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MACHADO DE ASSIS E A CRÍTICA MUSICAL

O FUTURO (1862-1863)

Alex Sander Luiz Campos (IFNMG/UFMG)

RESUMO: De setembro de 1862 a julho de 1863, Machado de Assis foi um dos colaboradores
mais assíduos da revista luso-brasileira O Futuro, editada por Faustino Xavier de Novais. Era O
Futuro um periódico literário, mas também divulgador de outras artes. Ao final de cada número,

assinou dezesseis das vinte crônicas publicadas nessa seção. Em oito delas, a função do cronista
muito se aproximou da de um crítico de música alguém atento à cena musical, aos artistas e
seus projetos, à habilidade e à técnica dos intérpretes. Apresentar e comentar essa parte menos
conhecida da produção machadiana é o objetivo deste trabalho. Em razão dos limites de uma
comunicação, nos restringiremos aos dois músicos que receberam maior atenção por parte de
O Futuro: o pianista Artur Napoleão e o clarinetista Rafael Croner,
ambos portugueses.

Palavras-chave: Machado de Assis. Música. O Futuro. Crônica. Crítica musical.

O Futuro (1862-1863), a efêmera revista luso-brasileira editada pelo poeta


portuense Faustino Xavier de Novais e impressa, em momentos distintos, pelas
tipografias de Brito & Braga e do Correio Mercantil

estabelecida na Rua de São José, 75 (O FUTURO, 1867, p. 1, caixa-alta do origina l).


Novais continuaria escrevendo e colaborando na imprensa até os últimos anos de vida,
mas sofria de distúrbios mentais cíclicos (MACHADO, 2008, p. 243). É difícil avaliar,
O
Futuro. De todo modo, o fato de a revista, em sua publicação original, já trazer as páginas
numeradas sequencialmente (sem novo começo a cada fascículo, como é de praxe em
periódicos) talvez indique o propósito, existente já quando da fundação da revista, de que,
um dia, ela viesse a ser encadernada em volume único, como um livro. Tudo indica que

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O Futuro, mas a capa


do periódico passou por alterações relevantes entre outras, o acréscimo das seguintes
informações, localizadas abaixo do título e do subtítulo (os mesmos da edição origina l) :
Collaborado por varios escriptores brasileiros e portuguezes / Contendo
biographias, romances, poesias, chronicas, gravuras, etc.
negrito do original). Perdeu-se aí a oportunidade de enfatizar um dos legados da
publicação: sua contribuição para a música. Com efeito, O Futuro, além de periódico
literário, foi seguramente musical; se nessa revista publicaram escritores, também
musicistas compuseram seu quadro de colaboradores. Além das gravuras (v. FIGURA 1),
O Futuro
Napoleão, saiu no número III (15 out. 1862, p. 1-4, antes da p. 73 da numeração regular
v. FIGURA 2); outra peç
Júnior, saiu no número VIII (1º jun. 1863, p. 1-4, antes da p. 237 da numeração regular).
Aos pianistas Artur Napoleão, português, e Ricardo Ferreira de Carvalho, brasileiro,
foram dedicados, re

(n. XX, p. 656-657).


O melômano Machado de Assis depois de
O
Futuro não ficou indiferente a essa abertura dada pela
revista. Claro: toda a obra de Machado, seja da
juventude, seja da maturidade, é atravessada por
referências constantes à cena musical brasileira, a
artistas nacionais e estrangeiros, a ritmos eruditos e
populares, à própria teoria musical. Personagens
ligados à música, como instrumentistas e
compositores, têm papel relevante em sua ficção.
Diversos estudos já foram elaborados tendo em vista o
papel da música na literatura de Machado, como o
FIGURA 1 Gravura ilustrativa do texto fundamental Machado Maxixe: o caso pestana, de José
Epigramas vivos / 1 Um pretendente por
música , de Reinaldo Carlos M ontoro (O Miguel Wisnik (2008); uma boa amostra do universo
FUTURO, n. VI, fora de numeração, entre
as p. 190 e 191). Imagem gentilment e musical na obra do escritor fluminense consta do
cedida pela Brasiliana do Itaú Cultural.
primeiro volume da coletânea temática de contos

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organizada por João Cezar de Castro Rocha para a editora Record em 2008. É dado
propagado da biografia machadiana que, entre as várias sociedades artísticas de que foi
sócio o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, esteve o Clube Beethoven, em que,
ao som de concertos de música erudita

O que O Futuro, de forma especial, parece ter proporcionado a Machado foi a


oportunidade de deixar alguma contribuição no campo da crítica musical. (Cf. as crônicas
O Futuro datadas de 15 de setembro e 15 de dezembro de
1862, de 1º de janeiro, 1º de março, 15 de maio, 1º e 15 de junho e 1º de julho de 1863.)

música a expressão é do próprio autor, na crônica de 1º de junho de 1863 (n. XVIII, p.


596) , Machado nos legava tanto matéria para uma reconstituição da cena musica l
fluminense na década de 1860 quanto o registro de sugestões e temas que voltaria m
depois em sua obra.
As crônicas de Machado n O Futuro estão hoje disponíveis em várias edições (cf.,
por exemplo, ASSIS, 2014 edição anotada, com introdução e um índice bastante
proveitoso e ASSIS, 2015, v. 4, p. 70-107). Em razão dos problemas ainda existentes
nas edições dessas crônicas, optamos por citá-las a partir das edições fac-similadas a que
tivemos acesso (disponibilizadas pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da
Universidade de São Paulo, e pela Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional),
preservando a grafia original. Em seu artigo
ea

Liliana Harb Bollos lembra que foi Mário de


Andrade o primeiro crítico de música brasileiro
de expressão. Nas resenhas que escreveu para o
Diário de São Paulo entre os anos de 1933 e
1935, selecionadas e recolhidas em 1993 no
volume Música e jornalismo, Mário comentava
intérpretes, concertos, a vida musical nos palcos
paulistanos, preocupando-se, assim como
outros escritores citados por Bollos Murilo
Mendes e Otto Maria Carpeaux FIGURA 2 - Partitura de Elvira , valsa de Artur
napoleão. Fonte: Coleção d O Futuro
os aspectos musicais da obra com a intenção de digitalizada pela Biblioteca Guita e José M indlin.

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-271). Será

Harb Bollos quanto ao objetivo da crítica publicad


o projeto do artista analisando a obra, possibilitando que esta seja divulgada e assimilada

Machado de Assis não fez da crítica de música um compromisso. Aplicou-se, ao


longo de sua trajetória, à crítica literária e teatral, a ela total ou parcialmente dedicando
artigos, recensões, prefácios, cartas e crônicas. Uma recente reunião desse material em
volume único, realizada pelas pesquisadoras Sílvia Maria Azevedo, Adriana Dusilek e
Daniela Mantarro Callipo (ASSIS, 2013), ultrapassou setecentas páginas e já carece de
atualização. Uma peça crítica de Machado até então esquecida nas páginas do Jornal do
Commercio foi identificada e divulgada apenas este ano [MIRANDA; CAMPOS
(Apresentação e notas), 2016]; especificamente sobre o teatro, deve-se citar o volume
preparado por João Roberto Faria (ASSIS, 2008). Salvo o caso de novas achegas à
bibliografia do autor, é certo que a reunião de suas apreciações musicais não daria um
volume semelhante. Ainda assim, sem dúvida, as páginas que nos deixou sobre

o jovem Machado, reconhecendo as exigências do trabalho crítico, repetidas vezes negou


a suas apreciações de obras literária
litterarias nunca levo pretenção a critico. Tal não me supponho, mercê de Deus. A critica
é uma missão que exige credenciaes valiosas, de cuja mingua me não corro de vergonha
em confessar, como não tenho vaid
escreveu em texto datado de 15 de janeiro de 1863 (O FUTURO, n. IX, p. 306). Se assim
pensava em relação às letras, o que não diria da crítica de música? Com certeza, não
pretendeu realizá- la de forma sistemática, embora, nem por isso, tenha agido de forma

atendendo ao caráter programático dessa revista, que pretendia ser um espaço propício ao
diálogo entre intelectuais lusófonos de aquém e além-Atlântico, Machado, de algum
modo, ainda que despretensiosamente, desejou mostrar aos leitores brasileiros e
portugueses o relevante papel da música na relação cultural entre os dois países. Sua
crítica musical, se assim pode ser chamad O Futuro um dos momentos mais
notáveis, se não o mais sensível, ainda quando se resumisse ao simples registro de
acontecimentos artísticos de seu tempo. A frequência e, principalmente, a qualidade dos
diálogos com a música na produção literária posterior já seriam justificativas suficie ntes

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para o estudo do que escreveu Machado a respeito de instrumentos e instrumentistas em


seu período de formação.
Que houve da parte de Machado interesse no assunto, atestam-no suas leituras da
Revue de deux Mondes, prestigiosa revista parisiense fundada em 1829 e ainda em
circulação. Encontram-se diversas referências à Revue em sua obra, tanto na ficção
quanto na crônica (CAMARGO, 2012). Machado lia com frequência essa revista em
bibliotecas e gabinetes de leitura, e pelo menos um exemplar, de um fascículo de 1852,
integrou seu acervo particular e encontra-se no que restou de sua biblioteca com

JOBIM, 2001, p. 271). Ora, entre os colaboradores assíduos da Revue de deux Mondes,
em meados do século XIX, esteve o musicógrafo e crítico musical francês, nascido na
Itália, Paul Scudo (1806-1864). Vale a pena citar o título de algumas das colaborações de
Scudo na Revue que podem ter sido lidas por Machado ou que podem ter chegado até ele

1850. (Uma lista de colaborações de Scudo na Revue encontra-se em:


<https://fr.wikisource.org/wiki/Auteur:Paul_Scudo>. Acesso em: 14 set. 2016.) Catalani
foi, afinal, nas palavras
(SCUDO, 1849, p. 149), e não foi outro, senão Machado, que escreveu, numa crônica de
-donas
S, 2015, v. 4, p. 1028); Giacomo Meyerbeer, por sua vez, era
o compositor predileto de um dos personagens de Machado o Jorge de Iaiá Garcia (cf.
ASSIS, 2015, v. 1, p. 559). Medalhões com imagens de Catalani e Meyerbeer, bem como
de outros nomes ilustres da música erudita, como Verdi e Rossini, compunham a
decoração do Teatro Provisório, ou Teatro Lírico Fluminense, nome pelo qual passou a
ser chamado em 1854 (CENNI, 2003, p. 425; MACHADO, 2008, p. 331).
Machado citou Paul Scudo, ipsis litteris, na primei
datada de 15 de setembro de 1862. Não mencionou o nome do musicógrafo, tampouco
indicou o título ou a fonte do texto citado, mas, graças à digitalização da Revue de deux
Mondes, sua localização hoje é fácil: trata-

Machado valia-se de um comentário sobre o genial compositor austríaco para falar, em


sua crônica, de outro músico que foi, também, criança prodígio: o pianista português
Artur Napoleão. Eis o trecho da crônica:

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Fallemos agora de Arthur Napoleão que acaba de chegar ao Rio de


Janeiro. Em 1857, aquelle prodigioso menino inspirou verdadeiro
enthusiasmo nesta côrte onde acabava de chegar cercado pela aureola
de uma reputação. Creança ainda, o prestigio dos tenros annos dava ao
seu talento realce maior. Com elle acontecera o mesmo que com
Mozart, de quem diz um escriptor, alludindo á primeira manifestação
do talento na idade pueril rt apprit la musique
comme en se jouant, ou plutôt la musique se réveillait dans son ame

como que brincando, ou antes, a música despertava em sua alma com o


os primeiros annos, Arthur revellou-se, e
desde logo começou para elle essa serie não interrompida de triumphos
de que se tem composto a sua existência (O FUTURO, n. I, p. 38-39).
[
seguiu-se a lição da Revue (SCUDO, 1949, p. 876). A tradução entre
colchetes é proposta por Rodrigo Camargo de Godoi em sua edição
SIS,
2014, p. 45, n. 16).]

Artur Napoleão dos Santos nasceu no Porto, em 1843. Pianista precoce,


aos nove anos de idade iniciou uma turnê internacional, apresentando-se na Europa e nas
Américas, incluindo o Caribe (CABRAL, 1988, p. 437). Cinco anos depois, em 1857,
apresentava-se pela primeira vez no Brasil, fato, como vimos, recordado por Machado,

Baseando-se nessa crônica, Ubiratan Machado aponta a possibilidade de Napoleão ter


conhecido Machado já em sua primeira visita ao Brasil (MACHADO, 2008, p. 236).
Apenas uma hipótese, evidentemente. Quanto à segunda temporada do pianista na
América do Sul, ela praticamente coincide com o período de publicação da revista O
Futuro em junho de 1863 saía o último número da revista de Faustino Xavier; em
novembro do mesmo ano, Artur Napoleão retornava à Europa (MAGALHÃES JÚNIOR,
2008, v. 1, p. 296). Essa coincidência foi feliz, pois permitiu que algumas das crônicas
quatro, se quisermos ser exatos
afinidade intelectual que, paulatinamente, se transformaria em grande amizade, em

236). Cabe lembrar que foi em companhia de Napoleão que, em 1868, chegou ao Brasil
aquela que se tornaria a querida companheira de Machado, Carolina Xavier de Novais.
Deve- - se
morrer
no Rio de Janeiro, em 1925.

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Artur Napoleão é considerado, hoje, um dos fundadores da virtuosid ade


pianística brasileira, tendo exercido importante papel num contexto histórico, o Brasil do
Segundo Império, em que o piano desfrutava de grande prestígio e popularidade

elogios ao músico e faz questão de ressaltar o quanto o trabalho dele é respeitado não
somente pelos amigos e compatrícios, mas também por nomes consagrados da mús ica
europeia:

Os amigos e os patrícios poderiam desconfiar do seu enthusiasmo, e


indagar entre si se elle não era effeito de um amor sem exame nem
reserva, ou pela interessante creança, ou pelo patricio artista. Essa
duvida, se alguma vez se apresentou no espirito dos patricios e dos
amigos dissipou-se sem duvida quando Arthur Napoleão entrando nos
grandes centros da arte e dos artistas recebeu delles a confirmação
solemne do baptismo da pátria. Applausos, ovações, abraços fraternaes
o receberão, e cada nome que passava, Rossini, Meyerbeer, Verdi,
Talberg, Vieux-Temps, Sivori, deixaram uma nota sua, uma linha, uma
palavra no álbum do menino artista (O FUTURO, n. I, p. 39). [Para um
breve resumo biográfico dos artistas citados, cf. GODOI. In: ASSIS,
2014, p. 45-46, n. 17-22.]

O Futuro é que, dotado de


incontestável talento, Artur Napoleão não descuidou do estudo, da técnica. Nas palavras

em cidade, a sua viagem foi um triumpho não interrompido; mas, como verdadeiro artista,
não se deixou adormecer nos louros e nas delicias de Capua; estudou viajando e buscou

facilidade de uma aptidão inata, foi Artur Napoleão um artista, não um simples
habilidoso. Essa distinção, aliás, se mostraria tema trabalhado obsessivamente na ficção
machadiana, conforme observou, entre outros, João Cezar de Castro Rocha (ROCHA. In:
ASSIS, 2008, p. 7- O Futuro,
especialmente nas recomendações feitas a escritores com obras recém-publicadas.
Quando teceu considerações sobre O estandarte auriverde: cantos sobre a questão anglo -
brasileira (1863), de Fagundes Varela, Machado vaticinou um futuro honroso para o
talentoso poeta, condicionado à aplicação e ao estudo dos mestres (O FUTURO, n. XI, p.
372).
Artur Napoleão é o artista com maior presença nas crônicas machadiana s

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comenta-os e divulga-os com interesse em seus textos, contribuindo para a formação ou


o aprimoramento do gosto musical dos leitores. Ainda na crônica de 15 de setembro de
1862, lembra que a atuação de Artur Napoleão não se resumia à interpretação de obras
alheias abrangia também a comp -se ao seu estro musical algumas

do artista:

Sei mesmo que Arthur Napoleão busca voar mais alto e escrever o seu
nome em uma obra duradoura: dous poetas inglezes deitaram mãos á
obra, a pedido do compositor, e cada um foi depor-lhe nas mãos um
poema dramatico, tirado um da comedia de Shakspeare, Como queira,
e o outro de uma novella de Finimore Cooper (O FUTURO, n. I, p. 39).

Ainda não conseguimos verificar como e se esse projeto foi efetivame nte
realizado. Curiosamente, outro dos projetos literomusicais de Napoleão, ainda na década
de 1860 um álbum com poemas musicados teria Machado não como divulgador, mas
como colaborador. Eles foram parceiros em uma composição: a serenata (para canto,

fluminense. Essa canção integrava o álbum Ecos do passado (1º álbum de romances: para
canto com acompanhamento de piano, edição de Narciso José Pinto Braga, 1867), que
reuniu seis poemas musicados por Artur Napoleão. Além dos versos de Machado, trazia

e poesia de Machado, o que pode


pelo menos sugerir que foi escrita especialmente para ser musicada por Artur Napoleão.
Carlos Drummond de Andrade, em texto publicado na Revista da Sociedade dos Amigos

No fim de 1862, Napoleão seguia em tour pela região do rio da Prata. Machado
não se esqueceu de comentá-lo e o faria poeticamente, na crônica de 15 de dezembro:

E para terminar direi que, ao passo que esta revista escripta dentro de
uma casa solidamente construida, é lida pelo leitor no seu gabinete
fechado e na sua casa não menos solidamente construída, anda por alto
mar o pianista Arthur Napoleão, que daqui se foi a mostrar-se aos
nossos visinhos do Prata.
Para não fazer esquecer a fraseologia mythologica e o cunho de
certas figuras poeticas, ponho ponto final dizendo que Eolo ha de por

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certo respeitar aquelle que com harmonias mais brandas, fal-o-hia


encerrar-se captivado nas grutas sombrias de sua morada incognita (O
FUTURO, n. VII, p. 236).

A crônica de 1º de junho de 1863 noticiava o retorno de Artur Napoleão, e um


post-scriptum daria a Machado a oportunidade de divulgar mais um dos projetos do
celebrado artista. Dessa vez, um projeto que mostrava o interesse do músico português
pelas questões brasileiras. Tratava-se de um concerto no Teatro Lírico, cuja renda seria
revertida à comissão da subscrição nacional, responsável por arrecadar fundos em prol do
armamento do exército. Encontrava-se o Império brasileiro, desde o fim do ano anterior,
em conflito diplomático com a Inglaterra, na conhecida Questão Christie, ou anglo -
brasileira (cf. GODOI. In: ASSIS, 20014, p. 81, n. 1 et seq.; p. 148, n. 18). Machado, que
durante muito tempo foi acusado por certos críticos de indiferentismo para com seu país,
elogiava um artista justamente pela contribuição dele à soberania nacional:

Já estava composta a chronica quando recebi uma noticia que me


confirma nas esperanças de uma boa estação musical. Arthur Napoleão
officiou á commissão da subscripção nacional offerecendo os seus
serviços em favor dos fins para que ella se organisou. Naturalmente a
offe
cavalleiresco do distincto pianista (O FUTURO, n. XVIII, p. 596).

De fato, a oferta de Napoleão foi aceita. Na crônica de 1º de julho,


Machado noticiava:

Brevemente tem lugar um concerto dado por ele [Artur Napoleão],


destinando-se o producto á subscripção nacional.
Esta offerta do distincto pianista deve ser recebida pelos
brasileiros com a maior gratidão.
Não quiz Arthur Napoleão deixar de contribuir com o seu talento
para a coll
que não nos esqueceremos, alliando sempre ao nome artistico que elle
adquiriu, o de um amigo de (sic) nação (O FUTURO, n. XX, p. 660).

Artur Napoleão foi um artista laureado. Machado deu notícia da homenage m


prestada a ele por D. Pedro II nessa mesma crônica de 1º de julho. Outro artista laureado

FUTURO, n. XX,
p. 659, grifo do original), a atenção de Machado de Assis: o clarinetista português Rafael
José Croner (1828-1884). Croner foi solista notável. Conforme o pesquisador Gil

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dades de

(MIRANDA, 1993, p. 180-181). Antes dos vinte anos, era já músico profissional. 1861 é
o ano provável de sua primeira turnê internacional, em companhia do irmão, o flautista
Antônio José Croner. Nessa ocasião, passaram por Portugal, Espanha e Inglaterra. A
primeira visita ao Brasil foi em 1863: aqui Rafael Croner permaneceu de junho a outubro,
e seus concertos desfrutaram de ótimo acolhimento (MIRANDA, 1993, p. 181).
Na crônica de 1º de junho de 1863, Machado fez referência ao êxito de crítica de

ter um artista, o da consagração enthusiastica de critica reflectida e competente

o leitor ouvir o Sr. Croner? Perdeu se não foi. Este artista que, como é sabido, foi buscar
a Londres a consagração do seu talento, justificou os juizos anteriores

Croner despertar as mais delicadas harmonias. Pelo que respeita aos segredos da arte,
ão ouvio o Sr.

O domínio técnico do instrumento deve de fato ter impressionado o escritor que, em

2015, v. 4, p. 384).

foi citada: é a de 1º de julho de 1863, em que o escritor menciona a homenagem prestada


pelo Imperador aos célebres músicos portugueses então em turnê em terras brasile iras
(Croner e Napoleão). No que concerne a essa crônica, destacamos que há nela um dado
curioso, de valor para um historiador da vida musical brasileira e também útil para um

comentar os merecidos aplausos do público fluminense para Croner e elogiar o músico

a expectativa; neste instrumento mostrou o Sr. Croner todos os dotes que o distinguia m

XX, p. 660). O saxofone era naquele momento um instrumento de invenção recente


Adolphe Sax o patenteara em 1846. A referência ao saxofone na crônica de Machado

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mostra que essa palavra já circulava entre nós bem antes do ano estabelecido pelo Houaiss
como o de sua entrada no idioma, 1881 (cf. HOUAISS; VILLAR, 2009).
Em razão dos limites de uma comunicação, vários musicistas e temas ligados à

comentados: cantores líricos (como Antônio Maria Celestino, barítono, e Carolina Briol,
soprano), palcos (como o Teatro Lírico e o Alcazar Lyrique), instrumentistas (como o
clarinetista brasileiro Antônio Luís de Moura). Nossa intenção é ampliar esse trabalho
futuramente, de modo a oferecer um texto mais completo e útil ao estudo das referências
musicais na obra de Machado de Assis. O recorte estabelecido aqui, contudo, possui um
valor próprio, na medida em que evidencia a grande afinidade que existiu entre Machado
e artistas portugueses. A música foi apenas um dos capítulos dessa aproximação
intelectual, certamente, mas também certamente um dos mais fascinantes e ainda pouco
investigados.

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2582
LUIZ RUFFATO E A PROSA DO CONTEMPORÂNEO: OS
(DES)SENTIDOS DO HOMEM NA DIALÉTICA VIDA/MORTE

Almir Gomes de Jesus (UNEMAT)

Resumo: Nosso objetivo ao fazer a leitura do conto O profundo silêncio das manhãs de
domingo (2006) de Luiz Ruffato é o de pensar a morte/suicídio como aspecto incontornável da
experiência humana, condição que a/o torna tão permeável ao discurso literário e filosófico.
Nesse sentido, procuramos compreender os modos pelos quais ruffato problematiza a
experiência da perda/morte através da vivência cotidiana de personagens ordinárias, cujos
sentimentos e emoções são expressos num discurso esteticamente elaborado e conectado a seus
estados anímicos. Diante deste objetivo, propomos ler o conto supracitado procurando entender
as ressonâncias do suicídio na psiquê dessas personagens que revolve a conflituosa dinâmica
vida/morte e perceber os significados desse ato para a compreensão da realidade. Por isso,
procuramos no pensamento de Vladimir Jankelevitch (2004), Emil Cioran (1969), André
Comte-Sponville (2002), Zygmunt Bauman (2009) e Albert Camus (1989) as bases de um
raciocínio mais esclarecido sobre o suicídio e sobre seu sentido para a experiência humana no
mundo. É importante salientar que o cotejo destes vários pontos de vista contribui para se
pensar os modos pelos quais a narrativa ruffatiana erige um espaço de questionamento dos
sentidos mais cristalizados sobre o suicídio, ao mesmo tempo em que propele a discussão dos
modos pelos quais lidamos com a experiência do fenecimento.

Palavras-chave: Luiz Ruffato. Morte. Suicídio. Condição humana.

Vista parcial da noite, de Luiz Ruffato, é publicado em 2006, como o terceiro


volume da pentalogia Inferno provisório. Composto de onze histórias 1, o livro apresenta
personagens e situações bastante diversas, apesar de, coletivamente, encarnarem um
painel amplo e problematizado da vida proletária no Brasil. Deste modo, as narrativas
criam uma unidade justamente pela perspectiva escolhida para a narração; ou seja, pela

1 Apesar de se tratar de um romance, Luiz Ruffato afirma que as histórias de Vista parcial da noite
podem ser lidas de modo autônomo, dando assim caráter mosaico e fluído a seu texto, além de subverter
as formas tradicionais do romance.

2583
eleição da classe trabalhadora e pobre brasileira como a sua grande protagonista.
Embora não se trate de uma escolha inovadora ela é, contudo, propícia a uma nova
formulação da realidade física e psíquica do sujeito desprovido. Como afirma o próprio
Ruffato, o ponto de vista adotado nessas narrativas permite o aprofundamento da
psicologia de personagens que, via de regra, encontram-se subalternizadas na literatura
brasileira. Assim, há uma preocupação por parte do escritor mineiro em desmistificar a
figura do homem pobre e sem instrução, tratada comumente em nossas letras por meio
de uma simplificação cacoética da vida interior. Por isso, ao invés de postular a uni-
dimensionalidade daquele ser, o texto ruffatiano toma a figura humana como pluri-
dimensional, percebendo em sua interioridade matizes de uma subjetividade complexa.
Se isto perfaz uma das características de seus textos, seria correto afirmar
também que, para além de contornar as representações literárias do homem espoliado,
Luiz Ruffato dá voz aos sentimentos não somente de personagens singularizadas mas de
toda uma legião de seres relegados à margem da sociedade; e, neste mesmo processo,
desvela um intenso trabalho com a interioridade humana, uma dimensão de vida
subjetiva que, por outro lado, não é estigmatizada ou deliberadamente diminuída, mas
que encontra-se amplamente ativa e estruturada. Assim, antes de perder o teor de crítica
social, as narrativas intensificam o conteúdo humano de suas personagens, e ao fazê-lo
deixam transparecer de modo mais pungente os efeitos díspares que o capital exerce
sobre os homens. E é também por este motivo que os questionamentos sobre a
existência se firmam tão intensamente, já que o contraste entre as condições exteriores
de existência e a interioridade das personagens dá vasão às múltiplas experiências do
Ser-no-mundo.
Neste caso, talvez pudéssemos dizer que O profundo silêncio das manhãs de
domingo2 seja o momento no qual nos deparamos de maneira mais contundente com o
drama humano mais agudizado. Nesta história, acompanhamos a personagem Baiano
(Marcos) transitar por espaços deteriorados, sejam eles físicos ou subjetivos. Homem
simples e analfabeto, Baiano cria quatro filhos em condições precárias. Por sua aversão
à função de empregado, recebe parcas quantias de pequenos serviços prestados. Tendo
sido expulso de casa pelo pai alcoólatra, iniciara a vida adulta trabalhando numa oficina
de conserto de bicicletas no Rio de Janeiro. Entretanto, o desagrado com a rotina e as

2 Doravante PSMD.

2584
obrigações do emprego o fazem abandoná-lo peremptoriamente. À mesma época em
que abandona seu posto de trabalho, Baiano viaja à cidade mineira de Cataguases e
encontra uma mulher que o faz mudar-se da capital fluminense. O encontro o faz
constituir família e assentar moradia fixa. Após formar família, continua com a ideia

reserva, todavia, acarreta-lhe sérios problemas conjugais, situação que levará sua esposa
a abandoná-lo, deixando a seu encargo a responsabilidade de criar os filhos. Este
acontecimento implicará em profunda desestabilização psicológica de Baiano e
contribuirá para que o vício em bebidas alcoólicas se torne uma válvula de escape para
as tensões psíquicas que o acometem.
Mais do que isso, o mal-estar decorrente das frustrações diárias um desacordo
com o mundo que a cerca faz com que a personagem se coloque em situações-limite.
Assim, vemos no movimento encetado pelo corpo sôfrego da personagem o trilhar
caminhos em direção à finitude, indicando na esterilidade da ação a ascendência de um
desejo transgressor. Lícito seria pensarmos, deste modo, que a personagem encara a
responsabilidade por si e pelos filhos a certeza de sua liberdade de ação como um
direito de vasão da vontade de expandir-se para além das repressões do cotidiano e da
vida pragmaticamente organizada. Contudo, Cláudio, o segundo e único filho homem
de Baiano, o acompanhará nesta jornada e será referenciado sempre sob o olhar zeloso
do pai, cuja admiração se destaca na alegria de enxergá-lo capaz de construir para si um
futuro ditoso:
vivia especulando, o danado. Único filho-homem, o segundo da ninhada, completara
oito anos em maio e já encarreirava as palavras, o desgramado. Dava até vergonha nele,

controversas que o pai sente o fazem comportar-se igualmente com resignação diante da
criança, pois, ao mesmo tempo em que dirige atenção cuidadosa ao menino, o patriarca
também o identifica à angustiante lembrança da ex- a cara da mãe, o
desensofrido! do autor]).
O otimismo realmente parece não ter vez na história de Baiano. O incômodo de
se chegar às páginas finais do texto instaura uma estranha sensação de desconforto, um
estranho sufocamento que se apodera do leitor a medida em que este acompanha a perda
da capacidade de respiração das duas personagens. Ao término da narrativa, quedam

2585
apenas confusas impressões sobre dois corpos acoplados por uma 'tênue' linha que os
liga. Uma união paternal carregada até as profundezas do desespero humano.
Não seria redundante apontar, então, na história de Baiano, uma tensão flagrante

na dupla experimentação da miséria, tanto material quanto espiritual. O enfrentamento


das parcas condições de subsistência que lhe são oferecidas faz com que a personagem
arrogue para si uma postura de negação. Primeiramente nega se conformar aos padrões
trabalhistas e sociais disseminados na cultura ocidental, e em consequência desta
conduta gera um desencontro explícito entre ela e as pessoas que a cercam; o pai o
expulsa de casa, a mulher o abandona. Em estreita correlação à primeira negação, toma
a decisão de anular a si próprio e ao ser que mais ama pela impetração do esvaziamento
de suas forças anímicas. Ambas as ações resultam de um descompasso com a lógica de
vida imposta por uma sociedade extremamente numulária e conduzida pelo fetiche do
consumo. Frustrado, Baiano se vê arredado pela obrigação de se adequar às exigências
do modus vivendi da produção e do capital. No entanto, o lugar que era reservado a ele
na engrenagem do mercado trabalhista não o satisfaz e a luta para fugir à imposição
social o faz perceber que a liberdade imaginada se regula pelo cerceamento.
Ao leitor cabe perceber a miséria existencial da personagem através do recurso
de deslocamento temporal instituído pelo narrador. A onisciência deste é capaz de
atualizar a precedência pelo entrecruzamento da memória com o sequenciamento
retilíneo de um fio narrativo. Assim, temos no primeiro plano a história de Baiano e
Cláudio. Todavia, são introduzidos flashes de memória que seccionam esta narrativa de
primeiro plano e formam um emaranhado de situações que precisam ser distinguidas
pelo leitor para que os dois planos narrativos não se confundam. Não há marcação que
especifique os cortes e mudanças de foco na estrutura textual, por isso é imprescindível
que a leitura seja atenta e até repetida por vezes sucessivas. Além disso, esta estratégia
de composição do texto fragmenta a sequência linear de encadeamento dos fatos,
introduzindo eventos de um passado mais distante que tem por função dar forma às
ações das personagens. Nesse sentido, o recurso à memória cumpre a tarefa de
reestabelecer a dimensão histórica de suas vidas e assim propiciar o esclarecimento de
suas experiências. Deste modo, o discurso reportado do narrador instaura a confluência
de momentos exauridos pelo contato entre um antes mais remoto e um agora que
também já não é presente. Essa técnica de montagem assemelha-se ao processo de
edição cinematográfica, no qual as cenas são interligadas num átimo, deixando pouco

2586
ou quase nenhum tempo para a percepção do espectador distinguir a mudança de foco.
Há um constante recorte de cenas que agrupam-se abrasivamente para formar um todo
coeso.
Baiano entendeu que não conseguiria mais resgatar o sono e levantou-
se, os pés escarafunchando a noite-ainda do quarto à cata dos
estropiados chinelos. Julho, tocaiado na escuridão, arrupiou seu corpo.
Suspirou, exausto, outra jornada indormida, os nervos esfarrapados, a
cabeça oca, estômago em fogo, cacos os pensamentos, quanto tempo-
já lhe escapulira o descanso! (RUFFATO, 2006, p. 79).

O trecho supracitado é a parte inicial da narrativa. Nela, a preponderância das


sensações cria toda uma camada de sentidos sobre a figura do homem cansado e infeliz.
Tal efeito, contudo, produz-se por uma especial habilidade de construção linguística do
texto. Se prestarmos atenção ao modo como ele vai se formando, veremos que a língua
perde a dimensão de fatuidade para restar em seu lugar a palavra-devir, forma livre que
se impregna de múltiplas significações. Assim, observamos um trabalho de
metaforização pelo qual as ações físicas da personagem se transformam em estados
psíquicos de vulnerabilidade e sofrimento. A escuridão e a frialdade, fenômenos
referenciados como exteriores, passam a integrar-se, num conjunto, com a sua estrutura
corpórea. Os estados fisiológicos decorrentes de respostas neurais aos estímulos
externos coadunam-se à lugubridade e gelidez do espaço, tornando-se caracteres
próprios da personalidade da personagem. É interessante observar que esta formulação
de sensações pelo contato entre o externo e o corpo e/ou a psique da personagem é uma
técnica que se desenvolve durante todo o texto, sendo responsável também pela
construção de seus efeitos imagéticos e sensoriais.
Desta maneira, parece existir uma necessidade de expressão que precisa ser
sanada, que move a narração para um fim próprio e somente seu em PSMD. Poderíamos
designar-lhe expressão da urgência3. Nada pode arredá-la de seu desejo de extravasar-

também que é eminente, que insiste, obriga e impele, ou seja, uma escrita que se impõe de alguma forma .
[...] Nesse sentido, podemos entender que a urgência é a expressão sensível da dificuldade de lidar com o
mais próximo e atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em relação

enxergada de frente ou capturada diretamente. Daí perceberam na literatura um caminho para se


relacionar e interagir com o mundo nessa temporalidade de difícil captura. Uma das sugestões dessa
exposição é a de que exista uma demanda de realismo na literatura brasileira hoje que deve ser entendida
a partir de uma consciência dessa dificuldade. Essa demanda não se expressa apenas no retomo às formas
de realismo já conhecidas, mas e perceptível na maneira de lidar com a memória histórica e a realidade

2587
se. A criação de imagens que combinam fenômenos naturais ou ações a verbos por
conotação imprópria é um dos procedimentos utilizados por Ruffato para apreender os
estados subjetivos de suas personagens. É uma imagética constante de opressão que se

pardais sacudia a manhã que t


externalidade dessas cenas se converte no perscrutamento da interioridade pelo
estabelecimento de uma estreita relação entre elas e o modo de agir de Baiano,
especialmente. O caráter sombrio dos espaços de ambientação da narrativa se alinha às
características do homem dilacerado, formando um compósito único que dirige-se a
delineá-lo por meio de um movimento que vai de fora para dentro. Tudo se contamina,
homem e mundo, cobertos e esmagados pela indiscernibilidade. A visão, sentido
privilegiado pela razão, juiz de todas as causas, é obstada contundentemente. Não
somente ela, mas a própria razão acusa sua derrocada. Não enxergar claramente
significa, ao mesmo tempo, não ser capaz de racionalizar segundo as premissas da
lógica racionalista. A penumbra subjetiva reforça-se pelo grito agônico dos pássaros que
não encontra ressonância na luz, porém requerem-na enquanto ainda imersos na
escuridão. O alvorecer esperança de um novo começo nega-se. Não há saída, tudo se
fecha num horizonte angustiante, representado pelas figuras de transeuntes atinados
vagamente nas brumas do desespero.
Outro recurso expressivo a ser destacado é a apropriação da fala coloquial, cuja
exigência é também interna ao próprio texto. Desta vez, porém, ela não está presente no
discurso das personagens. É, pelo contrário, no discurso do narrador que ela toma forma
e acabamento estéticos. Certo é que ela não aparece aqui para cumprir uma
determinação prosódica de igualamento com o estrato social no qual se inserem Baiano
e Cláudio. Entretanto, assim como em Guimarães Rosa, o conto ruffatiano toma a
relação sujeito/m

ficção de Ruffato, pois o enlace de tempos, bem como o trabalho estético de sondar a realidade buscando
compreendê-la pela margem são recursos que o escritor se utiliza para criar seu universo ficcional.

2588
simples apropriação do coloquial, antes externando a procura do signo adequado para
dar vasão à percepção do universo de experiência de suas criaturas ficcionais.
A linguagem é, por outro lado, um obstáculo a mais a se interpor entre a
personagem e o mundo social. Baiano é representado como um sujeito desprovido de
carga emocional aprofundada e capacidade d
vergonha nele, que cumprimentava as letras respeitosamente, um á, um é, um í, mas na
ajuntação das vogais com as consoantes soletrava asmático, ca... ca-dê... dei... rra: ca-
dêi... Ah, ca-dei- p. 80). A superação destes limites, no entanto,

ao questionamento da validade da existência e ao enfrentamento da morte.


Não há em Baiano, todavia, uma temerosidade que crie barreiras interpondo o
homem de sua condição transitória neste mundo. A personagem se lançará ao embate
com sua finitude de maneira convicta. Nenhuma restrição que parta do sentimento de
rechaça à mortalidade humana interfere em sua decisão de encerrar sua própria vida e a
de seu filho. Desta maneira, contrapondo-se à separação antinômica vida/perecimento,
ela prefere experimentar a morte como forma de salvar-se de si mesma e refugiar-se do
mundo que a oprimia. Tal atitude, embora não inovadora, certamente desafia o padrão
comportamental edificado pelas crenças judaico-cristãs. Assim, deve se ressaltar que a
morte, enquanto parte do humano, reveste-se sempre de um caráter simultaneamente de
incognoscibilidade e constrangimento. Incognoscível porque se trata de uma experiência
para a qual não há a possibilidade de conhecimento. Constrangedora porque incomoda e
desestabiliza aqueles que ousam sondá-la por isso o flagrante distanciamento que os
indivíduos costumam dela tomar. André Comte-Sponville (2002, p. 47) chega mesmo a

Sua necessidade é fruto justamente do fato de estarmos nela envoltos, de sermos seu
produto, de vivermos sob sua indelével marca. Por outro lado, sua impossibilidade se
justifica por não sabermos exatamente o que ela é, o que representa sua chegada para
por trás da palavra, por trás da coisa , nem

não se pode lutar. Todavia, a consciência individual sobre a própria mortalidade é, em


última instância, uma situação impensável e incondizente com a existência em si, para a
qual é necessário seu esquecimento.

2589
Neste sentido, Zygmunt Bauman (2009) identifica diferentes estratégias de
ação para lidar com esta porção tão nebulosa da existência. Mais do que isso, seria
particularmente interessante constatar a substancial diferença que a era líquido-moderna
institui em relação às posições precedentes de tratamento da questão. Se a postura
religiosa era a de impregnar à morte os sentidos da redenção do espírito em sua
continuidade imortal por isso a necessidade de que o memento mori esteja integrado à
vida dos indivíduos, como forma de reger sua consciência pelo ascetismo e se à época
da constituição dos Estados nacionais politicamente organizados a morte passou a ser
vista como uma oportunidade de eternização de indivíduos anônimos pela dedicação a
um ideal pátrio, o período histórico líquido em que vivemos representa, segundo
Bauman, a conformação de um estratagema de 'marginalização'

das preocupações com o fim mediante a desvalorização de tudo que


seja durável, permanente, de longo prazo. Ou seja, a desvalorização de
tudo que possa ultrapassar a existência individual ou mesmo os
empreendimentos a prazo fixo em que se divide a duração da vida,
mas também das experiências existenciais que fornecem a matéria
com a qual é moldada a idéia de eternidade para estimular a
preocupação com o lugar que nela se ocupa (BAUMAN, 2009, p. 56).

O traço mais característico desse estratagema é, por isso, a 'banalização' da


experiência da morte. Na verdade, há
cotidiano que exprime a fragilidade dos vínculos humanos. Os sentimentos de perda e

freqüência com que são rompidos servem como lembrete constante da mortalidade que

refere é aquela de tornar o exaurimento corpóreo um evento banal, porque corriqueiro, e


metaforicamente experimentado na fragmentação dos laços afetivos. Nesse sentido, o
divórcio, ou a dissolução conjugal, seria uma experiência de aproximação de 'terceiro
grau' para com a mortalidade. Não se trata do falecimento de um dos cônjuges, o que
representaria uma aproximação de 'segundo grau'. Não se trata, igualmente, do
fenecimento do próprio sujeito que o pensa, território da aproximação de 'primeiro
grau'. Entretanto, em sendo de 'terceiro grau', a separação faz o sujeito experimentar
metaforicamente a sensação, em muito incompreensível, da perda e esvaziamento do
ser; aquilo que era torna-se um não-ser. Pela possibilidade de se repetir infinitamente no
conjunto da humanidade, a separação coloca o indivíduo em constante contato com uma
versão metaforizada da morte e, desse modo, a converte numa questão usual para ele.

2590
Banalizada, ela já não representa um medo, mas se torna parte do conjunto vital, mesmo
que ainda continue sendo um mistério.
O sentimento de perda ao qual Baiano é submetido se deflagra quando sua
relação conjugal é abruptamente interrompida. Desestabilizado, ele já não é capaz de
reintegrar-se à ordem da vida. Porém, o ódio que vocifera contra a ex-mulher é
resultado latente de uma frustração consigo mesmo. Matá-la não restituiria sua
dignidade, seria apenas uma atitude de extravasamento de seu desespero. O problema de
Baiano é consigo mesmo, com sua condição de Ser-no-mundo. Mas essa perda é a
representação de um ensaio para o grande ato final. Sua metáfora e propulsora. Segue-se
a isso que a falta de sentido do(no) mundo que acomete a personagem é insuportável e
Quando vou dormir, lembro que não posso entregar
os pontos... Luto... A noite inteira rolando de um lado para o outro... De manhã,
. 91). É o desespero, em sua forma
mais bruta, que lança a personagem à autodestruição. O choque entre o 'eu', ser
desejante, e a alteridade social, impositora de cerceamentos, é o motivador daquela
exigência sentida por ela para o autoextermínio. É a partir da exterioridade, pois, que se
fixará a oposição essencial entre a individualidade e o coletivo. E este conflito que se
inicia na externalidade é
lo que hace que la desesperación, por sí mesma, sea de tal modo
contraria al ser que él invoca la muerte inmediata, directa, o se la da
para anteciparse. Hay entonces entre la desesperación y el suicidio un
vínculo inmediato, directo, la única solución que es la ausencia de
solución. Un desesperado no puede tener necesidad sino de matarse
(JANKELEVITCH, 2004, p. 93).

des nuits où l'avenir s'abolit, où de tous ses instants seul subsiste celui que nous
e considerar
os sentimentos e sensações que o motivam:

Puisque ma mission est de souffrir, je ne comprends pas pourquoi


j'essaie d'imaginer mon sort autrement, encore moins pourquoi je me
mets en colère contre des sensations. Car toute souffrance n'est que
cela, à ses débuts et à sa fin en tout cas. Au milieu, c'est entendu, elle
est un peu plus: un univers. Cette fureur en pleine nuit, ce besoin d'une
ultime explication avec soi, avec les éléments. D'un coup, le sang
s'anime, on tremble, on se lève, on sort, on se répète qu'il n'y a plus
aucune raison de tergiverser, de différer: cette fois-ci, ce sera tout de
bon. À peine est-on dehors, un imperceptible apaisement. On avance
pénétré du geste qu'on va accomplir, de la mission qu'on s'est arrogée.
Un rien d'exultation se substitue à la fureur lorsqu'on se dit qu'on est

2591
enfin parvenu au terme, que l'avenir se réduit à quelques minutes, à
une heure tout au plus et qu'on a décrété, de sa propre autorité, la
suspension de l'ensemble des instants. Vient ensuite l'impression
rassurante que vous inspire l'absence du prochain. Tous dorment
(CIORAN, 1969, p. 82).

A solidão parece acompanhar o percurso que se inicia com a decisão pela


terminalidade. Atendo-nos a PSMD, podemos distinguir claramente a composição de
espaços esvaziados a significar a solidão provocada pela consciência desassossegadora
-se no sono nunca-satisfeito das casas-baixas do
Beira-
tudo -nos a presença de um
desequilíbrio pernicioso na relação de Marcos com seu entorno, que o faz fechar-se num
solipsismo resignado, no qual a amargura resulta do entendimento de seu desacordo
com a realida -se cada vez mais estranho, o pai, um nervosismo!, cara-

A causa da mudança em seu comportamento parece estar ligada à revelação, por si


mesmo e para si, de sua impotência de restabelecer significação à realidade. Mas tal
deficiência se origina, primeiramente, da constatação de que não há uma ordem
redentora de sentidos para a vida.
Neste processo, o questionamento de todos os aspectos da realidade é o
desencadeador de sua própria negação, principalmente quando a rotina estanque e o
hábitos de ação são violentamente contestados. É nestes termos que Albert Camus

que instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão


profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do

começa com esse cansaço tingido de espanto. 'Começa', isso é importante. O cansaço
está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o

como 'o desaparecimento do cansaço' (cf. COMTE-SPONVILLE, 2002), então é

(CIORAN, 1969, p. 87).


Sentimo-nos extremamente consternados quando nos deparamos com a
violência das imagens que se formam com a morte de Marcos e Cláudio. O pai instiga o

2592
filho a adentrar as águas caudalosas do rio no qual se banhava. Incapaz de manter-se à
superfície da água, Cláudio tenta desesperadamente encontrar proteção no corpo de
Baiano. Não consegue. As marcas gráficas no texto denunciam a agonia da criança. São
exatamente cinco vezes em que a palavra 'SUBMERGIU' aparece grafada
verticalmente, indicando do mesmo modo a luta pela sobrevivência. Movimento

quente do filho e deslizou-o até a margem, ancorando-o na lama fétida. No tornozelo,


amarrou um fio de náilon, envolvendo a própria cintura com a outra ponta. Verificou se

seguida, enforca-se, dando a si também a finitude que buscava. É chocante a crueza com
a qual se dá o desenlace da história. O caminho sem destino sobre o qual Cláudio
constantemente se interroga, bem como a aparição de aves de rapina com força maior
o urubu denunciam, contudo, o desfecho articulado.
A morte, então, torna-se soberana. Porém, antes dela, somos levados ao
perscrutamento incisivo da interioridade humana através de uma intensa relação com a
linguagem, substância que modela o vivido. Em especial medida, enfrentamos, juntos
com Baiano, a situação-limite que a morte representa para todo ser humano. No texto
literário, como na vida, somos desafiados a perscrutá-la, de um modo que Guimarães
Rosa já havia nos ensinado em A terceira margem do rio (1988, p. 32):

Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo
abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que,
no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro o rio .

Em PSMD, Baiano, vaidoso de poder recuperar afogados de águas


tempestuosas, escolhe justamente o rio para acercar-se da morte. A ele lança o corpo
inerte de sua maior bem. Devolve ao ciclo contínuo da vida a sua própria descendência.
O rio, fluxo constante, que corre em direção a um fim incógnito, indevassável. Um fim
não está, e não pode estar, dissociado da corrente que o precede. O título da narrativa
sustenta tal premissa pela junção de dois pares antitéticos. De um lado, temos os
vocábulos profundo e silêncio, denotando uma cadeia de significantes:
Intensidade>Profundidade>Submersão>Pesar>Emudecimento>Melancolia>Perecibilida
de. Do outro, encontramos os vocábulos manhãs e domingo, denotando igualmente uma
cadeia de outros significantes: Nascimento>Começo>Esperança>Restabelecimento.
Note-se que as cadeias são contrapostas. Forma-se, com efeito, uma tensão entre esses

2593
pares antonímicos que resultará no acoplamento de ambos para criar, na conjunção, um
novo par, que conjugará vida e morte como constitutivas um do outro. Assim, vivemos
uma experiência plena, em que somos confrontados com todas as dimensões de nossa
existência. PSMD é, deste modo, uma narrativa rica em questionamentos sobre o
homem e sobre aquilo que nos toca mais fundo, os sentidos se existe algum ou os
(des)sentidos de nossa transitoriedade no mundo.

Referências

O que é o
contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó-SC: Argos, 2009.

O medo líquido. Rio de Janeiro:


Zahar, 2008.

____.
(Org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1985.

CAMUS, Albert. O mito de sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Guanabara,

1989.

Le Mauvais démiurge. Paris:


Gallimard, 1969.

COMTE- Apresentação da filosofia. São


Paulo: Martins Fontes, 2002.

JANKELEVITCH, Vladimir. Pensar la muerte. Argentina: Fondo de Cultura


Econômica, 2004.

Primeiras estórias.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.

Vista
parcial da noite. Rio de Janeiro: Record, 2006.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:


Civilização brasileira, 2009.

2594
A DIMENSÃO HISTÓRICA DA OBRA DE CLARICE LISPECTOR
Camila Chernichiarro de Abreu Corrêa (UnB)
Alexandre Simões Pilati (UnB)

RESUMO: Diante das inúmeras pesquisas críticas da obra de Clarice Lispector, esse trabalho
tem como intuito discutir a dimensão histórica internalizada organicamente em sua estética
intimista e diagnosticar as motivações sociais para o surgimento de um foco narrativo
entranhado entre o autoritarismo e a libertação, o eu e a sociedade. Tendo como base teórica e
metodológica a crítica literária dialética marxista e a perspectiva formativa nacional, a arte
literária é encarada como um reflexo específico do desenvolvimento do ser humano no meio
social. A partir de pensadores como Georg Lukács, Frédric Jameson, Antonio Candido e
Roberto Schwarz, essa comunicação pretende dialogar com as tendências críticas atuais que
tendem a negligenciar o aspecto local como mediação fundamental para se atingir a
universalidade. A partir da análise dos principais romances clariceanos, Perto do coração
selvagem (1943), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977), busca-se
compreender a unidade de seu projeto narrativo como parte da experiência brasileira e reunir
dialeticamente o dado local ao caráter universal de sua escrita.

Palavras-chave: Crítica literária marxista. Literatura e sociedade. Clarice Lispector.

A atividade humana, seja artista ou teórica, é entendida como um reflexo


dialético da realidade efetiva. Esta se configura na história, em que a objetividade se
impõe sobre a consciência, mostrando assim que a vontade individual não independe da
materialidade na qual ela está inserida. Situar a evolução do pensamento humano na sua
trajetória processual e dialética é perceber o movimento de aderência e desconexão do
homem em relação ao real.

A teoria do reflexo e a relação sujeito-objeto, discutida por Lukács (1965), no


campo estético estende-se à toda práxis humana. Uma vez que a crítica literária é ação
de um sujeito sobre um objeto, observa-se um espaço de luta, de leituras em
competição, para relembrar o artigo de Schwarz (2006). Esse terreno político de qual
faz parte a crítica, não está, portanto, a revelia das condições históricas de sua produção.
As análises críticas, além de serem tributárias de posições ideológicas específicas, são

2595
produto também, quando configurada numa tendência, da materialidade vivenciada pelo
crítico.

Desta forma, é possível perceber na recepção crítica da obra da Clarice Lispector


uma disposição teórica peculiar que formaria um padrão crítico vinculado à realidade do
subdesenvolvimento brasileiro? As obras clariceanas teriam propiciado pelo seu caráter
estético a consolidação desse padrão, sobretudo existencialista, ou as escolhas teóricas
foram fruto de contingências históricas?

Observam-se na recepção crítica da autora algumas tendências. A que mais


parece ter respaldo atualmente é a crítica mítico-existencialista articulada por Benedito
Nunes (1989), sob influência da metafísica de Heidegger. Em seguida, juntando-se à
discussão pós-moderna, encontra-se uma postura de análise linguística em que a
,
p.232), sem nenhuma necessidade de um suporte simbólico alheio ao corpo da palavra,
ou seja, a linguagem, entendida como a-histórica, é um aparato fechado em si cujo
sintagma é esvaziado completamente de seu caráter semântico e processual.

Se algumas posições críticas, como as citadas acima, tentam se descolar da


articulação entre arte e história, as demais tendem a fazer uma unidade indistinta entre
obra literária e sociedade. Os estudos culturais discutem o papel da mulher nos livros da
autora, olhar crítico desencadeado por influencia da feminista francesa Hélène Cixous.
Outra tendência diagnosticada é o desprezo da obra clariceana anterior ao romance A
hora da estrela, devido ao caráter, aparentemente, alienante desses escritos. Para
Silviano Santiago (2004), a história de Rodrigo S.M. e Macabéa teria sido uma grande
traição dos princípios estéticos da autora, já para outros ela seria a salvação de Clarice
o dos Mortos- charge do cartunista Henfil em que se
representavam personalidades que, a seu juízo, colaboravam ou simpatizavam com a
ditadura, omitiam-se politicamente ou eram porta-vozes do conservadorismo.

A polêmica em torno de A hora da estrela mostra como a crítica encontra


dificuldade de perceber na obra de Lispector uma unidade. Existe uma fragmentação
nos estudos da autora, como se nota pelos grupos de pesquisa espalhados pelas
universidades brasileiras.

2596
Diante desse cenário crítico atual, é necessário um estudo que procure integrar
os elementos constitutivos da obra de Lispector, visto que há um movimento próprio na
sua escrita de 1943 a 1977 que acompanha dialeticamente, como reflexo e recusa,
tensões locais e internacionais numa etapa específica do capitalismo. Desta forma, os
livros da escritora são encarados como um projeto, cuja unidade, não está na intenção
programada da autora, mas na evolução estética de seu itinerário artístico.

A editora Rocco, baseada na fortuna crítica mais renomada da autora, publicou


na contracapa das edições de todas as obras clariceanas, de romances a contos e
crônicas, um resumo explicativo em que sua escrita meticulosamente trabalhada seria
responsável por desvendar as profundezas da alma e se tornaria assim uma bússola em
sua busca pela essência humana.

A apropriação editorial dos livros da escritora reforça a disjunção estanque entre


essência e aparência, local e universal, prometendo ao leitor uma viagem às profundezas
da alma humana, a uma interioridade alcançada através de um pacto de linguagem de
cotação mística. Assim essa escrita meticulosa nada diria sobre a exterioridade, muito
menos, sobre o leitor brasileiro, que na ânsia de vivenciar problemas existenciais
universais, se lançaria no esquecimento cômodo da dura realidade local.

Após importantes artigos de pensadores como Sergio Milliet (1981) e Antonio


Candido (1970) na década de 1940 sobre seu livro de estréia, momento ainda de
formação da Academia brasileira, a recepção crítica de sua obra consolidou-se na
década de 1960 e 1970 com a perspectiva existencialista. Não por acaso, o arcabouço
teórico sobre o que seria de fato a obra clariceana, até então misteriosa tanto para
acadêmicos quanto para os leitores em geral, materializa-se num período específico da
história da crítica mundial. A Europa, sacudida pelo impacto do pós-68, vivenciou uma
profunda frustração histórica que propiciou o surgimento dos movimentos pós-

, p.192). As tendências da modernidade


europeia anunciavam caminhos contemporâneos em que o fetiche do novo começava a
dominar o ambiente acadêmico e as elucubrações teóricas se divorciavam da práxis
humana e da sua dimensão histórica intrínseca.

Desta forma, parte da Academia brasileira em formação aderiu rapidamente aos


conceitos pós-estruturalistas que apresentavam a possibilidade de inserir o pensamento

2597
crítico brasileiro no concerto das nações e possibilitavam, ao mesmo tempo, um escape
cínico a condições históricas nacionais. A dialética local e universal, identificada por
Antonio Candido (2007), permeia a atitude crítica, posto que esta elege a perspectiva
europeia em voga para análise de autores tributários de uma tradição literária e histórica
distinta, calcada na matriz escravocrata e formativa.

O Brasil vivia no período de 1960 e 1970 a primazia cultural das ideias de


esquerda, conforme aponta Schwarz (2009), mas em paralelo era abafado pela
materialidade da repressão violenta e conservadora que se efetivava. O desenvolvimento
da crítica e suas escolhas são, como assinalado anteriormente, um reflexo dialético
desses dilemas. Ao mesmo tempo que se queria construir um país intelectualmente
consistente que pudesse se igualar às nações desenvolvidas, sentia-se vergonha do
estado ainda precário da cor local. Na ânsia de superação do atraso, faziam-se escolhas
que o mascaravam em vez de enfrentá-lo no seu movimento. Ideias fora do lugar foram
aplicadas a autores nacionais, sem as mediações necessárias. No entanto, assim como
Schwarz (2009), essas ideias possuem uma funcionalidade histórica, não são apenas um
descompasso aleatório.

interior de cada uma dessas linhas críticas [pós-estruturalistas], que só pode ser
discutido caso a caso, mas de assinalar o efeito automático e conformista das assimetrias

A consolidação crítica da obra de Clarice Lispector se dá nesse período em que


as ideias europeias chegavam a território brasileiro como uma alternativa à hegemonia
social, e muitas vezes, engajada, da produção estética da época. Dessa forma, a escrita
de Lispector parece ter sido eleita, cooptada como a nossa escritora universal, capaz de
entender a alma humana, por uma parte considerável da Academia, devido ao desejo
profundo de compensação (recorrência na história do intelectual brasileiro) do atraso
nacional. A sociedade resolve no domínio imaginário as contradições que não
(JAMESON, 1985, p.14). A possibilidade artística de uma
escritora que está acima da matéria brasileira, desponta como uma exceção Lispector
existiria assim apesar das condições precárias do país, e não, exatamente, por causa
dessa materialidade específica.

2598
É fecunda a comparação com o desenvolvimento da crítica da obra de Machado
de Assis. Durante mais de meio século, acreditava-se que a estética machadiana nada
tinha a dizer sobre os dilemas nacionais específicos de um Brasil marcado pelo sistema
escravocrata em funcionalidade dialética com os ideais liberais em voga no momento.
Portanto, apenas depois Golpe Militar de 1964, foi possível enxergar o caráter volúvel e
patriarcal dos narradores de Machado, tipicamente brasileiros, que figuravam o que de
mais problemático existia na sociedade brasileira do século XIX. Roberto Schwarz
(1998), com sua análise minuciosa, demonstra que a universalidade machadiana está
exatamente na mediação do dado local.

O gosto refinado, a cultura judiciosa, a ironia discreta, sem ranço de


província, a perícia literária, tudo isso era objeto de admiração, mas
parecia formar um corpo estranho no contexto de precariedades e
urgências da jovem nação, marcada pelo passado colonial recente.
Eram vitórias sobre o ambiente ingrato, e não expressões dele, a que
não davam sequência (SCHWARZ, 2006, p.63).

