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O bom pai sabe, então, que é preciso marcar essas diferenças, é preciso fazer com
que cada pessoa se fabrique como homem ou mulher de acordo com o que aquela
sociedade admite, aceita, valoriza. E preciso ensinar-lhes comportamentos,
atitudes, saberes e gestos de tal modo que ele e ela os aprendam também com o
coração, e de tal modo que, mais tarde, ele e ela continuem seu próprio processo
de formação como homem e como mulher (LOURO, 1995, p. 173)
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E mais uma vez, reconhece a escola como instância privilegiada de reprodução e produção
de novo/as homens e mulheres adequados/as às suas épocas e sociedades. Guacira apesar de
discutir mais amplamente a escola como uma instituição, fala da escola também enquanto espaço
físico e a distribuição do tempo e espaço escolar. Os saberes que integram o currículo também
determinam e legitimam identidades. Informam qual cultura, linguagem, estética serão
representados e valorizados.
O interior da escola torna-se então um importante cenário desta disputa, que se desdobra em
diversos fragmentos do currículo.
Vários outros trabalhos têm enfatizado as instâncias em que se produzem diferenças e
identidades culturais na escola e no currículo, Bujes compartilha com Louro de que as sociedades
atuais são caracterizadas pela “diferença”, atravessadas por divisões e por antagonismos sociais. E
num discurso também influenciado pela leitura de Foucault, apresenta a educação infantil como
um espaço de poder, um lugar onde as crianças se constituem como determinados tipos de sujeito,
onde elas constróem sua identidade. E o currículo se constitui na
explicitação de uma trajetória escolar que, partindo de uma série de
considerações prévias — o que se pretende, a quem se destina, o que ensinar :
como ensinar, de que forma, o que e como avaliar (BUJES, 1999, p.159).
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recorte para se adentrar na escola: os brinquedos. Considerando que estes, como artefatos
culturais, estão diretamente relacionados aos novos modos de ser e estar no mundo nos
emprestaram as ferramentas para a pesquisa realizada. “Quais as identidades sociais que os
brinquedos legitimam? De que forma eles são produzidos, veiculados e consumidos? Quais as
concepções de gênero que produzem/reforçam?” (Felipe, 1999, p.169). Enfantizando a sua
destinação quanto ao gênero, apontam uma clara distinção entre brinquedos de meninos e
meninas, uma diferença que pode ser percebida não apenas na disposição em que são colocados
nas prateleiras das lojas, a própria embalagem, que já direciona a que público se destina e também
a distribuição espacial destes brinquedos. É comum que brinquedos como jogos educativos, que
despertam o raciocínio e a competição estejam dispostos “no lado dos meninos”. O lado “rosa” é,
na maioria das vezes, uma réplica do mundo doméstico.
A aparente inocência do brinquedo contribui para (re)produção de identidades sociais,
ensinando as crianças sobre os modos de ser homem ou mulher, e seguem construindo um discurso
que determina um comportamento, uma forma de ser, naturalizando assim, atributos já instituídos,
e “quase” universais na determinação do feminino, masculino, homem e mulher. A maioria destes
elementos refletem o androcentrismo a que estamos submetidos e são “quase” despercebidos em
razão de que nos parece “familiar” e “natural” e por isso passamos a considerá-los como universal
e eterno, isto é, eles não surpreendem, nem deixam espaço para a possibilidade de transformação.
Esta “quase” indiferença no tratamento da desigualdade de gênero e opressão sexual, que
parecem organizar o campo sexual, facilita a assimilação destes como fatores imutáveis da
natureza, artefatos da história.
A coragem física não será somente útil em si mesma. mas servir, um dia, de base à
coragem moral e espiritual. Um menino medroso de corpo não resistirá às
incitações de um camarada pervertido ao passo que um menino corajoso não
hesitará em resistir-lhes. Quantos adultos não têm coragem alguma para afirmar
suas opiniões pela única razão de não possuírem coragem física (VIOLLET Apud
FELIPE, 2000, p. 122).
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intenção de tomar-lhe a caixa de peças de dominó. O menino reagiu enfaticamente, defendeu sua
caixa debruçando-se sobre ela, armou um soco e, com os pés, mostrou disposição de
enfrentamento. Diante da reação, o confronto terminou rapidamente e o ameaçado continuou com
a brincadeira.
Na terceira situação observada, o menino que, através do conflito relatado anteriormente,
teria adquirido o direito de usar dois bancos, então foi ameaçado por uma menina que manifestou a
intenção de ocupar um dos bancos. O menino permaneceu deitado sobre um dos bancos e com os
pés defendeu o outro, que entendia ser também seu território. A menina não desistiu, inicialmente,
permaneceu sentada no que restou do banco com sua boneca, mas, tendo ficado muito encolhida,
logo se deu por vencida.
