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PELO CU
P OLÍTICAS ANAIS
J AVIER S ÁEZ
S EJO C ARRASCOSA
Copyright © 2016 by Letramento
Editor:
Gustavo Abreu
Tradução:
Rafael Leopoldo
Revisão da tradução:
Leo Gonçalves
Revisão do português:
Tadeu Sarmento
Diagramação
LiteraturaBr Editorial
Capa:
Luis Otávio | Dus Designer
Belo Horizonte – MG
Rua Cláudio Manoel, 713
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Sumário
Introdução19
A Injúria do Cu 25
O Caso de Luis Aragonés 33
Extermínio Gay no Iraque 36
Os direitos civis e o cu: O caso da cadeia interesodomia tv 39
Conclusão179
Epílogo183
Por Favor, Meu Amo 183
Bibliografia187
Dedicamos este livro à memória de Paco Vidarte
Por uma ética da passividade
9 | Pelo CU
dos, a política do ódio dos bolsonaros, até as imposturas dos
olavos de carvalho.
Mas a escrita e tradução deste livro, que começa com um
insulto, o famoso “vai tomar no cu”, além de política, cola-
bora com uma significativa produção de conhecimento que
impacta e enfrenta determinados saberes e se filia a outros.
Por exemplo: o que esse insulto significa para quem tem o
ânus como um órgão sexual? Quem tem o poder de deter-
minar quais partes de nossos corpos devem ser considerados
como órgãos sexuais? O que pode sair de um cu além de ex-
crementos? Como é possível pensar a partir do cu ou pelo
cu? Perguntas como essas perpassam a leitura do livro e nos
levam para produção de uma ética da passividade. Para fazer
isso, o livro retira a analidade do campo privado e a coloca no
campo social e político e assim gera não somente uma analé-
tica, mas toda uma gama de possíveis políticas anais que são
extremamente necessárias. Se há tanto preconceito, se há um
dispositivo que decide sobre a vida e a morte de determina-
das pessoas, se há tanto pânico em relação a qualquer possi-
bilidade existencial que fuja do ideal estanque de uma femini-
lidade e de uma masculinidade de mármore, são necessárias
políticas anais que possam esquizofrenizar o que alguns têm
o orgulho de chamar de identidade. Esfarelar essa identidade,
seja apontando-a como sem nenhum fundamento biológico,
ou ainda, mostrando-a como uma ficção social, poderia nos
tornar menos segregativos, menos fincados a uma ilusão de
um essencialismo heterocentrado e suas identidades molares.
Pelo cu: políticas anais é o livro mais recente de Javier Sáez
com coautoria de Sejo Carrascosa. Sáez é tradutor de diver-
10 | Pelo CU
sos livros, autor de Teoria queer e psicanálise e um dos or-
ganizadores de Teoria queer: políticas lesbianas, bichas, trans,
mestiças. Já Carrascosa se identifica como um autodidata.
Em comum, ambos possuem uma longa amizade e trajetó-
ria do ativismo queer espanhol. É no trânsito dos saberes da
Sociologia, da Filosofia, da Teoria Queer e da Psicanálise que
surgem algumas indagações de uma ética da passividade, ou
ainda, como preferem os autores, uma analética.
Na busca de uma origem a respeito da temática da anali-
dade é sempre possível tentar buscar um ponto primário mais
distante. No nosso caso, talvez fosse possível encontrá-lo na
poesia, no romance, na pintura, de forma mais contemporânea
na fotografia ou ainda no cinema. Todavia, já nas primeiras pá-
ginas de Pelo cu localizamos uma aliança teórica vital, já que o
livro é dedicado a Paco Vidarte, autor da obra Ética bicha, um
belo e radical livro de filosofia e a grande influência dos au-
tores. Encontramo-nos, então, essencialmente, diante de uma
abordagem filosófica da analidade e se expormos algumas re-
ferências anteriores a obra de Sáez e Carrascosa não nos espan-
taremos com a valorização do ânus como objeto teórico e/ou
político. Iremos citar aqui apenas três dessas referências: a obra
de Deleuze-Guattari, Guy Hocquenghem e Paul B. Preciado.
A princípio o tema do cu pode parecer esdrúxulo e espan-
toso, pois poderíamos vê-lo sem nenhuma dignidade filosófi-
ca, já que se costuma ponderar filosoficamente de forma mais
contundente sobre a alma, sobre o etéreo, sobre o espírito1
etc., e deixa-se de lado toda a complexidade da corporeidade
1
Talvez por isso Deleuze e Guattari, de forma irônica e contra-intuitiva, escre-
vem que somente o espírito é capaz de cagar. Claro que os autores neste momen-
to fazem uma referência a sublimação da analidade, os prazeres anais deveriam
11 | Pelo CU
e seus elementos, do prazer com o corpo até a estranheza e
desconforto com ele. Além disso, em regra, quando pensa-
mos o corpo damos privilégio epistemológico para algumas
partes e não para outras, sempre um maior valor para a cabe-
ça e uma desvalorização do baixo-ventre. Dessa forma, com-
preendemos que há toda uma arquitetura política do corpo,
as partes dignas e as partes indignas, as partes desejáveis e as
indesejáveis. O que há de novo na obra de Javier Sáez e Sejo
Carrascosa é, exatamente, uma densa e importante produção
teórica tendo como temática exclusiva o ânus. Daí podemos
apontar a primeira referência filosófica, de Gilles Deleuze e
Félix Guattari, principalmente o primeiro tomo da sua obra
O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia.
No livro O anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, há um co-
mentário que gera ecos importantes no tema da analidade e
que vai afetar uma gama de autores como, por exemplo, Guy
Hocquenghem e Paul B. Preciado. Trata-se aqui de afirmar
que o primeiro órgão a ser privatizado, colocado fora do cam-
po social, foi o ânus. Essa afirmação aparece no terceiro capí-
tulo d’O anti-Édipo, intitulado “Selvagens, bárbaros, civiliza-
dos”2, parte da obra deleuzo-guattariana que faz uma conexão
com o saber antropológico e, também, produz uma crítica à
Antropologia. O contexto da citação é a argumentação de
que o problema do socius não é a troca – como proposto pela
12 | Pelo CU
antropologia de Marcel Mauss –, mas marcar os corpos, co-
dificar os fluxos – como proposto pela filosofia de Friedrich
Nietzsche. Deleuze e Guattari trocam Mauss por Nietzsche, a
Antropologia pela Filosofia3 para afirmar que a máquina ter-
ritorial primitiva funciona por meio de codificação de fluxos
que investe nos órgãos e na marcação dos corpos.
Para Deleuze e Guattari, o ânus serve como modelo para
a privatização. Trata-se do primeiro órgão a ser privatizado, a
ser colocado fora do campo social e, assim, tem-se um desin-
vestimento do órgão e há a constituição de pessoas privadas,
centros individuais, ou seja, pessoas globais, eus específicos
e discerníveis. O ânus já não é mais investido coletivamente,
mas desinvestido e privado. Muda-se do intensivo com seus
objetos parciais para o extensivo com a formação de um eu.
Sobre essa criação político-arquitetônica do corpo podemos
citar um agudo comentário de Paul B. Preciado: “foi neces-
sário fechar o ânus para sublimar o desejo pansexual trans-
formando-o em vínculo social, como foi necessário fechar as
terras comuns para assinalar a propriedade privada”4. Hoc-
quenghem, de outra forma, diz que
3
Claro que Deleuze e Guattari também fazem alianças com a Antropologia, mas
chamam para o seu ambiente teórico o mais filosófico dos antropólogos: Pierre
Clastres.
4
Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ri-
beiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 136.
13 | Pelo CU
como fundamento da vida efetiva, e o fecha imediatamente na
forma de privatização edipiana familiar5.
5
Hocquenghem, Guy. El deseo homossexual. Tradução de Geoffroy Huard de la
Marre. Espanha: Melusina, 2000. p. 50
14 | Pelo CU
do pânico anti-homossexual que, muitas vezes, transmuta-se
em agressão, em terrorismo machista – a atmosfera sombria
do medo – e, de forma mais obscena, no assassinato, na eli-
minação física do outro. Na obra Pelo cu são apresentados
exemplos dramáticos desse terror anal e os autores colocam
o ânus, ademais, como um dispositivo que decide sobre a hu-
manidade das pessoas.
Para Paul B. Preciado, o dildo, as práticas S/M e a erotização
do ânus são capazes de produzir uma reapropriação de deter-
minadas tecnologias de repressão que são reelaboradas de uma
forma não heteronormativa. Na filosofia de Preciado, o ânus
tem um lugar especial e à maneira militante – e produtora de
utopias – de um manifesto encontramos a seguinte afirmação:
“os trabalhadores do ânus são os novos proletários de uma pos-
sível revolução contrassexual”6. Para Preciado, o ânus teria três
características que o empodera contrassexualmente:
6
Preciado, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ri-
beiro. São Paulo: Edições n-1, 2014. p. 32.
15 | Pelo CU
didos dentro de uma economia heterocentrada. Pelo ânus, o
sistema tradicional da representação sexo/gênero vai à merda.7
7
Idem, ibidem.
16 | Pelo CU
Agora trata-se de absorver tudo, apoderar-se de tudo,
chupar tudo e não dar nada em troca. A passividade é acom-
panhada de uma grande recusa a determinadas negociações.
Daí o giro histórico da analidade passiva para a analidade ati-
va e esse, quem sabe, seja o terreno em que se produza uma
real valorização da passividade; um orgulho passivo surgido
desse lugar inesperado que agora está novamente no campo
social e político.
Rafael Leopoldo8
Leandro Colling9
8
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Pós-
-graduado pela Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais (FLACSO).
Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG). É autor do livro Temporadas de abandono e Introdução ao O an-
ti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia (no prelo). Contribuiu para a coletânea
de textos sobre cinema brasileiro no livro Directory of World Cinema: Brazil.
Correio eletrônico: ralasfer@gmail.com.
9
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Fede-
ral da Bahia. Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC),
Milton Santos, e professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-
-graduação em Cultura e Sociedade, ambos da Universidade Federal da Bahia.
Criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS) e um
dos criadores e editores da revista acadêmica Periódicus, primeira e única in-
teiramente dedicada aos estudos queer no Brasil. É autor do livro Que os outros
sejam o normal: tensões entre movimento LGBT e ativismo queer e organizador
dos livros Stonewall 40 + o que no Brasil? e Estudos e políticas do CUS, todos
publicados pela Editora da Universidade Federal da Bahia. Correio eletrônico:
leandro.colling@gmail.com
17 | Pelo CU
Introdução
Esfíncter
1
O poema em português foi traduzido por Leo Gonçalves e publicado original-
mente na Revista de Autofagia, número 3 – março – 2009.
19 | Pelo CU
Este é um livro sobre o cu, um livro ao redor do cu, um
livro escrito de dentro do cu. Mas não é um livro que procu-
ra nenhuma verdade sobre o prazer anal, nem é um manual
de autoajuda anal, nem uma aproximação antropológica ou
científica sobre sexo anal que ofereça um saber para o consu-
mo de olhares curiosos sobre o “outro”. Não vamos descobrir
uma nova tribo para os antropólogos de hoje em dia, nem
vamos criar novas taxonomias a serviço de uma sexologia
moderna, progressista e até queer. Não é um livro que tem
esperança em uma suposta “liberação” sexual pelo cu, ou que
exalte o sexo anal como o natural ou o sadio, ou como a pana-
ceia de prazer e da felicidade entre os seres. Não vamos pedir
a ninguém que comprometa conosco votos de amor em uma
espécie de chakra Muladhara anal que nos levará à ilumina-
ção e à paz. Tampouco é um livro de confissões ou narrativas
pessoais sobre os nossos cus ou sobre quem esteve ou desejou
estar lá.
21 | Pelo CU
Pelo contrário, trata-se de ver o que o cu coloca em jogo.
Ver por que o sexo anal provoca tanto desprezo, tanto medo,
tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto ódio. E
especialmente revelar que esta vigilância de nossos traseiros
não é uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou ne-
gro, se é o de uma mulher ou de um homem ou é um/uma
trans; se neste ato se é ativo ou passivo; se é um cu penetrado
por um dildo, um pênis ou um punho; se o sujeito penetra-
do se sente orgulhoso ou envergonhado; se é penetrado com
uma camisinha ou sem ela; se é um cu rico ou pobre; católico
ou mulçumano. São nestas variáveis que vamos ver desdobrar
a polícia do cu; é nessa rede onde o poder se exerce, e onde se
constrói o ódio, o machismo, a homofobia e o racismo.
O cu parece muito democrático, todo o mundo tem um.
Mas veremos que nem todo mundo pode fazer o que quer
com o seu cu.
Queremos explorar um órgão ou um lugar que desafia a
definição atual do que é o sexo e o genital. Não partimos de
uma hipótese repressiva. Seguindo a análise de Foucault na
História da Sexualidade, não acreditamos que exista um po-
der que reprima o prazer ou o sexo, nem sequer, neste caso,
no prazer do sexo anal. A penetração anal faz parte do dispo-
sitivo da sexualidade há muito tempo; hoje em dia se mostra
frequentemente o sexo anal, está em quase todos os filmes
pornôs (hetero e gays), nos romances eróticos, nas lojas de
jogos sexuais, no pós-pornô, nas consultas sexológicas da te-
levisão e na imprensa; está na arte, na fotografia, na pintu-
ra... existem numerosos guias didáticos e vídeos sobre o sexo
anal2.
2
Para consultar diversos guias e manuais sobre o sexo anal, ver bibliografia.
22 | Pelo CU
Não, o sexo não se reprime ou ao menos não de maneira
uniforme. Não existe unidade no dispositivo repressivo. Pre-
cisamente, o que veremos aqui são as incoerências que exis-
tem em torno do cu, em que medida essas contradições ques-
tionam o regime heterocentrado e machista em que vivemos,
e até que ponto subverte o dispositivo atual da sexualidade.
Para começar, colocamos um simples exercício a quem lê
este livro: abra o seu cu e abrirá sua mente.
23 | Pelo CU
A Injúria do Cu
“Vão me dar um buquê de flores, mas no meu cu não passa nem um bigode
de camarão”.
Que te den por el culo. Tomar por detrás. Apretar las cacas.
Meterle los pelos del culo para dentro. A tomar pol culo. Le han
dao por detrás. Que te follen. Vete a tomar por el culo. Le han
dao por el culo. Cagar para adentro. Que te den por el saco.
Vete a tomar viento. Cinco, por el culo te la hinco. Se la han me-
tido doblada. Me han jodido. Mírale el jodíopolculo. Le pusie-
ron mirando a la Meca. Que te den por el orto. Que te den por
ahí. Que te den. Le pusieron a cuatro patas y le dejaron el sieso
como un bebedero de patos. Se lo han follado. Le pusieron el
culo en pompa. Pega el culo contra la pared que ese es maricón.
Ojete (no México, uma má pessoa). Pinche culero. Pinche ojete.
Lameculos. Esto me da por el culo. Cuidado con tu culo en las
duchas, no te agaches por el jabón (estereótipo nas prisões). Le
rompieron el culo. Sodomita. Bujarrón. Pecado nefando. Acto
contra natura. Bujarra. Bufarrón. Lameculos. Bésame el culo.
Daopolculo. Enculado. Le hice un calvo. Ese pierde aceite por el
culo. Eso te lo puedes meter por el culo. Quebrar el culo. Que te
den por el serete. Eres un sieso. Ya estás otra vez dando pol culo.
Eso está a tomar pol culo.
25 | Pelo CU
Vés a prendre pel cul. Que et donguin pel cul. Fota-t’ho al
cul. Enculat.
26 | Pelo CU
O cu é o grande lugar da injúria, do insulto. Como ve-
mos em todas essas expressões cotidianas, a penetração anal
como sujeito passivo está no centro da linguagem, do discur-
so social, como o abjeto, o horrível, o mal, o pior. Todas essas
expressões traduzem um valor primordial, unânime, gene-
ralizador: ser penetrado é algo indesejável, um castigo, uma
tortura, um ato odioso, uma humilhação, algo doloroso; é a
perda da honra, algo onde jamais se poderia encontrar pra-
zer. É algo que transforma sua identidade, que te transforma
de maneira essencial. A partir desse ato, você “é” um fodido
pelo cu, um enrabado, uma bicha.
Uma das primeiras coisas que aprende um menino ou
uma menina3 é que “tomar no cu” é algo terrível. Ainda que o
pequeno sujeito não saiba o que é exatamente esse “tomar”, o
tom insultante cria uma aprendizagem, uma prevenção. O in-
teressante do insulto é que cria uma realidade sem referência,
somente um valor flutuante, sem conteúdo. Bicha! Sapatão!
Vai tomar no cu! Quando um menino ou uma menina escuta
isso, nas primeiras vezes não significa nada de concreto – é o
valor do negativo que se transmite e percebe-se, não um saber
sobre o que é ser gay, lésbica, ou o que é, concretamente, a
penetração anal. Não se trata de um doutrinamento preciso e
deliberado contra os/as menores.
3
Neste livro, frequentemente usamos expressões como homem e mulher ou ambos
os sexos, ou o sexo oposto, o que pode parecer que se assume a crença social de
que só há dois sexos e de que, além disso, são “opostos”. Na realidade, não com-
partilhamos dessa crença no binarismo sexual. Para mais informações sobre as
pessoas trans e intersexuadas, a diversidade dos sexos, um questionamento da
existência de somente dois sexos e as implicações sociais e políticas da noção
de “sexo”, ver o rigoroso e fascinante livro de Anne Fausto-Sterling Cuerpos Se-
xuados, e os trabalhos pioneiros de Donna Haraway Ciencia, cyborgs y mujeres:
la reinvención de la naturaleza, Suzanne Kessler Lessons from the intersexed e
Leslei Feinberg Transgender warriors, Trans liberation: beyong pink or blue. Ver
Bibliografia.
27 | Pelo CU
Quando falamos de um regime de poder ou de um regime
cultural heterocentrado (por exemplo, o machismo), não se
trata de um poder vertical e hierárquico que planeja o ódio às
mulheres, ou o ódio aos gays, ou o ódio ao fato de ser penetrado.
É um regime de discurso e práticas que simplesmente funciona,
exerce-se, repete-se continuamente em expressões cotidianas de
múltiplos lugares e momentos, criando realidade (e ferindo) a
partir dessa mera repetição. Aprende-se esse valor negativo
que cria o objeto – e não o contrário.
O sexo anal aparece inicialmente no imaginário coletivo
como o pior, o abjeto, o que não deve passar. Esse é o seu sig-
nificado original, seu sentido. Nesse estado inicial de enun-
ciação, não aparece o ato de penetração, não existe o cu nem o
pênis, nem o ânus, nem o dildo; o que se produz aqui é a proi-
bição, a ameaça, a negatividade, uma advertência fantasmal,
perigosa, sem referente. Como diria Judith Butler, quando
fala do insulto homofóbico (Bicha! Sapatão!), esse enunciado,
essa frase, “vai dar o cu”, cria realidade, produz realidade4.
Quando dizemos habitualmente essas expressões (que se
foda, vai dar o cu, fodido...), não temos consciência da reali-
dade que estamos criando ou dos valores que estamos trans-
mitindo. Mas estão aqui e, para quem o recebe, o insulto é o
medo de ganhar uma marca, uma marca que cria uma iden-
tidade: ser assinalado como “o que faz isso” – agrada-te que
te metam, o foderam – e seu corolário habitual: é uma bicha.
Vamos ver mais à frente essa cadeia imaginária que leva a
identificar a penetração anal com a homossexualidade, um
gesto que, de passagem, faz desaparecer a penetração anal do
mundo da heterossexualidade, limpa o espaço hetero dessa
enfermidade. Mas toda limpeza deixa sempre espaços sujos; é
4
Butler, J., Lenguaje, Poder e Identidad.
28 | Pelo CU
impossível apagar por completo o que fazem os hetero com o
anal; ficam restos dessas práticas, ainda que incessantemente
queiram apagá-las. É como o cu: você limpa-o, mas, sempre
volta a se sujar.
Veremos mais adiante que o ato do sexo anal é desigual;
valora-se de forma completamente diferente quem adota o
papel ativo (a pessoa que penetra) e quem assume o papel
do chamado passivo (a pessoa penetrada). Todas essas ex-
pressões que citamos insultam a pessoa que recebe a pene-
tração: trata-se de um ódio ao lugar passivo e, sobretudo ao
homem penetrado. Não se insultam dizendo vai meter num
cu, meteu pelo cu, fodedor de cu, vai meter num cu, enrabador,
metedor de cu. A masculinidade dos homens se constrói de
uma forma estranha: por um lado, evitando a todo custo a
penetração, mas, por outro lado, com uma curiosa permissão
para penetrar o que quer que seja, incluindo o cu de outros
homens. Com uma dupla moral bem chamativa, esse “ato
tão asqueroso que fazem as bichas” (dar pelo cu), em muitas
culturas, não ameaça a masculinidade; ao contrário, é per-
mitido – desde que feito com o papel ativo. Muitos homens
hetero penetram analmente suas mulheres (de repente este
ato já não é tão asqueroso, mas preferem não falar dele); mui-
tas mulheres penetram em seus maridos (disso se fala ainda
menos); muitos homens penetram outros homens em praias,
parques, banheiros, saunas, e pelo fato de serem ativos, não se
consideram gays, nem bichas, nem sodomitas, nem homos-
sexuais: bichas são os penetrados. Muitas mulheres penetram
em outras mulheres analmente, mas isso não existe para o
imaginário machista e lesbofóbico, seu curto repertório bis-
sexual não dá para conceber isso. Muitas mulheres trans com
pênis penetram analmente em homens, mulheres e outras
29 | Pelo CU
trans, mas isso é castigado pelo regime médico que vigia as
pessoas trans, isso não é ser “uma mulher de verdade” (“tome
hormônios, deixe-se penetrar, ou melhor, opere-se”).
Nessas expressões vemos o enorme desequilíbrio que exis-
te na percepção da sexualidade anal: dar e tomar (no cu). Ser
ativo ou passivo se associa historicamente a uma relação de
poder binário: dominador-dominado, amo-escravo, ganha-
dor-perdedor, forte-fraco, poderoso-submisso, proprietá-
rio-propriedade, sujeito-objeto, penetrador-penetrado, isso
tudo dentro de outro esquema subjacente de gênero: mas-
culino-feminino, homem-mulher. O macho se constrói as-
sumindo esses valores, o primeiro termo do par. “A mulher”
no sentido de Wittig, de uma categoria criada pelo regime
heterossexual, constrói-se associada ao segundo termo deste
par binário5.
Esse modelo explica muito bem por que se percebe tam-
bém de forma diferente que um homem seja penetrado anal-
mente e que uma mulher seja penetrada. Por essa leitura do
regime heterocentrado, a “mulher” é construída socialmente
como um ser penetrável: deve procriar, satisfazer o homem,
ser passiva, humilde, dócil, boa mãe, reduzir a sexualidade
à sua vagina. A vagina, nesse regime, supõe-se que é um lu-
gar que espera ser penetrado. O macho “a possui”. Existe um
passo muito pequeno dessa possessão corporal/sexual à pos-
sessão total da mulher que aparece no discurso do machista
assassino: “matei-a porque era minha”. A associação dos valo-
res referentes ao amor e às relações sexuais (por meio da edu-
cação, da cultura, do cinema, da imprensa, da religião, dos
jogos, da família, do matrimônio, do amor, da literatura, etc.)
promove essa visão possuidor-possuído a respeito das mu-
5
Wittig, M., El pensamiento heterosexual.
