[O humanismo italiano resgata sobretudo o pensamento da Grécia clá ssica e da Roma
republicana. Introduzem estes elementos em um contexto medieval cristã o profundamente
cristã o. Este pensamento se desenvolve, sobretudo, em grandes cidades europeias – potência militares e econô micas. Aqui, a preocupaçã o é com a repú blica, nã o com a democracia, pois um dos principais referencias era Aristó teles, em cuja teoria a democracia era uma teoria instá vel. Estas cidades conseguem alcançar uma grande independência através de negociaçõ es com monarcas e papado, chegando pró ximo a uma noçã o de autogoverno. Virtude cívica e patriotismo das cidades. Com o surgimento do Estado absoluto, os republicanos aparecem como opositores. Esse processo de concentraçã o de poder como forma de dominaçã o territorial era o que marcava este período histó rico, principalmente em torno do séc. XIV. A virtude é o eixo central. A ú nica forma de combater a corrupçã o. Participaçã o política como elemento essencial. O espaço da vida pú blica é o central. Um espaço de construçã o onde a açã o dos cidadã os é fundamental. O mais elevado da condiçã o humana. Daí a importâ ncia da retó rica. Lugar pú blico como lugar do discurso e da açã o (como cidadã o).] BIGNOTTO, Newton. Humanismo cívico hoje. In: Pensar a República. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 49-69.
A ideia de contemplaçã o marcou a Idade Média, como consequência da difusã o da distinçã o
agostiniana entre Cidade de Deus e Cidade dos Homens. O homem optaria entre uma vida contemplativa e uma vida ativa. – 50 – O humanismo italiano seria uma forma de sair deste marco e olhar para um pensamento greco-romano que propunha algo distinto. Daí uma visã o tradicional de que seria mera repetiçã o de um estilo ou pensamento anteriores, mas, na verdade, podemos identificar ali uma “recuperaçã o, com auxílio dos textos da antiguidade clá ssica, da importâ ncia da vida ativa”- 51 – Recupera-se “espaço da vida pú blica [como] o local privilegiado da manifestaçã o cios valores mais elevados da condiçã o humana” e “o valor dos discursos para a vida pú blica.” – 52 – Discursos, e suas manifestaçõ es através de panfletos e folhetins, como parte da disputa política. O humanismo passou a dar ênfase ao homem como parte ativa na produçã o da histó ria – “acontecimentos do ponto de vista da açã o voluntá ria dos homens”. Nisto, a histó ria das cidades ocupa um papel central, pois nã o se trata mais de tomar a origem divina como fundamento ú ltimo da lei, mas entender como os homens criam e conservam as cidades. – 53 O humanismo italiano é recuperado por duas principais grandes tradiçõ es: federalismo americano e inglês; e jacobinismo francês. – 54 – No primeiro caso, estudos do pensamento federalista estadunidense e do republicanismo inglês tentaram entender seus vínculos menos com o liberalismo, que havia dominado sua compreensã o, e mais com o humanismo italiano. Noçã o de res publica romana, em oposiçã o à res privata, aproximada da de naçã o americana. A visã o de que os EUA teria se constituído unicamente a partir do liberalismo individualista a la Hobbes e Locke seria equivocada ao negar este elo e o papel que conceitos republicanos cumpriram no surgimento dos EUA, como bem pú blico – 55 – e o resgate e valorizaçã o das “chamadas virtudes cívicas”. Um exemplo é a noçã o de liberdade e sua relaçã o com os valores da cidade – 56 -, pois, valendo-se de Maquiavel, “nã o há liberdade que nã o possa se exercer numa arena povoada e reconhecida como legítima pelos participantes de uma comunidade. Nesse contexto, a resposta ao problema do melhor regime possível aporta uma resposta também à questã o da definiçã o ela liberdade. Esse vínculo estreito entre forma de governo e liberdade é que teria se perdido nas versõ es liberais sobre a condiçã o do homem livre.” Liberdade como algo que se dá dentro de certo regime político e nã o um elemento separado. – 57 “Os humanistas cívicos faziam da questã o da origem um tema fundamental, mas apelavam para os vínculos do passado como garantia contra os perigos enfrentados pela cidade. Assim, a continuidade – 58 - era de cará ter histó rico, mas trazia embutida a ideia de que uma certa essência se mantinha inalterada com o passar do tempo, servindo como uma fonte a partir da qual era possível reconstituir os valores iniciais.” “acentuar o cará ter puramente humano cios regimes e ele suas estruturas e, assim, conceder uma importâ ncia capital para o papel humano na criaçã o das diversas organizaçõ es políticas. É justamente esse apelo à noçã o de criaçã o que nos parece poder ser recuperado