A obra de Clarice Lispector é até hoje entendida nessa perspectiva. Ela teria
sido, juntamente c , p.253) caído por
acaso em terras coloniais, e não o fruto, a expressão transfigurada nessa terra. Faz-se,
portanto, necessário inserir a narrativa clariceana na tradição do sistema literário
brasileiro e perceber como ela é transfiguração moderna da matéria brasileira cuja
conexão com a tradição ocidental não deve ser ignorada. A proposta de uma leitura
formativa e dialética da obra de Lispector integra a dinâmica estética da autora, posto
que uma tendência crítica reúne outra s existenciais, que não
escamoteiam a luta de classes, mas a incorporam, a narrativa se autoquestiona
CHIAPPINI, 1996, p.72).

Analisando A paixão segundo G.H. e A hora da estrela sob essa perspectiva e,


de maneira nada convencional, ressaltando o social no contato de G.H. com a barata,
bem como o mítico-existencial na relação de S.M. e Macabéa, Chiappini
sexo e a classe social [são] mediações indispensáveis à temática existencial e à reflexão
sobre os limites da (CHIAPPINI, 1996, p.62). O ponto cego
da crítica está na mulher e na pobreza que permeiam os textos da autora. O feminino e o
social são mediações que potencializam indagações fundamentais a respeito da
existência e da própria narrativa.

2599
A fortuna crítica parece ter começado pelo ponto culminante sem lidar com o
núcleo. O específico nacional antecede o universal para retornar a ele, num movimento
constante. E é nesse específico rejeitado, despercebido ou recalcado pela crítica que se
concentra esse trabalho, observando-se que a forma estética é mediada pela forma
social, a qual se amplia a níveis nacionais e mundiais.

No entanto, outro problema que se impõe nessa discussão é o caráter específico


da estética clariceana que pode ter propiciado as escolhas críticas tomadas
historicamente. Uma escrita microscópica, conforme assinala Souza (1980), marcada
pela supremacia de um eu aparentemente autoritário que configura a realidade segunda
sua consciência inquieta permitiria uma interpretação realista? Até que ponto a
percepção crítica foi efetivamente embaçada pela visão eufórica da Academia brasileira,
sedenta de compensar o subdesenvolvimento brasileiro com uma escritora que pudesse
entrar no debate de questões universais? Ou foi exatamente a especificidade de seus
escritos e a concepção de mundo advinda deles que teriam favorecido esse tipo de
recalque fetichizador da medição local, elemento integrador da fatura literária?

No seu polêmico livro sobre o realismo no século XX, Lukács (1969) aponta
distinções entre o caráter humanizador da tipicidade encontrada no realismo do século
XIX e as vanguardas:

Enquanto o antigo realismo crítico, elevando ao nível de uma


significação típica tudo o que tem importância (positiva ou negativa)
na vida burguesa, conseguia dessa maneira fazer sobressair o sentido
dessa vida e torná-la inteligível, com a vanguarda é apenas o interesse
artístico que cabe à tarefa de transfigurar a baixeza e o nada da vida
burguesa (LUKÁCS, 1969 p.108).

O enclausuramento da narrativa moderna vincula-se a tendências da forma social


criadas pelo acirramento do capitalismo mundial, que em terras periféricas ganha um
tom ainda mais opressivo.

Assim que a experiência individual cessou de coincidir com a


realidade social, o romance ficou ameaçado por contingências
idênticas. Se ele se prender ao puramente existencial, à verdade da
subjetividade, arrisca tornar-se observação psicológica não
generalizável, com toda a validade de mera história de caso. Se, por
outro lado, tentar dominar a estrutura objetiva da esfera social, tende
cada vez mais a ser governado por categorias de conhecimento
abstrato, em lugar da experiência concreta, e, consequentemente, a
descer ao nível da tese ou da ilustração, da hipótese e do exemplo
(JAMESON, 1985, p.29).

2600
Haveria na obra de Lispector uma inteligibilidade capaz de apreender o sentido
coletivo da vida humana na sua complexidade histórica e dialética ou essa estética
estaria à mercê de uma verdade subjetiva não generalizável? O interesse artístico da
baixeza mesquinha da lógica burguesa se sobressairia sobre a ânsia de compreender os
dilemas em jogo no processo de modernização local e universal?

O percurso literário da autora começa com Perto do coração selvagem,


publicado em 1943, uma narrativa inacabada e indecisa na sua forma. Permeado pelo
monólogo interior, o livro ainda guarda características do romance tradicional, como um
enredo facilmente identificável e personagens fortes. O embate de Joana com o marido e
a amante nutre a escrita, dominada por reflexões da protagonista. O autoritarismo do
foco narrativo em torno de Joana evolui no romance, mascarado de auto-conhecimento,
eliminando as possibilidades de vínculo efetivo com a exterioridade hostil às batalhas
interiores da jovem em formação, seja pela figura do marido Otávio, da amante Lídia e
da Mulher da Voz. Esta é completamente esquecida pela crítica e abafada pelo próprio
narrador/Joana, cujo silenciamento é sintomático. Personagem trabalhadora cantava
baixinho, com a boca fechada (LISPECTOR, 1998a, p.77), a Mulher da Voz parece ter
uma importância crucial no embate íntimo da protagonista na tomada de consciência do
mundo e da sua posição de classe. Ela se configura o primeiro confronto com o outro de
classe de Joana, apesar de retraído e camuflado, anuncia já conflitos posteriores
figurados em Rodrigo S.M. e Macabéa, refutando a tese de Santiago (2004) de que A
hora da estrela não tem vínculo com seus livros anteriores.

Observa-se que a narrativa clariceana se movimenta em direção a um


acirramento dilacerado desse eu, que, da promessa de libertação individual de Joana,
por si só enganosa, visto que tinha como pressuposto a eliminação do outro, passa-se à
personagem G.H., cuja experiência-limite de desintegração humana é o foco da
narrativa. Esta é muito bem articulada e promove de maneira integrada o gozo íntimo de
uma artista renomada que procura através da sua escrita e do apoio afetivo do leitor a
salvação da sua individualidade. No entanto, esta luta existencial é desencadeada por
uma mediação específica: o quarto da empregada, Janair. Agora a narrativa de
Lispector, não por acaso escrita às vésperas de 1964, tenciona esteticamente, através de
um confronto tipicamente brasileiro ligado à ousadia de proprietária (LISPECTOR,
1998b, p.36), questões da existência humana intrinsecamente atrelada ao
desenvolvimento do capitalismo mundial.

2601
A ingenuidade agressiva de Joana transforma-se no vigor temeroso de G.H., que
escreve envolta à fantasmagoria do suposto desenho de Janair na parede. Percebe-se
como Lispector amadurece sua escrita e sua personagem, posto que esta agora percebe a
necessidade de integrar sua subjetividade em risco ao outro, seja ele o leitor ou a barata.
A fusão do sujeito no objeto parece ser a condição para a permanência do indivíduo na
era moderna. Clarice propõe essa reconciliação de maneira contraditoriamente dialética
e problemática, já que a urgência do outro (que assombra sem se efetivar) se revela
através de uma forma cuja intimidade do eu é jorrada sem concessões narrativas.

Esse problema parece se equacionar em A hora da estrela, obra-prima da autora


que demonstra uma BUENO, 2001,
p.259), negando qualquer tipo de hipótese que desassocia esse último romance ao
conjunto de sua obra. Surge assim o cinismo de Rodrigo S.M., calcado na tradição
machadiana e já anunciado na narradora de Água Viva
fome e eu nada posso senão nascer. Minha lengalenga é: que posso fazer por eles?
Minha resposta é: pintar um afresco em addag .
Narrativa adiada nervosamente por um narrador egocêntrico, mas que cede espaço a sua
personagem popular, criação e entrave de seus dilemas individuais: Desconfio que toda
essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história, pois estou com medo
(LISPECTOR, 1998c, p.17); preciso falar dessa nordestina senão sufoco
(LISPECTOR, 1998c, p.17).

Nota-se assim uma evolução das escolhas estéticas de Lispector, que se


movimentam no chão histórico do desenvolvimento das forças produtivas da
humanidade. Assim nota-se, diante dos problemas apontados, que a obra da escritora
tem um potencial inteligível, devido à unidade dialética de seus escritos, diferentemente
do que a crítica tradicional insiste em apontar. E teria ainda a história nacional
internalizada na sua estrutura estética, por isso alcançaria questões mais amplas e
universais.

Localizar e refletir sobre a dimensão histórica de uma obra do potencial da de


Clarice Lispector faz-se urgente num momento em que há no pensamento
contemporâneo, assinalado por Schwarz (2006), um selo de qualidade vinculado ao
corte dos afluxos de conotações históricas, contra o qual esse trabalho pretende resistir
teoricamente. A pertinência de manter a história ativada na crítica literária atual é

2602
possibilitar a garantia da inteligibilidade do real, como primeiro passo para sua
transformação. A literatura permite uma reaproximação efetiva do sujeito com realidade
social, posto que ela se configura esteticamente, sendo capaz, portanto, de mobilizar os
sentidos do leitor, desfetichizando-os.

Referências

BUENO, Luís. Guimarães, Clarice e antes. Teresa: revista de literatura brasileira, n.2.
São Paulo: USP, Editora 32, 2001.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos 1750-


1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre o azul, 2007.

_________________. No raiar de Clarice Lispector [1943]. In:_________. Vários


escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

CHIAPPINI, Lígia. Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar. São Paulo: Revista
da USP, n.1, 1996.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,
1997.

JAMESON, Frédric. Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura do século XX.


São Paulo: Editora Hucitec, 1985.

LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a.

_________________. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b.

_________________. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998c.

_________________. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998d.

LUKÁCS, Gyorgy. Realismo crítico hoje. Brasília: Coordenada Editora de Brasília,


1969.

_______________. Estética. Barcelona: Grijalbo, 1965.

MILLIET. Diário crítico, v.2. São Paulo: Martins, 1981.

NUNES, Benedito. O drama da linguagem. São Paulo: Editora Ática, 1989.

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural.


Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

SCHWARZ, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e terra, 2009.

_________________. Leituras em competição. Novos estudos 75, julho 2006, p.61-79.

2603
_________________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São
Paulo: Duas cidades, 1998.

SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas cidades, 1980.

2604
MITO, ESTÉTICA E POLÍTICA OU A RECUPERAÇÃO DO TEMPO
PERDIDO
Cesar Augusto López Nuñez (UFMG)
Myriam Ávila Corrêa de Araújo Ávila (UFMG)

Resumo:
O mito é sempre uma narração que procura explicar o universo, o mundo e o lugar do
homem nesses dois espaços. Nesse sentido, os poderes do mito não se têm perdido com
o tempo, mas se têm transformado em premissas muitas vezes abstratas que nos
conduzem a esquecer sua permanência na vida prática dos homens na hora de pensar os
regimes de visualização do mundo como pensou Foucault. Mas, o que quer dize tudo
isto? Que o mito é uma proposta de compreensão do ser e de sentir o ser.
A relação do mito e da estética é muito antiga, porque o que procura toda narração é
gerar modos de sentir para uma comunidade. Em outras palavras, o que sentimos
pertence a um regime ontológico que tem sido contado e assimilado por um grupo
humano. Finalmente, todo sentir implica um modo de agir, de administrar as potencias
do mundo que se chama de política. Em um processo, mais ou menos inverso, para
compreender ela, teríamos que retroceder até os seus princípios ontológicos (míticos)
para estabelecer um possível diálogo, porque o marco de leitura das terras colonizadas
foi sempre aquele oferecido pela mítica hegemônica ocidental, isto quer dizer que o
grande sistema judaico-cristão/grego-platónico: jamais, ou poucas vezes, se tem lido
América Latina com suas próprias ontologias, estéticas e políticas. Em nossa
comunicação exporemos a relação entre o mito, estética e política e da sua relevância no
labor da criação literária.
A base teórica empregada será a do pensamento deleuze-guattariano. Por outra parte,
em relação às ontologias ameríndias que norteiam a nossa discussão partiremos dos
aportes de Eduardo Viveiros de Castro como perspectivismo e multinaturalismo. Assim,
o nosso interesse se concentrará em propor uma crítica ao molde monológico e
homogeneizante sem esquecer seu valor aliás dos seus limites metodológicos.

Palavras-chave:
Mito. Estética. Política. Ontologia. Epistemologia. Teoria literária.

Segundo Platão um dos atos heroicos de Sócrates foi tirar o pensamento mítico
dos cidadãos para dar passo à episteme, ao conhecimento da verdade que seria
desenvolvido com suma destreza na República como ponto final e prático do sistema
ideal de vida para os homens em sociedade. Porém, depois de muitas palavras e tempo,
os mitos não só ressuscitaram em diversas formas, mas também demostraram um vigor
1

2605
sem precedentes. Somente se tinha trocado um tipo de organização do pensamento por
outro: como os deuses não existiam ou deixaram de existir, não se tinha que procurar
mais que a luz do bem resumida no novo mito da razão que ainda segue vigente. Neste
sentido o que nós vamos falar hoje ou é irracional ou responde a uma racionalidade
outra.

O que tem a ver isto com a atualidade? Muito, porque nesta era da praticidade
absoluta o labor dos interessados nas letras está sendo percebido como um sobrante
inútil de energias que não conduzem a nenhum lugar. Ou seja, existe um divórcio tal
entre a letra e a vida que se requer uma revisão paciente e comprometida por parte dos
que ainda acreditam no poder da palavra. Assim, hoje queremos recuperar o laço entre o
mítico, o estético e o político para ir (re)descobrindo o lugar da crítica no cosmos (não,
não estamos exagerando).

Para nós, falar de mito é falar de configurações do mundo. Em outros termos,


cada mito tem uma potência que vá se desdobrando em uma comunidade que o
compartilha. É assim de simples a nossa ideia. Não existe sociedade sem mitos e uma
sociedade sem eles está condenada à desaparição. Quando François Lyotard falava da
queda dos grandes relatos ele referia-se a uma Europa tão fatigada como a que conheceu
Oswald Spengler anos antes. O paroxismo do mito da luz da razão transformado no
progresso ad infinitum deu seus frutos no aperfeiçoamento da destruição dos homens e
do seu entorno na Primeira e Segunda Guerra Mundial. Em outros termos, as
configurações do mundo podem gerar estabilidade ou mesmo caos dependendo da
focalização do seu princípio hermenêutico.

O que queremos dizer até agora é que as míticas propõem mundos por sentir e é
sobre esta base que foram percebidos como perigosos para Platão e seu mestre. Mas,
quem explorava e expressava os mitos, quem propunha modos de sentir distintos aos
racionais ? A poesia e os poetas, esse fato e esses homens
inadmissíveis dentro das esferas do poder. Por esse motivo foram expulsos do sistema
de governo e até agora a condena continua como um estigma reafirmado pelo
fortalecimento do cientificismo que, como bom mito, nega à subjetividade valor nos
processos de construção do mundo e na administração do poder ou melhor conhecida
como política.

2606
Somente agora temos nosso trítico completo: mito, estética e política nunca
estiveram separados e o que fez a operação platônica ao eliminar o primeiro elemento
deste conjunto conduziu a uma figura incompleta da realidade. É correto que com a
alegoria da caverna se substituíam as narrações, mas, por outro lado, se restava
multiplicidade, diálogo e proximidade ao sentir. Citamos o que se escreve na República
sobre os poetas:

[ ] es en justicia que no lo admitiremos en un Estado que vaya a ser


bien legislado, porque despierta a dicha parte del alma, la alimenta y
fortalece, mientras echa a perder la parte racional, tal como el que
hace prevalecer a los malvados y les entrega el Estado, haciendo
sucumbir a los más distinguidos (PLATÓN, 2000, X; 605,b).
Todo o irracional o caótico o negativo é ativado pelo poeta e por isso deve ser
expulso, porque em um estado ideal o sentir não tem espaço. Em algum sentido Platão
anunciava o mundo ideal da negação do corpo como centro de pensamento e a desejada
inteligência artificial mais conhecida como mundo das ideias. Bem sabemos que é
justamente aí, no ideal segundo este filósofo, onde se encontra o ser: o material só é
contingencia que evita, a toda costa, a sabedoria e suas regras.

O assunto profundo dos mitos é que são explicações do ser. Todas as


consequências desta afirmação referem-se aos regimes ontológicos do mundo. Segundo
o antropólogo Philippe Descola, no seu livro Par-delà nature et culture, traduzido ao
espanhol como Más allá de naturaleza y cultura (2012), existem quatro grandes
ontologias: naturalismo, animismo, totemismo e analogismo. Nós, reunidos esta manhã
aqui, pertencemos à primeira. Esta faz uma divisão radical entre natureza e cultura e é a
bússola do pensamento hegemónico do Ocidente. As repercussões desta trama de
sentido são mais evidentes agora, porque foram se afinando até eliminar qualquer
vestígio de subjetividade nas práticas humanas objetivando ao máximo qualquer tipo de
relação não asséptica. Desprende-se deste ponto de vista que somente quem pode falar é
o produtor de cultura ou o homem. O naturalismo é antropocêntrico.

Por outro lado, existiria o animismo, ontologia que não faz essa divisão
epistémica e que, por esse mesmo motivo, não objetivaria, senão subjetivaria a
experiência no mundo. Deste modo, o antropogenismo ou o princípio pessoal dos seres
do cosmos (que pode ser ampla ou restritiva) descentraria a exclusividade do homem
como regente ou classificador dos fenómenos. Onde encontramos ainda vivo este modo
de pensamento é nos coletivos ameríndios do nosso continente, por exemplo. Aqui o
3

2607
jogo volta-se perigoso para nós. Trasladar a epistemologia ameríndia para a literatura
seria depredação, roubo? Por outra parte, se quer, com o que se tem falado até agora,
virar os estudos literários a um plano cognoscitivo para o qual não foram concebidos? O
antropólogo, Eduardo Viveiros de Castro, tem uma resposta para estas dúvidas: [a]
semioestética da inmediatez [...] convida-nos a imaginar um outro conceito de teoria
(2013, p.103) Isto é a (re)união do sentido e do sentir seria a pauta arcaizante, entendida
como busca da origem, segundo Giorgio Agamben (2011, p. 26) da nossa proposta
teórica.

Em primeiro lugar, remitir-nos à antropologia pós-estrutural seria a continuação


das reflexões sobre o homem e seu costume de fazer histórias que são muito mais que
ficções. Em segundo lugar, apreender-se-ia da conectividade ainda viva de alguns povos
como referência a esse ponto anterior à divisão criada pelo pensamento platônico, e
plausível de restituir a nossa prática analítica em prol de uma constante não resolvida.
Em terceiro lugar, a literatura nunca deixou de se assumir como geradora de
perspectivas de mundo, apesar de sua pouca fama nas pugnas de poder. Por este motivo,
remitir-nos-ia a uma potencialidade parcialmente perdida pela criação literária: propor
mundos por vir ou como d El escritor retuerce el lenguaje, lo
hace vibrar, lo abraza, lo hiende, para arrancar el percepto de las percepciones, el afecto
de las afecciones, la sensación de la opinión, con vistas, eso esperamos, a ese pueblo
que todavía f . Ou melhor ainda como ecoa esta citação nas reflexões
de Déborah Danowski e Viveiros de Castro Falar no fim do mundo é falar na
necessidade de imaginar, antes que um novo mundo em lugar deste nosso mundo
presente, um novo povo; o povo que falta

Qual é essa terra e quais esses homens que faltam? Um espaço superpovoado, e
seres que reconheçam a ligação íntima entre ser, sentir e agir. Nessa ordem, por um
lado, se potenciariam os estudos literários posto que seriam a ponte qualificada dos
perceptos puros da literatura em um trabalho de tradução de sentires e, por outro lado,
se reconheceria por fim, a validez dos reclamos políticos de povos ameaçados pela
sombra da desqualificação monológica do Ocidente. Referimo-nos à selvagização das
suas míticas, posto que uma das lutas primeiras gira em torno à simetrização e
complementariedade mítica. Não falamos de um retorno a um passado adâmico nem a

2608
um futuro hipertécnico, mas às negociações que podem-se realizar hoje, pelo menos, a
partir do nosso campo de estudo.

Neste sentido, se invertemos nossa tríade encontrar-nos-emos com o seguinte:


toda política ou ordenamento das potências do mundo dependem de regimes de sentir e
todo o experimentado antes de sê-lo é contado por alguém. Analogicamente, para os
coletivos ameríndios o xamã é o tradutor idôneo do que se deve sentir e fazer. Para nós,
o escritor é esse diplomata que abre, face a nós, sentires. O grande dilema desta analogia
é que, para o nosso caso, o narrador perdeu seu lugar no mundo, porque nem os mesmos
pesquisadores souberam recuperá-lo para o povo, pela imposição de uma mítica alheia
na análise do fenómeno estético. E não, não é nossa culpa, nem a do Platão, quem agiu
de boa-fé; somente a situação atual requere de uma recuperação do tempo perdido.

Desprende-se uma pergunta de todo o mencionado: Os livros são objetos


mesmo? O que são os livros? E outra pergunta perigosa que gostaríamos de enunciar: o
que é a literatura? Os livros são objetos em tanto são materiais e nesse sentido também
são corpos, signos. O assunto do livro converte-se em uma exploração de uma
subjetividade condensada que procura encarnar. Em termos gerais, a mesma literatura é
uma prática que busca corpos para se realizar e o faz muito bem, porque não é nada
absurdo que pessoas se especializem em histórias e personagens que não são reais.
Retornar ao mito e a sua potencialidade seria recuperar para o homem, para a educação
do homem, não uma coisa, mas vozes que tentam desesperadamente se comunicar. Se
por uma parte o mundo está projetado e refratado na superfície do texto, este também é
uma luz que não se cansa de dar volume e tridimensionalidade às aparentes relações
planas do homem contemporâneo, sobretudo.

No último capítulo do seu livro, O acontecimento da literatura (The event of


literature), Terry Eagleton vá em nossa direção, porém com os médios da sua própria
tradição. Ao falar do mito explica que Son formas de cartografía cognitiva al tiempo
que reflexiones teóricas o ejemplos de juego estét 2013, p. 248). Próximo do jeito
deleuze-guattariano, o crítico anglo-saxão entende o que sempre foi e é o mito: um
mapa de formação de subjetividade. Cremos que a importância deste dado corresponde
com as perguntas e respostas que contêm o plano literário e que poucas vezes a crítica
consegue fazer emergir por uma imposição analítica significante, ou seja, porque só se
procura extrair deles confirmações teóricas sem repercussões morais ou éticas para a

2609
comunidade à que pertencem. Por exemplo, para não ficar muito longe do mundo, qual
é a importância da recuperação de Sousândrade para o Brasil? Se em um primeiro
momento sua criação foi revitalizada pela sua modernidade expressiva, em um segundo
momento teria que se passar a interpretar as lutas da lógica que construiu esse texto
dedicado ao Brasil e ao nosso continente.

Por outra parte, ao mesmo tempo que mapa, os textos permeados de mito (temos
que mencionar a existência de gradações e matizes sobre este tema) são teorias
singulares do mundo, são cortes analíticos do mundo, mas a grande diferença e
problema da análise que faz o mito é que não cessa de se mover com o cosmos
percebido, enquanto uma pesquisa de cunho asséptico só procura taxonomizar um ente
sem vida que nasceu para ser colocado em uma prateleira. Finalmente, Eagleton, soma
um possível terceiro elemento do mito: o jogo estético. Isto quer dizer a relação
interpretativa, no sentido teatral, que se estabelece entre o texto como sentir(es)
concentrados e as possibilidades de sentir que propõe ao leitor. Sem ir muito longe de
Aristóteles, a obra seria, à vez, teoreses, praxes y poieses, onde o último elemento não
seria algo acabado, mas aberto à relação: a poesia, no sentido amplo de criação artística,
vai dirigida às políticas que descansam sobre teorias do sentir.

Reativando a continuidade da esfera mítica na esfera literária continuidade que


nunca acabou, por certo se recuperaria a parte da relevância performativa real da
literatura e seu valor completo para as nossas comunidades hermenêuticas. Além de
objeto e estratégia, teríamos uma voz subjetiva face a nós. Não, o texto não é uma
pessoa, ele é uma pessoalidade, conjunto de interioridades que procuram se comunicar
depois de ter empregado a receptividade do escritor que, para nosso caso, cumpre um
labor de artesão xamânico: reúne linhas de subjetividade que o atravessam no meio do
caos e as tece no livro. [L]as estrategias son proyectos
propositivos, pero no la expresión . O
gênio romántico, ou a morte do autor não teriam muito espaço na nossa leitura que se
encontra em um lugar intermediário: entre o coletivo e o individual se encontra o artista
e a criação; entre o corpo e o sentido, está o texto que os enlaça; entre a verdade e a
mentira, a possibilidade.1 Esse entre é a figura extraída do caos, porque ele é a pauta de

1
«Al igual que el cuerpo, las obras literarias están suspendidas entre el hecho y el acto, la estructura y la
práctica, lo material y lo semántico» (EAGLETON, 2013, p. 264).

2610
construção do mundo por vir que tanto interessava a Sousândrade, a José María
Arguedas ou a Carlos Drummond de Andrade.

A atividade, porém, que se relaciona de perto com o caos nunca foi bem vista
como já temos falado. A consequência imediata de rejeitar o caos como constituinte da
realidade, explicada a través dos mitos, conduziu ao homem a desestimar qualquer tipo
de participação das narrações na vida prática da comunidade e na sua construção
convertendo à literatura, última trincheira humanizante, em algo inútil na formação do
homem. Isto quer dizer que aquele que faz arte com as palavras, par excellence, só
engana por essa relação demoníaca com o não verdadeiro, com o escuro. O sentido das
narrações do ser ficaria perdido desta forma e, em consequência, seu potencial ético ou
melhor etológico.

Para finalizar, por que o interesse na relação mito, estética e política? Por que os
expulsos depois da poesia e os poetas seriam os sofistas, nós. Com isto queremos
reconhecer o lado positivo da prática deles e da que somos herdeiros: a relevância da
sabedoria prática apreendida da escuta atenta do conhecimento plasmado no fenômeno
literário e a exposição da sua importância para a República; justamente até onde nós
podemos participar. Se teve um tempo em que se falava dos estudos literários como
ciência e nesse sentido gostaríamos de citar a Roy Wagner para fechar, por enquanto,
Um bom artista ou cientista se torna uma parte separada de sua
cultura, que se desenvolve de modos inusitados, levando adiante suas ideias mediante
transformações que outros talvez jamais experimentem Errada a vida do
pesquisador que deixa o compromisso com o mundo a través da matéria que lhe é
confiada.

2611
Referências

AGAMBEN, Giorgio. Desnudez


Cristina Sardoy. Bs. As.: Adriana Hidalgo, 2011.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. ¿Qué es la filosofía? Trad. Thomas Kauf.


Barcelona: Anagrama, 2011.

DESCOLA, Philippe. Más allá de naturaleza y cultura. Trad. Horacio Pons. Buenos
Aires: Amorrortu, 2012.

EAGLETON, Terry. El acontecimiento de la literatura. Trad. Ricardo García Pérez.


Barcelona: Península, 2013.

PLATÓN. República (Obras completas, tomo VI). Trad. Conrado Eggers Lan.
Barcelona: Gredos, 2000.
VIVEIROS -Strauss e a

Renarde (Org.) Lévi-Strauss. Leituras brasileiras. Belo Horizonte: UFMG, 2013.


WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Trad. Marcela Coelho de Souza e Alexandre
Morales. SP: Cosac Naify, 2012.

2612
A POTÊNCIA DA METÁFORA EM JORGE LUÍS BORGES
Damares do Nascimento Fernandes Costa1 (UEPB)

RESUMO:

O presente trabalho objetiva (re)pensar as características conceituais, que viabilizam delineares


éticos e estéticos, da metáfora na obra do escritor argentino Jorge Luís Borges. A metáfora para
ele, levando em consideração suas conjecturas ensaísticas e intuindo-as em seus demais textos
ficcionais, não se constitui sob a ótica binária metafísica do sensível e do não sensível, do
sentido literal e figurado, mas tem em um contrato rítmico e corpóreo da voz a potencialidade
que faz com que a palavra prescinda de significações fixas e lineares. A metáfora nesses termos,
tem mais a ver com a palavra como ato (como intui Hannah ARENDT) do que com o conceito
(como queria Aristotéles). Considera-se, portanto, que a obra do escritor argentino aponta para
novas leituras de uma ontologia da metáfora fundamental para se repensar o sentido, a

nos textos do autor, buscamos pensar o conceito de metáfora presente tanto em textos
considerando sempre o caráter híbrido entre
os gêneros textuais para Borges E no poema "Versos de Catorce", do livro Luna de Enfrente.
Esse conceito poeticamente elaborado aponta esteticamente para uma dimensão política da
palavra, cuja potencialidade é advinda da voz de uma singularidade que fala. Dessa forma,
convidamos à discussão o pensamento de Adriana Cavaero (2011), que pensa a relação entre
voz e palavra como uma relação de unicidade; Derrida (1973), no que tange à ideia de rastro e
Ricoeur (2005), para pensar a metáfora borgeana e suas reconstruções no campo da ética, uma
vez que esse elemento na obra do autor argentino aponta para o repensar de uma questão central
no panorama da cena filosófica contemporânea que é a questão da linguagem.

Palavras-chave: Potência. Metáfora. Ética. Estética.

Doutoranda do programa de pós graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual


da Paraíba.

2613
todo o seu imponente palácio a um poeta. O palácio fabuloso com todos os seus jardins
paradisíacos que prefiguravam um labirinto. No passeio, o imperador revelava toda a
sua onipotência: todos os rios resplandecentes que atravessaram nas embarcações ou

imperial passava e a decapitação a quem não o fizesse, afirmavam ainda mais o caráter
imponente do imperador e de todo seu palácio. Até que,

Al pie de la ultima torre fue que el poeta (que estaba como ajeno a los
espetáculos que eran maravilla de todos) recitó la breve composición
que hoy vinculamos indissolublemente a su nombre y que, ségun
repiten los historiadores más elegantes, le deparó la inmortalidad y la
muerte. El texto se há perdido; hay quien entiende que constaba de un
verso; otros, de una sola palavra. Lo certo, lo increíble, es que en el
poema estaba entero y minucioso el palácio enorme, com cada ilustre
porcelana y cada dibujo en cada porcelana y las penumbras y las luces
de los crepúsculos y cada instante desdichado o feliz de las gloriosas
dinastias de mortales, de dioses y de dragones que habitaron en él
desde el interminable passado. Todos callaron, pero el Emperador
hierro del
verdugo segó la vida del poeta. (grifos meus).

desapareceu como que abolido e fulminado pela última sílaba, pois não podem haver
duas coisas iguais no mundo. Mas, o irônico narrador nega tais versões, afirmando que
esclavo del

Há intuições profundas no que se refere à problemática relação entre linguagem,


realidade e ficção literária. Quero comentar brevemente outras relações (que também
constituem ou são constituídas por aquelas) especificamente: voz, palavra, unicidade e
política, que nos permitirão, posteriormente, pensar a questão da metáfora, no âmbito da
literatura Borgeana. O poeta-escravo estava como que alheio a todos os esplendores que
mostravam a onipotência do palácio e do imperador. Seu alheamento revela-se no seu
calar diante da visão dos esplendores. Entretanto, ao abrir a boca e recitar, o poeta
inaugura sua palavra como ato. Diante da onipotência do imperador, o escravo é uma
potência porque fala. Não é o que ele fala, mas porque ele fala. A breve composição
vinculada a seu nome ou seja, a sua palavra, a sua voz e o seu nome estão
substancialmente vinculados que arrebata o palácio. Seu dizer foi ato que possui um

2614
papel politicamente subversivo, revelando a potência da palavra, da esfera acústica (tão
temida por Platão). A palavra do escravo-poeta, poderíamos dizer, a SUA palavra
revolucionária, revela sua unicidade como ser singular que exprime-se a si mesmo e
dirige-se a outro. Note-se que todos calaram, mas o imperador exclamou: arrebataste-
me o palácio! Notória é a relação entre os dois: o escravo-poeta e o imperador, a relação
entre suas vozes, palavras e ações: ao término da recitação, o arrebatamento do palácio;
ao término da exclamação contundente, a dissipação da vida do outro. Cada um
revelando-se a si mesmo, sua unicidade, na pluralidade de suas relações. Nessa leitura,
consideramos que o falar exprime o si mesmo e a natureza política do espaço relacional.

Diante da leitura dessa parábola não podemos deixar de pensar na palavra do


poeta-escravo enquanto um ato de linguagem que redescreveu a realidade do palácio.
Não poderíamos pensar em termos de representação da realidade, mas sua recriação
infinita, ao passo que, a palavra, o significante remeteu um sentido ao palácio que
arrebatou e, uma vez que, ao invés de condensar um significado próprio, original, fixo,
o palácio era outro significante movediço, este, por sua vez, também remeteu à palavra
seus sentidos e possibilidades. Através do ato de linguagem do escravo, a palavra e a
coisa tornaram-se ambas uma só. Uma só voz.

Toda essa ilustração e conjecturas iniciais nos permitem contornar nosso intuito
de fazer uma leitura de algumas perspectivas da metáfora em Borges que fogem do
conceito tradicional desse elemento. Tomando como base dois textos ensaísticos (mas,
não menos ficcionais) do autor, que são: Las Kenningar e La metáfora; para em seguida
empreendermos a leitura de um poema de um dos textos iniciais de Borges, em que se
evidenciará as nossas postulações sobre a temática em questão. Nossa hipótese é que a
metáfora apresenta-se em Borges para além de termos de representação e, que, embora
não possamos fugir da ideia de imagem relacionada à METÁFORA, o que aparenta se
delinear na leitura dos textos propostos é uma estreita relação da metáfora com a voz, no
que diz respeito à corporeidade da palavra, na qual se inscreve a perspectiva relacional,
de acordo com a perspectiva ensaiada por Adriana Cavarero, em Vozes Plurais (2011).
Essa relação voz e palavra e, consequentemente, metáfora viabiliza pensar questões
relativas ao sentido, que nos leva a pincelar em nossa discussão o que Derrida elabora
sobre a ideia de rastro em Gramatologia (1973).

2615
Pensando essa relação entre voz e palavra como uma relação de unicidade,
Adriana Cavarero (2011) elabora uma política ontológica antimetafísica baseada em
vozes singulares que tem como condição o aspecto da relacionalidade comunicativa
com outras singularidades vocais, instituindo assim, a noção de singularidades plurais.
A metafísica platônica, que instaura uma política voltada para um logos individualista,
centrado na visão e desvocalizado, é confrontada por Adriana que desenvolve a teoria
da ontologia vocálica da unicidade subvertendo a relação problemática estabelecida
entre logos e política pelo pensamento hegemônico da metafísica ocidental. Entre as
questões que pontua, destaca-se a politicidade da palavra2 e da voz como elementos
reveladores da unicidade de quem fala 3, o que constitui um caráter corpóreo da voz e da
palavra: há um corpo que a expressa, uma acústica que a conduz. Essa corporeidade
pressupõe um ritmo: as singularidades trocam os sons em intervalos de tempo
contextuais que fabricam uma ressonância acústica.

Além disso, a voz precede a esfera semântica, a significação, o próprio sentido e


intenção do comunicar. A voz é muito mais uma intensão que precede e excede o logos;
uma potência que vai à palavra desvelando-a. Para Cavarero, o ritmo musical da língua
é a potência de uma voz que ressoa ainda e sempre no logos. A metafísica ocidental
centraliza o logos, descartando a voz e condenando a palavra à urgência de significar.
Subordina o exercício do dizer à ordem do dito.

O sentido da unicidade não se esgota na dinâmica da voz enquanto pura voz.

de uma voz que é ainda voz porque precede o advento da palavra, mas sim na
recuperação da voz no âmbito daquela palavra a que a voz mesma é essencialmente

mada
e a expressividade do dizer, ou seja, entre voz e palavra há uma relação intrínseca.

2
A questão da politicidade da palavra é desenvolvida por Adriana Cavarero a partir dos estudos de
Hannah Arendt, entretanto, Adriana amplia as discussões de Arendt potencializando a politicidade na voz,
antes mesmo de sua constituição enquanto palavra.
3
Ao pontuar que a voz revela a unicidade dos seres que falam, há uma subversão das constituições
metafísicas que tratam de categorias fictícias como as de sujeito, indivíduo, homem. Tais categorias não
revelam os seres únicos nem suas trocas vocálicas porque são abstratas, totalizadoras e hierárquicas. O eu
singular tem nome e sobrenome, é identificável, porque fala aqui e agora no presente.

2616
4
um ritmo. As palavras se juntam e se separam respeitando certos princípios rítmic .
Essa dinâmica da palavra é a dinâmica da comunicação em sua relacionalidade. Assim,
pode-se presumir que a língua é musical e rítmica, tem acentos, propõe pausas, porque
pressupõe a relação com o outro. Essa lei da ressonância está na origem de toda a
comunicação.

Em dois de seus textos ensaísticos que tratam especificamente sobre a questão


da metáfora, Borges intui as questões relativas à palavra e a relação intrínseca dessa
-se notar um vislumbre do que constitui essa
temática para o autor e da subversão à visão logocêntrica que se imprime nos
tradicionais estudos sobre o tema, já que a metáfora ainda apresenta-se e permanece

confirma essa subversão à tradicional visão sobre a metáfora, a partir de Aristotéles.


Segundo ele, Aristóteles funda a metáfora sobre as coisas e não sobre a linguagem, uma
vez que para o filósofo grego toda metáfora surge da intuição de uma analogia entre
coisas dessemelhantes. Borges cita o historiador Snorri Sturlusson (também citado por

um processo mental que não percebe analogias, mas combina palavras.

As intuições e conjecturas Borgeanas, em ambos os textos, apontam para uma


noção mais voltada para a corporeidade da palavra e das sensações vocálicas das
expressões, que precedem qualquer construção simbólico-imagética e que (pre)excedem
qualquer possibilidade pela busca de um sentido fixo. Borges inicia o primeiro ensaio 5
classificando as Kenningar, que seriam menções enigmáticas da poesia oral Islandesa
(medieval6

4
tmo é algo mais que medida, algo mais que tempo dividido em porções. A sucessão
de golpes e pausas revela certa intencionalidade, algo assim como uma direção [...] sentimos que o ritmo
é um ir em direção a algo, mas não sabemos o que vem a ser esse algo. Todo ritmo é sentido de algo.
(PAZ, 2012, p. 64). Mais à frente, Paz afirma que o ritmo é tempo original e que esse tempo não está fora
do homem. Dessa forma, essa ritmicidade inerente ao homem é expressa em suas vocalizações, que
exprime por meio de sons, atos e palavras a sua unicidade e, por conseguinte sua politicidade, uma vez

antiga do fato decisivo que nos faz ser homens: ser temporais, ser mortais e sempre lançados em direção a
5

enigmáticas da poesia Islandesa, mas, mu


próprio. Assim, mais do que analisar e descrever as Kenningar, Borges as forja. Dessa forma, torna-se um
pouco conflituoso determinar o gênero desse texto. Ele teoriza (intui) ficcionalizando.
6
Segundo Borges, as Kenningar se difundiram por volta dos anos 1000, época em que os thulir (rapsodos
repetidores anônimos) foram destronados pelos escaldos (que eram poetas de intenção pessoal). Os
escaldos eram cantadores populares, contadores de história (noruegueses e islandeses) (Zumthor, 1993),

2617
ahora que fueron el primer deliberado goce verbal de una literatura instintiva7
Assinala-se aqui a característica oral dessas construções. Um dos primeiros exemplos de
Kenningar no texto são alguns versos do poeta-viking (escaldo) Egil Skalagrímson8:

Los teñidores de los dientes del lobo


Prodigaran la carne del cisne rojo.
El halcón del rócio de la espada
Se alimentó com héroes en la llanura.
Serpientes de la luna de los piratas
Cumplieron la voluntad de los hierros. 9

Para Borges, versos como o terceiro e o quinto oferecem uma satisfação quase
orgânica. Ele afirma que o que procuram transmitir ou sugerir é indiferente e nulo. O
que realmente importa nessas construções é o contato heterogêneo entre as palavras.
Não provocam imagens, não são um ponto de partida, são apenas termos. Outros
exemplos dados são os que se referem ao ar:

muitas outras construções como essas, afirmando que as reduções a uma palavra
constituem perdas, ou seja, a variedade e contato entre as palavras dos termos
metafóricos, cujo sentido, muitas vezes não é possível explicar, possibilita satisfações,
vacilantes sensações que importam mais do que uma relação fixa entre significante e
significado.

Nesses termos, a metáfora escaparia a qualquer tipo de fixação de sentido. Esse


rompimento com a ideia de origem traz à tona a cadeia referencial de significantes, da
qual fala Derrida. Assim, as metáforas remetem-se e multiplicam-se entre si,
potencializa-se enquanto ritmo de uma voz que vai à palavra desvelando-a. Uma vez
que as palavras trazem o rastro de outros significantes (DERRIDA,1973), o sentido de

em uma época em que o acesso à escrita era menos frequente. Os escaldos compunham e davam suas

intención
interpretações dos mesmos.
7
gozo verbal deliberado de uma literatura
instintiva.
8
Um dos guerreiros Islandeses mais sanguinários da época Viking. Matava e recitava poemas.
9

espada/ alimentou-se com heróis na planície./ Serpentes da lua dos piratas/ atenderam à vontade dos
Ferros.

2618
uma metáfora é construído e reconstruído subjetivamente, é uma linha de fuga, em um
sentido Deleuziano, da estrutura do sentido original.

Nessa perspectiva, Derrida (1973) considera a diversidade propiciada pela


linguagem, bem como a significação como sendo resultado de um jogo de diferenças
estabelecidas entre seus elementos. Esse jogo de diferenças se dá no interior da
linguagem10 e não se vincula a coisas externas. Dessa forma, a multiplicidade de
sentidos da linguagem, a sua riqueza plurissignificativa, as ambiguidades permitidas
pelo critério da diferença e os seus jogos de associação, possibilita a realização de
operações múltiplas (Goulart, 2003), que não se constitui na ordem de um significado
fixo, original; Derrida rompe com a ideia de origem no campo do significante e do
significado. Abolindo esse último termo do binarismo, afirma que o que há são
significantes de significantes, remetimentos de remetimentos, melhor dizendo: Rastros.
Assim sendo, pode-se considerar que, no âmbito da linguagem, as significações não
possuem um centro em suas relações de significação, podendo, portanto, apoiar-se,
misturar-se, transformar-se com outros significados.

Diante de tudo o que já foi exposto, pensaremos a metáfora nessa relação entre
voz e palavra como uma relação de unicidade de uma voz que diz e que ao dizer se diz
enquanto singularidade. Assim como o poeta-escravo, que parte de uma margem e diz
sua metáfora potência que destrona o palácio, Borges parte de uma margem para falar
das Kenningar: escreve sobre textos esquecidos ou ignorados, reinventando estéticas,
ampliando o horizonte de discussão e de possibilidades de leitura. Na verdade, Borges
parte de várias margens, o escritor das orillas, como descreve Beatriz Sarlo (1995)
também entrecruza com o centro obras de autores menores argentinos, dá voz ao que é
menor, à penumbra, ao pôr do sol; em seus textos iniciais recria metaforicamente
Buenos Aires, enquanto cidade poética, cuja força e fervor não está no centro, mas nas
margens. O autor é uma voz argentina, uma singularidade que fala a partir de um lugar
que está às margens do ocidente e coloca a cidade e a própria literatura falando de igual
para igual com outras cidades e literaturas centrais. Há, em toda sua obra um fluxo de
entrecruzamentos entre o centro e a margem, que reivindica enquanto voz e

10
Nesse mesmo direcionamento, Goulart (2003, p.5) indica que os critérios maniqueístas seriam
desconsiderados se, ao refletir a linguagem a partir de diversos parâmetros, a significação fosse

2619
singularidade argentina, um espaço original, que é o espaço das margens, conforme
assinala Sarlo (2005), e esse espaço é potencializado pelas metáforas.

Nesses termos, a característica rítmica da voz à palavra viabiliza pensar a


metáfora nesse campo da relacionalidade. O poeta argentino no poema Versos de
, do livro Luna de Enfrente (1925), dá voz às margens, potencializando a
Buenos Aires poética nos rastros de tudo o que se constitui como margem:

A mi ciudad de pátios cóncavos como cántaros


Y de calles que surcan las léguas como um vuelo,
A mi ciudad de esquinas com aureola de ocaso
Y arrabaldes azules, hechos de firmamento.

A mi ciudad que se abre clara como una pampa,


Yo volvi de las viejas tierras antíguas del occidente
Y recobre sus casas e la luz de sus casas
Y la transnochadora luz de los almacenes.

Y supe en las orillas, del querer, que es de todos


Y a punta de poniente dessangre el pecho en salmos
Y cante la aceptada costumbre de estar solo
Y el retazo de pampa colorada de un pátio.

Dije las calesitas, noria de los domingos,


Y el paredón que agrieta la sombra de un paraíso,
Y el destino que acecha tácito, en el cuchillo,
Y la noche olorosa como un mate curado.

Yo presentí la entraña de la voz las orillas,


Palabra que en la tierra pone el azar del agua
Y que da a las afueras su aventura infinita
Y a los vagos campitos un sentido de playa.

O que dizer do verso: pressenti a entranha da voz as margens? É a própria voz


argentina em ritmo de margem, entranhada na singularidade que a diz. O poeta não quer

argentina ritmiza um direito de voz, de ter enquanto subúrbio, uma aventura infinita e
enquanto vagos campos, um sentido de praia. As metáforas da cidade a redescrevem,
para além do estético e do representativo, apresentam-se como ato de linguagem que
suspende o mundo e cria um outro território.

Nesses termos, podemos dizer juntamente com Ricoeur (2005) que a linguagem
poética possibilita a recriação ontológica da existência. O poeta tem o poder de suscitar
e modelar o imaginário através da linguagem. É isso o que o filósofo francês postula

2620
como denotação de segunda ordem, pois a
condição de que se suspenda a referência do discurso descritivo. Esse postulado conduz
ao problema da metáfora, que conquista seu sentido como metafórico nas ruínas do que
se pode chamar sua referência literal (RICOEUR, 2005, p. 338). Assim, as metáforas da
Buenos Aires Borgeana recriam uma cidade que fervilha, não no fervor da cidade
invadida pela modernidade no início do século XX, mas em um fervor atraído para as
margens, através de uma singularidade que diz e que se diz enquanto margem a partir de
metáforas que são potências da voz e do dizer. O exercício que se propõe na leitura
desses versos é o de recuperar a voz, uma voz das margens, no âmbito da palavra
metafórica.

Finalizando essa leitura, concluímos que a metáfora, esse tropo que traz em si
toda a carga tradicional da metafísica ocidental, que prioriza as ideias de analogia e
representação, pode ser repensada em Borges a partir de uma perspectiva que subverte
os meios abstracionistas da tradição e que incorpora a metáfora no âmbito do corpo,
através da voz. Assim, como vimos, a metáfora em Borges apresenta-se em termos de
potência porque são, e porque o que importa nelas é a voz do poeta, do escravo, do
Islandês, do argentino, e da própria margem, enquanto uma voz potencializada e
recuperada na esfera da palavra, que diz, mas antes de dizer diz sua própria
singularidade, se diz em sua humanidade, enquanto unicidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Jorge Luís Borges. Obras completas v.I e II. Buenos Aires: Emecé, 2009
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte:
editora da UFMG, 2011
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.
GOULART, Audemaro T. Notas sobre o desconstrucionismo de Jacques Derridá.
Programa de Pós-Graduação em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa da PUC
Minas, 2003. Disponível em:
http://www.pucminas.br/imagedb/mestrado_doutorado/publicacoes/PUA_ARQ_ARQU
I20121011175312.pdf (acesso em 15 de setembro de 2015)
PAZ, Octávio. O arco e a Lira. São Paulo: Cosaic Naify, 2012.
RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva.
SARLO, Beatriz. Borges: un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das
letras, 1993.

2621
A DIALÉTICA DO TRÁGICO
Dante Gatto (UNEMAT)

Resumo: este trabalho busca pensar a dialética do trágico, tomando como princípio a
contraditória natureza humana que não se reduz a uma lógica maniqueísta ou positivista. George
Lukács (1865-1971), Miguel de Unamuno (1864-1936) e Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-
1900) constituem-se na fundamentação teórica principal. Respectivamente: Teoria do Romance,
Do Sentimento Trágico da Vida e Genealogia da Moral. Resumidamente: o trágico nasceu da
religião e a religião nasceu da solidão. A solidão de Deus, por conta da perda do paraíso. Pode-
se pensar em termos de tese, antítese e síntese: solidão, convívio, problemas. O processo é
cíclico. A tensão está na contradição básica da nossa natureza irracional e a precisão da
racionalidade, por conta da nossa natureza gregária, até o paroxismo do racionalismo burguês.
Esta disposição também suscita um movimento dialético de negação e aproveitamento: mito,
razão, racionalismo. Se as tragédias gregas se sustentaram no conflito entre moira e ananké, se
o livre-arbítrio amparou a construção da nossa civilização, a pós-modernidade parece significar
um retorno da nossa submissão ao destino.

Palavras-chave: Trágico. Dialética. Solidão. Religião. Irracionalismo.

É inevitável pensar no trágico como o é pensar na vida, mas é também


assustador: o inevitável que tentamos escamotear. E falar sobre o trágico é sempre um
desafio, uma vez que não conseguimos ser incisivos, porque se trata de situação
desconfortável e contraditória. Vou dar um exemplo vivenciado no mundo acadêmico:
em certa circunstância, numa banca de qualificação, fiquei constrangido com o tom
grosseiro e agressivo que um dos avaliadores se referiu ao trabalho e à apresentadora.
Tentei consolá-la, terminada a sessão, quando ouvi dela a mais lídima verdade. Disse-
e não precisava nem devia dizer o que disse, mas eu precisava
Precisamos ouvir muita coisa e, por vezes, não há ninguém que nos
diga e quando dizem fica o sentimento de desconforto. O trágico é assim também. Traz
desconforto de um tipo inconfessável, porque vem acompanhado de sutilezas
psicológicas. São aqueles momentos que você dá tudo para não estar ali, naquele lugar e
hora em que não dizer é trágico e dizer também o é.
O fato é que o trágico não nos deixa saída ao mesmo tempo em que procuramos
uma qualquer que seja, mas sem formalizar tal procura, tamanho o constrangimento. E,
no fundo, trata-se de um constrangimento por estar vivo e, portanto, traímo-nos ao
pensar na vida. Vou explicar de outra forma o que quero dizer. Ao primeiro impulso do
pensamento caímos na ironia do constrangimento, afinal, tudo é trágico, todas as nossas
iniciativas em relação à vida vão bater na nossa condição trágica. Talvez seja melhor
dizer: nossa natureza trágica.

2622
2

Unamuno (2013) foi preciso ao identificar um sentimento trágico da vida. É isto:


o sentimento, e não a razão, é o grande diferencial do homem em relação aos demais
animais.
Em que circunstância se apresentou condições propícias ao surgimento do
trágico? Talvez seja este ponto mais significativo para darmos início às reflexões que
propomos aqui. O trágico nasceu da solidão. Georg Lukács (2009) argumenta em
termos de essência: a essência do trágico é a solidão. É claro que qualquer pessoa pode
entender, e isto se entende sentindo, a tragédia da solidão. Ora, como os demais
animais, gregários, compreendemo-nos em sociedade, ansiamos pelo reconhecimento da
comunidade. Não me basta estudar o trágico, mas preciso escrever e isto não é apenas
uma obrigação profissional e científica, mas traz uma forte carga de obrigação para
comigo mesmo. Há, pois, um problema que suscita o trágico: a necessidade do convívio
ao qual devemos estar equipado para a viagem ( ),
como se referiu Carlos Drummond de Andrade (1978, p.450), descobrindo as nossas

O que quero dizer, lembrando novamente o desconforto do trágico? O medo de


andar para dentro nós leva à fuga de nós mesmos ao andar para fora. Está nisto até uma
predestinação. Como, por vezes, desgastamo-nos na labuta diária, ou nos
relacionamento frugais, para evitar olhar para nós mesmo, pisar no solo do nosso
coração, lembrando novamente Drummond (1978, p.450). Ora, o constrangimento, o
desconforto. Precisamos de máscaras.
A máscara é um dos inventos mais antigos da Humanidade, presente já na
cultura paleolítica e se constitui, antes de tudo, um sintoma da clareza que o homem
iência de sua

(ORTEGA Y GASSET, 1978, p.86). Trazemos em nós o veemente afã de querer


participar dessa outra superior realidade, conseguir trazê-la para a nossa realidade
carente e limitada, fazer com que o onipotente colabore em nossa nativa impotência.
Conviver não é fácil. Infinitas vezes deparamo-nos com a expressão arte de
conviver. Sim. E voltamos àquela situação que apontei anteriormente: aquilo que devo
dizer e não digo ou quando digo peco. Ora, como dizer sem pecado? Eis que caímos no
labor artístico. Por vezes, apesar de toda boa vontade a situação se apresenta trágica na
medida em que apesar da enorme boa vontade e respeito ao outro o erro se insinua, a
falha trágica que agora cabe também na esfera psicológica. Este mal, por fim, será uma

2623
3

forma exemplar de acerto, mas é doloroso. E retomamos a questão inicial em que


auferimos que tudo é trágico.
Foi com o convívio que surgiram os problemas, lembrando mais uma vez. É bem
nesse ponto que está o cerne da nossa natureza trágica. E cabe aqui iluminar um
primeiro ponto da dialética do trágico: solidão, convívio, problemas. Ora, não queremos
a solidão; o convívio é, pois, necessário enquanto saída e sobram os problemas da
relação antitética, de tal forma que por vezes ansiamos o retorno à solidão. O processo é
cíclico. Toda forma de convívio é essencialmente trágica. Conversei recentemente com
uma jovem que ao ser questionada pelo fim de um relacionamento amoroso identificou,
enquanto problema, a completa aceitação do parceiro. Ela diss
. O problema estava em não haver problemas.
Em que circunstância sócio-política e histórica nasceu a tragédia? Foi justamente
no momento que o irracionalismo foi contestado, na sua configuração mítica. O mundo
já era complexo por demais e se fazia preciso criar regras para o convívio coletivo. E
criaram-se lá na Grécia a cidadania e a democracia. A democracia implica inserção a
qual é imprescindível participação, e a cidadania acaba alimentando a máquina
democrática para a transformação por meio dessa participação. O convívio. E as
palavras surgiram com força enorme nessas relações. As coisas, os homens e a vida, não
se faziam mais naturalmente por uma verdade mítica, mas prescindiam de explicações
fundamentadas numa razão, pesada por direitos e obrigações, que tinha já subjacente
certos paradigmas: notadamente, o bem. Era preciso reconhecer o outro mesmo nas suas
inaceitáveis fraquezas. Ser bom passou a significar fazer o bem. Sabemos que nem
sempre foi assim como Nietzsche (1987) explica na Genealogia da Moral. Sócrates
representou exemplarmente esse momento em termo de filosofia. Ser bom, antes dele
trazia uma individualidade aristocrática. Ser bom era afirmação da felicidade pela força,
pela plenitude de vida, bem como cabia ao ruim não necessariamente fraqueza, mas a
triste condição da infelicidade. Ao processo coube utilidade, esquecimento, hábito e,
por fim, erro. Ocorreu que o ressentimento dos fracos se tornou criador e produziu
valores e o ódio encontrou compensação numa vingança imaginária, na ideia cristã de
céu e inferno. Ora, a moral aristocrática constituía-se na afirmação da vida, mas a moral
dos escravos inverteu o golpe afirmador e opôs de início um não a tudo que não lhe era
útil. Este não passou a ser o ato criador. Um mundo exterior criado por conveniência
converteu-se no ponto de partida dos valores, e não o mundo interior, a ação tornou-se

2624
4

reação, os instintos supremo dom da vida na perspectiva nietzschiana foram


identificados como doença e perdemos o contato com nossa essência.
Os paradigmas do cristianismo foram lentamente alicerçados por tal postura,
uma moral do ressentimento, em que se abrigava, também, um sentido de
aproveitamento na composição produção, mão de obra e consumo, inerentes ao
capitalismo, resumindo aqui brutalmente uma complexa situação.
Da maldade, erigida ao pedestal de valor em primeira instância, surgiu a
necessária bondade, transfigurada no perdão. O cristão absorveu o fenômeno com o
consolo da vingança transcendental do inferno aos que não se redimissem do mal e, por
fim, como sustentação de tudo, fez-se necessária a bondade de Deus. Isto foi muito
oportuno, tramos no
projeto político, na concepção econômica da existência, ou na busca de segurança
.
Em parágrafo anterior, anunciamos dois temas: a irracionalidade e as condições
do surgimento da tragédia. O que os dramaturgos gregos, por fim, exploravam? O
choque da diké mítica e a diké racional. No processo estava a moira (destino) que é
contestada pela ananké (necessidade), que vai bater na índole particular do herói, entre
ethos e daimon ou da sua combinação como alguns preferem. De qualquer forma, o
herói era portador da desmedida, do desequilíbrio (hybris) que o fazia bem diferente das
perspectivas cristãs que se anunciavam. Estava feito, pois, o desacerto. O herói,
enquanto cidadão se pautava em outros paradigmas uma vez que deveria prestar conta à
coletividade, as leis da polis e não mais aos deuses. A ideia do livre-arbítrio ganhou
significação nesse processo.
Talvez tenha sido o positivismo o maior erro humano no sentido de negar a
irracionalidade. Entre os males do positivismo, defende Unamuno (2013, p. 25) está em
ter tornado fatos apenas fragmentos de fatos. Contra os valores afetivos não valem as


Da solidão, essência do trágico, nasceu as religiões. Se se pode falar de trágico
sem falar de tragédia, não podemos não falar de religião. Em princípio, em tempos
afortunados, como argumenta Lukács (2009), não havia o medo de perder-se, porque
não havia mesmo, ainda, a possibilidade da perda. Descobrimos o sentido da perda por
conta da nostalgia do paraíso que a produtividade do espírito construiu. A religião
nasceu de tal perda. A solidão de Deus. E como era diferente do cristianismo a religião

2625
5

mítica dos gregos: festa, dança, música, máscara, embriaguez e orgia faziam parte do
culto a Dioniso. Prerrogativas racionais, no entanto, mataram esse lado festival da
religião que foi substituído por uma relação pessoal com o deus único.
Da razão clássica avançamos para o racionalismo burguês. Quando inventamos a
religião, enquanto maneira de retorno a Deus, já trazíamos nostalgia do espírito de
coletividade, de um tempo em que havia comunhão, mesmo conflituosa, entre homem e
natureza, coletividade e Deus, mas perdemos isto, por que fomos, digamos assim,
condenados à individualidade solitária. O Renascimento recrudesceu tal realidade e as
revoluções burguesas do século XVIII levaram-na ao paroxismo. Ora, castigo de Deus
ou dos deuses, a coletividade se fez outra, tomada pelo racionalismo do capital em que a
situação se torna mais contraditória. Queremos dizer que se a razão absorve o
sentimento, por vezes, tensamente, o que configura a nossa condição trágica, o
racionalismo tenta negar o sentimento em nome de valores pragmáticos da sociedade
voltada para a produção, o consumo e o lucro.
Na perspectiva kantiana, cabe lembrar, razão é a faculdade das ideias, que, como
postulado, ultrapassa o conhecimento conceitual e científico, uma vez que acolhe
elementos de ordem sensível. Racionalismo seria, pois, a razão eclipsada, atacada do
pragmatismo que imprimimos à vida. Ora, temos mais uma disposição dialética para a
problemática do trágico: mito, razão, racionalismo.
Cabe introduzir o arquétipo nesta dialética. Conforme refletimos em trabalho
anterior: da individualidade como resultado para a sobrevivência e calcinada pela
convivência, construímos individualidade pressionada por forças arquetípicas, isto é, a
nossa individualidade que anseia pelo espírito de comunidade tão confortável, que foi
perdido se depara, agora, com a nova comunidade, reconstrução da primeira, mas
tomada pelo racionalismo, muito diferente da razão clássica. E alimentamos a própria
máquina que nos escraviza o que insere mais lenha na fogueira do trágico. (GATTO;
RODRIGUES; SILVA, 2015).
A pós-modernidade implicou uma mudança radical, principalmente no que
concerne a uma perspectiva de futuro. Esta na base disso a desilusão da modernidade
por conta do fim das utopias, principalmente as promessas do socialismo real. O
resultado disso é que o presente ganhou em significação e as particularidades se fizeram
mais relevantes que a universalidade abstrata, e os paradigmas hegemônicos acabaram
sendo contestados. Sob esse clima surgiu, por exemplo, o Mercosul e o Brasil se uniu,
também, a outros países (Rússia, China e África do Sul) que não fazem parte do

2626
6

Eurocentrismo que, inclusive, abarca os Estados Unidos. Instalou-se um clima


generalizado de solidariedade pelos mais fracos e as minorias. Deu-se vez a
investimentos no espaço local e a vida comunitária. Apesar da aparente uniformização

atividades, de mestiçagens, de sincretismos musicais, filosóficos, religiosos. Resulta


disto, dentre infinitas sinergias, o mimetismo tribal conjugado às realizações pessoais.
A vida se apresenta em sua diversidade e conquista a preocupação dos estudos
culturais e todas as instituições voltadas à vida social. Aliás, no pacote das
preocupações estão as identidades antes atiradas a sua própria solidão e as diferenças,
alteridades, antes disfarçadas pela suposta necessidade de instaurar uma unidade que
vagamente chamamos de universal. A inclusão passou a fazer parte da pauta do dia e as
minorias conquistaram espaço de participação como nunca antes: os índios, os negros, a
comunidade LGBT foi reconhecida e conseguiram direitos importantes como a união
homoafetiva, e o próprio conceito de família tradicional que não implica mais o
conjunto pai, mãe e filhos. Foram infinitas as transformações, assustadoras até, e
saudáveis em se pensando na inclusão.
No Brasil, a preocupação social deu origem a numerosas medidas, inclusive,
numa preocupação de compensação por injustiças sociais e históricas como as cotas
para negros nas universidades e mesmo bolsas que tentaram redimir o alijamento
imposto pelo neoliberalismo. A mulher, a maior das minorias avançou em termos de
conquistas de um espaço de igualdade e fizemos uma mulher presidente (ou presidenta,
que seja). O clima era propício.
O mundo ficou mais acolhedor, mais diversificado, mais democrático, mais
humano, mais colorido. Mas se multiplicaram, também, no movimento dialético, os
descontentes, renitentes às mudanças, preservadores dos valores tradicionais e das
rígidas instituições já sacramentadas, inclusive as religiões, principalmente as de matriz
evangélica. O fenômeno parece mundial, tendo em vista que o presidente negro
estadunidense foi substituído por um radical de direita misógino e xenófobo.
Interessante é a forte polarização política que se apresenta na atualidade
brasileira em que ambas as partes do conflito (direita e esquerda, que seja),
tragicamente, não cedem terreno, fecham-se, por vezes, à realidade dos fatos,
procurando justificativa ao seu posicionamento. Sempre foi assim? Se o trágico nasceu
do choque do destino e da necessidade, talvez, agora, dialeticamente, a força arquetípica
do mito reduza tudo finalmente ao destino: o homem estaria reduzido a um contexto que

2627
7

o determina e predestinado a ser isto ou aquilo? Por vezes, até eu mesmo penso que não
dei chance a experiência, mas já nasci de esquerda, já nasci afeito a utopia comunista e
adverso às religiões.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Nova reunião: 19 livros de poesia. 3ª ed. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1978.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo:


Martins Fontes, 1992.

