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O FUTURO (1862-1863)
RESUMO: De setembro de 1862 a julho de 1863, Machado de Assis foi um dos colaboradores
mais assíduos da revista luso-brasileira O Futuro, editada por Faustino Xavier de Novais. Era O
Futuro um periódico literário, mas também divulgador de outras artes. Ao final de cada número,
assinou dezesseis das vinte crônicas publicadas nessa seção. Em oito delas, a função do cronista
muito se aproximou da de um crítico de música alguém atento à cena musical, aos artistas e
seus projetos, à habilidade e à técnica dos intérpretes. Apresentar e comentar essa parte menos
conhecida da produção machadiana é o objetivo deste trabalho. Em razão dos limites de uma
comunicação, nos restringiremos aos dois músicos que receberam maior atenção por parte de
O Futuro: o pianista Artur Napoleão e o clarinetista Rafael Croner,
ambos portugueses.
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organizada por João Cezar de Castro Rocha para a editora Record em 2008. É dado
propagado da biografia machadiana que, entre as várias sociedades artísticas de que foi
sócio o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas, esteve o Clube Beethoven, em que,
ao som de concertos de música erudita
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-271). Será
atendendo ao caráter programático dessa revista, que pretendia ser um espaço propício ao
diálogo entre intelectuais lusófonos de aquém e além-Atlântico, Machado, de algum
modo, ainda que despretensiosamente, desejou mostrar aos leitores brasileiros e
portugueses o relevante papel da música na relação cultural entre os dois países. Sua
crítica musical, se assim pode ser chamad O Futuro um dos momentos mais
notáveis, se não o mais sensível, ainda quando se resumisse ao simples registro de
acontecimentos artísticos de seu tempo. A frequência e, principalmente, a qualidade dos
diálogos com a música na produção literária posterior já seriam justificativas suficie ntes
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JOBIM, 2001, p. 271). Ora, entre os colaboradores assíduos da Revue de deux Mondes,
em meados do século XIX, esteve o musicógrafo e crítico musical francês, nascido na
Itália, Paul Scudo (1806-1864). Vale a pena citar o título de algumas das colaborações de
Scudo na Revue que podem ter sido lidas por Machado ou que podem ter chegado até ele
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236). Cabe lembrar que foi em companhia de Napoleão que, em 1868, chegou ao Brasil
aquela que se tornaria a querida companheira de Machado, Carolina Xavier de Novais.
Deve- - se
morrer
no Rio de Janeiro, em 1925.
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elogios ao músico e faz questão de ressaltar o quanto o trabalho dele é respeitado não
somente pelos amigos e compatrícios, mas também por nomes consagrados da mús ica
europeia:
em cidade, a sua viagem foi um triumpho não interrompido; mas, como verdadeiro artista,
não se deixou adormecer nos louros e nas delicias de Capua; estudou viajando e buscou
facilidade de uma aptidão inata, foi Artur Napoleão um artista, não um simples
habilidoso. Essa distinção, aliás, se mostraria tema trabalhado obsessivamente na ficção
machadiana, conforme observou, entre outros, João Cezar de Castro Rocha (ROCHA. In:
ASSIS, 2008, p. 7- O Futuro,
especialmente nas recomendações feitas a escritores com obras recém-publicadas.
Quando teceu considerações sobre O estandarte auriverde: cantos sobre a questão anglo -
brasileira (1863), de Fagundes Varela, Machado vaticinou um futuro honroso para o
talentoso poeta, condicionado à aplicação e ao estudo dos mestres (O FUTURO, n. XI, p.
372).
Artur Napoleão é o artista com maior presença nas crônicas machadiana s
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do artista:
Sei mesmo que Arthur Napoleão busca voar mais alto e escrever o seu
nome em uma obra duradoura: dous poetas inglezes deitaram mãos á
obra, a pedido do compositor, e cada um foi depor-lhe nas mãos um
poema dramatico, tirado um da comedia de Shakspeare, Como queira,
e o outro de uma novella de Finimore Cooper (O FUTURO, n. I, p. 39).
Ainda não conseguimos verificar como e se esse projeto foi efetivame nte
realizado. Curiosamente, outro dos projetos literomusicais de Napoleão, ainda na década
de 1860 um álbum com poemas musicados teria Machado não como divulgador, mas
como colaborador. Eles foram parceiros em uma composição: a serenata (para canto,
fluminense. Essa canção integrava o álbum Ecos do passado (1º álbum de romances: para
canto com acompanhamento de piano, edição de Narciso José Pinto Braga, 1867), que
reuniu seis poemas musicados por Artur Napoleão. Além dos versos de Machado, trazia
No fim de 1862, Napoleão seguia em tour pela região do rio da Prata. Machado
não se esqueceu de comentá-lo e o faria poeticamente, na crônica de 15 de dezembro:
E para terminar direi que, ao passo que esta revista escripta dentro de
uma casa solidamente construida, é lida pelo leitor no seu gabinete
fechado e na sua casa não menos solidamente construída, anda por alto
mar o pianista Arthur Napoleão, que daqui se foi a mostrar-se aos
nossos visinhos do Prata.
Para não fazer esquecer a fraseologia mythologica e o cunho de
certas figuras poeticas, ponho ponto final dizendo que Eolo ha de por
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FUTURO, n. XX,
p. 659, grifo do original), a atenção de Machado de Assis: o clarinetista português Rafael
José Croner (1828-1884). Croner foi solista notável. Conforme o pesquisador Gil
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dades de
(MIRANDA, 1993, p. 180-181). Antes dos vinte anos, era já músico profissional. 1861 é
o ano provável de sua primeira turnê internacional, em companhia do irmão, o flautista
Antônio José Croner. Nessa ocasião, passaram por Portugal, Espanha e Inglaterra. A
primeira visita ao Brasil foi em 1863: aqui Rafael Croner permaneceu de junho a outubro,
e seus concertos desfrutaram de ótimo acolhimento (MIRANDA, 1993, p. 181).
Na crônica de 1º de junho de 1863, Machado fez referência ao êxito de crítica de
o leitor ouvir o Sr. Croner? Perdeu se não foi. Este artista que, como é sabido, foi buscar
a Londres a consagração do seu talento, justificou os juizos anteriores
Croner despertar as mais delicadas harmonias. Pelo que respeita aos segredos da arte,
ão ouvio o Sr.
2015, v. 4, p. 384).
a expectativa; neste instrumento mostrou o Sr. Croner todos os dotes que o distinguia m
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mostra que essa palavra já circulava entre nós bem antes do ano estabelecido pelo Houaiss
como o de sua entrada no idioma, 1881 (cf. HOUAISS; VILLAR, 2009).
Em razão dos limites de uma comunicação, vários musicistas e temas ligados à
comentados: cantores líricos (como Antônio Maria Celestino, barítono, e Carolina Briol,
soprano), palcos (como o Teatro Lírico e o Alcazar Lyrique), instrumentistas (como o
clarinetista brasileiro Antônio Luís de Moura). Nossa intenção é ampliar esse trabalho
futuramente, de modo a oferecer um texto mais completo e útil ao estudo das referências
musicais na obra de Machado de Assis. O recorte estabelecido aqui, contudo, possui um
valor próprio, na medida em que evidencia a grande afinidade que existiu entre Machado
e artistas portugueses. A música foi apenas um dos capítulos dessa aproximação
intelectual, certamente, mas também certamente um dos mais fascinantes e ainda pouco
investigados.
Referências
BOLLOS, L. H. Crítica musical no jornal: uma reflexão sobre a cultura brasileira. OPUS
Revista Eletrônica da ANPPOM, v. 11, p. 270-281, dez. 2005. Disponível em:
<https://goo.gl/yi8sjU>. Acesso em: 26 maio 2016.
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GODOI, R. C. de. [Notas a] ASSIS, M. de. O Futuro. Org., introd. e notas de Rodrigo
Camargo de Godoi. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2014.
MACHADO, U. A vida literária no Brasil durante o romantismo. 2. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Tinta Negra, 2010.
MAGALHÃES JÚNIOR, R. Vida e obra de Machado de Assis. 2. ed. rev. e ampl. pelo
autor. Rio de Janeiro: Record, 2008. 4 v.
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LUIZ RUFFATO E A PROSA DO CONTEMPORÂNEO: OS
(DES)SENTIDOS DO HOMEM NA DIALÉTICA VIDA/MORTE
Resumo: Nosso objetivo ao fazer a leitura do conto O profundo silêncio das manhãs de
domingo (2006) de Luiz Ruffato é o de pensar a morte/suicídio como aspecto incontornável da
experiência humana, condição que a/o torna tão permeável ao discurso literário e filosófico.
Nesse sentido, procuramos compreender os modos pelos quais ruffato problematiza a
experiência da perda/morte através da vivência cotidiana de personagens ordinárias, cujos
sentimentos e emoções são expressos num discurso esteticamente elaborado e conectado a seus
estados anímicos. Diante deste objetivo, propomos ler o conto supracitado procurando entender
as ressonâncias do suicídio na psiquê dessas personagens que revolve a conflituosa dinâmica
vida/morte e perceber os significados desse ato para a compreensão da realidade. Por isso,
procuramos no pensamento de Vladimir Jankelevitch (2004), Emil Cioran (1969), André
Comte-Sponville (2002), Zygmunt Bauman (2009) e Albert Camus (1989) as bases de um
raciocínio mais esclarecido sobre o suicídio e sobre seu sentido para a experiência humana no
mundo. É importante salientar que o cotejo destes vários pontos de vista contribui para se
pensar os modos pelos quais a narrativa ruffatiana erige um espaço de questionamento dos
sentidos mais cristalizados sobre o suicídio, ao mesmo tempo em que propele a discussão dos
modos pelos quais lidamos com a experiência do fenecimento.
1 Apesar de se tratar de um romance, Luiz Ruffato afirma que as histórias de Vista parcial da noite
podem ser lidas de modo autônomo, dando assim caráter mosaico e fluído a seu texto, além de subverter
as formas tradicionais do romance.
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eleição da classe trabalhadora e pobre brasileira como a sua grande protagonista.
Embora não se trate de uma escolha inovadora ela é, contudo, propícia a uma nova
formulação da realidade física e psíquica do sujeito desprovido. Como afirma o próprio
Ruffato, o ponto de vista adotado nessas narrativas permite o aprofundamento da
psicologia de personagens que, via de regra, encontram-se subalternizadas na literatura
brasileira. Assim, há uma preocupação por parte do escritor mineiro em desmistificar a
figura do homem pobre e sem instrução, tratada comumente em nossas letras por meio
de uma simplificação cacoética da vida interior. Por isso, ao invés de postular a uni-
dimensionalidade daquele ser, o texto ruffatiano toma a figura humana como pluri-
dimensional, percebendo em sua interioridade matizes de uma subjetividade complexa.
Se isto perfaz uma das características de seus textos, seria correto afirmar
também que, para além de contornar as representações literárias do homem espoliado,
Luiz Ruffato dá voz aos sentimentos não somente de personagens singularizadas mas de
toda uma legião de seres relegados à margem da sociedade; e, neste mesmo processo,
desvela um intenso trabalho com a interioridade humana, uma dimensão de vida
subjetiva que, por outro lado, não é estigmatizada ou deliberadamente diminuída, mas
que encontra-se amplamente ativa e estruturada. Assim, antes de perder o teor de crítica
social, as narrativas intensificam o conteúdo humano de suas personagens, e ao fazê-lo
deixam transparecer de modo mais pungente os efeitos díspares que o capital exerce
sobre os homens. E é também por este motivo que os questionamentos sobre a
existência se firmam tão intensamente, já que o contraste entre as condições exteriores
de existência e a interioridade das personagens dá vasão às múltiplas experiências do
Ser-no-mundo.
Neste caso, talvez pudéssemos dizer que O profundo silêncio das manhãs de
domingo2 seja o momento no qual nos deparamos de maneira mais contundente com o
drama humano mais agudizado. Nesta história, acompanhamos a personagem Baiano
(Marcos) transitar por espaços deteriorados, sejam eles físicos ou subjetivos. Homem
simples e analfabeto, Baiano cria quatro filhos em condições precárias. Por sua aversão
à função de empregado, recebe parcas quantias de pequenos serviços prestados. Tendo
sido expulso de casa pelo pai alcoólatra, iniciara a vida adulta trabalhando numa oficina
de conserto de bicicletas no Rio de Janeiro. Entretanto, o desagrado com a rotina e as
2 Doravante PSMD.
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obrigações do emprego o fazem abandoná-lo peremptoriamente. À mesma época em
que abandona seu posto de trabalho, Baiano viaja à cidade mineira de Cataguases e
encontra uma mulher que o faz mudar-se da capital fluminense. O encontro o faz
constituir família e assentar moradia fixa. Após formar família, continua com a ideia
reserva, todavia, acarreta-lhe sérios problemas conjugais, situação que levará sua esposa
a abandoná-lo, deixando a seu encargo a responsabilidade de criar os filhos. Este
acontecimento implicará em profunda desestabilização psicológica de Baiano e
contribuirá para que o vício em bebidas alcoólicas se torne uma válvula de escape para
as tensões psíquicas que o acometem.
Mais do que isso, o mal-estar decorrente das frustrações diárias um desacordo
com o mundo que a cerca faz com que a personagem se coloque em situações-limite.
Assim, vemos no movimento encetado pelo corpo sôfrego da personagem o trilhar
caminhos em direção à finitude, indicando na esterilidade da ação a ascendência de um
desejo transgressor. Lícito seria pensarmos, deste modo, que a personagem encara a
responsabilidade por si e pelos filhos a certeza de sua liberdade de ação como um
direito de vasão da vontade de expandir-se para além das repressões do cotidiano e da
vida pragmaticamente organizada. Contudo, Cláudio, o segundo e único filho homem
de Baiano, o acompanhará nesta jornada e será referenciado sempre sob o olhar zeloso
do pai, cuja admiração se destaca na alegria de enxergá-lo capaz de construir para si um
futuro ditoso:
vivia especulando, o danado. Único filho-homem, o segundo da ninhada, completara
oito anos em maio e já encarreirava as palavras, o desgramado. Dava até vergonha nele,
controversas que o pai sente o fazem comportar-se igualmente com resignação diante da
criança, pois, ao mesmo tempo em que dirige atenção cuidadosa ao menino, o patriarca
também o identifica à angustiante lembrança da ex- a cara da mãe, o
desensofrido! do autor]).
O otimismo realmente parece não ter vez na história de Baiano. O incômodo de
se chegar às páginas finais do texto instaura uma estranha sensação de desconforto, um
estranho sufocamento que se apodera do leitor a medida em que este acompanha a perda
da capacidade de respiração das duas personagens. Ao término da narrativa, quedam
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apenas confusas impressões sobre dois corpos acoplados por uma 'tênue' linha que os
liga. Uma união paternal carregada até as profundezas do desespero humano.
Não seria redundante apontar, então, na história de Baiano, uma tensão flagrante
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ou quase nenhum tempo para a percepção do espectador distinguir a mudança de foco.
Há um constante recorte de cenas que agrupam-se abrasivamente para formar um todo
coeso.
Baiano entendeu que não conseguiria mais resgatar o sono e levantou-
se, os pés escarafunchando a noite-ainda do quarto à cata dos
estropiados chinelos. Julho, tocaiado na escuridão, arrupiou seu corpo.
Suspirou, exausto, outra jornada indormida, os nervos esfarrapados, a
cabeça oca, estômago em fogo, cacos os pensamentos, quanto tempo-
já lhe escapulira o descanso! (RUFFATO, 2006, p. 79).
também que é eminente, que insiste, obriga e impele, ou seja, uma escrita que se impõe de alguma forma .
[...] Nesse sentido, podemos entender que a urgência é a expressão sensível da dificuldade de lidar com o
mais próximo e atual, ou seja, a sensação, que atravessa alguns escritores, de ser anacrônico em relação
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se. A criação de imagens que combinam fenômenos naturais ou ações a verbos por
conotação imprópria é um dos procedimentos utilizados por Ruffato para apreender os
estados subjetivos de suas personagens. É uma imagética constante de opressão que se
ficção de Ruffato, pois o enlace de tempos, bem como o trabalho estético de sondar a realidade buscando
compreendê-la pela margem são recursos que o escritor se utiliza para criar seu universo ficcional.
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simples apropriação do coloquial, antes externando a procura do signo adequado para
dar vasão à percepção do universo de experiência de suas criaturas ficcionais.
A linguagem é, por outro lado, um obstáculo a mais a se interpor entre a
personagem e o mundo social. Baiano é representado como um sujeito desprovido de
carga emocional aprofundada e capacidade d
vergonha nele, que cumprimentava as letras respeitosamente, um á, um é, um í, mas na
ajuntação das vogais com as consoantes soletrava asmático, ca... ca-dê... dei... rra: ca-
dêi... Ah, ca-dei- p. 80). A superação destes limites, no entanto,
Sua necessidade é fruto justamente do fato de estarmos nela envoltos, de sermos seu
produto, de vivermos sob sua indelével marca. Por outro lado, sua impossibilidade se
justifica por não sabermos exatamente o que ela é, o que representa sua chegada para
por trás da palavra, por trás da coisa , nem
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Neste sentido, Zygmunt Bauman (2009) identifica diferentes estratégias de
ação para lidar com esta porção tão nebulosa da existência. Mais do que isso, seria
particularmente interessante constatar a substancial diferença que a era líquido-moderna
institui em relação às posições precedentes de tratamento da questão. Se a postura
religiosa era a de impregnar à morte os sentidos da redenção do espírito em sua
continuidade imortal por isso a necessidade de que o memento mori esteja integrado à
vida dos indivíduos, como forma de reger sua consciência pelo ascetismo e se à época
da constituição dos Estados nacionais politicamente organizados a morte passou a ser
vista como uma oportunidade de eternização de indivíduos anônimos pela dedicação a
um ideal pátrio, o período histórico líquido em que vivemos representa, segundo
Bauman, a conformação de um estratagema de 'marginalização'
freqüência com que são rompidos servem como lembrete constante da mortalidade que
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Banalizada, ela já não representa um medo, mas se torna parte do conjunto vital, mesmo
que ainda continue sendo um mistério.
O sentimento de perda ao qual Baiano é submetido se deflagra quando sua
relação conjugal é abruptamente interrompida. Desestabilizado, ele já não é capaz de
reintegrar-se à ordem da vida. Porém, o ódio que vocifera contra a ex-mulher é
resultado latente de uma frustração consigo mesmo. Matá-la não restituiria sua
dignidade, seria apenas uma atitude de extravasamento de seu desespero. O problema de
Baiano é consigo mesmo, com sua condição de Ser-no-mundo. Mas essa perda é a
representação de um ensaio para o grande ato final. Sua metáfora e propulsora. Segue-se
a isso que a falta de sentido do(no) mundo que acomete a personagem é insuportável e
Quando vou dormir, lembro que não posso entregar
os pontos... Luto... A noite inteira rolando de um lado para o outro... De manhã,
. 91). É o desespero, em sua forma
mais bruta, que lança a personagem à autodestruição. O choque entre o 'eu', ser
desejante, e a alteridade social, impositora de cerceamentos, é o motivador daquela
exigência sentida por ela para o autoextermínio. É a partir da exterioridade, pois, que se
fixará a oposição essencial entre a individualidade e o coletivo. E este conflito que se
inicia na externalidade é
lo que hace que la desesperación, por sí mesma, sea de tal modo
contraria al ser que él invoca la muerte inmediata, directa, o se la da
para anteciparse. Hay entonces entre la desesperación y el suicidio un
vínculo inmediato, directo, la única solución que es la ausencia de
solución. Un desesperado no puede tener necesidad sino de matarse
(JANKELEVITCH, 2004, p. 93).
des nuits où l'avenir s'abolit, où de tous ses instants seul subsiste celui que nous
e considerar
os sentimentos e sensações que o motivam:
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enfin parvenu au terme, que l'avenir se réduit à quelques minutes, à
une heure tout au plus et qu'on a décrété, de sa propre autorité, la
suspension de l'ensemble des instants. Vient ensuite l'impression
rassurante que vous inspire l'absence du prochain. Tous dorment
(CIORAN, 1969, p. 82).
começa com esse cansaço tingido de espanto. 'Começa', isso é importante. O cansaço
está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o
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filho a adentrar as águas caudalosas do rio no qual se banhava. Incapaz de manter-se à
superfície da água, Cláudio tenta desesperadamente encontrar proteção no corpo de
Baiano. Não consegue. As marcas gráficas no texto denunciam a agonia da criança. São
exatamente cinco vezes em que a palavra 'SUBMERGIU' aparece grafada
verticalmente, indicando do mesmo modo a luta pela sobrevivência. Movimento
seguida, enforca-se, dando a si também a finitude que buscava. É chocante a crueza com
a qual se dá o desenlace da história. O caminho sem destino sobre o qual Cláudio
constantemente se interroga, bem como a aparição de aves de rapina com força maior
o urubu denunciam, contudo, o desfecho articulado.
A morte, então, torna-se soberana. Porém, antes dela, somos levados ao
perscrutamento incisivo da interioridade humana através de uma intensa relação com a
linguagem, substância que modela o vivido. Em especial medida, enfrentamos, juntos
com Baiano, a situação-limite que a morte representa para todo ser humano. No texto
literário, como na vida, somos desafiados a perscrutá-la, de um modo que Guimarães
Rosa já havia nos ensinado em A terceira margem do rio (1988, p. 32):
Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo
abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que,
no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa
canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio
abaixo, rio a fora, rio a dentro o rio .
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pares antonímicos que resultará no acoplamento de ambos para criar, na conjunção, um
novo par, que conjugará vida e morte como constitutivas um do outro. Assim, vivemos
uma experiência plena, em que somos confrontados com todas as dimensões de nossa
existência. PSMD é, deste modo, uma narrativa rica em questionamentos sobre o
homem e sobre aquilo que nos toca mais fundo, os sentidos se existe algum ou os
(des)sentidos de nossa transitoriedade no mundo.
Referências
O que é o
contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó-SC: Argos, 2009.
____.
(Org.). O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1985.
CAMUS, Albert. O mito de sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Guanabara,
1989.
Primeiras estórias.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988.
Vista
parcial da noite. Rio de Janeiro: Record, 2006.
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A DIMENSÃO HISTÓRICA DA OBRA DE CLARICE LISPECTOR
Camila Chernichiarro de Abreu Corrêa (UnB)
Alexandre Simões Pilati (UnB)
RESUMO: Diante das inúmeras pesquisas críticas da obra de Clarice Lispector, esse trabalho
tem como intuito discutir a dimensão histórica internalizada organicamente em sua estética
intimista e diagnosticar as motivações sociais para o surgimento de um foco narrativo
entranhado entre o autoritarismo e a libertação, o eu e a sociedade. Tendo como base teórica e
metodológica a crítica literária dialética marxista e a perspectiva formativa nacional, a arte
literária é encarada como um reflexo específico do desenvolvimento do ser humano no meio
social. A partir de pensadores como Georg Lukács, Frédric Jameson, Antonio Candido e
Roberto Schwarz, essa comunicação pretende dialogar com as tendências críticas atuais que
tendem a negligenciar o aspecto local como mediação fundamental para se atingir a
universalidade. A partir da análise dos principais romances clariceanos, Perto do coração
selvagem (1943), A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977), busca-se
compreender a unidade de seu projeto narrativo como parte da experiência brasileira e reunir
dialeticamente o dado local ao caráter universal de sua escrita.
2595
produto também, quando configurada numa tendência, da materialidade vivenciada pelo
crítico.
2596
Diante desse cenário crítico atual, é necessário um estudo que procure integrar
os elementos constitutivos da obra de Lispector, visto que há um movimento próprio na
sua escrita de 1943 a 1977 que acompanha dialeticamente, como reflexo e recusa,
tensões locais e internacionais numa etapa específica do capitalismo. Desta forma, os
livros da escritora são encarados como um projeto, cuja unidade, não está na intenção
programada da autora, mas na evolução estética de seu itinerário artístico.
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crítico brasileiro no concerto das nações e possibilitavam, ao mesmo tempo, um escape
cínico a condições históricas nacionais. A dialética local e universal, identificada por
Antonio Candido (2007), permeia a atitude crítica, posto que esta elege a perspectiva
europeia em voga para análise de autores tributários de uma tradição literária e histórica
distinta, calcada na matriz escravocrata e formativa.
interior de cada uma dessas linhas críticas [pós-estruturalistas], que só pode ser
discutido caso a caso, mas de assinalar o efeito automático e conformista das assimetrias
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É fecunda a comparação com o desenvolvimento da crítica da obra de Machado
de Assis. Durante mais de meio século, acreditava-se que a estética machadiana nada
tinha a dizer sobre os dilemas nacionais específicos de um Brasil marcado pelo sistema
escravocrata em funcionalidade dialética com os ideais liberais em voga no momento.
Portanto, apenas depois Golpe Militar de 1964, foi possível enxergar o caráter volúvel e
patriarcal dos narradores de Machado, tipicamente brasileiros, que figuravam o que de
mais problemático existia na sociedade brasileira do século XIX. Roberto Schwarz
(1998), com sua análise minuciosa, demonstra que a universalidade machadiana está
exatamente na mediação do dado local.
A obra de Clarice Lispector é até hoje entendida nessa perspectiva. Ela teria
sido, juntamente c , p.253) caído por
acaso em terras coloniais, e não o fruto, a expressão transfigurada nessa terra. Faz-se,
portanto, necessário inserir a narrativa clariceana na tradição do sistema literário
brasileiro e perceber como ela é transfiguração moderna da matéria brasileira cuja
conexão com a tradição ocidental não deve ser ignorada. A proposta de uma leitura
formativa e dialética da obra de Lispector integra a dinâmica estética da autora, posto
que uma tendência crítica reúne outra s existenciais, que não
escamoteiam a luta de classes, mas a incorporam, a narrativa se autoquestiona
CHIAPPINI, 1996, p.72).
2599
A fortuna crítica parece ter começado pelo ponto culminante sem lidar com o
núcleo. O específico nacional antecede o universal para retornar a ele, num movimento
constante. E é nesse específico rejeitado, despercebido ou recalcado pela crítica que se
concentra esse trabalho, observando-se que a forma estética é mediada pela forma
social, a qual se amplia a níveis nacionais e mundiais.
No seu polêmico livro sobre o realismo no século XX, Lukács (1969) aponta
distinções entre o caráter humanizador da tipicidade encontrada no realismo do século
XIX e as vanguardas:
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Haveria na obra de Lispector uma inteligibilidade capaz de apreender o sentido
coletivo da vida humana na sua complexidade histórica e dialética ou essa estética
estaria à mercê de uma verdade subjetiva não generalizável? O interesse artístico da
baixeza mesquinha da lógica burguesa se sobressairia sobre a ânsia de compreender os
dilemas em jogo no processo de modernização local e universal?
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A ingenuidade agressiva de Joana transforma-se no vigor temeroso de G.H., que
escreve envolta à fantasmagoria do suposto desenho de Janair na parede. Percebe-se
como Lispector amadurece sua escrita e sua personagem, posto que esta agora percebe a
necessidade de integrar sua subjetividade em risco ao outro, seja ele o leitor ou a barata.
A fusão do sujeito no objeto parece ser a condição para a permanência do indivíduo na
era moderna. Clarice propõe essa reconciliação de maneira contraditoriamente dialética
e problemática, já que a urgência do outro (que assombra sem se efetivar) se revela
através de uma forma cuja intimidade do eu é jorrada sem concessões narrativas.
2602
possibilitar a garantia da inteligibilidade do real, como primeiro passo para sua
transformação. A literatura permite uma reaproximação efetiva do sujeito com realidade
social, posto que ela se configura esteticamente, sendo capaz, portanto, de mobilizar os
sentidos do leitor, desfetichizando-os.
Referências
BUENO, Luís. Guimarães, Clarice e antes. Teresa: revista de literatura brasileira, n.2.
São Paulo: USP, Editora 32, 2001.
CHIAPPINI, Lígia. Pelas ruas da cidade uma mulher precisa andar. São Paulo: Revista
da USP, n.1, 1996.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes,
1997.
2603
_________________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São
Paulo: Duas cidades, 1998.
SOUZA, Gilda de Mello e. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas cidades, 1980.
2604
MITO, ESTÉTICA E POLÍTICA OU A RECUPERAÇÃO DO TEMPO
PERDIDO
Cesar Augusto López Nuñez (UFMG)
Myriam Ávila Corrêa de Araújo Ávila (UFMG)
Resumo:
O mito é sempre uma narração que procura explicar o universo, o mundo e o lugar do
homem nesses dois espaços. Nesse sentido, os poderes do mito não se têm perdido com
o tempo, mas se têm transformado em premissas muitas vezes abstratas que nos
conduzem a esquecer sua permanência na vida prática dos homens na hora de pensar os
regimes de visualização do mundo como pensou Foucault. Mas, o que quer dize tudo
isto? Que o mito é uma proposta de compreensão do ser e de sentir o ser.
A relação do mito e da estética é muito antiga, porque o que procura toda narração é
gerar modos de sentir para uma comunidade. Em outras palavras, o que sentimos
pertence a um regime ontológico que tem sido contado e assimilado por um grupo
humano. Finalmente, todo sentir implica um modo de agir, de administrar as potencias
do mundo que se chama de política. Em um processo, mais ou menos inverso, para
compreender ela, teríamos que retroceder até os seus princípios ontológicos (míticos)
para estabelecer um possível diálogo, porque o marco de leitura das terras colonizadas
foi sempre aquele oferecido pela mítica hegemônica ocidental, isto quer dizer que o
grande sistema judaico-cristão/grego-platónico: jamais, ou poucas vezes, se tem lido
América Latina com suas próprias ontologias, estéticas e políticas. Em nossa
comunicação exporemos a relação entre o mito, estética e política e da sua relevância no
labor da criação literária.
A base teórica empregada será a do pensamento deleuze-guattariano. Por outra parte,
em relação às ontologias ameríndias que norteiam a nossa discussão partiremos dos
aportes de Eduardo Viveiros de Castro como perspectivismo e multinaturalismo. Assim,
o nosso interesse se concentrará em propor uma crítica ao molde monológico e
homogeneizante sem esquecer seu valor aliás dos seus limites metodológicos.
Palavras-chave:
Mito. Estética. Política. Ontologia. Epistemologia. Teoria literária.
Segundo Platão um dos atos heroicos de Sócrates foi tirar o pensamento mítico
dos cidadãos para dar passo à episteme, ao conhecimento da verdade que seria
desenvolvido com suma destreza na República como ponto final e prático do sistema
ideal de vida para os homens em sociedade. Porém, depois de muitas palavras e tempo,
os mitos não só ressuscitaram em diversas formas, mas também demostraram um vigor
1
2605
sem precedentes. Somente se tinha trocado um tipo de organização do pensamento por
outro: como os deuses não existiam ou deixaram de existir, não se tinha que procurar
mais que a luz do bem resumida no novo mito da razão que ainda segue vigente. Neste
sentido o que nós vamos falar hoje ou é irracional ou responde a uma racionalidade
outra.
O que tem a ver isto com a atualidade? Muito, porque nesta era da praticidade
absoluta o labor dos interessados nas letras está sendo percebido como um sobrante
inútil de energias que não conduzem a nenhum lugar. Ou seja, existe um divórcio tal
entre a letra e a vida que se requer uma revisão paciente e comprometida por parte dos
que ainda acreditam no poder da palavra. Assim, hoje queremos recuperar o laço entre o
mítico, o estético e o político para ir (re)descobrindo o lugar da crítica no cosmos (não,
não estamos exagerando).
O que queremos dizer até agora é que as míticas propõem mundos por sentir e é
sobre esta base que foram percebidos como perigosos para Platão e seu mestre. Mas,
quem explorava e expressava os mitos, quem propunha modos de sentir distintos aos
racionais ? A poesia e os poetas, esse fato e esses homens
inadmissíveis dentro das esferas do poder. Por esse motivo foram expulsos do sistema
de governo e até agora a condena continua como um estigma reafirmado pelo
fortalecimento do cientificismo que, como bom mito, nega à subjetividade valor nos
processos de construção do mundo e na administração do poder ou melhor conhecida
como política.