30 | Pelo CU
lheres. Amar é possuir sexualmente (penetrando) e possuir
como um objeto através da vida como casal. Quando se anali-
sa a violência machista, que assassina mais de 80 mulheres na
Espanha a cada ano, nunca se coloca em vista esse conjunto
de valores prévios que conforma o que é ser um homem. En-
tão, o regime machista olha para o outro lado ou, o que é pior,
olha para as mulheres: é que se libertaram, é que essa ideolo-
gia doentia do feminismo mudou as coisas, é que as mulheres
não se comportam como antes. A vítima novamente como
responsável em vez do carrasco.
Dentro dessa mesma lógica, o homem penetrado é equi-
parado a esse estatuto inferior “de mulher”. Como o único
corpo penetrável nesse imaginário coletivo é o da mulher,
um homem ser penetrado é a maior agressão possível à sua
virilidade, ficando rebaixado ao feminino, perdendo sua
honra, seu status superior. O passo seguinte do desprezo tem
relação com o prazer: se o homem penetrado não desfruta
dele (foi violado, por exemplo), o desprezo e o escárnio social
são menores, mas, ainda assim terá entrado no território da
vergonha irreversível, será sempre algo traumático e terrível.
Porém, se o homem penetrado desfruta com isso, é alguém
que o busca, deseja, valoriza... então o castigo e a desonra so-
cial são totais. Da Grécia clássica à atualidade, em numerosas
culturas e épocas, o diatihemenos, o homem que desfruta em
uma posição passiva (já veremos o discutível dessa palavra,
passivo) foi desprezado e castigado. Para todas essas culturas
é incompreensível esse desafio ao que se supõe que deve ser
um homem. Ser um homem é ser impenetrável.
Esta impenetrabilidade pode conduzir à própria morte. A
prevenção de câncer de próstata, ou seu diagnóstico precoce,
em homens de mais de 45 anos, é fácil de realizar mediante um
31 | Pelo CU
sensível toque retal que indica o tamanho da glândula prostáti-
ca. Um diagnóstico precoce pode servir para evitar o desenvol-
vimento cancerígeno desta glândula que pode chegar a afetar
10, 15% da população masculina. Mas, a negação de se subme-
ter a esse exame leva muitos homens a serem diagnosticados
quando a cirurgia ou a morte já são irreversíveis. Mais uma vez
o cu é o escudo supremo da masculinidade, masculinidade que
há de levar íntegra até a tumba.
Muitos testes médicos podem ser desagradáveis, descon-
fortáveis e inclusive dolorosos, mas não cremos que a sensa-
ção de um dedo indicador no reto massageando a glândula
prostática (uma sensação prazerosa altamente recomendável)
se encontre entre essas sensações. Devemos situar essa nega-
ção em outra ordem: a ordem patriarcal, que constrói a viri-
lidade e a impenetrabilidade do corpo, e está mais próxima
de conceitos como a honra – em cujo nome se tem cometido
e se cometem os crimes mais injustos e selvagens que conhe-
cemos. E é nesse paralelismo virilidade = impenetrabilidade
= honra que essa ordem se sustenta na violência, na morte,
ainda que seja a própria6.
Pouco parece servir as advertências que a saúde pública
faz para que esse teste se generalize entre a população de risco
(homens de mais de 45 anos); até mesmo se realizam estudos
que indicam o grande rechaço que existe diante desse diag-
nóstico.
Frente à resistência de uma parte da população a esse tipo
de análise, certo setor da ciência médica se dedica à investiga-
6
Carmen A. Peña Melo, Evelyn P. Ulloa O., Grisel García Felipe, Yudania Vásquez,
Luis Quezada (Urólogo), Actitudes respecto al tacto rectal en pacientes masculi-
nos que acuden a la consulta externa del Hospital Juan Pablo Pina, en el período
Abril-Junio 200. Revista Dominicana, Vol. 64 (3) e Vol.65 (1), setembro/dezem-
bro 2003, janeiro/abril 2004.
32 | Pelo CU
ção de outro tipo de testes diagnósticos7 que não “humilhem”
a virilidade impenetrável dos seus pacientes. Novamente a
ciência se alia à ideologia para salvaguardar o sagrado status
do homem-cu-fechado: antes morto do que penetrado!8
33 | Pelo CU
se? Que é vegetariano? Que pensava em consumir as flores
e logo não poderia defecá-las? Que falou de uns camarões
com bigodes? Que gostaria de enfiar as flores no cu, mas que
não pode porque o dele é muito fechado e não cabem nem as
coisas mais finas? Que tem alergia a flores e lhe dão sapinhos
no traseiro? O que ele falou da flora intestinal”? Somente com
uma bagagem cultural homofóbica como a da Espanha é que
podemos chegar a interpretar corretamente a cadeia de asso-
ciações que passaram pela mente do nosso ex-técnico:
34 | Pelo CU
1. É algo próprio dos homossexuais masculinos e exclusi-
vo deles (contradição: “bom, eu sou um homem hetero
e comi cus de outros homens, mas sou ativo, isso não
faz de mim uma bicha”).
2. É algo antinatural, repugnante, o ânus não se usa para
isso, somente para cagar (contradição: esses machos ra-
pidamente esquecem de que penetram as suas mulhe-
res, ou outros homens, se disponíveis).
3. Ser penetrado te assimila a uma mulher, te faz inferior,
você perde sua hombridade, é um vexame, uma deson-
ra (contradição: se eu penetro a minha mulher sempre
que posso, por que ela não poderia penetrar-me? Ou,
por que lhe peço para que me penetre?).
4. O cu de um homem deve ser impenetrável salvo em
situações extremas de ausência de mulheres: prisões,
barcos, seminários de cura, naufrágio de homens em
uma ilha deserta... (contradição: mas não era asqueroso
e doloroso e o pior? Se todos são ativos nestas situações
onde somente existem homens hetero... em quem pe-
netram?).
5. O cu de uma mulher é penetrável, as mulheres são pe-
netráveis por natureza; e mais, os homens hetero ado-
ram penetrar analmente as suas mulheres (contradição:
mas não havíamos dito que o ânus era somente para
cagar e que o sexo anal era uma porcaria?).
6. Não é aceitável que um homem hetero goste de ser pe-
netrado ou de entrar com objetos no seu cu, ou que
peça a sua mulher que lhe dê prazer pelo ânus (contra-
dição: então, por que eu, um homem casado e hetero,
contrato mulheres transexuais com um grande pinto
para que me comam?).
35 | Pelo CU
7. O teste definitivo da virilidade, o masculino e o hete-
rossexual, é que seu cu não seja penetrado jamais; o
contrário supõe um deslizamento de gênero (homem
para mulher) e de identidade em sua orientação sexual
(hetero para homo) (contradição: mas se o ânus não
tem gênero nem um dildo tampouco, por que está todo
este assunto tão carregado de sexo e gênero?).
9
http://www.hrw.org/en/reports/2009/08/17/they-want-us-exterminated-0
36 | Pelo CU
“terceiro sexo” e da “feminilização” dos homens iraquianos e
sugeriram que a ação da milícia é o remédio. Algumas pes-
soas disseram à Human Right Watch que as forças de seguran-
ça iraquianas se uniram aos assassinos:
Parece que essa limpeza sexual (ao menos 500 gays foram
assassinados em 2009, em uma das maiores e mais recentes
campanhas de extermínio gay) não alarmou especialmente o
governo dos Estados Unidos, nem os governantes ocidentais.
A guerra preventiva contra a homofobia não está na agenda
do Ocidente.
37 | Pelo CU
ânus dos homossexuais, como se com esta clausura corporal
se acabasse com o desejo homossexual. Aqui a identificação
entre “gay” e “sexo anal” é completa, mas, também, a tortura
centra-se exclusivamente sobre o gay passivo (não ocorreu à
milícia iraquiana castrar os gays ativos), ou simplesmente se
identifica a todos os gays com o papel passivo na penetração.
Deixando de lado o curioso detalhe de que a cola venha
do Irã (inimigo histórico do Iraque – a substância que entra
em contato com o ânus gay vem também do “outro”, o ira-
niano), nesta forma de tortura se leva às vias de fato a fan-
tasia de Luis Aragonés e de tantos machinhos homofóbicos:
que não passe nem o bigode de um camarão. No caso brutal
do Iraque, o que era uma mera expressão se materializou no
corpo real, em centenas de ânus selados realmente com cola,
no assassinato de centenas de gays pela clausura definitiva de
seus corpos, convertidos em impenetráveis por essa ideologia
homofóbica que delira com o gozo anal que tem que reprimir
a todo o custo.
Só existe uma expressão pejorativa onde aparece o papel
ativo: já está outra vez enfiando no cu, estão sempre enfiando
no cu. Aqui o que está “enfiando”, o ativo, é alguém que inco-
moda, que está causando problema, fazendo mal, irritando (o
outro, que é penetrado por ele e que por isso supostamente
sofre). Mas não é uma expressão muito insultante, o ato de
estar enfiando no cu não te transforma em outra pessoa, em
uma entidade, em uma essência ou uma identidade; é um ato
passageiro (só pode ser usada no gerúndio, estar enfiando),
algo que você faz aos demais pontualmente10.
10
Outras expressões negativas, mas não com um conteúdo sexual ou de penetração
são: Piensas con el culo. Tontolculo. Vamos de culo. Salva tu culo. Estoy hasta el culo.
38 | Pelo CU
Os direitos civis e o cu:
O caso da cadeia interesodomia tv
Eu sempre me perguntei.... Não sei por que é que por alguém gos-
tar de sodomizar ou de ser sodomizado, isso tem que gerar direitos
civis, não entendo o porquê.
Culo de mal asiento. Ser un culo inquieto. Caraculo. Culo veo culo quiero. Perder el
culo por algo/alguien. Quedar como el culo. Ir con el culo a rastras. Mover el culo.
Dejarse el culo. Los has hecho como el culo. Quedarse con el culo al aire. Expressões
positivas: me viene como polla al culo; me parto el culo de risa; porque me sale del
culo; ponerse hasta el culo; ser polla y culo (n sentido una e carne). Para um glos-
sário exaustivo de termos sobre o cu em espanhol, ver o livro de Padilha Monge,
José Manuel El culo. Glosario y compendio de los assuntos propios del trasero.
Será que não existe alguma referência interessante sobre isso em português? Outra
pergunta: não valeria a pena traduzir algumas dessas expressões?
39 | Pelo CU
tação da metafísica dos costumes de Kant, não tínhamos escu-
tado uma reflexão tão profunda e inovadora sobre a origem
do direito. A ideia é original: o direito civil pode proceder do
cu, dos usos do cu, da penetração anal consentida e prazerosa,
tanto ativa como passiva. Ademais, a entrada dessa conversa
é igualitária: valoriza igualmente sodomizar (ser ativo) e ser
sodomizado (ser passivo). Claro que isso coloca uma mu-
dança histórica: podemos inferir que, para García Serrano,
alguém que goste de penetrar vaginalmente ou ser penetrado
vaginalmente, este sim, é fonte natural dos direitos civis. Ele
não se pergunta o porquê disso, para ele é algo natural. Ou
seja, a heterossexualidade tem carta branca da natureza para
o acesso aos direitos.
Outro aspecto interessante dessas declarações e da redu-
ção da pessoa a seu cu: a identificação entre direito e sexo.
Nesse caso, o ataque se centrava na pessoa de Pedro Zerolo.
Primeiro reduz a pessoa a corpo, e depois de corpo a cu. Para
García Serrano, ser gay é somente uma prática sexual, é so-
mente um cu que é penetrado ou um pênis que penetra um
cu. Isto nos remete ao velho debate sobre os direitos huma-
nos. Quem é humano? Quem decide o acesso a “ser” humano,
e quem fica excluído do “humano”?
Como esse dispositivo de humanização/desumanização
não é neutro, mas depende de relações de poder, então des-
confiamos do discurso humanista. Este é um bom exemplo
do perigo desse dispositivo: “Não, os gays não são humanos,
são somente um cu ou um pênis, um pedaço de corpo, as-
sim sendo... como vão ter direitos? Um cu não tem direitos,
é somente uma coisa. Zerolo – e por extensão todos os gays
– é apenas um objeto, somente um ato sexual equivocado,
portanto não é humano”. O acesso ao humano vem por meio
40 | Pelo CU
da penetração vaginal. Usando a lógica de García Serrano, ele
sim acessa os direitos civis porque ele pratica (suponhamos)
a penetração vaginal. Isto é o “não dito” do seu discurso, mas
é importante. Curiosamente, essa lógica não é reversível. Este
tertuliano não aceitaria ser reduzido a um objeto penetrável
ou penetrante. Os heterossexuais são pessoas, com alma, com
valores, são humanos. E por isso devem ter direitos civis. Seu
acesso ao direito civil não vem do cu. Não sabemos de onde
vem, mas desde logo não vem de lá. Ele não se pergunta. É
uma velha história: os que ocupam uma posição de poder, de
privilégio, de maioria, não se perguntam sobre a origem de
seus direitos ou de sua posição. Os homens não se perguntam
por que têm mais riquezas, acesso a postos de poder e respon-
sabilidade, e melhores salários e trabalhos que as mulheres. As
políticas de igualdade são coisas de “mulheres”. Eles não têm
que repropor nada. Os heterossexuais não são conscientes
dos seus privilégios, nem questionam sua própria identidade.
Nem a origem de “seus” direitos civis porque são deles. Só de-
les. Nós gays queremos ter acesso aos direitos civis por meio
do cu, e isso não são modos. Um pouco de seriedade, por
favor, pare de sodomizar. Também isso é algo muito antigo:
identificar sodomia com a homossexualidade. Já veremos em
outros capítulos a debilidade desse argumento. Basta pergun-
tar aos heterossexuais e ao pornô hetero.
Por direitos civis suponhamos que García Serrano se refira
ao direito ao matrimônio. Ou seja, para ele, o matrimônio gay
emana da sodomia. Este é o seu fundamento e sua essência.
Resulta que tomar no cu ou que te metam pelo cu nos permi-
tiu ter acesso ao direito ao matrimônio. De algum modo isso
legitima e naturaliza a sodomia. Segundo García Serrano, a
lógica gay é a seguinte: “nós damos o cu, logo temos direito
41 | Pelo CU
a nos casarmos como vocês, heterossexuais”. E isso ele não
gosta. O matrimônio é uma coisa séria, é um direito que vem
de outra parte. Mas, de onde?
Gostaríamos de levar a sério a reflexão de García Serrano.
Pois sim, vamos colocar que nossos direitos emanam do fato
de que gostamos de sodomizar e ser sodomizado. Queremos
que o acesso às políticas sociais, de moradia, de emprego, de
saúde, de cultura e educação provenham e se baseiem em
gostarmos de dar o cu. Isso é que é um orgulho passivo como
deus manda. Nada de direitos humanos, pessoas, almas, ética,
cidadania, amor ou democracia. O anal como fonte do direito
e do político. Crise da esquerda? Crise da política? Não que-
riam reinventar o social? Pois, aqui os tem. Tomar no cu.
42 | Pelo CU
OS ANAIS DA HISTÓRIA. HISTÓRIA DOS ANAIS
Pierre Molinier
43 | Pelo CU
das cidades, no alto das camas, nas praias e nos portos, vi-
giando a abertura e o fechamento dos esfíncteres de distintos
povos e épocas, propondo enigmas que só poderão ser resol-
vidos com uma maior abertura mental ou anal. Dizem que
os turcos quando brigam tendem a dar facadas no cu. É para
não matar? É uma forma deslocada de penetração? É por-
que quem recebe tem que explicar por que deu as costas? Nas
guerras, após as batalhas, os mortos que tinham feridas nas
costas não eram enterrados com honras, já que as feridas nes-
ta parte queriam dizer que haviam fugido e que tinham sido
mortos por trás. Existem numerosas tradições que condenam
a possibilidade do acesso ao corpo “por trás”, inclusive para
morrer. Metaforicamente, as costas é o cu, ainda que exista
quem chame o cu de ali onde as costas perdem seu nome.
Seguindo tangencialmente com os turcos, Vlad o Empa-
lador, personagem em que se baseou Stoker para escrever
Drácula, à parte outros passatempos sanguinários, costumava
empalar seus “inimigos”. O empalamento, o bom, o fantás-
tico, consistia em meter uma estaca no cu e/ou na vagina, e
retirá-la pelo pescoço, sem tocar os órgãos vitais para aumen-
tar a agonia… Também havia um instrumento de tortura da
inquisição que era uma espécie de pirâmide que enfiavam no
cu do suposto infiel ou herege.
O interessante do cu é que sempre é o “do outro”, do es-
trangeiro. Na tradição europeia, sobretudo na espanhola, isso
do cu é coisa de mouros. Para os árabes, são os europeus que
vão lá pedir para serem enrabados. Para muitos povos euro-
peus “um grego” é uma penetração anal. Para os invasores
espanhóis da América, os índios americanos eram um bando
de pecadores porque praticavam sexo anal de forma cotidia-
na. Sempre é o povo ao lado que pratica a sodomia, nunca é
44 | Pelo CU
algo próprio da sua “nação” ou da sua cultura. Na Idade Mé-
dia, castigava-se a sodomia por ser algo próprio dos infiéis,
dos povos mulçumanos.
45 | Pelo CU
A busca específica deste tipo de relação sexual é o des-
pertar direto da Kundalini. O tantra considera que, aparente-
mente, entre a parede do reto e a ponta da última vértebra se
encontra uma glândula a que chamam Glândula Kundalini. O
yoga criou várias técnicas para estimular essa glândula, entre
as quais mencionam a Mula Bandha.
A dilatação dos esfíncteres anais é uma das formas mais
rápidas e diretas para estimular e ativar essa glândula, o que
tem um efeito reflexo sobre os dois ramos do sistema nervoso
que terminam no reto e no ânus.
Segundo a crença tântrica, o coito anal provoca no reto
a ejaculação, o que alimenta a glândula Kundalini, pelo que
Shiva (o homem) sustenta sua Shakti com esse tipo de rela-
ção, ao mesmo tempo em que facilita o despertar de seu fogo
interno. Em um tratado de sexo tântrico encontramos esta
explicação, interessante, mas muito heterocentrada:
46 | Pelo CU
tidiana dos habitantes da Índia, onde hoje em dia o sexo anal
continua sendo um tabu e onde a homossexualidade é muito
mal vista. O ânus está rodeado de alguns músculos denomi-
nados esfíncteres; suas raízes etimológicas provêm da palavra
grega sphinx, que compartilha sua origem com esfinge, criatura
de origem mitológica que guarda mistérios e enigmas. Como
nos explicava o genial poeta gay José Lezama Lima:
11
Lezama Lima, José, Diarios, Era, México, 1994, p.84.
12
Peirce Ch. S., The essential Peirce, Volume 1: Selected Philosophical Writings,
(1867-1893), Indiana University Press, 1992.
47 | Pelo CU
grego, de estreitar, de ligar, enodar (daí o músculo anular,
“esfíncter”), e encarna metaforicamente no monstro imagi-
nário que enoda a mulher e o leão. O tom enigmático da Es-
finge se origina, por sua vez, na magnificência estranha das
representações egípcias, que na cultura grega dão lugar ao
ente sobrenatural que guarda a entrada de um lugar secreto
perto da antiga Tebas. As respostas apropriadas às adivinhas
da Esfinge (“Riddles of the Sphinx”) abririam portas de segre-
dos bem guardados. Dentro deste quadro, a proximidade de
Peirce com a Esfinge é imediata, uma vez que compreender e
desembaraçar os nós do saber constituem, sem dúvida, duas
das maiores tarefas do filósofo norte-americano. Todo o seu
sistema teórico tende, na realidade, a armar uma taxonomia
sofisticada de distinções correlativas entre conceitos “enoda-
dos”. Não obstante, as sisudas reflexões de Peirce não o leva-
ram a uma descrição das implicações anais da esfinge, outro
exemplo de repressão curiosa que deixa de lado essa parte
infame do nosso corpo, da qual ninguém quer saber nada. O
enigma da Esfinge é a pergunta sobre qual o ser que caminha
de quatro patas no início da vida; com duas, no meio; e com
três, ao final. Édipo decifra o enigma: esse ser é o ser humano,
na infância, na vida adulta e na velhice. Resolvido o enigma,
a Esfinge se joga no fundo do abismo13.
13
Existe uma outra versão sobre a resposta que Édipo deu. Segundo esta versão,
Édipo disse à esfinge: “o ser que caminha de quatro patas no início; com duas,
no meio; e com três ao final é a bicha. Qualquer um que tenha ido a uma sauna
ou a um quarto escuro em Tebas sabe que as primeiras experiências são com as
quatro patas no chão para ser penetrado; depois te colocam de pé para que te
chupem; e ao final finca no chão os dois joelhos, e apoia uma das mãos no chão,
para mamar os outros mais comodamente.
48 | Pelo CU
Gregos e romanos
14
Foucault Historia de la sexualidad, volumen II, El uso de los placeres, p. 179 [ed.
bras.: Foucault. História da sexualidade, volume 2: o uso dos prazeres. Rio de
Janeiro: Graal, 1998. p. 173].
49 | Pelo CU
com o feminino, na antiga Grécia despreza-se enormemente
a possibilidade da moleza e da afeminação do efebo. Espera-
-se dele sinais de virilidade, não físicos, mas de atitude: vigor,
resistência, ímpeto, uma promessa de virilidade por vir. Por
isso se considera muito negativamente que o adolescente des-
frute abertamente do papel passivo:
Por outro lado, o rapaz, posto que sua juventude deve levá-lo a
ser homem, não pode aceitar assumir-se como objeto nessa re-
lação, que é sempre pensada sob a forma da dominação: ele não
pode nem deve se identificar com esse papel. Ele não poderia
ser de bom grado, a seus próprios olhos e para si próprio, esse
objeto de prazer15.
15
Idem, p. 203. [Ed. Bras.: idem, p. 195].
16
Para uma análise detalhada das críticas que existiam na Antiga Grécia à posição
passiva na penetração anal e na felação, ver o rigoroso estudo de Dover, K.J.
Homosexualidad griega.
50 | Pelo CU
É claro que esse jogo de regras e de valores não tem que re-
fletir a realidade social, o sexo real que praticavam os gregos,
do mesmo modo que os atuais códigos da “boa sexualidade”
que nos propõe COPE, o Vaticano ou o Partido Popular, não
refletem em absoluto a realidade de suas práticas sociais. So-
bretudo as do Vaticano.
Parece que ocorria exatamente o contrário; parece que na
Grécia existia uma grande preocupação em manter este siste-
ma binário ativo/passivo, adulto/jovem, subestimando o tem-
po todo o prazer sexual em si mesmo. Mas é bastante difícil
crer que depois de ter passado vários anos de enrabamento na
adolescência (por mais enfeitados de culturas e rituais que se-
jam), alguém esqueça alegremente essa atividade e se converta
rapidamente em um super-ativo para o resto da vida. Também
é difícil crer que, em todos esses atos de sexo anal, o jovem não
experimentava algum prazer ou que, na realidade, o jovem não
transava com o adulto quando dava vontade a ambos.
Certa tradição homófila de escritores e artistas do final do
século XIX e do princípio do XX retomou a figura do efebo
da cultura grega e a transformou em uma espécie de ideal
absoluto, elogiando, também, a beleza do efebo em relação à
sua ambiguidade sexual e seu atraente afeminamento. Como
assinalamos, este modelo idealizado está muito distante dos
próprios critérios dos Gregos, bastante plumofóbicos em ge-
ral (ao menos segundo o que refletem todos os textos). Mas
existe outro aspecto que também se ocultou nessa tradição de
valorização dos efebos: é que na antiga Grécia também ha-
via uma importante valorização dos corpos adultos, inclusive
dos anciãos. Basta ver as esculturas gregas para compreender
seu enorme interesse e admiração pelo corpo do adulto; e,
como nos diz Foucault:
51 | Pelo CU
E no banquete de Xenofonte, evoca-se o fato de que havia o cui-
dado de escolher como talóforos de Atenas os mais belos an-
ciãos17.
