Sie sind auf Seite 1von 196

PELO CU

PELO CU
P OLÍTICAS ANAIS

J AVIER S ÁEZ
S EJO C ARRASCOSA
Copyright © 2016 by Letramento

Editor:
Gustavo Abreu

Tradução:
Rafael Leopoldo

Revisão da tradução:
Leo Gonçalves

Revisão do português:
Tadeu Sarmento

Diagramação
LiteraturaBr Editorial

Capa:
Luis Otávio | Dus Designer

Todos os direitos reservados.


Não é permitida a reprodução desta obra sem aprovação do Grupo Editorial Letramento.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880

Belo Horizonte – MG
Rua Cláudio Manoel, 713
Funcionários
CEP 30140-100
Fone 31 3327-5771
contato@editoraletramento.com.br
www.editoraletramento.com.br
Sumário

Por uma ética da passividade 9

Introdução19

A Injúria do Cu 25
O Caso de Luis Aragonés 33
Extermínio Gay no Iraque 36
Os direitos civis e o cu: O caso da cadeia interesodomia tv 39

OS ANAIS DA HISTÓRIA. HISTÓRIA DOS ANAIS 43


De Tebas à Índia: esfinge e tantras 45
Gregos e romanos 49
Sodomia: dos judeus à inquisição 55

Cu, sexo e gênero: políticas anais. 65

Ativo, passivo, hetero, homo, versátil...  89

A conversão em bicha pelo cu. 89


Um experimento sociológico: A estatística do BEARWWW 97
Somos um Donut: topologia, corpo e analidade 101
Anus is an open scar: a performance de Warbear 103

Prazeres anais: fist, dildos, pênis, cárceres. 111


Genealogia do Dildo 114
Leathers, urso e masculinidade 119
De cárceres e cus 126
Psicanálise : o urso freud muda de ambiente. 135
O cu e a aids 145
Homofobia, o corpo da bicha e “seu” cu 145
Para uma prevenção no sentido anal 154
O caso de Esta cartilha vai de bunda 162
O fenômeno do bareback 166

Conclusão179

Epílogo183
Por Favor, Meu Amo 183

Bibliografia187
Dedicamos este livro à memória de Paco Vidarte
Por uma ética da passividade

A tradução e publicação do livro Pelo cu: políticas anais no


Brasil é, antes de mais nada, uma ação política. Em primeiro
lugar, coloca-se à disposição um livro vinculado ao que hoje
se acostumou denominar de estudos ou Teoria Queer, cujas
obras principais ainda carecem de traduções para a língua
portuguesa. Apesar disso, a produção brasileira de livros e ar-
tigos nos estudos queer é significativa e em franca ascensão.
Em segundo lugar, este livro faz uma crítica feroz – profun-
da e sem perder o humor – a um sistema heterocentrado le-
vando em conta a questão da passividade. O terceiro aspecto
consiste no momento desta tradução e publicação. O Brasil
é o país latino-americano que mais assassina pessoas LGBT,
em especial travestis. Além disso e também por isso, a política
brasileira parece, a cada momento, se esquecer das potencia-
lidades de Junho de 2013 e se apresenta com o pior da direita,
desde a pompa de uns pondés, aos ruídos de reinaldos azeve-

9 | Pelo CU
dos, a política do ódio dos bolsonaros, até as imposturas dos
olavos de carvalho.
Mas a escrita e tradução deste livro, que começa com um
insulto, o famoso “vai tomar no cu”, além de política, cola-
bora com uma significativa produção de conhecimento que
impacta e enfrenta determinados saberes e se filia a outros.
Por exemplo: o que esse insulto significa para quem tem o
ânus como um órgão sexual? Quem tem o poder de deter-
minar quais partes de nossos corpos devem ser considerados
como órgãos sexuais? O que pode sair de um cu além de ex-
crementos? Como é possível pensar a partir do cu ou pelo
cu? Perguntas como essas perpassam a leitura do livro e nos
levam para produção de uma ética da passividade. Para fazer
isso, o livro retira a analidade do campo privado e a coloca no
campo social e político e assim gera não somente uma analé-
tica, mas toda uma gama de possíveis políticas anais que são
extremamente necessárias. Se há tanto preconceito, se há um
dispositivo que decide sobre a vida e a morte de determina-
das pessoas, se há tanto pânico em relação a qualquer possi-
bilidade existencial que fuja do ideal estanque de uma femini-
lidade e de uma masculinidade de mármore, são necessárias
políticas anais que possam esquizofrenizar o que alguns têm
o orgulho de chamar de identidade. Esfarelar essa identidade,
seja apontando-a como sem nenhum fundamento biológico,
ou ainda, mostrando-a como uma ficção social, poderia nos
tornar menos segregativos, menos fincados a uma ilusão de
um essencialismo heterocentrado e suas identidades molares.
Pelo cu: políticas anais é o livro mais recente de Javier Sáez
com coautoria de Sejo Carrascosa. Sáez é tradutor de diver-

10 | Pelo CU
sos livros, autor de Teoria queer e psicanálise e um dos or-
ganizadores de Teoria queer: políticas lesbianas, bichas, trans,
mestiças. Já Carrascosa se identifica como um autodidata.
Em comum, ambos possuem uma longa amizade e trajetó-
ria do ativismo queer espanhol. É no trânsito dos saberes da
Sociologia, da Filosofia, da Teoria Queer e da Psicanálise que
surgem algumas indagações de uma ética da passividade, ou
ainda, como preferem os autores, uma analética.
Na busca de uma origem a respeito da temática da anali-
dade é sempre possível tentar buscar um ponto primário mais
distante. No nosso caso, talvez fosse possível encontrá-lo na
poesia, no romance, na pintura, de forma mais contemporânea
na fotografia ou ainda no cinema. Todavia, já nas primeiras pá-
ginas de Pelo cu localizamos uma aliança teórica vital, já que o
livro é dedicado a Paco Vidarte, autor da obra Ética bicha, um
belo e radical livro de filosofia e a grande influência dos au-
tores. Encontramo-nos, então, essencialmente, diante de uma
abordagem filosófica da analidade e se expormos algumas re-
ferências anteriores a obra de Sáez e Carrascosa não nos espan-
taremos com a valorização do ânus como objeto teórico e/ou
político. Iremos citar aqui apenas três dessas referências: a obra
de Deleuze-Guattari, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado.
A princípio o tema do cu pode parecer esdrúxulo e espan-
toso, pois poderíamos vê-lo sem nenhuma dignidade filosófi-
ca, já que se costuma ponderar filosoficamente de forma mais
contundente sobre a alma, sobre o etéreo, sobre o espírito1
etc., e deixa-se de lado toda a complexidade da corporeidade
1
Talvez por isso Deleuze e Guattari, de forma irônica e contra-intuitiva, escre-
vem que somente o espírito é capaz de cagar. Claro que os autores neste momen-
to fazem uma referência a sublimação da analidade, os prazeres anais deveriam

11 | Pelo CU
e seus elementos, do prazer com o corpo até a estranheza e
desconforto com ele. Além disso, em regra, quando pensa-
mos o corpo damos privilégio epistemológico para algumas
partes e não para outras, sempre um maior valor para a cabe-
ça e uma desvalorização do baixo-ventre. Dessa forma, com-
preendemos que há toda uma arquitetura política do corpo,
as partes dignas e as partes indignas, as partes desejáveis e as
indesejáveis. O que há de novo na obra de Javier Sáez e Sejo
Carrascosa é, exatamente, uma densa e importante produção
teórica tendo como temática exclusiva o ânus. Daí podemos
apontar a primeira referência filosófica, de Gilles Deleuze e
Félix Guattari, principalmente o primeiro tomo da sua obra
O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.
No livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há um co-
mentário que gera ecos importantes no tema da analidade e
que vai afetar uma gama de autores como, por exemplo, Guy
Hocquenghem e Paul B. Preciado. Trata-se aqui de afirmar
que o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do cam-
po social, foi o ânus. Essa afirmação aparece no terceiro capí-
tulo d’O anti-Édipo, intitulado “Selvagens, bárbaros, civiliza-
dos”2, parte da obra deleuzo-guattariana que faz uma conexão
com o saber antropológico e, também, produz uma crítica à
Antropologia. O contexto da citação é a argumentação de
que o problema do socius não é a troca – como proposto pela

ser sublimados em uma sociedade heterocentrada e, por isso, o espírito é anal, o


espírito é aquele que defeca.
2
A respeito de grande parte da antropologia deleuzo-guattariana ver, ademais,
LEOPOLDO, Rafael. Deleuze & Guattari: critica a psicanálise freudiana. Disser-
tação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universida-
de Federal de Juiz de Fora, 2015.

12 | Pelo CU
antropologia de Marcel Mauss –, mas marcar os corpos, co-
dificar os fluxos – como proposto pela filosofia de Friedrich
Nietzsche. Deleuze e Guattari trocam Mauss por Nietzsche, a
Antropologia pela Filosofia3 para afirmar que a máquina ter-
ritorial primitiva funciona por meio de codificação de fluxos
que investe nos órgãos e na marcação dos corpos.
Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como modelo para
a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a
ser colocado fora do campo social e, assim, tem-se um desin-
vestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas,
centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos
e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente,
mas desinvestido e privado. Muda-se do intensivo com seus
objetos parciais para o extensivo com a formação de um eu.
Sobre essa criação político-arquitetônica do corpo podemos
citar um agudo comentário de Paul B. Preciado: “foi neces-
sário fechar o ânus para sublimar o desejo pansexual trans-
formando-o em vínculo social, como foi necessário fechar as
terras comuns para assinalar a propriedade privada”4. Hoc-
quenghem, de outra forma, diz que

ao descobrir o trabalho como fundamento de valor, a economia


política burguesa o fecha imediatamente na forma de proprie-
dade privada dos meios de produção. Freud descobre a libido

3
Claro que Deleuze e Guattari também fazem alianças com a Antropologia, mas
chamam para o seu ambiente teórico o mais filosófico dos antropólogos: Pierre
Clastres.
4
Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ri-
beiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 136.

13 | Pelo CU
como fundamento da vida efetiva, e o fecha imediatamente na
forma de privatização edipiana familiar5.

Guy Hocquenghem lê O anti-Édipo e, por meio dessa lei-


tura, produz a sua obra O desejo homossexual, escrito nos anos
70 e no seio da Frente Homossexual de Ação Revolucionária
(FHAR), um espaço que se distanciava do discurso ameno
dos gays de uma classe média branca e das feministas liberais.
Juntamente com o FHAR estão as bichas, as travestis e uma
gama de outros que não se identificavam com o bom femi-
nismo da época. É necessário lembrar que essas fissuras nos
movimentos é que vai gerar, nos anos 80/90, a Teoria queer.
Hocquenghem, n’O desejo homossexual, está em diálogo
com a efervescência política da época, com a psicanálise freu-
diana e lacaniana, mas, também, como já salientado, recebe
uma forte influência deleuzo-guattariana. Hocquenghem faz
uma análise acurada da homossexualidade e de como ela foi
relacionada a categorias religiosas – crime contra natura –,
categorias jurídicas – relação da criminalidade e da homosse-
xualidade –, categorias médicas – a homossexualidade como
enfermidade, perversão etc. Mas, além disso, como ela está
conexa com o capitalismo e o surgimento da família burguesa.
N’O anti-Édipo já havia toda uma crítica ao familismo. Não
obstante, o que nos parece interessante em Hocquenghem é
que o desejo homossexual (não necessariamente o desejo do
homossexual) poderia desestruturar uma sociedade falocra-
ta. E esse é um dos motivos da paranoia anti-homossexual,

5
Hocquenghem, Guy. El deseo homossexual. Tradução de Geoffroy Huard de la
Marre. Espanha: Melusina, 2000. p. 50

14 | Pelo CU
do pânico anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se
em agressão, em terrorismo machista – a atmosfera sombria
do medo – e, de forma mais obscena, no assassinato, na eli-
minação física do outro. Na obra Pelo cu são apresentados
exemplos dramáticos desse terror anal e os autores colocam
o ânus, ademais, como um dispositivo que decide sobre a hu-
manidade das pessoas.
Para Paul B. Preciado, o dildo, as práticas S/M e a erotização
do ânus são capazes de produzir uma reapropriação de deter-
minadas tecnologias de repressão que são reelaboradas de uma
forma não heteronormativa. Na filosofia de Preciado, o ânus
tem um lugar especial e à maneira militante – e produtora de
utopias – de um manifesto encontramos a seguinte afirmação:
“os trabalhadores do ânus são os novos proletários de uma pos-
sível revolução contrassexual”6. Para Preciado, o ânus teria três
características que o empodera contrassexualmente:

Um: o ânus é o centro erógeno universal situado além dos limi-


tes anatômicos impostos pela diferença sexual, onde os papéis e
os registros aparecem como universalmente reversíveis (quem
não tem um ânus?). Dois: o ânus é uma zona primordial de pas-
sividade, um centro produtor de excitação e de prazer que não
figura na lista de pontos prescritos como orgásticos. Três: o ânus
constitui um espaço de trabalho tecnológico; é uma fábrica de
reelaboração do corpo contrassexual pós-humano. O trabalho
do ânus não é destinado à reprodução nem está baseado numa
relação romântica. Ele gera benefícios que não podem ser me-

6
Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ri-
beiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 32.

15 | Pelo CU
didos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o
sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda.7

Esses três elementos podem ser questionados e o são por


Javier Sáez e Sejo Carrascosa. No entanto, a potencialidade
da analidade foi apontada de forma incisiva para gerar uma
compreensão da necessidade de uma epistemologia que per-
passe a superfície da pele mas, também, por toda as entranhas
e que tenha como mote o final do reto, pois é desse lugar ain-
da obscuro que surgem as políticas anais e, para os autores de
Pelo cu uma analética.
Uma ética anal ou uma ética da passividade consiste na
própria valorização da posição passiva. E ao lermos Pelo cu
sabemos que isso não é pouco. A temática central do livro
de Sáez e Carrascosa parece ser o ânus, mas talvez seja a pas-
sividade e o ânus se configure apenas como uma forma de
passividade, mesmo que ele possa ser, às vezes, muito ativo.
Os autores afirmam que em mais de oito países do mundo
o sexo anal pode acarretar a morte e em mais de oitenta a
prisão perpetua. Ou seja, estamos diante de um dispositivo
que decide sobre a vida e a morte das pessoas, diante de um
pânico à passividade e a tudo que ela foi vinculada histori-
camente. Daí que é necessário o orgulho passivo de que nos
falam Sáez e Carrascosa, essa analética já apontada por Paco
Vidarte em sua Ética bicha, uma ética não mais cerebral (sa-
bemos as mazelas da razão), mas uma ética anal que vai negar
o poder, uma política do buraco que cansou da troca desigual
dos discursos marcados.

7
Idem, ibidem.

16 | Pelo CU
Agora trata-se de absorver tudo, apoderar-se de tudo,
chupar tudo e não dar nada em troca. A passividade é acom-
panhada de uma grande recusa a determinadas negociações.
Daí o giro histórico da analidade passiva para a analidade ati-
va e esse, quem sabe, seja o terreno em que se produza uma
real valorização da passividade; um orgulho passivo surgido
desse lugar inesperado que agora está novamente no campo
social e político.

Rafael Leopoldo8
Leandro Colling9

8
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pós-
-graduado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG). É autor do livro Temporadas de abandono e Introdução ao O an-
ti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (no prelo). Contribuiu para a coletânea
de textos sobre cinema brasileiro no livro Directory of World Cinema: Brazil.
Correio eletrônico: ralasfer@gmail.com.
9
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Fede-
ral da Bahia. Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC),
Milton Santos, e professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-
-graduação em Cultura e Sociedade, ambos da Universidade Federal da Bahia.
Criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e um
dos criadores e editores da revista acadêmica Periódicus, primeira e única in-
teiramente dedicada aos estudos queer no Brasil. É autor do livro Que os outros
sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador
dos livros Stonewall 40 + o que no Brasil? e Estudos e políticas do CUS, todos
publicados pela Editora da Universidade Federal da Bahia. Correio eletrônico:
leandro.colling@gmail.com

17 | Pelo CU
Introdução

Esfíncter

Eu acho que se meu bom e velho cu durar ainda uns


60 anos já está bom
Embora numa operação de fissura na Bolívia
tenha sobrevivido ao hospital altiplano –
algum sangue, nenhum pólipo, uma
hemorroidazinha às vezes
ativo, ávido, receptivo a falos, garrafa de coca,
vela, cenoura, banana e dedos –
Hoje em dia a AIDS o deixa um pouco tímido,
mas continua ávido para servir –
afora com a merda, dentro o orgásmico
amigo encapado –
ainda com a musculatura elástica largo e aberto
ao gozo sem a menor vergonha
Pelo menos mais uns 20 anos quem sabe,
gente velha tem problemas em toda parte –
pescoços, próstata, estômagos, juntas –
espero que o velho buraco continue jovem
até morrer, relaxado

15 de março de 1986, 01h00min pm


Allen Ginsberg1

1
O poema em português foi traduzido por Leo Gonçalves e publicado original-
mente na Revista de Autofagia, número 3 – março – 2009.

19 | Pelo CU
Este é um livro sobre o cu, um livro ao redor do cu, um
livro escrito de dentro do cu. Mas não é um livro que procu-
ra nenhuma verdade sobre o prazer anal, nem é um manual
de autoajuda anal, nem uma aproximação antropológica ou
científica sobre sexo anal que ofereça um saber para o consu-
mo de olhares curiosos sobre o “outro”. Não vamos descobrir
uma nova tribo para os antropólogos de hoje em dia, nem
vamos criar novas taxonomias a serviço de uma sexologia
moderna, progressista e até queer. Não é um livro que tem
esperança em uma suposta “liberação” sexual pelo cu, ou que
exalte o sexo anal como o natural ou o sadio, ou como a pana-
ceia de prazer e da felicidade entre os seres. Não vamos pedir
a ninguém que comprometa conosco votos de amor em uma
espécie de chakra Muladhara anal que nos levará à ilumina-
ção e à paz. Tampouco é um livro de confissões ou narrativas
pessoais sobre os nossos cus ou sobre quem esteve ou desejou
estar lá.

21 | Pelo CU
Pelo contrário, trata-se de ver o que o cu coloca em jogo.
Ver por que o sexo anal provoca tanto desprezo, tanto medo,
tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto ódio. E
especialmente revelar que esta vigilância de nossos traseiros
não é uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou ne-
gro, se é o de uma mulher ou de um homem ou é um/uma
trans; se neste ato se é ativo ou passivo; se é um cu penetrado
por um dildo, um pênis ou um punho; se o sujeito penetra-
do se sente orgulhoso ou envergonhado; se é penetrado com
uma camisinha ou sem ela; se é um cu rico ou pobre; católico
ou mulçumano. São nestas variáveis que vamos ver desdobrar
a polícia do cu; é nessa rede onde o poder se exerce, e onde se
constrói o ódio, o machismo, a homofobia e o racismo.
O cu parece muito democrático, todo o mundo tem um.
Mas veremos que nem todo mundo pode fazer o que quer
com o seu cu.
Queremos explorar um órgão ou um lugar que desafia a
definição atual do que é o sexo e o genital. Não partimos de
uma hipótese repressiva. Seguindo a análise de Foucault na
História da Sexualidade, não acreditamos que exista um po-
der que reprima o prazer ou o sexo, nem sequer, neste caso,
no prazer do sexo anal. A penetração anal faz parte do dispo-
sitivo da sexualidade há muito tempo; hoje em dia se mostra
frequentemente o sexo anal, está em quase todos os filmes
pornôs (hetero e gays), nos romances eróticos, nas lojas de
jogos sexuais, no pós-pornô, nas consultas sexológicas da te-
levisão e na imprensa; está na arte, na fotografia, na pintu-
ra... existem numerosos guias didáticos e vídeos sobre o sexo
anal2.

2
Para consultar diversos guias e manuais sobre o sexo anal, ver bibliografia.

22 | Pelo CU
Não, o sexo não se reprime ou ao menos não de maneira
uniforme. Não existe unidade no dispositivo repressivo. Pre-
cisamente, o que veremos aqui são as incoerências que exis-
tem em torno do cu, em que medida essas contradições ques-
tionam o regime heterocentrado e machista em que vivemos,
e até que ponto subverte o dispositivo atual da sexualidade.
Para começar, colocamos um simples exercício a quem lê
este livro: abra o seu cu e abrirá sua mente.

23 | Pelo CU
A Injúria do Cu

“Vão me dar um buquê de flores, mas no meu cu não passa nem um bigode
de camarão”.

(Frase pronunciada pelo ex-técnico de futebol Luis Aragonés, dia 8 de


junho de 2006, enquanto rechaçava umas flores que lhe ofereciam na
Alemanha, para deixar claro que ele não era bicha).

Que te den por el culo. Tomar por detrás. Apretar las cacas.
Meterle los pelos del culo para dentro. A tomar pol culo. Le han
dao por detrás. Que te follen. Vete a tomar por el culo. Le han
dao por el culo. Cagar para adentro. Que te den por el saco.
Vete a tomar viento. Cinco, por el culo te la hinco. Se la han me-
tido doblada. Me han jodido. Mírale el jodíopolculo. Le pusie-
ron mirando a la Meca. Que te den por el orto. Que te den por
ahí. Que te den. Le pusieron a cuatro patas y le dejaron el sieso
como un bebedero de patos. Se lo han follado. Le pusieron el
culo en pompa. Pega el culo contra la pared que ese es maricón.
Ojete (no México, uma má pessoa). Pinche culero. Pinche ojete.
Lameculos. Esto me da por el culo. Cuidado con tu culo en las
duchas, no te agaches por el jabón (estereótipo nas prisões). Le
rompieron el culo. Sodomita. Bujarrón. Pecado nefando. Acto
contra natura. Bujarra. Bufarrón. Lameculos. Bésame el culo.
Daopolculo. Enculado. Le hice un calvo. Ese pierde aceite por el
culo. Eso te lo puedes meter por el culo. Quebrar el culo. Que te
den por el serete. Eres un sieso. Ya estás otra vez dando pol culo.
Eso está a tomar pol culo.

25 | Pelo CU
Vés a prendre pel cul. Que et donguin pel cul. Fota-t’ho al
cul. Enculat.

Kiss my ass. Asshole. Arsehole. Bugger. Buggery. Fuck you.


Fuck your ass. Take it in the ass. Fucking asshole. Butthole.
Take it up the ass. Go shove up it your ass. Pog mo thoin.

Enculé. Va te faire enculer. Enculé de merde. Sale enculé.


Enculé de ta mère. Enculé de ta race. Bougre. Va te faire foutre.
Sodomiser. Anglaiser. Avoir une histoire de cul. Un film de cul.
Faux cul. Avoir le feu au cul. J’ai le cigare au bout des lèvres.
Trou du cul. Trou d’uc. Va te faire enculer chez les grecs. Espèce
d’enculé. Trou à bites. Vide couilles. Va te faire ramoner la boite
à merde. C’est pas un cul que t’as, c’est une pompe à foutre.

Atzelaria. Popatik hartzera. Atzetik eman. Ipurditik hartu.

Va fan culo. Busone. Faccia da culo. Bel culo. Andate a fare


in culo da un’altra parte. Ricchione. Recchione. Bucaiolo. Fare
il culo a qualcuno. Rompere il culo. Rotto nel culo / rottinculo.
Vai a dar via il culo. Ma va’ a vendere il culo. Ma fatti dare
nel culo. Vattelo a pigliare nel culo. Che ti possano inculare.
Inculato.

Røvhul, røvkedeligt, røvsygt, røvpule, røvpuller, røvpullet,


være på røven, rend mig i røven.

Diatithemenos. Impudicus. Abi pedicatu!

26 | Pelo CU
O cu é o grande lugar da injúria, do insulto. Como ve-
mos em todas essas expressões cotidianas, a penetração anal
como sujeito passivo está no centro da linguagem, do discur-
so social, como o abjeto, o horrível, o mal, o pior. Todas essas
expressões traduzem um valor primordial, unânime, gene-
ralizador: ser penetrado é algo indesejável, um castigo, uma
tortura, um ato odioso, uma humilhação, algo doloroso; é a
perda da honra, algo onde jamais se poderia encontrar pra-
zer. É algo que transforma sua identidade, que te transforma
de maneira essencial. A partir desse ato, você “é” um fodido
pelo cu, um enrabado, uma bicha.
Uma das primeiras coisas que aprende um menino ou
uma menina3 é que “tomar no cu” é algo terrível. Ainda que o
pequeno sujeito não saiba o que é exatamente esse “tomar”, o
tom insultante cria uma aprendizagem, uma prevenção. O in-
teressante do insulto é que cria uma realidade sem referência,
somente um valor flutuante, sem conteúdo. Bicha! Sapatão!
Vai tomar no cu! Quando um menino ou uma menina escuta
isso, nas primeiras vezes não significa nada de concreto – é o
valor do negativo que se transmite e percebe-se, não um saber
sobre o que é ser gay, lésbica, ou o que é, concretamente, a
penetração anal. Não se trata de um doutrinamento preciso e
deliberado contra os/as menores.
3
Neste livro, frequentemente usamos expressões como homem e mulher ou ambos
os sexos, ou o sexo oposto, o que pode parecer que se assume a crença social de
que só há dois sexos e de que, além disso, são “opostos”. Na realidade, não com-
partilhamos dessa crença no binarismo sexual. Para mais informações sobre as
pessoas trans e intersexuadas, a diversidade dos sexos, um questionamento da
existência de somente dois sexos e as implicações sociais e políticas da noção
de “sexo”, ver o rigoroso e fascinante livro de Anne Fausto-Sterling Cuerpos Se-
xuados, e os trabalhos pioneiros de Donna Haraway Ciencia, cyborgs y mujeres:
la reinvención de la naturaleza, Suzanne Kessler Lessons from the intersexed e
Leslei Feinberg Transgender warriors, Trans liberation: beyong pink or blue. Ver
Bibliografia.

27 | Pelo CU
Quando falamos de um regime de poder ou de um regime
cultural heterocentrado (por exemplo, o machismo), não se
trata de um poder vertical e hierárquico que planeja o ódio às
mulheres, ou o ódio aos gays, ou o ódio ao fato de ser penetrado.
É um regime de discurso e práticas que simplesmente funciona,
exerce-se, repete-se continuamente em expressões cotidianas de
múltiplos lugares e momentos, criando realidade (e ferindo) a
partir dessa mera repetição. Aprende-se esse valor negativo
que cria o objeto – e não o contrário.
O sexo anal aparece inicialmente no imaginário coletivo
como o pior, o abjeto, o que não deve passar. Esse é o seu sig-
nificado original, seu sentido. Nesse estado inicial de enun-
ciação, não aparece o ato de penetração, não existe o cu nem o
pênis, nem o ânus, nem o dildo; o que se produz aqui é a proi-
bição, a ameaça, a negatividade, uma advertência fantasmal,
perigosa, sem referente. Como diria Judith Butler, quando
fala do insulto homofóbico (Bicha! Sapatão!), esse enunciado,
essa frase, “vai dar o cu”, cria realidade, produz realidade4.
Quando dizemos habitualmente essas expressões (que se
foda, vai dar o cu, fodido...), não temos consciência da reali-
dade que estamos criando ou dos valores que estamos trans-
mitindo. Mas estão aqui e, para quem o recebe, o insulto é o
medo de ganhar uma marca, uma marca que cria uma iden-
tidade: ser assinalado como “o que faz isso” – agrada-te que
te metam, o foderam – e seu corolário habitual: é uma bicha.
Vamos ver mais à frente essa cadeia imaginária que leva a
identificar a penetração anal com a homossexualidade, um
gesto que, de passagem, faz desaparecer a penetração anal do
mundo da heterossexualidade, limpa o espaço hetero dessa
enfermidade. Mas toda limpeza deixa sempre espaços sujos; é

4
Butler, J., Lenguaje, Poder e Identidad.

28 | Pelo CU
impossível apagar por completo o que fazem os hetero com o
anal; ficam restos dessas práticas, ainda que incessantemente
queiram apagá-las. É como o cu: você limpa-o, mas, sempre
volta a se sujar.
Veremos mais adiante que o ato do sexo anal é desigual;
valora-se de forma completamente diferente quem adota o
papel ativo (a pessoa que penetra) e quem assume o papel
do chamado passivo (a pessoa penetrada). Todas essas ex-
pressões que citamos insultam a pessoa que recebe a pene-
tração: trata-se de um ódio ao lugar passivo e, sobretudo ao
homem penetrado. Não se insultam dizendo vai meter num
cu, meteu pelo cu, fodedor de cu, vai meter num cu, enrabador,
metedor de cu. A masculinidade dos homens se constrói de
uma forma estranha: por um lado, evitando a todo custo a
penetração, mas, por outro lado, com uma curiosa permissão
para penetrar o que quer que seja, incluindo o cu de outros
homens. Com uma dupla moral bem chamativa, esse “ato
tão asqueroso que fazem as bichas” (dar pelo cu), em muitas
culturas, não ameaça a masculinidade; ao contrário, é per-
mitido – desde que feito com o papel ativo. Muitos homens
hetero penetram analmente suas mulheres (de repente este
ato já não é tão asqueroso, mas preferem não falar dele); mui-
tas mulheres penetram em seus maridos (disso se fala ainda
menos); muitos homens penetram outros homens em praias,
parques, banheiros, saunas, e pelo fato de serem ativos, não se
consideram gays, nem bichas, nem sodomitas, nem homos-
sexuais: bichas são os penetrados. Muitas mulheres penetram
em outras mulheres analmente, mas isso não existe para o
imaginário machista e lesbofóbico, seu curto repertório bis-
sexual não dá para conceber isso. Muitas mulheres trans com
pênis penetram analmente em homens, mulheres e outras

29 | Pelo CU
trans, mas isso é castigado pelo regime médico que vigia as
pessoas trans, isso não é ser “uma mulher de verdade” (“tome
hormônios, deixe-se penetrar, ou melhor, opere-se”).
Nessas expressões vemos o enorme desequilíbrio que exis-
te na percepção da sexualidade anal: dar e tomar (no cu). Ser
ativo ou passivo se associa historicamente a uma relação de
poder binário: dominador-dominado, amo-escravo, ganha-
dor-perdedor, forte-fraco, poderoso-submisso, proprietá-
rio-propriedade, sujeito-objeto, penetrador-penetrado, isso
tudo dentro de outro esquema subjacente de gênero: mas-
culino-feminino, homem-mulher. O macho se constrói as-
sumindo esses valores, o primeiro termo do par. “A mulher”
no sentido de Wittig, de uma categoria criada pelo regime
heterossexual, constrói-se associada ao segundo termo deste
par binário5.
Esse modelo explica muito bem por que se percebe tam-
bém de forma diferente que um homem seja penetrado anal-
mente e que uma mulher seja penetrada. Por essa leitura do
regime heterocentrado, a “mulher” é construída socialmente
como um ser penetrável: deve procriar, satisfazer o homem,
ser passiva, humilde, dócil, boa mãe, reduzir a sexualidade
à sua vagina. A vagina, nesse regime, supõe-se que é um lu-
gar que espera ser penetrado. O macho “a possui”. Existe um
passo muito pequeno dessa possessão corporal/sexual à pos-
sessão total da mulher que aparece no discurso do machista
assassino: “matei-a porque era minha”. A associação dos valo-
res referentes ao amor e às relações sexuais (por meio da edu-
cação, da cultura, do cinema, da imprensa, da religião, dos
jogos, da família, do matrimônio, do amor, da literatura, etc.)
promove essa visão possuidor-possuído a respeito das mu-

5
Wittig, M., El pensamiento heterosexual.

30 | Pelo CU
lheres. Amar é possuir sexualmente (penetrando) e possuir
como um objeto através da vida como casal. Quando se anali-
sa a violência machista, que assassina mais de 80 mulheres na
Espanha a cada ano, nunca se coloca em vista esse conjunto
de valores prévios que conforma o que é ser um homem. En-
tão, o regime machista olha para o outro lado ou, o que é pior,
olha para as mulheres: é que se libertaram, é que essa ideolo-
gia doentia do feminismo mudou as coisas, é que as mulheres
não se comportam como antes. A vítima novamente como
responsável em vez do carrasco.
Dentro dessa mesma lógica, o homem penetrado é equi-
parado a esse estatuto inferior “de mulher”. Como o único
corpo penetrável nesse imaginário coletivo é o da mulher,
um homem ser penetrado é a maior agressão possível à sua
virilidade, ficando rebaixado ao feminino, perdendo sua
honra, seu status superior. O passo seguinte do desprezo tem
relação com o prazer: se o homem penetrado não desfruta
dele (foi violado, por exemplo), o desprezo e o escárnio social
são menores, mas, ainda assim terá entrado no território da
vergonha irreversível, será sempre algo traumático e terrível.
Porém, se o homem penetrado desfruta com isso, é alguém
que o busca, deseja, valoriza... então o castigo e a desonra so-
cial são totais. Da Grécia clássica à atualidade, em numerosas
culturas e épocas, o diatihemenos, o homem que desfruta em
uma posição passiva (já veremos o discutível dessa palavra,
passivo) foi desprezado e castigado. Para todas essas culturas
é incompreensível esse desafio ao que se supõe que deve ser
um homem. Ser um homem é ser impenetrável.
Esta impenetrabilidade pode conduzir à própria morte. A
prevenção de câncer de próstata, ou seu diagnóstico precoce,
em homens de mais de 45 anos, é fácil de realizar mediante um

31 | Pelo CU
sensível toque retal que indica o tamanho da glândula prostáti-
ca. Um diagnóstico precoce pode servir para evitar o desenvol-
vimento cancerígeno desta glândula que pode chegar a afetar
10, 15% da população masculina. Mas, a negação de se subme-
ter a esse exame leva muitos homens a serem diagnosticados
quando a cirurgia ou a morte já são irreversíveis. Mais uma vez
o cu é o escudo supremo da masculinidade, masculinidade que
há de levar íntegra até a tumba.
Muitos testes médicos podem ser desagradáveis, descon-
fortáveis e inclusive dolorosos, mas não cremos que a sensa-
ção de um dedo indicador no reto massageando a glândula
prostática (uma sensação prazerosa altamente recomendável)
se encontre entre essas sensações. Devemos situar essa nega-
ção em outra ordem: a ordem patriarcal, que constrói a viri-
lidade e a impenetrabilidade do corpo, e está mais próxima
de conceitos como a honra – em cujo nome se tem cometido
e se cometem os crimes mais injustos e selvagens que conhe-
cemos. E é nesse paralelismo virilidade = impenetrabilidade
= honra que essa ordem se sustenta na violência, na morte,
ainda que seja a própria6.
Pouco parece servir as advertências que a saúde pública
faz para que esse teste se generalize entre a população de risco
(homens de mais de 45 anos); até mesmo se realizam estudos
que indicam o grande rechaço que existe diante desse diag-
nóstico.
Frente à resistência de uma parte da população a esse tipo
de análise, certo setor da ciência médica se dedica à investiga-

6
Carmen A. Peña Melo, Evelyn P. Ulloa O., Grisel García Felipe, Yudania Vásquez,
Luis Quezada (Urólogo), Actitudes respecto al tacto rectal en pacientes masculi-
nos que acuden a la consulta externa del Hospital Juan Pablo Pina, en el período
Abril-Junio 200. Revista Dominicana, Vol. 64 (3) e Vol.65 (1), setembro/dezem-
bro 2003, janeiro/abril 2004.

32 | Pelo CU
ção de outro tipo de testes diagnósticos7 que não “humilhem”
a virilidade impenetrável dos seus pacientes. Novamente a
ciência se alia à ideologia para salvaguardar o sagrado status
do homem-cu-fechado: antes morto do que penetrado!8

O Caso de Luis Aragonés

Luis Aragonés ficou famoso a nível mundial em outubro


de 2004, quando foi gravado indiscretamente em um treina-
mento propondo que – como astuta e sutil tática de jogo –
o jogador José Antônio Reyes, durante a partida, chamasse
de negro de merda o jogador de raça negra Thierry Henry.
Apesar do escândalo que essas declarações produziram em
diversos países, o senhor Aragonés manteve seu posto como
técnico e hoje em dia continua desfrutando do respeito so-
cial. Assim é nossa Espanha e olé. Mas é menos conhecido
seu comentário na Alemanha em 2006, quando o comitê de
boas-vindas ficou de quatro ao oferecer-lhe algumas flores e
ver que seu convidado as recusava declarando que “vão me
dar um buquê de flores, mas no meu cu não passa nem um
bigode de camarão”. Esta frase condensa toda a ideologia que
subjaz o desprezo ao sexo anal e seus mitos: Aragonés passa
de um inocente buquê de flores a uma estranha declaração
pública de impenetrabilidade e camarões, por meio de uma
enorme elipse que temos que desentranhar.
Os pobres alemães pensaram que se tratava de algum
problema estomacal ou alimentício de Aragonés: “Que dis-
7
http://www.compumedicina.com/cirugia/cir_010405_htm
8
No primeiro episódio da quinta temporada de Family Guy, Stewie loves Lois, o
Dr. Hartman realiza em Peter um toque retal para examinar sua próstata. Trau-
matizado por esse exame, Peter o processa por estupro e o médico é condenado.

