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ÂMBITO DE VALIDADE ESPACIAL DA LEI PENAL

António da Costa Leão

Sumário: Introdução: a. Direito Penal Internacional e Direito Internacional Penal; b.


Delimitação do estudo. I. As regras de aplicação espacial da lei penal (Direito Penal
Internacional). 1. O princípio da territorialidade da aplicação da lei penal moçambicana; 1.1.
Justificação e conteúdo; 1.2. Delimitação do território moçambicano para efeitos de aplicação
da lei penal; 1.3. A determinação do lugar da prática do facto (locus ou sedes delicti); 1.4.
Alguns problemas particulares. 2. Os outros princípios complementares; 2.1. O princípio da
defesa dos interesses nacionais; 2.2. Princípio da universalidade da aplicação da lei penal
moçambicana; 2.3. O princípio da nacionalidade; 2.3.1. O princípio da nacionalidade activa;
2.3.2. A ausência do princípio da nacionalidade passiva. 3. Restrições à aplicação da lei penal
moçambicana; 3.1. O mandato de aplicação do Direito estrangeiro mais favorável (art.º 5/7 do
CP); 3.2. A aplicabilidade da lei penal moçambicana e o princípio non bis in idem. A subsistência
de um sistema de aplicação da lei penal no espaço lacunar. 5. O problema do valor das
sentenças estrangeiras. II. A extradição. 1. O regime da extradição. 2. Natureza da extradição.
3. Fundamento e limites da extradição. 4. Casos em que não é permitida a extradição. 5.
Outras normas relevantes do regime legal da extradição
Bibliografia essencial: AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO: Direito Penal. Parte Geral, 2.ª
Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 208-237; JORGE DE FIGUEIREDO DIAS: Direito Penal.
Parte Geral. Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 207-232; MARIA FERNANDA
PALMA: Direito Penal, Parte Geral; AAFDL, Lisboa, 1994.
Bibliografia complementar: M. CHERIF BASSIOUNI: Introduction au Droit Pénal
International, Bruylant, Bruxelles, 2002 ; TERESA PIZARRO BELEZA: Direito Penal, 1.º vol., 2.ª
edição, AAFDL, Lisboa, pp. 476-505; EDUARDO CORREIA: Direito Criminal, vol. I, Reimpressão,
Almedina, Coimbra, 1997, pp. 164-189; HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de
Derecho Penal. Parte General, Editorial Comares, Granada, 2002, pp. 171-201; MARIA FERNANDA
PALMA: Direito Penal, Parte Geral, AAFDL; Lisboa, 1994; “Tribunal Penal Internacional e
Constituição Penal”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 11, Fasc. 1.º, Jan.-Mar.
2001, pp. 7 ss; ANTÓNIO FURTADO DOS SANTOS: Direito Internacional Penal e Direito Penal
Internacional – Aplicação da lei penal estrangeira pelo juiz nacional, Separata do Boletim do
Ministério da Justiça, n.º 92, Janeiro de 1960, pp. 167-168; GERMANO MARQUES DA SILVA: Direito
Penal Português, Parte Geral, Vol. I, 1.ª edição (reimpressão), Editorial Verbo, Lisboa/S. Paulo,
1999, pp. 134-138 e 236-241.
Legislação de consulta: Lei n.º 17/2011, de 10 de Agosto – Lei da Extradição (LE)

1
Introdução

A íntima associação entre o Direito Penal e os valores essenciais da vida em


sociedade implica uma tendencial universalidade no espaço da tutela penal. A
necessária legitimação do poder punitivo no Estado de Direito Democrático e de
justiça impõe uma subordinação do Direito Penal à dignidade da pessoa humana, de
modo que um Direito Penal “nacionalista” é incompatível com a própria ideia de
Direito e de Justiça em que assenta tal concepção de Estado1.
A necessidade de coexistência espacial de diversas ordens jurídicas é, no
entanto, uma limitação natural a um desenvolvimento absoluto dos princípios, de
modo que no Direito Penal de um Estado, a territorialidade tende a ser o critério geral
da validade espacial da lei penal, condicionando esta apetência do Direito Penal para a
universalidade.
Por outro lado, a relação do Estado com os seus nacionais e com os interesses
nacionais amplia a validade espacial da lei penal para além dos limites do território,
segundo uma lógica ainda não universalista.
Mas, num âmbito que aumenta progressivamente, o Direito Penal de um
Estado protege valores universais para além dos limites do território e dos vínculos
nacionais, cooperando com outras ordens jurídicas e intervindo onde os critérios de
validade espacial de outras ordens jurídicas não permitem uma tutela eficaz de certos
bens jurídicos. Tal natureza universal da lei penal é o embrião de um Direito
Internacional Penal, que se distingue do chamado Direito Penal Internacional, que
corresponde ao âmbito de validade especial do Direito Penal fora do território do
Estado. Há aqui que distinguir, efectivamente, entre Direito Internacional Penal e
Direito Penal Internacional.

1
MARIA FERNANDA PALMA: Direito Penal, Parte Geral, AAFDL; Lisboa, 1994.

2
a. Direito Penal Internacional e Direito Internacional Penal

E a distinção é esta: há um Direito Internacional Penal – enquanto conjunto de


normas que impõem aos Estados um dever jurídico de criar, ou não criar certas
normas internas de Direito Penal; e um Direito Penal Internacional – agora um
conjunto de regras do direito nacional sobre a aplicação da lei penal no espaço, sendo,
por isso, parte integrante do direito interno2.
No primeiro caso, a Política Criminal Internacional tem assentado, basicamente,
em quatro factores: (a) a protecção de interesses internacionais relativos à
salvaguarda da paz e da segurança internacionais; (b) a protecção de valores comuns
da sociedade internacional, cuja violação seja considerada como insuportável em face
da consciência humana; (c) a protecção de interesses e valores de mais do que um
Estado, cujo dano revista uma natureza transnacional; e finalmente (d) aqueles casos
em que pese embora o facto de conduta incriminada não interferir com os valores em
causa nas hipóteses (a) e (b), se torna indispensável, para a salvaguarda de um
interesse internacional protegido, que para a sua prevenção e repressão, a
incriminação revista um carácter internacional3.
As normas de Direito Internacional Penal convencional fazem parte do Direito
Penal dos Estados-parte nessas convenções, e fundam-se, assim, nos deveres
assumidos por estes na repressão de um determinado tipo de crimes na sua ordem
penal interna4. O seu sistema de aplicação consiste, neste caso, no chamado “sistema

2
Cfr., na doutrina comparada, M. CHERIF BASSIOUNI: Introduction au Droit Pénal International, Bruylant,
Bruxelles, 2002, pp. 18-19, que parte de uma diferente conceitualização relativamente ao Direito Penal
Internacional. Para este autor o Direito Penal Internacional abrange tanto «as questões penais e
processuais relativas ao direito internacional», como «as questões de direito e de processo
internacionais relativas ao direito penal interno».
3
Para a identificação de um crime de Direito Internacional Penal convencional, BASSIOUNI elenca um
conjunto de critérios definidores, dos quais relevam para o caso em análise: (a) o reconhecimento explicito
de que a conduta proibida constitui um crime de direito internacional, um crime em virtude do direito
internacional ou um crime internacional; (b) o reconhecimento implícito do carácter penal da norma pela
imposição de um dever de adopção de regras mínimas quanto aos elementos constitutivos da infracção
penal – M. CHERIF BASSIOUNI: Introduction au Droit Pénal International, pp. 61-62. Quanto às Convenções
aplicáveis, v. pp. 143 ss.
4
De perseguir criminalmente os infractores, de os julgar e, eventualmente, punir, caso venham a ser
considerados culpados, de os extraditar quando são procurados ou acusados noutros países, ou de
fornecer a necessária cooperação judiciária aos Estados requerentes – M. CHERIF BASSIOUNI: Introduction
au Droit Pénal International, pp. 59 e 169 ss.

3
de aplicação indirecta”5. É essa, portanto, a característica que legitima a intervenção
penal em situações em que não há qualquer elemento de conexão, seja com o crime,
seja com o agente do crime6.

b. Delimitação do estudo

Cabe-nos, aqui, tratar apenas do chamado Direito Penal Internacional


moçambicano actual, i.e., das disposições jurídico-penais moçambicanas sobre a
aplicabilidade, no espaço, da nossa lei penal, e sobre a cooperação judiciária
internacional penal das autoridades moçambicanas com as estrangeiras.