Ser ativo é ser um macho, seja qual for o sexo da pessoa chama-
da passiva. Obter prazer de forma viril, ou dar prazer de forma
servil, tudo se baseia nisto [...]. Por isso, o adulto homem e livre
que era homófilo passivo (chamado impudicus, ou diatiheme-
nos) sofria um desprezo enorme18.
17
Foucault, op. Cit., p. 184. Os talóforos eram os velhos que carregavam os ramos
de oliva nas festas de Ateneia, as grandes Panateneias [Ed. bras.: Foucault. His-
tória da sexualidade, volume 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
p. 177].
18
Paul Veyne, L’homossexualité à Rome, p. 45, no livro Sexualités occidentales, vários autores.
52 | Pelo CU
originais). Inclusive, o próprio Sêneca foi objeto desse tipo
de chacota. Também em Roma inventaram o Don’t ask, don’t
tell contra os passivos, pois existem testemunhos de que, em
Roma, se expulsava do exército os homossexuais passivos.
Mas é importante assinalar que o rechaço do passivo não se
devia à sua homofilia, mas à passividade em si mesma, que
era considerada como equivalente a um defeito moral muito
grave: a delicadeza, o afeminamento19.
19
Esta tradição perdura com surpreendente tenacidade: na edição atual do dicio-
nário da Real Academia Espanhola lemos a seguinte definição da palavra mari-
ca[bicha]: homem afeminado e de pouco ânimo e esforço. (Mas que demônio será
isso de “pouco ânimo e esforço”!).
20
Veyne, p. 45.
53 | Pelo CU
dade não ignominiosa. De algum modo esse personagem ab-
jeto, o afeminado-passivo, e essa identificação tão rígida tinha
muitas vantagens: deixava livres do “pecado” todos aqueles
que tiveram um aspecto “masculino”, e afastava a suspeita do
seu possível prazer anal.
É interessante a lógica que se seguia na cultura romana: a
passividade era uma consequência da falta de virilidade, não
a causa. Esse detalhe é importante, dado que na nossa cultura
atual a lógica é inversa: é o ato passivo, o fato de ser penetra-
do, que acarreta como consequência uma perda da virilidade.
De fato, parece que o mero ato da penetração (como passivo)
“amaricona” automaticamente a pessoa que o experimenta21.
Como comentamos, em Roma ou na Grécia o critério que
organizava as sexualidades não era se alguém gostava de mu-
lheres ou de homens, mas o valor da masculinidade, a posi-
ção de poder, o ser ativo ou passivo, a classe social superior
associada ao papel ativo.
54 | Pelo CU
felação (irrumatio). Nessa cultura, a mamada era um ato ain-
da mais baixo que a penetração anal passiva. Para os roma-
nos, chupar (ou seja, despreza-se aquele que chupa o pênis,
que lhe chamavam passivo, ainda que a nós nos pareça algo
super-ativo) era o pior do pior, o ato mais baixo de submissão:
obter prazer passivamente dando prazer ao outro e, por sua
vez, oferecer uma parte do seu corpo, a boca, para a inteira
disposição do outro. A coisa era tão mal vista que, segundo
Marcial23, alguns homens que haviam sido surpreendidos
fazendo boquete... tentaram passar por homófilos passivos!
Dado que a injúria, neste caso, era menor, era preferível con-
fessar um ato de penetração passiva a confessar que gostavam
de dar uma boa mamada.
Como vimos, esses critérios de sexo condenável também
estão muito ligados à classe social. O grave não é o ato em si
da penetração, mas se quem a recebe é uma pessoa de classe
alta, um homem livre e, sobretudo, que desfrute com isso. O
que escandaliza não é o sexo em si, mas o deslizamento de
classe social que supõe, o adotar uma posição que só deve ter
o escravo. É importante colocar este ponto para entender a
cultura romana: o critério que está funcionando é mais uma
vigilância de classe do que de sexualidade.
55 | Pelo CU
anal apesar de que Sodoma, na Bíblia, não foi castigada por
esses atos.
Tradicionalmente, os pecados cometidos pela cidade de
Sodoma ficaram conhecidos como a prática do sexo anal en-
tre homossexuais masculinos; de fato, no imaginário popular
e clerical, a razão do castigo era a prática da homossexualida-
de (pelo menos masculina) por parte dos sodomitas, a qual
passou a se chamar sodomia.
O trabalho erudito de John Boswell Cristianismo, Tolerân-
cia Social e Homossexualidade. Os Gays na Europa Ocidental
desde o começo da Era Cristã até o Século XIV explica com
muito rigor os mal-entendidos que existem na origem dessa
interpretação do termo sodomia.
56 | Pelo CU
destruída porque o povo de Sodoma tentou violar os anjos; 3)
que a cidade foi destruída porque os homens de Sodoma tenta-
ram induzir os anjos a se envolverem em relações homossexuais
com eles (observe-se que não é o mesmo que 2); na lei judia
a violação e a relação sexual são delitos que se castigam inde-
pendentemente); 4) a cidade foi destruída por não tratar com
hospitalidade aos visitantes que o Senhor enviara.
Embora seja a mais evidente das quatro, a segunda possibilidade
foi largamente ignorada pelos estudiosos antigos e modernos da
Bíblia, provavelmente devido às ambiguidades que rodeavam o
estupro homossexual. Desde 1955, os estudiosos modernos se
inclinam cada vez mais pela interpretação 4), enfatizando que
as matizes sexuais do relato mesmo estando presentes, eram de
caráter secundário, e que o impacto moral da passagem se re-
lacionava com a hospitalidade. Para dizê-lo brevemente, a tese
desta linha de investigação sustenta que Lot violava o costume
de Sodoma (onde não foi cidadão, sim meramente “residente”),
ao receber à noite hóspedes desconhecidos no recinto fortifica-
do da cidade sem a permissão dos anciãos. Quando os homens
de Sodoma se reuniram para pedir que se levasse os estrangeiros
à sua presença, pois “eles queriam conhecê-los”, não queriam
dizer outra coisa que “saber” quem eram e, em consequência, a
cidade não foi destruída por imoralidade sexual, mas pelo peca-
do de falta de hospitalidade com os forasteiros.24
57 | Pelo CU
“sodomia” aparece pela primeira vez no século XI, no Liber
Gommorrhianus do Monge Benedito Petrus Damianus, para
o que aquela palavra incluía todas as atividades sexuais que
não serviam para a reprodução. As lésbicas eram ignoradas
em grande parte, embora as mulheres que praticavam o sexo
anal também caíssem sob o epíteto sodomita. Como veremos
mais à frente, no parágrafo sobre Foucault e a aparição do
“homossexual”, a sodomia não descrevia um “tipo de perso-
nalidade”, mas somente o ato sexual em si.
As primeiras perseguições aos homossexuais por causa do
sexo anal são da metade do século VI, quando o imperador
bizantino Justiniano e sua esposa Teodora proíbem, por mo-
tivos políticos, os “atos contra a natureza”, amparando-se em
razões religiosas. A lei previa como castigo a castração e o
passeio público pelas ruas. Não existem provas de que a Igreja
Ortodoxa tenha apoiado o édito em nenhum momento.
Até o século XII, na maioria dos países europeus, a so-
domia não era castigada, não sendo mais que um entre tan-
tos pecados que apareciam nos textos eclesiásticos. A atitude
mudou no percorrer das cruzadas, nas quais a propaganda
anti-islâmica identificava os mulçumanos como sodomitas
que violavam os bispos e as crianças cristãs (já vimos que o
sodomita é sempre “o outro”). Pouco depois, identificava-se
a sodomia com a heresia; entre 1250 e 1300, introduziam-se
leis que castigavam o pecado com a morte. Essas leis foram
usadas sobretudo como ferramentas políticas, como foi o
caso dos templários ou do assassinato de Eduardo II da In-
glaterra, ou em situações onde a paz social estava em perigo,
como nos casos de violações ou pederastia. Em geral, a ho-
mossexualidade estava bastante estendida, sendo a discrição
o elemento chave. De fato, por exemplo, é conhecido o caso
58 | Pelo CU
de Leonardo da Vinci, que foi acusado anonimamente várias
vezes de sodomia. Na Florença da época, bastava depositar
uma denúncia anônima em uma caixa (o “tamburo”) para de-
latar um sodomita.
25
Wittkower, Rudolf e Margot, Nacidos bajo el signo de Saturno, p. 165.
59 | Pelo CU
ficiente para criar a palavra Florenzer (Florentino) como gíria
para homossexual na Alemanha (uma vez mais, o sodomita
é o vizinho). As falsas denúncias eram muito comuns nesse
tempo, especialmente aquelas feitas de forma anônima pelos
inimigos. Esse pode ter sido o caso de Leonardo. Em sua larga
carreira, depois de sair de Florença, não teve cargos adicio-
nais, inclusive alguns historiadores defendem que, por causa
do susto, o pobre Leonardo não voltou a “veadar” mais em
toda sua vida, mas não há provas.
Voltando aos maus vizinhos: é interessante a origem me-
dieval da nossa palavra bujarrón [homossexual]. Essa palavra
nos chegou pelo idioma francês, com a palavra bougre26 que
significa búlgaro, por uma referência a uma seita medieval
herética da Bulgária, os Bogomiles (bugger em inglês). Como
essa seita enfrentava a Igreja Católica, em seguida foram acu-
sados de dedicar-se à prática da sodomia, embora não exis-
tam dados históricos concretos de que tivessem especial inte-
resse pelo sexo anal (ou ao menos não mais que um interesse
que sempre foi mostrado pelos dirigentes da própria Igreja
Católica).27
É interessante a observação que faz Boswell sobre a indife-
rença contra o gênero dos sodomitas na hora do castigo:
60 | Pelo CU
Um deles foi a coleção de Reginon de Prüm (m. 915). Seu en-
foque da sexualidade e dos pecados sexuais – como da maioria
de seus contemporâneos – era indiferente ao gênero de que se
tratasse. Para Reginon, o que constituía o pecado era o ato, não
as partes envolvidas: a penitência pelo coito anal (três anos) era
exatamente a mesma para dois homens ou para pessoas casadas,
e não era mais severa que a que correspondia à simples fornica-
ção heterossexual 28.
28
Boswell, p. 174.
29
Daqui vem provavelmente à raiz do insulto homofóbico em italiano, finoccio – bi-
cha, e também hinojo. Naquela época se colocava os sodomitas na fogueira com
folhas de hinojo para deixar o fogo mais lento e deixar o sofrimento mais longo
e penoso. Talvez o insulto inglês faggot (bicha, e também haz de leña) provenha
da mesma triste etimologia. Porém, estamos esperando uma desculpa da igreja
católica por haver torturado e assassinado milhares de homossexuais.
61 | Pelo CU
tão deixou de aprender orações, andar com sinfonias, se erguer
em cajado ou seguir alguém, como se vê a cada dia por falta
dos da cara que expostos à ventania e à inclemência, de ler, de
fornicar, de uma purgação, de uma sangria, deixam um cristão
no escuro? Provem ao olho do cu que matou jovens, cavalos,
cachorros, etc.; que murchou ervas e flores, como fazem os da
cara, olhando o quão peçonhentos são: pelo que dizem que têm
mal de olho. Quando se verá que por ser testemunha ocular a
ninguém tenham enforcado por ele, como pelos da cara, que ao
dizer que o viram formam suas calúnias os escrivães? Fora que
o olho do cu é um e tão absoluto seu poder, que pode mais que
os da cara juntos. Quando se verá que nas irregularidades se
metam com o olho do cu?
62 | Pelo CU
CONTRA DON LUIS DE GÓNGORA E SUA POESIA
30
Para se aprofundar na história da repressão da sodomia na Espanha entre os
séculos XIV e XVII, ver os livros de Garza, Federico Quemando mariposas: so-
domía e imperio em Andalucía y México, Siglos XVI-XVII, Laertes, 2002, e Car-
63 | Pelo CU
Cu, sexo e gênero: políticas anais.
65 | Pelo CU
que não está, portanto, marcado pelo gênero masculino ou
feminino31.
É um lugar estranhamente vazio das marcas de gênero. O
binarismo sexual e o mito da cópula heterossexual-reprodu-
tiva não podem operar nesse lugar do anal, que desafia sua
lógica e os coloca em dúvida. Inclusive questiona outro bi-
narismo, o que divide os seres humanos em heterossexuais e
homossexuais. E ainda que, como vimos, uma tradição mile-
nar identifique continuamente a sodomia com a penetração
entre homens, a realidade é que também homens e mulheres
se penetram analmente em todas as combinações possíveis,
com o que, na prática, se desmorona essa divisão. E se o que
define um homossexual já não é mais a penetração anal, o
que o define? Deixamos essa pergunta absurda à curiosidade
médica-sexológica. Para nós, o que importa é precisamente a
incoerência dessas definições.
O que a história do sexo nos ensinou é que ele é algo mui-
to maleável, dúctil, variável; discursos médicos recortam par-
tes do corpo de diferentes maneiras sexuais de acordo com
a época, contextos, discursos, lugares. A mão pode ser um
órgão sexual em um século e não ser em outro. O clitóris faz
sua aparição em dado momento da história da medicina, no
século XVI, mas sua percepção como órgão sexual e sua fun-
ção muda no século XIX. Até o século XVIII existia a teoria
do sexo único, ou seja, somente existia um sexo, o masculino,
e tudo que tinha a mulher era igual do homem, que era o pro-
tótipo, mas invaginado. O trabalho de Thomas Laqueur sobre
31
Para um desenvolvimento mais aprofundado desta questão, ver Preciado, B.
Terror anal, em Hocquenghem.
66 | Pelo CU
a construção social do sexo é fundamental para entender as
condições culturais e sociais disso que chamamos sexo32.
Mas o que queremos assinalar aqui é que, nas genealogias
sobre o sexo e o gênero, não há nenhuma referência à impor-
tância do anal, à sua função reguladora sobre o normal e o
patológico, nem sobre sua relação chave com a masculinida-
de e a feminilidade. Os discursos em torno do sexo anal con-
figuram importantes valores e determinam práticas muito
concretas: desde queimar seus praticantes na fogueira (como
vimos no capítulo anterior), até enforcá-los ou fuzilá-los
(na atualidade, em oito países, a prática do sexo anal entre
homens é condenada à pena de morte: Afeganistão, Arábia
Saudita, Emirados Árabes Unidos, Irã, Mauritânia, Nigéria,
Sudão e Iêmen; em alguns estados dos EUA, o sexo anal con-
sentido de mútuo acordo entre adultos é um delito). Oitenta
e cinco países perseguem a homossexualidade. A condenam
com prisão, flagelação, internamento psiquiátrico ou campos
de trabalho. E, em todos esses casos, o detonante, o indicador,
a prova física do delito, é a prática do sexo anal. Não estamos
falando somente de agressões verbais ou discriminatórias,
estamos falando do assassinato de milhões de pessoas no de-
correr da história, e no momento atual.
Muitos povos não sabiam que havia uma relação direta
entre o coito e a reprodução. Do mesmo modo, o cu, o ânus,
foi algo sexual em muitos momentos, mas a priori é uma se-
xualidade que não é de “homens” nem de “mulheres”, não é
masculina nem feminina, não é reprodutiva, não é genital.
De fato, nem sequer necessita de um pênis; as pessoas se pe-
netram com dildos, mãos, dedos, pés, objetos, línguas. Se o
32
Thomas Laqueur, La Construcción del sexo: cuerpo y género desde los griegos hasta
Freud.
67 | Pelo CU
cu provoca emoções eróticas, sexuais e de prazer sem ser re-
conhecido como órgão sexual, então, o que é a sexualidade?
Até onde chega, como defini-la, como capturá-la, como re-
cortá-la, conceituá-la? O que é exatamente o genital? O sexo
anal desmantela essas perguntas. Inclusive, se chamamos sexo
anal... onde está aqui o sexo? Em que parte exatamente?
Em Marquês de Sade encontramos um dos poucos elo-
gios que existem na história do pensamento e da literatura
sobre o sexo anal. Seu livro A Filosofia na alcova é um curioso
texto onde se misturam numerosas cenas de sexo anal com
reflexões sobre o desejo, a sexualidade, as relações humanas
e a política. Nesta obra, Sade chega inclusive a questionar o
modelo clássico da copulação pênis-vagina, e vai dizer que
o lugar natural do pênis para a penetração é o ânus. Um dos
protagonistas, Dolmancé, afirma o seguinte:
33
Marques de Sade, La filosofia en el tocador, p. 99. [ed. bras.: Marques de Sade. A
filosofia na Alcova. Trad. Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 2003.]
68 | Pelo CU
prática que libera a mulher da pesada carga da procriação,
dado que essa prática não é reprodutiva.
Outro caso bem diferente de referência ao sexo anal en-
contramos em seu uso como forma de chegar virgem ao ma-
trimônio. Em alguns países, o sexo anal entre homem e mu-
lher é denominado sexo à irlandesa porque, ao que parece,
era uma prática habitual para evitar a perda da virgindade.
O mesmo se diz dos ciganos embora, na realidade, pode ser
que se trate mais de um rumor racista do que de algo com-
provado. Em todo caso, o que nos interessa dessas expressões
é o reconhecimento do sexo anal como uma forma de des-
locamento do sexo vaginal a partir da supervalorização da
virgindade que realizou historicamente a Igreja Católica. De
fato, parece que a Igreja sempre quis tapar todos os buracos
porque foi a maior repressora da sodomia durante séculos.
Inclusive hoje em dia seu ensinamento cotidiano contra os
gays, lésbicas e transexuais, nos recorda esse triste passado.
Em 30 de junho de 2005, o grupo ultradireitista Foro de
la Familia, com o apoio do PP e da Igreja Católica, convo-
cou uma manifestação em Madri contra o direito ao matri-
mônio para homossexuais. A manifestação não passou para
a história por causa da presença de numerosos bispos (que
jamais haviam participado de nenhum de tipo de manifesta-
ção), mas por uma declaração de uma senhora que assistia à
manifestação e que foi entrevistada pela COPE. Suas palavras
foram transmitidas ao vivo pela COPE, e depois, visto seu hi-
lariante conteúdo, difundiram-se em numerosas rádios e em
fóruns da internet até se converter em uma joia da história
da reflexão sobre o sexo anal. Este é o conteúdo da famosa
entrevista:
69 | Pelo CU
REPÓRTER: Uma mãe de família se aproximou com alguns de
seus filhos. Aqui temos suas duas crianças ao lado. Margarita,
boa tarde.
MARGARITA: Boa tarde.
REPÓRTER: Feliz de estar aqui apoiando a manifestação...
MARGARITA: Igualmente; olha, sim, estou feliz porque sou
mãe e esposa, e tenho oito filhos. E penso que essa lei me agri-
de pessoalmente como mãe, porque se uma mulher não se sen-
te protegida pelas leis civis e pelo seu marido, dificilmente vai
querer ter filhos. E quero falar outra coisa. Estudei neurociência
quando fazia psicologia, então ali nos falavam de que quando
os animais têm lesionada uma glândula que se chama amídalas,
começam a apresentar comportamentos tais como os dos ho-
mossexuais: copular pelo ânus, onde o ânus ao receber esses....
esses espermas não podem nunca gerar, porque estão com cocô.
Então eu não creio que isso seja interessante para sociedade em
nenhum aspecto...34
34
Para escutar digite no youtube as palavras “cope manifestación homosexuales”;
https://www.youtube.com/watch?v=cBqQUCae2cE; a entrevista é impagável.
70 | Pelo CU
pela mesma zona dos órgãos genitais não faz com que recha-
cemos o sexo como algo asqueroso ou anti-higiênico.
Mas a direita de sempre não é o único que tem proble-
mas com o anal. As diferentes esquerdas tampouco escapam
ao pânico anal, e em muitas de suas manifestações é habitual
escutar todo tipo de mensagens e iconografias onde a pene-
tração passiva é sinônimo do pior, da humilhação, do abjeto.
É típica a imagem do trabalhador de quatro com as calças
abaixadas sendo penetrado pelo patrão, e outras muitas pia-
das e cartazes onde o “mau” mete no cu do “bom”. Temos uma
interessante reflexão sobre isso na introdução do livro O eixo
do mal é heterossexual:
71 | Pelo CU
guindo os preceitos da heterossexualidade obrigatória, mas que
também qualificavam as práticas homoeróticas como abjetas35.
35
Grupo de trabalho Queer, El eje del mal es heterosexual, p.18.
72 | Pelo CU
tos dos debates feministas daquele período trataram não só de
caracterizar a família como uma parte do modo de produção,
mas também de demonstrar como a produção mesma do gêne-
ro deveria ser entendida como parte da “produção dos próprios
seres humanos conforme as regras que produzia a família hete-
rossexual normativa”36.
73 | Pelo CU
ter dado 57 punhaladas em dois jovens em uma casa da Rua
Oporto, foi absolvido dos dois delitos de assassinato que re-
queriam as respectivas acusações; o júri considerou que o as-
sassino acabou com a vida das vítimas em “legítima defesa” e
por “medo insuperável” de ser estuprado. Aqui entra em jogo
o fantasma do sexo anal, e a justificativa social deste estranho
“pânico”, um pânico que não se compreende facilmente já que
o mesmo acusado havia aceitado de bom grado ir até a casa
dos jovens depois de conhecê-los em um bar gay.
74 | Pelo CU
ter essa lógica, e mostrar que se trata de um regime muito
complexo, que se constrói dia a dia; um regime cuja elabo-
ração participamos todos em maior ou menor medida. Que-
remos recordar que todas essas risadinhas contra o passivo,
inclusive dentro do ambiente gay, todas essas piadas de bichas
que dão o cu, todas essas expressões negativas contra o sexo
anal, toda essa perseguição às crianças bichas com a amea-
ça da penetração, tudo isso faz parte desse regime de terror
que chamamos regime heterocentrado, um regime que impõe
sua lei e sua violência, que vai do machismo à misoginia, do
pressuposto de que somos todos heterossexuais, e de que só
existem dois sexos; de que ninguém deve sair dos seus papéis
de gênero; do ódio e da perseguição às sapatões, aos trans e
às bichas; um regime que respira e cresce dia a dia, partindo
dos púlpitos das igrejas e das mesquitas, das escolas, dos tri-
bunais, das famílias, das rádios, das televisões e da imprensa.
Como vimos, a repressão do anal tem um papel chave na
construção da masculinidade contemporânea, e acreditamos
que falta um debate sério e amplo sobre isso. É preciso deixar
bem claro que essa questão faz parte de um entrelaçamen-
to de ódio e de violência. Quando Jacobo Piñeiro dá essas
57 punhaladas em dois jovens gays, temos que desentranhar
o que existe por trás deste medo “insuperável” e sua relação
com o sexo anal. Quando o júri popular lhe absolve, temos
que reconhecer que aqui, no “popular”, no povo, temos muito
bem silenciada esta mensagem milenar contra o sexo anal,
“é compreensível que tivesse medo, imagine, iam penetrá-lo”.
Medo insuperável, homofobia insuperável.
Nosso querido amigo Paco Vidarte publicou um magnífi-
co livro poucos meses antes de morrer. O livro se chama Ética
bicha, e é um texto fundamental para compreender como se
75 | Pelo CU
articulam hoje em dia as diversas lutas sociais e políticas em
relação às minorias sexuais.
