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Conferência do Pbro. Dr. Ignacio Andereggen sobre a relação entre “Moral e Religião em
Freud”, realizada em 28 de agosto de 2009 no Multiespacio Cultural EL CAMINO (Mar
del Plata, Argentina) e organizada pela associação Fraternidad de Vida Nueva.
Pe. Andereggen:
Sigmund Freud viveu entre o século XIX e o século XX. De alguma maneira, Freud
é uma ponte entre as características culturais daquele e deste. No século XIX, Freud
assimilou especialmente o pensamento cientificista, principalmente a concepção
evolucionista de Darwin. Por outro lado, assimilou, desde o ponto de vista filosófico, o
ponto de chegada e de dissolução do idealismo alemão, que se encontra especialmente na
filosofia de Nietzsche. Freud está profundamente influenciado por Nietzsche. Por outra
parte, encontramos no pai da psicanálise o influxo de David Friedrich Strauss, que é um
autor de derivação hegeliana. Além disso, Freud foi aluno de um famoso filósofo que se
chamava Franz Brentano, padre dominicano que abandonou o sacerdócio e a vida
religiosa. Freud se impressionou profundamente com as explicações filosóficas de
Brentano. Portanto, nos encontramos diante de um autor que apresenta a confluência de
múltiplas formas de conhecimento, determinadas pelo clima cultural da época. Por outro
lado, Freud recebe diretamente o influxo da filosofia kantiana, que é anterior ao século
XIX. Para entender a doutrina freudiana, é fundamental conhecer a doutrina de Kant.
O tabu é a proibição. Freud toma o tema do tabu dos estudos antropológicos da sua
época. Nesse livro, por exemplo, começa tratando acerca dos aborígenes australianos, etc.
Para Freud, todos os povos primitivos teriam características psíquicas similares que
perduram em estados posteriores da evolução humana. Os neuróticos atuais seriam aqueles
homens nos quais aparece, de uma maneira reduzida e restringida, aquilo que se deu na
evolução anterior da humanidade. Assim, o neurótico seria uma pessoa que não evoluiu
completamente e que, portanto, apresenta algum aspecto primitivo na sua personalidade.
Para Freud, a neurose não é alheia à vida normal. Pelo contrário, a vida normal está
constituída pela neurose, mas elaborada em um universo superior, segundo um fenômeno
denominado sublimação, que seria a base de todos os fenômenos sociais e culturais, e que
seria [radicalmente] a base da elaboração mental que constitui a razão. A razão, segundo
Freud, não é outra coisa senão o fruto de uma neurose elaborada, porque a neurose não é
considerada por ele como algo merecedor de um juízo moral negativo, mas como uma luta
de forças que constitui o humano enquanto tal.
Diz Freud que o tabu perdura até os nossos dias: isto significa que a moral dos
povos civilizados [que para Freud são os cristãos europeus de sua época], fruto de
proibições impostas no princípio da evolução da humanidade, perdura. Essas proibições
teriam um sentido aparentemente mais racional que a religiosidade, e constituiriam a base
da racionalidade. Tomando o vocabulário de uma época posterior do pensamento de Freud,
poderíamos dizer que o tabu corresponde à elaboração do ego, e o totem corresponde
ao id, que é o fundo de onde surgem todas as forças psíquicas. O tabu corresponde ao ego,
como dissemos, e o ego é uma espécie de desdobramento psíquico do id, que é a fonte de
todo o psiquismo, como que continuando a evolução da vida, que é considerada por Freud
de uma maneira única. Recordemos que não há pensamento metafísico em Freud, porque
Freud é kantiano, e Kant elimina a metafísica, ao menos como a consideramos segundo a
tradição, isto é, como ciência que alcança o imaterial, que alcança a substância, como dizia
Aristóteles. Para Freud, não há substância particular, não há entes que sejam constituídos
pelo ser no sentido profundo. Para Freud, todo o bem da vida e a própria vida não são outra
coisa que não uma elaboração da matéria. O totem, então, representa a vida que brota desde
baixo, e o tabu representa uma força que se manifesta como racionalidade, mas é contrária
à vida. Esta força, no entanto, brota da própria vida, o que implica dizer, portanto, que a
vida é contraditória. Com isso, Freud formula [e o encontramos na mesma obra, Totem e
Tabu] a lei fundamental da vida psíquica, que é a ambivalência, e isso quer dizer que um
fenômeno psíquico significa algo e ao mesmo tempo significa o oposto. O amor implica o
ódio, por exemplo. Para Freud, sendo assim, a concepção de tabu [que corresponde à
moralidade] nos povos civilizados não é outra coisa que o imperativo categórico de Kant,
isto é, que a moral deve ser entendida da mesma maneira que Kant a entendeu. A moral
na psicanálise é a moral kantiana. Mas Freud pretende superar a moral kantiana, porque a
considera unilateral e repressiva e considera que a verdadeira moral não guardaria a vida,
mas permitiria o “livre” jogo entre o fluir da vida e a força racional contrária. Este “livre”
jogo [que na realidade não é livre, pois Freud segue a Schopenhauer e não considera que
a vontade seja livre] é como uma imitação da liberdade, possibilitada pela oposição entre
a racionalidade e os instintos que surgem do fundo da vida material. É deste choque que a
psicanálise se ocupa e, mais ainda, trata de favorecê-lo, institucionalizá-lo e convertê-lo
[de maneira sofisticada e elaborada] no mais profundo que há na vida humana. Dito com
