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Elmano d’Argus

Aníbal

Prólogo
E serve este prólogo para introduzir o
leitor, caso o haja, nos antecedentes e causas
próximas e remotas deste episódio dialogal, para
que possa, caso o entenda, ou deseje, retomar o fio
à meada.
Há não sei já quanto tempo, mas não mais
de três ou quatro anos, tenho a certeza, tudo se
conjugou, quer da parte da natureza, quer da de
nossa disposição, para que pudesse entabular com
o meu velho mestre o Damião das Bróteas,
astrólogo, parapsicólogo, mestre de gramática e do
dizer poético, jocoso, filosófico, matemático-
geométrico, analítico e sintéctico, metafórico e
analógico, cego de sua natureza, ou fingimento, e
sábio de intenção, um intricado diálogo cujo tema
e assunto não chegámos bem a definir, mas que
versou ora sobre a doudice e os doudos, ora sobre a
psicologia e as intervenções clínicas, ou analíticas,
que sobre ela e eles revertem, ora sobre coisa
nenhuma e todas ao mesmo tempo.
Serviu de motus à disputa certo problema,
nunca chegámos a perceber se teórico e
especulativo, se real, apresentado por um nosso
amigo alveitar, o Acúrsio, a quem ensandecera um
cavalo. Mas, na tentativa de a confinar ao seu
objecto próprio, interveio nela também o Aníbal,
doudo com certificado, público e lugar próprio nas
praças de todas as vilas e lugares do Alentejo.
Feliz conjuntura do acaso, ou artimanha do
Damião, nunca o saberemos.
A disputa, que se iniciou, sem que o
programássemos, entre o denso arvoredo e tónica
frescura dos jardins do palácio do Venturoso, em
Évora, foi concluir-se em casa do Damião, num
ermo bucólico banhado pelas águas cristalinas da
lagoa artificial do Maranhão, termo de Aviz, onde
temperámos o prazer e frenesi do coloquear com
todos aqueles que um ambiente pleno de apelos
aos sentidos pode proporcionar a quatro tolos sem
outra ocupação senão a de permanecer
desocupados. Que é, ao fim e ao cabo, toda a
ciência e sabedoria do Damião, que por sua
vontade estenderia a todo o género humano.
O assunto não se concluíu, nem se
consumou sequer em qualquer ideia ou intenção de
consenso ou conjunção, senão a de retomar o
colóquio em ocasião futura, sobre o mesmo tema
ou outro qualquer que conviesse. Para mais,
decorria no fim de uma primavera precocemente
adiantada, que nos convocava para múltiplos
tópicos de uma profunda relação com a natureza,
que nos desconcertou o discurso. Alguns tópicos
emocionais ainda, que irromperam no espaço
ítnimo da relação do Aníbal com o Damião,
fizeram divergir o tema da sua orientação original
e mergulharam-no num caos irracional de
afirmação do mundo penumbrento dos afectos.
E ainda bem que assim foi. Se não fora,
concluíramos sem apelo o mais profícuo dos
assuntos filosóficos, o que em si contém as mais
dinâmicas virtualidades pedagógicas, retirando
significado a que os demais continuassem a
perscrutar, com os instrumentos próprios, o sentido
do devir humano.
PARTE PRIMEIRA

- Pois então, Damião, já que, da última


vez que disfrutei da vossa lenitiva companhia, a
disputa que nos serviu de pretexto versou sobre a
doudice e os doudos, ainda que sobre o assunto não
enxergássemos sequer um trilho através do qual
nos conduzíssemos a uma conclusão, proponho-te
que disputemos agora sobre a razão.

- Sobre a razão? És irremediavelmente


casmurro e crédulo, Elmano. Pois se não
conseguimos concluir o assunto da nossa ulterior
disputa, que não foi sobre os doudos e sobre a
doudice, senão sobre a psicologia ou tendência e
poder de alguns para corrigirem os tiques e manias
dos demais, porventura para lhes virar do avesso a
personalidade e o feitio, como viremos a orientar
para qualquer fim que te satisfaça uma disputa
sobre a razão?
Qualquer um que se intrometesse de
súbito no nosso colóquio e não soubesse o que nós
já sabemos, mas que tu insistes, parece-me, em
fingir que não sabes, diria, pelo menos, que nos
propúnhamos assediar o mesmo assunto, só que
agora partiríamos para uma nova disputa com a
cabeça no lugar dos pés.
Mas eu digo-te que jamais disputámos
sobre a doudice nem sobre os doudos, nem sobre
qualquer outra coisa, senão que passámos uns
belos dias de lazer e fraternidade, fingindo
disputar, nem mais nem menos, do que sobre a
razão. Mas todos sabíamos que não disputávamos
sobre coisa alguma.

-Pois é, Damião, não disputávamos sobre


coisa alguma... O único que fingia disputar sobre
coisa nenhuma eras tu. Nem há ninguém tão
convencido, pese embora essa tua manha de
fingires que vives só, intrometido contigo próprio
nos limites insondáveis da tua cegueira, do que é a
razão e do que é a doudice. Mas, já agora, diz-me
uma coisa, porque finges que és cego?

O Aníbal voltava então à liça, preparado


para reassumir o protagonismo na trama e intriga
emocional que se viesse a constituir para dar
ânimo e contexto a qualquer nova disputa.

- Pela mesma razão, Aníbal, que tu finges


que és doudo. Não há, meu caro, quem não finja
ser alguma coisa, pelo menos, que não é.

Era evidente que a desconfiança entre o


Damião e o Aníbal se intensificara corrosivamente,
desde a última vez que privara com eles.
- Sendo assim, Damião, porque não
disputamos hoje sobre ti? Sobre os cegos e a
cegueira? Na nossa última disputa, tratámos de
mim, a propósito dos doudos e da doudice. Agora
disputaríamos sobre o nosso caro Elmano, a
propósito dos atilados e da razão. E ainda assim
concluirias que não houvéramos disputado senão
sobre uma e única coisa, ou seja, sobre nada. Pois,
para que não disputemos de novo, explicitamente,
sobre nada, disputemos sobre ti.

Surpreendia-me como o Aníbal se tornara


progressivamente mais agastado com o velho
mestre e, por isso, mais astuto na argumentação.

- Não, Aníbal, não vou tolerar que


continues a cair nas suas artimanhas. Se
disputássemos sobre ele, continuaríamos a disputar
sobre ti e sobre mim e sobre nada ao mesmo
tempo, mas ainda assim lhe daríamos pretexto para
discorrer interminavelmente sobre si e as coisas
que lhe interessam. Insisto em que disputemos
agora sobre a razão, mesmo que, em sentido
inverso, tenhamos que calcorrear e esquadrinhar
todos os tópicos e lugares comuns por onde nos
perdemos na nossa última disputa.

Atalhei eu, com ar e entoação de quem


não admite réplicas. Até o Damião pareceu sentir-
se constrangido.
Estirados no chão junto ao borralho, com
o reflexo das labaredas a lamber-lhes os rostos que
pareciam incendiados, concentrados num jogo de
damas que nenhum deles parecia querer concluir, o
Acúrsio e o nosso novo confrade olhavam de
esguelha tentando acompanhar o nosso colóquio,
fingindo todavia não lhe atribuir qualquer
importância.
Este novo encontro realizava-se agora, se
bem que no mesmo cenário, no pino de um
Inverno rigoroso, com a ventania a assoprar
raivosa contra as vidraças e a parecer fazer ranger
até as grossas paredes de alvenaria da airosa casa
térrea do Damião, perdida no meio dos azinhais e
debruçada sobre a superfície em reboliço da lagoa,
cujas lonjuras todavia se dissipavam encobertas
por uma bruma gelada. O furor dos elementos em
desconcerto confinaria os nossos próximos dias ao
exíguo e entrópico espaço do vasto salão,
dominado pela ampla lareira em que o fogo
crepitava, atravancado pelas pilhas de alfarrábios e
almanaques que o astrólogo amontoava e que nos
serviam de cómodos assentos, verdadeiro labirinto
de papelada bolorenta despedaçada pela bicharada
miúda, metrópole da rataria.
Num esforço derradeiro para descarregar
a atmosfera da tensão electrostática que se
acumulara no quotidiano da sua relação com o
Aníbal, o Damião acolhera desde havia três meses
o mais dilecto dos seus discípulos, diligente
maioral de uma companhia ambulante de títeres,
que calcorreara um mundo sem limites durante
cerca de doze anos e claudicara por fim vítima de
um profundo achaque sentimental, enamorado e
não correspondido por uma mocetona leviana de
coração frívolo.
Era um sujeito de talha exígua e gestos
bruscos mas rigorosos, que se movia como uma
marioneta, loquaz, com uma voz empolada mas
aflautada que invocava sempre a entoação de
personagem de uma tragicomédia qualquer, com
natural tendência para a rima e para o metro, que
versejava com espontaneidade em qualquer
situação e contexto. Fazia-se acompanhar de uma
concertina com que ataviava a sua loquacidade.
De todos os discípulos de Damião, era
aquele que mais se aproximara, em impertinência,
do mestre, exímio em contrariar toda a
argumentação, sobretudo qualquer que denunciasse
apego ao senso comum. Tinha ainda sobre o velho
astrólogo a vantagem e o privilégio do recurso a
certo modo truónico que desmobilizava qualquer
réplica, na ausência da qual ele intrometia uma
melodia, retomando em seguida o colóquio com
uma rima, tomando o mote de um passo anterior,
para recomeçar detrás, mas com outra direcção.
Respondia ao nome de Aristides. Todavia,
porque um certo afecto lírico de pendor
camoneano lhe aliviara e servira de paliativo aos
desgostos amorosos, o Damião apodara-o com o
pomposo anexim de Perdigão, de que jamais
haveria de se livrar. Tivera a vantagem de cair
melhor em qualquer rima.

- Se só para contrariar ao Damião, vamos


pois disputar sobre a razão, entre eu a arengar, por
mangação, sobre se vamos começar, ou não, por
esmiuçar a distinção.
Que cousa é razão, que cousa é sandice?
Não mais que presunção ou cretinice?
E que razão? a prática há de ser, ou a
pura? Se é questão de gramática, ou, se convier, de
caturra?

