulo das Bermudas — formado por
três ilhas do si-mesmo: corpo, espírito e mundo.

Capítulo V
Enquanto escrevia o capítulo anterior, dei-me conta de que o
sonho absorve porções consideráveis de nossa vida. Dando um che-
ga prá lá na razão que quer reinar sempre absoluta. Diferente dela
o sonho cria sem cessar, trazendo presságios anunciadores de que
algo de fora do comum virá. Pois, difícil é ver o que existe!

208
Eu como educadora prezo pelo direito de sonhar aulas, pois
sonhei alto também minha pesquisa e ela me é cara. A docência vale
a vida que nela se leva, pois é atravessada por forças encantadas
que realizam a vontade de potência de educar. Em cada planeja-
mento para preparação de uma aula, misturo tintas — pois, tinta
sozinha nada faz — dando nova tessitura colorante aos temas que
irei abordar. Meu possível entra em campo, refaço, desfaço, esque-
ço e esses movimentos espiritográficos tradutórios são autoeduca-
tivos, pois traduzir é traduzir-se. E é a mim mesmo que purgo ao
retocar múltiplas vezes minhas aulas.
Se vires que te conduzo para além das grades curriculares que-
rido leitor, alegra-te com o fato de teres em ti uma fonte. Ela pode
estar submersa nas entranhas de teu espírito, ela faz parte de um in-
consciente coletivo — a que pertences — e que tende a jorrar. Trans-
forma então, teu discurso em corredeira, afia teus pensamentos, dei-
xe escorrer o transe alegre em tua linguagem como numa dança de
espadas balinesa, traduza o que transborda de teus sonhos.
Deixa que se aposse de ti deuses e demônios ao remexeres teus
arquivos. O educador em aula faz e dá aval a um jogo tradutório entre
luzes e sombras. Nessa gradação cambiante regue tua associação de
ideias, tenha em mente que a imaginação é mais definida pelos seus
efeitos do que por suas causas, e a natureza humana nada mais é do
que uma imaginação regrada de sensibilidades em fluxo.

Capítulo VI
Vós conheceis por certo a delícia do que é pensar por espanto!
A educação propicia estes instantes únicos e raros. Tal fato ocorre
quando coloco em movimento uma filosofia da vontade de poder, tal
potência me move, tornado-se facilitadora para capturar o ainda não
visto, caminho para o inesperado. O inesperado acontece e foge ali
em minha aula tão sonhada. Vejo algumas vezes uma luzinha fiel, sair
do oco dos olhos de meus alunos, um microrraio que acende retinas.
O sentimento poético se evidencia nos corpos afetados. São instantes
infrequentes que me levam a sonhar volta e meia com um ser an-
drógino e de feições surpreendentes. Vem sem alarde nas cestas de
tardes outonais como uma quimera do ócio, e que relato agora:

Estou eu, Sra. Sohnospska em uma grande sala de aula, ao


fundo do recinto sentada em uma cadeira estava o tal ser de
olhos brilhantes feito madrepérolas e de corpo aquoso com for-
mas humanas e uma cabeça de hidromedusa (Laodicea undulata).
Aproximei-me e na medida em que chegava mais perto, seu ros-
to hídrico ia se transfigurando, podia ver que tais faces variantes
se assemelhavam a alguns de meus alunos, além de uma legião

209
de poetas e de pensadores que formavam uma egrégora de psi-
-gammas simulcognitivas.
Quando meus olhos encontraram os olhos de tal criatura já a
um passo da cadeira observei que: só do lado direito do lábio su-
perior se contraía algo, ou melhor, se retorcia algo parecido com
um rabinho de camaleão. Cauda minúscula que executava uma
dança plena de mistério, que não me pareceu comum encontrar-
mos nos anjos mais puros, mas também não é típico dos diabos
mais terríveis. Esse bailado não representava nem bondade, nem
maldade, mas apenas um saber malicioso; era como um sorriso
ébrio, envenenado pela maçã do conhecimento, que a boca aca-
bou de desfrutar. Ao avistar os lábios cálidos da criatura, tive um
tremor espasmódico nos meus lábios embebidos de saliva, e uma
vontade palpitante de beijá-la. Uma afinidade eletiva que beirava
ao transcendental.
Girei nos calcanhares me afastei e de soslaio espiei uma vez
mais a criatura, e ouvi um flatus vocis (um sopro de voz) a per-
guntar: não te reconheces em mim menina Sohnospska? Eu sou
feita de tinta, da tinta de teus sonhos, que solves muitas vezes
com tuas lágrimas ou espargis com tuas gargalhadas. De minha
boca brotam camaleões arteiros que lanço ao léu, para que ar-
remessem suas línguas e suguem de tudo que lhes mate a fome,
além de dar mais colorido e movimento ao mundo caótico, pois,
vita somnium breve (a vida é um breve sonho). Então acordei!
Penso que sou o sonho, sou o camaleão, sou a criatura, sou um
complexo de Sohnospska’s.