outras palavras: se trata de reelaborar a neurose não para que deixe de ser neurose, mas
para que seja uma neurose superior, compreendida, assimilada e favorecida. Freud realiza
este “projeto” com toda a sua doutrina, e é por isso que diz em algumas obras que é preciso
ser uma pessoa normal para ser “psicanalisada”. Uma pessoa enferma psiquicamente não
poderia ser “psicanalisada”, pois seria preciso ser uma pessoa com um certo equilíbrio e
um certo sentido da moralidade. Tudo isto implica dizer que a psicanálise não é
fundamentalmente um método terapêutico, mas uma espécie de sabedoria que substitui a
metafísica, que é a sabedoria no sentido tradicional, desde Aristóteles e Platão. A
psicanálise seria uma interpretação total da vida e da realidade, e por isso corresponde a
uma espécie de [falsa] espiritualidade, pois espiritualidade inclui não só a Teologia, mas
também [de certa maneira] a Filosofia. É certo que Freud não é religioso, mas somente um
estudioso [do seu próprio modo] da religião, e por isso, propriamente falando, não há
Teologia em Freud, mas somente uma filosofia.
Totem e Tabu foi rapidamente traduzido ao hebraico. Freud era judeu e recebeu
uma educação religiosa de seu pai, mas também recebeu todo o influxo positivista e
iluminista do século XIX. Diz o prólogo à edição hebraica: «Nenhum dos leitores deste
livro poderá colocar-se com facilidade na situação afetiva do autor, que não compreende
a língua sagrada e está completamente alheio à religião paterna – e a qualquer outra religião
–; que não pode simpatizar com ideais nacionalistas, mas nunca desmentiu o
pertencimento ao seu povo, pois sente que sua peculiaridade é de judeu e não deseja mudá-
la [isto é, Freud se proclama judeu apesar de negar esta e qualquer outra religião]. Se lhe
perguntassem: “Mas o que ainda há de judeu em ti se renunciaste a todas essas relações de
comunidade com teus com compatriotas?”, ele responderia: “Muita coisa ainda,
provavelmente o principal” [Esta é uma resposta misteriosa. O que é o principal de ser
judeu? Para ele não é a religião, pois ele já a abandonou e tornou-se ateu]. Mas, no
momento, ele não poderia formular essa característica essencial com palavras claras. Mais
tarde, certamente haverá uma ocasião em que ela será acessível à compreensão científica.
Assim, para tal autor, constitui uma experiência particularíssima que seu livro seja
traduzido para a língua hebraica e colocado nas mãos de leitores para os quais esse idioma
histórico é uma língua viva. Um livro que, além disso, trata da origem da religião e da
moralidade, mas que não conhece nenhum ponto de vista judaico, não faz nenhuma
restrição a favor do judaísmo. Mas o autor espera coincidir com seus leitores na convicção
de que a ciência sem preconceitos não pode permanecer estranha ao espírito do novo
judaísmo». Que é este novo judaísmo? Para Freud, há uma religião judaica que deve ser
abandonada. Em relação à religião judaica tradicional, Freud afirma que o cristianismo é
superior [de acordo com o critério que diremos em seguida]. Ao final de sua produção, em
1939, publicou um livro chamado Moisés e a religião monoteísta, no qual há a mesma
doutrina dita acima. Que é o próprio do povo judeu para Freud? O próprio do povo judeu
seria sentir culpa por ter matado a Deus. E o próprio do povo cristão, segundo Freud, é não
sentir culpa por ter matado a Deus, pelo contrário, sentir-se orgulhoso de ter matado a
Deus e de ter se colocado no lugar Dele. Isto é o que Cristo fez, de acordo com Freud. Lê-
se ao final de Totem e Tabu: «Não pode haver dúvida de que, no mito cristão, o pecado
original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a
humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a
concluir que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente
enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado
pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se este
sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado
só pode ter sido o homicídio do pai». Aqui, encontramos um ponto de apoio fundamental
para entender o essencial da doutrina freudiana: Cristo seria o super-homem, e representa
o mais evoluído da humanidade, isto é, aquele super-homem de Nietzsche. Em que se
constitui o super-homem? O super-homem se constitui pela autoafirmação, isto é, por
aquilo que cristianamente chamaríamos soberba. Para Nietzsche, que inspira secretamente
a Freud, o homem é homem quando se autoafirma, e se autoafirma às custas dos demais:
isto é a essência da [nova] moral, segundo Nietzsche. Isto é a inversão do cristianismo: se
o cristianismo diz “felizes os que choram, os pobres, os que têm fome e sede de justiça”,
Nietzsche diz que isto é a moral dos escravos, não a moral dos homens livres, dos nobres,
dos guerreiros, dos que se impõem. Freud assimilou a doutrina nietzschiana e fez dela o
centro de sua própria doutrina acerca da evolução psíquica: a evolução psíquica seria
autoafirmar-se, separando-se daquele que lhe tira a liberdade, que é o pai. O complexo de
Édipo é o ódio do pai que acontece simultaneamente ao amor a este mesmo pai. Cristo,
para Freud, é o homem que superou o complexo de Édipo por excelência, separando-se do
Pai por excelência, que é Deus. Por isso, no método psicanalítico, a referência ao pai em
uma pessoa individual é, no fundo, uma referência a Deus, e separar-se do pai é separar-
se de Deus, ao mesmo tempo em que o ama.