2606
Somente agora temos nosso trítico completo: mito, estética e política nunca
estiveram separados e o que fez a operação platônica ao eliminar o primeiro elemento
deste conjunto conduziu a uma figura incompleta da realidade. É correto que com a
alegoria da caverna se substituíam as narrações, mas, por outro lado, se restava
multiplicidade, diálogo e proximidade ao sentir. Citamos o que se escreve na República
sobre os poetas:
Por outro lado, existiria o animismo, ontologia que não faz essa divisão
epistémica e que, por esse mesmo motivo, não objetivaria, senão subjetivaria a
experiência no mundo. Deste modo, o antropogenismo ou o princípio pessoal dos seres
do cosmos (que pode ser ampla ou restritiva) descentraria a exclusividade do homem
como regente ou classificador dos fenómenos. Onde encontramos ainda vivo este modo
de pensamento é nos coletivos ameríndios do nosso continente, por exemplo. Aqui o
3
2607
jogo volta-se perigoso para nós. Trasladar a epistemologia ameríndia para a literatura
seria depredação, roubo? Por outra parte, se quer, com o que se tem falado até agora,
virar os estudos literários a um plano cognoscitivo para o qual não foram concebidos? O
antropólogo, Eduardo Viveiros de Castro, tem uma resposta para estas dúvidas: [a]
semioestética da inmediatez [...] convida-nos a imaginar um outro conceito de teoria
(2013, p.103) Isto é a (re)união do sentido e do sentir seria a pauta arcaizante, entendida
como busca da origem, segundo Giorgio Agamben (2011, p. 26) da nossa proposta
teórica.
Qual é essa terra e quais esses homens que faltam? Um espaço superpovoado, e
seres que reconheçam a ligação íntima entre ser, sentir e agir. Nessa ordem, por um
lado, se potenciariam os estudos literários posto que seriam a ponte qualificada dos
perceptos puros da literatura em um trabalho de tradução de sentires e, por outro lado,
se reconheceria por fim, a validez dos reclamos políticos de povos ameaçados pela
sombra da desqualificação monológica do Ocidente. Referimo-nos à selvagização das
suas míticas, posto que uma das lutas primeiras gira em torno à simetrização e
complementariedade mítica. Não falamos de um retorno a um passado adâmico nem a
2608
um futuro hipertécnico, mas às negociações que podem-se realizar hoje, pelo menos, a
partir do nosso campo de estudo.
2609
comunidade à que pertencem. Por exemplo, para não ficar muito longe do mundo, qual
é a importância da recuperação de Sousândrade para o Brasil? Se em um primeiro
momento sua criação foi revitalizada pela sua modernidade expressiva, em um segundo
momento teria que se passar a interpretar as lutas da lógica que construiu esse texto
dedicado ao Brasil e ao nosso continente.
Por outra parte, ao mesmo tempo que mapa, os textos permeados de mito (temos
que mencionar a existência de gradações e matizes sobre este tema) são teorias
singulares do mundo, são cortes analíticos do mundo, mas a grande diferença e
problema da análise que faz o mito é que não cessa de se mover com o cosmos
percebido, enquanto uma pesquisa de cunho asséptico só procura taxonomizar um ente
sem vida que nasceu para ser colocado em uma prateleira. Finalmente, Eagleton, soma
um possível terceiro elemento do mito: o jogo estético. Isto quer dizer a relação
interpretativa, no sentido teatral, que se estabelece entre o texto como sentir(es)
concentrados e as possibilidades de sentir que propõe ao leitor. Sem ir muito longe de
Aristóteles, a obra seria, à vez, teoreses, praxes y poieses, onde o último elemento não
seria algo acabado, mas aberto à relação: a poesia, no sentido amplo de criação artística,
vai dirigida às políticas que descansam sobre teorias do sentir.
1
«Al igual que el cuerpo, las obras literarias están suspendidas entre el hecho y el acto, la estructura y la
práctica, lo material y lo semántico» (EAGLETON, 2013, p. 264).
2610
construção do mundo por vir que tanto interessava a Sousândrade, a José María
Arguedas ou a Carlos Drummond de Andrade.
A atividade, porém, que se relaciona de perto com o caos nunca foi bem vista
como já temos falado. A consequência imediata de rejeitar o caos como constituinte da
realidade, explicada a través dos mitos, conduziu ao homem a desestimar qualquer tipo
de participação das narrações na vida prática da comunidade e na sua construção
convertendo à literatura, última trincheira humanizante, em algo inútil na formação do
homem. Isto quer dizer que aquele que faz arte com as palavras, par excellence, só
engana por essa relação demoníaca com o não verdadeiro, com o escuro. O sentido das
narrações do ser ficaria perdido desta forma e, em consequência, seu potencial ético ou
melhor etológico.
Para finalizar, por que o interesse na relação mito, estética e política? Por que os
expulsos depois da poesia e os poetas seriam os sofistas, nós. Com isto queremos
reconhecer o lado positivo da prática deles e da que somos herdeiros: a relevância da
sabedoria prática apreendida da escuta atenta do conhecimento plasmado no fenômeno
literário e a exposição da sua importância para a República; justamente até onde nós
podemos participar. Se teve um tempo em que se falava dos estudos literários como
ciência e nesse sentido gostaríamos de citar a Roy Wagner para fechar, por enquanto,
Um bom artista ou cientista se torna uma parte separada de sua
cultura, que se desenvolve de modos inusitados, levando adiante suas ideias mediante
transformações que outros talvez jamais experimentem Errada a vida do
pesquisador que deixa o compromisso com o mundo a través da matéria que lhe é
confiada.
2611
Referências
DESCOLA, Philippe. Más allá de naturaleza y cultura. Trad. Horacio Pons. Buenos
Aires: Amorrortu, 2012.
PLATÓN. República (Obras completas, tomo VI). Trad. Conrado Eggers Lan.
Barcelona: Gredos, 2000.
VIVEIROS -Strauss e a
2612
A POTÊNCIA DA METÁFORA EM JORGE LUÍS BORGES
Damares do Nascimento Fernandes Costa1 (UEPB)
RESUMO:
nos textos do autor, buscamos pensar o conceito de metáfora presente tanto em textos
considerando sempre o caráter híbrido entre
os gêneros textuais para Borges E no poema "Versos de Catorce", do livro Luna de Enfrente.
Esse conceito poeticamente elaborado aponta esteticamente para uma dimensão política da
palavra, cuja potencialidade é advinda da voz de uma singularidade que fala. Dessa forma,
convidamos à discussão o pensamento de Adriana Cavaero (2011), que pensa a relação entre
voz e palavra como uma relação de unicidade; Derrida (1973), no que tange à ideia de rastro e
Ricoeur (2005), para pensar a metáfora borgeana e suas reconstruções no campo da ética, uma
vez que esse elemento na obra do autor argentino aponta para o repensar de uma questão central
no panorama da cena filosófica contemporânea que é a questão da linguagem.
2613
todo o seu imponente palácio a um poeta. O palácio fabuloso com todos os seus jardins
paradisíacos que prefiguravam um labirinto. No passeio, o imperador revelava toda a
sua onipotência: todos os rios resplandecentes que atravessaram nas embarcações ou
imperial passava e a decapitação a quem não o fizesse, afirmavam ainda mais o caráter
imponente do imperador e de todo seu palácio. Até que,
Al pie de la ultima torre fue que el poeta (que estaba como ajeno a los
espetáculos que eran maravilla de todos) recitó la breve composición
que hoy vinculamos indissolublemente a su nombre y que, ségun
repiten los historiadores más elegantes, le deparó la inmortalidad y la
muerte. El texto se há perdido; hay quien entiende que constaba de un
verso; otros, de una sola palavra. Lo certo, lo increíble, es que en el
poema estaba entero y minucioso el palácio enorme, com cada ilustre
porcelana y cada dibujo en cada porcelana y las penumbras y las luces
de los crepúsculos y cada instante desdichado o feliz de las gloriosas
dinastias de mortales, de dioses y de dragones que habitaron en él
desde el interminable passado. Todos callaron, pero el Emperador
hierro del
verdugo segó la vida del poeta. (grifos meus).
desapareceu como que abolido e fulminado pela última sílaba, pois não podem haver
duas coisas iguais no mundo. Mas, o irônico narrador nega tais versões, afirmando que
esclavo del
2614
papel politicamente subversivo, revelando a potência da palavra, da esfera acústica (tão
temida por Platão). A palavra do escravo-poeta, poderíamos dizer, a SUA palavra
revolucionária, revela sua unicidade como ser singular que exprime-se a si mesmo e
dirige-se a outro. Note-se que todos calaram, mas o imperador exclamou: arrebataste-
me o palácio! Notória é a relação entre os dois: o escravo-poeta e o imperador, a relação
entre suas vozes, palavras e ações: ao término da recitação, o arrebatamento do palácio;
ao término da exclamação contundente, a dissipação da vida do outro. Cada um
revelando-se a si mesmo, sua unicidade, na pluralidade de suas relações. Nessa leitura,
consideramos que o falar exprime o si mesmo e a natureza política do espaço relacional.
Toda essa ilustração e conjecturas iniciais nos permitem contornar nosso intuito
de fazer uma leitura de algumas perspectivas da metáfora em Borges que fogem do
conceito tradicional desse elemento. Tomando como base dois textos ensaísticos (mas,
não menos ficcionais) do autor, que são: Las Kenningar e La metáfora; para em seguida
empreendermos a leitura de um poema de um dos textos iniciais de Borges, em que se
evidenciará as nossas postulações sobre a temática em questão. Nossa hipótese é que a
metáfora apresenta-se em Borges para além de termos de representação e, que, embora
não possamos fugir da ideia de imagem relacionada à METÁFORA, o que aparenta se
delinear na leitura dos textos propostos é uma estreita relação da metáfora com a voz, no
que diz respeito à corporeidade da palavra, na qual se inscreve a perspectiva relacional,
de acordo com a perspectiva ensaiada por Adriana Cavarero, em Vozes Plurais (2011).
Essa relação voz e palavra e, consequentemente, metáfora viabiliza pensar questões
relativas ao sentido, que nos leva a pincelar em nossa discussão o que Derrida elabora
sobre a ideia de rastro em Gramatologia (1973).
2615
Pensando essa relação entre voz e palavra como uma relação de unicidade,
Adriana Cavarero (2011) elabora uma política ontológica antimetafísica baseada em
vozes singulares que tem como condição o aspecto da relacionalidade comunicativa
com outras singularidades vocais, instituindo assim, a noção de singularidades plurais.
A metafísica platônica, que instaura uma política voltada para um logos individualista,
centrado na visão e desvocalizado, é confrontada por Adriana que desenvolve a teoria
da ontologia vocálica da unicidade subvertendo a relação problemática estabelecida
entre logos e política pelo pensamento hegemônico da metafísica ocidental. Entre as
questões que pontua, destaca-se a politicidade da palavra2 e da voz como elementos
reveladores da unicidade de quem fala 3, o que constitui um caráter corpóreo da voz e da
palavra: há um corpo que a expressa, uma acústica que a conduz. Essa corporeidade
pressupõe um ritmo: as singularidades trocam os sons em intervalos de tempo
contextuais que fabricam uma ressonância acústica.
de uma voz que é ainda voz porque precede o advento da palavra, mas sim na
recuperação da voz no âmbito daquela palavra a que a voz mesma é essencialmente
mada
e a expressividade do dizer, ou seja, entre voz e palavra há uma relação intrínseca.
2
A questão da politicidade da palavra é desenvolvida por Adriana Cavarero a partir dos estudos de
Hannah Arendt, entretanto, Adriana amplia as discussões de Arendt potencializando a politicidade na voz,
antes mesmo de sua constituição enquanto palavra.
3
Ao pontuar que a voz revela a unicidade dos seres que falam, há uma subversão das constituições
metafísicas que tratam de categorias fictícias como as de sujeito, indivíduo, homem. Tais categorias não
revelam os seres únicos nem suas trocas vocálicas porque são abstratas, totalizadoras e hierárquicas. O eu
singular tem nome e sobrenome, é identificável, porque fala aqui e agora no presente.
2616
4
um ritmo. As palavras se juntam e se separam respeitando certos princípios rítmic .
Essa dinâmica da palavra é a dinâmica da comunicação em sua relacionalidade. Assim,
pode-se presumir que a língua é musical e rítmica, tem acentos, propõe pausas, porque
pressupõe a relação com o outro. Essa lei da ressonância está na origem de toda a
comunicação.
4
tmo é algo mais que medida, algo mais que tempo dividido em porções. A sucessão
de golpes e pausas revela certa intencionalidade, algo assim como uma direção [...] sentimos que o ritmo
é um ir em direção a algo, mas não sabemos o que vem a ser esse algo. Todo ritmo é sentido de algo.
(PAZ, 2012, p. 64). Mais à frente, Paz afirma que o ritmo é tempo original e que esse tempo não está fora
do homem. Dessa forma, essa ritmicidade inerente ao homem é expressa em suas vocalizações, que
exprime por meio de sons, atos e palavras a sua unicidade e, por conseguinte sua politicidade, uma vez
antiga do fato decisivo que nos faz ser homens: ser temporais, ser mortais e sempre lançados em direção a
5
2617
ahora que fueron el primer deliberado goce verbal de una literatura instintiva7
Assinala-se aqui a característica oral dessas construções. Um dos primeiros exemplos de
Kenningar no texto são alguns versos do poeta-viking (escaldo) Egil Skalagrímson8:
Para Borges, versos como o terceiro e o quinto oferecem uma satisfação quase
orgânica. Ele afirma que o que procuram transmitir ou sugerir é indiferente e nulo. O
que realmente importa nessas construções é o contato heterogêneo entre as palavras.
Não provocam imagens, não são um ponto de partida, são apenas termos. Outros
exemplos dados são os que se referem ao ar:
muitas outras construções como essas, afirmando que as reduções a uma palavra
constituem perdas, ou seja, a variedade e contato entre as palavras dos termos
metafóricos, cujo sentido, muitas vezes não é possível explicar, possibilita satisfações,
vacilantes sensações que importam mais do que uma relação fixa entre significante e
significado.
em uma época em que o acesso à escrita era menos frequente. Os escaldos compunham e davam suas
intención
interpretações dos mesmos.
7
gozo verbal deliberado de uma literatura
instintiva.
8
Um dos guerreiros Islandeses mais sanguinários da época Viking. Matava e recitava poemas.
9
espada/ alimentou-se com heróis na planície./ Serpentes da lua dos piratas/ atenderam à vontade dos
Ferros.
2618
uma metáfora é construído e reconstruído subjetivamente, é uma linha de fuga, em um
sentido Deleuziano, da estrutura do sentido original.
Diante de tudo o que já foi exposto, pensaremos a metáfora nessa relação entre
voz e palavra como uma relação de unicidade de uma voz que diz e que ao dizer se diz
enquanto singularidade. Assim como o poeta-escravo, que parte de uma margem e diz
sua metáfora potência que destrona o palácio, Borges parte de uma margem para falar
das Kenningar: escreve sobre textos esquecidos ou ignorados, reinventando estéticas,
ampliando o horizonte de discussão e de possibilidades de leitura. Na verdade, Borges
parte de várias margens, o escritor das orillas, como descreve Beatriz Sarlo (1995)
também entrecruza com o centro obras de autores menores argentinos, dá voz ao que é
menor, à penumbra, ao pôr do sol; em seus textos iniciais recria metaforicamente
Buenos Aires, enquanto cidade poética, cuja força e fervor não está no centro, mas nas
margens. O autor é uma voz argentina, uma singularidade que fala a partir de um lugar
que está às margens do ocidente e coloca a cidade e a própria literatura falando de igual
para igual com outras cidades e literaturas centrais. Há, em toda sua obra um fluxo de
entrecruzamentos entre o centro e a margem, que reivindica enquanto voz e
10
Nesse mesmo direcionamento, Goulart (2003, p.5) indica que os critérios maniqueístas seriam
desconsiderados se, ao refletir a linguagem a partir de diversos parâmetros, a significação fosse
2619
singularidade argentina, um espaço original, que é o espaço das margens, conforme
assinala Sarlo (2005), e esse espaço é potencializado pelas metáforas.
argentina ritmiza um direito de voz, de ter enquanto subúrbio, uma aventura infinita e
enquanto vagos campos, um sentido de praia. As metáforas da cidade a redescrevem,
para além do estético e do representativo, apresentam-se como ato de linguagem que
suspende o mundo e cria um outro território.
Nesses termos, podemos dizer juntamente com Ricoeur (2005) que a linguagem
poética possibilita a recriação ontológica da existência. O poeta tem o poder de suscitar
e modelar o imaginário através da linguagem. É isso o que o filósofo francês postula
2620
como denotação de segunda ordem, pois a
condição de que se suspenda a referência do discurso descritivo. Esse postulado conduz
ao problema da metáfora, que conquista seu sentido como metafórico nas ruínas do que
se pode chamar sua referência literal (RICOEUR, 2005, p. 338). Assim, as metáforas da
Buenos Aires Borgeana recriam uma cidade que fervilha, não no fervor da cidade
invadida pela modernidade no início do século XX, mas em um fervor atraído para as
margens, através de uma singularidade que diz e que se diz enquanto margem a partir de
metáforas que são potências da voz e do dizer. O exercício que se propõe na leitura
desses versos é o de recuperar a voz, uma voz das margens, no âmbito da palavra
metafórica.
Finalizando essa leitura, concluímos que a metáfora, esse tropo que traz em si
toda a carga tradicional da metafísica ocidental, que prioriza as ideias de analogia e
representação, pode ser repensada em Borges a partir de uma perspectiva que subverte
os meios abstracionistas da tradição e que incorpora a metáfora no âmbito do corpo,
através da voz. Assim, como vimos, a metáfora em Borges apresenta-se em termos de
potência porque são, e porque o que importa nelas é a voz do poeta, do escravo, do
Islandês, do argentino, e da própria margem, enquanto uma voz potencializada e
recuperada na esfera da palavra, que diz, mas antes de dizer diz sua própria
singularidade, se diz em sua humanidade, enquanto unicidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Jorge Luís Borges. Obras completas v.I e II. Buenos Aires: Emecé, 2009
CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte:
editora da UFMG, 2011
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973.
GOULART, Audemaro T. Notas sobre o desconstrucionismo de Jacques Derridá.
Programa de Pós-Graduação em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa da PUC
Minas, 2003. Disponível em:
http://www.pucminas.br/imagedb/mestrado_doutorado/publicacoes/PUA_ARQ_ARQU
I20121011175312.pdf (acesso em 15 de setembro de 2015)
PAZ, Octávio. O arco e a Lira. São Paulo: Cosaic Naify, 2012.
RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva.
SARLO, Beatriz. Borges: un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. São Paulo: Companhia das
letras, 1993.
2621
A DIALÉTICA DO TRÁGICO
Dante Gatto (UNEMAT)
Resumo: este trabalho busca pensar a dialética do trágico, tomando como princípio a
contraditória natureza humana que não se reduz a uma lógica maniqueísta ou positivista. George
Lukács (1865-1971), Miguel de Unamuno (1864-1936) e Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-
1900) constituem-se na fundamentação teórica principal. Respectivamente: Teoria do Romance,
Do Sentimento Trágico da Vida e Genealogia da Moral. Resumidamente: o trágico nasceu da
religião e a religião nasceu da solidão. A solidão de Deus, por conta da perda do paraíso. Pode-
se pensar em termos de tese, antítese e síntese: solidão, convívio, problemas. O processo é
cíclico. A tensão está na contradição básica da nossa natureza irracional e a precisão da
racionalidade, por conta da nossa natureza gregária, até o paroxismo do racionalismo burguês.
Esta disposição também suscita um movimento dialético de negação e aproveitamento: mito,
razão, racionalismo. Se as tragédias gregas se sustentaram no conflito entre moira e ananké, se
o livre-arbítrio amparou a construção da nossa civilização, a pós-modernidade parece significar
um retorno da nossa submissão ao destino.
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2
2623
3
2624
4
só
Da solidão, essência do trágico, nasceu as religiões. Se se pode falar de trágico
sem falar de tragédia, não podemos não falar de religião. Em princípio, em tempos
afortunados, como argumenta Lukács (2009), não havia o medo de perder-se, porque
não havia mesmo, ainda, a possibilidade da perda. Descobrimos o sentido da perda por
conta da nostalgia do paraíso que a produtividade do espírito construiu. A religião
nasceu de tal perda. A solidão de Deus. E como era diferente do cristianismo a religião
2625
5
mítica dos gregos: festa, dança, música, máscara, embriaguez e orgia faziam parte do
culto a Dioniso. Prerrogativas racionais, no entanto, mataram esse lado festival da
religião que foi substituído por uma relação pessoal com o deus único.
Da razão clássica avançamos para o racionalismo burguês. Quando inventamos a
religião, enquanto maneira de retorno a Deus, já trazíamos nostalgia do espírito de
coletividade, de um tempo em que havia comunhão, mesmo conflituosa, entre homem e
natureza, coletividade e Deus, mas perdemos isto, por que fomos, digamos assim,
condenados à individualidade solitária. O Renascimento recrudesceu tal realidade e as
revoluções burguesas do século XVIII levaram-na ao paroxismo. Ora, castigo de Deus
ou dos deuses, a coletividade se fez outra, tomada pelo racionalismo do capital em que a
situação se torna mais contraditória. Queremos dizer que se a razão absorve o
sentimento, por vezes, tensamente, o que configura a nossa condição trágica, o
racionalismo tenta negar o sentimento em nome de valores pragmáticos da sociedade
voltada para a produção, o consumo e o lucro.
Na perspectiva kantiana, cabe lembrar, razão é a faculdade das ideias, que, como
postulado, ultrapassa o conhecimento conceitual e científico, uma vez que acolhe
elementos de ordem sensível. Racionalismo seria, pois, a razão eclipsada, atacada do
pragmatismo que imprimimos à vida. Ora, temos mais uma disposição dialética para a
problemática do trágico: mito, razão, racionalismo.
Cabe introduzir o arquétipo nesta dialética. Conforme refletimos em trabalho
anterior: da individualidade como resultado para a sobrevivência e calcinada pela
convivência, construímos individualidade pressionada por forças arquetípicas, isto é, a
nossa individualidade que anseia pelo espírito de comunidade tão confortável, que foi
perdido se depara, agora, com a nova comunidade, reconstrução da primeira, mas
tomada pelo racionalismo, muito diferente da razão clássica. E alimentamos a própria
máquina que nos escraviza o que insere mais lenha na fogueira do trágico. (GATTO;
RODRIGUES; SILVA, 2015).
A pós-modernidade implicou uma mudança radical, principalmente no que
concerne a uma perspectiva de futuro. Esta na base disso a desilusão da modernidade
por conta do fim das utopias, principalmente as promessas do socialismo real. O
resultado disso é que o presente ganhou em significação e as particularidades se fizeram
mais relevantes que a universalidade abstrata, e os paradigmas hegemônicos acabaram
sendo contestados. Sob esse clima surgiu, por exemplo, o Mercosul e o Brasil se uniu,
também, a outros países (Rússia, China e África do Sul) que não fazem parte do
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6
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7
o determina e predestinado a ser isto ou aquilo? Por vezes, até eu mesmo penso que não
dei chance a experiência, mas já nasci de esquerda, já nasci afeito a utopia comunista e
adverso às religiões.
Referências
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REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE O SUBLIME E A DESTRUIÇÃO EM
THE RINGS OF SATURN
Resumo: Desde o século XVIII, quando a teorização sobre o sublime emergiu com força nos
meios literários e filosóficos, a relação entre a paixão do sublime e a destruição se evidenciou
mo muito
usado por filósofos como Burke e Kant, para definir o que sentimos diante de certos fenômenos
da natureza. A destruição, nesse caso, encontra-se no sublime porque o fenômeno ou objeto que
causa tal paixão é sentido como algo ameaçador, algo que pode destruir o ser humano. Na
literatura, o sublime é tradicionalmente ligado ao estilo grandioso e eloquente, com metáforas
poderosas que justamente evocam esses poderes da natureza que tanto assombram o ser humano
(Longinus). Para Burke, o poder das palavras, no entanto, não é o de fazer surgir imagens
sublimes em nossas mentes, mas de evocar sentimentos e de, por trás de uma descrição muitas
vezes cristalina, esconder uma ideia sombria. Na obra de W. G. Sebald, descrições de lugares ou
eventos sublimes, se misturam com um estilo que justamente consegue encadear uma ideia de
destruição por trás de frases cristalinas. Na obra do autor, no entanto, a destruição não é mais
uma ameaça possível, mas já aconteceu; os lugares que o narrador visita estão geralmente
carregados de emblemas da destruição proporcionada pela natureza ou pelo homem, e é nesse
ponto que ele apresenta um novo sublime. O presente trabalho irá introduzir a questão do
sublime em Sebald, dando atenção apenas à obra The Rings of Saturn, mostrando como esse
elemento aparece nesse livro. Por se tratar de reflexões preliminares, no entanto, algumas
questões ainda ficarão em aberto.
2629
algum modo1, também a esse problema da representação de certos temas, como o mal, a
violência, a destruição.
Alguns autores, entre eles os críticos Susan Sontag (2016), Cynthia Ozick (2001)
e James Wood (1998), e os estudiosos da obra de Sebald, como Mark McCulloh (2003),
não tiveram problema em chamar a prosa
se embrenhou a fundo no assunto, apenas qualificando aqui e ali o estilo do autor como
tal. As questões de como Sebald transforma a destruição em sublime, ou de porque ele
faz isso não foram por eles debatidas. Tais questões, que estarão no horizonte da minha
tese sobre a obra de Sebald, apesar de orientarem também esse trabalho, não serão
respondidas aqui, pois tomo nesse recorte apenas uma das obras do autor, The Rings of
Saturn2, para trazer as primeiras reflexões sobre o sublime, tecendo algumas relações
entre este e a destruição. Sendo apenas uma rápida introdução ao assunto, tais notas não
pretendem esgotar as questões levantadas, mas antes apenas delinear algumas linhas do
que será mais adiante discutido exaustivamente na minha tese.
A relação entre o sublime e a destruição não é propriamente uma novidade, pois
desde as exaustivas teorizações sobre o tema, principalmente na filosofia dos séculos
XVIII e XIX, o sublime é a emoção que nasce das ideias de dor e perigo. Burke (1993)
já apresenta o sublime como ligado àquilo que nos apresenta o terror prazeroso, pois as
ideias de dor são sempre mais fortes que as de prazer. Sendo assim, na natureza, a
paixão que o sublime e o grandioso despertam um estado de alma em
que todos os movimentos são sustados por um certo grau de horror; a origem do poder
do sublime está justamente no fato de ele anteceder o raciocínio e nos arrebatar com
uma força irresistível. Sendo o medo, que é o pressentimento da dor e da morte e que
atua semelhantemente à dor real, a paixão que despoja completamente o espírito da sua
faculdade de agir e raciocinar, tudo que é terrível à visão é sublime, e, nesse caso, não
só as coisas grandiosas, mas também as pequenas. Na seção V da parte II, Burke mostra
ambém deriva do terror, pois não há poder relacionado ao prazer, apenas
à dor. Mais uma vez ele reforça que as ideias de dor e morte causam tanta impressão em
nós que elas sempre serão superiores a qualquer prazer. Assim, quando se volta para as
palavras,
1
Infelizmente as relações entre a questão do sublime e o problema do mal na obra de Sebald são
complicadas e intricadas demais para o escopo desse trabalho. Sendo assim, apesar de ser o ponto de
partida desse texto, não será discutido detalhadamente.
A escolha desse livro para esse trabalho não é totalmente aleatória, pois sendo ele a minha porta de
entrada nas obras de Sebald, é aquele cujas anotações deram origem ao meu projeto de tese.
2630
defender que as ideias obscuras são mais propícias a tornar algo extremamente terrível,
mas que estas ideias podem ser transmitidas por descrições vívidas e expressivas. Para
ele, a poesia é sublime não por causa da mimese, mas pela confusão de imagens, por um
poder intrínseco afetivo, tema que ele desenvolve na quinta e última parte3.
Posteriormente4, Kant (2012) vai desenvolver essa noção de medo estetizado, e
precisará resolver algumas questões na sua Analítica do Sublime. Para resolver a
questão do medo como algo que não seja nem real, de modo que seu efeito deixe de ser
estético, nem falso o suficiente para não causar efeito, Kant vai precisar apelar para a
noção de virtualidade (Doran, 2015). O filósofo
origem burkeana) na seção sobre o Sublime Dinâmico, para resolver o problema,
definindo o sublime dinâmico como o poder da natureza que não tem domínio sobre
nós, sendo, assim, estético (Kant, 2012); nosso temor da natureza só pode ir até o ponto
em que sentimos que não somos páreos para ela, mas ainda assim nós resistimos a ela.
Segundo Doran, (2015) a noção kantiana de sublime dinâmico, então, leva a um
paradoxo que será resolvido por uma reinterpretação, agora, a partir da dualidade do
nosso ser: físico e sensório, moral e espiritual. Aqui, para o autor, a ideia kantiana de
meaça existencial que pode facilmente
nos destruir, encontra-se (BURKE, 1993,
p. 47).
Outro filósofo que relacionou o sublime a essa noção de autopreservação, foi
Schiller, que nos seu estudo, Do Sublime
22). O filósofo e, para ele, o sublime é
o que na arte trágica apresenta a natureza humana que experimenta a autonomia moral
do sofrimento. Ele recorre a essa divisão antropológica do homem como ser natural
dominado por dois impulsos: o de autoconservação, ligado ao plano prático, e o de
conhecimento, ou da representação, ligado ao plano teórico; o ser humano, através
desses dois impulsos, permanece duplamente independente da natureza. A partir daí, há
No desenvolvimento desse trabalho, erá estudado também como Sebald mescla a sublimidade da
palavra com a da imagem, ou da imitação. Suas descrições de objetos naturais ou mesmo arquitetônicos
podem ser investigados à luz das qualidades que Burke enumera, mas, ao mesmo tempo, é na
profundidade obscura das ideias por detrás de suas descrições cristalinas que o sublime aparece com mais
força em sua obra.
4
Já antes de Burke, o crítico inglês John
sublime, ligando ele, no seu esforço em relacionar a grande poesia com as ideias religiosas, ao medo da
vingança do Deus irado (Doran, 2015). De fato, para Doran (2015), é Dennis quem primeiro vai estetizar
No seu livro sobre o sublime, o autor desenvolve
amplamente a discussão sobre a teoria do sublime desse autor pouco lembrado.
2631
também, como em Kant, uma divisão no próprio sublime, entre, o sublime teórico, que
permite nos perceber, no nosso impulso de conhecimento, independentes da natureza,
pois ela amplia nosso conhecimento; o sublime prático, cuja independência se dá quanto
ao impulso de autoconservação, pois a natureza representa um poder capaz de
determinar nosso estado (Schiller, 2011). Essa divisão é relacionada à de Kant entre
sublime matemático (teórico) e dinâmico (prático).
Schiller, então, vai desenvolver sua reflexão apontando para a preponderância,
mesmo em Kant, do sublime prático (dinâmico), pois neste o homem sente sua
verdadeira e completa independência. Enquanto no sublime teórico (matemático)
sentimos nossa independência das condições naturais apenas na ação do representar, no
sublime prático essa independência é sentida quanto à própria existência interior, ou
seja, sentimo-nos elevados acima do destino, acaso e necessidade natural. Ou seja, entre
em jogo aqui a questão da morte e da eterna necessidade humana de superá-la. O
sublime prático está ligado aos objetos que causam pavor (Süssekind, 2011), e, então,
voltamos à questão do medo e da destruição. Os objetos que causam o sublime prático
abalam a inclinação determinante da existência do homem enquanto ser natural. O
exemplo de Schiller para diferenciar estes dois sublimes é justamente o oceano: a
imagem dele calmo é um exemplo do sublime teórico pela vastidão que remete ao
infinito que nossa imaginação não consegue abarcar; enquanto que o oceano em
tempestade é um exemplo do sublime prático.