GATTO, Dante; RODRIGUES, Demilson Moreira; SILVA, Patrícia Almeida da. A


construção do trágico. Revista Alere. Ano 08, Vol. 12, N. 02, dez. 2015.

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico. 2. ed.


Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades, 2009.

MAFFESOLI, Michel. O eterno instante: o Retorno do Trágico nas sociedades Pós-


Modernas. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral. Tradução de Paulo Cesar Souza. São Paulo:


Brasiliense, 1987.

ORTEGA Y GASSET, José. A ideia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978.

UNAMUNO, Miguel. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Hedra, 2013.

2628
REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE O SUBLIME E A DESTRUIÇÃO EM
THE RINGS OF SATURN

Autor: Davi Alexandre Tomm (UFRGS)


Orientadora: Profa. Dra. Kathrin Holzermayr Lerrer Rosenfield (UFRGS)

Resumo: Desde o século XVIII, quando a teorização sobre o sublime emergiu com força nos
meios literários e filosóficos, a relação entre a paixão do sublime e a destruição se evidenciou
mo muito
usado por filósofos como Burke e Kant, para definir o que sentimos diante de certos fenômenos
da natureza. A destruição, nesse caso, encontra-se no sublime porque o fenômeno ou objeto que
causa tal paixão é sentido como algo ameaçador, algo que pode destruir o ser humano. Na
literatura, o sublime é tradicionalmente ligado ao estilo grandioso e eloquente, com metáforas
poderosas que justamente evocam esses poderes da natureza que tanto assombram o ser humano
(Longinus). Para Burke, o poder das palavras, no entanto, não é o de fazer surgir imagens
sublimes em nossas mentes, mas de evocar sentimentos e de, por trás de uma descrição muitas
vezes cristalina, esconder uma ideia sombria. Na obra de W. G. Sebald, descrições de lugares ou
eventos sublimes, se misturam com um estilo que justamente consegue encadear uma ideia de
destruição por trás de frases cristalinas. Na obra do autor, no entanto, a destruição não é mais
uma ameaça possível, mas já aconteceu; os lugares que o narrador visita estão geralmente
carregados de emblemas da destruição proporcionada pela natureza ou pelo homem, e é nesse
ponto que ele apresenta um novo sublime. O presente trabalho irá introduzir a questão do
sublime em Sebald, dando atenção apenas à obra The Rings of Saturn, mostrando como esse
elemento aparece nesse livro. Por se tratar de reflexões preliminares, no entanto, algumas
questões ainda ficarão em aberto.

Palavras-chaves: W. G. Sebald. Sublime. Destruição.

No livro Elizabeth Costello (2003), de J. M. Coetzee, a personagem título, no


pergunta-se o quão longe um autor pode
entrar na representação do mal, e, de modo indireto, qual o papel da literatura quanto a
isso; para ela, autores colocam a si mesmos e aos outros em risco, quando vão muito
fundo em certas questões. No meu entender, o tema do sublime em Sebald se liga, de

2629
algum modo1, também a esse problema da representação de certos temas, como o mal, a
violência, a destruição.
Alguns autores, entre eles os críticos Susan Sontag (2016), Cynthia Ozick (2001)
e James Wood (1998), e os estudiosos da obra de Sebald, como Mark McCulloh (2003),
não tiveram problema em chamar a prosa
se embrenhou a fundo no assunto, apenas qualificando aqui e ali o estilo do autor como
tal. As questões de como Sebald transforma a destruição em sublime, ou de porque ele
faz isso não foram por eles debatidas. Tais questões, que estarão no horizonte da minha
tese sobre a obra de Sebald, apesar de orientarem também esse trabalho, não serão
respondidas aqui, pois tomo nesse recorte apenas uma das obras do autor, The Rings of
Saturn2, para trazer as primeiras reflexões sobre o sublime, tecendo algumas relações
entre este e a destruição. Sendo apenas uma rápida introdução ao assunto, tais notas não
pretendem esgotar as questões levantadas, mas antes apenas delinear algumas linhas do
que será mais adiante discutido exaustivamente na minha tese.
A relação entre o sublime e a destruição não é propriamente uma novidade, pois
desde as exaustivas teorizações sobre o tema, principalmente na filosofia dos séculos
XVIII e XIX, o sublime é a emoção que nasce das ideias de dor e perigo. Burke (1993)
já apresenta o sublime como ligado àquilo que nos apresenta o terror prazeroso, pois as
ideias de dor são sempre mais fortes que as de prazer. Sendo assim, na natureza, a
paixão que o sublime e o grandioso despertam um estado de alma em
que todos os movimentos são sustados por um certo grau de horror; a origem do poder
do sublime está justamente no fato de ele anteceder o raciocínio e nos arrebatar com
uma força irresistível. Sendo o medo, que é o pressentimento da dor e da morte e que
atua semelhantemente à dor real, a paixão que despoja completamente o espírito da sua
faculdade de agir e raciocinar, tudo que é terrível à visão é sublime, e, nesse caso, não
só as coisas grandiosas, mas também as pequenas. Na seção V da parte II, Burke mostra
ambém deriva do terror, pois não há poder relacionado ao prazer, apenas
à dor. Mais uma vez ele reforça que as ideias de dor e morte causam tanta impressão em
nós que elas sempre serão superiores a qualquer prazer. Assim, quando se volta para as
palavras,

1
Infelizmente as relações entre a questão do sublime e o problema do mal na obra de Sebald são
complicadas e intricadas demais para o escopo desse trabalho. Sendo assim, apesar de ser o ponto de
partida desse texto, não será discutido detalhadamente.
A escolha desse livro para esse trabalho não é totalmente aleatória, pois sendo ele a minha porta de
entrada nas obras de Sebald, é aquele cujas anotações deram origem ao meu projeto de tese.

2630
defender que as ideias obscuras são mais propícias a tornar algo extremamente terrível,
mas que estas ideias podem ser transmitidas por descrições vívidas e expressivas. Para
ele, a poesia é sublime não por causa da mimese, mas pela confusão de imagens, por um
poder intrínseco afetivo, tema que ele desenvolve na quinta e última parte3.
Posteriormente4, Kant (2012) vai desenvolver essa noção de medo estetizado, e
precisará resolver algumas questões na sua Analítica do Sublime. Para resolver a
questão do medo como algo que não seja nem real, de modo que seu efeito deixe de ser
estético, nem falso o suficiente para não causar efeito, Kant vai precisar apelar para a
noção de virtualidade (Doran, 2015). O filósofo
origem burkeana) na seção sobre o Sublime Dinâmico, para resolver o problema,
definindo o sublime dinâmico como o poder da natureza que não tem domínio sobre
nós, sendo, assim, estético (Kant, 2012); nosso temor da natureza só pode ir até o ponto
em que sentimos que não somos páreos para ela, mas ainda assim nós resistimos a ela.
Segundo Doran, (2015) a noção kantiana de sublime dinâmico, então, leva a um
paradoxo que será resolvido por uma reinterpretação, agora, a partir da dualidade do
nosso ser: físico e sensório, moral e espiritual. Aqui, para o autor, a ideia kantiana de
meaça existencial que pode facilmente
nos destruir, encontra-se (BURKE, 1993,
p. 47).
Outro filósofo que relacionou o sublime a essa noção de autopreservação, foi
Schiller, que nos seu estudo, Do Sublime
22). O filósofo e, para ele, o sublime é
o que na arte trágica apresenta a natureza humana que experimenta a autonomia moral
do sofrimento. Ele recorre a essa divisão antropológica do homem como ser natural
dominado por dois impulsos: o de autoconservação, ligado ao plano prático, e o de
conhecimento, ou da representação, ligado ao plano teórico; o ser humano, através
desses dois impulsos, permanece duplamente independente da natureza. A partir daí, há

No desenvolvimento desse trabalho, erá estudado também como Sebald mescla a sublimidade da
palavra com a da imagem, ou da imitação. Suas descrições de objetos naturais ou mesmo arquitetônicos
podem ser investigados à luz das qualidades que Burke enumera, mas, ao mesmo tempo, é na
profundidade obscura das ideias por detrás de suas descrições cristalinas que o sublime aparece com mais
força em sua obra.
4
Já antes de Burke, o crítico inglês John
sublime, ligando ele, no seu esforço em relacionar a grande poesia com as ideias religiosas, ao medo da
vingança do Deus irado (Doran, 2015). De fato, para Doran (2015), é Dennis quem primeiro vai estetizar
No seu livro sobre o sublime, o autor desenvolve
amplamente a discussão sobre a teoria do sublime desse autor pouco lembrado.

2631
também, como em Kant, uma divisão no próprio sublime, entre, o sublime teórico, que
permite nos perceber, no nosso impulso de conhecimento, independentes da natureza,
pois ela amplia nosso conhecimento; o sublime prático, cuja independência se dá quanto
ao impulso de autoconservação, pois a natureza representa um poder capaz de
determinar nosso estado (Schiller, 2011). Essa divisão é relacionada à de Kant entre
sublime matemático (teórico) e dinâmico (prático).
Schiller, então, vai desenvolver sua reflexão apontando para a preponderância,
mesmo em Kant, do sublime prático (dinâmico), pois neste o homem sente sua
verdadeira e completa independência. Enquanto no sublime teórico (matemático)
sentimos nossa independência das condições naturais apenas na ação do representar, no
sublime prático essa independência é sentida quanto à própria existência interior, ou
seja, sentimo-nos elevados acima do destino, acaso e necessidade natural. Ou seja, entre
em jogo aqui a questão da morte e da eterna necessidade humana de superá-la. O
sublime prático está ligado aos objetos que causam pavor (Süssekind, 2011), e, então,
voltamos à questão do medo e da destruição. Os objetos que causam o sublime prático
abalam a inclinação determinante da existência do homem enquanto ser natural. O
exemplo de Schiller para diferenciar estes dois sublimes é justamente o oceano: a
imagem dele calmo é um exemplo do sublime teórico pela vastidão que remete ao
infinito que nossa imaginação não consegue abarcar; enquanto que o oceano em
tempestade é um exemplo do sublime prático.
Sendo assim, quando diante dos perigos que a natureza lhe impõe, o impulso de
autoconservação busca manter a existência física e natural do homem, e, então, combate
a violência com a violência, através da cultura física: é o homem agindo sobre a
natureza através de sua astúcia, usando a tecnologia para se sobressair sobre essa
(Schiller, 2011)5.

5
Essa tática, porém, não é suficiente, pois há uma determinação da natureza que o homem não consegue
vencer, a morte. Esse problema da finitude ataca, para Schiller, a própria essência do homem, que é um
ser essencialmente volitivo, ou seja, aquele que não é obrigado a ser obrigado. Assim, para alcançar a
liberdade verdadeira, liberdade quanto às determinações naturais, o homem precisa eliminar a violência
no seu conceito, e, para isso, é preciso se perceber como um ser que é, mais do que condicionado pela
natureza, livre dela por sua ação moral. S esse ser moral que consegue se
perceber livre do condicionamento da necessidade natural, e essa percepção se dá justamente pela
experiência do sublime, que mostra ao homem sua capacidade de ir além da natureza fora de si e dentro
de si. Essa noção, no entanto, teve que ser deixada de fora na discussão desse trabalho, devido ao seu
escopo, bem como muito da teoria kantiana sobre o sublime também foi apenas brevemente discutida. Tal
problemática, no entanto, é importante frisar, será discutida na tese, pois acredito que há em Sebald uma
questão importante quanto à relação do homem com a morte, como podemos ver, principalmente, em
Rings of Saturn, nas reflexões que ele faz sobre Thomas Browne.

2632
Ao longo do livro The Rings of Saturn, somos apresentados a inúmeros lugares
marcados pelos traços da destruição: das ruínas de castelos medievais que estão
desmoronando por causa da erosão da areia a restos de moinhos de vento, passando por
instalações militares abandonadas no meio do nada. Além disso, há também, os traços
de destruição natural: dos restos de árvores mortas às árvores arrancadas por um
furacão6. Não é por nada que na primeira página do livro já encontramos a descrição de
uma sensação, uma espécie de vertigem catatônica, que acomete constantemente os
narradores e personagens de Sebald:
various times when confronted with the traces of destruction, reaching far back into the
SEBALD, 2002a, p. 3). Tal sensação (que chegou a nomear o segundo livro do
7
autor ) sentida sempre nos encontros com paisagens, obras de arte, objetos destruídos,
ou mesmo após uma lembrança , aproxima-se muito da sensação física de tensão nos
nervos ou paralisia momentânea da consciência descrita por alguns filósofos como o
efeito físico do sublime. No entanto, como veremos, a relação entre sublime e
destruição se dá, para os filósofos acima citados, pelo sentimento de temor que o ser
humano sente diante de objetos naturais que ameaçam destruí-lo. Sendo assim, a
destruição é uma força ameaçadora, vinculada ao objeto que causa a sensação do
sublime. Em The Rings of Saturn, o sentimento de sublime é, boa parte das vezes,
transferido para objetos e cenários que mostram o declínio ou destruição de algum
lugar, tanto pela própria força da natureza, quanto pela ação do homem e muitas vezes
interligando essas duas coisas. Ou seja, não é mais apenas uma força que ameaça o
homem, mas os emblemas, indícios, de coisas que já sofreram essa destruição, que já
foram devastadas seja pela força da natureza, seja pela força do próprio homem. Nesse
caso, o próprio ser humano, em uma inversão terrível, pois tal inversão se torna o
símbolo do poder devastador do ser humano, torna-se também fonte do sublime
mesmo que seja de uma forma indireta. Porém, como já afirmado, essa destruição pode
ser causada pelo homem, pela natureza, ou ser resultado da ação de ambos, como forças
que se complementam dentro de uma ordem universal que não conseguimos entender.
Por isso, é importante também perceber que, nesses casos, o sublime em Sebald se
aproxima muito mais das ideias de Burke sobre o poder das palavras para incitar tal
paixão; não é apenas a mimese de cenários ou objetos sublimes que The Rings of Saturn

A destruição do furacão, descrita no capítulo nove, poderia servir como um exemplo quase didático do
sublime dinâmico de Kant, ou o sublime prático de Schiller: o espectador (o narrador) vê, estando
protegido, a fúria destruidora da natureza que poderia facilmente exterminá-lo.
Vertigo, 1999.

2633
apresenta, mas muito mais aquilo que o filósofo considerou como poder afetivo
intrínseco das palavras: elas não fazem surgir imagens em nossa mente, mas evocam
sentimentos, e, podem esconder ideias obscuras que nos provocam paixões sublimes.
No início do capítulo três de The Rings of Saturn, o narrador chega, em sua
jornada pela região do Mar do Norte, na Inglaterra, a uma praia ao sul de Lowestoft, em
que uma linha de barracas de pescadores acompanha a linha da costa. Para ele, os
pescadores já não estão mais ali para pescar ele descreve a decadência da pesca
artesanal local através dos restos de barcos jogados à praia, mais uma imagem de
destruição que evoca certa sublimidade , pois nem mesmo peixes há mais, devido à
poluição trazida pelos rios. Então, o narrador believe (SEBALD, 2002a, p. 52) que
They just want to be in a place where they have the world behind them, and before
them nothing but (Idem). Por um lado, ao dizer o que ele acredita que os
pescadores fazem ali, ele apresenta a tradicional contemplação do sublime na esteira da
sua definição mais comum, e dentro da distinção que Schiller faz entre o sublime
teórico e prático: nessa cena, os pescadores são como o monge no quadro de Caspar
Friedrich contemplando a infinitude sublime do mar8. No entanto, ao direcionar sua
atenção para aquele mar, fonte do sublime, o que o narrador vê é o outro lado desse
sublime, é a história do ser humano como aquele que usou da violência para vencer a
natureza. O que se desenrola a partir do momento em que ele fala do mar e da pesca é a
história da pesca do arenque, um exemplo da cultura física da qual fala Schiller, na qual
o arenque se torna um t e
a descrição da memória dele do filme que via na escola sobre essa pesca cabe
perfeitamente nessa noção:

In my memory of that school film I see men in their shining black


oilskins working heroically as the angry sea crashes over them time
upon time herring fishing regarded as a supreme example of
mankind's struggle with the power of Nature (SEBALD, 2002a, p. 54).

A história que se desenrola mostra como o homem não tem escrúpulos ao impor
sua força e astúcia para tentar dominar a natureza, e a descrição das técnicas que os
-
possibilidade de sofrimento do animal. Assim, nesse trecho, o sublime se desdobra

Caspar David Friedrich, The Monk by the Sea, 1808-1810.

2634
nessas duas vertentes que Schiller delineou, e, mais ainda, seu efeito surge não da mera
mimese de objetos sublimes, mas principalmente da ideia obscura por trás das palavras.
Essa ideia se torna mais obscura ainda, e a sublimidade do texto de Sebald se
torna mais notável, quando aprofundamos alguns detalhes dessa descrição da pesca do
arenque, aproximando-
aquela do bicho da seda. Ao descrever o interesse dos estudiosos quanto ao arenque ao
longo do século XIX, Sebald mostra como esses homens da ciência ficavam olhando os

sobrevivência dele. A sede de conhecimento do homem o fazia passar por cima de


, inspired by our thirst for
knowledge, might be described as the most extreme of the sufferings undergone by a
species always thre 2a, p. 57). Mesmo que os
estudiosos buscassem consolo na ideia de que o peixe tinha uma fisionomia que o

leitores sentirem a empatia pela dor dos peixes morrendo lentamente. O que Sebald
mostra é que nossas desculpas são insuficientes para argumentar em favor de qualquer
destruição que causamos a outros seres vivos.
A meu ver, essa parte sobre o arenque aponta justamente para o fato de que esse
ímpeto de autoconservação que faz o homem querer dominar a natureza pela técnica, e
essa sede de conhecimento que o faz querer conhecer tudo, levou o homem a ir além do
mundo animal. Para a crítica literária Cynthia Ozick (2001), no seu ensaio sobre The
Emigrants, o ano de 1944, ano de nascimento do autor, torna-se um signo emblemático
que plaina sobre a obra dele. Para a autora, Sebald entra em uma linhagem antiga, que
de Homero, na Odisséia a Dante, passando por Virgílio e até pelo Salmista, cantam e

Ela usa o termo


que a escrita de Sebald é uma forma de resistir ao pesado fim que Adorno pôs à poesia
Adorno told us
this long ago: after Auschwitz, no more poetry. We resi

O Holocausto, desse modo, mesmo quando não citado diretamente, continua


sendo um tema dos livros de Sebald. Em Rings of Saturn isso não é diferente. Nesse

2635
sentido, é interessante trazer Adorno para a reflexão sobre o sublime, pois é justamente
a sua crítica do lado positivo de vitória moral do homem sobre a natureza, aquela que
para Kant e Schiller sentimos justamente diante de objetos sublimes, que ele vai
sentenciar à morte. Se em Kant (e por extensão podemos pensar em Schiller também,
apesar de Adorno não se referir a ele) há um otimismo iluminista da superação do
homem através de sua moralidade, Adorno e Horkaimer (2006) vão mostrar que a
emancipação humana pela racionalidade instrumental se tornou meio de dominação e

holocausto que mostrou aos autores as atrocidades a qual o homem poderia chegar nessa
sua ânsia poder dominação da natureza.
Em Sebald, o arenque, e posteriormente, o bicho da seda são emblemas do
Holocausto judeu. Além do trecho já citado, em que ele aponta o sofrimento de uma
espécie sempre ameaçada pelo desastre, outra pista nos é dada algumas linhas antes,
quando ele ainda descreve o filme que ele via na escola, o qual, filmado em 1936,
mostrava o arenque sendo colocados em barris que eram carregados em trens e

(SEBALD, 2002a, p. 54). É claro que Sebald não está aqui, de modo leviano e
irresponsável, comparando os judeus a animais 9. É importante entender esse modo de
abordar o holocausto pelo viés do que o próprio autor fala em uma entrevista a Michael
Silverblatt (2001), na qual ele explica que certos temas, como as catástrofes humanas,
precisam ser abordados de modo indireto, em que o autor fale daquilo, sem estar falando
diretamente daquilo. Ele cita o exemplo do ensaio The Death of the Moth , de Virginia
Woolf (1981), no qual, segundo ele, a autora fala da morte dos soldados na Primeira
Guerra, sem nunca citá-los, apenas através da reflexão sobre uma mariposa que se
prepara para morrer. Esse modo de tratar de temas impactantes vai se relacionar
justamente com a reflexão de Burke sobre o efeito das palavras e sobre como elas
podem no causar o efeito do sublime justamente por trazer um tema ou uma ideia tão
sombria, de modo tão cristalino.
No último capítulo do livro, ao apresentar a febre que se instalou pela

foi nomeada essa parte no índice do livro, com o Holocausto. Aqui, o autor vai da
história da internacionalização do negócio do bicho da seda no século XIX, até a

Essa é uma discussão que também aparece em Elizabeth Costello, de Coetzee.

2636
Alemanha nazista e o ressurgimento dessa prática pelas mãos dos fascistas alemães.
Não por acaso, essa reflexão se dá quando ele encontra um filme educacional sobre a
sericultura, justamente quando ele procurava aquele filme sobre o arenque. Os dois,
provavelmente pertencentes à mesma série, foram mostrados aos alunos alemães em
suas escolas. Ao contrario da escuridão do filme sobre o arenque, o filme sobre o bicho
da seda era claro, cheio de cores brancas e pessoas felizes cuidando dos bichos. A ideia,
com base em um panfleto de um tal professor Lange, era que as crianças aprendessem
sericultura na escola. Além do desenvolvimento econômico que o cultivo do bicho
traria, ele também er an almost ideal object lesson for the
2a, p. 294), pois eram dóceis, não precisando de jaulas, além
e for a variety of experiments (weighing, measuring and so forth) at
ao filme, e descreve a indústria da
matança:

In the film, we see a silk-worker receiving eggs despatched by the


Central Reich Institute of Sericulture in Celle, and depositing them in
sterile trays. We see the hatching, the feeding of the ravenous
caterpillars, the cleaning out of the frames, the spinning of the silken
thread, and finally the killing, accomplished in this case not by putting
the cocoons out in the sun or in a hot oven, as was often the practice in
the past, but by suspending them over a boiling cauldron. The
cocoons, spread out on shallows baskets, have to be kept in the rising
steam for upwards of three hours, and when a batch is done, it is the
siness is completed
(SEBALD, 2002a, p. 294).

A forma como o estilo sebaldiano delineia a descrição das imagens do filme até

prazeroso se avulte aqui também, como se estivéssemos diante de um objeto ameaçador.


Na verdade, estamos. A meu ver, a terrível mudança que faz o próprio homem ser um
objeto que provoca a paixão do sublime se dá, em Sebald, pela percepção de que nossa
história no mundo, como seres humanos, é não uma linha progressiva que sai de um
estado de trevas para um momento ideal de evolução, mas sim círculos concêntricos de
catástrofes e destruições que giram em torno de um vórtice único que é o início do
século XX, ou mais exatamente, a Segunda Grande Guerra. Integrados a uma espécie de
ordem natural de destruição, o ser humano, enganou-se cegamente com a ideia
iluminista de progresso, na qual suas capacidades intelectivas seriam o que o colocaria
acima da natureza terrível e inescrutável que o rodeava. Nós cambaleamos, de catástrofe

2637
em catástrofe, pois nunca aprendemos com nossos próprios erros: If we view ourselves
from a great height, it is frightening to realize how little we know about our species, our
SEBALD, 2002a, p.92).
Nesse sentido, o quadro de Jacob van Ruisdael, View of Haarlem with Bleaching
Fields, que o narrador descreve no quarto capítulo, é mais um emblema dessa sublime
destruição, outro exemplo dessa visão sublime por trás da qual se esconde a faceta da
destruição humana10, pois, por trás da bela vista apresentada, se esconde todas as
atrocidades e misérias trazidas pelo progresso e crescimento industrial da época. Em
determinado momento ele analisa que:

The flatland stretching out towards Haarlem is seen from above, from
a vantage point generally identified as the dunes, though the sense of a
bird's-eye view is so strong that the dunes would have to be veritable
hills or even modest mountains. The truth is of course that Ruisdael
did not take up a position on the dunes in order to paint; his vantage
point was an imaginary position some distance above the earth. Only
in this way could he see it all together (SEBALD, 2002a, p. 83).

Essa visão de um ponto de vantagem imaginário é assumida pelo próprio Sebald


várias vezes no livro, desde o início, no hospital, quando ele se imagina em um balão,
até em um sonho em que ele vê de cima um certo labirinto. Além disso, há também
momentos em que esse ponto de vantagem se dá de modo real, quando ele está em um
avião, ou, novamente no hospital, olhando da janela do oitavo andar para a cidade.
Essa espécie de visão panorâmica é o eye of an creator (SEBALD, 2002a, p.
19) de Browne, que só poderia alcançar the sublime heights that this endeavour
required através de um parlous loftiness in his language (Idem). Esse estilo de
Browne, segundo Sebald, pretendia ter um olhar sobre a Terra que permitisse investigar
The invisibility and intangibility of that which moves us (SEBALD, 2002a, p. 18),
pois para o autor inglês nosso mundo não passava de uma sombra de outro mundo
distante. Ora, esse outro mundo, essa outra ordem, que está além do nosso, mas
influencia-o diretamente, é talvez aquilo que Sebald também está tentando enxergar nos
seus escritos: as coisas invisíveis e intangíveis que nos movem, esse móbiles secretos

discutido na tese. Novamente a figura de Elizabeth Costello será trazida para pensarmos o quanto a
literatura deve tratar do mal, e, mais ainda, ir além, trazendo o sublime para o campo da violência. No
meu entender, essa é uma questão que deve ser pensada em conjunto com as próprias reflexões de Sebald
quanto à representação da destruição. Além disso, também as reflexões de Freud sobre o unheimliche e os
estudos já produzidos sobre a presença desse elemento na obra de Sebald, serão importantes.

2638
que nos fazem agir, são os mistérios talvez por detrás de nossa constante e insistente
marca destrutiva. Não é por nada que Sebald escreva sob o signo de Thomas Browne
nesse livro: nele, essa perigosa elevação da linguagem é justamente o que permite o
autor tratar dessa nossa catastrófica história destrutiva através de sublimes alturas. Ela é
perigosa na medida em que dela podemos sempre cair, pois ela se ergue como aquela
beira do abismo da qual o autor está sempre observando nossa existência. Assim,
Coetzee (2008) explica que a vertigem nas obras de Sebald não tem uma explicação
meramente fisiológica, mas metafísica. A meu ver, ela é o efeito justamente dessa
posição perigosa que o autor precisa assumir, que seus narradores assumem para olhar
para nossa insana presença na superfície da terra. O risco é sempre o mesmo, o mesmo
risco do voo de Ícaro11, o mesmo risco do sublime: o ser humano, ao ver sua pequenez
diante da natureza, quer tornar-se maior que ela, e é aí que as órbitas descendentes de
nossa história se formam, descendo concentricamente para o abismo da catástrofe.

Referências
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do
sublime e do belo. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus:
Editora da Universidade de Campinas, 1993.

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COETZEE, J. M. Inner Workings literary essays 2000-2005. London: Vintage Books,


2008.

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Cambridge University Press, 2015.

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António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

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University of South Carolina Press, 2003.

Não é por acaso que em seu primeiro livro, After Nature, Sebald se compare ao Ícaro de Bruegel, cuja
queda não é notada por nenhum dos outros sujeitos, sendo imperceptível até para o observador desatento.

2639
OZICK, Cynthia. The Posthumous Sublime. In _____. Quarrel & Quandary. New
York: Vintage International, 2001.

SCHILLER, Friedrich. Do Sublime. In SÜSSEKIND, Pedro (Org.). Friedrich Schiller:


do sublime ao trágico. Tradução de Pedro Süssekind e Vladimir Vieira. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.

SEBALD, W. G. Interview on Bookworm. Los Angeles, KCRW radio station, 6th dec.
2001. Interview to Michael Silverblatt.

_____. The Rings of Saturn. Translated by Michael Hulse. London, UK: Vintage Books,
2002.a

_____. Vertigo. Translated by Michael Hulse. London, UK: Vintage Books, 2002.b

_____. After Nature. Translated by Michael Hamburger. New York: Modern Library,
2003.

SONTAG, Susan. A Mind in Mourning. In Times Literary Suplement, 2000. Disponível


em <http://marcelproust.blogspot.com.br/2006/11/mind-in-mourning.html>. Último
acesso em janeiro de 2016.

SÜSSEKIND, Pedro. Schiller e a atualidade do sublime. In SÜSSEKIND, Pedro (Org.).


Fredrich Schiller: do sublime ao trágico. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

WOOD, James. The Right Thread. New Republic, 6 July 1998.

WOOLF, Virginia. The death of the moth. In _____. The death of the moth and other
essays. London, UK: The Hogarth Press, 1981.

2640
Elis Spyker (UFRJ)
Ronaldo Lima Lins (UFRJ)

RESUMO:
primeiro plano o lugar do artista e da obra de arte numa fábula na qual a própria experiência da
literatura se encontra, segundo Deleuze, sob novos paradigmas, já distantes de uma estética. A
literatura menor de Kafka, simbolizada perfeitamente no conto, requer desdobramentos que
ultrapassam o estatuto tradicional da cultura e da arte. Resta, portanto, pensar a respeito da
dimensão do artista, do público e da obra numa comunidade que não permite mais a plena
existência daquilo que Walter Benjamin chamou de aura. A obra de Kafka em questão parece
desenhar o limite da trajetória que a arte moderna percorreu e, assim, evidenciar a natureza dos
impasses vividos pelos artistas e escritores durante o último século. Nesse sentido,
levantaremos, neste trabalho, algumas reflexões que versam sobre a figura do artista e o gesto
artístico no conto, procurando pensá-los em diálogo, especificamente, com a chamada arte de
vanguarda europeia. Ao pensar as noções fundamentais presentes na teoria da arte das
al podemos
esboçar os aspectos filosóficos de obras como as de Franz Kafka e dos artistas de vanguarda.
Autores como Agamben e Zizek fornecerão também, do ponto de vista filosófico, as concepções
necessárias para desenvolvermos a pesquisa no sentido de entender o pensamento sobre a arte e
a literatura, especialmente a obra de Kafka, numa leitura política e não mais puramente estética.
Apagaremos, com isso, as fronteiras entre a ética e a estética, assim como Josefina, a cantora de
Kafka, dissolve todos os possíveis limites entre a arte e o povo.

Palavras-chave: Franz Kafka. Vanguardas. Estética. Política.

tuberculose, atingindo seu nível mais grave, provocara lesões na garganta que
comprometeram seriamente sua capacidade respiratória, deglutativa e de fala. Sem
conseguir ingerir alimentos, Kafka esforça-se incrivelmente para revisar as provas
namente
dava vida, na palavra, a Josefina, uma artista da voz, ou uma cantora do silêncio. Pouco

2641
tempo depois, no mesmo ano, Kafka falece, em 3 de junho de 1924, exatamente um mês
antes de completar quarenta e dois anos de idade.
Contrariando todas as expectativas diante das condições em que foi escrito, o
último texto de Kafka se diferencia de seus demais por, como bem observou Zizek
(2012), em alguma medida não carregar aquela atmosfera angustiante e pegajosa
esperada (somente, porém, em alguma medida). Assim somos apresentados à artista e
sua arte, ou ao povo dos camundongos:
Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu não conhece o
poder do canto. Não existe ninguém a quem seu canto não arrebate, o
que deve ser mais valorizado ainda, uma vez que nossa raça em geral
não é amante da música, para nós a música mais amada é a paz do
silêncio; nossa vida é dura e, mesmo quando procuramos nos livrar de
todas as preocupações diárias, já não sabemos nos elevar a coisas tão
distantes do nosso cotidiano como a música. Mas não o lamentamos
muito; nem mesmo chegamos a esse ponto; consideramos como nossa
maior vantagem uma certa esperteza prática, da qual evidentemente
necessitamos com a máxima premência; e é com o sorriso dessa
astúcia que costumamos nos consolar de tudo, ainda que aspirássemos
o que não acontece à felicidade que talvez emane da música. Só
Josefina é uma exceção; ela ama a música e sabe também transmiti-la;
é a única; com o seu passamento a música desaparecerá quem sabe
por quanto tempo da nossa vida.
Muitas vezes me perguntei o que acontece efetivamente com essa
música. De fato somos inteiramente não-musicais; como é que
entendemos a música de Josefina, ou pelo menos acreditamos
entender, já que ela nega nosso entendimento? A resposta mais
simples seria que a beleza do seu canto é tão grande que até o sentido
mais embotado é incapaz de resistir, mas esta resposta não é
satisfatória. Se fosse realmente assim, diante desse canto
precisaríamos, de uma vez por todas, ter o sentimento de algo
extraordinário, a sensação de que nessa garganta ressoa alguma coisa
que nunca ouvimos antes e que não temos absolutamente capacidade
de escutar algo para o qual Josefina e ninguém mais nos torna aptos.
Mas na minha opinião é justamente isso o que não ocorre; eu não o
sinto e nunca o notei também nos outros. Em círculos de confiança
admitimos abertamente uns aos outros que o canto de Josefina,
enquanto canto, não tem nada de excepcional. (KAFKA, 1994, p. 20)

Se das obras de Kafka

desta estação, que é porta entreaberta não apenas para a artista, seu canto e o povo,
como também para a narrativa, discutiremos algumas questões que, no mínimo,
parecem-nos importantes, quando não nos saltam aos olhos.
Antes de qualquer coisa, é necessário atentarmos para uma impressão que, logo
de início, se nos coloca; trata-se do tom crítico e analítico que se insinua na voz
narrativa do conto. Ao longo de todo o texto, percebe-se que essa voz oscila espacial e

2642
temporalmente entre a narração mais ou menos distanciada, que tenta contar uma
história, e a observação diretamente participativa, que aqui, para além, ganha os
contornos de uma reflexão altamente questionadora. Dito de outra maneira, é evidente
que a voz narrativa não só se empenha em contar Josefina e sua arte como em levantar
uma série de dúvidas, argumentos e hipóteses em torno delas.
Sabe-se que, no século XVIII, o filósofo francês Charles Batteux, que se dedicou
ao estudo da Poética e da Teoria da Literatura e elaborou uma teoria sobre as Belas
Artes, perguntava-se para saber se uma determinada atividade (como a música e a
dança) era artística se ela era imitação e representação, como a poesia, por exemplo.
Isto é, nesse questionamento, ele comparava tal atividade a outras tradicionalmente
consagradas como artísticas.
É impossível não lembrar de Batteux ao lermos as primeiras reflexões do crítico-
narrador de Kafka. Diz ele:
É realmente um canto? Embora não sejamos musicais temos tradições
de canto; em épocas antigas do nosso povo o canto existiu; as lendas
falam a esse respeito e foram conservadas inclusive canções, que
naturalmente ninguém mais sabe cantar. Temos portanto uma noção
do que é canto e a arte de Josefina não corresponde, na verdade, a essa
noção. (KAFKA, 1994, p. 21)

Essas reflexões, curiosamente, enredam grande parte da narrativa e atraem,


como centro de órbita altamente magnético, a atenção exclusiva dos comentadores do
conto. Por vezes, inclusive, pode-se observar o trabalho árduo realizado por alguns

respondê-los. Isto é, entregando-se à mesma tentativa realizada pelo nosso crítico e,


ainda, advogando por Josefina ou acusando-a.
No conto, não demora muito para que outros elementos sejam colocados, estes
necessários ao empreendimento de sua possível tese analítica: o crítico passa a inserir
suposições, hipóteses, argumentos, pondo em dúvida a qualidade e o valor estéticos do
canto de Josefina:
- Pois é realmente um canto? Não é talvez apenas um assobio? E
assobiar todos nós sabemos, é a aptidão propriamente dita do nosso
povo, ou melhor: não se trata de uma aptidão, mas de uma
manifestação vital bem característica. Todos nós assobiamos, mas
certamente ninguém cogita fazê-lo passar por arte; assobiamos sem
prestar atenção nisso, até mesmo sem o perceber, e muitos entre nós
ignoram totalmente que o assobio faz parte das nossas peculiaridades.
Portanto se fosse verdade que Josefina não canta, mas só assobia e que
talvez, como pelo menos me parece, mal ultrapasse os limites do
assobio usual; que talvez a sua força não baste nem para esse assobio

2643
costumeiro, ao passo que um trabalhador comum da terra o emite sem
esforço o dia inteiro enquanto realiza o seu trabalho se tudo isso
fosse verdade, então o suposto talento artístico de Josefina estaria
refutado; mas a partir daí teria que ser solucionado o enigma da sua
grande influência. (KAFKA, 1994, p. 21)

Tendo em vista que chegamos à artista e sua arte somente por meio da voz e dos
olhos do narrador, o primeiro ponto com o qual precisamos trabalhar é exatamente o
que eles nos dizem, e isso significa trabalhar com o lugar de onde eles falam. É preciso,
inicialmente, identificar a motivação que desencadeia a dúvida quanto ao valor do canto
de Josefina.
Trata-se, ao que parece, do aspecto sonoro dessa voz. Mas nos resta questionar a
perspectiva contida no argumento de que, sendo esse aspecto comum, banal, ordinário
(como o de um assobio, ou sequer isso), o talento artístico de Josefina estará refutado.
Em outras palavras, se o canto de Josefina não é extraordinário, não se diferencia
de um chiado ou ruído que todo o povo compartilha, logo o que Josefina faz não é arte.
Trata-se, evidentemente, de um critério, um juízo de valor baseado em uma noção
específica sobre a arte, sobre o que é a arte.
O Quadrado preto de Malevich é um mero quadrado preto? O canto de Josefina
é um mero assobio? É e não é. De modo que poderíamos com razão afirmou Zizek

(ZIZEK, 2012, p. 258), fazendo referência à obra de Magritte. É e não é, porque no


canto de Josefina há uma realização empírica de sinais fracos para realizar, porém, uma
dimensão transcendental. Ele só pode ser devidamente apreciado se o empírico não
eclipsar o seu caráter transcendental, limitando o ponto de vista do espectador. Mas é
necessário dizer que, aqui, o transcendental não é de natureza espiritual, e sim artística,
ética e política.
É evidente que o canto de Josefina, enquanto voz-objeto, não possui uma
propriedade sonora inerente que o avalie como singular e especial. O que distingue o
assobio de Josefina do assobio dos outros camundongos é uma marca ínfima. Quando

materialidade, e sim na sua atividade. No assobio enquanto assobiar, no canto enquanto


cantar. E cantar, aqui DOLAR apud ZIZEK, 2012, p.
258). Mas o que significa exatamente essa diferença?
Boris Groys, abordando as imagens universalistas da vanguarda, auxilia-nos na
compreensão de tal noção. Remetendo-se a Malevich, ele observa que

2644
De fato, com sua obra, Malevich abriu as portas da esfera da arte para
imagens fracas - na verdade, para todas as imagens fracas possíveis.
Mas [...] se o visitante da exposição de Malevich não pode apreciar a
pintura de seu próprio filho, então também não pode apreciar
verdadeiramente a abertura de um campo da arte que permite que as
pinturas dessa criança sejam apreciadas. (GROYS, 2011, p. 97)

O crítico do conto de Kafka, em sua avaliação, comporta-se como o visitante da


exposição. A conclusão que ele tira dela é exatamente essa, desacreditando Josefina, a
artista. Seu canto, por ser comum e fraco, é considerado assobio, grunhido, ruído,
chiado, o que, na perspectiva do crítico, é qualquer coisa que não seja canto, música ou
arte. Pois o seu juízo se baseia em uma noção que lhe diz que a arte certamente não é
algo ordinário, vulgar ou cotidiano: -nos a coisas tão afastadas
do nosso cotidiano como a música (KAFKA, 2009, p. 49). Mas também porque ele
participa da mesma confusão que o público em geral da arte de vanguarda: percebe o
canto de Josefina de maneira empírica, como voz-objeto. E é preciso lembrar que a
camundonga apresenta seus recitais ao público.
É curioso notar, ainda, que esse juízo está impresso na própria diferenciação

, tendo em mente Duchamp). Essa diferenciação causa embaraço, inclusive,


nos leitores da narrativa embaraço, aliás, tipicamente provocado pela forma de
construção da linguagem kafkiana. Mas quando identificada a motivação da distinção,
somos forçados, pela escrita de Kafka, a ressignificar a palavra, e a elaborar, agora,
inversamente a questão: por que não?

, pois todos assobiam, mas ninguém pensa nele como gesto


artístico, de modo que ninguém o aprecia como tal. O povo simplesmente assobia.
Ninguém, menos uma camundonga: Josefina. O assobio dela, pensado como
voz-objeto, é comum; em última instância, todo o povo possui essa peculiaridade. Mas
Josefina é a única que reconhece o assobio como atividade artística, o que
necessariamente já torna o assobiar algo incomum, ainda que tal distinção seja menor,
e sem olhar que .
Isso, ao mesmo tempo, significa que Josefina já sofreu, nela mesma, a ação de
seu reconhecimento. Para além disso, ela não somente pensa no assobiar como gesto
artístico, mas o realiza. De modo que Josefina é, em si, meramente Josefina,

2645
;

reconhecimento.
Da mesma maneira, o canto-objeto é igualmente o canto-de-Josefina. De fato, a
arte da camundonga se funde ao reconhecimento (do canto e de si própria), e ele nada
tem a ver com o conteúdo ou a técnica do som que a artista emite. Para ela, desistir de
cantar seria desistir de si mesma.
O som sem sentido de sua voz é tão comum, banal e ordinário, que o
profundamente estranho aqui é que mais ninguém, com exceção de Josefina, coloque-se
a cantar, a realizá-lo canto, a ressignificá-lo. Embora toda a população dos
camundongos possua a peculiaridade do assobio, ninguém mais o realiza gesto artístico.
Em outras palavras, o comum sendo realizado onde realizar o comum não é
comum: é algo realmente incomum. Onde ninguém mais além de Josefina percebe o
assobi

O mesmo ocorre, por exemplo, quando pensamos no urinol de Duchamp. Talvez


não haja nada mais comum, cotidiano e íntimo a todos nós do que um mictório; e,
entretanto, Duchamp foi o único a realizá-lo Fonte, e a expô-lo ao mundo.
Havendo nada de especial na voz de Josefina, nada mais além de sua própria
não por uma
propriedade material inerente qualquer, mas porque ocupa o lugar do artista

um marcador puramente ZIZEK, 2012, p. 258, grifo nosso). Ela diferencia


o silêncio em si e o silêncio como tal produzido pela presença dela mesma. Um outro
silêncio, marcado pelo contraste com o canto.
Dito de outro modo, o que distingue o assobiar de Josefina do assobio geral é
pensá-lo na dimensão da atividade artística, um gesto artístico cotidiano; e esta
realização é exatamente a realização de um silêncio, igualmente distinto do silêncio em
si, já outro. O que o diferencia é, portanto, o mesmo mínimo que distingue o chiar da
cantora. Ele produz um silêncio artístico, proporcionado pela experiência da arte.
O assobio da cantora tem a forma do deslocamento deslocamento artístico , e
é essa forma que estabelece a sua microdiferença. Mas se falamos em canto na forma do
deslocamento, falamos, aqui, simultaneamente, em deslocamento do silêncio. Ambos

2646
são o cotidiano sendo realizado deslocado da vida cotidiana, livre de seus grilhões. Isto
é, o cotidiano em sua potência.
Coisa que só Josefina proporciona ao povo. Não ela em si, mas Josefina a artista.
Ou seja, ela no seu próprio deslocamento. E, neste momento, neste único momento, os
integrantes do povo também são livres, porque eles participam da experiência do
deslocamento. Ali, vivem o cotidiano em sua potência, e já não são, eles mesmos, o que
são na vida diária. Neste momento, eles são igualmente deslocados, experimentam o
comum (de si próprios) em um lugar incomum (de si próprios). Mas apenas neste
momento.
E não será em torno dessa experiência do deslocamento que o povo se reúne? Ou
melhor, não será por ela? ne que
. O gesto artístico fraco de Josefina
não exige demasiada atenção, ou talvez nenhuma. A sua arte é de baixa visibilidade, de
modo que a contemplação atenta não é condição para nada. Os integrantes do povo não
são espectadores, mas participantes. E o que o canto-silêncio de Josefina proporciona é,
pelo contrário, a experiência da desatenção, da descontração, da qual o povo participa.
Quando o cotidiano é suspenso da prisão da normalidade, ele pode, finalmente,
acontecer no não-espaço de sua potência; está, portanto, livre. E isso quer dizer que o
tempo do calendário também é suspenso, descontrai-se. O canto-silêncio fraco de
Josefina, cuja mensagem é apocalíptica de que o tempo está em contração , acontece
como pura potência; a atividade em seu sinal zero descontrai o próprio tempo em
contração, e, neste breve momento, sobrevive a ele.
Quando Josefina canta, enquanto os músculos do povo se descontraem, ocorre o
mesmo com o tempo. Porque, sim, o povo dos camundongos vive no tempo em
encolhimento. E, aqui, como notou Zizek, o conteúdo sociopolítico é relevante. O status
quo do mundo desse povo é a intranquilidade e a instabilidade sem interrupção, sem

ameaçada, e o próprio caráter precário do guinchar de Josefina serve de representante da


exi ZIZEK, 2012, p. 259). Trata-se de um povo que
tem uma infância insignificante e não conhece a juventude; na luta permanente pela
mal aparece
uma e, em um intervalo brevíssimo, já não é mais criança. Isso significa, ao mesmo

2647
1994, p. 27).
Vivendo, o povo, no tempo em contração, o gesto artístico fraco de Josefina
transcende essa falta de tempo, pois ele, mínimo, exige muito pouco tempo, ou mesmo
nenhum tempo. Seu canto-silêncio empreende um momento de paz e tranquilidade, de
afastamento do trabalho duro, de deslocamento da vida cotidiana. De modo que o
silêncio artístico da atividade de Josefina cumpre uma função sociopolítica no povo.
Aqui, arte e política estão, enfim, reunidos.
O seu gesto, portanto, não exige tempo e atenção para experimentá-lo justamente
por sua fraqueza. Isto é, a desatenção e o deslocamento que ele proporciona ao povo só
são possíveis, por outro lado, porque a sua natureza é a fraqueza, a pobreza, a
miserabilidade; o comum, o cotidiano, ainda que libertos. De modo que o
distanciamento pode ocorrer porque a natureza desse gesto é próxima, íntima ao povo
dos camundongos ele a conhece muito bem. Assim, pode experimentá-lo por um
breve momento, ou nem isso, porque ele liberta o povo da tensão, mas também da
atenção, da contemplação. Por ter, a arte de Josefina, a natureza da intimidade,

É evidente, assim, que a experiência provocada pela arte da camundonga não


existe sem o gesto artístico, que, por sua vez, não existe sem a própria artista. O que nos
leva a pensar que não apenas o canto-silêncio de Josefina é um marcador meramente
diferencial, mas também ela, a cantora. Seu assobio é e não é: comum/incomum,
excepcional/ordinário. Quando falamos dele, estamos falando, ao mesmo tempo, em
Josefina também ela é acompanhada por essa dialética. Dialética, aliás, que
acompanha toda a narrativa.
Dissemos que a realização do gesto artístico é o marcador mínimo de distinção
entre o assobio da camundonga e o assobio popular. Isso significa que a diferença só é
possível se estiver inserida na totalidade, na dimensão absolutamente comum e
indistinguível do assobio popular. O mesmo pode ser dito de Josefina. Ela, em si, não
tem nada de especial, é apenas mais uma camundonga no povo dos camundongos. Por
isso mesmo sua arte permite uma relação de identificação e intimidade com o povo;
também por isso Josefina não é tratada como celebridade, estrela, personalidade famosa.
Em suma, ela não é fetichizada. Porque é um indivíduo médio, como todos os outros, e
um indivíduo médio . A sua arte
não é popular, mas democrática.

2648
Por outro lado, o seu gesto marca uma diferença mínima: ela o realiza onde mais
ninguém o faz. Ou seja, Josefina só é (e só pode ser) singular por um contraste com o
povo. Ele é o contraponto necessário para que haja alguma distinção. Dito de outra
forma, Josefina somente é uma cantora única porque é a única cantora do povo dos
camundongos. Ela existe individualmente porque está imersa na coletividade, que
poderia cantar, mas não canta. A sua imersão no organismo social é total o traço do
incomum rebenta
performance so ZIZEK, 2012, p. 262).
Na narrativa de Kafka, Josefina é o único indivíduo que tem nome próprio, e
isso é peculiar porque absorto em uma massa anônima. E é dessa perspectiva que
entendemos o título do conto, que, para nós, diz da relação dialética entre o assobio da
cantora e dos demais, assim como entre Josefina e o povo dos camundongos. Aliás, essa

somatório, identificador, e, ao mesmo tempo, discriminatório.

coletividade: ela reflete na coletividade sua identidade coletiva[...] Ela


constitui o elemento necessário de exterioridade que, sozinho, permite

constitutiva da ordem da universalidade: Josefina é o uno heterogêneo


pelo qual se postula (se percebe) como tal o todo homogêneo do povo.
(ZIZEK, 2012, p. 259)

O crítico de arte que encontramos no conto evidencia a fragilidade de sua


capacidade narrativa, isto é, de narrar a história, porque o juízo estético o atrai de modo
tão urgente quanto imediato. Ele procura já inutilmente o materismo do canto de
Josefina, e sua operação analítica deseja apreender a matéria subjacente ao gesto da
cantora, ou seja, sua voz como objeto.
Procurando identificar e delimitar os contornos, aspectos e elementos que
pudessem diferenciar o canto de Josefina de uma mera coisa, o crítico engendrou, em
realidade, uma busca negativa. Porque não só tudo nele é falta, mas também na arte
dessa camundonga. Seu canto, indo de encontro com o ímpeto crítico do narrador, foge
a uma classificação rigorosa de arte, ou seja, como puramente estética. Nesse sentido, o
narrador entra em conflito com o tipo de arte produzida por Josefina e, ao mesmo
tempo, não encontra meios de classificá-la (ou até mesmo defini-la) como uma
atividade artística, tendo em vista a não especificidade de sua música.

2649
O crítico-narrador de Kafka se ocupa de identificar os elementos que constituem
a voz da cantora. Entretanto, seu procedimento, mais do que isso, tende a questionar o
caráter de arte ou não-arte que poderia demarcar sumariamente a música ou chiado de
Josefina.
O tipo de juiz estético que surgiu na modernidade, o qual, de algum modo, é
encarnado pelo narrador kafkiano, diante de uma arte como a de Josefina, torna-se,
senão ineficaz, altamente comprometido com uma experiência estética. Esta,
necessariamente, colocaria o chiado, que quase não se parece com uma música, no
deserto onde figura o espólio de fragmentos e sombras sob os cuidados da grande arte,
isto é, a não-arte, o mau gosto ou simplesmente um objeto ou ruído cotidiano. Esse
narrador parece criar justamente a mesma experiência que, na maioria das vezes, tem-se
ao ler uma obra de Kafka e, consequentemente, não compreendê-la, senti-la escapar ou,
mais drasticamente, sentir-se barrado por ela.
Ao tentar fazer uma dedução violenta de um sentido da obra de arte, a partir de
uma definição do que seja propriamente arte, o crítico é incapaz de perceber que
Josefina e sua arte não se encontram dentro do paradigma estético, assim como
pretendiam as vanguardas. Pois, a voz da camundonga não difere substancialmente do
restante da voz popular. Ela está, portanto, no limiar do regime estético, onde a
diferença entre arte e não-arte não encontra relevância crítica, senão a própria
experiência que ela revela em comunhão com o restante dos camundongos.
Quando o crítico se debruça sobre a obra dessa maneira, ele mais se assemelha a
um médico legista, que, ao fazer uma autópsia, não se lembra do próprio fato da morte,
isto é, não a experiencia. A crítica puramente estética age como se fosse possível fazer
uma autopsia da arte, sem, com isso, dar-se conta de que, para todos os fins, ela já se
encontra perdida, fria e distante. Tudo o que o crítico de Kafka persegue no canto de
Josefina, portanto, é sombra cadavérica. E ela o seduz irresistivelmente. É a falta quem
o atrai, a ausência, porque é ela mesma quem o orienta. De mãos dadas com a obra de
arte, caminha a obra não-artística; o juízo estético do crítico é guiado pelo que não-é e
pelo que não-está-aí na arte da cantora.
Mas já a arte dessa artista é outra. Se o crítico não consegue chegar a uma
conclusão a respeito do que Josefina produz baseado apenas em sua sensibilidade
estética, é porque ele e a cantora estão em estações diferentes do destino da arte. A
artista de Kafka se encontra no momento em que a arte perdeu sua sombra. Este
momento foi aquele em que ela perdeu também sua aura.

2650
Quando as vanguardas empreenderam um fazer artístico democrático, e em
alguma medida, com ele, disseram que todo ser humano pode ser artista e fazer arte,
seja qual for seu objeto, nesta ação ouviu-se o sussurro de um tremor: era a distinção
entre obra de arte e mera coisa que silenciava. Nesta ação, despediam-se da obra sua
sombra e sua aura. E na obra pôde-se vislumbrar indistintamente uma revelação. Se
todos podem ser artistas, ninguém é artista, apenas potência.
O canto de Josefina, pensado na dimensão estética, revela nada, nenhuma
substância fantástica, nenhum conteúdo maravilhoso. O que o assobio de Josefina
produz é a possibilidade de cantar. Ele desvela, coloca na presença, a potência do
canto. Josefina é a possibilidade do artista, de qualquer artista. O povo dos
camundongos é qualquer povo.
O canto de Josefina é o conto de Kafka. O escritor sacrificou qualquer verdade,
conteúdo, significado, língua, música... O dito, pela possibilidade do dizer. Por amor à
transmissibilidade.
No conto, entre o crítico num canto e a artista noutro, cria-se uma passagem
estreita, por onde se pode vislumbrar a entre-estação. Não tratamos mais aqui da
não-obra
cantora ou O povo dos camun
Grandes Guerras, Kafka parece ter compreendido que também a arte deitara sob um
umbral de sua Sorte. O último texto de Kafka é a imagem desse limiar.

REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2003.
Revista Serrote, Rio de Janeiro, Instituto
Moreira Salles, n. 9, 2011.
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seguido de Na colônia penal e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 2009.
Um artista da Fome e A
construção. São Paulo: Brasiliense, 1994.
O destino das imagens. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.
Vivendo no fim dos tempos. São
Paulo: Boitempo, 2012.