Capítulo VII
Educar é uma realidade crua, cujo preparo, precisa fazer pen-
sar o pensamento. Ato que se faz pelo prazer de fazê-lo e de sabo-
reá-lo. Educar grosso modo é como fazer um pudim que só se prova
comendo. Complexo de fluxos que se transmutam na tênue linha
entre vida e morte. A potência visceral do professor-pesquisador
ocorre por meio de procedimentos de dimensão empírica-artisda-
dora, para criar novas realidades apostando em um currículo e em
uma didática da diferença. E tal ação deixa um rastro vivível que
vai além de nossas ilusões perdidas, pois a nuca segue sendo um
mistério para o olho.
Ninguém nasce com o dom ou a graça de educador. Um bom
educador colhe de seu canteiro de experimentação o que dele vin-
ga, suas produções custam muito trabalho, esforço e dedicação.
Estranheza, solidão, frustração e “sopa negra”, fazem parte do
processo, o ato criador é um enigma e com ele travamos duelos
de pensamento diuturnamente. Desafio-me e mesmo executando

210
movimentos demasiados humanos faz com que se tropece naquilo
que não entendo.
Nem sempre digo “eureka” diante de um sonho ou de uma
ideia que vem. Mas, sinto uma alegria — como ao morder um quin-
dim — única quando uma ideia ou um sonho me adotam. E como
um jogo de caça ao tesouro, colocado em curso, me debruço sobre
outras vidas e outras obras, fazendo ressoar seus gonzos que tra-
zem novos devaneios e descobertas. Então a menina que faz parte
de mim grita com alegria: de novo, outra vez!

Parto, já é tarde Myfrow!


Remeiros a postos
Rio arrasta tempestade
Treme raiado breu
Vagas brumas de Aurora.

E, _____________________________________________________________“FIM”.

Referências
I - Obras-arquivo-visitadas: Das Memórias do Senhor de
Schnabelewopski, de Heinrich Heine, Brevário de decomposi-
ção de Emil Cioran; O espírito na arte e na ciência, A energia
psíquica, Aspectos do drama contemporâneo, Aion de C.G. Jung;
Maus pensamentos & outros, de Paul Valéry; Obra poética com-
pleta, de Edgar Allan Poe; A-traduzir o arquivo em aula: sonho
didático e poesia curricular, de Sandra Mara Corazza.

211
212
Posfácio ao Breviário
Kanka Alves Rodrigues

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(Álvaro de Campos)

T
1. Morte e escrita
anto a morte como o sonho são acontecimentos dos quais só
podemos falar ou escrever: da morte, antes; do sonho, de-
pois. Não podemos falar deles enquanto ocorrem. Não pode-
mos prever nem um nem outro. Só podemos falar das outras mortes,
bem como dos outros sonhos. De outros e dos nossos. Ou seja, sem
a linguagem, nem a morte nem o sonho existiriam. Eles existem só
dentro de uma linguagem. Ambos estão, assim, suspensos num espa-
ço temporal, distanciados do real em si e da sua representação.
Entretanto, não há ninguém que nunca tenha sonhado. Assim
como não existe alguém que nunca vá morrer ou que nunca tenha
morrido. Ninguém se formula as seguintes questões (shakespearia-
nas): — Sonhar ou não sonhar, eis a questão. Ou: — Morrer ou não
morrer, eis a questão. Existe, portanto, um real da morte e um real
do sonho. (Se é que existe isso que porventura abusivamente cha-
mamos real.) Real que é inacessível em si próprio, pois que furado,
porque nos escapa. Real que pode ser apenas um nome confuso que
damos às sombras da matéria. De qualquer modo, como real, tan-
to o sonho como a morte não cessa de se escrever. É por isso que
nós vivemos repetindo essa escrita. Repetível que faz rede, em rede,
com rede. (No caso, nós em rede: Rede de Pesquisa Escrileituras da
Diferença em Filosofia-Educação.)
Porque somos sujeitos de sonho e de morte, escrevemos. Isto
é, traduzimos por escrito a realização dos sonhos da Docência.
Porém, todo tradutor sabe que a tradução não propicia o entendi-
mento do original e, muitas vezes, não consegue encontrar o seu tom.
Então, nossa escrita pode aparecer lacônica, abstrusa e opaca em
significados ou tonalidades, como se fosse uma crisopeia. Isso por-
que morte e sonho nos escapam, mesmo se pretendemos ser abun-
dantes, translúcidos e transparentes. Neste Breviário dos sonhos em
educação, aproveitamos a existência do código escrito, do sistema
alfabético, das palavras para registrar a ocorrência de sonhos. (Po-
deríamos também desenhar, encenar, esculturar, performar os so-
nhos, como alguns efetivamente fazem.) Mesmo que essas elabora-