Com uma pirueta, o Perdigão alevantou-


se sem que ninguém o esperasse, derrubou ainda
no movimento, com a ponta da bota ferrada, o
tabuleiro do jogo, que me pareceu que o alveitar
tinha já no papo, e apanhou a concertina, que
despejou no ar quente e saturado da sala uma
harmoniosa melodia. Pegou no canjirão de vinho
que repousava sobre as pilhas de alfarrábios que
serviam de mesa para as refeições, cobertas com
uma imaculada toalha de linho, lançou-o aos
beiços e sorveu um trago interminável.
Com um tal companheiro, bem iria uma
disputa, para mais sobre a razão... Iluminou-se-me
o espírito e adivinhei a intenção com que o
Damião acolhera o títere. De certo que se
antecipara e congeminara que este nosso
reencontro estaria para breve e que o tema que lhe
serviria de pretexto haveria de ser a razão.
Não pude reprimir-me e declarei:
- Contudo, será sobre a razão.

O Damião olhou-me com surpresa mas


cinismo e percebi que me lera o pensamento e não
lhe passara despercebida a minha precipitação.
Quem veio em meu auxílio foi o doudo.

- Concordo. Para que disputemos de novo


então sobre nada, mas com um pretexto concreto,
seja então sobre o Damião. E o mesmo é dizer
sobre a razão. As intervenções rimadas do títere,
sejam em decassílabos ou em metro alexandrino,
não fiquem em acta e valham só, no mesmo pé que
as pifaradas, como animação do sarau.
E quando proponho que tomemos para
objecto concreto e real desta nossa nova disputa ao
Damião, é porque a razão, no meu ver, quiçá de
doudo ou de sandeu, é tão só um modo de dizer,
como ele quis que fora a doudice, ou a psicologia,
já não sei bem. E não pudéramos escolher melhor
do que tão palavroso amigo como objecto e
suporte concreto para perscrutar e analisar os
modos de dizer que se têm por razão.
E insisto nesta ideia de modos de dizer,
tão só para deixar bem demonstrado que se trata de
dizer a mesma e única coisa de vários modos, que
é toda a sabedoria do Damião. Eu, por mim, não
sou muito palavroso e, por isso, penso que poderia
escrever tudo o que o Damião diz de vários modos
e feitios, conforme a conjunção dos astos e a
disposição dos circunstantes, numa folha de papel
pardo para embrulhar um chouriço.
E escreveria tão só isto. Tudo o que habita
universo e o cosmo, se de facto existem, não é
senão uma e única coisa, tudo sobre que se pode
disputar, ou seja nada. A única coisa que existe e
sobre a qual nem vale a pena disputar é o Damião,
que é a medida de todas as coisas. E o Damão
existe em si e para si, bastando-se e concluindo-se.
E é ele a razão, a doudice, a psicologia e o nada. E
fora dele então existo eu, com a minha doudice, a
minha razão, ou a falta dela, e o meu nada. Mas eu
também existo em mim e para mim e excluindo
tudo o resto.
E entre nós os dois, no espaço imaginário
de um universo vazio, só existem modos de dizer.

-E porque o escreverias e não o dirias?


Perguntou com ar locubrativo o Damião,
que não esperara, nem por sombras, que o doudo
desatasse a traçar o rumo à disputa.

-Ora... para que tu não te saísses a fingir


que se tratava de mais um modo de dizer e tivesses
que te confrontar com algo de concreto, exarado
sobre um suporte material que não pudesses iludir,
para passares à frente. Assim, no espaço que tu
imaginas que medeia entre nós, vazio e ilusório,
povoado apenas de dizeres, ficaria entalado o
acidente corpóreo de uma folha de papel. E para
que não pudesses dizer que a folha de papel era
apenas mais um universo bastante e exclusivo,
irrelevante, para mais, porque não participava da
possibilidade remota de comunicação entre os
seres, que para ti é tão só o dizer ou os seus modos,
ela apresentar-se-ia bem em frente do teu nariz
escrita pelo meu próprio punho.

-Sem o compreenderes, quiçá, acabas de


fazer o sumário e o índice de toda a filosofia.
- Já te ouvi dizer isso sobre os doudos,
que eram aqueles a quem era consentido dizer e
fazer tudo o que aos outros, por virtude da sua
condição, era vedado. Para deixares
subrepticiamente subentendido que eu o pude fazer
e dizer porque sou doudo, ainda insinuas que nem
compreendi o alcance do que disse, ou do que te
houvera escrito.
Aliás, para pôr a nu o empenho vão e a
mestria que empenhas no modo de dizer, fingindo
de resto que daí advém acréscimo de substância ou
conteúdo, ainda vou desvendar o teu afinco no
artefício sintáctico. Ao dizeres «sem o
compreenderes, quiçá, acabas de fazer o
sumário...», edificaste deliberadamente um
território ambíguo de interpretação, para que quem
quisesse decidisse, como mais lhe conviesse, se a
incerteza expressa no advérbio se referia à minha
compreensão ou à eventualidade de ter realizado o
sumário de toda a filosofia.

-Estou com fome. Vamos à paparoca.

O diálogo ficou suspenso com a súbita


intromissão do títere. Era um interlocutor muito
atento, sempre de ouvido espetado para que nada
lhe escapasse, embora fingindo-se distraído, a
percorrer os tectos com os olhos, como se se
concentrasse na construção de qualquer redondilha
ou vilancete fora de contexto. Tenho a certeza de
que a intervenção teve o exclusivo fito de dar
tréguas ao Damião, mas despertou em todos, sem
dúvida, a urgência do apetite.

- O doudo escreveu uma carta ao Damião.


Mais douda era a carta que o autor. Se havemos de
ficar nesta questão, ou por indiferença ou por
torpor, tão só me fique o labor da conclusão.
Se o sumário da filosofia coube ao
sandeu, que a acta da porfia a faça eu.

Arrematou a rima com uma interminável


sinfonia que nos deleitou, a que ajuntou umas
momices arrancadas a várias comédias do seu
reportório, em que se insinuava sempre uma
insondável presença ora de um cego, ora de um
doudo, vestindo várias personagens
sucessivamente, sem que se percebesse quando
saía uma, para entrar outra.
Quando terminou, já o alveitar
atravancara a mesa com os aprestos para o jantar, a
que juntou uma enorme caçarola a transbordar de
ovos recheados de belos nacos de presunto,
salpicão e cebola, ainda a fervilhar. Tirou o
avental esburacado e foi o primeiro a sentar-se e a
bater ruidosamente com o garfo no prato de
esmalte, para que o imitássemos. Mais do que por
qualquer dote de oratória, ainda que fosse bom
argumentador e lhe não faltasse substância ao
discurso, o que mais lhe aprazia era que o
louvassem e estimassem pelas astúcias culinárias.
Após o repasto, que decorreu em silêncio
meditativo, com o doudo ensimesmado, o Damião
de sobrolho franzido como se congeminasse a
argumentação que haveria de contrapor e o alveitar
a esquadrinhar discretamente a expressão dos
circunstantes, à procura de indícios que
denunciassem o êxtase dos paladares, o títere
levantou-se, brindou à arte do Acúrsio e estirou-se
de novo ao rés do fogo, arrancando coros de anjos
e trinados de pardal à concertina.
Com a música por fundo, o Damião botou
então a murmurar, quase entre dentes, como se
coloquiara consigo próprio, mas de modo tão
nítido que todos o escutávamos, edificando o mais
bizarro dos discursos com que até então nos
brindara.

- Ora, suponhamos então que um doudo,


por mera vontade e exercício de atazanar a mente
já martirizada de um velho que consumiu a vida a
perscrutar um sentido para o devir, desamarrotava
uma folha de papel pardo, besuntada de azeite e
gorduras das vitualhas, e, aí mesmo, em metade da
sua superfície, exarava o sumário e o índice de
toda a filosofia.
Não poderíamos dizer, por consequência,
suficiente e necessária, que não só a filosofia, mas
a própria razão e até os insondáveis mistérios que
encerram o sentido da vida e do devir humano se
houveram diluído na doudice e tudo estava
concluído? E que a partir de então não restara mais
sobre que disputar e que nos devêramos conformar
com a irracionalidade do universo e do cosmos? E
que tudo o mais não eram senão modos de dizer? E
pudéramos dizer razão ou doudice, mesa ou
cadeira e cada coisa em lugar da outra, que tudo
iria dar ao mesmo?
E que tudo o que pudéramos dizer só tem
valor porque no espaço vazio que existe entre tudo
e todos intrometemos, ou entalámos, como diz o
doudo, esse novo ser, ou acto, ou ser em acto, que
é a linguagem ou o dizer, que nos dá a ilusão da
osmose, de invadir ou comungar o espaço, o tempo
e até o próprio ser dos outros?
E não é mais do que isto a razão. E
porque é isto e nada mais, o mais apto para a
capturar, aprisionar e conter é, nem mais nem
menos, o doudo.
E poderíamos ainda concluir que todo o
discurso, ou dizer, de diversos modos, sobre a
irracionalidade é um artefício subreptício para
erradicar o doudo da razão, que só ele detém.

- Ora, Damião, todos percebemos que te


estás a fincar no que o Aníbal disse para poderes
aprisionar a disputa numa teia de que jamais
haverás de a libertar, com o fito exclusivo de
evitares que se detenha em alguma coisa que
verdadeiramente interesse. Nem te importa que
tenha sido o doudo e não tu quem fez o sumário de
toda a filosofia, desde que leves a água ao teu
moínho. De resto, ainda virás dizer que o doudo
pôde fazer o sumário de toda a filosofia porque tu,
com a tua argúcia, traçaste os azimutes à disputa
de forma a que não lhe restasse senão fazê-lo. Por
conseguinte, foste tu quem fez o sumário de toda a
filosofia, ou, pelo menos, quem descobriu que o
doudo, quiçá sem o perceber, o havia feito.
Todavia, se aquilo que o doudo disse e tu
complementaste e orientaste para o seu
significado, com o que disseras antes e disseste
depois, fora o sumário de toda a filosofia, teriam
bastado tu e o doudo para iniciar e concluir a
criação de todo o universo, que não fora mais do
que o sumário de toda a doudice, todos os modos
possíveis, enfim, de o Damião ou o doudo dizerem
o que quer que seja.
É claro que nem tu nem o doudo fizeram
o sumário da filosofia, mas tu já o disseste e ao
doudo terá agradado. Quer isto dizer que
partiríamos para a nossa disputa com a presunção
de que o sumário da filosofia está feito, da maneira
como te conveio que o doudo o haveria de fazer, e
não diríamos já mais do que foi dito, até à
Primavera.
Mas eu não vou deixar que passes à frente
sem explicares, com todos os detalhes, por que
razão te convenceste, ou nos quiseste convencer de
que o doudo fizera o sumário de toda a filosofia.