Nestas situações conflituosas, os corpos e expressões de meninos e meninas dizem
também de diferenças. Enquanto o menino armou um soco fechando a mão e erguendo o braço, a
menina buscou auxílio com o olhar, como se necessitasse proteção ou autorização para reagir.
No olhar da menina pedindo auxílio encontramos, talvez, um desejo aguardando
autorização para agir, para “se transformar num menino” e responder ao insulto. Auxílio ou
autorização para responder, as duas alternativas nos conduzem para um mesmo lugar, à lógica da
violência simbólica.
Em vários outros episódios, os meninos arrancavam das mãos das meninas os brinquedos
que desejavam, mesmo que os abandonassem logo a seguir. Virilidade e agressividade como
expressão de defesa da honra masculina são, para Bourdieu (1999) atributos inscritos no habitus
masculino e sua naturalização talvez justifique a não intervenção da professora, uma vez que se
constituem em pequenos incidentes, aparentemente sem relevância. Pollack (1999) discute a
construção social de atributos masculinos, ressaltando a coragem como elemento central na
imposição de uma forma hegemonicamente reconhecida de ser homem. Este autor constrói o que
denomina código dos meninos que seriam regras de condutas, jamais escritas, mas inscritas e
impostas à construção de uma masculinidade ocidental. Poderíamos, então, dizer de um habitus
masculino marcado pela coragem.
Outro espaço educativo e lúdico bastante frutífero para nossa observação das relações de
gênero na escola foi o parque situado no pátio. Entre os escorregadores, o labirinto, os cavalos de
madeira, muitas brincadeiras aconteceram. Crianças de outras faixas etárias se misturaram em
inúmeros movimentos significativos.
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Este espaço fora muito mais recortado por grupos específicos de crianças e
diferentemente explorado por cada um. Durante um período importante do tempo, o tanque de
areia, onde ficam os brinquedos, foi tomado quase exclusivamente pelos meninos, que pulavam,
empurravam, jogavam areia, choravam e riam. Muitos risos e agitação marcavam este cenário.
Um grupo de meninos, formado por doze integrantes, subia no escorregador pelo lado
oposto, cobrindo-o de areia e provocando muitos incidentes. Desafiavam o perigo. Todas as
crianças brigavam por espaço na areia, para serem os primeiros, para ocupar o lugar dos outros.
Daí, várias desavenças marcadas por empurrões, chutes, um e outro tapa, que apenas eram levados
ao conhecimento da professora quando as vítimas se machucavam. Observamos uma situação em
que o atrito terminou com um dos meninos jogando areia nos olhos de outro. A intervenção da
professora foi suficiente para reorganizar o direito de cada um ao espaço, mas, como se pode
perceber, são episódios escolares vasta e exaustivamente conhecidos, quase na cultura ocidental
inteira, como episódios de meninos machos. Aqui retornamos ao estudo de Pollack:
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de montar do tipo lego encontrados na loja (foto 2), supostamente semelhantes porém com
temáticas distintas.
Foto 2
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Identidades estas forjadas nas brincadeiras, visto que as muitas manifestações de força
física, embates, confrontos dos meninos marcaram a pesquisa e tornaram possível identificar
um habitus. Deparamo-nos com a força deste habitus confirmada a partir da aceitação
unânime das professoras com relação aos comportamentos de transgressão dos meninos. Tais
“desvios” se manifestaram desde o arrancar dos brinquedos das mãos das meninas, passando
pelo não atendimento ao chamado para arrumar as salas até a aparente indisciplina nos
momentos das atividades e o uso do tanque de areia conforme discutimos anteriormente.
Percebemos que a violação às normas é tratada de forma diferente quando se refere aos
meninos ou as meninas – baseado na crença de “um temperamento inato”[4] diferente entre
os sexos.
As brincadeiras dos meninos consolidam características como competição, iniciativa,
coragem, força. Atributos necessários ao desempenho no mundo público, e especialmente ao
mundo do trabalho numa sociedade capitalista.
Em um dado momento da pesquisa, uma das professoras chamou nossa atenção para um
“menino diferente”. Entre quatro meninas, o menino corria no pátio sem perceber que era
observado. Mas assim que percebeu a filmadora parou à sua frente e iniciou uma série de
movimentos, enquanto o restante do grupo foi alertado para a existência da câmera. O menino, nas
pontas dos pés, simulou passos de balet clássico. Delicado nos movimentos e expressões faciais,
não hesitou em demonstrar força na disputa com uma menina pelo melhor espaço na frente da
máquina. Foi identificado como o protagonista de uma história relatada pela professora sobre um
menino que se vestia com saias na brinquedoteca, para brincar de casinha. O relato trazia um tom
de estranhamento e algo de acusatório. Seria a questão da sexualidade pré-estabelecida
problemática também para os agentes escolares ? O detalhe da sua vestimenta chamou bastante a
atenção, a sunga de banho na cor rosa. Haveria no ar medo da homossexualidade, vigilância sobre
os meninos diferentes?