213
ções dos sonhos (como Freud chamava) não tenham testemunhas,
nem recebam nenhuma validação de verdade. E consistam apenas
em traços, restos, ecos, rastros dos sonhos.
Mas o que ficam dos sonhos e da nossa própria morte? Somen-
te aquilo que são movimentos e efeitos, que seguem engendrando
outros atos de sonhar e de escrever e novas maneiras de viver e de
morrer. Em piruetas que se consomem, renovam-se sobre si mes-
mas e se multiplicam, dói-nos o tempo, a vida range, a morte roça e
nós seguimos raspando a folha.

2. Inabitual do pensamento
Se 30 almas conseguiram formular alguma coisa a respeito
desses 21 sonhos é porque existiu uma atividade inabitual do pen-
samento. Não conhecemos uma técnica específica para chegar ao
fundo dos processos oníricos. Lemos e escrevemos sonhos, mas não
encontramos a solução dos nossos enigmas interiores. Os sonhos
não cessam de não se entregar, de não se inscrever, pois requerem
sempre uma explicação e uma sobrexplicação, uma interpretação
da interpretação, uma crítica da crítica, uma tradução da tradução.
Tanto que, finalmente, temos de deixá-los de lado, fazê-los publi-
car, espalhá-los aos quatro ventos. Não podemos, desde agora, fazer
mais do que esperar, continuar a viver e, talvez, prestar maior aten-
ção aos sonhos, tanto aos sonhados como aos contados.
É a morte que termina com nossos discursos assim como com
as demais coisas. Já não temos mais o que fazer. Acabou. A erosão
eólica assoberba o nosso platô. A solidão transmuta-se em isola-
mento. Pode ser apagado o lampião que vigiava. A nossa espera
acabou. A infância nunca mais voltará. (Por que voltaria?) A fan-
tasia das lembranças e dos esquecimentos dos sonhos são apenas
sequelas. Param de um golpe todas as seduções. Não acendemos mais
nada. As chamas seguem em direção a um mundo de pura escuri-
dão. Só a vasta noite prosseguirá dando sua luz para as estrelas.
Nossos quartos e escritórios espantam-se com a simplicidade desse
término. Privilégio de um tempo ígneo. Acabamos o Breviário com
um suspiro de poetas, sonhadores de chama, que velam dentro da
noite. Recolhemos sem aflição os rostos em fogo e os corações em
carvão. As cinzas que os produziram já esfriam. Se, com a visita da
morte, não mais despertamos, não nos esperem. Não será neces-
sário. Se acharem que houve sonhos demais, sonhantes demais,
desculpem-nos o excesso. (Às vezes, só o excesso alumia a valia.)
Guarde-nos o sono eterno. Cortem, arranquem, abram, serrem, des-
pedacem, piquem, fatiem, descarnem e abrasem os sonhos. Mortos
não sonham mais. (Ou será que sonham com os vivos? Nossas vidas
serão tão-somente sonhos dos mortos?)

214
Assim como os mortos, em certos momentos e em certos lu-
gares, saem dos seus sonos, como imagens incertas de um sonho,
e podem perturbar os vivos, os nossos sonhos renascem na es-
crita e pela leitura. Será que existem, de um lado, os tradutores e,
de outro, os sonhantes? Enquanto os primeiros lidariam com, no
mínimo, duas línguas; os segundos disporiam de procedimentos
linguageiros diferentes para, de modo circunstancial, esconder
e revelar a intencionalidade do pensamento e a diversidade do
imaginário? Como escrileitores deste Breviário, optamos por nos
pensar enquanto tradutores e sonhantes, sem oposição aristotéli-
ca, em função de uma disposição interna do pensamento de dese-
jo por um texto de discursividade.
Serão nossos sonhos, aqui inscritos, que farão, daqui em
diante, vigílias solitárias e escreverão nas páginas em branco que
restam das nossas vidas. Serão eles que desenharão um pouco de
sombra no claro-escuro de nossas esmaecidas existências. A tinta
onírica que escorreu dos nossos dedos é a nossa coragem e a nos-
sa luta, mesmo que às vezes brigue em nossas barrigas, bicando-
-as como pássaros assustados. Diante do doloroso nada da morte,
os sonhos são labaredas que não nos permitem cessar de ler nem
de escrever. É que somos tomados pela paixão do fogo dos gra-
femas; e são estes que nos queimam e nos navegam, ao invés do
mar. De suas letras, diacríticos, caracteres, números, ideogramas,
sinais figurais ou plásticos, somos nenúfares que partejam textos
imagéticos e especulares; somos heliotrópios que oram ao Sol,
chama de todas as chamas da transcriação; somos rosas que já
nascem rubras de brasa.