O Aníbal ouviu-me com todo o cuidado,


parecendo perscrutar, em cada verbo e conjunção,
qualquer indício que lhe permitisse concluir que eu
estava do seu lado. Quando concluíu que sim,
esfregou as mãos e levantou o dedo, como um
menino na escola, para tomar a palavra.

- O que ele se esquece de te perguntar,


Damião, é se tu não quererias antes dizer que eu,
tão somente, fiz o sumário da tua filosofia, que era
de resto a minha intenção. Seria de admirar que tu
não estivesses convencido de que a tua é toda a
filosofia do mundo. E só por humildade urdiste
este artefício para o insinuares.
E como a tua é toda a filosofia do mundo,
então é a doudice e a razão, tudo e coisa nenhuma,
o mesmo e o contrário. Tu, Damião, pareces-me
por vezes um sonho sonhado por ti próprio, para ti
e excluindo tudo o resto. Foi por isso que te
rodeaste de gente como nós, pois podes fingir que
nem existimos porque redundamos em ti próprio,
como se fôramos modos do teu dizer.
Foi nesta altura que o Acúrsio, que se
entretera até então a limpar os escombros da ceia,
resolveu dar testemunho da sua lucidez.

- Esta disputa começa-me a parecer um


plágio da minha história, daquela que vos contei
outrora sobre as diatribes do meu cavalo. Diria que
o Aníbal se precipitou subitamente num estado de
pânico, temendo que o Damião se pareça cada vez
mais com ele próprio. Se não acabamos com isto,
os próximos dias gastar-se-ão na tentativa vã e
entediante de o doudo chamar o filósofo à razão,
que este insistirá, até ao fim, em dispensar.

- Lá vens tu com o teu cavalo, - replicou o


doudo - que me parece que nem existe pois
ninguém o viu ainda. E parece-me até que o
investaste só para teres uma história para contares
e poderes impressionar a todos. Toda a gente tinha
uma história. Todavia, na tua pobre vida perdida
entre as bestas, os dias sucediam-se, cada um igual
ao precedente, deitar a palha aos bichos, ensiná-los
a zurrar, escovar-lhes os dentes. Se na vida não nos
acontecera algo de inesperado, que se intrometera
no tédio da sucessão dos dias, que história
pudéramos contar? Como não enxergavas que
história puderas contar sobre ti, inventaste um
cavalo para poderes contar uma história. O Damião
explicou-te com tanto detalhe quanta sabedoria
que as diatribes do teu cavalo não eram senão
momices tuas. Até agora, só te conheci uma dúzia
de azêmolas asininas, qualquer uma mais orelhuda
do que tu.

- Calma, vamos lá a deitar o freio à


língua. De disputa filosófica isto já passou a bulha
de varinas. Parecemos já quatro garanhões a
disputar ao pontapé por uma égua fugidiça. À égua
haveríamos de chamar a razão, a doudice, ou o que
mais convier à filosofia de cada um. Por mim, bem
poderíamos dormitar umas horas sobre o assunto.
Pela madrugada, depois de bem espreguiçados, o
Acúrsio seve-nos o cafezinho e continuamos com
menos azeduns.
Saiba lá vossemecê e não se fique em
cuidado, que ninguém sabe porquê, mas esse foi o
seu fado. Qando vomecê nasceu, ainda ningém
sabia se ia sair sandeu ou ter a mente sadia. E
depois quando se viu, já nada fazer se podia, foi
você quem decidiu para toda a gente que via.
Deixe lá, isso que importa? E não lhe deu
muito jeito? Ter a cabeça torta é feitio e não
defeito.

- Ouve lá, oh bonifrates, isso é para mim?

O doudo começava a levar a cousa a


sério.

- Não é para ninguém, é para toda a gente.


E para ti também, que és o mais inteligente.
Ninguém mais perguntou, todos se puseram de
fora, mas cada um se interrogou: na verdade para
quem fora?
Razão é um estado da doudice. E para
termos a certeza de que é um dom da natureza, foi
um doudo quem o disse.

O Aníbal ficou a pensar durante um par


de minutos o que havia de contrapor, mas pareceu
decidir-se por dar ao títere benefício de
condescendência. Encolheu os ombros e foi estirar-
se a um canto, enrolado numa manta, dando sinal
de assentimento à sugestão do Perdigão. Passada
meia hora já todos roncavam em sinfonia,
enquanto dois inspiravam o ar produzindo
sonoridades de trompete, outros dois expiravam
assobiando como flautas. Eu, de quem o sono
andava mais arredio, ia tossicando a marcar
compasso. Entretanto o fogo ia-se extinguindo na
lareira e a ventania forçava as frinchas e rodopiava
na papelada.
Estávamos nesta modorra e eu levantei-
me e fui ao fogão assoprar, para ver se salvava
ainda o fogo e dava alento aos borralhos. Fiquei
depois ainda uns minutos ajoelhado a ver as
fagulhas lançadas pelo crepitar balbuciante.
Assustei-me quando senti um exalar quente por
detrás do meu pescoço, virei-me e estava o Aníbal
mesmo por detrás de mim, com as duas mãos em
frente da boca tentando segredar-me.

- Vamos lá fora, que quero dizer-te uma


coisa.

- Ora, Aníbal... diz lá. Está muito frio.

- Mas não os podemos acordar...


- Está bem, vamos então. Espero que seja
qualquer coisa com sentido.

- Bem... eu sou doudo... Só me faltava


que, sem mais nem menos, todos esperem que
aquilo que possa dizer tenha sentido. Serei, afinal,
o único que conseva a mente sã?

Vestimos os abafos, abrimos a porta com


cuidado e saímos. A ventania quase nos atirou de
encontro à parede. As nuvens passavam sobre nós
em correria desenfreada, descobrindo e encobrindo
a lua alternadamente, iluminando e lançando na
escuridão o matagal, como se estivéssemos nas
imediações de um farol. A água da lagoa,
arrancada pelo vento à superfície, era atirada aos
nossos rostos em bátegas grossas, pesadas e
gélidas.

- O que achas que veio ele cá fazer?

- Ele quem?

- O títere, claro. Não é estranho?


- Ora.. Aníbal, não veio fazer nada. Mas
algum de nós faz aqui alguma coisa?

- Eu... sou doudo... Aonde é que o


Damião o terá conhecido?

- E aonde é que te conheceu a ti? Que eu


saiba nunca esteve num manicómio. Quando eu
conheci o Damião ele já conhecia o títere. E
conhecia-te a ti também.

- Achas que o Damião acredita que eu sou


doudo?

- Não sei, tens que lhe perguntar. Eu acho


que o Damião acredita em muito pouca coisa. Ele
próprio diz não saber se é cego. Se tu lhe dizes que
és doudo, ele relacionar-se-á contigo, até ao fim da
vida, como se fosses. Se agora lhe disseres que não
és, ele fará de contas que finges não ser. E todo
este jogo multiplicará as possibilidades de ele
discursar sobre as coisas, como se pudessem existir
e não existir ao mesmo tempo. Para o Damião
nada há que não seja, ou que, pelo menos, não
possa ser fictício. O Damião é um sábio.
Mas tu, diz-me, acreditas deveras que és
doudo? Aonde conheceste o Damião?

- Eu sou doudo, sempre fui. Não há


ninguém que não saiba, desde que nasci. Quando
eu encontrei o Damião ainda ele andava com o
surdo-mudo. Já ouviste falar dele. Encontrei-os
numa romaria lá em Brotas e o Damião disse-me -
Ficas connosco.
Eu fiquei. Depois, passado algum tempo,
o surdo-mudo foi-se embora, ninguém mais soube
dele. Fui eu que passei a andar com o Damião,
enrolava-lhe os cigarros, aquecia-lhe o café de
manhã, acendia-lhe o fogo e ouvia-o quando lia
alto o que escrevia para perceber se soava bem.
Com o correr do tempo até já o emendava. E
comecei a ler também. Caramba... será que ele
pensa que eu não sou doudo? Que andei a mangar
com ele?

- Não sei, Aníbal... Mas porque estás tu


certo de que és doudo? Que sabes tu dessas coisas?
- Sei lá... Toda a gente sabe que sou
doudo. Tu... tu não achas?

- Sei lá eu se és doudo, Aníbal... Sei lá


eu... E isso que interessa? Doudos somos todos, eu,
tu, o Damião, o títere e o cavalo do Acúrsio. O
Acúrsio não é doudo, queria ser cavalo. E agora
vamos para casa.

Rimos com prazer. Quando fechámos a


porta, todavia, o doudo ainda olhava para mim de
soslaio, de alto a baixo.
Recolhemos aos catres improvisados e
pareceu-me que, logo imediatamente, ouvimos o
Acúrsio bater com a colher na cafeteira,
anunciando o café. Lá voltava tudo ao princípio.
Foi o Aníbal quem deu, ainda sorvia o
café com um ruído insuportável, pois nem sequer
erguera o púcaro da mesa, o mote para a jornada.
Encarou de chofre o títere, levantou-se com o
púcaro preso entre os dentes e a cabeça lançada
para trás, bebendo o resto de um trago, e
perguntou:
- Ouve lá, oh Perdigão, o que é para ti a
razão, pois pareces saber mais do que todos os
outros sobre a matéria? Bem tenho visto o ar de
troça com que nos tens mimado, desde que
disputamos...

- Eu?!... Ora essa! Eu não sei nada sobre


essas coisas, eu sei é de comédias. Mas espera... eu
digo-te. A razão é o que permite a qualquer um
dizer que és doudo. Quero dizer... é aquilo que
permite a alguém dizer o que é a razão. Ora bolas,
sei lá eu... pergunta ao Damião, que foi ele que me
ensinou. Ou então pergunta ao Elmano. Foi o
Damião também quem o ensinou, mas ele é
inteligente e chegou mais além.
Perguntas-me o que é razão. Soubera eu...
Não tenho opinião. Nem juízo meu há, por
condição, de chegar ao céu.
Já o disse o Damião, não o disse eu, o que
é razão sabe o sandeu.