Sendo assim, quando diante dos perigos que a natureza lhe impõe, o impulso de
autoconservação busca manter a existência física e natural do homem, e, então, combate
a violência com a violência, através da cultura física: é o homem agindo sobre a
natureza através de sua astúcia, usando a tecnologia para se sobressair sobre essa
(Schiller, 2011)5.
5
Essa tática, porém, não é suficiente, pois há uma determinação da natureza que o homem não consegue
vencer, a morte. Esse problema da finitude ataca, para Schiller, a própria essência do homem, que é um
ser essencialmente volitivo, ou seja, aquele que não é obrigado a ser obrigado. Assim, para alcançar a
liberdade verdadeira, liberdade quanto às determinações naturais, o homem precisa eliminar a violência
no seu conceito, e, para isso, é preciso se perceber como um ser que é, mais do que condicionado pela
natureza, livre dela por sua ação moral. S esse ser moral que consegue se
perceber livre do condicionamento da necessidade natural, e essa percepção se dá justamente pela
experiência do sublime, que mostra ao homem sua capacidade de ir além da natureza fora de si e dentro
de si. Essa noção, no entanto, teve que ser deixada de fora na discussão desse trabalho, devido ao seu
escopo, bem como muito da teoria kantiana sobre o sublime também foi apenas brevemente discutida. Tal
problemática, no entanto, é importante frisar, será discutida na tese, pois acredito que há em Sebald uma
questão importante quanto à relação do homem com a morte, como podemos ver, principalmente, em
Rings of Saturn, nas reflexões que ele faz sobre Thomas Browne.
2632
Ao longo do livro The Rings of Saturn, somos apresentados a inúmeros lugares
marcados pelos traços da destruição: das ruínas de castelos medievais que estão
desmoronando por causa da erosão da areia a restos de moinhos de vento, passando por
instalações militares abandonadas no meio do nada. Além disso, há também, os traços
de destruição natural: dos restos de árvores mortas às árvores arrancadas por um
furacão6. Não é por nada que na primeira página do livro já encontramos a descrição de
uma sensação, uma espécie de vertigem catatônica, que acomete constantemente os
narradores e personagens de Sebald:
various times when confronted with the traces of destruction, reaching far back into the
SEBALD, 2002a, p. 3). Tal sensação (que chegou a nomear o segundo livro do
7
autor ) sentida sempre nos encontros com paisagens, obras de arte, objetos destruídos,
ou mesmo após uma lembrança , aproxima-se muito da sensação física de tensão nos
nervos ou paralisia momentânea da consciência descrita por alguns filósofos como o
efeito físico do sublime. No entanto, como veremos, a relação entre sublime e
destruição se dá, para os filósofos acima citados, pelo sentimento de temor que o ser
humano sente diante de objetos naturais que ameaçam destruí-lo. Sendo assim, a
destruição é uma força ameaçadora, vinculada ao objeto que causa a sensação do
sublime. Em The Rings of Saturn, o sentimento de sublime é, boa parte das vezes,
transferido para objetos e cenários que mostram o declínio ou destruição de algum
lugar, tanto pela própria força da natureza, quanto pela ação do homem e muitas vezes
interligando essas duas coisas. Ou seja, não é mais apenas uma força que ameaça o
homem, mas os emblemas, indícios, de coisas que já sofreram essa destruição, que já
foram devastadas seja pela força da natureza, seja pela força do próprio homem. Nesse
caso, o próprio ser humano, em uma inversão terrível, pois tal inversão se torna o
símbolo do poder devastador do ser humano, torna-se também fonte do sublime
mesmo que seja de uma forma indireta. Porém, como já afirmado, essa destruição pode
ser causada pelo homem, pela natureza, ou ser resultado da ação de ambos, como forças
que se complementam dentro de uma ordem universal que não conseguimos entender.
Por isso, é importante também perceber que, nesses casos, o sublime em Sebald se
aproxima muito mais das ideias de Burke sobre o poder das palavras para incitar tal
paixão; não é apenas a mimese de cenários ou objetos sublimes que The Rings of Saturn
A destruição do furacão, descrita no capítulo nove, poderia servir como um exemplo quase didático do
sublime dinâmico de Kant, ou o sublime prático de Schiller: o espectador (o narrador) vê, estando
protegido, a fúria destruidora da natureza que poderia facilmente exterminá-lo.
Vertigo, 1999.
2633
apresenta, mas muito mais aquilo que o filósofo considerou como poder afetivo
intrínseco das palavras: elas não fazem surgir imagens em nossa mente, mas evocam
sentimentos, e, podem esconder ideias obscuras que nos provocam paixões sublimes.
No início do capítulo três de The Rings of Saturn, o narrador chega, em sua
jornada pela região do Mar do Norte, na Inglaterra, a uma praia ao sul de Lowestoft, em
que uma linha de barracas de pescadores acompanha a linha da costa. Para ele, os
pescadores já não estão mais ali para pescar ele descreve a decadência da pesca
artesanal local através dos restos de barcos jogados à praia, mais uma imagem de
destruição que evoca certa sublimidade , pois nem mesmo peixes há mais, devido à
poluição trazida pelos rios. Então, o narrador believe (SEBALD, 2002a, p. 52) que
They just want to be in a place where they have the world behind them, and before
them nothing but (Idem). Por um lado, ao dizer o que ele acredita que os
pescadores fazem ali, ele apresenta a tradicional contemplação do sublime na esteira da
sua definição mais comum, e dentro da distinção que Schiller faz entre o sublime
teórico e prático: nessa cena, os pescadores são como o monge no quadro de Caspar
Friedrich contemplando a infinitude sublime do mar8. No entanto, ao direcionar sua
atenção para aquele mar, fonte do sublime, o que o narrador vê é o outro lado desse
sublime, é a história do ser humano como aquele que usou da violência para vencer a
natureza. O que se desenrola a partir do momento em que ele fala do mar e da pesca é a
história da pesca do arenque, um exemplo da cultura física da qual fala Schiller, na qual
o arenque se torna um t e
a descrição da memória dele do filme que via na escola sobre essa pesca cabe
perfeitamente nessa noção:
A história que se desenrola mostra como o homem não tem escrúpulos ao impor
sua força e astúcia para tentar dominar a natureza, e a descrição das técnicas que os
-
possibilidade de sofrimento do animal. Assim, nesse trecho, o sublime se desdobra
2634
nessas duas vertentes que Schiller delineou, e, mais ainda, seu efeito surge não da mera
mimese de objetos sublimes, mas principalmente da ideia obscura por trás das palavras.
Essa ideia se torna mais obscura ainda, e a sublimidade do texto de Sebald se
torna mais notável, quando aprofundamos alguns detalhes dessa descrição da pesca do
arenque, aproximando-
aquela do bicho da seda. Ao descrever o interesse dos estudiosos quanto ao arenque ao
longo do século XIX, Sebald mostra como esses homens da ciência ficavam olhando os
leitores sentirem a empatia pela dor dos peixes morrendo lentamente. O que Sebald
mostra é que nossas desculpas são insuficientes para argumentar em favor de qualquer
destruição que causamos a outros seres vivos.
A meu ver, essa parte sobre o arenque aponta justamente para o fato de que esse
ímpeto de autoconservação que faz o homem querer dominar a natureza pela técnica, e
essa sede de conhecimento que o faz querer conhecer tudo, levou o homem a ir além do
mundo animal. Para a crítica literária Cynthia Ozick (2001), no seu ensaio sobre The
Emigrants, o ano de 1944, ano de nascimento do autor, torna-se um signo emblemático
que plaina sobre a obra dele. Para a autora, Sebald entra em uma linhagem antiga, que
de Homero, na Odisséia a Dante, passando por Virgílio e até pelo Salmista, cantam e
2635
sentido, é interessante trazer Adorno para a reflexão sobre o sublime, pois é justamente
a sua crítica do lado positivo de vitória moral do homem sobre a natureza, aquela que
para Kant e Schiller sentimos justamente diante de objetos sublimes, que ele vai
sentenciar à morte. Se em Kant (e por extensão podemos pensar em Schiller também,
apesar de Adorno não se referir a ele) há um otimismo iluminista da superação do
homem através de sua moralidade, Adorno e Horkaimer (2006) vão mostrar que a
emancipação humana pela racionalidade instrumental se tornou meio de dominação e
holocausto que mostrou aos autores as atrocidades a qual o homem poderia chegar nessa
sua ânsia poder dominação da natureza.
Em Sebald, o arenque, e posteriormente, o bicho da seda são emblemas do
Holocausto judeu. Além do trecho já citado, em que ele aponta o sofrimento de uma
espécie sempre ameaçada pelo desastre, outra pista nos é dada algumas linhas antes,
quando ele ainda descreve o filme que ele via na escola, o qual, filmado em 1936,
mostrava o arenque sendo colocados em barris que eram carregados em trens e
(SEBALD, 2002a, p. 54). É claro que Sebald não está aqui, de modo leviano e
irresponsável, comparando os judeus a animais 9. É importante entender esse modo de
abordar o holocausto pelo viés do que o próprio autor fala em uma entrevista a Michael
Silverblatt (2001), na qual ele explica que certos temas, como as catástrofes humanas,
precisam ser abordados de modo indireto, em que o autor fale daquilo, sem estar falando
diretamente daquilo. Ele cita o exemplo do ensaio The Death of the Moth , de Virginia
Woolf (1981), no qual, segundo ele, a autora fala da morte dos soldados na Primeira
Guerra, sem nunca citá-los, apenas através da reflexão sobre uma mariposa que se
prepara para morrer. Esse modo de tratar de temas impactantes vai se relacionar
justamente com a reflexão de Burke sobre o efeito das palavras e sobre como elas
podem no causar o efeito do sublime justamente por trazer um tema ou uma ideia tão
sombria, de modo tão cristalino.
No último capítulo do livro, ao apresentar a febre que se instalou pela
foi nomeada essa parte no índice do livro, com o Holocausto. Aqui, o autor vai da
história da internacionalização do negócio do bicho da seda no século XIX, até a
2636
Alemanha nazista e o ressurgimento dessa prática pelas mãos dos fascistas alemães.
Não por acaso, essa reflexão se dá quando ele encontra um filme educacional sobre a
sericultura, justamente quando ele procurava aquele filme sobre o arenque. Os dois,
provavelmente pertencentes à mesma série, foram mostrados aos alunos alemães em
suas escolas. Ao contrario da escuridão do filme sobre o arenque, o filme sobre o bicho
da seda era claro, cheio de cores brancas e pessoas felizes cuidando dos bichos. A ideia,
com base em um panfleto de um tal professor Lange, era que as crianças aprendessem
sericultura na escola. Além do desenvolvimento econômico que o cultivo do bicho
traria, ele também er an almost ideal object lesson for the
2a, p. 294), pois eram dóceis, não precisando de jaulas, além
e for a variety of experiments (weighing, measuring and so forth) at
ao filme, e descreve a indústria da
matança:
A forma como o estilo sebaldiano delineia a descrição das imagens do filme até
2637
em catástrofe, pois nunca aprendemos com nossos próprios erros: If we view ourselves
from a great height, it is frightening to realize how little we know about our species, our
SEBALD, 2002a, p.92).
Nesse sentido, o quadro de Jacob van Ruisdael, View of Haarlem with Bleaching
Fields, que o narrador descreve no quarto capítulo, é mais um emblema dessa sublime
destruição, outro exemplo dessa visão sublime por trás da qual se esconde a faceta da
destruição humana10, pois, por trás da bela vista apresentada, se esconde todas as
atrocidades e misérias trazidas pelo progresso e crescimento industrial da época. Em
determinado momento ele analisa que:
The flatland stretching out towards Haarlem is seen from above, from
a vantage point generally identified as the dunes, though the sense of a
bird's-eye view is so strong that the dunes would have to be veritable
hills or even modest mountains. The truth is of course that Ruisdael
did not take up a position on the dunes in order to paint; his vantage
point was an imaginary position some distance above the earth. Only
in this way could he see it all together (SEBALD, 2002a, p. 83).
discutido na tese. Novamente a figura de Elizabeth Costello será trazida para pensarmos o quanto a
literatura deve tratar do mal, e, mais ainda, ir além, trazendo o sublime para o campo da violência. No
meu entender, essa é uma questão que deve ser pensada em conjunto com as próprias reflexões de Sebald
quanto à representação da destruição. Além disso, também as reflexões de Freud sobre o unheimliche e os
estudos já produzidos sobre a presença desse elemento na obra de Sebald, serão importantes.
2638
que nos fazem agir, são os mistérios talvez por detrás de nossa constante e insistente
marca destrutiva. Não é por nada que Sebald escreva sob o signo de Thomas Browne
nesse livro: nele, essa perigosa elevação da linguagem é justamente o que permite o
autor tratar dessa nossa catastrófica história destrutiva através de sublimes alturas. Ela é
perigosa na medida em que dela podemos sempre cair, pois ela se ergue como aquela
beira do abismo da qual o autor está sempre observando nossa existência. Assim,
Coetzee (2008) explica que a vertigem nas obras de Sebald não tem uma explicação
meramente fisiológica, mas metafísica. A meu ver, ela é o efeito justamente dessa
posição perigosa que o autor precisa assumir, que seus narradores assumem para olhar
para nossa insana presença na superfície da terra. O risco é sempre o mesmo, o mesmo
risco do voo de Ícaro11, o mesmo risco do sublime: o ser humano, ao ver sua pequenez
diante da natureza, quer tornar-se maior que ela, e é aí que as órbitas descendentes de
nossa história se formam, descendo concentricamente para o abismo da catástrofe.
Referências
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do
sublime e do belo. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus:
Editora da Universidade de Campinas, 1993.
DORAN, Robert. The theory of the sublime: from Longinus to Kant. Cambridge, UK:
Cambridge University Press, 2015.
Não é por acaso que em seu primeiro livro, After Nature, Sebald se compare ao Ícaro de Bruegel, cuja
queda não é notada por nenhum dos outros sujeitos, sendo imperceptível até para o observador desatento.
2639
OZICK, Cynthia. The Posthumous Sublime. In _____. Quarrel & Quandary. New
York: Vintage International, 2001.
SEBALD, W. G. Interview on Bookworm. Los Angeles, KCRW radio station, 6th dec.
2001. Interview to Michael Silverblatt.
_____. The Rings of Saturn. Translated by Michael Hulse. London, UK: Vintage Books,
2002.a
_____. Vertigo. Translated by Michael Hulse. London, UK: Vintage Books, 2002.b
_____. After Nature. Translated by Michael Hamburger. New York: Modern Library,
2003.
WOOLF, Virginia. The death of the moth. In _____. The death of the moth and other
essays. London, UK: The Hogarth Press, 1981.
2640
Elis Spyker (UFRJ)
Ronaldo Lima Lins (UFRJ)
RESUMO:
primeiro plano o lugar do artista e da obra de arte numa fábula na qual a própria experiência da
literatura se encontra, segundo Deleuze, sob novos paradigmas, já distantes de uma estética. A
literatura menor de Kafka, simbolizada perfeitamente no conto, requer desdobramentos que
ultrapassam o estatuto tradicional da cultura e da arte. Resta, portanto, pensar a respeito da
dimensão do artista, do público e da obra numa comunidade que não permite mais a plena
existência daquilo que Walter Benjamin chamou de aura. A obra de Kafka em questão parece
desenhar o limite da trajetória que a arte moderna percorreu e, assim, evidenciar a natureza dos
impasses vividos pelos artistas e escritores durante o último século. Nesse sentido,
levantaremos, neste trabalho, algumas reflexões que versam sobre a figura do artista e o gesto
artístico no conto, procurando pensá-los em diálogo, especificamente, com a chamada arte de
vanguarda europeia. Ao pensar as noções fundamentais presentes na teoria da arte das
al podemos
esboçar os aspectos filosóficos de obras como as de Franz Kafka e dos artistas de vanguarda.
Autores como Agamben e Zizek fornecerão também, do ponto de vista filosófico, as concepções
necessárias para desenvolvermos a pesquisa no sentido de entender o pensamento sobre a arte e
a literatura, especialmente a obra de Kafka, numa leitura política e não mais puramente estética.
Apagaremos, com isso, as fronteiras entre a ética e a estética, assim como Josefina, a cantora de
Kafka, dissolve todos os possíveis limites entre a arte e o povo.
tuberculose, atingindo seu nível mais grave, provocara lesões na garganta que
comprometeram seriamente sua capacidade respiratória, deglutativa e de fala. Sem
conseguir ingerir alimentos, Kafka esforça-se incrivelmente para revisar as provas
namente
dava vida, na palavra, a Josefina, uma artista da voz, ou uma cantora do silêncio. Pouco
2641
tempo depois, no mesmo ano, Kafka falece, em 3 de junho de 1924, exatamente um mês
antes de completar quarenta e dois anos de idade.
Contrariando todas as expectativas diante das condições em que foi escrito, o
último texto de Kafka se diferencia de seus demais por, como bem observou Zizek
(2012), em alguma medida não carregar aquela atmosfera angustiante e pegajosa
esperada (somente, porém, em alguma medida). Assim somos apresentados à artista e
sua arte, ou ao povo dos camundongos:
Nossa cantora se chama Josefina. Quem não a ouviu não conhece o
poder do canto. Não existe ninguém a quem seu canto não arrebate, o
que deve ser mais valorizado ainda, uma vez que nossa raça em geral
não é amante da música, para nós a música mais amada é a paz do
silêncio; nossa vida é dura e, mesmo quando procuramos nos livrar de
todas as preocupações diárias, já não sabemos nos elevar a coisas tão
distantes do nosso cotidiano como a música. Mas não o lamentamos
muito; nem mesmo chegamos a esse ponto; consideramos como nossa
maior vantagem uma certa esperteza prática, da qual evidentemente
necessitamos com a máxima premência; e é com o sorriso dessa
astúcia que costumamos nos consolar de tudo, ainda que aspirássemos
o que não acontece à felicidade que talvez emane da música. Só
Josefina é uma exceção; ela ama a música e sabe também transmiti-la;
é a única; com o seu passamento a música desaparecerá quem sabe
por quanto tempo da nossa vida.
Muitas vezes me perguntei o que acontece efetivamente com essa
música. De fato somos inteiramente não-musicais; como é que
entendemos a música de Josefina, ou pelo menos acreditamos
entender, já que ela nega nosso entendimento? A resposta mais
simples seria que a beleza do seu canto é tão grande que até o sentido
mais embotado é incapaz de resistir, mas esta resposta não é
satisfatória. Se fosse realmente assim, diante desse canto
precisaríamos, de uma vez por todas, ter o sentimento de algo
extraordinário, a sensação de que nessa garganta ressoa alguma coisa
que nunca ouvimos antes e que não temos absolutamente capacidade
de escutar algo para o qual Josefina e ninguém mais nos torna aptos.
Mas na minha opinião é justamente isso o que não ocorre; eu não o
sinto e nunca o notei também nos outros. Em círculos de confiança
admitimos abertamente uns aos outros que o canto de Josefina,
enquanto canto, não tem nada de excepcional. (KAFKA, 1994, p. 20)
desta estação, que é porta entreaberta não apenas para a artista, seu canto e o povo,
como também para a narrativa, discutiremos algumas questões que, no mínimo,
parecem-nos importantes, quando não nos saltam aos olhos.
Antes de qualquer coisa, é necessário atentarmos para uma impressão que, logo
de início, se nos coloca; trata-se do tom crítico e analítico que se insinua na voz
narrativa do conto. Ao longo de todo o texto, percebe-se que essa voz oscila espacial e
2642
temporalmente entre a narração mais ou menos distanciada, que tenta contar uma
história, e a observação diretamente participativa, que aqui, para além, ganha os
contornos de uma reflexão altamente questionadora. Dito de outra maneira, é evidente
que a voz narrativa não só se empenha em contar Josefina e sua arte como em levantar
uma série de dúvidas, argumentos e hipóteses em torno delas.
Sabe-se que, no século XVIII, o filósofo francês Charles Batteux, que se dedicou
ao estudo da Poética e da Teoria da Literatura e elaborou uma teoria sobre as Belas
Artes, perguntava-se para saber se uma determinada atividade (como a música e a
dança) era artística se ela era imitação e representação, como a poesia, por exemplo.
Isto é, nesse questionamento, ele comparava tal atividade a outras tradicionalmente
consagradas como artísticas.
É impossível não lembrar de Batteux ao lermos as primeiras reflexões do crítico-
narrador de Kafka. Diz ele:
É realmente um canto? Embora não sejamos musicais temos tradições
de canto; em épocas antigas do nosso povo o canto existiu; as lendas
falam a esse respeito e foram conservadas inclusive canções, que
naturalmente ninguém mais sabe cantar. Temos portanto uma noção
do que é canto e a arte de Josefina não corresponde, na verdade, a essa
noção. (KAFKA, 1994, p. 21)
2643
costumeiro, ao passo que um trabalhador comum da terra o emite sem
esforço o dia inteiro enquanto realiza o seu trabalho se tudo isso
fosse verdade, então o suposto talento artístico de Josefina estaria
refutado; mas a partir daí teria que ser solucionado o enigma da sua
grande influência. (KAFKA, 1994, p. 21)
Tendo em vista que chegamos à artista e sua arte somente por meio da voz e dos
olhos do narrador, o primeiro ponto com o qual precisamos trabalhar é exatamente o
que eles nos dizem, e isso significa trabalhar com o lugar de onde eles falam. É preciso,
inicialmente, identificar a motivação que desencadeia a dúvida quanto ao valor do canto
de Josefina.
Trata-se, ao que parece, do aspecto sonoro dessa voz. Mas nos resta questionar a
perspectiva contida no argumento de que, sendo esse aspecto comum, banal, ordinário
(como o de um assobio, ou sequer isso), o talento artístico de Josefina estará refutado.
Em outras palavras, se o canto de Josefina não é extraordinário, não se diferencia
de um chiado ou ruído que todo o povo compartilha, logo o que Josefina faz não é arte.
Trata-se, evidentemente, de um critério, um juízo de valor baseado em uma noção
específica sobre a arte, sobre o que é a arte.
O Quadrado preto de Malevich é um mero quadrado preto? O canto de Josefina
é um mero assobio? É e não é. De modo que poderíamos com razão afirmou Zizek
2644
De fato, com sua obra, Malevich abriu as portas da esfera da arte para
imagens fracas - na verdade, para todas as imagens fracas possíveis.
Mas [...] se o visitante da exposição de Malevich não pode apreciar a
pintura de seu próprio filho, então também não pode apreciar
verdadeiramente a abertura de um campo da arte que permite que as
pinturas dessa criança sejam apreciadas. (GROYS, 2011, p. 97)
2645
;
reconhecimento.
Da mesma maneira, o canto-objeto é igualmente o canto-de-Josefina. De fato, a
arte da camundonga se funde ao reconhecimento (do canto e de si própria), e ele nada
tem a ver com o conteúdo ou a técnica do som que a artista emite. Para ela, desistir de
cantar seria desistir de si mesma.
O som sem sentido de sua voz é tão comum, banal e ordinário, que o
profundamente estranho aqui é que mais ninguém, com exceção de Josefina, coloque-se
a cantar, a realizá-lo canto, a ressignificá-lo. Embora toda a população dos
camundongos possua a peculiaridade do assobio, ninguém mais o realiza gesto artístico.
Em outras palavras, o comum sendo realizado onde realizar o comum não é
comum: é algo realmente incomum. Onde ninguém mais além de Josefina percebe o
assobi
2646
são o cotidiano sendo realizado deslocado da vida cotidiana, livre de seus grilhões. Isto
é, o cotidiano em sua potência.
Coisa que só Josefina proporciona ao povo. Não ela em si, mas Josefina a artista.
Ou seja, ela no seu próprio deslocamento. E, neste momento, neste único momento, os
integrantes do povo também são livres, porque eles participam da experiência do
deslocamento. Ali, vivem o cotidiano em sua potência, e já não são, eles mesmos, o que
são na vida diária. Neste momento, eles são igualmente deslocados, experimentam o
comum (de si próprios) em um lugar incomum (de si próprios). Mas apenas neste
momento.
E não será em torno dessa experiência do deslocamento que o povo se reúne? Ou
melhor, não será por ela? ne que
. O gesto artístico fraco de Josefina
não exige demasiada atenção, ou talvez nenhuma. A sua arte é de baixa visibilidade, de
modo que a contemplação atenta não é condição para nada. Os integrantes do povo não
são espectadores, mas participantes. E o que o canto-silêncio de Josefina proporciona é,
pelo contrário, a experiência da desatenção, da descontração, da qual o povo participa.
Quando o cotidiano é suspenso da prisão da normalidade, ele pode, finalmente,
acontecer no não-espaço de sua potência; está, portanto, livre. E isso quer dizer que o
tempo do calendário também é suspenso, descontrai-se. O canto-silêncio fraco de
Josefina, cuja mensagem é apocalíptica de que o tempo está em contração , acontece
como pura potência; a atividade em seu sinal zero descontrai o próprio tempo em
contração, e, neste breve momento, sobrevive a ele.
Quando Josefina canta, enquanto os músculos do povo se descontraem, ocorre o
mesmo com o tempo. Porque, sim, o povo dos camundongos vive no tempo em
encolhimento. E, aqui, como notou Zizek, o conteúdo sociopolítico é relevante. O status
quo do mundo desse povo é a intranquilidade e a instabilidade sem interrupção, sem
2647
1994, p. 27).
Vivendo, o povo, no tempo em contração, o gesto artístico fraco de Josefina
transcende essa falta de tempo, pois ele, mínimo, exige muito pouco tempo, ou mesmo
nenhum tempo. Seu canto-silêncio empreende um momento de paz e tranquilidade, de
afastamento do trabalho duro, de deslocamento da vida cotidiana. De modo que o
silêncio artístico da atividade de Josefina cumpre uma função sociopolítica no povo.
Aqui, arte e política estão, enfim, reunidos.
O seu gesto, portanto, não exige tempo e atenção para experimentá-lo justamente
por sua fraqueza. Isto é, a desatenção e o deslocamento que ele proporciona ao povo só
são possíveis, por outro lado, porque a sua natureza é a fraqueza, a pobreza, a
miserabilidade; o comum, o cotidiano, ainda que libertos. De modo que o
distanciamento pode ocorrer porque a natureza desse gesto é próxima, íntima ao povo
dos camundongos ele a conhece muito bem. Assim, pode experimentá-lo por um
breve momento, ou nem isso, porque ele liberta o povo da tensão, mas também da
atenção, da contemplação. Por ter, a arte de Josefina, a natureza da intimidade,
2648
Por outro lado, o seu gesto marca uma diferença mínima: ela o realiza onde mais
ninguém o faz. Ou seja, Josefina só é (e só pode ser) singular por um contraste com o
povo. Ele é o contraponto necessário para que haja alguma distinção. Dito de outra
forma, Josefina somente é uma cantora única porque é a única cantora do povo dos
camundongos. Ela existe individualmente porque está imersa na coletividade, que
poderia cantar, mas não canta. A sua imersão no organismo social é total o traço do
incomum rebenta
performance so ZIZEK, 2012, p. 262).
Na narrativa de Kafka, Josefina é o único indivíduo que tem nome próprio, e
isso é peculiar porque absorto em uma massa anônima. E é dessa perspectiva que
entendemos o título do conto, que, para nós, diz da relação dialética entre o assobio da
cantora e dos demais, assim como entre Josefina e o povo dos camundongos. Aliás, essa
2649
O crítico-narrador de Kafka se ocupa de identificar os elementos que constituem
a voz da cantora. Entretanto, seu procedimento, mais do que isso, tende a questionar o
caráter de arte ou não-arte que poderia demarcar sumariamente a música ou chiado de
Josefina.
O tipo de juiz estético que surgiu na modernidade, o qual, de algum modo, é
encarnado pelo narrador kafkiano, diante de uma arte como a de Josefina, torna-se,
senão ineficaz, altamente comprometido com uma experiência estética. Esta,
necessariamente, colocaria o chiado, que quase não se parece com uma música, no
deserto onde figura o espólio de fragmentos e sombras sob os cuidados da grande arte,
isto é, a não-arte, o mau gosto ou simplesmente um objeto ou ruído cotidiano. Esse
narrador parece criar justamente a mesma experiência que, na maioria das vezes, tem-se
ao ler uma obra de Kafka e, consequentemente, não compreendê-la, senti-la escapar ou,
mais drasticamente, sentir-se barrado por ela.
Ao tentar fazer uma dedução violenta de um sentido da obra de arte, a partir de
uma definição do que seja propriamente arte, o crítico é incapaz de perceber que
Josefina e sua arte não se encontram dentro do paradigma estético, assim como
pretendiam as vanguardas. Pois, a voz da camundonga não difere substancialmente do
restante da voz popular. Ela está, portanto, no limiar do regime estético, onde a
diferença entre arte e não-arte não encontra relevância crítica, senão a própria
experiência que ela revela em comunhão com o restante dos camundongos.
Quando o crítico se debruça sobre a obra dessa maneira, ele mais se assemelha a
um médico legista, que, ao fazer uma autópsia, não se lembra do próprio fato da morte,
isto é, não a experiencia. A crítica puramente estética age como se fosse possível fazer
uma autopsia da arte, sem, com isso, dar-se conta de que, para todos os fins, ela já se
encontra perdida, fria e distante. Tudo o que o crítico de Kafka persegue no canto de
Josefina, portanto, é sombra cadavérica. E ela o seduz irresistivelmente. É a falta quem
o atrai, a ausência, porque é ela mesma quem o orienta. De mãos dadas com a obra de
arte, caminha a obra não-artística; o juízo estético do crítico é guiado pelo que não-é e
pelo que não-está-aí na arte da cantora.
Mas já a arte dessa artista é outra. Se o crítico não consegue chegar a uma
conclusão a respeito do que Josefina produz baseado apenas em sua sensibilidade
estética, é porque ele e a cantora estão em estações diferentes do destino da arte. A
artista de Kafka se encontra no momento em que a arte perdeu sua sombra. Este
momento foi aquele em que ela perdeu também sua aura.
2650
Quando as vanguardas empreenderam um fazer artístico democrático, e em
alguma medida, com ele, disseram que todo ser humano pode ser artista e fazer arte,
seja qual for seu objeto, nesta ação ouviu-se o sussurro de um tremor: era a distinção
entre obra de arte e mera coisa que silenciava. Nesta ação, despediam-se da obra sua
sombra e sua aura. E na obra pôde-se vislumbrar indistintamente uma revelação. Se
todos podem ser artistas, ninguém é artista, apenas potência.
O canto de Josefina, pensado na dimensão estética, revela nada, nenhuma
substância fantástica, nenhum conteúdo maravilhoso. O que o assobio de Josefina
produz é a possibilidade de cantar. Ele desvela, coloca na presença, a potência do
canto. Josefina é a possibilidade do artista, de qualquer artista. O povo dos
camundongos é qualquer povo.
O canto de Josefina é o conto de Kafka. O escritor sacrificou qualquer verdade,
conteúdo, significado, língua, música... O dito, pela possibilidade do dizer. Por amor à
transmissibilidade.
No conto, entre o crítico num canto e a artista noutro, cria-se uma passagem
estreita, por onde se pode vislumbrar a entre-estação. Não tratamos mais aqui da
não-obra
cantora ou O povo dos camun
Grandes Guerras, Kafka parece ter compreendido que também a arte deitara sob um
umbral de sua Sorte. O último texto de Kafka é a imagem desse limiar.
REFERÊNCIAS
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Contraponto, 2012.
Vivendo no fim dos tempos. São
Paulo: Boitempo, 2012.