3. A grande inimiga
Nossa grande inimiga foi a Doxa, raivosa, ressentida e vin-
gativa, que domina de modo legal e natural; que difunde e mela
como uma geleia geral, abençoada pelo poder, como um discur-
so universal; a qual, por tanto reinar, fica de tocaia quando nos
propomos à simples tarefa de tecer um discurso sobre qualquer
coisa, quando mais não seja sobre o sonho. Em nosso labor lite-
rário-onírico, de encenação e figuração dos sonhos em Educação,
falamos da tarefa de escrever sobre as relações entre o conteúdo
onírico manifesto e os pensamentos latentes; bem como acerca
dos processos pelos quais esses pensamentos (conteúdos) laten-
tes transformam-se em conteúdo manifesto.
Quando um dia não compreendemos mais nossos sonhos (nem
nossas vidas), somos obrigados a continuar, como se fizéssemos par-
te de um livro. Não existem outras instruções. Assim, em nome da es-
crileitura, garatujamos. Em nome da escrileitura, engruvinhamos. Em

215
nome da escrileitura, escrevinhamos. Em nome da escrileitura, litera-
turamos. Acontece que, na vida da docência, há sempre tantas coisas
para reacender os sonhos. Viva a sobrechama da escrileitura que vem
brilhar acima de nossas portas, como fogo sonhado e contado, que
murmura e geme e sofre todas as dores do mundo.

4. Ciência da oniromancia
Este Breviário dos sonhos em educação integra a Ciência da
Oniromancia Apofântica Sobre-Humana, do Amor Anacrônico e
da Figuragem Supra-realista. Por isso, mostra os perigos de uma
ciência da vida e do pensamento, dedicada à tradução e à pesqui-
sa, que pode nos levar ao engano da aparência ou ao torpor meri-
tocrático. Logo, gera efeitos de produção que são muito merecidos.
Os sonhos, aqui, já se encontram associados à formalização de um
saber do tipo onirocrítico.
E isso tudo nos implica na vivência do paradoxo do filósofo
taoista chinês do século IV antes de nossa era, Chuang Tzu (ou
Zhuāngzǐ). Era uma vez, há vinte séculos atrás, em uma noite,
Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta a voar alegremente.
Depois de despertar, questionou se poderia determinar se ele era
um homem que sonhara que era uma borboleta; ou se era uma
borboleta que sonhara que era um homem. Em suma, nós somos
como Chuang Tzu, pois só podemos dizer: — Um dia, sonhamos
que éramos 30 borboletas, que andavam voando pelo ar das pági-
nas dos sonhos e que sonharam que eram 30 escritores de sonhos
que nada sabiam de borboletas.

5 Arquivos, flores e penas


Nunca saberemos se somos aqueles que sonham ou se so-
mos sonhados. Apenas sabemos que, assim como os sonhos de
Artemidoro, de Descartes, de Freud, de Alice, os sonhos deste
Breviário não dão sossego a ninguém. Nesse mise en abîme, o li-
vro está impregnado de vários arquivos sobre o sonho; por isso,
contém diferenciados tipos de Referências. Mesmo que abertas a
determinações futuras, as suas legítimas referências são a Terra,
a Água, o Ar e o Fogo. Sonhamos e morremos aí, nessas outras
cenas, quando a prática de sonhar passa a sua mão na teoria enla-
meada dos sonhos que sonhávamos que estivemos sonhando.
Somos penas falantes, meshes escreventes e fantasmas er-
rantes dos nossos sonhos. Ao mesmo tempo em que a lua corte-
ja a aurora, o fogo da Docência floresce e a flor da Aula se abre.
Enquanto a fumaça da morte e a chama da vida ascendem para
a imensidão do universo, que é luz e variação infinita de trevas.
Shakespeares de nossos grupos de orientação; Dantes de nos-