- O que ele quer dizer, Aníbal, - respondi


eu, para não deixar que o Aníbal tomasse a coisa a
peito - é que a razão é toda a condição que permite
a qualquer um reclamar que a tem. Ao fim e ao
cabo é tudo o que o Damião sempre disse desde o
princípio. Desde o princípio de todas as nossas
disputas, claro. Ou seja, desde que o conhecemos.
O títere não te dirá mais do que isso, seja, mais do
que diz o Damião, porque o títere é o Damião ao
contrário.

- O Damião ao contrário?!

Desta vez o Damião estava


verdadeiramente surpreendido, quase colérico, pois
não conseguira prever a orientação do meu
raciocínio. Mais do que eu desta vez, só o doudo o
surpreendia com regularidade.

- Sim, ao contrário. De cabeça para baixo.


Tu nunca responderias «a razão é...», mas «querer
saber o que é a razão é...». De seguida, concluirias
o mesmo que o títere concluíu, mas ao contrário.
Dirias que só invoca a razão e discorre sobre ela
quem, presumidamente, não a tem, nem a pode ter.
Dirias porventura ainda que a razão é intuitiva em
quem a tem e discursiva em quem a não tem. E daí
concluirias que a razão, como objecto discursivo,
não existe senão como modo de dizer, como
concluíste de resto acerca da doudice.

- Bem, não diria isso, mas quase. Devias


ser um pouco mais justo e rigoroso, quando falas
de mim. Senão pode começar-me a parecer que
disputas comigo, como o Aníbal, por motivo de
qualquer animosidade insondável. Como sabes, o
Aníbal disputa animosamente comigo por pensar
que mantenho com ele uma relação ambígua, que
não decidiu, previamente, se ele é ou não doudo. E
eu só a mantenho assim por não saber se ele quer,
ou não, que eu decida que é doudo. Tu nem sabes
bem porque tomaste o partido dele, mas já
decidiste que, tomando-o, me obrigarás a esgotar
radicalmente os meus argumentos.
Nem sequer percebeste ainda que nunca
os esgotarás, porque eu não disponho de
argumentos próprios, mas usarei de todos os que
possam fundamentar o meu ponto de vista. Usarei
os teus, os meus, os do Aníbal e muitos mais, pelo
que, certamente, não esgotarei os argumentos de
que posso usar antes que tu esgotes os teus. Até
porque o meu ponto de vista não é nenhum, senão
o de que não há ponto de vista que possa ser
argumentado. Quero dizer, que possa ser
sustentado mediante a argumentação. E em torno
deste tema entramos verdadeiramente numa
disputa acerca da razão.
E proponho agora que saiamos para a rua,
a receber nas faces o ar fresco da manhã e que,
depois de arejados, retomemos o diálogo.
PARTE SEGUNDA

Durante toda a manhã passeámos então


circundando a lagoa, em passo estougado para não
arrefecermos, e nada dissemos com receio de que,
se abríssemos a boca, a língua e as entranhas se
congelassem. O céu desanuviara-se, os ventos
haviam recolhido aos odres de Zeus e um Sol
pálido brilhava longínquo num azul desmaiado.
Quando reentrámos em casa, vínhamos exaustos,
mas com o ânimo retemperado.
Foi o Aníbal, uma vez mais, quem
recomeçou, ainda esperávamos que o Acúrsio
apresentasse o almoço.

- Já te fizemos a vontade, Damião, demos


um passeio. Não pode ter sido um pretexto para
que mergulhemos no esquecimento tudo o que
disseste logo pela manhã. O que disseste, creio, foi
que a razão, a verdadeira razão é intiuitiva, não
discursiva, portanto não pode ser objecto de
disputas. É um ardil, obviamente, para que possas
rejeitar, depois de concluires a impossibilidade ou
o absurdo, o tema que te propusemos para esta
disputa. Mas não te vou deixar retirar com as
armas todas na mão, sem que te rendas e nos
apresentes a espada. Vais ter que demonstrar o que
disseste.

- Pois... Aníbal, fá-lo-ei, se isso contribui


para que te sintas mais sossegado. Mas, antes
disso, façamos um exercício. Um exercício que
será muito útil como fundamento da minha
argumentação. Demonstra-me, pela razão, que és
doudo.
- O quê, Damião?! Demonstro-te pela
razão que sou doudo?... Se eu sou doudo, só te
posso provar que o sou, pela doudice. Pela razão,
podes tu demonstrá-lo. Nem tenho esperado de ti
outra coisa.

O Aníbal preparava-se para rebolar pelo


chão, à gargalhda. Mas subitamente ficou imóvel
como se algo, uma inspiração imprevisível, o
fizesse mudar de atitude. Estendeu a mão esquerda
aberta e na palma enorme quase se sumia uma
moeda de dez reis.

- O que tenho na minha mão, Damião?

O Damião encolheu os ombros.

- Tens uma moeda de dez reis. E parece-


me que a sonegaste do meu alforge. Farás o favor
de a repores no sítio de onde a tiraste, pois é a
minha mascote.

- Não. É mentira.

- É verdade. Sonegaste-a do meu alforge.


- É mentira. Não tenho nada na mão.

- É verdade. Tens uma moeda de dez reis.

- É mentira. Se tu és cego, como é que


vês?

O Damião enlaçou as mãos por detrás das


costas e deu uma volta à sala, batendo as solas para
aquecer os pés. Depois virou-se para o Aníbal.

- Apenas te disse que eu, o cego Damião,


vi uma moeda de dez reis na palma da tua mão.
Como sou cego, porventura tens razão e a tua mão
está vazia. Mas tenho a certeza de que sonegaste
uma moeda de dez reis do meu alforge. Se não está
na tua mão, depositaste-a por aí, algures. Mas
espera lá... parece-me que, se meter a mão na
minha meia, a encontro.

Estávamos todos já suspensos do ritmo e


desenvolvimento do diálogo. O Damião começou a
desabotoar a botifarra, descalçou-a, despiu a meia,
enfiou a mão por ela adentro e retirou-a segurando
entre os dedos uma moeda de dez reis.

- Cá está.

Recomeçou a vestir a meia e a calçar a


bota e foi dizendo:

- Pela doudice, tenho a certeza de que


provo, com mais desempeno do que tu, que sou
doudo. Posso ser tão hábil a fazer de doudo, como
de cego. O que não consigo é demonstrar nem uma
coisa nem outra pela razão. De resto és tu, o
doudo, quem insiste em disputar sobre ela.
Quanto a mim, de facto, é absolutamente
indiferente que exista ou não a razão e mais
dispensável ainda disputar sobre ela. Se existem a
cegueira e a doudice, que falta nos faria a razão
para as demonstrarmos. Logo à noite, hás de repor
a moeda no meu alforge. Se não é a minha, parece-
me que a ganhei com este exercício.

Resolvi entrar na liça.


- Pensei que o ofício de embasbacar
papalvos nas feiras era o do títere. Nem te
conhecia esses dotes de truão. Mas voltemos ao
assunto. Dizias que a razão é intuitiva e não
discursiva. Queres dizer com isso que não se pode
transmitir ou comunicar pelo discurso?

- Bem, isso foi o que tu disseste que eu


disse. Eu disse-te que diria quase isso. O que eu
diria, em boa verdade, seria que não tenho nem
quero ter ponto de vista algum sobre esta matéria,
senão o de que não há ponto de vista que possa ser
legitimado pela argumentação. É quase o mesmo
que dizer que a razão é um ser da intuição mais do
que do discurso. Mas não é exactamente o mesmo.
E não é o mesmo porque eu não parto, como tu, da
razão para formular o meu ponto de vista, mas do
meu ponto de vista, ou da ausência dele, para
ajuizar a razão como ponto de vista. Foi, de resto,
por este motivo, que pudeste dizer, de manhã, que
o Perdigão era o Damião ao contrário.

-Bem, Damião, eu não sou ninguém ao


contrário, senão que, por vezes, sou o contrário de
mim próprio. A bem dizer, de tanto me meter nas
pessoas de todos os figurões que representei, não
sei já qual o avesso e o direito da minha própria
personalidade, se realmente tenho uma. Quero
dizer que se eu fosse o teu contrário e tu o meu,
nem tu saberias já quem eras, porque sempre que
eu representasse um figurão tu haverias de ser o
seu contrário.
Serias um camaleão, como eu, em
verdade, sou. Não sou ninguém, nem quero ser,
porque sou toda a gente ao mesmo tempo. Por isso
sou títere.
Eu não tenho que ver com esta trapalhada,
que vós já tínheis iniciado, de resto, antes de eu ter
aparecido por aqui.
Diz que sou o Damião, ao avesso num
espelho. De carão não lhe pareço, eu sou novo e
ele é velho. Ao Damião ao contrário nunca
ninguém lhe pareceu, mas é quase o sumário de
tudo que diz o sandeu. Não vejo sequer diferença,
senão que por acidente um é cego de nascença, o
outro faz de vidente.

- Tu não tens nada que ver com esta


trapalhada. Mas que mal faz que nos emprestes a
tua personagem para que possamos retratar, ainda
que pelo contrário, o Damião? Não passas tu a vida
a pedir emprestadas personagens alheias?
O Damião é então um títere ao contrário.
Empresta a sua personagem a qualquer um que
possa intervir nesta disputa em seu favor. Ainda
ontem a emprestou ao doudo, pondo-o a fazer o
sumário que lhe conveio de toda a filosofia.
Caramba, Damião, deixa-te de fingir que
não tens opiniões, à espera que qualquer um se saia
com a que te convém, para depois vires dizer que
era a tua.

- Ora, Elmano, tu é que te sais sempre


com a minha, para fingires que a descobriste,
mesmo antes de eu a revelar. Sabes exactamente o
que eu penso sobre a razão, porque acompanhas
comigo há muito tempo. E mesmo que nunca te o
revelara explicitamente, ser-te-ia fácil deduzir. E o
que penso é tão breve que não dá para alimentar
uma disputa. Repito que a razão é a condição
daqueles que a reclamam. Reclamam porque,
presumidamente, podem não a ter, pois, se
garantidamente a tivessem, nem perderiam tempo
em reclamá-la.
Por isso a razão e o discurso se
confundiram. E a razão passou a ser, meramente, o
aparato ou repertório das instituições da
racionalidade do discurso. A razão tornou-se então
um modo de dizer, porque era um motivo, ou
pretexto para o agir. Neste processo pode
acontecer que a primeira coisa concreta que
aparece é o agir, de que a causa, necessária e
suficiente, foi, por um artefício, a razão.
Podes, depois disto, alegar que tenho um
preconceito contra a razão.E eu responder-te-ei
que sim. Por isso sou o cego Astrólogo Damião das
Bróteas. A partir de então, sobre que poderemos
mais disputar?