2651
CONTRIBUIÇÕES DA ATITUDE TERAPÊUTICA DE WITTGENSTEIN
PARA OS ESTUDOS LITERÁRIOS CONTEMPORÂNEOS
2652
O propósito desta minha apresentação hoje é compartilhar com vocês, ainda que
brevemente, um pouco sobre o potencial criador e transgressivo da terapia de dispersão
espectral, tal como a temos denominado e praticado no campo dos Estudos Literários
contemporâneos, e que toma como referência a atitude terapêutica praticada pelo
filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), sobretudo em suas Investigações
Filosóficas, obra publicada postumamente (1953). Wittgenstein foi um dos principais
atores da virada linguística na filosofia do século XX e as implicações de seu
pensamento para os estudos literários, sobretudo como um modo de se lidar com
escritas contemporâneas, são significativas e esses percursos vêm contribuindo com um
campo produtivo de pesquisa e ao que parece ainda pouco explorado.
Realizar uma terapia de dispersão espectral de uma obra artístico-literária
significa descompactá-la em seus jogos de cena - vistos como jogos de linguagem - a
fim de identificar e descrever semelhanças de família entre rastros de significação
manifestos em alguns desses jogos e em outros, dispersos e identificáveis, praticados
em arquivos culturais diversos.
Uma terapia opera a partir dos efeitos performáticos de sentido produzidos pelo
que se manifesta explicitamente no texto literário de partida sobre os corpos de leitores
terapeutas dispostos a investigar rastros desses efeitos em outros jogos de linguagem.
Ao contrário da tentativa de aproximar e comparar escritas literárias buscando
possíveis traços comuns ou distintivos entre temas, enredos, estilos, enfim -, a terapia
de dispersão espectral lida com as narrativas a partir de uma outra perspectiva [a qual
Wittgenstein utilizou, ele próprio, para lidar com o discurso filosófico] por acreditar que
ela oferece um modo inusitado de investigar os efeitos suscitados a partir da leitura do
texto literário e as estratégias construídas, em cada caso, e que são capazes de nos
impactar.
O aspecto terapêutico praticado pelo próprio Wittgenstein vem sendo assim
resignificado e me parece representar a originalidade propriamente dita das
investigações realizadas, especialmente a partir de obras artístico-culturais
contemporâneas, porque ainda que sua filosofia já seja explorada no domínio efetivo
dos estudos literários, o aspecto terapêutico não me parece ter ganhado relevância ou ter
sido já, desta maneira, explorado. Em minha pesquisa de doutorado, procuramos
apontar para o potencial criador da terapia de dispersão espectral a partir da proposta de
três investigações literárias interdependentes, tendo como objeto de estudo as diferentes
encenações do feminino e as relações de gênero que as constituem nos e a partir dos
2653
contos de três escritoras latino-americanas, a saber María Luisa Bombal, Clarice
Lispector e Silvina Ocampo (MIGUEL, 2015).
O objetivo vem sendo o de percorrer os rastros desses efeitos que partem dos
textos, em cada caso selecionados, em dispersão a outros arquivos culturais nos quais
as questões que interessam o leitor/pesquisador/terapeuta aparecem reencenadas em
diferentes formas de vida.
Investigações Filosóficas como
noções difusas, nem sempre utilizadas da mesma maneira.
Diferentemente de uma atitude hermenêutico-interpretativa, de busca de um
sentido oculto no texto literário (o que o texto quer dizer... o que o autor quer dizer...
etc), o modo como passamos a abordar terapeuticamente os textos que se decide
- através de uma perspectiva panorâmica, que é outra
noção wittgensteiniana - os elos que nos conduzem a certas analogias estabelecidas por
semelhança de família.
Embora a terapia não se refira aqui a
uma acepção psicológica ou psicanalítica propriamente, já que não está, por certo,
baseada em nenhuma teoria da mente ou do aparelho psíquico, decidimos, ainda assim,
mantê-la, uma vez que é o próprio Wittgenstein que, partindo de seu uso situado em
psicanálise, mobiliza a palavra com outro significado. A intenção não é explicar as
relações analógicas mediante processos cognitivos ou mecanismos mentais, pois essas
noções tenderiam a subordinar o problema à teoria. O aspecto antiteórico do
pensamento de Wittgenstein, assim como a natureza não hermenêutica de sua terapia
filosófica, é especialmente comentada por Nigel Pleasants, em seu Wittgenstein and the
idea of a critical social theory. A critique of Giddens, Habermas and Bhaskar (2002).
Cito também, nesse sentido, o importante debate promovido por Susan Sontag, em seu
Contra a Interpretação (1987).
A terapia parte daquilo que está manifesto para elucidar o modo como são
construídas determinadas estratégias e determinados efeitos capazes de nos impactar. O
movimento da terapia de Wittgenstein não é de natureza conceitual, mas imagético-
descritivo1. Parte do solo da prática e dos usos cotidianos da linguagem que são, para
ele, profundamente ritualísticos. Assim, a gramática torna-se uma espécie de ritual ou
de rede mitológica sempre constituída por diferentes jogos que se processam de acordo
1
Imagem no sentido de modo de ver, sentido negativo.
2654
com as regras postas em prática: o uso de determinada palavra, em certo ritual, pode ser
um bom uso da linguagem, mas quando colocada em outro jogo pode torna-se uma má
,
sobretudo, como forma de adjetivar ou significar o conjunto não essencialista e mutável
das regras ou enunciados normativos nem sempre identificáveis e aceitos
incontestavelmente postos em cena na linguagem e que orientariam os sentidos de
determinado jogo de linguagem.
A terapia à qual Wittgenstein submete o discurso filosófico vem sendo também
ressignificada com base em algumas semelhanças de família que ela mantém com o
movimento da desconstrução de Jacques Derrida, especialmente a partir das noções de
espectros e da compreensão do texto literário como enxertia/citação. A partir da ideia de
que nenhum texto literário é totalmente original e de que o performativo se daria tento
pelo movimento da repetição/iterabilidade quanto pelo aspecto de originalidade, a
idiossincrasia, portanto, do texto literário.
O que passamos a chamar de terapia de dispersão espectral propõe a
descompactação do ato narrativo de partida e a investigação dos rastros desses efeitos
em diferentes jogos de linguagem por uma leitora ou um leitor terapeuta interessada(o)
em persegui-los, não com o intuito de explicar a narrativa ou os efeitos [a origem desses
efeitos] nem mesmo o de se propor uma outra interpretação para os textos de partida.
Talvez, a implicação mais expressiva do pensamento de Wittgenstein e da
atitude terapêutica para os Estudos Literários seja a própria concepção de linguagem
desenvolvida por ele a partir da década de 1930 e, sobretudo, nas Investigações
Filosóficas. A linguagem passa a ser vista como um conjunto heterogêneo de jogos de
linguagem, sempre em movimento. E cada jogo é visto como uma linguagem completa
[não existe mais a língua e a aplicação da língua, a teoria e a aplicação da teoria]. A
própria sugestão de ver a linguagem como um jogo já nos dá a ideia de ação corporal.
A
ssistir uma partida de futebol2.
O corpo que participa do jogo de linguagem participa orientado pelas regras que
constituem a gramática [outra noção wittgensteiniana] desses jogos, mas as regras, para
Wittgenstein, não são nunca prescritivas. Quando eu escrevo, o próprio ato de escrever
2
Ver Ludwig Wittgenstein: the Duty of Genius, de Ray Monk, editado pela Jonathan Cape em 1990,
e Wittgenstein: A Life (Young Ludwig 1889-1921), de Brian McGuinness, publicado pela Duckworth em
1988.
2655
também é visto como um jogo de linguagem encenado por um corpo que escreve. Do
mesmo modo, o ato de ler é também compreendido/visto como um ato corporal em que
o texto escrito provoca efeitos performáticos no corpo de quem lê e remete o leitor ou
leitora às memórias das práticas culturais das quais ele participou.
Para Wittgenstein não existe uma linguagem privada. São sempre linguagens
que se constituem em contextos situados, em diferentes formas de vida.
Tendo em vista essa concepção de linguagem, o próprio ato narrativo passa a ser
visto, como entende também Henry Mc Donald, como ação corporal que institui
presenças narrativas
composição situada e idiossincrática, bem como iterativa.
O ato narrativo é performativo porque é uma ação corporal [uma encenação
corporal de quem participa do jogo narrativo, ou seja, autor, narrador e leitor]. O ato
narrativo é performático porque é sempre original, mesmo repetindo e reunindo
enxertos, citações, remissões, enfim.
As reflexões em questão nos conduzem para a primazia do corpo que participa
das práticas culturais em diferentes formas de vida, por isso ele é reminiscente! Com o
corpo todo, com todos os sentidos conhecemos o que as coisas são. O corpo é o veículo
de retenção, relembrança e reprodução de figuras de movimentos. O corpo é memória e
produtor de gestos. O corpo é o lugar de poder constituidor de um mundo simbólico-
cultural. Por isso, natureza e cultura estariam indissoluvelmente entretecidas na pele do
, nos diz Wittgenstein3], de forma a
tornar impraticável nossa participação em qualquer jogo de linguagem que pretendesse
abandonar o corpo ou subtraí-lo. Cito Wittgenstein:
Em um outro aforismo, ainda mais conciso, há a sugestão não sem uma dose
de refinada ironia (!)
3
Diários de 1930-32/1936-37, p.39.
4
Embora em inglês The blue and brown books (1962) seja uma obra única, ela foi traduzida para o
português (de Portugal) separadamente, em dois livros, O livro azul (1992a) e O livro castanho (1992b).
A mesma passagem traduzida no livro de Gunter Gebauer torna-se ainda mais clarificante:
2656
em nosso cérebro e, por extensão, dentro de nossas cabeças Penso, de fato, com minha
caneta, pois minha cabeça frequentemente não sabe nada daquilo que minha mão está
escrevendo (WITTGENSTEIN, 2000a, p. 34). Na impossibilidade total da existência
se pensa e que teria o poder de falar sobre seu próprio corpo de forma
alheia a qualquer situação concreta e independente de qualquer jogo de linguagem, a
5
supremacia da pele e do estamos preso em nossa pele fornece ao corpo humano
biológico o poder de constituir e ser constituído pelas práticas culturais e pelos jogos
simbólicos de linguagem. Assim, não é possível falarmos em jogos incorpóreos, da
mesma maneira que não é possível dissociar corpo, natureza e cultura. São postas em
questão, dessa maneira, as fronteiras demarcatórias entre pensar e fazer, entre saber e
agir, entre corpo e mente, pois se existem, de fato, saberes é certo que eles não estão
dissociados de um corpo humano que os realiza, os mobiliza e os pratica. Aprendemos a
escrever escrevendo, aprendemos a ler lendo, aprendemos a dançar dançando... e assim
por diante. Participar corporalmente de qualquer jogo de linguagem é deixar-se orientar
por suas regras, tendo ou não clareza e ciência sobre elas. Com isso, Wittgenstein
conduzirá seu pensamento a uma revisão da concepção convencional dos atos mentais.
É nesse sentido que toda memória seria, inevitavelmente, memória da pele,
memória do corpo, e as práticas culturais são auto memorialísticas: mobilizam
memórias, afetos, relações de poder...
A crença na existência de nosso próprio corpo como reconhece Wittgenstein
constitui a condição inalienável para que possamos não apenas usar a linguagem mas, a
partir desse uso, produzir saberes e crenças. A certeza do corpo, criada a partir de sua
participação física ou encenada pelo jogo de linguagem, é também a condição para que
a linguagem possa ser utilizada.
O propósito dos movimentos de dispersão espectral promovidos pelas terapias
aqui referidas não é o de ressignificar o texto de partida, nem o de produzir uma melhor
ou pior interpretação literária, mas o de destacar o papel vital - e profundamente
existencial ou vivencial - da literatura como um movimento auto terapêutico do leitor -
uma aventura do leitor -, desconstruindo hierarquias e privilégios de sentido a que estão
5
Diários de 1930-32/1936-37, p.39.
2657
submetidas às práticas culturais e os valores ético-estéticos atribuídos aos produtos das
culturas.
Por fim, a atitude terapêutica percorre os arquivos culturais a partir dos meios
expressivos, estratégias e recursos ficcionais manifestos nos textos, para valorizar o
desejo do leitor de se explorar com base no convite que lhe faz o texto literário.
Assim, cada leitor/leitora, cada ato de leitura, reatualiza um ritual, revisita velhas
e conhecidas mitologias e, nesse percurso, encontra o prazer e as dimensões ética e
estética que se atualizam nos contextos das disputas dialógicas entre os usos dos textos
em distintas formas de vida.
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WOLFREYS, J. Compreender Derrida. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
2659
O INCONSCIENTE NA PRIMEIRA VERSÃO DO ROMANCE QUINCAS
BORBA, DE MACHADO DE ASSIS
Janaína Tatim, autora (UNICAMP)
Jefferson Cano, orientador (UNICAMP)
2660
diferenças textuais mais evidentes, minha pesquisa propõe que as versões manifestam
ainda problemas estéticos diversos. Minha abordagem considera a primeira versão como
um documento privilegiado sobre o processo de escrita do romance machadiano que
testemunha um momento singular em que, através do romance, elaborava-se uma
resposta a um horizonte de debate externo e histórico.
As diversas instâncias técnicas do Quincas Borba, tanto na primeira quanto na
versão final, apresentam um investimento de Machado na psicologia como uma fonte
estética, pois estão eivadas por aspectos da psique humana. Dentre eles, chamou atenção
a recorrência ao sentido de inconsciente, o que vem a ser objeto de interrogação desse
trabalho.
Além disso, para minha hipótese, esse investimento é ainda reverberação de
questões expostas na crítica de Machado de Assis ao romance O primo Basílio, de Eça
de Queiros. À época, Machado repudiou a abordagem das personagens orientada pela
2661
Inconsciente aparece como o elo de compreensão entre a lógica da metafísica e a lógica
do discurso das ciências modernas.
Em Quincas Borba, Machado faz um escrutínio das tramas de um intrincado
jogo de interesses amorosos e financeiros, de modo que a dimensão subjetiva e
intersubjetiva que sustenta essa trama se torna um aspecto estruturante. Assim, a
investigação aqui proposta sobre o uso do conceito de inconsciente no romance é parte
de um objetivo maior de minha pesquisa de mestrado, que pretende demonstrar como
subjaz à primeira versão a tarefa de reelaboração de questões expostas naquele debate
literário, por meio da análise das formas de inscrição da psicologia humana no romance.
A primeira versão do romance se torna assim um documento do processo de
formação da consciência crítica de Machado de Assis diante dos discursos correntes em
sua época, que buscavam explicar o mundo e a ação humana sob a égide das nascentes
ciências modernas. Essa consciência crítica diz respeito igualmente a sua observação
acurada das mudanças nas formas de subjetivação socialmente compartilhadas no
Brasil, sobretudo a observação das tensões da subjetivação sob a forma do indivíduo
no caso do romance Quincas Borba, especialmente, em função da mimese do processo
de modernização de uma sociedade escravista e, ao mesmo tempo, da capitalização das
relações.
Em geral, as paráfrases do Quincas Borba salientam a via principal de seu
enredo em que se deslinda o processo de alienação mental e financeira do
protagonista Rubião, um provinciano pobre que herda uma fortuna de seu amigo e
filósofo caduco, Quincas Borba. Essa mesma via pode ser compreendida desde o ângulo
da empresa de ascensão social em que o casal de arrivistas Sofia e Cristiano Palha se
empenha e que se realiza por meio da transferência de capital da herança de Rubião para
os negócios de Cristiano transferência sem sombra de dúvidas assegurada pela paixão
que o herdeiro sente pela esposa do sócio.
A discussão que aqui proponho do aparecimento recorrente e singular da noção
Quincas Borba, tem por horizonte os
dois enquadramentos anteriormente assinalados o do problema de por que meios a
linguagem literária pode apresentar personagens com estatuto de pessoas morais e
humanas; e do sensível adensamento de aspectos concernentes à psicologia humana,
sobretudo em função do esquadrinhamento dos fenômenos da mente e da instituição e
destituição do sujeito postas no romance.
*
2662
Para respaldar minha percepção de que havia uma diferença substantiva no
modo como a noção de inconsciente foi usada na primeira versão do Quincas Borba,
procedi a uma pesquisa quantitativa e qualitativa do termo através dos romances
machadianos. Com isso, foi possível estabelecer um parâmetro do modo como Machado
utilizava o termo, e então se em Quincas Borba haveria diferença, tanto quantitativa,
quanto qualitativa.
adjetivo; e também o advérbio inconscientemente e o substantivo inconsciência ,
além do termo incônscio , por desempenharem extensão do mesmo sentido.
Houaiss - Dicionário
Eletrônico de Língua Portuguesa (2009) definem bem esses sentidos correntes que
aparecem nos romance, ou seja, trata-se de usos pelos quais não necessariamente se visa
à construção de um sentido conceitual ou de uma tese sobre o inconsciente, sendo usos
não referenciados em uma área do conhecimento, como a psicologia, por exemplo:
1 que não é dotado de consciência; incônscio <a vida i. dos vegetais>
2 que perdeu o conhecimento, que está privado de consciência <um
doente ainda i.> 3 feito de maneira irresponsável, inconsequente <uma
política i. leva o país à ruína> 4 que acontece sem que se preste
atenção; automático, maquinal, involuntário <gesto i.>
Os resultados foram os seguintes: no romance Ressurreição há 2 ocorrências; em
A mão e a luva, nenhuma; em Helena, 4; em Iaiá Garcia, 4; em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, 1; na primeira verão do Quincas Borba, 9; na versão final do Quincas
Borba, 5; em Dom Casmurro, 3; em Esaú e Jacó, 2; e em Memorial de Aires, nenhuma.
Do ponto de vista quantitativo, dentre todos os romance de Machado de Assis,
incluindo-se a versão final em livro do romance Quincas Borba, a versão seriada foi
aquela em que o termo mais recorreu. Assim, a comparação com os demais romances
dimensionou o interesse de Machado pela noção de inconsciente à época da primeira
redação pública do Quincas e permitiu concluir que o termo foi alvo de um interesse
atípico.
Do ponto de vista qualitativo, a análise do contexto de cada ocorrência em cada
romance revelou que no Quincas Borba, sobretudo em sua primeira versão, o termo
inconsciente não apareceu apenas nas acepções comuns listadas anteriormente, como
nos demais romances. A partir da noção de inconsciente, agregaram-se sentidos
específicos, por trás dos quais parece haver um conceito. Em função do limite de
páginas deste trabalho, os trechos analisados não serão trazidos, mas poderão ser
encontrados no texto de minha dissertação. Fundamental para o que argumento aqui é
relatar como as ocorrências definem o sentido de inconsciente na primeira versão do
2663
Quincas. Primeiramente, elas permitem inferir que a mente humana é concebida, nesse
romance, em duas instâncias: uma consciente e outra inconsciente.
A primeira é definida pela representação consciente que as personagens fazem
de ações, gestos, pensamentos, sentimentos, seus ou de outros, bem como de uma
racionalização deliberada, por meio da qual se definem enquanto sujeito único, e
produzem julgamentos morais.
Já a instância do inconsciente é representada apenas pelo narrador, nela reside
toda sorte de material subjetivo das personagens como ideias, significantes, intenções,
afetos, memórias, que podem vir à tona ou permanecer na inconsciência, sendo
reprimidos. Não raro, as causas ou origens secretas e verdadeiras de ações, pensamentos
e intenções são inconscientes. O inconsciente também aparece como origem de
disposições e impulsos que pertencem ao sujeito e o afetam, mesmo que ele não dê por
isso. A noção de inconsciente compõe ainda uma tese apresentada pelo narrador sobre a
busca do indivíduo pelo senso de unidade. O inconsciente, assim, guardaria uma lógica
da Natureza atuante nos sujeitos, capaz de dirigi-los e afetá-los embora não de
determiná-los, à feição de uma lei ou de um destino inexorável. Essa última noção, que
mais se aproxima de um sentido conceitual, é expressa no seguinte comentário do
narrador:
A vida de Rubião carecia de unidade. Sem o perceber, o que
ele buscava no casamento era a unidade que a vida não tinha. Sentia-
se disperso e confuso; [...]
ainda assim, a vida pode ter unidade, - ou na alma ou na
situação do homem. Nem a situação nem a alma do nosso homem
estava em tal caso. A vida partira-se-lhe. Vivera mais de metade em
outro lugar, com outras gentes, outros meios, outros horizontes. Não
tinha aqui família; as relações eram de acaso e recentes, não
cimentadas pelo tempo nem explicadas por outras causas mais íntimas
e profundas. [...]
A alma era a mesma cousa. Não achava equilíbrio nem
alimento em si própria. [...]
Rubião, às vezes, com saudades de Minas, recompunha a
existência obscura de outro tempo. [...] Era simples, limitada ao
pouco, mas igual a si mesma e estável; entre o homem e o meio existia
comunhão de ideias, de reminiscências, de amor ou de aversão, de
nojo ou de alegria, - de hábitos, ao menos. [...] Cá tudo era novo; nada
fazia sentir nada.
[...]
Crê, leitor, tal foi a origem secreta e inconsciente da ideia
conjugal. As outras explicações são boas, por serem razoáveis e até
honestas, mas a verdadeira e única é a que aí fica. Crê ou fecha o
livro. [...]
A causa era a que ficou dita. O matrimônio enfeixaria os
esforços, recolheria em si o homem disperso, embora ele não soubesse
2664
nada dessa causa verdadeira e única. Que sabe a aranha a respeito de
Mozart? Entretanto, ouve com sumo gosto a guitarra e o piano.
(ASSIS, 1976, pp. 95-96)
Nesse longo comentário do narrador ao estado moral do protagonista, emerge a
ideia de que do inconsciente parte um impulso para que o sujeito busque se agregar
como uma unidade. Esse impulso chega à consciência de Rubião sob a forma da ideia
de se casar, que aparece conscientemente justificada por questões de ordem financeira,
já que a herança de Rubião começava a se esfacelar, e diante disso talvez uma esposa
estancasse o capital que se esvaía e que ele não era capaz de conter. No entanto, o
*
(JOBIN,
2001), o escritor brasileiro teve em sua biblioteca pessoal ao menos quatro volumes do
filósofo alemão Eduard von Hartmann, eram eles: (1877), Le
(1880) e os volumes um e
dois de
livros, Le darwinisme e o primeiro volume de , apresentam
marcas de intenso manuseio.
Eduard von Hartmann foi uma espécie de best-seller mundial do século XIX,
ainda que sua obra e teses tenham caído no esquecimento. Hartmann colocou em
circulação, no pensamento ocidental, uma obra que erigiu um conceito de Inconsciente
como centro de um sistema filosófico e de compreensão do ser humano e do mundo.
Trata-se de Filosofia do Inconsciente, ou , título na
tradução francesa pela qual ficou mundialmente conhecida ao longo das décadas de 70 e
80 do século XIX. Désiré Nolen, seu tradutor para o francês, nos informa sobre o
2665
sucesso que vinha obtendo desde sua publicação em 1869. Assim, já em 1877, a obra se
encontrava em sétima edição francesa e fora objeto de discussão de pessoas de diversas
partes da Europa e também da América.
Essa sétima edição traduzida para o francês foi possivelmente responsável por
colocar Hartmann em circulação no Brasil, e vem a ser aquela encontrada na biblioteca
pessoal de Machado de Assis. A meu ver, a aproximação do escritor brasileiro com as
ideias do filósofo alemão teria se dado, num sentido amplo, por seu pensamento propor
uma nova frente de explicação para as ações humanas. Eduard von Hartmann então
despontava como última via do pensamento moderno a propor a conciliação de duas
visões de mundo antagônicas o idealismo metafísico e o boom das ciências naturais,
que impulsionava mudanças na compreensão da vida e no sentido da verdade. Assim, a
ideia do Inconsciente aparece como o elo de compreensão entre a metafísica e as
nascentes ciências modernas.
A tese fundamental de é a de que o Inconsciente
seria o princípio que produz e dirige todos os processos inorgânicos, orgânicos e
mentais. No primeiro volume desta obra prepondera a análise de fenômenos da
Natureza, relativos às diversas formas de vida orgânica, seja animal, seja humana, seja
comportamental, seja fisiológica, com o fim de argumentar no sentido de que a eles
subjaz o Inconsciente. Assim, todo um conjunto de experimentos produzido em base
metodológica científica serve, na obra de Hartmann, à teorização metafísica sobre o
Inconsciente.
Ao conceber que para cada elemento ou expressão objetiva da Natureza existiria
uma contraparte metafísica, Hartmann conciliava a metafísica e a racionalidade das
ciências experimentais. Todos os mecanismos engenhosos e deslumbrantes pelos quais
como os
instintos, a evolução das espécies, o comportamento dos animais, a regeneração
espontânea, o funcionamento dos órgãos etc teriam sua finalidade regida pelo
Inconsciente, como ação de uma lógica imanente e espiritual (ou não-material) no seio
da Natureza. Toda a matéria seria uma função do Inconsciente, obedecendo a uma
finalidade também inconsciente. Nesse sentido, o Inconsciente é entendido como a
associação de uma Vontade e de uma Ideia vontade inconsciente que impulsiona a um
fim representado sob a forma da ideia, fim ao qual todos os processos se dirigem,
descrevendo uma teleologia igualmente inconsciente.
2666
Hartmann estava fortemente imbuído pelas tradições filosóficas que o
antecederam, sobretudo o Idealismo alemão. O Inconsciente é formulado como a síntese
de vários sistemas filosóficos, como os de Leibniz, Schelling, e principalmente Hegel e
Schopenhauer. O ponto de convergência entre eles reside na ideia de que todo sistema
filosófico aspira a reaver a unidade de tudo, o Absoluto. É com essa finalidade que boa
parte dos capítulos, baseados nas descrições científicas da época, tenta deduzir um
princípio -
( -tout), o indivíduo supremo, a unidade eterna, atemporal e absoluta, alma universal
da qual advém a multiplicidade dos indivíduos e dos caracteres, segundo leis
determinadas.
Minha pesquisa ainda não concluiu a leitura e análise das mais de 1200 páginas
de , mas até o presente momento, ao que tudo indica,
Hartmann produziu uma explicação sobre as ações humanas na linha de um
determinismo do Inconsciente, uma mescla de determinismo fundado na argumentação
lógico-metafísica com o determinismo presente no fundo das explanação científica
sobre a vida. Isso se torna mais evidente no capítulo em que Hartmann fecha o circuito
entre a metafísica schopenhaueriana e o darwinismo, ao propor, por exemplo, a
conservação da espécie como a grande Ideia inconsciente que determina o desenrolar da
vida humana.
Machado, apesar de se aproximar da ideia do inconsciente, a subtraiu de uma
lógica asseguradora de uma teleologia progressista. A noção de inconsciente tencionada
dentro da ordem estética do romance teria impulsionado um desvio ao determinismo
metafísico-científico. O nó proposto pela articulação estética da questão parece residir
na desestabilização do narrador enquanto instância que assegura a verdade sobre as
causas e explicações para as ações humanas. Provisoriamente, se pode dizer que o
de Assis no Quincas Borba vai elaborar,
dentro de certos limites, o descentramento do narrador como instância última a
determinar a verdade em direção a uma mimese dos modos de estruturação e
desestruturação dos sujeitos no jogo cerrado, porém não determinista, da imbricação dos
processos psíquicos com o poder socialmente estruturado. De tal sorte que o
2667
determinante do humano no romance continua sendo a própria ação humana no campo
moral e histórico.
Referências
ASSIS, Machado de. Quincas Borba Apêndice. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1976.
HARTMANN, Edouard de. . Paris: Librairie Germer,
Volume 1 e 2, 1877.
JOBIN, Jose Luis (org.). A Biblioteca de Machado de Assis. Coautoria de Jean-Michel
Massa. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Academia Brasileira de Letras: Topbooks, 2001.
2668
ENTORTANDO AS LINHAS DA CANÇÃO: SÉRGIO SAMPAIO À LUZ
DA TEORIA ESTÉTICA DE ADORNO
Jorge Luis Verly Barbosa (UFES/Fapes)
Resumo: A proposta deste trabalho é realizar uma leitura de duas canções do capixaba Sérgio
Sampaio [1976])a partir de algumas das ideias-
força presentes na Teoria estética (1970) de Theodor W. Adorno. Partindo da premissa de que,
a despeito de ser um compositor de música popular o que, parti pris, caracterizaria suas
canções como um mero produto da indústria cultural e, portanto, no plano da desartificação
(Entkunstung) , a obra de Sampaio representa, ao mesmo tempo, uma profunda dissidência em
face do mainstream e uma aguda crítica à roda viva dos produtos culturais padronizados em
nome do capitalismo tardio. Crítica essa que se mensura no modo marginal com que produziu
suas canções, eivadas da estranheza em face dos tempos autoritários em que compôs a parte
substancial de seu cancioneiro (década de 1970) e que, justamente por isso, são retratos da
história sedimentada na forma, obras de arte autônomas em face do mundo administrado. A
partir da análise dessas canções procuraremos evidenciar algumas categorias da estética
2669
iluminá-los a partir de uma reflexão que evidencie o seu caráter de autonomia e de
emancipação.
Grande parte das reflexões feitas por Adorno em Teoria estética (1970) estão
balizadas pela oposição entre arte cooptada e arte autônoma. Seus diversos escritos
sobre literatura e música são categóricos em afirmar o potencial inerentemente
autônomo que as obras de arte deveriam ter, sendo elas próprias sistemas coesos e
contrários à ideia de cooptação que é promovida pela indústria cultural. Uma obra de
arte de fato autônoma, i. e., liberada das amarras ideológicas do capitalismo tardio, teria
um si um potencial de emancipação através do qual o sujeito, uma vez confrontado
reflexivamente com ela, seria capaz de atingir.
popular
2670
Outra ideia-força importante para a utilização das teses adornianas sobre
música e também sobre estética, que permearão este trabalho é a da mediação
(Vermittlung), presente 1969), onde encontramos a
indicação de que o exame de todo e qualquer objeto, incluindo as obras de arte, deve se
pautar por uma análise constante mediada, uma vez que ele não pode ser desconectado
do mundo que o engendrou. Como já aqui expresso, as obras de artes são historicamente
construídas e carregam em si não apenas as marcas indeléveis do contexto em que
surgiram, mas também permitem que se veja em sua própria constituição (forma) a
presença da história como conteúdo sedimentado. Dessa feita, encontramos a
possibilidade de, via mediação social, realizar uma análise da música de Sampaio pelo
viés adorniano levando em conta o diálogo tríplice entre o conceitual (Adorno), o
formal (Sampaio) e a história (o Brasil das décadas de 1970-80).
Dentro dessa proposta radical de leitura da música popular a partir das teses
adornianas, há que se evidenciar também que na música popular brasileira a junção
entre letra e música contribui, muitas vezes, da
indústria cultural, seja pela inventividade de sua construção formal, seja por seu
potencial crítico em relação aos próprios mecanismos de produção (BURNETT, 2010,
p. 174). Penso aqui no contexto da canção popular brasileira tendo como marco
temporal o período compreendido entre as décadas de 1950-1970, época de sua
maturação como produto cultural e como obra de arte crítica da realidade brasileira. É
também neste período em que nela se insere a figura de Sérgio Sampaio. Sua produção,
que se estendeu entre as décadas de 1970 e 1990, é relativamente pequena quando
comparada com a de outros compositores populares contemporâneos dele. Talvez
porque tenha tido uma relação profundamente crítica em relação à indústria cultural,
Sampaio gravou pouquíssimo (apenas três discos). E nessa produção concisa e, ao
mesmo tempo, altamente elaborada estão presentes as aporias, tensões e impasses da
sociedade brasileira, sobretudo da década de 70, quando lançou seus dois primeiros
álbuns: Eu quero é botar meu bloco na rua (1973) e Tem que acontecer (1976).