I. As regras de aplicação espacial da lei penal (Direito Penal Internacional)

A conformação do sistema estadual de aplicação da lei no espaço baseia-se em


diversos princípios e num certo modelo da sua combinação. Estes princípios não
assumem, todos eles, igual hierarquia, por isso se fala, em regra, num princípio base, e
em princípios acessórios ou complementares. Neste aspecto, o Direito Penal
Internacional moçambicano traduz-se, no essencial, às disposições constantes dos
art.ºs 4 a 6 do CP7. Estas disposições traduzem-se na consagração de um princípio
geral (ou princípio base, ou fundamental, consoante os autores), e de um conjunto de
princípios acessórios ou complementares.
O princípio geral do sistema moçambicano é o princípio da territorialidade,
segundo o qual o Estado aplica o seu Direito Penal a todos os factos penalmente
relevantes que tenham ocorrido no seu território, indiferentemente de por quem, ou
contra quem, tenham sido cometidos (art.º 4 do CP). A este princípio acrescem,

5
A generalidade das convenções nesta matéria, assentam num sistema de «aplicação indirecta»,
fundado no pressuposto de que cada Estado-parte nessa convenção de Direito Internacional Penal
aplicará essas disposições através do seu Direito Penal interno e cooperará na perseguição dos
criminosos. Sobre este ponto, v. M. CHERIF BASSIOUNI: Introduction au Droit Pénal International, passim,
v.g., p. 59.
6
MARIA FERNANDA PALMA: «Tribunal Penal Internacional e Constituição Penal», p. 10.
7
E ao art.º 4/3 da Lei n.º 14/2013, de 12 de Agosto, relativamente ao crime conexo, em matéria de
branqueamento de capitais. Para o Direito ainda vigente veja-se o art.º 56 do CP/2014 – que são, no
essencial, as mesmas que constavam do art.º 53 do CP de 1886

4
depois, como princípios subsidiários ou complementares, relativamente a crimes
cometidos no estrangeiro, os princípios da defesa dos interesses nacionais, da
universalidade, e da nacionalidade (art.º 5 do CP).

1. O princípio da territorialidade da aplicação da lei penal moçambicana

A generalidade dos sistemas legislativos penais dos nossos dias assume como
princípio basilar da aplicação da sua lei penal no espaço, o princípio da territorialidade.
É esta, como disse já, a posição do Direito Penal em vigor em Moçambique.

1.1. Justificação e conteúdo

Pode afirmar-se que nesta preferência convergem razões de índole interna, e


razões de índole externa. Por um lado, razões próprias de Direito Penal e de Política
Criminal: (1) é na sede do delito (território do Estado, onde foi praticado o crime) que
mais se fazem sentir as necessidades de punição e de cumprimento das suas
finalidades, seja de prevenção geral positiva de pacificação social e de reafirmação da
ordem jurídico-penal e da importância dos bens jurídicos por esta protegidos, seja de
prevenção geral negativa de dissuasão dos potenciais infractores. Com efeito, se um
chinês pratica um crime grave em Moçambique, é aqui, e não na China, que haverá o
"alarme social" e que se toma necessário "advertir" os potenciais infractores; (2) é, por
isso, o lugar onde existem mais expectativas de uma decisão judicial justa.
Por outro lado, (3) por uma questão processual, pragmática: é no território,
onde o crime foi praticado, que a investigação e a prova do crime é mais fácil de
realizar-se e, portanto, são maiores as garantias de uma decisão eficaz e justa. Por
outro lado ainda, por razões de Direito Internacional e de política estadual: (4) é a via
que facilitará em maior medida a harmonia internacional, no respeito pela não
ingerência em assuntos de um Estado estrangeiro8.
Á luz deste princípio, aplica-se a lei penal moçambicana, aos crimes cometidos
no território nacional, seja qual for a nacionalidade do agente e salvo convenção

8
JFD: I, 196-197.

5
internacional, ou acordo no domínio da cooperação judiciária em contrário (alínea a)
do art.º 4 do CP).
Para uma melhor delimitação do sentido e do alcance desta norma, impõe-se
desde logo clarificar, (1) o que se entende por território moçambicano; e (2) o que se
considera praticar um facto em território moçambicano.

1.2. Delimitação do território moçambicano para efeitos de aplicação da lei penal

O território moçambicano é o espaço definido como tal pela Constituição (art.º


6 da CRM) e pela Lei n.º 4/96, de 4 de Janeiro (Lei do Mar), que inclui, para além do
espaço terrestre, o seu território marítimo com poderes soberanos e exclusivos9, e o
seu espaço aéreo10. Consideram-se, por isso praticados em Moçambique, para além
dos crimes praticados em terra firme, os crimes praticados a bordo de embarcações
estrangeiras, de propriedade privada, que se encontrem na zona marítima nacional; ou
a bordo de aeronaves de propriedade privada que se encontrem dentro do espaço
aéreo moçambicano.
Considera-se ainda território moçambicano, agora nos termos da alínea b) do
art.º 4 do CP – uma extensão do princípio da territorialidade – quando o crime, ou
qualquer um dos seus elementos, tiver sido cometido, a bordo de navio ou aeronave
moçambicana, i.e., “matriculado em Moçambique”, independentemente do local em
que se encontre. Fala-se a este propósito de um "critério do pavilhão", justificado pela
consideração tradicional (e que, na verdade, o direito marítimo e aéreo em princípio
aceita) de que aqueles navios e aeronaves são ainda, se não facticamente, ao menos
para efeitos normativos "território moçambicano”.
Deve, contudo, entender-se que sempre que o navio ou aeronave se encontre
em espaço aéreo ou águas territoriais de um país diferente do do pavilhão, isso não
retira competência à lei desse lugar, em nome do princípio base da territorialidade; o

9
Ou seja, as águas fluviais e lacustres nele integradas, e parte das que se interpõem entre ele e o
território contíguo (águas continentais ou epi-continentais); uma fracção das águas marítimas (águas
interiores e mar territorial), até aos 12 milhas da linha de costa (art.º 2.º/1 da Convenção de Montego
Bay, e art.º 4 da Lei n.º 4/96).
10
Os Estados têm «a soberania completa e exclusiva do espaço atmosférico sobre o seu território» (art.º
1.º da Convenção de Paris de 1919 e Convenção de Chicago de 1944), i.e., até aos 48 Km de altitude,
limite da estratosfera.

6
que só favorecerá necessidades, eventualmente imperiosas, de intervenção imediata
de autoridades policiais ou mesmo judiciárias. Quando tal suceda pode ocorrer um
“conflito positivo de competências”.

1.3. A determinação do lugar da prática do facto (locus ou sedes delicti)

A compreensão do âmbito deste princípio da territorialidade depende, em


segundo lugar, do que se entenda por praticar um facto em território moçambicano. È
o problema da determinação do lugar da prática do facto, ou sede do delito (locus ou
sedes delicti), nos crimes plurilocalizados.
Tendo em conta que o crime é uma realidade complexa onde se destacam
como elementos estruturais, a conduta e o resultado, há que determinar se ambos, ou
só um deles, devem ser considerados decisivos para a fixação do locus delicti, i.e, do
Estado onde o crime deve ser considerado praticado, para efeitos do princípio da
territorialidade.
Perante isto colocam-se, historicamente, duas soluções extremas: (1) as
chamadas soluções unilaterais; e (2) a solução mista, ou plurilateral.
1) As chamadas soluções unilaterais: (ai) considera-se a sede do delito no lugar
onde se levou a cabo a actividade (acção ou omissão) do agente (vantagens: o local
onde é formada a vontade do agente; recolha de provas); (b) para outros, o lugar onde
se produziu o resultado (vantagem: recolha de provas); (c) para outros ainda, o lugar
onde foi ofendido o interesse protegido pela lei (vantagem: é aí que mais se sente a
necessidade de prevenção e de retribuição).
Veja-se agora um exemplo: A…, junto da fronteira com o Zimbabué, dispara um
tiro em B…, que está do outro lado da fronteira, em Moçambique; e que vem a falecer,
vítima da agressão. Imaginemos agora que Moçambique aplica o critério do resultado,
e o Zimbabué, aplica o critério do lugar da conduta. O “nosso” A… fica impune!
2) A solução mista ou plurilateral (teoria da ubiquidade): considera-se a sede do
delito aquele onde se verificou qualquer um dos elementos indicados (uma qualquer
conexão), seja a conduta, seja o resultado11.
Interessa agora saber qual a solução consagrada pelo legislador moçambicano.
11
EC: I, 170-171; cfr. JFD: I, 198.

