Beruflich Dokumente
Kultur Dokumente
pt MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
TEMA * 5
Duas exposições
O emigrado astral resultante de carta enviada por Mário
de Sá-Carneiro. A nota é publicada a
26 de janeiro de 1912, e nela se indica
da modernidade
o projeto de levar à cena um repertó-
Duas fotografias de Mário de rio de peças estrangeiras e portugue-
Sá-Carneiro, de 1914, tira- sas, nomeadamente Amizade e obras
das provavelmente no Posto de Ponce de Leão.
Antropométrico do Governo
Civil de Lisboa e atualmente UMA OBRA LITERÁRIA
pertencente aos arquivos da MODERNA
Polícia Judiciária (ver página ao Logo em 1912 é o desejo de uma obra
lado), são a grande surpresa da literária moderna e projetada a nível
exposição com que a Biblioteca Ricardo Vasconcelos internacional que o leva a radicar-se
Nacional assinala o centenário em Paris, mais do que a frequência
da morte do escritor moder- do curso universitário que lhe serviu
nista. A mostra O Homem São O centenário do suicídio de Mário de pretexto para comprar o bilhete
Louco, patente até 31 de Agosto, de Sá-Carneiro, em Paris, a 26 de para o Sud-Express. E é na capital
é comissariada por Ricardo abril de 1916, é uma oportunidade francesa, ou a partir da vivência
Vasconcelos e Jerónimo Pizzarro. ideal para reafirmarmos a vitalidade nessa cidade, que desenvolve a sua
Reúne, ainda, vários manus- da sua linguagem ao longo de uma obra mais radicalmente sintonizada
critos e livros. Na ausência de curta carreira literária, desde os com os temas da modernidade es-
um registo criminal do poeta, a textos da juventude à obra publicada tética, e que por outro lado aprende
existência daquelas fotografias ou que planeou publicar. os métodos da retórica de blague ar-
configura mais um mistério Considerando o momento, tística e literária parisiense que trará
para os estudiosos. Poderá estar começamos por relembrar A um para a revista Orpheu. Deixaremos
relacionada com o regresso de Suicida, palavras escritas aos 21 de lado aqui a importante influência
Sá-Caneiro a Paris, nessse ano, anos e dedicadas ao seu amigo que o cubismo e o futurismo têm
ou com o interesse que sempre Tomás Cabreira Júnior após o suicí- na sua obra, nomeadamente em
demonstrou pela loucura, como dio deste último, e aproveitamos Manucure, para lembrar apenas dois
os comissário sugerem, entre ainda para publicar pela primeira outros momentos de total sintonia
muitas outras hipóteses, no vez em fac-símile uma cópia autó- de Mário de Sá-Carneiro com o es-
catálogo. grafa deste poema. pírito da sociedade moderna, tanto
Integrada no Festival A um Suicida mostra uma lin- no seu lado mais belo como na faceta
Realizar:poesia, de Paredes de guagem poética a meio caminho mais negra. Quanto ao primeiro,
Coura, a mostra Mil Anos Me entre o maior romantismo de al- recorde-se o seguinte “mimoso poe-
Separam de Amanhã, patente guns poemas juvenis (tantas vezes, ma”, como lhe chama Sá-Carneiro,
no Parque de Estacionamento contudo, matizados por um caráter enviado a Pessoa como post scriptum
Central até 22 de maio, re- ricamente satírico) e a maior ma- da carta de 31 de agosto de 1915:
vela, por seu turno, o bilhete turidade de tom e um mais seguro
de despedida de Sá-Carneiro controlo formal que se começam a A minh’Alma fugiu pela Torre Eiffel
para Fernando Pessoa, onde evidenciar mais claramente a partir [acima,
se lê: "Um grande, grande de vários poemas de Dispersão. O – A verdade é esta, não nos
adeus do seu pobre Mário de poema valoriza bastante cedo o ato [criemos mais ilusões –
Sá-Carneiro". A mostra inclui de escolher pôr fim à própria vida, Fugiu, mas foi apanhada pela
fotografias, manuscritos e livros, como fizera Cabreira Júnior, con- [antena da T. S. F.
pertencentes à coleção de Jorge siderando esta opção uma maior Que a transmitiu pelo infinito em
Meireles. conquista quando comparada com Pintura de Júlio Pomar [ondas hertzianas...