Um dos exemplos de sua ,
presente em seu primeiro LP. Vale registrar que este disco gerou, para a indústria
2671
que Sampaio defendeu no Festival Internacional da Canção de 1972, obtendo bastante
aceitação junto ao público. No entanto, o que se viu (e principalmente ouviu) foi um
Viajei de trem,
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
Viajei de trem,
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
Viajei de trem,
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
eu viajei de trem
Viajei de trem
Eu viajei de trem
Mas eu queria
É viajar de trem
Eu vi...
2672
Seus olhos grandes sobre mim
Seus olhos grandes sobre mim
(SAMPAIO, 1973)
clareava
compositor expressa o ideal adorniano de que a arte autônoma, inicialmente oposta aos
dados advindos diretamente da empiria social, acaba por expressá-los em sua forma
(ADORNO, 2008, p. 17). Por outras palavras, o conteúdo de verdade das obras (o
Wahrheitsgehalt), compreendido como o momento em que ocorre uma conjunção de
forma e conteúdo numa obra e que pode ser percebido pela mediação do momento
histórico, social e político que a cerca, é representado pelas imagens opressivas
2673
balanço lento de um trem, Sampaio descreve com mais verdade as ruínas e o dano
presente na sociedade brasileira, que pode ser lida na canção pela descrição de uma
Entkunstung
2
Estou me referindo ao ensaio de Silviano Santiago
outras coisas, o crítico discute o papel ambivalente e contraditório do artista enquanto astro (do disco, do
rádio, da tv) e também enquanto aquele que intervém diretamente no plano do real.
2674
Teoria estética temos o conceito de desartificação (Entkunstung), segundo o qual os
produtos culturais forjados pela ideologia de um mundo administrado pelo capitalismo
A ) apresenta
uma visão crítica a respeito do processo de desartificação que é inerente às canções
populares mediatizadas pela indústria fonográfica, uma vez que se vale do uso de alguns
de seus elementos para poder criticá-los, como veremos. Cito sua letra:
Eu que sou filho de um pai teimoso
Descobri maravilhado que sou mentiroso
Sou feio, desidratado e infiel, bolinha de papel
Que nunca vou ser réu dormindo
E descobri como um velho bandido
Que já tudo está perdido neste céu de zinco
Eu que só tenho essa cabeça grande
Penso pouco, falo muito e sigo pr'adiante
Descobri que a velha arca já furou
Que não desembarcou
Dançou na transação dormindo
E como eu fui o tal velho bandido
Vou ficar matando rato pra comer
Dançando rock pra viver
Fazendo samba pra vender... sorrindo
(SAMPAIO, 1976)
2675
significações, podemos conectar essa postura de Sérgio àquilo que Adorno classificou,
na Teoria estética,
representar o resultado dos antagonismos sociais e de ser também a representação da
história sedimentada, a forma pode tanto significar uma fidelidade ao feitiço de
padronização lançado pela indústria cultural sobre a sociedade, como pode justamente
ser um amálgama das aporias dessa mesma sociedade e que, mesmo que tenha a sua
feição, sirva para criticá-la (ADORNO, 2008, p. 341). Por esta via, o uso do samba
como elemento rítmico constitutivo de uma canção de letra tão inventiva quanto crítica
não que não haja invenção nem crítica no samba em si , um
gênero de grande apelo popular e que representava, já naqueles tempos, uma fatia
importante do mercado de discos no Brasil, pode ser lido como uma atitude reflexiva de
Sampaio em face do caráter de mercadoria que as canções populares passavam cada vez
mais a ter. Assim, antes de se filiar ao espectro de aparência da indústria cultural, ele se
arma dela justamente para levar a canção a uma crítica sobre sua própria feição
reificada.
E os versos derradeiros são bastan
fui o tal velho bandido / vou ficar matando rato pra comer / dançando rock pra viver /
2676
para o plano da canção popular brasileira, devemos ter como baliza a ideia de que as
relações entre ela (objeto) e aquele que a ouve/analisa (sujeito) deve também ser
mediada, o que significa dizer que o ele deve ter em conta que algumas canções ainda
que pertencentes ao contexto de uma indústria fonográfica que tem como regra genérica
a padronização daquilo que oferece aos ouvintes possuem elementos de crítica e de
reflexão. É o caso das canções de Sampaio e que, como vimos, estão cheias de
elementos contestadores do próprio sistema (a indústria cultural) que as forjou.
Elementos que se analisados com mediação, repito, chegarão a sujeito e revelarão a ele
dados de autonomia, contrapondo-o ao mundo administrado. Cabe recorrer aos versos
(2005), em que Sampaio, seguindo a premissa adorniana de
não cooptação ao sistema de uma arte como produto, mas sim de uma arte cujo fito
sejam a autonomia e a emancipação dos sujeitos, vaticina:
(SAMPAIO, 2005).
Referências
2677
SAMPAIO, Sérgio. Real beleza. Intérprete: Sérgio Sampaio. In: SAMPAIO, Sérgio.
Cruel. Rio de Janeiro: Saravá Discos, 2005. 1 compact disc. Faixa 8.
SAMPAIO, Sérgio. Velho bandido. Intérprete: Sérgio Sampaio. In: SAMPAIO, Sérgio.
Tem que acontecer. São Paulo: Continental, 1976. 1 disco de vinil. Lado B, Faixa 12.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
2678
O SILÊNCIO POÉTICO E A EXPERIÊNCIA INTERIOR: UM DIÁLOGO
ENTRE A EXPERIÊNCIA E A LINGUAGEM
PALAVRAS-CHAVE:
1
Juliana Jordão Canella Valentim é mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal
Fluminense, bolsista da CAPES.
2679
a linguagem literária e, por assim dizer, poética é questionada pelo viés da experiência e
da negatividade. Adianto que, desta reflexão, a palavra que mais interessa é silêncio.
Partindo da noção de experiência, obtida na leitura de A experiência interior,
Bataille, logo no início, trata sobre o conceito que dá o título ao livro. Explica que
(BATAILLE,
1992, P.11). Sobre o conceito de êxtase na obra batailleana, fazendo uma breve pausa, é
importante mencionar outro livro, publicado em 1958, em que o estudioso debruça-se
sobre o termo. Em O erotismo, o autor cita o êxtase como próprio de uma relação erótica,
em que o ser entra em contato consigo mesmo. Entre os momentos de êxtase (em que há
dispêndio de energia e, por isso, gasto do que excede o corpo) e soberania (estar diante
de situações em que a lei não pode ser imposta ao corpo, visto que não há como forjar a
lei e incluir-se nela), Bataille cita exemplos de banalidades cotidianas, em que o corpo é
dono de si mesmo, e que não há nada além disso para limitá-lo. Em imagens de baforadas
de cigarro e de estado de ebriedade, o autor retrata o espaço de soberania e êxtase, em que
toda a energia acumulada só poderia ser desperdiçada. Ele cita:
experiência interior deve de qualquer maneira responder ao seu movimento, não podendo
, portanto,
a experiência interior é aquela em que o sujeito encontra-se em estado de soberania,
produtor de uma ordem, mas superior a ela.
A definição continua:
-la
para qualquer fim preestabelecido. E digo logo que ela não leva a porto algum (mas a um
lugar de extravio, de contra- Por isso, a experiência
interior, relação expressiva entre o sujeito e o objeto, ocorre de dentro de uma
subjetividade. A crítica batailliana sobre o pensamento hegeliano está fundamentada na
diferença entre uma análise científica e redutora da experimentação do corpo vista através
do teste. Segundo Bataille, não há como compreender (e não há mesmo) a experiência do
corpo com o mundo, senão pela experimentação. E mesmo que experimentado os estados
de êxtase e soberania, por exemplo, ainda assim, tal experiência seria inexplicável pela
-
-
2680
sentido, não pode ser completamente abarcado por uma análise filosófica ou científica,
ainda que seja isto o pretendido neste livro.
É pertinente pensar no contra-senso como um lugar em que se impõe uma
contrariedade. Na tentativa de definição desta experiência mística, a linguagem perde o
seu caráter objetivo de suprimir uma ideia (daí a reflexão sobre ipseidade, em que o ser
não pode ser completamente definido por uma linguagem, visto que o ser sofre ação do
tempo, por isso sempre em mudança e perene) para aloca-la em um conceito. Ao perder-
se, ela se contradiz, tornando-se um paradoxo. A ideia de experiência para Bataille é
absolutamente paradoxal, pois não há como senti-la fora do próprio corpo e,
possivelmente, em cada corpo há uma experiência diferente.
Neste espaço paradoxal, a experiência encontra-se com a linguagem (sistema que
organiza e impõe ordem). Em uma passagem, ele cita:
terminar, a fusão do objeto e do sujeito, sendo, como sujeito, não-saber, como objeto, o
(BATAILLE, 1992, p. 17), ou seja, no abismo2 entre o sujeito e o objeto,
há aquilo que é desconhecido e não-sabe e, justamente, por isso, incomunicável.
em nós, o trabalho do discurso. Esta dificuldade se exprime assim: a palavra silêncio é
ainda um ruído, falar é, em si mesmo, imaginar conhecer, e para não mais conhecer
(BATAILLE, 1992, p. 21, grifo meu). Cabe lembrar que o conceito
batailliano de comunicação está associado à linguagem (explicar com citação). Por tanto,
para a linguagem conseguir abarcar o objeto, ela deveria manter-se em silêncio, pois não
existe a possibilidade dela não saber ,
por isso entrando em confronto com o próprio conceito dado para sujeito.
Ainda tratando sobre o paradoxo da linguagem e do silêncio, na ideia de que, se a
linguagem pretende abarcar a experiência entre sujeito-objeto ela teria que silenciar, em
relação à poesia, como linguagem literária atípica, Bataille comenta que:
Não se pode saber nada do homem que não tenha tomado forma de
frase, e o entusiasmo pela poesia, por outro lado, considera as
intraduzíveis sequencias de palavras como cimo. O extremo está
alhures. Ele só é inteiramente atingido quando comunicado(...) Se
qualquer expressão testemunha isso: o extremo é diferente. Ele não é
nunca literatura. Se a poesia o exprime, ele é distinto disto: ao ponto de
não ser poético, pois se a poesia o tem por objeto, ela não o atinge.
2
Sobre o abismo, Bataille cita em O Erotismo
outros e os seres reproduzidos são distintos entre si como são distintos daqueles de que provieram. Cada
ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os acontecimentos de sua vida podem ter para
os outros algum interesse, mas ele é o único interessado diretamente. Ele só nasce. Ele só morre. Entre um
ser e
2681
Quando o extremo está lá, os meios que servem para atingi-lo não estão
mais lá. (BATAILLE, 1992, p.56)
A poesia, por tanto, seria a linguagem que mais se aproximaria da experiência interior,
pois ela é a única que se pretende fugidia, ou, como descrito na passagem, em que o
extremo está sempre sendo modificado, pois a linguagem poética não tem por objetivo
alcançar o seu objeto. A linguagem, portanto, seria subvertida de seu caráter
comunicador, neste caso, aproximaria-se do silêncio. A experiência interior faz-se no
- -e
parágrafo deste artigo. A citação é válida para a compreensão do que seria a poesia para
Bataille. Retomo que, a poesia é a linguagem que se aproxima do silêncio, pois está
sempre em vias de não dizer.
Pensar sobre uma linguagem que não pretende dizer, que se quer silenciosa, é
destacar o que Giorgio Agamben em A linguagem em a morte entende por negativo da
linguagem. O não-saber, o indizível, incomunicável, seriam os valores do procedimento
do pensamento. O pensamento da linguagem, instância anterior ao próprio discurso,
guarda, segundo Agamben, aquilo que chamamos de silêncio. Este silêncio do
pensamento é incomunicável, não há forma de dizê-lo sem delimitá-lo. Por isso, a
linguagem poética toca os estudos dos dois escritores. O negativo da linguagem, portanto,
é o discurso que está em estado anterior a linguagem e que não pode ser dito, por estar
em ausência.
Cabe ressaltar aqui que tratamos a experiência interior e o negativo da linguagem
de formas diferentes. A experiência interior é mais do que a própria linguagem, é um
estado de conhecimento. Este estado existe, está em angústia por não ser comunicável,
mas não é o objeto deste estudo. O que está sendo tratado é a impossibilidade da
linguagem de comunicar esta experiência. Como descreve Agamben, a linguagem possui
um negativo, no qual o que é incomunicável se revela em ausência. E esta é a diferença
entre o pensamento dos dois autores. Em propósito de explicar que a experiência interior
não poderia ser compreendida, pois só há compreensão através do discurso, Bataille toca
em uma questão da linguagem. A experiência não pode ser compreendida, pois ela é
soberana e limita-la a linguagem seria impor-lhe uma ordem a qual ela não obedece. Por
isso, o extremo do possível é nos inalcançável. Neste sentido, o discurso agambeniano
completaria: esta parte que a linguagem não consegue comunicar, pois é dita em ausência.
2682
Este modo de leitura redireciona o olhar para aquilo que está em falta, o negativo
daquela linguagem poética. Agamben, trata sobre a negatividade da voz, o ter-lugar da
linguagem e, em uma explicação, cita uma narrativa gnóstica cristã :
Por Abismo, explicando de forma rasa, Agamben entende tudo aquilo que não
pode ser apreendido do real empírico, por não conseguir ser descrito em sua
complexidade. A única maneira de apreender algo seria pelo que o silêncio pode
transformar em incompreensível. Somente a partir disso é possível pensar de fato em
linguagem. Aquilo que não foi calado, relembrando a dupla negatividade4, é o que pode
tentar ser dito pela linguagem. Em outro trecho do mesmo livro:
3
Neste trecho, Agamben nomina os conceitos de acordo com a tradição Gnóstica.
4
Em A linguagem e a morte, Agamben explica que a Voz, conceito hegeliano, seria definida por
uma dupla negatividade em que a primeira negatividade seria a supressão da voz efetuada pelo vivente à
linguagem e a segunda negatividade em que a Voz não pode ser dita em seu absoluto, pois mostraria o seu
ter-lugar originário.
2683
é o silêncio anterior à própria fala, é o pensamento da linguagem, revelado através da
ausência.
Voltando a Bataille, em um trecho, ele trata da poesia como um exemplo de
experiência interior. Assim como esta experiência, a poesia cria para si um sistema sobre
o qual é soberana, mas, ao invés de ir do desconhecido ao conhecido, como fazemos com
o pensamento e a linguagem, a poesia só pode partir do que é conhecido, visto que é
formada de palavras do sistema da língua vigente. Do conhecido vai ao desconhecido, em
que perde-se, segundo Bataille, no próprio sistema, e funde sujeito e objeto.
Por isso, o silêncio torna-se uma categoria a ser pensada. Pois, segundo Agamben, a
linguagem é aquela que quando não consegue abarcar o objeto, comunica através da
ausência de palavras, ou seja, pelo silêncio. Por tanto, se pudéssemos compreender desta
tica é linguagem e silêncio, a escolha de silenciar é o que carrega
a potência que leva a uma mínima compreensão do desconhecido.
À poesia, portanto, restaria o lugar do extremo, em que os limites do possível são
questionados. Neste lugar limítrofe entre o conhecido e o desconhecido a unidade de
comunicação é o silêncio.
O sacrifício das palavras então é aceito. Vivencia-se a experiência incomunicável
que estabelece sacrifício
é loucura, a renúncia a qualquer saber, a queda no vazio, e nada, nem na queda nem no
vazio, nada é revelado, por que a revelação do vazio é somente um meio de cair mais
profundamente na ausência (BATAILLE, 1992, p.58). O vazio do incomunicável é
apenas a queda na ausência de palavras, no silêncio que irrompe da experiência interior.
Sacrifica-se a linguagem em prol do desconhecido.
2684
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
2685
1
Prometeu
2686
2
1 Vale mencionar que Murilo Marcondes de Moura também investiga a presença do mito de Prometeu em
Murilo Mendes no seu livro Murilo Mendes: a poesia como totalidade, de 1995.
2687
3
O transe e a gênese
2688
4
2689
5
2690
6
sertanejo é como uma clareira que ultrapassa os limites da nação, indo do Grande Sertão
Veredas à tragédia antiga.
Poderíamos aproximar, em Riverão Sussuarana, a versão do Prometeu solar a uma
infinidade de outros mártires e messias, como Antonio Conselheiro, que se interpõem entre
a organização da comunidade e o sistema. No entanto, apesar da presença de Conselheiro,
o efeito do romance é o da desmistificação – uma vez que a assinatura não é senão uma
máscara escritural que reformula os nomes próprios de Guimarães Rosa (Major e Mestre
Rosa, Embaixador Romancista, Jango Rosa) e de Glauber Rocha (Glaubiru, Grober,
Glaudi, seu Roxo), até que por fim o escritor mineiro e o cineasta mesclem-se na
personagem Guimarães Rocha: um qualquer, uma bipolaridade formada pelo soberano e
pelo homo sacer.
Prometeu, por outro lado, assume a forma do absoluto – daquilo que esconde algo
em que poderia se tornar, uma categoria da representação livre de qualquer
transcendentalidade (EINSTEIN, 2004). O autor esvazia, por conseguinte, as funções
predominantes nas aparições desse mito, de modo que já não se refira a ao ato da criação
divina, nem inaugure a civilização entre os homens, mas aponte para o “nada”
característico do começo não-cronológico:
I
[...]
Mais importante do que esses dois atos é o DURANTE que preenche
sentimentalmente a LACUNA.
Este durante do ENTRE é a dor de Prometeu
[...] (ROCHA, 2012, p. 195).
II
[...]
E NO PRAZER DE DAR SUBLIMA O NÃO SER PROJETADO DA
MATÉRIA FELIZ PORQUE VIU UM NADA LACUNAR ENTRE
O SER E O PASSADO
[...] (ROCHA, 2012, p. 196).
V
[...]
NADA É O NOME DE DEUS.
O ANTERIOR E O POSTERIOR E O IMAGINADO
JAMAIS MATERIALIZADOS
EIS O DESEJO DE DEUS INDEFINÍVEL NADA
ALEM DO CONCEITO DE INFINITO NÃO SER
[...] (ROCHA, 2012, p. 197).
2691
7
Deus no mundo
2 Segundo vemos na passagem em que o narrador Glauber Rocha relata a morte de Necy e investiga os
acontecimentos e os depoimentos que não o convencem. Quando “interroga”, por exemplo, o marido da
vizinha da falecida irmã, após ouvir as respostas dele, afirma: “Montagem mal feita – respondi e o
deixei” (ROCHA, 2012, p. 180 – grifo nosso).
2692
8
Quero dizer: a atitude desenvolta que o poeta usa nos seus poemas pra
com a religião, além de um não raro mau gosto, desmoraliza as imagens
permanentes, veste de modas temporárias as verdades que se querem
eternas, fixa anacronicamente numa região do tempo e do espaço o
2693
9
As ondas amarguradas
Encostam a cabeça na pedra do cais.
Até as ondas possuem uma pedra na cabeça.
Eu na verdade possuo
Todas as pedras que há no mundo,
Mas não descanso (“Mas”, MENDES, 1994, p. 234).
3 Como vemos nos versos de “A destruição”, de A poesia em pânico (1936-1937): “Ó Madalena, tu que
dominaste a força da carne / Estás mais perto de nós do que a Virgem Maria, / Isenta, desde a eternidade, da
culpa original. / Meus irmãos, somos mais unidos pelo pecado do que pela Graça: Pertencemos à numerosa
comunidade do desespero / Que existirá até a consumação do mundo” (MENDES, 1994, p. 287).
2694
10
confessando os supostos lapsos (verso 20). No entanto, em sua rebeldia, procura reinserir a
possibilidade de fundamento (o “espírito da vida”, “a verdade dos seres, dos elementos”)
no amálgama entre o céu (que envolve o Pão de Açúcar) e a terra (a praia carioca), do
verso 11 ao 16.
Vale recordar, nesse sentido, que a noção de tempo implicada em Murilo deve-se em
grande parte ao essencialismo de Ismael Nery, quem conhecera em 1922. Como sabemos,
o autor de Bumba-meu-poeta (1930-1931) reuniu os escritos de Nery sobre essa doutrina
na revista A Ordem, fundada por Jackson Figueiredo em 1921. O essencialismo procurava
garantir a “superação” do homem por meio da abstração do tempo e do espaço, a que o ser
humano deveria sujeitar-se. Além disso, o homem deveria submeter todas as suas ações e
envolver-se apenas com os fatos essenciais ao seu “Bem” (ou “tudo o que nos conduz à
morte naturalmente sem atacar a nossa dose de instinto de conservação”). Visto que, para o
essencialismo, a vida seria um processo de construção do conhecimento, um
2695
11
aquele sugerido pelos colaboradores da revista Acéphale entre 1936 e 1938, Bataille e
Caillois4.
O mote para a revista Acéphale deriva da ilustração de André Masson de um corpo
cujo sexo é substituído por um crânio descarnado e que apresenta uma tocha posicionada
na mão esquerda (MARTÍNEZ, in: BATAILLE et al., 2010). Os cinco números dessa
revista dedicam-se especialmente a refutar o uso da filosofia nietzschiana pelo nazismo e a
enfatizar o aspecto dionisíaco do pensamento, posto que o corpo decomposto de Dioniso
remeta-se ao globo em ebulição e ao homem do entre-guerras. Murilo Mendes reivindica
esse mesmo aspecto da obra de Friedrich Nietzsche nos Retratos-relâmpago, publicados
entre 1965 e 1966: “[…] Renovar sua didascália sobre o espírito grego como ponto de
partida da cultura, e sobre o espírito israelita como organizador da ação. Desnazificar
Nietzsche. Desprussianizá-lo (MENDES, 1994, p. 1210).
O titã do poema de Murilo não lamenta os sofrimentos de que padece, mas carrega a
punição que lhe é destinada como o Atlas levaria o mundo sobre as costas, troçando das
consequências para a humanidade, dado que se insurja contra os valores que o seu ato
supostamente tornaria possíveis – “o trabalho, os banqueiros, a escola antiga” — de modo
que se aproxime do revolucionário anarquista. Seja no modelo acefálico de Murilo Mendes
ou no bipolar de Glauber Rocha, o mito de Prometeu nos reporta a um começo não
unitário, suscitado pelo conflito entre forças de assenhoramento e de subjugação, que
retorna em eventos diversos da história — o dos fascismos e o das ditaduras latino-
americanas — com sentido e finalidade passíveis de interpretações novas.
Referências bibliográficas
4 Nas “Proposições sobre o fascismo”, publicadas no número 2 da revista Acéphale em 1937, Georges
Bataille faz a seguinte interpretação do conceito de liberdade em Nietzsche: “Ser livre significa não ser
função. Deixar que a vida se encerre em uma função é deixar que a vida se castre. A cabeça, autoridade
consciente ou Deus, representa a unidade das funções servis que se oferece e se toma a si mesma como um
fim; consequentemente, é a que deve ser objeto da mais profunda aversão” (BATAILLE, 2010, p. 67 —
tradução nossa).
2696
12
______. [et al]. Acéphale. 3. ed. Traducción de Margarita Martínez. Buenos Aires: Caja
Negra, 2010 (p. 63-70).
BENTES, Ivana (Org.) Glauber Rocha — Cartas ao Mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
EINSTEIN, Carl. Revolution Smashes Through History and Tradition. Trans. Charles W.
Haxthausen. October, n. 107, p. 139-145, Winter, 2004.
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de Rosa Rius Gatell. Barcelona, Buenos Aires: Paidós, 1999.
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literatura. Madrid: FCE, 2009 (p. 49-82).
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Org. Roberto Machado. 23. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2007.
GUAL, Carlos García. Prometeo: mito y literatura. Madrid: FCE, 2009.
HESÍODO. Teogonía (v. 507-616). Trabajos y días (v. 42-105). In: GUAL, Carlos García.
Prometeo: mito y literatura. Madrid: FCE, 2009 (p. 27-35).
MENDES, Murilo. Comentários aos poemas de Ismael Nery. In: A Ordem, p. 315-317, abr.
1935.
______. Poesia completa e prosa. Org., prep. do texto e notas: Luciana Stegagno Picchio.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Uma polêmica. Tradução de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Reimpressão.
______. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Tradução de J. Guinzburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme,
1981.
_____. Riverão Sussuarana. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
SOARES, Luis Felipe. Glauber Evangelista. In: Cinemais, Revista de Cinema e Outras
Questões Audiovisuais. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.
2697
A CONSCIÊNCIA INFELIZ:
UMA LEITURA FENOMENOLÓGICA DAS OBRAS MARGINAIS, DE EVEL
ROCHA, E O DIÁRIO DE UM HERMAFRODITA, DE HERCULINE BARBIN.
RESUMO
O artigo tem como objetivo refletir sobre as múltiplas impossibilidades dos sujeitos, a partir de
seus exercícios dialéticos. Para tanto, o arcabouço teórico se iniciará pelas discussões
fenomenológicas propostas por Hegel sobre o herói infeliz, e a releitura de Judith Butler,
concatenando-as às questões de gênero e identidade. Assim, parte-se para a análise comparativa
de duas obras artísticas que têm a rememoração como potência narrativa, "Marginais", do cabo-
verdiano Evel Rocha (2010), e "O diário de um hermafrodita", da francesa Herculine Barbin
(1978).
2698
A literatura tem inúmeros exemplos de textos que propõem um movimento
dialético de personagens, onde é possível observar o desenvolvimento dos mesmos
através de suas experiências. Desse modo, os erros e acertos vivenciados desenham não
apenas o contorno das estórias, como também as relações íntimas e individuais dos
sujeitos, ressignificando suas construções ao longo das narrativas.
A experiência dos personagens nas estórias narradas é o ponto de partida dessa
reflexão. E, para tanto, escolho dois textos para discorrer sobre o assunto. O primeiro
deles, Marginais, do cabo-verdiano Evel Rocha, um romance contemporâneo, publicado
em 2010, que traz as rememorações do personagem Sérgio Pitboy na periferia da Ilha de
Sal, a principal Ilha do arquipélago de Cabo Verde. Sérgio, nos últimos instantes de
uma vida atribulada e degradante, entrega suas memórias para um conhecido que as
publica, logo após a sua morte. Dessa forma, a narrativa conta a estória de um homem
comum que, pelas inúmeras dificuldades, poderia ter sido, mas que nunca foi.
O segundo, O diário de um hermafrodita, as memórias da francesa Adélaïde
Herculine Barbin, escrito quando ele tinha 25 anos e que veio ao público após o seu
suicídio, em 1868. Um texto esquecido que só voltou a ser discutido pelo seu
relançamento, em 1978, mais de um século depois, com o prefácio de Michael Foucault.
Herculine Barbin relembra suas dolorosas experiências através da formação e
transformação de Herculine em Abel. Inicialmente, enquanto uma mulher pobre, filha
de uma governanta, teve uma trajetória limitada pela sua condição de vida: a questão
profissional, demarcada pelos espaços educacionais e religiosos; a física, enquanto um
indivíduo hermafrodito; e o desejo homoafetivo, em um espaço conservador e patriarcal
no interior da França, no início do século XIX.
Duas estórias que são completamente diferentes e com personagens que não se
assemelham à priori. Contudo, não seria possível pensar em um caminho comparativo
sobre as experiências desses indivíduos, visto que suas vivências narradas trazem algo
em comum, a memória?
Os romances de formação, ou Bildungsroman, são textos em que o
desenvolvimento dos personagens é minuciosamente exposto, seja pelo caráter físico,
psicológico, social, cultural ou político. Uma jornada metafórica ou não através de uma
inexperiência inicial, assimilada pelos erros e acertos em seu desenvolvimento e que
chega a um esclarecimento, às vezes amargo, da experiência de vida.
2699
Para Hegel, em Fenomenologia do Espírito (1992), o processo de formação do
indivíduo se deve ao progresso de sua relação com a razão. E isso se dá de uma forma
cada vez mais autoconsciente em direção ao saber absoluto,
O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se
implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve
se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na
verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo, em ser
sujeito ou vir-a-ser-de-si mesmo (HEGEL, 1992, p.31).
Sérgio narra inicialmente uma infância pobre, em que o banditismo faz parte da
2700
Entretanto, Sérgio, mesmo com todas as adversidades, tenta realizar o sonho de ser um
jogador de futebol de sucesso e superar os limites impostos a ele.
No decorrer da estória, é perceptível a corrosiva desesperança em suas
memórias. Com a impossibilidade de participar da seleção para novos jogadores em um
time europeu por sua condição física, debilitada pela vida subnutrida de cuidados e
solidariedade, Sérgio chega à vida adulta com uma consciência cruel de sua condição.
O texto de Herculine Bardin (1978) também traz essa consciência, através das
memórias de uma mulher que viveu no interior da França, nas primeiras décadas do
século XIX, com inúmeras privações.
Inicialmente, Herculine vivia uma situação razoável, visto que sua mãe era
governanta de uma família nobre e, por isso, tinha um tratamento além da relação
patronal. Todavia, o trabalho da mãe impossibilitava a criação e educação da menina. E,
com apenas sete anos, Herculine foi colocada em um convento de freiras.
Um pouco mais velha, ela se destaca nos estudos e, assim como Sérgio Pitboy,
começa a construir os seus sonhos. Porém, a sua condição de mulher pobre a impede de
sonhar, sendo guiada pelo chefe de sua mãe a seguir o caminho da docência em
instituições religiosas para mulheres, trabalho que Herculine não recusa, mas que a
frustra, visto as limitações e o pouco prestígio em ser apenas uma Professora.
Refletindo inicialmente sobre as duas narrativas e as experiências vividas por
esses indivíduos, é possível construir, assim, alguns questionamentos: A progressão dos
personagens os levaria a um saber absoluto de suas impossibilidades? E, em que medida
a autoconsciência não indeterminaria suas vidas, suas trajetórias?
Tanto Sérgio como Herculine trazem em seus discursos a consciência de que as
impossibilidades têm relação com suas condições, e não com as situações da vida. E,
para exemplificar essa diferença, minha leitura parte, então, à discussão de gênero.
Em Subjects of Desire (1987) Judith Butler propõe a discussão fenomenológica
concatenada às reflexões de gênero. Assim, a teórica questiona o pensamento de Hegel
no sentido de compreendê-lo que é possível pensar no herói infeliz (aquele que tem
consciência de sua condição) apenas enquanto homem, não abrindo a possibilidade para
suas diferenças. Além disso, enquanto Hegel entende a progressão do herói como um
caminho para a autoconsciência, para Butler, somente a partir desse percurso será
possível a criação de sua identidade.
2701
Judith Butler, dessa forma, traz uma interessante discussão para a compreensão
dessas duas estórias, visto que seus personagens são sujeitos que vivenciam múltiplas
identidades e de forma complexa.
Em Marginais, a discussão de gênero vai além da experiência individual de
Sérgio Pitboy. Ao longo da narrativa é possível encontrar outros indivíduos em que o
gênero é tencionado, como a personagem Lena, que decidiu pelos espaços considerados
masculinos:
Lena manuseava as cartas como ninguém; conhecia todos os
truques do tchintchôm e se descobrisse que alguém estava a roubar no
fogo não hesitava em desembainhar a navalha ou esmurrar a cara do
batoteiro. Usava roupas masculinas conspurcadas de suor, tinha o
rosto delicado de mulher, mas os punhos largos e os olhos desafiantes
desencorajava qualquer mal intencionado. Lena, quando não estava a
jogar batota, trabalhava como ajudante de pedreiro, pescava nos fins-
de-semana e, no domingo à tarde, ia ao Estádio Marcelo Leitão ver
futebol. Ela chegou á conclusão que ganhava mais a jogar cartas do
que esbodegando no trabalho forçado. Fumava tudo o que era erva,
bebia cerveja desafiando os homens com sua linguagem ordinária,
porém rica em obscenidade. Sentava-se como homem, tirava a blusa,
alegando calor, e deixava à mostra o soutien avolumado pelos fartos e
arredondados seios, depois destratava a mãe daqueles que lhos
observavam (ROCHA, 2010, p.67).