7
Praticar um facto em território moçambicano é, agora, segundo o art.º 6 do CP,
ter actuado “total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação”, ou,
“no caso de omissão, [dever] ter actuado”, ou ter sido produzido “o resultado típico”
em território moçambicano. Era já a solução que resultava do art.º 46 do Código de
Processo Penal ainda vigente, que nos aparece agora consagrada no novo Código
Penal.
O legislador penal moçambicano recorre à teoria da ubiquidade, segundo a
qual basta que um dos dois elementos essenciais do tipo objectivo (acção ou
resultado) se tenha verificado em território moçambicano para que a lei penal
moçambicana se possa aplicar, como emanação da soberania do Estado moçambicano
através do seu poder punitivo, alcançando-se um vasto âmbito de aplicação da lei
penal moçambicana.
Compreende-se que o critério estabelecido pela lei penal para a determinação
do lugar da prática do facto, baseado no objecto do máximo alcance da soberania
punitiva do Estado, seja diverso do que se estabelece para o momento da prática do
facto (cfr. art.º 2 do CP), orientado pelo princípio da legalidade. Diferentemente do
que vimos suceder com a determinação do tempus delicti, em que o legislador optou
pelo critério da conduta em desfavor do do resultado (art.º 2 do CP), aqui ele cumulou
os dois critérios no sentido daquilo que doutrinalmente corre como solução mista ou
plurilateral. Esta decisão é teleológica e funcionalmente fundada, como já vimos. Dada
a circunstância de diversos países poderem assumir nesta matéria critérios diferentes
(uns, o critério da conduta; outros, o do resultado), daí derivarem insuportáveis
lacunas de punibilidade que uma política criminal minimamente concertada não
poderia admitir. Para tanto bastando que o país onde a conduta teve lugar seguisse o
critério do resultado típico, enquanto o outro país onde o resultado se verificou
aceitasse o critério da conduta.
Mas a lei moçambicana não poderá ser aplicada apesar de se ter produzido um
resultado típico em território moçambicano, quando, por força do critério de aplicação
no tempo, o facto não seja punível por não estar previsto em lei anterior à realização
da acção em território estrangeiro.
Os critérios dos art.ºs 3 e 2 do CP, derivados directamente do art.º 60/1 da
CRM, aplicam-se, assim, independentemente do princípio da ubiquidade que apenas

8
pretende estabelecer a validade espacial da lei penal moçambicana. Exemplo da
situação referida é, pois, o de uma sucessão de leis no tempo em que o resultado seja
produzido em território moçambicano num momento em que passou a vigorar uma lei
que vem punir o facto, quando no momento em que o facto foi praticado, no
estrangeiro, não era punido em Moçambique.
Nesse caso, o art.º 6 do CP determina, ainda assim, a aplicabilidade ao facto da
lei penal moçambicana, embora nos termos do art.º 3/1 do CP e do art.º 60/1 da CRM,
o facto não possa ser punido. A aplicabilidade da lei penal moçambicana nos termos
dos art.ºs 4 e 6 do CP não dispensa a observância de todos os princípios a que a
mesma se subordina (aplicação no tempo, proibição da analogia, etc.).
Deve entender-se, igualmente, que o art.º 6 se basta com a tentativa (art.ºs 17
e 18 do CP), para determinar a aplicação da lei penal moçambicana? Há aqui que
distinguir dois tipos hipóteses distintos.
Vejamos um exemplo: A…, cidadão estrangeiro, envia de um país estrangeiro,
uma carta armadilhada destinada a explodir em Moçambique, e a matar um cidadão
aqui residente, que é todavia desactivada, ainda pelas autoridades do Estado
estrangeiro. Para todos os efeitos, à luz da lei moçambicana – na falta de previsão
expressa – o facto nem sequer chegou, efectivamente, a praticar-se.
Imagine-se agora, uma variante desta hipótese: A…, cidadão estrangeiro, envia
de um país estrangeiro, uma carta armadilhada destinada a explodir em Moçambique,
e a matar um cidadão aqui residente, que é todavia aqui desactivada, pelas
autoridades moçambicanas. A partir do momento em que a carta entre em território
nacional, pode dizer-se que há uma parcela do iter criminis (fases do crime) que
decorre em território nacional, o que funda, desde logo, a competência da lei
moçambicana no critério geral da territorialidade (alínea a) do art.º 4 do CP).

1.4. Alguns problemas

Apesar da aparente clareza do art.º 6 do CP, em análise, alguns problemas


justificam uma particular atenção.

9
Desde logo o do chamado crime continuado (art.º 44/1 do CP)12, em que uma
pluralidade real de factos, que podem ser cometidos em países diferentes, é juridica-
mente considerada uma unidade normativa. Deve considerar-se bastante que um dos
factos se encontra abrangido pelo princípio da territorialidade.
Igualmente abrangidos se encontram os casos de comparticipação (art.ºs 23 e
ss do CP) – que tenha lugar em Moçambique sob qualquer forma de participação e
portanto também sob a da mera cumplicidade – num facto praticado no estrangeiro;
bem como a hipótese inversa de o facto se verificar em Moçambique, mas a
comparticipação ter lugar no estrangeiro. A qualquer destas hipóteses é aplicável a lei
penal moçambicana em nome do princípio da territorialidade. Como igualmente
coberto se encontra o caso da omissão, relativamente à qual vale como lugar do delito
aquele em que deveria ter tido lugar a acção esperada ou em que teve lugar o
resultado típico.
Mais discutivel pode ser a situação dos chamados crimes itinerantes ou de
trânsito; factos que, pelo seu modo específico de éxecução, se põem em contacto com
diversas ordens jurídicas nacionais (v.g., um pacote contendo droga, enviado por navio
na Colômbia, descarregado em Moçambique, de onde parte de avião para o seu
destino, a Àfrica do Sul. Parece-me que a solução político-criminalmente mais
adequada é a de considerar que em qualquer uma das ordens jurídicas conectadas se
torna aplicável o princípio da territorialidade.

2. Os outros princípios complementares


2.1. O princípio da defesa dos interesses nacionais

A territorialidade da lei penal não permite estabelecer exaustivamente uma


conexão entre o poder punitivo e a defesa de bens jurídicos essenciais à preservação
de certas condições essenciais da organização e da segurança da sociedade, sempre
que ocorram lesões de bens exteriores ao território moçambicano, mas que façam
perigar as condições referidas.

12
“Constitui crime continuado as várias condutas do mesmo agente que violem a mesma norma ou
normas diferentes que tutelem o mesmo bem jurídico ou bens jurídicos de idêntica natureza que, pelas
condições de tempo, lugar e maneira de execução, as subsequentes se possam considerar como mera
continuação das anteriores” (art.º 44/1 do CP).

10
Trata-se da protecção que deverá ser concedida a bens jurídicos
moçambicanos, independentemente da nacionalidade do agente; do local da prática
do facto; e do que a seu respeito disponha a lei do lugar (excepto nos casos de
extradição). Compreende-se esta extensão já que, na generalidade, as leis dos
restantes países se ocupam preponderantemente da tutela dos bens jurídicos
próprios.
Neste quadro, a lei penal moçambicana é também aplicável aos crimes
cometidos em país estrangeiro, contra a segurança interior ou exterior do Estado,
violação do segredo de Estado, falsificação de moeda, notas de banco e títulos do
Estado, passagem de moeda falsa, branqueamento de capitais, corrupção e crimes
conexos, independentemente da nacionalidade do autor (art.º 5/1 e 2 do CP).