33 | Pelo CU
se? Que é vegetariano? Que pensava em consumir as flores
e logo não poderia defecá-las? Que falou de uns camarões
com bigodes? Que gostaria de enfiar as flores no cu, mas que
não pode porque o dele é muito fechado e não cabem nem as
coisas mais finas? Que tem alergia a flores e lhe dão sapinhos
no traseiro? O que ele falou da flora intestinal”? Somente com
uma bagagem cultural homofóbica como a da Espanha é que
podemos chegar a interpretar corretamente a cadeia de asso-
ciações que passaram pela mente do nosso ex-técnico:

Neurônio 1: olha, que bonito, me presentearam com flores!;


Neurônio 2: Alarme, alarme, as flores são para as mulheres
ou para as bichinhas.
Neurônio 3: As bichas dão a bunda.
Neurônio 4: Os homens de verdade não dão a bunda.
Neurônio 5: Eu sou muito homem, eu não sou uma bicha,
que pensaram esses alemães?
Neurônio 6: Se sou um homem, então meu cu é impenetrá-
vel (Ou é ao contrário, como era isso?).
Neurônio 7: Não posso aceitar flores, não, não, minha bun-
da, são bichas, vão me foder, serei uma mulherzinha... tenho
que explicar isso!
Neurônio 8: Preciso explicar que meu cu é impenetrável, ah,
já sei, lhes direi que não cabe nada em absoluto, nem algo tão
fino como o bigode de um camarão.
Neurônio 9: ufa, que alívio, já deixei claro para eles por que
não posso aceitar as flores e que não sou bicha.
A aventura floral-anal de Aragonés é um exemplo muito ilus-
trativo dos pressupostos que subjazem a prática do sexo anal:

34 | Pelo CU
1. É algo próprio dos homossexuais masculinos e exclusi-
vo deles (contradição: “bom, eu sou um homem hetero
e comi cus de outros homens, mas sou ativo, isso não
faz de mim uma bicha”).
2. É algo antinatural, repugnante, o ânus não se usa para
isso, somente para cagar (contradição: esses machos ra-
pidamente esquecem de que penetram as suas mulhe-
res, ou outros homens, se disponíveis).
3. Ser penetrado te assimila a uma mulher, te faz inferior,
você perde sua hombridade, é um vexame, uma deson-
ra (contradição: se eu penetro a minha mulher sempre
que posso, por que ela não poderia penetrar-me? Ou,
por que lhe peço para que me penetre?).
4. O cu de um homem deve ser impenetrável salvo em
situações extremas de ausência de mulheres: prisões,
barcos, seminários de cura, naufrágio de homens em
uma ilha deserta... (contradição: mas não era asqueroso
e doloroso e o pior? Se todos são ativos nestas situações
onde somente existem homens hetero... em quem pe-
netram?).
5. O cu de uma mulher é penetrável, as mulheres são pe-
netráveis por natureza; e mais, os homens hetero ado-
ram penetrar analmente as suas mulheres (contradição:
mas não havíamos dito que o ânus era somente para
cagar e que o sexo anal era uma porcaria?).
6. Não é aceitável que um homem hetero goste de ser pe-
netrado ou de entrar com objetos no seu cu, ou que
peça a sua mulher que lhe dê prazer pelo ânus (contra-
dição: então, por que eu, um homem casado e hetero,
contrato mulheres transexuais com um grande pinto
para que me comam?).

35 | Pelo CU
7. O teste definitivo da virilidade, o masculino e o hete-
rossexual, é que seu cu não seja penetrado jamais; o
contrário supõe um deslizamento de gênero (homem
para mulher) e de identidade em sua orientação sexual
(hetero para homo) (contradição: mas se o ânus não
tem gênero nem um dildo tampouco, por que está todo
este assunto tão carregado de sexo e gênero?).

Extermínio Gay no Iraque

Mas há quem tenha levado ainda mais longe a fantasia


hermética de nosso ex-técnico. Em agosto de 2009, a asso-
ciação Humans Right Watch publicou um assustador informe
sobre o brutal extermínio de gays que está acontecendo no
Iraque desde 2009. O informe se intitula: “Querem nos exter-
minar: morte, tortura, orientação sexual e gênero no Iraque”9.
Segundo esse informe, diante da passividade das autoridades
iraquianas que não fazem nada para deter a matança, milí-
cias iraquianas estão levando a cabo uma ampla campanha
de tortura e assassinato contra homens suspeitos de condu-
ta homossexual, ou de não serem suficientemente “homens”.
Humans Right Watch documenta uma campanha de grande
alcance de execuções extrajudiciais, sequestros e torturas de
homens gays, que começou no início de 2009. Os assassinatos
começaram no grande bairro de Bagdadí da cidade de Sadr,
um baluarte do exército de Moqtada al-Sadr Mahdi, e logo
se estenderam a muitas cidades de todo o Iraque. Os porta-
-vozes do exército Mahdian promoveram temores acerca do

9
http://www.hrw.org/en/reports/2009/08/17/they-want-us-exterminated-0

36 | Pelo CU
“terceiro sexo” e da “feminilização” dos homens iraquianos e
sugeriram que a ação da milícia é o remédio. Algumas pes-
soas disseram à Human Right Watch que as forças de seguran-
ça iraquianas se uniram aos assassinos:

Parece que essa limpeza sexual (ao menos 500 gays foram
assassinados em 2009, em uma das maiores e mais recentes
campanhas de extermínio gay) não alarmou especialmente o
governo dos Estados Unidos, nem os governantes ocidentais.
A guerra preventiva contra a homofobia não está na agenda
do Ocidente.

O periódico EL MUNDO (18 de agosto de 2009) publicava


esta notícia com o título especialmente chamativo: “Cola con-
tra o ânus dos homossexuais no Iraque”.

Um proeminente ativista iraquiano dos direitos humanos disse


que a milícia iraquiana utilizou uma forma de tortura contra
homossexuais selando seu ânus, pregando-o com “cola irania-
na”... Yani Mohammad, ativista dos direitos humanos, contou
a Alarabiya.net que as “milícias iraquianas empregaram um
modelo de tortura sem precedentes contra os homossexuais,
usando uma cola muito forte para fechar seu ânus”. De acordo
com suas declarações, a nova substância, fabricada no Iran, é
uma cola que, se aplicada na pele, gruda-a e somente pode ser
descolada com cirurgia. Depois de prender o ânus dos homos-
sexuais, lhes dão uma bebida que produz diarreia. Posto que o
ânus está selado, a diarreia lhes causa a morte. Distribuem-se
vídeos dessa forma de tortura por alguns celulares iraquianos”.

O mais chamativo dessa notícia é que a tortura se cen-


traliza especificamente no ânus, na necessidade de fechar o

37 | Pelo CU
ânus dos homossexuais, como se com esta clausura corporal
se acabasse com o desejo homossexual. Aqui a identificação
entre “gay” e “sexo anal” é completa, mas, também, a tortura
centra-se exclusivamente sobre o gay passivo (não ocorreu à
milícia iraquiana castrar os gays ativos), ou simplesmente se
identifica a todos os gays com o papel passivo na penetração.
Deixando de lado o curioso detalhe de que a cola venha
do Irã (inimigo histórico do Iraque – a substância que entra
em contato com o ânus gay vem também do “outro”, o ira-
niano), nesta forma de tortura se leva às vias de fato a fan-
tasia de Luis Aragonés e de tantos machinhos homofóbicos:
que não passe nem o bigode de um camarão. No caso brutal
do Iraque, o que era uma mera expressão se materializou no
corpo real, em centenas de ânus selados realmente com cola,
no assassinato de centenas de gays pela clausura definitiva de
seus corpos, convertidos em impenetráveis por essa ideologia
homofóbica que delira com o gozo anal que tem que reprimir
a todo o custo.
Só existe uma expressão pejorativa onde aparece o papel
ativo: já está outra vez enfiando no cu, estão sempre enfiando
no cu. Aqui o que está “enfiando”, o ativo, é alguém que inco-
moda, que está causando problema, fazendo mal, irritando (o
outro, que é penetrado por ele e que por isso supostamente
sofre). Mas não é uma expressão muito insultante, o ato de
estar enfiando no cu não te transforma em outra pessoa, em
uma entidade, em uma essência ou uma identidade; é um ato
passageiro (só pode ser usada no gerúndio, estar enfiando),
algo que você faz aos demais pontualmente10.
10
Outras expressões negativas, mas não com um conteúdo sexual ou de penetração
são: Piensas con el culo. Tontolculo. Vamos de culo. Salva tu culo. Estoy hasta el culo.

38 | Pelo CU
Os direitos civis e o cu:
O caso da cadeia interesodomia tv

Nos meses de maio e junho de 2010, um grande escândalo


social surgiu por causa dos insultos machistas que o senhor
Eduardo García Serrano (colaborador da emissora de ultradi-
reita Intereconomía TV) dirigiu à conselheira de saúde catalã
Mariana Geli por ter promovido junto ao seu departamento
a campanha “Sexe Joves”, uma campanha de educação afeti-
vo-sexual. O senhor García Serrano disse dela: “é uma porca,
uma suja e uma puta repugnante”.
Em outros comentários posteriores nessa mesma emisso-
ra, García Serrano acrescentou ao seu histórico de injúrias
de ódio, comentários homofóbicos contra o escritor Antônio
Gala e o ativista LGTB e conselheiro da prefeitura de Madri
Pedro Zerolo. Sua orgia de declarações homofóbicas termina-
va com uma interessante reflexão:

Eu sempre me perguntei.... Não sei por que é que por alguém gos-
tar de sodomizar ou de ser sodomizado, isso tem que gerar direitos
civis, não entendo o porquê.

A pergunta feita por García Serrano abre um interessante


debate sobre a origem dos direitos civis. Desde a Fundamen-

Culo de mal asiento. Ser un culo inquieto. Caraculo. Culo veo culo quiero. Perder el
culo por algo/alguien. Quedar como el culo. Ir con el culo a rastras. Mover el culo.
Dejarse el culo. Los has hecho como el culo. Quedarse con el culo al aire. Expressões
positivas: me viene como polla al culo; me parto el culo de risa; porque me sale del
culo; ponerse hasta el culo; ser polla y culo (n sentido una e carne). Para um glos-
sário exaustivo de termos sobre o cu em espanhol, ver o livro de Padilha Monge,
José Manuel El culo. Glosario y compendio de los assuntos propios del trasero.
Será que não existe alguma referência interessante sobre isso em português? Outra
pergunta: não valeria a pena traduzir algumas dessas expressões?

39 | Pelo CU
tação da metafísica dos costumes de Kant, não tínhamos escu-
tado uma reflexão tão profunda e inovadora sobre a origem
do direito. A ideia é original: o direito civil pode proceder do
cu, dos usos do cu, da penetração anal consentida e prazerosa,
tanto ativa como passiva. Ademais, a entrada dessa conversa
é igualitária: valoriza igualmente sodomizar (ser ativo) e ser
sodomizado (ser passivo). Claro que isso coloca uma mu-
dança histórica: podemos inferir que, para García Serrano,
alguém que goste de penetrar vaginalmente ou ser penetrado
vaginalmente, este sim, é fonte natural dos direitos civis. Ele
não se pergunta o porquê disso, para ele é algo natural. Ou
seja, a heterossexualidade tem carta branca da natureza para
o acesso aos direitos.
Outro aspecto interessante dessas declarações e da redu-
ção da pessoa a seu cu: a identificação entre direito e sexo.
Nesse caso, o ataque se centrava na pessoa de Pedro Zerolo.
Primeiro reduz a pessoa a corpo, e depois de corpo a cu. Para
García Serrano, ser gay é somente uma prática sexual, é so-
mente um cu que é penetrado ou um pênis que penetra um
cu. Isto nos remete ao velho debate sobre os direitos huma-
nos. Quem é humano? Quem decide o acesso a “ser” humano,
e quem fica excluído do “humano”?
Como esse dispositivo de humanização/desumanização
não é neutro, mas depende de relações de poder, então des-
confiamos do discurso humanista. Este é um bom exemplo
do perigo desse dispositivo: “Não, os gays não são humanos,
são somente um cu ou um pênis, um pedaço de corpo, as-
sim sendo... como vão ter direitos? Um cu não tem direitos,
é somente uma coisa. Zerolo – e por extensão todos os gays
– é apenas um objeto, somente um ato sexual equivocado,
portanto não é humano”. O acesso ao humano vem por meio

40 | Pelo CU
da penetração vaginal. Usando a lógica de García Serrano, ele
sim acessa os direitos civis porque ele pratica (suponhamos)
a penetração vaginal. Isto é o “não dito” do seu discurso, mas
é importante. Curiosamente, essa lógica não é reversível. Este
tertuliano não aceitaria ser reduzido a um objeto penetrável
ou penetrante. Os heterossexuais são pessoas, com alma, com
valores, são humanos. E por isso devem ter direitos civis. Seu
acesso ao direito civil não vem do cu. Não sabemos de onde
vem, mas desde logo não vem de lá. Ele não se pergunta. É
uma velha história: os que ocupam uma posição de poder, de
privilégio, de maioria, não se perguntam sobre a origem de
seus direitos ou de sua posição. Os homens não se perguntam
por que têm mais riquezas, acesso a postos de poder e respon-
sabilidade, e melhores salários e trabalhos que as mulheres. As
políticas de igualdade são coisas de “mulheres”. Eles não têm
que repropor nada. Os heterossexuais não são conscientes
dos seus privilégios, nem questionam sua própria identidade.
Nem a origem de “seus” direitos civis porque são deles. Só de-
les. Nós gays queremos ter acesso aos direitos civis por meio
do cu, e isso não são modos. Um pouco de seriedade, por
favor, pare de sodomizar. Também isso é algo muito antigo:
identificar sodomia com a homossexualidade. Já veremos em
outros capítulos a debilidade desse argumento. Basta pergun-
tar aos heterossexuais e ao pornô hetero.
Por direitos civis suponhamos que García Serrano se refira
ao direito ao matrimônio. Ou seja, para ele, o matrimônio gay
emana da sodomia. Este é o seu fundamento e sua essência.
Resulta que tomar no cu ou que te metam pelo cu nos permi-
tiu ter acesso ao direito ao matrimônio. De algum modo isso
legitima e naturaliza a sodomia. Segundo García Serrano, a
lógica gay é a seguinte: “nós damos o cu, logo temos direito

41 | Pelo CU
a nos casarmos como vocês, heterossexuais”. E isso ele não
gosta. O matrimônio é uma coisa séria, é um direito que vem
de outra parte. Mas, de onde?
Gostaríamos de levar a sério a reflexão de García Serrano.
Pois sim, vamos colocar que nossos direitos emanam do fato
de que gostamos de sodomizar e ser sodomizado. Queremos
que o acesso às políticas sociais, de moradia, de emprego, de
saúde, de cultura e educação provenham e se baseiem em
gostarmos de dar o cu. Isso é que é um orgulho passivo como
deus manda. Nada de direitos humanos, pessoas, almas, ética,
cidadania, amor ou democracia. O anal como fonte do direito
e do político. Crise da esquerda? Crise da política? Não que-
riam reinventar o social? Pois, aqui os tem. Tomar no cu.

42 | Pelo CU
OS ANAIS DA HISTÓRIA. HISTÓRIA DOS ANAIS

O obturador e meu ânus se abrem com uma sincronia quase perfeita.


Penetram profundo até fazer-me explodir.

Pierre Molinier

Neste capítulo, vamos expor algumas referências históri-


cas da analidade, da sodomia e de seus diferentes tratamentos
em função das épocas, culturas, religiões e contextos. Não se
trata aqui de trazer um estudo exaustivo antropológico so-
bre esta questão, mas somente de acrescentar certas reflexões
que nos permitam conhecer alguns antecedentes dos anais da
história.
No princípio era o ânus. Ânus significa anel, do latim,
anus, e este do protoindo-europeu (ânus: anel).
É engraçado que se use o anel como símbolo do casal ca-
sado. Na realidade, ânus significa anel, de modo que, sem sa-
bê-lo, o casal consagra seu amor com o gesto de meter um
dedo no cu, um anel no dedo anular (o anal). Ou o gesto de
meter um ânus no dedo. Já sabemos que o matrimônio, e in-
clusive o amor, são rituais de possessão. Assim, esse primeiro
gesto nos recorda o vínculo entre o cu e o poder. Vamos ver
neste capítulo como os esfíncteres foram controlados no de-
correr da história. Veremos esfinges posicionadas na entrada

43 | Pelo CU
das cidades, no alto das camas, nas praias e nos portos, vi-
giando a abertura e o fechamento dos esfíncteres de distintos
povos e épocas, propondo enigmas que só poderão ser resol-
vidos com uma maior abertura mental ou anal. Dizem que
os turcos quando brigam tendem a dar facadas no cu. É para
não matar? É uma forma deslocada de penetração? É por-
que quem recebe tem que explicar por que deu as costas? Nas
guerras, após as batalhas, os mortos que tinham feridas nas
costas não eram enterrados com honras, já que as feridas nes-
ta parte queriam dizer que haviam fugido e que tinham sido
mortos por trás. Existem numerosas tradições que condenam
a possibilidade do acesso ao corpo “por trás”, inclusive para
morrer. Metaforicamente, as costas é o cu, ainda que exista
quem chame o cu de ali onde as costas perdem seu nome.
Seguindo tangencialmente com os turcos, Vlad o Empa-
lador, personagem em que se baseou Stoker para escrever
Drácula, à parte outros passatempos sanguinários, costumava
empalar seus “inimigos”. O empalamento, o bom, o fantás-
tico, consistia em meter uma estaca no cu e/ou na vagina, e
retirá-la pelo pescoço, sem tocar os órgãos vitais para aumen-
tar a agonia… Também havia um instrumento de tortura da
inquisição que era uma espécie de pirâmide que enfiavam no
cu do suposto infiel ou herege.
O interessante do cu é que sempre é o “do outro”, do es-
trangeiro. Na tradição europeia, sobretudo na espanhola, isso
do cu é coisa de mouros. Para os árabes, são os europeus que
vão lá pedir para serem enrabados. Para muitos povos euro-
peus “um grego” é uma penetração anal. Para os invasores
espanhóis da América, os índios americanos eram um bando
de pecadores porque praticavam sexo anal de forma cotidia-
na. Sempre é o povo ao lado que pratica a sodomia, nunca é

44 | Pelo CU
algo próprio da sua “nação” ou da sua cultura. Na Idade Mé-
dia, castigava-se a sodomia por ser algo próprio dos infiéis,
dos povos mulçumanos.

De Tebas à Índia: esfinge e tantras

A única tradição que conhecemos onde se valoriza a pos-


sibilidade do coito anal como algo positivo é a tradição tân-
trica da Índia. O Adhorata é um tipo de coito que equivale às
práticas de yoga como Mulabandha (travamento do esfíncter
anal) e Asvini Mudra (contração e relaxamento do ânus). Para
compreender este tipo de relação, temos que recordar primei-
ro que, ainda para os ocidentais, o ânus não é precisamente
um lugar limpo. Para os hindus, isto não representa um pro-
blema, pois sua higiene é sumamente rigorosa e sempre está
relacionada com as práticas sexuais. Os hindus são especial-
mente cuidadosos em lavar com água em abundância mais de
uma vez ao dia suas zonas erógenas, e a cada vez antes e de-
pois do coito, assim como depois de qualquer atividade intes-
tinal. O ânus é – segundo a tradição tântrica – uma das zonas
mais sensíveis do corpo humano, sendo claramente uma zona
erógena e de concentração de energia psíquica. Essa zona se
encontra em contato com o chakra basal ou Muladhara, que
é onde fica enrolado o poder primário do sistema nervoso,
simbolizado pela Deusa serpente ou Kundalini.
Desta forma, o Tantra propõe que mediante a abertura dos
esfíncteres anais de Shakti (a parte feminina do deus), quer
dizer, da mulher, Shiva (a parte masculina do deus), resolve-
-se o enigma da Esfinge. Também para esta tradição, vemos
que o anal é “o feminino”, que se abre para que o macho atue.

45 | Pelo CU
A busca específica deste tipo de relação sexual é o des-
pertar direto da Kundalini. O tantra considera que, aparente-
mente, entre a parede do reto e a ponta da última vértebra se
encontra uma glândula a que chamam Glândula Kundalini. O
yoga criou várias técnicas para estimular essa glândula, entre
as quais mencionam a Mula Bandha.
A dilatação dos esfíncteres anais é uma das formas mais
rápidas e diretas para estimular e ativar essa glândula, o que
tem um efeito reflexo sobre os dois ramos do sistema nervoso
que terminam no reto e no ânus.
Segundo a crença tântrica, o coito anal provoca no reto
a ejaculação, o que alimenta a glândula Kundalini, pelo que
Shiva (o homem) sustenta sua Shakti com esse tipo de rela-
ção, ao mesmo tempo em que facilita o despertar de seu fogo
interno. Em um tratado de sexo tântrico encontramos esta
explicação, interessante, mas muito heterocentrada:

É importante recordar que este tipo de relação, como qualquer


outra, deve incluir uma grande higiene, consentimento mútuo e
grande sutileza, pois se se é violento ou rude pode-se machucar
tanto a Shakti, a mulher, como o órgão sexual do homem ou lin-
gam. Além disso, deverá ter uma forte estimulação manual antes
de proceder para que a mulher se encontre lubrificada, se necessá-
rio pode-se usar lubrificantes extra. Se ambos quiserem, esse tipo
de relação pode ser extremamente prazeroso, podendo também
guiar até o despertar do Kundalini e da separação da consciência,
do ego para entrar na harmonia com todo o universo.

A tradição tântrica assume com bastante naturalidade algo


que, em realidade, todo mundo sabe: que a zona anal é uma
zona erógena. Mas, mesmo que esta tradição soe bastante boa
em teoria, não parece ter tido muita influência na vida real co-

46 | Pelo CU
tidiana dos habitantes da Índia, onde hoje em dia o sexo anal
continua sendo um tabu e onde a homossexualidade é muito
mal vista. O ânus está rodeado de alguns músculos denomi-
nados esfíncteres; suas raízes etimológicas provêm da palavra
grega sphinx, que compartilha sua origem com esfinge, criatura
de origem mitológica que guarda mistérios e enigmas. Como
nos explicava o genial poeta gay José Lezama Lima:

Esfinge e esfíncter têm a mesma raiz: contrair11.

Então vemos que se trata de apertar: a esfinge te coloca


nos apertos, a esfinge como estrangulador que patrulha o de-
sejo, que fechava o caminho na entrada de Tebas. Esfíncter
deriva de sphíngo: apertar, fechar, estrangular, contrair, eno-
dar. Galeno foi o primeiro a utilizar essa palavra em seu sen-
tido anatômico, mas vemos que já nesse primeiro momento
o ânus é percebido mais como espaço para fechar que para
abrir. Galeno podia ter descrito esse mesmo músculo com
uma palavra de abertura, de relaxar, de afrouxar, de abrir, de
desatar nós, como um espaço de passagem e de recepção. Es-
quecemos que a utilidade do ânus está em abrir-se, não em
fechar-se.
O semiólogo Charles Pierce dedicou um estudo à esfin-
ge e a seu significado (A Guess at the Riddle12) em textos de
Emerson, Poe e Melville, que tratam dessa figura mitológica.
Os fundamentos etimológicos e mitológicos do termo esfinge
se encontram em plena sintonia com as investigações peir-
ceanas. Com efeito, como já colocamos, Esfinge deriva, em

11
Lezama Lima, José, Diarios, Era, México, 1994, p.84.
12
Peirce Ch. S., The essential Peirce, Volume 1: Selected Philosophical Writings,
(1867-1893), Indiana University Press, 1992.

47 | Pelo CU
grego, de estreitar, de ligar, enodar (daí o músculo anular,
“esfíncter”), e encarna metaforicamente no monstro imagi-
nário que enoda a mulher e o leão. O tom enigmático da Es-
finge se origina, por sua vez, na magnificência estranha das
representações egípcias, que na cultura grega dão lugar ao
ente sobrenatural que guarda a entrada de um lugar secreto
perto da antiga Tebas. As respostas apropriadas às adivinhas
da Esfinge (“Riddles of the Sphinx”) abririam portas de segre-
dos bem guardados. Dentro deste quadro, a proximidade de
Peirce com a Esfinge é imediata, uma vez que compreender e
desembaraçar os nós do saber constituem, sem dúvida, duas
das maiores tarefas do filósofo norte-americano. Todo o seu
sistema teórico tende, na realidade, a armar uma taxonomia
sofisticada de distinções correlativas entre conceitos “enoda-
dos”. Não obstante, as sisudas reflexões de Peirce não o leva-
ram a uma descrição das implicações anais da esfinge, outro
exemplo de repressão curiosa que deixa de lado essa parte
infame do nosso corpo, da qual ninguém quer saber nada. O
enigma da Esfinge é a pergunta sobre qual o ser que caminha
de quatro patas no início da vida; com duas, no meio; e com
três, ao final. Édipo decifra o enigma: esse ser é o ser humano,
na infância, na vida adulta e na velhice. Resolvido o enigma,
a Esfinge se joga no fundo do abismo13.

13
Existe uma outra versão sobre a resposta que Édipo deu. Segundo esta versão,
Édipo disse à esfinge: “o ser que caminha de quatro patas no início; com duas,
no meio; e com três ao final é a bicha. Qualquer um que tenha ido a uma sauna
ou a um quarto escuro em Tebas sabe que as primeiras experiências são com as
quatro patas no chão para ser penetrado; depois te colocam de pé para que te
chupem; e ao final finca no chão os dois joelhos, e apoia uma das mãos no chão,
para mamar os outros mais comodamente.

48 | Pelo CU
Gregos e romanos

Retornando ao mencionado “grego”, quando se fala da


Antiga Grécia, logo imaginamos que ali todo mundo anda-
va dando o cu alegremente em uma espécie de paraíso anal.
Mas as coisas não eram tão simples. Embora seja verdade que
o amor verdadeiro era o que se dava entre um adulto e um
adolescente, a prática sexual do coito anal estava pautada em
uma série de convenções e limitações bastante contraditórias.
Para começar, a passividade no adulto era muito mal vista.
Como nos explica Foucault na sua obra História da Sexualidade:

A relação entre dois homens feitos será mais facilmente objeto


de crítica ou de ironia: é porque a suspeita de uma passividade,
sempre mal vista, é particularmente mais grave quando se trata
de adulto 14.

Mas, também, o jovem adolescente de que se espera uma


posição passiva, tampouco deve mostrar prazer sem ser ob-
jeto de desejo, nem no ato sexual. Existe uma vigilância de
gênero muito articulada ao redor do sexo, cheia de parado-
xos, controles e valores. Por exemplo, essa relação adulto-a-
dolescente é marcada por muitos rituais de cortejo, onde o
adolescente não deve “se dar facilmente”, nem o adulto abusar
de sua posição de poder ou de superioridade.
Além disso, o esquema da polaridade ativo/passivo está
muito arraigado na estrutura do erotismo grego. Mas, ao
contrário de certa crença comum que relaciona o adolescente

14
Foucault Historia de la sexualidad, volumen II, El uso de los placeres, p. 179 [ed.
bras.: Foucault. História da sexualidade, volume 2: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1998. p. 173].

49 | Pelo CU
com o feminino, na antiga Grécia despreza-se enormemente
a possibilidade da moleza e da afeminação do efebo. Espera-
-se dele sinais de virilidade, não físicos, mas de atitude: vigor,
resistência, ímpeto, uma promessa de virilidade por vir. Por
isso se considera muito negativamente que o adolescente des-
frute abertamente do papel passivo:

Por outro lado, o rapaz, posto que sua juventude deve levá-lo a
ser homem, não pode aceitar assumir-se como objeto nessa re-
lação, que é sempre pensada sob a forma da dominação: ele não
pode nem deve se identificar com esse papel. Ele não poderia
ser de bom grado, a seus próprios olhos e para si próprio, esse
objeto de prazer15.

Tampouco para o adulto as coisas são fáceis; em primei-


ro lugar, nessa passagem da etapa adolescente para a etapa
adulta, ele tem que sofrer uma espécie de “amnésia”, pela qual
abandona o papel passivo e passa a adotar um papel ativo.
Mas é tão fácil esquecer o que se viveu na adolescência? Os
argumentos dessa ética estão cheios de armadilhas: “não há
nada para esquecer, porque não experimentavam prazer nes-
sa época, como passivos”. Se previamente se proibiu sentir
prazer, parece mais fácil dar este passo rumo ao papel ativo.
Parece que aqui ninguém tem que sentir prazer. O que se es-
pera do adulto é uma espécie de sublimação que transforma
sua atração pelo efebo em uma relação de filia, de amizade
profunda, que supera a mera relação carnal16.

15
Idem, p. 203. [Ed. Bras.: idem, p. 195].
16
Para uma análise detalhada das críticas que existiam na Antiga Grécia à posição
passiva na penetração anal e na felação, ver o rigoroso estudo de Dover, K.J.
Homosexualidad griega.

50 | Pelo CU
É claro que esse jogo de regras e de valores não tem que re-
fletir a realidade social, o sexo real que praticavam os gregos,
do mesmo modo que os atuais códigos da “boa sexualidade”
que nos propõe COPE, o Vaticano ou o Partido Popular, não
refletem em absoluto a realidade de suas práticas sociais. So-
bretudo as do Vaticano.
Parece que ocorria exatamente o contrário; parece que na
Grécia existia uma grande preocupação em manter este siste-
ma binário ativo/passivo, adulto/jovem, subestimando o tem-
po todo o prazer sexual em si mesmo. Mas é bastante difícil
crer que depois de ter passado vários anos de enrabamento na
adolescência (por mais enfeitados de culturas e rituais que se-
jam), alguém esqueça alegremente essa atividade e se converta
rapidamente em um super-ativo para o resto da vida. Também
é difícil crer que, em todos esses atos de sexo anal, o jovem não
experimentava algum prazer ou que, na realidade, o jovem não
transava com o adulto quando dava vontade a ambos.
Certa tradição homófila de escritores e artistas do final do
século XIX e do princípio do XX retomou a figura do efebo
da cultura grega e a transformou em uma espécie de ideal
absoluto, elogiando, também, a beleza do efebo em relação à
sua ambiguidade sexual e seu atraente afeminamento. Como
assinalamos, este modelo idealizado está muito distante dos
próprios critérios dos Gregos, bastante plumofóbicos em ge-
ral (ao menos segundo o que refletem todos os textos). Mas
existe outro aspecto que também se ocultou nessa tradição de
valorização dos efebos: é que na antiga Grécia também ha-
via uma importante valorização dos corpos adultos, inclusive
dos anciãos. Basta ver as esculturas gregas para compreender
seu enorme interesse e admiração pelo corpo do adulto; e,
como nos diz Foucault:

51 | Pelo CU
E no banquete de Xenofonte, evoca-se o fato de que havia o cui-
dado de escolher como talóforos de Atenas os mais belos an-
ciãos17.

Pois bem, um aspecto esquecido da antiga Grécia era que


foram criados então os primeiros clubes de daddies.
Continuando com os códigos gregos, e sua herança na ci-
vilização romana, o historiador Paul Veyne nos explica que
nessas épocas não se classificavam as condutas em função do
sexo do amado (pouco importava se eram mulheres ou jo-
vens), mas em função da atividade e da passividade:

Ser ativo é ser um macho, seja qual for o sexo da pessoa chama-
da passiva. Obter prazer de forma viril, ou dar prazer de forma
servil, tudo se baseia nisto [...]. Por isso, o adulto homem e livre
que era homófilo passivo (chamado impudicus, ou diatiheme-
nos) sofria um desprezo enorme18.

Parece que o ódio à bicha desmunhecada era já muito es-


palhado na Grécia e em Roma, onde também se mantinha o
mal-entendido comum de que a pessoa passiva é afemina-
da, ou de que a pessoa afeminada é necessariamente passiva.
Nesse assunto, há exemplos bem divertidos: na época roma-
na circulavam muitos rumores sobre os estoicos, de quem
se dizia que escondiam abaixo da sua exagerada virilidade
uma feminilidade secreta (os ursos e os leather não são tão

17
Foucault, op. Cit., p. 184. Os talóforos eram os velhos que carregavam os ramos
de oliva nas festas de Ateneia, as grandes Panateneias [Ed. bras.: Foucault. His-
tória da sexualidade, volume 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
p. 177].
18
Paul Veyne, L’homossexualité à Rome, p. 45, no livro Sexualités occidentales, vários autores.

52 | Pelo CU
originais). Inclusive, o próprio Sêneca foi objeto desse tipo
de chacota. Também em Roma inventaram o Don’t ask, don’t
tell contra os passivos, pois existem testemunhos de que, em
Roma, se expulsava do exército os homossexuais passivos.
Mas é importante assinalar que o rechaço do passivo não se
devia à sua homofilia, mas à passividade em si mesma, que
era considerada como equivalente a um defeito moral muito
grave: a delicadeza, o afeminamento19.

O indivíduo passivo não era afeminado por causa do seu des-


vio sexual, mas ao contrário: sua passividade era um dos efeitos
da sua falta de virilidade e essa carência permanecia como um
vício capital, inclusive se não se dava a homofilia [...] O estado
romano proibiu muitas vezes os espetáculos de ópera porque
eles afeminavam e eram pouco viris, diferente dos espetáculos
dos gladiadores.20

Parece que a divisão comum “ópera para veadinhos, fute-


bol para os machos” já estava presente na civilização romana!
Em todo caso, em todas essas práticas de condenação con-
tra o passivo se faz sempre essa falsa identificação passivo =
afeminado. Ou seja, sem dúvida, muitos homens “viris” da
época grega e romana, adultos e de pelo no peito, desfruta-
vam sendo penetrados, mas toda a trama social e cultural
ocultava esse fato: aparece como cabeça de turco “o afemi-
nado”, como o único ser passivo de toda sua civilização, ou
deixando este papel para o adolescente, como única possibili-

19
Esta tradição perdura com surpreendente tenacidade: na edição atual do dicio-
nário da Real Academia Espanhola lemos a seguinte definição da palavra mari-
ca[bicha]: homem afeminado e de pouco ânimo e esforço. (Mas que demônio será
isso de “pouco ânimo e esforço”!).
20
Veyne, p. 45.

53 | Pelo CU
dade não ignominiosa. De algum modo esse personagem ab-
jeto, o afeminado-passivo, e essa identificação tão rígida tinha
muitas vantagens: deixava livres do “pecado” todos aqueles
que tiveram um aspecto “masculino”, e afastava a suspeita do
seu possível prazer anal.
É interessante a lógica que se seguia na cultura romana: a
passividade era uma consequência da falta de virilidade, não
a causa. Esse detalhe é importante, dado que na nossa cultura
atual a lógica é inversa: é o ato passivo, o fato de ser penetra-
do, que acarreta como consequência uma perda da virilidade.
De fato, parece que o mero ato da penetração (como passivo)
“amaricona” automaticamente a pessoa que o experimenta21.
Como comentamos, em Roma ou na Grécia o critério que
organizava as sexualidades não era se alguém gostava de mu-
lheres ou de homens, mas o valor da masculinidade, a posi-
ção de poder, o ser ativo ou passivo, a classe social superior
associada ao papel ativo.

O tabu moral acerca do sexo anal “passivo” na antiga Atenas


é formulado principalmente como higiene do poder social. Ser
penetrado é abdicar do poder22.

Neste sentido, existe outro exemplo ainda mais curioso na


cultura romana, uma obsessão por um ato execrável de que
hoje se fala pouco, mas que está muito bem documentado: a
21
É interessante constatar que em muitos fóruns sexuais da Internet a consulta
mais habitual que fazem os homens hetero que desfrutam do prazer anal (por
exemplo, que pedem a suas mulheres que lhes penetrem com objetos ou com os
dedos) é saber se por isso viraram homossexuais. A resposta dos sexólogos em
geral é sempre a mesma: “não, tranquilo, pode ser penetrado analmente e não
por isso é um homossexual”.
22
Bersani, L. “Es el recto una tumba?”, em Llamas, R., Construyendo identidades,
p. 101.

54 | Pelo CU
felação (irrumatio). Nessa cultura, a mamada era um ato ain-
da mais baixo que a penetração anal passiva. Para os roma-
nos, chupar (ou seja, despreza-se aquele que chupa o pênis,
que lhe chamavam passivo, ainda que a nós nos pareça algo
super-ativo) era o pior do pior, o ato mais baixo de submissão:
obter prazer passivamente dando prazer ao outro e, por sua
vez, oferecer uma parte do seu corpo, a boca, para a inteira
disposição do outro. A coisa era tão mal vista que, segundo
Marcial23, alguns homens que haviam sido surpreendidos
fazendo boquete... tentaram passar por homófilos passivos!
Dado que a injúria, neste caso, era menor, era preferível con-
fessar um ato de penetração passiva a confessar que gostavam
de dar uma boa mamada.
Como vimos, esses critérios de sexo condenável também
estão muito ligados à classe social. O grave não é o ato em si
da penetração, mas se quem a recebe é uma pessoa de classe
alta, um homem livre e, sobretudo, que desfrute com isso. O
que escandaliza não é o sexo em si, mas o deslizamento de
classe social que supõe, o adotar uma posição que só deve ter
o escravo. É importante colocar este ponto para entender a
cultura romana: o critério que está funcionando é mais uma
vigilância de classe do que de sexualidade.