2651
CONTRIBUIÇÕES DA ATITUDE TERAPÊUTICA DE WITTGENSTEIN
PARA OS ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS

Fernanda Valim Côrtes Miguel (UFVJM)

RESUMO: O objetivo desta comunicação foi o de partilhar e divulgar, entre os pesquisadores


do simpósio e possíveis interessados, parte significativa dos fundamentos de minha pesquisa de
doutorado, na qual apresentei as contribuições do pensamento de Ludwig Wittgenstein para os
estudos literários contemporâneos, dando ênfase à atitude terapêutica praticada pelo filósofo em
suas Investigações Filosóficas. Tal atitude vem orientando uma série de reflexões e pesquisas
que passam a encarar as narrativas literárias como produtos das culturas, problematizando
hierarquias e privilégios de sentido a que estão submetidas às práticas culturais e os valores
ético-estéticos. Aquilo que seguimos nomeando como terapia de dispersão espectral passou a
ser um modo de lidarmos com tais narrativas que leva em conta a supremacia do corpo do leitor,
das memórias nas práticas coletivas e das narrativas como textos das culturas.

Palavras-chave: Wittgenstein. Estudos Culturais. Atitude terapêutica.

Antes de dar início à minha fala no simpósio Ética, Estética e Filosofia da


Literatura , e levando-se em conta que ela é também a última apresentação do evento - a
que fecha o ciclo de todos os demais trabalhos apresentados ao longo desses dias de
encontro -, gostaria de agradecer aos colegas que compõem esta mesa de hoje e,
especialmente, aos organizadores do simpósio, que foram meus colegas de pós-
graduação e que se tornaram muito mais do que colegas: queridos amigos. A Abralic
deste ano, na UERJ, como sabemos, reafirma-se como um evento de resistência, em
defesa da universidade pública brasileira. Ao longo de minha formação acadêmica, fui
aluna da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, posteriormente, da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Hoje sou professora da Universidade
Federal dos Veles do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), uma das mais recentes
instituições do país. Por isso, em homenagem a todas essas diferentes instituições
públicas citadas aqui e que compõem esta mesa e nossas trajetórias de vida, em defesa
da universidade pública brasileira, sem temor e sem temer/Temer (com letra maiúscula!)
é que passo agora para minha fala.

2652
O propósito desta minha apresentação hoje é compartilhar com vocês, ainda que
brevemente, um pouco sobre o potencial criador e transgressivo da terapia de dispersão
espectral, tal como a temos denominado e praticado no campo dos Estudos Literários
contemporâneos, e que toma como referência a atitude terapêutica praticada pelo
filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), sobretudo em suas Investigações
Filosóficas, obra publicada postumamente (1953). Wittgenstein foi um dos principais
atores da virada linguística na filosofia do século XX e as implicações de seu
pensamento para os estudos literários, sobretudo como um modo de se lidar com
escritas contemporâneas, são significativas e esses percursos vêm contribuindo com um
campo produtivo de pesquisa e ao que parece ainda pouco explorado.
Realizar uma terapia de dispersão espectral de uma obra artístico-literária
significa descompactá-la em seus jogos de cena - vistos como jogos de linguagem - a
fim de identificar e descrever semelhanças de família entre rastros de significação
manifestos em alguns desses jogos e em outros, dispersos e identificáveis, praticados
em arquivos culturais diversos.
Uma terapia opera a partir dos efeitos performáticos de sentido produzidos pelo
que se manifesta explicitamente no texto literário de partida sobre os corpos de leitores
terapeutas dispostos a investigar rastros desses efeitos em outros jogos de linguagem.
Ao contrário da tentativa de aproximar e comparar escritas literárias buscando
possíveis traços comuns ou distintivos entre temas, enredos, estilos, enfim -, a terapia
de dispersão espectral lida com as narrativas a partir de uma outra perspectiva [a qual
Wittgenstein utilizou, ele próprio, para lidar com o discurso filosófico] por acreditar que
ela oferece um modo inusitado de investigar os efeitos suscitados a partir da leitura do
texto literário e as estratégias construídas, em cada caso, e que são capazes de nos
impactar.
O aspecto terapêutico praticado pelo próprio Wittgenstein vem sendo assim
resignificado e me parece representar a originalidade propriamente dita das
investigações realizadas, especialmente a partir de obras artístico-culturais
contemporâneas, porque ainda que sua filosofia já seja explorada no domínio efetivo
dos estudos literários, o aspecto terapêutico não me parece ter ganhado relevância ou ter
sido já, desta maneira, explorado. Em minha pesquisa de doutorado, procuramos
apontar para o potencial criador da terapia de dispersão espectral a partir da proposta de
três investigações literárias interdependentes, tendo como objeto de estudo as diferentes
encenações do feminino e as relações de gênero que as constituem nos e a partir dos

2653
contos de três escritoras latino-americanas, a saber María Luisa Bombal, Clarice
Lispector e Silvina Ocampo (MIGUEL, 2015).
O objetivo vem sendo o de percorrer os rastros desses efeitos que partem dos
textos, em cada caso selecionados, em dispersão a outros arquivos culturais nos quais
as questões que interessam o leitor/pesquisador/terapeuta aparecem reencenadas em
diferentes formas de vida.
Investigações Filosóficas como
noções difusas, nem sempre utilizadas da mesma maneira.
Diferentemente de uma atitude hermenêutico-interpretativa, de busca de um
sentido oculto no texto literário (o que o texto quer dizer... o que o autor quer dizer...
etc), o modo como passamos a abordar terapeuticamente os textos que se decide
- através de uma perspectiva panorâmica, que é outra
noção wittgensteiniana - os elos que nos conduzem a certas analogias estabelecidas por
semelhança de família.
Embora a terapia não se refira aqui a
uma acepção psicológica ou psicanalítica propriamente, já que não está, por certo,
baseada em nenhuma teoria da mente ou do aparelho psíquico, decidimos, ainda assim,
mantê-la, uma vez que é o próprio Wittgenstein que, partindo de seu uso situado em
psicanálise, mobiliza a palavra com outro significado. A intenção não é explicar as
relações analógicas mediante processos cognitivos ou mecanismos mentais, pois essas
noções tenderiam a subordinar o problema à teoria. O aspecto antiteórico do
pensamento de Wittgenstein, assim como a natureza não hermenêutica de sua terapia
filosófica, é especialmente comentada por Nigel Pleasants, em seu Wittgenstein and the
idea of a critical social theory. A critique of Giddens, Habermas and Bhaskar (2002).
Cito também, nesse sentido, o importante debate promovido por Susan Sontag, em seu
Contra a Interpretação (1987).
A terapia parte daquilo que está manifesto para elucidar o modo como são
construídas determinadas estratégias e determinados efeitos capazes de nos impactar. O
movimento da terapia de Wittgenstein não é de natureza conceitual, mas imagético-
descritivo1. Parte do solo da prática e dos usos cotidianos da linguagem que são, para
ele, profundamente ritualísticos. Assim, a gramática torna-se uma espécie de ritual ou
de rede mitológica sempre constituída por diferentes jogos que se processam de acordo

1
Imagem no sentido de modo de ver, sentido negativo.

2654
com as regras postas em prática: o uso de determinada palavra, em certo ritual, pode ser
um bom uso da linguagem, mas quando colocada em outro jogo pode torna-se uma má
,
sobretudo, como forma de adjetivar ou significar o conjunto não essencialista e mutável
das regras ou enunciados normativos nem sempre identificáveis e aceitos
incontestavelmente postos em cena na linguagem e que orientariam os sentidos de
determinado jogo de linguagem.
A terapia à qual Wittgenstein submete o discurso filosófico vem sendo também
ressignificada com base em algumas semelhanças de família que ela mantém com o
movimento da desconstrução de Jacques Derrida, especialmente a partir das noções de
espectros e da compreensão do texto literário como enxertia/citação. A partir da ideia de
que nenhum texto literário é totalmente original e de que o performativo se daria tento
pelo movimento da repetição/iterabilidade quanto pelo aspecto de originalidade, a
idiossincrasia, portanto, do texto literário.
O que passamos a chamar de terapia de dispersão espectral propõe a
descompactação do ato narrativo de partida e a investigação dos rastros desses efeitos
em diferentes jogos de linguagem por uma leitora ou um leitor terapeuta interessada(o)
em persegui-los, não com o intuito de explicar a narrativa ou os efeitos [a origem desses
efeitos] nem mesmo o de se propor uma outra interpretação para os textos de partida.
Talvez, a implicação mais expressiva do pensamento de Wittgenstein e da
atitude terapêutica para os Estudos Literários seja a própria concepção de linguagem
desenvolvida por ele a partir da década de 1930 e, sobretudo, nas Investigações
Filosóficas. A linguagem passa a ser vista como um conjunto heterogêneo de jogos de
linguagem, sempre em movimento. E cada jogo é visto como uma linguagem completa
[não existe mais a língua e a aplicação da língua, a teoria e a aplicação da teoria]. A
própria sugestão de ver a linguagem como um jogo já nos dá a ideia de ação corporal.
A
ssistir uma partida de futebol2.
O corpo que participa do jogo de linguagem participa orientado pelas regras que
constituem a gramática [outra noção wittgensteiniana] desses jogos, mas as regras, para
Wittgenstein, não são nunca prescritivas. Quando eu escrevo, o próprio ato de escrever

2
Ver Ludwig Wittgenstein: the Duty of Genius, de Ray Monk, editado pela Jonathan Cape em 1990,
e Wittgenstein: A Life (Young Ludwig 1889-1921), de Brian McGuinness, publicado pela Duckworth em
1988.

2655
também é visto como um jogo de linguagem encenado por um corpo que escreve. Do
mesmo modo, o ato de ler é também compreendido/visto como um ato corporal em que
o texto escrito provoca efeitos performáticos no corpo de quem lê e remete o leitor ou
leitora às memórias das práticas culturais das quais ele participou.
Para Wittgenstein não existe uma linguagem privada. São sempre linguagens
que se constituem em contextos situados, em diferentes formas de vida.
Tendo em vista essa concepção de linguagem, o próprio ato narrativo passa a ser
visto, como entende também Henry Mc Donald, como ação corporal que institui
presenças narrativas
composição situada e idiossincrática, bem como iterativa.
O ato narrativo é performativo porque é uma ação corporal [uma encenação
corporal de quem participa do jogo narrativo, ou seja, autor, narrador e leitor]. O ato
narrativo é performático porque é sempre original, mesmo repetindo e reunindo
enxertos, citações, remissões, enfim.
As reflexões em questão nos conduzem para a primazia do corpo que participa
das práticas culturais em diferentes formas de vida, por isso ele é reminiscente! Com o
corpo todo, com todos os sentidos conhecemos o que as coisas são. O corpo é o veículo
de retenção, relembrança e reprodução de figuras de movimentos. O corpo é memória e
produtor de gestos. O corpo é o lugar de poder constituidor de um mundo simbólico-
cultural. Por isso, natureza e cultura estariam indissoluvelmente entretecidas na pele do
, nos diz Wittgenstein3], de forma a
tornar impraticável nossa participação em qualquer jogo de linguagem que pretendesse
abandonar o corpo ou subtraí-lo. Cito Wittgenstein:

que o pensamento é, essencialmente, uma


atividade da operação com sinais. Essa atividade é executada com a
mão quando pensamos escrevendo; com a boca e a laringe quando
pensamos falando; e quando pensamos imaginando sinais ou figuras,
eu não posso indicar a você nenhum agente que pense. [...] Se falamos
sobre o lugar onde ocorre o pensamento, temos o direito de dizer que
esse lugar é o papel no qual escrevemos, ou a boca que fala
(WIITGENSTEIN Apud GEBAUER, 2013, p.69).4

Em um outro aforismo, ainda mais conciso, há a sugestão não sem uma dose
de refinada ironia (!)
3
Diários de 1930-32/1936-37, p.39.
4
Embora em inglês The blue and brown books (1962) seja uma obra única, ela foi traduzida para o
português (de Portugal) separadamente, em dois livros, O livro azul (1992a) e O livro castanho (1992b).
A mesma passagem traduzida no livro de Gunter Gebauer torna-se ainda mais clarificante:

2656
em nosso cérebro e, por extensão, dentro de nossas cabeças Penso, de fato, com minha
caneta, pois minha cabeça frequentemente não sabe nada daquilo que minha mão está
escrevendo (WITTGENSTEIN, 2000a, p. 34). Na impossibilidade total da existência
se pensa e que teria o poder de falar sobre seu próprio corpo de forma
alheia a qualquer situação concreta e independente de qualquer jogo de linguagem, a
5
supremacia da pele e do estamos preso em nossa pele fornece ao corpo humano
biológico o poder de constituir e ser constituído pelas práticas culturais e pelos jogos
simbólicos de linguagem. Assim, não é possível falarmos em jogos incorpóreos, da
mesma maneira que não é possível dissociar corpo, natureza e cultura. São postas em
questão, dessa maneira, as fronteiras demarcatórias entre pensar e fazer, entre saber e
agir, entre corpo e mente, pois se existem, de fato, saberes é certo que eles não estão
dissociados de um corpo humano que os realiza, os mobiliza e os pratica. Aprendemos a
escrever escrevendo, aprendemos a ler lendo, aprendemos a dançar dançando... e assim
por diante. Participar corporalmente de qualquer jogo de linguagem é deixar-se orientar
por suas regras, tendo ou não clareza e ciência sobre elas. Com isso, Wittgenstein
conduzirá seu pensamento a uma revisão da concepção convencional dos atos mentais.
É nesse sentido que toda memória seria, inevitavelmente, memória da pele,
memória do corpo, e as práticas culturais são auto memorialísticas: mobilizam
memórias, afetos, relações de poder...
A crença na existência de nosso próprio corpo como reconhece Wittgenstein
constitui a condição inalienável para que possamos não apenas usar a linguagem mas, a
partir desse uso, produzir saberes e crenças. A certeza do corpo, criada a partir de sua
participação física ou encenada pelo jogo de linguagem, é também a condição para que
a linguagem possa ser utilizada.
O propósito dos movimentos de dispersão espectral promovidos pelas terapias
aqui referidas não é o de ressignificar o texto de partida, nem o de produzir uma melhor
ou pior interpretação literária, mas o de destacar o papel vital - e profundamente
existencial ou vivencial - da literatura como um movimento auto terapêutico do leitor -
uma aventura do leitor -, desconstruindo hierarquias e privilégios de sentido a que estão

5
Diários de 1930-32/1936-37, p.39.

2657
submetidas às práticas culturais e os valores ético-estéticos atribuídos aos produtos das
culturas.
Por fim, a atitude terapêutica percorre os arquivos culturais a partir dos meios
expressivos, estratégias e recursos ficcionais manifestos nos textos, para valorizar o
desejo do leitor de se explorar com base no convite que lhe faz o texto literário.
Assim, cada leitor/leitora, cada ato de leitura, reatualiza um ritual, revisita velhas
e conhecidas mitologias e, nesse percurso, encontra o prazer e as dimensões ética e
estética que se atualizam nos contextos das disputas dialógicas entre os usos dos textos
em distintas formas de vida.

Referências
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Literary Theory. MLV, v. 91, n. 6, Comparative Literature (Dec.), 1976, p. 1397-1423.
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___. Cartão postal: De Sócrates a Freud e além. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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Derrida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
GLOCK, H. J. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
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MIGUEL, F. V. C. Investigações Literárias. Terapias e encenações do feminino.
2015. 295 f. Tese (Doutorado em Letras. Área de Concentração: Estudos Literários)
Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.
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Wittgenstein. In: RevLet Revista Virtual de Letras, v. 08, nº 01, jan/jul, 2016a.
___.
Aldir Blanc. In: FISCHER, L. A & LEITE, C. A. B (Org.). O alcance da canção:
estudos sobre música popular. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2016b, p. 238-252.
MIGUEL, F. V.C.; MIGUEL, A. Uma terapia do noturno a partir de War Requiem de
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2658
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STATEN, H. Wittgenstein and Derrida. Lincoln: University of Nebraska Press, 1986.
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Cambridge USA: Blackwell Publishers, 1962.
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WOLFREYS, J. Compreender Derrida. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.

2659
O INCONSCIENTE NA PRIMEIRA VERSÃO DO ROMANCE QUINCAS
BORBA, DE MACHADO DE ASSIS
Janaína Tatim, autora (UNICAMP)
Jefferson Cano, orientador (UNICAMP)

Resumo: Este trabalho apresenta resultados parciais de minha pesquisa de dissertação de


mestrado. O recorte aqui apresentado discute o aparecimento de uma noção de inconsciente na
primeira versão do romance Quincas Borba, de Machado de Assis, o que buscamos
compreender a partir de três frentes de investigação. A primeira diz respeito ao levantamento
quantitativo e qualitativo da noção em toda a obra romanesca de Machado, a partir do que foi
possível constatar que nessa versão do romance há não apenas a maior recorrência da noção,
como o estabelecimento de um uso conceitual da ideia de inconsciente. A segunda frente de
investigação relaciona o recurso à noção de inconsciente com uma problemática mais ampla da
poética machadiana, formalizada pela questão de como a literatura pode apresentar personagens
com estatuto de pessoas humanas e morais, o que se formulou enquanto problema ético e
estético quando o autor faz sua crítica à poética naturalista. Como resposta, na primeira versão
do Quincas Borba, Machado aprofundou diversos aspectos psicológicos, seja do ponto de vista
temático, seja do ponto de vista técnico, sendo o recurso ao inconsciente parte dessa investida.
Finalmente, a terceira frente de investigação trabalha as evidências de um possível diálogo de
Machado com a obra do filósofo alemão, Eduard von Hartmann,
best-seller das últimas décadas do século XIX que propunha a conciliação de duas visões de
mundo antagônicas: o idealismo metafísico e o boom das ciências naturais. Articulando essas
três frentes, discutirei o sentido singular do conceito na primeira versão do Quincas Borba. O
que ele diz sobre a apresentação dos personagens enquanto pessoas humanas e morais? Que
resposta estética formula diante das diversas epistemologias que visavam explicar o mundo e o
ser humano?
Palavras-chave: Machado de Assis. Quincas Borba. Inconsciente.

Quincas Borba, segundo romance da fase madura de Machado de Assis,


apresenta duas versões. Sua primeira versão corresponde ao mais longo processo de
publicação de um romance machadiano e se estendeu pelas páginas da revista A
Estação, entre os anos de 1886 e 1891. Entre essa primeira versão serializada e a versão
definitiva em livro, existem, de fato, diferenças consideráveis, como rearranjo de parte
da sequência do enredo, reescrita de trechos, cortes e acréscimos de texto. Além das

2660
diferenças textuais mais evidentes, minha pesquisa propõe que as versões manifestam
ainda problemas estéticos diversos. Minha abordagem considera a primeira versão como
um documento privilegiado sobre o processo de escrita do romance machadiano que
testemunha um momento singular em que, através do romance, elaborava-se uma
resposta a um horizonte de debate externo e histórico.
As diversas instâncias técnicas do Quincas Borba, tanto na primeira quanto na
versão final, apresentam um investimento de Machado na psicologia como uma fonte
estética, pois estão eivadas por aspectos da psique humana. Dentre eles, chamou atenção
a recorrência ao sentido de inconsciente, o que vem a ser objeto de interrogação desse
trabalho.
Além disso, para minha hipótese, esse investimento é ainda reverberação de
questões expostas na crítica de Machado de Assis ao romance O primo Basílio, de Eça
de Queiros. À época, Machado repudiou a abordagem das personagens orientada pela

personagens deveria se fundamentar na lógica necessária das ações advindas de seus


conflitos morais, ou seja, na construção de uma verossimilhança interna sustentada pela
envergadura da constituição moral das personagens, em conflito com o outro e o
mundo. A poética do Realismo, na leitura do escritor brasileiro, ao contrário, parecia
relegar as personagens a uma representação reificada e, por vezes, mesmo animalizada.
Com ela, as pessoas de ficção eram como títeres movidas pelos cordéis do autor para
demonstrar preconceitos amparados no pretenso discurso científico da época, como
animais determinados por instintos, pela raça e pelo meio.
Machado de Assis, no entanto, não refutava os discursos ditos científicos de
modo estreito ou apático. Ao contrário, o espólio de sua biblioteca pessoal atesta a
atenção dado pelo escritor a essas obras que, mais do que descrever a Natureza,
articulavam toda uma visão de mundo. Em especial, diversos dos volumes indiciam seu
interesse por obras que abordavam a psicologia do ponto de vista das ciências, as quais
podem ter funcionado como uma fonte da investida, no Quincas Borba, em aspectos
psicológicos. Dentre esses volumes, destaco a obra do filósofo alemão Eduard von
Hartmann, , que propõe, justamente, um conceito de
Inconsciente como fundamento de um sistema filosófico e de compreensão do ser
humano e do mundo. Hartmann opera a conciliação de duas visões antagônicas a do
Idealismo metafísico e a do boom das ciências naturais, de modo que a ideia do

2661
Inconsciente aparece como o elo de compreensão entre a lógica da metafísica e a lógica
do discurso das ciências modernas.
Em Quincas Borba, Machado faz um escrutínio das tramas de um intrincado
jogo de interesses amorosos e financeiros, de modo que a dimensão subjetiva e
intersubjetiva que sustenta essa trama se torna um aspecto estruturante. Assim, a
investigação aqui proposta sobre o uso do conceito de inconsciente no romance é parte
de um objetivo maior de minha pesquisa de mestrado, que pretende demonstrar como
subjaz à primeira versão a tarefa de reelaboração de questões expostas naquele debate
literário, por meio da análise das formas de inscrição da psicologia humana no romance.
A primeira versão do romance se torna assim um documento do processo de
formação da consciência crítica de Machado de Assis diante dos discursos correntes em
sua época, que buscavam explicar o mundo e a ação humana sob a égide das nascentes
ciências modernas. Essa consciência crítica diz respeito igualmente a sua observação
acurada das mudanças nas formas de subjetivação socialmente compartilhadas no
Brasil, sobretudo a observação das tensões da subjetivação sob a forma do indivíduo
no caso do romance Quincas Borba, especialmente, em função da mimese do processo
de modernização de uma sociedade escravista e, ao mesmo tempo, da capitalização das
relações.
Em geral, as paráfrases do Quincas Borba salientam a via principal de seu
enredo em que se deslinda o processo de alienação mental e financeira do
protagonista Rubião, um provinciano pobre que herda uma fortuna de seu amigo e
filósofo caduco, Quincas Borba. Essa mesma via pode ser compreendida desde o ângulo
da empresa de ascensão social em que o casal de arrivistas Sofia e Cristiano Palha se
empenha e que se realiza por meio da transferência de capital da herança de Rubião para
os negócios de Cristiano transferência sem sombra de dúvidas assegurada pela paixão
que o herdeiro sente pela esposa do sócio.
A discussão que aqui proponho do aparecimento recorrente e singular da noção
Quincas Borba, tem por horizonte os
dois enquadramentos anteriormente assinalados o do problema de por que meios a
linguagem literária pode apresentar personagens com estatuto de pessoas morais e
humanas; e do sensível adensamento de aspectos concernentes à psicologia humana,
sobretudo em função do esquadrinhamento dos fenômenos da mente e da instituição e
destituição do sujeito postas no romance.
*

2662
Para respaldar minha percepção de que havia uma diferença substantiva no
modo como a noção de inconsciente foi usada na primeira versão do Quincas Borba,
procedi a uma pesquisa quantitativa e qualitativa do termo através dos romances
machadianos. Com isso, foi possível estabelecer um parâmetro do modo como Machado
utilizava o termo, e então se em Quincas Borba haveria diferença, tanto quantitativa,
quanto qualitativa.
adjetivo; e também o advérbio inconscientemente e o substantivo inconsciência ,
além do termo incônscio , por desempenharem extensão do mesmo sentido.
Houaiss - Dicionário
Eletrônico de Língua Portuguesa (2009) definem bem esses sentidos correntes que
aparecem nos romance, ou seja, trata-se de usos pelos quais não necessariamente se visa
à construção de um sentido conceitual ou de uma tese sobre o inconsciente, sendo usos
não referenciados em uma área do conhecimento, como a psicologia, por exemplo:
1 que não é dotado de consciência; incônscio <a vida i. dos vegetais>
2 que perdeu o conhecimento, que está privado de consciência <um
doente ainda i.> 3 feito de maneira irresponsável, inconsequente <uma
política i. leva o país à ruína> 4 que acontece sem que se preste
atenção; automático, maquinal, involuntário <gesto i.>
Os resultados foram os seguintes: no romance Ressurreição há 2 ocorrências; em
A mão e a luva, nenhuma; em Helena, 4; em Iaiá Garcia, 4; em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, 1; na primeira verão do Quincas Borba, 9; na versão final do Quincas
Borba, 5; em Dom Casmurro, 3; em Esaú e Jacó, 2; e em Memorial de Aires, nenhuma.
Do ponto de vista quantitativo, dentre todos os romance de Machado de Assis,
incluindo-se a versão final em livro do romance Quincas Borba, a versão seriada foi
aquela em que o termo mais recorreu. Assim, a comparação com os demais romances
dimensionou o interesse de Machado pela noção de inconsciente à época da primeira
redação pública do Quincas e permitiu concluir que o termo foi alvo de um interesse
atípico.
Do ponto de vista qualitativo, a análise do contexto de cada ocorrência em cada
romance revelou que no Quincas Borba, sobretudo em sua primeira versão, o termo
inconsciente não apareceu apenas nas acepções comuns listadas anteriormente, como
nos demais romances. A partir da noção de inconsciente, agregaram-se sentidos
específicos, por trás dos quais parece haver um conceito. Em função do limite de
páginas deste trabalho, os trechos analisados não serão trazidos, mas poderão ser
encontrados no texto de minha dissertação. Fundamental para o que argumento aqui é
relatar como as ocorrências definem o sentido de inconsciente na primeira versão do

2663
Quincas. Primeiramente, elas permitem inferir que a mente humana é concebida, nesse
romance, em duas instâncias: uma consciente e outra inconsciente.
A primeira é definida pela representação consciente que as personagens fazem
de ações, gestos, pensamentos, sentimentos, seus ou de outros, bem como de uma
racionalização deliberada, por meio da qual se definem enquanto sujeito único, e
produzem julgamentos morais.
Já a instância do inconsciente é representada apenas pelo narrador, nela reside
toda sorte de material subjetivo das personagens como ideias, significantes, intenções,
afetos, memórias, que podem vir à tona ou permanecer na inconsciência, sendo
reprimidos. Não raro, as causas ou origens secretas e verdadeiras de ações, pensamentos
e intenções são inconscientes. O inconsciente também aparece como origem de
disposições e impulsos que pertencem ao sujeito e o afetam, mesmo que ele não dê por
isso. A noção de inconsciente compõe ainda uma tese apresentada pelo narrador sobre a
busca do indivíduo pelo senso de unidade. O inconsciente, assim, guardaria uma lógica
da Natureza atuante nos sujeitos, capaz de dirigi-los e afetá-los embora não de
determiná-los, à feição de uma lei ou de um destino inexorável. Essa última noção, que
mais se aproxima de um sentido conceitual, é expressa no seguinte comentário do
narrador:
A vida de Rubião carecia de unidade. Sem o perceber, o que
ele buscava no casamento era a unidade que a vida não tinha. Sentia-
se disperso e confuso; [...]
ainda assim, a vida pode ter unidade, - ou na alma ou na
situação do homem. Nem a situação nem a alma do nosso homem
estava em tal caso. A vida partira-se-lhe. Vivera mais de metade em
outro lugar, com outras gentes, outros meios, outros horizontes. Não
tinha aqui família; as relações eram de acaso e recentes, não
cimentadas pelo tempo nem explicadas por outras causas mais íntimas
e profundas. [...]
A alma era a mesma cousa. Não achava equilíbrio nem
alimento em si própria. [...]
Rubião, às vezes, com saudades de Minas, recompunha a
existência obscura de outro tempo. [...] Era simples, limitada ao
pouco, mas igual a si mesma e estável; entre o homem e o meio existia
comunhão de ideias, de reminiscências, de amor ou de aversão, de
nojo ou de alegria, - de hábitos, ao menos. [...] Cá tudo era novo; nada
fazia sentir nada.
[...]
Crê, leitor, tal foi a origem secreta e inconsciente da ideia
conjugal. As outras explicações são boas, por serem razoáveis e até
honestas, mas a verdadeira e única é a que aí fica. Crê ou fecha o
livro. [...]
A causa era a que ficou dita. O matrimônio enfeixaria os
esforços, recolheria em si o homem disperso, embora ele não soubesse

2664
nada dessa causa verdadeira e única. Que sabe a aranha a respeito de
Mozart? Entretanto, ouve com sumo gosto a guitarra e o piano.
(ASSIS, 1976, pp. 95-96)
Nesse longo comentário do narrador ao estado moral do protagonista, emerge a
ideia de que do inconsciente parte um impulso para que o sujeito busque se agregar
como uma unidade. Esse impulso chega à consciência de Rubião sob a forma da ideia
de se casar, que aparece conscientemente justificada por questões de ordem financeira,
já que a herança de Rubião começava a se esfacelar, e diante disso talvez uma esposa
estancasse o capital que se esvaía e que ele não era capaz de conter. No entanto, o

fragmentação do próprio sujeito. Embora essa sugestão do inconsciente chegue à


consciência de Rubião, o personagem não será capaz de empenhar-se nela e acabará
sucumbindo à alienação de seu eu e de seus bens. Num flerte com o absurdo, a curiosa
comparação com a aranha que aprecia Mozart sem entender por que remete à ideia de
que a Natureza possui uma lógica própria. No contexto dos primeiros sinais de
desagregação do eu do personagem, essa lógica se expressa sob a forma de um
dispositivo inconsciente que move o eu em busca de sua conservação, um dispositivo
alocado numa instância também inconsciente da mente do sujeito, espécie de alarme
protetivo contra sua autodestruição.

*
(JOBIN,
2001), o escritor brasileiro teve em sua biblioteca pessoal ao menos quatro volumes do
filósofo alemão Eduard von Hartmann, eram eles: (1877), Le
(1880) e os volumes um e
dois de
livros, Le darwinisme e o primeiro volume de , apresentam
marcas de intenso manuseio.
Eduard von Hartmann foi uma espécie de best-seller mundial do século XIX,
ainda que sua obra e teses tenham caído no esquecimento. Hartmann colocou em
circulação, no pensamento ocidental, uma obra que erigiu um conceito de Inconsciente
como centro de um sistema filosófico e de compreensão do ser humano e do mundo.
Trata-se de Filosofia do Inconsciente, ou , título na
tradução francesa pela qual ficou mundialmente conhecida ao longo das décadas de 70 e
80 do século XIX. Désiré Nolen, seu tradutor para o francês, nos informa sobre o

2665
sucesso que vinha obtendo desde sua publicação em 1869. Assim, já em 1877, a obra se
encontrava em sétima edição francesa e fora objeto de discussão de pessoas de diversas
partes da Europa e também da América.
Essa sétima edição traduzida para o francês foi possivelmente responsável por
colocar Hartmann em circulação no Brasil, e vem a ser aquela encontrada na biblioteca
pessoal de Machado de Assis. A meu ver, a aproximação do escritor brasileiro com as
ideias do filósofo alemão teria se dado, num sentido amplo, por seu pensamento propor
uma nova frente de explicação para as ações humanas. Eduard von Hartmann então
despontava como última via do pensamento moderno a propor a conciliação de duas
visões de mundo antagônicas o idealismo metafísico e o boom das ciências naturais,
que impulsionava mudanças na compreensão da vida e no sentido da verdade. Assim, a
ideia do Inconsciente aparece como o elo de compreensão entre a metafísica e as
nascentes ciências modernas.
A tese fundamental de é a de que o Inconsciente
seria o princípio que produz e dirige todos os processos inorgânicos, orgânicos e
mentais. No primeiro volume desta obra prepondera a análise de fenômenos da
Natureza, relativos às diversas formas de vida orgânica, seja animal, seja humana, seja
comportamental, seja fisiológica, com o fim de argumentar no sentido de que a eles
subjaz o Inconsciente. Assim, todo um conjunto de experimentos produzido em base
metodológica científica serve, na obra de Hartmann, à teorização metafísica sobre o
Inconsciente.
Ao conceber que para cada elemento ou expressão objetiva da Natureza existiria
uma contraparte metafísica, Hartmann conciliava a metafísica e a racionalidade das
ciências experimentais. Todos os mecanismos engenhosos e deslumbrantes pelos quais
como os
instintos, a evolução das espécies, o comportamento dos animais, a regeneração
espontânea, o funcionamento dos órgãos etc teriam sua finalidade regida pelo
Inconsciente, como ação de uma lógica imanente e espiritual (ou não-material) no seio
da Natureza. Toda a matéria seria uma função do Inconsciente, obedecendo a uma
finalidade também inconsciente. Nesse sentido, o Inconsciente é entendido como a
associação de uma Vontade e de uma Ideia vontade inconsciente que impulsiona a um
fim representado sob a forma da ideia, fim ao qual todos os processos se dirigem,
descrevendo uma teleologia igualmente inconsciente.

2666
Hartmann estava fortemente imbuído pelas tradições filosóficas que o
antecederam, sobretudo o Idealismo alemão. O Inconsciente é formulado como a síntese
de vários sistemas filosóficos, como os de Leibniz, Schelling, e principalmente Hegel e
Schopenhauer. O ponto de convergência entre eles reside na ideia de que todo sistema
filosófico aspira a reaver a unidade de tudo, o Absoluto. É com essa finalidade que boa
parte dos capítulos, baseados nas descrições científicas da época, tenta deduzir um
princípio -
( -tout), o indivíduo supremo, a unidade eterna, atemporal e absoluta, alma universal
da qual advém a multiplicidade dos indivíduos e dos caracteres, segundo leis
determinadas.

Minha pesquisa ainda não concluiu a leitura e análise das mais de 1200 páginas
de , mas até o presente momento, ao que tudo indica,
Hartmann produziu uma explicação sobre as ações humanas na linha de um
determinismo do Inconsciente, uma mescla de determinismo fundado na argumentação
lógico-metafísica com o determinismo presente no fundo das explanação científica
sobre a vida. Isso se torna mais evidente no capítulo em que Hartmann fecha o circuito
entre a metafísica schopenhaueriana e o darwinismo, ao propor, por exemplo, a
conservação da espécie como a grande Ideia inconsciente que determina o desenrolar da
vida humana.
Machado, apesar de se aproximar da ideia do inconsciente, a subtraiu de uma
lógica asseguradora de uma teleologia progressista. A noção de inconsciente tencionada
dentro da ordem estética do romance teria impulsionado um desvio ao determinismo
metafísico-científico. O nó proposto pela articulação estética da questão parece residir
na desestabilização do narrador enquanto instância que assegura a verdade sobre as
causas e explicações para as ações humanas. Provisoriamente, se pode dizer que o
de Assis no Quincas Borba vai elaborar,
dentro de certos limites, o descentramento do narrador como instância última a
determinar a verdade em direção a uma mimese dos modos de estruturação e
desestruturação dos sujeitos no jogo cerrado, porém não determinista, da imbricação dos
processos psíquicos com o poder socialmente estruturado. De tal sorte que o

2667
determinante do humano no romance continua sendo a própria ação humana no campo
moral e histórico.

Referências

ASSIS, Machado de. Quincas Borba Apêndice. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1976.
HARTMANN, Edouard de. . Paris: Librairie Germer,
Volume 1 e 2, 1877.
JOBIN, Jose Luis (org.). A Biblioteca de Machado de Assis. Coautoria de Jean-Michel
Massa. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Letras: Topbooks, 2001.

2668
ENTORTANDO AS LINHAS DA CANÇÃO: SÉRGIO SAMPAIO À LUZ
DA TEORIA ESTÉTICA DE ADORNO
Jorge Luis Verly Barbosa (UFES/Fapes)

Resumo: A proposta deste trabalho é realizar uma leitura de duas canções do capixaba Sérgio
Sampaio [1976])a partir de algumas das ideias-
força presentes na Teoria estética (1970) de Theodor W. Adorno. Partindo da premissa de que,
a despeito de ser um compositor de música popular o que, parti pris, caracterizaria suas
canções como um mero produto da indústria cultural e, portanto, no plano da desartificação
(Entkunstung) , a obra de Sampaio representa, ao mesmo tempo, uma profunda dissidência em
face do mainstream e uma aguda crítica à roda viva dos produtos culturais padronizados em
nome do capitalismo tardio. Crítica essa que se mensura no modo marginal com que produziu
suas canções, eivadas da estranheza em face dos tempos autoritários em que compôs a parte
substancial de seu cancioneiro (década de 1970) e que, justamente por isso, são retratos da
história sedimentada na forma, obras de arte autônomas em face do mundo administrado. A
partir da análise dessas canções procuraremos evidenciar algumas categorias da estética

Palavras-chave: Sérgio Sampaio. Theodor W. Adorno. Estética. Canção popular.

Música popular e autonomia

Peter Dews (1996) -


se encontra não nas
grandes obras sacralizadas pelo cânone ou mesmo adoradas pelo público, mas sim

pensamento da dialética negativa com a proposta de desconstrução das estruturas


sacralizadas pela epistemologia, a proposta de Dews é inteiramente pertinente a este
trabalho, uma vez que a eleição do objeto de estudo a ser aqui visto pelas lentes da
filosofia e da teoria estética de Adorno as canções do capixaba Sérgio Sampaio ,
pertence a esta categoria de obras que se construíram à margem tanto do cânone como
da indústria cultural. A tarefa proposta é a de verificar alguns dos resíduos de verdade
histórica presentes no cancioneiro de Sampaio e desrecalcá-los, apontá-los e, sobretudo,

2669
iluminá-los a partir de uma reflexão que evidencie o seu caráter de autonomia e de
emancipação.
Grande parte das reflexões feitas por Adorno em Teoria estética (1970) estão
balizadas pela oposição entre arte cooptada e arte autônoma. Seus diversos escritos
sobre literatura e música são categóricos em afirmar o potencial inerentemente
autônomo que as obras de arte deveriam ter, sendo elas próprias sistemas coesos e
contrários à ideia de cooptação que é promovida pela indústria cultural. Uma obra de
arte de fato autônoma, i. e., liberada das amarras ideológicas do capitalismo tardio, teria
um si um potencial de emancipação através do qual o sujeito, uma vez confrontado
reflexivamente com ela, seria capaz de atingir.

contradição em se aplicar o pensamento estético de Adorno a um objeto que ele teria


e que é a música popular 1. Como conciliar a ideia de arte
autônoma a um artefato típico da chamada arte culinária produzida pela indústria
cultural? Inicialmente, há que se recorrer à tese fundamental expressa na Dialética
Negativa (1969) de que a busca pelo não-idêntico Nichtidentische) deve ser o objetivo
de toda a atividade filosófica, de toda exegese crítica e de toda atividade artística.
Marcia Tiburi (1995)
explicar o mundo pelas grades do conceito, lembra que para Adorno era essencial que

mesma (TIBURI, 1995, p. 69). É nessa linha do aspecto autorreflexivo da filosofia e de


sua possibilidade utópica que penso residir a validade da aplicação do campo conceitual
de Adorno ao cancioneiro de Sampaio. Em parte por acreditar que sua própria filosofia
pode ser mirada numa abordagem negativamente dialética, em confronto com aquilo
que, a prioristicamente, ela estabelece e em parte por acreditar que a obra de Sampaio,
refratário da história sedimentada e, portanto, pertencente ao plano das obras de arte
autênticas, é um espaço ideal para o confronto entre o conceito e não-conceitual. Aquilo
que os textos de Adorno estabelecem como características dos produtos da indústria
cultural, exemplificadas principalmente por seu aspecto de planificação e de
, ou seja, pode ser aplicados de maneira crítica à
própria música popular para revelar nela aspectos daquilo que o filósofo considerava
válido e pertencente à esfera da arte autônoma.

popular

2670
Outra ideia-força importante para a utilização das teses adornianas sobre
música e também sobre estética, que permearão este trabalho é a da mediação
(Vermittlung), presente 1969), onde encontramos a
indicação de que o exame de todo e qualquer objeto, incluindo as obras de arte, deve se
pautar por uma análise constante mediada, uma vez que ele não pode ser desconectado
do mundo que o engendrou. Como já aqui expresso, as obras de artes são historicamente
construídas e carregam em si não apenas as marcas indeléveis do contexto em que
surgiram, mas também permitem que se veja em sua própria constituição (forma) a
presença da história como conteúdo sedimentado. Dessa feita, encontramos a
possibilidade de, via mediação social, realizar uma análise da música de Sampaio pelo
viés adorniano levando em conta o diálogo tríplice entre o conceitual (Adorno), o
formal (Sampaio) e a história (o Brasil das décadas de 1970-80).

Dentro dessa proposta radical de leitura da música popular a partir das teses
adornianas, há que se evidenciar também que na música popular brasileira a junção
entre letra e música contribui, muitas vezes, da
indústria cultural, seja pela inventividade de sua construção formal, seja por seu
potencial crítico em relação aos próprios mecanismos de produção (BURNETT, 2010,
p. 174). Penso aqui no contexto da canção popular brasileira tendo como marco
temporal o período compreendido entre as décadas de 1950-1970, época de sua
maturação como produto cultural e como obra de arte crítica da realidade brasileira. É
também neste período em que nela se insere a figura de Sérgio Sampaio. Sua produção,
que se estendeu entre as décadas de 1970 e 1990, é relativamente pequena quando
comparada com a de outros compositores populares contemporâneos dele. Talvez
porque tenha tido uma relação profundamente crítica em relação à indústria cultural,
Sampaio gravou pouquíssimo (apenas três discos). E nessa produção concisa e, ao
mesmo tempo, altamente elaborada estão presentes as aporias, tensões e impasses da
sociedade brasileira, sobretudo da década de 70, quando lançou seus dois primeiros
álbuns: Eu quero é botar meu bloco na rua (1973) e Tem que acontecer (1976).
Um dos exemplos de sua ,
presente em seu primeiro LP. Vale registrar que este disco gerou, para a indústria

2671
que Sampaio defendeu no Festival Internacional da Canção de 1972, obtendo bastante
aceitação junto ao público. No entanto, o que se viu (e principalmente ouviu) foi um

lucrativos da indústria. Foi a partir dele que o compositor se afastou do mainstream e


. Como
suporte da análise, vejamo :
Fugi pela porta do apartamento
Nas ruas, estátuas e monumentos
O sol clareava num céu de cimento
As ruas, marchando, invadiam meu tempo

Viajei de trem,
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem

O ar poluído polui ao lado


A cama, a dispensa e o corredor
Sentados e sérios em volta da mesa
A grande família e o dia que passou

Viajei de trem,
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem

Um aeroplano pousou em Marte


Mas eu só queria é ficar à parte
Sorrindo, distante, de fora, no escuro
Minha lucidez nem me trouxe o futuro

Viajei de trem,
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem

Queria estar perto do que não devo


E ver meu retrato em alto relevo
Exposto, sem rosto, em grandes galerias
Cortado em pedaços, servido em fatias

Viajei de trem
Eu viajei de trem
Mas eu queria
É viajar de trem
Eu vi...

2672
Seus olhos grandes sobre mim
Seus olhos grandes sobre mim
(SAMPAIO, 1973)

Composta na tonalidade sol maior, o que inicialmente indicaria um clima


iluminado e alegre, a canção é irônica ao tratar do tema da fuga do real como escape
para o recrudescimento que pontuava o Brasil da ressaca pós-AI-5. E antes que soe
qualquer instrumento ou voz, o que ouvimos no fonograma da canção é um efeito vocal
que simula a abertura de uma garrafa, seguida pelo barulho do líquido descendo pela
garganta de alguém que, em sinal de regozijo, deixa escapar uma interjeição de
que ouvimos a melodia dedilhada de maneira
despretensiosa ao violão, ao mesmo tempo em que se podem ouvir riffs produzidos por
sintetizadores eletrônicos e que simulam o som de naves espaciais, como se a voz que
em seguida irá cantar estivesse num outro plano que não esse, levada para lá por um
efeito do líquido ingerido da garrafa e que, se pensarmos na presença dos elementos da
contracultura do Brasil dos 1970, bem poderia representar uma goodtrip provocada pelo
consumo de drogas, especialmente as sintéticas. E nos primeiros versos cantados por
Sampaio temos um ponto de contato essencial como uma das ideias-força mobilizadoras
da Teoria estética e que é o conceito de forma como produto dos antagonismos sociais.

clareava
compositor expressa o ideal adorniano de que a arte autônoma, inicialmente oposta aos
dados advindos diretamente da empiria social, acaba por expressá-los em sua forma
(ADORNO, 2008, p. 17). Por outras palavras, o conteúdo de verdade das obras (o
Wahrheitsgehalt), compreendido como o momento em que ocorre uma conjunção de
forma e conteúdo numa obra e que pode ser percebido pela mediação do momento
histórico, social e político que a cerca, é representado pelas imagens opressivas

zemos que a verdade de uma obra é perceptível na forma e não no


conteúdo, i. e., não no que ela diz, mas naquilo que ela .
O mote da viagem se torna ainda mais evidente no refrão da canção, com o
repetido por cinco vezes. Não podemos deixar de notar aí um
forte elemento de ironia, uma vez que a o trem de ferro é um veículo lento e que, desse
modo, torna-se um contraposto à velocidade com que o regime militar vigente no Brasil
eliminava a arte que se apresentava crítica a ele. Ao observar a empiria do real no

2673
balanço lento de um trem, Sampaio descreve com mais verdade as ruínas e o dano
presente na sociedade brasileira, que pode ser lida na canção pela descrição de uma

Em dado momento da Teoria estética, Adorno discute o caráter utópico das


obras de arte, ressaltando que elas só podem personificar algum dado de utopia se, em
lugar de representar o novo, forem capazes de negar qualquer tipo de reconciliação com
o mundo, i. e., em lugar de propor algo que se oponha a ele como novidade, a arte
deverá mostrar justamente o seu caráter de não-reconciliação com a barbárie que lhe é
inerente (ADORNO, 2008, p. 58). E é justamente essa a utopia realizada por Sampaio
queria

ainda que fantástica, ao real. A imagem de um avião no planeta Vermelho, embora


sedutora e conectada à tônica contracultural é logo recusada pelo eu-lírico que, fiel
ao ideal utópico de irreconciliação com o mundo, prefere permanecer à margem tanto
dele quanto de uma imagem tranquilizadora que o substituísse. Destaco também o
diálogo que Sampaio empreende com Caetano Veloso e, de certo modo, com o
próprio Tropicalismo, que também se apresentava como uma vertente crítica da música
popular brasileira
-se, no entanto, de uma
referência sutil, oblíqua, quem sabe irônica, uma vez que o verso de Caetano parece
-lo a uma espécie de
2
como
Veloso, ele parece decididamente recusar.

Entkunstung

Desde Dialética do esclarecimento (1947), escrita em parceira com Max


Horkheimer, as invectivas de Adorno se voltam com veemência contra aquilo que
apontou como sendo a face mais tenebrosa da indústria cultural e é que, por meio da
assunção de um véu tecnológico, a transformação da arte em bens de consumo. Na

2
Estou me referindo ao ensaio de Silviano Santiago
outras coisas, o crítico discute o papel ambivalente e contraditório do artista enquanto astro (do disco, do
rádio, da tv) e também enquanto aquele que intervém diretamente no plano do real.

2674
Teoria estética temos o conceito de desartificação (Entkunstung), segundo o qual os
produtos culturais forjados pela ideologia de um mundo administrado pelo capitalismo

A ) apresenta
uma visão crítica a respeito do processo de desartificação que é inerente às canções
populares mediatizadas pela indústria fonográfica, uma vez que se vale do uso de alguns
de seus elementos para poder criticá-los, como veremos. Cito sua letra:
Eu que sou filho de um pai teimoso
Descobri maravilhado que sou mentiroso
Sou feio, desidratado e infiel, bolinha de papel
Que nunca vou ser réu dormindo
E descobri como um velho bandido
Que já tudo está perdido neste céu de zinco
Eu que só tenho essa cabeça grande
Penso pouco, falo muito e sigo pr'adiante
Descobri que a velha arca já furou
Que não desembarcou
Dançou na transação dormindo
E como eu fui o tal velho bandido
Vou ficar matando rato pra comer
Dançando rock pra viver
Fazendo samba pra vender... sorrindo
(SAMPAIO, 1976)

Já nos primeiros versos ouvimos Sampaio dizer


teimoso / descobri maravilhado que sou mentiroso / sou feio, desidratado e infiel,
. Muito mais que uma descrição de
si mesmo, o que fica expresso é um auto-de-fé de sua situação no contexto da canção
popular brasileira, assumindo a posição de produtor de uma canção outsider, estranha e
não-alinhada aos parâmetros da indústria
desartificação também se dá pela escolha performática que serve de roupagem para sua
execução. Isso porque ela é, antes de tudo, um samba: composta no ritmo 2/4
caraterístico do gênero, a canção é alegre e, por que não dizer, dançante. Esse fato,
numa primeira mirada, poderia nos levar a enxergar uma capitulação do compositor em
face do mercado ainda mais quando o título do disco em que ela aparece é Tem que
acontecer, quase que um mantra de sucesso mercadológico. Pura ironia. Se partirmos do
pressuposto de que uma canção é letra, música e também performance, de acordo com
Paul Zumthor (2007)
forma se percebe na
(ZUMTHOR, 2007, p. 33). E se a forma se altera para a construção de outras

2675
significações, podemos conectar essa postura de Sérgio àquilo que Adorno classificou,
na Teoria estética,
representar o resultado dos antagonismos sociais e de ser também a representação da
história sedimentada, a forma pode tanto significar uma fidelidade ao feitiço de
padronização lançado pela indústria cultural sobre a sociedade, como pode justamente
ser um amálgama das aporias dessa mesma sociedade e que, mesmo que tenha a sua
feição, sirva para criticá-la (ADORNO, 2008, p. 341). Por esta via, o uso do samba
como elemento rítmico constitutivo de uma canção de letra tão inventiva quanto crítica
não que não haja invenção nem crítica no samba em si , um
gênero de grande apelo popular e que representava, já naqueles tempos, uma fatia
importante do mercado de discos no Brasil, pode ser lido como uma atitude reflexiva de
Sampaio em face do caráter de mercadoria que as canções populares passavam cada vez
mais a ter. Assim, antes de se filiar ao espectro de aparência da indústria cultural, ele se
arma dela justamente para levar a canção a uma crítica sobre sua própria feição
reificada.
E os versos derradeiros são bastan
fui o tal velho bandido / vou ficar matando rato pra comer / dançando rock pra viver /

assume irônica e criticamente os elementos e gêneros estandardizados da canção


osseguir em sua radical leitura desses mesmos
elementos e gêneros.

A canção por linhas tortas

Como conclusão, retorno ao ensaio que, conforme


vimos, aponta para a necessidade de que toda a atividade filosófica no que incluímos a
análise da canção seja regida por uma atitude de permanente mediação, em
contraponto à premissa da filosofia idealista de soberania do sujeito a respeito do objeto
em que detém seu olhar e sua compreensão. Nele, Adorno alerta para a ingenuidade que
representa coisificar o mundo pela via de abstração do objeto, tornado demasiadamente
exteriorizado, no que resultaria uma e , imbuído da
consciência de sua objetivação (ADORNO, 1995, p. 187-188). Para ele, é o próprio
sujeito o responsável pela mediação entre si mesmo e o objeto. Trazendo esse raciocínio

2676
para o plano da canção popular brasileira, devemos ter como baliza a ideia de que as
relações entre ela (objeto) e aquele que a ouve/analisa (sujeito) deve também ser
mediada, o que significa dizer que o ele deve ter em conta que algumas canções ainda
que pertencentes ao contexto de uma indústria fonográfica que tem como regra genérica
a padronização daquilo que oferece aos ouvintes possuem elementos de crítica e de
reflexão. É o caso das canções de Sampaio e que, como vimos, estão cheias de
elementos contestadores do próprio sistema (a indústria cultural) que as forjou.
Elementos que se analisados com mediação, repito, chegarão a sujeito e revelarão a ele
dados de autonomia, contrapondo-o ao mundo administrado. Cabe recorrer aos versos
(2005), em que Sampaio, seguindo a premissa adorniana de
não cooptação ao sistema de uma arte como produto, mas sim de uma arte cujo fito
sejam a autonomia e a emancipação dos sujeitos, vaticina:
(SAMPAIO, 2005).

Referências

ADORNO, Theodor W. Sobre sujeito e objeto. In: ADORNO, Theodor W. Palavras e


sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschell. Petrópolis: Vozes,
1995, p. 181-201.

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. 2. ed. Tradução de Artur Morão. Lisboa:


Edições 70, 2008.
BURNETT, Henry. Theodor Adorno: sobre música popular... brasileira. In: FREITAS,
Jacira (Org.). Filosofemas. Ética. Arte. Existência. São Paulo: Editora da Unifesp,
2010, p.165-198.

DEWS, Peter. Adorno, pós-estruturalismo e crítica da identidade. In:


(Org). Um mapa da ideologia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996, p. 51-70.

TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mímesis no pensamento de Theodor W.


Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

2677
SAMPAIO, Sérgio. Real beleza. Intérprete: Sérgio Sampaio. In: SAMPAIO, Sérgio.
Cruel. Rio de Janeiro: Saravá Discos, 2005. 1 compact disc. Faixa 8.

SAMPAIO, Sérgio. Viajei de trem. Intérprete:


Sérgio Sampaio: In: SAMPAIO, Sérgio. Eu quero é botar meu bloco na rua. Rio de
Janeiro: Philips, 1973. 1 disco de vinil. Lado B, faixa 7.

SAMPAIO, Sérgio. Velho bandido. Intérprete: Sérgio Sampaio. In: SAMPAIO, Sérgio.
Tem que acontecer. São Paulo: Continental, 1976. 1 disco de vinil. Lado B, Faixa 12.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

2678
O SILÊNCIO POÉTICO E A EXPERIÊNCIA INTERIOR: UM DIÁLOGO
ENTRE A EXPERIÊNCIA E A LINGUAGEM

Juliana Jordão Canella Valentim1


RESUMO
O presente artigo pretende dissertar sobre o silêncio e o incomunicável na poesia,
seguindo como linha de raciocínio as declarações feitas por Georges Bataille em seu livro
A experiência interior em comparação com A linguagem e a morte de Giorgio Agamben.
Neste livro, Bataille trata a poesia como contrário da experiência possível, desta forma,
aproximando-a da experiência definida como do êxtase. Esta afirmação, feita por Bataille,
foi pensada na relação de incompreensão da experiência interior pelo raciocínio lógico
da filosofia da ciência, a qual se apropriava de procedimentos de fora para tratar algo que
somente poderia ser explicado de dentro (BATAILLE, 1992). Agamben, por sua vez,
trata também sobre a linguagem como pertencente ao campo de negativo, para Bataille
contrassenso, em que a linguagem possui, além do seu caráter dicionarizado, também o
caráter daquilo que não é dito. Desta forma, é proposta a analise dos dois livros e as
concepções sobre o silêncio e a incomunicabilidade que envolvem a linguagem poética.

PALAVRAS-CHAVE:

A relação entre dois discursos filosóficos, tratando sobre o conceito de linguagem,


tal qual como é pretendida neste artigo, não poderia ser menos redutora. Afim de
salvaguardar o raciocínio lógico acerca do pensamento sobre linguagem e, mais
especificamente, sobre poesia, a leitura dos dois livros torna-se fragmentada. Não há
intenção neste texto de abarcar a completude da obra dos dois autores, muito menos
relacionar diretamente conceitos tão díspares quanto os aqui tratados. A pouca pretensão
do que está aqui disposto remonta uma análise quase ensaística em que tateia-se uma
ideia, para no fim, descobri-la inteira nas suas conexões entre os dois raciocínios. Os
termos que circundam as duas leituras são parecidos, apesar da leitura leva-los à lugares
divergentes. Georges Bataille, em 1943, alardeado pela crítica à fenomenologia
hegeliana, desenvolve (em sua própria teoria, criticando diversas vezes o acabamento da
obra hegeliana) e amplia o discurso de uma experiência cientificamente comprovada, na
qual, a experiência entre o objeto e o ser é posta como questão. O mesmo ponto
fenomenológico, também discutido por Giorgio Agamben, em 1982, traz à tona não
somente a ipseidade heideggeriana e a Voz hegeliana, mas também o conceito de
linguagem. Percebendo as disparidades diacrônicas e possivelmente ideológicas, os dois
estudiosos encontram-se em uma definição: poesia. Cabe analisar como, nos dois livros,

1
Juliana Jordão Canella Valentim é mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal
Fluminense, bolsista da CAPES.

2679
a linguagem literária e, por assim dizer, poética é questionada pelo viés da experiência e
da negatividade. Adianto que, desta reflexão, a palavra que mais interessa é silêncio.
Partindo da noção de experiência, obtida na leitura de A experiência interior,
Bataille, logo no início, trata sobre o conceito que dá o título ao livro. Explica que

(BATAILLE,
1992, P.11). Sobre o conceito de êxtase na obra batailleana, fazendo uma breve pausa, é
importante mencionar outro livro, publicado em 1958, em que o estudioso debruça-se
sobre o termo. Em O erotismo, o autor cita o êxtase como próprio de uma relação erótica,
em que o ser entra em contato consigo mesmo. Entre os momentos de êxtase (em que há
dispêndio de energia e, por isso, gasto do que excede o corpo) e soberania (estar diante
de situações em que a lei não pode ser imposta ao corpo, visto que não há como forjar a
lei e incluir-se nela), Bataille cita exemplos de banalidades cotidianas, em que o corpo é
dono de si mesmo, e que não há nada além disso para limitá-lo. Em imagens de baforadas
de cigarro e de estado de ebriedade, o autor retrata o espaço de soberania e êxtase, em que
toda a energia acumulada só poderia ser desperdiçada. Ele cita:
experiência interior deve de qualquer maneira responder ao seu movimento, não podendo
, portanto,
a experiência interior é aquela em que o sujeito encontra-se em estado de soberania,
produtor de uma ordem, mas superior a ela.
A definição continua:

-la
para qualquer fim preestabelecido. E digo logo que ela não leva a porto algum (mas a um
lugar de extravio, de contra- Por isso, a experiência
interior, relação expressiva entre o sujeito e o objeto, ocorre de dentro de uma
subjetividade. A crítica batailliana sobre o pensamento hegeliano está fundamentada na
diferença entre uma análise científica e redutora da experimentação do corpo vista através
do teste. Segundo Bataille, não há como compreender (e não há mesmo) a experiência do
corpo com o mundo, senão pela experimentação. E mesmo que experimentado os estados
de êxtase e soberania, por exemplo, ainda assim, tal experiência seria inexplicável pela
-
-

2680
sentido, não pode ser completamente abarcado por uma análise filosófica ou científica,
ainda que seja isto o pretendido neste livro.
É pertinente pensar no contra-senso como um lugar em que se impõe uma
contrariedade. Na tentativa de definição desta experiência mística, a linguagem perde o
seu caráter objetivo de suprimir uma ideia (daí a reflexão sobre ipseidade, em que o ser
não pode ser completamente definido por uma linguagem, visto que o ser sofre ação do
tempo, por isso sempre em mudança e perene) para aloca-la em um conceito. Ao perder-
se, ela se contradiz, tornando-se um paradoxo. A ideia de experiência para Bataille é
absolutamente paradoxal, pois não há como senti-la fora do próprio corpo e,
possivelmente, em cada corpo há uma experiência diferente.
Neste espaço paradoxal, a experiência encontra-se com a linguagem (sistema que
organiza e impõe ordem). Em uma passagem, ele cita:
terminar, a fusão do objeto e do sujeito, sendo, como sujeito, não-saber, como objeto, o
(BATAILLE, 1992, p. 17), ou seja, no abismo2 entre o sujeito e o objeto,
há aquilo que é desconhecido e não-sabe e, justamente, por isso, incomunicável.
em nós, o trabalho do discurso. Esta dificuldade se exprime assim: a palavra silêncio é
ainda um ruído, falar é, em si mesmo, imaginar conhecer, e para não mais conhecer
(BATAILLE, 1992, p. 21, grifo meu). Cabe lembrar que o conceito
batailliano de comunicação está associado à linguagem (explicar com citação). Por tanto,
para a linguagem conseguir abarcar o objeto, ela deveria manter-se em silêncio, pois não
existe a possibilidade dela não saber ,
por isso entrando em confronto com o próprio conceito dado para sujeito.
Ainda tratando sobre o paradoxo da linguagem e do silêncio, na ideia de que, se a
linguagem pretende abarcar a experiência entre sujeito-objeto ela teria que silenciar, em
relação à poesia, como linguagem literária atípica, Bataille comenta que:

Não se pode saber nada do homem que não tenha tomado forma de
frase, e o entusiasmo pela poesia, por outro lado, considera as
intraduzíveis sequencias de palavras como cimo. O extremo está
alhures. Ele só é inteiramente atingido quando comunicado(...) Se
qualquer expressão testemunha isso: o extremo é diferente. Ele não é
nunca literatura. Se a poesia o exprime, ele é distinto disto: ao ponto de
não ser poético, pois se a poesia o tem por objeto, ela não o atinge.