2.2. Princípio da universalidade da aplicação da lei penal moçambicana

Consagra ainda o art.º 5 do CP, nos seus n.ºs 1 e 2, o chamado princípio da


universalidade, segundo o qual a validade espacial da lei penal moçambicana se
delimita pela necessidade de cooperação do Estado moçambicano na protecção penal
de bens da humanidade de valor universal.
Este princípio da universalidade (ou da aplicação universal) visa permitir a
aplicação da lei penal moçambicana a factos cometidos no estrangeiro que atentam
contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que, de todo o modo, o
Estado moçambicano se obrigou internacionalmente a proteger. Por isso o princípio
deve valer independentemente da sedes delicti e da nacionalidade do agente. Não se
trata, como é claro, de facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo
e qualquer facto considerado crime pela sua lei interna; o que conduziria à existência
de um ius puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso em larga
medida de conflitos internacionais de carácter jurídico-penal.
Do que se trata é antes – e só – do reconhecimento do carácter supra-nacional
de certos bens jurídicos e que por conseguinte apelam para a sua protecção a nível

11
mundial, o que Jescheck fundamenta na "solidariedade do mundo cultural frente ao
crime”, e na "luta contra a criminalidade internacional perigosa”13.
O elenco dos crimes aqui considerados pelo legislador, que se reconduzem a
este princípio da universalidade são alguns crimes, especialmente susceptíveis de não
vinculação espacial: contra a vida, contra a liberdade e a autodeterminação sexual
(escravidão, tráfico de pessoas, rapto, prostituição, abuso sexual e pornografia de
menores), tráfico de produtos de espécies de fauna e flora proibidos, danos contra o
meio ambiente e poluição.
Curiosamente, o legislador deixa de fora todo o elenco dos crimes contra a
humanidade previsto no Código Penal (art.º 190 e ss do CP). De iure condendo, salvo
melhor opinião, haveria que alargar esta previsão de competência pelo menos a uma
selecção de crimes contra a humanidade, resultante de convenções entre os Estados
na comunidade internacional, conferindo assim um maior grau de implicação da
ofensa à comunidade internacional como um todo, por certos crimes (v.g., genocídio,
ou crimes de guerra contra civis), e da maior facilidade de subtracção dos agentes ao
poder punitivo de várias ordens jurídicas internacionais em determinadas infracções.
Em todo o caso, questão que inevitavelmente se coloca é saber até onde a validade
espacial das leis internas pode e deve ir sem que o princípio da cooperação entre as
ordens jurídicas inerente se adultere, potenciando a conflitualidade entre os Estados.
---
Em qualquer dos casos, dos n.ºs 1 e 2 do art.º 5 do CP, que abrange a tutela dos
princípios da defesa dos interesses nacionais e da universalidade da aplicação da lei
penal moçambicana, submete-se a aplicação da lei penal moçambicana a uma de duas
condições: que o infractor não tenha sido julgado no país onde delinquiu (non bis in
idem); ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação
proferida nesse país (art.º 5/1 in fine CP).
Diferem, depois, as condições de aplicação. Enquanto os nacionais, podem ser
julgados à revelia (v. art.º 5/1 do CP); já os estrangeiros têm que ser encontrados em
Moçambique (voluntariamente ou extraditados, quando seja possível obter a sua
entrega, v. art.º 5/2 do CP). É, neste caso, uma mera condição de punibilidade.

13
HANS-HEINRICH JESCHECK/THOMAS WEIGEND: Tratado de Derecho Penal. Parte General, Editorial Comares,
Granada, 2002, p. 182.

12
2.3. O princípio da nacionalidade

Finalmente, o princípio da nacionalidade, que vem consagrado no art.º 5/3 do


CP. Em geral, o princípio da nacionalidade justifica-se pelo vínculo dos cidadãos
moçambicanos à soberania punitiva do seu próprio Estado (nacionalidade activa); mas
também pelo dever que o Estado moçambicano tem, de conceder protecção aos bens
jurídicos de que os cidadãos moçambicanos sejam titulares, ainda que residentes no
estrangeiro (nacionalidade passiva).
A lei penal moçambicana aplica-se a factos praticados fora do território
nacional por moçambicanos (princípio da nacionalidade activa) – mas já não,
estranhamente, por estrangeiros contra moçambicanos (princípio da nacionalidade
passiva), excepto se se tratar de uma pessoa colectiva (ou equiparada), que aqui tenha
sede, art.º 5/4 do CP – desde que se verifiquem certos requisitos.

2.3.1. O princípio da nacionalidade activa

O princípio da nacionalidade activa dá expressão ao princípio da não extradição


de cidadãos moçambicanos do território moçambicano, consagrado no art.º 67/4 da
CRM.
Na verdade, a contrapartida da proibição da extradição de nacionais, na ordem
internacional, só pode ser o dever de o Estado moçambicano assegurar a perseguição
penal ou o julgamento dos factos criminosos praticados pelos cidadãos moçambicanos
no estrangeiro. A aplicação da lei penal moçambicana a moçambicanos, por força do
princípio da nacionalidade, obedece, como já referi, a certos requisitos. As alíneas a),
b) e c) do n.º 3 do art.º 5 do CP, indicam três requisitos cumulativos, que exprimem,
verdadeiramente, condições de punibilidade: (a) ser o infractor encontrado em
Moçambique; (b) ser o facto qualificado como crime também, pela legislação do país
onde foi praticado (princípio da dupla incriminação); (c) não tendo o agente sido
julgado no país em que cometeu o crime (princípio do non bis in idem, art.º 59/3 da
CRM).
Estes requisitos limitam o âmbito de influência do poder punitivo do Estado
moçambicano com um duplo fundamento. Por um lado, a aplicação da lei penal

13
moçambicana pressupõe um mínimo de respeito pelas expectativas dos agentes
envolvidos e pelo sentido de desvalor (de ilícito) das suas condutas no estrangeiro,
bem como pela igualdade entre aqueles agentes e os estrangeiros que a lei penal
moçambicana não possa abranger. Assim, os agentes terão de ser puníveis pela
legislação do lugar em que os factos foram praticados. Por outro lado, os agentes terão
de ser encontrados em território moçambicano, não podendo, por isso, ser
extraditados. Deve estar-se perante uma situação em que só o Estado moçambicano
possa punir aqueles agentes, por razões materiais e jurídico-constitucionais. O Estado
moçambicano não só terá possibilidades materiais de os punir (presença em território
moçambicano) como também, por força dos seus princípios constitucionais (art.º 67/4
da CRM), estará colocado numa posição em que só ele pode punir.

2.3.2. A ausência do princípio da nacionalidade passiva

Disse já que o princípio da nacionalidade passiva encontra o seu fundamento


dever que o Estado moçambicano tem, de conceder protecção aos bens jurídicos de
que os cidadãos moçambicanos sejam titulares, ainda que residentes no estrangeiro.
Parece-me por isso que, à luz dos princípios da universalidade e da igualdade
(art.º 35 da CRM), estes cidadãos “gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos
mesmos deveres” que sejam, naturalmente, compatíveis com a sua ausência do país.
Estranhamente, este princípio da nacionalidade passiva não se encontra consagrado na
nossa ordem jurídica, para efeitos de aplicação da lei penal no espaço, salvo quando se
trate da tutela de pessoa colectiva ou equiparada que tenha sede em território
nacional (art.º 5/4 do CP).
Por isso, e salvo melhor opinião, entendo que, uma vez mais, de iure condendo,
haveria que alargar a aplicabilidade da lei penal moçambicana aos crimes praticados
no estrangeiro, por estrangeiros contra moçambicanos, salvo, naturalmente algumas
condições de aplicação: desde logo, serem esses factos também puníveis pela
legislação do lugar em que tenham sido praticados (salvo quando nesse lugar não se
exercer poder punitivo); serem os agentes encontrados em Moçambique, ou, ser
possível a sua extradição, ou outro instrumento de cooperação internacional que
vincule o Estado Moçambicano.

14
3. Restrições à aplicação da lei penal moçambicana

O carácter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação


extraterritorial da lei penal moçambicana justificam que em todos estes tipos de casos
de aplicação da lei penal moçambicana a factos praticados no estrangeiro, só venha a
ter lugar desde que, cumulativamente: (1) o agente esteja ou compareça em território
moçambicano, ou se possa obter a sua entrega (n.º 2, e alínea a) do n.º 3 do art.º 5 do
CP), excepto nos casos do art.º 5/1 do CP, em que o agente, nacional moçambicano,
pode ser julgado à revelia; (2) ser o facto qualificado como crime, também pela
legislação do país onde foi praticado, excepto, e salvo melhor opinião, para os crimes
previstos no art.º 5/1 do CP – princípio da dupla incriminação; (3) não ter o agente sido
julgado no país em que cometeu o crime (em termos gerais, art.º 59/3 da CRM) –
princípio do non bis in idem; ou se se houver subtraído ao cumprimento, total ou
parcial, da condenação (art.º 5/6 do CP). A isto acresce, nos crimes extraterritoriais, o
mandato de aplicação do Direito penal estrangeiro mais favorável.
Vejamos estes dois últimos aspectos.