Sodomia: dos judeus à inquisição

O termo sodomia vem do nome da antiga cidade Sodo-


ma (SeDoM em hebraico, derivado da raiz SOD = secreto), a
qual, segundo a Bíblia, foi destruída por Deus por seus mui-
tos pecados. Na fala atual se identifica com a prática do sexo
23
Richlin, A. (1981). “The meaning of irrumare in Catullus and Martial.” Classical
Philology 76: 40-46.

55 | Pelo CU
anal apesar de que Sodoma, na Bíblia, não foi castigada por
esses atos.
Tradicionalmente, os pecados cometidos pela cidade de
Sodoma ficaram conhecidos como a prática do sexo anal en-
tre homossexuais masculinos; de fato, no imaginário popular
e clerical, a razão do castigo era a prática da homossexualida-
de (pelo menos masculina) por parte dos sodomitas, a qual
passou a se chamar sodomia.
O trabalho erudito de John Boswell Cristianismo, Tolerân-
cia Social e Homossexualidade. Os Gays na Europa Ocidental
desde o começo da Era Cristã até o Século XIV explica com
muito rigor os mal-entendidos que existem na origem dessa
interpretação do termo sodomia.

A ideia de que a conduta homossexual é condenada no Antigo


Testamento provém de várias passagens. Provavelmente a mais
conhecida, e sem dúvida a que mais influência exerceu, é o re-
lato de Sodoma, no Gênesis, 19. Na verdade, Sodoma deu seu
nome às relações homossexuais na língua latina: no decorrer
da Idade Média, tanto no latim quanto em qualquer uma das
línguas vernáculas, a palavra mais próxima a homossexual foi
sodomita. Contudo, a interpretação puramente homossexual
daquele relato é relativamente recente. Nenhuma das muitas
passagens do Antigo Testamento que se refere à depravação de
Sodoma sugere delito do tipo homossexual, de modo que as as-
sociações homossexuais têm que ter sua origem em tendências
sexuais numa literatura muito posterior. Não é provado que tais
associações desempenharam um papel importante na determi-
nação das atividades dos primeiros cristãos. Sobre a única base
do texto, parece possível extrair quatro conclusões sobre a des-
truição de Sodoma: 1) que os sodomitas foram destruídos pela
depravação geral que, em primeiro lugar, incitou ao Senhor en-
viar anjos à cidade para que investigassem; 2) que a cidade foi

56 | Pelo CU
destruída porque o povo de Sodoma tentou violar os anjos; 3)
que a cidade foi destruída porque os homens de Sodoma tenta-
ram induzir os anjos a se envolverem em relações homossexuais
com eles (observe-se que não é o mesmo que 2); na lei judia
a violação e a relação sexual são delitos que se castigam inde-
pendentemente); 4) a cidade foi destruída por não tratar com
hospitalidade aos visitantes que o Senhor enviara.
Embora seja a mais evidente das quatro, a segunda possibilidade
foi largamente ignorada pelos estudiosos antigos e modernos da
Bíblia, provavelmente devido às ambiguidades que rodeavam o
estupro homossexual. Desde 1955, os estudiosos modernos se
inclinam cada vez mais pela interpretação 4), enfatizando que
as matizes sexuais do relato mesmo estando presentes, eram de
caráter secundário, e que o impacto moral da passagem se re-
lacionava com a hospitalidade. Para dizê-lo brevemente, a tese
desta linha de investigação sustenta que Lot violava o costume
de Sodoma (onde não foi cidadão, sim meramente “residente”),
ao receber à noite hóspedes desconhecidos no recinto fortifica-
do da cidade sem a permissão dos anciãos. Quando os homens
de Sodoma se reuniram para pedir que se levasse os estrangeiros
à sua presença, pois “eles queriam conhecê-los”, não queriam
dizer outra coisa que “saber” quem eram e, em consequência, a
cidade não foi destruída por imoralidade sexual, mas pelo peca-
do de falta de hospitalidade com os forasteiros.24

A sodomia na Idade Média e na Idade Moderna incluía


diversos “atos contra a natureza”, mas era empregada prin-
cipalmente no caso do sexo anal. Como vimos, a origem do
termo está na Bíblia, na história de Sodoma e Gomorra. A
identificação do “pecado de Sodoma” com o sexo anal e não
com a falta de hospitalidade ou a luxúria em geral, docu-
menta-se pela primeira vez com Santo Agostinho. A palavra
24
Boswell, p. 96.

57 | Pelo CU
“sodomia” aparece pela primeira vez no século XI, no Liber
Gommorrhianus do Monge Benedito Petrus Damianus, para
o que aquela palavra incluía todas as atividades sexuais que
não serviam para a reprodução. As lésbicas eram ignoradas
em grande parte, embora as mulheres que praticavam o sexo
anal também caíssem sob o epíteto sodomita. Como veremos
mais à frente, no parágrafo sobre Foucault e a aparição do
“homossexual”, a sodomia não descrevia um “tipo de perso-
nalidade”, mas somente o ato sexual em si.
As primeiras perseguições aos homossexuais por causa do
sexo anal são da metade do século VI, quando o imperador
bizantino Justiniano e sua esposa Teodora proíbem, por mo-
tivos políticos, os “atos contra a natureza”, amparando-se em
razões religiosas. A lei previa como castigo a castração e o
passeio público pelas ruas. Não existem provas de que a Igreja
Ortodoxa tenha apoiado o édito em nenhum momento.
Até o século XII, na maioria dos países europeus, a so-
domia não era castigada, não sendo mais que um entre tan-
tos pecados que apareciam nos textos eclesiásticos. A atitude
mudou no percorrer das cruzadas, nas quais a propaganda
anti-islâmica identificava os mulçumanos como sodomitas
que violavam os bispos e as crianças cristãs (já vimos que o
sodomita é sempre “o outro”). Pouco depois, identificava-se
a sodomia com a heresia; entre 1250 e 1300, introduziam-se
leis que castigavam o pecado com a morte. Essas leis foram
usadas sobretudo como ferramentas políticas, como foi o
caso dos templários ou do assassinato de Eduardo II da In-
glaterra, ou em situações onde a paz social estava em perigo,
como nos casos de violações ou pederastia. Em geral, a ho-
mossexualidade estava bastante estendida, sendo a discrição
o elemento chave. De fato, por exemplo, é conhecido o caso

58 | Pelo CU
de Leonardo da Vinci, que foi acusado anonimamente várias
vezes de sodomia. Na Florença da época, bastava depositar
uma denúncia anônima em uma caixa (o “tamburo”) para de-
latar um sodomita.

Notifico-lhes, Signori Officiali, de um certo fato, a saber, que


Jacopo Saltarelli, irmão de Giovanni Saltarelli, vive com este úl-
timo na ourivesaria de Vacchereccia em frente ao tamburo: se
veste de negro e tem uns dezessete anos. Este Jacopo tem sido
cúmplice em muitos lances vis e consente em comprazer aquelas
pessoas que lhe pedem tal perversidade. E deste modo teve mui-
tos tratos, quer dizer, serviu a várias dezenas de pessoas acerca
das quais sei muitas coisas e aqui nomearei a uns poucos: Bar-
tolomeo di Pasquino, ourives, que vive em Vácchereccia; Leo-
nardo di Ser Piero da Vinci, que vive com Verrocchio; Baccino
o alfaiate, que vive por Or San Michele, nessa rua onde há duas
grandes lojas de tosquiadores e que conduz a loggia dei Cierchi;
recentemente abriu uma alfaiataria; Lionardo Tornabuoni, cha-
mado il teri, veste negro. Estes cometeram sodomia com o dito
Jacopo, e isto testemunho ante vós25.

Leonardo da Vinci foi solto na condição de não reincidir


em suas aventuras sodomitas. Depois de dois meses, a denún-
cia foi retirada cum condizione ut retamburentur, ou seja, com
a condição que não houvesse novas denúncias no tamburo, e,
embora em 7 de junho tenha se repetido a denúncia, a respos-
ta foi a mesma, provavelmente pela ausência de testemunhas.
A sodomia era teoricamente um delito extremamente grave,
castigado com pena de morte, mas difícil de provar. Também
era um delito que raramente ditava castigo na Florença da
época, onde a homossexualidade era comum e tolerada o su-

25
Wittkower, Rudolf e Margot, Nacidos bajo el signo de Saturno, p. 165.

59 | Pelo CU
ficiente para criar a palavra Florenzer (Florentino) como gíria
para homossexual na Alemanha (uma vez mais, o sodomita
é o vizinho). As falsas denúncias eram muito comuns nesse
tempo, especialmente aquelas feitas de forma anônima pelos
inimigos. Esse pode ter sido o caso de Leonardo. Em sua larga
carreira, depois de sair de Florença, não teve cargos adicio-
nais, inclusive alguns historiadores defendem que, por causa
do susto, o pobre Leonardo não voltou a “veadar” mais em
toda sua vida, mas não há provas.
Voltando aos maus vizinhos: é interessante a origem me-
dieval da nossa palavra bujarrón [homossexual]. Essa palavra
nos chegou pelo idioma francês, com a palavra bougre26 que
significa búlgaro, por uma referência a uma seita medieval
herética da Bulgária, os Bogomiles (bugger em inglês). Como
essa seita enfrentava a Igreja Católica, em seguida foram acu-
sados de dedicar-se à prática da sodomia, embora não exis-
tam dados históricos concretos de que tivessem especial inte-
resse pelo sexo anal (ou ao menos não mais que um interesse
que sempre foi mostrado pelos dirigentes da própria Igreja
Católica).27
É interessante a observação que faz Boswell sobre a indife-
rença contra o gênero dos sodomitas na hora do castigo:

Uns pouquíssimos livros penitenciais primitivos gozavam de


uma ampla autoridade e exerceram uma duradoura influência.
26
No Brasil, os franceses que ocupavam a região do Maranhão, passaram a chamar
os índios Timbiras de “bugres”. Mais tarde, o termo passou a designar todos as
pessoas de origem indígena. O termo, de caráter pejorativo, também era usado
quando alguma das ancestrais era de origem indígena. “Minha avó era bugra”,
diziam. Para mais informações, consultar os dicionários da língua portuguesa.
[N.T].
27
Em alguns lugares, como Londres e Amsterdam (em 1730 e 1733) ocorreram
ondas de perseguição contra os sodomitas.

60 | Pelo CU
Um deles foi a coleção de Reginon de Prüm (m. 915). Seu en-
foque da sexualidade e dos pecados sexuais – como da maioria
de seus contemporâneos – era indiferente ao gênero de que se
tratasse. Para Reginon, o que constituía o pecado era o ato, não
as partes envolvidas: a penitência pelo coito anal (três anos) era
exatamente a mesma para dois homens ou para pessoas casadas,
e não era mais severa que a que correspondia à simples fornica-
ção heterossexual 28.

Na Espanha se encarregam dos castigos tribunais civis das


cidades que, até a época dos reis católicos, castigavam com a
castração ou o apedrejamento, um castigo que mais tarde se
modificaria para queima na fogueira nos casos mais graves29.
A inquisição espanhola só se encarregava de julgar a so-
domia na Coroa de Aragão. Em geral, o comentado para a
Europa é válido para a Espanha, com a diferença de que não
foram as cruzadas, mas a percepção dos reinos peninsulares
mulçumanos, que levou a identificar a sodomia com o isla-
mismo e a heresia.
Em seu conhecido texto Graças e desgraças do olho do cu,
Quevedo faz uma descrição bastante surpreendente dos usos
do cu, omitindo completamente toda a repressão que já há
muitos séculos viviam os sodomitas:

Mas, quando pelo pacífico e virtuoso olho do cu houve escânda-


lo no mundo, inquietude ou guerra? Quando, por ele, um cris-

28
Boswell, p. 174.
29
Daqui vem provavelmente à raiz do insulto homofóbico em italiano, finoccio – bi-
cha, e também hinojo. Naquela época se colocava os sodomitas na fogueira com
folhas de hinojo para deixar o fogo mais lento e deixar o sofrimento mais longo
e penoso. Talvez o insulto inglês faggot (bicha, e também haz de leña) provenha
da mesma triste etimologia. Porém, estamos esperando uma desculpa da igreja
católica por haver torturado e assassinado milhares de homossexuais.

61 | Pelo CU
tão deixou de aprender orações, andar com sinfonias, se erguer
em cajado ou seguir alguém, como se vê a cada dia por falta
dos da cara que expostos à ventania e à inclemência, de ler, de
fornicar, de uma purgação, de uma sangria, deixam um cristão
no escuro? Provem ao olho do cu que matou jovens, cavalos,
cachorros, etc.; que murchou ervas e flores, como fazem os da
cara, olhando o quão peçonhentos são: pelo que dizem que têm
mal de olho. Quando se verá que por ser testemunha ocular a
ninguém tenham enforcado por ele, como pelos da cara, que ao
dizer que o viram formam suas calúnias os escrivães? Fora que
o olho do cu é um e tão absoluto seu poder, que pode mais que
os da cara juntos. Quando se verá que nas irregularidades se
metam com o olho do cu?

Apesar de nos dar esta visão idílica do cu como um espa-


ço pacífico, onde nunca teve preocupação, inquietude nem
perseguição, quando escreve a última desgraça do olho do cu,
nos mostra uma verdadeira crueldade:

Finalmente, tão desgraçado é o cu que, sendo assim que todos


os membros do corpo folgaram e folgam muitas vezes, os olhos
da cara gozando do formoso, os narizes dos bons odores, a boca
do bem temperado e beijando o que ama, a língua brincando
entre os dentes deleitando-se com a risada, com a conversa e
com ser pródiga e uma vez que quis folgar o pobre cu, queima-
ram-no.

Suponhamos que a “queima” de que fala Quevedo é pre-


cisamente a dos sodomitas da época, o que contradiz a vi-
são idílica do cu que está no começo do seu texto. O próprio
Quevedo menciona os bugres e o cu em um insultante poema
contra Góngora:

62 | Pelo CU
CONTRA DON LUIS DE GÓNGORA E SUA POESIA

Este ciclope, não siciliano,


do microcosmo sim, orbe derradeiro;
esta antípoda face, cujo hemisfério
zona divide em vocábulo italiano;

este círculo vivo em todo plano;


este que, sendo somente zero,
lhe multiplica e parte por inteiro
todo bom abaquista veneziano;

o minocu sim, mas cego vulto;


o resquício barbado de melenas;
este cume do vício e do insulto;

este, em quem hoje os peidos são sereias,


este é o cu, em Góngora e em culto,
que um bugre o conhecesse apenas.

As leis contra a sodomia se mantiveram nos países euro-


peus e, em geral, nas nações ocidentais até os séculos XIX
e XX. Na França, as leis contra a sodomia foram anuladas
durante a Revolução Francesa. Na Inglaterra, Henrique VIII
introduziu o Buggery Act em 1533, que castigava a sodomia
(chamada buggery; já vimos sobre sua origem no “outro”, nes-
te caso, o búlgaro) com a força. A lei não foi eliminada até
1861. Na Alemanha, o parágrafo 175 não foi completamente
abolido até 199430.

30
Para se aprofundar na história da repressão da sodomia na Espanha entre os
séculos XIV e XVII, ver os livros de Garza, Federico Quemando mariposas: so-
domía e imperio em Andalucía y México, Siglos XVI-XVII, Laertes, 2002, e Car-

63 | Pelo CU
Cu, sexo e gênero: políticas anais.

Apróstata: diz-se do homem que, tendo sido batizado em sua dimensão


anal, decide renunciar a ela para sempre.

O cu, o ânus, o reto é um órgão sexual? A medicina nos


dirá que não, que é uma parte do aparelho digestivo que não
tem nenhuma função reprodutora, logo, não é um órgão se-
xual. E, como dizem a Igreja Católica e os grupos homofó-
bicos, seu uso erótico é uma perversão, já que não tem uma
função reprodutora. Bem, por essa mesma lógica, como assi-
nala Freud, a boca, como é outra parte do aparelho digestivo
(precisamente o extremo em relação ao ânus) tampouco de-
veria ser usada no jogo erótico: seu uso sexual, o beijo, é en-
tão também uma perversão. Na realidade, como sabemos, o
cu sempre foi usado como órgão sexual para o sexo e é aí que
o sistema dominante de sexo e gênero começa a estremecer.
A lógica tradicional heterocentrada, com seu binarismo pê-
nis (homem) – vagina (mulher), como modelo do “natural”,
o normal, o harmonioso, o que deve ser, vem abaixo quando
entra em jogo um órgão que é comum a todos os sexos, e

rasco, Raúl Inquisición y represión sexual em Valencia. Historia de los sodomitas


(1565-1785), Laertes, 1985.

65 | Pelo CU
que não está, portanto, marcado pelo gênero masculino ou
feminino31.
É um lugar estranhamente vazio das marcas de gênero. O
binarismo sexual e o mito da cópula heterossexual-reprodu-
tiva não podem operar nesse lugar do anal, que desafia sua
lógica e os coloca em dúvida. Inclusive questiona outro bi-
narismo, o que divide os seres humanos em heterossexuais e
homossexuais. E ainda que, como vimos, uma tradição mile-
nar identifique continuamente a sodomia com a penetração
entre homens, a realidade é que também homens e mulheres
se penetram analmente em todas as combinações possíveis,
com o que, na prática, se desmorona essa divisão. E se o que
define um homossexual já não é mais a penetração anal, o
que o define? Deixamos essa pergunta absurda à curiosidade
médica-sexológica. Para nós, o que importa é precisamente a
incoerência dessas definições.
O que a história do sexo nos ensinou é que ele é algo mui-
to maleável, dúctil, variável; discursos médicos recortam par-
tes do corpo de diferentes maneiras sexuais de acordo com
a época, contextos, discursos, lugares. A mão pode ser um
órgão sexual em um século e não ser em outro. O clitóris faz
sua aparição em dado momento da história da medicina, no
século XVI, mas sua percepção como órgão sexual e sua fun-
ção muda no século XIX. Até o século XVIII existia a teoria
do sexo único, ou seja, somente existia um sexo, o masculino,
e tudo que tinha a mulher era igual do homem, que era o pro-
tótipo, mas invaginado. O trabalho de Thomas Laqueur sobre

31
Para um desenvolvimento mais aprofundado desta questão, ver Preciado, B.
Terror anal, em Hocquenghem.

66 | Pelo CU
a construção social do sexo é fundamental para entender as
condições culturais e sociais disso que chamamos sexo32.
Mas o que queremos assinalar aqui é que, nas genealogias
sobre o sexo e o gênero, não há nenhuma referência à impor-
tância do anal, à sua função reguladora sobre o normal e o
patológico, nem sobre sua relação chave com a masculinida-
de e a feminilidade. Os discursos em torno do sexo anal con-
figuram importantes valores e determinam práticas muito
concretas: desde queimar seus praticantes na fogueira (como
vimos no capítulo anterior), até enforcá-los ou fuzilá-los
(na atualidade, em oito países, a prática do sexo anal entre
homens é condenada à pena de morte: Afeganistão, Arábia
Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã, Mauritânia, Nigéria,
Sudão e Iêmen; em alguns estados dos EUA, o sexo anal con-
sentido de mútuo acordo entre adultos é um delito). Oitenta
e cinco países perseguem a homossexualidade. A condenam
com prisão, flagelação, internamento psiquiátrico ou campos
de trabalho. E, em todos esses casos, o detonante, o indicador,
a prova física do delito, é a prática do sexo anal. Não estamos
falando somente de agressões verbais ou discriminatórias,
estamos falando do assassinato de milhões de pessoas no de-
correr da história, e no momento atual.
Muitos povos não sabiam que havia uma relação direta
entre o coito e a reprodução. Do mesmo modo, o cu, o ânus,
foi algo sexual em muitos momentos, mas a priori é uma se-
xualidade que não é de “homens” nem de “mulheres”, não é
masculina nem feminina, não é reprodutiva, não é genital.
De fato, nem sequer necessita de um pênis; as pessoas se pe-
netram com dildos, mãos, dedos, pés, objetos, línguas. Se o

32
Thomas Laqueur, La Construcción del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta
Freud.

67 | Pelo CU
cu provoca emoções eróticas, sexuais e de prazer sem ser re-
conhecido como órgão sexual, então, o que é a sexualidade?
Até onde chega, como defini-la, como capturá-la, como re-
cortá-la, conceituá-la? O que é exatamente o genital? O sexo
anal desmantela essas perguntas. Inclusive, se chamamos sexo
anal... onde está aqui o sexo? Em que parte exatamente?
Em Marquês de Sade encontramos um dos poucos elo-
gios que existem na história do pensamento e da literatura
sobre o sexo anal. Seu livro A Filosofia na alcova é um curioso
texto onde se misturam numerosas cenas de sexo anal com
reflexões sobre o desejo, a sexualidade, as relações humanas
e a política. Nesta obra, Sade chega inclusive a questionar o
modelo clássico da copulação pênis-vagina, e vai dizer que
o lugar natural do pênis para a penetração é o ânus. Um dos
protagonistas, Dolmancé, afirma o seguinte:

A natureza, meu caro cavaleiro, se perscrutares com cuidado suas


leis, jamais indicou outro à nossa homenagem que não fosse o
olho do traseiro; ela permite o resto, mas ordena este. Ah, por
Deus! Se não tivesse a intenção de que fodêssemos cus, teria ajus-
tado tão proporcionalmente seu orifício aos nossos membros?
Seu orifício não é redondo como eles? (SADE, 2003, p. 93)33.

Sade, também, vai insistir que, dentro do ato de sodomia,


o passivo é quem desfruta de um maior prazer sexual. Talvez,
pela primeira vez na história da literatura, encontramos uma
valorização positiva do lugar receptor na penetração anal.
Sade vai desenvolver no seu livro diversos argumentos onde
faz uma leitura política do sexo anal: considera que é uma

33
Marques de Sade, La filosofia en el tocador, p. 99. [ed. bras.: Marques de Sade. A
filosofia na Alcova. Trad. Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 2003.]

68 | Pelo CU
prática que libera a mulher da pesada carga da procriação,
dado que essa prática não é reprodutiva.
Outro caso bem diferente de referência ao sexo anal en-
contramos em seu uso como forma de chegar virgem ao ma-
trimônio. Em alguns países, o sexo anal entre homem e mu-
lher é denominado sexo à irlandesa porque, ao que parece,
era uma prática habitual para evitar a perda da virgindade.
O mesmo se diz dos ciganos embora, na realidade, pode ser
que se trate mais de um rumor racista do que de algo com-
provado. Em todo caso, o que nos interessa dessas expressões
é o reconhecimento do sexo anal como uma forma de des-
locamento do sexo vaginal a partir da supervalorização da
virgindade que realizou historicamente a Igreja Católica. De
fato, parece que a Igreja sempre quis tapar todos os buracos
porque foi a maior repressora da sodomia durante séculos.
Inclusive hoje em dia seu ensinamento cotidiano contra os
gays, lésbicas e transexuais, nos recorda esse triste passado.
Em 30 de junho de 2005, o grupo ultradireitista Foro de
la Familia, com o apoio do PP e da Igreja Católica, convo-
cou uma manifestação em Madri contra o direito ao matri-
mônio para homossexuais. A manifestação não passou para
a história por causa da presença de numerosos bispos (que
jamais haviam participado de nenhum de tipo de manifesta-
ção), mas por uma declaração de uma senhora que assistia à
manifestação e que foi entrevistada pela COPE. Suas palavras
foram transmitidas ao vivo pela COPE, e depois, visto seu hi-
lariante conteúdo, difundiram-se em numerosas rádios e em
fóruns da internet até se converter em uma joia da história
da reflexão sobre o sexo anal. Este é o conteúdo da famosa
entrevista:

69 | Pelo CU
REPÓRTER: Uma mãe de família se aproximou com alguns de
seus filhos. Aqui temos suas duas crianças ao lado. Margarita,
boa tarde.
MARGARITA: Boa tarde.
REPÓRTER: Feliz de estar aqui apoiando a manifestação...
MARGARITA: Igualmente; olha, sim, estou feliz porque sou
mãe e esposa, e tenho oito filhos. E penso que essa lei me agri-
de pessoalmente como mãe, porque se uma mulher não se sen-
te protegida pelas leis civis e pelo seu marido, dificilmente vai
querer ter filhos. E quero falar outra coisa. Estudei neurociência
quando fazia psicologia, então ali nos falavam de que quando
os animais têm lesionada uma glândula que se chama amídalas,
começam a apresentar comportamentos tais como os dos ho-
mossexuais: copular pelo ânus, onde o ânus ao receber esses....
esses espermas não podem nunca gerar, porque estão com cocô.
Então eu não creio que isso seja interessante para sociedade em
nenhum aspecto...34

Contra a crença comum de que o ânus ou o reto ou o intes-


tino não pode ser fecundado, nos inteiramos, graças a Marga-
rita, de que na realidade são as “fezes” que impedem que um
jovem fique grávido. Por causa de Margarita e da COPE, po-
demos recordar uma das associações que mais se utiliza para
desprestigiar o sexo anal: sua possível proximidade com as
fezes. À parte impedir a fecundação masculina (Margarita di-
xit), as fezes são utilizadas frequentemente como argumento
contra o uso prazeroso do cu. Na realidade, do mesmo modo
que alguém pode lavar a vagina ou o pênis antes de transar, o
cu também se limpa. O fato de que homens e mulheres mijem

34
Para escutar digite no youtube as palavras “cope manifestación homosexuales”;
https://www.youtube.com/watch?v=cBqQUCae2cE; a entrevista é impagável.

70 | Pelo CU
pela mesma zona dos órgãos genitais não faz com que recha-
cemos o sexo como algo asqueroso ou anti-higiênico.
Mas a direita de sempre não é o único que tem proble-
mas com o anal. As diferentes esquerdas tampouco escapam
ao pânico anal, e em muitas de suas manifestações é habitual
escutar todo tipo de mensagens e iconografias onde a pene-
tração passiva é sinônimo do pior, da humilhação, do abjeto.
É típica a imagem do trabalhador de quatro com as calças
abaixadas sendo penetrado pelo patrão, e outras muitas pia-
das e cartazes onde o “mau” mete no cu do “bom”. Temos uma
interessante reflexão sobre isso na introdução do livro O eixo
do mal é heterossexual:

Com orações como “com este governo só tomamos no cu” es-


taríamos situando-nos dentro de um grande paradoxo político:
segundo os manifestantes, o governo de Aznar não só institu-
cionalizava o prazer anal como semelhante prazer era central
para a execução de sua política neoliberal.
Enquanto que nós erguíamos nossos cus contra o militarismo
e o capitalismo (“Prazer anal contra o capital”). Foram frases
como “Aznar, filho da puta” que fizeram com que uma associa-
ção de trabalhadoras do sexo reagisse e comparecesse às con-
centrações segurando um cartaz no qual declaravam que Aznar
não era filho delas. Dentre os slogans de manifestações contra
a guerra, víamos duas pessoas fantasiadas de Bush e Aznar, ou
de Bin Laden e Sadam Hussein, Blair – a leitora pode compor
a representação seguindo qualquer tipo de combinação pueril
com esses cinco elementos – simulando que estavam trepan-
do, que um comia o cu do outro, etc. Longe de proclamar uma
mariconização do mundo como ato perfeito para acabar com a
guerra (“Vadias sim, Guerras não!”), não somente reiteravam a
apelação a um slogan homoerotizado (neste caso, a guerra), se-

71 | Pelo CU
guindo os preceitos da heterossexualidade obrigatória, mas que
também qualificavam as práticas homoeróticas como abjetas35.

A tradicional homofobia dos comunistas e dos socialistas


geralmente é corroborada com uma nula abertura ao mundo
anal, quando não com uma verdadeira obsessão pelo escárnio
contra este. Tampouco a retórica da macheza dos movimen-
tos independentes costuma considerar a grande contradição
que existe entre querer um Estado independente e leva consi-
go, por sua vez, o pior de suas instituições e de sua repressão
sexual (por fim terei “minha” polícia, meus tribunais, meu
exército, minha homofobia e meu machismo; mas os cus bas-
cos, catalães, corsos, continuarão tão fechados quanto os cus
espanhóis). Não existe um debate sobre o papel que teria o
feminismo e as políticas contra a homofobia, a lesbofobia e
a transfobia nessa nova sociedade (socialista, comunista, in-
dependente); isso fica sempre para o final da agenda, é “su-
perestrutura”; algo “meramente cultural”, não tão importan-
te quanto o novo Estado, ou como as questões econômicas.
Como explica Judith Butler:

Por que um movimento interessado em criticar e transformar os


modos nos quais a sexualidade é regulada socialmente não pode
ser entendido como central para o funcionamento da economia
política? Na realidade, sustentar que essa crítica e transforma-
ção são uma questão central para o projeto do materialismo
passou a ser a questão decisiva colocada por feministas socia-
listas e pessoas interessadas na confluência do marxismo com a
psicanálise nas décadas de 1970 e 1980, e foi claramente iniciada
por Engels e Marx, quando insistiam que o ‘modo de produção’
tinha que incluir formas de associação social (...) De fato, mui-

35
Grupo de trabalho Queer, El eje del mal es heterosexual, p.18.

72 | Pelo CU
tos dos debates feministas daquele período trataram não só de
caracterizar a família como uma parte do modo de produção,
mas também de demonstrar como a produção mesma do gêne-
ro deveria ser entendida como parte da “produção dos próprios
seres humanos conforme as regras que produzia a família hete-
rossexual normativa”36.

O que estamos afirmando neste livro é precisamente isso,


que o gênero também se produz por meio da regulação do
cu e que, de fato, o acesso ao “humano” também tem rela-
ção com essa questão, na medida em que o sexo anal pode
acarretar nada mais nada menos que a morte em oito países
do mundo, e a prisão em mais de oitenta. Se isso não é um
dispositivo que decide sobre a humanidade das pessoas, que
nos deem outro exemplo melhor.
Quando decidimos que neste livro queremos mostrar o
que se produz ao redor da questão do cu, estamos dizendo
que essas linhas que o controlam, o vigiam, o estigmatizam
ou o promovem, conformam uma política. O cu é um espaço
político. É um lugar onde se articula discursos, práticas, vigi-
lâncias, olhares, explorações, proibições, escárnios, ódios, as-
sassinatos, enfermidades. Chamamos de política precisamen-
te essa rede de intervenções e relações. Porque para entender
as causas e as condições da homofobia, do machismo e da
discriminação em geral temos que entender como se relacio-
na o anal com o sexo, com o gênero, com a masculinidade,
com as relações sociais.
Coloquemos um exemplo muito chamativo: em fevereiro
de 2009, um tribunal popular de Vigo absolveu Jacobo Piñei-
ro de dois delitos de assassinato. O autor, que reconheceu
36
Judith Butler, “El marxismo y lo meramente cultural”, em New Left Review, maio-junho,
2000.

73 | Pelo CU
ter dado 57 punhaladas em dois jovens em uma casa da Rua
Oporto, foi absolvido dos dois delitos de assassinato que re-
queriam as respectivas acusações; o júri considerou que o as-
sassino acabou com a vida das vítimas em “legítima defesa” e
por “medo insuperável” de ser estuprado. Aqui entra em jogo
o fantasma do sexo anal, e a justificativa social deste estranho
“pânico”, um pânico que não se compreende facilmente já que
o mesmo acusado havia aceitado de bom grado ir até a casa
dos jovens depois de conhecê-los em um bar gay.

Nem as provas do julgamento, nem os depoimentos dos peri-


tos da polícia científica, nem a confissão do próprio acusado,
que admitiu ter dado 57 punhaladas em dois jovens com quem
saiu uma noite, foram suficientes para que um jurado popular
condenasse por assassinato Jacobo Piñeiro pelo crime da rua
Oporto. Sua recente absolvição causou assombro em Vigo, onde
o tribunal do júri da sessão 5ª, da audiência provincial deu a
conhecer, na sexta-feira passada, o veredito da defesa dos deli-
tos do assassinato e roubo, condenando o acusado por incêndio.
Um golpe para os familiares das vítimas 37.

Quando falamos do político e do regime heterocentrado,


parece que falamos de algo que já está dado, constituído des-
de sempre de forma estável por um “outro” que é responsável
por nossos males. Acreditamos que seria conveniente inver-
37
El Pais, 29 de fevereiro de 2009. Em setembro de 2010, repetiu-se o julgamento
e Jacobo Piñeiro foi declarado culpado dos dois assassinatos e condenado a 58
anos de prisão. “O júri também considerou por unanimidade que Piñeiro não
agiu nem em legitima defesa, nem afetado por drogas ou pelo álcool, nem sob
um medo insuperável – os meios de defesa que pedia para que o acusado fosse
absolvido. A este respeito, foi lembrado que, segundo o informe forense ─ peça
chave para o veredito de culpabilidade ─, as vítimas não puderam atacá-lo e
estavam indefesas pelas graves feridas que tinham” El Foro de Vigo, 24 de se-
tembro 2010.

74 | Pelo CU
ter essa lógica, e mostrar que se trata de um regime muito
complexo, que se constrói dia a dia; um regime cuja elabo-
ração participamos todos em maior ou menor medida. Que-
remos recordar que todas essas risadinhas contra o passivo,
inclusive dentro do ambiente gay, todas essas piadas de bichas
que dão o cu, todas essas expressões negativas contra o sexo
anal, toda essa perseguição às crianças bichas com a amea-
ça da penetração, tudo isso faz parte desse regime de terror
que chamamos regime heterocentrado, um regime que impõe
sua lei e sua violência, que vai do machismo à misoginia, do
pressuposto de que somos todos heterossexuais, e de que só
existem dois sexos; de que ninguém deve sair dos seus papéis
de gênero; do ódio e da perseguição às sapatões, aos trans e
às bichas; um regime que respira e cresce dia a dia, partindo
dos púlpitos das igrejas e das mesquitas, das escolas, dos tri-
bunais, das famílias, das rádios, das televisões e da imprensa.
Como vimos, a repressão do anal tem um papel chave na
construção da masculinidade contemporânea, e acreditamos
que falta um debate sério e amplo sobre isso. É preciso deixar
bem claro que essa questão faz parte de um entrelaçamen-
to de ódio e de violência. Quando Jacobo Piñeiro dá essas
57 punhaladas em dois jovens gays, temos que desentranhar
o que existe por trás deste medo “insuperável” e sua relação
com o sexo anal. Quando o júri popular lhe absolve, temos
que reconhecer que aqui, no “popular”, no povo, temos muito
bem silenciada esta mensagem milenar contra o sexo anal,
“é compreensível que tivesse medo, imagine, iam penetrá-lo”.
Medo insuperável, homofobia insuperável.
Nosso querido amigo Paco Vidarte publicou um magnífi-
co livro poucos meses antes de morrer. O livro se chama Ética
bicha, e é um texto fundamental para compreender como se

75 | Pelo CU
articulam hoje em dia as diversas lutas sociais e políticas em
relação às minorias sexuais.

Uma ética bicha deveria ser decididamente anal: uma Analética


[...]. Não é o mesmo o que o poder entende pelo cu de uma
bicha, e o que uma bicha entende o que é o seu cu. Para o po-
der, somos cus fodidos, cus sem eu, sem possibilidade, sem ne-
cessidade nem aptidão para levar iniciativas políticas alguma.
Cu, para eles, para lhes dar. Cus que reclamam serviços públicos
para não cagarem nas calçadas: está bem, vamos lhe dar, não é
legal que nos encham tudo de merda. Cus despolitizados. Pois
bem, o meu cu é coletivizado, o que não é o mesmo que ser
meu cu. Tenho um cu solidário, o que não é igual a ter um cu
que busca prazer egoistamente. Tenho um cu entregue, que não
é o mesmo que um cu vampiro. Tenho um cu comprometido,
incapaz de trepar com rabos anônimos, direitistas, debilitados,
imigrantes: tanto faz. Ou, ao menos, essa é a ética a que aspira,
sua analética. Já sabemos ao que nos conduziu a ética racional,
a ética com o cérebro; uma puta ética feita com o cu nos resul-
ta menos prejudicial, mais imediata, mais franca, mais carnal,
mais vira-lata, mais animal, mais apegada às necessidades bási-
cas das pessoas que andam com o cu ao ar. [...]. Me fascina pen-
sar em um movimento LGTBQ que colocasse em prática uma
política do buraco negro: absorver tudo, apoderar-se de tudo,
chupar tudo sem dar nada em troca. Sobretudo, não dar nada de
nós mesmas, não deixar que escape nada para fora, nem sequer
uma parte mínima dos nossos eflúvios essenciais. Não dar nada
ao sistema e lhes roubar tudo o que cair nas proximidades do
nosso orifício negro 38.

Como se pode ver, esse texto de Paco foi o principal ins-


pirador do nosso livro, e por isso dedicamos o livro a ele. En-
38
Paco Vidarte, Ética marica, pp. 88-89.