com nossos autores.” Isso nos coloca o problema da fundaçã o e da identidade dos regimes políticos. – 59 – (...) – 60 – O que pode nos ser especialmente ú til para pensarmos o “problema da fundaçã o humana” “regimes que nã o conheceram grandes momentos inaugurais. É possível, nesse sentido, aproveitar a experiência teó rica de pensadores que colocaram essa questã o em uma sociedade atravessada por conflitos e pouco segura de seu destino”, deixando um pouco de lado a noçã o de ruptura que possui papel tã o central no pensamento do séc. XIX, em especial na França. – 61 Na França, isto aparece com força na Terceira Repú blica: “a fundaçã o para os homens da Terceira Repú blica francesa passava pelo resgate do passado e nã o por sua negaçã o.” Também destacavam a importâ ncia da educaçã o e seu potencial libertador: “conectar a questã o da igualdade pela via da educaçã o - elemento ausente nos humanistas cívicos, mas resgatado pelos republicanos franceses -. com a necessidade de formulaçã o de um conjunto de valores que servem para nossas vidas na cidade.” – 62 – (...) – 63 “O conceito que eles mantiveram vivo, e que pode ser transposto como problema para o nosso tempo, foi o de bem pú blico, o de bem comum. Podemos sintetizar essa escolha respondendo a uma questã o típica da época: entre o interesse privado e o bem comum deve-se escolher o bem comum, pois dessa maneira se estará escolhendo o bem maior para o pró prio indivíduo.” Isto nã o implica que é fá cil delimitar o que é o bem comum, mas nos coloca esta problemá tica. Tampouco a ideia de melhor para todos como soma dos interesses particulares é de mais fá cil densificaçã o. [Pouco claro porque escolher o bem comum é escolher o bem maior para o indivíduo.] “fato de que o elogio da retó rica implica na verdade o reconhecimento nã o só da existência, mas a aceitaçã o da superioridade da esfera pú blica sobre a esfera privada”, dando mais valor – daí sua conotaçã o mais moral do que propriamente política – ao homem que participa do debate pú blico. Este elogio do espaço pú blico, por outro lado, cria o medo expresso pelos liberais de captura do espaço pú blico pelos regimes totalitá rios e seu “apelo abstrato ao bem pú blico e pela defesa da comunidade contra o indivíduo.” – 64 – Entretanto este medo se dá por uma apropriaçã o que des-historiciza o debate do republicanismo, no qual a questã o do debate pú blico e do bem comum nã o pode ser desvinculada da garantia da liberdade. Só faz sentido a prevalência daqueles em um ambiente onde se é livre para atuar na esfera pú blica: “uma concepçã o ativa da liberdade, que nã o nos conduz necessariamente nem ao despotismo das massas, nem à ilusã o das grandes rupturas. Podemos estar aderindo aqui a uma concepçã o do melhor regime como aquele que maior espaço concede aos seus cidadã os para agir”. Ainda assim, duas objeçõ es se mantém pertinentes. Primeiro, o humanismo, ao levar em conta adequadamente necessidades e interesses, pode ser nã o ser de valia “como instrumento analítico, nem como ferramenta política eficaz.” – 65 – Segundo, há um certo descompasso entre o modelo republicano e o que vemos nas democracias contemporâ neas, o que pode prejudicar seu uso como instrumento de leitura efetivo. Por exemplo, a noçã o de educaçã o como libertaçã o, central no humanismo, se mostrou falha e a estrutura legal das democracias liberais “se mostrou muito mais eficaz para garantir os direitos e as liberdades dos cidadã os do que os regimes resultantes de ideologias, que arbitrariamente recorreram à ideia de bem pú blico.” “O primeiro conjunto de objeçõ es nos alerta contra qualquer tentativa de se constituir um pensamento político republicano que tenha a pretensã o de se erigir em teoria global das sociedades.” O que podemos sim usar é a “maneira que eles foram capazes de se apropriar do passado para pensar o presente, esse é o ú nico caminho que julgamos pertinente para justificar o retorno ao humanismo.” – 66 – Quanto ao segundo, nã o se trata de querer restaurar um modelo passado, mas entender que o republicanismo “encontra terreno fértil para se desenvolver na afirmaçã o de uma liberdade positiva, numa compreensã o da capacidade de agir na esfera pú blica”. “Nã o é uma volta ao mito da ruptura com o passado, mas, ao contrá rio, o retorno ao passado com olhos voltados para um futuro imaginado melhor e construído pelas mã os do homem e nã o por uma suposta necessidade das forças – 67 - econô micas ou um determinismo obscuro gestado no puro confronto dos interesses particulares, que torna razoá vel, a nosso ver, o recurso ao humanismo cívico no contexto atual.” - 68