76 | Pelo CU
tre outras tantas questões, Paco desenvolve uma inovadora
proposta política e ética do anal. Mas não de uma analidade
passiva nem envergonhada, mas uma ativa, vinculada a uma
relação de negação frente ao poder. Não lhe dar nada, e ab-
sorver tudo. Paco abre a possibilidade de uma nova política
bicha, sapata ou trans onde não existe intercâmbio, nem diá-
logo, nem negociação. Na verdade, o que está propondo é um
giro histórico, a possibilidade de uma analidade ativa, de um
cu ativo, de um cu que seleciona, escolhe, decide, capaz de
criar sua própria ética, não uma ética universal e que, além
disso, não facilita ao poder nenhum saber.
A ciência, a antropologia, a medicina, a psicanálise, a
sociologia, a imprensa, todos querem saber dxs bichas, dxs
sapatões, dxs trans, das minorias sexuais. Pedem-nos que fa-
lemos; que confessemos; que negociemos; que nos explique-
mos; que digamos como somos e o que queremos. A ética
anal de Paco vai negar tudo isso. Acabou-se o diálogo e o in-
forme. Porque as condições deste saber vêm manipuladas de
antemão, porque as condições do diálogo são manipuláveis,
partem de um desequilíbrio de poder, de quem tem o poder
para escrever sobre as nossas vidas, coisificar-nos, classificar-
-nos, documentar-nos, converter-nos em objeto. Esse contex-
to homofóbico e machista já está prescrito de antemão, por
isso não temos que cair no jogo: não responder, não pedir
nada, não dizer nada. Somente ser um buraco negro:
77 | Pelo CU
absolutamente expostos e acessíveis. O eterno erro de pensar
com o cérebro e não pensar com o cu. De fazer políticas cere-
brais e não políticas anais. Outra vez a analética cruzava o meu
caminho. Fazer do cu o nosso instrumento político, a consigna
fundamental de outra militância LGTBQ, desenhar uma políti-
ca anal muito básica: tudo para dentro, receber tudo, deixar que
tudo penetre e para fora somente soltar merda e peidos, esta é
nossa contribuição escatológica ao sistema. Haverá quem veja
nisso uma típica política de uma passividade fundamentalista.
Não me parece mal. Mas, opor esta política à política falocra-
ta de sempre não creio que seja uma coisa ruim. O esfíncter é
perfeitamente capaz de se converter em sujeito político, se fe-
char e abrir-se, se dilatar ou contrair-se; como dizem os heteros
inconscientes necessitados de uma penetração: que não passe
nem o bigode de um camarão. O cu sempre foi objeto de viola-
ção, de vexação, de estigmatização. De desejo. Uma passividade
mais passiva que toda passividade. Mero receptor. Órgão pene-
trável, traseiro, vulnerável, pouco vigiado, cuja única atividade
política, sua única iniciativa própria reconhecida era colocar-se
ante a parede como estratégia defensiva. Sempre houve uma po-
lítica anal. Não estou a inventá-la agora. O que estou inventando
é uma política anal diferente. Que não vai na defensiva, que não
seja meramente receptiva, que não seja vergonhosa: meta-me
tudo o que eu quero que entre pelo meu cu e depois fique com
meus dejetos e cheire meus peidos. Sinceramente, eu não vejo
outra maneira de me relacionar com o sistema. E me dei conta
de que há muito tempo faço isso sem estar consciente disso. E
que há muita gente que anda nas proximidades39.
39
Paco Vidarte, Ética marica, pp. 88-89.
78 | Pelo CU
tre o poder e a analidade. No seu assustador artigo: Matam
uma bicha, lemos o seguinte:
40
Texto complete em http://www.literatura.org/Perlongher/npmatan.html
79 | Pelo CU
trabalhar, vestir, viver. Inclusive chega a regular nossos esfínc-
teres: só deve ser um espaço de saída, nunca de entrada. Ao
menos como valor público. Como já colocamos, na realidade,
existe uma variedade enorme de penetrações anais. O pornô,
por exemplo, é uma máquina de produção de imagens e uma
tecnologia de gênero; no cinema pornô, tanto hetero como gay,
aparecem penetrações anais continuamente, é quase um requi-
sito indispensável. Existe nisso uma esquizofrenia que explica
o mal-estar do anal: todo mundo fantasia com ele, deseja-o, ex-
cita-lhe, olha-o, pratica-o em segredo; o pornô o promove, va-
loriza, explora, coloca-o no centro do seu discurso. Mas diante
do público, e dos valores sociais, tomar no cu é o pior. Como se
explica essa dupla moral? Trata-se de um enorme armário do
qual ninguém fala, o armário do sexo anal.
Um exemplo curioso da relação entre o sexual e o anal se
dá no idioma francês. Em francês, a palavra cul, cu, é sinôni-
mo de sexo. Um film de cul é um filme pornô (não pornô gay,
mas de qualquer tipo). Une histoire de cul (uma história de
cu) é ter transado, é ter feito sexo com alguém, só que não
analmente, mas em geral. Neste caso, a identificação de cu
com o sexual, inclusive com o coito anal, é total, faz parte
da linguagem cotidiana. Isso não significa que a penetração
anal seja mais considerada na França que em outros países, a
atitude é a mesma41.
O escritor bicha chileno Pedro Lemebel também colocou
em alguns de seus textos essa relação entre a masculinidade e
a negação do cu:
41
Bob O’Neill no seu livro Variations scatologiques. Pour une poétique des entrailles,
dedica uma parte ao sexo anal onde cita mais de cem expressões que existem no
francês em torno da analidade e da sodomia (pp. 93-98). Ver também Villon, F.,
Ballades em argot homosexuel, e Nelson, I. La Sottie sans souci, essai d’interpré-
tation homosexuelle.
80 | Pelo CU
O futebol é outra homossexualidade velada
Como o boxe, a política e o vinho
Minha hombridade foi morder minhas chacotas
Comer raiva para não matar todo mundo
Minha hombridade é aceitar-me diferente
Não ofereço a outra face
Ofereço o cu companheiro
E esta é minha vingança
Minha hombridade espera paciente
Que os machos se façam velhos
Porque a esta altura do jogo
A esquerda rasga seu cu frouxo
No parlamento
81 | Pelo CU
Uma sexualidade implica uma territorialização precisa da boca,
da vagina, da mão, do pênis, do ânus, da pele. Deste modo, o
pensamento straight [...] garante a relação estrutural entre a pro-
dução da identidade de gênero e a produção de certos órgãos
(em detrimento de outros) como órgãos sexuais e reprodutivos.
Boa parte desse trabalho disciplinador consiste em retirar o
ânus dos circuitos de produção de prazer. Deleuze e Guattari:
o ânus é o primeiro órgão privatizado, colocado fora do cam-
po social; aquele que serviu como modelo de toda privatização
posterior, ao mesmo tempo que o dinheiro expressava o novo
estado de abstração de fluxos. O ânus, como centro de produção
de prazer (...) não tem gênero, não é nem masculino nem femi-
nino, produz um curto-circuito na divisão sexual, é um centro
de passividade primordial, lugar abjeto por excelência, próximo
do detrito e da merda, buraco negro universal por onde se co-
lam os gêneros, os sexos, as identidades, o capital. Ocidente de-
senha um tubo com dois orifícios, uma boca emissora de signos
públicos e um ânus impenetrável, e enrola em torno disso uma
subjetividade masculina e heterossexual que adquire status de
corpo social privilegiado”42.
42
Preciado, B., Testo Yonqui, pp. 59-60.
82 | Pelo CU
Regressando a essa relação entre a masculinidade e a im-
penetrabilidade, é interessante assinalar que a masculinidade
não é algo privativo dos homens, ou próprio dos homens. As
mulheres também têm contribuído para construir isso que
chamamos masculinidade, como demonstrou Judith Halbers-
tam em seu magnífico ensaio Masculinidade feminina. O livro
é uma viagem fascinante pelas diferentes formas de mascu-
linidade que as mulheres têm exercido ao longo da história,
desde as mulheres que passavam por homens nos séculos
XVIII e XIX, passando pelas maria-homem, as mulheres sol-
dado, as lésbicas butch, ou os drag kings. Queremos nos deter
em uma das figuras que aparece no livro de Halberstam, por-
que tem uma relação especial com a penetração: a stone but-
ch. No capítulo: Masculinidade lésbica: as Stone butch também
se deprimem, Halberstam nos coloca o seguinte:
83 | Pelo CU
masculina em termos de “não ação”? Muitos homens não prati-
cam a penetração sexual como parte de seus hábitos sexuais e,
não obstante, esta omissão não provoca comentários e é claro
que nunca se diagnosticou esta conduta como um complexo de
disfunção sexual. Quem sabe tenhamos que recorrer ao termo
“homem stone” quando o medo da penetração vem combinado
com a ilusória sensação de superioridade inata e de violência de
diversas formas, incluindo a sexual. “O homem stone” poderia
se tornar uma ferramenta de diagnóstico para identificar as pa-
tologias sexuais dos homens adultos43”.
43
Halberstam, J., Masculinidad femenina, pp. 148-149.
44
Halberstam, J., p. 149.
84 | Pelo CU
sistema se aplica de novo: o impenetrável é somente coisa de
bio-homens.
Esta posição da stone butch nos coloca um interessante
problema lógico, o mesmo que já teve a conexão neuronal de
Luis Aragonés, especificamente, o problema que se deu em
seu neurônio 6: se sou um homem, então meu cu é impenetrá-
vel (Ou é ao contrário, como era isso?). Existe uma lógica cir-
cular entre a masculinidade e a impenetrabilidade. Se é mas-
culino e por isso se é impenetrável, ou se é impenetrável e por
isso se é masculino? Como já assinalamos, na realidade não
existe uma essência natural da masculinidade; nem sequer o
discurso médico sobre os hormônios “masculinos”, a testoste-
rona, é algo bem fundamentado. Como explica Anne Fausto-
-Sterling, os hormônios que agora chamamos com demasiada
rapidez de “femininos” e “masculinos”, são necessários para o
desenvolvimento de muitos órgãos vitais e, além disso, tanto
os homens quanto as mulheres necessitam de ambos os ti-
pos de hormônios para o desenvolvimento corporal. Foi um
preconceito dos pesquisadores que fez com que se definissem
certos hormônios (progesterona, estrogênio, testosterona, na
realidade regulares ontogênicos de amplo espectro) como
“sexuais”. Fausto-Sterling explica, em seu livro, de que modo
a pesquisa científica sobre a biologia hormonal esteve sempre
estreitamente ligada à política de gênero.
45
Fausto-Sterling, A., Cuerpos sexuados, p. 180.
85 | Pelo CU
Então, se a masculinidade não está nos genitais (existem
biomulheres masculinas, e existem trans F2M que são ho-
mens sem genitais masculinos), nem nos hormônios... onde
está? Ora, no cu, ou, mais precisamente, em sua impenetrabi-
lidade. Claro que isso é assim dentro do regime heterocentra-
do e machista. Como veremos no capítulo sobre o fist, certas
comunidades de couro e sadomasoquistas gays e lésbicas têm
subvertido esse regime, e têm desenvolvido uma apropriação
da masculinidade precisamente pelo lugar mais inesperado,
por uma valorização do papel passivo na penetração.
Santiago Sierra apresentou, no começo de 2009, a obra Os
Penetrados. É um vídeo de 45 minutos em 8 atos, onde pode-
-se ver todas as formas possíveis de sexo anal entre homens
e mulheres, de raça branca e negra. A obra pretende ser uma
reflexão sobre o pânico associado à imigração, comparando-
-o com o pânico ao sexo anal, o pânico de dar o cu. A expo-
sição abriu uma polêmica sobre a possível provocação que
supunha semelhante vídeo, mas o mais interessante para nós
está em um detalhe de que se falou pouco: o casting que Sierra
preparou levantou muito mais gente do que era necessário,
um indicador de que um mero ato de penetração anal não
assusta tanto, não produz tanto rechaço, pelo contrário. As
faces foram pixeladas para evitar a identificação das pessoas
que atuavam, ou seja, nos encontramos com um novo armá-
rio anal, e uma nova mostra de que talvez a base do pornô es-
teja no rosto, não nos genitais. Tampouco se pode considerar
esse vídeo como uma provocação, dado que, há muito tempo,
o sistema assimila quase todas as variantes da sexualidade
86 | Pelo CU
(talvez o canibalismo e a pederastia sejam os únicos atos que
ainda escandalizam o sistema)46.
46
Ver imagens do vídeo em: http://www.santiago-sierra.com/200807_1024.php. Ou-
tros artistas que exploraram o tema do sexo anal a partir da pintura, da perfor-
mance ou da fotografia são Juan Hidalgo, Ron Athey, Pierre Molinier ou Robert
Mapplethorpe. http://www.ronathey.com/
87 | Pelo CU
Ativo, passivo, hetero, homo, versátil...
A conversão em bicha pelo cu.
Pedro Lemebel
47
Neste capitulo e em todo o livro há ausências significativas: fala-se pouco do
sexo anal entre lésbicas e entre pessoas transexuais. Os motivos dessa omissão
são dois: primeiro, os autores, dois bio-homens bichas, e consideramos que
corresponde a esta comunidade fazer sua própria genealogia e interpretação
do que significa o sexo anal e das suas práticas; não queremos nos apropriar
nem sermos porta-vozes ou intérpretes do que não nos corresponde; segundo,
acreditamos que a obsessão e a perseguição do sexo anal aconteceu, sobretudo,
com relação ao sexo anal entre homens, e, sobretudo, na posição do homem
penetrado; dispomos de muito mais informações sobre os atos de sodomia entre
homens e, por isso, podemos fazer uma análise mais fundamentada do que sig-
nifica historicamente o anal para o regime heterocentrado e para a construção
social da masculinidade. (Sobre o sexo anal para mulheres, ver os livros e os
filmes de Tristán Toarmino: http://www.puckerup.com?/ e ver na bibliografia.)
89 | Pelo CU
bre a mesa o desejo homossexual como algo cuja repressão
cria, precisamente, a paranoia anti-homossexual. O medo da
própria homossexualidade leva o homem a um temor para-
noico de vê-la aparecer ao seu redor.
Hocquenghem se vale dos textos de Deleuze e Guattari
n’O Anti-Édipo para fazer uma dura crítica da psicanálise e da
sociedade da sua época com uma leitura subversiva da opo-
sição falo-ânus. Para ele, a sociedade atual é fálica, o falo é o
mais valorizado; é o que organiza o poder e os espaços so-
ciais. Em oposição ao falo, o ânus se privatiza, é algo que deve
permanecer oculto, no terreno “do privado”:
90 | Pelo CU
larização. Porque não basta ter tido o ânus aberto. É necessário
seguir fazendo dele um campo relacional. Como fazer política
sem renunciar ao ânus? (...). A antiga pergunta: como a revo-
lução anal? Se metamorfoseia em outra neste momento: como
evitar o marketing anal?
50
Ibid, p. 163.
91 | Pelo CU
Esse é o desafio anal: um golpe de Estado desenvolvido, encu-
bado, nas mesmíssimas entranhas da hetero normatividade. 51
51
Sobre esta questão de viver o queer e sua transformação atual em objeto de
consumo, ver o texto de Paco Vidarte, el banquete uniqueersitario: disquisiones
sobre el s(ab)er queer, em Cordoba D., Vidarte P., Sáez J. Teoria queer, pp. 77-110.
92 | Pelo CU
os dentes bem curtos. Tais eram os signos que demonstravam a
prática de penetração anal e da felação 52.
Uma vez obtida uma boa relação com o sujeito explorado, passa-
va-se ao estudo da morfologia somática, anotava-se o tipo cons-
titucional, passava-se e media, observando o desenvolvimento
dos caracteres sexuais primários e secundários. Em alguns ca-
52
Llamas, R., Construyendo sidentidades, pp. 162-163.
53
Ibid, p. 163.
93 | Pelo CU
sos se realizavam fotografias quando o sujeito era transexual, ou
apresentava alguma característica de interesse54.
54
Alberto García Valdés, Historia y presente de la homosexualidad, p. 131. Citado
no livro de Llamas, R. p. 162, nota 10. Uma vez mais, prisão e homossexualidade
unidas graças às “ciências sociais”. Supomos que a esse brilhante cientista não
ocorria estudar “a heterossexualidade” e menos ainda com uma amostra de 205
presos hetero...
55
El PAIS, 27/12/2006.
94 | Pelo CU
Esses olhares, explorações e buscas anatômicas consoli-
dam, uma vez mais, a associação penetração anal = homos-
sexualidade. Nada se diz nesses textos sobre as penetrações
anais entre homens e mulheres, e é precisamente esse silêncio,
essa enorme omissão, o que vai consolidar a sodomia como
o referente único e exclusivo do sexo anal. Uma vez mais, o
regime heteronormativo limpa seu próprio território e apaga
suas trilhas referentes ao desejo anal.
É interessante lembrar-se da análise de Foucault sobre a
sodomia, que era simplesmente um ato, com o passo que foi
dado com a medicina e a psiquiatria do século XIX rumo a
uma nova forma de categorizar, que vai criar um tipo de pes-
soa, “o homossexual”. Até o final do século XIX, realizar o ato
do sexo anal, a sodomia, era uma categoria do antigo direito
civil e canônico, e descrevia um tipo de ato proibido; o autor
era somente seu sujeito jurídico. Em contraponto, o “homos-
sexual”, categoria que aparece na segunda metade do século
XIX, é algo muito diferente:
95 | Pelo CU
pode servir de data natalícia – menos como um tipo de relações
sexuais do que como certa qualidade da sensibilidade sexual,
certa maneira de interverter, em si mesmo, o masculino e o fe-
minino. A homossexualidade apareceu como uma das figuras
da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia,
para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo
da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual
é uma espécie.
56
Foucault, M., Historia de la sexualidad, Vol. 1, pp. 56-57 [ed. bras.: Foucault, M.
História da sexualidade: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999].
96 | Pelo CU
Essa lúcida análise de Foucault é útil para compreender até que
ponto o que supõe o anal tem uma historicidade e valores con-
cretos. A homossexualidade nasce vinculada ao sexo anal, mas
vai muito mais além, dentro de um discurso médico, psiquiátri-
co, como uma patologia e, o que é mais importante, como uma
forma de identidade global que se impõe ao sujeito.
Outra convenção muito comum entre a cultura heterossexual
é conceber o par gay com os seus mesmos padrões; essa estupi-
dez que nos perguntam com tanta frequência quando veem um
par de bichas: “Então, entre vocês, quem é o homem e quem é
a mulher? ”. Essa pergunta, obviamente, contém várias pressu-
posições absurdas: primeira, que os gays têm que reproduzir a
rígida e limitada cultura sexual hetero onde cada um sempre
tem que fazer um papel (o homem: penetrar / a mulher: ser pe-
netrada). Segunda: que ser penetrado equivale a “ser mulher”, e
que penetrar equivale a “ser homem”. Terceira: que os heteros
não se penetram entre si. Na realidade, a prática sexual entre
gays não mantém este modelo hetero. Vamos fazer um pouco de
sociologia caseira para ilustrar isso, mesmo que tampouco seja
necessário explicar isso a ninguém.
Um experimento sociológico:
A estatística do BEARWWW
97 | Pelo CU
namoro gay para fazer um pequeno estudo sobre os passi-
vos e os ativos. Trata-se da página www.bearwww.com. Este
site conta com mais de 170.000 perfis, e tem a vantagem de
que cada um deles nos dá uma descrição de suas preferências
sexuais. Realmente é um site que reúne gays de todas as ten-
dências, faz tanto sucesso que é uma referência para gays de
qualquer subcultura; na verdade, somente 45.000 perfis desse
site consideram a si mesmos ursos, ou seja, somente 25%, a
quarta parte.
De qualquer modo, não importa que a pesquisa seja en-
viesada, porque essa brincadeirinha que vamos fazer não
tem nenhuma intenção de rigor científico, mas, ainda assim,
171.842 perfis é uma amostra impressionante de bichas, que
talvez possa nos dar informações interessantes.
Os homens desse site têm entre 18 e 80 anos, e pertencem
aos 5 continentes (mais de 80 países).
O motor de busca dos perfis do bearwww se organiza se-
gundo as seguintes seções, referentes à prática sexual:
• Ativo;
• Passivo;
• Versátil;
• Somente oral;
• Somente masturbação;
• Ativo/versátil;
• Passivo/versátil;
• Não disse.
98 | Pelo CU
A primeira busca que nos interessa aqui é ver, desses
171.842 homens, quantos se consideram exclusivamente ati-
vos e quantos exclusivamente passivos:
99 | Pelo CU
O que se deduz dessa “pesquisa” é que, dentro da comu-
nidade gay, não há uma divisão significativa “ativo” versus
“passivo”, no que é referente ao anal. Isto é, somente uma
porcentagem muito pequena pratica unicamente a penetra-
ção como ativo ou como receptor, o que vai contra a crença
comum hetero. O mais interessante é que a maioria dos perfis
mostra uma grande flexibilidade, ou seja, a possibilidade de
estar abertos a ser penetrado ou a penetrar. Isso significa que
o estereótipo segundo o qual os gays “se dividem” em pessoas
passivas e ativas é uma falácia criada a partir de uma visão he-
terocentrada, binária e simplista, que não corresponde com
as práticas da própria comunidade gay, mas aplica (injusti-
ficadamente) o modelo do casal hetero “homem/mulher” às
pessoas gays por meio de uma separação artificial entre “ati-
vos” e “passivos”, como essências separadas que dariam lugar
a identidades separadas e diferenciadas.
O mais interessante dessa reflexão é que essa separação
não é real. Isto é, que na prática, penetrar e ser penetrado são
duas opções disponíveis ao mesmo tempo, opções do jogo se-
xual de uma mesma pessoa.
Um dado curioso é a divisão tão equilibrada entre ativos
e passivos. Tanto entre os homens que se definem como ex-
clusivamente ativos, como os exclusivamente passivos, e entre
os que se definem como ativo/versáteis ou passivo/versáteis,
o equilíbrio é total (15% ativos e 15% passivos; 6,6% ativo/
versáteis, 6,6% passivo-versáteis). Ou seja, dentro dos que as-
sumem mais ou menos um desses dois papéis, em conjunto,
não há diferença significativa quanto a passivo e ativo. Isso
quebra também outro estereótipo sobre os gays, o de que to-
dos “gostam que lhes fodam”, e a ideia de que ser passivo é
próprio da bicha. Contra esse preconceito tão amplo, esses
100 | Pelo CU
dados sugerem que há tantas possibilidades de encontrar um
gay com tendência ativa quanto passiva. E que, além disso, o
mais comum é que pratique ambas as coisas.
Gostaria de contar com uma pesquisa parecida com ho-
mens hetero. Não a temos, mas tememos que os dados seriam
muito diferentes. Não porque o desejo de ser penetrado ou de
penetrar cus não exista entre os homens hetero, mas porque a
cultura em que vivemos impõe um duro silêncio aos heteros
sobre essa questão e sobre a possibilidade de expressar em
público qualquer tipo de desejo anal que não seja por uma
mulher e como penetrador.
101 | Pelo CU
mos a este animal que representa a Espanha racial e mascu-
lina, mas a uma figura que podemos descrever rapidamente
como um donut. Ou, caso queira, pode-se imaginar uma gar-
rafa onde a boca e o cu se comunicam. Na verdade, o toro é
uma superfície “fechada”, no sentido de que todos seus pontos
comunicam de forma continua. Ou seja, o orifício central do
donut está lá, mas não interfere na continuidade da superfí-
cie do toro. Seguindo com a nossa analogia, o corpo humano
pode ser descrito como uma superfície fechada, mas com um
orifício estrutural que é o aparato digestivo. Isso contradiz a
imagem que temos do nosso próprio corpo, de maneira in-
tuitiva: quando ingerimos algo, dizemos que colocamos “den-
tro” do corpo, mas na realidade estamos colocando “fora”.
Não “colocamos” nada, estamos passando por um buraco.
