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(Mattoso Câmara)
Também este termo tem sido uma ou outra vez criticado. Há quem não
admita o termo, porque a forma que é tomada de outra língua não é devolvida para que
se possa dizer que foi emprestada; seria o caso de sugerir-lhes que empreguem então a
locução - "empréstimo com calote lingüístico".
Hoje há lingüistas que acham que o empréstimo pode se dar da maneira mais
ampla e irrestrita possível. Entretanto, se fizermos para o estudo do empréstimo a
mesma divisão em planos que fizemos para a evolução, vamos verificar o seguinte: o
empréstimo se dá de maneira ampla, de maneira que podemos considerar irrestrita,
apenas nos conjuntos de formas a que chamamos vocábulos, ou melhor, nas formas
livres de Bloomfield. Portanto, no plano lexical. E ainda aqui há um núcleo de
vocábulos que tende a se manter prolongadamente sem substituição por outro de outra
língua - os chamados vocábulos não-culturais (ou "nucleares") por não serem
específicos de determinada cultura mas, ao contrário, corresponderem a conceitos
comuns a praticamente todas as culturas (certos nomes para fatos da natureza, para
partes do corpo humano, para atividades elementares, como "terra" "árvore" "pedra"
"mão" "cabeça" "pé" "andar" "comer", "dormir" e assim por diante).
É o que pode ser exemplificado com uma língua indígena brasileira, o WAI-
WAI, estudado por Neill Hawkins (inédito). Aí a palavra portuguesa camisa foi adotada
no sentido de "tanga". Naturalmente, de início, os WAI-WAI não usavam nem tanga e
esta veio como um resultado da aculturação. Adotando-a deram-lhe o nome português
para "camisa", a que associaram a sua nova indumentária. Mas a palavra assim tomada
de empréstimo não é literalmente camisa /ka'miza/ em WAI-WAI. Em primeiro lugar, o
som /x/ foi substituído pelo som surdo hormogânico /s/, porque à língua indígena faltam
consoantes sonoras. Em segundo lugar, a palavra aparece sempre com um prefixo
possessivo, porque em WAI-WAI os pertences de uma pessoa, bem como as partes do
corpo, têm que vir precedidos de uma partícula de posse prefixada: "minha camisa",
"tua camisa", "sua camisa", nunca "camisa" isoladamente. Em terceiro lugar, essa
palavra camisa, tendo que ser usada com prefixo possessivo entra na classe geral dos
substantivos "inalienáveis", que se caracteriza pela nasalação da vogal final de que
decorre a presença obrigatória do prefixo. Por tudo isso, a palavra em WAI-WAI é
/akami'sã/ correspondendo a "minha camisa", e, como em WAI-WAI os substantivos
são sujeitos à idéia de tempo (o que - diga-se de passagem - se expressa
esporadicamente em português pelo prefixo ex-, para indicar o que já não serve na
função designada - ex-diretor, ex-esposa etc.) de maneira sistemática, ao lado de
/ahami'sã/ aparece /akami'sãtho/ (uma tanga toda rasgada, que já não pode ser usada, por
exemplo). Vemos assim toda a estrutura formal e conceptual do WAI-WAI envolver o
empréstimo português, e até com uma adaptação fonética, quer na acentuação oxítona,
quer na substituição de /x/ por /s/.