um viver "espojado" como aquele
alegadamente do sujeito do poema. (Em todo o caso que belo fim
Sá-Carneiro é o mais representativo O texto é ainda prenunciador da [para a minha Alma!...)
daquilo a que se chama o Modernismo obra futura pela apresentação pre- na mente coletiva portuguesa como a materialização dos nomes dos
português. Pessoa também, claro, coce de um contexto de dissolução representações do próprio autor. autores «nos jornaes». Recorde-se Sá-Carneiro associa-se neste
mas a sua é uma dimensão de tal e de perda, influenciado por algum Como se percebe, a estratégia de au- que Sá-Carneiro e Cabreira Júnior momento a dois símbolos maiores
modo maior que implica uma outra espírito da época. Um tom que tossatirizar-se chega cedo e evoluirá escrevem a quatro mãos a peça de da modernidade técnica que neste
complexidade. Pessoa está fora de aliás contrasta com os triunfos lite- para o desconcertante à medida que teatro Amizade, que viria a ser publi- momento acabavam de ser articu-
todas as escalas e de todas as desig- rários que o autor lograria em vida, a voz poética amadurece. cada em 1912 e que de facto cedo lados: a Torre Eiffel, emblema do
nações. mas que nem por isso se ausentou Por outro lado, acrescente-se lhes granjearia alguma atenção do potencial da arquitetura do ferro,
Já Almada Negreiros é mais alguma vez da sua escrita. que o poema apresenta o desejo público. Quanto ao desejo de verem e a transmissão de sinais T.S.F, que
especificamente futurista, embora Deste poema se disse já que não assumido do sucesso literário, a o seu nome na imprensa, diga-se permitia a comunicação global quase
não em exclusivo. Tal como os artistas apresenta qualquer vislumbre da “Glória”, como uma forma última que este objetivo era internacional instantânea. Note-se que fora ape-
plásticos, Santa Rita, Eduardo Viana obra futura. Mas, entre outras co- de redenção, que se atingiria com e que Sá-Carneiro apontou desde nas dois anos antes, em 1913, que a
e Amadeo, que vogam nas águas nexões temáticas, este escrito de ju- sempre para Paris. Torre Eiffel, esse objeto que durante
“
da Vanguarda europeia, futurista, ventude, nunca escolhido pelo autor Apresentamos aqui dois recor- muito tempo se mantivera sem uma
simultaneísta, cubista. Mas apenas para qualquer livro, estabelece ainda tes de imprensa do jornal francês utilidade óbvia, fora adaptada para
Sá-Carneiro exemplifica na perfeição o uma relação clara com um poema Comoedia que demonstram, aliás, que antena T.S.F., e que isto precisa-
modo radicalmente não ísmico de ser, que se situa no extremo oposto Sá-Carneiro não deixou esse objetivo mente motivou a imaginação dos
a capacidade de forjar uma linguagem da curta e bem sucedida carreira O centenário do por mãos alheias. O primeiro deles artistas e escritores da época, como
cintilante, com uma tonalidade forte literária de Sá-Carneiro. É possível suicídio de Sá- (fig. 1), cujo texto foi transcrito na já referimos noutro lugar. Também
de aventura e transgressão, ao mesmo ver, por exemplo, antecedentes primeira edição de Amizade, é uma Sá-Carneiro se associa a essa
tempo integrada numa linha de legibi- distantes de Aquele Outro, uma das Carneiro, é uma carta de Sá-Carneiro e Cabreira Júnior discussão artística, numa fórmula
lidade perfeita. últimas composições remetidas por oportunidade ideal publicada no jornal Comoedia de 6 de particularmente bela já que alcança
A Confissão de Lúcio será a sua obra Sá-Carneiro a Pessoa, no sentido em julho de 1910 (p. 3), em que se adverte o “ar”, onde “tudo existe”, como diz
maior como prosador, precisamente que as passagens “Espojado no ca- para reafirmarmos que a coincidência do título Amizade, em Manucure, suspendendo a noção
porque é aquela em que a clareza da minho, / Preguiçoso, entorpecido, / a vitalidade da sua peça que tinham acabado de escrever, da queda pessoal. Por outro lado
representação corresponde a uma Cheio de raiva, daninho...” prefigu- segundo os signatários, em setem- a nossa residência fixa na internet
audácia temática que traz a literatura ram a lista de epítetos auto-irónicos linguagem ao longo bro de 1909, com uma outra de Jules demonstra à saciedade cem anos
fantástica do século XIX a um novo e profundamente surpreendentes de de uma curta carreira Lemaître, era absolutamente casual. depois o quando é particularmente
patamar de densidade simbólica, Aquele Outro, tais como “o papa- Quanto à segunda notícia (fig. 2), moderna a noção de uma alma que
psíquica e sexual. É talvez aí que o -açorda” ou “O reimoso, o corrido,
literária, desde os tanto quanto sabemos até hoje nunca se entretece tão completamente com
processo de libertação da língua e da o desleal – / O balofo arrotando textos da juventude à resgatada para o público português, o fenómeno da comunicação global.