Quando colocamos um dildo pelo cu acontece o mesmo.
Na verdade, essa superfície que é o corpo tampouco é fe-
chada no sentido estrito. É porosa, aberta. A pele tem poros
e por ela se intercambia a água com o exterior. As paredes do
estômago e do intestino são porosas e, graças a essas pare-
des permeáveis, os nutrientes da comida são assimilados pelo
organismo. Assim sendo, a sobrevivência dos organismos
vivos depende do fato de que são sistemas abertos. Em ter-
mos mecânicos ou de produção, nosso corpo transforma ali-
mentos em energia e os restos inúteis dessa transformação se
convertem em fezes, em dejetos. Mas é interessante salientar
que tanto a fase inicial do processo, o ato de comer ou beber,
como a fase final, a defecação, se produzem “fora” do nosso
organismo, no orifício que nos atravessa de ponta a ponta.
Quem sabe essa visão não nos ajudasse a entender com
menos drama tudo o que se cria ao redor da penetração anal,
como uma violação de nosso espaço interior, a facilitar uma
102 | Pelo CU
fronteira entre o mundo e nossa intimidade, etc. O que sa-
bemos é que essas zonas de intercâmbio, essas bordas, são
prazerosas, estão erotizadas – como assinalou Freud ao falar
das mucosas da boca e do ânus como zonas erógenas (ver no
capítulo dedicado a Freud, mais adiante).
O anal, de algum modo, é uma lembrança permanente
dessa fragilidade do nosso corpo, dessa estrutura “de orifí-
cio” que nos atravessa, e da qual não queremos saber nada.
Talvez tenhamos que reescrever nossas metáforas corporais
(“te sinto em minhas entranhas”, “mete mais fundo”, “te sinto
dentro de mim”) e nos abrirmos a esse espaço que já não é
próprio, um espaço que qualquer donut pode nos lembrar,
toda manhã.
57
Apresentamos os textos em inglês por expressa petição dos autores da perfor-
mance.
103 | Pelo CU
A zone full of promises,
Possibilities of new lives,
New perfumes,
New emotions.
J.G Ballard – COCAINE NIGHTS
Anus is a Bioport.
Not just symbol or metaphor
But a space of injection
Through which to open and expose the body to others
B. Preciado – TERROR ANAL.
104 | Pelo CU
How do you deal with a broken soul?
Small fractures
Splinter
Less than before
Once cracked – twice hidden
No healing
Forgiveness
In this place you
TOUCH
GENESIS P. ORRIDGE – ROMAN SPOKEN WORD
105 | Pelo CU
The refusal to be categorizable as another deviant star.
We are the norm.
We are the twilight.
S.P.K – EXPOSING THE CATHEDRAL OF DEATH
106 | Pelo CU
And then maybe somebody will see
How things
really are
Mel Lyman – APOCALYPSE CULTURE
Cicatrizes
Potência: Prazer = dever: dor.
O mundo dividido em dois é vertical e bipolar.
Sua verticalidade se dá por meio da alienação de sexo, gênero e
sexualidade. Esse axioma adquire significado em uma gama de
58
Texto de apresentação da performance ANUS IS AN OPEN SCAR Warbear,
Mariae Nascenti & Boxikus. – BEWARE OF A HOLY WHORE # 5 Festsaal
Kreutzberg – 2009 Berlin (Germany). – SLUM Fiken 3000 – 2009 Berlin (Ger-
many) – MOVIN’ ALONG WITH VERSES Sin Club – 2010 Berlin (Germany).-
VISION’R #5. Center Mercoeur – 2010 (France). Vídeo: http://www.vimeo.
com/6118497 Shooting: Stephan Shvanke. Montaggio: Boxikus.
variações algébricas onde o polo positivo é representado pelo
homem e o negativo pela mulher.
O homem é parte do mundo do que está acima, onde o poder é
passado de pais a filhos. Nesse mundo, o homem assume as nor-
mas de gênero masculino via experimentação do prazer. Esse
poder adquire seu status numa função diretamente proporcio-
nal à dor produzida. O homem se identifica com a alteridade, só
e exclusivamente, se esta ficar subordinada. A expressão mas-
culina se localiza no espaço de intersecção entre apropriação e
eliminação.
O homem faz-se macho quando penetra, perpetrando um assas-
sinato vestido de criação. O ato de morte passa pela escravidão
da vida. Assim, esse processo fica assegurado por uma lógica
naturalista, segundo a qual, o esperma produzido pelo prazer de
poder é o único meio de perpetuar a espécie humana. O homem
é macho quando penetra, porque somente assim pode expressar
a naturalidade e, portanto, a universalidade do seu poder.
A mulher é a parte do mundo debaixo, onde o dever a converte
em esposa, mãe e filha. Nesse mundo, as mulheres têm o dever
de estar subordinadas, portanto, de serem penetradas e fecun-
dadas para voltar a reproduzir ao homem e, por último, para
morrer sofrendo. A vagina é o espaço para a transferência de
poder de uma geração a outra. O sangue da mulher é a garantia
do poder masculino. Isto representa o direito natural do homem
para fazê-la mulher, o lacre de cera em que está gravada a norma
do gênero.
A naturalização do poder de matar fecundando e do dever de
morrer parindo, se estruturam num processo de instituciona-
lização chamado família. Esta produz o núcleo original do laço
social ocidental.
Esse modelo é a coluna vertebral da estrutura econômica capi-
talista que naturaliza as desigualdades de poder de uns poucos
sobre o dever de muitas, fazendo do uso do outro a unidade
de medida da esfera humana. Nela, o sentido do poder como
108 | Pelo CU
processo sexual de morte encontra seu lugar natural. Matar é
privatizar o prazer sexual numa economia de apropriação e de
exclusão. A subversão desse vínculo entre poder e dever, onde
uma linha naturalizada e universalizante vincula o mundo de
cima ao mundo de baixo, passa através de outro canal.
Esse canal é uma passagem secreta que cria estranhas conver-
gências entre os mundos, relações que são perigosas para a
permanência da homeostase vertical. Por isso, esse canal deve
permanecer oculto e saturado.
Essa passagem tem a capacidade cultural de produzir prazer so-
mente no ato de expulsão, dado que a penetração no mundo
bipolar só pode ser identitária. A supressão da função transitiva
e ativa dessa passagem é inaceitável, na medida em que põe em
crise o sistema de fronteiras entre o mundo de cima e o de baixo.
Essa passagem deve ficar cicatrizada, porque sua saturação ga-
rantiria o poder da diferenciação verticalizante. Mas, detrás des-
ta cicatrização, habitam mundos estranhos com criaturas estra-
nhas que palpitam com emoções estranhas; histórias intestinais
onde o macho e a fêmea se perdem num pastiche de pasta fecal.
Odores profundos e músculos retais sujam os lençóis, ali onde
o sangue perde a primazia da primeira noite que define o poder
do macho e o dever da mulher. A escória conta a história e a
história é outra.
É uma história visceral de outras noites, outros amores, ou-
tras paixões. É uma história de resíduos e repressões, onde essa
descarga cria um Aqueronte enlouquecido que come o próprio
Caronte, mesclando o bem e o mal entre suas ondas. Um país
de silêncio onde os sons são subliminares e onde frequências
imperceptíveis transformam os medos em desejos.
É uma história para lá do mundo, onde flutuam a tempestade
de poeira, auto-organizações, economia do ócio, sociologias do
indivíduo.
Subverter é cortar a cicatriz para abrir a panaceia dos ventos
numa espiral injetora.
109 | Pelo CU
Uma explosão ressoa. É a fratura dos axiomas gritando. A insu-
portável leveza de se converter em flocos como uma neve viral,
onde a prática do prazer se converte no rechaço categórico do
dever, onde o esperma se perde em sinos tubulares, onde a repe-
tição é mudança, onde a entrada e a saída formam um processo
infinito, invertido, louco.
Passem senhores, passem porque para lá do mundo há um me-
taverso em processo, se se sabe viver na escuridão, se descobrem
cores ofuscantes.
WB Francesco Macarone Palmieri59
59
Os autores agradecem a Francesco Macarone por ter escrito este texto para o
nosso livro.
110 | Pelo CU
Prazeres anais: fist, dildos, pênis, cárceres.
De un Plumazo, n4
111 | Pelo CU
-pinto, etc. O fist vai recuperar estes dois espaços proscritos,
o trabalho do cu e da mão-braço como objetos e sujeitos de
prazer. Beatriz Preciado em seu ensaio Manifesto contrasse-
xual, realizou uma rigorosa genealogia do dildo para mostrar
que este não procede de uma imitação ou referência ao pênis,
mas à mão. O dildo procede das técnicas e máquinas dese-
nhadas para reprimir a mão que masturba. Por isso podemos
dizer que o fist é uma espécie de reconquista de um terreno
proibido: somente um médico podia usar a mão “aqui”, no
ânus e no reto, para as explorações. No caso dos homens, era
uma exploração vergonhosa e privada, justificada para detec-
tar enfermidade de próstata. Os fist se apropriam desse espa-
ço privado e “do especialista”, e lhe dão um sentido diferente:
de comunidade de aprendizagem, de prazer, de autonomia.
Abandona-se a centralidade dos genitais e a dinâmica obri-
gatória ereção-ejaculação. É curioso observar que esse aban-
dono do pênis aparece em um ambiente gay quando preci-
samente os gays são identificados como adoradores do falo
(também existem práticas S/M de fist entre lésbicas e entre
heterossexuais, mas não entraremos aqui na genealogia des-
sas práticas, que são diferentes).
Como já assinalamos em outras partes deste livro, o uso
de um espaço abjeto como o anal é permitido no cinema
pornô, mas somente se é penetrado por um pênis. O fist faz
outra coisa, ele é um pornô sem genitais. Como assinalado,
o código do pornô tradicional está saturado pelo circuito ere-
ção-penetração-ejaculação, onde o eixo narrativo é o pênis.
Em contraponto, nos filmes pornôs de fist, em muitos casos,
não aparece nenhuma ereção, e mais, não aparecem órgãos
genitais. O interesse se desloca para outras partes do corpo:
112 | Pelo CU
• Em muitas festas de fist, a mão e o braço são enluvados
cerimoniosamente com uma luva de látex (isto nos re-
corda a luva de Rita Hayworth, mas, à diferença de Rita
em Gilda, aqui o erótico vem do processo de colocar-se
a luva, não em retirá-la). Vemos aqui outro exemplo
de apropriação e ressignificação: do uso inicial da luva
no fist pela necessidade de se proteger da transmissão
da AIDS, passa-se a uma estilização erótica da própria
luva, o braço penetra o reto, dá prazer, mas por sua vez
ele também recebe prazer. E a luva do século XVII, de-
senhada para evitar a masturbação, transformou-se em
uma luva que produz prazer. O processo de lubrificar a
mão e o braço se transforma em um ato erótico;
• O ânus como lugar de exploração, de prazer e de traba-
lho; o ânus e o reto, lugares tradicionalmente excluídos
do prazer, são reivindicados de uma forma diferente,
não como lugar de recepção do pênis (órgão que dá
valor de uso dentro do pornô), mas com lugar ativo, de
produção de prazer e de abertura do corpo. Como diz o
estudioso da cultura S/M José Manuel Martínez-Pulet:
“meter o punho em um cu faminto pode ser outra for-
ma de ternura e de afeto (...). No caso do fist-fucking
(ou do foot-fucking, variante do fist com o pé), fica bem
claro que sua finalidade é a produção do prazer. Os pra-
ticantes podem brincar horas e horas sem a necessidade
de gozar, ou mesmo de ter uma ereção. Para um, o pra-
zer vem da entrega do cu ao outro, o que exige muita
confiança. Para o outro, o prazer consiste em colonizar
com a mão o interior do outro homem e sentir dentro
as batidas do seu coração, para o qual se requer muita
responsabilidade e perícia. Como disse G. Rubin ‘fistear
113 | Pelo CU
é uma arte que consiste em seduzir um dos músculos
mais impressionantes e tensos do corpo’. O punho cer-
rado, que normalmente define um gesto de agressivida-
de e ameaça, é redefinido aqui como um instrumento
de afeto e ternura. A câmera se fixará nele, no pote de
manteiga que lhe umedece, no orifício anal que o es-
pera; captará os movimentos da mão e as progressivas
modificações da bunda; captará a complexidade dos
participantes manifesta nos olhares, nos gemidos, nos
gritos etc. O eixo da narração já não é, pois, o pênis ere-
to que penetra (ao contrário, o pênis, flácido, retrocede
a um segundo plano), mas se traslada para a periferia, a
bunda e o punho, em uma ação que não tem nenhuma
finalidade concreta além da produção do prazer corpo-
ral e mental60”.
Genealogia do Dildo
114 | Pelo CU
históricos. Neste sentido, a autora do Manifesto contrassexual
considera que existem três tipos de tecnologias (com os seus
instrumentos correspondentes) que deram forma e função ao
dildo contemporâneo e que, por sua vez, são chaves para en-
tender a definição de gênero e do corpo como “incorporação
protésica”:
115 | Pelo CU
dos indivíduos, a ser arte consubstancial do sujeito
da modernidade 62 .
62
Preciado, B., Manifiesto contrassexual, p. 82. [ed. bras.: Preciado, Beatriz. Ma-
nifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1
edições, 2014].
116 | Pelo CU
mão, que intervém para se introduzir e manipular esse
circuito aberto que é agora o corpo.
117 | Pelo CU
do exército estadunidense e britânico em seu recente
ataque ao Iraque:
118 | Pelo CU
não reprodutivo), a mão em um lugar abjeto por excelência, o
cu. Uma mão e um braço que trabalham no lugar equivocado
para abrir um corpo precisamente no lugar da perda (o cu
somente produz merda, que não é útil para o capital). Com o
fist, o braço, produtivo em termos de “mão” de obra é coloca-
do em um lugar mais improdutivo.
119 | Pelo CU
do tem braço, independente se é mulher, homem ou inter-
sexual. E esse “independente” é importante porque, para os
sistemas dominantes, a diferença sexual e a fixação de natu-
rezas masculinas e femininas são cruciais. Aqui, mostra-se
que essa diferença não é tão evidente e que talvez nem sequer
seja relevante. Trata-se de uma forma muito soFISTicada de
sexualidade.
O fist desafia o sistema de produção de gênero e dester-
ritorializa o corpo sexuado (desloca o interesse dos genitais
para qualquer parte do corpo). Ademais, o fist é reversível,
aquele que coloca o punho logo pode receber e vice-versa (o
código ativo/passivo também se dissolve).
Os clubes de fist também questionam a separação entre o
espaço público e o privado; são clubes onde o fist é feito dian-
te do olhar de outras pessoas. Em geral, o único lugar onde se
pode brincar com o cu é o banheiro. Com a segurança de um
trinco bem fechado, todos já brincamos alguma vez no banho
de colocar os dedos no cu. Na melhor das hipóteses, no es-
paço também privado do leito conjugal, alguns casais ousam
explorar esse lugar desconhecido. Contudo, a prática do fist
dentro da comunidade S/M sempre foi uma prática pública,
se faz à vista das demais pessoas que estão no clube: ademais,
várias pessoas podem participar do fist, é uma espécie de ato
social que rompe a barreira de “casais fechados no quarto”.
Isso também é uma novidade a respeito do uso vergonhoso
do cu: o fist supõe uma espécie de “saída do armário anal”,
uma exibição orgulhosa do prazer que se pode obter com o
fist, e uma forma de criar vínculos de solidariedade.
Em determinado momento, o S/M foi criticado como uma
reprodução dos papéis de poder do mesmo modo que se con-
sidera frequentemente que o passivo na penetração anal é o
120 | Pelo CU
submisso e que o ativo é o dominante. Martínez-Pulet criti-
cou essa visão simplista a partir das análises de Towsend e
Foucault:
121 | Pelo CU
ticas como o bondage, o spanking, a cera, a humilhação, o jogo
com os mamilos, a tortura do pênis e dos testículos, o uso dos
dildos, o controle da respiração, mas, sobretudo, ao fist-fucking
que, segundo a antropóloga Gayle Rubin, seria a única prática
sexual que o século XX oferece à história das práticas sexuais.
Para Foucault, em virtude dessa técnica, o S/M opera uma rup-
tura com o monopólio que tradicionalmente sustentou os ge-
nitais em relação ao prazer físico, o descentraliza e ao mesmo
tempo redistribui as zonas erógenas. 64
64
Martínez-Pulet, J.M., Yes, Sir! Thank you, Sir! Placer, poder y masculinidas en la
pornografía S/M gay.
122 | Pelo CU
ter, esta reinvidicação gay do masculino acontece no tempo em
que retrocede no coletivo heterossexual, e isso devido aos avan-
ços promovidos pelo movimento feminista. À primeira vista,
parece ter razão quando afirma que o “hipermacho e a bicha são
vítimas de uma imitação alienante do estereótipo masculino e
feminino homossexual”. Mas, somente à primeira vista, porque
o que Badinter passa por alto é, a meu parecer, que a apropria-
ção homossexual do modelo convencional do “homem”, não
somente indica que o macho heterossexual não é o guardião da
masculinidade (colocando, dessa forma, algum alívio na dimen-
são cultural e sócio-política dos gêneros), mas que, além disso,
leva a cabo uma reconstrução dessa masculinidade desde den-
tro dela mesma (e, portanto, prescindindo da “pluma”). Com
efeito, a simulação teatral da masculinidade vai acompanhada
de uma construção desvirilizada daquela, já que as práticas se-
xuais desta comunidade, primeiro, prestam particular interesse
pelo ânus (o órgão erógeno mais negligenciado pela sexualidade
normativa), erotizando consequentemente a receptividade ou
passividade sexual do homem (e não só mediante a penetração,
que é uma prática gay generalizada, mas sim, fundamentalmen-
te, por meio do fist-fucking, ou do uso de dildos e de plugs), e,
segundo, ressaltam uma série de disciplinas que, mais que cele-
brar o poder do pinto e das bolas, os mortificam, colocando-o
em cena e retirando prazer de sua vulnerabilidade e fragilidade
(açoite, pinças, agulhas, tortura etc.).
123 | Pelo CU
por outro, as consequências políticas que essa construção traz
consigo65.
124 | Pelo CU
incompatíveis: uma masculinidade clara, até exagerada às ve-
zes, com um desejo manifesto de ser analmente penetrado.
Isso nos parece uma mudança histórica importante que me-
rece ser destacada, algo que desestabiliza as equações tradi-
cionais sobre o passivo e o masculino.
Por outro lado, temos que reconhecer que essas culturas
hipermasculinas souberam se apropriar do prazer anal, mas
não da feminilidade. Geralmente, nos ambientes leathers,
S/M e de ursos, a pluma e a feminização são muito mal vistas.
Você vai a uma festa leather falando de forma afeminada e
nem os camelos chegam perto. Nas convocatórias de muitas
festas leather, bakala, ursos, etc., lemos coisas como “somente
homens machos”, “evitar loucas e pintosas”, “para homens de
verdade”, “papel muito masculino”, etc. Sempre se pode dizer
que para esse tipo de ambiente de bicha pintosa já existem
vários bares e festas gays, ou que é muito difícil ser masculino
ou feminino ao mesmo tempo. Talvez. Mas, essa não é a ques-
tão. A questão é que o feminino ainda é associado a algo in-
ferior, ridículo ou incompatível com o masculino. A questão
é que essa plumofobia traduz uma misoginia evidente, um
desprezo e um ódio contra as mulheres. Muitos se defendem
dessas acusações dizendo que: “mas não me dá curiosidade
um parceiro afeminado, não quero ir a um bar com gente as-
sim porque não me excitam”. Bem, ninguém te pede que vá
para a cama com uma bicha pintosa, mas é comum passar-se
daí ao desprezo e ao insulto. Para completar, muitos desses
supermachos plumofóbicos têm mais plumas que um edre-
dom norueguês, com o que a gente se pergunta se não teria
125 | Pelo CU
também uma pitada de autodesprezo inconsciente neste re-
chaço visceral à pluma no outro66.
De cárceres e cus
126 | Pelo CU
no trabalho pioneiro sobre a participação das mulheres na
criação da masculinidade (masculinidade feminina). Vemos
nesses processos que “ser um homem” tem como base “não
ser” outras coisas: não ser mulher, não ser homossexual. É
uma identidade gerada por oposição, por negação, ou por
repetição de gestos estéticos ou de conduta que carecem de
original. É uma noção sem um conteúdo preciso. O poder
dos homens, o poder patriarcal e machista, se constrói, por
um lado, por meio deste desprezo contra as mulheres e, por
outro, pelo ódio contra os homens considerados como menos
masculinos, os gays.
O problema do cu é que todo mundo tem um. Isso colo-
ca os homens heteros em um limite demasiado perigoso a
respeito dos gays no sentido em que eles (os heteros) tam-
bém são penetrados por lá, pelo mesmo lugar que as bichas.
No machismo, percebe-se a mulher como “o outro absoluto”,
exalta-se uma pequena diferença genital (elas têm buceta,
“nós” não) como uma alteridade total e com o cu isso não é
possível. Não existem operações de extirpação de cu. O má-
ximo que se pode fazer com ele é fechá-lo até que não caiba
“nem um bigode de camarão”, mas isso, por mais que diga
nosso ex-técnico, não pode se manter constantemente. Luis
Aragonés também caga. E o problema não é somente que o
ânus hetero seja penetrável, mas que deseje ser penetrado.
Como veremos no capítulo sobre a psicanálise, Freud vai co-
locar o prazer anal como elemento fundamental em todos os
seres humanos.
Vemos que o regime heterocentrado se exerce sobre os ho-
mens heteros de uma forma duplamente paradoxal: desejam
as mulheres, mas ao mesmo tempo as desprezam; desejam
ser penetrados, mas ao mesmo tempo desprezam esta pos-
127 | Pelo CU
sibilidade ou aos homens que desfrutam desta maneira. Sua
identidade se funda em manter de forma obsessiva essa dupla
negação (não mulher + não bicha): mate mulheres e bichas e
será um homem. O fato de que “ser um homem” é um lugar
impossível explica os ritos da masculinidade compulsiva que
vemos em muitos machos heteros, isto que em outra ocasião
chamamos de pluma hetero: a repetição obsessiva e ostentosa
de gritos, falatórios, violência, cusparadas, futebol, coçação
de saco, motores, Playboy, testosterona, cabelo no peito, Re-
vista Placar, perigo, touros, alcoolismos, vagabundos, quadri-
lhas, cantadas, sinuca, empurrões... ou seja, essa condenação
à repetição em que consiste a vida cotidiana de muitos ho-
mens hetero67.
Outro exemplo dessa relação entre penetração anal, do
poder e do masculino, é o caso das prisões. É conhecido que
nas prisões masculinas a penetração anal é uma prática muito
ampla mesmo dentro de certos códigos bastante fechados ou
restritos; diferentemente da fantasia dos filmes pornô, onde
carcereiros e presos podem transar entre si a todo momento
em paz e harmonia, o sexo ente homens na prisão se produz
sob condições de controle muito restritas, e em ocasiões mui-
to perigosas.
Basicamente, existem quatro situações de sexo anal entre
os presos:
67
Ver Javier Sáez, La pluma heterosexual: http://www.hartza.com/pluma.htm
128 | Pelo CU
ma cavalo (caballo), e, contra o que geralmente se pen-
sa, não é uma pessoa homossexual. De fato, não deve
ser uma pessoa homossexual já que, neste caso, supõe-
-se que poderia desfrutar da relação quando se trata,
com este tipo de relação com o “cavalo” de marcar a
autoridade e a masculinidade do preso-amo (por cima
de outro “homem de verdade”, não de uma bicha);
• As travestis e os transexuais: frequentemente são obje-
to de violação, mas de forma anônima e vergonhosa,
já que a percepção geral é que o contato com eles te
afeminará;
• A violação carcereiro-preso: acontece quando vários
carcereiros decidem castigar ou torturar um preso e
para isso penetram-no analmente em grupo;
• O sexo consentido: em algumas ocasiões, dois homens
que não necessariamente se identificam como gays,
mantêm relações sexuais (e até afetivas) de forma mais
ou menos estável, habitualmente em segredo. Alguns
desses homens praticam o sexo anal durante a prisão e
afirmam abandonar esta prática ao sair da cadeia (“era
para desafogar, não havia outro jeito”, etc.).