2702
(...) Sou homensexual, a sujeira que entrou na sua casa, mas não sei
viver de outra maneira. Quero que saibas que eu não virei
homensexual, nasci assim. Por isso, meu pai, para que não sintas mais
humilhação e porque não sei viver de outra maneira, vou matar a
cabeça. Talvez num outro mundo eu possa ser mais compreendido tal
como sou. Sou capaz de aguentar as troças, a fofoca da vizinhança,
mas não posso viver sem a tua bênção! Perdoa-me por ter nascido gay.
Adeus para sempre (ROCHA, 2010, p.118).
2703
romance lésbico, Herculine e Sara iniciam um grande romance, em que a amizade e o
companheirismo eram mútuos.
É neste momento em que as memórias de Herculine deixam-se levar mais
cachos de seus cabelos naturalmente ondulados, apoiando meus lábios ora em seu
-52). E curioso observar que,
sempre que uma passagem como essa aparece no diário, Herculine reprime o seu desejo,
visto que a culpa e a reprovação de seus atos faz parte de seu discurso e, dessa maneira,
nto,
me acusar agora de ter cometido um crime? Não, não!... Esse erro não foi meu, mas de
Ao mesmo tempo em que os conflitos aumentam, Herculine sofre cada vez mais
com seu corpo, algo que ela não sabe explicar. E, em uma das crises, a mãe de Sara
resolve chamar um médico que, consultando-a, fica perplexo com a desc
pobre homem ficou terrivelmente atordoado! Frases entrecortadas escapavam de sua
boca, como se ele tivesse medo de as pronunciar. Eu queria que ele estivesse longe de
condição física.
Depois de alguns verões com encontros ás escondidas com Sara, Herculine
resolve deixar a instituição, como única forma de não desgraçar a vida da amada e
difamar o nome do internato, visto que, como poderiam consumar publicamente este
romance? Como seria possível assumir, perante a sociedade, uma relação lésbica em um
ambiente religioso, em que mulheres são formadas para serem freiras ou boas esposas?
Em uma fase de desesperanças e desespero por seus desejos homoafetivos,
Herculine recorre a um padre, que a aconselha a procurar um médico que, assim,
diagnosticou a sua condição enquanto uma mulher de dois gêneros, ou seja, um
indivíduo hermafrodito. Por isso, a personagem resolve não apenas aceitar o seu novo
gênero, como oficializá-lo, tornando-se, assim, Abel Barbin.
2704
A partir dos exemplos das experiências identitárias desses personagens é
possível afirmar que o movimento dialético em suas formações os levaria para alguns
esclarecimentos sobre suas vidas.
Em relação ao gênero, tanto Sérgio como Herculine, ou Abel, constroem uma
autoconsciência em que compreendem seus conflitos enquanto uma condição de vida.
Se as experiências estivessem no âmbito situacional, as esperanças tanto de Sérgio
vivenciar de forma mais aprofundada a sua relação homoafetiva com mirinha seria
possível. E Herculine, a construção de um romance mais sólido, e público, com Sara.
Todavia, suas vidas estão encarceradas nos limites da condição, portanto,
impossível que haja mudanças significativas nas vidas dos dois personagens e que
possam viver livremente seus desejos e vontades.
A condição de vida dos dois sujeitos os levam a uma amarga consciência de si,
em que a solidão foi único caminho encontrado. Sérgio, pela frustação de um sonho
profissional e a impossibilidade de amar; Herculine, pela condição física que a
enquadrava como uma aberração exótica, e também a inviabilidade do amor.
Assim, concluo que a formação desses sujeitos para a autoconsciência trouxe a
eles a clareza da impossibilidade de viver. O fim dos mesmos justifica essa afirmação,
visto que, Sérgio morre (ou se deixa morrer?) debilitado nas ruas pobres da Ilha do Sal e
Abel se suicida.
A consciência infeliz desses personagens reverbera na percepção de suas
condições subalternas, enquanto sujeitos periféricos e impossibilitados de exercer suas
múltiplas identidades. Se Gayatri Spivak (1997) questiona ?
termino essa comunicação com um questionamento semelhante, pode o subalterno
pensar sobre si?
REFERÊNCIAS
2705
ROCHA, Evel. Marginais. Cabo Verde: Gráfica da Praia, 2010.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina
Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André Pereira Feitosa. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2015.
2706
ARTE DE EDUCAR E CONEXÃO RAZÃO-SENTIMENTO E PENSAMENTO-
ARTE EM ROUSSEAU: UMA FORMAÇÃO ESTÉTICA DA INFÂNCIA
Lia Presgrave Reis1 (PPGE/UFSC)
Marlene de Souza Dozol2 (PPGE/UFSC)
Resumo: a pesquisa pretende investigar a diluição das fronteiras entre sentimento e razão na
obra de Jean-Jacques Rousseau. Baseando-se na relação que tais faculdades estabelecem entre
si, pretende-se mostrar que a suavização desses limites está relacionada à conexão entre filosofia
e artes na obra do filósofo, mais detidamente a literatura conforme interpretação de Bento Prado
Jr. (2008), o que apontaria para um esmaecimento das fronteiras entre os gêneros (neste caso o
literário e o filosófico) na obra do filósofo genebrino. Diante disso, propõe-se pensar o viés
estético do sentimento em sua obra e, a partir desta premissa, conceber a apreciação do
sentimento estético como ponto de formação da consciência, esta última amálgama de razão e
sentimento segundo Rousseau. A relação de tais objetivos com a pedagogia emerge do fato de o
conceito de educação ser, neste contexto, igualmente um conceito de formação estética. A
investigação tenta entrever relações entre os pares razão-sentimento e o prolongamento
filosofia-arte que possam contribuir para conferir a dimensão estética da obra de Rousseau e de
sua concepção de infância. Para tal, toma-
cunhada por Marlene Dozol (2015) para indicar uma atitude e um olhar de leveza lançado sobre
as coisas, aliado a uma vivência do instante e do tangível, uma imediatez das sensações. A
do devaneio e ao leve pousar da presença da criança nas relações que trava com seu entorno.
Com o auxílio da Poética do devaneio de Bachelar (2009), a poética da superfície elegerá o
instante para pensar tanto a retórica do Rousseau romântico de Os devaneios do caminhante
solitário e de Júlia ou a Nova Heloísa quanto a dimensão estética da formação infantil.
1
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro integrante do Núcleo
de Pesquisa GRAFIA Grupo de Estudos em Filosofia da Educação e Arte.
2
Professora Associada do Centro de Ciências da Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Membro integrante do Núcleo de Pesquisa
GRAFIA Grupo de Estudos em Filosofia da Educação e Arte.
2707
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2708
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1
O conceito de perfectibilidade em Rousseau corresponde à capacidade humana de aperfeiçoamento, uma
disposição inata que pode ou não ser desenvolvida, a qual seria também responsável por retirar do
aperfeiçoamento humano aqui entendido como a própria formação do indivíduo a ideia de perfeição
como um limite a ser atingido. Nesse sentido, a primazia da concepção de aperfeiçoamento em detrimento
de uma ideia de perfeição contribuiria para conferir à infância e as demais etapas da formação uma beleza
e um valor intrínsecos, respeitando as demandas de cada fase do desenvolvimento do indivíduo.
2709
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UM PORTUGAL MÍTICO: UM ESTUDO DAS LINGUAGENS DE
ANTONIO LOBO ANTUNES E SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
faziam
refletir sobre a composição poética de certa topografia da ruína que se perfaz diante de uma
linguagem espectralizada no romance de Lobo Antunes e sob a mineralidade do signo na
poética de Andresen. Nessa espécie de breviário de mundos que se alcançam em uma dimensão
nostálgica, em atravessamentos de experiências de fraturas, de dores, de distanciamentos que
disseminam álbuns imaginados, cenas plásticas enredadas por um filtro do passado revisitado,
enunciados e sentidos que em uma economia incessante viabilizada pela leitura dos textos,
forjam e disparam um imaginário mítico de um país construído desde consumações sentimentais
de inventários geográficos, familiares, psíquicos e materiais.
2718
Andresen, que indiciam uma ruptura à relação de presença e unidade da palavra, senão
pelo investimento em deslocamentos como na emergência das analepses e pelos
processos oníricos como no romance de Lobo Antunes, pelas imagens que liberam
desde o recurso das analogias, das metonímias, do apelo e interação com o leitor, o
imovível do signo gráfico à uma economia que impacta e, ou, rasura a noção de
significado transcendental, distendendo o significante em um processo marcado pelo
apagamento do sentido único, pelas diferenciações e modulações da linguagem às voltas
com tópicas da história, da alteridade.
Não há que se apontar, então, um motivo contextual, uma origem para a
linguagem poética que acontece na fissura do captável; no entanto, os registros espaciais
de Andresen subsumidos por um fluxo que porta certo grau de historicidade exploram e
projetam distintas e múltiplas negociações entre as relações representacionais, a visada
fenomênica advinda dos movimentos de imersão e tradução sensorial-imaginativa desse
Portugal mítico e a aporia do testemunho que porta a ventura do perjúrio e que não
opera como ente mimético na linguagem. Onde emerge imagens se perfazem pontos de
acesso à uma dimensão utópica, incursão marcada por um prolongamento que parece
invocar memorabilias extraídas antes de pensamentos e nostalgias do que registros
estáticos.
2719
tensionam o discurso nos limites de sua representação, concedendo ao homem a
autonomia para designar o que será um signo, alçando a linguagem a uma espessura
reflexiva, a linguagem como objeto de conhecimento sem que isso se dê por um caráter
transitório, de instância posterior, definitiva e apaziguada.
Em Antonio Lobo Antunes, no relevamento da dramaturgia que se desdobra
naquilo portar-o-outro, na carga de perda ficcionalizada em uma demora desde a
saudade que se difere da saudade delineada nos poemas aqui elencados de Andresen:
em Que cavalos são aqueles que fazem sombras no mar? pervive uma multiplicidade de
pontos de vista, seja nas imersões intimistas dos narradores, seja nos diálogos
encriptados desses personagens com suas heranças infiéis de passado que se distende
em uma nostalgia forjada entre as descontinuidades da súplica, das invectivas e do
esgarçamento da memória. Há um estrato cromático neblinado pela memória vacilante
que advém da integração entre aspectos visuais e verbais que forja presenças-vozes
espectralizadas no romance.
As composições poéticas de Lobo Antunes e de Andresen se perfazem sob a
constante atração ao outro, seja este constituído por núcleos de família, de cidade, de
paisagem ou de memorabilia que resistem às tentativas ou a quaisquer premissas de
decodificação de seus universos esculpidos em uma sintaxe de aproximações, no caso
de Andresen ao real, em riscos, na incondicionalidade do acontecimento materializada
em uma poética como gesto de envio, ou na constante ameaça de esboroamento entre a
concepção de mundo real e o limbo fantasmático de uma linguagem em múltiplas vozes
às voltas com o perjúrio, com o trauma, no caso do romance de Lobo Antunes.
Ainda que vigore nos poemas de Andresen rastros daquele ímpeto de contato
com uma unidade concreta de mundo de certos textos épicos, um fascínio contínuo pelo
arcaico recuperável e pela matéria decantada de séculos de reiteração, repetição e
revalidação, esse legado se dissipa em uma saga que acontece na linguagem, às claras,
em um jogo de captura e caça ao outro que não pretende sua retenção figurativa: antes,
expõe um entroncamento de forças visuais em uma atmosfera textual marcada por um
crescente de autorreferencialidade, já que a Literatura irrompe desde a matéria primeira,
mundo, saudade, escrita e corpo. A expressividade escritural se faz corpórea, a
experiência se expõe, se dissemina desde a estrutura poética que revela estratos
imagéticos de um mundo em revindas, o que implica uma textualidade às voltas tanto
com procedimentos icônicos quanto com processos de desestabilização do registro
factual buscando uma reconstrução estética do passado pela subjetividade nostálgica.
2720
No romance de Lobo Antunes, a dicção do vertiginoso não se dissipa à deriva do
tempo: ela se dissemina em tramas que corporificam experiências-limites, desde
arranjos sintáticos que fraturam o reconhecimento do sujeito enunciador e que assumem
a linguagem em matiz elíptica, ou em composições de ambientes anacrônicos que
vislumbram senão certa reconstrução temporal impossível, uma exposição da distorção
do presente afetado pelo passado que se (re) inaugura ao longo da narrativa. Um
dialógico clima de catástrofe é convertido em burburinhos, murmúrios, esquecimentos,
reminiscências que acionam o fluxo rememorativo, explorando os confins de realidades
acossadas pelo medo, pela dissipação do corpo e do tempo, pelo luto e suas demoras de
saudades, de melancolias, de nostalgias.
Da linguagem atravessada por esse fluxo de nostalgia, tem-se:
Vieram dizer que a minha mãe estava a morrer por respeito a morte
tirei o dedo da gengiva embora nunca tenha visto ninguém morrer
nem saiba o que é morrer, sei que diante dos caixões , se fala em voz
baixa e nos movemos devagar mais educados, mais compostos,
cumprimentando-nos num sorriso triste e depois ficamos ali de mãos
dadas conosco mesmos, à frente ou atrás das costas.
(são as únicas alturas em que damos a mão a nós mesmos como se
fôssemos uma pessoa diferente e somos uma pessoa diferente porque
os dedos que apertamos estranhos e a gente mirando-os à socapa a
perguntar
Parecem meus mas são meus?
Encolhemos um ao acaso, sentimo-lo mover-se e o que prova isso
conforme nada prova o anel, a pulseira, o que não falta são anéis e
pulseiras, serei uma, serei duas, serei uma criatura que não tem a ver
com qualquer delas ou comigo, devolvam-me a mim por caridade, se
calhar é isto o que a morte significa, onde estou?) (ANTUNES, 2009,
p.39)
2721
mesmo. A poesia não diz: eu sou tu; diz: meu eu és tu. A imagem
poética é a outridade. (...) A conversão do eu em tu imagem que
compreende todas as imagens poéticas não pode realizar-se sem que
antes o mundo reapareça. A imaginação poética não é invenção mas
descoberta da presença. Descobrir a imagem do mundo no que emerge
como fragmento ou dispersão, perceber no uno o outro será devolver à
linguagem sua virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia:
procura dos outros, descoberta da outridade. (PAZ, 2015, p.102)
2722
Octávio Paz, em seu Signos em rotação, ao explorar a emergência e a tessitura
da frase poética, pensa o verso em uma totalidade autossuficiente como um
microcosmo: sob esse prisma de pensamento os poemas aqui elencados disseminam
microcosmos onde ritmo imagem e significado, em um fluxo e refluxo das imagens
animam e assumem o risco de transitar entre mundos, o da referencialidade e o da
imaginação.
Embora no romance de Lobo Antunes o povoamento léxico também incida sob
uma tópica comum à Andresen (nominalmente: os arrabaldes geográficos em torno de
Lisboa), em Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? a textualidade ganha
lastro numa polifonia que estiliza a linguagem memorialista em um crescente da voz
lírica, que condensa e revolve acontecimentos do passado, presente e futuro, não
vigorando um projeto de despersonalização da voz (vozes) elocutória que persiste e se
distende em um misto de vigília, velório, ato de contrição, relembramentos que
paralisam e antagonicamente catalisam a morte da mãe que também fala em um regime
espectral de assunção. Os irmãos Beatriz, Francisco, Ana e João, a mãe, o pai também
morto e a empregada Mercília comparecem em fluxos confessionais que forjam
angulações múltiplas ao romance.
Ainda que invistam em perspectivas diferentes na modulação das vozes, nos
signos que decifram, diferenciam, na construção espacial que em Andresen prescinde da
revelação do campo referencial em sua instância-farol, em seu clamor do enfretamento
com o mundo e não na fuga, no refúgio do dito pelo aflorar do impuro, no
desdobramento dialógico e polifônico como no romance de Lobo Antunes o trato com o
passado, em ambas as narrativas, que assume uma espessura mítica despertando,
assombrando destaca a condição, a canalização e a dimensão do substrato memória
como liberadora de alteridade. Enquanto o verso do poema aproxima a cena pictórica
rota, também emerge uma vacilação presentificada pela preposição designativa de falta
2723
força, funda e da concretude a um gesto de envio da dor, da nostalgia, da palavra vinga
um porvir afetado pelo fracasso de quaisquer promessas: também no romance de Lobo
Antunes experimenta-se à entrega a um tempo remoto, mas não com acesso inegociável;
ali, o recuo, a memorabilia, é atravessado por vozes que depõem sobre os rumos da
história, da composição e afetação entre um narrador e outros personagens. Os
movimentos de afetação e a dicção de recordação que esculpem a topografia da
narrativa são reportados por uma economia do trauma que encena vigília, desterro,
trauma em contrapartida ao próprio da evidência presente nos poemas de Andresen.
Referências:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. (2004). Poemas escolhidos. São Paulo:
Companhia das Letras.
ANTUNES, Antonio Lobo. (2009). Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar.
Rio da Janeiro: Objetiva, 2009
FOUCAULT, Michel. (2007). As palavras e as coisas. Trad: Salma Tannus Muchail.
São Paulo: Martins Fontes.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. (2015). Trad: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo:
Perspectiva.
2724
VILÉM FLUSSER: ENSAIO, PRÁTICA, REFLEXÃO
RESUMO: O exílio parece ser uma instituição fundadora do pensamento de Vilém Flusser,
uma espécie de metáfora cujo sentido ele subverte, compreendendo-a como potência produtiva.
Trata-se de uma experiência que desestrutura sua relação com passado e futuro, no sentido que
lhe furta ambos, e com a noção de uma identidade estável, mas que também lhe concede
liberdade para as futuras escolhas que faz. Cada uma de suas obras é, assim, consequência da
liberdade de pensar e de expressar-se, mas também de inventar-se enquanto um intelectual que
não se fixa em lugares ou áreas de conhecimento. Não à toa elege o ensaio como meio para
articular seus pensamentos, essa forma que, segundo Adorno, aparece como a negação de todo
método, que eleva a própria experiência ao status de autoridade de conhecimento, que não parte
do princípio, nem se orienta ao fim. Não se trata de um meio, mas uma prática com acepções
intelectuais e estéticas. Por meio dela, rejeita conceitos estáveis e absolutos, produzindo obras
que criam unidade a partir da fragmentação, ideias que só se completam em relação e interação
umas às outras. Ao recusar a linearidade e as explicações fechadas, ele não atua apenas no
sentido de contestar um sujeito estável, mas, por meio da prática da escrita, rejeita ainda
o projeto de uma modernidade pautada no progresso da civilização e do conhecimento
ocidental.
2725
avesso a classificações e à criação de sistemas ou metodologias, rejeitava a
determinação de filósofo, preferindo a de escritor. Seu legado é tão vasto que livros
póstumos continuam sendo publicados, seja com textos inéditos ou a partir de traduções
organizadas por alguns de seus estudiosos ao redor do mundo.
2726
experiência do exílio, na consciência da perda de todas as bases que davam sustentação
a seu mundo, centrado em Praga e apoiado em uma estrutura cultural na qual se
reconhecia e se projetava. Curiosamente, esta primeira parte do livro termina com
capítulo dedicado à língua brasileira, entendida não como instrumento de comunicação,
mas em toda a sua pontencialidade poética e reflexiva. Em suas palavras, como matéria-
prima para trabalhar a vida; ou seja, como desafio e tarefa de vida, cuja meta era tornar-
se “escritor brasileiro”.
É apenas após 20 anos no Brasil que Flusser passa a, efetivamente, ter alguma
atuação intelectual, por meio de artistas e intelectuais envolvidos com a criação do
Instituto de Filosofia de São Paulo, sobretudo escrevendo para o Suplemento Literário
do jornal O Estado de S. Paulo. Assim recupera, de certa forma, o futuro que perde ao
deixar Praga e os estudos de filosofia na célebre Universidade Carolíngea, onde
estudaram intelectuais famosos como Einstein e Rilke.
Tão importante quanto esse caráter dialógico é o caráter contextual que, em caso
de Bodenlos, caminham juntos e apontam para um detalhe muito particular e
2727
fundamental, que remete ao titulo do livro: a filosofia. As pessoas que Flusser escolhe
para mostrar-se em interlocução são exatamente aquelas que lhe marcaram a vida em
direção à atuação intelectual. Nenhuma palavra é dita sobre sua mulher Edith, que tanta
influência teve em sua vida, ou sobre seus filhos. Ao contrário, os nomes presentes no
Diálogo estão de alguma forma relacionados ao grupo ligado ao Instituto Brasileiro de
Filosofia.
Ao incluir em uma escrita de si textos sobre pessoas e temas que marcaram sua
vida e sua carreira Flusser registra a importância da atuação intelectual e do caráter
indissociável entre teoria e vida, embora nenhuma menção seja feita ao intenso período
de produção e circulação pelo mundo que vivia enquanto escrevia sua autobiografia;
período esse que se estende por cerca de 20 anos e no qual escreve as obras que o
tornariam reconhecido mundialmente como teórico dos novos media, como a Filosofia
da Caixa Preta ou O universo das imagens técnicas. Era como se fossem mundos
paralelos que não se tocassem.
2728
Como Flusser, o ensaio é gênero sem fundamento. Como lembra Adorno (2003),
no célebre O ensaio como forma, não deixa que um domínio lhe seja prescrito,
firmando-se na tensão da imprecisão e da indeterminação, tanto de formas quanto de
temas, horizontalizando o próprio autor em sua escrita na mistura de seus afetos e de
suas críticas. Não há método para escrever ensaios e talvez ele seja exatamente a
negação do método. Não tendo início nem fim, o ensaio desintegra o todo da lógica
discursiva tradicional abraçando o presente, o efêmero e o comum. Como critica em
geral, opera uma certa literaturalização do saber. Sua força não está na
interdisciplinaridade, mas na transdisciplinaridade. Não se situa entre dois saberes,
atravessa os saberes sem subserviência a uma disciplina em particular a partir de um
modo de conhecer que é literário, pois se reconhece escrita.
Em carta a Leo Popper, Lukács chega a defender que a crítica feita na forma de
ensaios possa ter status de obra de arte:
2729
pois não é de mim nem de meu livro que se trata aqui; é uma
questão mais importante e mais geral que temos diante de nós: a
questão da possibilidade de uma tal unidade. Em que medida os
escritos verdadeiramente grandes que pertencem a essa categoria
têm uma forma, e em que medida essa sua forma é autônoma;
em que medida o modo de ver e sua configuração subtraem a
obra do campo das ciências e a colocam ao lado da arte sem,
contudo, apagar as fronteiras entre ambas; conferem-lhe a força
necessária para uma reordenação conceitual da vida e, no
entanto, a mantêm distante da perfeição gélida e definitiva da
filosofia. [...]
A opção pelo ensaio em uma escrita de si, em Flusser, deixa ainda outra
sugestão: o caráter irremediável da ligação entre vida e prática. Neste caso, a prática da
escrita e uma vida marcada pela experiência do exílio.
Referências
2730
FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? Tradução de Murilo Jardelino
da Costa. São Paulo: Annablume, 2010.
FLUSSER, Vilém. Bodenlos, uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume,
2007.
FLUSSER, Vilém. “Exile and Creativity”. In Vilém Flusser Archive:
http://www.press.uillinois.edu/s03/flusser.html
FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do brasileiro, em busca do novo homem. Rio de
Janeiro: Eduerj, 1998.
FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Annablume, 2007.
FLUSSER, Vilém. A pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983.
FLUSSER, Vilém. The freedom of the migrant. Objections to Nationalism.
Translated by Kenneth Kronenberg, Champain: University of Illinois Press, 2003.
FLUSSER, Vilém. Universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2012.
FLUSSER, Vilém. “Retradução enquanto método de trabalho”. In:
http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a202.htm (visto pela última vez em 28/03/2011)
LUKÁCS, Goerge. “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”.
Revista UFG, Goiânia, n. 4, jun. 2008. In
<http://www.proec.ufg.br/revista_ufg/junho2008/Textos/essenciaFormaEnsaio.htm>.
Acesso em: 15 de julho de 2014.
STAROBINKI, Jean. “Es posible definir el ensayo”. in Cuadernos hispanoamericanos,
No 575, 1998. p. 31-40.
2731
A TEORIA DO POÉTICO E O FRAGMENTO LITERÁRIO DE NOVALIS:
REFLEXÕES A PARTIR DE WALTER BENJAMIN E DA FILOSOFIA DE
FICHTE.
2732
Novalis, pseudônimo de Georg Friedrich Philipp von Hardenberg, propõe,
segundo Scheel (2010) discussões muito mais filosóficas do que havia até então. As
obras do poeta alemão são marcadas pelo rompimento com os cânones clássicos, com
os valores de arte e crítica que eram postulados pelos tratados de arte, rompimento este
associado ao ideal de libertação, pela visão melancólica e noturna, pela nostalgia e pelo
misticismo, valores presentes no romantismo alemão. Para Novalis, a função do poeta é
a de transportar a humanidade para uma nova reflexão, a poesia e a arte são vistas como
atividade de pensamento, ou seja, se realizam como reflexão. Essas ideias acerca da
poesia, da linguagem poétia e da crítica são desenvolvidas por Novalis nos fragmentos
de Pólen, que são publicados em 1798, no primeiro número da revista Athenaeum1, que
era dirigida pelo seu amigo Friedrich Schlegel. A coletânea de fragmentos recebe o
nome de Pólen, pois, de acordo com Lacoue-Labarthe e Nancy (1978), a forma do
fragmento é uma dispersão das ideias, não uma disseminação, essa dispersão está ligada
à semeadura e às futuras colheitas, imagem que se liga à de Pólen. No presente trabalho
utilizamos a tradução de Pólen de Rubens Rodrigues Torres Filho (2009) para a
Coleção Biblioteca Pólen, dirigida por ele para a editora Iluminuras. Nessa tradução,
encontramos a seguinte divisão
A revista Athenaeum surge como o principal veículo precursor das ideias dos primeiros românticos.
Nela encontra-se as obras e as principais concepções dos membros do movimento, além de algumas de
suas produções literárias, críticas e filosóficas.
2733
desenvolve a ideia da arte como médium de reflexão. O médium de reflexão seria, de
acordo com Benjamin, o absoluto romântico 2. Ele sistematiza as ideias que estão nos
fragmentos dos românticos, em especial de Schlegel e Novalis. Seligmann-Silva (2011)
ressalta que foi a partir da tese de Benjamin que se começou a compreender a teoria do
conhecimento e o conceito de crítica dos românticos. Utilizaremos a tradução do
Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão de Márcio Seligmann-Silva de
2011, que também faz parte da Coleção Biblioteca Pólen É importante ressaltar que
Seligmann-Silva é um dos mais importantes estudiosos de Walter Benjamin no país, o
que lhe confere conhecimento e autoridade sobre as obras desse autor.
Benjamin inicia sua reflexão sobre a ideia de crítica de arte e da poesia
romântica sistematizando e refletindo sobre de que maneira a filosofia do Eu de Fichte,
desenvolvida em sua Doutrina da Ciência, foi fundamental para o desenvolvimento não
apenas da teoria do conhecimento e da reflexão romântica, como também do conceito
de crítica de arte, e com isso, do conceito de arte romântica. Segundo Lacoue-Labarthe
(1986), Benjamin, parte da filosofia de Fichte para desenvolver a problemática
romântica da obra de arte e de sua crítica, ressaltando que é importante notar até onde os
românticos seguem Fichte, para poder identificar onde eles se separam dele.
Fichte desenvolve em sua Doutrina da Ciência através de um trabalho lógico,
p.36).
Segundo Benjamin a reflexão é o centro do pensamento romântico. . O poema é
uma reflexão orgânica, viva, autônoma e a crítica uma reflexão decomposta
(desdobrada) desse poema:
2
Benjamin explica em uma nota de rodapé o sentido sentido duplo da
designação não acarreta neste caso nenhuma obscuridade. Pois, por um lado, a reflexão mesma é um
médium graças ao seu constante conectar; por outro lado, o médium em questão é tal que a reflexão
move-se nele pois essa, como o absoluto, movimenta-se em si mesma (BENJAMIN, 2011, p.45).
2734
Schlegel avança um passo. Concorda com Fichte, quando este afirma
que a realização plena do ideal da liberdade não é possível. Mas,
acrescenta ele, não é possível para a filosofia. [...] Na criação artística,
o homem serve-se do sensível para dominá-lo e, através desse
domínio, o Não-Eu, o mundo sensível, como que se espiritualiza, se
idealiza. Através da idealização que é a obra de arte, estabelece-se a
unidade entre o real e o ideal (BORNHEIM, 2008, p.93).
2735
do campo da arte a partir do desdobramento. A arte passa a ser um processo de
conhecimento, e a crítica de arte um processo de reflexão, de pensamento. Aproxima-se,
então, o conhecimento crítico e reflexivo. A criação literária cria a linguagem, faz da
poesia um tipo de pensar, e a atividade poética se torna uma forma de reflexão que
produz algo que se torna disponível para que a crítica produza conhecimento.
A crítica deve habitar o mesmo médium da arte para que possa desdobrá-la:
ara os românticos, a crítica é muito menos o julgamento de uma obra do que o
método de seu acabamento. Neste sentido, eles fomentaram a crítica poética, superaram
de partida da crítica deve ser a obra, pois, a obra já contém uma potencialidade
reflexiva. Cabe a crítica, despertar essa reflexão que a obra contém, desperta o
conhecimento da obra por ela mesma. É a obra que deve determinar sua fundamentação
teórica e sua crítica:
A reflexão que a obra produz é infinita, e por isso a obra é infinita como médium
de reflex pleta diante do absoluto da arte
(BENJAMIN, 2011, p.78). Toda obra de arte é, portanto, incompleta no sentido do
médium de reflexão, ela demanda uma crítica que desenvolva essa reflexão. Seligmann-
Silva (1999) aponta que Benjamin evidência que para os românticos a exposição da
auto-reflexão inerente à obra só é possível através da crítica. A revelação da totalidade
da obra só é possível através do processo de reflexão, não só da obra, mas também de
sua crítica, isso torna a obra um eterno devir:
2736
crítica deve ser uma transposição das obras no mesmo espaço de reflexão que a obra foi
criada. A obra encontra uma nova forma através da crítica:
Essa criticidade imanente nas obras de arte não depende, segundo Benjamin, do
juízo do crítico sobre ela, e sim, da própria arte, na medida em que permite a crítica ou a
recusa. Gagnebin (1999) aponta que a crítica de arte romântica é, conforme desenvolve
Benjamin, regida pelas leis da auto-reflexão, ela ultrapassa a observação pelo
autojulgamento que é inerente ao objeto artístico. As obras então, não só refletem sobre
si mesmas, como também, se julgam a si mesmas. A partir desse princípio da criticidade
imanente da obra, os românticos desenvolvem uma teoria da arte:
2737
Ideia de arte. Dado que o órgão da reflexão artística é a forma, logo a
Ideia de arte é definida como o médium-de-reflexão das formas. Neste
relacionam-se constantemente todas as formas de exposição,
transformando-se umas nas outras e unindo na forma-da-arte absoluta,
que é idêntica à Ideia de arte. A Ideia romântica da unidade da arte
assenta-se portanto na Ideia de um continuum das formas. [...] A
poesia romântica é, portanto, a Ideia mesma da poesia; ela é o
continuum das formas artísticas (BENJAMIN, 2011, p.94).
2738
próprio eu e de sua autoconsciência. Scheel (2010) reflete que, para Novalis e Schlegel,
a reflexão não é apenas um processo de descoberta do eu, mas também é uma forma de
avaliação, crítica e análise da obra literária, percebendo, assim, a poesia como um
processo ativo do pensamento que faz dela objeto da reflexão.
