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A Abordagem Psicológica da
Problemática dos Desastres:
Um Desafio Cognitivo e
Profissional para a Psicologia
The Psychology approach on the issue of disasters:
A challenge for the vocational and cognitive Psychology

Marcos Antônio
Mattedi

Universidade Regional
de Blumenau
Artigo

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2008, 28 (1), 162-173


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PSICOLOGIA
CIÊNCIA E PROFISSÃO,
Marcos Antônio Mattedi
2008, 28 (1), 162-173

Resumo: O texto aborda o tema das contribuições da Psicologia para a construção de comunidades
mais seguras1 e sustenta que a adequação das intervenções da Psicologia na produção da segurança
constitui o resultado da forma como se configura a insegurança e de como as comunidades são
dimensionadas. O desenvolvimento desse argumento baseia-se em dois procedimentos analíticos:
o primeiro refere-se à apresentação das formas de caracterização da insegurança, considerando
três tradições de pesquisa: os estudos de hazards, desastres e riscos, e o segundo diz respeito à
apresentação das transformações que marcam o desenvolvimento da sociedade moderna nas
últimas décadas. Com base nesses dois procedimentos, apresentaremos as contribuições da
Psicologia para a construção de comunidades mais seguras, através da possibilidade de estabelecer
uma Psicologia dos desastres no Brasil.
Palavras-chave: Psicologia. Comunidades. Segurança. Desastres.

Abstract:This article approaches the contributions of Psychology for the constructions of safer
communities and it sustains that appropriate psychological interventions in the production of
security are the result of the way Psychology represents insecurity and the way communities are
structure. The development of this argument is based on two analytical procedures: the first consists
on the presentation of the way insecurity is pictured, considering three research traditions: the
hazards’ studies, the disasters’ studies and the risks’ studies. The second refers to the presentation
of the transformations that mark modern society development in the two last decades, in order
to establish a psychology of disasters field of study in Brazil.
Keywords: Psychology. Communities. Security. Disasters.

Existem, evidentemente, muitas formas de converte na maior fonte reprodutora de


examinar as contribuições da Psicologia na insegurança?
construção de comunidades mais seguras,
através do comportamento, da cultura e da Essa posição ambivalente não é uma
organização, por exemplo. A adequação propriedade específica da Psicologia, mas
da intervenção da Psicologia vai depender, uma característica da integração progressiva
contudo, da forma como configuramos as da ciência à tecnologia. Essa integração
fontes de insegurança bem como da forma constitui o resultado do seu potencial de gerar
como dimensionamos as capacidades de aplicação, principalmente no momento em
resposta das comunidades. Assim, por um que a produção do conhecimento se converte
lado, verifica-se que as principais fontes na principal fonte de inovação do processo
de insegurança na sociedade moderna produtivo. Isso significa que, à medida que
resultam da aplicação da ciência à tecnologia a ciência se converte num setor produtivo,
para a manipulação da natureza; por este passa a orientar cada vez mais a atividade
outro, como o desenvolvimento científico científica. Verifica-se, assim, que a produção
e tecnológico converteu-se num dos fatores do conhecimento científico não pode ser
1Este trabalho foi de maior influência sobre a sociedade, separada de seu contexto de aplicação,
preparado como uma
contribuição para
ampliam-se progressivamente as demandas porque a ciência mantém uma relação de
a mesa de trabalho de informação para o monitoramento social “co-construção” com o contexto social:
As contribuições da
Psicologia na construção
da vulnerabilidade. Por isso, como assinala ao mesmo tempo em que são condições
de comunidades Ulrich Beck, na Sociedade do risco, a ciência sociais específicas que permitem a produção
mais seguras:
Comportamento, cultura se torna cada vez mais necessária, mas, ao do conhecimento científico, a aplicação
e organização, da mesmo tempo, sempre menos suficiente tecnológica do conhecimento científico
Reunião Internacional
por uma Formação para a produção da segurança (Beck, 1996). redefine o contexto social. Nesse sentido,
Especializada em A questão que resulta da relação entre essas para que possamos identificar e avaliar as
Psicologia da Emergência
e dos Desastres, duas dimensões não é menos paradoxal: contribuições da Psicologia para a construção
realizada em Brasília,
de 08 a 10 de agosto como a Psicologia pode contribuir para de comunidades mais seguras, é necessário
de 2006. produzir segurança, quando a ciência se considerar a insegurança uma situação