216
sos programas de pós-graduação; Homeros da nossa Rede de
Pesquisa, somos uma Via Láctea de constelações. Via, da qual,
passada meia dúzia de séculos, restará quando muito meia dú-
zia de tontos pirilampos.
Fizemos, aqui, nada mais nada menos do que o arquimodelo
de uma Metafísica Ilustrada dos Sonhos. Quanto ao tempo e ao mun-
do deste tempo: esperamos não estar mais por aqui se for para ver
chegar o dia em que todos lerão pelo mesmo breviário palaciano
da aurea mediocritas. (Avada Kedrava.) Afinal, o mundo é, desgra-
çadamente, tão real que os pesadelos também são vividos como
realidade. Por aqui, temos bebido fel; em Valhala, esperemos que
hidromel. É que somos leões que já nasceram rugindo. Como raste-
jantes mônadas, entramos, neste livro, para produzir sonhos; isto
é, para nos tornar leitores-pensadores-escritores não brutos, não
domésticos, não imbecis, não parvos, não submissos, não estúpi-
dos; mas sonhantes de guerra, bravos, ciganos, feiticeiros, sofisti-
cados, exaltados, piratas, peçonhentos, impulsionadores, inquietos,
insatisfeitos, incessantes, intensos, assustadores, desacomodados,
incomodadores, desajustados.
Logo, bêbados de ânsia dionisíaca pelo gozo mais horroroso
da escrileitura — que carregam a Filosofia da Diferença debaixo
do braço como um arquivo para a docência, para a pesquisa e para
as vidas —, somos sonhantes das trevas, malfadados, hóstias de
angústias, antros do vício, o sangue bastardo de Nero, as sete pra-
gas sobre o Nilo, alma dos Bórgias a penar. Somos feras terríveis,
ogros, ocos, carrascos, glutões, ímpios, malignos, infames, falsários,
sanguinários, sarcásticos, sátiros danados, nefastos, bastardos, pe-
çonhentos, bestas agrestes, praia infestada de cações, aves de mau
agouro, avatares do Norte, desesperados endêmicos das minas de
carvão, costureiros funerários, sodomistas e gomorristas animais,
chacais com cara de couro curtido pela miséria anatômica das ru-
gas implantadas pelas escrileituras.
Uivamos para a lua gelada, o black mirror crepuscular da nos-
sa raça, e assim estragamos todas as coisas: a comida azeda, o lei-
te talha, a carne apodrece. Então, na luz mortiça, sobre as pedras
musgosas, abrimos uma mortalha enxovalhada de matérias fecais
e dejeções várias, e nela distribuímos nossas páticas mercadorias.
Derivados deste Breviário, se for para ser, nunca nos ofereça tex-
tos indigentes, do tipo lagartixa-de-rabo-decepado, teses anêmicas,
dissertações sifilíticas. Não nos entregue artigos livres de gordura
trans, nem capítulos livres de glúten e de lactose, como se fossem
textos detox, caldo verde, complemento alimentar, produto orgâni-
co, chá de camomila, água morna com limão. Ninguém tem o direito
de interromper os sonhos alheios; mesmo se somos um tonel de
sonos quebrados. Além disso, continuar junto ao Sonho não é para

217
quem quer, mas para quem pode. E, por piedade humana, por mise-
ricórdia divina, não nos peça outro Breviário. Escreva cada qual os
seus sonhos. (Se tiver valentia diante do abismo.)