Para refletir sobre a crítica e a poesia Novalis utiliza da forma do fragmento,
pois, essa forma, ao mesmo tempo em que se constitui de uma extrema concisão,
apresenta uma profunda intensidade, que concede uma abertura maior para a reflexão,
além de uma ambiguidade e de uma polissemia que fazem parte do ideal poético-criador
romântico. O gênero do fragmento literário, de acordo com Scheel (2010), é o suporte
no qual vai se manifestar a abertura da poesia para o pensamento, a crítica e a teoria:
o suporte em que se manifesta o encontro entre a criação poiesis e investigação
2739
verdadeira obra de arte é a que já nasce de uma forma, da potencialização da forma que
resulta em forma, e não a intuição que resulta em conteúdo:
pensamento que engendra o seu objeto, mas a reflexão, no sentido dos românticos, é
pensamento que engendra sua forma -Silva
(1999) ressalta que, para Benjamin, os românticos levam mais longe a noção da reflexão
de Fichte e aplicam a teoria da reflexão à arte, de maneira que a forma da obra passa a
ser vista como uma expressão objetiva da reflexão que faz parte da obra.
Essa poesia envolve todas as funções transcendentais, e contém todo o
transcendental em si, é através dessa poesia que o transcendental se realiza de fato, que
a reflexão infinita e absoluta se realiza. A reflexão absoluta, a ideia do Eu absoluto de
Fichte, não pode se realizar pela filosofia, apenas a poesia torna essa reflexão possível,
esse pensar absoluto e inesgotável possível. Esse pensar que transcende e que ultrapassa
o próprio eu empírico e até mesmo a própria poesia. O poder transcendental dessa
poesia romântica está, segundo Scheel (2010), no fato de que a própria definição dessa
poesia se faz como um jogo de sentidos em direção ao infinito, ao absoluto da própria
transcendência em si. O'Brien (1995) ressalta que para Novalis a poesia funciona como
mediação do absoluto.
No fragmento
O poema do entendimento é filosofia É o supremo arrojo,
que o entendimento se dá por sobre si mesmo Unidade do
entendimento e da imaginação. Sem filosofia permanece o homem
desunido em suas forças essenciais São dois homens Um
entendedor e um poeta.
Sem filosofia imperfeito poeta Sem filosofia imperfeito
pensador julgador (NOVALIS, 2009, p.117)
poético, o poema que pensa sobre si, que contém em si o entendimento, a reflexão:
2740
resultará em um saber. Sem essa capacidade do pensar da filosofia o poeta é incompleto,
e a filosofia contém e que deve
fazer parte da poesia. Schefer (2011) aponta que Novalis fundamenta sua reflexão sobre
a arte criadora a partir da filosofia de Fichte. Além disso, a relação da filosofia e da
poesia é parte fundamental do pensamento romântico. E essa ligação entre poesia e
filosofia é um dos fatores que diferencia o primeiro romantismo alemão dos demais
romantismos.
Não só o poeta é imperfeito sem a capacidade reflexiva da filosofia como o
crítico também. A própria obra é uma fonte inesgotável de desdobramento e reflexão
que é o que passa a torná-la obra de arte, e o juízo dessa obra deve partir disso, e não
mais dos ideais de beleza impostos pelos postulados. Costa-Lima (2005) discute que
essa crítica que parte do juízo estético e não mais no juízo de gosto é universalizada. A
crítica da obra deve ser realizar nela mesma e não mais baseada em tratados e princípios
de beleza externos. Essa ideia de crítica desenvolvida por Kant influencia não apenas as
ideias em relação à crítica de arte romântica, mas a própria ideia de arte em si, da poesia
transcendental dos românticos, poesia essa que pensa sobre si mesma, que possui uma
2741
crítica deve desdobrar as reflexões da poesia, ele desdobra as reflexões presentes nos
fragmentos, gerando novas reflexões a partir de sua tese. E a partir tanto dos fragmentos
como da tese de Benjamin, podemos desdobrar infinitas reflexões e infinitos novos
saberes.
Referências
GAGNEBIN, J.M. Nas fontes paradoxais da crítica literária. Walter Benjamin relê os
românticos de Iena. In: SELIGMANN-SILVA, M. (org.). Leituras de Walter
Benjamin. São Paulo: FAPESP/Annablume, 1999. p.61-78
2742
LINS, V. Novalis, negatividade e utopia. Terceira Margem, Rio de Janeiro, Ano IX, n.
10, p. 112-124, 2004.
2743
2744
2745
2746
2747
2748
2749
2750
2751
2752
2753
2754
SOBRE CRÍTICA IMANENTE: CONTRIBUIÇÕES DE THEODOR ADORNO
AOS ESTUDOS LITERÁRIOS
RESUMO: O presente trabalho investiga de que modo a noção de crítica imanente, mobilizada
por Theodor Adorno, poderia contribuir com os estudos literários na medida em que se diferencia
do método de análise intrínseca de obras. Adorno acolhe o procedimento da crítica imanente e
tematiza-o em diversos escritos de modo mais claro no ensaio "Crítica Cultural e Sociedade" ,
tendo em vista um tipo de atividade intelectual que não reduza o objeto estudado a princípios
externamente projetados sobre ele, mas que seja capaz de nele resgatar um teor de verdade social
e histórico. Contudo, essa noção assume um sentido ainda mais complexo do que isso, pois não
se reduz a um método de apreciação judicativa de fenômenos culturais, nem muito menos a uma
investigação rigorosa, analítica, de uma obra. No que diz respeito à interpretação literária, seria
mais adequado tratá-la como uma crítica da experiência estética, uma autorreflexão mediada por
artefatos culturais, do que como uma análise de textos. Discutiremos o sentido de crítica
imanente em Adorno e suas possíveis contribuições para os estudos literários em três momentos:
primeiramente, consideraremos sua análise sobre o declínio da crítica literária na Alemanha no
contexto do pós-guerra, que acompanha a crise da experiência artística tema presente sobretudo
no texto Zur Krisis der Literaturkritik [Sobre a Crise da Crítica Literária]; num segundo momento,
Embora os textos de Theodor Adorno sobre literatura venham sendo cada vez mais
estudados nas humanidades, o interesse por suas interpretações das obras de Beckett,
Kafka, Joyce ou Proust muitas vezes tomou o lugar de suas discussões sobre a função
mesma da crítica literária e suas relações possíveis com a Filosofia eixos teóricos
2755
fundamentais de seu pensamento. Nesse sentido, pretendemos resgatar esses temas à luz
de um conceito central na filosofia adorniana: a noção de crítica imanente. Quando se
evoca essa concepção, pensa-se primeiramente no método de avaliar um objeto cultural,
um texto literário, apenas através de elementos que são dados pela estrutura do próprio
objeto, ou seja, sem que se aplique de antemão parâmetros que o mensurem. Contudo,
essa explicação é ainda incompleta. Se, por um lado, ela parece garantir a possibilidade
de aproximar a tarefa do crítico às obras, por outro em si
mesma, depurada do sujeito em relação à qual se constitui; depois, se retiramos do crítico
a possibilidade de ir além do que o próprio objeto dispõe, qual seria a tarefa da crítica
senão simplesmente reproduzir a estrutura cultural dominante, isto é, reforçar o mesmo
nexo de imanência dado pelo objeto? Concebemos que uma alternativa interessante e
ainda atual sobre a tarefa da crítica imanente
pode ser encontrada na filosofia de Theodor Adorno.
Assim, pretende-se discutir, em três momentos, o sentido de crítica imanente na
obra de Adorno e suas possíveis contribuições para os estudos literários: primeiramente,
consideraremos sua análise sobre o declínio da crítica literária na Alemanha no contexto
do pós-guerra, que acompanha seu diagnóstico sobre a crise da experiência artística
Zur Krisis der
Literaturkritik]; num segundo momento, exploraremos a relação que a ideia de crítica
2756
escritor de resenh (ADORNO, 1992, p. 305, tradução
nossa). Diante desse diagnóstico, Adorno sustentou que o crítico literário só poderia fazer
justiça à sua tarefa caso
responsabilidade, sem nenhuma consideração pela aceitação pública e por constelações
esse argumento ao longo do texto, Adorno defende que o lugar da crítica permanece ali
onde o sujeito consegue abrir-se à particularidade dos objetos literários, sem neles projetar
categorias ou necessidades extrínsecas. Mas como isso seria possível diante de uma
conjuntura social cada vez mais integrada, que parece não fornecer sequer condições
propícias a um pensamento liberto?
é precisamente uma tomada de partido
frente a essa situação. Nesse texto, contudo, Adorno não fará uma apologia da liberdade
do crítico e de sua função revolucionária, mas começará indicando que o papel social da
crítica sempre esteve ancorado na organização do mercado na sociedade burguesa e, dessa
feita, conformado a a existência da crítica cultural, qualquer que
(ADORNO, 1998, p. 14). Mas antes que se pense que aqui Adorno constrói uma tese
derrotista sobre a impossibilidade de uma reflexão liberta, é preciso demarcar que esse
diagnóstico não invalida a importância da crítica cultural. Pelo contrário, para que se
recuse o aspecto afirmativo e ideológico da cultura, constata Adorno em outro texto
igualmente relevante -la [...] ao
mesmo tempo [em que] dessa participação se extra
(ADORNO, 2001, p. 18). O que se quer mostrar é que o crítico seria capaz de, ao imergir
plenamente nos objetos culturais, trazer à tona os mecanismos de dominação presentes na
própria cultura, revelando seu estado falso. Para que isso ocorra, contudo, seria necessário
pensar numa versão dialética da crítica cultural, a saber, em um tipo de cognição que,
embora se volte inteiramente à estrutura do objeto, mantenha ainda em perspectiva a
possibilidade de romper o seu fechamento, de ir além do que nele é simplesmente posto,
e é essa noção de crítica dialética de orientação hegeliana que Adorno defenderá ao
longo de seus textos.
Chegamos, então, a um ponto fundamental de nossa exposição: crítica
scendência e imanência, não podem ser tomadas como
posições estanques. Embora Adorno privilegie o exercício da crítica imanente e
pressuponha o primado da obra, este exercício não pode ser amortizado numa análise
2757
cerrada, mas deve conduzir à liberdade da reflexão. Adorno concebe que
liberdade, sem uma consciência que transcenda a imanência da cultura, a crítica imanente
seria inconcebível. Só é capaz de acompanhar a dinâmica própria do objeto aquele que
não estiver complet (ADORNO, 1998, p. 19). Pode-se dizer
que, na chave da Teoria Crítica, o teórico tanto participa da cultura quanto vai além da
mera descrição dos fenômenos culturais que analisa, isto é, ao dedicar-se rigorosamente
aos aspectos imanentes de um artefato ou fenômeno cultural, faz-se necessário perceber
como nele se registram disposições históricas mais amplas e tendências de transformação
social a serem postas em movimento. Segundo essa concepção de teoria crítica, como
afirma Nobre, -se a dizer como as coisas funcionam, mas sim
analisar o funcionamento concreto das coisas à luz de uma emancipação ao mesmo tempo
concretamente possível e bloqueada
p.17).
Sendo assim, Adorno esclarece que a crítica não pode se reduzir à mera escolha
abstrata entre procedimento transcendente ou imanente:
A conhecida polêmica de Hegel contra Kant diz respeito, grosso modo, à ideia de que ao
se considerar que o conhecimento de um objeto tem certos limites fixos, já se está
postulando a possibilidade de superar esses mesmos limites.
própria oposição entre um conhecimento que se imponha de fora e um que se imponha de
dentro torna-
(ADORNO, 1998, p. 24)
2758
e a estrutura social de que ele participa, apontando para aqueles potenciais não realizados
da sociedade? Para Adorno, essa mediação não se daria simplesmente pela reconstrução
do momento histórico em que a obra foi produzida, tampouco por uma recomposição das
intenções originárias do autor. Pelo contrário, ele estava se colocando precisamente contra
uma certa apropriação da escola de Dilthey
e sua concepção de hermenêutica (Cf. ADORNO, 2002, p.345, tradução
nossa)
EY apud GRONDIN, 2012, p. 34).
Assim, durante a interpretação de uma obra seria possível reconstruir os registros da
vivência (Erlebnis) historicamente determinada do autor. A concepção de interpretação
crítica sustentada por Adorno, no entanto, seguiria o caminho oposto: o que interessa não
é recompor as vivências originárias que compõem uma obra, como se isso de súbito
iluminasse todo o complexo de sentido do texto e sua historicidade intrínseca, mas
-
(Erfahrung) ou, mais propriamente, como a obra comunica
o que ela se recusa a comunicar: os antagonismos sociais não resolvidos retornam às
obras de arte como problemas imanentes à sua forma (ADORNO, 2002, p.6, tradução
nossa). Ao fixar-se nesses antagonismos, e não no que é simples e diretamente expresso
pela obra, é que o crítico pode acessar o conteúdo social sedimentado no objeto.
2759
p. 239). O esforço do crítico por se manter nas lacunas, nos elementos inconclusivos e
resistentes à interpretação, faz justiça a um texto que, ao evitar ser facilmente interpretado
e assimilado, recusa-se também a participar do ciclo de reprodução da cultura. Pode-se
dizer que o que Adorno perseguia era uma nova forma de cognição das obras literárias,
uma forma que não aplainasse sua negatividade interna. Naquele contexto das décadas de
1950 e 1960, insistir na negatividade das obras como índice de sua pertinência social
significava também uma tomada de partido a favor da arte mais avançada e da experiência
que essa arte cobrava à história, contra as concepções como a do New Criticism, por
exemplo, que considerava possível compreender o texto apenas por ele mesmo.
Se mantivermos em foco todas essas ideias, o conhecido texto
, publicado em 1958, nada mais é do que uma tentativa de levar a cabo esse novo
modelo cognitivo para a crítica. O estilo ensaístico que Adorno tanto evoca diz respeito
a uma forma flexível e fluida de apresentação de ideias, um modo de não submeter o
objeto estudado às regras cartesianas do método expositivo, apontando assim para a
possibilidade de dar voz àqueles elementos inconclusivos que se encontram numa obra
e essa é a de Beckett, Kafka, Proust, etc. As
interpretações expostas na forma do ensaio, diz Adorno
e ponderadas, mas são por princípios superinterpretações (ADORNO, 2003, p. 17)
seguindo nossa exposição, são radicadas naquele tipo de imanência dialética, de uma
forma de cognição da obra que não se deixa envolver completamente por seus limites
e é isso que confere sua riqueza e que aproxima o ensaio do que Adorno chama de
Para Adorno, uma vez que a obra literária não é simplesmente um objeto dado,
mas um complexo de contradições históricas formalmente sedimentadas, é indispensável
uma reflexão que propicie o descerramento desses conteúdos através dos conceitos,
através da filosofia.
obras de arte nada além da 2, p. 352, tradução nossa),
o que se quer evocar é um pensamento filosófico que trabalha a partir daquilo que foi
iluminado pelo procedimento imanente, que não admite de antemão conceitos e
sistematizações. Nesse sentido, pode-se dizer que o sujeito deve se abrir plenamente à
experiência do objeto, seguir suas linhas fundamentais, e permitir que o trabalho
conceitual conceda uma visão mais ampla da experiência que o objeto suscita, da verdade
social para a qual ele aponta.
2760
Mas seria ainda necessário notar que, ao reivindicar a importância do
procedimento imanente para a compreensão e crítica das obras de arte, Adorno estava
também se contrapondo a uma noção limitada de análise imanente de obras, que o
filósofo já identificava como comum à prática acadêmica:
Nesse trecho, Adorno aponta claramente para aquilo que há de empobrecedor na simples
análise imanente da obra, ou seja, na análise que se atém de modo positivo aos detalhes
do objeto e esquece de se encaminhar à reflexão segunda
Esse seria o lugar da estética filosófica: direcionar as características
particulares de uma produção cultural para além de si mesma, para a universalidade dos
conceitos. Em outra importante passagem da Teoria Estética [1970], Adorno esclarece
essa relação:
2761
interpretação de obras dadas e seu conceito. Por se voltar a seu conteúdo
de verdade, a estética é compelida enquanto filosofia, para além das
obras (ADORNO, 2002, p. 359, tradução nossa)
mesmo tempo, a Estética Filosófica, separada dessa atenção à dinâmica própria do objeto,
seria vazia e abstrata, um mero campo de debates sobre conceitos de arte já desgastados,
privados de relevância social. Se Adorno, através da noção de crítica imanente, abriu um
caminho importante para que se pense a mediação entre o estudo atento e aproximado dos
objetos culturais, por um lado, e a reflexão filosófica, conceitual, de outro, seria o caso
de hoje perguntarmo-nos quais são as vias possíveis para que se mantenha viva essa
mediação.
Referências
NOBRE, M (Org.). Curso Livre Crítica de Teoria Crítica Campinas: Papirus, 2008.
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1
2763
2
deslocamento, já que o espectro derridiano não constitui uma intervenção no campo das
teorias da narrativa. Por outro lado, é importante notar que, no delineamento desse
motivo filosófico, Derrida se vale amplamente de um motivo literário o fantasma do
pai de Hamlet , cujo pertencimento ao gênero dramático tem suas próprias implicações
mas não deixa de constituir um meio-caminho para esse deslocamento. 1 Mais que isso,
porém, alguns dos elementos ou motes que caracterizam ou, menos que isso, esboçam
o motivo do espectro tornam essa apropriação muito sugestiva para ser desprezada:
entre eles os do espectro como aquele (ou aquilo) que vê sem ser visto e como,
simultaneamente, um mais-de-um e um menos-de-um; e mesmo a ideia, ligada a essa
multiplicidade-contraditoriedade constitutiva, de que ele não chegaria a constituir um
ponto de vista, mais reforça a sugestão do que a interdita em que medida, afinal, o
narrador constitui realmente um ponto de vista? , até porque em outro lugar Derrida
2764
3
ao mesmo tempo o que tenho de mais íntimo e de mais irredutível à suposta unidade de
minha consciência, não apenas porque não posso jamais estabelecer com segurança
porque,
ainda quando silenciadas ou ocultas do mundo, é sempre ao mundo que elas se dirigem,
demandas surge em meu ser, de forma expressa ou não, consciente ou não, é porque o
demando, ou porque ele me demandou de forma eficaz, de modo que sua demanda de
alguma forma tornou-se minha. Por isso, enunciar um outro é enunciar-me, assim como
enunciar-me é enunciar infinitos outros, que me constituem desde sempre ou desde
incontáveis momentos, inclusive o da enunciação.
Pensar as demandas, portanto, é pensar o outro na dupla radicalidade de sua
singularidade irredutível e de suas implicações com o que quer que estabeleça algum
pretender que constitua não possa se fixar puramente à mercê de nossas operações
mentais sobre ele, ou seja, a despeito de nós mesmos. Assumir as consequências disso
no âmbito da atividade crítica inviabiliza, no mínimo problematiza, a mera
2765
4
trabalhos onde a discussão dessas estratégias e elementos espectrais de cunho mais geral
ou seja, não vinculados, necessariamente, aos temas fantasmagóricos se aprofundou
consideravelmente. Outro elemento importante era a articulação da questão da
espectralidade com a da temática social; mas, embora derivado diretamente da proposta
de Derrida em Espectros de Marx, esse dado era também um elemento problemático no
texto, já que essa temática constituía um elemento subsunsor da própria espectralidade.
De um modo geral, a maioria dos textos que redigi e publiquei posteriormente
constituíram explorações e aprofundamentos desses dois caminhos básicos: a análise
temático-formal e o fundo temático específico constituído pelos temas sociais, aos quais
se acrescentaram, progressivamente, temas psicanalíticos ou seja, temas analisáveis
por um viés psicanalítico , também estes de certa forma demandados pelo viés
derridiano, em cujas ideias o diálogo com Freud é fundamental.
Um motivo constante, nesses textos, é o da manifestação de elementos espectrais
enquanto elementos ligados a uma lógica opressora, o que corresponde a uma espécie de
unilater mais ou menos que
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5
reduzia os seres acuados pela guerra a estados como o horror e o medo e às demandas
básicas de sobrevivência e subsistência.
Justamente no âmbito desse processo, no entanto, eu apontava um tipo de
fracasso da imbricação político-literário no projeto de Élis, na medida em que o esboço
de um horizonte utópico, ou melhor, de um novo horizonte histórico-social no
atendimento do escritor a uma demanda ética de seu projeto, por sua vez,
provavelmente, ecoando as injunções do realismo socialista , ao fim do romance, me
parecia muito pouco palpável em face dos eventos e seu desenlace. Como contrapartida
senão estético, ideológico), eu invocava a imagem derridiano-
benjaminiana que de certa forma purga o profetismo
marxista de sua rigidez teleológica, devolvendo-lhe (e, ao mesmo tempo, atenuando)
sua condição fundamental de utopia. Isso, porém, praticamente à mercê do projeto
autoral, de modo que era a potência (auto)desconstrutora da espectralidade que se
sublinhava aí, constituindo, talvez, o grande ganho, em meu percurso, desse artigo.
De um modo geral, nos trabalhos que se seguiram tentei abordar obras e autores
em alguma medida mais afeitos aos postulados da desconstrução, ou seja, que
comportassem dimensões desconstrutoras, e mesmo autodesconstrutoras, mais
conscientes. De um modo geral, esses trabalhos comportam um processo, embora não-
linear, de abertura para as diferentes implicações do motivo do espectro nos textos
2767
6
listados no início do romance. Também aí, portanto, se colocaria, e de forma muito mais
pertinente ou, pelo menos, mais diretamente suscitada pela obra , a questão do
2768
7
relação na qual as demandas, mais que autorais, vitais do escritor as demandas vivas
de que os textos são rastros menos ou mais ricos sejam imperiosamente ativadas.
Naturalmente, os primeiros motivos-topoi necessários para se explorar tal
relação são os de ordem biográfica. Esses motivos praticamente se impuseram a mim ao
abordar, bem mais recentemente, num trabalho inédito, o romance Breakfast of
champions, de Kurt Vonnegut. Nessa obra, como é quase de regra em Vonnegut, o
biográfico e o ficcional se mesclam intensamente, aqui, porém, fazendo-o e
conscientemente com acentos psicanalíticos que aproximam essa obra de uma estética
dos extremos. Num jogo de implicações mútuas que entrelaça as figuras do autor, de
seu pai e de seu suposto alter-ego Kilgore Trout, Vonnegut entretece um enredo sutil,
interno à trama central, no qual os motivos do ânus e da violência sexual cumprem
papéis fundamentais, gerando ou sugerindo situações que tocam radicalmente ou seja,
para além da representação literária o vexaminoso e o inconfessável.
Também nesse caso, como no de A hora da estrela, a forte pertinência da leitura
pelo filtro da espectropética e do pensamento derridiano das demandas permite
sublinhar a radicalidade estética da obra sem explorar minúcias biográficas. No entanto,
ao me colocar o problema das questões éticas implicadas num tal aproveitamento da
radicalidade filosófica da desconstrução, deparo-me com um fato e uma hipótese. O fato
é o de que nenhum desses artigos, mesmo em face da radicalidade desconstrutora de
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tuais
desconstruir. Por questões de espaço, não poderemos senão esboçar esse duplo
movimento, que por sua vez se desdobrará em uma outra duplicidade.
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11
egotismo, o desprezo pelo coletivo (ainda que pela via paradoxal de uma
racismo e a misoginia seriam motivos tão sutis quanto determinantes na construção (ou,
que seja, reconstrução) narrativa. E na confluência desse complexo com a voz de um
narrador anônimo que se rende incondicionalmente à superioridade do amigo nomeado
tanto aqui quanto em A carta roubada há sutis elementos de uma relação
sadomasoquista, não sexual, bem entendido, entre o narrador e Dupin sugere-se,
talvez, uma homoafetividade reprimida.
É inevitável, nesse ponto, a impressão de que estou, como se diz, avançando o
sinal. Não obstante, cada uma das inferências que me atrevi a fazer constituíram
pequenas e abusivas violações da imanência do conto. Isso apenas salta aos olhos de
forma mais evidente ao tocar em questões que se vinculam a uma esfera íntima, que
sugere um entrelaçamento entre as demandas do narrador e as do autor. O que me
cumpre perguntar, portanto, é em que medida essa inquirição de sentidos mais fortes
num texto supostamente superficial, ainda que motivada pelo incômodo ético suscitado
por ele, não deve suas conclusões sobretudo às minhas demandas.
Afinal, também na mera escolha desse texto algo me demanda, de modo que é a
zona de uma intersecção que me cumpre explorar, e nessa exploração já não é uma
verdade sobre o mundo que me cabe extrair, mas, antes de mais nada, sobre mim
mesmo. Em suma, a contrapartida ética de uma inquirição radical sobre as implicações
éticas de um texto narrativo deve ser a disposição para sondar as implicações e
motivações do próprio crítico nesse ato; a disposição para questionar não só o lugar
absoluto do escritor mas também o do próprio crítico.
Assim, o que pode potencializar a discussão de problemáticas apenas inferíveis
-se do objeto,
remete a mim, a minhas demandas (o que, no fim das contas, constitui apenas a
assunção de algo geralmente oculto). Se me arrisco a romper o tênue fio entre o dado
objetivamente verificável e as problemáticas supostas, preciso me assumir como ser
implicado aí. E mesmo as problemáticas objetivamente verificáveis precisam remeter a
mim: pois não há transformação, aprendizado ou terapia que a arte possibilite que não
comece por nós mesmos. A injunção derridiana de partirmos sempre de nós mesmos, de
onde estamos e do que somos ou julgamos ser, revela-se aí em toda a sua radicalidade.
2773
12
Referências
A
hora da estrela Cerrados.
UnB, Brasília, n. 24, ano 16, 2007.
PAZ, R. G. Sombras sobre sombras: espectros do outro em Edgar Allan Poe e Machado
de Assis. In: Anais do IX Congresso Internacional da Abralic. (CD-Rom). UFRGS,
Porto Alegre, 2004.
2774
LITERATURA E FILOSOFIA NO SÉCULO XVIII: O POEMA
NARRATIVO HERÓI-CÔMICO
Resumo
Introdução
2775
Estilisticamente, a transição dos Seiscentos para o Setecentos se deu em um
da arte que, de acordo com Alfredo Bosi (1994), no século
XVII eram de aspect , engendrando as tendências estéticas que
marcam o Arcadismo: a busca pelo natural, o simples, o ritmo gracioso. Entretanto, o
autor acrescenta que
2776
Observa-se, assim, que, de um lado, a filosofia encontra na literatura um meio de
diálogo com a sociedade visando o estímulo a sua prática e, de outro, a literatura deixa
de ser um modo privado de expressão e, a partir do pensamento iluminista, adquire
densidade filosófica, em que à estética justapõem-se a prática ideológica, assumindo,
também, como já foi dito, um papel pedagógico: união do útil ao agradável, conforme
ensina Horácio.
2777
De forma dinâmica, a estrutura epistolar das Cartas, afirma Matos, consegue
abarcar todos os tópicos fundamentais do Iluminismo, como o governo, a natureza e
origem das leis, a escravidão, Deus, entre outros. Assim, a intriga oriental não é apenas
obre o medo
2778
O poema narrativo caracteriza-se como a manifestação literária em
verso na qual se realiza a narração ficcional de fatos ou de ações
antropomorfizadas, com traços dramáticos, cômicos ou sérios e pode
ser de alcance universal, regional ou local, dada a presença ou a
ausência de grandiosidade. Dessa forma, o poema narrativo pode ser
classificado como épico, heroico ou herói-cômico (SALES, 2011).
2779
Car, au lieu que dans l´autre Burlesque Didon et Enée parloient
comme des Harengeres et des Crocheteurs; dans celui-ci une
Harlogere et um Harloger parlent comme Didon et Enée. (É um
burlesco novo, no qual entra-se em contato com outra linguagem.
Porque, no outro burlesco Dido e Enéias falam como costureiras e
cocheiros e neste novo burlesco uma costureira e um cocheiro falam
como Dido e Enéias. tradução nossa) (Apud POLITO, p.21, 2003).
Ilustração ambígua
2780
em Direito Canônico. Em Portugal, estabelece diversas ligações literárias, relacionando-
se com poetas como Alvarenga Peixoto e, principalmente, Basílio da Gama, com o qual
manteve estreita amizade. Foi ainda nesse período como estudante que, por meio de
ia sido
apresentado pessoalmente ao Marquês de Pombal, embora não haja documento que
evidencie isso, conforme alerta em nota Ivan Teixeira (1999).
Em 1774, aos 24 anos, ainda em Portugal e com o pseudônimo de Alcino
Palmireno, publica O Desertor, iniciando, assim, suas atividades literárias. Ao voltar ao
intervenção de D. Maria I, publica Glaura, obra que o elevou ao patamar dos principais
poetas do Arcadismo luso-brasileiro. Silva Alvarenga atuou ainda na imprensa como
colaborador do Patriota (1813-1814), o primeiro periódico cultural do Brasil.
O Desertor (1774) é o primeiro poema herói-cômico brasileiro. Constitui-se de
1.439 versos decassílabos heróicos brancos que são distribuídos em cinco cantos de
estrofes irregulares. A narração tem o intuito de criticar, a partir de uma noção de
Universidade calcada em conceitos ilustrados, a vida universitária e a universidade de
sua época, mais especificamente a Universidade de Coimbra, onde Silva Alvarenga,
como já foi dito, se formou em Direito canônico. A narração consiste na fuga de
Gonçalo para abandonar os estudos na Universidade de Coimbra, após ser convencido
pela Ignorância (alegoria à resistência à reforma do Marquês), deixando, inclusive, sua
noiva. Depois de muitos percalços, dentre eles, ser espancado, o rapaz é convencido
pelo tio a retornar aos estudos.
Carvalho/ Mar
escritos pelo autor.
Cunhado como um poema herói-cômico, O Desertor, por característica do
próprio subgênero, já carrega uma tensão. Tensão esta que se instala, primeiramente,
como já se disse, a partir de sua configuração estrutural contrastante, que se dá na
preservação de elementos prescritos para a narração de feitos de um herói grandioso em
um poema clássico diante de uma matéria narrativa baixa, fútil. Esta estruturação já
2781
compõe uma dialética em que, de um lado, está a ideologia de afirmação do pensamento
aristocrata, representada pelos elementos narrativos do poema épico e, de outro, o anti-
herói, avesso à manutenção desses costumes, da qual, como síntese, tem-se o riso, que,
por sua vez, pode ser de sentido plural.
O herói-cômico de Silva Alvarenga, entretanto, não se contenta, apenas, com a
entre discurso e ação. Ao mesmo tempo em que tem,
declaradamente, as configurações já estabelecidas do herói-cômico com modelo em sua
construção, O Desertor carrega alterações significativas em elementos de sua economia,
afastando-se. É o que se observa, por exemplo, no distanciamento do preceito herói-
cômico ao não abordar uma futilidade, mas, ao contrário, questionar vícios, como a
preguiça e a ignorância, defendendo o valor do estudo e da transformação da
universidade, buscando corrigir e orientar.
Essa idiossincrasia na estrutura pode ser entendida, primeiramente, a partir da
consideração do sistema cultural do século XVIII, em que, como já se viu, as fronteiras
entre literatura e filosofia nos Setecentos são imprecisas. Segundo Sales (2009, p. 53),
o poema herói-cômico adquiriu conteúdo de sátira social,
política, ideológica e anticlerical, e serviu como instrumento de classe para a burguesia
criticar o governo absolutista dos nobres e a igreja católica, latifundiária e legitimadora
da ideologia ofic
Nesse sentido, diferentemente dos poemas herói-cômicos do século XVII, o
desajuste entre narrador e herói deixa de ser um mero jogo cômico e passa a ter um
papel pedagógico e de investigação filosófica, semelhante ao que se observa nos
romances filosóficos do período, na a aliança entre logos e mythos (que não significa,
necessariamente, uma harmonia), como já observou Matos (2001) nas Cartas Persas.
Em O Desertor, o narrador, defensor da razão (otimismo pela reforma da Universidade
de Coimbra) é o agente do logos, enquanto Gonçalo (anti-herói) resiste à vitória das
Luzes, agindo pelo mythos (escolástica dos jesuítas).