imaginação que é todo trabalho poéti- Império astral: / O mago sem con- é o anúncio, pelo editor do jornal, da Finalmente, lembremos ainda que
co de Sá-Carneiro é levado mais longe. dão — o Esfinge gorda...”, epítetos
obra publicada ou que criação em Lisboa da Sociedade de Sá-Carneiro assiste aos efeitos do
Até nós. Hoje.J tão fortes que foram permanecendo planeou publicar Amadores Dramáticos, seguramente
6 * TEMA MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO jornaldeletras.pt * 27 de abril a 10 de maio de 2016 J
Documentos Carta de Sá-Carneiro a Tomás Cabreira Júnior (fig.1); anúncio da criação da Sociedade de Amadores Dramáticos (fig.2); e fac-símile do poema A um suicida transcrito na caixa
“
lado mais negro da modernidade Que ainda é oiro, embora - Morreram-me meninos nos delas, e até pelo próprio sujeito quan-
técnica, nomeadamente a Primeira [esverdinhado? [sentidos... do contemplou alguma experiência
Guerra Mundial, de que nunca chega A guerra é, para Sá-Carneiro, a de aceleração dessa modernidade
a ver o fim. E a realidade deste con- A guerra é, para Sá- (De que Revolta ou que país vários níveis, o momento que leva a por via do conflito que se iniciava?
flito acaba por ecoar na sua própria Carneiro, o momento [fadado?...) uma desestabilização das referên- Como os mortos da frente, caíram
linguagem poética, servindo episo- Pobre lisonja a gaze que me cias de centralidade e semiperiferia, por terra os sonhos duma vivência
dicamente de repositório referencial que leva a uma [encerra... ajudando-o a vincar um sentimen- moderna, porque a modernidade
e linguístico que ajuda a vincar ainda desestabilização das - Imaginária e pertinaz, desferra to de alienação em relação à Paris se automutilava e se ausentava de si
mais claramente o sentido de uma Que força mágica o meu pasmo desejada. E é-o paradigmaticamente mesma. E como com os seus feridos,
alienação do sujeito em relação à referências, ajudando-o [aguado?... neste poema também, onde se faz um parece ter sido numa gaze que se
anterior experiência cosmopolita de a vincar um sentimento uso evidentíssimo do vocabulário do encerraram os sonhos de resolução
Paris. É uma linguagem que além A escada é suspeita e é perigosa: dia associado ao conflito. Não é este absoluta de um estatuto semiperi-
disso vai ajudar a um certo sentido
de alienação em relação Alastra-se uma nódoa duvidosa Emigrado Astral aquele sujeito que férico por via da desejada existência
do paroxismo e da proximidade com à Paris desejada Pela alcatifa - os corrimãos ganha o mundo; de algum modo, um mais cosmopolita, bem como todos
a loucura que se desenvolve nos [partidos... refugiado – qual fantasma –, mesmo os sonhos de uma obra desenvolvida
poemas do último ano, como no já que se deslocalize apenas da sua Paris e de uma carreira literária totalmente
referido Aquele Outro. Trata-se do - Taparam com rodilhas e de uma modernidade sonhada? Não bem sucedida na cidade de Paris. Sá-
poema O Fantasma, já do início de Astral após que fantasiada guerra - [o meu norte, será esta “fantasiada guerra” aquela Carneiro é ele ainda o emigrado astral
1916: Quando este Oiro por fim cair - As formigas cobriram minha de facto desejada expressamente por da modernidade até mesmo nesse
O que farei na vida - o Emigrado [por terra, [Sorte, tantos antes de 1915, nas artes e fora inconseguimento. J