129 | Pelo CU
masculina dos reclusos que lhe penetram; o cavalo guarda em
si a identidade feminina, de uma forma que a masculinidade
fica do lado dos penetrados. Para Parrini:
69
Ibid., p. 96.
130 | Pelo CU
de; nela, um interno me falou de um travesti preso que dizia
que “o veado o tinha no cu”, mas que podia bater em quem se
aparecesse na frente. Esse travesti dizia que era um veado e ho-
mem alternadamente e que em seu próprio corpo encontrava
o lugar – o cu – que lhe permitia transitar entre identidades e
posições subjetivas. Por outro lado, tinha encontrado uma dinâ-
mica entre intimidade e estranhamento que apontava um para-
doxo: os conteúdos e as definições identitárias mais apreciadas
e importantes eram um produto social, o estranhamento que se
instalava no coração mesmo da intimidade70.
70
http://jbcs.blogspot.com/2008/04/entrevista-rodrigo-parrini-corporalidad.
131 | Pelo CU
polaridade com o homem: completo, integrado, prestigioso, es-
timável71”.
71
Parrini, R., Panópticos y labirintos. Subjetivación y corporalidad en una cárcel de
hombres, El Colegio de México, 2007, p. 86.
72
Ibid., p. 88.
132 | Pelo CU
permite esses câmbios, estas transições na subjetividade que,
como vemos, são bastantes fluidas.
OZ, uma das melhores séries de televisão das últimas dé-
cadas, criada por Tom Fontana para a produtora HBO, narra
a vida dentro de uma prisão de segurança máxima. A rique-
za da série está na complexidade das identidades de grupo
e raciais dos presos: afro-americanos, latinos, ítalo-america-
nos, travestis, nazistas, muçulmanos, motociclistas... a série
é muito violenta e, além disso, tem muito conteúdo de sexo
explícito, e mostra sem rodeios as relações sexuais entre os
presos. Ao longo da série, vamos conhecendo as diferentes
percepções sobre o sexo anal, o estupro e a sexualidade, e
como estas variam em função das distintas comunidades que
assinalamos.
Entre os nazistas, é habitual a figura do “cavalo”: um jovem
branco é violentado por um chefe nazi e, a partir daquele mo-
mento, lhe servirá como escravo sexual e como criado; entre
os ítalo-americanos, ser penetrado é o pior que pode aconte-
cer a um homem. Por exemplo, um chefe mafioso fica trau-
matizado por ser estuprado por membros da comunidade
negra. Um advogado branco e hetero primeiro é escravizado
por nazis e, mais adiante, se apaixona por um psicopata que
lhe arruína a vida; as travestis são agredidas pelos nazistas,
pelos negros e pelos latinos... Nessa brilhante série, fica pa-
tente que a percepção do sexo anal varia em função de crité-
rios como a raça, a posição de poder ou a ideologia.
Nos interessa refletir sobre o anal porque tem um papel
central nesses processos de violência. Enquanto não formos
capazes de questionar e subverter os valores associados ao
anal, ao ato de penetração de um cu, não poderemos desman-
telar este regime de terror sobre os gêneros e os corpos.
133 | Pelo CU
Psicanálise : o urso freud muda de ambiente.
135 | Pelo CU
Cale-se! Deixe-me falar! O senhor me escute.
Freud vai decidir fazer caso dessa mulher e vai se dar con-
ta de que as pessoas são capazes de se curar se são escutadas
de outra maneira. Nessa escuta analítica que Freud desen-
volve, mais centrada nos lapsos, nos balbucios ao falar, nas
repetições e nos atos falhos da linguagem, nas associações de
palavras... vai encontrar-se com o que seus pacientes se cho-
cam, às vezes, com algo que ninguém falava abertamente na
Viena do final do século XIX: de sexo. O que Freud percebe
não é exatamente um problema sexual, mas um mal-estar,
barreiras, medos ou complexos que pouco a pouco vão re-
velando-se como conflitos entre as exigências da vida social,
familiar, moral, religiosa e o desejo.
Não vamos entrar aqui em desenvolvimento profundo
da teoria freudiana; vamos simplesmente nos deter em um
dos aspectos menos conhecidos da sua obra, mas que tem
grande relevância para este livro: o prazer anal. Entre 1905
e 1920, Freud vai desenvolver sua teoria sexual, que publi-
ca inicialmente em 1905 com o nome de Três ensaios sobre a
sexualidade. Curiosamente, grande parte dessa obra, desde a
primeira linha, vai ser dedicada ao estudo das “perversões se-
xuais”; porém, não vai considerar a homossexualidade como
ponto negativo, senão como outra escolha de um comporta-
mento sexual humano73. No primeiro capítulo encontramos
a primeira afirmação que irá contradizer o estereótipo sobre
o sexo anal:
73
Para um desenvolvimento mais exaustivo da relação entre Freud e a homosse-
xualidade ver Javier Sáez, Teoria queer y psicoanálisis.
136 | Pelo CU
Entre os homens, a inversão não supõe necessariamente o coito
per anum (...) o papel sexual da mucosa anal não se encontra em
nenhum caso limitado ao sexo entre indivíduos masculinos. Sua
preferência não constitui uma característica da inversão74.
74
Freud, S. Tres ensayos para una teoría sexual, em Obras completas, tomo II. Bi-
blioteca Nueva, Madrid, 1981, p.1182.
75
Freud,S. Tres ensayos para una teoría sexual, em Obras completas, tomo II, Biblio-
teca Nueva, Madrid, 1981, p. 1182.
137 | Pelo CU
uma clara função masturbatória para o menino ou a menina.
Além disso,
76
Ibid, p. 1203.
138 | Pelo CU
entre os dois. O aparato genital permanece próximo à cloaca e
inclusive não é, na mulher, senão uma “dependência” daquela77.
77
Citado por Freud Tres ensayos… na nota 679, de 1920, p.1203.
139 | Pelo CU
nosso querido urso vienense passou alguns meses por bares
de ambientes S/M porque, de repente, se coloca a falar tão
tranquilamente de ativos e passivos, de “beijar a bunda” e de
sadomasoquistas.
Dito isto, em seus três artigos, Freud desenvolve, a partir de
suas experiências com as crianças (supomos que na consulta e
não no sling) uma teoria onde põe em relação o erotismo anal
com a polaridade atividade-passividade: Freud faz coincidir a
atividade e a passividade com o masoquismo e com o erotismo
anal, e atribui a cada uma das pulsões parciais correspondentes
uma fonte distinta: musculatura para a pulsão de dormir ou
apoderamento (Bemächtigungstrieb) e um órgão cujo fim se-
xual é passivo, representado pela mucosa anal.
Mas é importante assinalar que Freud não quer dizer que
essas duas posições (ativo-passivo) correspondem a duas pes-
soas diferentes, uma que seria somente ativa e outra que seria
somente passiva, mas que ambas as pulsões são componentes
intrínsecos da vida psíquica do sujeito, ou seja, que esse par
de opostos está presente simultaneamente em cada um. Isso
é fundamental para entender que cada sujeito pode adotar
papéis ou posições ativas ou passivas, sádicas ou masoquistas,
penetrantes ou penetradas. Também nos serve para entender
o que temos visto nas culturas S/M, onde os papéis de amo-
-escravo ou ativo-passivo são reversíveis.
A segunda ideia de Freud tem relação com o que se pas-
sa com aqueles que efetivamente reprimem essa pulsão anal.
Para Freud, há certos traços de caráter que persistem em al-
gumas pessoas adultas, como uma consequência de ter subli-
mado as pulsões anais. Trata-se de pessoas ordenadas (pul-
cras, escrupulosas, complacentes), econômicas (centradas no
dinheiro, inclusive avarentas) e tenazes; essas características
140 | Pelo CU
definem o que ele chama de caráter anal. Tem-se uma perda
do interesse erótico do anal, um interesse que essas pessoas
haviam tido de forma acentuada na infância, e se produz um
deslocamento de posição: da sujeira das fezes, rumo à ordem,
à limpeza. Das fezes que não valem nada, à sua antítese, o
dinheiro. Do relaxamento que supõe o defecar, à tenacidade,
ao controle obstinado e, às vezes, colérico.
Tratando de explicar a tenacidade e sua relação com o anal,
Freud faz duas referências geniais: a expressão beija minha
bunda e o mostrar a bunda a seu inimigo como formas de de-
safio. Graças a Freud, sabemos que na Viena de 1908 dizia-se e
fazia-se essas coisas. Para Freud, a frase beija minha bunda não
é nem mais nem menos que “um convite à carícia que sucum-
biu à repressão78”. Também ocorre a Freud que as palmadas na
bunda, que nossos pais nos davam para castigar ou para nos
fazer obedecer, como esse estímulo reprimido do anal. Resu-
mindo: é melhor ser uma bicha liberal que desfruta da sua bun-
da que um mesquinho tacanho obcecado com a ordem (bem,
Freud não disse isso exatamente, mas é a nossa leitura).
Outra coisa surpreendente em Freud, em comparação
com a opinião dominante, é que ele não faz juízo de valor
especial em relação ao erotismo anal como algo negativo ou
doentio. Nos quatro textos que assinalamos, existem referên-
cias a pessoas que mantêm, como adultos, um interesse pela
sexualidade anal, mas sem nenhum juízo a respeito, simples-
mente como uma possível conduta sexual, sem mais. E, como
já mostramos, tampouco considera que o sexo anal seja uma
pratica exclusiva dos homossexuais, bem como lhe contam os
seus pacientes.
78
Freud, S., El carácter y el erotismo anal, p. 1356.
141 | Pelo CU
A análise de Freud nos serve também para entender algo
que talvez todos nos perguntemos alguma vez. Como certas
zonas de nosso corpo viram zonas erógenas? Não faz falta al-
guma a justificação dos nossos prazeres, nem alguma expli-
cação de por que podemos sentir prazer na zona anal, ou na
boca, ou em outros órgãos ou outras partes do corpo. Mas
não deixa de ser interessante conhecer a explicação freudia-
na. Para Freud, qualquer parte do corpo humano é suscetível
de ser carregada com valor sexual segundo as experiências e
vivências de cada um/uma. Contudo, o corpo é especialmen-
te sensível naquelas partes onde existem aberturas, onde exis-
te intercâmbio, ou seja, nos orifícios, no lugar onde sai, entra
ou se perde algo. É o caso da boca, do ânus ou dos olhos.
Existe uma relação especial entre o corpo e a separação de
certos objetos; é nessas bordas de separação entre o interior e
o exterior que se instala um interesse especial, onde aparece
uma excitação particular.
Por isso, Freud vai elaborar também a teoria de que nos
vinculamos especialmente com aqueles objetos que perde-
mos: o seio, objeto de sucção, as fezes, objeto da excreção,
a voz e o olhar. Esses objetos nos trazem fascinação, prazer
– ao sugar um seio ou um pênis, reincorporamos oralmente
esse objeto perdido; o evacuar, o escorregar das fezes no ânus
produz prazer (e ao introduzir pênis, dildos, mãos e objetos
na bunda, também se produz excitação sexual, embora Freud
não mencione estes tipos de atos); existe um prazer em falar,
em emitir a própria voz, e na escuta de certas vozes que nos
rodeiam; o olhar é algo que parece surgir dos olhos, é uma
abertura ao mundo e, ao mesmo tempo, necessitamos que
nos olhem, que haja outro que nos devolva o olhar.
142 | Pelo CU
Desde Freud, há ao menos um reconhecimento da zona
anal como um lugar habitual e generalizado de prazer sexual.
Um século depois de seus Três ensaios sobre a sexualidade
(onde Freud defende a existência de uma dimensão anal em
todos os sujeitos, e a existência da sexualidade infantil), per-
manecem não reconhecidas socialmente essas dimensões da
sexualidade humana.
Não obstante, queremos terminar este capítulo assinalan-
do algo que nos chamou a atenção. Em todos os artigos que
Freud dedicou ao erotismo anal, e nas referências que outros
psicanalistas como Ferenczi ou Lacan fazem, trata-se sempre
de uma visão do anal como espaço de saída, de expulsão das
fezes, como um espaço de passagem sempre de dentro para fora.
Em nenhum momento se estuda o que se passa com o desejo
de introduzir objetos ou pênis, o que ocorre com o sexo anal
receptor, nem se menciona experiências ou casos de pessoas
que desfrutam dessa dimensão do anal “passiva”. É surpreen-
dente que em cem anos de psicanálise, todos caiam no lapso
gigantesco de não abordar o prazer anal “para dentro” do cu
como espaço receptor.
143 | Pelo CU
O cu e a aids
145 | Pelo CU
órgãos para o prazer, para o vício. O deus do livro, da Torá, da
Bíblia e do Alcorão, demostrava aos seus seguidores que sua
capacidade de vingança e crueldade não havia apaziguado. O
sodomita voltava a surgir. O sodomita, que era o catalizador
de todos os males do mundo, retornava a trazer a destruição
e o caos, devido ao uso desordenado do seu corpo. Não era
preciso fazer referência a nenhum Deus, desta vez era a “sábia
natureza” que se encarregava de passar a conta, demostrando
que o direito natural emanava da divindade, que a natureza
não permitia que se variasse o uso biológico de nenhum ór-
gão humano.
As formas de transmissão do HIV, por penetrações sexuais
sem proteção e por compartilhar material para injetar drogas,
deixavam claro como e a quem a enfermidade tinha que in-
fectar. No início, inclusive, chegou-se a definir a AIDS como
a enfermidade dos “quatro agás”: homossexuais, haitianos,
hemofílicos e usuários de heroína e, com exceção das pessoas
hemofílicas, os outros três grupos já tinham características
de marginalidade social. Se bem que no caso dos haitianos se
pôde estabelecer que, ao contrário do que estava amplamente
difundido (os culpavam de introduzir a epidemia da AIDS
nos Estados Unidos), foi o turismo sexual dos estadunidenses
o responsável de que, nas condições de pobreza dos haitianos,
a AIDS virasse endemia nessa nação.
As pessoas com hemofilia eram pobres vítimas “inocen-
tes” que, por necessitar de transfusões, infectaram-se, dei-
xando assim a culpa e a intenção a outros grupos que eram
identificados como buscadores da enfermidade e da morte
pelo uso descontrolado de seus corpos. As pessoas que inje-
taram heroína passaram a ser casos incuráveis, já que o vício
tornava impossível qualquer terapia ou prevenção; é que o
146 | Pelo CU
corpo viciado sempre foi visto, também, como abjeto e exter-
minável ou, pelo menos, como um corpo que deve restituir-
-se, deixando a droga para ter acesso às mínimas condições
de existência. Na atualidade, ainda segue-se funcionando sob
os mesmos parâmetros; a expansão da pandemia nos antigos
países do bloqueio soviético se dá, sobretudo, pela ausência
política de redução de riscos em usuários de drogas injetadas,
e a eclosão que se dará ante a falta de campanhas de preven-
ção sexual se converterá em uma nova crise de saúde para
muitos desses países. Mas ninguém se interessa por um junky:
se já é um junky, se já está situado à margem da sociedade...
para que intervir?
A história social da AIDS foi, em boa parte, a história da
culpabilização das suas vítimas. O medo, que sempre se encar-
regou de impedir a evolução das mentes, transforma a AIDS,
de fenômeno social, em uma enfermidade social e não física.
De um ponto de vista ideológico, culpabilizar as vítimas
têm a função de ocultar o papel fundamental das diferentes
condições, sociais, econômicas, raciais, de gênero e sexuais,
na criação e expansão das enfermidades, e coloca a respon-
sabilidade da prevenção e do tratamento exclusivamente
nos indivíduos, transferindo para o cidadão a obrigação do
Estado sobre a saúde da população. Quando a pobreza e a
exclusão vão de mãos dadas, e é a maioria das vezes, as con-
dições de saúde podem ser mínimas ou inexistentes e, nessa
medida, torna-se impossível separar os problemas de saúde e
das desigualdades sociais; e é aqui que surge a grande questão
ideológica que fundamenta a pandemia da AIDS: os doentes
são os culpados de sua enfermidade ou são produtos da desi-
gualdade social?
147 | Pelo CU
Quanto à letra H que nos diz respeito, homossexuais, o
rearmamento das políticas, práticas e opiniões mais conser-
vadoras não se fez esperar: o “câncer rosa” era visto como uma
nova praga divina, dessa vez não indiscriminada, que limpa-
ria dando exemplo ao nosso mundo. Para isso, era necessá-
rio fazer uma leitura da AIDS em um texto difuso, obscuro
e quase inexistente: o corpo da bicha e seu ânus. E é neles
que surgirão e convergirão diferentes significados e discursos
que autorizem e hierarquizem os corpos, práticas e órgãos.
A bicha e seu ânus, ímã da desgraça divina, não somente era
merecedor do castigo, do pior dos castigos: uma deteriora-
ção visível, uma encarnação da enfermidade que augurava,
na dolorosa agonia, até a morte. A bicha era quem transmitia
essa enfermidade pelo cu e, assim, situava-se em um plano de
objeto eliminável, controlável. A ausência de conhecimento
sobre a transmissão do HIV, que se apresentou quando surgiu
a epidemia, servia para tratar a bicha como o corpo infeccio-
so, o vetor da transmissão, não do vício ou do pecado, mas da
morte. O rechaço ao corpo enfermo não se baseava somente
em categorias morais ou ideológicas, agora a relação com a
bicha constituía uma aproximação cruel com a morte.
Mil histórias pessoais servem para ilustrar o genocídio
que se produziu no início da pandemia, viúvos reduzidos à
miséria pela sua família homofóbica, bastardos torturados
por seus progenitores com a vingança do “você buscou isso”,
corpos abandonados a sua própria sorte nos piores lugares
das instituições de caridade.
Mas, embora todos esses mecanismos pudessem ser ame-
nizados pela correção política que a sociedade teve que ar-
rancar mediante ações espetaculares, manifestos, die in’s,
zappings das pessoas afetadas, nada serviu para evitar os dis-
148 | Pelo CU
positivos de exclusão e morte, não obstante, ativos em paí-
ses fora do Ocidente. A resposta dos afetados, sobretudo nos
Estados Unidos e na Europa, serviu para mudar as políticas
farmacêuticas, impulsionar a investigação, acelerar os trata-
mentos e, em alguma medida, para mudar a atitude da admi-
nistração diante da enfermidade.
Assim, surgem grupos como GMHC, Gay Men’s Health
Crisis (crise de saúde dos homens gays), que da própria co-
munidade gay tentava dar apoio às pessoas infectadas. Em
um primeiro momento, o grupo serviu para conseguir um
mínimo de resistência e questionamento da homofobia triun-
fante que representava o chamado Câncer Rosa, assim como
para iniciar a esboçar o que devia ser uma prevenção sem
preconceitos. Com o tempo, o grupo se caracterizou por um
viés assistencial. Isto provocou uma volta inesperada ao ati-
vismo e deu andamento à criação, em que participaram al-
guns dos fundadores de GMHC como Larry Kramer, de Act
Up AIDS Coalition to Unleash Power (Coalisão da AIDS para
desencadear o poder); embora o mesmo termo de Act Up sig-
nifique também, em inglês, portar-se mal, guerrear, molestar.
Esse grupo nasce em Nova York e outros aparecem nas
principais cidades dos EUA e Europa. Act Up surge com um
conteúdo claramente político e reivindicativo: ações na bol-
sa de Nova York para exigir investimento na investigação da
doença, manifestações para conseguir a gratuidade ou o ba-
rateamento dos medicamentos, denúncia de homofobia, do
machismo e do racismo, convertendo-se em uma referência
do ativismo que posteriormente conhecemos como queer79.
Um dos grupos mais ativos do Act Up é o de Paris, que rea-
79
Ver o artigo de Javier Sáez, El contexto sociopolítico de surgimento de la teoria
queer. De la crisis del sida a Foucault. Em Córdoba, D., Vidarte, P., Sáez, J., Teoria
queer. Políticas bolleras, maricas, trans mestizas.
149 | Pelo CU
liza ações de grande repercussão midiática, questionando as
políticas sanitárias e os discursos homofóbicos que se dão na
França atualmente. Dentro do campo do ativismo artístico-
-cultural, surgiu nos EUA o grupo Grand Fury, que, a partir
da criação artística, conseguiu mudar alguns paradigmas com
os quais o poder manejava a crise, ao mesmo tempo em que
ressaltou os diferentes conteúdos clássicos da exclusão, que
se encontravam dentro desses paradigmas. Embora tenham
conseguido que o trabalho homossexual fosse reconhecido
em alguma medida, não conseguiram estabelecer políticas
anti-homofóbicas (e por que não políticas sodomitas ou polí-
ticas anais), o que por um lado freava o número de infecções
e, por outro, iniciaram políticas de tolerância que acabaram
com os preconceitos.
O HIV iria crescer nos setores mais débeis da sociedade
e do planeta. Esta profecia, altamente realizada, nos deixou
um panorama no qual a classe, a raça, o gênero e as sexua-
lidades minoritárias foram fatores determinantes para o de-
senvolvimento da pandemia. Também é certo que a enorme
mobilização que conseguiu mudar o discurso, baixar o preço
dos remédios e incluir políticas preventivas não estigmati-
zantes, não conseguiu suficientes alianças com outros setores
progressistas ou de esquerda, demonstrando que o gênero e a
homofobia são critérios transversais, alheios aos movimentos
sociais. O machismo e o racismo parecem ganhando espaço
nos movimentos antimilitaristas, ecologistas, solidários... e
parece que ainda estamos longe de ver estas manchas lavadas.
Apesar de suas conquistas, esses grupos de luta contra a
AIDS não conseguiram eliminar a crosta de homofobia que
há nas políticas preventivas da atualidade, com preconceitos
que as tornam falhas em efetividade. Para não falar das escas-
150 | Pelo CU
sas (e homofóbicas) políticas de prevenção que se apresentam
em países empobrecidos, onde não há nenhuma vontade po-
lítica de mudar a pandemia80.
Caiu-se em certo otimismo, ao conseguir que as campa-
nhas de prevenção ao HIV deixassem clara a via de transmis-
são do HIV; acreditou-se, também, que com o surgimento de
remédios antirretrovirais e da terapia antirretroviral de alta
eficácia, TARGA na sua sigla em inglês, seria possível parar
a pandemia por um lado, ao mesmo tempo em que se im-
plementava políticas sociais e sanitárias paliativas, em certa
medida, contra a homofobia e as desigualdades de gênero e
de etnia. Novamente, a modernidade ia para a lona vendo
como as boas intenções se dissolvem com a mudança política,
sobretudo conservadora e direitista. As políticas preventivas
continuam sem utilizar, como critérios transversais, as lutas
contra a homofobia ou as desigualdades de gênero e éticas. As
administrações públicas se limitam a realizar campanhas mo-
ralistas e ambíguas. Todavia, está claro que a moralização e a
tibieza dessas campanhas continuam situando-se em uma or-
dem onde o sistema heterocentrado é inquestionável; assim, a
leitura que se pode fazer das mensagens que estas instituições
lançam é que parecem ser dirigidas única e exclusivamente
para pessoas que se encontram fora da norma sexual. A absti-
nência e a fidelidade se dão como chave mais segura para evi-
tar a infecção; um reforço moral, diante do qual as diferentes
religiões monoteístas não ficaram de fora, entre as quais se
destacou a Igreja Católica.