2
Sobre o abismo, Bataille cita em O Erotismo
outros e os seres reproduzidos são distintos entre si como são distintos daqueles de que provieram. Cada
ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para
os outros algum interesse, mas ele é o único interessado diretamente. Ele só nasce. Ele só morre. Entre um
ser e

2681
Quando o extremo está lá, os meios que servem para atingi-lo não estão
mais lá. (BATAILLE, 1992, p.56)

A poesia, por tanto, seria a linguagem que mais se aproximaria da experiência interior,
pois ela é a única que se pretende fugidia, ou, como descrito na passagem, em que o
extremo está sempre sendo modificado, pois a linguagem poética não tem por objetivo
alcançar o seu objeto. A linguagem, portanto, seria subvertida de seu caráter
comunicador, neste caso, aproximaria-se do silêncio. A experiência interior faz-se no
- -e
parágrafo deste artigo. A citação é válida para a compreensão do que seria a poesia para
Bataille. Retomo que, a poesia é a linguagem que se aproxima do silêncio, pois está
sempre em vias de não dizer.
Pensar sobre uma linguagem que não pretende dizer, que se quer silenciosa, é
destacar o que Giorgio Agamben em A linguagem em a morte entende por negativo da
linguagem. O não-saber, o indizível, incomunicável, seriam os valores do procedimento
do pensamento. O pensamento da linguagem, instância anterior ao próprio discurso,
guarda, segundo Agamben, aquilo que chamamos de silêncio. Este silêncio do
pensamento é incomunicável, não há forma de dizê-lo sem delimitá-lo. Por isso, a
linguagem poética toca os estudos dos dois escritores. O negativo da linguagem, portanto,
é o discurso que está em estado anterior a linguagem e que não pode ser dito, por estar
em ausência.
Cabe ressaltar aqui que tratamos a experiência interior e o negativo da linguagem
de formas diferentes. A experiência interior é mais do que a própria linguagem, é um
estado de conhecimento. Este estado existe, está em angústia por não ser comunicável,
mas não é o objeto deste estudo. O que está sendo tratado é a impossibilidade da
linguagem de comunicar esta experiência. Como descreve Agamben, a linguagem possui
um negativo, no qual o que é incomunicável se revela em ausência. E esta é a diferença
entre o pensamento dos dois autores. Em propósito de explicar que a experiência interior
não poderia ser compreendida, pois só há compreensão através do discurso, Bataille toca
em uma questão da linguagem. A experiência não pode ser compreendida, pois ela é
soberana e limita-la a linguagem seria impor-lhe uma ordem a qual ela não obedece. Por
isso, o extremo do possível é nos inalcançável. Neste sentido, o discurso agambeniano
completaria: esta parte que a linguagem não consegue comunicar, pois é dita em ausência.

2682
Este modo de leitura redireciona o olhar para aquilo que está em falta, o negativo
daquela linguagem poética. Agamben, trata sobre a negatividade da voz, o ter-lugar da
linguagem e, em uma explicação, cita uma narrativa gnóstica cristã :

Por Abismo, explicando de forma rasa, Agamben entende tudo aquilo que não
pode ser apreendido do real empírico, por não conseguir ser descrito em sua
complexidade. A única maneira de apreender algo seria pelo que o silêncio pode
transformar em incompreensível. Somente a partir disso é possível pensar de fato em
linguagem. Aquilo que não foi calado, relembrando a dupla negatividade4, é o que pode
tentar ser dito pela linguagem. Em outro trecho do mesmo livro:

A relação entre os dois planos (o ter-lugar da linguagem e o que é dito


em seu interior, ser e ente, mundo e coisa) é, mais uma vez, governada
pela negatividade: o mostrar-se da Sage é inominável para a linguagem
humana(...) e esta pode apenas corresponder (entsprechen, des-falar) à
Sage por meio da própria dissolução, arriscando-se, como a palavra dos
poetas, até o limite em que se realiza a experiência silenciosa do ter-
lugar da linguagem na Voz e na morte...(AGAMBEN, 2006, p.84)

No trecho, explica-se que Sage, o silêncio, seria des-falar, o negativo do discurso


proferido. O silêncio seria o responsável por dissolver a linguagem e esta dissolução é o
que aproxima a linguagem poética do silêncio. O pensamento da linguagem, lugar em que
se realiza a experiência silenciosa, concretiza-se na linguagem poética. Pensando desta
forma, se o poético é, neste aspecto, o silencioso, existe uma experiência negativa no
poético, algo que está presente significando aquilo que não é. Esta presença dissimulada

3
Neste trecho, Agamben nomina os conceitos de acordo com a tradição Gnóstica.
4
Em A linguagem e a morte, Agamben explica que a Voz, conceito hegeliano, seria definida por
uma dupla negatividade em que a primeira negatividade seria a supressão da voz efetuada pelo vivente à
linguagem e a segunda negatividade em que a Voz não pode ser dita em seu absoluto, pois mostraria o seu
ter-lugar originário.

2683
é o silêncio anterior à própria fala, é o pensamento da linguagem, revelado através da
ausência.
Voltando a Bataille, em um trecho, ele trata da poesia como um exemplo de
experiência interior. Assim como esta experiência, a poesia cria para si um sistema sobre
o qual é soberana, mas, ao invés de ir do desconhecido ao conhecido, como fazemos com
o pensamento e a linguagem, a poesia só pode partir do que é conhecido, visto que é
formada de palavras do sistema da língua vigente. Do conhecido vai ao desconhecido, em
que perde-se, segundo Bataille, no próprio sistema, e funde sujeito e objeto.

A poesia é, apesar de tudo, a parte restrita - ligado o domínio das


palavras. O domínio da experiência todo o possível. E na expressão que
ela é dela mesmo, no final, necessariamente, ela é tanto silêncio quanto
linguagem. Não por impotência. Toda linguagem dele é dada, e a força
de entregá-la. Mas o silêncio escolhido para não esconder, mas para
exprimir um grau a mais de desapego. A experiência não pode ser
comunicada se os laços de silêncio, de desaparecimento, de distância,
não mudam aqueles que ela coloca em jogo (BATAILLE, 1992, p.36)

Por isso, o silêncio torna-se uma categoria a ser pensada. Pois, segundo Agamben, a
linguagem é aquela que quando não consegue abarcar o objeto, comunica através da
ausência de palavras, ou seja, pelo silêncio. Por tanto, se pudéssemos compreender desta
tica é linguagem e silêncio, a escolha de silenciar é o que carrega
a potência que leva a uma mínima compreensão do desconhecido.
À poesia, portanto, restaria o lugar do extremo, em que os limites do possível são
questionados. Neste lugar limítrofe entre o conhecido e o desconhecido a unidade de
comunicação é o silêncio.
O sacrifício das palavras então é aceito. Vivencia-se a experiência incomunicável
que estabelece sacrifício
é loucura, a renúncia a qualquer saber, a queda no vazio, e nada, nem na queda nem no
vazio, nada é revelado, por que a revelação do vazio é somente um meio de cair mais
profundamente na ausência (BATAILLE, 1992, p.58). O vazio do incomunicável é
apenas a queda na ausência de palavras, no silêncio que irrompe da experiência interior.
Sacrifica-se a linguagem em prol do desconhecido.

2684
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

2685
1

PROMETEU: O TRANSE, O PODER E A GÊNESE


Larissa Costa da Mata (DLCV-USP / CNPq)

RESUMO: As interpretações do mito de Prometeu pela literatura de Hesíodo (em Teogonia e em O


trabalho e os dias) e de Ésquilo (em Prometeu acorrentado) encenam manifestações diversas do
fenômeno da origem da cultura, a qual se apresenta ora como a instauração do progresso pelo
roubo do fogo, ora como a aproximação entre o titã e os homens graças ao ato criminoso e à
punição tirânica de Zeus. Focaremos duas versões do mito na literatura brasileira, a de Glauber
Rocha em Riverão Sussuarana (1978) e a de Murilo Mendes no poema “Novíssimo Prometeu”, de
O visionário (1933), a partir da noção nietzschiana da genealogia — compreendida como o conflito
entre potências opostas e a irrupção de um começo imprevisível na história — e de sua leitura pela
modernidade. Mendes e Rocha concebem Prometeu, respectivamente, como uma instância pós-
fundacional, descentralizadora do cânone da literatura, e como um revolucionário em conflito com
o poder dos Estados ditatoriais.
Palavras-chave: Prometeu. Origem. Murilo Mendes. Glauber Rocha.

PROMETEU: O TRANSE, O PODER E A GÊNESE


Larissa Costa da Mata (DLCV-USP / CNPq)

Prometeu

O mito de Prometeu, como vemos nas interpretações de Hesíodo (em Teogonia, do


verso 507 ao 616 e em O trabalho e os dias, do verso 42 ao 105) e de Ésquilo (em
Prometeu acorrentado), encena figurações diversas do fenômeno da origem da cultura.
Essa se apresenta ora como a instauração do progresso pelo roubo do fogo (em Hesíodo),
ora como a aproximação entre o titã e os homens graças ao ato criminoso e à punição
tirânica de Zeus, que sacrificara o corpo do herói (em Ésquilo). Nos valeremos de duas
aparições dessa figura na literatura brasileira, que guardam afinidades com a interpretação
nietzschiana do mito na modernidade: a do fragmento de Riverão Sussuarana (1978), de
Glauber Rocha, no qual o titã consiste no “nada” constitutivo de cada ser, e o poema

2686
2

“Novíssimo Prometeu” de Murilo Mendes, de O visionário (1933), em que Prometeu


retorna na imagem dionisíaca, aberta e decaída da esfera divina1.
Segundo a Teogonia, quando Jápelo se casa com Clímena, filha do Oceano, tem
quatro filhos como resultado da união: o “esforçado” Atlas, o “glorioso” Menécio, o
“torpe” Epimeteu e Prometeu, “hábil e de versátil astúcia”. Por uma razão que não está
clara no fragmento, Prometeu é preso a uma coluna para que tenha o fígado devorado por
uma águia, até ser salvo por Héracles. Visto ter oferecido, ardilosamente, os restos de um
boi destroçado a Zeus, o pai dos deuses se vinga do titã uma vez mais, escondendo o fogo
dos homens (HESÍODO, in: GUAL, 2009). Já em Trabalhos e os dias, Prometeu furta o
fogo e leva-o aos mortais em um galho oco. Zeus reage criando uma mulher e pede para
que Hermes lhe ofereça “um espírito cínico e um caráter volúvel”; essa mulher é Pandora,
cuja caixa porta todos os males (HESÍODO, in: GUAL, 2009). Em Hesíodo, a insurgência
de Prometeu (e a sua consequente punição) compreende o aspecto principal das narrativas,
reforçando a conexão desse ato com uma perspectiva progressiva da história e com a
fundação da cultura.
Prometeu acorrentado, tragédia de Ésquilo, foca os padecimentos do titã preso ao
Cáucaso e relembra os sofrimentos de outro herói, o irmão Atlas, como afirmam as ninfas
do coro. O delito de Prometeu contra o poder supremo parte de sua crença nos benefícios
que poderia trazer aos homens. Apesar da angústia e da opressão causadas pela pena
divina, ele não se curva ao seu algoz, nem se arrepende dos atos cometidos. Por sua vez,
Io, a ninfa filha de um rio, também vítima de Zeus, é destinada a vagar eternamente. Desse
modo, a tragédia de Ésquilo perfaz uma reflexão sobre a violência (a silenciosa Bía), o
poder (Krátos) e a tirania, pois Zeus é descrito com as expressões tyrannos e tyrannis: em
nenhum momento é empregado o termo basileús, ou rei (GUAL, 2009). Essa dupla forma
de Prometeu, o instaurador da civilização e do progresso e, ao mesmo tempo, de um tempo
circular por meio de seu corpo que se regenera a cada dia, nos sugere que a gênese esteja
marcada pela cisão entre dois elementos opostos, o ser e a sua negatividade, leitura do mito
que percorre uma vertente da modernidade marcada pela relação conflituosa com o poder

1 Vale mencionar que Murilo Marcondes de Moura também investiga a presença do mito de Prometeu em

Murilo Mendes no seu livro Murilo Mendes: a poesia como totalidade, de 1995.

2687
3

do Estado, a qual pertenceriam os intelectuais do Colégio de Sociologia, mas também


Glauber Rocha e Murilo Mendes.

O transe e a gênese

Friedrich Nietzsche propusera uma concepção de origem como a indecisão entre o


sujeito e a estética, por meio da proliferação de bipolaridades, como aquela entre Apolo (a
forma, a aparência) e Dioniso (a força, o tempo) em O nascimento da tragédia no espírito
da música de 1872. O dionisíaco equivale a uma sorte de elemento transfigurador do
apolíneo (por sua vez, predominante na rigidez e na organização do Estado dórico),
inicialmente recusado como o bárbaro da cultura helênica. De acordo com a noção de
genealogia nietzschiana, revisitada mais recentemente por filósofos como Roberto
Esposito, a partir de Michel Foucault (FOUCAULT 2007; ESPOSITO, 1999), o começo
representa um conflito entre forças e impõe a diferença como valor preponderante. Em
Riverão Sussuarana, texto de gênero híbrido, Glauber Rocha assume o atributo de
personagem, provocando descentralizações do cânone e do autor, de modo que a origem,
configurada como fundação negativa, desloca-se do conteúdo da história.
O transe foi um dos procedimentos adotados pelo cineasta baiano, segundo
esclarece em seus manifestos sobre a estética, por tratar-se de uma alternativa ao
racionalismo e à subjugação colonial e de um dos vestígios do surrealismo nos trópicos
(em “A estética do sonho”, de 1971). O efeito é levado ao cinema mais exemplarmente em
Terra em transe, de 1967, seja nas interferências não-lineares dos flashbacks de Paulo
Martins, na cena ritual de dança africana ao som de tambores, na repetição sucessiva de
cenas, seja no reconhecimento do poeta como um duplo do líder populista, “uma cópia
mal-feita” da figura de Diaz. Roger Caillois, um dos fundadores do Colégio de Sociologia
em 1937 com Georges Bataille e Michel Leiris, propõe uma sociologia dos jogos baseada
no simulacro, de forma semelhante à tragédia. Quando a representação do herói combina-
se à vertigem provocada pela dança e pela embriaguez, o sujeito mascarado e em transe
identifica-se com a face da divindade que imita. O fenômeno somente é permitido às
comunidades que adotariam a máscara, a possessão, a vertigem e o êxtase: as ameríndias,

2688
4

africanas e oceânicas. Por outro lado, essas contrapõem-se às “sociedades do progresso”,


aquelas que se organizam em instituições e perpetuam o poder do aparelho de Estado.
Haveria, ainda, no cinema e no livro de 1978, o que poderíamos designar como o
trânsito egocêntrico do “Glauber personagem”. O cineasta invade o set de filmagem,
deixando que a sua voz seja ouvida e o corpo do diretor em ação seja visto nas imagens,
como se estivesse possuído pela “personagem-diretor” em filmes como A idade da terra
(1980) (SOARES, 2005, p. 152-153). Como consequência do transe glauberiano, a figura
do cineasta encontra-se incessantemente com a do herói e com a de outros duplos, as
máscaras trágicas escolhidas por ele. É desse modo que, em uma carta escrita para Cacá
Diegues quando se encontra exilado em Paris em 1972, se compadece do próprio
sofrimento, pois havia recentemente perdido os rolos de Câncer (filmado naquele ano),
confiscados pela alfândega francesa. Sem dinheiro, contava com o faturamento do filme
para se manter e, diante do fato de que talvez fosse impossível lançá-lo e do seu
isolamento, se compara a um pária social e a um mártir ao mesmo tempo: “[...] a solidão é
terrível e sinto todas as feridas do país estourando no meu corpo e alma, e parece até o
prenúncio da morte. […] Parece até que roubei o fogo; virei Prometeu” (ROCHA, 1997, p.
447). Riverão é publicado quando Rocha retorna desse exílio de cinco anos — entre Nova
York, Roma, Paris e outras capitais — e está marcado por constantes vestígios da história
ditatorial que o afastara do Brasil.
Em Riverão Sussuarana, o titã da tragédia de Ésquilo compõe os fragmentos sob o
título de “PHROMETEU” (ROCHA, 2012, p. 194-198), escritos quase totalmente em
letras maiúsculas e dispostos em colunas, recordando, assim, uma afinidade entre a estética
escritural de Glauber Rocha e a poesia concreta. Os doze trechos acerca do titã situam-se
ao final da narrativa principal, em que a personagem Karter Bracker, o empresário
estrangeiro explorador das minas de urânio, interfere na epopeia de Linda, Guimarães
Rosa, Anjo Mauro e Riverão Sussuarana pelo sertão nordestino. O empresário procura
descobrir o “Geo Fogo”, referindo-se a uma noção positivista do desenvolvimento, que o
impele ao progresso a todo custo, mesmo a despeito da violência (Karter defende o
armamento brasileiro com a bomba atômica durante a guerra). PHROMETEU antecede o
trecho autobiográfico sobre Necy Rocha, irmã de Glauber morta em 1977, reportando-nos
a uma ferida que assume ares ficcionais. Desse modo, simboliza o progresso histórico, a

2689
5

expansão do país ao interior com a construção de Brasília e a irrupção de conflitos como a


revolução de 1930:

[...] como se PROMETEU FOSSE O FOGO NUCLEAR,


O NASCIMENTO DOS DEUSES
O NASCIMENTO DA CONSCIÊNCIA
O NASCIMENTO DA CIVILIZAÇÃO (ROCHA, 2012, p. 195).

No entanto, ao situar-se próxima de um evento que oscila entre o dado e a ficção, a


história é deslocada e ressignificada por meio da estória, como afirma Guimarães Rosa
personagem no início do texto. Com a releitura da tragédia de Ésquilo, Glauber Rocha
reitera o efeito alucinatório da narrativa de Riverão Sussuarana e perfaz uma interpretação
não-cronológica da gênese, ao valer-se no livro de um proto-gênero ou anti-gênero textual
— a tragédia — em meio à narrativa policial, às letras de canções, ao conto, ao poema, ao
diálogo dramático e ao roteiro de cinema.
O Prometeu pirofórico é condenado à tortura pelos próprios homens que não
compreendem a potência do fogo revolucionário: “Não troco meu sofrimento pela vossa
falsa liberdade nas trevas iluminadas pelas ilusões. Eu conheci o fogo e mesmo dele
exilado sou a memória do seu fulgor...” (ROCHA, 2012, p. 195). O detentor das luzes não
é meramente uma alegoria do progresso, mas também um eco do culto solar que se
manifesta na antiguidade por meio da figura de Apolo (a divindade da criação plástica, da
beleza e da aparência tranquilas, portadora de um “olho solar”, segundo Nietzsche, 2007),
e que regressa nas culturas ameríndias.
Se o tempo de Prometeu é o do retorno, pois o seu fígado é devorado durante o dia e
regenera-se a cada amanhã, o sol também poderá se remeter ao Georges Bataille de O ânus
solar a uma repetição periódica e não linear, a dos seus movimentos em torno de um centro
móvel e a de seus encontros com a face escura planetária. O sol, noturno e erótico para
Bataille, contraria a destruição da guerra: “À fecundidade celeste opõem-se os desastres
que são imagem do amor terrestre sem condição, ereção simpática sem saída nem regra,
escândalo e terror” (BATAILLE, 1985, s. p.). Parte de uma série de outros princípios
geradores, que também bailam circularmente, o sol em Glauber Rocha consiste em uma
das figuras do sertão escaldante, desdobrado em uma paisagem de múltiplos centros na
narrativa, destituindo a possibilidade de pensarmos em um sistema, pois o deserto

2690
6

sertanejo é como uma clareira que ultrapassa os limites da nação, indo do Grande Sertão
Veredas à tragédia antiga.
Poderíamos aproximar, em Riverão Sussuarana, a versão do Prometeu solar a uma
infinidade de outros mártires e messias, como Antonio Conselheiro, que se interpõem entre
a organização da comunidade e o sistema. No entanto, apesar da presença de Conselheiro,
o efeito do romance é o da desmistificação – uma vez que a assinatura não é senão uma
máscara escritural que reformula os nomes próprios de Guimarães Rosa (Major e Mestre
Rosa, Embaixador Romancista, Jango Rosa) e de Glauber Rocha (Glaubiru, Grober,
Glaudi, seu Roxo), até que por fim o escritor mineiro e o cineasta mesclem-se na
personagem Guimarães Rocha: um qualquer, uma bipolaridade formada pelo soberano e
pelo homo sacer.
Prometeu, por outro lado, assume a forma do absoluto – daquilo que esconde algo
em que poderia se tornar, uma categoria da representação livre de qualquer
transcendentalidade (EINSTEIN, 2004). O autor esvazia, por conseguinte, as funções
predominantes nas aparições desse mito, de modo que já não se refira a ao ato da criação
divina, nem inaugure a civilização entre os homens, mas aponte para o “nada”
característico do começo não-cronológico:

I
[...]
Mais importante do que esses dois atos é o DURANTE que preenche
sentimentalmente a LACUNA.
Este durante do ENTRE é a dor de Prometeu
[...] (ROCHA, 2012, p. 195).

II
[...]
E NO PRAZER DE DAR SUBLIMA O NÃO SER PROJETADO DA
MATÉRIA FELIZ PORQUE VIU UM NADA LACUNAR ENTRE
O SER E O PASSADO
[...] (ROCHA, 2012, p. 196).

V
[...]
NADA É O NOME DE DEUS.
O ANTERIOR E O POSTERIOR E O IMAGINADO
JAMAIS MATERIALIZADOS
EIS O DESEJO DE DEUS INDEFINÍVEL NADA
ALEM DO CONCEITO DE INFINITO NÃO SER
[...] (ROCHA, 2012, p. 197).

2691
7

O procedimento alucinatório se completa com a justaposição de paisagens diversas


sem a interposição de limites entre elas — o sertão nordestino, o Piauí, o Rio de Janeiro, “o
tempo sem cronologia” e sem espaço do culto ao herói — e sem que se respeite uma
ordenação do tempo. Por sua vez, “vozes” interrompem o relato revelando as “falhas” nas
montagens2, as atuações e os simulacros no interior do texto, de onde surgem as figurações
do vazio delineadas pelo fragmento prometeico.
Nesses termos, mesmo a Estetyka da fome de Glauber Rocha pode ser vista como um
outro nome para o deserto, para esse nada que permite que o começo se ofereça pela via da
emergência. Herkunft e Erbschaft, empregados por Nietzsche para designar a origem,
atuam como um sintoma ou um pathos, a presença de uma incompletude inevitável, ou
seja, “um conjunto de falhas, de fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam instável,
e, do interior ou de baixo, ameaçam o frágil herdeiro” (FOUCAULT, 2007, p. 21). Como o
filósofo italiano Roberto Esposito irá recordar contemporaneamente, o início nietzschiano
não é exatamente uma questão temporal, mas de relação, na medida em que a divindade
somente pode ser concebida na sua própria dissolução como Ser para dar origem ao
homem, tornando-se, assim, “não-Ser”. Portanto, no modelo bipolar de Glauber Rocha, o
começo está tomado pela diferença e prescinde de toda a pretensão de unidade e de
presença, pois carrega em si o traço de seu nascimento e a potência da criação, do vir a
existir e do tornar-se outro, mesmo que momentaneamente.

Deus no mundo

Eu quis acender o espírito da vida


Quis refundir o meu próprio molde,
Quis reconhecer a verdade dos seres, dos elementos;
Me rebelei contra Deus,
5 Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,
Contra minha família, contra meu amor,
Depois contra o trabalho,
Depois contra a preguiça,
Depois contra mim mesmo,

2 Segundo vemos na passagem em que o narrador Glauber Rocha relata a morte de Necy e investiga os
acontecimentos e os depoimentos que não o convencem. Quando “interroga”, por exemplo, o marido da
vizinha da falecida irmã, após ouvir as respostas dele, afirma: “Montagem mal feita – respondi e o
deixei” (ROCHA, 2012, p. 180 – grifo nosso).

2692
8

10 Contra minhas três dimensões:


Então o ditador do mundo
Mandou me prender no Pão de Açúcar:
Vêm esquadrilhas de aviões
Bicar o meu pobre fígado.
15 Vomito bílis em quantidade,
Contemplo lá embaixo as filhas do mar
Vestidas de maiô, cantando sambas,
Vejo madrugadas e tardes nascerem
Pureza e simplicidade da vida!
Mas não posso pedir perdão.
(Murilo Mendes, “Novíssimo Prometeu”)

O Prometeu acorrentado de Ésquilo, ao lado da figura eternamente errante de Io, nos


faz compreender que a punição pelo roubo do fogo revela um fato oculto da história: o de
que a contingência e o movimento de Io rumo ao fim dos tempos serão interrompidos pelo
retorno dos mártires e pela incessante renovação do sofrimento. Essa qualidade do mito
prometeico foi enfatizada na retomada nietzschiana da tragédia grega, que recupera a
condição impura desse relato. Apresentando ainda uma afinidade com a vertente romântica
do mito, a do poema de Goethe, o filósofo alemão afirma que a ânsia esquiliana de conferir
ao titã o dilaceramento do seu corpo devolve a esse mito outra máscara possível: a de
Dioniso (NIETZSCHE, 2007).
Murilo Mendes reúne nos versos de O visionário a característica de uma
religiosidade quase mundana, expondo a laceração da carne e a violência dos regimes
ditatoriais do período, que se apropriam dos corpos, dos gestos e fazem novo uso da vida
mesma, reduzida a uma condição inumana e a um mecanismo de controle. Mendes
aproxima a divindade do labor do poeta, quem funde e refunde o molde da linguagem em
sua tarefa e se manifesta politicamente contra o fascismo, como faria ao longo de sua
trajetória escritural (PICCHIO, 1994). Nessas caraterísticas, encontramos vestígios da
proximidade entre Mendes e o surrealismo dissidente internacional e a doutrina católica do
amigo e artista Ismael Nery. O resultado da síntese entre a acefalia e a religião seria o que
Mário de Andrade denominou, em “A poesia em pânico” (1946), de uma religião
desprovida de universalismo:

Quero dizer: a atitude desenvolta que o poeta usa nos seus poemas pra
com a religião, além de um não raro mau gosto, desmoraliza as imagens
permanentes, veste de modas temporárias as verdades que se querem
eternas, fixa anacronicamente numa região do tempo e do espaço o

2693
9

Catolicismo, que se quer universal por definição (ANDRADE, 1972, p.


46-47).

De fato, a observação de Andrade é pertinente: o que lemos na poesia de Murilo é


uma concepção anacrônica da eternidade, nem sempre pautada na possibilidade da
redenção por meio do encontro com o divino, pois se insurge contra os próprios dogmas
em que se baseia, travestindo a igreja com corpos femininos e somando o amor pela
virgem ao amor pela mulher mundana3. O espírito e a essência se transformam nas pedras
que rolam pelos poemas de O visionário, o horror da guerra se espelha na carne e modifica
os homens comuns e os santos em rocha. Em poemas como “O doente do século”, “A
cadeira elétrica” e “Mas” não existe uma separação entre a geografia do Cáucaso e o
fígado de Prometeu, dado que o organismo resuma-se a estilhaços solidificados e as pedras
pesem sobre um corpo acéfalo:

Meu coração vai sangrando,


Se desfazendo aos pedaços,
Mas assim mesmo inda tem
Uns pedacinhos de pedra
Que resistem duramente:
A pedra resiste ao vento
De aridez, que vai passando,
Vem rolando traiçoeiro,
Dos desertos da cabeça. (“O doente do século”, MENDES, 1994, p. 236).

Uma noite — talvez avisem no jornal —


Apertarei um botão no rochedo da carne,
O mar jorrará assim, aos borbotões,
Das minhas veias onde desliza
Modesto e manso sem fazer barulho. […] (“A cadeira elétrica”,
MENDES, 1994, p. 237).

As ondas amarguradas
Encostam a cabeça na pedra do cais.
Até as ondas possuem uma pedra na cabeça.
Eu na verdade possuo
Todas as pedras que há no mundo,
Mas não descanso (“Mas”, MENDES, 1994, p. 234).

Ao reconhecer-se uma fusão entre criador e criatura, em “Novíssimo Prometeu”, o


poeta se recusa a submeter-se a uma hierarquia superior, assumindo-se culpado e

3 Como vemos nos versos de “A destruição”, de A poesia em pânico (1936-1937): “Ó Madalena, tu que
dominaste a força da carne / Estás mais perto de nós do que a Virgem Maria, / Isenta, desde a eternidade, da
culpa original. / Meus irmãos, somos mais unidos pelo pecado do que pela Graça: Pertencemos à numerosa
comunidade do desespero / Que existirá até a consumação do mundo” (MENDES, 1994, p. 287).

2694
10

confessando os supostos lapsos (verso 20). No entanto, em sua rebeldia, procura reinserir a
possibilidade de fundamento (o “espírito da vida”, “a verdade dos seres, dos elementos”)
no amálgama entre o céu (que envolve o Pão de Açúcar) e a terra (a praia carioca), do
verso 11 ao 16.
Vale recordar, nesse sentido, que a noção de tempo implicada em Murilo deve-se em
grande parte ao essencialismo de Ismael Nery, quem conhecera em 1922. Como sabemos,
o autor de Bumba-meu-poeta (1930-1931) reuniu os escritos de Nery sobre essa doutrina
na revista A Ordem, fundada por Jackson Figueiredo em 1921. O essencialismo procurava
garantir a “superação” do homem por meio da abstração do tempo e do espaço, a que o ser
humano deveria sujeitar-se. Além disso, o homem deveria submeter todas as suas ações e
envolver-se apenas com os fatos essenciais ao seu “Bem” (ou “tudo o que nos conduz à
morte naturalmente sem atacar a nossa dose de instinto de conservação”). Visto que, para o
essencialismo, a vida seria um processo de construção do conhecimento, um

não desviar-se de um destino inevitável e preservar-se no percurso até um


futuro previsto, uma reconstrução que se inicia com o nascimento e finda
com a morte. Todo o homem possui um coeficiente de energia e de tempo
determinado que não poderá ser desperdiçado sem prejuízo final
(MENDES, 1935, p. 315-316 – grifo do autor).

Em “Novíssimo Prometeu”, a abstração do tempo e do espaço se dá com a perda das


margens corpóreas, como se Prometeu se tornasse quase plano e se confundisse
mimeticamente com o Pão de Açúcar (o qual substitui o Cáucaso), pois o poeta rebela-se
contra a divindade e contra as “três dimensões” do seu corpo. Ao renunciar ao poder o titã
entrega-se a uma necessidade de liberdade nietzschiana e acéfalica. O eu-lírico, crendo
ainda na comunhão com a divindade, não cessa igualmente de demonstrar a aspiração de
tornar-se o próprio regente de seus domínios e deixar de servir como a peça submissa de
uma engrenagem. Nesses termos, o poeta reforça uma posição quase terrena da
espiritualidade e a sua vizinhança com um Deus que combina a luz (“Eu quis acender o
espírito da vida”) ao sofrimento no mundo. Murilo Mendes propõe, em seu texto, a
imagem de um novo homem que se ergue sobre os estilhaços da violência da guerra,
talhado em pedra, carne e sangue: um Prometeu compósito, um Prometeu-Dioniso, como

2695
11

aquele sugerido pelos colaboradores da revista Acéphale entre 1936 e 1938, Bataille e
Caillois4.
O mote para a revista Acéphale deriva da ilustração de André Masson de um corpo
cujo sexo é substituído por um crânio descarnado e que apresenta uma tocha posicionada
na mão esquerda (MARTÍNEZ, in: BATAILLE et al., 2010). Os cinco números dessa
revista dedicam-se especialmente a refutar o uso da filosofia nietzschiana pelo nazismo e a
enfatizar o aspecto dionisíaco do pensamento, posto que o corpo decomposto de Dioniso
remeta-se ao globo em ebulição e ao homem do entre-guerras. Murilo Mendes reivindica
esse mesmo aspecto da obra de Friedrich Nietzsche nos Retratos-relâmpago, publicados
entre 1965 e 1966: “[…] Renovar sua didascália sobre o espírito grego como ponto de
partida da cultura, e sobre o espírito israelita como organizador da ação. Desnazificar
Nietzsche. Desprussianizá-lo (MENDES, 1994, p. 1210).
O titã do poema de Murilo não lamenta os sofrimentos de que padece, mas carrega a
punição que lhe é destinada como o Atlas levaria o mundo sobre as costas, troçando das
consequências para a humanidade, dado que se insurja contra os valores que o seu ato
supostamente tornaria possíveis – “o trabalho, os banqueiros, a escola antiga” — de modo
que se aproxime do revolucionário anarquista. Seja no modelo acefálico de Murilo Mendes
ou no bipolar de Glauber Rocha, o mito de Prometeu nos reporta a um começo não
unitário, suscitado pelo conflito entre forças de assenhoramento e de subjugação, que
retorna em eventos diversos da história — o dos fascismos e o das ditaduras latino-
americanas — com sentido e finalidade passíveis de interpretações novas.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinho. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília:


INL, 1972.
BATAILLE, Georges. O ânus solar. Tradução de Aníbal Fernandes. Lisboa: Hiena, 1985.

4 Nas “Proposições sobre o fascismo”, publicadas no número 2 da revista Acéphale em 1937, Georges

Bataille faz a seguinte interpretação do conceito de liberdade em Nietzsche: “Ser livre significa não ser
função. Deixar que a vida se encerre em uma função é deixar que a vida se castre. A cabeça, autoridade
consciente ou Deus, representa a unidade das funções servis que se oferece e se toma a si mesma como um
fim; consequentemente, é a que deve ser objeto da mais profunda aversão” (BATAILLE, 2010, p. 67 —
tradução nossa).

2696
12

______. [et al]. Acéphale. 3. ed. Traducción de Margarita Martínez. Buenos Aires: Caja
Negra, 2010 (p. 63-70).
BENTES, Ivana (Org.) Glauber Rocha — Cartas ao Mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
EINSTEIN, Carl. Revolution Smashes Through History and Tradition. Trans. Charles W.
Haxthausen. October, n. 107, p. 139-145, Winter, 2004.
ESPOSITO, Roberto. El origen de la política. ¿Hannah Arendt o Simone Weil? Traducción
de Rosa Rius Gatell. Barcelona, Buenos Aires: Paidós, 1999.
ÉSQUILO. Prometeo encadenado. In: In: GUAL, Carlos García. Prometeo: mito y
literatura. Madrid: FCE, 2009 (p. 49-82).
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. Roberto Machado. 23. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2007.
GUAL, Carlos García. Prometeo: mito y literatura. Madrid: FCE, 2009.
HESÍODO. Teogonía (v. 507-616). Trabajos y días (v. 42-105). In: GUAL, Carlos García.
Prometeo: mito y literatura. Madrid: FCE, 2009 (p. 27-35).
MENDES, Murilo. Comentários aos poemas de Ismael Nery. In: A Ordem, p. 315-317, abr.
1935.
______. Poesia completa e prosa. Org., prep. do texto e notas: Luciana Stegagno Picchio.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Uma polêmica. Tradução de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Reimpressão.
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinzburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme,
1981.
_____. Riverão Sussuarana. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
SOARES, Luis Felipe. Glauber Evangelista. In: Cinemais, Revista de Cinema e Outras
Questões Audiovisuais. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.

2697
A CONSCIÊNCIA INFELIZ:
UMA LEITURA FENOMENOLÓGICA DAS OBRAS MARGINAIS, DE EVEL
ROCHA, E O DIÁRIO DE UM HERMAFRODITA, DE HERCULINE BARBIN.

Larissa da Silva Lisboa Souza (USP)

RESUMO
O artigo tem como objetivo refletir sobre as múltiplas impossibilidades dos sujeitos, a partir de
seus exercícios dialéticos. Para tanto, o arcabouço teórico se iniciará pelas discussões
fenomenológicas propostas por Hegel sobre o herói infeliz, e a releitura de Judith Butler,
concatenando-as às questões de gênero e identidade. Assim, parte-se para a análise comparativa
de duas obras artísticas que têm a rememoração como potência narrativa, "Marginais", do cabo-
verdiano Evel Rocha (2010), e "O diário de um hermafrodita", da francesa Herculine Barbin
(1978).

Palavras-chave: Literatura; Fenomenologia; Dialética; Impossibilidade; Gênero

2698
A literatura tem inúmeros exemplos de textos que propõem um movimento
dialético de personagens, onde é possível observar o desenvolvimento dos mesmos
através de suas experiências. Desse modo, os erros e acertos vivenciados desenham não
apenas o contorno das estórias, como também as relações íntimas e individuais dos
sujeitos, ressignificando suas construções ao longo das narrativas.
A experiência dos personagens nas estórias narradas é o ponto de partida dessa
reflexão. E, para tanto, escolho dois textos para discorrer sobre o assunto. O primeiro
deles, Marginais, do cabo-verdiano Evel Rocha, um romance contemporâneo, publicado
em 2010, que traz as rememorações do personagem Sérgio Pitboy na periferia da Ilha de
Sal, a principal Ilha do arquipélago de Cabo Verde. Sérgio, nos últimos instantes de
uma vida atribulada e degradante, entrega suas memórias para um conhecido que as
publica, logo após a sua morte. Dessa forma, a narrativa conta a estória de um homem
comum que, pelas inúmeras dificuldades, poderia ter sido, mas que nunca foi.
O segundo, O diário de um hermafrodita, as memórias da francesa Adélaïde
Herculine Barbin, escrito quando ele tinha 25 anos e que veio ao público após o seu
suicídio, em 1868. Um texto esquecido que só voltou a ser discutido pelo seu
relançamento, em 1978, mais de um século depois, com o prefácio de Michael Foucault.
Herculine Barbin relembra suas dolorosas experiências através da formação e
transformação de Herculine em Abel. Inicialmente, enquanto uma mulher pobre, filha
de uma governanta, teve uma trajetória limitada pela sua condição de vida: a questão
profissional, demarcada pelos espaços educacionais e religiosos; a física, enquanto um
indivíduo hermafrodito; e o desejo homoafetivo, em um espaço conservador e patriarcal
no interior da França, no início do século XIX.
Duas estórias que são completamente diferentes e com personagens que não se
assemelham à priori. Contudo, não seria possível pensar em um caminho comparativo
sobre as experiências desses indivíduos, visto que suas vivências narradas trazem algo
em comum, a memória?
Os romances de formação, ou Bildungsroman, são textos em que o
desenvolvimento dos personagens é minuciosamente exposto, seja pelo caráter físico,
psicológico, social, cultural ou político. Uma jornada metafórica ou não através de uma
inexperiência inicial, assimilada pelos erros e acertos em seu desenvolvimento e que
chega a um esclarecimento, às vezes amargo, da experiência de vida.

2699
Para Hegel, em Fenomenologia do Espírito (1992), o processo de formação do
indivíduo se deve ao progresso de sua relação com a razão. E isso se dá de uma forma
cada vez mais autoconsciente em direção ao saber absoluto,
O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se
implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve
se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na
verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo, em ser
sujeito ou vir-a-ser-de-si mesmo (HEGEL, 1992, p.31).

Em Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France


(1987) Judith Butler, enquanto leitora e estudiosa do pensamento hegeliano, afirma que
a progressão do indivíduo é um exercício dialético, através de uma tese e sua antítese,
chegando à síntese. Assim, o romance de formação pode ser considerado dialético, visto
que a progressão do personagem na narrativa é um movimento contínuo de construção e
desconstrução de si, chegando à autoconsciência, e sua síntese representada como um
saber absoluto.
A consciência, ou autoconsciência, é vinculada à figura do Herói moderno, que
age através dos estágios de sua progressão, da ignorância ao esclarecimento. É
interessante pensar, a partir disso, sobre a progressão dos personagens das duas
narrativas.
As memórias de Sérgio, em Marginais, iniciam com uma perspectiva infértil ao

Sérgio narra inicialmente uma infância pobre, em que o banditismo faz parte da

meninos de Jorge Amado, em Capitães de Areia (2009), a exemplo das características


comuns dos ambientes periféricos e a universalidade da pobreza. O círculo familiar de
Sérgio, obviamente desestruturado, traz a figura materna como a única redentora de
algum afeto, mas que, pelas condições de vida, está sempre distante e impossível de ser
acessada. Por isso, as memórias familiares do personagem são carregadas de dores e
dissabores, exemplificados pelos inúmeros casos de violência. E, ainda, vale ressaltar o
espaço escolar, enquanto um lugar autoritário, violento e pouco favorável para o
aprendizado de uma criança carente.
A formação do personagem, assim, levaria à construção de um indivíduo cruel e

si no início do texto, em que todo o fim justificaria o meio de pobreza e violência.

2700
Entretanto, Sérgio, mesmo com todas as adversidades, tenta realizar o sonho de ser um
jogador de futebol de sucesso e superar os limites impostos a ele.
No decorrer da estória, é perceptível a corrosiva desesperança em suas
memórias. Com a impossibilidade de participar da seleção para novos jogadores em um
time europeu por sua condição física, debilitada pela vida subnutrida de cuidados e
solidariedade, Sérgio chega à vida adulta com uma consciência cruel de sua condição.
O texto de Herculine Bardin (1978) também traz essa consciência, através das
memórias de uma mulher que viveu no interior da França, nas primeiras décadas do
século XIX, com inúmeras privações.
Inicialmente, Herculine vivia uma situação razoável, visto que sua mãe era
governanta de uma família nobre e, por isso, tinha um tratamento além da relação
patronal. Todavia, o trabalho da mãe impossibilitava a criação e educação da menina. E,
com apenas sete anos, Herculine foi colocada em um convento de freiras.
Um pouco mais velha, ela se destaca nos estudos e, assim como Sérgio Pitboy,
começa a construir os seus sonhos. Porém, a sua condição de mulher pobre a impede de
sonhar, sendo guiada pelo chefe de sua mãe a seguir o caminho da docência em
instituições religiosas para mulheres, trabalho que Herculine não recusa, mas que a
frustra, visto as limitações e o pouco prestígio em ser apenas uma Professora.
Refletindo inicialmente sobre as duas narrativas e as experiências vividas por
esses indivíduos, é possível construir, assim, alguns questionamentos: A progressão dos
personagens os levaria a um saber absoluto de suas impossibilidades? E, em que medida
a autoconsciência não indeterminaria suas vidas, suas trajetórias?
Tanto Sérgio como Herculine trazem em seus discursos a consciência de que as
impossibilidades têm relação com suas condições, e não com as situações da vida. E,
para exemplificar essa diferença, minha leitura parte, então, à discussão de gênero.
Em Subjects of Desire (1987) Judith Butler propõe a discussão fenomenológica
concatenada às reflexões de gênero. Assim, a teórica questiona o pensamento de Hegel
no sentido de compreendê-lo que é possível pensar no herói infeliz (aquele que tem
consciência de sua condição) apenas enquanto homem, não abrindo a possibilidade para
suas diferenças. Além disso, enquanto Hegel entende a progressão do herói como um
caminho para a autoconsciência, para Butler, somente a partir desse percurso será
possível a criação de sua identidade.

2701
Judith Butler, dessa forma, traz uma interessante discussão para a compreensão
dessas duas estórias, visto que seus personagens são sujeitos que vivenciam múltiplas
identidades e de forma complexa.
Em Marginais, a discussão de gênero vai além da experiência individual de
Sérgio Pitboy. Ao longo da narrativa é possível encontrar outros indivíduos em que o
gênero é tencionado, como a personagem Lena, que decidiu pelos espaços considerados
masculinos:
Lena manuseava as cartas como ninguém; conhecia todos os
truques do tchintchôm e se descobrisse que alguém estava a roubar no
fogo não hesitava em desembainhar a navalha ou esmurrar a cara do
batoteiro. Usava roupas masculinas conspurcadas de suor, tinha o
rosto delicado de mulher, mas os punhos largos e os olhos desafiantes
desencorajava qualquer mal intencionado. Lena, quando não estava a
jogar batota, trabalhava como ajudante de pedreiro, pescava nos fins-
de-semana e, no domingo à tarde, ia ao Estádio Marcelo Leitão ver
futebol. Ela chegou á conclusão que ganhava mais a jogar cartas do
que esbodegando no trabalho forçado. Fumava tudo o que era erva,
bebia cerveja desafiando os homens com sua linguagem ordinária,
porém rica em obscenidade. Sentava-se como homem, tirava a blusa,
alegando calor, e deixava à mostra o soutien avolumado pelos fartos e
arredondados seios, depois destratava a mãe daqueles que lhos
observavam (ROCHA, 2010, p.67).

scobrem que ele


era um indivíduo hermafrodita, pela sua gravidez, ou mesmo Fusco, o personagem que
trouxe à narrativa diversas passagens de suas relações homoafetivas e, em alguns casos,
a violência como retrato cru do preconceito contra os gays. Mas é com Valdomiro, o
mirinha, que se dá a primeira relação homoafetiva de Sérgio, e uma das passagens mais
tristes dessas memórias.

como não amava sentido, a maneira como


Sérgio relatava a sua experiência homossexual afirma que, em um espaço
preconceituoso, machista e violento, somente é possível, e menos culposo, saciar o
desejo sexual e afetivo com outro homem sem tocar em palavras vinculadas ao discurso
amoroso.
Contudo, a relação entre os dois demonstrava um sentimento passional e
cúmplice, visto que, na morte de Valdomiro, Sérgio ficou incumbido de entregar uma
carta de Mirinha ao seu pai.

2702
(...) Sou homensexual, a sujeira que entrou na sua casa, mas não sei
viver de outra maneira. Quero que saibas que eu não virei
homensexual, nasci assim. Por isso, meu pai, para que não sintas mais
humilhação e porque não sei viver de outra maneira, vou matar a
cabeça. Talvez num outro mundo eu possa ser mais compreendido tal
como sou. Sou capaz de aguentar as troças, a fofoca da vizinhança,
mas não posso viver sem a tua bênção! Perdoa-me por ter nascido gay.
Adeus para sempre (ROCHA, 2010, p.118).

A relação de Sérgio com Mirinha é relatada rapidamente, assim como as


vivências homoafetivas dos outros personagens, cabendo, assim, algumas reflexões
sobre as impossibilidades desses sujeitos em experiênciá-las, como também discuti-las.
Em O Diário de um hermafrodita, a tensão em relação ao gênero se dá
especificamente com a personagem Herculine, que teve a sua primeira experiência
afetiva ainda muito jovem, com uma amiga do internato, Léa, em que a relação
homoafetiva
primeira vista, e embora fisicamente ela não fosse deslumbrante, a graça e a
simplicidade que todo o seu corpo vertia, tornavam-na irr
(BARNBIN, 1978, p.18).
Quanto ao desenvolvimento do corpo de Herculine, enquanto as outras meninas
chegavam à puberdade graciosas, a partir das mudanças que tecem as formas femininas,
a personagem vivia o oposto,
(...) meu andar e minhas formas não eram harmoniosas. Minha
pele, doentiamente pálida, denotava um estado de sofrimento habitual.
Meus traços visivelmente duros não passavam desapercebidos. Uma
leve penugem que aumentava a cada dia cobria o meu lábio superior e
uma parte das bochechas. Compreende-se que essa particularidade
suscitasse gracejos, os quais eu tentava evitar usando frequentemente
a tesoura ao modo de uma navalha. Não fui bem-sucedida, entretanto,
e tudo o que consegui com essa prática foi torná-la mais espessa e
visível ainda (BARBIN, 1978, p.33).

Com as estranhas transformações do corpo, além dos confusos desejos,


Herculine vivia, em meio aos constantes tormentos pelas mudanças de instituições de
ensino religiosas e os términos de suas relações afetivas, até chegar à fase adulta,
tornando-se Professora em um internato para meninas.
A docência, como já explícito, não gerava á Herculine grandes expectativas.
Porém, sua relação com Sara, uma das filhas da diretora da Instituição, fez com que
nascesse nela uma nova paixão. Contudo, Herculine já tinha consciência da
impossibilidade dessa relação. E, mesmo com os conflitos e perigos em assumir um

2703
romance lésbico, Herculine e Sara iniciam um grande romance, em que a amizade e o
companheirismo eram mútuos.
É neste momento em que as memórias de Herculine deixam-se levar mais

cachos de seus cabelos naturalmente ondulados, apoiando meus lábios ora em seu
-52). E curioso observar que,
sempre que uma passagem como essa aparece no diário, Herculine reprime o seu desejo,
visto que a culpa e a reprovação de seus atos faz parte de seu discurso e, dessa maneira,
nto,
me acusar agora de ter cometido um crime? Não, não!... Esse erro não foi meu, mas de

Naturalmente que, em pouco tempo, a relação entre as duas começa a


demonstrar preocupação e angústia,
Sara, do fundo de minha alma, eu te amo como nunca amei
ninguém na vida. Mas não sei o que está acontecendo comigo. E sinto
que essa afeição não pode mais me satisfazer. Para isso preciso de
você por toda a vida! Invejo, às vezes, a sorte daquele que será teu
marido (BARBIN, 1978, p.52).

Ao mesmo tempo em que os conflitos aumentam, Herculine sofre cada vez mais
com seu corpo, algo que ela não sabe explicar. E, em uma das crises, a mãe de Sara
resolve chamar um médico que, consultando-a, fica perplexo com a desc
pobre homem ficou terrivelmente atordoado! Frases entrecortadas escapavam de sua
boca, como se ele tivesse medo de as pronunciar. Eu queria que ele estivesse longe de

condição física.
Depois de alguns verões com encontros ás escondidas com Sara, Herculine
resolve deixar a instituição, como única forma de não desgraçar a vida da amada e
difamar o nome do internato, visto que, como poderiam consumar publicamente este
romance? Como seria possível assumir, perante a sociedade, uma relação lésbica em um
ambiente religioso, em que mulheres são formadas para serem freiras ou boas esposas?
Em uma fase de desesperanças e desespero por seus desejos homoafetivos,
Herculine recorre a um padre, que a aconselha a procurar um médico que, assim,
diagnosticou a sua condição enquanto uma mulher de dois gêneros, ou seja, um
indivíduo hermafrodito. Por isso, a personagem resolve não apenas aceitar o seu novo
gênero, como oficializá-lo, tornando-se, assim, Abel Barbin.

2704
A partir dos exemplos das experiências identitárias desses personagens é
possível afirmar que o movimento dialético em suas formações os levaria para alguns
esclarecimentos sobre suas vidas.
Em relação ao gênero, tanto Sérgio como Herculine, ou Abel, constroem uma
autoconsciência em que compreendem seus conflitos enquanto uma condição de vida.
Se as experiências estivessem no âmbito situacional, as esperanças tanto de Sérgio
vivenciar de forma mais aprofundada a sua relação homoafetiva com mirinha seria
possível. E Herculine, a construção de um romance mais sólido, e público, com Sara.
Todavia, suas vidas estão encarceradas nos limites da condição, portanto,
impossível que haja mudanças significativas nas vidas dos dois personagens e que
possam viver livremente seus desejos e vontades.
A condição de vida dos dois sujeitos os levam a uma amarga consciência de si,
em que a solidão foi único caminho encontrado. Sérgio, pela frustação de um sonho
profissional e a impossibilidade de amar; Herculine, pela condição física que a
enquadrava como uma aberração exótica, e também a inviabilidade do amor.
Assim, concluo que a formação desses sujeitos para a autoconsciência trouxe a
eles a clareza da impossibilidade de viver. O fim dos mesmos justifica essa afirmação,
visto que, Sérgio morre (ou se deixa morrer?) debilitado nas ruas pobres da Ilha do Sal e
Abel se suicida.
A consciência infeliz desses personagens reverbera na percepção de suas
condições subalternas, enquanto sujeitos periféricos e impossibilitados de exercer suas
múltiplas identidades. Se Gayatri Spivak (1997) questiona ?
termino essa comunicação com um questionamento semelhante, pode o subalterno
pensar sobre si?

REFERÊNCIAS

AMADO, Jorge. Capitães de Areia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.


BARBIN, Herculine. O diário de um hermafrodita. Trad.: Irley Franco. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1983.
BUTLER, Judith. Subjects of Desire: Hegelian reflections in Twentieth-Century France.
Columbia University. E.U.A: Press Edition, 1987.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito. Parte I. Trad.: Paulo Meneses. Petrópolis:
Vozes, 1992.

2705
ROCHA, Evel. Marginais. Cabo Verde: Gráfica da Praia, 2010.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina
Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2015.

2706
ARTE DE EDUCAR E CONEXÃO RAZÃO-SENTIMENTO E PENSAMENTO-
ARTE EM ROUSSEAU: UMA FORMAÇÃO ESTÉTICA DA INFÂNCIA
Lia Presgrave Reis1 (PPGE/UFSC)
Marlene de Souza Dozol2 (PPGE/UFSC)

Resumo: a pesquisa pretende investigar a diluição das fronteiras entre sentimento e razão na
obra de Jean-Jacques Rousseau. Baseando-se na relação que tais faculdades estabelecem entre
si, pretende-se mostrar que a suavização desses limites está relacionada à conexão entre filosofia
e artes na obra do filósofo, mais detidamente a literatura conforme interpretação de Bento Prado
Jr. (2008), o que apontaria para um esmaecimento das fronteiras entre os gêneros (neste caso o
literário e o filosófico) na obra do filósofo genebrino. Diante disso, propõe-se pensar o viés
estético do sentimento em sua obra e, a partir desta premissa, conceber a apreciação do
sentimento estético como ponto de formação da consciência, esta última amálgama de razão e
sentimento segundo Rousseau. A relação de tais objetivos com a pedagogia emerge do fato de o
conceito de educação ser, neste contexto, igualmente um conceito de formação estética. A
investigação tenta entrever relações entre os pares razão-sentimento e o prolongamento
filosofia-arte que possam contribuir para conferir a dimensão estética da obra de Rousseau e de
sua concepção de infância. Para tal, toma-
cunhada por Marlene Dozol (2015) para indicar uma atitude e um olhar de leveza lançado sobre
as coisas, aliado a uma vivência do instante e do tangível, uma imediatez das sensações. A

do devaneio e ao leve pousar da presença da criança nas relações que trava com seu entorno.
Com o auxílio da Poética do devaneio de Bachelar (2009), a poética da superfície elegerá o
instante para pensar tanto a retórica do Rousseau romântico de Os devaneios do caminhante
solitário e de Júlia ou a Nova Heloísa quanto a dimensão estética da formação infantil.

Palavras-chave: Jean-Jacques Rousseau. Sentimento. Razão. Consciência. Infância. Formação


estética.

1
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro integrante do Núcleo
de Pesquisa GRAFIA Grupo de Estudos em Filosofia da Educação e Arte.
2
Professora Associada do Centro de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro integrante do Núcleo de Pesquisa
GRAFIA Grupo de Estudos em Filosofia da Educação e Arte.

2707
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2708
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1
O conceito de perfectibilidade em Rousseau corresponde à capacidade humana de aperfeiçoamento, uma
disposição inata que pode ou não ser desenvolvida, a qual seria também responsável por retirar do
aperfeiçoamento humano aqui entendido como a própria formação do indivíduo a ideia de perfeição
como um limite a ser atingido. Nesse sentido, a primazia da concepção de aperfeiçoamento em detrimento
de uma ideia de perfeição contribuiria para conferir à infância e as demais etapas da formação uma beleza
e um valor intrínsecos, respeitando as demandas de cada fase do desenvolvimento do indivíduo.

2709
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2710
-

Outrora vivi com prazer na sociedade, quando via em todos os olhos


apenas benevolência ou, no pior dos casos, indiferença naqueles que
me desconheciam. Mas hoje, quando é mais fácil mostrarem meu
rosto ao povo do que minha natureza, não posso colocar os pés na rua
sem me ver cercado de objetos dilacerantes; apresso-me em chegar a
passos largos no campo; assim que vejo a vegetação começo a
respirar. Será preciso se espantar por eu amar a solidão? Vejo apenas
animosidade nos rostos dos homens, ao passo que a natureza sempre
me ri (ROUSSEAU, 2008, p. 127-128).

2711
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2717
UM PORTUGAL MÍTICO: UM ESTUDO DAS LINGUAGENS DE
ANTONIO LOBO ANTUNES E SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Ludimila Moreira Menezes (Universidade de Brasília)

RESUMO: Constituída pelas análises dos contrastes entre o esboroamento e a nitidez de

faziam

refletir sobre a composição poética de certa topografia da ruína que se perfaz diante de uma
linguagem espectralizada no romance de Lobo Antunes e sob a mineralidade do signo na
poética de Andresen. Nessa espécie de breviário de mundos que se alcançam em uma dimensão
nostálgica, em atravessamentos de experiências de fraturas, de dores, de distanciamentos que
disseminam álbuns imaginados, cenas plásticas enredadas por um filtro do passado revisitado,
enunciados e sentidos que em uma economia incessante viabilizada pela leitura dos textos,
forjam e disparam um imaginário mítico de um país construído desde consumações sentimentais
de inventários geográficos, familiares, psíquicos e materiais.

Palavras chave: Portugal mítico. Linguagem poética. Memória. Nostalgia.

