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Aníbal
Prólogo
E serve este prólogo para introduzir o
leitor, caso o haja, nos antecedentes e causas
próximas e remotas deste episódio dialogal, para
que possa, caso o entenda, ou deseje, retomar o fio
à meada.
Há não sei já quanto tempo, mas não mais
de três ou quatro anos, tenho a certeza, tudo se
conjugou, quer da parte da natureza, quer da de
nossa disposição, para que pudesse entabular com
o meu velho mestre o Damião das Bróteas,
astrólogo, parapsicólogo, mestre de gramática e do
dizer poético, jocoso, filosófico, matemático-
geométrico, analítico e sintéctico, metafórico e
analógico, cego de sua natureza, ou fingimento, e
sábio de intenção, um intricado diálogo cujo tema
e assunto não chegámos bem a definir, mas que
versou ora sobre a doudice e os doudos, ora sobre a
psicologia e as intervenções clínicas, ou analíticas,
que sobre ela e eles revertem, ora sobre coisa
nenhuma e todas ao mesmo tempo.
Serviu de motus à disputa certo problema,
nunca chegámos a perceber se teórico e
especulativo, se real, apresentado por um nosso
amigo alveitar, o Acúrsio, a quem ensandecera um
cavalo. Mas, na tentativa de a confinar ao seu
objecto próprio, interveio nela também o Aníbal,
doudo com certificado, público e lugar próprio nas
praças de todas as vilas e lugares do Alentejo.
Feliz conjuntura do acaso, ou artimanha do
Damião, nunca o saberemos.
A disputa, que se iniciou, sem que o
programássemos, entre o denso arvoredo e tónica
frescura dos jardins do palácio do Venturoso, em
Évora, foi concluir-se em casa do Damião, num
ermo bucólico banhado pelas águas cristalinas da
lagoa artificial do Maranhão, termo de Aviz, onde
temperámos o prazer e frenesi do coloquear com
todos aqueles que um ambiente pleno de apelos
aos sentidos pode proporcionar a quatro tolos sem
outra ocupação senão a de permanecer
desocupados. Que é, ao fim e ao cabo, toda a
ciência e sabedoria do Damião, que por sua
vontade estenderia a todo o género humano.
O assunto não se concluíu, nem se
consumou sequer em qualquer ideia ou intenção de
consenso ou conjunção, senão a de retomar o
colóquio em ocasião futura, sobre o mesmo tema
ou outro qualquer que conviesse. Para mais,
decorria no fim de uma primavera precocemente
adiantada, que nos convocava para múltiplos
tópicos de uma profunda relação com a natureza,
que nos desconcertou o discurso. Alguns tópicos
emocionais ainda, que irromperam no espaço
ítnimo da relação do Aníbal com o Damião,
fizeram divergir o tema da sua orientação original
e mergulharam-no num caos irracional de
afirmação do mundo penumbrento dos afectos.
E ainda bem que assim foi. Se não fora,
concluíramos sem apelo o mais profícuo dos
assuntos filosóficos, o que em si contém as mais
dinâmicas virtualidades pedagógicas, retirando
significado a que os demais continuassem a
perscrutar, com os instrumentos próprios, o sentido
do devir humano.
PARTE PRIMEIRA
- Ele quem?
- O Damião ao contrário?!
- Não. É mentira.
- Cá está.
O títere adiantou-se.
- É a mesma coisa.
- Tu só estás a desviar...
- Impedes-me a direcção.
- E tu?