Se esse tipo de política demonstrou sua ineficácia nos paí-
ses ricos, no caso dos países pobres supôs e supõem autênticos
80
Ver o texto de Paco Vidarte “DHIVorcio y matrimonio gay”, Periódico Diagonal,
16 de junho 2006, número 11. E também na página http://www.hartza.com/ma-
trimoniogay.htm
151 | Pelo CU
genocídios. As políticas de cooperação do presidente Bush
na África condicionaram toda a ajuda a utilizar aquilo que
se chamou na época de ABC abstinence, be faithful and con-
doms, abstinência, fidelidade e, se não pode remediar, cami-
sinhas, frente às diretrizes da UNAIDS, organização da ONU
para a AIDS, que recomendava as políticas CNN, condoms,
needless and negociation, camisinhas, seringas (compreende-
-se o seu intercâmbio com usuários de drogas injetáveis) e
negociação das práticas sexuais, com o empobrecimento que
isso supõe para as pessoas em situação de clara desigualdade
social: mulheres, trabalhadoras do sexo, homens que fazem
sexo com homens, pessoas transexuais...
Um exemplo dessa nefasta política é o caso de Uganda.
Uganda é um dos países africanos que mais recebe ajuda in-
ternacional, mas sob a administração Bush as ajudas de mate-
rial de saúde foram com a condição de colocar em prática as
políticas baseadas no ABC.
No ano de 2006, a administração ugandesa informava que
os casos de infecção por HIV haviam diminuído, ao mesmo
tempo em que haviam conseguido elevar a idade de iniciação
nas práticas sexuais; heterossexuais, bem entendido. Esses da-
dos, que foram publicados sem nenhuma verificação, foram
em seguida propagados pela administração norte-americana
e seus seguidores, como as seitas cristãs fundamentalistas, a
igreja católica incluída, para demonstrar que a abstinência
sexual era a arma mais eficaz para impedir o crescimento da
pandemia, em detrimento da potencialização do uso de pre-
servativos. Essas políticas nefastas foram monopolizadas pela
seita vaticanista para incrementar suas mensagens contra o
uso do preservativo, desta vez não sob o prisma moral, mas,
e muito cinicamente, com o pretexto pseudocientífico de que
152 | Pelo CU
a abstinência é a melhor arma contra a transmissão do HIV.
Assim, essa ideia foi amplamente difundida em todas as men-
sagens que os dirigentes emitiam nas chamadas viagens apos-
tólicas para a população africana, dizimada pela pandemia e
as políticas econômicas genocidas dos países ricos.
A ausência de dados sobre o aumento das infecções e suas
vias de transmissão foi uma constante na pandemia da AIDS.
Se nos países ocidentais, que se supõem mais avançados
com respeito à liberdade sexual, é difícil recolher dados por
conta da homofobia imperante ou pelo moralismo com que
se observam as práticas sexuais não normativas, em países
como Uganda, onde não há meios para o recolhimento des-
ses dados (e onde há uma grande tradição homofóbica, em
grande medida devido às crenças cristãs, que são majoritárias
no país), há ainda mais dúvidas sobre a confiabilidade desses
resultados.
Em Uganda, a homossexualidade é castigada com pena de
até 14 anos e, na atualidade, seu parlamento está estudando
aumentar o castigo para a pena de morte. Uma das formas
mais transmissíveis do HIV é a penetração anal, prática, por
outro lado, que goza de grande estima nas relações homos-
sexuais entre homens, mas que está sujeita a duros castigos
legais (para não falar no rechaço social); nessas circunstân-
cias, como se pode dar alguma confiabilidade aos dados pu-
blicados?
O Vaticano e seus sicários fizeram do continente africano
o campo de batalha para a sua última cruzada antissexual;
suas mensagens não somente de pró-abstinência, mas tam-
bém frases como “camisinhas não evitam a AIDS”, são, sem
dúvida, um claro exemplo de políticas criminosas com pres-
supostos racistas e fomentadores do ódio; essas mensagens
153 | Pelo CU
não são condenadas pela administração pública, apesar de
sua ausência de critérios científicos. Novamente, a ausência
de políticas anti-homofobicas ou a existência de políticas an-
tianais, continuam produzindo injustiça, sofrimento e morte.
154 | Pelo CU
o sexo anal, pois com eles se consegue uma penetração muito
mais agradável e um menor risco na prazerosa fricção.
O parceiro que insere (ativo) também corre risco, porque
as membranas de dentro da uretra são uma via de entrada
para a corrente sanguínea do HIV, que pode ser encontrado
no sangue do ânus. Desgraçadamente, o acaso biológico se
coloca novamente do lado do poder. A pessoa receptora, a
que toma no cu, corre um maior risco no momento da in-
fecção pelo HIV do que a que insere. A mucosa anal é muito
absorvente (os supositórios que muitos homens se negam a
usar, presumindo que seguem a linha de Luis Aragonés e seus
camarões), é uma forma de fazer os medicamentos entrarem
na corrente sanguínea muito rapidamente, fazendo com que
seu efeito seja mais rápido. Além disso, essa mucosa é mais
frágil devido à facilidade em rasgar e abrir (as famosas micro-
feridas). Mais ainda, o sêmen, tem componentes que são imu-
nossupressores. No curso da fisiologia reprodutiva normal,
isso permite ao esperma evitar as imunodefesas da mulher.
O resultado final é que a fragilidade do ânus e do reto, junto
com o efeito imunossupressor da ejaculação, faz da relação
ânus-genital uma maneira muito eficaz de transmitir o HIV
e outras infecções. A lista de enfermidades encontradas com
extraordinária frequência entre homens que praticam o coito
anal é bastante abundante: câncer anal, Chlamydia trachoma-
tis, cryptosporidium, giardia lamblia, herpes simples, o HIV,
o vírus do papiloma humano, isospora belli, microsporídia,
gonorreia, hepatite viral B e C, sífilis.
Desta forma, pode-se estabelecer uma hierarquia nas prá-
ticas sexuais segundo o risco de transmissão do HIV, não tan-
to para outras DST, e esta hierarquia de risco deve ser a base
para qualquer tipo de prevenção. Mas, infelizmente, os pou-
155 | Pelo CU
cos êxitos obtidos no começo da pandemia para implemen-
tar políticas preventivas que escapem a preconceitos morais
(acompanhadas de outras que combateram tanto a homofo-
bia legal quanto a social) não parecem ter colhido grandes
frutos e foi perdendo força em detrimento de políticas mais
formais, mais corretas, que demonstram a sua ineficácia.
Como é possível estabelecer políticas de prevenção sem
levar em conta as políticas anais? De uma concepção hetero-
centrada da sexualidade não se pode colocar práticas políti-
cas preventivas anais. De fato, na maioria das campanhas da
administração, a prevenção parte de pressupostos normaliza-
dores, com poucas exceções, e em nenhum momento chegam
a situar o cu como eixo central da mensagem.
Conhecemos os valores que existem sobre a penetração,
valores que dentro do sistema heteropatriarcal não são so-
mente símbolos, mas que, como é o caso que nos chama aten-
ção, estão totalmente encarnados em corpos e correspondem
a um segundo nível, a algo inferior. O penetrador é “ativo”,
aquele que insere sabe o valor social de se meter num cu ou
numa boceta: é uma demonstração de superioridade, de po-
der e de status. Isso é publicizado, estimulado até o paroxis-
mo: não basta ter um pinto, um privilégio, também há que
penetrar outro corpo como forma de possessão e dominação,
como conquista. Todavia, onde encontrar o valor de ser pe-
netrado? Se aquele que penetra detém o poder, que não é o
prazer, em que espaço se encontra quem expõe seu amigável
traseiro ao penetrador? Como é possível viver o prazer, o or-
gulho e a dignidade de sentir a penetração, quando todos os
discursos se baseiam na depreciação do penetrado?81
81
Ver Bersani, L., “Es el recto una tumba?”, em Llamas, R., Construyendo sidenti-
dades.
156 | Pelo CU
Dentro dos milhares de mecanismos que entram na cons-
trução do desejo, o penetrado se situa no espaço de submis-
são, o passivo recebe a ação sem mais atitude que o ofereci-
mento, tão injuriado socialmente. Não nos encontramos com
alguns penetrados que, em seu foro íntimo, buscam o castigo
pela vergonha de seus atos? O passivo busca castigo quando
lhe fodem? Se é assim, o desejo de trepar sem camisinha é
parte da busca de um castigo? Ou nos encontramos diante de
uma forma de depredação sexual que renuncia à sua saúde
por conseguir um pau para botar dentro? A camisinha é a
única forma de prevenção em uma penetração anal? Como
fazer uma prevenção para o passivo-receptor? Pode-se fazer
uma prevenção não vitimista? Não será o passivo uma vítima
de um sistema de valores onde a passividade é o último grau?
Pode-se gerir a prevenção numa abordagem mais ampla e
explícita do papel do receptor? Como pedir ao passivo uma
verbalização de sua analidade sem cair em uma confissão no
sentido em que fala Foucault? Como dotar o cu de um grande
orgulho pelo prazer que outorga? Todas essas questões são
cruciais para iniciar novas políticas de prevenção baseadas no
orgulho passivo.
É necessário estabelecer discursos, práticas e atitudes
que não só questionam os valores do penetrador, mas que
destaquem os valores do penetrador. Durante muitos anos,
reconheceu-se que é provável que os programas contra o
HIV-AIDS dirigidos a homens “gays” alcancem só a uma
proporção pequena do público ao qual foram direcionados,
particularmente ao mundo em vias de desenvolvimento. Para
muitos homens que têm sexo com outros homens, gay é um
conceito estrangeiro; surge dos Estados Unidos, de uma clas-
157 | Pelo CU
se média, associam-no ao afeminado, ao travestido, ao trans-
gênero, ou é uma palavra que eles raramente escutam.
Por esta razão surge o termo homens que fazem sexo com
outros homens, HSH, para descrever todos os envolvidos no
sexo entre homens, sem importar suas circunstâncias, prefe-
rências ou autoidentificação. Mas o sodomita se sente iden-
tificado nessa categoria? HSH é um termo que pode ser al-
tamente questionado, já que ainda nasce da necessidade de
uma prevenção mais eficaz, mas retorna a ocultar, sofistica-
mente, uma prática sexual, a penetração anal, que deve ser o
centro de uma verdadeira prevenção.
Para que manter uma categoria cuja leitura pode ser com-
portamental, epidemiológica ou ativista, se a população a
quem é dirigida não se sente identificada? O que fazer quan-
do tal falta de inclusão está totalmente relacionada com sua
vulnerabilidade à infecção? Se, ao final, essa categoria é redu-
zida à de bicha, à de sodomita, à de tomar no cu, por que não
criar campanhas que se dirijam a essas práticas, independen-
temente das identidades de seus praticantes?
O mesmo léxico, passivo versus ativo, já supõe uma gra-
duação em si. Mas outras definições, como a de insertivo e
receptivo, médica e cientificamente, utilizada para descrever
a prática do coito anal com certo grau de distanciamento, não
têm melhor sorte, e tampouco as criadas dentro da própria
comunidade, se bem que é certo que partem de pressupostos
distintos. A passivofobia nos ambientes gays segue tendo sua
cota, bastante animada por uma norma heterocentrada. Top
e Bottom, acima e abaixo, não escapa a uma mínima valo-
rização sobre o que se entende por poder, mas, ao menos,
a definição passaria a uma ordem mais geométrica e menos
biológica. A primeira premissa de uma política anal, visto que
158 | Pelo CU
a reapropriação dos termos é custosa, deve ser criar novos
tropos, palavras e realidades que desvirtuem o sentido negati-
vo do passivo, receptor, bottom. Morde fronhas e sopra-nucas,
por exemplo, já se encontraria em outro registro.
O passivo, o que recebe a ação, segundo a definição gra-
matical, constitui-se como mero receptor, não escolhe, é pe-
netrado e parece não fazer diferença o material do recheio.
Essa ideia machista é transferida desde a misoginia patriarcal.
É o discurso de quem tem a posse, domina, goza, em detri-
mento do corpo penetrado. É curioso que as centenas de dis-
cursos que circulam sobre o valor que supõe penetrar (mais
poder, mais prazer, mais virilidade e ainda um melhor status)
não tenham sofrido uma contestação dos discursos que exal-
tam a receptividade. A crítica que desde os feminismos foi
feita à colonização sexual do corpo da mulher não conseguiu
fazer com que as mulheres desfrutassem da penetração, anal
ou vaginal, podendo-se presumir disso a queda do status de
prostituta ou de atriz pornô vocacional, para não falar da lei-
tura perversa e misógina que poderia justificar uma perma-
nente acessibilidade.
Em um sistema de valores onde o poder, a dominação e a
virilidade estão no penetrador, qual é a relação do passivo com
o seu cu? Como vive o prazer da penetração em um entorno
onde o penetrado é injuriado? A penetração anal foi histori-
camente um signo de castigo, de submissão: o prisioneiro, o
escravo, o outro, o inferior, ao fim e ao cabo, tinha que notar o
estigma no seu cu perfurado, um estigma invisível, que reco-
nhece apenas aquele que padeceu, o paciente, o passivo, mas
que, segundo seu status e situação, pode despertar suspeita, já
que toda a tradição sodomita está flutuando no ambiente como
um velho refrão. O penetrado então não vai desenvolver uma
159 | Pelo CU
essência, mas sim uma identidade interna que, com sorte, so-
mente ele ou os sodomizadores podem revelar.
Não parece difícil que a equação do penetrado como su-
jeito de castigo, de vergonha ou de ignomínia, estabeleça-se
na identidade do sodomita, fazendo uma vez mais com que
algumas práticas sejam vistas como identidade. Embora essa
identidade de submissão, de recepção do castigo, tenha sigo
gozosamente reapropriada pelos sodomitas receptores como
um espaço de prazer, pode-se encontrar em outros aspectos
da vida e das relações. Romper com esses sentimentos nega-
tivos, aqueles que não estão nos jogos sexuais, não supõe al-
cançar a felicidade absoluta, nem muito menos que isso, mas
pode ajudar a manter a própria autoestima em um mundo
hostil. E esta deve ser uma das bases das políticas anais82.
Se entendermos a sodomia como uma forma de imposi-
ção e de ultraje que atravessa tempos e culturas, sem saber
onde e como se originou, mas que é repetida sem questionar
seus meios ou fins, poderíamos falar de um ato performativo.
Todo ato performativo é baseado em uma repetição que não
tem original, mas que produz um efeito de realidade a partir
de sua própria repetição. Por isso mesmo, porque não se re-
mete a nenhuma essência ou realidade natural, podemos nos
apropriar desses atos repetidos e lhes dar um significado dife-
rente. Ou seja, podemos promover um orgulho passivo, uma
repetição de atos explícitos onde o positivo é o anal, a posição
de receptor anal como algo prazeroso, produtivo e potente,
82
Tampouco estaria mal que o médico pessoal ou sexólogo informassem com na-
turalidade e visibilidade sobre as responsabilidades do sexo anal, e que especia-
lidades como a proctologia incluíssem formação sobre os usos prazerosos do
ânus, do reto e da próstata. E para quando uma campanha estatal de prevenção
em HIV fundada no orgulho passivo, dirigida e explicitamente a pessoas recep-
tiva no sexo anal?
160 | Pelo CU
onde invertemos essa tradição milenar. Já o fizeram os grupos
queer com a palavra bicha ou sapatão que era negativa, mas
quando nos apropriamos delas com orgulho passou a ser algo
positivo nos círculos da militância queer. Desta forma, se de-
sativa o insulto, apropriando-se dele.
A construção da sexualidade, do desejo, está atravessada
por muitas variáveis transversais, mas, sobretudo, está dentro
de um sistema, o heteropatriarcal, onde os valores do pene-
trador são os mais elevados. Parece que é difícil, quase impos-
sível, questionar essa hierarquia, na qual não cabem dúvidas
sobre quem possui quem; há exceções como as que aparecem
nas comunidades leather e S/M, mas o estigma a que estão
submetidas essas comunidades e práticas impede em grande
medida que se generalize.
A promoção de um orgulho passivo deveria também ques-
tionar algumas das conotações da palavra passivo. Já nos re-
ferimos a algumas, mas há outra conotação que é importante,
que associa o passivo à ideia de “não fazer nada”, de “deixar-se
fazer”, de nulidade ou de inatividade. Na realidade, o cu, o
ânus, o reto, a próstata, são lugares de atividade; relaxam, se
agitam, se excitam. É importante lembrar que o próprio ato
sexual da penetração no cu tem um papel muito ativo. Uma
prática muito comum no sexo anal é que o “passivo” aperte e
relaxe os músculos anais e retais, no que proporciona muito
prazer no pênis da pessoa “ativa”.
O orgasmo que sentem muitos homens pelo contato pros-
tático também é algo ativo; o lugar mal chamado passivo na
penetração não supõe uma mera recepção de um objeto ou
um pênis, é um ato complexo e cheio de atividade. Inclusive,
em muitos casos, o “ativo” desmorona com a boca para cima,
161 | Pelo CU
enquanto o “passivo” é que se coloca em cima e faz todo o
trabalho com o seu cu83.
83
Uma crítica similar foi feita há muitos anos pelas mulheres feministas, questio-
nando seu papel “passivo” pelo fato de que “são penetradas”. Hoje em dia nin-
guém aceitaria esta ideia de que uma mulher é “passiva” no sexo, mas, todavia,
esta ideia segue sendo comum no caso do homem receptor do sexo anal.
162 | Pelo CU
que era preciso saber sobre os órgãos em seus aspectos bioló-
gicos e funcionais era explicado de uma forma eficaz e sensí-
vel, fazendo uma expansão no aspecto sexual, incidindo nos
riscos de transmissão das diferentes DST’s e do HIV. Nada
ficava esquecido, nem era julgado moralmente nenhum tipo
de prática; as cartilhas apenas informavam sobre os riscos e a
forma de evitá-los ou reduzi-los. Pequenas obras, mas muito
eficazes na divulgação, já que qualquer pessoa com pênis ou
com bunda podia aprender tudo o que era necessário sobre
sua saúde sexual.
O fogo veio à tona no dia 24 de abril do mesmo ano. O
diário de Madrid ABC (que por uma curiosa casualidade são
as mesmas siglas que Abstinence, Be faithfull, Condoms, o
nome das políticas ultraconservadoras do presidente Bush)
editava em página dupla a notícia:
163 | Pelo CU
Na notícia, a seleção dos parágrafos e o tratamento que
se dava ao conteúdo não só eram utilizados para denunciar
que “com o dinheiro público se incentivava o consumo de
drogas”; parecia que era a desculpa para derrotar ideologi-
camente as tentativas de generalizar a educação sexual e, por
conseguinte, a saúde pública. Para isso, que melhor estratégia
que ressaltar doentiamente as práticas habituais entre os gays.
Novamente a bicha, o sodomita e seu órgão protagonista: o
cu. Já havíamos falado mais acima de que maneira a AIDS
se encarnava nos corpos abjetos, a bichona, o drogado, e de
novo surgem aqui as mesmas dúvidas sobre a viabilidade des-
tes corpos.
Falar dos perigos das drogas é publicizá-las, segundo suas
consciências, mas falar do cu como órgão sexual e mostrar
suas possibilidades de prazer é simplesmente impensável
dentro de uma mente reacionária. Parece que se desperta
novamente o medo do contágio, o lobby gay fazendo publi-
cidade, o temor de que esse ser, a bichona, suje e contamine
nossas vidas. De novo a direita afia suas armas, carregando
contra a mínima visibilidade da bicha, e contra o órgão que
lhe identifica: o cu.
Os diferentes meios digitais de direita recorriam à notícia,
enfatizando o caráter desembaraçado da cartilha que, para
eles, era algo totalmente excessivo. Sua seleção de frases era
típica da manipulação jornalística: desde colocar entre aspas
a palavra cu, até se focar nas práticas scat, passando por co-
locar em dúvida o sexo como meio para prevenir o contágio
do HIV:
Liberdade digital:
A cartilha Domine os cus ensina, em um capítulo intitulado
Meter drogas no cu, que “há caras que enfiam drogas por seu
164 | Pelo CU
efeito anestésico. Isso pode ser feito com drogas em pó ou com
pastilhas dissolvidas em água (speed, êxtase, cocaína ou heroí-
na). Deste modo, as drogas são absorvidas mais rapidamente e
podem ter um efeito mais potente”. É ensinado a manter certas
práticas escatológicas sem risco, supostamente, de contrair Aids.
O Imparcial:
Sanidade subvenciona uma cartilha na qual gays e drogas dão-
-se as mãos. Entre essas práticas, encontra-se o scat, que con-
sistem em “lambuzar alguém de merda ou brincar com ela”,
algo que não traz risco de infecção pelo HIV, embora se possa
contrair outras doenças sexualmente transmissíveis, segundo se
adverte…
Dois dias depois, Sanidad retirou Esta cartilha vai de bunda, da
ONG “Stop Sida”, dirigida ao coletivo gay, que instiga ao uso de
drogas e mostrava uma posição ambígua sobre o uso do preser-
vativo”.
165 | Pelo CU
As respostas das diferentes ONGs não tardaram a apa-
recer, mas dentro da tepidez que caracteriza essas organiza-
ções dependentes dos subsídios do Estado. E também resulta
curioso que, exceto na própria nota de imprensa da Stop Sida,
não apareceu nenhuma menção ao cu.
O fenômeno do bareback
166 | Pelo CU
• Na década 2000-2010, aparece o fenômeno do bareba-
ck – sexo sem preservativo –que é o abandono do sexo
seguro em uma parte importante da comunidade gay (e
um abandono do teste do HIV), o que está produzindo
atualmente uma notável volta das infecções por HIV
entre os homens que fazem sexo com homens85.
167 | Pelo CU
soas soropositivas (em San Francisco, por exemplo). Existe o
debate sobre os riscos da relação entre pessoas soropositivas
pela possibilidade de reinfecções com uma nova cepa do ví-
rus que poderia piorar a saúde da pessoa, mas parece que até
agora foram detectados poucos casos de reinfecção. Em todo
caso, esse tipo de prática de bareback ao menos coloca uma
tomada de consciência e dos riscos, e algumas medidas para
minimizá-los87.
Outra aproximação diferente do bareback é baseada sim-
plesmente na ignorância. Isto é, aqui o não saber é o princí-
pio básico. Existem pessoas que decidem não conhecer seu
estado sorológico, nem saber o estado da outra pessoa, e não
se preocupam com as consequências que podem ter para sua
saúde (ou para a dos demais) a prática do sexo sem preser-
vativo. Obviamente, essa atitude gera graves riscos, porque
muitas delas são soropositivos sem o saber, e não recebem o
tratamento médico que poderia impedir o avanço da infecção
e o risco de padecer de enfermidades graves. Segundo os da-
dos do Ministério da Saúde espanhol, em 2007, 57% dos gays
que foram diagnosticados com AIDS não sabiam que eram
soropositivos. Outro risco evidente é que, por sua vez, essas
pessoas podiam transmitir o vírus para outras pessoas. Essa
situação explica o notável aumento de infecções entre pessoas
gays em muitos países ocidentais nos últimos anos.
No jornal EL PAÍS, Emilio de Benito publicou em 2010 a
seguinte notícia: “os últimos dados do Plano Nacional sobre
AIDS (PNS) e sobre diagnósticos de HIV são conclusivos:
38,8% dos novos diagnósticos do HIV se dão entre homens
que tiveram sexo com outros homens. Ou, mais cruamente
87
Obviamente, duas pessoas soronegativas não podem se infectar entre si, por isso
se insiste em conhecer bem o estado sorológico de ambas no momento do ato
sexual.