76 | Pelo CU
tre outras tantas questões, Paco desenvolve uma inovadora
proposta política e ética do anal. Mas não de uma analidade
passiva nem envergonhada, mas uma ativa, vinculada a uma
relação de negação frente ao poder. Não lhe dar nada, e ab-
sorver tudo. Paco abre a possibilidade de uma nova política
bicha, sapata ou trans onde não existe intercâmbio, nem diá-
logo, nem negociação. Na verdade, o que está propondo é um
giro histórico, a possibilidade de uma analidade ativa, de um
cu ativo, de um cu que seleciona, escolhe, decide, capaz de
criar sua própria ética, não uma ética universal e que, além
disso, não facilita ao poder nenhum saber.
A ciência, a antropologia, a medicina, a psicanálise, a
sociologia, a imprensa, todos querem saber dxs bichas, dxs
sapatões, dxs trans, das minorias sexuais. Pedem-nos que fa-
lemos; que confessemos; que negociemos; que nos explique-
mos; que digamos como somos e o que queremos. A ética
anal de Paco vai negar tudo isso. Acabou-se o diálogo e o in-
forme. Porque as condições deste saber vêm manipuladas de
antemão, porque as condições do diálogo são manipuláveis,
partem de um desequilíbrio de poder, de quem tem o poder
para escrever sobre as nossas vidas, coisificar-nos, classificar-
-nos, documentar-nos, converter-nos em objeto. Esse contex-
to homofóbico e machista já está prescrito de antemão, por
isso não temos que cair no jogo: não responder, não pedir
nada, não dizer nada. Somente ser um buraco negro:

Logo, dando voltas ao buraco negro, me veio à mente a neces-


sidade de personalizar essa política, fazê-la nossa, dar-lhe umas
características indiscutíveis de identidade. E do buraco negro
passei ao olho do cu. Novamente o cu me oferecia à reflexão
como portador de valores insondáveis, inexplorados, a maioria
ainda por descobrir, estando como estão, ali na frente, ou atrás,

77 | Pelo CU
absolutamente expostos e acessíveis. O eterno erro de pensar
com o cérebro e não pensar com o cu. De fazer políticas cere-
brais e não políticas anais. Outra vez a analética cruzava o meu
caminho. Fazer do cu o nosso instrumento político, a consigna
fundamental de outra militância LGTBQ, desenhar uma políti-
ca anal muito básica: tudo para dentro, receber tudo, deixar que
tudo penetre e para fora somente soltar merda e peidos, esta é
nossa contribuição escatológica ao sistema. Haverá quem veja
nisso uma típica política de uma passividade fundamentalista.
Não me parece mal. Mas, opor esta política à política falocra-
ta de sempre não creio que seja uma coisa ruim. O esfíncter é
perfeitamente capaz de se converter em sujeito político, se fe-
char e abrir-se, se dilatar ou contrair-se; como dizem os heteros
inconscientes necessitados de uma penetração: que não passe
nem o bigode de um camarão. O cu sempre foi objeto de viola-
ção, de vexação, de estigmatização. De desejo. Uma passividade
mais passiva que toda passividade. Mero receptor. Órgão pene-
trável, traseiro, vulnerável, pouco vigiado, cuja única atividade
política, sua única iniciativa própria reconhecida era colocar-se
ante a parede como estratégia defensiva. Sempre houve uma po-
lítica anal. Não estou a inventá-la agora. O que estou inventando
é uma política anal diferente. Que não vai na defensiva, que não
seja meramente receptiva, que não seja vergonhosa: meta-me
tudo o que eu quero que entre pelo meu cu e depois fique com
meus dejetos e cheire meus peidos. Sinceramente, eu não vejo
outra maneira de me relacionar com o sistema. E me dei conta
de que há muito tempo faço isso sem estar consciente disso. E
que há muita gente que anda nas proximidades39.

No final dos anos 80, o poeta e ensaísta bicha argentino


Néstor Perlongher também havia assinalado esta relação en-

39
Paco Vidarte, Ética marica, pp. 88-89.

78 | Pelo CU
tre o poder e a analidade. No seu assustador artigo: Matam
uma bicha, lemos o seguinte:

Para dizer de forma rápida, estas forças convergem no ânus;


todo um problema de analidade. A privatização do ânus se diria
seguindo O anti-Édipo, é um passo essencial para instaurar o
poder da cabeça (logo-ego-cêntrico) sobre o corpo: “só o espí-
rito é capaz de cagar”. Com o bloqueio e a permanente obsessão
da limpeza (toque de algodão) do esfíncter, a flatulência orgâni-
ca, já etérea, sublima-se. Se uma sociedade masculina é – como
queria o Freud de Psicologia das Massas – libidinalmente ho-
mossexual, a contenção do fluxo (barro azul) que ameaça rom-
per as máscaras sociais dependerá, em boa parte, do vigor dos
pedaços. Ir à merda ou esvair-se em merda parece o máximo
perigo, o escândalo sem volta (não chegar a tempo até a privada
desencadeia, no El Fiord de Osvaldo Lamborghini, a violência
do Louco Autoritário; Bataille, por sua vez, via na incontinên-
cia das tripas o retorno orgânico da animalidade). Controlar o
esfíncter marca, então, algo como um “ponto de subjetivação”:
centralidade do ânus na construção do sujeitado continente40.

O ânus é uma grande metáfora de controle dos sistemas


sociais. Podemos definir um sistema como uma estrutura to-
pológica (o espacial) com um dispositivo termodinâmico (a
energia que circula nesse espaço). O político é uma regulação
desses espaços e dos fluxos de energia. Todo sistema social é
um sistema aberto, necessita de intercâmbios de energia, in-
formação, população, força, matéria. Tente fechar uma cidade
e ela morrerá. Tente fechar o cu de uma pessoa e ela morrerá.
Esse controle chega até nossos corpos, obriga-nos a ajus-
tarmos alguns papéis de gêneros e sexuais, como atuar, trepar,

40
Texto complete em http://www.literatura.org/Perlongher/npmatan.html

79 | Pelo CU
trabalhar, vestir, viver. Inclusive chega a regular nossos esfínc-
teres: só deve ser um espaço de saída, nunca de entrada. Ao
menos como valor público. Como já colocamos, na realidade,
existe uma variedade enorme de penetrações anais. O pornô,
por exemplo, é uma máquina de produção de imagens e uma
tecnologia de gênero; no cinema pornô, tanto hetero como gay,
aparecem penetrações anais continuamente, é quase um requi-
sito indispensável. Existe nisso uma esquizofrenia que explica
o mal-estar do anal: todo mundo fantasia com ele, deseja-o, ex-
cita-lhe, olha-o, pratica-o em segredo; o pornô o promove, va-
loriza, explora, coloca-o no centro do seu discurso. Mas diante
do público, e dos valores sociais, tomar no cu é o pior. Como se
explica essa dupla moral? Trata-se de um enorme armário do
qual ninguém fala, o armário do sexo anal.
Um exemplo curioso da relação entre o sexual e o anal se
dá no idioma francês. Em francês, a palavra cul, cu, é sinôni-
mo de sexo. Um film de cul é um filme pornô (não pornô gay,
mas de qualquer tipo). Une histoire de cul (uma história de
cu) é ter transado, é ter feito sexo com alguém, só que não
analmente, mas em geral. Neste caso, a identificação de cu
com o sexual, inclusive com o coito anal, é total, faz parte
da linguagem cotidiana. Isso não significa que a penetração
anal seja mais considerada na França que em outros países, a
atitude é a mesma41.
O escritor bicha chileno Pedro Lemebel também colocou
em alguns de seus textos essa relação entre a masculinidade e
a negação do cu:

41
Bob O’Neill no seu livro Variations scatologiques. Pour une poétique des entrailles,
dedica uma parte ao sexo anal onde cita mais de cem expressões que existem no
francês em torno da analidade e da sodomia (pp. 93-98). Ver também Villon, F.,
Ballades em argot homosexuel, e Nelson, I. La Sottie sans souci, essai d’interpré-
tation homosexuelle.

80 | Pelo CU
O futebol é outra homossexualidade velada
Como o boxe, a política e o vinho
Minha hombridade foi morder minhas chacotas
Comer raiva para não matar todo mundo
Minha hombridade é aceitar-me diferente
Não ofereço a outra face
Ofereço o cu companheiro
E esta é minha vingança
Minha hombridade espera paciente
Que os machos se façam velhos
Porque a esta altura do jogo
A esquerda rasga seu cu frouxo
No parlamento

Uma das melhores leituras das políticas ao redor do ânus


está no livro de Beatriz Preciado, Testo Yonqui [Testo Junkie:
Sexo, Drogas e Biopolítica na Era Farmacopornográfica].
Preciado denomina como sexopolítica esse conjunto de prá-
ticas sobre o sexo, a sexualidade e a raça, que vão regular a
construção do corpo desde o século XIX até a atualidade.
Esse sistema de construção biopolítica vai localizar o “sexo”
como centro da subjetividade, mas para isso terá que diferen-
ciar órgãos e designar-lhes funções, funções produtoras da
masculinidade e da feminilidade, do normal e do patológico.
Preciado expõe as ideias de Deleuze e Guattari n’O anti-Édi-
po, e de Guy Hocquenghem n’O desejo homossexual, que vai
localizar o ânus como o primeiro órgão que é excluído do
campo social, explicando como essa operação de exclusão vai
servir para construir o corpo heterossexual masculino:

81 | Pelo CU
Uma sexualidade implica uma territorialização precisa da boca,
da vagina, da mão, do pênis, do ânus, da pele. Deste modo, o
pensamento straight [...] garante a relação estrutural entre a pro-
dução da identidade de gênero e a produção de certos órgãos
(em detrimento de outros) como órgãos sexuais e reprodutivos.
Boa parte desse trabalho disciplinador consiste em retirar o
ânus dos circuitos de produção de prazer. Deleuze e Guattari:
o ânus é o primeiro órgão privatizado, colocado fora do cam-
po social; aquele que serviu como modelo de toda privatização
posterior, ao mesmo tempo que o dinheiro expressava o novo
estado de abstração de fluxos. O ânus, como centro de produção
de prazer (...) não tem gênero, não é nem masculino nem femi-
nino, produz um curto-circuito na divisão sexual, é um centro
de passividade primordial, lugar abjeto por excelência, próximo
do detrito e da merda, buraco negro universal por onde se co-
lam os gêneros, os sexos, as identidades, o capital. Ocidente de-
senha um tubo com dois orifícios, uma boca emissora de signos
públicos e um ânus impenetrável, e enrola em torno disso uma
subjetividade masculina e heterossexual que adquire status de
corpo social privilegiado”42.

Para Preciado, a subjetividade masculina hetero se baseia


nesse corpo onde a boca pode se abrir continuamente no es-
paço público e onde o ânus é fechado completamente e priva-
tizado ao máximo. Os homens podem falar em público, mas
não devem dar o cu. Pelo contrário, o processo de produção
da subjetividade feminina heterossexual exigirá uma privati-
zação da boca (privatização dos signos emitidos) e uma aber-
tura pública do ânus e da vagina, tecnicamente regulada. As
mulheres têm que se calar e são penetráveis.

42
Preciado, B., Testo Yonqui, pp. 59-60.

82 | Pelo CU
Regressando a essa relação entre a masculinidade e a im-
penetrabilidade, é interessante assinalar que a masculinidade
não é algo privativo dos homens, ou próprio dos homens. As
mulheres também têm contribuído para construir isso que
chamamos masculinidade, como demonstrou Judith Halbers-
tam em seu magnífico ensaio Masculinidade feminina. O livro
é uma viagem fascinante pelas diferentes formas de mascu-
linidade que as mulheres têm exercido ao longo da história,
desde as mulheres que passavam por homens nos séculos
XVIII e XIX, passando pelas maria-homem, as mulheres sol-
dado, as lésbicas butch, ou os drag kings. Queremos nos deter
em uma das figuras que aparece no livro de Halberstam, por-
que tem uma relação especial com a penetração: a stone but-
ch. No capítulo: Masculinidade lésbica: as Stone butch também
se deprimem, Halberstam nos coloca o seguinte:

Temos também as butches “de granito”, stone butches que não se


enternecem nunca e que são impenetráveis. A stone butch é um
lugar muito apropriado para se começar a fazer uma genealogia
da diversidade butch, porque é uma categoria muito enigmá-
tica: como veremos, a parte “stone” de stone butch se refere a
uma espécie de impenetrabilidade, e isto coloca alguns aspectos
curiosos de “não ação” sobre a identidade sexual butch. A stone
butch tem a duvidosa diferença de ser provavelmente a única
identidade sexual que se define quase por completo em função
de práticas que não faz. Poderíamos perguntar se existe algu-
ma outra identidade que se define pelo que a pessoa não faz.
O que significa definir uma identidade sexual e um conjunto
de práticas sexuais que configuram esta identidade dentro de
um registro negativo? Quais são as implicações de uma ação ne-
gativa para teorizar as subjetividades sexuais? Além disso, po-
deríamos talvez imaginar que se defina uma identidade sexual

83 | Pelo CU
masculina em termos de “não ação”? Muitos homens não prati-
cam a penetração sexual como parte de seus hábitos sexuais e,
não obstante, esta omissão não provoca comentários e é claro
que nunca se diagnosticou esta conduta como um complexo de
disfunção sexual. Quem sabe tenhamos que recorrer ao termo
“homem stone” quando o medo da penetração vem combinado
com a ilusória sensação de superioridade inata e de violência de
diversas formas, incluindo a sexual. “O homem stone” poderia
se tornar uma ferramenta de diagnóstico para identificar as pa-
tologias sexuais dos homens adultos43”.

A irônica reflexão de Halberstam sobre o homem stone


explica muito bem a dupla moral que se aplica sobre a pe-
netração que se dá no homem ou na mulher. Enquanto no
homem, “ser intocável” é poderoso e positivo, nas mulheres
isso foi sempre relacionado com a disfunção, a melancolia e
a desgraça44. Esta “não ação”, não ser penetrado, não é consi-
derada uma patologia nos homens como no caso das mulhe-
res; pelo contrário, no caso dos homens, a patologia consiste
em ser penetrado. Por outro lado, o interessante da análise de
Halberstam sobre a stone butch é que ela vai exercer a mascu-
linidade por meio de uma renúncia à penetração; é por esse
gesto que ela vai ser considerada masculina, mas, como colo-
ca Halberstam, ela vai ser considerada uma doente, alguém
que está condenada ao fracasso e à tristeza. Mais uma vez,
o critério de gênero vai filtrar a visão social da masculinida-
de e do penetrável: no caso da mulher, uma masculinidade
“fracassada” ou, em todo o caso, incompreendida, já que se
supõe que seu destino, como mulher, é a penetração. O rígido

43
Halberstam, J., Masculinidad femenina, pp. 148-149.
44
Halberstam, J., p. 149.

84 | Pelo CU
sistema se aplica de novo: o impenetrável é somente coisa de
bio-homens.
Esta posição da stone butch nos coloca um interessante
problema lógico, o mesmo que já teve a conexão neuronal de
Luis Aragonés, especificamente, o problema que se deu em
seu neurônio 6: se sou um homem, então meu cu é impenetrá-
vel (Ou é ao contrário, como era isso?). Existe uma lógica cir-
cular entre a masculinidade e a impenetrabilidade. Se é mas-
culino e por isso se é impenetrável, ou se é impenetrável e por
isso se é masculino? Como já assinalamos, na realidade não
existe uma essência natural da masculinidade; nem sequer o
discurso médico sobre os hormônios “masculinos”, a testoste-
rona, é algo bem fundamentado. Como explica Anne Fausto-
-Sterling, os hormônios que agora chamamos com demasiada
rapidez de “femininos” e “masculinos”, são necessários para o
desenvolvimento de muitos órgãos vitais e, além disso, tanto
os homens quanto as mulheres necessitam de ambos os ti-
pos de hormônios para o desenvolvimento corporal. Foi um
preconceito dos pesquisadores que fez com que se definissem
certos hormônios (progesterona, estrogênio, testosterona, na
realidade regulares ontogênicos de amplo espectro) como
“sexuais”. Fausto-Sterling explica, em seu livro, de que modo
a pesquisa científica sobre a biologia hormonal esteve sempre
estreitamente ligada à política de gênero.

O cérebro, os pulmões, os ossos, os vasos sanguíneos, o intesti-


no, o fígado, todos requerem estrogênios para seu normal de-
senvolvimento. As funções e os efeitos do estrogênio e da testos-
terona são conhecidos há décadas45.

45
Fausto-Sterling, A., Cuerpos sexuados, p. 180.

85 | Pelo CU
Então, se a masculinidade não está nos genitais (existem
biomulheres masculinas, e existem trans F2M que são ho-
mens sem genitais masculinos), nem nos hormônios... onde
está? Ora, no cu, ou, mais precisamente, em sua impenetrabi-
lidade. Claro que isso é assim dentro do regime heterocentra-
do e machista. Como veremos no capítulo sobre o fist, certas
comunidades de couro e sadomasoquistas gays e lésbicas têm
subvertido esse regime, e têm desenvolvido uma apropriação
da masculinidade precisamente pelo lugar mais inesperado,
por uma valorização do papel passivo na penetração.
Santiago Sierra apresentou, no começo de 2009, a obra Os
Penetrados. É um vídeo de 45 minutos em 8 atos, onde pode-
-se ver todas as formas possíveis de sexo anal entre homens
e mulheres, de raça branca e negra. A obra pretende ser uma
reflexão sobre o pânico associado à imigração, comparando-
-o com o pânico ao sexo anal, o pânico de dar o cu. A expo-
sição abriu uma polêmica sobre a possível provocação que
supunha semelhante vídeo, mas o mais interessante para nós
está em um detalhe de que se falou pouco: o casting que Sierra
preparou levantou muito mais gente do que era necessário,
um indicador de que um mero ato de penetração anal não
assusta tanto, não produz tanto rechaço, pelo contrário. As
faces foram pixeladas para evitar a identificação das pessoas
que atuavam, ou seja, nos encontramos com um novo armá-
rio anal, e uma nova mostra de que talvez a base do pornô es-
teja no rosto, não nos genitais. Tampouco se pode considerar
esse vídeo como uma provocação, dado que, há muito tempo,
o sistema assimila quase todas as variantes da sexualidade

86 | Pelo CU
(talvez o canibalismo e a pederastia sejam os únicos atos que
ainda escandalizam o sistema)46.

46
Ver imagens do vídeo em: http://www.santiago-sierra.com/200807_1024.php. Ou-
tros artistas que exploraram o tema do sexo anal a partir da pintura, da perfor-
mance ou da fotografia são Juan Hidalgo, Ron Athey, Pierre Molinier ou Robert
Mapplethorpe. http://www.ronathey.com/

87 | Pelo CU
Ativo, passivo, hetero, homo, versátil...
A conversão em bicha pelo cu.

Eu não ofereço a outra face


Ofereço o cu companheiro.

Pedro Lemebel

Já mencionamos que um dos maiores temores de muitos


heterossexuais masculinos é que possam “virar” bicha pelo
fato de serem penetrados, mesmo por suas mulheres47. Exis-
te, de um lado, um pânico em ser homossexual e, ao mesmo
tempo, uma repressão do desejo homossexual que estrutu-
ra toda nossa sociedade ocidental. O escritor e militante gay
Guy Hocquenghem, em seu livro pioneiro de 1972, O desejo
homossexual, foi um dos primeiros autores gays a colocar so-

47
Neste capitulo e em todo o livro há ausências significativas: fala-se pouco do
sexo anal entre lésbicas e entre pessoas transexuais. Os motivos dessa omissão
são dois: primeiro, os autores, dois bio-homens bichas, e consideramos que
corresponde a esta comunidade fazer sua própria genealogia e interpretação
do que significa o sexo anal e das suas práticas; não queremos nos apropriar
nem sermos porta-vozes ou intérpretes do que não nos corresponde; segundo,
acreditamos que a obsessão e a perseguição do sexo anal aconteceu, sobretudo,
com relação ao sexo anal entre homens, e, sobretudo, na posição do homem
penetrado; dispomos de muito mais informações sobre os atos de sodomia entre
homens e, por isso, podemos fazer uma análise mais fundamentada do que sig-
nifica historicamente o anal para o regime heterocentrado e para a construção
social da masculinidade. (Sobre o sexo anal para mulheres, ver os livros e os
filmes de Tristán Toarmino: http://www.puckerup.com?/ e ver na bibliografia.)

89 | Pelo CU
bre a mesa o desejo homossexual como algo cuja repressão
cria, precisamente, a paranoia anti-homossexual. O medo da
própria homossexualidade leva o homem a um temor para-
noico de vê-la aparecer ao seu redor.
Hocquenghem se vale dos textos de Deleuze e Guattari
n’O Anti-Édipo para fazer uma dura crítica da psicanálise e da
sociedade da sua época com uma leitura subversiva da opo-
sição falo-ânus. Para ele, a sociedade atual é fálica, o falo é o
mais valorizado; é o que organiza o poder e os espaços so-
ciais. Em oposição ao falo, o ânus se privatiza, é algo que deve
permanecer oculto, no terreno “do privado”:

Para que haja transcendência do falo (organização da sociedade


em torno do grande significante), é necessário que o ânus seja
privatizado em pessoas individuais e edipianizadas 48.

Para a psicanálise, as pulsões anais do menino e da menina


devem ser sublimadas para chegar à genitalidade. Por isso, o
anal fica renegado ao silêncio, à solidão. Para Hocquenghem,
o desejo homossexual questiona essa necessidade de subli-
mação do anal, dado que manifesta um uso desejoso do ânus.
Isso desafia a primazia social do falo, para a qual o desejo e o
prazer anal são condenados.
Em seu epílogo do livro de Hocquenghem, Terror Anal49,
Beatriz Preciado menciona uma reflexão importante do pró-
prio Hocquenghem, que denunciará em 1984:

Como os movimentos revolucionários, em busca de visibilida-


de, se viram absorvidos por seu próprio processo de espetacu-
48
Guy Hocquenghem, El deseo homosexual, p. 72.
49
Preciado, B., Terror anal, epílogo a Guy Hocquenghem, O desejo homossexual,
p. 163.

90 | Pelo CU
larização. Porque não basta ter tido o ânus aberto. É necessário
seguir fazendo dele um campo relacional. Como fazer política
sem renunciar ao ânus? (...). A antiga pergunta: como a revo-
lução anal? Se metamorfoseia em outra neste momento: como
evitar o marketing anal?

Essa reflexão é importante para ficarmos alertas contra


o possível uso dessas políticas para promoções pessoais ba-
seadas em espetáculos midiáticos interesseiros. Por exemplo,
na última década, a eclosão do movimento queer na Espanha
derivou em ocasiões voltadas precisamente a isso que men-
ciona Preciado: uma reapropriação do ativismo para um uso
midiático e personalista, para a venda de projetos culturais
“queer” para as instituições, museus, universidades e meios
de comunicação; quer dizer, converteu-se em uma espeta-
cularização banalizada para o consumo de heteros curiosos
ou entediados, para épater le bourgeois, e para alimentar a
máquina estatal da cultura, que precisa de novos brinquedos
com os quais se divertir e com o quais ganham um ar de pro-
gressismo e abertura. Queer is business!50
Na contracapa do livro de Hocquenghem lemos um pará-
grafo que, no nosso entendimento, deixa-se levar exatamente
por esse excesso de promessas revolucionárias que tão bem
funcionam com o mundo do marketing.

O ânus, esse obscuro objeto do desejo, esse injuriado vórtice se-


creto que reside em todos nós, o inominável, ameaça engolir os
fundamentos da sociedade, regurgitá-los e conduzir a cidadania
a uma ruína moral absoluta da qual ninguém poderá escapar.

50
Ibid, p. 163.

91 | Pelo CU
Esse é o desafio anal: um golpe de Estado desenvolvido, encu-
bado, nas mesmíssimas entranhas da hetero normatividade. 51

Bom, nós somos um pouco mais modestos. Não acredi-


tamos que dar o cu vá subverter a ordem social, nem que vai
corromper a moral de toda a humanidade.
Como assinalamos, ainda que a prática anal seja algo in-
dependente do gênero e das pessoas, sua associação com a
homossexualidade é muito arraigada na atualidade. Essa as-
sociação tão forte fez parte da origem da construção do cor-
po homossexual. Desde meados do século XIX, vimos que o
olhar médico se dedica a observar minuciosamente os pênis
e os ânus dos sodomitas. Supõe-se que há uma série de carac-
terísticas físicas próprias dos sodomitas. Como expõe Ricar-
do Llamas em seu artigo A reconstrução do corpo homosse-
xual em tempos de AIDS (no livro Construyendo sidentidades
[Construindo identidaids]):

O descobrimento do novo “corpo homossexual” parecia, em


princípio, uma simples questão de observação sagaz. O mero
reconhecimento de uma anatomia permitiria “descobrir (des-
velar) o “homossexual”. Assim, o já mencionado médico francês
Ambroise Tardieu escrevia em 1857 (vinte anos antes que Lom-
broso “reconhecesse” o delinquente) que os sodomitas podiam
ser identificados, já que apresentavam uma dilatação do esfínc-
ter, um ânus em forma de funil, um pênis pontiagudo e de redu-
zida dimensão, os lábios grossos e deformados, a boca torcida e

51
Sobre esta questão de viver o queer e sua transformação atual em objeto de
consumo, ver o texto de Paco Vidarte, el banquete uniqueersitario: disquisiones
sobre el s(ab)er queer, em Cordoba D., Vidarte P., Sáez J. Teoria queer, pp. 77-110.

92 | Pelo CU
os dentes bem curtos. Tais eram os signos que demonstravam a
prática de penetração anal e da felação 52.

Mas a exploração do corpo não vai se deter aqui, ela vai


chegar a determinar características do “ativo”, diferenciadas
das que são próprias do “passivo”. Prosseguindo com outra
passagem do texto de Llamas:

Outro especialista em medicina legal, o alemão Friedrich, ca-


racterizava o sujeito perverso, também em meados do século
XIX, em função de um duplo critério referente à prática sexual.
Assim, o “ativo” tem o pênis “delgado e pequeno” e “persegue
garotos jovens com um olhar lascivo”, “o passivo” apresenta uma
coluna vertebral para cima, mais ou menos torcida, enquanto
que “a cabeça pende para frente”. Os traços faciais afundados, o
olhar apagado e sem vida, os ossos da face ressaltados e os lábios
que parecem apenas poder cobrir os dentes53.

Mas, esse tipo de análise, que hoje pode parecer louca e


ridícula, quando não abertamente sinistra, não são coisas de
um passado distante. Em 1981, o médico penitenciário es-
panhol Alberto García Valdés publica um livro na Espanha,
História e presente da homossexualidade, onde faz um estudo
geral da homossexualidade a partir de uma amostra de 205
presos. O autor explica com detalhes sua metodologia:

Uma vez obtida uma boa relação com o sujeito explorado, passa-
va-se ao estudo da morfologia somática, anotava-se o tipo cons-
titucional, passava-se e media, observando o desenvolvimento
dos caracteres sexuais primários e secundários. Em alguns ca-

52
Llamas, R., Construyendo sidentidades, pp. 162-163.
53
Ibid, p. 163.

93 | Pelo CU
sos se realizavam fotografias quando o sujeito era transexual, ou
apresentava alguma característica de interesse54.

E, falando de prisioneiros, é interessante recordar que na


Espanha franquista havia uma prisão para onde levavam as
bichas “passivas” e outra para as “ativas”. Ainda nos pergun-
tamos como detectavam essas identidades tão definidas nas
vítimas dessa brutal repressão homofóbica.

Segundo os cálculos da associação de ex-presos sociais, cerca


de 4.000 pessoas foram presas por homossexualidade durante
o franquismo. A cifra é somente uma aproximação, porque os
dados estão divididos por instituições penitenciárias e policiais
e, em muitos casos, o condenado alegava delito de prostituição
no lugar de homossexualidade.
Antônio Ruiz foi denunciado por uma vizinha monja em 1976.
Franco já estava morto e ele tinha 17 anos. Às seis da manhã
quatro secretos foram buscá-lo em sua casa. Passou três meses
na penitenciária de Badajoz, uma das prisões que o regime ha-
via preparado para “curar” os gays. À Badajoz iam os chamados
“passivos” e, à prisão de Huelva, os “ativos”. As lésbicas eram
enviadas ao manicômio. Era a época do eletrochoque e das
terapias aversivas, que consistiam em colocar, em sequência,
imagens de homens e mulheres, dando descargas elétricas no
homossexual quando apareciam homens, relata Ruiz55.

54
Alberto García Valdés, Historia y presente de la homosexualidad, p. 131. Citado
no livro de Llamas, R. p. 162, nota 10. Uma vez mais, prisão e homossexualidade
unidas graças às “ciências sociais”. Supomos que a esse brilhante cientista não
ocorria estudar “a heterossexualidade” e menos ainda com uma amostra de 205
presos hetero...
55
El PAIS, 27/12/2006.

94 | Pelo CU
Esses olhares, explorações e buscas anatômicas consoli-
dam, uma vez mais, a associação penetração anal = homos-
sexualidade. Nada se diz nesses textos sobre as penetrações
anais entre homens e mulheres, e é precisamente esse silêncio,
essa enorme omissão, o que vai consolidar a sodomia como
o referente único e exclusivo do sexo anal. Uma vez mais, o
regime heteronormativo limpa seu próprio território e apaga
suas trilhas referentes ao desejo anal.
É interessante lembrar-se da análise de Foucault sobre a
sodomia, que era simplesmente um ato, com o passo que foi
dado com a medicina e a psiquiatria do século XIX rumo a
uma nova forma de categorizar, que vai criar um tipo de pes-
soa, “o homossexual”. Até o final do século XIX, realizar o ato
do sexo anal, a sodomia, era uma categoria do antigo direito
civil e canônico, e descrevia um tipo de ato proibido; o autor
era somente seu sujeito jurídico. Em contraponto, o “homos-
sexual”, categoria que aparece na segunda metade do século
XIX, é algo muito diferente:

O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um


passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de
vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, tal-
vez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim
das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo:
subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insi-
dioso e infinitamente ativo delas; inscrita sem pudor na sua face
e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe
consubstancial, não tanto como pecado habitual, porém, como
natureza singular. É necessário não esquecer que as categorias
psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade, consti-
tuíram-se no dia em que esta foi caracterizada ─ o famoso artigo
de Westphal em 1870, sobre as “sensações sexuais contrárias”

95 | Pelo CU
pode servir de data natalícia – menos como um tipo de relações
sexuais do que como certa qualidade da sensibilidade sexual,
certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o fe-
minino. A homossexualidade apareceu como uma das figuras
da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia,
para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo
da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual
é uma espécie.

Como são espécies todos esses pequenos perversos que


os psiquiatras do século XIX entomologizam, atribuindo-
-lhes estranhos nomes de batismo: há os exibicionistas de
Lasegue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastas de
Krafft-Ebing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá
os mixoscopófilos, os ginecomastos, os presbiófilos, os inver-
tidos sexoestéticos e as mulheres dispaurêunicas. Esses belos
nomes de heresias fazem pensar em uma natureza relapsa o
suficiente para escapar à lei, mas autoconsciente o bastante
para ainda continuar a produzir espécies, mesmo lá onde não
existe mais ordem. A mecânica do poder que ardorosamen-
te persegue todo esse despropósito só pretende suprimi-lo
atribuindo-lhe uma realidade analítica, visível e permanente:
encrava-o nos corpos, introdu-lo nas condutas, torna-o prin-
cípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui em
razão de ser e ordem natural da desordem. Exclusão desses
milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, dis-
tribuição regional de cada uma delas 56.

56
Foucault, M., Historia de la sexualidad, Vol. 1, pp. 56-57 [ed. bras.: Foucault, M.
História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999].

96 | Pelo CU
Essa lúcida análise de Foucault é útil para compreender até que
ponto o que supõe o anal tem uma historicidade e valores con-
cretos. A homossexualidade nasce vinculada ao sexo anal, mas
vai muito mais além, dentro de um discurso médico, psiquiátri-
co, como uma patologia e, o que é mais importante, como uma
forma de identidade global que se impõe ao sujeito.
Outra convenção muito comum entre a cultura heterossexual
é conceber o par gay com os seus mesmos padrões; essa estupi-
dez que nos perguntam com tanta frequência quando veem um
par de bichas: “Então, entre vocês, quem é o homem e quem é
a mulher? ”. Essa pergunta, obviamente, contém várias pressu-
posições absurdas: primeira, que os gays têm que reproduzir a
rígida e limitada cultura sexual hetero onde cada um sempre
tem que fazer um papel (o homem: penetrar / a mulher: ser pe-
netrada). Segunda: que ser penetrado equivale a “ser mulher”, e
que penetrar equivale a “ser homem”. Terceira: que os heteros
não se penetram entre si. Na realidade, a prática sexual entre
gays não mantém este modelo hetero. Vamos fazer um pouco de
sociologia caseira para ilustrar isso, mesmo que tampouco seja
necessário explicar isso a ninguém.

Um experimento sociológico:
A estatística do BEARWWW

Sem nenhuma vontade de cientificidade nem de serieda-


de, vamos aproveitar uma das “pesquisas” mais amplas que
existem no mundo sobre tendências sexuais gays. Se lhes dis-
séssemos que fizemos uma pesquisa junto a 170.000 bichas de
cinco continentes sobre suas práticas ou preferências sexuais,
acreditariam? Pois assim é. Bem, não exatamente. Essa pes-
quisa já existe, nós não a fizemos, basta aproveitar um pouco
da internet. Vamos utilizar um dos sites mais conhecidos de

97 | Pelo CU
namoro gay para fazer um pequeno estudo sobre os passi-
vos e os ativos. Trata-se da página www.bearwww.com. Este
site conta com mais de 170.000 perfis, e tem a vantagem de
que cada um deles nos dá uma descrição de suas preferências
sexuais. Realmente é um site que reúne gays de todas as ten-
dências, faz tanto sucesso que é uma referência para gays de
qualquer subcultura; na verdade, somente 45.000 perfis desse
site consideram a si mesmos ursos, ou seja, somente 25%, a
quarta parte.
De qualquer modo, não importa que a pesquisa seja en-
viesada, porque essa brincadeirinha que vamos fazer não
tem nenhuma intenção de rigor científico, mas, ainda assim,
171.842 perfis é uma amostra impressionante de bichas, que
talvez possa nos dar informações interessantes.
Os homens desse site têm entre 18 e 80 anos, e pertencem
aos 5 continentes (mais de 80 países).
O motor de busca dos perfis do bearwww se organiza se-
gundo as seguintes seções, referentes à prática sexual:

• Ativo;
• Passivo;
• Versátil;
• Somente oral;
• Somente masturbação;
• Ativo/versátil;
• Passivo/versátil;
• Não disse.

98 | Pelo CU
A primeira busca que nos interessa aqui é ver, desses
171.842 homens, quantos se consideram exclusivamente ati-
vos e quantos exclusivamente passivos:

• 26.018 homens, exclusivamente ativos. Quer dizer,


15,2%.
• 24.816 homens, exclusivamente passivos. Quase a mes-
ma porcentagem, 15%.

O restante, 120.000 homens, 70%, se posicionam nas demais


categorias; isso significa que podem ser flexíveis quanto a utili-
zação do cu como receptor e, ao mesmo tempo, em ser penetra-
dores de outros cus. Nesse sentido, um dado muito revelador é a
porcentagem de pessoas que se consideram versáteis, a maioria:

• Versátil: 70.000. 41%;


• Ativo-versátil: 11.278. 6,6%;
• Passivo-versátil: 11.311. 6,6%.

Somadas essas três categorias versáteis temos 54% (não te-


mos ideia nem de por que há um equilíbrio tão grande entre
ativos e passivos, e entre os ativo-versáteis e passivo-versáteis).
• Somente oral: 1.674. Não chega a 1%;
• Somente masturbação: 367. 0,2%;
• Não disse: 26.806. 15%. Este dado também é interessan-
te porque denota um desacordo com essas categorias
que estão utilizando nos sites. Também pode ser por
um desejo de privacidade, de não declarar em público a
sua preferência sexual.

