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Cristina Pompa
RESUMO
A partir das idéias de José de Acosta e Antônio Vieira sobre a relação entre o fim do mundo e
a evangelização do gentio, o artigo discute a prática jesuítica de catequese nas Américas e no
Brasil ao longo dos séculos XVI e XVII, em particular no que diz respeito à criação dos aldea-
mentos indígenas. A análise de alguns documentos missionários (entre os quais um inédito)
mostra a reformulação permanente e conflituosa do projeto de conversão dos índios em meio
às Constituições jesuíticas, aos ditames do Concilio de Trento e à realidade da Colônia.
Palavras-chave: jesuítas; milenarismo; missões; Brasil colonial; utopia.
SUMMARY
From Jose de Acosta's and Antonio Vieira's ideas on the relation between the end of the world
and indigenous evangelization, the article discusses Jesuit catechetic practice in America and in
Brazil throughout the 16th and 17th centuries, particularly about the creation of Indians' villages.
The analyses of missionary documents (including an inedited one) shows the constant and
conflictive reformulation of Indians conversion project in the midst of the Jesuit Constitutions,
the Council of Trent and the reality of the Colony.
Keywords: Jesuits; millenarianism; missions; colonial Brazil; Utopia.
Os jesuítas e o Milênio
(1) Entre os trabalhos sobre o
milenarismo na idade das Des-
cobertas, podemos lembrar
Bataillon, Marcel. "Novo Mun-
do e fim do mundo". Revista de
História (São Paulo), nº 18, Uma vasta literatura histórica e antropológica discute os anseios pro-
1954, pp. 343-351; Haubert,
Máxime. "Indiens et jésuites au féticos que animaram a idade das Descobertas: das impetuosas sugestões
Paraguay. Rencontre de deux
messianismes". Archives de So- salvíficas que inspiraram o próprio Colombo à vocação milenarista dos fran-
ciologie des Réligions (Paris), nº
27, 1969, pp. 119-133; Phelan, ciscanos na Nova Espanha. Essas instâncias milenaristas influíram profunda-
John. The millennial kingdom mente na leitura da alteridade antropológica indígena como genus angeli-
of the Franciscans of the New
World. Berkeley: University of cum (gênero angelical) com o qual refundar uma Igreja livre de pecados e
California Press, 1970; Prospe-
ri, Adriano. "America e apoca- construir o Reino de Deus na terra, na véspera do fim dos tempos. Entre os es-
lisse. Note sulla 'conquista spi-
rituale' del Nuovo Mondo". tudiosos é também freqüente a opinião de que, passado o primeiro momento
Critica Storica (Roma), vol. 13,
nº 1, pp. l-6l; Delumeau, Jean. de certeza da iminência do fim do mundo e do advento dos mil anos do Reino
Mil anos de felicidade— uma
história do paraíso. São Paulo: de Cristo na terra, o sonho milenário foi se apagando em face dos conflitos
Companhia das Letras, 1998;
Chaui, Marilena. "Profecias e com os colonizadores e da resistência indígena à conversão, cedendo lugar à
tempo do fim". In: Novaes,
Adauto (org.). A descoberta do
evangelização como projeto de civilização1.
homem e do mundo. São Pau-
lo: Companhia das Letras, pp. Sem dúvida, a perspectiva escatológica foi determinante nos primeiros
453-505. anos da Conquista, enquanto o ordenado projeto de catequese, influenciado
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deslocada para o Novo Mundo nem queria ver seu projeto de longo prazo
abalado por alguma vocação apocalíptica. Por isso, as profecias messiânicas
começaram (e continuaram no século seguinte) a ser objeto de interesse da
Inquisição — basta lembrar os longos anos de prisão de Tommaso Campa-
nella, para quem o maior sinal do fim das eras era justamente o "evangelium
predicatum est in novo orbe" (o evangelho pregado no novo mundo), e,
obviamente, o processo contra Antônio Vieira.
Acosta é fundamental para entender a reformulação e a afirmação do
projeto missionário no Novo Mundo. Assim, o De temporibus novissimis deve
ser lido no conjunto geral da obra do jesuíta, que já nos títulos evidencia as
preocupações da Companhia, da Igreja e da época: De promulgando Evan-
gelio apud barbaros, sive de procuranda indorum salute ("Da pregação do
Evangelho entre os bárbaros, ou da busca da salvação dos índios"), de 1589;
Historia natural y moral de las Indias, de 1590. Trata-se de uma releitu-
ra global do papel da religião após cem anos de evangelização, uma tradução
em termos antropológicos da experiência missionária, em que a evangeli-
zação se torna um projeto cultural global de reconquista religiosa e civil da
humanidade.