168 | Pelo CU
ainda: se se tem em conta somente os infectados homens, os
gays (e outros homens que têm sexo com homens mesmo que
não se identifiquem como homossexuais) são 50%88”.
Na França, a situação é ainda pior: de todos os novos casos
de AIDS detectados em 2008, (6.940), 3.300, que equivalem
a 48%, quase metade resultou de relações sexuais entre ho-
mens, quando na realidade os HSH representam uma peque-
na parte da população geral. Segundo o Institut de Veille Sani-
taire [Instituto de Vigilância Sanitária], a situação de contágio
entre a população gay francesa está fora do controle.
Nos Estados Unidos as coisas não são melhores: segundo
estudo publicado em setembro de 2010, elaborado pela Divi-
são de Prevenção de HIV/SIDA dos Centros para o Controle
de Enfermidades e Prevenção (CDC) dos Estados Unidos,
um em cada cinco homens que tem sexo com homens em
cidades americanas é soropositivo (20%). Além disso, cerca
da metade dos infectados não estaria ao nível deles, e a mais
afetada seria a comunidade afro-americana89.
O terceiro enfoque sobre o bareback é muito mais polêmi-
co e talvez não tenha sido suficientemente testado. Trata-se
de uma prática que foi difundida nas revistas, e que consiste
na busca intencional do contágio, em inglês bug chaser, isto
é, “aquele que busca o bicho”. Nesta prática, são celebradas
festas onde algumas pessoas são soropositivas e outras pes-
soas que não são vão para jogar com a possibilidade de serem
infectados, ou mesmo buscando deliberadamente a infecção.
Essa prática, que se supõe muito minoritária ou que, inclu-
sive, alguns consideram que não existe, veio ao espaço pú-
blico (e ao espaço sensacionalista) a partir de uma matéria
88
EL PAÍS, 26 de março de 2010.
89
http://www.cdc.gov.nchhstp/newsroom/docs/fastfacts-msm-final508comp.pdf
169 | Pelo CU
publicada na revista Rolling Stone em janeiro de 2003, escrita
pelo jornalista Gregory A. Freeman90 com o título “Buscando
a morte”, onde se expunha, a partir do testemunho de uma
pessoa gay, esta prática de achar excitante ser infectado pelo
vírus HIV.
Neste mesmo ano, a diretora Louise Hogarth gravou o
filme The Gift sobre o mesmo fenômeno. A partir de então,
circularam muitos rumores sobre esta prática; recentemente,
em março de 2010, o jornal El Mundo fez eco (um eco mui-
to distante) dessa matéria e desse filme, depois de sete anos.
A matéria do El Mundo, intitulada “Eu joguei a roleta russa
da AIDS”91, foi publicada com um afã sensacionalista, dado
que não acrescentava nenhuma nova informação a respeito
desde 2003, nem dados concretos sobre a possível prática na
Espanha. O estilo de imprensa marrom da matéria pode ser
apreciado em frases como esta:
90
Sobre este tem aver http://en.wikipedia.org/wiki/bugchasing
91
http://www.elmundo.es/elmundosalud/2010/03/05/hepatitissida/1267808100.html
170 | Pelo CU
constantemente o preservativo. Outra causa que podemos
encontrar a partir de algumas declarações de pessoas que não
utilizam preservativos é a morbidez, o saber que se está fazen-
do algo proibido, perigoso ou transgressor. Outro fator im-
portante tem relação com a idade: os jovens gays não viveram
os efeitos devastadores da pandemia dos anos 80, quando
morriam muitas pessoas próximas por causa da AIDS. Gra-
ças aos novos tratamentos antirretrovirais, por sorte, hoje em
dia morrem poucas pessoas nos países ocidentais por causa
da AIDS, e isto levou muitos jovens a pensar que viver com
HIV não é algo tão grave, e que com a medicação se pode vi-
ver sem problema. Também há outra leitura do bareback que
tem relação com uma espécie de retorno ao sexo “natural”,
ao sexo verdadeiro, como se o uso do preservativo reduzisse
a intensidade ou o valor do ato sexual. Até mesmo, podemos
escutar em certas ocasiões a ideia de que o sexo sem preserva-
tivo é um sexo de machos, um sexo duro, forte, e é justo esta
ideia que neste livro pusemos em relação com a masculini-
dade tal como se constrói na atualidade. Nesta mesma linha,
escuta-se, às vezes, a opinião de que o sexo sem preservativo
é um sexo “real”, como se o fato de colocar o látex de uma
micro-espessura nos separasse de uma espécie de “realidade
absoluta” do sexo.
Esta reflexão é bastante absurda se levarmos em conta que
a própria pele humana é uma barreira, uma proteção, uma es-
pécie de camisinha contra as infecções do exterior. Diríamos
que para fazer um sexo “autêntico, real” deveríamos fazer
como o cantor Robbie Williams em seu divertido videoclipe
Rock DJ, onde começa tirando a roupa, para jogar nos seus
fãs, e continua tirando a pele, os músculos...até terminar dan-
çando como um simples esqueleto.
171 | Pelo CU
Há também pessoas que consideram o bareback como
“uma prova de amor”, como se o preservativo introduzisse
um elemento de desconfiança no casal. Segundo essa lógica,
praticar sexo sem preservativo seria uma espécie de retorno
a um amor verdadeiro, puro, sem amarras. Como dizia Che-
noa, em uma das canções que mais causou danos à prevenção
contra o HIV entre os jovens: “e não me fale de sexo seguro,
nem plastifique o meu coração”. Segundo essa ideia absurda,
a camisinha de repente é trasladada do sexo ao “coração”, ao
amor, e vira algo que se torna obstáculo para o seu pleno de-
senvolvimento.
Alguns defensores do bareback situam a discussão no ter-
reno das opções individuais, da liberdade pessoal. Se duas
pessoas adultas e de mútuo acordo decidem fazer sexo não
seguro, entende-se que qualquer recriminação ou proibição
seria uma injúria à sua liberdade individual. Essa posição
parece bastante sólida, mas não se leva em conta as conse-
quências para a comunidade, por exemplo, que se uma das
pessoas, em seu exercício de liberdade, é infectada, o Estado
terá que pagar seu caro tratamento antirretroviral por toda
a sua vida. De qualquer modo, os críticos do bareback não
querem a proibição, mas, simplesmente desenvolver uma cul-
tura coletiva mais consciente dos riscos à saúde, e colocar em
relevo as importantes consequências dessa prática dentro da
comunidade gay, consequências que já são visíveis.
Dentro de um regime heterocentrado e machista como o
que vivemos, a masculinidade continua vinculada a valores
como o risco, a força, a violência, a morte, o perigo. Todos os
homens, incluindo os homens gays, são educados com estes
valores: pelos pais, pelos meios de comunicação, por videoga-
mes, pelo cinema e por meio da televisão. Em alguns fóruns
172 | Pelo CU
de bareback na Internet encontramos esse tipo de mensagens,
“venha ter sexo autêntico, sexo cru, ser um homem de verda-
de”, vinculadas ao sexo sem preservativo92.
Também acontece um fenômeno muito particular em al-
gumas comunidades de homens afro-americanos nos Esta-
dos Unidos, que praticam sexo entre eles, mas sem nenhum
tipo de identidade gay e sem nenhuma referência à homosse-
xualidade. Para eles, o “gay” é uma questão de brancos, e sua
masculinidade está construída por um rechaço aos gays, ape-
sar de terem relações com outros homens. Um interessante
artigo93 publicado em 2009 assinalava que a alta porcentagem
de homens negros infectados por HIV nos EUA, era muito
acima da sua representação percentual a respeito da popula-
ção soropositiva em geral. Entre outros fatores importantes,
como a pobreza, a falta de informação, etc., o texto assinala
que há uma forte homofobia em muitas comunidades afro-
-americanas, o que faz com que muitos dos homens que têm
sexo com outros homens não se identifiquem nunca como
gays e que, além disso, não adotem as medidas de prevenção
necessárias na hora de praticar o sexo (precisamente porque
isso é coisa de gays, não de homens de verdade).
Evidentemente, este fenômeno não é só próprio da comu-
nidade afro-americana. No nosso país encontramos também
92
Por exemplo, em um site de ursos que praticam o bareback lemos esta mensagem
de boas-vindas: “Os impermeáveis (camisinhas) são para as mulheres e para as
crianças em dia de chuva. Não são para a cama de um sujo como você. (...) Nesta
página não são bem-vindas as bichas de lycra, nem as mulheres, nem os rapazes
danone” (www.bearclub.com). Vemos aqui a conexão “masculinidade-sexo não
protegido-ursos” expressada em um só parágrafo. As mulheres e as bichas ficam
assimilados à camisinha; o sexo sem camisinha garante o acesso à masculinida-
de verdadeira, ao homem autêntico e ao sexo natural.
93
AIDS among African Americans: http://www.avert.org/hiv-african-americans.
htm
173 | Pelo CU
homens que fazem sexo com outros homens que participam
desse mesmo critério, segundo o qual sua masculinidade não
se vê colocada em questão caso trepem em pelo, e sobretudo
se são ativos na penetração. Parece que estamos diante de um
mecanismo de defesa bastante homofóbico, onde são coloca-
dos no mesmo saco os gays, a AIDS e o preservativo, de forma
que não se quer saber de nada disso, afim de deixar a salvo a
masculinidade tresloucada, machista e, em última instância,
quase suicida. É claro que isso também tem consequências
para as mulheres. Foi constatado tanto no caso dos homens
afro-americanos mencionados dos EUA, como em muitos ca-
sos na Espanha, que esses homens que praticam sexo com ho-
mens sem preservativo, por sua vez praticam sexo com suas
mulheres, já que muitos deles são casados. A consequência
dessa política do segredo, vergonha e machismo é a infecção
por HIV de muitas mulheres por meio dos seus maridos.
Há outro aspecto do bareback que é importante assina-
lar. É uma ideia que costuma circular quando se fala de pre-
venção, segundo a qual são as pessoas soropositivas que têm
que oferecer os meios na hora de praticar o sexo, as que são
responsáveis pela infecção dos demais, as que têm que avisar
o seu estado, etc. Essa perspectiva é injusta e irresponsável.
Em 1999, abriu-se um debate muito interessante e muito vio-
lento no seio do ACT UP Paris94, o conhecido grupo ativista
antiaids francês; em alguns dos seus textos, os soropositivos
eram acusados de ser uma espécie de bomba ambulante, dado
que podiam infectar as outras pessoas, sobretudo no caso de
94
A crítica de ACT UP ao bareback pode ser lida no artigo “Bareback, NoKopte
No Way!” (http://www.actuppparis.org/spip.php?article1675). Para conhecer o
ponto de vista de Eril Rémès ler seu romance Serial fucker. Journal d’un bareba-
cker, Ed. Blanche, Paris, 2003.
174 | Pelo CU
não informarem previamente seus parceiros sexuais sobre
seu estado soropositivo.
Dois escritores e ativistas gays, Erick Rémès e Guillaume
Dustan, contestaram esses textos, explicando que a preven-
ção era uma responsabilidade de todos, algo compartilhado
e que devia ser negociado a todo momento por todos, não
só pelos soropositivos. Nesse sentido, Rémès assinalava que,
às vezes, algumas pessoas lhes propunham a fazer sexo sem
preservativo sem perguntar pelo seu estado sorológico. Isto é,
queriam uma relação bareback baseada no silêncio e na falta
de informação. Mesmo que Rémès fosse soropositivo, ele se
fazia a seguinte pergunta: por que tenho que ser só eu a co-
locar a questão? Não é responsável por sua possível infecção
alguém que não conhece seu próprio estado sorológico e que,
além disso, não quer saber nada do estado sorológico da ou-
tra pessoa? A pergunta abriu um amplo debate que não se
fechou, mas que coloca aspectos-chave da prevenção hoje em
dia, fazendo-nos também pensar sobre essa masculinidade
que se constrói no silêncio, na vergonha, na falta de diálogo
e na negação.
Esse aspecto da pandemia do HIV é muito importante para
entender uma das posições assinaladas por nós: a de uma pes-
soa que prefere “não saber”, não conhecer seu estado sorológico.
Conversando com algumas pessoas que adotam essa posição (e
que têm relações protegidas), aparece uma lógica interna bas-
tante complexa, que tem relação com a “responsabilidade” e que
é a seguinte: se a pessoa conhece o seu estado sorológico, está
sujeita a tomar decisões sobre suas práticas. No caso concreto de
uma pessoa soropositiva, que sabe seu estado, esse saber vai con-
dicionar muito suas práticas sexuais, no sentido de que deverá
se questionar se deve informar aos seus contatos sexuais, tomar
175 | Pelo CU
medidas para o sexo seguro, ter dor na consciência caso pratique
sexo sem proteção, etc. Em contrapartida, se alguém “não sabe”
se é soropositivo ou não, supõe-se que não tem nenhuma res-
ponsabilidade nesse sentido, isto é, não tem que tomar nenhuma
medida porque não sabe nada de si mesmo.
O “não saber e não querer saber”, para algumas pessoas, é
uma espécie de álibi moral que é “destruído” com a chegada
do saber. Saber implica em responsabilidade. Obviamente, esse
raciocínio não explica por completo as motivações das pessoas
que não fazem o teste do HIV e têm relações de risco; há muitas
outras razões, muitos posicionamentos pessoais, contradições,
medos, ignorância e, em muitos casos, não se trata de uma prá-
tica que tenha um discurso elaborado por detrás. As práticas
sexuais, em muitos casos, não partem de uma reflexão prévia
ou de uma decisão consciente e coerente. Seria um reducionis-
mo sociológico ou antropológico tentar “explicar” o bareback
como um fenômeno coerente, homogêneo ou com uma lógica
interna. Como vimos, trata-se de uma prática muito variada,
complexa e inclusive difícil de definir. De fato, já desde o início
da pandemia existiam pessoas e comunidades que se negavam
a utilizar o preservativo por diversas razões. Naquele momento
não existia o termo bareback, mas isto não deve nos fazer es-
quecer que o sexo sem preservativo é algo muito anterior a essa
espécie de “moda” ou movimento que parece haver surgido no
final dos anos 90 como algo mais ou menos articulado, ou ao
menos com um nome particular.
O que parece claro é que, por trás deste fenômeno, se en-
contram preconceitos e mecanismos de estigmatização sobre
o setor sodomita da população. Outra forma de prevenção
que poderia desfazer com as tentativas de criminalização e
176 | Pelo CU
exclusão dos praticantes do coito anal seria a divulgação ge-
neralizada das novas descobertas sobre a transmissão do HIV.
A chamada declaração suíça diz que uma pessoa com HIV
que está fazendo o tratamento antirretroviral com uma vi-
remia suprimida na sua totalidade não é sexualmente infec-
ciosa, isto é, não pode transmitir o HIV por meio do contato
sexual se a pessoa segue de forma rigorosa a terapia antirre-
troviral e comparece ao seu médico especialista em HIV em
intervalos regulares; se a carga viral se mantiver indetectável
(menos de 40 cópias) durante ao menos os últimos seis meses;
e se não tiver outras enfermidades de transmissão sexual95.
Contudo, em resposta a essa declaração, a UNAIDS (Pro-
grama conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/SIDA) e a
OMS (Organização Mundial de Saúde) deram ênfase na im-
portância do uso continuado da camisinha e do uso consisten-
te e correto como método primordial de prevenção do HIV.
A redução de riscos pode supor uma nova forma de pre-
venção fundada na própria consciência sobre a própria saúde
e a dos demais, criando as habilidades e atitudes para promo-
ver um verdadeiro orgulho anal.
95
Attie, S., Egger, M., Müller, M., et al., Sexual transmission of HIV according to vi-
ral load and antiretroviral therapy: systematic review and meta-analysis. Revista
AIDS, 17 de Abril, 2009.
177 | Pelo CU
Conclusão
179 | Pelo CU
ta-se aqui de um critério psicológico e essencialista. Na era
da AIDS, o sexo anal serviu para construir um novo corpo
do homossexual como portador de infecções, como vetor de
morte e enfermidade: neste caso é a homofobia e o discurso
paranoico da infecção que estão interpretando de uma nova
forma a analidade.
Por outro lado, também vimos que, apesar dessas tradi-
ções condenáveis, existem na atualidade comunidades e sub-
culturas que souberam se apropriar do anal para lhe dar um
sentido positivo e orgulhoso: as comunidades S/M, os prati-
cantes do fist, o mercado do pornô, alguns filósofos e filóso-
fas e ativistas radicais, os aficionados do bareback, e certos
setores do feminismo radical pró-sexo e das comunidades
lésbicas queer.
Ao longo deste livro, comentamos em várias ocasiões que
o cu não tem gênero, e que pode ser uma fonte de prazer se-
xual que não está marcada por ele. Mas, talvez isso não seja
assim. Na realidade, tal como se exerce a política anal hoje
em dia, dentro de um regime heterocentrado e machista, o
cu tem gênero: se é penetrado, é feminino; se é impenetrável,
é masculino. E mais, poderia se dizer que o cu cumpre um
papel primordial na construção contemporânea da sexua-
lidade, na medida que está carregado de fortes valorações
sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, sobre o que
é ser um corpo valorizado e um corpo abjeto, um corpo
bicha e um corpo hetero, sobre a definição do masculino e
do feminino.
Hoje em dia, conta mais o uso que se faz do cu (ou o não
uso) na hora de definir a sexualidade que os próprios órgãos
genitais. O interessante nessa definição é que, então, ser um
homem (e ser um heterossexual) não parece depender tan-
180 | Pelo CU
to de ter genitais masculinos ou de manter práticas sexuais
pênis-vagina, como de manter o cu sempre fechado à pe-
netração. E ser mulher é ser penetrável, independente se é
uma biomulher ou não. Por isso, a bicha passiva é assimilada
à mulher, e desprezada por abandonar seu destino universal
impenetrável. O cu é fundamental na constituição do atual
sistema de sexo-gênero e é quem organiza e define as dife-
rentes sexualidades. É o ser passivo ou ativo que determina a
identidade sexual, não a genitalidade.
Por debaixo do dispositivo que conhecemos, divide-se os
sujeitos entre homens e mulheres, e as orientações sexuais em
homossexuais, bissexuais e heterossexuais (ainda que pene-
trem outros homens). E um homem penetrado já não é um
homem, é uma mulher. Uma mulher não penetrável é mas-
culina, e o sistema machista a sanciona e persegue por não se
submeter ao esquema que se aplica às biomulheres (penetrá-
veis). Deste modo, vemos que tanto a identidade de homem
e de mulher, como o que se considera masculino e feminino,
estão articulados em volta do cu, não da genitalidade.
De fato, deveríamos colocar em primeiro lugar o cu como
critério de inteligibilidade. Não existe um “homem” que depois
de utilizar seu cu passivamente devém “mulher”. O que existe
primeiro são cus, penetráveis ou não penetráveis e, em função
disso, o cu “produz” o sujeito mulher e o sujeito homem.
Esses dois dispositivos (o baseado no sexo genital e o
baseado no sexo anal) se entrecruzam e se solapam. A he-
gemonia midiática, explícita, pertence ao modelo genital
(polaridade pênis-vagina como suposto organizador das
identidades sexuais). O outro sistema, fundado no cu e em
sua penetrabilidade, está muito mais oculto; é silencioso,
vergonhoso, não se fala. É um silêncio que, por sua vez, está
181 | Pelo CU
rodeado pelo discurso, pela injúria, pelo insulto. É uma vi-
gilância anal que começa na infância e que nos persegue até
a morte, inclusive mais além, em uma memória infame que
nos marca por termos sido passivos, por termos traído esse
imperativo insensato que quer decidir sobre os corpos, suas
aberturas e fechamentos, que quer dar direção ou limitar seus
fluxos. Por isso, analisar nossas políticas anais e reivindicar o
orgulho passivo é imprescindível para subverter o dispositivo
da sexualidade em que vivemos.
182 | Pelo CU
Epílogo
183 | Pelo CU
por favor meu amo deixa eu lamber tua virilha de pelos
louros e macios
por favor meu amo deixa eu tocar com a língua teu cu
rosado
por favor meu amo deixa eu esfregar o rosto no teu saco,
por favor meu amo, por favor, olha nos meus olhos,
por favor meu amo me manda deitar no chão,
por favor meu amo manda eu lamber tua pica grossa
por favor meu amo põe tuas mãos ásperas no meu crânio
careca cabeludo
por favor meu amo aperta a minha boca contra o coração
do teu pau
por favor meu amo aperta o meu rosto contra o teu ventre,
me puxa
lentamente com teus polegares fortes
até tua dureza muda chegar à minha garganta
até eu engolir & sentir o gosto do teu pau-tronco cheia de
veias carne quente delicada por favor
meu amo empurra meus ombros me olha bem nos olhos
& me faz debruçar sobre a mesa
por favor meu amo agarra minhas coxas e levanta minha
bunda até a tua cintura
por favor meu amo tua mão áspera no meu pescoço palma
da outra mão na minha bunda
por favor meu amo me levanta, meus pés apoiados em ca-
deiras, até meu cu sentir o hálito do teu cuspe e teu polegar
girando
por favor meu amo manda eu dizer Por Favor Meu Amo
Me Fode agora Por Favor
Meu amo lubrifica meu saco e boca peluda com doces va-
selinas
184 | Pelo CU
por favor meu amo unta teu caralho com cremes brancos
por favor meu amo encosta a ponta do teu pau nas pregas
do buraco do meu eu
por favor meu amo enfia devagar, teus cotovelos envolven-
do o meu peito
teus braços alisando o meu ventre, teus dedos tocam no
meu pênis
por favor meu amo mete em mim um pouco, mais um
pouco, mais um pouco
por favor meu amo enfia esse troço no meu cu bem fundo
& por favor meu amo meu faz rebolar para entrar a pica-
-tronco até o fim
até minhas nádegas aninharem tuas coxas, minhas costas
arqueadas,
até eu ficar só solto no ar, tua espada enfiada latejando
dentro de mim
por favor meu amo tira um pouco e lentamente esfrega
em mim
por favor meu amo enterra fundo outra vez, e tira fora até
a cabeça
por favor por favor meu amo me fode outra vez com o teu
ser, me fode Por Favor
Meu amo enfia até machucar o meu macio o
Macio por favor meu amo faz amor com meu cu, dá corpo
ao centro & me fode direitinho como uma garota
me abraça com carinho por favor meu amo eu me entrego
a vós
& enterra no meu ventre o mesmo doce lenho quente
que dedilhaste em tua solidão em Denver ou no Brooklin
ou fodeste uma donzela num estacionamento em Paris
185 | Pelo CU
por favor meu amo entra em mim com teu veículo, corpo
de gotas de amor, suor de foda corpo de ternura, Me fode
assim de quatro mais depressa
por favor meu amo me faz gemer sobre essa mesa
Gemer Ó meu amo por favor me fode assim
nesse teu ritmo de roça-enfia & tira-e-roça & enterra até
o fim
até meu cu ficar mole cachorro sobre mesa ganindo de ter-
ror prazer de ser amado
Por favor meu amo me chama de cachorro, arrombando,
me esculhamba
& fode mais violento, meus olhos escondidos por tuas
mãos que agarram meu crânio
& enterra fundo com força brutal arrebentando a macieza
úmida de peixe
& pulsa cinco segundos esguichando sêmen quente
& mais & mais, enfiando fundo enquanto eu grito o teu
nome ah eu te amo
por favor meu Amo.
Allen Ginsberg96
96
A tradução brasileira aqui inserida é de Paulo Henriques Britto em: Ginsberg,
Allen. A queda da América. Porto Alegre: LPM, 1987.
186 | Pelo CU
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