- Poderíamos analisar o percurso que te


conduziu a tão dogmática e nihilista conclusão.

- Acompanhares o meu percurso, Elmano?


Bem, terias que calçar umas boas botifarras,
decepar um salgueiro e afeiçoar uma vara que te
servisse de bordão e calcorrear os milhões de
léguas que me alquebraram a espinha. Não foi
outro o meu percurso. Depois, ou antes, ainda
lerias uma tonelada de papeis que, à partida, nada
te diriam.
E quanto a nihilismo... bem... aceitar que
a vida, com as suas coisas simples e as mais
complexas, a maior parte delas inexplicáveis, nem
necessita da razão para se cumprir é nihilismo? Foi
pela razão que se puderam negar as coisas mais
imediatas da vida. A razão pode ser nihilista.
E o que me parece que tens dificuldade
em compreender, desde que te conheço, é que,
partindo deste ponto de vista, a razão é um dado da
vida como qualquer outro, que nem vale a pena
negar ou afirmar, porque existe como pretexto, ou
fictícia causa, para o agir. Acaso valeria a pena
discutir sobre esta cadeira, sobre se é ou não é e o
que é? Não seria mera perda de tempo? Nota que
eu, que sou cego, nem a vejo e é-me dispensável
vê-la para aceitar que aí está como tu a vês.
Como diria Sócrates, não vale a pena
disputarmos sobre as coisas que existem. Mais vale
disputar sobre as que não existem, nem talvez
venham a existir, senão como normas para a nossa
conduta. Não tinhas que obrigar-me a revelar-te,
de uma assentada, quase toda a minha filosofia.
- Não há em tua casa, Damião, cadeira
alguma. Sentamo-nos todos sobre as pilhas dos
teus alfarrábios. As que havia foram-se partindo. A
cadeira que invocas é uma instituição do teu
discurso. Ninguém duvida de que te relacionas
descontraída e harmoniosamente com a vida e que
por isso podes mesmo aceitar todas as coisas como
te dizem que são, pois te é indiferente que sejam
assim ou assado, desde que as possas imaginar
como te convém.
Por isso pudeste relacionar-te uma vida
inteira com o Aníbal como se ele fosse doudo, sem
decidires definitivamente se é ou não, porque a ele,
simplesmente, convinha sê-lo, sem que tu o
contestasses. E relacionaste-te contigo como se
foras cego, da mesma maneira.

- Nada me interessa que o Aníbal seja


doudo ou não. Reconheço na sua vontade de o ser
uma norma de conduta. Uma para ele, outra para
mim. Como norma de conduta aderi à doudice do
Aníbal porque me é simpática
A minha cegueira é uma norma para a
minha conduta e, talvez sem que o percebas, uma
norma também para a tua conduta. Como norma de
conduta, para mim e para ti, a minha cegueira é-
me simpática. Através dela consegui transmitir-te
muita coisa, que não sei de que outra forma
conseguiria.
Ora aí tens, Elmano. Vou-te contar uma
história. Um breve episódio na minha relação com
o meu tio Atanásio. Já te falei dele, algumas vezes.
Era padre, recordas-te?
Possuía uma soberba biblioteca e
coleccionava um género peculiar de papelada,
almanaques, lunários, farsas, facécias, entremezes,
porfias e desgarradas, sarrabais, não sei que mais.
Fui eu que a herdei e anda por aí, nas estantes e
caixotes, ou em resmas atadas com cordéis, como
aquela em que estás sentado. Para além de mim,
quem melhor a conhece é o títere, que perdeu um
bom par de anos a chafurdar na papelada.
Ouve lá, oh títere, tu já vais no meio
século?...

- Sabes bem que não sei. Um dia, pela


Páscoa, passou lá por casa o cura da freguesia a
borrifar-nos as cabeças e virou-se para a minha
mãe: - Aqui o marau, que idade tem?
A minha mãe respondeu: - Sei lá... para aí
uns doze... não, treze anos, é isso mesmo.
O cura resmungou: - Manda-o à doutrina,
Quitéria, manda-o à doutrina. É uma vergonha.
A partir daí, é que começámos a fazer as
contas. Quando fui às sortes, o general, ou o raio
que o parta, olhou para mim, todo nuzinho como
Deus me botou no mundo, fez um ar depreciativo e
disse: - O quê? Este sujeito tem dezoito anos? Tem
é trinta. Vai direito para a reserva.
Sei lá quantos anos tenho. A mim
parecem-me já cem. Mas cem tens tu e eu sou o
contrário de ti.

- Então um dia, estava mergulhado em


pilhas de sarrabais, em casa do meu tio, e ele
chegou para jantar. Perguntou-me o que estava a
ler e respondi-lhe que sabia bem o que eu lia,
porque tudo aquilo lhe pertencia. Respondeu-me
que, embora tivesse sido ele quem, durante anos a
fio, arrecadando uns tostões aqui e outros acolá,
juntara aquela tralha toda, ela pertencia a quem a
tinha escrito, impresso e botado pelos caminhos da
fama, ninguém sabia bem porquê. Por mais que
queimasse as pestanas e devorasse de A a Z o
Inocêncio ou o Barbosa, nunca saberia porque se
tinham escrito aquelas coisas, porque se tratava de
um mundo muito fechado de fingimento, que não
existia senão na cabeça de uns quantos que o
houveram criado. A maior parte das coisas nem
poderia saber quem as escrevera.
- Eu sei, tio, - respondi-lhe – porque
também eu tenho que fingir que sou cego e que
não sou e conseguir que me creiam quando sou e
quando não sou. Recorde-se, tio, de que quem
começou a fingir que ora eu era cego, ora não era
foi a minha mãe. E depois dela foi vossemecê. A
seguir fui eu e já não havia remédio, porque já
ninguém podia saber se eu, vossemecê, a minha
mãe e todos os outros criam realmente que eu era
ou que não era cego, ou quando era e quando não
era. A partir de então criámos um mundo fictício
de condutas reais. Tão reais que eu pude passar a
ser o cego astrólogo Damião, que ninguém sabe se
vê ou não, mas todos crêem que adivinha e que
pressente.
O que interessa realmente se uma coisa
existe ou não? Se o facto de eu fingir que sou cego
nos impuser, a mim e a si, uma conduta, é
realmente muito importante que eu seja ou não?
Não era o que nos dizia o Sócrates? O que
interessa que a cidade exista ou não, ou possa vir a
existir? O que interessa é que, só pelo facto de a
termos inventado, ela nos impõe uma conduta. E,
nas condutas e através delas, também as coisas
podem existir, ou passar a existir. Isto é válido
para a cidade do Sócrates como para qualquer
outra. O que temos nesta papelada, tio, é uma
cidade.
A partir desse dia o meu tio passou a lidar
comigo com uma certa desconfiança, porque eu
sabia já quase tanto como ele.
Ora eu, Elmano, não sou socrático, no
sentido de que adira à cidade que ele inventou, que
foi aquela que ele quis, pôde ou teve que inventar.
Mas é indiscutível que te impus uma atitude para
comigo pelo facto de ser cego e, na verdade,
impus-me uma a mim próprio. Do mesmo modo, o
doudo impôs-nos uma atitude pelo facto de ser
doudo, ou de fingir que o é, e impôs uma a si
próprio. Não estamos todos bem assim? Se
subitamente o doudo deixasse de o ser ou de fingir
que o é, nem saberíamos nós, nem ele o que fazer.
Para não termos que subverter a nossa conduta,
concluiríamos que fingia que não é. E tudo seria
mais subversivamente fictício. Não é esta a
história da humanidade.
Mas tudo se torna muito mais complicado
quando fingimos que, não nós, mas os outros ou o
próprio universo é assim ou assado. E quando
somos nós arbitrariamente que o decidimos e
podemos fazê-lo, meramente, pelo dizer. Se eu, e
não o Aníbal, decidir que ele é doudo, que lhe
restará fazer? Dir-me-ás que isso dependerá do
poder que eu tiver para lhe impor a minha conduta.
Por isso te digo, repetidamente, que a razão é a
condição de quem a reclama.
E digo-te que ser, de livre
arbítrio, doudo, ou cego, ou astrólogo, ou comadre,
ou mesmo em certo sentido títere ou alveitar é um
pretexto para renegar a razão. São as condições ou
os estatutos que reclamam aqueles que renegaram
a razão.
Só deste ponto de vista e não de qualquer
outro, conseguirias manter comigo ou com o títere
uma disputa acerca da razão. Então interessar-nos-
ia sobretudo discorrer sobre o estatuto e a condição
da razão.
O doudo, que já estava a bocejar, cansado
com a alocução desporporcionada do Damião,
acorreu a rematar.

- Estão a ver. Já deixou de disputar sobre


a razão, para propor que disputemos sobre a falta
dela.

Foi então que o Perdigão, que se


demorara mais do que os outros sentado à mesa a
mordiscar os ossos da galinha que o Acúrcio
estufara com todo o esmero e nós devastáramos,
mantendo-se todavia atento a trautear uma arenga
que ninguém conseguia acompanhar, qualquer
coisa semelhante a uma lenga-lenga em verso
rimado, agarrou na concertina e soltou a veia.

- Vejam só que vanidade, que tremendo


desatino, que o doudo por qualidade é aquele que
tem mais tino. E o cego, que adivinha, vê mais do
que o gavião. Qual será sina minha, que será de
mim então?
Sou títere, vivo a fingir, hoje rei ontem
vaqueiro. Neste ofício de bulir, serei o mais
verdadeiro? Fingi ser tudo na vida, sempre que
representei. Com tanta fruta colhida, fingir títere é
que eu não sei.
Finge o doudo que é cego, finge-se o cego
sandeu. Finge o sábio que é patego e quem é títere
sou eu.
Vem aqui, oh meu papalvo. És perneta e
queres correr? Tens cabelo e queres ser calvo?
Tens ouvido e não queres ver?
Lugar onde haja razão não cabe seriedade.
Vem comigo, meu irmão, vem na tua qualidade.
Sou títere por condição, não escolhi a minha idade.
Nem precisas de dizer aquilo que és ou não, há de
a ver quem o quiser, qual é a tua opinião.