6. Sensação de distância
Eis que, mais uma vez, a história se fez. Tudo o que construí-
mos neste livro foi feito não apenas de letras ou de frases ou de
tinta, mas de tudo que nem sabíamos que havia dentro de nossos
sonhos. Seguimos Mestre Yoda: — Do. Or do not. There is no try.
(— Faça. Ou não faça. Tentativa não há.) Acumulamos, organiza-
mos, arranjamos as folhas. Solidão forçada. Empenho doloroso.
Ideias nunca antes havidas. Dúvidas incisivas. Gravação de letras.
Inscrição de frases. Lapidação de sílabas. Pensar maneiro e ma-
treiro. Combate desigual. Injusto. Algum sentido. Nossos rabiscos
pretos se desdobraram em longos fios de tinta. Bastava enterrar
uma pá em algum lugar e algo de terrível acontecia. Foram rotos
os liames. Uma fresta ao menos. Veneno no espinheiro. Mistério
da vida. Oceano tumular da morte. Rochas ignotas. Os sonhos que
afligem. Como se faz? Como se organizam? Verdade que se desfaz,
se esgota, se fina. Circunstâncias inapeláveis. Degradação. Folhas
pelos dedos. Sensação de distância onírica. Estranheza dérmica.
Textura fibrosa. Galhos nas mãos. Pregos nos pés. Pele rústica. Fel
da mucosa da boca do próprio desterro. Pungente contrariedade.
Muitos dias. Longas noites. O nosso lado sombrio. Dedilhados. Ris-
cos. Anotações. Balbucios. Estrupícios. Sensações inertes que zoa-
vam. Fantástico grimório de abominações. Ignoto. Incapacidades.
Sobressaltos de buscas e de encontros. Espicaçamentos. Desistên-
cias. Motins. Anônimos e anômalos. Presente recuperado. O presen-
te já é ruim que chegue sem precisar do passado. A dança do tempo.
O passado nunca vai embora. O futuro nunca chega por inteiro. O
presente é sempre um território de atrito entre passado e futuro.
assim persiste o caos Os séculos são as montanhas do tempo. Titâ-
nica cordilheira sem fim e sem princípio. Ilusão. Nada contra o mito
quando se confessa que se é seu criador. (Quem pariu Mateus que o
embale.) Atos e pensamentos. Vidas passadas. Sem remorsos, sem
hesitar, sem pesar. Dom esquivo. Recorrências. Possíveis aleatórios.
Imãs da história. Heranças. Tatuagens. Chagas. Espasmos de fome.
Império do tempo. Eles somos nós. Obsessões. Atitudes. Postura.
Vida escrevinhadora. Criada onirocrítica. Transfusão de proprieda-
des. Sobreposição aleivosa. Escrevemos o ainda não transcorrido.
Terá existido mesmo uma época em que achávamos que viveríamos
para sempre e que mudaríamos o mundo? Passagens irreversíveis.
Fugazes. Magníficas. Registros. Nave funerária que paira. Fantas-
mas. Véus de lágrimas. Pontos de dilaceração. Maldição do demiur-

218
go. Mudas de sonhos. Tronco inerte caído no recanto do fosso. Aos
pés da deusa. Pedras dos rejeitos. O Portal, o Vestíbulo, os Nove
Círculos, os Vales, os Fossos, as Esferas e os Cantos do Inferno. Des-
carte também é arte. Trespasse também é morte. Bisonho é duas
vezes sonho. A erudição soterra a criação. Nem o silício a redime.
Experiência livresca. Retrovar ou se perder. É um pular desatinado.
É um brincar desesperado. É um riso aparvalhado. Este clown sou eu.
Se fossemos pensar bem, viver seria da ordem do impossível. É que
a vida é mais do que isso: menos humana e mais escrevinhadora.

7. Na vida e na amizade
De quantos eventos desmesurados participamos. Em quantos
livros fomos parceiros. De quantos problemas falamos entre nós
para buscar apoio. Emocionada, absorta em ler os sonhos, presen-
tes neste Breviário dos sonhos em educação, pensei que havíamos
compartilhado anos, até décadas, intensos, ao longo dos quais co-
nhecemos o que vale e o que não vale na vida e na amizade. Um
tempo de probidade, alegria e constância, em que apreciamos a
proximidade, e mesmo a distância uns dos outros, até cada um de
nós sentir-se reconhecidamente acompanhado. De modo que todos
éramos um e éramos também o resto do clã, numa mescla intrinca-
da de experiências, afectos, ganhos e perdas acumulados, preserva-
dos das erosões de fora e transformados em muralhas, envoltas em
vapor onírico, atrás das quais nos refugiávamos das mais diversas
invasões, como sobreviventes que éramos de muitas devastações.
Vocês, amigos e amigas, é que fizeram todo este livro. Eu só colhi
os meteoros dos seus arquivos de sonhos. Por vezes. Quando tive
sorte. Já, na maioria das vezes, comi poeira. Do deserto.

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.


(Fernando Pessoa)