3.1. A aplicabilidade da lei penal moçambicana e o princípio non bis in idem

O art.º 5/1 do CP exprime um condicionamento geral da aplicabilidade da lei


penal moçambicana pelo princípio do non bis in idem, com consagração expressa no
art.º 59/3 da CRM.
Assim, pressuposto da efectivação dos princípios da defesa dos interesses
nacionais, da universalidade, e da nacionalidade, é o facto de o agente não ter sido
julgado no país da prática do facto ou se ter subtraído ao cumprimento total ou parcial
da condenação.
O n.º 7 do art.º 5 CP, por outro lado, prevê, nos casos em que haja
efectivamente lugar à aplicação da lei penal moçambicana que a lei penal estrangeira
mais favorável em concreto se imponha, sendo a pena aplicável posteriormente
convertida numa pena correspondente no sistema penal moçambicano ou, se a
correspondência não for possível, na pena que estiver prevista para o facto. Questão
que imediatamente se levanta é a de saber se, havendo condenação ou o

15
cumprimento parcial da pena, no país estrangeiro, tal facto não deverá impedir o
julgamento, em Moçambique, pela prática dos mesmos crimes com vista ao
cumprimento da pena (total ou parcialmente) em Moçambique, por força do princípio
non bis in idem.
Pressuposto da resposta a tal questão é o próprio âmbito constitucional do
princípio non bis in idem. Gomes Canotilho e Vital Moreira referem, todavia, apenas o
âmbito literal da proibição constitucional, distinguindo o duplo julgamento da dupla
penalização e concluindo que, embora só primeiro seja vedado expressamente pela
Constituição, o segundo é abrangido pelas finalidades da proibição constitucional14.
Ora, essas penalidades não podem ser totalmente esclarecidas pelo sentido histórico
do princípio (dimensão da defesa contra o Estado e de obrigação do Estado à definição
no caso julgado material), mas terão de ser compreendidas na conexão desta proibição
constitucional com a ideia de Estado de Direito (princípio de limitação do poder do
Estado pelo seu Direito – objectividade e confiança) e com o princípio da necessidade
da intervenção penal.
Abrangerá o art.º 59/3 da CRM o julgamento anterior no estrangeiro pelo
mesmo crime ou apenas o julgamento por tribunais moçambicanos? A resposta a tal
questão, no puro plano da constitucionalidade, impõe o reconhecimento de que o
princípio non bis in idem é a expressão penal da garantia de que a perseguição criminal
mediante o processo penal não é instrumento de arbitrariedade do poder punitivo,
utilizável renovadamente e sem limites, mas é antes um modo controlável e garantido
de aplicação do Direito Penal. Assim, tanto a repetição do julgamento pelo mesmo
crime, de que se foi absolvido ou condenado a certa pena, como a repetição da
punição de agente já condenado e punido constituem claras negações do valor geral
do processo penal e do direito do arguido a que o Estado se vincule ao desfecho do
processo penal que desencadeou.
À necessidade de densificação semântica do preceito constitucional de referem
Gomes Canotilho e Vital Moreira concebendo-a a partir dos conceitos jurídico-
processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina do direito e do processo
penais. Todavia, o conceito de “mesmo crime” tem de se referir a uma unidade factual

14
J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA: Constituição da Republica Portuguesa. Anotada, Volume I, 4.ª
Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007.

16
pré-normativa. Não é a artificial diversificação de factos pela lei e a analítica
configuração de bens jurídicos que há-de, legitimamente, definir “mesmo crime”. O
problema da semântica constitucional resolve o conteúdo jurídico material da unidade
de facto e do concurso de crimes e não o inverso. Esta lógica fundamentadora não
restringe a aplicação do princípio aos julgamentos realizados por tribunais
moçambicanos. Por outro lado, o poder punitivo do Estado moçambicano terá que se
justificar pela estrita necessidade de intervir (julgar e punir), nos termos do art.º 56/2
da CRM. De um modo geral, a necessidade de intervenção do poder punitivo, quando
uma pessoa foi julgada e absolvida no estrangeiro ou já aí cumpriu a pena, não existe.
Apenas quando a intervenção penal se justifica pela protecção de interesses
nacionais é legítima a renovada intervenção punitiva do Estado Moçambicano. O
princípio non bis in idem surge, deste modo, como uma emanação de duas ideias
fundamentais: a vinculação do poder punitivo do Estado de Direito pelo desfecho do
processo penal e o próprio princípio da necessidade da intervenção penal. Este
horizonte valorativo do princípio non bis in idem assegura-lhe universalidade mas
pressupõe, igualmente, uma harmonização dos direitos que não existe na comunidade
internacional. Ora, o sentido da expressão “julgado […] pela prática do mesmo crime”,
no art.º 59/3 da CRM, é conferido essencialmente pelos conceitos de processo penal e
de julgamento na ordem jurídica moçambicana, de modo que um julgamento sem
quaisquer garantias de independência e imparcialidade do tribunal não pode em rigor
impor a aplicação do princípio non bis in idem.
A questão de que se partiu sobre se a condenação e cumprimento parcial da
sentença estrangeira não obstam a novo julgamento pelos factos em Moçambique
tem, assim, duas respostas possíveis. Uma resposta moderada, segundo a qual os
efeitos (negativos) das sentenças estrangeiras previstos no art.º 5/6 do CP são a
máxima expressão possível e exigível pela Constituição. Tal resposta limita o seu
âmbito internacional a julgamentos absolutórios ou em que houve cumprimento da
condenação. Uma outra resposta, mais radical, considerado o art.º 5/6 do CP,
incompatível com o art.º 59/3 da CRM, na medida em que em caso de subtracção ao
cumprimento da pena se viesse renovar, em Moçambique, o julgamento pelo mesmo
crime. A inconstitucionalidade dessa parte do art.º 5/6 do CP que prevê um segundo
julgamento, seria sempre evitada, todavia, pela interpretação do preceito no sentido

17
de que o novo julgamento (pelo qual nunca seria aplicável lei penal menos favorável à
que fundamentou a condenação) se limitaria a rever e confirmar a sentença
estrangeira à luz da lei penal mais favorável, nos termos preconizados pelo Código de
Processo Penal.
Porém, a protecção mais absoluta do non bis in idem em situações em que não
haveria qualquer acordo internacional sobre a eficácia das sentenças estrangeiras não
é exigível pela Constituição, desde que o novo julgamento preconizado esteja contido
nos seus resultados pelo chamado princípio do desconto, isto é, desde que a pena já
cumprida seja efectivamente descontada na nova condenação (art.º 129 do CP). Deste
modo, o princípio non bis in idem atinge em absoluto um efeito impeditivo de dupla
punição, mas não um efeito impeditivo de repetição do julgamento realizado em país
estrangeiro.
O art.º 5/6 e 7 do CP, estabelece ainda um sistema de conversão da pena
aplicável naquela pena que lhe corresponder no sistema moçambicano ou que a lei
moçambicana previr para o facto. Tal sistema refere-se não só à aplicação do Direito
Penal estrangeiro em sentença proferida por tribunais moçambicanos como também à
revisão e à confirmação de sentença penal estrangeira pelos tribunais moçambicanos.
A conversão é não só decorrência de um princípio de praticabilidade como
também emanação dos princípios da necessidade da pena e non bis in idem. Do
primeiro princípio decorre que só a pena correspondente é necessária. Através do
segundo princípio perpassa a ideia de que a pena aplicável nunca poderá, pela
conversão, vir a impor uma espécie de segunda punição (ou qualquer punição mais
gravosa) do agente que se subtrai total ou parcialmente à execução da pena. É à luz
destes princípios que a conversão em concreto se deverá realizar.