De uma difícil partilha de lutos, de conflitos e de paisagens que ora estilhaçam,


ora centralizam, ora expandem os focos narrativos das obras aqui analisadas pensar a
plasticidade e a radicalidade dessas linguagens que investem em uma relação de atração
e risco entre literatura e filosofia na construção nostálgica de um Portugal mítico. A
realidade empírica não se realiza na textualidade como estruturante de uma fidelidade
imediatista: anuncia-se no romance Que cavalos são aqueles que fazem sombra no
mar? de Antonio Lobo Antunes uma cosmogonia pela memória esgarçada que se deriva
na voz de personagens que ascendem a um crescente de passado; também, diante de um

2718
Andresen, que indiciam uma ruptura à relação de presença e unidade da palavra, senão
pelo investimento em deslocamentos como na emergência das analepses e pelos
processos oníricos como no romance de Lobo Antunes, pelas imagens que liberam
desde o recurso das analogias, das metonímias, do apelo e interação com o leitor, o
imovível do signo gráfico à uma economia que impacta e, ou, rasura a noção de
significado transcendental, distendendo o significante em um processo marcado pelo
apagamento do sentido único, pelas diferenciações e modulações da linguagem às voltas
com tópicas da história, da alteridade.
Não há que se apontar, então, um motivo contextual, uma origem para a
linguagem poética que acontece na fissura do captável; no entanto, os registros espaciais
de Andresen subsumidos por um fluxo que porta certo grau de historicidade exploram e
projetam distintas e múltiplas negociações entre as relações representacionais, a visada
fenomênica advinda dos movimentos de imersão e tradução sensorial-imaginativa desse
Portugal mítico e a aporia do testemunho que porta a ventura do perjúrio e que não
opera como ente mimético na linguagem. Onde emerge imagens se perfazem pontos de
acesso à uma dimensão utópica, incursão marcada por um prolongamento que parece
invocar memorabilias extraídas antes de pensamentos e nostalgias do que registros
estáticos.

no transcorrer dos séculos e da caracterização das epistemes que regem e forjam


domínios de linguagem e formações discursivas, argumenta que é a partir das produções
textuais do século XIX que o signo linguístico escapa de certa binariedade exposta na
função de plasmar a realidade desde a ideia de representação em uma noção rígida de
significado e significante que desenvolve um regime dos signos como algo que
repercute o objeto e seu funcionamento em uma ordem do discurso, que deixará a
linguagem encerrada nos limites da representação.
Para o filósofo, o processo que expõe a falibilidade da representação fiel advém
da consciência, do gesto de criação e potência de distorção do signo pelo homem
possibilitando a liberação do sujeito de uma determinação positiva e da linguagem, de
um discurso restritivo, utilitarista de similitude imediata e última, apagando ou
fraquejando uma noção de equivalência pretensamente transparente. Nos termos de
Michel Foucault (2007, p.416) a Literatura em sua acepção moderna é considerada
como uma espécie de denegação lúdica, a linguagem tem autonomia para romper com

2719
tensionam o discurso nos limites de sua representação, concedendo ao homem a
autonomia para designar o que será um signo, alçando a linguagem a uma espessura
reflexiva, a linguagem como objeto de conhecimento sem que isso se dê por um caráter
transitório, de instância posterior, definitiva e apaziguada.
Em Antonio Lobo Antunes, no relevamento da dramaturgia que se desdobra
naquilo portar-o-outro, na carga de perda ficcionalizada em uma demora desde a
saudade que se difere da saudade delineada nos poemas aqui elencados de Andresen:
em Que cavalos são aqueles que fazem sombras no mar? pervive uma multiplicidade de
pontos de vista, seja nas imersões intimistas dos narradores, seja nos diálogos
encriptados desses personagens com suas heranças infiéis de passado que se distende
em uma nostalgia forjada entre as descontinuidades da súplica, das invectivas e do
esgarçamento da memória. Há um estrato cromático neblinado pela memória vacilante
que advém da integração entre aspectos visuais e verbais que forja presenças-vozes
espectralizadas no romance.
As composições poéticas de Lobo Antunes e de Andresen se perfazem sob a
constante atração ao outro, seja este constituído por núcleos de família, de cidade, de
paisagem ou de memorabilia que resistem às tentativas ou a quaisquer premissas de
decodificação de seus universos esculpidos em uma sintaxe de aproximações, no caso
de Andresen ao real, em riscos, na incondicionalidade do acontecimento materializada
em uma poética como gesto de envio, ou na constante ameaça de esboroamento entre a
concepção de mundo real e o limbo fantasmático de uma linguagem em múltiplas vozes
às voltas com o perjúrio, com o trauma, no caso do romance de Lobo Antunes.
Ainda que vigore nos poemas de Andresen rastros daquele ímpeto de contato
com uma unidade concreta de mundo de certos textos épicos, um fascínio contínuo pelo
arcaico recuperável e pela matéria decantada de séculos de reiteração, repetição e
revalidação, esse legado se dissipa em uma saga que acontece na linguagem, às claras,
em um jogo de captura e caça ao outro que não pretende sua retenção figurativa: antes,
expõe um entroncamento de forças visuais em uma atmosfera textual marcada por um
crescente de autorreferencialidade, já que a Literatura irrompe desde a matéria primeira,
mundo, saudade, escrita e corpo. A expressividade escritural se faz corpórea, a
experiência se expõe, se dissemina desde a estrutura poética que revela estratos
imagéticos de um mundo em revindas, o que implica uma textualidade às voltas tanto
com procedimentos icônicos quanto com processos de desestabilização do registro
factual buscando uma reconstrução estética do passado pela subjetividade nostálgica.

2720
No romance de Lobo Antunes, a dicção do vertiginoso não se dissipa à deriva do
tempo: ela se dissemina em tramas que corporificam experiências-limites, desde
arranjos sintáticos que fraturam o reconhecimento do sujeito enunciador e que assumem
a linguagem em matiz elíptica, ou em composições de ambientes anacrônicos que
vislumbram senão certa reconstrução temporal impossível, uma exposição da distorção
do presente afetado pelo passado que se (re) inaugura ao longo da narrativa. Um
dialógico clima de catástrofe é convertido em burburinhos, murmúrios, esquecimentos,
reminiscências que acionam o fluxo rememorativo, explorando os confins de realidades
acossadas pelo medo, pela dissipação do corpo e do tempo, pelo luto e suas demoras de
saudades, de melancolias, de nostalgias.
Da linguagem atravessada por esse fluxo de nostalgia, tem-se:
Vieram dizer que a minha mãe estava a morrer por respeito a morte
tirei o dedo da gengiva embora nunca tenha visto ninguém morrer
nem saiba o que é morrer, sei que diante dos caixões , se fala em voz
baixa e nos movemos devagar mais educados, mais compostos,
cumprimentando-nos num sorriso triste e depois ficamos ali de mãos
dadas conosco mesmos, à frente ou atrás das costas.
(são as únicas alturas em que damos a mão a nós mesmos como se
fôssemos uma pessoa diferente e somos uma pessoa diferente porque
os dedos que apertamos estranhos e a gente mirando-os à socapa a
perguntar
Parecem meus mas são meus?
Encolhemos um ao acaso, sentimo-lo mover-se e o que prova isso
conforme nada prova o anel, a pulseira, o que não falta são anéis e
pulseiras, serei uma, serei duas, serei uma criatura que não tem a ver
com qualquer delas ou comigo, devolvam-me a mim por caridade, se
calhar é isto o que a morte significa, onde estou?) (ANTUNES, 2009,
p.39)

Enquanto o romance de Lobo Antunes combina uma paisagem descentrada pelos


pares antitéticos do testemunho (confissão e perjúrio), esculpindo uma textualidade
brutalista de espessura espectral, um mundo barroco de personagens e passagens
espectralizadas, a linguagem poética de Andresen, para evocar a expressão de Octavio
Paz revolve marcas históricas evocando
ausências, extraindo e revelando cenas em angulações que ampliam, irradiam e dilatam
a memória, a nostalgia. Sob esse aspecto cabe elucidar a dinâmica da outridade para
Paz:
O crescimento do eu ameaça a linguagem em sua dupla função: como
diálogo e como monólogo. O primeiro se fundamenta na pluralidade;
o segundo, na identidade. A contradição do diálogo consiste em que
cada um fala consigo mesmo ao falar com os outros; a do monólogo
em que nunca sou eu, mas outro, o que escuta o que digo a mim

2721
mesmo. A poesia não diz: eu sou tu; diz: meu eu és tu. A imagem
poética é a outridade. (...) A conversão do eu em tu imagem que
compreende todas as imagens poéticas não pode realizar-se sem que
antes o mundo reapareça. A imaginação poética não é invenção mas
descoberta da presença. Descobrir a imagem do mundo no que emerge
como fragmento ou dispersão, perceber no uno o outro será devolver à
linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia:
procura dos outros, descoberta da outridade. (PAZ, 2015, p.102)

Economia que transvalora o realismo tradicional em sua obstinação pelo ponto


de vista eminentemente histórico e persegue por uma arqueologia metafísica-
fenomênica que combine filosofia e história, indícios-sinais-venturas em rastros da
idealidade e do fracasso dessa busca, uma unidade do ser, um estar primitivo que não se
encerra em uma busca etérea, antes se compõe uma estética que congrega elementos de
resistência, de alteridade forjando certo Portugal mítico que desorbita os limites
geográficos.
Desse modo, os poemas aqui analisados da escritura poética andreseniana
vincam uma topografia intertextual que imanente a uma tradição lírica ocidental
partilham uma ruinosa e luminosa comunidade espacial; mesmo que em virtualidade,
mesmo que essa comunidade não gere um ethos coeso de identidade, de princípios
poéticos, ela indicia em uma sintaxe de silêncios, de resguardos e cartografias
mitológicas, uma constelação de dilemas, segredos vertidos na linguagem que dá a ver
uma herança do tema da conquista, dos tempos de exploração do descobrimento, a
correlação da subjetividade que acena ao vívido e o confronto com o passado, a ideia de
intruso, de estrangeiro, que se condensa e concretiza em um microscomo complexo de
revelações e de novas moradas.
Poética que toma o gesto escritural como rastilho de um real, de rastreio de um
mundo físico e sensível, de uma falta que persiste e vislumbra no signo linguístico, na
palavra como síntese de uma relação que não evidencia ou dramatiza um si, mas
delineia movimentos e negociações de alcance ao outro provocando uma afetação nítida
entre linguagem e mundo na medida em que a captação da cidade se deriva pela
nomeação de dicção construtivista, por uma metaforização que encampa a materialidade
-se e ergue-se em sua extensão nocturna/Em seu longo
luzir de azul e
emergência fisionômica de significantes que se expandem sob orientação da evocação e

construída ao longo de sua própria ausência/Digo o nome da cidade/-

2722
Octávio Paz, em seu Signos em rotação, ao explorar a emergência e a tessitura
da frase poética, pensa o verso em uma totalidade autossuficiente como um
microcosmo: sob esse prisma de pensamento os poemas aqui elencados disseminam
microcosmos onde ritmo imagem e significado, em um fluxo e refluxo das imagens
animam e assumem o risco de transitar entre mundos, o da referencialidade e o da
imaginação.
Embora no romance de Lobo Antunes o povoamento léxico também incida sob
uma tópica comum à Andresen (nominalmente: os arrabaldes geográficos em torno de
Lisboa), em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? a textualidade ganha
lastro numa polifonia que estiliza a linguagem memorialista em um crescente da voz
lírica, que condensa e revolve acontecimentos do passado, presente e futuro, não
vigorando um projeto de despersonalização da voz (vozes) elocutória que persiste e se
distende em um misto de vigília, velório, ato de contrição, relembramentos que
paralisam e antagonicamente catalisam a morte da mãe que também fala em um regime
espectral de assunção. Os irmãos Beatriz, Francisco, Ana e João, a mãe, o pai também
morto e a empregada Mercília comparecem em fluxos confessionais que forjam
angulações múltiplas ao romance.
Ainda que invistam em perspectivas diferentes na modulação das vozes, nos
signos que decifram, diferenciam, na construção espacial que em Andresen prescinde da
revelação do campo referencial em sua instância-farol, em seu clamor do enfretamento
com o mundo e não na fuga, no refúgio do dito pelo aflorar do impuro, no
desdobramento dialógico e polifônico como no romance de Lobo Antunes o trato com o
passado, em ambas as narrativas, que assume uma espessura mítica despertando,
assombrando destaca a condição, a canalização e a dimensão do substrato memória
como liberadora de alteridade. Enquanto o verso do poema aproxima a cena pictórica

rota, também emerge uma vacilação presentificada pela preposição designativa de falta

contaminações metonímicas de Sophia ou nas disseminações ruinosas de Lobo Antunes,


entre o substrato de significantes que se diferenciam ao longo das narrativas e a
abstração semiótica desencadeada pela leitura, se forja e se distende a dimensão
imaginária de um mundo mítico.

esperar nunca mais n

2723
força, funda e da concretude a um gesto de envio da dor, da nostalgia, da palavra vinga
um porvir afetado pelo fracasso de quaisquer promessas: também no romance de Lobo
Antunes experimenta-se à entrega a um tempo remoto, mas não com acesso inegociável;
ali, o recuo, a memorabilia, é atravessado por vozes que depõem sobre os rumos da
história, da composição e afetação entre um narrador e outros personagens. Os
movimentos de afetação e a dicção de recordação que esculpem a topografia da
narrativa são reportados por uma economia do trauma que encena vigília, desterro,
trauma em contrapartida ao próprio da evidência presente nos poemas de Andresen.
Referências:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. (2004). Poemas escolhidos. São Paulo:
Companhia das Letras.
ANTUNES, Antonio Lobo. (2009). Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar.
Rio da Janeiro: Objetiva, 2009
FOUCAULT, Michel. (2007). As palavras e as coisas. Trad: Salma Tannus Muchail.
São Paulo: Martins Fontes.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. (2015). Trad: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Perspectiva.

2724
VILÉM FLUSSER: ENSAIO, PRÁTICA, REFLEXÃO

Manuela Fantinato (PUC-Rio)

RESUMO: O exílio parece ser uma instituição fundadora do pensamento de Vilém Flusser,
uma espécie de metáfora cujo sentido ele subverte, compreendendo-a como potência produtiva.
Trata-se de uma experiência que desestrutura sua relação com passado e futuro, no sentido que
lhe furta ambos, e com a noção de uma identidade estável, mas que também lhe concede
liberdade para as futuras escolhas que faz. Cada uma de suas obras é, assim, consequência da
liberdade de pensar e de expressar-se, mas também de inventar-se enquanto um intelectual que
não se fixa em lugares ou áreas de conhecimento. Não à toa elege o ensaio como meio para
articular seus pensamentos, essa forma que, segundo Adorno, aparece como a negação de todo
método, que eleva a própria experiência ao status de autoridade de conhecimento, que não parte
do princípio, nem se orienta ao fim. Não se trata de um meio, mas uma prática com acepções
intelectuais e estéticas. Por meio dela, rejeita conceitos estáveis e absolutos, produzindo obras
que criam unidade a partir da fragmentação, ideias que só se completam em relação e interação
umas às outras. Ao recusar a linearidade e as explicações fechadas, ele não atua apenas no
sentido de contestar um sujeito estável, mas, por meio da prática da escrita, rejeita ainda
o projeto de uma modernidade pautada no progresso da civilização e do conhecimento
ocidental.

Palavras-chave: Vilém Flusser. Exílio. Ensaio. Filosofia.

O nome de Vilém Flusser é amplamente reconhecido no mundo ocidental, quase


invariavelmente associado a uma filosofia ou teoria dos novos meios de comunicação,
com especial destaque para os campos da fotografia e do design. Tcheco de nascimento,
foi incluído no rol dos pensadores de tradição germânica, talvez porque a maioria de
seus trabalhos tenha sido escrita – e divulgada – em alemão, embora escrevesse,
autotraduzindo-se, igualmente em inglês, português e francês. Isso porque, tendo
escapado do regime nazista, viveu um ano na Inglaterra, mais de 30 no Brasil e quase 20
na França, de onde viajava para dar aulas e palestras em diversas cidades da Europa e
dos Estados Unidos. Ao longo de sua vida, no entanto, dedicou-se aos mais variados
temas, da escrita às imagens técnicas, da epistemologia ao existencialismo. Sempre

2725
avesso a classificações e à criação de sistemas ou metodologias, rejeitava a
determinação de filósofo, preferindo a de escritor. Seu legado é tão vasto que livros
póstumos continuam sendo publicados, seja com textos inéditos ou a partir de traduções
organizadas por alguns de seus estudiosos ao redor do mundo.

O projeto intelectual de Vilém Flusser se mostra uma rede imbrincada de


conceitos e ideias que, à primeira vista, parecem díspares. É possível, entretanto,
compreendê-lo para além de seu discurso, em um quadro mais amplo que leva em conta
sua práxis intelectual e de escrita, indissociáveis de sua experiência de vida. A chave
para a reflexão que proponho neste trabalho é sua autobiografia, Bodenlos. Enquanto
escrita de si, esta obra permite refletir sobre os sentidos que o autor dá para sua própria
vida; como quer ler-se e como pretende ser lido. A vida contada em Bodenlos extrapola
sua cronologia de vida, ressignificando sua experiência em função de determinadas
questões.

Flusser morreu em 1991, em um acidente de carro em Praga, sua cidade natal,


onde estava para proferir uma palestra, deixando folhas datilografadas numa máquina de
escrever antiga. As páginas eram textos da autobiografia que vinha escrevendo desde,
provavelmente, os anos 1970, quando retornou do Brasil à Europa, e que seria publicada
em alemão um ano após sua morte, sendo encontrada em versões inacabadas, em
português e francês. Desde sua estrutura – é dividida em quatro partes, Monólogo,
Diálogo, Discurso e Reflexões, abandonando a cronologia e a teleologia – até seu
recorte – não se inicia na infância ou no nascimento, mas na experiência do exílio que o
leva ao Brasil – e sua forma – é escrita na forma de ensaios – Bodenlos, uma
autobiografia filosófica contesta a linearidade e a estabilidade do sujeito e da verdade.

O livro começa com um Atestado de falta de fundamento, o primeiro capítulo,


no qual Flusser relata a experiência de perder a terra em cima da qual traçou seu futuro
e na qual residem suas memórias, e termina com reflexões com a condição de exilado,
na parte Reflexões. O próprio título é um termo tcheco que carrega consigo o significa
duplo de “sem chão” e “sem fundamento”. Ao intitular assim sua autobiografia e abri-la
dessa forma, Flusser funda-se, paradoxalmente, como alguém “sem fundamento”, o que
significa também assumir-se “sem chão”, enquanto sujeito sem raízes, duplamente
exilado, uma vez que escrevia em seu segundo exílio. Flusser nasce discursivamente na

2726
experiência do exílio, na consciência da perda de todas as bases que davam sustentação
a seu mundo, centrado em Praga e apoiado em uma estrutura cultural na qual se
reconhecia e se projetava. Curiosamente, esta primeira parte do livro termina com
capítulo dedicado à língua brasileira, entendida não como instrumento de comunicação,
mas em toda a sua pontencialidade poética e reflexiva. Em suas palavras, como matéria-
prima para trabalhar a vida; ou seja, como desafio e tarefa de vida, cuja meta era tornar-
se “escritor brasileiro”.

É apenas após 20 anos no Brasil que Flusser passa a, efetivamente, ter alguma
atuação intelectual, por meio de artistas e intelectuais envolvidos com a criação do
Instituto de Filosofia de São Paulo, sobretudo escrevendo para o Suplemento Literário
do jornal O Estado de S. Paulo. Assim recupera, de certa forma, o futuro que perde ao
deixar Praga e os estudos de filosofia na célebre Universidade Carolíngea, onde
estudaram intelectuais famosos como Einstein e Rilke.

A segunda parte do livro (Diálogo) abandona qualquer resquício cronológico e é


dedicada a textos sobre pessoas que o influenciaram em sua trajetória no Brasil. Ao
introduzir outros em uma “escrita de si”, Flusser aponta para uma subjetividade formada
por contatos e contexto. Os 11 capítulos que se seguem não são dedicados aos outros de
sua intimidade, mas justamente a esses artistas e intelectuais, muito deles também
exilados, que marcaram seu pensamento e seu engajamento na escrita e na vida
intelectual brasileira.

Essa construção, de certa forma, ilumina outra característica particular do livro:


o uso do “a gente” no lugar da primeira pessoa. Bodenlos é uma autobiografia que se diz
“filosófica”, escrita na forma de ensaios, que inclui outros além daquele que narra, e que
substitui a primeira pessoa por uma forma informal de primeira pessoa do plural que é
também uma terceira pessoa, um “ele”, que está fora do “eu”. Gustavo Bernardo Krause
no prefácio da obra, associa essa opção a textos acadêmicos que usam o “nós” como
sinal de modéstia ou impessoalidade –equivalente ao man alemão e ao on francês. Em
uma bela reflexão, Krause defende que ao substituir o “a gente” pelo “eu”, Flusser diz
“eu”, “nós” e, na verdade, “toda a gente”. Desta forma, questiona o “eu” como centro do
universo, pois assume seu próprio “eu” em relação à toda sua gente, àquela que escolhe.

Tão importante quanto esse caráter dialógico é o caráter contextual que, em caso
de Bodenlos, caminham juntos e apontam para um detalhe muito particular e

2727
fundamental, que remete ao titulo do livro: a filosofia. As pessoas que Flusser escolhe
para mostrar-se em interlocução são exatamente aquelas que lhe marcaram a vida em
direção à atuação intelectual. Nenhuma palavra é dita sobre sua mulher Edith, que tanta
influência teve em sua vida, ou sobre seus filhos. Ao contrário, os nomes presentes no
Diálogo estão de alguma forma relacionados ao grupo ligado ao Instituto Brasileiro de
Filosofia.

Dando sequência à parte Diálogo há Discurso e Reflexões. Discurso é composto


de capítulos intitulados Teoria da comunicação e Filosofia da ciência, além de uma
introdução, marcando um novo início e borrando as fronteiras entre uma obra teórica e
uma escrita de si. Trata-se dos temas das matérias que lecionava em seus primeiros anos
como professor na USP e na FAAP. O autor inclui, portanto, a atividade de docente e os
temas aos quais dedica sua reflexão intelectual como escrita de si, tanto quanto textos
dedicados a pessoas que o marcaram em sua vida. Terminando o livro, a parte Reflexões
possui três textos nos quais fala especificamente sobre questões relativas à experiência
do exílio e à condição de estrangeiro.

Ao incluir em uma escrita de si textos sobre pessoas e temas que marcaram sua
vida e sua carreira Flusser registra a importância da atuação intelectual e do caráter
indissociável entre teoria e vida, embora nenhuma menção seja feita ao intenso período
de produção e circulação pelo mundo que vivia enquanto escrevia sua autobiografia;
período esse que se estende por cerca de 20 anos e no qual escreve as obras que o
tornariam reconhecido mundialmente como teórico dos novos media, como a Filosofia
da Caixa Preta ou O universo das imagens técnicas. Era como se fossem mundos
paralelos que não se tocassem.

Essas questões complexificam-se, em Bodenlos, à luz de outras. Em primeiro


lugar, Flusser diz-se escritor e escolhe especificamente o ensaio como modo de escrita.
Isso parece articular-se com a vastidão de temas que trata em sua vasta obra e,
sobretudo, com o projeto intelectual que propõe.

O ensaio, essa forma híbrida entre poesia e prosa, entre filosofia


e jornalismo, entre aforismo e discurso, entre tratado acadêmico
e vulgarização, entre crítica e criticado, constitui um universo
que é habitat apropriado para o “exilado nos picos do coração”.
(FLUSSER, 2007. p. 83)

2728
Como Flusser, o ensaio é gênero sem fundamento. Como lembra Adorno (2003),
no célebre O ensaio como forma, não deixa que um domínio lhe seja prescrito,
firmando-se na tensão da imprecisão e da indeterminação, tanto de formas quanto de
temas, horizontalizando o próprio autor em sua escrita na mistura de seus afetos e de
suas críticas. Não há método para escrever ensaios e talvez ele seja exatamente a
negação do método. Não tendo início nem fim, o ensaio desintegra o todo da lógica
discursiva tradicional abraçando o presente, o efêmero e o comum. Como critica em
geral, opera uma certa literaturalização do saber. Sua força não está na
interdisciplinaridade, mas na transdisciplinaridade. Não se situa entre dois saberes,
atravessa os saberes sem subserviência a uma disciplina em particular a partir de um
modo de conhecer que é literário, pois se reconhece escrita.

Enquanto intelectual, Flusser atravessa os saberes. Em Bodenlos, como em toda


sua obra, atravessa a filosofia com a literatura, e a literatura com a filosofia. Estrangeiro
de saber bastardo, sem diploma e portanto sem reconhecimento institucional formal,
cria para si uma instituição de palavras e proclama sua insubordinação a qualquer
instância. Liga-se irremediavelmente a seu objeto, ao passo que se faz objeto de si
mesmo. Sua literatura é filosófica e sua filosofia, ficcional – para brincar com o título de
outro de seus livros, Ficções Filosóficas.

Ao assumir o ensaio, esse gênero “degenerado”, para escrever, Flusser borra as


fronteiras entre literatura e pensamento crítico, afirmando a potência criativa do livre
pensar que não busca soluções definitivas. O ensaio é um ato discursivo com
características particulares: trata-se de conhecimento que se faz por meio de um tipo
específico de escrita, não pautada pela sistematização, mas pela subjetividade, e, por
meio delas, pela contestação a uma noção de verdade una e estável.

Em carta a Leo Popper, Lukács chega a defender que a crítica feita na forma de
ensaios possa ter status de obra de arte:

Tenho diante de mim os ensaios destinados a este livro, e me


pergunto: devem-se publicar trabalhos desta ordem, pode surgir
deles uma nova unidade, um livro? Pois o que importa para nós
agora não é o que estes ensaios possam oferecer como estudos
“histórico-literários”, mas tão-somente se há algo neles que
possa conferir-lhes uma forma nova, peculiar, e se esse princípio
é o mesmo em todos eles. O que vem a ser essa unidade, se é
que ela existe? Eu não procuro de maneira nenhuma formulá-la,

2729
pois não é de mim nem de meu livro que se trata aqui; é uma
questão mais importante e mais geral que temos diante de nós: a
questão da possibilidade de uma tal unidade. Em que medida os
escritos verdadeiramente grandes que pertencem a essa categoria
têm uma forma, e em que medida essa sua forma é autônoma;
em que medida o modo de ver e sua configuração subtraem a
obra do campo das ciências e a colocam ao lado da arte sem,
contudo, apagar as fronteiras entre ambas; conferem-lhe a força
necessária para uma reordenação conceitual da vida e, no
entanto, a mantêm distante da perfeição gélida e definitiva da
filosofia. [...]

Portanto: a crítica, o ensaio – chame-o por ora como você quiser


– como obra de arte, como gênero artístico. (LUKÁCS, 2008)

A opção pelo ensaio em uma escrita de si, em Flusser, deixa ainda outra
sugestão: o caráter irremediável da ligação entre vida e prática. Neste caso, a prática da
escrita e uma vida marcada pela experiência do exílio.

É preciso ressaltar que, embora Bodenlos se centre em torno do período ou das


questões relacionadas à experiência de Flusser no e/ou sobre o Brasil, o livro é escrito
em novo exílio. Nesse período de intensa produção e circulação – era convidado a
palestrar e dar aulas em diversas universidades europeias – passa a defender a condição
de apatridade como seu próprio estar no mundo, abandonando qualquer desejo de
relação com a terra ou com uma cultura específicas. Este é o teor da parte que encerra o
livro, Reflexões, onde compara habitat com hábito: o que caracteriza o hábito é não ter
consciência dele. Para ele, apenas o abandono da pátria possibilitaria a verdadeira
liberdade de escolha. É o que Flusser prega em sua própria vida de eterno migrante,
circulando por geografias como por saberes, sem jamais se fixar. Assim, ressignifica a
experiência do exílio como potência produtiva. Nesse sentido, ensaio parece, de fato, ser
o único gênero possível para articular essa experiência sem fundamento que, por meio
da instabilidade e indefinição, é capaz de criar sentidos e estimular novas reflexões.

Referências

ADORNO, Theodor. “O ensaio como forma”. In Notas de Literatura I. São Paulo:


Duas Cidades, Ed. 34, 2003.
BATLICKOVA, Eva. A época Brasileira de Vilém Flusser. São Paulo: Annablume,
2010.

2730
FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? Tradução de Murilo Jardelino
da Costa. São Paulo: Annablume, 2010.
FLUSSER, Vilém. Bodenlos, uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume,
2007.
FLUSSER, Vilém. “Exile and Creativity”. In Vilém Flusser Archive:
http://www.press.uillinois.edu/s03/flusser.html
FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do brasileiro, em busca do novo homem. Rio de
Janeiro: Eduerj, 1998.
FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2007.
FLUSSER, Vilém. A pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
FLUSSER, Vilém. The freedom of the migrant. Objections to Nationalism.
Translated by Kenneth Kronenberg, Champain: University of Illinois Press, 2003.
FLUSSER, Vilém. Universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2012.
FLUSSER, Vilém. “Retradução enquanto método de trabalho”. In:
http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a202.htm (visto pela última vez em 28/03/2011)
LUKÁCS, Goerge. “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”.
Revista UFG, Goiânia, n. 4, jun. 2008. In
<http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/junho2008/Textos/essenciaFormaEnsaio.htm>.
Acesso em: 15 de julho de 2014.
STAROBINKI, Jean. “Es posible definir el ensayo”. in Cuadernos hispanoamericanos,
No 575, 1998. p. 31-40.

2731
A TEORIA DO POÉTICO E O FRAGMENTO LITERÁRIO DE NOVALIS:
REFLEXÕES A PARTIR DE WALTER BENJAMIN E DA FILOSOFIA DE
FICHTE.

Natália Fernanda da Silva TRIGO (UNESP/Ibilce)


Prof. Dr. Márcio SCHEEL (orientador) (UNESP/Ibilce)

RESUMO: O Frühromantik se desenvolveu no final do século XVIII a partir de uma reunião


de pensadores, que ficou conhecida como o Círculo de Jena, cujos principais representantes
foram os irmãos Schlegel e Novalis. Esses autores propuseram reflexões sobre a filosofia e as
artes, criando novos conceitos e ideias sobre estética, obra, criação e teoria. Foram influenciados
principalmente pelo conceito de crítica desenvolvido por Kant em suas Críticas e pela filosofia
do Eu de Fichte, desenvolvida em sua Doutrina da Ciência. Walter Benjamin em sua tese O
conceito de crítica de arte no romantismo alemão sistematiza as ideias românticas acerca da
crítica e da obra de arte. Procuramos, então, a partir da tese de Benjamin, refletir sobre a
influência da filosofia de Kant e Fichte nos fragmentos de Pólen de Novalis que refletem sobre
a crítica e a obra literária. Buscamos ainda, analisar esses fragmentos dialogando com as
concepções de crítica e poesia romântica que Benjamin desenvolve em sua tese a partir desses
fragmentos. Além de discutir as ideias propostas pelos fragmentos acerca da crítica e da poesia,
refletiremos sobre a própria utilização do fragmento como gênero, para isso utilizaremos
principalmente as reflexões de Lacoue-Labarthe e Nancy (1978). Como suporte crítico e teórico
utilizaremos estudos que discutem a tese de Walter Benjamin como os de Seligmann-Silva
(1999) e Gagnebin (1999). Usaremos sobre a gênese e desenvolvimento do primeiro
romantismo alemão e a influência da filosofia de Kant e Fichte em seus pensadores as
discussões de Scheel(2010) e Bornheim (2008). Utilizaremos ainda, estudos anteriores que
en (1995) e o de Schefer (2011), para
discutir a relação entre os fragmentos de Novalis e a tese de Benjamin no desenvolvimento da
ideia de crítica e de poesia moderna.

Palavras-chave: Novalis. Fichte. Pólen. Benjamin.

No final do século XVIII temos uma reunião de pensadores em Jena, que


originou o Círculo de Jena, também conhecido como primeiro romantismo alemão
(Frühromantik). Seus principais representantes foram os irmãos Schlegel, Novalis,
Tieck e Schleiermacher. Através de suas reflexões sobre a filosofia e as artes, esses
pensadores criariam novos conceitos e ideias sobre estética, obra, criação e teoria.

2732
Novalis, pseudônimo de Georg Friedrich Philipp von Hardenberg, propõe,
segundo Scheel (2010) discussões muito mais filosóficas do que havia até então. As
obras do poeta alemão são marcadas pelo rompimento com os cânones clássicos, com
os valores de arte e crítica que eram postulados pelos tratados de arte, rompimento este
associado ao ideal de libertação, pela visão melancólica e noturna, pela nostalgia e pelo
misticismo, valores presentes no romantismo alemão. Para Novalis, a função do poeta é
a de transportar a humanidade para uma nova reflexão, a poesia e a arte são vistas como
atividade de pensamento, ou seja, se realizam como reflexão. Essas ideias acerca da
poesia, da linguagem poétia e da crítica são desenvolvidas por Novalis nos fragmentos
de Pólen, que são publicados em 1798, no primeiro número da revista Athenaeum1, que
era dirigida pelo seu amigo Friedrich Schlegel. A coletânea de fragmentos recebe o
nome de Pólen, pois, de acordo com Lacoue-Labarthe e Nancy (1978), a forma do
fragmento é uma dispersão das ideias, não uma disseminação, essa dispersão está ligada
à semeadura e às futuras colheitas, imagem que se liga à de Pólen. No presente trabalho
utilizamos a tradução de Pólen de Rubens Rodrigues Torres Filho (2009) para a
Coleção Biblioteca Pólen, dirigida por ele para a editora Iluminuras. Nessa tradução,
encontramos a seguinte divisão

o apontado por Scheel (2010), Rubens


Rodrigues Torres Filhos tem uma formação filosófica radicada na tradição do
pensamento alemão, sendo ele um dos maiores estudiosos de Fichte no país, o que lhe
confere profundo conhecimento e autoridade sobre esse momento histórico, filosófico e
literário.
Walter Benjamin, segundo Seligmann-Silva (2009), foi um dos maiores teóricos
e historiadores da modernidade, pois, viveu profundamente a modernidade e por isso a
compreendeu como poucos. Benjamin escreveu "a partir das entranhas de seu tempo"
(SELIGMANN-SILVA, 2009, p.15). Walter Benjamin desenvolve entre 1917 e 1919
sua tese de doutorado, O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, que
constitui uma das mais importantes e relevantes reflexões a cerca da concepção de
crítica e de arte para os primeiros românticos alemães. Em sua tese, Benjamin

A revista Athenaeum surge como o principal veículo precursor das ideias dos primeiros românticos.
Nela encontra-se as obras e as principais concepções dos membros do movimento, além de algumas de
suas produções literárias, críticas e filosóficas.

2733
desenvolve a ideia da arte como médium de reflexão. O médium de reflexão seria, de
acordo com Benjamin, o absoluto romântico 2. Ele sistematiza as ideias que estão nos
fragmentos dos românticos, em especial de Schlegel e Novalis. Seligmann-Silva (2011)
ressalta que foi a partir da tese de Benjamin que se começou a compreender a teoria do
conhecimento e o conceito de crítica dos românticos. Utilizaremos a tradução do
Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão de Márcio Seligmann-Silva de
2011, que também faz parte da Coleção Biblioteca Pólen É importante ressaltar que
Seligmann-Silva é um dos mais importantes estudiosos de Walter Benjamin no país, o
que lhe confere conhecimento e autoridade sobre as obras desse autor.
Benjamin inicia sua reflexão sobre a ideia de crítica de arte e da poesia
romântica sistematizando e refletindo sobre de que maneira a filosofia do Eu de Fichte,
desenvolvida em sua Doutrina da Ciência, foi fundamental para o desenvolvimento não
apenas da teoria do conhecimento e da reflexão romântica, como também do conceito
de crítica de arte, e com isso, do conceito de arte romântica. Segundo Lacoue-Labarthe
(1986), Benjamin, parte da filosofia de Fichte para desenvolver a problemática
romântica da obra de arte e de sua crítica, ressaltando que é importante notar até onde os
românticos seguem Fichte, para poder identificar onde eles se separam dele.
Fichte desenvolve em sua Doutrina da Ciência através de um trabalho lógico,

acentua o dar-se na interpretação mútua do pensamento reflexivo e do conhecimento


ca compreender a
origem de todo pensamento humano. E para isso, sua filosofia discute a própria
reflexão. A reflexão para Fichte da forma aquilo que era só conteúdo. Para os
românticos o que interessa não é a continuidade da construção de conhecimento e sim a
infinitude da reflexão é, para Schlegel e Novalis, antes de tudo não

p.36).
Segundo Benjamin a reflexão é o centro do pensamento romântico. . O poema é
uma reflexão orgânica, viva, autônoma e a crítica uma reflexão decomposta
(desdobrada) desse poema:

2
Benjamin explica em uma nota de rodapé o sentido sentido duplo da
designação não acarreta neste caso nenhuma obscuridade. Pois, por um lado, a reflexão mesma é um
médium graças ao seu constante conectar; por outro lado, o médium em questão é tal que a reflexão
move-se nele pois essa, como o absoluto, movimenta-se em si mesma (BENJAMIN, 2011, p.45).

2734
Schlegel avança um passo. Concorda com Fichte, quando este afirma
que a realização plena do ideal da liberdade não é possível. Mas,
acrescenta ele, não é possível para a filosofia. [...] Na criação artística,
o homem serve-se do sensível para dominá-lo e, através desse
domínio, o Não-Eu, o mundo sensível, como que se espiritualiza, se
idealiza. Através da idealização que é a obra de arte, estabelece-se a
unidade entre o real e o ideal (BORNHEIM, 2008, p.93).

A filosofia de Fichte, ao pensar sobre a própria reflexão, teve um papel


fundamental no desenvolvimento da ideia de crítica e de poesia para Schlegel e Novalis.
Benjamin na segunda parte de sua tese desenvolve a ideia de crítica de arte romântica, e
como, a partir da ideia de crítica, podemos entender a própria compreensão da ideia de
poesia para os primeiros românticos.
A crítica de arte é para os românticos, segundo Benjamin, a potencialização da
forma da arte. Essa arte da qual os românticos tratam, Benjamin ressalta que, se trata da
poesia, da literatura, da arte como produção de texto, a arte da linguagem. O que
interessa para os românticos é o exercício da crítica. O poema seria a reflexão orgânica,
e a crítica à reflexão decomposta, desdobrada do poema.
Segundo Seligmann-Silva (1999) a crítica romântica é a crítica como
desdobramento da reflexão presente na obra, uma auto-reflexão do próprio objeto
artístico. A reflexão acontece no absoluto da arte, sendo a arte manifestação desse

determinação do médium-de-reflexão, provavelmente a mais fecunda que ele recebeu. A


crítica de arte é o conhecimento do objeto neste médium-de-
2011, p.71).
Os românticos pretendem afastar a crítica de arte da crítica judicativa dos
clássicos, e, aproximar essa crítica da especulação filosófica, essa ideia se desenvolve a
partir da ideia de crítica desenvolvida por Kant:

Através da obra filosófica de Kant o conceito de crítica havia recebido


um significado quase mágico para a geração mais jovem; de qualquer
modo, inegavelmente se associou a ele justamente não o sentido de
uma atitude espiritual simplesmente judicativa e não produtiva, mas,

próxima com o procedimento reflexivo. (BENJAMIN, 2011, p. 58-59)

A crítica deixa de ser julgadora da arte e passa a ser criadora de um


conhecimento sobre a própria arte. O conhecimento sobre a obra passa a se dar dentro

2735
do campo da arte a partir do desdobramento. A arte passa a ser um processo de
conhecimento, e a crítica de arte um processo de reflexão, de pensamento. Aproxima-se,
então, o conhecimento crítico e reflexivo. A criação literária cria a linguagem, faz da
poesia um tipo de pensar, e a atividade poética se torna uma forma de reflexão que
produz algo que se torna disponível para que a crítica produza conhecimento.
A crítica deve habitar o mesmo médium da arte para que possa desdobrá-la:
ara os românticos, a crítica é muito menos o julgamento de uma obra do que o
método de seu acabamento. Neste sentido, eles fomentaram a crítica poética, superaram

de partida da crítica deve ser a obra, pois, a obra já contém uma potencialidade
reflexiva. Cabe a crítica, despertar essa reflexão que a obra contém, desperta o
conhecimento da obra por ela mesma. É a obra que deve determinar sua fundamentação
teórica e sua crítica:

A tarefa da crítica de arte é o conhecimento no médium-de-reflexão da


arte. A crítica é, então, diante da obra de arte, o mesmo que a
observação é diante do objeto natural, são as mesmas leis que se
amoldam diversamente em objetos diferentes. [...] Crítica é, então,
como que um experimento na obra de arte, através do qual a reflexão
desta é despertada e ela é levada à consciência e ao conhecimento de
si mesma (BENJAMIN, 2011, p.74).

A reflexão que a obra produz é infinita, e por isso a obra é infinita como médium
de reflex pleta diante do absoluto da arte
(BENJAMIN, 2011, p.78). Toda obra de arte é, portanto, incompleta no sentido do
médium de reflexão, ela demanda uma crítica que desenvolva essa reflexão. Seligmann-
Silva (1999) aponta que Benjamin evidência que para os românticos a exposição da
auto-reflexão inerente à obra só é possível através da crítica. A revelação da totalidade
da obra só é possível através do processo de reflexão, não só da obra, mas também de
sua crítica, isso torna a obra um eterno devir:

A crítica é, então, o médium no qual a limitação da obra singular liga-


se metodicamente à infinitude da arte, e finalmente, é transportada
para ela, pois a arte é [...] infinita enquanto médium-de-reflexão. [...]
A potencialização da reflexão na obra, também pode ser designada
desta maneira em sua crítica, a qual é, certo, possui, por sua vez,
infinitos graus (BENJAMIN, 2011, p.76-77).

intensificação e a exp -SILVA, 1999, p.75). A

2736
crítica deve ser uma transposição das obras no mesmo espaço de reflexão que a obra foi
criada. A obra encontra uma nova forma através da crítica:

A forma é [...] a expressão objetiva da reflexão própria à obra, que


forma sua essência. Ela é possibilidade da reflexão na obra, ela serve,
então, a priori, de fundamento dela mesma como um princípio de
existência; através de sua forma a obra de arte é um centro vivo de
reflexão. No médium-de-reflexão, na arte, formam-se sempre novos
centros de reflexão. Segundo seu germe espiritual, eles abarcam na
reflexão conexões maiores ou menores. A infinitude da arte atinge a
reflexão primeiramente apenas em um tal centro como num valor-
limite, isto é, atinge a autocompreensão e, deste modo, a compreensão
em geral. Este valor-limite é a forma de exposição da obra singular.
Nela assenta-se a possibilidade de uma relativa unidade e integridade
da obra no médium da arte. Mas, porque neste médium toda reflexão
particular só pode ser isolada e casual, também a unidade da obra com
relação àquela da arte é apenas relativa; a obra permanece conectada a
um momento de casualidade. [...] A crítica preenche sua tarefa, na
medida em que, quanto mais cerrada for a reflexão, quanto mais rígida
a forma da obra, tanto mais múltipla e intensamente as conduza para
fora de si, dissolvendo a reflexão originária numa superior e assim por
diante (BENJAMIN, 2011, p.81).

Benjamin reflete sobre a criticidade que os românticos evidenciavam na


verdadeira obra de arte, que o papel da crítica é desdobrar o germe crítico da própria
obra, que já está presente nela. A verdadeira obra de arte para os românticos: "contém
dentro de si mesma o germe do seu desenvolvimento infinito, que a crítica tem por
tarefa descobrir e desdobrar" (GAGNEBIN, 1999, p.72). O valor da obra então:

Depende única e exclusivamente do fato de ela em geral tornar ou não


possível sua crítica imanente. [...] Se uma obra é criticável, logo ela é
uma obra de arte; de outro modo ela não o é um meio termo entre
estes dois casos é impensável, mas também é inencontrável um
critério de diferenciação de valores entre as verdadeiras obras de arte
mesmas (BENJAMIN, 2011, p.86).

Essa criticidade imanente nas obras de arte não depende, segundo Benjamin, do
juízo do crítico sobre ela, e sim, da própria arte, na medida em que permite a crítica ou a
recusa. Gagnebin (1999) aponta que a crítica de arte romântica é, conforme desenvolve
Benjamin, regida pelas leis da auto-reflexão, ela ultrapassa a observação pelo
autojulgamento que é inerente ao objeto artístico. As obras então, não só refletem sobre
si mesmas, como também, se julgam a si mesmas. A partir desse princípio da criticidade
imanente da obra, os românticos desenvolvem uma teoria da arte:

O conjunto da teoria da arte romântica repousa sobre a determinação


do medium-de-reflexão enquanto arte, ou, melhor dizendo, enquanto

2737
Ideia de arte. Dado que o órgão da reflexão artística é a forma, logo a
Ideia de arte é definida como o médium-de-reflexão das formas. Neste
relacionam-se constantemente todas as formas de exposição,
transformando-se umas nas outras e unindo na forma-da-arte absoluta,
que é idêntica à Ideia de arte. A Ideia romântica da unidade da arte
assenta-se portanto na Ideia de um continuum das formas. [...] A
poesia romântica é, portanto, a Ideia mesma da poesia; ela é o
continuum das formas artísticas (BENJAMIN, 2011, p.94).

Os românticos não desenvolvem uma definição da ideia de arte, eles percebem


que a ideia de arte é algo que toda produção crítica e artística busca mesmo tendo em
ment trabalho de potenciação que a crítica realiza
consiste [...] no desdobramento da reflexão formal contida em cada obra, elevando esses
elementos germinais à Idéia da obra e à Idéia da arte -SILVA, 1993,
p.122). Benjamin ressalta que a ligação com a Ideia da arte é conferida pelos românticos
as obras poéticas através da reflexão. Conferindo assim a poesia romântica seu caráter
transcendental:

Os românticos de Iena insistem, simultaneamente, na criticabilidade,


na infinitude e no inacabamento das obras. [...] A dinâmica da auto-
reflexão imanente à obra [...] inscreve nela um inacabamento
consecutivo; por ser obra de arte e obra do espírito, a obra quer ir além
de si mesma, ela se abre às dimensões do infinito e do absoluto. Ora, a
crítica é justamente, para os românticos de Iena, uma das respostas
privilegiadas a esta exigência de auto-superação que caracteriza a
verdadeira obra de arte, alojando na imanência da obra o movimento
mesmo de sua transcendência (GAGNEBIN, 1999, p.72).

Essa ideia de poesia transcendental é desenvolvida por Novalis em seus


fragmentos. A poesia, para Novalis, deve se debruçar sobre o próprio pensar, que é o
sia manifesta no mundo sensível o que está fora dele. [...] Essa
apresentação é uma livre atividade criadora, que não se situa nem no sujeito nem no

transcendental, desenvolvida a partir da ideia do absoluto da arte, a reflexão infinita


realizada pela própria arte.
Essa poesia transcendental romântica, segundo Benjamin, é uma poesia cuja
reflexão poética é absoluta. O conceito transcendental em Novalis conduz para o
próprio conceito de reflexão, uma reflexão absoluta da poesia. A obra deixa de ser
representação e imitação do mundo e passa a se realizar em função de si mesma, por
isso, segundo Scheel (2009), a originalidade da obra de arte, para os românticos, está na
criação de uma outra realidade pela obra, que se dá a partir do gesto reflexivo do

2738
próprio eu e de sua autoconsciência. Scheel (2010) reflete que, para Novalis e Schlegel,
a reflexão não é apenas um processo de descoberta do eu, mas também é uma forma de
avaliação, crítica e análise da obra literária, percebendo, assim, a poesia como um
processo ativo do pensamento que faz dela objeto da reflexão.
Para refletir sobre a crítica e a poesia Novalis utiliza da forma do fragmento,
pois, essa forma, ao mesmo tempo em que se constitui de uma extrema concisão,
apresenta uma profunda intensidade, que concede uma abertura maior para a reflexão,
além de uma ambiguidade e de uma polissemia que fazem parte do ideal poético-criador
romântico. O gênero do fragmento literário, de acordo com Scheel (2010), é o suporte
no qual vai se manifestar a abertura da poesia para o pensamento, a crítica e a teoria:
o suporte em que se manifesta o encontro entre a criação poiesis e investigação

O fragmento, segundo Scheel (2010), transformou a visão sobre a literatura e as


artes, e aproxima não só poesia e crítica, como também o pensamento e a arte, o ser e a
linguagem. Esse gênero coloca em discussão o fato de que a noção de total completude
de um texto, de um todo perfeito e acabado, é um fantasma, um texto não pode dizer
tudo. A própria linguagem não consegue expressar tudo. Para compreender um
fragmento é necessária uma reflexão muito maior e mais intensa sobre a crítica do que a
que existia até então. No fragmento não temos desenvolvidas situações de causa e
efeito, e sim uma reflexão, que aparece como uma possibilidade: fragmento é quase
de texto cujo
significado se constrói a partir de um processo de leitura.
<A
poesia transcendental é mesclada de filosofia e poesia. Em fundamento envolve todas as

2009, p.124). Nesse fragmento, Novalis evidencia que a poesia transcendental é a


mescla da filosofia e da poesia. Ou seja, a poesia transcendental contém em si a
reflexão, uma reflexão que se aproxima da própria reflexão filosófica. Duarte (2011)
aponta que Novalis aproxima a arte da filosofia de maneira a tornar a arte mais
reflexiva. Benjamin, segundo Seligmann-Silva (2011), evidencia em sua tese que os

MIN, 2011, p.48). Segundo Duarte (2011) para os românticos,


a reflexão buscada no sujeito por Fichte, já estaria na arte, em especial na linguagem. A

2739
verdadeira obra de arte é a que já nasce de uma forma, da potencialização da forma que
resulta em forma, e não a intuição que resulta em conteúdo:
pensamento que engendra o seu objeto, mas a reflexão, no sentido dos românticos, é
pensamento que engendra sua forma -Silva
(1999) ressalta que, para Benjamin, os românticos levam mais longe a noção da reflexão
de Fichte e aplicam a teoria da reflexão à arte, de maneira que a forma da obra passa a
ser vista como uma expressão objetiva da reflexão que faz parte da obra.
Essa poesia envolve todas as funções transcendentais, e contém todo o
transcendental em si, é através dessa poesia que o transcendental se realiza de fato, que
a reflexão infinita e absoluta se realiza. A reflexão absoluta, a ideia do Eu absoluto de
Fichte, não pode se realizar pela filosofia, apenas a poesia torna essa reflexão possível,
esse pensar absoluto e inesgotável possível. Esse pensar que transcende e que ultrapassa
o próprio eu empírico e até mesmo a própria poesia. O poder transcendental dessa
poesia romântica está, segundo Scheel (2010), no fato de que a própria definição dessa
poesia se faz como um jogo de sentidos em direção ao infinito, ao absoluto da própria
transcendência em si. O'Brien (1995) ressalta que para Novalis a poesia funciona como
mediação do absoluto.
No fragmento
O poema do entendimento é filosofia É o supremo arrojo,
que o entendimento se dá por sobre si mesmo Unidade do
entendimento e da imaginação. Sem filosofia permanece o homem
desunido em suas forças essenciais São dois homens Um
entendedor e um poeta.
Sem filosofia imperfeito poeta Sem filosofia imperfeito
pensador julgador (NOVALIS, 2009, p.117)

Nesse fragmento Novalis aproxima a poesia da filosofia, no sentido da poesia

poético, o poema que pensa sobre si, que contém em si o entendimento, a reflexão:

do absoluto. Ela é a poesia consciente de si mesma e, uma vez que a


consciência, segundo a doutrina romântica, é apenas uma forma
espiritual intensificada daquilo do que ela é consciência, então a
consciência da poesia é ela mesma poesia. É poesia da poesia
(BENJAMIN, 2011, p.102).

entendimento imaginação da filosofia


como o entendimento e a poesia como imaginação. Ele contém em si uma reflexão que
deve ser desdobrada, através da ficção do poema se provoca um processo reflexivo que

2740
resultará em um saber. Sem essa capacidade do pensar da filosofia o poeta é incompleto,
e a filosofia contém e que deve
fazer parte da poesia. Schefer (2011) aponta que Novalis fundamenta sua reflexão sobre
a arte criadora a partir da filosofia de Fichte. Além disso, a relação da filosofia e da
poesia é parte fundamental do pensamento romântico. E essa ligação entre poesia e
filosofia é um dos fatores que diferencia o primeiro romantismo alemão dos demais
romantismos.
Não só o poeta é imperfeito sem a capacidade reflexiva da filosofia como o
crítico também. A própria obra é uma fonte inesgotável de desdobramento e reflexão
que é o que passa a torná-la obra de arte, e o juízo dessa obra deve partir disso, e não
mais dos ideais de beleza impostos pelos postulados. Costa-Lima (2005) discute que
essa crítica que parte do juízo estético e não mais no juízo de gosto é universalizada. A
crítica da obra deve ser realizar nela mesma e não mais baseada em tratados e princípios
de beleza externos. Essa ideia de crítica desenvolvida por Kant influencia não apenas as
ideias em relação à crítica de arte romântica, mas a própria ideia de arte em si, da poesia
transcendental dos românticos, poesia essa que pensa sobre si mesma, que possui uma

Os românticos pretendem se afastar da crítica judicativa dos clássicos, e para

uma afinidade muito próxima com o procedimento reflexivo


59). Como bem aponta Benjamin, tanto crítica quanto poesia romântica devem se
fundamentar num processo de reflexão que gera o entendimento, e nesse fragmento
temos o desenvolvimento dessa ideia do poema que se aproxima da especulação
filosófica, que deve produzir um saber através da reflexão que ele produz em si mesmo
e por si mesmo.
Podemos perceber que temos nos fragmentos de Pólen a ideia de poesia e de
crítica que Novalis desenvolve, influenciada pela filosofia de Kant e de Fichte, e essa
ideia é sistematizada por Benjamin em sua tese. No entanto, não temos na tese de
Benjamin apenas uma sistematização das ideias românticas, temos, principalmente, uma
crítica e uma reflexão acerca dessas ideias. O que nos leva a poder entender a tese de
Benjamin como uma reflexão decomposta dos fragmentos. Os românticos, com o
fragmento, dissolvem as fronteiras entre poesia, crítica e teoria. Dessa forma, a crítica
que Benjamin faz acerca dos fragmentos se assemelha a crítica de uma obra literária,
poética. Benjamin não só reflete sobre esses fragmentos, como da mesma maneira que a

2741
crítica deve desdobrar as reflexões da poesia, ele desdobra as reflexões presentes nos
fragmentos, gerando novas reflexões a partir de sua tese. E a partir tanto dos fragmentos
como da tese de Benjamin, podemos desdobrar infinitas reflexões e infinitos novos
saberes.

Referências

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SOBRE CRÍTICA IMANENTE: CONTRIBUIÇÕES DE THEODOR ADORNO
AOS ESTUDOS LITERÁRIOS

Raquel Patriota da Silva (Unicamp/Fapesp*)

RESUMO: O presente trabalho investiga de que modo a noção de crítica imanente, mobilizada
por Theodor Adorno, poderia contribuir com os estudos literários na medida em que se diferencia
do método de análise intrínseca de obras. Adorno acolhe o procedimento da crítica imanente e
tematiza-o em diversos escritos de modo mais claro no ensaio "Crítica Cultural e Sociedade" ,
tendo em vista um tipo de atividade intelectual que não reduza o objeto estudado a princípios
externamente projetados sobre ele, mas que seja capaz de nele resgatar um teor de verdade social
e histórico. Contudo, essa noção assume um sentido ainda mais complexo do que isso, pois não
se reduz a um método de apreciação judicativa de fenômenos culturais, nem muito menos a uma
investigação rigorosa, analítica, de uma obra. No que diz respeito à interpretação literária, seria
mais adequado tratá-la como uma crítica da experiência estética, uma autorreflexão mediada por
artefatos culturais, do que como uma análise de textos. Discutiremos o sentido de crítica
imanente em Adorno e suas possíveis contribuições para os estudos literários em três momentos:
primeiramente, consideraremos sua análise sobre o declínio da crítica literária na Alemanha no
contexto do pós-guerra, que acompanha a crise da experiência artística tema presente sobretudo
no texto Zur Krisis der Literaturkritik [Sobre a Crise da Crítica Literária]; num segundo momento,

iana é necessariamente dinâmica, dialética;


por fim, considerando algumas referências teóricas dos estudos literários, procuraremos
desenvolver mais especificamente quais podem ser as contribuições dessa concepção de crítica
imanente em Adorno, em contraposição à forma mai

PALAVRAS-CHAVE: Crítica Imanente. Filosofia. Estética.