A experiência da evangelização em terras americanas levou os jesuítas
a reformular a prática missionária no horizonte mais amplo da nova filosofia
da história da Igreja contra-reformista — o tempo não podia acabar porque o
desenho de Deus não estava completo. O Concílio de Trento, respondendo
com a sistematização da ortodoxia aos medos apocalípticos suscitados por
Lutero enquanto Anticristo, reelaborou com minúcias o projeto de cateque-
se, interna e externa, e determinou que seu eixo principal não era mais o
batismo, mas a confissão. Daí a pouca valia dos batismos em massa pratica-
dos pelos franciscanos no México: de nada adianta batizar os índios, diz
Acosta, "antes que saibam mediamente a doutrina cristã, e sem que conste
(6) Idem, p. 55. que estão arrependidos de sua vida criminal e supersticiosa"6. E do ponto de
vista doutrinal o batismo administrado sem o necessário preparo, além de
inútil, era perigoso, pois a "volta ao paganismo" de um índio batizado sig-
nificava a perda definitiva de sua alma. No Brasil, por exemplo, a "inconstân-
(7) Cf. Viveiros de Castro, cia da alma selvagem"7 dos tupinambás, de que tanto se queixavam os padres
Eduardo. "O mármore e a mur-
ta: sobre a inconstância da alma da Companhia, requeria um trabalho mais intensivo e sistemático com os
selvagem". In: A inconstância
da alma selvagem. São Paulo: nativos.
Cosac & Naify, 2002.
O debate teológico acerca da catequese teve origem nessa reformula-
ção do projeto missionário sobre os índios e também o acompanhou, levando
a uma nova antropologia religiosa. Nela, os temas proféticos não se apaga-
ram, mas convergiram na construção e consolidação de uma teologia (e teleo-
logia) da história de cunho providencial, uma "história do futuro", para usar a
poderosa expressão de Antônio Vieira. Isso não era incompatível com os
ditames do Concílio de Trento: ao contrário, realizava-os plenamente, com-
batendo a heresia e implantando a catequese de uma forma sistemática. A ex-
periência das aldeias missionárias foi a mais alta expressão dessa esperança.
O que se apagava — mas não completamente, porque o pensamen-
to messiânico e milenarista subsistiu, tendo no sebastianismo uma de suas
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missões e da catequese com índios e negros 19 . Tratava-se de um incentivo às (19) Cf. Leite, Serafim. História
da Companhia de Jesus no Bra-
missões, e, de fato, nos anos 60 do século XVII foram criadas as missões no sil. Lisboa/Rio de Janeiro: Li-
vraria Portugália/Civilização
sertão. Poder-se-ia pensar numa crise de vocação dos missionários da Brasileira, 1948, vol. V, p. 280.
Colônia (problema sempre presente) que Roma tentou consertar, ou então
numa vontade de acompanhar com as missões as fases do conflito contra os
"tapuias" no que diz respeito ao controle religioso dos "bárbaros" vencidos e
aliados20. (20) Cf. Puntoni, Pedro. A guer-
ra dos bárbaros. São Paulo:
A empreitada de catequese no sertão suscita conflitos não só externos Hucitec, 2002.
(contra os colonos, por exemplo) mas também no interior da Companhia no
Brasil. Um caso exemplar foi o que envolveu o missionário flamengo Jacob
Roland, que, experimentando algo totalmente novo na história da cateque-
se, propôs a fixação do missionário nas aldeias dos "tapuias". Essa atitude
teve por efeito tanto a censura da Província como a entusiástica aprovação
de figuras importantes da elite jesuítica, entre as quais a do ex-padre
provincial Simão de Vasconcelos, autor da famosa Crônica da Companhia
de Jesus. O padre Roland se pronunciou veementemente contra a prática dos
descimentos numa longa carta, intitulada "Questão: se os tapuias têm de ser
tirados do sertão e levados para mais próximo do litoral ou não"21, da qual (21) Quaestio: Utrum tapuyae à
Mediterranei proprius littora
cito alguns trechos que me parecem significativos para a problemática adducendi ut christianis inici-
desenvolvida aqui: entur sacris an non. À Jacobo
Rolando ad Commiss. Missa,
1667. Roma: Arquivo Histórico
da Companhia de Jesus, Bras.,
3(2), f. 61. São minhas as tradu-
ções do original em latim que
Digo que não há nenhuma razão de tirar os índios de seus sertões para se seguem.
iniciá-los nos princípios cristãos, mas que eles têm de ser batizados em
suas próprias terras e nesses mesmos sertões. [...] Eles não suportam ser
tirados à força nem iludidos, nem [mesmo se] levados pela fome e pela
miséria. Com efeito, quantos de muitos milhares de índios sobrevive-
ram sem a ajuda dos padres ou de outros quando levados à força de
suas terras? Talvez um sobre mil esteja vivo. [...] E mesmo que os mais
robustos entre eles possam resistir à inclemência do ar, matá-los-ia a
fome, como nos ensina a experiência. Com efeito, quem poderia susten-
tar essa enorme multidão de homens? Nosso colégio, talvez? E onde?