3.2. O mandato de aplicação do Direito estrangeiro mais favorável (art.º 5/7 do


CP)

O art.º 5/7 do CP consagra uma restrição à aplicação da lei penal moçambicana


menos favorável, nos casos em que ela seja aplicável por força dos princípios da defesa
dos interesses nacionais (?), da universalidade e da nacionalidade, isto é, quando não
estejam em causa o princípio da territorialidade, e sempre que o agente encontrado

18
em território nacional não tiver sido julgado no país da prática do facto (alíneas a e c)
do n.º 3 do art.º 5 do CP), ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da
condenação (art.º 5/6 do CP). Consiste tal restrição na exigência de naqueles casos ser
aplicada a lei do país em que o facto tiver sido praticado sempre que aquela for
concretamente mais favorável ao agente (art.º 5/7 do CP).
A razão de ser de tal restrição à aplicação da lei moçambicana é a conjugação
da subsidiariedade do exercício do poder punitivo do Estado moçambicano nesses
casos com os princípios da culpa, da igualdade, da necessidade da pena e da segurança
jurídica (art.ºs 3, 35, 56/2 e 60/1 da CRM). Na verdade, nessas situações o Estado
moçambicano pune porque outro Estado não pôde punir, mas não deixa de conceber a
punição de acordo com os seus princípios constitucionais. A punição, em termos mais
graves, pelo Direito moçambicano não garantiria uma adequação da consciência da
ilicitude do agente ao desvalor da acção e à gravidade do ilícito para ele previsível.
Salvo melhor entendimento, é pelo menos discutível se a ratio do princípio da
aplicação da lei estrangeira mais favorável não abrange a prática de crimes
considerados contra os interesses nacionais, cometidos em país estrangeiro (contra a
segurança interior ou exterior do Estado, violação do segredo de Estado, falsificação de
moeda, notas de banco e títulos do Estado, passagem de moeda falsa, branqueamento
de capitais, corrupção e crimes conexos (cfr. art.º 5/1 e 2 do CP).

4. A subsistência de um sistema de aplicação da lei penal no espaço lacunar

Depois de explanado nos seus traços essenciais o sistema Direito Penal


Internacional moçambicano, cumpre por fim assinalar duas importantes lacunas nesse
sistema. Trata-se, em especial, da não consagração plena de um princípio da
nacionalidade passiva, a que já me referi; mas também, de um princípio
complementar da administração supletiva da justiça penal.
Imagine-se a seguinte hipótese, um cidadão estrangeiro, pratica, no
estrangeiro, um crime grave, por exemplo de ofensas corporais graves dos art.ºs 173
ou 179 do CP, ou mesmo uma violação, do art.º 201 do CP. Ironicamente, um dos
melhores sítios do mundo para este cidadão se refugiar, em alguns casos, é
justamente em Moçambique! Poder-se-á dizer, que caso este cidadão seja encontrado

19
em Moçambique, caso seja pedida a sua extradição, poderá ser extraditado para ser
julgado no lugar da prática do crime. Mas pode suceder, que a sua extradição não
possa ser concedida, seja pela inexistência de um acordo de extradição entre esse
stado e o Estado moçambicano, seja pela proibição de extraditar em função da
gravidade das consequências jurídica impostas pelo país requerente (cfr. art.º 67/3 da
CRM). Moçambique não tem competência para julgar; nem pode extraditar!
O mesmo sucede com a falta de consagração na nossa lei de um princípio
(complementar) da administração supletiva da justiça penal. Com efeito, pode suceder
– e não custa acreditar que suceda com frequência – que um cidadão estrangeiro,
tendo praticado um crime, normalmente grave, no estrangeiro, venha buscar refúgio
em Moçambique, onde, por um lado, não pode ser julgado, dada a ausência de uma
conexão relevante com a lei moçambicana, e de onde, por outro lado, não possa ser
extraditado, igualmente, pela inexistência de um acordo de extradição entre esse
Estado e o Estado moçambicano, seja pela proibição de extraditar em função da
gravidade das consequências jurídica impostas pelo país requerente (cfr. art.º 67/3 da
CRM). Também aqui, Moçambique não tem competência para julgar; nem pode
extraditar! Esta lacuna, conjugada com o aumento exponencial da mobilidade das
pessoas nos últimos anos, faz Moçambique correr o risco de se transformar numa
espécie de abrigo para criminosos estrangeiros.

5. O problema do valor das sentenças estrangeiras

Durante muito tempo, entendeu-se que as sentenças estrangeiras não tinham


valor jurídico fora do país onde tinham sido pronunciadas, embora pudessem ter
efeitos de facto (EC: I, 179).
A posição do legislador moçambicano ainda está um pouco presa a esta ideia.
Apesar de ter introduzido uma modificação relevante, quanto ao valor das
condenações proferidas por tribunais estrangeiros, admitindo a sua computação para
efeitos de reincidência, salvaguardado o princípio da dupla incriminação (art.º 42/6 do
CP)15; e quanto às regras de desconto aplicáveis a medida processual ou pena que o

15
Afastando-se da actual previsão nesta matéria: “Não são computadas para efeitos de reincidência as
condenações proferidas por tribunais estrangeiros” (art.º 38/5 do CP/14).

20
agente tenha sofrido, pelo mesmo ou pelos mesmos factos, fora de Moçambique (art.º
129 do CP).
Esta ideia ainda deixou alguns resquícios no novo Código Penal, que mantém a
mesma solução dos Códigos anteriores16: “Se o agente, havendo sido condenado no
lugar do crime, se tiver subtraído ao cumprimento de toda a pena ou de parte dela,
forma-se novo processo perante os tribunais moçambicanos que, se julgarem provado
o crime, aplicam a pena correspondente prevista na legislação moçambicana,
descontando-se o tempo de pena efectivamente cumprido” (art.º 5/6 do CP). Ou seja,
apenas releva, neste caso, a pena já sofrida, o que levanta algumas dúvidas de
constitucionalidade, como já se viu acima, face ao princípio do non bis in idem (art.º
59/3 da CRM).

16
Cfr. art.º 56/8 do CP/14.

21
II. A extradição

A extradição é a transferência de um indivíduo que se encontra sobre a


soberania de um Estado para outro Estado, por solicitação deste, por aí se encontrar
arguido, acusado, ou condenado pela prática de um crime, sendo entregue às
autoridades desse Estado. O instituto da extradição pertence ao Direito Internacional
Público, por respeitar às relações entre os Estados, mas no seu condicionamento
importa ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal17.
São se referir, em primeiro lugar, um conjunto de convenções multilaterais no
quadro das Nações Unidas, designadamente: a Convenção Única de 1961 sobre os
Estupefacientes, de 30 de Março e Ratificada por Moçambique pela Resolução n° 7/90
de 12 de Setembro, pela Assembleia da República; a Convenção sobre Substâncias
Psicotrópicas, de 21 de Fevereiro de 1971 e Ratificada pela Resolução n° 8/09 de 12 de
Setembro pela Assembleia da República; e a Convenção Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes de 10 de Dezembro de 1984
e Ratificada pela Resolução n° 8/91 de 20 de Dezembro, pela Assembleia da República.
As infracções que corporizam as convenções referidas são consideradas
incluídas em qualquer tratado de extradição celebrado e a celebrar entre os Estados
signatários, por força das respectivas convenções. Uma grande simplificação trazida
por aquelas convenções consiste no facto de permitirem a extradição,
independentemente da existência de acordos bilaterais entre os Estados Partes:
“Sempre que a um Estado Parte que condiciona a extradição à existência de um
tratado for apresentado um pedido de extradição por um outro Estado Parte com o
qual não tenha concluído qualquer tratado de extradição, esse Estado pode considerar
a presente Convenção como base jurídica da Extradição relativamente a essas
infracções”. No entanto, as condições e o processo de extradição ficam sujeitos ao
Direito interno do Estado requerido.

17
TPB: I, 503-505.

22
Por outro lado, agora no âmbito regional, os países da SADC, concluíram entre
si acordos de prevenção e combate à criminalidade no quadro dos esforços tendentes
à criação de uma atmosfera própria para o desenvolvimento da zona, nomeadamente:
o Protocolo sobre o Combate ao Tráfico Ilícito de Drogas na Região da SADC, ratificado
por Moçambique pela Resolução n° 23/98 de 2 de Junho, pelo Conselho de Ministros;
o Acordo de Cooperação e Assistência Mútua no Campo de Combate ao Crime da
SADC, ratificado por Moçambique pela Resolução n° 31/99 de 1 de Novembro, pelo
Conselho de Ministros; o Protocolo sobre Controlo de Armas de Fogo, Munições e
Outro Material Conexo, assinado em Agosto de 2001 no Malawi.
Á parte disso, Moçambique tem celebrado acordos bilaterais, nomeadamente:
o Acordo de Cooperação Judiciária em Matéria Civil, de Família, Penal e do Direito de
Trabalho com a República Democrática Alemã, concluído em Berlim no dia 28 de
Agosto de 1981 e ratificado por Moçambique pela Resolução n° 9/82 de 7 de Julho, da
Assembleia da República; o Acordo de Extradição com a República do Zimbabwe,
celebrado em Harare a 27 de Setembro de 1981 e ratificado por Moçambique pela
Resolução n° 1/84 de 7 de Março, da Assembleia da República; o Acordo de
Cooperação Judiciária em Matéria de Direito Civil, de Família e Penal com a República
de Cuba, assinado na Cidade de Maputo, no dia 26 de Abril de 1988 e ratificado por
Moçambique pela Resolução n° 3/89 de 23 de Março da Assembleia da República; o
Acordo de Cooperação Judiciária com as Repúblicas de Angola, Cabo Verde, Guiné-
Bissau e São Tomé e Príncipe, assinado em Bissau aos 10 de Dezembro de 1987 e
ratificado por Moçambique pela Resolução nº 4/89 de 23 de Março, da Assembleia da
República; o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária com a República Portuguesa
assinado em Lisboa no dia 12 de Abril de 1990 e ratificado por Moçambique pela
Resolução n° 10/91 de 20 de Março, da Assembleia da República. (…)