- Pois é, ele tem razão. Começámos por


disputar sobre a razão e já estamos a discorrer
sobre o fingimento, como se fora a mesma coisa.
Para ti, Damião, razão é fingimento?

- Não, Elmano. O que te quis dizer foi que


a razão é um suporte tão válido como qualquer
outro para o fingimento. As coisas que são, são,
tais quais são. As que não são só o podem ser
mediante o fingimento. Se o fingimento impuser
condutas, as coisas que não são passam a ser.
Espécies de fingimento podem ser a mera mentira,
a convicção ou a fé, a necessidade, ou a razão, isto
é, um discurso dedutivo que imponha
irremediavelmente que uma coisa seja e que seja
assim e não assado. A razão é para mim mais da
espécie da mentira.
Se eu fosse cego, se estivesse realmente
convencido de que sou cego, nem necessitaria de o
dizer. Se o Aníbal fosse doudo, se estivesse
realmente convencido de que é doudo, nem
necessitaria que eu, ou tu, o disséssemos, pela
razão ou contra ela.
Mas o que é realmente subtil é que, se eu
soubesse realmente que não sou cego, não o
saberias tu. E terias que optar por uma conduta, ou
como se eu fosse, ou como se eu fingisse. E aí
reclamarias a razão para fundamentares a tua
conduta. E, mais do que isto, que te posso dizer?

- Nada, Damião. Senão que continuas a


disputar sobre um assunto presumidamente
filosófico, alapado a ideias e significados de senso
comum, para poderes confundir tudo. A presença
do títere, contribuindo para que tudo tenha uns ares
de farsa, facilita-te as astúcias. Porventura, ainda
as aguça.

- Só te continuo a dizer que, antes de


querer saber o que é a razão, quero avaliar o
estatuto e a condição dos que a fundaram e
reclamam. E isto, quer queiras, quer não, é um
ponto de partida filosófico.
Tudo o resto, para mim, é conversa fiada.
Sei de cor tudo o que escreveram o
Platão, o Aristóteles, o Santo Tomás, o Descartes,
o Kant e muitos mais arejados e próximos das tuas
modernices. Depois de os ler, embasbaquei-me
com as manhas, os artefícios e os sucessos da
razão. Tanto me embasbaquei, que quis saber,
depois, para que servia, face à singela condição do
ser e dos homens. Depois, a quem pertencia.
Se tu altercares que é tão magnífica a
razão e as suas lucubrações que proporcionou aos
homens o irem à Lua, eu responder-te-ei que
provavelmente, estou disso convencido, os homens
iriam à Lua sem a razão ou com ela. As soluções
que a razão ofereceu a muitas interrogações dos
homens, muitas outras faculdades as teriam
apresentado. Mas ainda te perguntaria para que me
serve a mim, ao cego Damião, ao doudo ou ao
títere, que alguém tivesse ido à Lua que era tão
bela com os seus mistérios.
Mesmo tendo em vista os seus sucessos,
digo-te que a razão excluíu deles a maior porção
dos homens. Porque a mesma é a razão que a
alguns conduziu à Lua e a outros abandonou no
desterro do Maranhão, com as suas cegueiras, as
suas doudices e as suas comédias. Aqui, nesta casa,
talvez só tu tenhas participado dos sucessos da
razão, portanto és tu quem a partilha. Mas, porque
a razão é uma confraria, procuras tu por aqui
adeptos.

- E não é uma confraria, também, a tua


cretinice?

- Pois é. Só que não procuramos adeptos,


porque nos pertence a maior porção dos homens.

- Tem graça... Sempre pensei que vos


reclamásseis como minoria, bem acanhada, por
sinal.
- Continuas a ter razão. Somos uma
minoria. A quem pertence a maior porção dos
homens. Não porque eles queiram, ou saibam
sequer, mas porque a razão os excluíu.
A bem dizer, incluíu-os apenas no que
deles necessita. Muitos deles bem quereriam
participar mais nos sucessos da razão. Muitos
ainda aderiram à confraria na mira de um quinhão.
Eu, o doudo com algumas dúvidas, o títere e o
Acúrsio excluímos por arbítrio próprio e livre a
razão. Por isso podes dizer que fundámos a
confraria da cretinice. E pertence-nos a maior
porção dos homens.
A maior porção dos homens, que a razão
inclui no que deles necessita, são cegos como eu,
ou dodos como o Aníbal. Só que fingem acatar a
razão, ainda que a sua vida, porque a razão os
excluíu, seja uma cretinice. Ao fim de tanto
fingimento já nem eles sabem se participam ou não
da razão, ou da cretinice. São atilados fingidos,
que já não sabem se o são ou não, porque para
nenhum, mesmo para os que a detêm por condição,
a razão deixa de ser um fingimento.
A razão é uma maneira de alguém se
dizer, ou dizer o outro, para desencadear uma
conduta, mormente uma adesão.
Chegou a altura de eu te perguntar a ti,
que és quem a tem, ou quem a invoca, o que é a
razão?

O títere adiantou-se.

- Razão é o Damião ao contrário, quero


dizer de pernas para o ar e com o boné no lugar
das botas.
Andava um cego na estrada, guiado por
um menino. O cego dava a toada e o petiz tocava o
sino. O cego não via nada, andavam os dois sem
tino.
Chegaram a um ribeiro, bravo de arrepiar.
Diz-me quem é o primeiro que vai querer
atravessar? Diz-me qual foi o matreiro que ficou a
observar?
Dirás que o cego não via, sequer as águas
correr, e o petiz bem sabia como então se precaver,
sereno esperaria que fosse o cego, para ver. Ou
então que o cego ouvia, bem podia perceber, ia o
menino à porfia e ficava o cego a ver.
Disse o cego: - Olha menino, não tenhas
pressa em passar, sou cego mas tenho tino, só
temos que esperar. Quando o Verão chegar ao
pino, as águas hão de baixar.
Dous ou três meses então, depois que ali
assentaram, chegou o pino do Verão e as águas se
abaixaram. Não havia já razão para continuar
adiante, sorriram por um instante e, sem destino,
voltaram.
Passados que são vinte anos, bem
contados por defeito, na estrada dos desenganos
ainda ninguém teve jeito de resolver a charada.
Quem seria o primeiro, quem lançaria a pernada,
quem passaria o ribeiro?
Nem um, nem outro passava, pois não
houvera razão, porque a eles tanto importava
passar o ribeiro ou não.

Continuou com outro timbre, como se


outro entrara, em desgarrada.

- A eles tanto importava passar o ribeiro


ou não. E eu quase que apostava que o cego era o
Damião. O menino era o Elmano, que o trazia por
tutor, e quando viu o engano em que o estavam a
por, é que viu que tanto dava ter ou não ter a
razão. Porque quando ela faltava, esperava pelo
Verão.
Porque a eles tanto importava passar o
ribeiro ou não.
Diz-me, meu caro Elmão, porque insistes
na porfia? Pois se lhe deras a mão, aonde é que
isto já ia...
Disputas por disputar, nem tu sabes a
razão, talvez que só por estar bem com tua
condição.

Ficámos todos à espera, por uns instantes,


a perceber se o títere acabara. Foi o Acúrsio quem
saíu do seu posto, aonde se retirara, reservado,
desde o início da disputa, para reacender o rastilho
e repor o doudo no cerne da discórdia.

- Cá para mim, Damião, tudo o que tu


agora alegas, como se desde a meninice foras o
capitão de todas as guerras contra a modernice,
aprendeste-o com o Aníbal desde que o conheces,
que é aquele que diz tudo aquilo a que tu dás,
depois, arteficiosamente, sentido. As dúvidas do
Aníbal são, de resto, muito mais sábias do que as
convicções que delas queres extrair, quando
repetes, como se interpretaras, tudo o que ele diz
ou insinua.

- Tens toda a razão. Só que eu nunca


interpreto o que o Aníbal diz ou insinua, através do
dizer ou de condutas, senão que o repito tal qual.
Sublinho, por vezes, algumas das coisas que diz e
a que não dá muita importância, porque são de sua
espontânea natureza, para que eu próprio as
aferrolhe na memória e possa, mais tarde, delas
aproveitar toda a substância.
E concordo contigo em que a maior
sabedoria do Aníbal se contém na sua indecisão,
quando fica encarcerado no limiar da doudice, que
é o lugar ou o tópico exacto do génio. E nisso,
tanto vale, para mim, o Aníbal como tu, quando
ficas encarcerado entre os homens e as bestas,
atónito e indeciso entre o teu racional e o teu
irracional. Mas adianto-te que foi a minha cegueira
que me permitiu ver tudo isto.

Ao doudo pareceu que a conveniência do


Damião à contribuição inesperada do Acúrsio lhe
era favorável. Mas o remate do astrólogo fê-lo
ruborizar de cólera.

- Lá vens tu outra vez. A minha sabedoria,


ou a do Acúrsio, só poderia valer através da tua
cegueira!...

- Mas afinal tu queres ser doudo ou sábio?


Por mim, serás aquilo que quiseres e acatar-te-ei
como houveres de querer ser, sem sequer
interrogar o que deveras és. Mas se és doudo, a tua
sabedoria só pode ser reconhecida por mim, ou por
outro. Não te compete a ti reconhecê-la, pois,
então, deixarias de ser doudo e perderias toda a
sabedoria. Se és doudo, o que te interessa se, por
isso, sejas sábio? Interessa a todos, menos a ti.

- Bem, eu só queria ter o talento do títere,


para botar em verso o que teria para te dizer.
Ficava a disputa arrumada.

- Não faz mal, Aníbal, já inventei uns


versos para ti. Para tu dizeres aquilo que quisesres
ao Damião
Pior do que razão, só não a ter. Pior que
dizer não, só não dizer. Melhor será então dizer
que sim e, sem hesitação, que é assim.
Pior que ver em vão, só nada ver. Pior que
ser anão, só nada ser. Melhor será então ser só
assim, ser uma negação, seres tu enfim.