99 | Pelo CU
O que se deduz dessa “pesquisa” é que, dentro da comu-
nidade gay, não há uma divisão significativa “ativo” versus
“passivo”, no que é referente ao anal. Isto é, somente uma
porcentagem muito pequena pratica unicamente a penetra-
ção como ativo ou como receptor, o que vai contra a crença
comum hetero. O mais interessante é que a maioria dos perfis
mostra uma grande flexibilidade, ou seja, a possibilidade de
estar abertos a ser penetrado ou a penetrar. Isso significa que
o estereótipo segundo o qual os gays “se dividem” em pessoas
passivas e ativas é uma falácia criada a partir de uma visão he-
terocentrada, binária e simplista, que não corresponde com
as práticas da própria comunidade gay, mas aplica (injusti-
ficadamente) o modelo do casal hetero “homem/mulher” às
pessoas gays por meio de uma separação artificial entre “ati-
vos” e “passivos”, como essências separadas que dariam lugar
a identidades separadas e diferenciadas.
O mais interessante dessa reflexão é que essa separação
não é real. Isto é, que na prática, penetrar e ser penetrado são
duas opções disponíveis ao mesmo tempo, opções do jogo se-
xual de uma mesma pessoa.
Um dado curioso é a divisão tão equilibrada entre ativos
e passivos. Tanto entre os homens que se definem como ex-
clusivamente ativos, como os exclusivamente passivos, e entre
os que se definem como ativo/versáteis ou passivo/versáteis,
o equilíbrio é total (15% ativos e 15% passivos; 6,6% ativo/
versáteis, 6,6% passivo-versáteis). Ou seja, dentro dos que as-
sumem mais ou menos um desses dois papéis, em conjunto,
não há diferença significativa quanto a passivo e ativo. Isso
quebra também outro estereótipo sobre os gays, o de que to-
dos “gostam que lhes fodam”, e a ideia de que ser passivo é
próprio da bicha. Contra esse preconceito tão amplo, esses

100 | Pelo CU
dados sugerem que há tantas possibilidades de encontrar um
gay com tendência ativa quanto passiva. E que, além disso, o
mais comum é que pratique ambas as coisas.
Gostaria de contar com uma pesquisa parecida com ho-
mens hetero. Não a temos, mas tememos que os dados seriam
muito diferentes. Não porque o desejo de ser penetrado ou de
penetrar cus não exista entre os homens hetero, mas porque a
cultura em que vivemos impõe um duro silêncio aos heteros
sobre essa questão e sobre a possibilidade de expressar em
público qualquer tipo de desejo anal que não seja por uma
mulher e como penetrador.

Somos um Donut: topologia, corpo e analidade

Parte do mito contemporâneo sobre o “individuo” se cons-


trói ao redor da ideia de ser completo, fechado em si mesmo,
uma unidade separada e autônoma. De fato, a etimologia de
indivíduo significa precisamente isso, algo que não se pode di-
vidir. Não vamos entrar aqui na visão da psicanálise que con-
tradiz diretamente essa ideia (o sujeito seria precisamente algo
dividido desde sua fundação, uma entidade separada do real
pela linguagem, cuja identidade se funda no outro). Aqui va-
mos estudar a criatura humana como mera corporeidade (já
sabemos o que esse “mera” nos traz, mas temos um pouco de
pressa). Essas duas aberturas que estamos analisando neste
livro, o ânus e sua supervalorizada companheira, a boca, nos
mostram que o corpo humano (e o de todos os animais) não é
uma entidade fechada e completa, muito pelo contrário, é algo
aberto, mais que isso, aberto de uma forma muito especial.
A topologia descreveu esse tipo de superfície como um
toro. Mas, não se emocionem os machinhos, não nos referi-

101 | Pelo CU
mos a este animal que representa a Espanha racial e mascu-
lina, mas a uma figura que podemos descrever rapidamente
como um donut. Ou, caso queira, pode-se imaginar uma gar-
rafa onde a boca e o cu se comunicam. Na verdade, o toro é
uma superfície “fechada”, no sentido de que todos seus pontos
comunicam de forma continua. Ou seja, o orifício central do
donut está lá, mas não interfere na continuidade da superfí-
cie do toro. Seguindo com a nossa analogia, o corpo humano
pode ser descrito como uma superfície fechada, mas com um
orifício estrutural que é o aparato digestivo. Isso contradiz a
imagem que temos do nosso próprio corpo, de maneira in-
tuitiva: quando ingerimos algo, dizemos que colocamos “den-
tro” do corpo, mas na realidade estamos colocando “fora”.
Não “colocamos” nada, estamos passando por um buraco.
Quando colocamos um dildo pelo cu acontece o mesmo.
Na verdade, essa superfície que é o corpo tampouco é fe-
chada no sentido estrito. É porosa, aberta. A pele tem poros
e por ela se intercambia a água com o exterior. As paredes do
estômago e do intestino são porosas e, graças a essas pare-
des permeáveis, os nutrientes da comida são assimilados pelo
organismo. Assim sendo, a sobrevivência dos organismos
vivos depende do fato de que são sistemas abertos. Em ter-
mos mecânicos ou de produção, nosso corpo transforma ali-
mentos em energia e os restos inúteis dessa transformação se
convertem em fezes, em dejetos. Mas é interessante salientar
que tanto a fase inicial do processo, o ato de comer ou beber,
como a fase final, a defecação, se produzem “fora” do nosso
organismo, no orifício que nos atravessa de ponta a ponta.
Quem sabe essa visão não nos ajudasse a entender com
menos drama tudo o que se cria ao redor da penetração anal,
como uma violação de nosso espaço interior, a facilitar uma

102 | Pelo CU
fronteira entre o mundo e nossa intimidade, etc. O que sa-
bemos é que essas zonas de intercâmbio, essas bordas, são
prazerosas, estão erotizadas – como assinalou Freud ao falar
das mucosas da boca e do ânus como zonas erógenas (ver no
capítulo dedicado a Freud, mais adiante).
O anal, de algum modo, é uma lembrança permanente
dessa fragilidade do nosso corpo, dessa estrutura “de orifí-
cio” que nos atravessa, e da qual não queremos saber nada.
Talvez tenhamos que reescrever nossas metáforas corporais
(“te sinto em minhas entranhas”, “mete mais fundo”, “te sinto
dentro de mim”) e nos abrirmos a esse espaço que já não é
próprio, um espaço que qualquer donut pode nos lembrar,
toda manhã.

Anus is an open scar: a performance de Warbear

No ano de 2009, o escritor e ativista queer Warbear (Fran-


cesco Macarone Palmieri), junto com os artistas Mariae Nas-
centi & Boxikus, representou uma performance em diversas
cidades europeias intitulada Anus is an open scar (o ânus é
uma cicatriz aberta), onde refletia com imagens e textos sobre
o potencial subversivo de uma nova ressignificação do ânus.
Apresentamos os textos utilizados na performance:

ANUS IS AN OPEN SCAR


Warbear, Mariae Nascenti & Boxikus

My profession is to cross borders57


No men’s lands between two points of control.

57
Apresentamos os textos em inglês por expressa petição dos autores da perfor-
mance.

103 | Pelo CU
A zone full of promises,
Possibilities of new lives,
New perfumes,
New emotions.
J.G Ballard – COCAINE NIGHTS

Wrapped around the digestive tube


The skin opens up to its extremes
By revealing the two muscular holes,
Mouth
And anus.
B. Preciado – Terror Anal.
Beyond the end, you see the beginning.
An almost breathable future.
In this binary logic, transformation is the space in between.
In this perceptive fragment
Truth falls,
Doubt burns
And holes open up
Revealing emotional landscapes.
Warbear – SOGGETTIVITÁ ANULARI

Anus is a Bioport.
Not just symbol or metaphor
But a space of injection
Through which to open and expose the body to others
B. Preciado – TERROR ANAL.

Let the man go where he has never gone,


Feel what he never felt,
Think what he never thought,
Be what he has never been,
We must provoke this movement and this crisis,
We must produce astonishing objects
P. Nougé

104 | Pelo CU
How do you deal with a broken soul?
Small fractures
Splinter
Less than before
Once cracked – twice hidden
No healing
Forgiveness
In this place you
TOUCH
GENESIS P. ORRIDGE – ROMAN SPOKEN WORD

“close your anus and you’ll become a master,


a landlord
an owner
you’ll have women,
children,
richness”
Privatizing the anus is gender order
The territorial control of body geographies
by the heteronormative power
GUY HOCQUENGHEM/WARBEAR – LE DÉSIR HOMO-
SEXUEL

The strategy is not DIALECTICAL:


Liberations vs. control,
Unconscious vs. conscious,
Deviant vs. normal,
Sexual vs. Chastity.

The strategy is CATASTROPHIC:


Pushing the situation to the limit.

The strategy is SYMBOLIC:


Using the system’s own intolerable signs against.

The strategy is ANONYMOUS:

105 | Pelo CU
The refusal to be categorizable as another deviant star.
We are the norm.
We are the twilight.
S.P.K – EXPOSING THE CATHEDRAL OF DEATH

The world is not divided in two


Anus has neither sex nor gender.
Anus escapes the rhetoric of sexual difference,
Anus challenges male and female logics.
Anus is a post identitarian organ.
B. PRECIADO – TERROR ANAL

Inject me with your fear, my lover my dear


Teach me and erase me
And erase all that is comfortable in me
And that makes my life so easy now
Erase me and teach me my dear
My dear my dear
My new lover my dear
MY TEAR
GENESIS P. ORRIDGE – ROMAN SPOKEN WORD

Anus is made of shit.


The scar of a body castration.
The price that a man pays to buy the privilege of masculinity
In the heterosexual society.
Warbear/B. Preciado

I’ll burn the world


By destroying everything that does not stand alone
I’ll subvert ideologies
By pushing hope up your ass
I’ll destroy everything that does not stand alone
And then I’ll burn what remains
And then I’ll blow on the ashes

106 | Pelo CU
And then maybe somebody will see
How things
really are
Mel Lyman – APOCALYPSE CULTURE

Facing the heterosexual machine, the anal machine rises.


The non hierarchical connection of organs
The public distribution of joy.
The collectivization of anus announces
A sexual communism.
B. Preciado – TERROR ANAL

love opened my ass


and then I saw the end of the world
Charles Manson/Warbear58

Este cup-up de textos era recitado como a arquitetura teó-


rica e rítmica da performance, segundo contextos e relações
anais produzidas ao vivo.
Aqui podemos ler um texto escrito por Warbear, onde ex-
põe uma reflexão sobre o potencial transformador das polí-
ticas anais:

Cicatrizes
Potência: Prazer = dever: dor.
O mundo dividido em dois é vertical e bipolar.
Sua verticalidade se dá por meio da alienação de sexo, gênero e
sexualidade. Esse axioma adquire significado em uma gama de
58
Texto de apresentação da performance ANUS IS AN OPEN SCAR Warbear,
Mariae Nascenti & Boxikus. – BEWARE OF A HOLY WHORE # 5 Festsaal
Kreutzberg – 2009 Berlin (Germany). – SLUM Fiken 3000 – 2009 Berlin (Ger-
many) – MOVIN’ ALONG WITH VERSES Sin Club – 2010 Berlin (Germany).-
VISION’R #5. Center Mercoeur – 2010 (France). Vídeo: http://www.vimeo.
com/6118497 Shooting: Stephan Shvanke. Montaggio: Boxikus.
variações algébricas onde o polo positivo é representado pelo
homem e o negativo pela mulher.
O homem é parte do mundo do que está acima, onde o poder é
passado de pais a filhos. Nesse mundo, o homem assume as nor-
mas de gênero masculino via experimentação do prazer. Esse
poder adquire seu status numa função diretamente proporcio-
nal à dor produzida. O homem se identifica com a alteridade, só
e exclusivamente, se esta ficar subordinada. A expressão mas-
culina se localiza no espaço de intersecção entre apropriação e
eliminação.
O homem faz-se macho quando penetra, perpetrando um assas-
sinato vestido de criação. O ato de morte passa pela escravidão
da vida. Assim, esse processo fica assegurado por uma lógica
naturalista, segundo a qual, o esperma produzido pelo prazer de
poder é o único meio de perpetuar a espécie humana. O homem
é macho quando penetra, porque somente assim pode expressar
a naturalidade e, portanto, a universalidade do seu poder.
A mulher é a parte do mundo debaixo, onde o dever a converte
em esposa, mãe e filha. Nesse mundo, as mulheres têm o dever
de estar subordinadas, portanto, de serem penetradas e fecun-
dadas para voltar a reproduzir ao homem e, por último, para
morrer sofrendo. A vagina é o espaço para a transferência de
poder de uma geração a outra. O sangue da mulher é a garantia
do poder masculino. Isto representa o direito natural do homem
para fazê-la mulher, o lacre de cera em que está gravada a norma
do gênero.
A naturalização do poder de matar fecundando e do dever de
morrer parindo, se estruturam num processo de instituciona-
lização chamado família. Esta produz o núcleo original do laço
social ocidental.
Esse modelo é a coluna vertebral da estrutura econômica capi-
talista que naturaliza as desigualdades de poder de uns poucos
sobre o dever de muitas, fazendo do uso do outro a unidade
de medida da esfera humana. Nela, o sentido do poder como

108 | Pelo CU
processo sexual de morte encontra seu lugar natural. Matar é
privatizar o prazer sexual numa economia de apropriação e de
exclusão. A subversão desse vínculo entre poder e dever, onde
uma linha naturalizada e universalizante vincula o mundo de
cima ao mundo de baixo, passa através de outro canal.
Esse canal é uma passagem secreta que cria estranhas conver-
gências entre os mundos, relações que são perigosas para a
permanência da homeostase vertical. Por isso, esse canal deve
permanecer oculto e saturado.
Essa passagem tem a capacidade cultural de produzir prazer so-
mente no ato de expulsão, dado que a penetração no mundo
bipolar só pode ser identitária. A supressão da função transitiva
e ativa dessa passagem é inaceitável, na medida em que põe em
crise o sistema de fronteiras entre o mundo de cima e o de baixo.
Essa passagem deve ficar cicatrizada, porque sua saturação ga-
rantiria o poder da diferenciação verticalizante. Mas, detrás des-
ta cicatrização, habitam mundos estranhos com criaturas estra-
nhas que palpitam com emoções estranhas; histórias intestinais
onde o macho e a fêmea se perdem num pastiche de pasta fecal.
Odores profundos e músculos retais sujam os lençóis, ali onde
o sangue perde a primazia da primeira noite que define o poder
do macho e o dever da mulher. A escória conta a história e a
história é outra.
É uma história visceral de outras noites, outros amores, ou-
tras paixões. É uma história de resíduos e repressões, onde essa
descarga cria um Aqueronte enlouquecido que come o próprio
Caronte, mesclando o bem e o mal entre suas ondas. Um país
de silêncio onde os sons são subliminares e onde frequências
imperceptíveis transformam os medos em desejos.
É uma história para lá do mundo, onde flutuam a tempestade
de poeira, auto-organizações, economia do ócio, sociologias do
indivíduo.
Subverter é cortar a cicatriz para abrir a panaceia dos ventos
numa espiral injetora.

109 | Pelo CU
Uma explosão ressoa. É a fratura dos axiomas gritando. A insu-
portável leveza de se converter em flocos como uma neve viral,
onde a prática do prazer se converte no rechaço categórico do
dever, onde o esperma se perde em sinos tubulares, onde a repe-
tição é mudança, onde a entrada e a saída formam um processo
infinito, invertido, louco.
Passem senhores, passem porque para lá do mundo há um me-
taverso em processo, se se sabe viver na escuridão, se descobrem
cores ofuscantes.
WB Francesco Macarone Palmieri59

59
Os autores agradecem a Francesco Macarone por ter escrito este texto para o
nosso livro.

110 | Pelo CU
Prazeres anais: fist, dildos, pênis, cárceres.

Ser um armário é, no melhor dos casos, uma triste ironia, um paradoxo


divertido, a contradição de estar sempre de quatro e ser impenetrável.

Urri Oriols. “Mobiliário”

De un Plumazo, n4

O Fist-fucking ou penetração anal com o punho (fist) é


uma prática que surge no seio das comunidades S/M gays.
Não é evidente que se trate de uma prática S/M, no sentido
de que não é uma prática que experimentamos com dor e, de
fato, nem todos que praticam S/M praticam fist, bem como
nem todos o que praticam fist são S/M. Mas temos que reco-
nhecer um vínculo cultural nos espaços em que eles apare-
cem, espaços criados pelas comunidades S/M. Gayle Rubin
faz uma descrição fascinante dos espaços em seu artigo “The
catacombs”, dedicado a um club S/M de San Francisco onde,
nos anos 70, floresciam práticas de fist.
O fist faz referência a dois espaços perseguidos, reprimidos,
condenados como abjetos: o ânus e a mão. O sexo genital não
é reprimido, é fomentado em imagens, discursos, programas.
Até os sexólogos recomendam hoje em dia a masturbação
como algo saudável. Porque o sexo genital reforça a diferença
sexual e a fixação dos papéis de gênero: homem penetrador,
mulher penetrada, coerência ou destino da cópula buceta-

111 | Pelo CU
-pinto, etc. O fist vai recuperar estes dois espaços proscritos,
o trabalho do cu e da mão-braço como objetos e sujeitos de
prazer. Beatriz Preciado em seu ensaio Manifesto contrasse-
xual, realizou uma rigorosa genealogia do dildo para mostrar
que este não procede de uma imitação ou referência ao pênis,
mas à mão. O dildo procede das técnicas e máquinas dese-
nhadas para reprimir a mão que masturba. Por isso podemos
dizer que o fist é uma espécie de reconquista de um terreno
proibido: somente um médico podia usar a mão “aqui”, no
ânus e no reto, para as explorações. No caso dos homens, era
uma exploração vergonhosa e privada, justificada para detec-
tar enfermidade de próstata. Os fist se apropriam desse espa-
ço privado e “do especialista”, e lhe dão um sentido diferente:
de comunidade de aprendizagem, de prazer, de autonomia.
Abandona-se a centralidade dos genitais e a dinâmica obri-
gatória ereção-ejaculação. É curioso observar que esse aban-
dono do pênis aparece em um ambiente gay quando preci-
samente os gays são identificados como adoradores do falo
(também existem práticas S/M de fist entre lésbicas e entre
heterossexuais, mas não entraremos aqui na genealogia des-
sas práticas, que são diferentes).
Como já assinalamos em outras partes deste livro, o uso
de um espaço abjeto como o anal é permitido no cinema
pornô, mas somente se é penetrado por um pênis. O fist faz
outra coisa, ele é um pornô sem genitais. Como assinalado,
o código do pornô tradicional está saturado pelo circuito ere-
ção-penetração-ejaculação, onde o eixo narrativo é o pênis.
Em contraponto, nos filmes pornôs de fist, em muitos casos,
não aparece nenhuma ereção, e mais, não aparecem órgãos
genitais. O interesse se desloca para outras partes do corpo:

112 | Pelo CU
• Em muitas festas de fist, a mão e o braço são enluvados
cerimoniosamente com uma luva de látex (isto nos re-
corda a luva de Rita Hayworth, mas, à diferença de Rita
em Gilda, aqui o erótico vem do processo de colocar-se
a luva, não em retirá-la). Vemos aqui outro exemplo
de apropriação e ressignificação: do uso inicial da luva
no fist pela necessidade de se proteger da transmissão
da AIDS, passa-se a uma estilização erótica da própria
luva, o braço penetra o reto, dá prazer, mas por sua vez
ele também recebe prazer. E a luva do século XVII, de-
senhada para evitar a masturbação, transformou-se em
uma luva que produz prazer. O processo de lubrificar a
mão e o braço se transforma em um ato erótico;
• O ânus como lugar de exploração, de prazer e de traba-
lho; o ânus e o reto, lugares tradicionalmente excluídos
do prazer, são reivindicados de uma forma diferente,
não como lugar de recepção do pênis (órgão que dá
valor de uso dentro do pornô), mas com lugar ativo, de
produção de prazer e de abertura do corpo. Como diz o
estudioso da cultura S/M José Manuel Martínez-Pulet:
“meter o punho em um cu faminto pode ser outra for-
ma de ternura e de afeto (...). No caso do fist-fucking
(ou do foot-fucking, variante do fist com o pé), fica bem
claro que sua finalidade é a produção do prazer. Os pra-
ticantes podem brincar horas e horas sem a necessidade
de gozar, ou mesmo de ter uma ereção. Para um, o pra-
zer vem da entrega do cu ao outro, o que exige muita
confiança. Para o outro, o prazer consiste em colonizar
com a mão o interior do outro homem e sentir dentro
as batidas do seu coração, para o qual se requer muita
responsabilidade e perícia. Como disse G. Rubin ‘fistear

113 | Pelo CU
é uma arte que consiste em seduzir um dos músculos
mais impressionantes e tensos do corpo’. O punho cer-
rado, que normalmente define um gesto de agressivida-
de e ameaça, é redefinido aqui como um instrumento
de afeto e ternura. A câmera se fixará nele, no pote de
manteiga que lhe umedece, no orifício anal que o es-
pera; captará os movimentos da mão e as progressivas
modificações da bunda; captará a complexidade dos
participantes manifesta nos olhares, nos gemidos, nos
gritos etc. O eixo da narração já não é, pois, o pênis ere-
to que penetra (ao contrário, o pênis, flácido, retrocede
a um segundo plano), mas se traslada para a periferia, a
bunda e o punho, em uma ação que não tem nenhuma
finalidade concreta além da produção do prazer corpo-
ral e mental60”.

Genealogia do Dildo

Essa reflexão sobre o fist nos leva novamente a duas aná-


lises de Beatriz Preciado61. Para entender como se constitui a
relação entre o espaço do corpo e a noção do sujeito na cul-
tura ocidental, Beatriz Preciado propõe uma genealogia do
dildo, analisando tanto sua evolução formal como sua pre-
sença em diferentes práticas (médicas e sexuais) e períodos
60
Martínez-Pulet, J. M., Yes, Sir! Thank you, Sir! Placer, poder y masculinidad en la
pornografía S/M gay, publicado em http://www.hartza.com/infiernos.htm
61
No seu livro Manifesto contrassexual, Preciado propõe uma prática contrassexual
“ressexualizar o ânus (uma zona do corpo excluída das práticas heterocentradas,
considerada como a mais suja e a mais abjeta) como centro contrassexual univer-
sal” (p. 30). Para isso, propõe uma prática de autopenetração anal com dildos a
partir da performance de Ron Athey El ano solar [O ânus solar]. Ver fotos de El
ano solar em www.ronathey.com

114 | Pelo CU
históricos. Neste sentido, a autora do Manifesto contrassexual
considera que existem três tipos de tecnologias (com os seus
instrumentos correspondentes) que deram forma e função ao
dildo contemporâneo e que, por sua vez, são chaves para en-
tender a definição de gênero e do corpo como “incorporação
protésica”:

Tecnologias de repressão da sexualidade. O primeiro ante-


cedente do dildo estaria, segundo Preciado, nos mé-
todos e nos aparelhos de repressão da masturbação,
inspirados nas teorias de um médico suíço do século
XVII chamado Tissot. Tissot, que fez uma análise da
sexualidade a partir de uma ótica capitalista, concebia
o corpo como um circuito fechado de energia que não
devia ser desperdiçada em tarefas distantes do trabalho
produtivo e reprodutivo. Por meio dessa noção de cor-
po como capital, Tissot identifica um órgão sexual que
podia irromper no circuito fechado de energia corpo-
ral e provocar um gasto supérfluo: a mão. Para evitar
estes curtos-circuitos, desenhou uma série de objetos
(luvas, fivelas, mitenes...) que limitavam o movimento
das mãos. As teorias de Tissot refletem e potencializam
a mudança na maneira de pensar e de viver a sexuali-
dade que se produziu na Europa durante o século XVII.

Até então, a sexualidade era um ato social, com seus


tempos e rituais específicos, mas desde a consolida-
ção da concepção do sexo como capital começou a
influenciar em todos os aspectos e momentos da vida

115 | Pelo CU
dos indivíduos, a ser arte consubstancial do sujeito
da modernidade 62 .

Os objetos concebidos por Tissot tratavam de regu-


lar (dirigir e reprimir) a utilização dos órgãos sexuais,
mas também demarcavam (e, por isso, destacavam) o
espaço do corpo onde se gera o prazer. Portanto, não
é estranho que essa técnica de repressão tenha acaba-
do por se transformar em tecnologias que produzem
identidade sexual e geram prazer. Desta forma, práticas
contemporâneas de formação e manipulação do corpo
como o piercing se assemelham a algumas das técnicas
que se utilizavam no século XVII e no XVIII para im-
pedir a masturbação. O mesmo ocorre, como assinala-
mos, com o fist-fucking, que intervém sobre a repres-
são do ânus (espaço autorizado ao médico) e recupera
a própria luva de látex que o médico utilizava: ambos,
ânus e luva, são transformados em objetos de prazer. E,
ao mesmo tempo, deixa-se de conceber o corpo como
espaço fechado, para mostrá-lo como um espaço total-
mente aberto: a exibição do ânus e do reto que realizam
a prática e o cinema fist supõem inverter totalmente
essa visão do corpo enclausurado. Por último, a mão,
que já era concebida por Tissot como fonte de prazer,
é potencializada radicalmente pelo fist até o ponto de
abandonar o interesse dos órgãos genitais. Como vimos,
o fist junta precisamente dois lugares tradicionalmente
reprimidos: abre o ânus, portanto, o corpo, e recupera a

62
Preciado, B., Manifiesto contrassexual, p. 82. [ed. bras.: Preciado, Beatriz. Ma-
nifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1
edições, 2014].

116 | Pelo CU
mão, que intervém para se introduzir e manipular esse
circuito aberto que é agora o corpo.

2. Tecnologia de produção das crises histéricas. Do ponto


de vista da psicologia do século XIX, o orgasmo fe-
minino era considerado uma crise histérica que devia
ser analisada, vigiada e controlada por especialistas
médicos (masculinos). Assim, primeiro foram cria-
dos uns “vibradores” hospitalares que permitiam pro-
duzir (sob supervisão médica) essas crises e depois
foram desenvolvidos outros aparatos com a mesma
função, mas que já eram concebidos para o seu uso
no âmbito doméstico (a que Beatriz Preciado denomi-
na máquinas butler). Por sua vez, para lutar contra a
impotência dos homens, a medicina da época utiliza-
va aparelhos similares que se “administravam” através
do ânus. Vemos aqui o monopólio que tem o médico
do espaço anal, monopólio que será destruído pelo fist.

3. Tecnologias das mãos protéticas. Desde a I Guerra Mun-


dial, as técnicas de construção de próteses, que cum-
priram e aperfeiçoaram a função das mãos (e de outras
partes do corpo, como as pernas), têm desempenhado
um papel fundamental na constituição da identidade
feminina. Segundo Beatriz Preciado, existe uma rela-
ção direta entre masculinidade e guerra que está muito
vinculada a essa noção de construção protética. Neste
sentido, explica-se o fato de que os soldados, meras fer-
ramentas de uma arrojada máquina de guerra, são “su-
plementados” por uma série de acessórios (próteses),
como mostram de forma muito ilustrativa as imagens

117 | Pelo CU
do exército estadunidense e britânico em seu recente
ataque ao Iraque:

É preciso ter em conta que, após a I Guerra Mundial,


numerosos soldados regressaram a suas casas com al-
gum membro amputado, em muitos casos, as mãos
(que é de um ponto de vista antropológico, o órgão
masculino por excelência, já que permite modificar a
natureza por meio de instrumentos). Desde o conven-
cimento de que existia uma correspondência entre os
homens que haviam perdido uma mão (inúteis para a
economia produtiva) e os que haviam ficado sem ór-
gãos genitais (inúteis para a economia reprodutiva),
um médico militar francês chamado Jules Amar dese-
nhou um conjunto de mãos protéticas que permitiam
reincorporar esses soldados ao sistema laboral. Quer
dizer, Jules Amar associa a perda de uma mão à perda
da masculinidade, estabelecendo uma correspondência
entre a mão e o pênis63.

Esta reflexão sobre Jules Amar é muito esclarecedora para


entender a nova ressignificação da sexualidade e da mão que
realiza o fist. Seria equivocado interpretar o fist como uma
prática onde a mão substitui o pênis, como se este fosse o
original, o legítimo depositário da sexualidade, e a mão um
mero substituto. Precisamente, o que o fist faz é curto-cir-
cuitar toda a economia produtiva e reprodutiva: abandono
do uso dos genitais e potencialização da mão em um “lugar
inútil” (a mão, um órgão não reprodutivo, no cu, outro órgão
63
Preciado, B., Manifiesto contra-sexual, p. 130. [ed. bras.: Preciado, Beatriz. Ma-
nifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1
edições, 2014].

118 | Pelo CU
não reprodutivo), a mão em um lugar abjeto por excelência, o
cu. Uma mão e um braço que trabalham no lugar equivocado
para abrir um corpo precisamente no lugar da perda (o cu
somente produz merda, que não é útil para o capital). Com o
fist, o braço, produtivo em termos de “mão” de obra é coloca-
do em um lugar mais improdutivo.

Leathers, urso e masculinidade

O pornô gay fist mostra o masculino como vulnerabilida-


de: frequentemente nos apresenta um homem atado, frágil,
a mercê, que oferece seu cu… Isso supõe uma subversão do
código masculino-heterocentrado. Por um lado, apresenta-
-se uma imagem hipermasculina para depois mostrá-la em
sua fragilidade, mostrá-la como uma imagem de passividade,
como um espaço manipulável. Qualquer tentativa de cons-
truir uma identidade estável e poderosa da masculinidade
fica em evidência por meio deste discurso. Nos códigos tra-
dicionais de masculinidade, o punho fechado é um gesto de
ameaça, de violência. No fist, o punho é ressignificado como
um objeto de prazer, agradável, como um elemento amoroso.
O fato de que os filmes de fist não tenham ereção, nem
penetração com o pênis, nem ejaculação, supõe um desafio
radical de “gênero” (no duplo sentido, de gênero cinemato-
gráfico e de sistema gênero/sexo). De fato, quando aparecem
os genitais masculinos nos filmes de fist, o pênis está flácido
(outro tabu do pornô) e não merece nenhum interesse por
parte dos atores, nem da câmera de montagem. O fist é uma
aberração, é o abjeto do pornô.
Além disso, nem o ânus nem o punho estão marcados
pelo gênero ou pelo sexo, todo mundo tem ânus e todo mun-

119 | Pelo CU
do tem braço, independente se é mulher, homem ou inter-
sexual. E esse “independente” é importante porque, para os
sistemas dominantes, a diferença sexual e a fixação de natu-
rezas masculinas e femininas são cruciais. Aqui, mostra-se
que essa diferença não é tão evidente e que talvez nem sequer
seja relevante. Trata-se de uma forma muito soFISTicada de
sexualidade.
O fist desafia o sistema de produção de gênero e dester-
ritorializa o corpo sexuado (desloca o interesse dos genitais
para qualquer parte do corpo). Ademais, o fist é reversível,
aquele que coloca o punho logo pode receber e vice-versa (o
código ativo/passivo também se dissolve).
Os clubes de fist também questionam a separação entre o
espaço público e o privado; são clubes onde o fist é feito dian-
te do olhar de outras pessoas. Em geral, o único lugar onde se
pode brincar com o cu é o banheiro. Com a segurança de um
trinco bem fechado, todos já brincamos alguma vez no banho
de colocar os dedos no cu. Na melhor das hipóteses, no es-
paço também privado do leito conjugal, alguns casais ousam
explorar esse lugar desconhecido. Contudo, a prática do fist
dentro da comunidade S/M sempre foi uma prática pública,
se faz à vista das demais pessoas que estão no clube: ademais,
várias pessoas podem participar do fist, é uma espécie de ato
social que rompe a barreira de “casais fechados no quarto”.
Isso também é uma novidade a respeito do uso vergonhoso
do cu: o fist supõe uma espécie de “saída do armário anal”,
uma exibição orgulhosa do prazer que se pode obter com o
fist, e uma forma de criar vínculos de solidariedade.
Em determinado momento, o S/M foi criticado como uma
reprodução dos papéis de poder do mesmo modo que se con-
sidera frequentemente que o passivo na penetração anal é o

120 | Pelo CU
submisso e que o ativo é o dominante. Martínez-Pulet criti-
cou essa visão simplista a partir das análises de Towsend e
Foucault:

Como disse o ativista Larry Towsend, “tudo o que ocorre em


uma relação sexual S/M se faz com a intenção de produzir pra-
zer físico ou emocional”. Mas haveria que salientar o aspecto
transgressor e subversivo desta forma de prazer, e é Foucault
quem aponta diretamente este núcleo subversivo: “Penso que o
S/M... é a criação real de novas possibilidades de prazer que não
haviam sido imaginadas anteriormente. A ideia de que o S/M
está ligado a uma violência profunda e que sua pratica é um
meio de liberar essa violência, de dar curso livre à agressão, é
uma ideia estúpida. Bem sabemos que o que essa gente faz não
é agressivo e que inventam novas possibilidades de prazer uti-
lizando certas partes não usuais do seu corpo – erotizando seu
corpo. Penso que aqui encontramos uma espécie de criação, de
empresa criadora, uma de cujas principais características são o
que chamo de dessexualização do prazer. A ideia de que o pra-
zer físico sempre vem do prazer sexual e que o prazer sexual é
a base de todos os prazeres possíveis considero que é absoluta-
mente falsa. O que as práticas S/M nos mostram é que podemos
produzir prazeres de objetos muito estranhos, utilizando certas
partes inusitadas do nosso corpo em situações não habituais”.
Este texto é muito importante porque, ao conceber práticas S/M
não como impressão de uma identidade subjacente, pela qual
aquele que faz o papel de Amo deveria ter uma personalidade
fortemente agressiva e violenta e o submisso estaria marcado
por uma falta de autoestima e de amor próprio, mas como técni-
ca de produção de prazer, Foucault desnaturaliza a sexualidade.
O fim destas práticas não é nem o orgasmo, nem muito menos
a reprodução (para Pat Califia, o S/M é a quintessência do sexo
não reprodutivo). Foucault está se referindo, em geral, às prá-

121 | Pelo CU
ticas como o bondage, o spanking, a cera, a humilhação, o jogo
com os mamilos, a tortura do pênis e dos testículos, o uso dos
dildos, o controle da respiração, mas, sobretudo, ao fist-fucking
que, segundo a antropóloga Gayle Rubin, seria a única prática
sexual que o século XX oferece à história das práticas sexuais.
Para Foucault, em virtude dessa técnica, o S/M opera uma rup-
tura com o monopólio que tradicionalmente sustentou os ge-
nitais em relação ao prazer físico, o descentraliza e ao mesmo
tempo redistribui as zonas erógenas. 64

Essa citação de Martínez-Pulet é muito esclarecedora a


respeito de algo que assinalamos anteriormente neste livro, a
inovação que introduz o anal no circuito do genital-sexual e
o questionamento da identificação tradicional entre o ativo-
-penetrador como detentor do poder, e o passivo-penetrado
como submisso e carente de poder. Para entender melhor esse
questionamento, é necessário explicar que, nas comunidades
sadomasoquistas, as relações são negociáveis e voluntárias,
e o que tem o papel de “escravo” na realidade controla em
grande medida a situação. A dinâmica senhor-escravo é mui-
to mais complexa do que imaginamos. No caso da penetra-
ção anal encontramos a mesma complexidade, isto é, quem
deseja ser penetrado não admite qualquer pênis, mas busca,
seleciona, escolhe. Neste sentido, é alguém “ativo”, mobiliza-
-se e atua para encontrar a pessoa adequada, e é quem decide
quem vai penetrá-lo. Na realidade, trata-se de uma posição
de poder, de controle e de decisão.

Era como se o homossexual chegasse tarde para investigar a


imagem heterossexual do macho, pois, como assinala E. Badin-

64
Martínez-Pulet, J.M., Yes, Sir! Thank you, Sir! Placer, poder y masculinidas en la
pornografía S/M gay.

122 | Pelo CU
ter, esta reinvidicação gay do masculino acontece no tempo em
que retrocede no coletivo heterossexual, e isso devido aos avan-
ços promovidos pelo movimento feminista. À primeira vista,
parece ter razão quando afirma que o “hipermacho e a bicha são
vítimas de uma imitação alienante do estereótipo masculino e
feminino homossexual”. Mas, somente à primeira vista, porque
o que Badinter passa por alto é, a meu parecer, que a apropria-
ção homossexual do modelo convencional do “homem”, não
somente indica que o macho heterossexual não é o guardião da
masculinidade (colocando, dessa forma, algum alívio na dimen-
são cultural e sócio-política dos gêneros), mas que, além disso,
leva a cabo uma reconstrução dessa masculinidade desde den-
tro dela mesma (e, portanto, prescindindo da “pluma”). Com
efeito, a simulação teatral da masculinidade vai acompanhada
de uma construção desvirilizada daquela, já que as práticas se-
xuais desta comunidade, primeiro, prestam particular interesse
pelo ânus (o órgão erógeno mais negligenciado pela sexualidade
normativa), erotizando consequentemente a receptividade ou
passividade sexual do homem (e não só mediante a penetração,
que é uma prática gay generalizada, mas sim, fundamentalmen-
te, por meio do fist-fucking, ou do uso de dildos e de plugs), e,
segundo, ressaltam uma série de disciplinas que, mais que cele-
brar o poder do pinto e das bolas, os mortificam, colocando-o
em cena e retirando prazer de sua vulnerabilidade e fragilidade
(açoite, pinças, agulhas, tortura etc.).

De qualquer forma, essa reapropriação da masculinidade con-


vencional pelos leathermen dos anos 40 e 50, e que durante essas
primeiras décadas estavam recriando uma subcultura, foi ob-
jeto, já nos anos 80, de algumas aproximações teóricas de con-
torno marcadamente essencialista, como as de Geoff Mains ou
Richard Hopcke, com as que tratavam de fazer frente, por um
lado, à imagem deformada que os gays dominantes tinham do
S/M (convertendo essa sexualidade em alteridade absoluta) e,

123 | Pelo CU
por outro, as consequências políticas que essa construção traz
consigo65.