219
220
Punhados de bibliografia

U
m pouco antes e durante a escrita dos respectivos Prefácio e
Posfácio ao Breviário, eu lia os seguintes textos e livros, que
poderão ser úteis aos sonhos de outros sonhantes: > AGAM-
BEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte
e livros. Tradução Andrea Santurbano, Patricia Peterle. São Paulo:
Boitempo, 2018. > Al-Hazred, Abdul. O Necronomicon ou O Livro
dos Nomes Mortos. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Anúbis,
1997. > ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Porto Alegre:
L&PM, 2002. > AQUINO, Julio Groppa. Educação pelo arquivo: en-
sinar, pesquisar, escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios,
2019. > ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte 2v. Tradução
Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro: F. Alves, 1990. > ASSOUN, Paul-Lau-
rent. Freud: a filosofia e os filósofos. Tradução Hilton Japiassu. Rio
de Janeiro: F. Alves, 1978. > ARTEMIDORO: Sobre a interpretação
dos sonhos (Oneirocritica). Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Zahar, 2009. > BACHELARD, Gaston: A água e os sonhos: ensaio
sobre a imaginação da matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. > BACHELARD, Gaston. A
chama de uma vela. Tradução Glória de Carvalho Lins. Rio de Ja-
neiro: Bertrand Brasil, 1989. > BACHELARD, Gaston. O ar e os so-
nhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução Antonio
de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. > BACHELARD,
Gaston. O direito de sonhar. Tradução José Américo Motta Pessa-
nha et alii. São Paulo: DIFEL, 1985. > BATAILLE, Laurence. O umbi-
go do sonho: por uma prática da psicanálise. Tradução Dulce Du-
que Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. > BENJAMIN,
Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras Escolhidas, volume I. Tradução Sérgio
Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. > BLAKE, William. O
casamento do céu e do inferno e outros escritos. Tradução de
Alberto Marsicano. Porto Alegre: L&PM, 2017. > BLOCH, Ernst. O
princípio esperança I. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro:
EdUERJ; Contraponto, 2005. > BORGES, Jorge Luis. La pesadilla. In:
BORGES, Jorge Luis. Obras completas III. Buenos Aires: Emecé
Editores, 2007a, p.257-271. > BORGES, Jorge Luis. Nueva refutación
del tempo. In: BORGES, Jorge Luis In: Obras completas II. Buenos
Aires: Emecé Editores, 2007b, p.164-181. > BRETAS, Aléxia. A cons-
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das Letras, 1999.

224
Autores
- Bios de sonho -

Ada Kroef
Universidade Federal do Ceará, Filosofia e Artes. Pisciana sonhado-
ra, filha de Yemanjá e adoradora do Mar. É preciso sonhar! Intercep-
tar e devanear com medusas que emergem em transparências.

Alberto d’Avila Coelho


Instituto Federal Sul-Rio-Grandense. Pela Educação, Arte e Filo-
sofia! Parafraseador redundante de sonhos alheios, tenho sonhos
em minhas mãos. E é por isso que sei que amanhã será um novo
dia, e eu, certamente, serei mais feliz. 

Ana Carolina Acom


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Grupo de Pesquisa
em História da Arte e Cultura de Moda. Decora a casa com cabe-
ças encolhidas, animais empalhados, seringas e brinquedos anti-
gos. Não distingue sonhos de pesadelos.

Ana Paula Patrocínio Holzmeister


Universidade Vila Velha, Grupo de Pesquisa Cartografias, Infân-
cias, Docências e Currículos. Vive de expropriar, se apropriar, de-
vorar matérias de platôs disjuntivos ao habitar sonhos e pesade-
los da infância da docência.

Angélica Vier Munhoz


Universidade do Vale do Taquari, Grupo de Pesquisa CEM/CNPq.
Ainda que o sono tarde a chegar, sonha tão demasiadamente que o
corpo mal consegue suportar.

Cristiano Bedin da Costa


Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Entre a boca de Laura
Palmer e a orelha de Dale Cooper, entre o stop do pensamento e
o instinto caraíba — nesse espaço aparentemente vazio, se joga
entre sonhos de todas as épocas.

225
Daniele Noal Gai
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educa-
ção. Tal como Hilda Hilst, escreve seus Presságios e Sonhos. Nasci-
da na primavera, cultiva e consome chás, seus companheiros das
noites insones de escrita.

Deniz Nicolay
Universidade Federal da Fronteira Sul, Líder do Gphilía. Apanha-
dor de sonhos na aurora das manhãs. Pedagogopoetartistador.
Nas horas vagas, fala com seus animais e plantas.

Emília Carvalho Leitão Biato


Universidade de Brasília, Ciências da Saúde. O silêncio e a
escuridão da madrugada lhe acendem ideias curiosas. No li-
miar do novo dia, alimenta-se de narrativas dos sonhos de
suas meninas.

Ester Maria Dreher Heuser


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Filosofia. Elogios filo-
sóficos e poéticos à insônia permanecem enigmáticos. Aprendeu
que só os sonhos vãos do coração desfolham.

Fabiane Olegário
Universidade do Vale do Taquari, Grupo de Pesquisa CEM/CNPq/
Univates. Quer a todo custo lembrar-se do que sonhou, principal-
mente nas noites frias de inverno.