Embora os textos de Theodor Adorno sobre literatura venham sendo cada vez mais
estudados nas humanidades, o interesse por suas interpretações das obras de Beckett,
Kafka, Joyce ou Proust muitas vezes tomou o lugar de suas discussões sobre a função
mesma da crítica literária e suas relações possíveis com a Filosofia eixos teóricos

Processo nº 2016/00472-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As


opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da
autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

2755
fundamentais de seu pensamento. Nesse sentido, pretendemos resgatar esses temas à luz
de um conceito central na filosofia adorniana: a noção de crítica imanente. Quando se
evoca essa concepção, pensa-se primeiramente no método de avaliar um objeto cultural,
um texto literário, apenas através de elementos que são dados pela estrutura do próprio
objeto, ou seja, sem que se aplique de antemão parâmetros que o mensurem. Contudo,
essa explicação é ainda incompleta. Se, por um lado, ela parece garantir a possibilidade
de aproximar a tarefa do crítico às obras, por outro em si
mesma, depurada do sujeito em relação à qual se constitui; depois, se retiramos do crítico
a possibilidade de ir além do que o próprio objeto dispõe, qual seria a tarefa da crítica
senão simplesmente reproduzir a estrutura cultural dominante, isto é, reforçar o mesmo
nexo de imanência dado pelo objeto? Concebemos que uma alternativa interessante e
ainda atual sobre a tarefa da crítica imanente
pode ser encontrada na filosofia de Theodor Adorno.
Assim, pretende-se discutir, em três momentos, o sentido de crítica imanente na
obra de Adorno e suas possíveis contribuições para os estudos literários: primeiramente,
consideraremos sua análise sobre o declínio da crítica literária na Alemanha no contexto
do pós-guerra, que acompanha seu diagnóstico sobre a crise da experiência artística
Zur Krisis der
Literaturkritik]; num segundo momento, exploraremos a relação que a ideia de crítica

adorniana é necessariamente dinâmica; por fim, procuraremos desenvolver mais


especificamente quais podem ser as contribuições de , dialética,
em contraposição à forma mais corrente com que se trata d , ou
intrínseca, das obras literárias.
Ainda que o interesse de Adorno pela literatura se manifeste na totalidade de seus
escritos, apenas a partir da década de 1950 o filósofo voltou-se extensivamente à análise
de obras literárias. Essa não é, como veremos, uma mera curiosidade biográfica. Ao
retornar à Alemanha em 1949, Adorno deparou-se com a crise que acometia a produção
e circulação literárias no contexto do pós-guerra, marcadas pelos vestígios ainda presentes
da política cultural nazista.
suprimida
e Kunstbetrachtung],

2756
escritor de resenh (ADORNO, 1992, p. 305, tradução
nossa). Diante desse diagnóstico, Adorno sustentou que o crítico literário só poderia fazer
justiça à sua tarefa caso
responsabilidade, sem nenhuma consideração pela aceitação pública e por constelações

esse argumento ao longo do texto, Adorno defende que o lugar da crítica permanece ali
onde o sujeito consegue abrir-se à particularidade dos objetos literários, sem neles projetar
categorias ou necessidades extrínsecas. Mas como isso seria possível diante de uma
conjuntura social cada vez mais integrada, que parece não fornecer sequer condições
propícias a um pensamento liberto?
é precisamente uma tomada de partido
frente a essa situação. Nesse texto, contudo, Adorno não fará uma apologia da liberdade
do crítico e de sua função revolucionária, mas começará indicando que o papel social da
crítica sempre esteve ancorado na organização do mercado na sociedade burguesa e, dessa
feita, conformado a a existência da crítica cultural, qualquer que

(ADORNO, 1998, p. 14). Mas antes que se pense que aqui Adorno constrói uma tese
derrotista sobre a impossibilidade de uma reflexão liberta, é preciso demarcar que esse
diagnóstico não invalida a importância da crítica cultural. Pelo contrário, para que se
recuse o aspecto afirmativo e ideológico da cultura, constata Adorno em outro texto
igualmente relevante -la [...] ao
mesmo tempo [em que] dessa participação se extra
(ADORNO, 2001, p. 18). O que se quer mostrar é que o crítico seria capaz de, ao imergir
plenamente nos objetos culturais, trazer à tona os mecanismos de dominação presentes na
própria cultura, revelando seu estado falso. Para que isso ocorra, contudo, seria necessário
pensar numa versão dialética da crítica cultural, a saber, em um tipo de cognição que,
embora se volte inteiramente à estrutura do objeto, mantenha ainda em perspectiva a
possibilidade de romper o seu fechamento, de ir além do que nele é simplesmente posto,
e é essa noção de crítica dialética de orientação hegeliana que Adorno defenderá ao
longo de seus textos.
Chegamos, então, a um ponto fundamental de nossa exposição: crítica
scendência e imanência, não podem ser tomadas como
posições estanques. Embora Adorno privilegie o exercício da crítica imanente e
pressuponha o primado da obra, este exercício não pode ser amortizado numa análise

2757
cerrada, mas deve conduzir à liberdade da reflexão. Adorno concebe que
liberdade, sem uma consciência que transcenda a imanência da cultura, a crítica imanente
seria inconcebível. Só é capaz de acompanhar a dinâmica própria do objeto aquele que
não estiver complet (ADORNO, 1998, p. 19). Pode-se dizer
que, na chave da Teoria Crítica, o teórico tanto participa da cultura quanto vai além da
mera descrição dos fenômenos culturais que analisa, isto é, ao dedicar-se rigorosamente
aos aspectos imanentes de um artefato ou fenômeno cultural, faz-se necessário perceber
como nele se registram disposições históricas mais amplas e tendências de transformação
social a serem postas em movimento. Segundo essa concepção de teoria crítica, como
afirma Nobre, -se a dizer como as coisas funcionam, mas sim
analisar o funcionamento concreto das coisas à luz de uma emancipação ao mesmo tempo
concretamente possível e bloqueada
p.17).
Sendo assim, Adorno esclarece que a crítica não pode se reduzir à mera escolha
abstrata entre procedimento transcendente ou imanente:

A teoria crítica não pode admitir a alternativa entre colocar em questão,


a partir de fora, a cultura como um todo, submetida ao conceito supremo
de ideologia, ou confrontá-la com as normas que ela mesma cristalizou.
Quanto à decisão de adotar uma postura imanente ou transcendente,
trata-se de uma recaída na lógica tradicional, que era o objeto da
polêmica de Hegel contra Kant (ADORNO, 1998, p. 21)

A conhecida polêmica de Hegel contra Kant diz respeito, grosso modo, à ideia de que ao
se considerar que o conhecimento de um objeto tem certos limites fixos, já se está
postulando a possibilidade de superar esses mesmos limites.
própria oposição entre um conhecimento que se imponha de fora e um que se imponha de
dentro torna-
(ADORNO, 1998, p. 24)

instrumental, de um modelo de razão que separa esferas mediadas da cultura a fim de


melhor manipulá-las e conformá-las a estruturas já vigentes. Seria forçoso reconhecer,
então, que no objeto há qualquer mediação dinâmica, processual, que deve ser iluminada
pela crítica. Como assevera -se de modo dinâmico
(ADORNO, 1998, p. 19)
Mas como se daria essa mediação no caso específico da crítica literária? Ou seja,
de que modo um crítico poderia iluminar as conexões entre a estrutura formal de um texto

2758
e a estrutura social de que ele participa, apontando para aqueles potenciais não realizados
da sociedade? Para Adorno, essa mediação não se daria simplesmente pela reconstrução
do momento histórico em que a obra foi produzida, tampouco por uma recomposição das
intenções originárias do autor. Pelo contrário, ele estava se colocando precisamente contra
uma certa apropriação da escola de Dilthey
e sua concepção de hermenêutica (Cf. ADORNO, 2002, p.345, tradução
nossa)
EY apud GRONDIN, 2012, p. 34).
Assim, durante a interpretação de uma obra seria possível reconstruir os registros da
vivência (Erlebnis) historicamente determinada do autor. A concepção de interpretação
crítica sustentada por Adorno, no entanto, seguiria o caminho oposto: o que interessa não
é recompor as vivências originárias que compõem uma obra, como se isso de súbito
iluminasse todo o complexo de sentido do texto e sua historicidade intrínseca, mas
-
(Erfahrung) ou, mais propriamente, como a obra comunica
o que ela se recusa a comunicar: os antagonismos sociais não resolvidos retornam às
obras de arte como problemas imanentes à sua forma (ADORNO, 2002, p.6, tradução
nossa). Ao fixar-se nesses antagonismos, e não no que é simples e diretamente expresso
pela obra, é que o crítico pode acessar o conteúdo social sedimentado no objeto.

A interpretação social [...] de todas as obras de arte não pode portanto


ter em mira, sem mediação, a assim chamada posição social ou inserção
social dos interesses das obras ou até de seus autores. Tem de
estabelecer, em vez disso, como o todo da sociedade, tomada como
unidade em si mesma contraditória, aparece na obra de arte; mostrar em
que a obra de arte lhe obedece e em que a ultrapassa. O procedimento
tem de ser, conforme a linguagem da filosofia, imanente. (ADORNO,
2003, p. 67. ênfase nossa)

Para que se tenha um exemplo mais concreto de como esse procedimento


imanente poderia ser realizado
fraqueza de certos recursos interpretativos da época: a fim de tornar mais compreensível
a estrutura hermética dos textos de Kafka, frequentemente os críticos recorriam seja a
conceitos retirados da psicologia, seja a uma reconstrução da biografia do autor ou mesmo
a ideias derivadas de uma abordagem teológica. Algo comum ainda hoje. Na contramão
dessas perspectivas em que o sujeito projeta de antemão sobre o objeto diretrizes que
permitem organizar as suas descontinuidades internas, Adorno reivindica a necessidade
de (ADORNO, 1998,

2759
p. 239). O esforço do crítico por se manter nas lacunas, nos elementos inconclusivos e
resistentes à interpretação, faz justiça a um texto que, ao evitar ser facilmente interpretado
e assimilado, recusa-se também a participar do ciclo de reprodução da cultura. Pode-se
dizer que o que Adorno perseguia era uma nova forma de cognição das obras literárias,
uma forma que não aplainasse sua negatividade interna. Naquele contexto das décadas de
1950 e 1960, insistir na negatividade das obras como índice de sua pertinência social
significava também uma tomada de partido a favor da arte mais avançada e da experiência
que essa arte cobrava à história, contra as concepções como a do New Criticism, por
exemplo, que considerava possível compreender o texto apenas por ele mesmo.
Se mantivermos em foco todas essas ideias, o conhecido texto
, publicado em 1958, nada mais é do que uma tentativa de levar a cabo esse novo
modelo cognitivo para a crítica. O estilo ensaístico que Adorno tanto evoca diz respeito
a uma forma flexível e fluida de apresentação de ideias, um modo de não submeter o
objeto estudado às regras cartesianas do método expositivo, apontando assim para a
possibilidade de dar voz àqueles elementos inconclusivos que se encontram numa obra
e essa é a de Beckett, Kafka, Proust, etc. As
interpretações expostas na forma do ensaio, diz Adorno
e ponderadas, mas são por princípios superinterpretações (ADORNO, 2003, p. 17)
seguindo nossa exposição, são radicadas naquele tipo de imanência dialética, de uma
forma de cognição da obra que não se deixa envolver completamente por seus limites
e é isso que confere sua riqueza e que aproxima o ensaio do que Adorno chama de

Para Adorno, uma vez que a obra literária não é simplesmente um objeto dado,
mas um complexo de contradições históricas formalmente sedimentadas, é indispensável
uma reflexão que propicie o descerramento desses conteúdos através dos conceitos,
através da filosofia.
obras de arte nada além da 2, p. 352, tradução nossa),
o que se quer evocar é um pensamento filosófico que trabalha a partir daquilo que foi
iluminado pelo procedimento imanente, que não admite de antemão conceitos e
sistematizações. Nesse sentido, pode-se dizer que o sujeito deve se abrir plenamente à
experiência do objeto, seguir suas linhas fundamentais, e permitir que o trabalho
conceitual conceda uma visão mais ampla da experiência que o objeto suscita, da verdade
social para a qual ele aponta.

2760
Mas seria ainda necessário notar que, ao reivindicar a importância do
procedimento imanente para a compreensão e crítica das obras de arte, Adorno estava
também se contrapondo a uma noção limitada de análise imanente de obras, que o
filósofo já identificava como comum à prática acadêmica:

[A] análise imanente de obras, através da qual o academicismo esperava


curar-se de sua alienação da arte, acabou tomando para si o caráter
positivista [...]. A rigidez com a qual ela se concentra no objeto facilita
a rejeição de tudo aquilo que [..] não está presente no objeto, que não é
simplesmente dado. (ADORNO, 2002, p. 348, tradução nossa)

Nesse trecho, Adorno aponta claramente para aquilo que há de empobrecedor na simples
análise imanente da obra, ou seja, na análise que se atém de modo positivo aos detalhes
do objeto e esquece de se encaminhar à reflexão segunda
Esse seria o lugar da estética filosófica: direcionar as características
particulares de uma produção cultural para além de si mesma, para a universalidade dos
conceitos. Em outra importante passagem da Teoria Estética [1970], Adorno esclarece
essa relação:

A estética filosófica, aliada à ideia de análise imanente da obra, tem seu


ponto focal ali onde a análise imanente nunca alcança. A segunda
reflexão deve empurrar os fatos complexos que a análise imanente
estabelece [...] além dela mesma a fim de penetrar o teor de verdade
[das obras] (ADORNO, 2002, p. 348 tradução e ênfase nossas)

Análise imanente e reflexão filosófica, então, são dois momentos necessários a


essa concepção mais ampla de crítica imanente, ou de crítica dialética das obras. Se não
quisermos que a crítica se degenere em mero procedimento analítico, numa dissecação de
textos que apenas corrobora o pensamento instrumental e cientificista já tão reproduzido
academicamente é preciso pensá-la num quadro conceitual que dê espaço para essa
segunda reflexão. Ela não pode manter-se como conhecimento restrito, sob pena de
perder esse instante em que consegue exceder os limites dados pelo objeto limites que,
como discutimos, já apontam para seu próprio esboroamento e indicar sua pertinência
social e histórica. Diante desse quadro, pode-se perceber que a Teoria Estética de Adorno
tem seus fundamentos numa posição teórica que pretende ir mais além das obras, que
pretende delas extrair um teor de verdade:

A situação histórica da arte registra demandas históricas concretas. A


estética começa precisamente com a reflexão sobre essas demandas. [...]
Já que nenhuma obra de arte é capaz de resolver por completo sua
tensão imanente, [...] a teoria estética não deve se contentar com a

2761
interpretação de obras dadas e seu conceito. Por se voltar a seu conteúdo
de verdade, a estética é compelida enquanto filosofia, para além das
obras (ADORNO, 2002, p. 359, tradução nossa)

Exilar o momento da análise imanente de sua contraparte necessária, ou seja, uma


reflexão filosófica, só contribuiria para empobrecer a tarefa do crítico e arrastá-lo de volta

mesmo tempo, a Estética Filosófica, separada dessa atenção à dinâmica própria do objeto,
seria vazia e abstrata, um mero campo de debates sobre conceitos de arte já desgastados,
privados de relevância social. Se Adorno, através da noção de crítica imanente, abriu um
caminho importante para que se pense a mediação entre o estudo atento e aproximado dos
objetos culturais, por um lado, e a reflexão filosófica, conceitual, de outro, seria o caso
de hoje perguntarmo-nos quais são as vias possíveis para que se mantenha viva essa
mediação.

Referências

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_________________. Notas de literatura I. Tradução de Jorge de Almeida São Paulo:


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Wernet e Jorge Mattos Brito de Almeida São Paulo: Ática, 1998.

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Editorial, 2012.

NOBRE, M (Org.). Curso Livre Crítica de Teoria Crítica Campinas: Papirus, 2008.

2762
1

PENSAR AS DEMANDAS: IMPLICAÇÕES ÉTICO-ESTÉTICAS DA


ESPECTROLOGIA DE JACQUES DERRIDA NAS TEORIAS DA NARRATIVA
Ravel Giordano Paz (UEMS)

Resumo: O artigo sintetiza um percurso crítico, do próprio pesquisador, de discussão de textos


narrativos pelo viés do motivo do espectro a partir de Jacques Derrida, acenando, ao final, com
questões colocadas pela imbricação entre demandas críticas e autorais enquanto radicalização
desse viés. O primeiro passo desse percurso consiste em expor os postulados da aproximação
entre a espectropoética derridiana e as teorias da narrativa, aproximação esta inicialmente
realizada num cotejo com a teorização de Mikhail Bakhtin, e no qual os elementos
estabilizadores dos conceitos bakhtinianos, com suas instâncias enunciativas relativamente
independentes, mostram-se vulneráveis à desconstrução. Em seguida, expõe-se a aplicação
desses postulados, em diferentes graus de radicalidade, na abordagem de obras de Edgar Allan
Poe, Machado de Assis, Bernardo Élis, Miguel Jorge, Clarice Lispector e Kurt Vonnegut.
Finalmente, propõe-se outro texto de Poe, O mistério de Marie Rogêt , como exemplo de
narrativa que exige a abordagem a abordagem da referida imbricação crítica.

Palavras-chave: Espectro. Narratividade. Jacques Derrida. Literatura e filosofia.

Em linhas gerais, este artigo constitui uma tentativa de abordagem sistemática de


uma problemática teórica que emergiu ou se esboçou por vezes nem isso, mantendo-se
apenas implícita em diversos trabalhos que produzi nos últimos anos. Mas antes de
partir para a indispensável, ainda que sintética, revisão desse percurso, é obviamente
necessário tentar expor os principais elementos da problemática em questão,
considerando, inclusive, a forma como a vejo hoje.
Essa problemática tem seu ponto de partida, ou pelo menos de inflexão, no que
se refere a meu percurso acadêmico, no pensamento de Jacques Derrida; mais

ainda no motivo do espectro, trabalhado particularmente no volume Espectros de Marx


(DERRIDA, 1994); motivo este, por sua vez, absorvido, em meu percurso, a uma

desde o Mestrado, a partir sobretudo de Bakhtin.

2763
2

deslocamento, já que o espectro derridiano não constitui uma intervenção no campo das
teorias da narrativa. Por outro lado, é importante notar que, no delineamento desse
motivo filosófico, Derrida se vale amplamente de um motivo literário o fantasma do
pai de Hamlet , cujo pertencimento ao gênero dramático tem suas próprias implicações
mas não deixa de constituir um meio-caminho para esse deslocamento. 1 Mais que isso,
porém, alguns dos elementos ou motes que caracterizam ou, menos que isso, esboçam
o motivo do espectro tornam essa apropriação muito sugestiva para ser desprezada:
entre eles os do espectro como aquele (ou aquilo) que vê sem ser visto e como,
simultaneamente, um mais-de-um e um menos-de-um; e mesmo a ideia, ligada a essa
multiplicidade-contraditoriedade constitutiva, de que ele não chegaria a constituir um
ponto de vista, mais reforça a sugestão do que a interdita em que medida, afinal, o
narrador constitui realmente um ponto de vista? , até porque em outro lugar Derrida

O fato é que o confronto da teoria bakhtiniana da polifonia e do dialogismo pela


espectrologia2 derridiana produz pelo menos dois questionamentos radicais, de certo
modo definitivos, no que se refere à primeira: primeiro, da ideia de uma instância
autoral-narracional plenamente configuradora e articuladora das vozes em jogo na
diegese narrativa; segundo, da relativa independência dessas vozes, seja entre si ou em
relação à referida instância configuradora. O principal elemento catalizador desses
questionamentos é a herança de Freud no pensamento de Derrida: enquanto as
formulações de Bakhtin pressupõem a plena consciência da instância configuradora
mais ampla em relação à diegese e a integridade de cada uma das consciências figuradas
nela, na espectrologia derridiana o inconsciente tem importância capital: de seu lugar
impreciso, o espectro não apenas vê sem ser visto, mas se constitui numa fonte de
injunções, de demandas quiçá invisíveis porém prementes, quando não inesquiváveis.
O espectro, portanto, radicaliza a ideia de Derrida exposta magistralmente por
Joanildo Burity (1995), num artigo fundamental em meu percurso de que o si mesmo
é constitutivamente habitado pelo outro. E é no emaranhado constituído pelas infinitas
alteridades em suas infinitas implicações mútuas que o motivo das demandas se insinua
como detentor do paradoxal valor de uma imprecisão adicional. Minhas demandas são
1
Some-se a isso o fato de a teoria marxista da História ser também uma narrativa da História, aliás
2
No original, hantologie, um trocadilho intraduzível de hante com ontologie.

2764
3

ao mesmo tempo o que tenho de mais íntimo e de mais irredutível à suposta unidade de
minha consciência, não apenas porque não posso jamais estabelecer com segurança
porque,
ainda quando silenciadas ou ocultas do mundo, é sempre ao mundo que elas se dirigem,

demandas surge em meu ser, de forma expressa ou não, consciente ou não, é porque o
demando, ou porque ele me demandou de forma eficaz, de modo que sua demanda de
alguma forma tornou-se minha. Por isso, enunciar um outro é enunciar-me, assim como
enunciar-me é enunciar infinitos outros, que me constituem desde sempre ou desde
incontáveis momentos, inclusive o da enunciação.
Pensar as demandas, portanto, é pensar o outro na dupla radicalidade de sua
singularidade irredutível e de suas implicações com o que quer que estabeleça algum

pretender que constitua não possa se fixar puramente à mercê de nossas operações
mentais sobre ele, ou seja, a despeito de nós mesmos. Assumir as consequências disso
no âmbito da atividade crítica inviabiliza, no mínimo problematiza, a mera

ou menos afeitos a eles. Não apenas a noção de fechamento ou autonomia da obra


literária
constitui de outras tantas, que por sua vez não se reduzem à de um autor mas, tanto
quanto ela, a suposta autonomia crítica se veem radicalmente desestabilizadas.
Minhas próprias tentativas de pensar as questões da narrativa ou melhor, de
diferentes narrativas a partir da espectrologia derridiana de certa forma traçam um
percurso que vai de uma postura objectual extrema, nada menos que tipológica,
constituindo, portanto, uma ingenuidade extrema ou não tão extrema, já que sem
dúvida continha um grão de má-fé , à tentativa de lidar com esse complexo de
implicações na amplitude que esbocei acima (que é o que tentarei fazer aqui), passando
pela gradual assunção dessa amplitude.
Da primeira dessas tentativas (PAZ, 2004), o principal ganho foi a tentativa de
estratégias espectrais nos
autores abordados, Edgar Allan Poe e Machado de Assis; principalmente neste, onde as
segundas se sobrepõem às primeiras, obrigando ao seu reconhecimento. Nesse sentido,

2765
4

trabalhos onde a discussão dessas estratégias e elementos espectrais de cunho mais geral
ou seja, não vinculados, necessariamente, aos temas fantasmagóricos se aprofundou
consideravelmente. Outro elemento importante era a articulação da questão da
espectralidade com a da temática social; mas, embora derivado diretamente da proposta
de Derrida em Espectros de Marx, esse dado era também um elemento problemático no
texto, já que essa temática constituía um elemento subsunsor da própria espectralidade.
De um modo geral, a maioria dos textos que redigi e publiquei posteriormente
constituíram explorações e aprofundamentos desses dois caminhos básicos: a análise
temático-formal e o fundo temático específico constituído pelos temas sociais, aos quais
se acrescentaram, progressivamente, temas psicanalíticos ou seja, temas analisáveis
por um viés psicanalítico , também estes de certa forma demandados pelo viés
derridiano, em cujas ideias o diálogo com Freud é fundamental.
Um motivo constante, nesses textos, é o da manifestação de elementos espectrais
enquanto elementos ligados a uma lógica opressora, o que corresponde a uma espécie de
unilater mais ou menos que

injunções, responsabilidades legadas a outrem; em suma, enquanto figura investida de


um poder
pressupõe uma lógica dicotômica, demandante de um polo que suplemente (e
simplifique, por outra unilaterização) as dimensões excluídas do motivo derridiano;
assim, inversamente ao motivo do espectro enquanto força injuntiva, eu propunha e
explorava o motivo do espectro enquanto figura
às demandas mais fundamentais, não raro se manifestando enquanto figura da
coletividade, a própria coletividade, aliás, constituindo um topos importante.
O trabalho que reproduz essa lógica dicotômica de forma mais cerrada é um
artigo sobre o escritor goiano Bernardo Élis (PAZ, 2008), no qual novamente a
abordagem de temas espectrofantasmais se articulava com a análise de construções
formais, mas agora numa leitura mais voltada para os aspectos sociais da representação,
até em vista do projeto literário, de cunho marcadamente político, do escritor goiano.
Em linhas gerais, eu tentei mostrar como certas davam lugar
a uma configuração formal próxima do caótico no grande romance de Élis, O tronco,
onde a profusão de eventos, mais do que fantasmais, monstruosos, por pouco não

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5

reduzia os seres acuados pela guerra a estados como o horror e o medo e às demandas
básicas de sobrevivência e subsistência.
Justamente no âmbito desse processo, no entanto, eu apontava um tipo de
fracasso da imbricação político-literário no projeto de Élis, na medida em que o esboço
de um horizonte utópico, ou melhor, de um novo horizonte histórico-social no
atendimento do escritor a uma demanda ética de seu projeto, por sua vez,
provavelmente, ecoando as injunções do realismo socialista , ao fim do romance, me
parecia muito pouco palpável em face dos eventos e seu desenlace. Como contrapartida
senão estético, ideológico), eu invocava a imagem derridiano-
benjaminiana que de certa forma purga o profetismo
marxista de sua rigidez teleológica, devolvendo-lhe (e, ao mesmo tempo, atenuando)
sua condição fundamental de utopia. Isso, porém, praticamente à mercê do projeto
autoral, de modo que era a potência (auto)desconstrutora da espectralidade que se
sublinhava aí, constituindo, talvez, o grande ganho, em meu percurso, desse artigo.
De um modo geral, nos trabalhos que se seguiram tentei abordar obras e autores
em alguma medida mais afeitos aos postulados da desconstrução, ou seja, que
comportassem dimensões desconstrutoras, e mesmo autodesconstrutoras, mais
conscientes. De um modo geral, esses trabalhos comportam um processo, embora não-
linear, de abertura para as diferentes implicações do motivo do espectro nos textos

O primeiro desses textos tinha como objeto principal o romance A hora da


estrela, de Clarice Lispector. Em linhas gerais, eu apontava na relação profundamente
paradoxal do narrador Rodrigo S. M. com a protagonista Macabéa uma desconstrução
das propensões identitárias e subsunsoras (inclusive no que tange à representação dos
conflitos sociais) do modernismo brasileiro. Às sínteses deste, Clarice oporia e não,
talvez, sem objetivo polêmico face ao campo literário a recusa de qualquer síntese e,
ao mesmo tempo, a síntese-representação conscientemente redutora que constituiria a
própria Macabéa. De par com isso, haveria a ideia igualmente paradoxal de uma espécie
-sentimento de um tempo fechado, imobilizado pelo
estado de alienação de uma realidade opressiva, e, ao mesmo tempo, como contrapartida
da impossibilidade de se sondar qualquer futuro, um tempo infinitamente aberto; um
impasse- assim mesmo,
entre dois pontos finais, como uma interrogação aprisionada , um dos motes-subtítulos

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6

listados no início do romance. Também aí, portanto, se colocaria, e de forma muito mais
pertinente ou, pelo menos, mais diretamente suscitada pela obra , a questão do

Esse texto, no entanto, se ressente de defeitos muito crassos, que limitam o


aproveitamento do influxo e dos motivos derridianos; defeitos que incluem a
perspectiva dualista, presente na oposição já referida, e o teleologismo presente na

Macunaíma) ao romance em questão,


passando pela dita segunda fase modernista (Angústia, de Graciliano, e algo do
en passan ainda, pela própria obra clariceana, já que mesmo
em relação a esta A hora da estrela constituiria um artefato desconstrutor (agora, ao
contrário do caso de Élis, de forma inteiramente consciente).
Ainda que tenha algum sentido, esse percurso constituiu, no mínimo, um
empecilho metodológico: excessivamente preso a ele, o trabalho explora os temas com
excessiva superficialidade; assim, não aprofunda, por exemplo, a questão

problemática que enlaça imperiosamente a representação, os campos enunciativos, a


instância autoral e mesmo a recepção.
No entanto, essa fixação histórico-teleológica se dilui consideravelmente num
trabalho pouco posterior (PAZ, 2016), mais atento aos mecanismos das obras em
discussão. Trata-se de outro estudo sobre um autor goiano, versando sobre os romances
Caixote e Veias e vinhos, de Miguel Jorge. Em síntese, tentei demonstrar nessas obras,
principalmente na primeira, um processo de implicação mútua, mais que das vozes ou
ideias, dos corpos-subjetividades dos protagonistas. Muito mais que um jogo lúdico ou
mero vanguardismo, esse processo constituiria uma assunção, a nível formal, das
fraturas que informariam a subjetividade e as relações dos personagens, tornando suas
demandas particularmente exacerbadas, a ponto de se imporem, tal como no espectro
derridiano, dramaticamente ao outro. Longe de ser pacífica, portanto, essa complexa
coexistência intersubjetiva configuraria uma tortuosa e muito interessante, enquanto
representação-dramatização da vida humana na urbe contemporânea dialética de
entranhamento e estranhamento, de comunicação visceral e quase incomunicabilidade,
etc. das alteridades entre si.

2768
7

Vários de meus textos posteriores exploram variações desses motivos básicos,


dialetizados (ou complexificados) de diferentes formas por outros motivos, que
naturalmente eu busquei (ou julguei) extrair das próprias obras. Em nenhum deles,
porém, busquei explorar tal questão em todas as suas implicações, inclusive nas
inevitáveis implicações éticas para o trabalho crítico. Mais que isso, de um modo geral a
assunção da questão autoral não ativava a problemática ou, digamos, a dinâmica do
pensamento (ou dos motivos) das implicações e das demandas; naturalmente, porque
faltavam os termos necessários pra uma relação forte entre a instância autoral e algo que

relação na qual as demandas, mais que autorais, vitais do escritor as demandas vivas
de que os textos são rastros menos ou mais ricos sejam imperiosamente ativadas.
Naturalmente, os primeiros motivos-topoi necessários para se explorar tal
relação são os de ordem biográfica. Esses motivos praticamente se impuseram a mim ao
abordar, bem mais recentemente, num trabalho inédito, o romance Breakfast of
champions, de Kurt Vonnegut. Nessa obra, como é quase de regra em Vonnegut, o
biográfico e o ficcional se mesclam intensamente, aqui, porém, fazendo-o e
conscientemente com acentos psicanalíticos que aproximam essa obra de uma estética
dos extremos. Num jogo de implicações mútuas que entrelaça as figuras do autor, de
seu pai e de seu suposto alter-ego Kilgore Trout, Vonnegut entretece um enredo sutil,
interno à trama central, no qual os motivos do ânus e da violência sexual cumprem
papéis fundamentais, gerando ou sugerindo situações que tocam radicalmente ou seja,
para além da representação literária o vexaminoso e o inconfessável.
Também nesse caso, como no de A hora da estrela, a forte pertinência da leitura
pelo filtro da espectropética e do pensamento derridiano das demandas permite
sublinhar a radicalidade estética da obra sem explorar minúcias biográficas. No entanto,
ao me colocar o problema das questões éticas implicadas num tal aproveitamento da
radicalidade filosófica da desconstrução, deparo-me com um fato e uma hipótese. O fato
é o de que nenhum desses artigos, mesmo em face da radicalidade desconstrutora de

crítica; a hipótese, de que


desconstrução, mas aos quais de alguma forma ela pareça confrontar com suas questões,

enquanto demanda, também, de seu desvelamento , que a amplitude do

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8

não só a figura-entidade autoral como a entidade receptiva, decerto também esta


submetida a processos figurais, mas cujo perscrutar, ou seja, autoperscrutar exige o
autorreconhecimento, mais que enquanto voz abstrata, portadora de tais ou quais
ser demandante.
O texto literário que possibilitou tal discussão (cujo desenvolvimento completo
constituirá um artigo à parte) foi um dos contos mais singulares de Edgar Alan Poe: O
mistério de Marie Rogêt . A singularidade desse conto não reside tanto em seu enredo
quanto na forma de sua narração. Constituindo um dos chamados contos de raciocínio
de Poe trata-se, ao lado dos mais conhecidos O crime da Rua Morgue e A carta
roubada , de uma das três histórias protagonizadas pelo detetive amador Auguste Dupin
, O mistério de Marie Rogêt incorpora de forma algo extrema, à exposição narrativa,
a suposta objetividade do método analítico-dedutivo de Dupin.
Um traço marcante, no texto, é a esquiva à forma-aventura que, mesmo
residualmente, vincula o moderno conto policial às formas épicas, e que no caso de Poe,
tido geralmente como o criador do gênero, se manifesta sobretudo na história da Rua
Morgue. Essa esquiva, como veremos, não deixa de se ligar a algo semelhante a um
recalque ou denegação, mas é, de fato, muito marcada: basta notar que em nenhum
momento Dupin sai de casa para tratar do caso o assassinato da personagem nomeada
no título , contentando-se com informações colhidas pelo narrador anônimo, seu
amigo, e depois por ele próprio nos jornais locais. A rigor, mais que com os fatos a
serem desvendados que não parecem lhe opor grandes dificuldades , o grande embate
travado pelo detetive é um embate discursivo: Dupin passa em revisão os argumentos
dos jornais e da própria polícia, expondo-lhes a inconsistência e, sobretudo, o caráter
antifilosófico, opondo-
quase puramente racionalista, soma-se a atitude de indiferença de Dupin pelo caso, ao
qual permanecia alheio até ser procurado pela polícia, e ao qual só decide dedicar-se em
vista de uma boa recompensa, não especificada (o que, longe de minimizar, adensa
sugestivamente seu valor). Em relação à própria vítima essa atitude permanece quase
inalterada: apenas ocasionalmente, e muito en passan, o detetive amador lhe dedica
algum adjetivo vagamente solidário.
Tudo isso contrasta com uma situação enunciativa ainda mais singular que a
pr O mistério de Marie Rogêt , conforme

2770
9

diversos elementos sinalizam na primeira edição e um texto introdutório do próprio Poe


explicitará nas seguintes, foi um crime real, ocorrido em Nova York, e que, sob o
pretexto de tematizar as coincidências inexplicáveis da vida, o escritor transplanta para
Paris, alterando, por vezes muito levemente como no caso da própria Marie Rogêt,
, os nomes das pessoas e jornais envolvidos. No texto
introdutório das edições subsequentes à primeira, Poe reconhece e reivindica, num gesto
algo antiartístico, esse caráter derivativo, vinculando a ele seu objetivo, o qual seria
apenas realizar uma espécie de investigação paralela, e à distância, do crime factual.
Tratar-se-ia, em suma, muito mais de uma demonstração de argúcia analítica do que de
talento literário. No fim desse texto, o escritor chega a reivindicar o acerto, em detalhes,
das conclusões de Dupin (ou seja, das suas conclusões). Entretanto, não só o fim do
conto permanece relativamente aberto, com apenas indicações gerais de quem seria o
assassino, como, após a primeira edição, Poe efetuou modificações a fim de adequá-lo
ao então estado das investigações de então, mesmo assim sendo pouco convincente, no
cotejo com o resultado destas que também permaneceram inconclusivas , a
reivindicação de seus acertos.
Seja como for, nada disso impediu que Poe continuasse a dar seu texto como um
conto, o que nos convida a buscar nele elementos que, via de regra, configuram a
riqueza e a complexidade dos textos literários. Uma primeira hipótese seria a de que
haveria no conto uma espécie de subtexto, uma construção dramático-narrativa cujos
elementos propriamente dramáticos em sentido lato seriam submetidos a um
o
que, a rigor, é impossível determinar , essa hipótese nos convida a inquirir sobre algo à
primeira vista fundamental mas que a própria forma objetivista parece relegar a um
lugar de relativa desimportância: a significação do, digamos, enredo interno à história
da investigação de Dupin ou seja, a história ou as histórias da morte de Marie Rogêt ,
tanto em seu ritualística global quanto em seus elementos pontuais, assim como em suas

tuais

desconstruir. Por questões de espaço, não poderemos senão esboçar esse duplo
movimento, que por sua vez se desdobrará em uma outra duplicidade.

2771
10

Em linhas muito sumárias, o caso de que Dupin se ocupa consiste na violação


sexual e no assassinato de uma jovem lojista, tida como querida dos clientes do
comércio onde trabalhava e tornada notória por um desaparecimento anterior, meses
antes do definitivo, ou melhor, do que se consumaria com sua morte. Entre as hipóteses
analisadas e refutadas por Dupin estão as de que o criminoso seria seu noivo ou um
amigo possivelmente apaixonado, o mesmo responsável pelo reconhecimento do corpo.
No entanto, a hipótese contra a qual o detetive amador mais se empenha é a de que os
criminosos seriam um bando de vadios, como os que perambulam pelas margens do rio
onde seu corpo foi encontrado. Em oposição a isso, Dupin sustenta que o crime teria
sido cometido por um único homem, provavelmente um sedutor inconformado com as
recusas da jovem, e um ponto capital oriundo do mar.
Ora, apenas esse breve esboço é extremamente rico em sugestões; sobretudo
essa última insistência, que parece, de fato, conferir a esse conto algo pré-naturalista
uma espécie de subtexto romântico. Na própria obra de Poe o mar se reveste de uma
significação especial, ou, mais propriamente, abissal, como atestam o conto
Manuscrito encontrado numa garrafa e o romance A narrativa de Arthur Gordon
Pym. Há, além disso, a insistência na própria unicidade do assassino. Numa obra eivada
de elementos não só metafísicos como fortemente egotistas vide, por exemplo, a busca
, marcada pela afirmação de
subjetividades fortes, algo semelhante a uma cumplicidade se sugere aí. O assassino
anônimo do conto seria, então, uma variação do arquétipo romântico-poeano do grande
demente criminoso; Usher, por exemplo.
Entretanto, mesmo descontada a narração objetivista, certos elementos subtraem
esses elementos à esfera de uma configuração romântica; dentre eles, sobretudo, o
inegável rebaixamento
Rogêt, de uma espécie de leviandade, à qual se soma um traço caracterizador
evidentemente negativo e de possíveis conotações racialistas (vide, a esse respeito, as
implicações racialistas da primeira narrativa protagonizada por Dupin, O crime da Rua
Morgue): o excesso de pelos que, conforme Dupin deduz pelo depoimento do amigo da
jovem que reconheceu seu corpo, cobririam seu braços. Enfim, Marie Rogêt não é uma
das personagens quase etéreas de Poe, como a Ligeia do conto homônimo ou a
personagem de O retrato oval. Na intersecção de tudo isso com o objetivismo algo
extremo, quase acintoso, da narração, sugere-se um complexo ideológico onde o

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egotismo, o desprezo pelo coletivo (ainda que pela via paradoxal de uma

racismo e a misoginia seriam motivos tão sutis quanto determinantes na construção (ou,
que seja, reconstrução) narrativa. E na confluência desse complexo com a voz de um
narrador anônimo que se rende incondicionalmente à superioridade do amigo nomeado
tanto aqui quanto em A carta roubada há sutis elementos de uma relação
sadomasoquista, não sexual, bem entendido, entre o narrador e Dupin sugere-se,
talvez, uma homoafetividade reprimida.
É inevitável, nesse ponto, a impressão de que estou, como se diz, avançando o
sinal. Não obstante, cada uma das inferências que me atrevi a fazer constituíram
pequenas e abusivas violações da imanência do conto. Isso apenas salta aos olhos de
forma mais evidente ao tocar em questões que se vinculam a uma esfera íntima, que
sugere um entrelaçamento entre as demandas do narrador e as do autor. O que me
cumpre perguntar, portanto, é em que medida essa inquirição de sentidos mais fortes
num texto supostamente superficial, ainda que motivada pelo incômodo ético suscitado
por ele, não deve suas conclusões sobretudo às minhas demandas.
Afinal, também na mera escolha desse texto algo me demanda, de modo que é a
zona de uma intersecção que me cumpre explorar, e nessa exploração já não é uma
verdade sobre o mundo que me cabe extrair, mas, antes de mais nada, sobre mim
mesmo. Em suma, a contrapartida ética de uma inquirição radical sobre as implicações
éticas de um texto narrativo deve ser a disposição para sondar as implicações e
motivações do próprio crítico nesse ato; a disposição para questionar não só o lugar
absoluto do escritor mas também o do próprio crítico.
Assim, o que pode potencializar a discussão de problemáticas apenas inferíveis
-se do objeto,
remete a mim, a minhas demandas (o que, no fim das contas, constitui apenas a
assunção de algo geralmente oculto). Se me arrisco a romper o tênue fio entre o dado
objetivamente verificável e as problemáticas supostas, preciso me assumir como ser
implicado aí. E mesmo as problemáticas objetivamente verificáveis precisam remeter a
mim: pois não há transformação, aprendizado ou terapia que a arte possibilite que não
comece por nós mesmos. A injunção derridiana de partirmos sempre de nós mesmos, de
onde estamos e do que somos ou julgamos ser, revela-se aí em toda a sua radicalidade.

2773
12

Referências

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UFPE, Pernambuco, vol. 1, n. 2, 1995.

DERRIDA, J. Ecografias de la televisión. Entrevistas filmadas a Bernard Stiegler.


Buenos Aires: Eudeba, 1998.

DERRIDA, J. Espectros de Marx. Trad. de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume


Dumará, 1994.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. de Ricardo Corrêa Barbosa.


Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

POE, E. A. O mistério de Marie Rogêt. In: O escaravelho de ouro e outras histórias.


Trad. de Rodrigo Breunig e Bianca Pasqualini. Porto Alegre: L&PM, 1997.

PAZ, R. G. Nhola, o menino e outros espectros: a poética da desolação de Bernardo


Élis. In: Nonada. UniRitter, Porto Alegre, n. 11, ano 11, 2008.

PAZ, R. G. Os outros intestinos: a escrita experimental-visceral de Miguel Jorge. In:


Anais do XI Congresso da Abralic. USP, São Paulo, 2008. Texto disponível em
http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/034/RAVEL_PA
Z.pdf. Acesso em 10 de Maio de 2016.

A
hora da estrela Cerrados.
UnB, Brasília, n. 24, ano 16, 2007.

PAZ, R. G. Sombras sobre sombras: espectros do outro em Edgar Allan Poe e Machado
de Assis. In: Anais do IX Congresso Internacional da Abralic. (CD-Rom). UFRGS,
Porto Alegre, 2004.

2774
LITERATURA E FILOSOFIA NO SÉCULO XVIII: O POEMA
NARRATIVO HERÓI-CÔMICO

Samuel Carlos Melo (USP/ UEG)


Cilaine Alves Cunha (USP)

Resumo

Este trabalho é parte de pesquisa de tese de doutorado em desenvolvimento no Programa de


Pós-graduação em Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo.Tem como objetivo
efetuar análise de O desertor (1774), poema narrativo herói-cômico de Manuel da Silva
Alvarenga, à luz especificidade do sistema cultural do século XVIII. Para isso, parte-se da
discussão sobre as fronteiras entre literatura e filosofia no século XVIII, passando para a
conceituação do romance filosófico e o poema narrativo herói-cômico, e chegando à análise e
aproximação de suas estruturas binárias. Têm-se como apoio teórico, principalmente, os estudos
de Franklin de Matos, O filósofo e o comediante (2001) e A cadeia secreta: Diderot e o
romance filosófico (2004), Ivan Teixeira, Mecenato pombalino e poesia neoclássica (1999),
João Adolfo Hansen, Ilustração
católica, pastoral árcade et civilização (2004) e José Batista de Sales, O Poema Narrativo no
Brasil: das Origens a Mario de Andrade (2009).

Palavras-chave: Herói-cômico. Arcadismo luso-brasileiro. Ilustração católica. O romance


filosófico.

Introdução

O objetivo deste trabalho é efetuar análise de O desertor (1774), poema


narrativo herói-cômico de Manuel da Silva Alvarenga, à luz da especificidade do
sistema cultural do século XVIII. Para isso, torna-se imperativo, primeiramente, partir
da consideração da situação da Filosofia e da Literatura no Século das Luzes, cujas
fronteiras, como se verá adiante, não são de clara distinção, acarretando em
configuração específica na atuação do artista e do filósofo.

2775
Estilisticamente, a transição dos Seiscentos para o Setecentos se deu em um
da arte que, de acordo com Alfredo Bosi (1994), no século
XVII eram de aspect , engendrando as tendências estéticas que
marcam o Arcadismo: a busca pelo natural, o simples, o ritmo gracioso. Entretanto, o
autor acrescenta que

A Arcádia enquanto estilo melífluo, musicalmente fácil e ajustado a


temas bucólicos, não foi criação do século de Metastasio: retomou o
exemplo quatrocentista de Sanazzaro, a lira pastoril de Guarini (Il
Pastor Fido) e, menos remotamente, a tradição anticultista da Itália
que se opôs à poética de Marino e às vozes que na Espanha se haviam
levantado contra a idolatria de Góngora (41). Mas o que já se
postulava no período áureo do Barroco em nome do equilíbrio e do
bom gosto entra, no século XVIII, a integrar todo um estilo de
pensamento voltado para o racional, o claro, o regular, o verossímil; e
o que antes fora modo privado de sentir assume foros de teoria
poética, e a Arcádia se arrogará o direito de ser, ela também,
terária do Iluminismo vitorioso.
(BOSI, 1994, p.55).

Nesse sentido, para Bosi, é importante distinguir dois momentos da literatura do


século XVIII que, segundo ele, se justapõem: o poético, que se dá na utilização de
formas bem definidas encontradas no retorno à tradição clássica (Arcádia), e o

aos abusos da nobreza e do clero (Ilustração


diferentemente do jogo de signos da arte barroca, a estrutura significante da obra não
tem valor em si mesma, fazendo com que o poeta (o artista) e sua obra passem a
exercer, também, um papel pedagógico .
Franklin de Matos (2001) observa que, no século XVIII, não há fronteiras
precisas que separam a literatura da filosofia, o que, para ele, constitui um dos mais
marcantes traços do pensamento dos Setecentos. O filósofo, afirma Matos, passa a
praticar diversos gêneros, deixando de privilegiar o tratado como expressão filosófica,
não tendo mais o teólogo, o metafísico e o sábio como referências, preocupando-se,
agora, em ser útil:

Isso quer dizer que a maior de suas preocupações é a sociedade em


que vive, sua virtude por excelência é a sociabilidade, e a missão que
o guia, incitar os demais a praticá-la. Quer dizer também que, para
melhor convencer os homens, é preciso dialogar com eles, diversificar
os lugares e os meios de atuação, ganhar os salões, os cafés, as casas
de espetáculos, a exemplo de Sócrates que frequentava a praça
pública. Deste modo, o filósofo se torna romancista, contista, homem
de teatro. (MATOS, 2001, p.97).

2776
Observa-se, assim, que, de um lado, a filosofia encontra na literatura um meio de
diálogo com a sociedade visando o estímulo a sua prática e, de outro, a literatura deixa
de ser um modo privado de expressão e, a partir do pensamento iluminista, adquire
densidade filosófica, em que à estética justapõem-se a prática ideológica, assumindo,
também, como já foi dito, um papel pedagógico: união do útil ao agradável, conforme
ensina Horácio.

Literatura e filosofia no século XVIII: o romance filosófico

Como se viu, a peculiaridade do sistema cultural do século XVIII contribuiu


para uma configuração específica na atuação do artista e do filósofo, tornando
imprecisas as fronteiras entre filosofia e literatura. No caso do filósofo, a literatura
serviu como meio de diálogo com os homens, no intuito de que a verdade filosófica
ultrapasse a forma de conceito e chegue, também, à expressão sensível, deixando de ser
, na
MATOS, 2001, p. 197). Daí o interesse do filósofo
pela literatura, principalmente, com o romance filosófico.
De acordo com Franklin de Matos (2001), é em 1721, com a publicação das
Cartas Persas, de Charles Louis de Secondat, o barão de Montesquieu (1689-1755), que
esse tipo literário fixa-se definitivamente. Segundo o autor, no final do século XVII, o
imaginário europeu estava rodeado de estrangeiros (o selvagem americano, o sábio
egípcio, o árabe maometano, etc.) e suas crenças, leis e costumes específicos,

s impressões durante viagem até Paris,


as cartas de Usbek enviadas à Pérsia acabam por emparelhar intriga oriental e
investigação filosófica:

Como numa certa tradição que remonta à Grécia (aos diálogos de


Platão, por exemplo), aqui há um lugar para a aliança entre logos e
mythos, razão e fábula. A lição não é nova, mas está no fundo da mais
espantosa diversificação da expressão filosófica que jamais se
conheceu: no século XVIII, a filosofia se acomoda não apenas ao
tratado rigoroso, mas também ao diálogo, ao romance, ao conto, à
carta, ao ensaio, à peça de teatro, ao verbete de dicionário. (MATOS,
2001, p. 196-197).

2777
De forma dinâmica, a estrutura epistolar das Cartas, afirma Matos, consegue
abarcar todos os tópicos fundamentais do Iluminismo, como o governo, a natureza e
origem das leis, a escravidão, Deus, entre outros. Assim, a intriga oriental não é apenas
obre o medo

Montesquieu teve como principais sucessores Voltaire, Diderot e Rousseau.


Apesar disso, Franklin de Matos (2004) relata que o romance enfrentou resistência nos
séculos XVII e XVIII e observa que essa reserva era estética e moral. O autor ressalta
que o argumento moral foi utilizado, também, contra o teatro, porém, inutilmente, assim
como o argumento estético, dada sua reputação na Antiguidade, o que, afirma o autor,
não se deu com o romance, por esse não figurar entre as produções dos cânones da
Antiguidade e, por isso, rotulado Nesse sentido,
conforme o autor, a adesão ao romance no século VXIII se deu em um processo lento,
em que mesmo Voltaire, Diderot e Rousseau, responsáveis por alguns dos principais

(MATOS, 2004, p.22).

A tradição do poema narrativo e o herói-cômico no Século das Luzes

O poema narrativo é um gênero de longa tradição. As epopeias de Homero


(Ilíada e Odisséia) e Virgílio (Eneida) são os primeiros e grandes modelos desse gênero
na cultura ocidental. Têm-se como exemplos canônicos em língua portuguesa Os
Lusíadas (1572), de Camões (1524-1580)+-, O Uraguai (1769), de Basílio da Gama
(1740-1795) e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão (1722-1784). Apesar da vasta
bibliografia sobre cada obra individual desde Aristóteles, é inversamente proporcional a
essa longa tradição os estudos específicos do gênero, que insiram o poema narrativo na
literatura brasileira. Destaquem-
O poema narrativo no Brasil
1
(2009).
De acordo com Sales,

Relatório de estágio pós-doutoral apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGRS em


Porto Alegre, 2009, ainda não publicado.

2778
O poema narrativo caracteriza-se como a manifestação literária em
verso na qual se realiza a narração ficcional de fatos ou de ações
antropomorfizadas, com traços dramáticos, cômicos ou sérios e pode
ser de alcance universal, regional ou local, dada a presença ou a
ausência de grandiosidade. Dessa forma, o poema narrativo pode ser
classificado como épico, heroico ou herói-cômico (SALES, 2011).

O poema narrativo épico, a epopeia, objetivava a legitimação de regras, valores e


costumes de determinada sociedade, a consolidação de um poder, por meio da narração
dos feitos gloriosos de um herói representante de uma coletividade (Odisseu, Enéias,
Vasco da Gama). João Adolfo Hansen relata que o poema imitava [...] opiniões
consideradas verdadeiras nos campos semânticos das atividades discursivas e não
discursivas do todo social objetivo definido como corpo místico de estamentos
subordinados ao rei num pacto de sujeição (HANSEN, 2008, p. 19).
Dessa forma, a construção desses poemas deveria obedecer a regras rígidas
prescritas nos manuais de retórica para que a imitação fosse efetiva. Com o poema
herói-cômico, essa relação começa a se modificar. Segundo Sales,

O poema herói-cômico talvez possa ser compreendido como gênero


em transição entre o período genuinamente clássico e o moderno, a
partir da ascensão do romance e a sedimentação dos valores
românticos e burgueses. Neste sentido, compreende-se o hibridismo
do herói e do narrador do poema herói-cômico, no qual nota-se a
permanência de uma sintaxe elevada, palavras peregrinas e o estilo
solene para a narração de ações baixas e de um herói inferior, como se
lê n´O desertor, de Silva Alvarenga. (SALES, 2009, p. 59).

Apesar de narrar feitos de um anti-herói, fútil, inverso aos grandiosos das


epopeias, o poema herói-cômico preserva muitos elementos prescritos para a narração
de feitos de um herói grandioso em um poema clássico, no intuito de que no contraste
com a matéria fútil narrada chegue-se ao humor e à crítica. De um lado, tem-se um
narrador que busca cantar feitos grandiosos, mas, de outro, a matéria narrada é baixa,
ridícula, não havendo, portanto, a identificação do narrador com o narrado. No entanto,
a presença dos elementos é mantida, o narrador como representante dos valores
clássicos e o herói modificado, anti-herói, representante de comportamentos

Racionalista francês e um dos grandes mestres do poema herói-cômico, com Le


Lutrin (1674/1683), Nicolas Boileau Despréaux (1636-1711), definiu o poema herói-

2779
Car, au lieu que dans l´autre Burlesque Didon et Enée parloient
comme des Harengeres et des Crocheteurs; dans celui-ci une
Harlogere et um Harloger parlent comme Didon et Enée. (É um
burlesco novo, no qual entra-se em contato com outra linguagem.
Porque, no outro burlesco Dido e Enéias falam como costureiras e
cocheiros e neste novo burlesco uma costureira e um cocheiro falam
como Dido e Enéias. tradução nossa) (Apud POLITO, p.21, 2003).

Segundo Ronaldo Polito (2003), a inovação do poema herói-cômico em relação


ao burlesco está, exatamente, no contraste entre conteúdo e forma. Enquanto este insere
personagens grandiosos (deuses e heróis) em uma narração trivial, de linguagem
equivalente (c
situações baixas por meio do tom solene adequado às narrações de atos dos heróis
grandiosos dos poemas épicos. A origem do poema herói-cômico remonta ao século
XVII, no Barroco, que, ao valorizar o virtuosismo verbal, teria contribuído para o
desenvolvimento de uma nova espécie de sátira, que mescla em sua forma o burlesco e
o épico.
Tem-se, possivelmente, La secchia repta (1622), poema do italiano Alessandro
Tassoni (1565-1635), como o primeiro texto herói-cômico. Em língua portuguesa, de
acordo com Polito (2003), é possível que o primeiro poema herói-cômico escrito tenha
sido A monocléia, de frei Simão Antônio de Santa Catarina (1676-1733), composto na
primeira metade do século XVIII e publicado apenas em 1894. De acordo com o autor,
além dele, ainda há o registro de, ao menos, mais dois poemas desse período: Jornada às
cortes do Parnaso e o Foguetário. Entretanto, afirma o autor, o principal poema herói-
cômico português foi O hissope, de Antonio Dinis da Cruz e Silva (1731-1799), escrito
na segunda metade do século XVIII (entre 1770 e 1772), período em que se inicia uma
crescente na produção em Portugal, sendo ainda maior no século XIX, só diminuindo no
século XX.

Ilustração ambígua

Manuel Inácio da Silva Alvarenga, nascido em 1749, na cidade de Vila Rica, em


Minas Gerais, e falecido em 1814, na cidade do Rio de Janeiro, era filho de Inácio da
Silva Alvarenga, um músico mulato e pobre. Depois de seguir para o Rio de Janeiro,
onde fez os estudos primários, em 1771, embarca para Portugal, ingressando no curso
de Direito da Universidade de Coimbra, onde, no ano de 1776, obteve o Bacharelado

2780
em Direito Canônico. Em Portugal, estabelece diversas ligações literárias, relacionando-
se com poetas como Alvarenga Peixoto e, principalmente, Basílio da Gama, com o qual
manteve estreita amizade. Foi ainda nesse período como estudante que, por meio de
ia sido
apresentado pessoalmente ao Marquês de Pombal, embora não haja documento que
evidencie isso, conforme alerta em nota Ivan Teixeira (1999).
Em 1774, aos 24 anos, ainda em Portugal e com o pseudônimo de Alcino
Palmireno, publica O Desertor, iniciando, assim, suas atividades literárias. Ao voltar ao

formação ilustrada aproximava-o dos ideais da independência norte-americana e da

intervenção de D. Maria I, publica Glaura, obra que o elevou ao patamar dos principais
poetas do Arcadismo luso-brasileiro. Silva Alvarenga atuou ainda na imprensa como
colaborador do Patriota (1813-1814), o primeiro periódico cultural do Brasil.
O Desertor (1774) é o primeiro poema herói-cômico brasileiro. Constitui-se de
1.439 versos decassílabos heróicos brancos que são distribuídos em cinco cantos de
estrofes irregulares. A narração tem o intuito de criticar, a partir de uma noção de
Universidade calcada em conceitos ilustrados, a vida universitária e a universidade de
sua época, mais especificamente a Universidade de Coimbra, onde Silva Alvarenga,
como já foi dito, se formou em Direito canônico. A narração consiste na fuga de
Gonçalo para abandonar os estudos na Universidade de Coimbra, após ser convencido
pela Ignorância (alegoria à resistência à reforma do Marquês), deixando, inclusive, sua
noiva. Depois de muitos percalços, dentre eles, ser espancado, o rapaz é convencido
pelo tio a retornar aos estudos.

Carvalho/ Mar
escritos pelo autor.
Cunhado como um poema herói-cômico, O Desertor, por característica do
próprio subgênero, já carrega uma tensão. Tensão esta que se instala, primeiramente,
como já se disse, a partir de sua configuração estrutural contrastante, que se dá na
preservação de elementos prescritos para a narração de feitos de um herói grandioso em
um poema clássico diante de uma matéria narrativa baixa, fútil. Esta estruturação já

2781
compõe uma dialética em que, de um lado, está a ideologia de afirmação do pensamento
aristocrata, representada pelos elementos narrativos do poema épico e, de outro, o anti-
herói, avesso à manutenção desses costumes, da qual, como síntese, tem-se o riso, que,
por sua vez, pode ser de sentido plural.
O herói-cômico de Silva Alvarenga, entretanto, não se contenta, apenas, com a
entre discurso e ação. Ao mesmo tempo em que tem,
declaradamente, as configurações já estabelecidas do herói-cômico com modelo em sua
construção, O Desertor carrega alterações significativas em elementos de sua economia,
afastando-se. É o que se observa, por exemplo, no distanciamento do preceito herói-
cômico ao não abordar uma futilidade, mas, ao contrário, questionar vícios, como a
preguiça e a ignorância, defendendo o valor do estudo e da transformação da
universidade, buscando corrigir e orientar.
Essa idiossincrasia na estrutura pode ser entendida, primeiramente, a partir da
consideração do sistema cultural do século XVIII, em que, como já se viu, as fronteiras
entre literatura e filosofia nos Setecentos são imprecisas. Segundo Sales (2009, p. 53),
o poema herói-cômico adquiriu conteúdo de sátira social,
política, ideológica e anticlerical, e serviu como instrumento de classe para a burguesia
criticar o governo absolutista dos nobres e a igreja católica, latifundiária e legitimadora
da ideologia ofic
Nesse sentido, diferentemente dos poemas herói-cômicos do século XVII, o
desajuste entre narrador e herói deixa de ser um mero jogo cômico e passa a ter um
papel pedagógico e de investigação filosófica, semelhante ao que se observa nos
romances filosóficos do período, na a aliança entre logos e mythos (que não significa,
necessariamente, uma harmonia), como já observou Matos (2001) nas Cartas Persas.
Em O Desertor, o narrador, defensor da razão (otimismo pela reforma da Universidade
de Coimbra) é o agente do logos, enquanto Gonçalo (anti-herói) resiste à vitória das
Luzes, agindo pelo mythos (escolástica dos jesuítas).
Essa duplicidade se assemelha, também, ao que Jean Starobinski (2001) define,
ao analisar o conto filosófico de Voltaire, mais especificamente, O Ingênuo (1767),
como que, para o autor, é uma das leis
do conto filosófico. Partindo do capítulo VII da obra, Starobinski efetua análise de sua
estrutura, desde uma frase até a totalidade do conto, observando a disposição dual
(binária) dos elementos e, ao fim, conclui que a lei do fuzil de dois tiros [...] é a
(p.160):

2782
[...] a dualidade reina sob toda as formas em que se pode manifestar,
em todas as combinações a que se prestam os diferentes níveis da
linguagem (forma, sentido, etc.).[...] a dualidade não se limita aos
jogos emparelhados da igualdade ou da desigualdade morfológicas,
nem aos binômio semânticos associados segundo graus de contraste
variáveis (indo do pleonasmo à antítese). Podemos igualmente falar de
dualidade quando se opõem tão nitidamente o implícito e o explícito,
as litotes e a hipérbole. Ela reina ainda na oposição do dentro
(melancolia) e do fora (praia, equipamento, pássaros); da paisagem

(atirando) e da intenção (tentando atirar); do plural indeterminado


(alguns pássaros) e do singular determinado (ele
mesmo).(STAROBINSKI, 2001, p.146).

Uma última aproximação entre as estruturas do romance filosófico e do herói-


cômico que parece pertinente está relacionada ao que Franklin de Matos (2001) relata
com

(p.
214). É assim com Gonçalo, anti-herói de O Desertor, que é convencido pela Ignorância
a largar a universidade e -se do
caminho da sabedoria (razão), sendo repreendido, literalmente, pela força. A viagem de
Gonçalo (e seu fracasso), portanto, é uma experimentação, prova do triunfo da razão
sobre a ingenuidade (ignorância).
Segundo Antonio Candido (198
obra depende de sua estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal
de certas representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi

Sendo assim, nota-se que a tensão (ou as tensões) do poema, observável em sua
estrutura, demonstra ser a organização formal da representação do ambiente político,
estético e ideológico em que O Desertor foi escrito, como também já apontaram Polito
(2003) e Sales (2009). Tinha-se, de um lado, o Iluminismo e sua proposta de liberdade e
de direitos humanos, enquanto, de outro, a contraditória e autoritária relação dos
governos europeus com a América, além do dilema, no Brasil, entre apoiar ou não um
governo autoritário, porém progressista. Acrescente-se, ainda, o conflito entre
heterodoxos e liberais dentro do Arcadismo. Trata-se do contexto particular da
das reformas pombalinas, conforme discute João Adolfo Hansen
(2004).