- Ora essa... Isso não é o que eu queria


dizer ao Damião. Parece-me mais o que ele sempre
quis dizer a toda a gente.

- É a mesma coisa.

O Aníbal desistiu, já baralhado e convicto


de que qualquer coisa que pudesse ainda adiantar
daria ocasião ao astrólogo para prosseguir no
mesmo tom, lançando o assunto no marasmo.
Afastou-se a encolher os ombros e a bater
os protectores das botas na tijoleira do chão, mas
dirigiu-se de novo ao Perdigão.

- Oh títere, sai-te lá com uma comédia


para mudarmos de assunto e acalmar a borrasca.

O títere não se fez rogado.


- Serve então a ceia, Acúrsio. Comemos e,
a seguir, vamos às comédias.
PARTE TERCEIRA

Terminada a ceia, devastado um opíparo


empadão, o Perdigão embrenhou-se nos
preparativos para a farsa. Dispôs quatro fardos de
papelada em frente do fogo para nos servirem de
assentos, como uma plateia, e arrumou os restantes
junto das paredes para fazer espaço para a cena.
Tudo estava de modo que a porta do fundo, que
dava para o quarto do Damião, servisse de
camarim, aonde recolheriam as personagens que
saíam e de onde despontariam as que haviam de
entrar, em seu devido tempo e sem outro aviso
senão o de entrarem, que um só títere não dava
para tudo. O único actor seria, obviamente, o
Perdigão, que teria que fingir todas as personagens
que quisesse inventar.
Ouviu-se um trecho breve de concertina,
três pauladas no tecto ou no sobrado e entrou o
narrador, que como tal logo se reconhecia, porque
era ele próprio e sem disfarces, com a sua voz,
apenas um pouco empolada e entrecortada, como é
corrente nas comédias de tabuado.

- Silêncio! Vai começar... quero dizer,


acabou, que eu nem sei já bem quem sou... onde é
que isto vai parar?... Vai começar a função, uma
função de pasmar, entra o cego Damião, entra de
pernas para o ar, diz que é o Perdigão e que vem
no meu lugar.

O Perdigão deu duas cambalhotas de


atleta, ficou em posição invertida, a fazer o pino e
a espernear, como se fizesse grande esforço para
não tombar.
Depois falou com a voz doutoral do
Damião, mas fazendo trejeitos, como se imitasse o
doudo.
- Eu nem sei já bem quem sou. A função
vai começar... quero dizer... acabou... eu nem sei
continuar. Diz que eu sou o Damião, que era a sua
vez de entar, se ele quer ter a razão, o que me
custa lha dar? É sua esta função, quem sou eu para
lha tirar?

A figureta veio, caminhando sobre as


mãos, até à boca da cena, mesmo junto de nós,
deitou a língua de fora, deu mais duas cambalhotas
e ficou sentada no chão à nossa frente, mas de
costas.

- Vá lá, diz-me tu agora, quem sou eu,


quem hei de ser? Deito-te a língua de fora, para ao
Damião parecer, para logo, sem demora, sem sair
daqui sequer, aparecer em posição, de ser outro ou
mesmo eu, não sei bem se o Perdigão, ou bem
assim o sandeu.
Tanto faz, isso que importa? Se de razão é
a pleita, tanto faz tê-la direita, como negá-la por
torta.

Levantou-se, deu uma corrida e


desapareceu por detrás da porta. Emboscado ainda,
começou uma nova arenga, falando de modo que a
sua voz parecia proceder dos confins do universo,
ou dos infernos. Via-se bem que era o Damião, ele
próprio, sem sobreposição de personagem alguma.

- Tu és o sim e o não, o mesmo e coisa


nenhuma, de ti própria a negação, não estás em
parte alguma. A vida não tem sentido, é o sentido
da vida, nada te foi prometido, tu só andas de
fugida.
Nada te foi prometido, és tu a tua medida,
aquilo que tiveres sido, é parte que te é devida.
Queres ser doudo, queres ser cego, queres ser papa,
queres ser rei? Tens à vida muito apego, mas a
vida não tem lei.
Perguntas-me o teu destino. E eu que sou
adivinho, digo-te é só desatino, bebe um bom copo
de vinho.
Qual é tua condição? Tu és tu e o
contrário, vais em qualquer direcção, como as
contas de um rosário. Pede um vaticínio à lua. Ela
logo te dirá, se esta vida for tua, há de ser como
será.
Diz agora quem falou, quem botou esta
sentença? Cego és, eu doudo sou, já nem sou
minha pertença.

Acabada esta arenga, o Damião entrou na


cena e parou no meio dela com um ar confundido,
mirando-se, com dificuldade em reconhecer-se,
afastando-se depois e continuando a inspeccionar o
sítio onde estava, como se tentasse sair de si
próprio para se poder observar. Ao mesmo tempo
ia falando, de novo como se fosse o Damião a
imitar o doudo.

- Digo razão, logo a perco... que


confusão... isto é um cerco... digo que não e diz
que sim... digo razão e vai por mim. Agora
alterca... e já concorda... e vai... e cerca... então
discorda.
Quer ter razão?... É só dizer. Digo que
não, se a não quer ter.
Sandeu sou eu?... Terei que ser. E seja
meu o desdizer. Agora sim e depois não e porque
assim e porque então.
E nisto o Perdigão corre de novo ao
camarim e reentra na figura do doudo, a interpelar
o Damião, falando para o lugar onde ele estivera.

- Entro agora eu na função. Diz-me lá


quem vai entrar? Sou o doudo, sou Elmão? Ou
serei o alveitar? És cego, não tens visão, terás que
adivinhar.
Quem pensas tu que hás de ser, diz-me lá
oh Damião? Quem és tu para desdizer, todo aquele
que tem razão? Nada te vi afirmar, nada te vi
defender, tu só sabes derrubar, não tens mais para
dizer. Todos pensam que és sábio, um artista no
dizer, mas só dizes o contrário daquilo que alguém
disser. É toda a sabedoria, que alguma vez nos
mostraste, para ti é filosofia, para nós é só um
traste. Não dizes se sou sandeu, dizes que sim e
que não, depende da conjunção, eu sou tu e tu és
eu. Dizes agora que sou, se eu te disser que não,
logo negas se te dou de mão beijada a razão.
Dizes agora que sim, logo vens dizer que
não, se agora for assim, depende da condição.

Sai agora o doudo pela porta do fundo,


mas presume-se que ficou, porque a saída fora só
para eu entrar e desatar a falar para os dois que já
lá estavam e continuavam nos seus lugares. Havia
agora três em cena, um presente na pessoa do títere
e dois ausentes, em figura imaginável só pelos
lugares para onde eu falava.

- Seja, neste ponto, posto aqui o ponto,


vírgula mais adiante onde calhar, sobre razão não
disputarás tu, tonto, e sobre a tontice me hei de eu
de calar. Cada um fique na sua condição, a cada
um, seu direito de falar, fale o sábio prudente da
razão e o doudo sobre tudo o que sobrar.
De razão ou de loucura é esta pleita? Se
não for douda nem cega a presunção, se a razão de
madura andar direita, se é a razão que alega ser
razão, se é ela que procura e já está feita, a
doudice também chega a ter razão.

O títere pôs-me a arengar com um tom


empolado e declamatório, como se eu próprio me
investira em supremo árbitro da disputa. No fim
fez um trejeito de surpresa e indignação, como se
eu próprio me surpreendera com a ambiguidade.
E foi o doudo de novo do seu lugar, para
onde o títere se transferiu num ápice, quem
replicou.

- Se para dizeres da razão, tens que dizer


do sandeu, ela é só a negação, do que tiver que ser
eu. Logo, razão não existe, é o contrário de mim,
se eu morrer ela desiste, sou o princípio e o fim.
Eu sou como o Damião, só é cego porqe
eu vejo. Pois não é ter a razão, se a ter é o que
desejo?
Sonho de doudo é razão, o de cego é ter
visão. Quem te dera ser sandeu e poderes ser como
eu.
Anda o mundo ao contrário, ao contrário
da razão, cada um com seu rosário, querendo outra
condição. Se me queres dar a razão, eu não a
ponho em disputa, guardo-a no coração e vou à
minha labuta. E se queres ser tu sandeu, não te vou
desfeitiar, toma tudo o que é meu e podes ir
bugiar.
E vou-me desenfiar. Sejas tu, ou seja eu,
este papel foi o meu.
Foi-se o doudo. Fiquei eu com o Damião.
Regressou o títere esbaforido a fazer as nossas
vozes.

- Caramba, títere, já estou zonzo só de te


ver nessa azáfama. - interrompeu o Aníbal,
porventura farto da função.

O primeiro a falar fui eu.

- Não nos vai deixar em paz.

- Não consigo disputar...

- Deixa lá, tanto se faz.

- Mas eu queria elucidar...

- Que és só tu quem tem razão?

- Tu só estás a desviar...

- O quê? A tua atenção?

- Assim não posso falar...


- Mas não sou eu que te impeço...

- Impedes-me a direcção.

- Mas não sou eu que tropeço... és tu que


não tens visão...

- Por mim, eu vou desistir...

- Só por não teres a razão?

- Nem sequer te a vou pedir. Eu sou


sempre a negação.

- Escusas de insistir, não te vou comer à


mão.

Agora saímos nós, fica a cena vazia e o


títere está exausto. Mas entra ainda o alveitar, com
uma caçarola numa mão e a colher de pau na
outra. Vem com a língua presa, com dificuldade
em distinguir o s do z.
- Casa onde não há pão, onde haja muito
barulho, não há de estar a razão. Vamos encher o
bandulho. Ali na minha cocheira, nunca faltou a
ração e é a melhor maneira de evitar a confusão.
Dizem ser a razão, do homem a condição
e dos bichos a ração. Acaba esta função.

E acabou. O títere deixou-se cair


estatelando-se no meio da cena, a arfar. Assim
ficou.
Durante um quarto de hora, enquanto o
doudo e o alveitar punham ordem no estardalhaço
que o títere fizera, ninguém disse nada. O doudo
parecia o menos satisfeito, com os olhos no tecto, a
arquitectar a ferroada com que haveria de replicar.
Disparou- a no silêncio, como um tiro
seco por que ninguém esperava.