Nosso poderosíssimo rei, talvez? Mas nem com todo o tesouro da rainha.
[...] Dirá alguém que, reduzindo-se os índios, se lhes ensinará a cultivar
a terra, a plantar o que precisarem, a fazer roça para se sustentarem.
Justo. Mas aí pergunto: por que não foi feito nos casos anteriores? E se foi
feito, por que os índios são extintos? Finalmente, enquanto a terra não
produz seus frutos para que eles possam se alimentar, como subsisti-
riam nesse meio tempo? Jejuando?
Os padres desta nossa província, pelo menos muitos, no que diz respeito
às coisas do sertão são cegos, pois nunca penetraram nele, a não ser por
volta de trinta ou quarenta anos atrás, por acaso, nem sequer têm idéia
do que aí se trata; erram quando pensam [...] me atacar com um
argumento inatacável: dizem que, até o presente, sempre foi costume os
padres reduzirem os índios conquistados das selvas e do sertão. [...] De
modo algum penso em criticar ou negar os fatos dos nossos heróicos e
santíssimos padres, já que os adoro e venero, por serem inspirados pelo
Espírito Santo. Mas observo que naqueles tempos e circunstâncias esses
fatos eram necessários; hoje os tempos e as circunstâncias são diferen-
tes, para não dizer contrários. [...] Com efeito, os padres antigamente
reduziam os índios para não viver junto a eles, contra qualquer costu-
me, expostos a mil perigos ([...] imagino que os padres tirassem os índios
do sertão por serem eles tão poucos no começo que seriam insuficientes
para as missões do litoral e do sertão). Certamente aqueles dos nossos
que hoje cultivam este sertão e assistem os índios [...] se furtam aos
ofícios da sociedade e à educação dos índios; ao ponto que este sertão,
abandonado, é ocupado por europeus e angolanos, que todo o possuem
e cultivam e vivem misturados nas aldeias dos índios. Eliminada
portanto a causa do costume do descimento dos índios para o mar,
deixa de existir o próprio costume.
Finalmente, se os sacerdotes seculares não hesitam em penetrar este
sertão para trabalhar e assistir os portugueses [...] no Alto São Francisco,
distante muitas milhas, e não temem os índios, [...] nós, nos mesmos
lugares, [por que] hesitamos em conviver com os índios e ganhá-los
para Deus? Será que as almas dos índios estão em condições piores do
que antigamente? Ou nossas vidas são mais preciosas do que aquelas
dos padres espanhóis e franceses ou mesmo dos seculares?
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Mas não se sabe lá que nenhum de todos eles tratou, em toda sua vida,
com índios, nem lhes sabe a língua, exceto um que lhe fala alguma
palavra. Antônio Vieira esteve cinco anos em todas as aldeias da
Bahia, e nove anos nas gentilidades do Maranhão e Grão-Pará, onde
em distância de quatrocentas léguas levantou dezesseis igrejas, fazen-
do catecismos em sete línguas diferentes [...]. Também se não sabe que o
autor destas Administrações, que lá se aprovaram, foi um padre italia-
no que nunca viu índio e só o ouviu aos paulistas24. (24) Idem, p. 345.
Andreoni na verdade chegou a "ver" algum índio, mas não resta dúvida
de que sua vocação não era a de missionário. Curiosamente, foi ele, enquan-
to reitor do Colégio da Bahia, a última pessoa a ver os originais da Clavis pro-
fetarum de Vieira após a morte deste, e seu parecer a respeito, mesmo com
louvores formais, apontou a conveniência de discutir algumas das opiniões
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TEMA EM DESTAQUE
POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL
OUTROS TEMAS:
INICIATIVAS PÚBLICAS DE REDUÇÃO DA VIOLÊNCIA ESCOLAR NO BRASIL
Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Marília Pontes Sposito
EXPLICAÇÃO DO CONTEÚDO:
ELEMENTO ESTRUTURANTE DA APRENDIZAGEM EFICAZ
Marilda da Silva
TEMAS EM DEBATE
Periódico quadrimestral publicado pela A REFORMA DO ENSINO MÉDIO NO CHILE:
Fundação Carlos Chagas desde 1971. VITRINA PARA A AMÉRICA LATINA?
Dagmar Zibas