Fabiano Neu
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Filosofias da Diferen-
ça e Educação. Em sonho, voa sobre a cidade de Celephaïs, negocia
rubis em Dylath-Leen e bebe chá com os gatos em Ulthar. Em Ka-
dath, escreve grimórios que depois esquece.

Gabriel Sausen Feil


Universidade Federal do Pampa, Grupo de Pesquisa t3xto. Para
chamar o sono, pensa em jardinagem — ele mesmo, em velocida-
de, a cuidar hibiscos, palmeiras, ingazeiros e gramíneas.

226
Gisely Mara Falavessa
Universidade de Vila Velha, Grupo de Pesquisa Cartografias, Infân-
cias, Docências e Currículos. Professora de crianças pequenas que
acredita, como no sonho, que brincar é um ato revolucionário.

Julio Groppa Aquino


Universidade de São Paulo, Bolsista de Produtividade do
CNPq.  Na incontornável dissolução das coisas, arquivam-se so-
nhos-preás, gordos, enormes. O mundo embaleia-se. 

Kanka Alves Rodrigues


Universidade Grafonômica da República de Alca, em Sarkomand.
Figura minhamente avoenga, é ancestral viva da Rede de Pesqui-
sa Costa das Sombras. Sonha com espíritos e com o Imperador
Trinco a decepar-lhe a cabeça.

Karen Elisabete Rosa Nodari


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Colégio de Aplicação.
Nutre-se pelos sonhos que cria. Oscilando entre os sonhos da vi-
gília e os sonhos noturnos, sendo fiel a Borges, pois um não deixa
de ser a fonte do outro.

Larisa da Veiga Vieira Bandeira 


Colégio Marista Maria Imaculada, Coordenadora Pedagógica.  Faz
cerzidos invisíveis na madrugada, quando sucumbe e com a linha
09 alinhava sonhos curriculares.

Luciane Uberti
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educa-
ção. Porque sonhar transpõe, desloca e não subsume o que difere,
ficcionar vivifica. Voa naqueles mais triviais, os ordinários.

Luciano Bedin da Costa


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educa-
ção, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institu-
cional. Se assim se pode dizer, um ex-insone. Seu lema: uma noite
de cada vez. 

227
Luiz Daniel Rodrigues Dinarte
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tradutor e intérprete
de Libras. Especialista em traição de textos. Investigador de raí-
zes e inventor de sufixos belicosos, para fins espúrios.

Marcos da Rocha Oliveira


Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Voa alto das rochas e
não deixa rastros. Com suas pedras, plantas e aromas, recita “fir-
me e elegante” pelo caminho.

Maria Idalina Krause de Campos


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Professora Pesquisa-
dora. De minha boca brotam camaleões arteiros que lanço ao léu,
para que arremessem suas línguas e suguem de tudo que lhes mate
a fome.

Marina dos Reis


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Bando de Orientação
e Pesquisa (BOP). Sonho duplo, respiro de palavras alheias. Repito
o sonho no sonho, do contrário sufocaria em pesadelos.

Máximo Daniel Lamela Adó


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Departamento de
Ensino e Currículo, Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação. Com Gracian, crê que o maior artifício é
disfarçar o artifício.

Paola Zordan
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Artista magistéri-
ca, performática pesquisante do Canto eXquiZ. Corpo a poensar
peles pictóricas bricoladas em riscos que verso nenhum mostra. 

Polyana Olini
UNIVAG Centro Universitário. Contaminada de eery, weird, un-
canny, unheimlich e gatos, a vigília de seu sono é também seu atra-
so: seus sonhos têm estilo na raiz de pesadelos. Revisa pouco para
ter tempo de cuidar das plantas.

228
Róger Albernaz De Araujo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, professor, ensaísta de ma-
quinações transversatórias de escrileitura. Delírios de um sonha-
dor inventariante de balbúrdias inventivas-inventadas: calam e
falam, escutam e olham, escrevem e leem. 

Sandra Mara Corazza


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Bolsista de Produtivi-
dade do CNPq. À escuridão, lhe vem um caixão. Medo de dormir e
não acordar. Só o faz com uma chama. Sonhadora assombrada que
viola a vigília, vigia e vela.

Silas Borges Monteiro


Universidade Federal de Mato Grosso, Bolsista de Produtividade
do CNPq. Não dorme com luz acesa, apesar de visitas de monstros
da noite. Não escreve sonhos à luz de vela. Deve ser personagem
do pesadelo de outra pessoa.

229
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