- O autor desta comédia é o Damião. Eu


bem o vi a escrevinhar e nos segredinhos com o
títere, nos últimos dias. Há mais de duas dúzias de
anos que escreve as comédias para todos os títeres
que conheço.
Interrompeu, deu uma volta pela sala, a
criar ambiente para o que diria a seguir.

- E se queres que te diga, Damião, bem


percebo que a escreveste como se fosses eu. É uma
nova astúcia. Para alegares agora que, se a razão é
a doudice e a doudice a razão, então a razão sou
eu, portanto não sou doudo. Mas, quando te
convier, pela mesma razão, necessária e suficiente,
quero dizer mais suficiente do que
verdadeiramente necessária, passo a sê-lo.

O Damião riu-se encolhendo os ombros e


virou-se para mim.

- Diz-me lá, era necessário o esforço e o


suor do títere para dizer tudo aquilo que já estava
naturalmente dito? Há sempre aqueles em quem a
expressão da comédia é natural. Continua a ser a
voz do doudo a melhor expressão do que é a razão.
A melhor expressão de que, para estar na razão,
basta tão só reclamá-la. Depois, é só questão de
habilidade no dizer, seja pela comédia, com uns
sonetos, um tratado, ou através da enunciação de
uma lei, ou da promulgação de uma ordem. Ou
pela doudice. Muitas são as formas de expressão
da razão, umas mais às claras, outras mais
penumbrentas, umas mais pela frente, outras pelas
costas.
Eu nunca disse ao Aníbal, nem a ti, que
razão e doudice eram a mesma coisa. Só disse que
a doudice era uma forma tão conveniente à
expressão da razão, como qualquer uma das sérias.
Porque a razão não é nada, é um dizer que pode
aproveitar todas as formas de expressão.

- Tu continuas a orientar esta disputa,


como se ela fosse, exclusivamente, entre ti e o
doudo. Não dizes nada que não tenha o doudo em
mira. Depois, fazes de conta que o doudo anda
amofinado e te persegue, sendo a razão porque não
consegues orientar a disputa para assuntos
substanciais. É uma velha astúcia tua, essa de
intrometer os afectos entre as ideias.
Foi o que te permitiu disputar sobre a
razão durante estes dias, confundindo várias
acepções da palavra, saltando de uma para outra de
acordo com o que te convém. Para o conseguires,
ainda disfrutaste das contínuas intromissões do
títere, da ambiguidade natural no seu discurso de
comediante.
Até agora temos dito razão, como se fora
uma só coisa, sem distinguir, pelo menos, três
acepções, significando o contrário da doudice,
portanto uma condição social ou uma forma de
estar perante o mundo e a vida; significando
legitimidade, acerto, ou conformidade com o certo,
no sentido de que tens tu ou tenho eu a razão,
portanto uma condição social também, porventura;
significando ainda uma faculdade do espírito, um
modo específico de acesso ao conhecimento, um
itinerário para o pensamento, um sistema filosófico
enfim.
Ainda não decidimos sobre qual das
razões estamos a disputar.

- Significando ainda, disseste muito bem,


porventura descuidado. Ainda, significando
acréscimo. Razão é só uma, em todas essas
acepções, que não se excluem, antes acrescem
umas sobre as outras. Quando eu digo que tenho
razão, reclamo o valor de uma faculdade do
espírito, ou de um modo específico de acesso ao
conhecimento que me atribui o que reclamei. E
então uma redunda na outra, fica nela precipitada,
são a mesma coisa, por isso as chamamos pelo
mesmo nome. Porque não vejo qualquer distinção
entre a legitimidade e a faculdade de espírito que
me atribuíu a legitimidade, porque são
simultaneamente a causa e a consequência uma da
outra, a mesma em substância, com o mesmo
nome.
O problema, meu amigo, reside no facto
de um dado modo de acesso ao conhecimento,
assumido como faculdade do espírito, se reclamar
previamente a legitimidade e se denominar a si
próprio como razão, que é o nome por que se
reconhece a legitimidade. Não pode haver mais
ambiguidade e maior traição. Para quem quiser
rechaçá-la não resta mais do que reconhecer que as
duas acepções nomeiam, em substância, a mesma
coisa. Então a razão é uma comédia, quero dizer,
só pode ser tratada pela comédia. Ou pela doudice,
quando a própria doudice se reclama de razão. E
fica a restante acepção a redundar então, também,
nestas duas.
Não esperava de ti que confundisses
faculdade de espírito com modo de acesso ao
conhecimento. Da distinção adviria ainda outra
acepção da palavra. Só acresceria às outras duas.
Mas esse assunto fica para outra disputa.
Recordas-te de que já tentaste fazer
comigo esse exercício, explorando as acepções em
que pode ser tomada a palavra psicologia?
Desde o início desta disputa não te tenho
tentado dizer senão que prefiro a do doudo à tua
razão. Sobretudo porque a dele se chama doudice e
a tua razão. Por isso, ficas amofinado comigo,
porque percebes bem o que te quero dizer. O
doudo fica amofinado porque não tem a certeza.
Não é com o doudo que disputo, é
contigo. Com o doudo haverei de disputar um dia.

Nesta altura já todos dormiam, só eu e o


Damião resistíamos junto ao fogo. Ele levantou-se,
pousou-me as mãos sobre as espáduas,
amigavelmente, e foi deitar-se no seu canto. Antes
de adormecer ainda lhe disse:

- Um dia, ainda me hás de contar a


história da tua vida. Que mal te terão feito, para
teres que ser tão resingão contra tudo?
- Não me fizeram mal nenhum. Que bem
te terão feito, a ti, para teres que ser tão conforme
e resignado com o que pensas ser a razão?... Um
dia, ainda te hei de contar a minha história. Não
penses que poderás extrair dela algo que acresça ao
esclarecimento de qualquer das acepções em que
tomas a razão.

No dia seguinte, quando acordámos e


depois de reconfortarmos o bandulho, o Damião
proclamou com ar grave:

- Fica concluída a nossa disputa, sobre a


razão, ou sobre o que convier que tenha sido. Estão
abertos os jogos florais do ano, que se aproxima a
Primavera. O tema será: A razão é um pau direito,
com os anos se mortefica, bem usada e a preceito,
com o tempo torta fica.

Todos batemos palmas, menos o doudo.

- Queres dizer que fica concluída com a


comédia do títere?
- Não. Quero dizer que ficou concluída
com o que disseste, quando o títere concluíu a sua
comédia.

- Não sei então porque ficaste ainda a


cochichar com o Elmano, durante a noite toda.
Bem vos ouvi.

- Não disputávamos já sobre nada. Ele


queria saber se, afinal, eu concluía ou não que és
doudo.

- E qual foi a conclusão?

- A minha foi que não és. Que doudo é


ele. Que tu gostavas de ser e ele de não ser.

- E tu?

- Eu? Porventura também não sou, mas


tanto se me faz ser, como não ser. Interessa-me
mais estar atento, para saber se tu és, ou não.

- Então.. mas tu já concluíste...


- Só resta saber quando concluirás tu. É só
por isso que continuo a insistir no assunto.

- E quanto a seres cego?

- Quanto a eu ser cego, concluirás tu. De


resto, só por pensares que sou cego, é que te
convenceste que eu concluiria que és doudo.

- A doudice é o contrário da razão. E o


contrário da cegueira?

- Isso é o que tu dizes. Para mim, a


doudice não é o contrário de nada. A tua doudice
acresce à razão. Talvez que a minha cegueira
acresça à tua visão, à tua razão e à tua doudice,
até. Não sei o que seja o contrário de todas as
outras cegueiras, doudices e razões que por aí
andam. Nada tem que ser o contrário de coisa
nenhuma. Mal daquilo, ou daqueles que se
tivessem que definir pelos seus contrários.
Ficariam no pé da razão.

A coisa não ia parar até que o sono os


botasse abaixo. Como e quando e porque razão
teria começado este barulho permanente entre o
doudo e o Damião, este disputar corrosivo sobre
nada e sobre tudo, um jogo obscuro e cheio de
ambiguidades, sem préstimo nem acréscimo de
nada, um novelo que se ia desenrolando mas
voltava sempre ao princípio, que não era em lado
nenhum, porque a ponta por que começavam era a
mesma em que rematavam?
Seria o doudo um outro Damião, apenas
uma acepção, uma forma ou tentativa apenas de o
Damião acrescer algo à sua cegueira, de se
complementar com alguém, fora dele, a quem
pudesse interpelar, mas que poderia saber sempre
como lhe replicaria. A sua consciência, o seu
martírio, a sua paz?
E nós, eu, o títere, o alveitar, seríamos tão
só dados da consciência do Damião, como
perguntava ainda ontem, ou anteontem o Aníbal?
E ficaram naquilo o dia inteiro, enquanto
eu, o Acúrsio e o Perdigão nos entretivémos a
amanhar umas rimas para os jogos próximos.
E já adormeciam quando o doudo disse
ainda:
- Não haveria direito, Damião, que tu
rechaçasses irreversivelmente toda a hipótese de
existir a razão. Não como tu dizes que existe, que é
o mesmo que não existir.
Se ela não existisse, como haveria eu de
me distinguir de vossemecês todos?

O Damião respondeu já a bocejar, ao


mesmo tempo que fechava os olhos, com a voz a
sumir-se pela porta dos sonhos.

- E porque haverias de te distinguir? Não


tens necessidade nenhuma de te distinguir de quem
quer que seja. Nem de ser doudo.
Ficas muito bem assim, com essa cara de
parvo.
Epílogo
- Resta-me tão só alegar que é cega,
porque a vendaram, a mais trivial das humanas
acepções da razão. E ainda a ornaram com uma
balança e uma espada, cujo fiel e gume nem
consegue aferir nem dirigir.
Por isso, pôde ser o eleito objecto das
mais celebradas de todas as paródias. E não a
tomaremos então como o mais imediato sinónimo
de folia?

Rematou passados três dias o títere,


quando o doudo tentou ainda reacender a disputa.
Pronunciou-o no tom empolado e conclusivo com
que o narrador profere a lição derradeira numa
comédia barroca. Pela troca conjurativa de olhares,
pareceu-me que parafraseava um certo testamento
do Damião, sempre mantido em segredo, pois só o
títere o conhecia, para o poder ir revelando assim,
em fraccionárias mas insinuantes citações.

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