1. O regime da extradição

Sobre esta matéria rege, em primeiro lugar, o art.º 67 da Constituição, que se


ocupa, fundamentalmente, dos direitos dos estrangeiros (e apátridas).
Neste contexto existe uma diferença radical entre os cidadãos moçambicanos e
os estrangeiros. Os cidadãos nacionais não podem ser expulsos do território nacional

23
ou extraditados para outro Estado (art.º 67/4 da Constituição). Tal não acontece com
os estrangeiros.
A extradição é – como já ficou dito – a transferência de um indivíduo que se
encontra sobre a soberania de um Estado para outro Estado, por solicitação deste, por
aí se encontrar arguido, acusado, ou condenado pela prática de um crime, sendo
entregue às autoridades desse Estado. Diferentemente, a expulsão é uma ordem de
saída que um Estado toma em relação a estrangeiros que se encontram no seu
território, por nele terem entrado irregularmente ou por outros motivos. Não
depende, portanto, de nenhuma solicitação de outro Estado, nem se traduz na entrega
às autoridades de um terceiro Estado, implicando o simples abandono do território
nacional, para país à escolha do expulso. A extradição ocorre por motivos de ordem
externa (de natureza penal); a expulsão, por razões de ordem interna (não
necessariamente de natureza penal).
Cuidarei, neste ponto, apenas do regime da extradição, começando pelo seu
regime constitucional, previsto no art.º 67 da Constituição, que estabelece um
conjunto de requisitos particularmente exigentes: (1) só pode ser decidida por um
tribunal; (2) estando vedada quando tenha motivos políticos (art.º 67/2 da CRM); (3)
quando o crime de que o extraditando seja acusado seja passível de aplicação de
prisão perpétua ou de pena de morte (art.º 67/3 da CRM, 1.ª parte); ou quando haja
fundadas suspeitas de que o arguido possa vir a ser alvo de tortura, ou tratamentos
desumanos, degradantes ou cruéis (art.º 67/3 da CRM, 2.ª parte).
Depois, a densificação desta matéria consta hoje da Lei n.º 17/2011, de 10 de
Agosto – Lei da Extradição (LE), que rege os casos e termos da efectivação da
extradição. Estabelece as normas que regulam a transmissão de mandatos de captura
internacionais para pessoas procuradas pela prática de crimes cometidos.

2. Natureza da extradição

Quanto à sua natureza, processo de extradição tem carácter urgente, e


compreende duas fases (art.º 22/1 da LE): (1) uma fase administrativa; e (2) uma fase
judicial.

24
1) A fase administrativa é destinada à apreciação do pedido de extradição, pelo
Governo, para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento ou se deve ser
liminarmente indeferido por razões de ordem política ou de oportunidade ou
conveniência (art.º 22/2 da LE).
2) A fase judicial é da exclusiva competência dos tribunais judiciais e destina-se
a decidir, com audiência do interessado, sobre a concessão da extradição, não sendo
admitida prova alguma sobre factos imputados ao extraditando (art.º 22/3 da LE, cfr.
art.º 67/1 da CRM).
A extradição só pode ser decidida por um tribunal. Significa que, só pode ser
concedida na sequência de uma decisão judicial (art.º 67/1 da CRM), e não antes, ou
durante esta fase.

3. Fundamento e limites da extradição

Quanto ao seu fundamento a extradição pode ter lugar para efeitos de


procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade (art.º 3/1
da LE); por conduta igualmente tipificada em Moçambique como crime (princípio da
dupla incriminação), punível com pena ou medida privativa da liberdade de duração
mínima não inferior a um ano, (art.º 3/2 da LE), salvo tratado, convenção ou acordo de
que Moçambique seja parte (art.º 3/5 da LE), cujo julgamento seja da competência dos
tribunais do Estado requerente (art.º 3/1 da LE).
Se o pedido de extradição tiver por fundamento vários factos distintos, sendo
cada um deles punível pela lei do Estado requerente e pela lei moçambicana com
penas privativas de liberdade, pode conceder-se a extradição desde que, pelo menos,
um dos factos preencha a condição referida no n.º 2 do art.º 3 da LE (art.º 3/3 da LE).
O disposto nos números 1 a 3 do art.º 3 da LE é aplicável, com as necessárias
adaptações, à cooperação que implique a extradição ou a entrega de pessoas às
entidades judiciárias internacionais (art.º 3/4 da LE).

25
4. Casos em que não é permitida a extradição

Para além dos limites que acabamos de tratar, a Constituição e a lei


estabelecem outros limites particularmente exigentes à concessão da extradição do
território moçambicano.
Em primeiro lugar, a extradição não pode ser concedida nos casos em que a
pessoa reclamada tenha a cidadania moçambicana (art.º 67/4 da CRM e art.º 4/1, a) da
LE). No entanto, como resulta do n.º 2 do referido art.º 4 da LE, não é considerada a
cidadania moçambicana adquirida após a prática dos factos em que se fundamenta o
pedido de extradição. O que suscita alguma perplexidade, face ao princípio da
prevalência da cidadania moçambicana (art.º 33 da CRM), e ao princípio da igualdade
(art.º 35 da CRM).
Em segundo lugar, em homenagem ao princípio do non bis in idem (art.º 59/3
da CRM) a extradição não poderá igualmente ser concedida, quando a pessoa
reclamada tenha já sido julgada pelo crime que fundamenta o pedido, e tenha sido
absolvida ou, no caso de condenação, tenha cumprido a pena no Estado requerido
(art.º 4/1, b) da LE).
Em terceiro lugar, a extradição por “motivos políticos”, não poderá ser
autorizada (art.º 67/2 da CRM)
Não e evidente o significado da expressão extradição por “motivos políticos”
(art.º 67/2 da CRM), a qual todavia parece compreender pelo menos duas situações:
(a) ser o extraditando acusado ou ter sido condenado pela pratica de crime de
natureza politica (cfr. art.º 4/1, c) da LE, o que exige a definição deste conceito); (b) ser
o pedido de extradição motivado por razões de perseguição politica ou para perseguir
criminalmente por razões politicas. Por maioria de razão, não poderá ser extraditado
um refugiado político. Prima facie, não deve considerar-se “motivo politico”, para
efeitos de proibição de extradição, a incorporação militar no caso de existir serviço
militar obrigatório, mas já será de enquadrar no âmbito de protecção destes motivos a
deserção em virtude de guerra declarada e conduzida contra os princípios do direito
internacional (guerra ilícita).