Essa duplicidade se assemelha, também, ao que Jean Starobinski (2001) define,
ao analisar o conto filosófico de Voltaire, mais especificamente, O Ingênuo (1767),
como que, para o autor, é uma das leis
do conto filosófico. Partindo do capítulo VII da obra, Starobinski efetua análise de sua
estrutura, desde uma frase até a totalidade do conto, observando a disposição dual
(binária) dos elementos e, ao fim, conclui que a lei do fuzil de dois tiros [...] é a
(p.160):
2782
[...] a dualidade reina sob toda as formas em que se pode manifestar,
em todas as combinações a que se prestam os diferentes níveis da
linguagem (forma, sentido, etc.).[...] a dualidade não se limita aos
jogos emparelhados da igualdade ou da desigualdade morfológicas,
nem aos binômio semânticos associados segundo graus de contraste
variáveis (indo do pleonasmo à antítese). Podemos igualmente falar de
dualidade quando se opõem tão nitidamente o implícito e o explícito,
as litotes e a hipérbole. Ela reina ainda na oposição do dentro
(melancolia) e do fora (praia, equipamento, pássaros); da paisagem
(p.
214). É assim com Gonçalo, anti-herói de O Desertor, que é convencido pela Ignorância
a largar a universidade e -se do
caminho da sabedoria (razão), sendo repreendido, literalmente, pela força. A viagem de
Gonçalo (e seu fracasso), portanto, é uma experimentação, prova do triunfo da razão
sobre a ingenuidade (ignorância).
Segundo Antonio Candido (198
obra depende de sua estrutura literária. E que esta repousa sobre a organização formal
de certas representações mentais, condicionadas pela sociedade em que a obra foi
Sendo assim, nota-se que a tensão (ou as tensões) do poema, observável em sua
estrutura, demonstra ser a organização formal da representação do ambiente político,
estético e ideológico em que O Desertor foi escrito, como também já apontaram Polito
(2003) e Sales (2009). Tinha-se, de um lado, o Iluminismo e sua proposta de liberdade e
de direitos humanos, enquanto, de outro, a contraditória e autoritária relação dos
governos europeus com a América, além do dilema, no Brasil, entre apoiar ou não um
governo autoritário, porém progressista. Acrescente-se, ainda, o conflito entre
heterodoxos e liberais dentro do Arcadismo. Trata-se do contexto particular da
das reformas pombalinas, conforme discute João Adolfo Hansen
(2004).
2783
Para Hansen, é preciso analisar a poesia colonial da segunda metade do século
XVIII a partir da compreensão da especificidade do ,
desprendendo-se de conceitos cristalizados de Iluminismo que suponham uma unicidade
de sentido histórico entre nações supostamente e
Nesse sentido, para ele, é mais adequado observar os
diferentes processos políticos e culturais em sua simultaneidade contraditória: inovação
e tradicionalismo, ateísmo e religião, empirismo e escolástica, liberdade democrática e
subordinação absolutista.
Segundo o autor, em Portugal, a escassez do ouro brasileiro fez com que a
política colonial fosse revista, fazendo, também, com que produção poética fosse
redefinida, a partir da apropriação prática das ideias iluministas, o que acarretou em
apologia intelectual e moral do juízo, que prescreve e regula o meio-termo sensato
do discurso poético .
João Adolfo Hansen observa que os poetas desse período são poetas do Antigo
Estado, influenciados pelos ideais franceses e da independência norte-americana e, ao
mesmo tempo, sujeitados à doutrina neo-escolástica, valorizando a hierarquia e os
privilégios nobiliárquicos. Como consequência, a poesia se configura de forma ambígua
2784
duas referências culturais (brasileira e metropolitana), diferindo dos poetas portugueses
e, dada suas qualidades, superando as configurações do gênero encomiástico. Dentre os
principais traços desse novo estilo, o autor destaca a concisão metonímica do verso,
composto de um balanço novo e discreta insinuação, incomuns nos poemas portugueses
da época, e acrescenta:
Considerações finais
2785
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. In: Aristóteles II. São Paulo:
Abril Cultural, 1984. Coleção OS PENSADORES, vol. VI.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2. ed., São Paulo: Cultrix,
1994.
HANSEN, João Adolfo. Ilustração católica, pastoral árcade et civilização. In: Oficina
do Inconfidência, Ouro Preto-MG, ano 4, n° 3, p. 13-47,dezembro de 2004.
MATOS, Franklin de. A cadeia secreta. São Paulo: Cosac & Nayf, 2004.
SALES, José Batista de. O poema narrativo no Brasil. Das origens a Mario de Andrade.
Relatório de estágio pós-doutoral. Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGRS.
Porto Alegre, 2009.
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica. São Paulo: Edusp, 1999.
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A POESIA E AS CIDADES EM SANTO AGOSTINHO
Thiago Gonçalves Souza (UERJ/UNIFESSPA)
Orientador: Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)
RESUMO: Embora se tenha em vista que Santo Agostinho (354-430) foi um intelectual
profundamente versado não apenas no patrimônio filosófico antigo, mas também na cultura da
palavra artística, tendo sido, inclusive, mestre de retórica antes de sua conversão ao cristianismo,
pouco se tem dito acerca de suas relações com essa cultura, menos ainda no que se refere,
especificamente, à cultura poética. Desse modo, a partir de uma leitura das Confissões e de A
Cidade de Deus, pretendemos apresentar os termos da abordagem que o Doutor da Igreja realiza
da poesia, uma abordagem crítica que, se se alinha ao viés da censura moral já colocado
principalmente desde Platão, não deixa de apresentar características particulares: passa, de um
lado, pela crítica política e cultural da cidade pagã e, de outro, pela análise dos efeitos psicológicos
da representação poética, em particular do drama trágico, como estímulo de um prazer egoístico
que obsta a realização plena da caridade, virtude que, por sua vez, deve embasar as relações
sociais e espirituais do homem cristão.
Introdução
Agostinho nasceu na cidade de Tagaste, em 354, e morreu em Hipona, em 430,
províncias romanas em norte de África. Embora seja um dos mais importantes intelectuais
da cultura cristã católica, deve-se atentar ao fato de que sua conversão deu-se apenas
quando ele contava em torno de 30 anos, tendo sido batizado por Ambrósio de Milão por
volta do ano de 387, depois de ir buscar respostas a seus anseios espirituais e intelectuais
em autores como Cícero e em profetas como o iraniano Maniqueu, passando pelo estudo
dos escritos neoplatônicos. Nesse sentido, o percurso de Agostinho mostra-se exemplar
da situação entre filosofia e religiosidade no fim da Antiguidade, em que a tradicional
conjugação filosófica entre os eixos da verdade, do bem e do agir se vê compartilhada
por filósofos pagãos e convertidos ao cristianismo que se vai propaganda. Como observa
Marrone:
2799
De fato, por volta dos séculos II e III d.C., a filosofia, como praticada
pelos estoicos, platonistas e epicuristas, e o cristianismo, como
professado entre os convertidos gregos e romanos educados,
começavam a parecer bastante semelhantes. A filosofia havia vindo, nas
significar c
(MARRONE, 2013, p. 29).
2800
Um dos fios que constituem a urdidura conceitual da abordagem, por Agostinho,
da poesia, caracterizada pela atribuição de um caráter ético-moral radicalmente negativo
aos efeitos do poético, mostra-se na compreensão, pelo autor das Confissões A Cidade
de Deus, de que a poesia não atua apenas no sentido da promoção da mimesis dos
como Platão já havia afirmado n , comprometendo o bom
funcionamento da cidade pelo desvirtuamento de seus cidadãos, mas como instância em
que se celebram, discursivamente, os costumes depravados de uma cidade pecaminosa.
Assim, a tradicional relação entre poesia e cidade que perpassa a tradição greco-latina
aparece em Agostinho, avaliada, porém, negativamente, como afirmação da cidade
mundana, que deve ser superada pelo advento da cidade de Deus.
Em sua narrativa autobiográfica, Agostinho não procura diminuir a importância
da leitura da poesia grega e latina, tanto como uma de suas atividades diletas, quanto
como elemento central da educação dispensada aos jovens que se preparavam para uma
carreira na cidade. Sobre isso, o autor afirma:
-me o vão
espetáculo de um cavalo feito de madeira e cheio de guerreiros, o incêndio de Troia e até
a sombra de Creusa (AGOSTINHO, 2013, p. 43). Em outro momento, realçando o papel
dos textos poéticos no cotidiano escolar, ele diz:
[...] nos obrigavam a seguir errantes as pegadas das ficções dos poetas
e a repetir em prosa o que o poeta cantava em verso. Recebia maiores
louvores o aluno que, segundo a dignidade da personagem figurada,
exprimisse mais fortemente e com maior verossimilhança os
sentimentos de ira e de dor, revestindo as frases com palavra mais
apropriadas (AGOSTINHO, 2013, p. 46).
2801
poéticas entendidas então como expressões da própria vida coletiva dessa cidade: os
festejos e cultos públicos das divindades e o teatro.
Assim, ao contrário de Platão, que estabelecera de início a necessidade de
restringir a ação do poeta junto à cidade a fim de resguardar o bom funcionamento desta,
Agostinho promove uma identificação profunda e radical entre o poeta e a cidade,
condenando, enfim, a ambos. Para o pensador cristão, o poeta não apenas fornece um mau
(título do capítulo 16
do Livro I de A Cidade de Deus), do que já Homero havia dado o exemplo. Claro está
que o escândalo da representação poética dos deuses pelos poetas está fortemente
assinalado na obra de Agostinho: como ele afirma:
tais obscenidades que seria vergonhoso ouvi-las, já não digo para a mãe dos deuses, mas
para a mãe de qualquer senador, para a mãe de cidadão honesto, para a mãe dos próprios
Contudo, esse é apenas um dos vieses da
condenação moral do poeta. Outro, ainda mais incisivo e poderoso, como dissemos,
entrelaça, indissoluvelmente, o poeta e a cidade. Para o Santo Doutor, aquele,
promovendo a imagem viciosa da divindade, agiria tão somente como legitimador dos
fundamentos das instituições da cidade, vistos como intrinsecamente viciosos.
Essa estratégia de ataque, dirigida, portanto, em conjunto à cidade e à poesia, é
traçada por Agostinho a partir sua crítica a Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C.). Varrão
havia distinguido três modos de teologia os
teologia civil, com necessária ao funcionamento das instituições. Por isso, o Padre
censura Varrão por recusar-
2802
Nesse sentido, Agostinho se apropria da percepção da correlação entre as
instituições e a poesia, mas reveste a ambas de um sentido moral essencialmente negativo,
num gesto que podemos sintetizar do seguinte modo: se a cidade mundana é pecaminosa,
a poesia que a representa é igualmente pecaminosa. Nas palavras do autor:
Ninguém [...] alcança a vida eterna pela teologia fabulosa, nem pela
civil. Aquela semeia a torpeza dos deuses com ficções, esta colhe-as
com aplauso. Aquela espalha mentiras, esta recolhe-as. Aquela afronta
as coisas divinas com falsos crimes, esta abrange nas coisas divinas a
representação de tais crimes. Aquela celebra em versos as nefandas
ficções dos homens sobre os deuses, esta consagra-as em suas
festividades. Aquela canta os delitos e aa calamidades dos deuses, esta
ama-os. Aquela publica-os ou finge-os, esta, porém, afirma-os como
verdadeiros ou deleita-se até mesmo nos falsos. Ambas impuras e
ambas condenáveis; mas aquela, teatral, confessa de pública a própria
torpeza, e esta, civil, cobre-se com a torpeza daquela (AGOSTINHO,
2012, p.281).
2803
É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em
linguagem exornada, cada parte com o seu atrativo adequado, com atores agindo, não
seriam estes o cerne do prazer da representação trágica, mas a busca por uma experiência
da compaixão que acompanha o condoer-se. Uma refinada análise dos efeitos
psicológicos da representação trágica é posta em atividade por Agostinho a fim de bem
compreender o que está sendo movimentado no ânimo do espectador:
2804
da verdade cristã para asseverar seu sentido próprio, não mais estético, mas sim
plenamente espiritual. Desta feita, a caridade é desvelada enquanto possibilidade de
direcionar-se ao outro em dimensão fraternal, como um condoer-se da desgraça alheia,
não para gozar tal paixão, mas a fim de buscar erradicar o sofrimento:
Em certos casos podemos, pois, aprovar que haja alguma dor, mas
nunca a podemos amar. Portanto, Senhor, Deus meu, amais as almas
com amor infinitamente mais puro que o nosso, vos compadeceis, sem
perigo de corrupção, porque não sois ferido por dor algum
(AGOSTINHO, 2013, p. 66).
2805
Considerações finais
A conversão de Agostinho marca um ponto de virada que permite a ele um voltar-
se sobre sua vida pregressa e analisá-la, não no sentido de apenas evidenciar seus erros
passados e confessá-los, mas no de apreender os sentidos subjacentes daquelas
experiências e práticas, iluminados pela presença de Deus como elementos em seu
caminho de libertação. Como observa Emmanuel Carneiro Leão acerca da autoanálise
agostiniana: -se o próprio homem
e se atinge o que é mais poderoso e vital do que ele mesmo, a saber, o processo de sua
Esse processo, no que implica a
reorganização e revaloração dos elementos que antes compunham o mundo cultural em
que o jovem Agostinho se formara, se traduz no desvelar dos sentidos (i)morais da poesia
e de seus efeitos sobre o fruidor/espectador.
Desse modo, a poesia, articulada com os festejos da cidade, foi criticada como
modo de celebração das instituições corrompidas da cidade dos homens. Por outra via, a
representação poética e, mais particularmente, a do drama trágico, foi flagrada como
estímulo a um sentimento egoístico, misto de prazer, dor e compaixão, que não seria mais
do que uma contrafação da virtude cristã da caridade, fundamento de uma relação
fraternal entre os homens, que tem como modelo o ideal do amor de Deus.
Deve-se ressaltar que a reavaliação crítica do Santo Doutor com relação às práticas
discursivas não se restringe ao discurso poético. Estende-se também, com estratégias
outras, à retórica e ao discurso do saber filosófico. A análise, porém, dessas estratégias
críticas não caberia no espaço deste breve artigo, sendo desenvolvida por nós em outro
momento.
Referências
____________. A Cidade de Deus Contra os pagãos (Parte I). Tradução de Oscar Paes
Leme. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
2806
RISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2014.
2807
RAZÃO CÍNICA EM CORAÇÃO DAS TREVAS (HEART OF DARKNESS)
RESUMO
Razão Cínica em Coração das trevas centra suas atenções no estudo da literatura de ficção de
Joseph Conrad (1857-1924), (1889) juntamente com o conceito de cinismo
moderno identificado por Peter Sloterdijk (1947), no seu consagrado livro, Crítica da razão
cínica (1983). Sloterdijk propõe com a sua crítica, a retomada do cinismo antigo e a renuncia do
cinismo moderno, cuja dinâmica é ambivalente. Entendemos que em algumas obras de Joseph
Conrad, como moderno, ou seus representantes, enevoa ou torna
tênue a linha demarcatória que há entre a liberdade e a domesticação em países periféricos.
Desse modo, a interdisciplinaridade, como causa do diálogo de obras da literatura moderna de
ficção e da filosofia contemporânea, além de nos levar a identificar um artificio que é capaz de
nos conectar à corrosão dos tropos em um oximoro, também traduzirá e colocará em evidência
os motivos que levaram ao falseamento dessa consciência, aqui, percebida como cinismo.
Introdução
2808
Lord Jim (1900),
2
O uso da palavra Exploração, da mesma forma que Genocídio no meio da frase em letra maiúscula é
proposital.
3
Ver. CONRAD, 2011, p.108.
2809
agravado pelos assassinatos em larga escala, e homens avançando às
cegas como é bem apropriado àqueles que enfrentam a escuridão
(CONRAD, 2011, p.13). 4
Há que se observar que, além disso, mesmo diante da estranheza provocada pelo
deslocamento de significado, o qual se deve ao fato desta concisão não estar alinhada
4
They grabbed what they could get for the sake of what was to be got. It was just robbery with violence,
aggravated murder on a great scale, and men going at it blind as is very proper for those who tackle a
darkness CONRAD, 2011, p.89).
5
was merely a squeeze , and nothing more, (Idem).
2810
àquilo que parece ser possível ler nas frases que compõem o enredo, como já se disse,
narrador protagonista em uma batalha para transmitir
o significado do seu testemunho humano por via da linguagem que parece não dar conta
do caos da experiência e, por isso, parece que esse narrador reconhece que as suas
formas literárias expressam apenas impressões de significado temporário. 6 Vejamos:
Para todos os efeitos, esse conjunto de vetores que podem dar significação à
história de expressam-se como uma revelação da impossibilidade
de revelação; isto é, a impossibilidade de se ter acesso à verdade propriamente dos fatos
está contida, justamente pelo fato de que essas verdades se encontram sob o poder de
revelação de quem atuou apenas como testemunha da história que conta. Hillis Miller
7
, pois, como vemos, a
história vivida por Marlow torna-se impossível de ser transmitida até mesmo pelo fato
da impossibilidade de se transmitir as sensações de um sonho por via de uma narrativa.
Essa metáfora aparece no sentido de que os fatos de uma vida estão para a sensação de
uma vida, pois, a sensação pode apenas ser vivenciada diretamente e não pode ser
o que
sonhamos (MILLER,1995, p.209).
Nesse sentido, se observarmos, t
6
trying to tell you a dream making a vain attempt, because no relation of dream can
convey the dream- sensation, that commingling of absurdity, surprise, and bewilderment in a tremor of
struggling revolt, that notion of being captured by the incredible w
CONRAD, 2011, p. 105.
7
(Idem).
8
(CONRAD,2011,p 105).
2811
Já o envolvimento de Marlow9 com Jim, por exemplo, demostra que Marlow é obrigado
a mudar o seu centro de análise de uma forma consciente, assim, a consciência irônica
de sua retórica desencadeia um paradoxo, tal qual o que podemos ler em relação ao seu
tratamento com Breierly10:
s golpes da vida não tinham mais ação sobre sua alma satisfeita do
que o arranhar de um alfinete sobre a parede lisa de um rochedo.
Quando eu o olhava, ao lado do magistrado pálido e apagado que
dirigia os debates, a complacência que se exteriorizava em toda a sua
pessoa se apresentava a mim, como ao resto do mundo, sob a forma de
(CONRAD, 1939.p.45).
9
Ver. CONRAD, Joseph. Lord Jim. (tradução de Mario Quintana). Ed.Globo. 1939.
10
The sting of life could do no more to his complacent soul than the scratch of a pin to the smooth face of
a rock. This was enviable. As I looked at him flanking on one side the unassuming pale-faced magistrate
who presided at the inquiry, his self-satisfaction presented to me and to the world a surface as hard as
granite. He committed suicide very soon after. CONRAD, 1946-65 p.58.
2812
narrativa retrospectiva de Marlow fornece elementos de sua simpatia pelo ideal dentro
do próprio processo de mudança em que sua perspectiva incorre.
Efetivamente, na sua forma verbal, a ironia revela-se no duplo discurso de
ambivalência, de contradição e de paradoxo. Desse modo, é precisamente a distância o
quanto em Lord Jim , que é capaz de fazer com que este narrador, por vezes
protagonista das histórias de Conrad, tenha controle da narrativa. No entanto, vemos
que no contato com Kurtz e Jim, Marlow tem os seus sistemas de valores alternados
drasticamente, sobretudo na tensão existente entre a sua autonomia pessoal e a sua
responsabilidade social. Nesse sentido, W. Booth (1974) evoca a responsabilidade do
leitor quando em contato com um texto irônico. Para Booth, o leitor deve rejeitar, a
principio, o significado literal e considerar uma série de significados alternativos,
incluindo a possibilidade de que o narrador é mal informado, e, assim, realizar
inferências a respeito das atitudes e conhecimento do narrador para, por fim, decidir, a
partir disso, qual das possibilidades tem mais credibilidade (BOOTH, W. 1974. pp.10-
14.).
uma autoreflexividade por parte do narrador que tem consciência do seu papel.
Exatamente por isso, ele é instigado a ter controle da eficácia de sua linguagem, que tem
a intenção de transmitir a própria complexidade da experiência que conta.
Sloterdijk (2012) entende que o engodo remete à astúcia daquele que pretende
enganar ou atrair outrem. Desse modo, o engodo pode ser entendido como uma mola
e/ou ferramenta capaz de produzir uma espécie de ilusão por detrás da consciência falsa.
Nas palavras do filósofo, o engodo
(SLOTERDIJK, 2012, p.62)
(Idem).
ilude- . (Idem).
2813
Na modernidade pode-se dizer que há o Esclarecimento, no entanto, é ele que
determina a apatia. A apatia advém das determinações de um suposto Esclarecimento
que prometia dar conta de todas as lacunas insondáveis das necessidades do homem.
Afinal, ocorre a tentativa, a partir do século XVIII, de estabelecer como primazia a
razão em detrimento de todo um conjunto de fatores que determinam o homem e o seu
11
também os apáticos. Essa apatia,
entretanto, é, para Sloterdijk (1987), a premissa de uma realidade sombria, da qual o
mais importante é a proteção das identidades contra aqueles que ameaçam o status quo.
Isto é, esta sociedade contemporânea, além do mais, está contida em um cinismo difuso,
que pode ser entendido como uma desilusão moral e/ou até mesmo, um desinteresse
político. O que seria, portanto, uma realidade configurada como um modelo oposto ao
do antigo cinismo, que tinha como premissa o autoconhecimento e o uso de suas
habilidades críticas com a intenção de questionar as possíveis formas de estar no
mundo. O que temos, então, é o cinismo moderno oposto ao grego. Isto é, o primeiro
descarta e/ou alija a antiga fórmula kynikoi e transforma a sua insolência e brincadeira
em uma negatividade que resulta em um estado congelado onde reside a mais amarga
das resignações do homem. Nas palavras de Sloterdijk:
2814
mas
observar que o narrador parece estar dentro e fora da situação que narra. Essa dualidade,
que observamos na ficção de Conrad, é perceptível pela distância implicita em que o
narrador se posiciona diante da situação que descreve. A objetividade da ironia desse
narrador se reduz a uma grande incongruência, na qual manter a aparencia a respeito do
mundo estranho em que estão inseridos é parte do jogo. Essa oscilação advém da
, por
exemplo a da
voz da narrativa no inicio da história e, por isso, essa voz assume uma espécie de
onisciência que é rapidamente substituida pela perspectiva de um membro da tripulação.
No entanto, a narrativa de Marlow justapõe duas respostas opostas a partir de um
mecanismo geral e isso diminui acentuadamente o seu desprezo pelo procedimento de
aparente torna-se a sua mercadoria intelectual, afinal, o que o cínico busca é, sobretudo,
a sua beneficie individual.
Por conseguinte,
de acepção moderno, se sustenta pelo fato de que as suas
construções sintagmáticas carregam um tom de dualidade, no sentido em que faz desse
narrador, por exemplo, capaz de perceber que, do ponto de vista dos negros sendo
espancados, ele talvez não seja muito diferente dos verdugos que exercem sobre eles
(negros) a violência direta.12
12
path. They walked erect and slow, balancing small baskets full of earth on their heads, and the clink kept
time with their footsteps (...) white men being so much alike at a distance that he could not tell who I
might be. He was speedily reassured, and with a large, white, rascally grin, and a glance at his charge,
seemed to take me into partnership in his exalted trust. After all, I also was a part of the great cause of
these high and just proceedings. CONRAD, 2011, p.96.
2815
Como podemos observar, Marlow passa paulatinamente a assumir a lógica dos
senhores na história que conta, o seu discurso é matreiro e, por isso, dá espaço para a
interpretação de que esse personagem, sobretudo, é a forma cifrada e representativa do
pensamento moderno vigente no século XIX que se apoiavam em justificativas para
sustentarem as campanhas de dominação dos impérios europeus em nações periféricas.
Quer isto dizer que, Marlow legitima o horror e, ainda mais, ele era parte de uma
empresa baseada em um sistema insuficiente: dinheiro, mercadoria e mais valia.
Sistema que necessitava do emprego de uma despesa que não retorna - a morte
engendrada por Kurtz como punição/domesticação dos negros. Com Ma
que a insolência muda de lado e passa a ser
instrumento dos senhores, esse personagem se satisfaz com seu autoposicionamento
consciente diante do que foi testemunha. No entanto vemos que essa forma de vida
segue um sistema de regras e de valores que se invertem quando aplicados ao mesmo
tempo. A saber, Marlow conta a história que viveu no Congo com um tom carregado de
Conclusão
13
Cf. supra. p.5.
2816
significado que, por sua vez, é aparente. Por outro lado, vemos que esse narrador devido
ao processo reflexivo que divide a sua consciência também não é digno de confiança
quando visto sob a ótica da razão cínica; quer isto dizer que, se faz necessário perceber
o modo como Marlow é capaz de reconhecer e compreender a verdade ao mesmo tempo
em que é capaz de agir em desfavor dela (verdade). Portanto, com essa hipótese de
leitura, vemos que -se
com a reviravolta de uma impudência impetuosa que advém de uma consciência que se
volta contra o outro de modo baixo. Por outras palavras, a consciência de Marlow é
Idem).
Para efeito de contextualização, é claro que é importante sempre ter em mente a
corrida imperialista na virada do XIX - ainda que menos como um evento linear que
precisaríamos reconstruir do que como uma situação que tende a tornar cada vez mais
remota a possibilidade de estabelecer uma nítida linha demarcatória entre civilização e
barbárie, isso por que o correlato eloquente e bufão de Marlow se apresenta, sobretudo,
com uma fala volúvel que parece sempre estar se desresponsabilizando e tirando o
corpo fora.14 Mais precisamente, a situação pavorosa para a qual
aponta vai se refratando no plano mais microscópico de sua literatura e, isso, como
dissemos, se dá no romance através da súbita igualação de coisas aparentemente
incomensuráveis no espaço de um único sintagma. 15 Marlow pula sem mais cerimônia
de um substantivo para o outro - enlaçando com uma conjunção aditiva matreira termos
completamente incomensuráveis. É como se no mundo , em sua
versão miniatura, tudo pode ser trocado por tudo, desde que se tenha dinheiro. Um
mundo que tem precisamente na forma da mercadoria a sua categoria pivô. Em outros
termos, Marlow universaliza o dever e ignora valores que consideramos fundamentais e,
através de artifícios retóricos, é capaz de nos privar do poder de distinção entre a
literariedade do enunciado e o sentido presente no nível da enunciação. Caso não
observarmos isso, facilmente seremos levados, da mesma forma que seus interlocutores
no estuário do Tâmisa, ao ledo engano. Finalizando,
uma enganadora obviedade inserida na própria rede de oposições formuladas
por Marlow que faz do contraponto das palavras um manto para o ocultamento do
verdadeiro escopo. Para terminar, o processo de refutação da verdade ocorre, como foi
possível observar, pela autodivisão da consciência que é o cinismo de acepção moderna.
14
Ver. CONRAD, 2002, p.42-3.
2817
No entanto, esse novo cinismo (consciência falsamente esclarecida) inferimos que pode
ser representado por Marlow
lobriga o verdadeiro do falso. Em síntese, o cinismo não é somente um
problema de ordem moral, é um padrão de racionalidade de um tempo que conhece os
pressupostos anteriormente ocultos pelo universal ideológico da ação, mas que não
encontrou muita razão para reorientar a sua conduta paradoxal. 16
Referência bibliográficas
Booth, Wayne. A Rhetoric of Irony . Chicago and London: Univ. of Chicago Press,
1974.
Conrad, Joseph. O coração das trevas. Iluminuras. Trad. Celso Mauro Paciornik,2002.
Doyle, Arthur Conan, The Crime ofthe Congo. Garden City, N.Y:Doubleday, 1909.
16
Quer isto dizer que, lei e transgressão caminham conjuntamente, por isso, a denúncia não pode mais
servir para desqualificar os paradoxos dos discursos falsos e legitimados como verdadeiros.
2818
Cínico na Antiguidade e o seu Legado. Tradução de Cecília Camargo Batalotti, São
Paulo: Edições Loyola, 2007.
Sloterdijk, Peter. Crítica da razão cínica. Trad.: Marco Casanova, Paulo Soethe,
Mauricio Mendonça Cardozo, Pedro Costa rego, Ricardo Hiendlmayer].São Paulo:
Estação Liberdade,2012 .orig.1983.
2819
1
2820
2
O livro, que o autor chama de ensaio, tem por mote o exame da possibilidade ou
cura surpreendente e inesperada, nova vida, novo
vigor) de duas personagens, Félix e Lívia, que haviam sido marcadas pela frustração de
relações amorosas anteriores. O título refere-se, portanto, à ressurreição de um amor, o
que não acontece. Fica uma lacuna, uma falta, falha, falência: uma vida sem amor. A
incapacidade de amar como pessimismo, forma prévia de niilismo.
Apesar de ser visto ainda como uma preliminar, o pessimismo, com o
questionamento dos impulsos instintivos e com sua valoração negativa da vida, tem um
significado decisivo para o desenvolvimento do niilismo. Da forma superlativa do
adjetivo latino malus pessimum
que há de pior, de mais detestável (CEI, 2016, p. 79).
2821
3
O título Ressurreição
(Os dicion
verdade, disposição para suspeitar da honestidade e sinceridade de
outrem, disposição para se sentir ofendido, temor de ser enganado,
disposição para exagerar as coisas e tomar observações ou
brincadeiras como afronta pessoal, falta de confiança em si e nos
outros). (CALDWELL, 2008, p. 43-44).
2822
4
dentro. Impotente quanto ao que foi feito, ele é um irritado espectador de tudo o que
passou um niilista ressentido. Semelhanças entre os dois livros não deixam de chamar
a atenção dos leitores. Como resumiu bem Caldwell, no livro O Otelo brasileiro de
Machado de Assis:
com a felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das
afeições íntimas, duráveis e consoladoras. Não a há de alcançar nunca,
porque o seu coração, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na
sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões. (ASSIS,
2008a, p. 314).
Vemos uma conclusão de corte tradicional, que explica o fio condutor da trama e
sana todas as possíveis dúvidas do leitor. Com essas respostas definitivas, nada resta a
acrescentar. Estilo bem distinto do Machado pós-1880, que apresenta ambiguidade
formal, incerteza e enigmas jamais resolvidos vide a traição de Capitu, que ainda hoje
suscita discussões.
romance, com sua minuciosa análise da melancólica indecisão de Félix, causada pelo
2823
5
2824
6
Advertência
A divisão da obra machadiana em duas fases, instituída pelo crítico José
Veríssimo As Memórias póstumas de Brás Cubas eram o rompimento tácito, mais
completo e definitivo de Machado de Assis, com o Romantismo sob o qual nascera,
apesar de controversa,
costuma ser aceita pela maioria dos pesquisadores, que oferecem um conjunto amplo de
(GUIMARÃES,
2004, p. 34). Ademais, teve a simpatia do próprio escritor, conforme expresso em carta
minha segunda maneira naturalmente me é mais aceita e cabal que a anterior, mas é
doce achar quem se lembre desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue a catar nela
(ASSIS, 2008b, p. 1367).
Uma análise detida e pormenorizada dos critérios de classificação periódica da
obra de Machado de Assis extravasaria o escopo deste trabalho. Não obstante, ainda que
não possamos falar de períodos estanques marcados por rupturas drásticas, por existir
uma continuidade rigorosa, mas difícil de estabelecer, entre as obras publicadas antes e
depois de 1880, tal divisão é adotada por boa parte dos estudiosos, teve a simpatia do
autor e ainda atende à necessidade de delimitação do corpus.
Referências
______. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Gomes de Oliveira & C., 1874.
2825
7
______ Ressurreição. In: ______. Obra completa, em quatro volumes: volume 1. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2008a.
CALDWELL, Helen. Machado de Assis: the Brazilian master and his novels. Berkeley,
Los Angeles: University of California Press, 1970.
2826
8
PASSOS, José Luiz. Machado de Assis: o romance com pessoas. São Paulo: EDUSP,
Nankin, 2007.
2827