Esta reflexão de Martínez-Pulet é muito relevante para en-


tender a mudança que certas comunidades gays S/M, leather
e de ursos operaram, e certas comunidades lésbicas e trans,
no uso e na reinvindicação do sexo anal. No caso das subcul-
turas leather, S/M e de ursos, essas práticas supõem questio-
namentos de arraigados estereótipos sobre a homossexuali-
dade. Segundo o protótipo homofóbico habitual, o gay é um
afeminado que gosta de ser penetrado. Como ainda figura no
dicionário da RAE: “Homem afeminado e de pouco ânimo e
esforço”. A virilidade ou a masculinidade é um valor próprio
dos homens hetero, algo impossível entre os gays.
A novidade dessas comunidades é que, por um lado, se
reapropriam das características da masculinidade e, por ou-
tro, integram em sua cultura o sexo anal de forma visível e or-
gulhosa, o qual supõe um paradoxo para o estereótipo homo-
fóbico: um homem viril que gosta de ser penetrado? Isso é em
princípio uma contradição. Penetração passiva equivale ao
feminino. Virilidade equivale a um cu impenetrável (exem-
plo: Luis Aragonés e seus camarões bigodudos) e à atividade
penetradora. No lugar disso, em muitos perfis de páginas de
flerte gay na Internet, encontramos estas descrições: “José,
homem, viril passivo”, “Manolo, grande urso peludo passi-
vo”, “Pedro, 1,90, 120 kilos, musculoso, bigode, barba, viril,
para que me coma”, “Alberto, homem masculino, couro, forte,
busca ser fisteado”, etc. Nesses perfis, assim como no pornô
que descrevemos, unem-se esses dois valores, em princípio,
65
Martínez-Pulet, J. M., La construcción de una subjetividad perversa: el S/M como
metáfora política y sexual, no livro Teoría queer: políticas bolleras, maricas, trans,
mestizas. Córdoba, D., Vidarte, P., Sáez, J. editores, Egales, Madrid, 2006.

124 | Pelo CU
incompatíveis: uma masculinidade clara, até exagerada às ve-
zes, com um desejo manifesto de ser analmente penetrado.
Isso nos parece uma mudança histórica importante que me-
rece ser destacada, algo que desestabiliza as equações tradi-
cionais sobre o passivo e o masculino.
Por outro lado, temos que reconhecer que essas culturas
hipermasculinas souberam se apropriar do prazer anal, mas
não da feminilidade. Geralmente, nos ambientes leathers,
S/M e de ursos, a pluma e a feminização são muito mal vistas.
Você vai a uma festa leather falando de forma afeminada e
nem os camelos chegam perto. Nas convocatórias de muitas
festas leather, bakala, ursos, etc., lemos coisas como “somente
homens machos”, “evitar loucas e pintosas”, “para homens de
verdade”, “papel muito masculino”, etc. Sempre se pode dizer
que para esse tipo de ambiente de bicha pintosa já existem
vários bares e festas gays, ou que é muito difícil ser masculino
ou feminino ao mesmo tempo. Talvez. Mas, essa não é a ques-
tão. A questão é que o feminino ainda é associado a algo in-
ferior, ridículo ou incompatível com o masculino. A questão
é que essa plumofobia traduz uma misoginia evidente, um
desprezo e um ódio contra as mulheres. Muitos se defendem
dessas acusações dizendo que: “mas não me dá curiosidade
um parceiro afeminado, não quero ir a um bar com gente as-
sim porque não me excitam”. Bem, ninguém te pede que vá
para a cama com uma bicha pintosa, mas é comum passar-se
daí ao desprezo e ao insulto. Para completar, muitos desses
supermachos plumofóbicos têm mais plumas que um edre-
dom norueguês, com o que a gente se pergunta se não teria

125 | Pelo CU
também uma pitada de autodesprezo inconsciente neste re-
chaço visceral à pluma no outro66.

De cárceres e cus

Até aqui defendemos a hipótese de que o rechaço do sexo


anal passivo entre os homens hetero têm relação com certo
exercício de poder, como ocupar um lugar de superioridade,
de dominação. Também vimos que a repulsa a ser penetra-
do é um elemento fundamental da identidade masculina do
homem heterossexual. Mas, outro elemento chave dessa di-
nâmica complexa é o desejo. Um desejo de desfrutar do anal
que ficou reprimido conscientemente ou inconscientemente,
e que, ademais, é castigado socialmente. Nesse sentido, pode-
ríamos dizer que um dos motivos principais desse rechaço ao
anal é o medo. O medo em duas direções: a perda da identi-
dade de gênero, de homem, com a ameaça de ser assimilado
a uma mulher, e o medo de perder a identidade da orientação
sexual (de heterossexual, passar a ser como o homossexual).
Quer dizer, a relação dos homens hetero com o anal explica
muitas coisas sobre as causas do machismo e da homofobia.
É interessante assinalar que essa dinâmica do medo nos
mostra que “ser um homem” é um lugar vazio. Pois é impos-
sível escrever ou definir em que consiste ser homem. Nem
sequer isso que chamamos de masculinidade é algo privativo
ou próprio dos homens, como mostrou Judith Halberstam
66
Para mais informações sobre as culturas leathers e de ursos e plumobofia, ver
Javier Sáez, Miss Bear em http://www.hartza.com/missbear.htm, e os artigos
“Excesos de la masculnidad: a cultura leather e a cultura dos ursos” no livro El
eje del mal es heterosexual, Grupo de Trabalho Queer, e “El mescle vulnerable:
pornografía, S/M, cultura leather i cultura dos ursos” no libro Masculinitats per
al segle XXI (vários autores).

126 | Pelo CU
no trabalho pioneiro sobre a participação das mulheres na
criação da masculinidade (masculinidade feminina). Vemos
nesses processos que “ser um homem” tem como base “não
ser” outras coisas: não ser mulher, não ser homossexual. É
uma identidade gerada por oposição, por negação, ou por
repetição de gestos estéticos ou de conduta que carecem de
original. É uma noção sem um conteúdo preciso. O poder
dos homens, o poder patriarcal e machista, se constrói, por
um lado, por meio deste desprezo contra as mulheres e, por
outro, pelo ódio contra os homens considerados como menos
masculinos, os gays.
O problema do cu é que todo mundo tem um. Isso colo-
ca os homens heteros em um limite demasiado perigoso a
respeito dos gays no sentido em que eles (os heteros) tam-
bém são penetrados por lá, pelo mesmo lugar que as bichas.
No machismo, percebe-se a mulher como “o outro absoluto”,
exalta-se uma pequena diferença genital (elas têm buceta,
“nós” não) como uma alteridade total e com o cu isso não é
possível. Não existem operações de extirpação de cu. O má-
ximo que se pode fazer com ele é fechá-lo até que não caiba
“nem um bigode de camarão”, mas isso, por mais que diga
nosso ex-técnico, não pode se manter constantemente. Luis
Aragonés também caga. E o problema não é somente que o
ânus hetero seja penetrável, mas que deseje ser penetrado.
Como veremos no capítulo sobre a psicanálise, Freud vai co-
locar o prazer anal como elemento fundamental em todos os
seres humanos.
Vemos que o regime heterocentrado se exerce sobre os ho-
mens heteros de uma forma duplamente paradoxal: desejam
as mulheres, mas ao mesmo tempo as desprezam; desejam
ser penetrados, mas ao mesmo tempo desprezam esta pos-

127 | Pelo CU
sibilidade ou aos homens que desfrutam desta maneira. Sua
identidade se funda em manter de forma obsessiva essa dupla
negação (não mulher + não bicha): mate mulheres e bichas e
será um homem. O fato de que “ser um homem” é um lugar
impossível explica os ritos da masculinidade compulsiva que
vemos em muitos machos heteros, isto que em outra ocasião
chamamos de pluma hetero: a repetição obsessiva e ostentosa
de gritos, falatórios, violência, cusparadas, futebol, coçação
de saco, motores, Playboy, testosterona, cabelo no peito, Re-
vista Placar, perigo, touros, alcoolismos, vagabundos, quadri-
lhas, cantadas, sinuca, empurrões... ou seja, essa condenação
à repetição em que consiste a vida cotidiana de muitos ho-
mens hetero67.
Outro exemplo dessa relação entre penetração anal, do
poder e do masculino, é o caso das prisões. É conhecido que
nas prisões masculinas a penetração anal é uma prática muito
ampla mesmo dentro de certos códigos bastante fechados ou
restritos; diferentemente da fantasia dos filmes pornô, onde
carcereiros e presos podem transar entre si a todo momento
em paz e harmonia, o sexo ente homens na prisão se produz
sob condições de controle muito restritas, e em ocasiões mui-
to perigosas.
Basicamente, existem quatro situações de sexo anal entre
os presos:

• O estupro de um preso e sua transformação em uma


pessoa marcada que fará as tarefas femininas na prisão
(cozinhar, limpar, etc.); essa pessoa ficará vinculada de
forma estável a um preso-amo para ser penetrado por
ele frequentemente. Este personagem no Chile se cha-

67
Ver Javier Sáez, La pluma heterosexual: http://www.hartza.com/pluma.htm

128 | Pelo CU
ma cavalo (caballo), e, contra o que geralmente se pen-
sa, não é uma pessoa homossexual. De fato, não deve
ser uma pessoa homossexual já que, neste caso, supõe-
-se que poderia desfrutar da relação quando se trata,
com este tipo de relação com o “cavalo” de marcar a
autoridade e a masculinidade do preso-amo (por cima
de outro “homem de verdade”, não de uma bicha);
• As travestis e os transexuais: frequentemente são obje-
to de violação, mas de forma anônima e vergonhosa,
já que a percepção geral é que o contato com eles te
afeminará;
• A violação carcereiro-preso: acontece quando vários
carcereiros decidem castigar ou torturar um preso e
para isso penetram-no analmente em grupo;
• O sexo consentido: em algumas ocasiões, dois homens
que não necessariamente se identificam como gays,
mantêm relações sexuais (e até afetivas) de forma mais
ou menos estável, habitualmente em segredo. Alguns
desses homens praticam o sexo anal durante a prisão e
afirmam abandonar esta prática ao sair da cadeia (“era
para desafogar, não havia outro jeito”, etc.).

Dessas quatro situações, vamos nos fixar especialmente na


primeira. Em um interessante artigo68, o psicólogo mexicano
Rodrigo Parrini explica que a figura do “cavalo”, esse preso
que é utilizado sexualmente por outros internos, cumpre uma
função de sacrifício; essa vítima, o cavalo, permite canalizar
as tensões da cadeia e, ao mesmo tempo, manter a identidade
68
Parrini, R., Sexualidad entre hombres encarcelados: los orígenes sacrificiales de la
identidad masculina. Rodrigo Parrini. No livro Masculino plural: construcciones
de la masculinidad. Carolina Sánchez-Palencia e Juan Carlos Hidalgo eds., Edi-
ções da universidade Lleida, 2001.

129 | Pelo CU
masculina dos reclusos que lhe penetram; o cavalo guarda em
si a identidade feminina, de uma forma que a masculinidade
fica do lado dos penetrados. Para Parrini:

O estupro é um fato fundante. Fundante de quê? Das relações


que os presos mantêm entre si e de uma comunidade particular
que possui uma ética específica. Mas, para que ela é necessária?
Diremos que o que se sacrifica no cavalo não é sua vida – em
termos biológicos – mas sua masculinidade: o estupro é um ato
que obtura – assim como penetra – a identidade e a colapsa69.

Uma vez mais, constatamos esse estranho paradoxo que se


dá com o sexo anal entre os homens: o que toma o papel ativo
na penetração não é somente considerado bicha ou sodomita,
mas reafirma a sua masculinidade e sua honra por meio desse
ato sexual.
Em um livro que Parrini publica anos depois (Panópticos y
laberintos: subjetivación y corporalidad en una carcel de hom-
bres [Panopticos e labirintos. Subjetivação e corporeidade em
uma prisão de homens]), vai fazer uma leitura mais complexa
da sexualidade anal nas prisões. Desta vez, analisa a figura da
travesti e vai descobrir um corpo muito mais fluido e dinâmi-
co, que desafia as posições fechadas de veado/homem (veado
significa bicha no espanhol mexicano). Em uma entrevista
sobre o seu livro, Parrini explica o seguinte:

Creio que um ponto importante que trabalhei na investigação


são os deslocamentos entre uma enunciação de masculinida-
de – o plano das identidades – e o das práticas vinculadas com
sua enunciação. Foi uma referência que me permitiu entrar com
maior profundidade no jogo entre parcialidade e reversibilida-

69
Ibid., p. 96.

130 | Pelo CU
de; nela, um interno me falou de um travesti preso que dizia
que “o veado o tinha no cu”, mas que podia bater em quem se
aparecesse na frente. Esse travesti dizia que era um veado e ho-
mem alternadamente e que em seu próprio corpo encontrava
o lugar – o cu – que lhe permitia transitar entre identidades e
posições subjetivas. Por outro lado, tinha encontrado uma dinâ-
mica entre intimidade e estranhamento que apontava um para-
doxo: os conteúdos e as definições identitárias mais apreciadas
e importantes eram um produto social, o estranhamento que se
instalava no coração mesmo da intimidade70.

No livro, ele vai desenvolver a ideia de que é a repulsa ao


sexo anal que mobiliza a repulsa, não é a orientação sexual tal
e qual entendemos hoje em dia:

Veado e bicha são expressões de linguagem cotidianas no Méxi-


co, utilizadas também na prisão. São termos que tentam identi-
ficar alguém, ao mesmo tempo que os desqualificam, e que sem
dúvida tem uma carga homofóbica. Não obstante, respondem a
um imaginário sexual que não se organiza em torno das prefe-
rências sexuais tal como as delimita a sexologia e o sentido co-
mum sexual moderno – heterossexual, homossexual, bissexual
–, mas por meio de uma polaridade de identidades e posições
subjetivas: homem-veado. Neste ponto, devemos indicar que a
homofobia da prisão não corresponde ao rechaço de uma iden-
tidade – o gay, o homossexual – mas de um desejo, uma prática
corporal, uma posição nas relações de poder que se conjugam
no “veado”. Aqui, a homofobia deve ser lida como um rechaço
contundente ao abjeto que se condensa no veado (rechaço que
constitui o abjeto em seu gesto). O abjeto, a parte decaída de
um sistema, o lixo, os rechaçados, as sobras: isso é um veado.
Por isso mesmo, funciona como o elemento caído, expulso, em

70
http://jbcs.blogspot.com/2008/04/entrevista-rodrigo-parrini-corporalidad.

131 | Pelo CU
polaridade com o homem: completo, integrado, prestigioso, es-
timável71”.

Segundo Parrini, na ordem carcerária, ao menos no âm-


bito do gênero e da sexualidade, não há hierarquias estritas
nem posições fixas e estáveis. As identidades se transplantam
e fluem. O que assinala esse travesti é que o veado o tem no
cu, e uma ordem performativa das identidades e da subje-
tividade. Ela mesma passa por seu corpo desde a bicha até
o machão. Veado, bicha, pelo cu. Mas machão, agressivo de
frente. Portanto essa pessoa está em uma zona intermediária,
em um “entre” permanente. Não é nem somente o veado nem
somente o machão. É ambos ao mesmo tempo, e consecuti-
vamente. Parrini coloca como conclusão que, para entender
o que acontece nas prisões, não se pode manter a polaridade
feminino/masculino, homem/mulher, crendo que o gênero
corresponde à diferenciação de unidades discretas. Ele for-
mula uma posição de “estar entre”, e “entender o gênero como
uma linha, cujos lados são traçados de dentro: se está no cam-
po indeterminado, está entre, e logo desfaz, por assim dizer,
homem e mulher, masculino e feminino”72.
Nos interessa assinalar desta análise que essa passagem do
homem à bicha se faz pela penetração anal. Esse ato, no papel
do receptor, é o que desloca a pessoa de ser um homem a
ser uma bicha (um veado). Por sua vez, quando essas pessoas
abandonam a prisão, ou quando tomam um papel agressivo e
violento, podem retornar a ser “homens”. É o lugar do cu que

71
Parrini, R., Panópticos y labirintos. Subjetivación y corporalidad en una cárcel de
hombres, El Colegio de México, 2007, p. 86.
72
Ibid., p. 88.

132 | Pelo CU
permite esses câmbios, estas transições na subjetividade que,
como vemos, são bastantes fluidas.
OZ, uma das melhores séries de televisão das últimas dé-
cadas, criada por Tom Fontana para a produtora HBO, narra
a vida dentro de uma prisão de segurança máxima. A rique-
za da série está na complexidade das identidades de grupo
e raciais dos presos: afro-americanos, latinos, ítalo-america-
nos, travestis, nazistas, muçulmanos, motociclistas... a série
é muito violenta e, além disso, tem muito conteúdo de sexo
explícito, e mostra sem rodeios as relações sexuais entre os
presos. Ao longo da série, vamos conhecendo as diferentes
percepções sobre o sexo anal, o estupro e a sexualidade, e
como estas variam em função das distintas comunidades que
assinalamos.
Entre os nazistas, é habitual a figura do “cavalo”: um jovem
branco é violentado por um chefe nazi e, a partir daquele mo-
mento, lhe servirá como escravo sexual e como criado; entre
os ítalo-americanos, ser penetrado é o pior que pode aconte-
cer a um homem. Por exemplo, um chefe mafioso fica trau-
matizado por ser estuprado por membros da comunidade
negra. Um advogado branco e hetero primeiro é escravizado
por nazis e, mais adiante, se apaixona por um psicopata que
lhe arruína a vida; as travestis são agredidas pelos nazistas,
pelos negros e pelos latinos... Nessa brilhante série, fica pa-
tente que a percepção do sexo anal varia em função de crité-
rios como a raça, a posição de poder ou a ideologia.
Nos interessa refletir sobre o anal porque tem um papel
central nesses processos de violência. Enquanto não formos
capazes de questionar e subverter os valores associados ao
anal, ao ato de penetração de um cu, não poderemos desman-
telar este regime de terror sobre os gêneros e os corpos.

133 | Pelo CU
Psicanálise : o urso freud muda de ambiente.

Édipo é anal, a analidade é fundadora de Édipo.

Gilles Deleuze, Félix Guattari

Neste capítulo, vamos falar de uma das propostas mais


originais da história do pensamento: a teoria psicanalítica – e
de como um urso burguês vienense do final do século XIX vai
se atrever a colocar no centro do pensamento o sexo, o prazer,
o desejo, o amor e... o cu. Até Freud, a filosofia e a psicologia
eram espaços ascéticos, onde se falava do divino e do huma-
no, da alma e do transcendente, do sujeito e do ser, da razão
e do destino... mas sem corpos, sem desejos, sem falar jamais
de uma das pulsões mais poderosas dos seres humanos, a pul-
são sexual.
Contra o que se pode crer, Freud se interessava bem pouco
pelo sexo no início da sua carreira profissional (nos referimos
teoricamente, não na sua cama). Mas, a partir do trato com
seus pacientes, vai ser capaz de fazer algo não muito usual na
história do pensamento: escutar. Uma de suas pacientes, Ana
O., vai interromper Freud durante sua verborragia médico-
-psiquiátrica e dizer:

135 | Pelo CU
Cale-se! Deixe-me falar! O senhor me escute.

Freud vai decidir fazer caso dessa mulher e vai se dar con-
ta de que as pessoas são capazes de se curar se são escutadas
de outra maneira. Nessa escuta analítica que Freud desen-
volve, mais centrada nos lapsos, nos balbucios ao falar, nas
repetições e nos atos falhos da linguagem, nas associações de
palavras... vai encontrar-se com o que seus pacientes se cho-
cam, às vezes, com algo que ninguém falava abertamente na
Viena do final do século XIX: de sexo. O que Freud percebe
não é exatamente um problema sexual, mas um mal-estar,
barreiras, medos ou complexos que pouco a pouco vão re-
velando-se como conflitos entre as exigências da vida social,
familiar, moral, religiosa e o desejo.
Não vamos entrar aqui em desenvolvimento profundo
da teoria freudiana; vamos simplesmente nos deter em um
dos aspectos menos conhecidos da sua obra, mas que tem
grande relevância para este livro: o prazer anal. Entre 1905
e 1920, Freud vai desenvolver sua teoria sexual, que publi-
ca inicialmente em 1905 com o nome de Três ensaios sobre a
sexualidade. Curiosamente, grande parte dessa obra, desde a
primeira linha, vai ser dedicada ao estudo das “perversões se-
xuais”; porém, não vai considerar a homossexualidade como
ponto negativo, senão como outra escolha de um comporta-
mento sexual humano73. No primeiro capítulo encontramos
a primeira afirmação que irá contradizer o estereótipo sobre
o sexo anal:

73
Para um desenvolvimento mais exaustivo da relação entre Freud e a homosse-
xualidade ver Javier Sáez, Teoria queer y psicoanálisis.

136 | Pelo CU
Entre os homens, a inversão não supõe necessariamente o coito
per anum (...) o papel sexual da mucosa anal não se encontra em
nenhum caso limitado ao sexo entre indivíduos masculinos. Sua
preferência não constitui uma característica da inversão74.

Contudo, o mais notável de Freud neste campo vai ser o


reconhecimento de uma fase anal no desenvolvimento libi-
dinal de todos os seres humanos, uma fase que ele situa na
infância, entre a fase oral, a primeira fase, a fase genital, que é
a última fase, temporalmente falando.

Também a zona anal é como a zona bucal-labial, muito apro-


priada por sua situação para permitir o apoio da sexualidade
nas outras funções fisiológicas. A importância erógena originá-
ria dessa zona deve ser muito considerável. Por meio da psica-
nálise, chegamos a conhecer, não sem assombro, que transfor-
mações experimentam as excitações sexuais emanadas da zona
anal e com que frequência conserva esta última, por toda a vida,
certo grau de excitabilidade genital75.

Freud vai desenvolver toda uma teoria, absolutamente


escandalosa para sua época, provavelmente também para a
nossa, sobre o uso que fazem os meninos e as meninas da
zona anal como lugar de negociação de prazer, de poder, com
o uso da retenção ou expulsão das fezes, e com prazer eróge-
no associado a ele. De fato, para Freud, o conteúdo intestinal
é um corpo excitante da mucosa sexualmente sensível. Para
Freud, os excrementos, sua retenção ou expulsão, cumprem

74
Freud, S. Tres ensayos para una teoría sexual, em Obras completas, tomo II. Bi-
blioteca Nueva, Madrid, 1981, p.1182.
75
Freud,S. Tres ensayos para una teoría sexual, em Obras completas, tomo II, Biblio-
teca Nueva, Madrid, 1981, p. 1182.

137 | Pelo CU
uma clara função masturbatória para o menino ou a menina.
Além disso,

Os excrementos para a criança “são como um presente” com o


qual pode mostrar sua docilidade às pessoas que lhes rodea ou
sua negativa a gratificá-las76.

O revolucionário de Freud é que pela primeira vez na his-


tória existe um reconhecimento claro do prazer anal nos seres
humanos, com intenção de explicá-lo, e, além disso, sem co-
locar um juízo moral sobre esse prazer.
Neste mesmo ensaio, Freud cita com admiração a psica-
nalista Lou Andreas-Salomé que, em 1916, publicou um in-
fluente artigo intitulado “Anal und sexual”. Essa analista vai
abordar um aspecto fundamental do que rodeia a sexualidade
anal e o fato de ser proibida, reprimida, social e familiarmen-
te. Andreas-Salomé tem a perspicácia de compreender que a
primeira proibição que se coloca diante do menino e da me-
nina é a de procurar um prazer por meio da atividade anal.
Essa proibição terá uma influência determinante sobre todo
o seu desenvolvimento posterior. Freud expõe as análises de
Andreas-Salomé da seguinte maneira:

A criaturinha deve começar a se dar conta da existência de um


mundo exterior hostil a seus impulsos instintivos, e aprender a
separar seu próprio ser desse desconhecido, efetuando então o
primeiro “recalcamento” de suas possibilidades de prazer. Neste
momento, o “anal” permaneceria como símbolo de tudo o que
deve ser repudiado, afastado da vida. A absoluta separação pos-
teriormente exigida entre os processos anais e genitais contradi-
z-se pelas estreitas analogias e ligações anatômicas e funcionais

76
Ibid, p. 1203.

138 | Pelo CU
entre os dois. O aparato genital permanece próximo à cloaca e
inclusive não é, na mulher, senão uma “dependência” daquela77.

Não podemos encontrar uma explicação mais clara do que


ocorre em torno do erotismo anal, bem como a chave de sua
repressão. O problema da repressão é que se reprime o que
se deseja, e isto sempre deixa marcas no sujeito. Nosso sis-
tema de valores condena todo mundo a reprimir e suprimir
uma parte importante de si mesmo, um desejo e um prazer
que existem desde a infância; é como uma mutilação genital
simbólica. Afortunadamente, não se pode mutilar um buraco
e menos ainda fechá-lo, de modo que a tentação sempre está
lá, e o ato de defecar nos lembra cotidianamente deste pra-
zer. O retorno do recalcado aparece no caso do anal de forma
real, física, com prazer inegável que sentimos ao cagar. Para
entender a violência e o ódio irracional que existem em torno
da penetração anal é importante recordar esse fato; estamos
partindo de uma situação de autorrepressão, de uma ativida-
de que é desejada por cada sujeito, de um processo doloroso e
violento de renúncia de uma parte de nosso prazer e de nosso
corpo. Todo esse ódio contra o anal não faz outra coisa senão
mostrar o próprio desejo.
A investigação do anal por Freud não vai terminar aqui.
Anos depois de seu ensaio sobre a teoria sexual, Freud pu-
blica três artigos sobre este tema: O caráter e o erotismo anal
(1908), A disposição à neurose obsessiva (1913) e Sobre a
transmutação dos instintos e especialmente do erotismo anal
(1915) onde vai desenvolver duas novas ideias, não menos
originais e atuais. Não sabemos se na Viena de 1910 havia
muitos bares, mas, a julgar por esses textos, se diria que o

77
Citado por Freud Tres ensayos… na nota 679, de 1920, p.1203.

139 | Pelo CU
nosso querido urso vienense passou alguns meses por bares
de ambientes S/M porque, de repente, se coloca a falar tão
tranquilamente de ativos e passivos, de “beijar a bunda” e de
sadomasoquistas.
Dito isto, em seus três artigos, Freud desenvolve, a partir de
suas experiências com as crianças (supomos que na consulta e
não no sling) uma teoria onde põe em relação o erotismo anal
com a polaridade atividade-passividade: Freud faz coincidir a
atividade e a passividade com o masoquismo e com o erotismo
anal, e atribui a cada uma das pulsões parciais correspondentes
uma fonte distinta: musculatura para a pulsão de dormir ou
apoderamento (Bemächtigungstrieb) e um órgão cujo fim se-
xual é passivo, representado pela mucosa anal.
Mas é importante assinalar que Freud não quer dizer que
essas duas posições (ativo-passivo) correspondem a duas pes-
soas diferentes, uma que seria somente ativa e outra que seria
somente passiva, mas que ambas as pulsões são componentes
intrínsecos da vida psíquica do sujeito, ou seja, que esse par
de opostos está presente simultaneamente em cada um. Isso
é fundamental para entender que cada sujeito pode adotar
papéis ou posições ativas ou passivas, sádicas ou masoquistas,
penetrantes ou penetradas. Também nos serve para entender
o que temos visto nas culturas S/M, onde os papéis de amo-
-escravo ou ativo-passivo são reversíveis.
A segunda ideia de Freud tem relação com o que se pas-
sa com aqueles que efetivamente reprimem essa pulsão anal.
Para Freud, há certos traços de caráter que persistem em al-
gumas pessoas adultas, como uma consequência de ter subli-
mado as pulsões anais. Trata-se de pessoas ordenadas (pul-
cras, escrupulosas, complacentes), econômicas (centradas no
dinheiro, inclusive avarentas) e tenazes; essas características

140 | Pelo CU
definem o que ele chama de caráter anal. Tem-se uma perda
do interesse erótico do anal, um interesse que essas pessoas
haviam tido de forma acentuada na infância, e se produz um
deslocamento de posição: da sujeira das fezes, rumo à ordem,
à limpeza. Das fezes que não valem nada, à sua antítese, o
dinheiro. Do relaxamento que supõe o defecar, à tenacidade,
ao controle obstinado e, às vezes, colérico.
Tratando de explicar a tenacidade e sua relação com o anal,
Freud faz duas referências geniais: a expressão beija minha
bunda e o mostrar a bunda a seu inimigo como formas de de-
safio. Graças a Freud, sabemos que na Viena de 1908 dizia-se e
fazia-se essas coisas. Para Freud, a frase beija minha bunda não
é nem mais nem menos que “um convite à carícia que sucum-
biu à repressão78”. Também ocorre a Freud que as palmadas na
bunda, que nossos pais nos davam para castigar ou para nos
fazer obedecer, como esse estímulo reprimido do anal. Resu-
mindo: é melhor ser uma bicha liberal que desfruta da sua bun-
da que um mesquinho tacanho obcecado com a ordem (bem,
Freud não disse isso exatamente, mas é a nossa leitura).
Outra coisa surpreendente em Freud, em comparação
com a opinião dominante, é que ele não faz juízo de valor
especial em relação ao erotismo anal como algo negativo ou
doentio. Nos quatro textos que assinalamos, existem referên-
cias a pessoas que mantêm, como adultos, um interesse pela
sexualidade anal, mas sem nenhum juízo a respeito, simples-
mente como uma possível conduta sexual, sem mais. E, como
já mostramos, tampouco considera que o sexo anal seja uma
pratica exclusiva dos homossexuais, bem como lhe contam os
seus pacientes.

78
Freud, S., El carácter y el erotismo anal, p. 1356.

141 | Pelo CU
A análise de Freud nos serve também para entender algo
que talvez todos nos perguntemos alguma vez. Como certas
zonas de nosso corpo viram zonas erógenas? Não faz falta al-
guma a justificação dos nossos prazeres, nem alguma expli-
cação de por que podemos sentir prazer na zona anal, ou na
boca, ou em outros órgãos ou outras partes do corpo. Mas
não deixa de ser interessante conhecer a explicação freudia-
na. Para Freud, qualquer parte do corpo humano é suscetível
de ser carregada com valor sexual segundo as experiências e
vivências de cada um/uma. Contudo, o corpo é especialmen-
te sensível naquelas partes onde existem aberturas, onde exis-
te intercâmbio, ou seja, nos orifícios, no lugar onde sai, entra
ou se perde algo. É o caso da boca, do ânus ou dos olhos.
Existe uma relação especial entre o corpo e a separação de
certos objetos; é nessas bordas de separação entre o interior e
o exterior que se instala um interesse especial, onde aparece
uma excitação particular.
Por isso, Freud vai elaborar também a teoria de que nos
vinculamos especialmente com aqueles objetos que perde-
mos: o seio, objeto de sucção, as fezes, objeto da excreção,
a voz e o olhar. Esses objetos nos trazem fascinação, prazer
– ao sugar um seio ou um pênis, reincorporamos oralmente
esse objeto perdido; o evacuar, o escorregar das fezes no ânus
produz prazer (e ao introduzir pênis, dildos, mãos e objetos
na bunda, também se produz excitação sexual, embora Freud
não mencione estes tipos de atos); existe um prazer em falar,
em emitir a própria voz, e na escuta de certas vozes que nos
rodeiam; o olhar é algo que parece surgir dos olhos, é uma
abertura ao mundo e, ao mesmo tempo, necessitamos que
nos olhem, que haja outro que nos devolva o olhar.

142 | Pelo CU
Desde Freud, há ao menos um reconhecimento da zona
anal como um lugar habitual e generalizado de prazer sexual.
Um século depois de seus Três ensaios sobre a sexualidade
(onde Freud defende a existência de uma dimensão anal em
todos os sujeitos, e a existência da sexualidade infantil), per-
manecem não reconhecidas socialmente essas dimensões da
sexualidade humana.
Não obstante, queremos terminar este capítulo assinalan-
do algo que nos chamou a atenção. Em todos os artigos que
Freud dedicou ao erotismo anal, e nas referências que outros
psicanalistas como Ferenczi ou Lacan fazem, trata-se sempre
de uma visão do anal como espaço de saída, de expulsão das
fezes, como um espaço de passagem sempre de dentro para fora.
Em nenhum momento se estuda o que se passa com o desejo
de introduzir objetos ou pênis, o que ocorre com o sexo anal
receptor, nem se menciona experiências ou casos de pessoas
que desfrutam dessa dimensão do anal “passiva”. É surpreen-
dente que em cem anos de psicanálise, todos caiam no lapso
gigantesco de não abordar o prazer anal “para dentro” do cu
como espaço receptor.

143 | Pelo CU
O cu e a aids

A AIDS... Vai tomar no cu!


AIDS: tire-a já de trás.

Pichação no banheiro do cinema Carretas de Madri.

Homofobia, o corpo da bicha e “seu” cu

A AIDS serviu para deixar claro, entre outras coisas, que


a abjeção do cu podia se sofisticar até parâmetros insuspeitá-
veis. Não em vão, o que devia e o que deve ser tratado como
uma crise de saúde pública se transformou em uma ameaça
sexual sem precedentes na história, o cu convertendo-se no
paradigma do corpo pecador, do corpo sem cabeça que podia
desembocar na morte sem qualquer reflexão.
A redução do corpo das pessoas que tinham AIDS, o ai-
dético, a aidética, serviu para que a homofobia adormecida
nos países ocidentais (devido às consequências da liberação
sexual nos anos 60 e 70) se recolocasse com uma crueldade
somente comparável com a Inquisição, o genocídio hispâni-
co na América ou a Shoah. Por fim, o apocalipse chegava de
mãos dadas com o corpo obsceno. Por fim, a sábia natureza
colocava em seu devido lugar aqueles que faziam uso de seus

145 | Pelo CU
órgãos para o prazer, para o vício. O deus do livro, da Torá, da
Bíblia e do Alcorão, demostrava aos seus seguidores que sua
capacidade de vingança e crueldade não havia apaziguado. O
sodomita voltava a surgir. O sodomita, que era o catalizador
de todos os males do mundo, retornava a trazer a destruição
e o caos, devido ao uso desordenado do seu corpo. Não era
preciso fazer referência a nenhum Deus, desta vez era a “sábia
natureza” que se encarregava de passar a conta, demostrando
que o direito natural emanava da divindade, que a natureza
não permitia que se variasse o uso biológico de nenhum ór-
gão humano.
As formas de transmissão do HIV, por penetrações sexuais
sem proteção e por compartilhar material para injetar drogas,
deixavam claro como e a quem a enfermidade tinha que in-
fectar. No início, inclusive, chegou-se a definir a AIDS como
a enfermidade dos “quatro agás”: homossexuais, haitianos,
hemofílicos e usuários de heroína e, com exceção das pessoas
hemofílicas, os outros três grupos já tinham características
de marginalidade social. Se bem que no caso dos haitianos se
pôde estabelecer que, ao contrário do que estava amplamente
difundido (os culpavam de introduzir a epidemia da AIDS
nos Estados Unidos), foi o turismo sexual dos estadunidenses
o responsável de que, nas condições de pobreza dos haitianos,
a AIDS virasse endemia nessa nação.
As pessoas com hemofilia eram pobres vítimas “inocen-
tes” que, por necessitar de transfusões, infectaram-se, dei-
xando assim a culpa e a intenção a outros grupos que eram
identificados como buscadores da enfermidade e da morte
pelo uso descontrolado de seus corpos. As pessoas que inje-
taram heroína passaram a ser casos incuráveis, já que o vício
tornava impossível qualquer terapia ou prevenção; é que o

146 | Pelo CU
corpo viciado sempre foi visto, também, como abjeto e exter-
minável ou, pelo menos, como um corpo que deve restituir-
-se, deixando a droga para ter acesso às mínimas condições
de existência. Na atualidade, ainda segue-se funcionando sob
os mesmos parâmetros; a expansão da pandemia nos antigos
países do bloqueio soviético se dá, sobretudo, pela ausência
política de redução de riscos em usuários de drogas injetadas,
e a eclosão que se dará ante a falta de campanhas de preven-
ção sexual se converterá em uma nova crise de saúde para
muitos desses países. Mas ninguém se interessa por um junky:
se já é um junky, se já está situado à margem da sociedade...
para que intervir?
A história social da AIDS foi, em boa parte, a história da
culpabilização das suas vítimas. O medo, que sempre se encar-
regou de impedir a evolução das mentes, transforma a AIDS,
de fenômeno social, em uma enfermidade social e não física.
De um ponto de vista ideológico, culpabilizar as vítimas
têm a função de ocultar o papel fundamental das diferentes
condições, sociais, econômicas, raciais, de gênero e sexuais,
na criação e expansão das enfermidades, e coloca a respon-
sabilidade da prevenção e do tratamento exclusivamente
nos indivíduos, transferindo para o cidadão a obrigação do
Estado sobre a saúde da população. Quando a pobreza e a
exclusão vão de mãos dadas, e é a maioria das vezes, as con-
dições de saúde podem ser mínimas ou inexistentes e, nessa
medida, torna-se impossível separar os problemas de saúde e
das desigualdades sociais; e é aqui que surge a grande questão
ideológica que fundamenta a pandemia da AIDS: os doentes
são os culpados de sua enfermidade ou são produtos da desi-
gualdade social?