26
Não poderá, em quarto lugar, ser autorizada a extradição, quando ao crime, ou
crimes que fundamentam o pedido, corresponda na lei do Estado requerente a pena
de morte ou prisão perpétua (art.º 67/3 da CRM e art.º 4/1, d) da LE).
A proibição da extradição em caso de haver possibilidade de aplicação da pena
de morte está ligada a protecção absoluta reconhecida pela Constituição ao direito a
vida (art.º 40 da CRM).
A fórmula “por crimes a que corresponda na lei do Estado requisitante pena de
morte ou prisão perpétua” (art.º 67/3 da CRM) sugere o acolhimento do critério de
punibilidade em abstracto, ou seja, a proibição de extradição funciona sempre que a
pena de morte seja abstractamente aplicável, segundo a lei do Estado requisitante.
É de rejeitar que este critério da punibilidade em abstracto, aqui consagrado,
possa ser relativizado por exemplo, pelo facto de o pedido de extradição ser
acompanhado de comutação da pena de morte ou de prisão perpétua, por um acto
irrevogável e vinculativo do Estado que formula o pedido, para os tribunais ou outras
entidades competentes para a execução da pena. Não basta, por isso, que o Estado
requisitante ofereça garantias de que tal tipo de pena não virá a ser aplicada, em
concreto, para que a extradição possa ser concedida.
Não poderá também, em quinto lugar, ser autorizada a extradição, quando haja
fundadas suspeitas de que o arguido possa vir a ser alvo de tortura, ou tratamentos
desumanos, degradantes ou cruéis (art.º 67/3 da CRM, 2.ª parte, e art.º 4/1, f) da LE).
Nem o constituinte nem o legislador ordinário distinguem a tortura do
tratamento cruel (degradante, ou desumano), em sintonia com a Convenção contra a
Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (v. art.ºs
1.º e 16.º). Aí torturar ou tratar de forma cruel consiste em provocar,
intencionalmente, “uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais”, com uma
determinada finalidade.
Densificando um pouco mais, e recorrendo agora ao Código Penal, de acordo
com o n.º 3 do art.º 194, “Considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou
desumano, o acto que consista em espancamentos, electrochoques, simulacros de
execução ou substâncias alucinatórias ou em infligir sofrimento físico ou psicológico
agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos,

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drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a
capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”.
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Naturalmente, a lei não esta impedida de estabelecer mais limites materiais à
extradição, além dos constitucionalmente estabelecidos. Nesse sentido, o legislador
acrescenta aos limites constitucionais que acabamos de ver, duas outras situações em
que não é permitida a extradição de território moçambicano: (6) quando haja fundado
receio para crer que o pedido de extradição foi apresentado com o fim de perseguir ou
punir uma pessoa em razão da sua raça, religião, nacionalidade, origem étnica, sexo ou
estatuto, ou que a situação dessa pessoa pode ser prejudicada por alguma dessas
razões (art.º 4/1, e) da LE); e (7) quando se trate de um crime militar (art.º 4/1, g), cfr.
art.º 67/2 da CRM).

5. Outras normas relevantes do regime legal da extradição

Artigo 5.º
Condições para concessão da extradição
1. São condições para concessão da extradição:
a) ter sido o crime cometido no território do Estado requerente ou serem aplicáveis ao
extraditando as leis penais desse Estado;
b) existir sentença final condenatória de privação da liberdade, ou estar a prisão do
extraditando autorizada pelo Juiz ou autoridade competente do Estado requerente.
2. No caso de crimes cometidos em território de outro Estado, que não o de
requerente, pode ser concedida a extradição quando a lei moçambicana atribuir competência
à sua jurisdição em igualdade de circunstâncias ou quando o Estado requerente comprovar
que aquele Estado não reclama o agente da infracção.

Artigo 6.º
Regras especiais de extradição
1. O Estado requerente não pode deter, julgar, nem sujeitar a qualquer outra restrição
de liberdade a pessoa extraditada no seu território, e nem por qualquer facto distinto do que
motivou a extradição e lhe seja anterior ou contemporâneo.
2. Cessa a proibição constante do número anterior, quando os elementos constitutivos
da infracção forem alterados no Estado requerente contra a pessoa a ser extraditada.

Artigo 7.º
Reexpedição
1. O Estado requerente não pode reextraditar para terceiro Estado a pessoa que o
Estado requerido lhe entregue no seguimento do pedido de extradição.

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2. Cessa a proibição constante do número anterior quando:
a) nos termos estabelecidos para o pedido de extradição, for solicitada e prestada a
correspondente autorização, ouvido previamente o extraditado;
b) o extraditado, tendo a possibilidade de abandonar o território do Estado
requerente, não o faz dentro de 45 dias ou, tendo abandonado, aí voluntariamente regressar.

Artigo 8.º
Concurso de pedidos
1. Havendo concurso de pedidos de extradição sobre a mesma pessoa e pelos mesmos
factos, tem preferência o pedido do Estado em cujo território a infracção foi cometida
(territorialidade).
2. Tratando-se de pedidos que respeitem a factos diferentes, têm preferência:
a) no caso de infracção de gravidade diferente, o pedido relativo a infracção mais
grave segundo a lei moçambicana;
b) no caso da infracção de gravidade idêntica, o que em primeiro lugar houver
solicitado a entrega do extraditando;
c) tratando-se de pedidos simultâneos (de gravidade idêntica), o do Estado de origem
do extraditando ou, na sua falta, o do Estado domiciliar;
d) nos demais casos, o do Estado que, de acordo com as circunstâncias concretas,
designadamente a data do pedido, a nacionalidade ou residência do extraditando, a existência
de um tratado ou possibilidade de reexpedição entre as partes requerentes, se entender que
deva ser preferido aos outros.

Artigo 9.º
Extradição diferida
1. A entrega da pessoa reclamada pode ser diferida para um outro momento quando:
a) existir, em tribunais nacionais, processo criminal em recurso;
b) estiver a cumprir pena privativa de liberdade, por infracções diversas das que
fundamentaram o pedido.
2. Nos casos do número anterior, a entrega só ocorre quando o processo ou o
cumprimento da pena terminarem.
3. Constitui, igualmente causa de adiamento da entrega, a verificação, por meio de
perícia médica, de enfermidade que ponha em perigo a vida do extraditando.

Artigo 10.º
Entrega temporária
1. Nas situações descritas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior, a pessoa
reclamada pode ser entregue temporariamente ao Estado requerente, havendo compromissos
de que terminados esses actos, a pessoa reclamada seja restituída sem quaisquer condições
para a prática de determinados actos processuais, desde que:
a) se demonstre que os mesmos não poderiam ser adiados sem grave prejuízo;
b) a entrega não prejudique o andamento do processo pendente em Moçambique.
2. Se a pessoa entregue temporariamente estiver a cumprir pena, a execução desta
fica suspensa, desde a data em que essa pessoa foi entregue ao representante do Estado
requerente até à data da sua restituição às autoridades nacionais.

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3. É, todavia, descontada na pena a detenção que não venha a ser computada no
processo estrangeiro.
4. No caso de ter sido diferida a extradição nos termos do artigo anterior, a
autorização para a entrega temporária é tramitada como incidente do pedido de extradição,
exclusivamente com vista à apreciação, pelo Tribunal Supremo, dos critérios enunciados no n.º
1 do presente artigo.
5. O Tribunal Supremo ouve o tribunal à ordem do qual a pessoa se encontra e o sector
do Governo que superintende a área da justiça.

Artigo 11.º
Detenção provisória
1. Em caso de urgência, e como acto prévio de um pedido formal de extradição, pode o
Estado requerente solicitar a detenção provisória da pessoa a extraditar.
2. A decisão sobre a detenção e a sua manutenção é tomada em conformidade com a
lei nacional.
3. O pedido de detenção provisória deve indicar:
a) a existência do mandado de detenção ou decisão condenatória contra a pessoa
reclamada;
b) um resumo dos factos constitutivos da infracção, o momento e o lugar da sua
prática;
c) os preceitos legais aplicáveis;
d) os dados disponíveis acerca da identidade, nacionalidade e localização da pessoa
reclamada.
4. A detenção provisória cessa se o pedido de extradição não for recebido no prazo de
18 dias a contar da detenção, podendo, prolongar-se até 40 dias se razões atendíveis,
invocadas pelo Estado requerente, o justificarem.
5. A detenção pode ser substituída por outras medidas de coacção, nos termos
previstos no Código de Processo Penal.
6. O disposto no n.º 4 não prejudica nova detenção e a extradição, se o pedido for
ulteriormente recebido.
7. O pedido de detenção provisória só pode ser atendido quando não se suscitarem
dúvidas, sobre a competência da autoridade requerente e contiver os elementos referidos no
n.º 3 do presente artigo.

Artigo 12.º
Detenção não directamente solicitada
É lícito às autoridades de polícia criminal efectuar a detenção de indivíduos que,
segundo informações oficiais, designadamente da INTERPOL, sejam procurados por
autoridades competentes estrangeiras para efeito de procedimento ou de cumprimento de
pena por factos que notoriamente justifiquem a extradição.

Artigo 13.º
Medidas de coacção não detentivas
Na pendência do processo e até ao trânsito em julgado da decisão final, é
correspondentemente aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 11.

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Artigo 14.º
Comunicação da decisão
A parte requerida deve informar à parte requerente da decisão sobre o pedido de
extradição indicando, em caso de recusa, os motivos dessa recusa.

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