2783
Para Hansen, é preciso analisar a poesia colonial da segunda metade do século
XVIII a partir da compreensão da especificidade do ,
desprendendo-se de conceitos cristalizados de Iluminismo que suponham uma unicidade
de sentido histórico entre nações supostamente e
Nesse sentido, para ele, é mais adequado observar os
diferentes processos políticos e culturais em sua simultaneidade contraditória: inovação
e tradicionalismo, ateísmo e religião, empirismo e escolástica, liberdade democrática e
subordinação absolutista.
Segundo o autor, em Portugal, a escassez do ouro brasileiro fez com que a
política colonial fosse revista, fazendo, também, com que produção poética fosse
redefinida, a partir da apropriação prática das ideias iluministas, o que acarretou em
apologia intelectual e moral do juízo, que prescreve e regula o meio-termo sensato
do discurso poético .
João Adolfo Hansen observa que os poetas desse período são poetas do Antigo
Estado, influenciados pelos ideais franceses e da independência norte-americana e, ao
mesmo tempo, sujeitados à doutrina neo-escolástica, valorizando a hierarquia e os
privilégios nobiliárquicos. Como consequência, a poesia se configura de forma ambígua

não fazem críticas negando seu presente ou


propondo sua superação por uma nova ordem política, mas vituperam abusos, fazendo o
destinatário lembrar-se dos usos consagrados como justos pelo costume
2004, p. 5).
Nos poetas brasileiros de produção pombalina, como Silva Alvarenga, tal
relação é ainda mais peculiar. Ivan Teixeira (1999) relata, por hipótese, que os autores
brasileiros tiveram maior identidade com o Marquês do que os autores portugueses. Isso
se deu, de acordo o autor, a partir da formação de um grupo, por iniciativa de Basílio da
Gama, com o objetivo de exaltação do Marquês. Segundo ele, com a divisão da nobreza
após o atentado contra o rei, Basílio teria sugerido a criação de uma equipe coesa de
poetas para divulgar a imagem de Pombal. Assim, por não terem raízes na metrópole,
consequentemente, esses poetas não seriam contaminados pela velha nobreza, não
representando perigo.
A partir dessa situação, afirma Teixeira, Basílio da Gama instaurou uma nova
tradição na literatura de língua portuguesa, colocando-o acima de Claudio Manuel da
Costa. Segundo ele, a especificidade desse novo estilo parte da integração de, ao menos,

2784
duas referências culturais (brasileira e metropolitana), diferindo dos poetas portugueses
e, dada suas qualidades, superando as configurações do gênero encomiástico. Dentre os
principais traços desse novo estilo, o autor destaca a concisão metonímica do verso,
composto de um balanço novo e discreta insinuação, incomuns nos poemas portugueses
da época, e acrescenta:

[...] a composição de um poema com fábula, em que o conceito


político se converte em ação ficcional, na qual as ideias assumem
corpo, mediante alegorias dinâmicas, pois implicam movimento,
trama ,diálogo e desfecho. Os escritores portugueses optam pelo dito;
os brasileiros, pelo evento. Aqueles fizeram discurso; estes contam
estórias. Tais procedimentos implicam a adoção da metáfora
representativa, que é mais espirituosa que a metáfora de
representação, porque funde o discurso com a ação, tornando-os
imediatamente visíveis para o destinatário, como uma cena teatral.
Aristóteles chama o procedimento prosomaton
diante dos olhos , grifos do autor).

Em O Desertor, segundo Ivan Teixeira, diferentemente do que ocorre em O


Reino da Estupidez, em que esses elementos se articulam de forma bastante restrita, os
procedimentos desse novo estilo estão dispostos na estrutura de forma mais rica e
expressiva, assim como se observa em O Uraguay.

Considerações finais

O intuito deste estudo foi analisar as tensões em O Desertor, poema herói-


cômico de Manuel da Silva Alvarenga, à luz da especificidade do sistema cultural do
século XVIII. Nesse processo, foi possível observar que o efeito de sentido que deriva
da articulação dos elementos que compõem sua estrutura está relacionado não só com a
imprecisão na fronteira entre literatura e filosofia no século XVII, mas, principalmente,
o movimento ambíguo uma
representação formal desse contexto de coexistência de princípios contraditórios. Além
disso, notou-se que a tensão na economia de O Desertor pode ser entendia a partir da
nova configuração estética instaurada por Basílio da Gama ao reunir poetas brasileiros
com o intuito de exaltar o Marquês de Pombal.

2785
Referências

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Abril Cultural, 1984. Coleção OS PENSADORES, vol. VI.

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VOLTAIRE. O Ingênuo; Cândido ou O Otimismo. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

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A POESIA E AS CIDADES EM SANTO AGOSTINHO
Thiago Gonçalves Souza (UERJ/UNIFESSPA)
Orientador: Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)

RESUMO: Embora se tenha em vista que Santo Agostinho (354-430) foi um intelectual
profundamente versado não apenas no patrimônio filosófico antigo, mas também na cultura da
palavra artística, tendo sido, inclusive, mestre de retórica antes de sua conversão ao cristianismo,
pouco se tem dito acerca de suas relações com essa cultura, menos ainda no que se refere,
especificamente, à cultura poética. Desse modo, a partir de uma leitura das Confissões e de A
Cidade de Deus, pretendemos apresentar os termos da abordagem que o Doutor da Igreja realiza
da poesia, uma abordagem crítica que, se se alinha ao viés da censura moral já colocado
principalmente desde Platão, não deixa de apresentar características particulares: passa, de um
lado, pela crítica política e cultural da cidade pagã e, de outro, pela análise dos efeitos psicológicos
da representação poética, em particular do drama trágico, como estímulo de um prazer egoístico
que obsta a realização plena da caridade, virtude que, por sua vez, deve embasar as relações
sociais e espirituais do homem cristão.

Palavras-chave: Santo Agostinho. Crítica da poesia. Crítica da cidade. Tragédia. Caridade.

Introdução
Agostinho nasceu na cidade de Tagaste, em 354, e morreu em Hipona, em 430,
províncias romanas em norte de África. Embora seja um dos mais importantes intelectuais
da cultura cristã católica, deve-se atentar ao fato de que sua conversão deu-se apenas
quando ele contava em torno de 30 anos, tendo sido batizado por Ambrósio de Milão por
volta do ano de 387, depois de ir buscar respostas a seus anseios espirituais e intelectuais
em autores como Cícero e em profetas como o iraniano Maniqueu, passando pelo estudo
dos escritos neoplatônicos. Nesse sentido, o percurso de Agostinho mostra-se exemplar
da situação entre filosofia e religiosidade no fim da Antiguidade, em que a tradicional
conjugação filosófica entre os eixos da verdade, do bem e do agir se vê compartilhada
por filósofos pagãos e convertidos ao cristianismo que se vai propaganda. Como observa
Marrone:

2799
De fato, por volta dos séculos II e III d.C., a filosofia, como praticada
pelos estoicos, platonistas e epicuristas, e o cristianismo, como
professado entre os convertidos gregos e romanos educados,
começavam a parecer bastante semelhantes. A filosofia havia vindo, nas
significar c
(MARRONE, 2013, p. 29).

Esse processo de conversão à doutrina cristã, narrada nas Confissões, desenha,


portanto, o périplo de um jovem letrado no patrimônio da poesia e da retórica pagãs (arte
da qual, inclusive, fora professor), conduzido pela indagação filosófica até a descoberta
da Palavra Sagrada, que, então, retrospectivamente, ilumina com seu sentido a vida
pregressa do autor, não apenas na dimensão de suas experiências pessoais, mas também
na de suas práticas culturais e intelectuais. No sentido, então, dessa reavaliação profunda
de si e do mundo, é relevante observar que a consolidação, no pensamento do jovem
convertido, de uma metafísica caracterizada pela fixidez do sentido e do ser em Deus
redundará em uma profunda crítica epistemológica, por Agostinho, dos usos do discurso
concernentes ao saber e à retórica1. Contudo, no âmbito deste trabalho, queremos explorar
a dimensão moral da crítica do Bispo de Hipona à poesia, a qual, se partilha algo da
postura platônica A República, se dá principalmente nos termos de uma crítica
política e cultural aos usos e costumes da cidade pagã, diante da qual deve afirmar-se o
homem e a cidade cristãos (principalmente no contexto da tomada de Roma, no século V
d.C., e das consequências desse evento para o cristianismo que se fizera hegemônico).
Desse modo, o que objetivamos ressaltar é que, mais que em uma crítica
epistemológica fundamento da força teórica do questionamento platônico ao discurso
do poeta , em Agostinho o questionamento da poesia como prática discursiva e cultural
movimenta-se, sobretudo, no âmbito da crítica política, direcionada ora para a relação
celebrativa, e por isso, condenável, entre poesia e cidade mundana, ora para os efeitos
daninhos do poético sobre a interioridade do indivíduo, o que oblitera a experiência da
caridade como fundamento ideal das relações sociais/espirituais em uma verdadeira
cidade cristã.

Os vícios instituídos: a poesia como celebração da cidade pecadora

2800
Um dos fios que constituem a urdidura conceitual da abordagem, por Agostinho,
da poesia, caracterizada pela atribuição de um caráter ético-moral radicalmente negativo
aos efeitos do poético, mostra-se na compreensão, pelo autor das Confissões A Cidade
de Deus, de que a poesia não atua apenas no sentido da promoção da mimesis dos
como Platão já havia afirmado n , comprometendo o bom
funcionamento da cidade pelo desvirtuamento de seus cidadãos, mas como instância em
que se celebram, discursivamente, os costumes depravados de uma cidade pecaminosa.
Assim, a tradicional relação entre poesia e cidade que perpassa a tradição greco-latina
aparece em Agostinho, avaliada, porém, negativamente, como afirmação da cidade
mundana, que deve ser superada pelo advento da cidade de Deus.
Em sua narrativa autobiográfica, Agostinho não procura diminuir a importância
da leitura da poesia grega e latina, tanto como uma de suas atividades diletas, quanto
como elemento central da educação dispensada aos jovens que se preparavam para uma
carreira na cidade. Sobre isso, o autor afirma:
-me o vão
espetáculo de um cavalo feito de madeira e cheio de guerreiros, o incêndio de Troia e até
a sombra de Creusa (AGOSTINHO, 2013, p. 43). Em outro momento, realçando o papel
dos textos poéticos no cotidiano escolar, ele diz:

[...] nos obrigavam a seguir errantes as pegadas das ficções dos poetas
e a repetir em prosa o que o poeta cantava em verso. Recebia maiores
louvores o aluno que, segundo a dignidade da personagem figurada,
exprimisse mais fortemente e com maior verossimilhança os
sentimentos de ira e de dor, revestindo as frases com palavra mais
apropriadas (AGOSTINHO, 2013, p. 46).

Desse modo, a poesia é mostrada como elemento basilar de um projeto de


formação que visava dotar o jovem das qualidades necessárias ao desempenho de uma
função pública na cidade, ou, nas palavras de Agostinho, para entrada no
(AGOSTINHO, 2013, p. 48). Contudo, posteriormente, o convertido
reavaliará o sentido de tal participação da poesia na cidade, sob o signo da imoralidade e
da depravação. Essa reavaliação não é, apenas, a da poesia e de sua função na cidade, mas
sim a da cidade ela mesma, a dos fundamentos da existência da própria cidade pagã. Por
conseguinte, o que o Bispo de Hipona desenvolve em A Cidade de Deus não é, em
primeiro plano, uma condenação da poesia, mas estratégias para desautorizar, espiritual,
política e culturalmente, a cidade mundana pagã mirando seus ataques nas realizações

2801
poéticas entendidas então como expressões da própria vida coletiva dessa cidade: os
festejos e cultos públicos das divindades e o teatro.
Assim, ao contrário de Platão, que estabelecera de início a necessidade de
restringir a ação do poeta junto à cidade a fim de resguardar o bom funcionamento desta,
Agostinho promove uma identificação profunda e radical entre o poeta e a cidade,
condenando, enfim, a ambos. Para o pensador cristão, o poeta não apenas fornece um mau
(título do capítulo 16
do Livro I de A Cidade de Deus), do que já Homero havia dado o exemplo. Claro está
que o escândalo da representação poética dos deuses pelos poetas está fortemente
assinalado na obra de Agostinho: como ele afirma:
tais obscenidades que seria vergonhoso ouvi-las, já não digo para a mãe dos deuses, mas
para a mãe de qualquer senador, para a mãe de cidadão honesto, para a mãe dos próprios
Contudo, esse é apenas um dos vieses da
condenação moral do poeta. Outro, ainda mais incisivo e poderoso, como dissemos,
entrelaça, indissoluvelmente, o poeta e a cidade. Para o Santo Doutor, aquele,
promovendo a imagem viciosa da divindade, agiria tão somente como legitimador dos
fundamentos das instituições da cidade, vistos como intrinsecamente viciosos.
Essa estratégia de ataque, dirigida, portanto, em conjunto à cidade e à poesia, é
traçada por Agostinho a partir sua crítica a Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.). Varrão
havia distinguido três modos de teologia os

apresentada nas especulações dos filósofos da physis. Se a teologia civil representa os


mitos como fundamentos das instituições da cidade, a fabulosa os leva ao público através
da representação dos poetas, em uma relação mútua de legitimação das instituições
públicas. Segundo Agostinho apresenta ao seu leitor, Varrão teria admitido a
impertinência da representação fabulosa, poética, das divindades, mas
viciosíssimas opiniões dos povos sobre as superstições públicas, costumes que desdizem

teologia civil, com necessária ao funcionamento das instituições. Por isso, o Padre
censura Varrão por recusar-

portanto, tanto as representações poéticas quanto as instituições políticas embasadas nos


cultos da cidade.

2802
Nesse sentido, Agostinho se apropria da percepção da correlação entre as
instituições e a poesia, mas reveste a ambas de um sentido moral essencialmente negativo,
num gesto que podemos sintetizar do seguinte modo: se a cidade mundana é pecaminosa,
a poesia que a representa é igualmente pecaminosa. Nas palavras do autor:

Ninguém [...] alcança a vida eterna pela teologia fabulosa, nem pela
civil. Aquela semeia a torpeza dos deuses com ficções, esta colhe-as
com aplauso. Aquela espalha mentiras, esta recolhe-as. Aquela afronta
as coisas divinas com falsos crimes, esta abrange nas coisas divinas a
representação de tais crimes. Aquela celebra em versos as nefandas
ficções dos homens sobre os deuses, esta consagra-as em suas
festividades. Aquela canta os delitos e aa calamidades dos deuses, esta
ama-os. Aquela publica-os ou finge-os, esta, porém, afirma-os como
verdadeiros ou deleita-se até mesmo nos falsos. Ambas impuras e
ambas condenáveis; mas aquela, teatral, confessa de pública a própria
torpeza, e esta, civil, cobre-se com a torpeza daquela (AGOSTINHO,
2012, p.281).

Porém, a crítica de Santo Agostinho à ação imoral da palavra e da representação


poética não se limita a censurá-la por sua colaboração com a imoralidade dos costumes e
ritos públicos da cidade corrompida, acusada pelo autor de A Cidade de Deus e a ser
redimida, em sua perspectiva, pela emergência da Cidade divina. Um segundo fio da
análise de Agostinho sobre os efeitos da representação poética percorre a interioridade do
ouvinte/espectador, no sentido de demonstrar que, por meio da palavra poética, estimula-
se o apego ao gozo de paixões intensas e tão somente egoísticas, bloqueando o caminho
para o indivíduo dar-se a uma experiência de verdadeira caridade, fundamento ideal para
a constituição das relações sociais e interpessoais de uma cidade cristã. Desse modo, a
poesia não apenas celebra a cidade mundana em sua corrupção, mas obsta a emergência
de uma cidade purificada.

A poesia entre o prazer de si e a caridade


Assim, uma segunda linha da crítica agostiniana dos efeitos do poético (e dessa
vez, mais especificamente, do trágico) vai centrar-se na experiência de fruição individual,
esforçando-se por mostrar que a catarse promovida pelo teatro é, antes de tudo, uma
contrafação pecaminosa de uma experiência autenticamente cristã: a caridade fraterna.
Na análise de Agostinho sobre o efeito da representação dramática, é de
fundamental importâ , o que não é
estranho ao pensamento aristotélico, como exposto, por exemplo, na Poética, em que se

2803
É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em
linguagem exornada, cada parte com o seu atrativo adequado, com atores agindo, não

(ARISTÓTELES, 2014, p. 24).


Sobre
[m]as por que quer o homem condoer-se, quando presencia cenas dolorosas e trágicas,
se de modo algum deseja suportá-las? Todavia o espectador anseia sentir esse sofrimento
que afinal para ele constitui um prazer. Que é isto senão rematada loucura?
(AGOSTINHO, 2013, p. 65). Uma loucura que o próprio Agostinho buscava, conforme
relembra o autor das Confissões: ainda menino, se
e, -me por
.
Partindo, então, da observação da excitação de tais sentimentos no espectador, a
análise de Agostinho acerca do prazer dramático movimenta-se em função de depurar
esse amálgama de sofrimento e prazer, a fim de identificar, com precisão, o cerne do
quinhão aprazível da experiência de fruição da tragédia. Nesse sentido, embora reconheça
que a intensidade da experiência catártica resida na identificação entre o espectador e as

seriam estes o cerne do prazer da representação trágica, mas a busca por uma experiência
da compaixão que acompanha o condoer-se. Uma refinada análise dos efeitos
psicológicos da representação trágica é posta em atividade por Agostinho a fim de bem
compreender o que está sendo movimentado no ânimo do espectador:

[...] ao sofrimento próprio chamamos ordinariamente desgraça, e à


comparticipação das dores alheias, compaixão. [...].
Amamos, portanto, as lágrimas e as dores. Mas todo homem deseja o
gozo. Ora, ainda que a ninguém apraza ser desgraçado, apraz-nos
contudo o ser compadecidos. Não gostaremos nós dessas emoções
dolorosas pelo único motivo de que a compaixão é companheira
inseparável da dor? (AGOSTINHO, 2013, p. 65).

Desse modo, o prazer com as cenas dolorosas representadas no drama trágico ou


em outras espécies poéticas residiria não na desgraça, mas na oportunidade de manifestar
a compaixão. O efeito catártico, segundo essa perspectiva de Agostinho, não tem, como
em Aristóteles, qualquer validade em si mesmo, mas apenas acena confusamente para
uma outra experiência, a de caridade e misericórdia, sendo preciso, porém, a iluminação

2804
da verdade cristã para asseverar seu sentido próprio, não mais estético, mas sim
plenamente espiritual. Desta feita, a caridade é desvelada enquanto possibilidade de
direcionar-se ao outro em dimensão fraternal, como um condoer-se da desgraça alheia,
não para gozar tal paixão, mas a fim de buscar erradicar o sofrimento:

[...] em tempos passados compartilhava no teatro da satisfação dos


amantes que mutuamente se gozavam pela torpeza, se bem que
espetáculos destes não passassem de meras ficções. Quando se
desgraçavam, eu piedosamente me contristava. Numa e noutra coisa
sentia prazer. Hoje, porém, compadeço-me mais do homem que se
alegra no vício [...]. Esta piedade é mais real. Porém a dor não encontra
nela prazer algum. Ainda que o dever da caridade aprove que nos
condoamos do infeliz, todavia aquele que fraternalmente é
misericordioso preferiria que nenhuma dor houvesse de que se
compadecesse (AGOSTINHO, 2013, p. 66).

A compaixão trágica, portanto, apareceria como forma mundana, impura porque


mesclada com a dor e o prazer, do límpido -se
repelir a compaixão? De modo nenhum. Convém, portanto, amar, alguma vez, as dores.
Mas acautela-te da impureza, ó minha alma [...]; foge AGOSTINHO, 2013,
p. 66). O verdadeiro sentido do prazer experimentado na representação trágica está, pois,
ligado não à mistura de temor e compaixão, mas a um vislumbre do sentimento da
caridade, que, se admite o condoer-se com o sofrimento, não permite que o amor às
lágrimas transforme-se no horizonte último de uma fruição egoísta dos próprios afetos.
Digamos então que, assim como o horizonte da emergência da Cidade de Deus
evidencia a corrupção e imoralidade da cidade dos homens e, nesta, a das representações
poéticas dos cultos pagãos conduzindo, então, a uma dupla crítica, a da cidade mundana
e a da poesia que representa seus costumes corrompidos a presença do sentido ideal do
amor divino, formalizado na virtude da caridade, permite a Agostinho reavaliar a
configuração da experiência trágica e desmontá-la, a fim de evidenciar seu fundamento:
para além de prazer superficial e ilusório, ligado à dor e à compaixão com a desgraça do
protagonista, a experiência da caridade, cuja plenitude apenas se revela quando
aproximada do ideal amor de Deus:

Em certos casos podemos, pois, aprovar que haja alguma dor, mas
nunca a podemos amar. Portanto, Senhor, Deus meu, amais as almas
com amor infinitamente mais puro que o nosso, vos compadeceis, sem
perigo de corrupção, porque não sois ferido por dor algum
(AGOSTINHO, 2013, p. 66).

2805
Considerações finais
A conversão de Agostinho marca um ponto de virada que permite a ele um voltar-
se sobre sua vida pregressa e analisá-la, não no sentido de apenas evidenciar seus erros
passados e confessá-los, mas no de apreender os sentidos subjacentes daquelas
experiências e práticas, iluminados pela presença de Deus como elementos em seu
caminho de libertação. Como observa Emmanuel Carneiro Leão acerca da autoanálise
agostiniana: -se o próprio homem
e se atinge o que é mais poderoso e vital do que ele mesmo, a saber, o processo de sua
Esse processo, no que implica a
reorganização e revaloração dos elementos que antes compunham o mundo cultural em
que o jovem Agostinho se formara, se traduz no desvelar dos sentidos (i)morais da poesia
e de seus efeitos sobre o fruidor/espectador.
Desse modo, a poesia, articulada com os festejos da cidade, foi criticada como
modo de celebração das instituições corrompidas da cidade dos homens. Por outra via, a
representação poética e, mais particularmente, a do drama trágico, foi flagrada como
estímulo a um sentimento egoístico, misto de prazer, dor e compaixão, que não seria mais
do que uma contrafação da virtude cristã da caridade, fundamento de uma relação
fraternal entre os homens, que tem como modelo o ideal do amor de Deus.
Deve-se ressaltar que a reavaliação crítica do Santo Doutor com relação às práticas
discursivas não se restringe ao discurso poético. Estende-se também, com estratégias
outras, à retórica e ao discurso do saber filosófico. A análise, porém, dessas estratégias
críticas não caberia no espaço deste breve artigo, sendo desenvolvida por nós em outro
momento.

Referências

____________. A Cidade de Deus Contra os pagãos (Parte I). Tradução de Oscar Paes
Leme. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

____________. Confissões. Tradução de J. Oliveira dos Santos e Ambrósio de Pina. 3ª.


ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

2806
RISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2014.

LEÃO, Emmanuel Carneiro.


AGOSTINHO. Confissões. Tradução de J. Oliveira dos Santos e Ambrósio de Pina. 3ª.
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 15-23.

Filosofia Medieval. São Paulo: Ideias & Letras, 2013. p. 27-70.

2807
RAZÃO CÍNICA EM CORAÇÃO DAS TREVAS (HEART OF DARKNESS)

Autor: M. e. Valmir Percival Guimarães (UFOP)1

RESUMO

Razão Cínica em Coração das trevas centra suas atenções no estudo da literatura de ficção de
Joseph Conrad (1857-1924), (1889) juntamente com o conceito de cinismo
moderno identificado por Peter Sloterdijk (1947), no seu consagrado livro, Crítica da razão
cínica (1983). Sloterdijk propõe com a sua crítica, a retomada do cinismo antigo e a renuncia do
cinismo moderno, cuja dinâmica é ambivalente. Entendemos que em algumas obras de Joseph
Conrad, como moderno, ou seus representantes, enevoa ou torna
tênue a linha demarcatória que há entre a liberdade e a domesticação em países periféricos.
Desse modo, a interdisciplinaridade, como causa do diálogo de obras da literatura moderna de
ficção e da filosofia contemporânea, além de nos levar a identificar um artificio que é capaz de
nos conectar à corrosão dos tropos em um oximoro, também traduzirá e colocará em evidência
os motivos que levaram ao falseamento dessa consciência, aqui, percebida como cinismo.

PALAVRAS-CHAVE: CONRAD. LITERARIEDADE. CINISMO. VERDADE. MENTIRA.

Introdução

Um dos maiores estilistas da língua Inglesa do seculo XIX, o Ucraniano-Inglês


Józef Teodor Konrad Korzeniowski (1857-1924), é autor de uma extensa bibliografia.
Nascido em uma pequena província da Ucrania Polonesa, antes da maturidade, deixa
sua terra natal em direção à Marselha, na França, para tornar-se marinheiro mercante.
Em 1878, decide ir para a Inglaterra para servir a marinha britânica, viajando para
diversas cidades da Ásia, África, América e Europa. Após tornar-se capitão de longo
curso da Marinha Inglesa, obtém a cidadania britânica e adota o nome de Joseph
Conrad. Dentre seus

2808
Lord Jim (1900),

(A linha da sombra) (1917).


Tendo em vista, portanto, este longo itinerário, pensamos em Charles Marlow,
narrador recorrente das obras de Joseph Conrad que é capaz de, com sua narrativa de
observação de tempos, coisas ou acontecimentos passados, instigar considerável
controvérsia crítica. Esse personagem, quando lança os seus olhos para o passado,
caminha na tensão entre a autonomia pessoal e a responsabilidade social. Talvez, o
romance que mais represente essa dualidade de Marlow, seria
Blackwood`s maga-zine , saindo
Youth: a narrative and two histories somente
em 1902. Na aventura que Conrad nos conta, o narrador/protagonista Marlow não
comete o crime, contudo, é cúmplice. Sabemos que esse crime provocou o Genocídio de
milhares de negros no Congo Belga no final do século XIX, a fim de enriquecer parte da
Europa com a Exploração, no sentido mais negativo desse termo, do marfim. 2
Entretanto, nas palavras de Marlow, o procedimento não passava de nobre e justo 3.
Nessa ótica, a distância em que Marlow se coloca dos fatos, quando descreve sua
aventura na África, além de ser prova de seu testemunho da exploração de marfim do
Congo no século XIX, alude à ideia da impossibilidade desse narrador protagonista
reconstruir a sua vivência de modo efetivo, tendo apenas como instrumento a sua fala
em tom memorialístico; isso ocorre de modo perverso na narrativa de Marlow que
parece referir- (SELIGMANN-SILVA,
2008. p.75)
(Idem), como por exemplo, a exploração desenfreada de
marfim no continente africano ocorrer de forma tão insensata no século XIX.

Heart of darkness e o paradoxo de uma consciência falsamente esclarecida

Eles se apoderavam do que conseguiam tomar, apenas pelo fato de


estar ali para ser tomado. Tudo era apenas roubo com violência,

2
O uso da palavra Exploração, da mesma forma que Genocídio no meio da frase em letra maiúscula é
proposital.
3
Ver. CONRAD, 2011, p.108.

2809
agravado pelos assassinatos em larga escala, e homens avançando às
cegas como é bem apropriado àqueles que enfrentam a escuridão
(CONRAD, 2011, p.13). 4

Se observarmos, nesse caso, através da aproximação em um plano microscópico

comenta a respeito do procedimento de força bruta brute force praticado pelos


(Ibd.,
p.89)5. Desse modo, podemos observar no trecho em destaque que, até certo ponto, esse
protagonista demonstra uma censura moral quando refere-se à violência e ao roubo
robbery with violence e, em seguida, ele inverte o sentido de sua censura, ao fazer uso
da palavra proper . Em outros termos, Marlow, enquanto testemunha da
violência encenada no Congo Belga, censura e legitima o processo de exploração; ele dá
sinais de que compreende o processo de opressão e o apoia, pois demonstra uma
excepcional capacidade de manter uma postura equilibrada entre oposições, as quais o
fazem oscilar entre a oposição que consiste na autonomia pessoal de um lado e a
responsabilidade social, de outro. E isso se deve ao fato deste narrador protagonista ser
capaz de demonstrar entusiasmo ao defender o processo de exploração e de comprovar a
sua fidelidade aos dois polos (autonomia pessoal/responsabilidade social) com sua fala.
Com e
genuinamente se mantem como uma antítese, no sentido em que essa dualidade de
posições torna-se o seu próprio mecanismo irônico. Por outras palavras, poderíamos
pensar que essa ambivalência pode ser entendida como uma racionalização, da qual
surge uma manipulação deliberada e consciente da linguagem, a fim de produzir um
efeito retórico (ambivalência/paradoxo), o qual entendemos ser o eixo da estética
conradiana, quando a relacionamos à ideia complexa de ironia. Contudo,

bem onde acaba a condenação e começa a aprovação. A ambivalência


da ironia serve a Conrad para mediar provisoriamente as
pud LIMA,2003,192).

Há que se observar que, além disso, mesmo diante da estranheza provocada pelo
deslocamento de significado, o qual se deve ao fato desta concisão não estar alinhada

4
They grabbed what they could get for the sake of what was to be got. It was just robbery with violence,
aggravated murder on a great scale, and men going at it blind as is very proper for those who tackle a
darkness CONRAD, 2011, p.89).
5
was merely a squeeze , and nothing more, (Idem).

2810
àquilo que parece ser possível ler nas frases que compõem o enredo, como já se disse,
narrador protagonista em uma batalha para transmitir
o significado do seu testemunho humano por via da linguagem que parece não dar conta
do caos da experiência e, por isso, parece que esse narrador reconhece que as suas
formas literárias expressam apenas impressões de significado temporário. 6 Vejamos:

-lhes um sonho fazendo uma vã


tentativa, porque nenhum relato de sonho pode transportar-nos à
sensação do sonho, aquela mistura de absurdo, surpresa e
atordoamento em meio a um tremor de incontida revolta, aquela noção
de ser capturado pelo incrível que não é nada mais do que a precisa

Para todos os efeitos, esse conjunto de vetores que podem dar significação à
história de expressam-se como uma revelação da impossibilidade
de revelação; isto é, a impossibilidade de se ter acesso à verdade propriamente dos fatos
está contida, justamente pelo fato de que essas verdades se encontram sob o poder de
revelação de quem atuou apenas como testemunha da história que conta. Hillis Miller
7
, pois, como vemos, a
história vivida por Marlow torna-se impossível de ser transmitida até mesmo pelo fato
da impossibilidade de se transmitir as sensações de um sonho por via de uma narrativa.
Essa metáfora aparece no sentido de que os fatos de uma vida estão para a sensação de
uma vida, pois, a sensação pode apenas ser vivenciada diretamente e não pode ser
o que
sonhamos (MILLER,1995, p.209).
Nesse sentido, se observarmos, t

darkness acalmar o público passa pela tentativa de demonstrar


segurança no relato e isso o leva a uma racionalização em cima do discurso que busca a
todo momento novas formas de expressão:
8
vocês. Vocês vêem? Vêem a história? V

6
trying to tell you a dream making a vain attempt, because no relation of dream can
convey the dream- sensation, that commingling of absurdity, surprise, and bewilderment in a tremor of
struggling revolt, that notion of being captured by the incredible w
CONRAD, 2011, p. 105.
7
(Idem).
8

(CONRAD,2011,p 105).

2811
Já o envolvimento de Marlow9 com Jim, por exemplo, demostra que Marlow é obrigado
a mudar o seu centro de análise de uma forma consciente, assim, a consciência irônica
de sua retórica desencadeia um paradoxo, tal qual o que podemos ler em relação ao seu
tratamento com Breierly10:

s golpes da vida não tinham mais ação sobre sua alma satisfeita do
que o arranhar de um alfinete sobre a parede lisa de um rochedo.
Quando eu o olhava, ao lado do magistrado pálido e apagado que
dirigia os debates, a complacência que se exteriorizava em toda a sua
pessoa se apresentava a mim, como ao resto do mundo, sob a forma de

(CONRAD, 1939.p.45).

Em Lord Jim , Marlow constrói uma imagem de Brierly como um homem


impermeável à reinvindicação destrutiva do mundo - granite . Esse narrador, ao
mesmo tempo em que consolida a imagem de Brierly, é capaz de enfraquecer as

lação a Brierly e faz uso de termos que aludem à


uma sua suposta resistência, no entanto, quando percebemos o suicídio de Brierly
podemos ver o seu reflexo/imagem sob outros olhos. Isso porque
Jim, da mesma forma que Brierly, também não tem a resistência de um granito hard as
granite , mas Brierly a sustenta, no entanto, sua resistência é exterior e ilusória, pois, a
quando inserida nesse contexto é fundamental quando a aproximamos
do ; afinal, a resistência de Brierly, como podemos perceber, é
exterior e ilusória e, é exatamente por isso, que a sua alma satisfeita - complacente
soul exala apenas um aspecto ilusório. Para todos os efeitos, em Lord Jim , Marlow
apoia os sonhos de Jim e, como o seu entusiasmo por ele cresce, esse narrador (Marlow)
cria uma espécie de contraste entre o ideal de Jim e o pragmatismo da realidade que o
circunda. Assim, a dicotomia entre o idealismo e o pragmatismo, mais uma vez, é
geradora de uma ambivalência na literatura de ficção de Conrad. Desse modo, a própria

9
Ver. CONRAD, Joseph. Lord Jim. (tradução de Mario Quintana). Ed.Globo. 1939.
10
The sting of life could do no more to his complacent soul than the scratch of a pin to the smooth face of
a rock. This was enviable. As I looked at him flanking on one side the unassuming pale-faced magistrate
who presided at the inquiry, his self-satisfaction presented to me and to the world a surface as hard as
granite. He committed suicide very soon after. CONRAD, 1946-65 p.58.

2812
narrativa retrospectiva de Marlow fornece elementos de sua simpatia pelo ideal dentro
do próprio processo de mudança em que sua perspectiva incorre.
Efetivamente, na sua forma verbal, a ironia revela-se no duplo discurso de
ambivalência, de contradição e de paradoxo. Desse modo, é precisamente a distância o

quanto em Lord Jim , que é capaz de fazer com que este narrador, por vezes
protagonista das histórias de Conrad, tenha controle da narrativa. No entanto, vemos
que no contato com Kurtz e Jim, Marlow tem os seus sistemas de valores alternados
drasticamente, sobretudo na tensão existente entre a sua autonomia pessoal e a sua
responsabilidade social. Nesse sentido, W. Booth (1974) evoca a responsabilidade do
leitor quando em contato com um texto irônico. Para Booth, o leitor deve rejeitar, a
principio, o significado literal e considerar uma série de significados alternativos,
incluindo a possibilidade de que o narrador é mal informado, e, assim, realizar
inferências a respeito das atitudes e conhecimento do narrador para, por fim, decidir, a
partir disso, qual das possibilidades tem mais credibilidade (BOOTH, W. 1974. pp.10-
14.).
uma autoreflexividade por parte do narrador que tem consciência do seu papel.
Exatamente por isso, ele é instigado a ter controle da eficácia de sua linguagem, que tem
a intenção de transmitir a própria complexidade da experiência que conta.

A razão cínica e a literatura de Conrad

Sloterdijk (2012) entende que o engodo remete à astúcia daquele que pretende
enganar ou atrair outrem. Desse modo, o engodo pode ser entendido como uma mola
e/ou ferramenta capaz de produzir uma espécie de ilusão por detrás da consciência falsa.
Nas palavras do filósofo, o engodo
(SLOTERDIJK, 2012, p.62)
(Idem).
ilude- . (Idem).

[...] O esclarecedor excede o impostor, na medida em que re-flete


sobre as suas manobras e procede de maneira desmascaradora. Se o
padre ou o governante enganador se mostram como uma cabeça
refinada, ou seja, como um cínico senhorial moderno, então o
esclarecedor se revela diante deles como um metacínico, como um
irônico, como um satírico [...] (SLOTERDIJK, 2012, p.63).

2813
Na modernidade pode-se dizer que há o Esclarecimento, no entanto, é ele que
determina a apatia. A apatia advém das determinações de um suposto Esclarecimento
que prometia dar conta de todas as lacunas insondáveis das necessidades do homem.
Afinal, ocorre a tentativa, a partir do século XVIII, de estabelecer como primazia a
razão em detrimento de todo um conjunto de fatores que determinam o homem e o seu

11
também os apáticos. Essa apatia,
entretanto, é, para Sloterdijk (1987), a premissa de uma realidade sombria, da qual o
mais importante é a proteção das identidades contra aqueles que ameaçam o status quo.
Isto é, esta sociedade contemporânea, além do mais, está contida em um cinismo difuso,
que pode ser entendido como uma desilusão moral e/ou até mesmo, um desinteresse
político. O que seria, portanto, uma realidade configurada como um modelo oposto ao
do antigo cinismo, que tinha como premissa o autoconhecimento e o uso de suas
habilidades críticas com a intenção de questionar as possíveis formas de estar no
mundo. O que temos, então, é o cinismo moderno oposto ao grego. Isto é, o primeiro
descarta e/ou alija a antiga fórmula kynikoi e transforma a sua insolência e brincadeira
em uma negatividade que resulta em um estado congelado onde reside a mais amarga
das resignações do homem. Nas palavras de Sloterdijk:

O cinismo novo não se faz mais perceptível de maneira gritante como


conviria ao seu conceito; [...]. Ele se cerca de discrição [...]. Ele se
recolheu em aclaramento[abgekärtheit], acabrunhado, que internaliza
como mácula o saber de que dispõe e que não se presta mais a ataque
algum. As grandes manifestações ofensivas do atrevimento cínico
tornaram-se raras; em seu lugar, surgiram desavenças e falta energia
para o sarcasmo. (SLOTERDIJK, 2012, p. 36).

A nossa hipótese tem como fundamento observar os mecanismos textuais na


ficção conradiana. Para tal empretitada devemos reconhecer em alguns textos de ficção
de Joseph Conrad a justaposição de elementos incongruentes que sinalizam um
significado aparente no seu contexto particular. Seguindo esse fio condutor, uma vez
que identificarmos esses sinais textuais, poderemos assim determinar a natureza
intelectual que provém exatamente da discrepância contida nessa fórmula incongruente
de velamento. Afinal, essa linguagem, carregada de contradições e apropriações
indevidas, é parte do controle que o narrador exerce em cima das suas respostas, em um
11
C.f. Supra: SLOTERDIJK, 1987, p. XXVI.

2814
mas
observar que o narrador parece estar dentro e fora da situação que narra. Essa dualidade,
que observamos na ficção de Conrad, é perceptível pela distância implicita em que o
narrador se posiciona diante da situação que descreve. A objetividade da ironia desse
narrador se reduz a uma grande incongruência, na qual manter a aparencia a respeito do
mundo estranho em que estão inseridos é parte do jogo. Essa oscilação advém da
, por
exemplo a da
voz da narrativa no inicio da história e, por isso, essa voz assume uma espécie de
onisciência que é rapidamente substituida pela perspectiva de um membro da tripulação.
No entanto, a narrativa de Marlow justapõe duas respostas opostas a partir de um
mecanismo geral e isso diminui acentuadamente o seu desprezo pelo procedimento de

aparente torna-se a sua mercadoria intelectual, afinal, o que o cínico busca é, sobretudo,
a sua beneficie individual.
Por conseguinte,
de acepção moderno, se sustenta pelo fato de que as suas
construções sintagmáticas carregam um tom de dualidade, no sentido em que faz desse
narrador, por exemplo, capaz de perceber que, do ponto de vista dos negros sendo
espancados, ele talvez não seja muito diferente dos verdugos que exercem sobre eles
(negros) a violência direta.12

Um tilintar de correntes às minhas costas me fez voltar a cabeça. Seis


andavam aprumados e devagar, equilibrando pequenos cestos cheios
de terra sobre as cabeças, e o tilintar acompanhava o ritmo de seus
passos. (...) os homens brancos eram tão parecidos de longe que ele
não poderia saber quem eu era. Ele logo se tranqüilizou e, como um
sorriso largo, branco e velhaco, e um olhar para a sua carga, pareceu
me incluir na sociedade de seu exaltado dever. Afinal, eu também
fazia parte da grande causa daqueles nobres e justos procedimentos.
(CONRAD.2002. p.28) .

12

path. They walked erect and slow, balancing small baskets full of earth on their heads, and the clink kept
time with their footsteps (...) white men being so much alike at a distance that he could not tell who I
might be. He was speedily reassured, and with a large, white, rascally grin, and a glance at his charge,
seemed to take me into partnership in his exalted trust. After all, I also was a part of the great cause of
these high and just proceedings. CONRAD, 2011, p.96.

2815
Como podemos observar, Marlow passa paulatinamente a assumir a lógica dos
senhores na história que conta, o seu discurso é matreiro e, por isso, dá espaço para a
interpretação de que esse personagem, sobretudo, é a forma cifrada e representativa do
pensamento moderno vigente no século XIX que se apoiavam em justificativas para
sustentarem as campanhas de dominação dos impérios europeus em nações periféricas.
Quer isto dizer que, Marlow legitima o horror e, ainda mais, ele era parte de uma
empresa baseada em um sistema insuficiente: dinheiro, mercadoria e mais valia.
Sistema que necessitava do emprego de uma despesa que não retorna - a morte
engendrada por Kurtz como punição/domesticação dos negros. Com Ma
que a insolência muda de lado e passa a ser
instrumento dos senhores, esse personagem se satisfaz com seu autoposicionamento
consciente diante do que foi testemunha. No entanto vemos que essa forma de vida
segue um sistema de regras e de valores que se invertem quando aplicados ao mesmo
tempo. A saber, Marlow conta a história que viveu no Congo com um tom carregado de

relativos ao crime contra os africanos no Congo Belga. A partir da perspectiva de


Sellingmann-Silva (2008), para finalizarmos, se considerarmos Marlow como um
verdugo, do ponto de vista dos negros espancados, inevitavelmente poderemos inferir
que esse protagonis
(SELIGMANN-SILVA, 2008. p.75) de forma dissimulada.

Conclusão

Efetivamente, Charles Marlow, é capaz de mediar e


equilibrar-se entre os extremos de um mundo onde as aparências sociais não são mais
suficientes para preservar a sua própria identidade. Por isso, temos a impressão, quando
a sua
experiência na linguagem; como não da conta, ele, ao mesmo tempo em que afirma,
também nega as suas afirmativas enquanto procura na sua memória a sua própria
identidade. Essa batalha com a linguagem leva ao eventual reconhecimento da
impossibilidade de transmitir o significado de um testemunho humano através da sua
fala13. Todavia, Conrad coloca Marlow em confronto com a
própria experiência e, por isso, essa forma literária torna se expressão temporária de um

13
Cf. supra. p.5.

2816
significado que, por sua vez, é aparente. Por outro lado, vemos que esse narrador devido
ao processo reflexivo que divide a sua consciência também não é digno de confiança
quando visto sob a ótica da razão cínica; quer isto dizer que, se faz necessário perceber
o modo como Marlow é capaz de reconhecer e compreender a verdade ao mesmo tempo
em que é capaz de agir em desfavor dela (verdade). Portanto, com essa hipótese de
leitura, vemos que -se
com a reviravolta de uma impudência impetuosa que advém de uma consciência que se
volta contra o outro de modo baixo. Por outras palavras, a consciência de Marlow é
Idem).
Para efeito de contextualização, é claro que é importante sempre ter em mente a
corrida imperialista na virada do XIX - ainda que menos como um evento linear que
precisaríamos reconstruir do que como uma situação que tende a tornar cada vez mais
remota a possibilidade de estabelecer uma nítida linha demarcatória entre civilização e
barbárie, isso por que o correlato eloquente e bufão de Marlow se apresenta, sobretudo,
com uma fala volúvel que parece sempre estar se desresponsabilizando e tirando o
corpo fora.14 Mais precisamente, a situação pavorosa para a qual
aponta vai se refratando no plano mais microscópico de sua literatura e, isso, como
dissemos, se dá no romance através da súbita igualação de coisas aparentemente
incomensuráveis no espaço de um único sintagma. 15 Marlow pula sem mais cerimônia
de um substantivo para o outro - enlaçando com uma conjunção aditiva matreira termos
completamente incomensuráveis. É como se no mundo , em sua
versão miniatura, tudo pode ser trocado por tudo, desde que se tenha dinheiro. Um
mundo que tem precisamente na forma da mercadoria a sua categoria pivô. Em outros
termos, Marlow universaliza o dever e ignora valores que consideramos fundamentais e,
através de artifícios retóricos, é capaz de nos privar do poder de distinção entre a
literariedade do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação. Caso não
observarmos isso, facilmente seremos levados, da mesma forma que seus interlocutores
no estuário do Tâmisa, ao ledo engano. Finalizando,
uma enganadora obviedade inserida na própria rede de oposições formuladas
por Marlow que faz do contraponto das palavras um manto para o ocultamento do
verdadeiro escopo. Para terminar, o processo de refutação da verdade ocorre, como foi
possível observar, pela autodivisão da consciência que é o cinismo de acepção moderna.

14
Ver. CONRAD, 2002, p.42-3.

2817
No entanto, esse novo cinismo (consciência falsamente esclarecida) inferimos que pode
ser representado por Marlow
lobriga o verdadeiro do falso. Em síntese, o cinismo não é somente um
problema de ordem moral, é um padrão de racionalidade de um tempo que conhece os
pressupostos anteriormente ocultos pelo universal ideológico da ação, mas que não
encontrou muita razão para reorientar a sua conduta paradoxal. 16

Referência bibliográficas

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Goulet Cazé, Marie-Odile e Branham, R. Bracht, Orgs. Os Cínicos: O Movimento

16
Quer isto dizer que, lei e transgressão caminham conjuntamente, por isso, a denúncia não pode mais
servir para desqualificar os paradoxos dos discursos falsos e legitimados como verdadeiros.

2818
Cínico na Antiguidade e o seu Legado. Tradução de Cecília Camargo Batalotti, São
Paulo: Edições Loyola, 2007.

LIMA, Luiz Costa- O redemunho do horror: as margens do ocidente. São Paulo.


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169 80. Berkeley: University of California Press, 1979.

2819
1

O PESSIMISMO COMO PROTOFORMA DE NIILISMO EM


MACHADO DE ASSIS: UMA PERSPECTIVA DE ESTUDO
Vitor Cei (UNIR)

RESUMO: Estudo do pessimismo como protoforma do niilismo em Ressurreição (1872),


romance de estreia de Machado de Assis. O livro tem por mote o exame da possibilidade ou
impossibilidade da de duas personagens, Félix e Lívia, que haviam sido marcadas
pela frustração de relações amorosas anteriores. A partir do envolvimento com Lívia, Félix
esboça uma ressurreição para a vida. O título do livro refere-se, portanto, à ressurreição de um
amor, o que não acontece, pois mesmo na ausência de confirmação da infidelidade de sua
amada, o protagonista
sentimento e as constantes suspeitas. Fica uma lacuna uma vida sem amor (a incapacidade de
amar como forma prévia de niilismo). Félix, incapaz de confiar nos outros, torna-se instrumento
de sua própria ruína, rejeita o amor e se condena a um isolamento pejado de ilusões. A partir da
análise do romance, defendo que o jovem Machado cunha um horizonte próprio de discussão do
problema filosófico do niilismo, percebendo-o com penetração e constância; mas em lugar de
representá-lo apenas superficialmente, como tema, em cenas e falas de personagens, incorpora-o
como elemento funcional da composição literária. Enquanto problema artístico, linha de força
literária, o conceito filosófico de niilismo é limado, ganhando algumas características e
perdendo outras. Caracteriza-se, nesse sentido, pela polissemia, abrangendo manifestações
distintas vários Leitmotiven, ou variações do leitmotiv em questão. Ao concluir a pesquisa,
espero demonstrar que o niilismo é um traço fundamental da ficção do jovem Machado, que se
estende por todas as fases de sua obra, e, nessa medida, sua descrição oferece uma contribuição
para uma renovada compreensão das dimensões literária e filosófica da obra machadiana,
revelando o niilismo como uma perspectiva a ser galhofada.

Palavras-chave: Machado de Assis. Nietzsche. Niilismo. Pessimismo.

O objetivo deste trabalho é argumentar que no romance Ressurreição, publicado


por Machado de Assis em 1872, o pessimismo aparece configurado como protoforma
do niilismo. Como objetivo específico, defendo que o protagonista Félix pode ser
considerado um precursor de Bento Santiago, narrador de Dom Casmurro, porque
ambos, movidos por ciúme doentio, rejeitam a possibilidade do amor verdadeiro e se
condenam a um isolamento pejado de ilusões.
Ressurreição
morais da obsessão amorosa, e que engendram dramas caracterizados pelo contraponto,

2820
2

(PASSOS, 2007, p. 26-27).


O despretensioso romance de estreia de Machado de Assis conta a história de
Dr. Félix, rapaz vadio e desambicioso,
(ASSIS, 2008a, p. 237), o que nos remete à morte de Deus, evento fundamental da
modernidade, que ocasiona a derrocada da moral judaico-cristã e da metafísica
socrático-platônica, com a decorrente descrença em fundamentos metafísicos e morais
absolutos, gerando niilismo a falta de sentido que se instalou entre nós com a morte de
Deus.
O desolado protagonista trocava de amantes a cada seis meses, até que seu
amigo Viana apresenta-lhe a irmã Lívia e os dois se apaixonam. Depois de muitas idas e
vindas, Félix pede a viúva em casamento, mas desiste na véspera do matrimônio por
causa de uma carta anônima com acusações falsas contra a noiva. Graças à intervenção
do amigo Meneses, Félix se arrepende de seu gesto impensado e tenta se reconciliar,
mas Lívia se recusa a casar com um homem desconfiado e instável. Como resumiu
Roberto Schwarz, no livro Ao vencedor as batatas:

Ressurreição (1872) é a história de um casamento bom para todos,


que não se realiza devido aos ciúmes infundados do noivo. [...] O que
falta a Félix, o noivo indeciso de Ressurreição, é a energia necessária
para constituir família e tomar-se membro prestante da sociedade. A
análise - essa força dissolvente - não vem aplicada ao instituto do
casamento, mas às intermitências da vontade da personagem, que são
lamentadas (SCHWARZ, 2000, p. 88).

O livro, que o autor chama de ensaio, tem por mote o exame da possibilidade ou
cura surpreendente e inesperada, nova vida, novo
vigor) de duas personagens, Félix e Lívia, que haviam sido marcadas pela frustração de
relações amorosas anteriores. O título refere-se, portanto, à ressurreição de um amor, o
que não acontece. Fica uma lacuna, uma falta, falha, falência: uma vida sem amor. A
incapacidade de amar como pessimismo, forma prévia de niilismo.
Apesar de ser visto ainda como uma preliminar, o pessimismo, com o
questionamento dos impulsos instintivos e com sua valoração negativa da vida, tem um
significado decisivo para o desenvolvimento do niilismo. Da forma superlativa do
adjetivo latino malus pessimum
que há de pior, de mais detestável (CEI, 2016, p. 79).

2821
3

O pessimismo pode ser considerado uma protoforma do niilismo porque, em seu


primeiro sentido e em seu fundamento, niilismo significa o valor de nada assumido pela
vida na medida em que é negada, depreciada; a ficção dos valores superiores que lhe
dão esse valor de nada, a vontade de nada que se exprime nesses valores superiores.
Seria Machado de Assis um autor pessimista? A fortuna crítica parte do
pressuposto de que a obra machadiana é transmissora de uma filosofia niilista,
geralmente atribuída a um suposto pessimismo do autor, sem deixar bem claras as
acepções de pessimismo e niilismo empregadas. Em contrapartida, a minha pesquisa
visa insistir nos aspectos que dificultam o enquadramento, e que precisamente por isso
exigem interpretação.
A professora, tradutora e crítica norte-americana Hellen Caldwell avalia que a
definição machadiana de pessimismo difere daquela de seus contemporâneos. Um
otimista, na opinião de Machado, é um idiota; ao passo que o pessimista é um idealista.
(CALDWELL, 1970, p. 122),
pode-se concluir com a autora norte-americana.
Segundo Caldwell, o tema de Ressurreição é a dúvida do Eu, que engendra a
suspeição sobre os outros. Félix, abençoado com dinheiro, boa educação, gosto refinado
e o amor leal de uma boa e bela mulher, não consegue desfrutar esse amor por causa de
ciúmes infundados:

O título Ressurreição

quente do amor de uma mulher para, em seguida, voltar novamente à

(Os dicion
verdade, disposição para suspeitar da honestidade e sinceridade de
outrem, disposição para se sentir ofendido, temor de ser enganado,
disposição para exagerar as coisas e tomar observações ou
brincadeiras como afronta pessoal, falta de confiança em si e nos
outros). (CALDWELL, 2008, p. 43-44).

Félix, incapaz de confiar nos outros, torna-se, nas palavras do narrador,


(ASSIS, 2008a, p. 266), pois rejeita o amor e se
condena a um isolamento pejado de ilusões. Antecipa, assim, o desenvolvimento mais
complexo do mesmo tema em Dom Casmurro. Em suma, Félix, assim como Bento
Santiago, seria um homem do ressentimento, sujeito refém de seu passado e de suas
marcas, desprovido daquela que seria a autêntica ação, a afirmativa, lhe restando
somente a reação, que consiste numa espécie de autoenvenenamento que o devora por

2822
4

dentro. Impotente quanto ao que foi feito, ele é um irritado espectador de tudo o que
passou um niilista ressentido. Semelhanças entre os dois livros não deixam de chamar
a atenção dos leitores. Como resumiu bem Caldwell, no livro O Otelo brasileiro de
Machado de Assis:

Semelhanças superficiais entre este romance e Dom Casmurro não


deixam de espantar o leitor. Mas os personagens deste primeiro
romance de Machado, apesar de um pouco rígidos ou talvez
exatamente por isso são bem delineados. Não há dúvida da vileza de
Iago, nem do fiel amor de Desdêmona, nem da falha de seu Otelo.
Félix, abençoado com dinheiro, boa educação, gosto refinado e o amor
leal de uma boa e bela mulher, é impedido de desfrutar esse amor por
.
(CALDWELL, 2008, p. 48).

O último parágrafo de Ressurreição apresenta a síntese da narrativa e explica o


título do romance, que se refere à possibilidade de Félix voltar a amar, o que não ocorre,
pois mesmo na ausência de confirmação da infidelidade de sua amada, ele sofre com
ram conciliar o sentimento e as constantes
suspeitas. O narrador conclui oferecendo uma máxima de caráter moralizante:

Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a


sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa
classe de homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do

com a felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das
afeições íntimas, duráveis e consoladoras. Não a há de alcançar nunca,
porque o seu coração, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na
sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões. (ASSIS,
2008a, p. 314).

Vemos uma conclusão de corte tradicional, que explica o fio condutor da trama e
sana todas as possíveis dúvidas do leitor. Com essas respostas definitivas, nada resta a
acrescentar. Estilo bem distinto do Machado pós-1880, que apresenta ambiguidade
formal, incerteza e enigmas jamais resolvidos vide a traição de Capitu, que ainda hoje
suscita discussões.
romance, com sua minuciosa análise da melancólica indecisão de Félix, causada pelo

analítico e minucioso, plenamente desenvolvido por Machado a partir das Memórias


póstumas de Brás Cubas (REGO, 1989, p. 109).

2823
5

Félix, que também podemos considerar um precursor da personagem Flora, de


Esaú e Jacó, opta por não optar. Ele é marcado por inconstância, fraqueza da vontade e
inércia pela sua incerteza quanto ao humano, resultando numa desconfiança que conduz
à (NIETZSCHE, 1999, p. 125). Espírito
indeciso e inerte, decidindo-se sistematicamente pela incerteza, ele não acusa Lívia, não
se opõe abertamente a Luís Baptista, não suspeita de Meneses e não abandona Raquel.

Uma perspectiva de estudo


Este trabalho resulta de uma perspectiva de investigação surgida imediatamente
após a conclusão da pesquisa para o livro A voluptuosidade do nada: niilismo e galhofa
em Machado de Assis (CEI, 2016) e é, portanto, uma posição teórica ainda em
desenvolvimento. No trabalho mencionado, propus a revisão de alguns posicionamentos
críticos relativos ao niilismo desenvolvidos e consolidados pela tradição. Identifiquei na
fortuna crítica machadiana uma sutil, mas sempre presente, necessidade de expurgar a
marca do niilismo da obra de Machado de Assis, como se essa pecha configurasse, por
si só, um demérito qualitativo. Depois de chamar atenção para a escassez da literatura
secundária a respeito do niilismo na obra de Machado, o objetivo central do livro foi o
de oferecer tal documentação, mostrando os sentidos que o niilismo assume na prosa
machadiana: ora designa a condição humana, ora a feição pessoal dos narradores ou
personagens, ora uma característica da sociedade brasileira, sempre como perspectiva a
ser galhofada.
Constatei que embora o niilismo na obra do escritor brasileiro apresente várias
afinidades eletivas com os conceitos de niilismo europeu e niilismo russo apresentado
por autores como Nietzsche e Dostoiévski, ele estrutura-se a partir de questões
machadianas específicas que percorrem os seus romances da maturidade: Memórias
Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1900), Esaú e
Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
Concluí que as duas obras narradas em terceira pessoa configuram o niilismo no
contexto de modernização do Rio de Janeiro, enquanto nos romances narrados em
primeira pessoa os três memorialistas reagem cada um à sua maneira: superação da
finitude e negatividade total (Brás Cubas), ressentimento (Bento Santiago) e ideal
ascético (Conselheiro Aires).
Dando continuidade ao livro A voluptuosidade do nada, em janeiro de 2016
iniciei o projeto de pesquisa

2824
6

O objetivo geral é argumentar que o niilismo é um motivo


condutor dos quatro primeiros romances publicados por Machado de Assis, aparecendo
como perspectiva a ser galhofada. As principais reivindicações são: em Ressurreição
(1872) e A Mão e a Luva (1874) o pessimismo aparece configurado como protoforma
do niilismo; em Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) o niilismo aparece configurado na
dissolução dos valores senhoriais; o jovem Machado de Assis teve uma aguda
consciência do caráter complexo e multifacetado da presença do niilismo em seu tempo.

Advertência
A divisão da obra machadiana em duas fases, instituída pelo crítico José
Veríssimo As Memórias póstumas de Brás Cubas eram o rompimento tácito, mais
completo e definitivo de Machado de Assis, com o Romantismo sob o qual nascera,
apesar de controversa,
costuma ser aceita pela maioria dos pesquisadores, que oferecem um conjunto amplo de
(GUIMARÃES,
2004, p. 34). Ademais, teve a simpatia do próprio escritor, conforme expresso em carta

minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é
doce achar quem se lembre desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue a catar nela
(ASSIS, 2008b, p. 1367).
Uma análise detida e pormenorizada dos critérios de classificação periódica da
obra de Machado de Assis extravasaria o escopo deste trabalho. Não obstante, ainda que
não possamos falar de períodos estanques marcados por rupturas drásticas, por existir
uma continuidade rigorosa, mas difícil de estabelecer, entre as obras publicadas antes e
depois de 1880, tal divisão é adotada por boa parte dos estudiosos, teve a simpatia do
autor e ainda atende à necessidade de delimitação do corpus.

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