Em outro ponto do espaço, mais afastado do centro do pátio, entre latões vazios e uma
cerca de madeira, encontramos uma menina em meio a um grupo de meninos. Vestida de short
demonstrava habilidades semelhantes às dos meninos com quem brincava. Agrupados em um
bloco pareciam brincar de polícia e ladrão. O cárcere era constituído por um espaço delimitado por
cerca e se alternavam na fiscalização do prisioneiro. A menina participou de todas as etapas da
brincadeira, sem aparente diferenciação. Durante a fuga do prisioneiro, que aconteceu no
momento em que a menina fiscalizava, todos empenharam-se em recuperá-lo, sem resultado
positivo, mas também não responsabilizando a menina pelo episódio. A brincadeira terminou aí
com a dispersão do grupo. A harmonia deste grupo despertou nosso interesse, essa menina em
meio aos meninos era a mesma que iniciara o ano fantasiada de Batman.
As duas crianças estavam supostamente “fora de seus lugares”, o menino de rosa e a
menina de short, no entanto apenas o menino foi apontado pela professora. Haveria maior
flexibilidade para as mulheres nas fronteiras do gênero?
Em mais duas ocasiões estivemos sala de aula do primeiro período, ambas resultantes da
ausência das professoras regentes, que foram substituídas pela coordenadora da pré-escola. Na
primeira acompanhamos as atividades de modelagem com massa plástica. Cobras, pirulitos,
carrinhos incompletos, bonecos desajeitados, bolinhas de variados tamanhos e cores ocupavam
espaço nas mesinhas. Das crianças, muitos dedinhos agitados expressavam preocupação em
modelar, em dar formas e nomes para os objetos. Alguns alunos realizavam as atividades solitários,
outros partilhavam a mesma invenção e alguns poucos compartilhavam o mesmo material com
intenções diferentes.
Após a atividade realizada com massa de modelar, todas as crianças foram convidadas a
organizar o material e limpar as mesas. Todos guardaram os materiais utilizados nos locais
adequados e, embora o chamado para a limpeza tivesse sido para todos, uma menina se adiantou a
um menino e, empurrando sua mão, disse sem titubear: faço melhor do que você. O menino olhou
aliviado e afastou-se da tarefa, que a pequena realizou, de fato, com destreza.
A corporificação desses atributos pode ser verificada se relacionarmos com o
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Foto 7
O salão de beleza minuciosamente reproduzido, familiariza e
institui uma necessidade. Um mundo eminentemente cor-de-rosa
desenhado para uma boneca magra, esguia e branca de olhos azuis –
semelhantes às fadas e princesas nas numerosas histórias infantis - que
constituem para as meninas o modelo a ser atingido.
A preocupação exacerbada com a aparência das meninas,
identificada na pesquisa e todo um conjunto de brinquedos que
despertam a necessidade de “ser e parecer” bonita. Uma beleza
atrelada a padrões socialmente aceitos como válidos. Um belo que
exclui as negras e nos faz retornar ao episódio da bruxa. A bruxa é o
contraponto do modelo hegemônico de beleza, assim como a menina
negra identificada na pesquisa.
As bonecas destinadas a essas brincadeiras – e que
diferem das bonecas-bebês – são bonecas-mulheres que determinam, padronizam uma única forma
de beleza, esguias, brancas, loiras. Modelos de beleza em que se exclui as negras, gordas, baixas e,
portanto, consideradas feias e reafirmam a necessidade de agradar ao outro, de despertar o desejo
do outro, deslocam a mulher para um conhecido lugar: a constituição da mulher como objeto de
troca. A beleza adquire assim status de definidora de feminilidade.
A dominação masculina, componente da violência simbólica, mantém assim, seus
alicerces solidamente edificados sobre o terreno das trocas simbólicas onde a mulher permanece
atada à condição de objeto.
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[1] Mestre em Educação, Docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia e do
Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de Uberaba.
[2] Cf. LOURO, Guacira Lopes (1995a). Educação e gênero: a escola e a produção do feminino e masculino.
[3] As fotos deste trabalho integram a dissertação e foram produzidas por Gilson Goulart Carrijo.
[4] Aqui percebemos a atualidade do estudo de Margareth Mead.
[5] Programa apresentado por Luciano Huck aos sábados na rede Globo de Televisão.
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