147 | Pelo CU
Quanto à letra H que nos diz respeito, homossexuais, o
rearmamento das políticas, práticas e opiniões mais conser-
vadoras não se fez esperar: o “câncer rosa” era visto como uma
nova praga divina, dessa vez não indiscriminada, que limpa-
ria dando exemplo ao nosso mundo. Para isso, era necessá-
rio fazer uma leitura da AIDS em um texto difuso, obscuro
e quase inexistente: o corpo da bicha e seu ânus. E é neles
que surgirão e convergirão diferentes significados e discursos
que autorizem e hierarquizem os corpos, práticas e órgãos.
A bicha e seu ânus, ímã da desgraça divina, não somente era
merecedor do castigo, do pior dos castigos: uma deteriora-
ção visível, uma encarnação da enfermidade que augurava,
na dolorosa agonia, até a morte. A bicha era quem transmitia
essa enfermidade pelo cu e, assim, situava-se em um plano de
objeto eliminável, controlável. A ausência de conhecimento
sobre a transmissão do HIV, que se apresentou quando surgiu
a epidemia, servia para tratar a bicha como o corpo infeccio-
so, o vetor da transmissão, não do vício ou do pecado, mas da
morte. O rechaço ao corpo enfermo não se baseava somente
em categorias morais ou ideológicas, agora a relação com a
bicha constituía uma aproximação cruel com a morte.
Mil histórias pessoais servem para ilustrar o genocídio
que se produziu no início da pandemia, viúvos reduzidos à
miséria pela sua família homofóbica, bastardos torturados
por seus progenitores com a vingança do “você buscou isso”,
corpos abandonados a sua própria sorte nos piores lugares
das instituições de caridade.
Mas, embora todos esses mecanismos pudessem ser ame-
nizados pela correção política que a sociedade teve que ar-
rancar mediante ações espetaculares, manifestos, die in’s,
zappings das pessoas afetadas, nada serviu para evitar os dis-

148 | Pelo CU
positivos de exclusão e morte, não obstante, ativos em paí-
ses fora do Ocidente. A resposta dos afetados, sobretudo nos
Estados Unidos e na Europa, serviu para mudar as políticas
farmacêuticas, impulsionar a investigação, acelerar os trata-
mentos e, em alguma medida, para mudar a atitude da admi-
nistração diante da enfermidade.
Assim, surgem grupos como GMHC, Gay Men’s Health
Crisis (crise de saúde dos homens gays), que da própria co-
munidade gay tentava dar apoio às pessoas infectadas. Em
um primeiro momento, o grupo serviu para conseguir um
mínimo de resistência e questionamento da homofobia triun-
fante que representava o chamado Câncer Rosa, assim como
para iniciar a esboçar o que devia ser uma prevenção sem
preconceitos. Com o tempo, o grupo se caracterizou por um
viés assistencial. Isto provocou uma volta inesperada ao ati-
vismo e deu andamento à criação, em que participaram al-
guns dos fundadores de GMHC como Larry Kramer, de Act
Up AIDS Coalition to Unleash Power (Coalisão da AIDS para
desencadear o poder); embora o mesmo termo de Act Up sig-
nifique também, em inglês, portar-se mal, guerrear, molestar.
Esse grupo nasce em Nova York e outros aparecem nas
principais cidades dos EUA e Europa. Act Up surge com um
conteúdo claramente político e reivindicativo: ações na bol-
sa de Nova York para exigir investimento na investigação da
doença, manifestações para conseguir a gratuidade ou o ba-
rateamento dos medicamentos, denúncia de homofobia, do
machismo e do racismo, convertendo-se em uma referência
do ativismo que posteriormente conhecemos como queer79.
Um dos grupos mais ativos do Act Up é o de Paris, que rea-
79
Ver o artigo de Javier Sáez, El contexto sociopolítico de surgimento de la teoria
queer. De la crisis del sida a Foucault. Em Córdoba, D., Vidarte, P., Sáez, J., Teoria
queer. Políticas bolleras, maricas, trans mestizas.

149 | Pelo CU
liza ações de grande repercussão midiática, questionando as
políticas sanitárias e os discursos homofóbicos que se dão na
França atualmente. Dentro do campo do ativismo artístico-
-cultural, surgiu nos EUA o grupo Grand Fury, que, a partir
da criação artística, conseguiu mudar alguns paradigmas com
os quais o poder manejava a crise, ao mesmo tempo em que
ressaltou os diferentes conteúdos clássicos da exclusão, que
se encontravam dentro desses paradigmas. Embora tenham
conseguido que o trabalho homossexual fosse reconhecido
em alguma medida, não conseguiram estabelecer políticas
anti-homofóbicas (e por que não políticas sodomitas ou polí-
ticas anais), o que por um lado freava o número de infecções
e, por outro, iniciaram políticas de tolerância que acabaram
com os preconceitos.
O HIV iria crescer nos setores mais débeis da sociedade
e do planeta. Esta profecia, altamente realizada, nos deixou
um panorama no qual a classe, a raça, o gênero e as sexua-
lidades minoritárias foram fatores determinantes para o de-
senvolvimento da pandemia. Também é certo que a enorme
mobilização que conseguiu mudar o discurso, baixar o preço
dos remédios e incluir políticas preventivas não estigmati-
zantes, não conseguiu suficientes alianças com outros setores
progressistas ou de esquerda, demonstrando que o gênero e a
homofobia são critérios transversais, alheios aos movimentos
sociais. O machismo e o racismo parecem ganhando espaço
nos movimentos antimilitaristas, ecologistas, solidários... e
parece que ainda estamos longe de ver estas manchas lavadas.
Apesar de suas conquistas, esses grupos de luta contra a
AIDS não conseguiram eliminar a crosta de homofobia que
há nas políticas preventivas da atualidade, com preconceitos
que as tornam falhas em efetividade. Para não falar das escas-

150 | Pelo CU
sas (e homofóbicas) políticas de prevenção que se apresentam
em países empobrecidos, onde não há nenhuma vontade po-
lítica de mudar a pandemia80.
Caiu-se em certo otimismo, ao conseguir que as campa-
nhas de prevenção ao HIV deixassem clara a via de transmis-
são do HIV; acreditou-se, também, que com o surgimento de
remédios antirretrovirais e da terapia antirretroviral de alta
eficácia, TARGA na sua sigla em inglês, seria possível parar
a pandemia por um lado, ao mesmo tempo em que se im-
plementava políticas sociais e sanitárias paliativas, em certa
medida, contra a homofobia e as desigualdades de gênero e
de etnia. Novamente, a modernidade ia para a lona vendo
como as boas intenções se dissolvem com a mudança política,
sobretudo conservadora e direitista. As políticas preventivas
continuam sem utilizar, como critérios transversais, as lutas
contra a homofobia ou as desigualdades de gênero e éticas. As
administrações públicas se limitam a realizar campanhas mo-
ralistas e ambíguas. Todavia, está claro que a moralização e a
tibieza dessas campanhas continuam situando-se em uma or-
dem onde o sistema heterocentrado é inquestionável; assim, a
leitura que se pode fazer das mensagens que estas instituições
lançam é que parecem ser dirigidas única e exclusivamente
para pessoas que se encontram fora da norma sexual. A absti-
nência e a fidelidade se dão como chave mais segura para evi-
tar a infecção; um reforço moral, diante do qual as diferentes
religiões monoteístas não ficaram de fora, entre as quais se
destacou a Igreja Católica.
Se esse tipo de política demonstrou sua ineficácia nos paí-
ses ricos, no caso dos países pobres supôs e supõem autênticos
80
Ver o texto de Paco Vidarte “DHIVorcio y matrimonio gay”, Periódico Diagonal,
16 de junho 2006, número 11. E também na página http://www.hartza.com/ma-
trimoniogay.htm

151 | Pelo CU
genocídios. As políticas de cooperação do presidente Bush
na África condicionaram toda a ajuda a utilizar aquilo que
se chamou na época de ABC abstinence, be faithful and con-
doms, abstinência, fidelidade e, se não pode remediar, cami-
sinhas, frente às diretrizes da UNAIDS, organização da ONU
para a AIDS, que recomendava as políticas CNN, condoms,
needless and negociation, camisinhas, seringas (compreende-
-se o seu intercâmbio com usuários de drogas injetáveis) e
negociação das práticas sexuais, com o empobrecimento que
isso supõe para as pessoas em situação de clara desigualdade
social: mulheres, trabalhadoras do sexo, homens que fazem
sexo com homens, pessoas transexuais...
Um exemplo dessa nefasta política é o caso de Uganda.
Uganda é um dos países africanos que mais recebe ajuda in-
ternacional, mas sob a administração Bush as ajudas de mate-
rial de saúde foram com a condição de colocar em prática as
políticas baseadas no ABC.
No ano de 2006, a administração ugandesa informava que
os casos de infecção por HIV haviam diminuído, ao mesmo
tempo em que haviam conseguido elevar a idade de iniciação
nas práticas sexuais; heterossexuais, bem entendido. Esses da-
dos, que foram publicados sem nenhuma verificação, foram
em seguida propagados pela administração norte-americana
e seus seguidores, como as seitas cristãs fundamentalistas, a
igreja católica incluída, para demonstrar que a abstinência
sexual era a arma mais eficaz para impedir o crescimento da
pandemia, em detrimento da potencialização do uso de pre-
servativos. Essas políticas nefastas foram monopolizadas pela
seita vaticanista para incrementar suas mensagens contra o
uso do preservativo, desta vez não sob o prisma moral, mas,
e muito cinicamente, com o pretexto pseudocientífico de que

152 | Pelo CU
a abstinência é a melhor arma contra a transmissão do HIV.
Assim, essa ideia foi amplamente difundida em todas as men-
sagens que os dirigentes emitiam nas chamadas viagens apos-
tólicas para a população africana, dizimada pela pandemia e
as políticas econômicas genocidas dos países ricos.
A ausência de dados sobre o aumento das infecções e suas
vias de transmissão foi uma constante na pandemia da AIDS.
Se nos países ocidentais, que se supõem mais avançados
com respeito à liberdade sexual, é difícil recolher dados por
conta da homofobia imperante ou pelo moralismo com que
se observam as práticas sexuais não normativas, em países
como Uganda, onde não há meios para o recolhimento des-
ses dados (e onde há uma grande tradição homofóbica, em
grande medida devido às crenças cristãs, que são majoritárias
no país), há ainda mais dúvidas sobre a confiabilidade desses
resultados.
Em Uganda, a homossexualidade é castigada com pena de
até 14 anos e, na atualidade, seu parlamento está estudando
aumentar o castigo para a pena de morte. Uma das formas
mais transmissíveis do HIV é a penetração anal, prática, por
outro lado, que goza de grande estima nas relações homos-
sexuais entre homens, mas que está sujeita a duros castigos
legais (para não falar no rechaço social); nessas circunstân-
cias, como se pode dar alguma confiabilidade aos dados pu-
blicados?
O Vaticano e seus sicários fizeram do continente africano
o campo de batalha para a sua última cruzada antissexual;
suas mensagens não somente de pró-abstinência, mas tam-
bém frases como “camisinhas não evitam a AIDS”, são, sem
dúvida, um claro exemplo de políticas criminosas com pres-
supostos racistas e fomentadores do ódio; essas mensagens

153 | Pelo CU
não são condenadas pela administração pública, apesar de
sua ausência de critérios científicos. Novamente, a ausência
de políticas anti-homofobicas ou a existência de políticas an-
tianais, continuam produzindo injustiça, sofrimento e morte.

Para uma prevenção no sentido anal

Falar de bichas é falar do cu e como bem dizia Paco Vidar-


te em sua Ética bicha: “não é o mesmo que o poder entende
do cu de uma bicha e o que uma bicha entende do seu cu”.
O cu é a essência da bicha, é seu leitmotiv e órgão pelo qual
perde a sua dignidade e se converte no abjeto, no indesejável
e exterminável.
Os aspectos biológicos que têm lugar na penetração anal
nos dão a explicação fisiológica do porquê do HIV e de outras
infecções se transmitirem com tanta eficácia nessas relações.
O reto é significativamente diferente da vagina no que diz
respeito à adequação para a penetração do pênis. A vagina
tem lubrificantes e o apoio de uma rede de músculos. Ela é
composta por uma membrana mucosa com um epitélio es-
tratificado em várias camadas, que permite aguentar a fricção
sem danos e resistir às infecções imunológicas causadas pelo
sêmen e pelo esperma.
Por seu lado, o ânus é um delicado mecanismo de mús-
culos pequenos e seu potencial de dano é grande pelo fato de
o intestino ter uma única camada de células que o separa do
tecido altamente vascular, isto é, o sangue. Portanto, qualquer
organismo que se introduza pelo reto tem uma maior facili-
dade na hora de estabelecer o ponto inicial de uma infecção
do que uma vagina. Desta realidade se vê o grande consu-
mo de cremes lubrificantes entre a população que goza com

154 | Pelo CU
o sexo anal, pois com eles se consegue uma penetração muito
mais agradável e um menor risco na prazerosa fricção.
O parceiro que insere (ativo) também corre risco, porque
as membranas de dentro da uretra são uma via de entrada
para a corrente sanguínea do HIV, que pode ser encontrado
no sangue do ânus. Desgraçadamente, o acaso biológico se
coloca novamente do lado do poder. A pessoa receptora, a
que toma no cu, corre um maior risco no momento da in-
fecção pelo HIV do que a que insere. A mucosa anal é muito
absorvente (os supositórios que muitos homens se negam a
usar, presumindo que seguem a linha de Luis Aragonés e seus
camarões), é uma forma de fazer os medicamentos entrarem
na corrente sanguínea muito rapidamente, fazendo com que
seu efeito seja mais rápido. Além disso, essa mucosa é mais
frágil devido à facilidade em rasgar e abrir (as famosas micro-
feridas). Mais ainda, o sêmen, tem componentes que são imu-
nossupressores. No curso da fisiologia reprodutiva normal,
isso permite ao esperma evitar as imunodefesas da mulher.
O resultado final é que a fragilidade do ânus e do reto, junto
com o efeito imunossupressor da ejaculação, faz da relação
ânus-genital uma maneira muito eficaz de transmitir o HIV
e outras infecções. A lista de enfermidades encontradas com
extraordinária frequência entre homens que praticam o coito
anal é bastante abundante: câncer anal, Chlamydia trachoma-
tis, cryptosporidium, giardia lamblia, herpes simples, o HIV,
o vírus do papiloma humano, isospora belli, microsporídia,
gonorreia, hepatite viral B e C, sífilis.
Desta forma, pode-se estabelecer uma hierarquia nas prá-
ticas sexuais segundo o risco de transmissão do HIV, não tan-
to para outras DST, e esta hierarquia de risco deve ser a base
para qualquer tipo de prevenção. Mas, infelizmente, os pou-

155 | Pelo CU
cos êxitos obtidos no começo da pandemia para implemen-
tar políticas preventivas que escapem a preconceitos morais
(acompanhadas de outras que combateram tanto a homofo-
bia legal quanto a social) não parecem ter colhido grandes
frutos e foi perdendo força em detrimento de políticas mais
formais, mais corretas, que demonstram a sua ineficácia.
Como é possível estabelecer políticas de prevenção sem
levar em conta as políticas anais? De uma concepção hetero-
centrada da sexualidade não se pode colocar práticas políti-
cas preventivas anais. De fato, na maioria das campanhas da
administração, a prevenção parte de pressupostos normaliza-
dores, com poucas exceções, e em nenhum momento chegam
a situar o cu como eixo central da mensagem.
Conhecemos os valores que existem sobre a penetração,
valores que dentro do sistema heteropatriarcal não são so-
mente símbolos, mas que, como é o caso que nos chama aten-
ção, estão totalmente encarnados em corpos e correspondem
a um segundo nível, a algo inferior. O penetrador é “ativo”,
aquele que insere sabe o valor social de se meter num cu ou
numa boceta: é uma demonstração de superioridade, de po-
der e de status. Isso é publicizado, estimulado até o paroxis-
mo: não basta ter um pinto, um privilégio, também há que
penetrar outro corpo como forma de possessão e dominação,
como conquista. Todavia, onde encontrar o valor de ser pe-
netrado? Se aquele que penetra detém o poder, que não é o
prazer, em que espaço se encontra quem expõe seu amigável
traseiro ao penetrador? Como é possível viver o prazer, o or-
gulho e a dignidade de sentir a penetração, quando todos os
discursos se baseiam na depreciação do penetrado?81

81
Ver Bersani, L., “Es el recto una tumba?”, em Llamas, R., Construyendo sidenti-
dades.

156 | Pelo CU
Dentro dos milhares de mecanismos que entram na cons-
trução do desejo, o penetrado se situa no espaço de submis-
são, o passivo recebe a ação sem mais atitude que o ofereci-
mento, tão injuriado socialmente. Não nos encontramos com
alguns penetrados que, em seu foro íntimo, buscam o castigo
pela vergonha de seus atos? O passivo busca castigo quando
lhe fodem? Se é assim, o desejo de trepar sem camisinha é
parte da busca de um castigo? Ou nos encontramos diante de
uma forma de depredação sexual que renuncia à sua saúde
por conseguir um pau para botar dentro? A camisinha é a
única forma de prevenção em uma penetração anal? Como
fazer uma prevenção para o passivo-receptor? Pode-se fazer
uma prevenção não vitimista? Não será o passivo uma vítima
de um sistema de valores onde a passividade é o último grau?
Pode-se gerir a prevenção numa abordagem mais ampla e
explícita do papel do receptor? Como pedir ao passivo uma
verbalização de sua analidade sem cair em uma confissão no
sentido em que fala Foucault? Como dotar o cu de um grande
orgulho pelo prazer que outorga? Todas essas questões são
cruciais para iniciar novas políticas de prevenção baseadas no
orgulho passivo.
É necessário estabelecer discursos, práticas e atitudes
que não só questionam os valores do penetrador, mas que
destaquem os valores do penetrador. Durante muitos anos,
reconheceu-se que é provável que os programas contra o
HIV-AIDS dirigidos a homens “gays” alcancem só a uma
proporção pequena do público ao qual foram direcionados,
particularmente ao mundo em vias de desenvolvimento. Para
muitos homens que têm sexo com outros homens, gay é um
conceito estrangeiro; surge dos Estados Unidos, de uma clas-

157 | Pelo CU
se média, associam-no ao afeminado, ao travestido, ao trans-
gênero, ou é uma palavra que eles raramente escutam.
Por esta razão surge o termo homens que fazem sexo com
outros homens, HSH, para descrever todos os envolvidos no
sexo entre homens, sem importar suas circunstâncias, prefe-
rências ou autoidentificação. Mas o sodomita se sente iden-
tificado nessa categoria? HSH é um termo que pode ser al-
tamente questionado, já que ainda nasce da necessidade de
uma prevenção mais eficaz, mas retorna a ocultar, sofistica-
mente, uma prática sexual, a penetração anal, que deve ser o
centro de uma verdadeira prevenção.
Para que manter uma categoria cuja leitura pode ser com-
portamental, epidemiológica ou ativista, se a população a
quem é dirigida não se sente identificada? O que fazer quan-
do tal falta de inclusão está totalmente relacionada com sua
vulnerabilidade à infecção? Se, ao final, essa categoria é redu-
zida à de bicha, à de sodomita, à de tomar no cu, por que não
criar campanhas que se dirijam a essas práticas, independen-
temente das identidades de seus praticantes?
O mesmo léxico, passivo versus ativo, já supõe uma gra-
duação em si. Mas outras definições, como a de insertivo e
receptivo, médica e cientificamente, utilizada para descrever
a prática do coito anal com certo grau de distanciamento, não
têm melhor sorte, e tampouco as criadas dentro da própria
comunidade, se bem que é certo que partem de pressupostos
distintos. A passivofobia nos ambientes gays segue tendo sua
cota, bastante animada por uma norma heterocentrada. Top
e Bottom, acima e abaixo, não escapa a uma mínima valo-
rização sobre o que se entende por poder, mas, ao menos,
a definição passaria a uma ordem mais geométrica e menos
biológica. A primeira premissa de uma política anal, visto que

158 | Pelo CU
a reapropriação dos termos é custosa, deve ser criar novos
tropos, palavras e realidades que desvirtuem o sentido negati-
vo do passivo, receptor, bottom. Morde fronhas e sopra-nucas,
por exemplo, já se encontraria em outro registro.
O passivo, o que recebe a ação, segundo a definição gra-
matical, constitui-se como mero receptor, não escolhe, é pe-
netrado e parece não fazer diferença o material do recheio.
Essa ideia machista é transferida desde a misoginia patriarcal.
É o discurso de quem tem a posse, domina, goza, em detri-
mento do corpo penetrado. É curioso que as centenas de dis-
cursos que circulam sobre o valor que supõe penetrar (mais
poder, mais prazer, mais virilidade e ainda um melhor status)
não tenham sofrido uma contestação dos discursos que exal-
tam a receptividade. A crítica que desde os feminismos foi
feita à colonização sexual do corpo da mulher não conseguiu
fazer com que as mulheres desfrutassem da penetração, anal
ou vaginal, podendo-se presumir disso a queda do status de
prostituta ou de atriz pornô vocacional, para não falar da lei-
tura perversa e misógina que poderia justificar uma perma-
nente acessibilidade.
Em um sistema de valores onde o poder, a dominação e a
virilidade estão no penetrador, qual é a relação do passivo com
o seu cu? Como vive o prazer da penetração em um entorno
onde o penetrado é injuriado? A penetração anal foi histori-
camente um signo de castigo, de submissão: o prisioneiro, o
escravo, o outro, o inferior, ao fim e ao cabo, tinha que notar o
estigma no seu cu perfurado, um estigma invisível, que reco-
nhece apenas aquele que padeceu, o paciente, o passivo, mas
que, segundo seu status e situação, pode despertar suspeita, já
que toda a tradição sodomita está flutuando no ambiente como
um velho refrão. O penetrado então não vai desenvolver uma

159 | Pelo CU
essência, mas sim uma identidade interna que, com sorte, so-
mente ele ou os sodomizadores podem revelar.
Não parece difícil que a equação do penetrado como su-
jeito de castigo, de vergonha ou de ignomínia, estabeleça-se
na identidade do sodomita, fazendo uma vez mais com que
algumas práticas sejam vistas como identidade. Embora essa
identidade de submissão, de recepção do castigo, tenha sigo
gozosamente reapropriada pelos sodomitas receptores como
um espaço de prazer, pode-se encontrar em outros aspectos
da vida e das relações. Romper com esses sentimentos nega-
tivos, aqueles que não estão nos jogos sexuais, não supõe al-
cançar a felicidade absoluta, nem muito menos que isso, mas
pode ajudar a manter a própria autoestima em um mundo
hostil. E esta deve ser uma das bases das políticas anais82.
Se entendermos a sodomia como uma forma de imposi-
ção e de ultraje que atravessa tempos e culturas, sem saber
onde e como se originou, mas que é repetida sem questionar
seus meios ou fins, poderíamos falar de um ato performativo.
Todo ato performativo é baseado em uma repetição que não
tem original, mas que produz um efeito de realidade a partir
de sua própria repetição. Por isso mesmo, porque não se re-
mete a nenhuma essência ou realidade natural, podemos nos
apropriar desses atos repetidos e lhes dar um significado dife-
rente. Ou seja, podemos promover um orgulho passivo, uma
repetição de atos explícitos onde o positivo é o anal, a posição
de receptor anal como algo prazeroso, produtivo e potente,

82
Tampouco estaria mal que o médico pessoal ou sexólogo informassem com na-
turalidade e visibilidade sobre as responsabilidades do sexo anal, e que especia-
lidades como a proctologia incluíssem formação sobre os usos prazerosos do
ânus, do reto e da próstata. E para quando uma campanha estatal de prevenção
em HIV fundada no orgulho passivo, dirigida e explicitamente a pessoas recep-
tiva no sexo anal?

160 | Pelo CU
onde invertemos essa tradição milenar. Já o fizeram os grupos
queer com a palavra bicha ou sapatão que era negativa, mas
quando nos apropriamos delas com orgulho passou a ser algo
positivo nos círculos da militância queer. Desta forma, se de-
sativa o insulto, apropriando-se dele.
A construção da sexualidade, do desejo, está atravessada
por muitas variáveis transversais, mas, sobretudo, está dentro
de um sistema, o heteropatriarcal, onde os valores do pene-
trador são os mais elevados. Parece que é difícil, quase impos-
sível, questionar essa hierarquia, na qual não cabem dúvidas
sobre quem possui quem; há exceções como as que aparecem
nas comunidades leather e S/M, mas o estigma a que estão
submetidas essas comunidades e práticas impede em grande
medida que se generalize.
A promoção de um orgulho passivo deveria também ques-
tionar algumas das conotações da palavra passivo. Já nos re-
ferimos a algumas, mas há outra conotação que é importante,
que associa o passivo à ideia de “não fazer nada”, de “deixar-se
fazer”, de nulidade ou de inatividade. Na realidade, o cu, o
ânus, o reto, a próstata, são lugares de atividade; relaxam, se
agitam, se excitam. É importante lembrar que o próprio ato
sexual da penetração no cu tem um papel muito ativo. Uma
prática muito comum no sexo anal é que o “passivo” aperte e
relaxe os músculos anais e retais, no que proporciona muito
prazer no pênis da pessoa “ativa”.
O orgasmo que sentem muitos homens pelo contato pros-
tático também é algo ativo; o lugar mal chamado passivo na
penetração não supõe uma mera recepção de um objeto ou
um pênis, é um ato complexo e cheio de atividade. Inclusive,
em muitos casos, o “ativo” desmorona com a boca para cima,

161 | Pelo CU
enquanto o “passivo” é que se coloca em cima e faz todo o
trabalho com o seu cu83.

O caso de Esta cartilha vai de bunda

No início de 2008, a associação StopSida, da coordenação


Gay-Lesbiana da Catalunha, editou dentro das suas campa-
nhas anuais de prevenção dois livrinhos com os nomes de
Esta cartilha é o caralho e Esta cartilha vai de bunda.
A associação StopSida é pioneira dentro das organizações
de luta contra a AIDS no Estado espanhol e sempre se desta-
cou pelo rigor de sua informação, na qualidade de suas apre-
sentações e na grande difusão a nível estatal que tiveram suas
campanhas. StopSida foi e é uma referência na prevenção da
AIDS no Estado e para todos os grupos LGTB de luta con-
tra a AIDS. Ademais, sempre foi caracterizada pela eficácia
e abordagem das suas mensagens, contribuindo com a luta
contra o estigma a que sofrem as pessoas que vivem com o
HIV, sobretudo a população para a qual foi majoritariamente
dirigida, o coletivo dos gays soropositivos; sem esquecer sua
contribuição para a visibilidade da comunidade LGBT e para
a luta contra a homofobia.
As cartilhas foram distribuídas para todas as associações
colaboradoras, tendo uma grande aceitação e difusão entre a
comunidade gay. Era um material novo e com informação su-
mamente útil sobre o caralho e a bunda, com uma linguagem
coloquial e próxima, e nem por isso menos assertiva. Tudo o

83
Uma crítica similar foi feita há muitos anos pelas mulheres feministas, questio-
nando seu papel “passivo” pelo fato de que “são penetradas”. Hoje em dia nin-
guém aceitaria esta ideia de que uma mulher é “passiva” no sexo, mas, todavia,
esta ideia segue sendo comum no caso do homem receptor do sexo anal.

162 | Pelo CU
que era preciso saber sobre os órgãos em seus aspectos bioló-
gicos e funcionais era explicado de uma forma eficaz e sensí-
vel, fazendo uma expansão no aspecto sexual, incidindo nos
riscos de transmissão das diferentes DST’s e do HIV. Nada
ficava esquecido, nem era julgado moralmente nenhum tipo
de prática; as cartilhas apenas informavam sobre os riscos e a
forma de evitá-los ou reduzi-los. Pequenas obras, mas muito
eficazes na divulgação, já que qualquer pessoa com pênis ou
com bunda podia aprender tudo o que era necessário sobre
sua saúde sexual.
O fogo veio à tona no dia 24 de abril do mesmo ano. O
diário de Madrid ABC (que por uma curiosa casualidade são
as mesmas siglas que Abstinence, Be faithfull, Condoms, o
nome das políticas ultraconservadoras do presidente Bush)
editava em página dupla a notícia:

Uma cartilha subsidiada por uma agência de saúde induz ao uso


de drogas nas relações sexuais.

E não poupavam, nem tipograficamente nem semantica-


mente, o assombro e o desassossego que lhes produzia a car-
tilha publicada:

O folheto se intitula Esta cartilha vai de bunda e promete, em


sua capa: “Domine os cus, descubra seus segredos e aprenda a ma-
nejar a elasticidade”. Refere-se ao uso do “cu” como objeto de
prazer no sexo entre gays.
A cartilha é um compêndio de práticas supostamente seguras
no uso do cu no sexo. Usado como se indica no folheto, o po-
ppers “relaxe e ajude para que você e seu companheiro fiquem
cheios de tesão”.

163 | Pelo CU
Na notícia, a seleção dos parágrafos e o tratamento que
se dava ao conteúdo não só eram utilizados para denunciar
que “com o dinheiro público se incentivava o consumo de
drogas”; parecia que era a desculpa para derrotar ideologi-
camente as tentativas de generalizar a educação sexual e, por
conseguinte, a saúde pública. Para isso, que melhor estratégia
que ressaltar doentiamente as práticas habituais entre os gays.
Novamente a bicha, o sodomita e seu órgão protagonista: o
cu. Já havíamos falado mais acima de que maneira a AIDS
se encarnava nos corpos abjetos, a bichona, o drogado, e de
novo surgem aqui as mesmas dúvidas sobre a viabilidade des-
tes corpos.
Falar dos perigos das drogas é publicizá-las, segundo suas
consciências, mas falar do cu como órgão sexual e mostrar
suas possibilidades de prazer é simplesmente impensável
dentro de uma mente reacionária. Parece que se desperta
novamente o medo do contágio, o lobby gay fazendo publi-
cidade, o temor de que esse ser, a bichona, suje e contamine
nossas vidas. De novo a direita afia suas armas, carregando
contra a mínima visibilidade da bicha, e contra o órgão que
lhe identifica: o cu.
Os diferentes meios digitais de direita recorriam à notícia,
enfatizando o caráter desembaraçado da cartilha que, para
eles, era algo totalmente excessivo. Sua seleção de frases era
típica da manipulação jornalística: desde colocar entre aspas
a palavra cu, até se focar nas práticas scat, passando por co-
locar em dúvida o sexo como meio para prevenir o contágio
do HIV:

Liberdade digital:
A cartilha Domine os cus ensina, em um capítulo intitulado
Meter drogas no cu, que “há caras que enfiam drogas por seu

164 | Pelo CU
efeito anestésico. Isso pode ser feito com drogas em pó ou com
pastilhas dissolvidas em água (speed, êxtase, cocaína ou heroí-
na). Deste modo, as drogas são absorvidas mais rapidamente e
podem ter um efeito mais potente”. É ensinado a manter certas
práticas escatológicas sem risco, supostamente, de contrair Aids.

O Imparcial:
Sanidade subvenciona uma cartilha na qual gays e drogas dão-
-se as mãos. Entre essas práticas, encontra-se o scat, que con-
sistem em “lambuzar alguém de merda ou brincar com ela”,
algo que não traz risco de infecção pelo HIV, embora se possa
contrair outras doenças sexualmente transmissíveis, segundo se
adverte…
Dois dias depois, Sanidad retirou Esta cartilha vai de bunda, da
ONG “Stop Sida”, dirigida ao coletivo gay, que instiga ao uso de
drogas e mostrava uma posição ambígua sobre o uso do preser-
vativo”.

O cu, a merda e a droga são, para esses meios, o coquetel


explosivo com o qual se pode converter a bicha, um ser ligado
à morte por seus “jogos”. A merda e o cu são sinônimos da
insalubridade que encarna a bicha ligada à sua morte.
A cartilha foi retirada pelo Ministério da Saúde dois dias
depois de aparecer a notícia, alegando defeitos de forma na
execução do projeto: não haviam passado o texto para ser lido
pelo Ministério. Vale ressaltar a rapidez com que a instituição
atuou, rapidez esta que se converte em uma absoluta lentidão
a respeito de qualquer outro tema. O Ministério e o governo
do PSOE demostram uma vez mais que as políticas para com
a comunidade LGT são pura formalidade, e uma ausência de
bravura política que os situa no mesmo espectro que a direita
troglodita.

165 | Pelo CU
As respostas das diferentes ONGs não tardaram a apa-
recer, mas dentro da tepidez que caracteriza essas organiza-
ções dependentes dos subsídios do Estado. E também resulta
curioso que, exceto na própria nota de imprensa da Stop Sida,
não apareceu nenhuma menção ao cu.

COMUNICADO PARA A IMPRENSA DO STOP SIDA


Não se pode falar do cu? É sujo? De que a comunidade homos-
sexual masculina vai falar?

O fenômeno do bareback

O bareback, foder a pelo, é um fenômeno social que vol-


tou a colocar fogo no tema do sexo anal e, concretamente,
do cu da bicha. Para entender esta prática convém fazer um
pequeno percurso histórico. Podemos assinalar três etapas da
história da AIDS:

• Nos anos 80 houve uma alta mortalidade das pessoas


soropositivas; havia pouca informação para a preven-
ção, levando a acontecer o fenômeno que já comenta-
mos: o de associar a AIDS aos gays84;
• Nos anos 90, aparecem medicamentos melho-
res para o HIV; há uma menor mortalidade, uma
maior conscientização social e um ativismo forte das
comunidades gays na prevenção e na prática do sexo
seguro;
84
Ver o artigo de Fefa Vila e Sejo Carrascosa, “Geografías víricas” no livro El eje del
mal es heterosexual, pp 46-60. Download autorizado do livro na internet: http://
www.harttza.com/ejedelmal.pdf. Ver também o artigo de Javier Sáez, Nous plans,
vells erros, Ingofai n. 157, novembro/dezembro 2007. Disponível online em: http://
www.hartza.com/infogai.pdf

166 | Pelo CU
• Na década 2000-2010, aparece o fenômeno do bareba-
ck – sexo sem preservativo –que é o abandono do sexo
seguro em uma parte importante da comunidade gay (e
um abandono do teste do HIV), o que está produzindo
atualmente uma notável volta das infecções por HIV
entre os homens que fazem sexo com homens85.

Para começar, convém diferenciar experiências distintas


relacionadas com o bareback. Podemos distinguir, ao menos,
três níveis ou três aproximações do que se chama bareback86.
Em primeiro lugar, existem certas comunidades que pra-
ticam o bareback de forma ativa e clara, mas insistindo muito
na prevenção de um possível contágio por HIV. Trata-se de
pessoas que decidem negociar sua sexualidade sem utilizar o
preservativo, não de forma inconsciente, mas tomando me-
didas de segurança. Para isso, insistem em conhecer o estado
sorológico de cada pessoa (serosorting). Ou seja, propõem
que se tenha encontros sexuais de forma segura de duas for-
mas diferentes: por um lado entre pessoas que sabem que
são soronegativas e, por outro, entre pessoas que sabem que
são soropositivas. Esta é a atitude mais ampla na prática do
bareback, sobretudo nas cidades onde há altas taxas de pes-
85
Deixamos para outro possível livro a falta de prevenção da comunidade hetero,
sua própria consciência, a política genocida do Vaticano, etc. Parece que sempre
se assinala aos gays quando há retomadas da infecção do HIV, mas não se assi-
nala que também há uma grande expansão do sexo não seguro entre heterosse-
xuais. Poucas vezes se denuncia o fato de que o maior promotor do bareback em
escala mundial é a igreja católica.
86
Recentemente foi publicado dois interessantes e valiosos ensaios sobre o bareba-
ck, um de Tim Dean, Unlimited intimacy: reflections on the subculture of bare-
cking, e outro de David Halperin, What do gay men want?: na essay on sex, risk,
and subkectivity. Ver também o ensaio de Kane Race, “Engaging in a culture of
barebacking: gay men and the risk of HIV prevention” em Hannah-Moffat, K. &
O’Malley, P. (eds) Gendered Risks. London: Glasshouse press.

167 | Pelo CU
soas soropositivas (em San Francisco, por exemplo). Existe o
debate sobre os riscos da relação entre pessoas soropositivas
pela possibilidade de reinfecções com uma nova cepa do ví-
rus que poderia piorar a saúde da pessoa, mas parece que até
agora foram detectados poucos casos de reinfecção. Em todo
caso, esse tipo de prática de bareback ao menos coloca uma
tomada de consciência e dos riscos, e algumas medidas para
minimizá-los87.
Outra aproximação diferente do bareback é baseada sim-
plesmente na ignorância. Isto é, aqui o não saber é o princí-
pio básico. Existem pessoas que decidem não conhecer seu
estado sorológico, nem saber o estado da outra pessoa, e não
se preocupam com as consequências que podem ter para sua
saúde (ou para a dos demais) a prática do sexo sem preser-
vativo. Obviamente, essa atitude gera graves riscos, porque
muitas delas são soropositivos sem o saber, e não recebem o
tratamento médico que poderia impedir o avanço da infecção
e o risco de padecer de enfermidades graves. Segundo os da-
dos do Ministério da Saúde espanhol, em 2007, 57% dos gays
que foram diagnosticados com AIDS não sabiam que eram
soropositivos. Outro risco evidente é que, por sua vez, essas
pessoas podiam transmitir o vírus para outras pessoas. Essa
situação explica o notável aumento de infecções entre pessoas
gays em muitos países ocidentais nos últimos anos.
No jornal EL PAÍS, Emilio de Benito publicou em 2010 a
seguinte notícia: “os últimos dados do Plano Nacional sobre
AIDS (PNS) e sobre diagnósticos de HIV são conclusivos:
38,8% dos novos diagnósticos do HIV se dão entre homens
que tiveram sexo com outros homens. Ou, mais cruamente
87
Obviamente, duas pessoas soronegativas não podem se infectar entre si, por isso
se insiste em conhecer bem o estado sorológico de ambas no momento do ato
sexual.