A reconciliação com o pai seria muito mais radical, porque, de maneira simultânea,
este sacrifício produziria a total renúncia à mulher, que seria a causa da sublevação contra
o pai. Para Freud, os homens primitivos tiveram uma motivação inferior para assassinar o
pai, e esta motivação foi ficar com as mulheres do pai. Esta motivação seria inferior
porque, para Freud, a mulher representa um estado inferior da evolução. Em que Freud
estava pensando? Freud estava pensando nos sacerdotes católicos, que não se casam. Freud
disse diversas vezes que tinha bom motivos para não se casar. Cristo é identificado com o
sacerdócio, porque o sacerdote representa Cristo. Cristo teria matado o Pai, roubando o
seu lugar, sem necessidade das mulheres. E Freud o diz de uma maneira meramente
“racional”, não por um motivo inferior, como é o desejo sexual. Nesse ponto, a fatalidade
psicológica da ambivalência reclama seus direitos. Vimos que a lei fundamental da vida
humana, para Freud, é a ambivalência, que representa esta contradição fundamental. No
ato mesmo de oferecer ao Pai a maior expiação possível, o Filho também alcança a meta
de seus desejos contra o próprio Pai. Ele mesmo se tornaria Deus no lugar do Pai. Isto é,
Cristo teria se colocado no lugar de Deus. Para Freud, a religião do Filho subjuga a religião
do Pai. Vimos no princípio deste livro que Freud chamava a religião judaica de religião
paterna: a religião do Pai seria a religião judaica, e a religião do Filho seria o cristianismo.
Isto é, a religião judaica tradicional seria uma religião inferior ao cristianismo, porque é
uma religião na qual se sente culpa por se ter matado a Deus. Os cristãos teriam matado a
Deus e não teriam sentido culpa por isso, porque o cristianismo, em sua essência, seria a
religião do homem que se faz Deus. Para Freud, o cristianismo não teria um sentido
sobrenatural e não teria um sentido de culto divino, reconhecendo a Deus como criador de
todas as coisas, senão que teria um sentido de aperfeiçoar a dignidade de homem, que é o
que se vê, por excelência [segundo Freud] em Cristo. O cristianismo, portanto, teria
substituído o judaísmo, e o antigo banquete totêmico teria sido reanimado como
comunhão. Agora, os irmãos consumiriam a carne e o sangue do Filho. Já não haveria Pai.
Os irmãos se santificariam pelo consumo e se identificariam com o Pai. Segundo Freud, a
celebração da missa seria a atualização do assassinato do Pai e do banquete que, pelo
assassinato do pai, a horda de homens primitivos celebrou. A visão de Freud identificava
o banquete totêmico com o sacrifício animal, com o sacrifício divino e com a Eucaristia
cristã. Para Freud, todas as religiões fariam a mesmo. As religiões teriam uma ordem
evolutiva: primeiro, faziam um banquete totêmico; depois, sacrificavam animais; depois,
matavam homens; e depois, celebrariam a eucaristia. De acordo com Freud, tudo isso é a
mesma coisa e há uma identidade em todas as formas de religiosidade. Em todas essas
cerimônias solenes há o efeito continuado daquele crime. Isto é, para Freud, a religião tem
um sentido escondido, um sentido que poderíamos denominar místico [místico no sentido
de “oculto”, “escondido”, diabólico, não místico no sentido da autêntica mística cristã]: a
religiosidade se transforma em uma espécie de religião diabólica, que é a religião do
homicídio, do ódio, que é o que está escondido como mais profundo e constitutivo da vida
psíquica, porque a evolução, da animalidade à plena humanidade, se constitui justamente
por esta força negativa que se opõe à vida e surge, ao mesmo tempo, da própria vida. Esta
força negativa teria formas cada vez mais sofisticadas, que teriam seu ponto culminante
na racionalidade que se expressa nas distintas formas da vida cultural. Por isso, se por uma
parte a moral [entendida no sentido kantiano] é aquilo que está mais imediatamente
presente nas civilizações e que as constitui, por outro lado, por trás da moral, há uma força
misteriosa [demoníaca], que é o que dá força a moral. A força da moral dependeria da
força da “religião”, que se expressaria como negação, como homicídio, como pecado,
como soberba, como orgulho. O pecado seria motivo de orgulho, não de culpa.