168 | Pelo CU
ainda: se se tem em conta somente os infectados homens, os
gays (e outros homens que têm sexo com homens mesmo que
não se identifiquem como homossexuais) são 50%88”.
Na França, a situação é ainda pior: de todos os novos casos
de AIDS detectados em 2008, (6.940), 3.300, que equivalem
a 48%, quase metade resultou de relações sexuais entre ho-
mens, quando na realidade os HSH representam uma peque-
na parte da população geral. Segundo o Institut de Veille Sani-
taire [Instituto de Vigilância Sanitária], a situação de contágio
entre a população gay francesa está fora do controle.
Nos Estados Unidos as coisas não são melhores: segundo
estudo publicado em setembro de 2010, elaborado pela Divi-
são de Prevenção de HIV/SIDA dos Centros para o Controle
de Enfermidades e Prevenção (CDC) dos Estados Unidos,
um em cada cinco homens que tem sexo com homens em
cidades americanas é soropositivo (20%). Além disso, cerca
da metade dos infectados não estaria ao nível deles, e a mais
afetada seria a comunidade afro-americana89.
O terceiro enfoque sobre o bareback é muito mais polêmi-
co e talvez não tenha sido suficientemente testado. Trata-se
de uma prática que foi difundida nas revistas, e que consiste
na busca intencional do contágio, em inglês bug chaser, isto
é, “aquele que busca o bicho”. Nesta prática, são celebradas
festas onde algumas pessoas são soropositivas e outras pes-
soas que não são vão para jogar com a possibilidade de serem
infectados, ou mesmo buscando deliberadamente a infecção.
Essa prática, que se supõe muito minoritária ou que, inclu-
sive, alguns consideram que não existe, veio ao espaço pú-
blico (e ao espaço sensacionalista) a partir de uma matéria

88
EL PAÍS, 26 de março de 2010.
89
http://www.cdc.gov.nchhstp/newsroom/docs/fastfacts-msm-final508comp.pdf

169 | Pelo CU
publicada na revista Rolling Stone em janeiro de 2003, escrita
pelo jornalista Gregory A. Freeman90 com o título “Buscando
a morte”, onde se expunha, a partir do testemunho de uma
pessoa gay, esta prática de achar excitante ser infectado pelo
vírus HIV.
Neste mesmo ano, a diretora Louise Hogarth gravou o
filme The Gift sobre o mesmo fenômeno. A partir de então,
circularam muitos rumores sobre esta prática; recentemente,
em março de 2010, o jornal El Mundo fez eco (um eco mui-
to distante) dessa matéria e desse filme, depois de sete anos.
A matéria do El Mundo, intitulada “Eu joguei a roleta russa
da AIDS”91, foi publicada com um afã sensacionalista, dado
que não acrescentava nenhuma nova informação a respeito
desde 2003, nem dados concretos sobre a possível prática na
Espanha. O estilo de imprensa marrom da matéria pode ser
apreciado em frases como esta:

Enquanto os especialistas debatem o que move os caçadores de


vírus, enquanto as autoridades recompilam os dados e pensam
um modo de parar essa prática, os “bug chasers” que se escon-
dem no anonimato da internet continuarão participando de
chats para organizar sua próxima roleta russa.

Como indicado anteriormente, acreditamos que o fenô-


meno do bareback deve ser analisado a partir de um conjunto
de fatores muito complexos. Alguns especialistas em preven-
ção do HIV assinalam que uma das razões do abandono do
uso do preservativo na comunidade gay é o cansaço, depois
de 30 anos de pandemia, de estar sempre alerta e utilizando

90
Sobre este tem aver http://en.wikipedia.org/wiki/bugchasing
91
http://www.elmundo.es/elmundosalud/2010/03/05/hepatitissida/1267808100.html

170 | Pelo CU
constantemente o preservativo. Outra causa que podemos
encontrar a partir de algumas declarações de pessoas que não
utilizam preservativos é a morbidez, o saber que se está fazen-
do algo proibido, perigoso ou transgressor. Outro fator im-
portante tem relação com a idade: os jovens gays não viveram
os efeitos devastadores da pandemia dos anos 80, quando
morriam muitas pessoas próximas por causa da AIDS. Gra-
ças aos novos tratamentos antirretrovirais, por sorte, hoje em
dia morrem poucas pessoas nos países ocidentais por causa
da AIDS, e isto levou muitos jovens a pensar que viver com
HIV não é algo tão grave, e que com a medicação se pode vi-
ver sem problema. Também há outra leitura do bareback que
tem relação com uma espécie de retorno ao sexo “natural”,
ao sexo verdadeiro, como se o uso do preservativo reduzisse
a intensidade ou o valor do ato sexual. Até mesmo, podemos
escutar em certas ocasiões a ideia de que o sexo sem preserva-
tivo é um sexo de machos, um sexo duro, forte, e é justo esta
ideia que neste livro pusemos em relação com a masculini-
dade tal como se constrói na atualidade. Nesta mesma linha,
escuta-se, às vezes, a opinião de que o sexo sem preservativo
é um sexo “real”, como se o fato de colocar o látex de uma
micro-espessura nos separasse de uma espécie de “realidade
absoluta” do sexo.
Esta reflexão é bastante absurda se levarmos em conta que
a própria pele humana é uma barreira, uma proteção, uma es-
pécie de camisinha contra as infecções do exterior. Diríamos
que para fazer um sexo “autêntico, real” deveríamos fazer
como o cantor Robbie Williams em seu divertido videoclipe
Rock DJ, onde começa tirando a roupa, para jogar nos seus
fãs, e continua tirando a pele, os músculos...até terminar dan-
çando como um simples esqueleto.

171 | Pelo CU
Há também pessoas que consideram o bareback como
“uma prova de amor”, como se o preservativo introduzisse
um elemento de desconfiança no casal. Segundo essa lógica,
praticar sexo sem preservativo seria uma espécie de retorno
a um amor verdadeiro, puro, sem amarras. Como dizia Che-
noa, em uma das canções que mais causou danos à prevenção
contra o HIV entre os jovens: “e não me fale de sexo seguro,
nem plastifique o meu coração”. Segundo essa ideia absurda,
a camisinha de repente é trasladada do sexo ao “coração”, ao
amor, e vira algo que se torna obstáculo para o seu pleno de-
senvolvimento.
Alguns defensores do bareback situam a discussão no ter-
reno das opções individuais, da liberdade pessoal. Se duas
pessoas adultas e de mútuo acordo decidem fazer sexo não
seguro, entende-se que qualquer recriminação ou proibição
seria uma injúria à sua liberdade individual. Essa posição
parece bastante sólida, mas não se leva em conta as conse-
quências para a comunidade, por exemplo, que se uma das
pessoas, em seu exercício de liberdade, é infectada, o Estado
terá que pagar seu caro tratamento antirretroviral por toda
a sua vida. De qualquer modo, os críticos do bareback não
querem a proibição, mas, simplesmente desenvolver uma cul-
tura coletiva mais consciente dos riscos à saúde, e colocar em
relevo as importantes consequências dessa prática dentro da
comunidade gay, consequências que já são visíveis.
Dentro de um regime heterocentrado e machista como o
que vivemos, a masculinidade continua vinculada a valores
como o risco, a força, a violência, a morte, o perigo. Todos os
homens, incluindo os homens gays, são educados com estes
valores: pelos pais, pelos meios de comunicação, por videoga-
mes, pelo cinema e por meio da televisão. Em alguns fóruns

172 | Pelo CU
de bareback na Internet encontramos esse tipo de mensagens,
“venha ter sexo autêntico, sexo cru, ser um homem de verda-
de”, vinculadas ao sexo sem preservativo92.
Também acontece um fenômeno muito particular em al-
gumas comunidades de homens afro-americanos nos Esta-
dos Unidos, que praticam sexo entre eles, mas sem nenhum
tipo de identidade gay e sem nenhuma referência à homosse-
xualidade. Para eles, o “gay” é uma questão de brancos, e sua
masculinidade está construída por um rechaço aos gays, ape-
sar de terem relações com outros homens. Um interessante
artigo93 publicado em 2009 assinalava que a alta porcentagem
de homens negros infectados por HIV nos EUA, era muito
acima da sua representação percentual a respeito da popula-
ção soropositiva em geral. Entre outros fatores importantes,
como a pobreza, a falta de informação, etc., o texto assinala
que há uma forte homofobia em muitas comunidades afro-
-americanas, o que faz com que muitos dos homens que têm
sexo com outros homens não se identifiquem nunca como
gays e que, além disso, não adotem as medidas de prevenção
necessárias na hora de praticar o sexo (precisamente porque
isso é coisa de gays, não de homens de verdade).
Evidentemente, este fenômeno não é só próprio da comu-
nidade afro-americana. No nosso país encontramos também

92
Por exemplo, em um site de ursos que praticam o bareback lemos esta mensagem
de boas-vindas: “Os impermeáveis (camisinhas) são para as mulheres e para as
crianças em dia de chuva. Não são para a cama de um sujo como você. (...) Nesta
página não são bem-vindas as bichas de lycra, nem as mulheres, nem os rapazes
danone” (www.bearclub.com). Vemos aqui a conexão “masculinidade-sexo não
protegido-ursos” expressada em um só parágrafo. As mulheres e as bichas ficam
assimilados à camisinha; o sexo sem camisinha garante o acesso à masculinida-
de verdadeira, ao homem autêntico e ao sexo natural.
93
AIDS among African Americans: http://www.avert.org/hiv-african-americans.
htm

173 | Pelo CU
homens que fazem sexo com outros homens que participam
desse mesmo critério, segundo o qual sua masculinidade não
se vê colocada em questão caso trepem em pelo, e sobretudo
se são ativos na penetração. Parece que estamos diante de um
mecanismo de defesa bastante homofóbico, onde são coloca-
dos no mesmo saco os gays, a AIDS e o preservativo, de forma
que não se quer saber de nada disso, afim de deixar a salvo a
masculinidade tresloucada, machista e, em última instância,
quase suicida. É claro que isso também tem consequências
para as mulheres. Foi constatado tanto no caso dos homens
afro-americanos mencionados dos EUA, como em muitos ca-
sos na Espanha, que esses homens que praticam sexo com ho-
mens sem preservativo, por sua vez praticam sexo com suas
mulheres, já que muitos deles são casados. A consequência
dessa política do segredo, vergonha e machismo é a infecção
por HIV de muitas mulheres por meio dos seus maridos.
Há outro aspecto do bareback que é importante assina-
lar. É uma ideia que costuma circular quando se fala de pre-
venção, segundo a qual são as pessoas soropositivas que têm
que oferecer os meios na hora de praticar o sexo, as que são
responsáveis pela infecção dos demais, as que têm que avisar
o seu estado, etc. Essa perspectiva é injusta e irresponsável.
Em 1999, abriu-se um debate muito interessante e muito vio-
lento no seio do ACT UP Paris94, o conhecido grupo ativista
antiaids francês; em alguns dos seus textos, os soropositivos
eram acusados de ser uma espécie de bomba ambulante, dado
que podiam infectar as outras pessoas, sobretudo no caso de

94
A crítica de ACT UP ao bareback pode ser lida no artigo “Bareback, NoKopte
No Way!” (http://www.actuppparis.org/spip.php?article1675). Para conhecer o
ponto de vista de Eril Rémès ler seu romance Serial fucker. Journal d’un bareba-
cker, Ed. Blanche, Paris, 2003.

174 | Pelo CU
não informarem previamente seus parceiros sexuais sobre
seu estado soropositivo.
Dois escritores e ativistas gays, Erick Rémès e Guillaume
Dustan, contestaram esses textos, explicando que a preven-
ção era uma responsabilidade de todos, algo compartilhado
e que devia ser negociado a todo momento por todos, não
só pelos soropositivos. Nesse sentido, Rémès assinalava que,
às vezes, algumas pessoas lhes propunham a fazer sexo sem
preservativo sem perguntar pelo seu estado sorológico. Isto é,
queriam uma relação bareback baseada no silêncio e na falta
de informação. Mesmo que Rémès fosse soropositivo, ele se
fazia a seguinte pergunta: por que tenho que ser só eu a co-
locar a questão? Não é responsável por sua possível infecção
alguém que não conhece seu próprio estado sorológico e que,
além disso, não quer saber nada do estado sorológico da ou-
tra pessoa? A pergunta abriu um amplo debate que não se
fechou, mas que coloca aspectos-chave da prevenção hoje em
dia, fazendo-nos também pensar sobre essa masculinidade
que se constrói no silêncio, na vergonha, na falta de diálogo
e na negação.
Esse aspecto da pandemia do HIV é muito importante para
entender uma das posições assinaladas por nós: a de uma pes-
soa que prefere “não saber”, não conhecer seu estado sorológico.
Conversando com algumas pessoas que adotam essa posição (e
que têm relações protegidas), aparece uma lógica interna bas-
tante complexa, que tem relação com a “responsabilidade” e que
é a seguinte: se a pessoa conhece o seu estado sorológico, está
sujeita a tomar decisões sobre suas práticas. No caso concreto de
uma pessoa soropositiva, que sabe seu estado, esse saber vai con-
dicionar muito suas práticas sexuais, no sentido de que deverá
se questionar se deve informar aos seus contatos sexuais, tomar

175 | Pelo CU
medidas para o sexo seguro, ter dor na consciência caso pratique
sexo sem proteção, etc. Em contrapartida, se alguém “não sabe”
se é soropositivo ou não, supõe-se que não tem nenhuma res-
ponsabilidade nesse sentido, isto é, não tem que tomar nenhuma
medida porque não sabe nada de si mesmo.
O “não saber e não querer saber”, para algumas pessoas, é
uma espécie de álibi moral que é “destruído” com a chegada
do saber. Saber implica em responsabilidade. Obviamente, esse
raciocínio não explica por completo as motivações das pessoas
que não fazem o teste do HIV e têm relações de risco; há muitas
outras razões, muitos posicionamentos pessoais, contradições,
medos, ignorância e, em muitos casos, não se trata de uma prá-
tica que tenha um discurso elaborado por detrás. As práticas
sexuais, em muitos casos, não partem de uma reflexão prévia
ou de uma decisão consciente e coerente. Seria um reducionis-
mo sociológico ou antropológico tentar “explicar” o bareback
como um fenômeno coerente, homogêneo ou com uma lógica
interna. Como vimos, trata-se de uma prática muito variada,
complexa e inclusive difícil de definir. De fato, já desde o início
da pandemia existiam pessoas e comunidades que se negavam
a utilizar o preservativo por diversas razões. Naquele momento
não existia o termo bareback, mas isto não deve nos fazer es-
quecer que o sexo sem preservativo é algo muito anterior a essa
espécie de “moda” ou movimento que parece haver surgido no
final dos anos 90 como algo mais ou menos articulado, ou ao
menos com um nome particular.
O que parece claro é que, por trás deste fenômeno, se en-
contram preconceitos e mecanismos de estigmatização sobre
o setor sodomita da população. Outra forma de prevenção
que poderia desfazer com as tentativas de criminalização e

176 | Pelo CU
exclusão dos praticantes do coito anal seria a divulgação ge-
neralizada das novas descobertas sobre a transmissão do HIV.
A chamada declaração suíça diz que uma pessoa com HIV
que está fazendo o tratamento antirretroviral com uma vi-
remia suprimida na sua totalidade não é sexualmente infec-
ciosa, isto é, não pode transmitir o HIV por meio do contato
sexual se a pessoa segue de forma rigorosa a terapia antirre-
troviral e comparece ao seu médico especialista em HIV em
intervalos regulares; se a carga viral se mantiver indetectável
(menos de 40 cópias) durante ao menos os últimos seis meses;
e se não tiver outras enfermidades de transmissão sexual95.
Contudo, em resposta a essa declaração, a UNAIDS (Pro-
grama conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/SIDA) e a
OMS (Organização Mundial de Saúde) deram ênfase na im-
portância do uso continuado da camisinha e do uso consisten-
te e correto como método primordial de prevenção do HIV.
A redução de riscos pode supor uma nova forma de pre-
venção fundada na própria consciência sobre a própria saúde
e a dos demais, criando as habilidades e atitudes para promo-
ver um verdadeiro orgulho anal.

95
Attie, S., Egger, M., Müller, M., et al., Sexual transmission of HIV according to vi-
ral load and antiretroviral therapy: systematic review and meta-analysis. Revista
AIDS, 17 de Abril, 2009.

177 | Pelo CU
Conclusão

Neste livro, queríamos suscitar um debate sobre o que


ocorre ao redor do cu e da penetração anal. Para isso, mostra-
mos que as diferentes interpretações do anal necessitam ser
colocadas em seus diferentes contextos históricos e culturais.
Para a antiga Grécia, o prazer na penetração anal passiva se
julgava negativamente pela mudança do status social que isso
supunha: era um critério de classe que estava em jogo, não de
sexo ou de orientação sexual. Para os católicos da Idade Mé-
dia, o pecado da sodomia se associava a uma prática dos in-
fiéis, dos mulçumanos, por isso era considerado um pecado:
é um critério religioso vinculado ao “outro” que opera nesta
época. Para os judeus e para os primeiros colonos america-
nos, o sexo anal era condenado porque supunha a perda de
uma valiosa semente, o esperma. Portanto, trata-se de uma
economia da fecundidade. Para os médicos e psiquiatras do
final do século XIX, o sexo anal entre homens vai servir para
definir uma nova espécie humana, uma nova identidade sub-
jetiva patológica que vão denominar “o homossexual”: tra-

179 | Pelo CU
ta-se aqui de um critério psicológico e essencialista. Na era
da AIDS, o sexo anal serviu para construir um novo corpo
do homossexual como portador de infecções, como vetor de
morte e enfermidade: neste caso é a homofobia e o discurso
paranoico da infecção que estão interpretando de uma nova
forma a analidade.
Por outro lado, também vimos que, apesar dessas tradi-
ções condenáveis, existem na atualidade comunidades e sub-
culturas que souberam se apropriar do anal para lhe dar um
sentido positivo e orgulhoso: as comunidades S/M, os prati-
cantes do fist, o mercado do pornô, alguns filósofos e filóso-
fas e ativistas radicais, os aficionados do bareback, e certos
setores do feminismo radical pró-sexo e das comunidades
lésbicas queer.
Ao longo deste livro, comentamos em várias ocasiões que
o cu não tem gênero, e que pode ser uma fonte de prazer se-
xual que não está marcada por ele. Mas, talvez isso não seja
assim. Na realidade, tal como se exerce a política anal hoje
em dia, dentro de um regime heterocentrado e machista, o
cu tem gênero: se é penetrado, é feminino; se é impenetrável,
é masculino. E mais, poderia se dizer que o cu cumpre um
papel primordial na construção contemporânea da sexua-
lidade, na medida que está carregado de fortes valorações
sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, sobre o que
é ser um corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo
bicha e um corpo hetero, sobre a definição do masculino e
do feminino.
Hoje em dia, conta mais o uso que se faz do cu (ou o não
uso) na hora de definir a sexualidade que os próprios órgãos
genitais. O interessante nessa definição é que, então, ser um
homem (e ser um heterossexual) não parece depender tan-

180 | Pelo CU
to de ter genitais masculinos ou de manter práticas sexuais
pênis-vagina, como de manter o cu sempre fechado à pe-
netração. E ser mulher é ser penetrável, independente se é
uma biomulher ou não. Por isso, a bicha passiva é assimilada
à mulher, e desprezada por abandonar seu destino universal
impenetrável. O cu é fundamental na constituição do atual
sistema de sexo-gênero e é quem organiza e define as dife-
rentes sexualidades. É o ser passivo ou ativo que determina a
identidade sexual, não a genitalidade.
Por debaixo do dispositivo que conhecemos, divide-se os
sujeitos entre homens e mulheres, e as orientações sexuais em
homossexuais, bissexuais e heterossexuais (ainda que pene-
trem outros homens). E um homem penetrado já não é um
homem, é uma mulher. Uma mulher não penetrável é mas-
culina, e o sistema machista a sanciona e persegue por não se
submeter ao esquema que se aplica às biomulheres (penetrá-
veis). Deste modo, vemos que tanto a identidade de homem
e de mulher, como o que se considera masculino e feminino,
estão articulados em volta do cu, não da genitalidade.
De fato, deveríamos colocar em primeiro lugar o cu como
critério de inteligibilidade. Não existe um “homem” que depois
de utilizar seu cu passivamente devém “mulher”. O que existe
primeiro são cus, penetráveis ou não penetráveis e, em função
disso, o cu “produz” o sujeito mulher e o sujeito homem.
Esses dois dispositivos (o baseado no sexo genital e o
baseado no sexo anal) se entrecruzam e se solapam. A he-
gemonia midiática, explícita, pertence ao modelo genital
(polaridade pênis-vagina como suposto organizador das
identidades sexuais). O outro sistema, fundado no cu e em
sua penetrabilidade, está muito mais oculto; é silencioso,
vergonhoso, não se fala. É um silêncio que, por sua vez, está

181 | Pelo CU
rodeado pelo discurso, pela injúria, pelo insulto. É uma vi-
gilância anal que começa na infância e que nos persegue até
a morte, inclusive mais além, em uma memória infame que
nos marca por termos sido passivos, por termos traído esse
imperativo insensato que quer decidir sobre os corpos, suas
aberturas e fechamentos, que quer dar direção ou limitar seus
fluxos. Por isso, analisar nossas políticas anais e reivindicar o
orgulho passivo é imprescindível para subverter o dispositivo
da sexualidade em que vivemos.

182 | Pelo CU
Epílogo

Por Favor, Meu Amo


por favor meu amo deixa eu tocar teu rosto
por favor meu amo deixa eu me ajoelhar a teus pés
por favor meu amo deixa eu baixar tua calça azul
por favor meu amo deixa eu contemplar o teu ventre de
dourados pelos
por favor meu amo deixa eu tirar tua cueca devagarinho
por favor meu amo deixa eu desnudar tuas coxas para
meus olhos
por favor meu amo deixa eu tirar minha roupa sob a tua
cadeira
por favor meu amo deixa eu beijar teus tornozelos tua
alma
por favor meu amo deixa eu colar meus lábios na tua coxa
dura lisa musculosa
por favor meu amo deixa eu grudar o ouvido no teu estô-
mago
por favor meu amo deixa eu abraçar tua bunda branca

183 | Pelo CU
por favor meu amo deixa eu lamber tua virilha de pelos
louros e macios
por favor meu amo deixa eu tocar com a língua teu cu
rosado
por favor meu amo deixa eu esfregar o rosto no teu saco,
por favor meu amo, por favor, olha nos meus olhos,
por favor meu amo me manda deitar no chão,
por favor meu amo manda eu lamber tua pica grossa
por favor meu amo põe tuas mãos ásperas no meu crânio
careca cabeludo
por favor meu amo aperta a minha boca contra o coração
do teu pau
por favor meu amo aperta o meu rosto contra o teu ventre,
me puxa
lentamente com teus polegares fortes
até tua dureza muda chegar à minha garganta
até eu engolir & sentir o gosto do teu pau-tronco cheia de
veias carne quente delicada por favor
meu amo empurra meus ombros me olha bem nos olhos
& me faz debruçar sobre a mesa
por favor meu amo agarra minhas coxas e levanta minha
bunda até a tua cintura
por favor meu amo tua mão áspera no meu pescoço palma
da outra mão na minha bunda
por favor meu amo me levanta, meus pés apoiados em ca-
deiras, até meu cu sentir o hálito do teu cuspe e teu polegar
girando
por favor meu amo manda eu dizer Por Favor Meu Amo
Me Fode agora Por Favor
Meu amo lubrifica meu saco e boca peluda com doces va-
selinas

184 | Pelo CU
por favor meu amo unta teu caralho com cremes brancos
por favor meu amo encosta a ponta do teu pau nas pregas
do buraco do meu eu
por favor meu amo enfia devagar, teus cotovelos envolven-
do o meu peito
teus braços alisando o meu ventre, teus dedos tocam no
meu pênis
por favor meu amo mete em mim um pouco, mais um
pouco, mais um pouco
por favor meu amo enfia esse troço no meu cu bem fundo
& por favor meu amo meu faz rebolar para entrar a pica-
-tronco até o fim
até minhas nádegas aninharem tuas coxas, minhas costas
arqueadas,
até eu ficar só solto no ar, tua espada enfiada latejando
dentro de mim
por favor meu amo tira um pouco e lentamente esfrega
em mim
por favor meu amo enterra fundo outra vez, e tira fora até
a cabeça
por favor por favor meu amo me fode outra vez com o teu
ser, me fode Por Favor
Meu amo enfia até machucar o meu macio o
Macio por favor meu amo faz amor com meu cu, dá corpo
ao centro & me fode direitinho como uma garota
me abraça com carinho por favor meu amo eu me entrego
a vós
& enterra no meu ventre o mesmo doce lenho quente
que dedilhaste em tua solidão em Denver ou no Brooklin
ou fodeste uma donzela num estacionamento em Paris

185 | Pelo CU
por favor meu amo entra em mim com teu veículo, corpo
de gotas de amor, suor de foda corpo de ternura, Me fode
assim de quatro mais depressa
por favor meu amo me faz gemer sobre essa mesa
Gemer Ó meu amo por favor me fode assim
nesse teu ritmo de roça-enfia & tira-e-roça & enterra até
o fim
até meu cu ficar mole cachorro sobre mesa ganindo de ter-
ror prazer de ser amado
Por favor meu amo me chama de cachorro, arrombando,
me esculhamba
& fode mais violento, meus olhos escondidos por tuas
mãos que agarram meu crânio
& enterra fundo com força brutal arrebentando a macieza
úmida de peixe
& pulsa cinco segundos esguichando sêmen quente
& mais & mais, enfiando fundo enquanto eu grito o teu
nome ah eu te amo
por favor meu Amo.

Allen Ginsberg96

96
A tradução brasileira aqui inserida é de Paulo Henriques Britto em: Ginsberg,
Allen. A queda da América. Porto Alegre: LPM, 1987.

186 | Pelo CU
Bibliografia

ANDREA-SALOMÉ, L., Anal und Sexual, em Imago, IV, 1916.


ATTIA, S. EGGER, M. MÜLLER, M.; et al., “Sexual trans-
mission of HIV according to viral load and antiretroviral the-
rapy: systematic review and meta-analysis”. Revista AIDS, 17
de abril, 2Bersani, L. “?Es el recto una tumba?”, em Llamas R.,
Construyendo sidentidades.
BOSCÁN LEAL, A. S., Propuesta críticas para una con-
cepción no tradicional de la masculinidad, Opción v. 22. n. 51,
Maracaibo, dez. 2006.
BOSWELL, J., Cristianismo, tolerancia Social y homose-
xualidad. Los gays en Europa accidental desde el comienzo de
la Era cristiana hasta el siglo XIV, Muchnik, 1998.
BRENT, B. Ultimate Guide to Anal Sex for Men, Cleis
Press, 2002.
BUTLER, J. Lenguaje, poder e identidade, Síntesis, 2004.
Prológo e introdução de Javier Sáez e Beatriz Preciado.
_____ “El marxismo y lo meramente cultural”, Revista
New Left Review, maio-junho, 2000.

187 | Pelo CU
CALIFIA, P., Public Sex, the culture of radical sex, Cleis
Press, San Francismo, 1994.
CARRASCO, R. Inquisición y repression sexual en Valen-
cia. Historia de los sodomitas (1561-1785), Lartes, 1985,
CARRASCOSA, S. e VILA F., “Geografías víricas” no livro
El eje del mal es heterossexual, Grupo de Trabalho Queer.
CÓRDOBA, D., VIDARTE, P., e Sáez. J. (eds.), Teoría
queer: políticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Egales, 2006.
DEAN, T., I Unlimited intimacy: reflections on the subcul-
ture of barebacking. The University of Chigaco Press, 2009.
DELEUZE, G., e GUATTARI, F. El Anti-Edipo. Capitalis-
mo y esquizofrenia. Paidós, 1985.
DOVER, K. J., Homosexualidad griega, El Cobre, 2008.
FAUSTO-STERLING, A., Cuerpos sexuados, Melusina, 2007.
FEINBERG, L., Transgender Warriors, Boston, Beacon
Press, 1996.
___ Trans liberation: beyond pink or blue, Boston, Beacon
Press, 1998.
FOUCAULT, M., Historia de la sexualidad, vol. I, Siglo
XXI, 1978.
___ Historia de la sexualidad, vol. II, Siglo XXI, 1984.
FREUD, S., El carácter y el erotismo anal, Obras Comple-
tas, Biblioteca Nueva, 1981.
___ La disposición a la neurosis obsesiva, Obras Comple-
tas, Biblioteca Nueva, 1983.
___ Sobre la transmutación de los instintos y especialmente
del erotismo anal, Obras Completas, Biblioteca Nueva, 1981.
GARZA, F., Quemando mariposas: sodomía e imperio en
Andalucía y México, Silglos XVI-XVII, Laertes, 2002.
GINBERG, A., The fall of America, City Lights Books, 1972.

188 | Pelo CU
___ Cosmopolitan Greetings: poems, 1986-1992, Harper
Perennial, 1992.
GRUPO DE TRABAJO QUEER, El eje del mal es hetero-
sexual, traficantes de sueños, 2006 (download livre e gratuito
na página http://www.hartza.com/ejedelmal.pdf).
HALBERSTAM, J., Masculinidad femenina, Egales, 2008.
Tradução de Javier Sáez.
HALPERIN, D. M., What do gay men want?: an essay on
sex, risk, and subjectivity. University of Michigan Press, 2010.
HARAWAY, D., Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención
de la naturaleza, Cátedra, 1995.
HITE, S., El informe Hite: estudio de la sexualidad mascu-
lina, Punto de Lectura, 2002.
HOCQUENGHEM, G., El deseo homosexual, Melusina, 2009.
HOUSER, W., Anal Sex. Em Encyplopedia of homosexuali-
ty, Dynes, Wayme R. (ed.), Garland Publishing, 1990.
JORDAN, M. D., La invención de la sodomía en la teología
Cristiana. Laertes, 2002.
KESSLER, S., Lessons from the intersexed, Rutgers Univer-
sity Press, 1998.
LAQUEUR, T., La constitución del sexo: cuerpo y género
desde los griegos hasta Frued, Cátedra, 1994.
LLAMAS, R., Construyendo sidentidades, Siglo XXI, 1995.
LEZAMA LIMA, J., Diarios, Era, 1994.
MARTÍNEZ-PULET, J. M., Yes, Sir! Thank you, Sir! Placer,
poder y masculinidad en la ponografía S/M gay. http://www.
hartza.com/infiernos.htm
___ “La construcción de una subjetividad perversa: el S/M
como metáfora política y sexual, en el libro” Teoría queer: po-
líticas bolleras, maricas, trans, mestizas. Córdoba, D., Vidarte,
P., Sáez, J.

189 | Pelo CU
MORIN, J., Anal pleasure & health: a guide for men and
women, Down There Press, 1998.
NELSON, I., La sottie sans souci, essai d’interprétation ho-
mosexuelle. Champion, 1977.
O’NEILL, B., Variations scatologiques. Pour une poétique
des entrailles, La Musardine, 2005.
PADILLA MONGE, J. M., El culo. Glasario y compendio
de los asuntos propios del trasero, Padilha Libros, 2006.
PARRINI, R., “Sexualidad entre hombres encarcelados:
los orígenes sacrificiales de la identidad masculina”. No livro
Masculino plural: constrcciones de la masculinidad, carolina
Sánchez-Palencia e Juan Carlos Hidalgo.
___ Panópticos y laberintos. Subjetivación y corporalidad
en una cárcel de hombres, El Colegio de México, 2007.
PEIRCE, CH. S., The essential Peirce, Volume I: selected
philosophical writings, (1867-1893) (1867-1893), Indiana Uni-
versity Press, 1992.
PEÑA MELO, C. A. ULLOA, O. E. P. GARCÍA FELIPE,
G., VÁSQUEZ, Y., UEZADA, L. (Urólogo), “Actitudes res-
pecto al tacto rectal en pacientes masculinos que acuden a
la consulta externa del Hospital Juan Pablo Pina, no periodo
Abril-junho 200” Revista médica dominicana, vol.64. (3) e
vol.65 (1), setembro/dezembro 2003, janeiro/abril 2004.
PRECIADO, B., Manifiesto contra-sexual, Ópera Prima, 2002.
___ Texto Yonqui, Espaso, 2008.
___ Terror anal, epílogo del libro El deseo homossexual de
Guy Hocquenghem, Melusina, 2009.
QUEVEDO, F., Gracias y desgracias del ojo del culo, Linkgua, 2007.
RACE, K., Engaging in a culture of barecking: gay men and
the risk of HIV prevention, em Hannah-Moffat, K. & O’Malley,
P. (eds.) Gendered Risks. London: Glasshouse Press, 2007.

190 | Pelo CU
RÉMÈS, E., Serial Fucker: journal d’un barebacker, ed.
Blanche, 2003.
RICHLIN, A., The meaning of irrumare in Catullus and
Martial. Classical philology 76: 40-46, 1981.
RUBIN, G., The catacombs: a temple of the butthole, em
Thomson, M., leatherfolk, Alyson Books, 1991.
SADE, Marqués de, La filosofía en el tocador, Tusquets, 1988.
SÁEZ, J., Teoría queer y psicoanálisis, Síntesis, 2004.
___ “El contexto sociopolítico de surgimiento de la teoría
queer. De la crisis del sida a Foucault”. No livro Teoría queer:
políticas bolleras, marícas, trans, mestizas, Córdoba, D., Vi-
darte, P., Sáez, J.
___ “Exceso de masculinidad” no livro El eje del mal es
heterosexual, Grupo de trabalho queer.
___ “El mascle vulnerable: pornografía, S/M, cultura lea-
ther i cultura dels óssos”, no livro Masculinitats per al segle
XXI (vários autores).
___ “La pluma heterosexual”, La Kampeadora n. 10, outu-
bro/novembro 1999.
___ “Miss Bear”, Revista ZERO, maio 2007.
___ “Nous plans, vells erros”, Revista enfogai n. 157, no-
vembro/dezembro 2007.
SÁNCHES-PALENCIA, C. e HIDALGO, J. C., Masculino
plural: construcciones de la masculinidad, Ediciones Edição
da Universidade de Lleide, 2001.
SANDERSON, T., The gay man’s Kama Sutra, Thomas
Dunne Books, 2004.
STOP SIDA, Esta guía va de culo. (download em http://
www.stopsida.org/guia_culo.pdf).
STRONG, B., e LORI, E. G., Anal sex for couples: a guaran-
teed guide for painless pleasure, Triad Press, Inc., 2007.

191 | Pelo CU
TAORMINO, T. The ultimate guide to anal sex for women,
Cleis press, 1997.
___ The anal sex position guide: the best position for easy
exciting, mind-blowing pleasure, Quiver, 2009.
THOMSON, M. (ed.), Leatherfolk, Alyson Books, 1991.
TRINH THI, C., Osez… la sodomie, La Musardine, 2007.
UNDERWOOD, S. G., Gay men and anal eroticism: tops,
bottoms, and Versatiles, Harrington Park Press, 2003.
VARIOS AUTORES, Masculinitats per al segle XXI, CE-
DIC, 2007.
VARIOS AUTORES, Sexualités occidentales, Communi-
cations, 1982.
VAYNE, P., “L’homosexualité à Rome”, em Sexualités occi-
dentales, Vários autores.
VIDARTE, P., Ética marica, Egales, 2007.
___ “DHIVorcio y matrimonio gay”, Periodico Diagonal,
16 de junho 2006, número 11. Também em www.hartza.com/
matrimoniogay.htm
___ “El banquete uniqueersitario: disquisiciones sobre el
s(ab)er queer”, em Córdoba, D., Vidarte, P., Sáez, J., Teoría
queer: políticas bolleras, maricas, trans, mestizas.
VILLON, F., Balladas em argot homosexuel. Mille et une
Nuits, 1998.
WEBB, Ch., Masterclass: anal sex, Erotic Print Society, 2007.
WITTIG, M., El pensamiento heterosexual, Egales, 2005.
Tradução de Javier Sáez e Paco Vidarte.
WITTKOWER, R., e M., Nacidos bajo el signo de Saturno,
Cátedra, 1982.

192 | Pelo CU

Das könnte Ihnen auch gefallen