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que é, simultaneamente, manufaturada e Para enfrentarmos essa questão, o primeiro


confrontada tecnocientificamente. passo envolve a apreciação das abordagens
que tratam da insegurança. A maior parte
À medida que essa reflexividade do dessas abordagens se funda numa espécie
conhecimento científico se volta sobre de divisão do trabalho epistemológico entre
a produção e a utilização do próprio disciplinas que se ocupam da insegurança, ao
conhecimento cientifico, redefine-se também estudar as dimensões naturais dos desastres,
a imagem que a sociedade possui da ciência. e disciplinas que se ocupam da insegurança,
Por um lado, verifica-se que é a própria com a investigação das dimensões sociais.
aplicação do conhecimento científico que Por isso, a Psicologia precisa superar tanto
permite a manipulação massiva da natureza as abordagens de corte geográfico que
por meio do desenvolvimento tecnológico, e, enfatizam a influência dos eventos sobre o
com isso, torna-se cada vez mais evidente que comportamento quanto as abordagens de viés
a intensificação da freqüência e da magnitude sociológico que enfatizam os impactos sobre
provocados por acidentes aéreos, ferroviários, o comportamento. A progressiva socialização
rodoviários, explosões industriais, rupturas de da natureza por meio da tecnociência faz
diques e também de inundações e secas são com que até fenômenos como, por exemplo,
ativados pela forma como interagimos com inundações e secas, que costumavam ser
a natureza. Por outro lado, a identificação, a atribuídos a fatores externos à sociedade,
avaliação e a confrontação desses desastres passassem a ser vistos como resultado
À medida que só podem ser expressas cientificamente, pois da mediação tecnocientífica da natureza
essa reflexividade a difusão desse conhecimento especializado pela sociedade. Assim, muito embora os
do conhecimento bloqueia a desconfiança dos sistemas desastres sejam freqüentemente percebidos,
científico se volta
sobre a produção
especializados. Assim, do ponto de vista experienciados e descritos como “fenômenos
e a utilização analítico, a sociedade em que vivemos é uma anormais” ou “eventos desviantes”, eles
do próprio sociedade consciente de que a maior parte são ocorrências “normais” que resultam do
conhecimento dos desastres que afetam as comunidades e grau de vulnerabilidade social das redes
cientifico,
os indivíduos são resultado do seu próprio sociotécnicas que sustentam a vida moderna
redefine-se
também a desenvolvimento, na medida em que (Hilgartner, 2007).
imagem que a são causa e conseqüência dos padrões
sociedade possui de desenvolvimento socioeconômicos Em seguida, a Psicologia precisa rever o que
da ciência.
predominantes (United Nations Development freqüentemente costumamos representar
Program, 2004). Mais precisamente, vivemos como comunidade. Devido à intensificação
numa sociedade que é consciente das do processo de diferenciação social provocado
ameaças que os desastres representam para pelo processo de individualização dos modos
a segurança das comunidades pela geração de vida, as comunidades e as regiões deixaram
de conhecimento sistemático sobre as causas de ser “comunitárias”. A insegurança não
e conseqüências dos impactos, porém essa pode mais ser vista como uma característica
capacidade de autoconfrontação não é específica de um grupo social, mas uma
homogênea, e distribui-se de forma desigual propriedade móvel que se manifesta de
socialmente. Freqüentemente, as populações modo difuso. Na década de sessenta, por
mais carentes são as mais vulneráveis aos exemplo, o debate sobre a confrontação das
impactos dos desastres na medida em que enchentes na região do Vale do Itajaí opunha
existe um processo de institucionalização a visão dos especialistas técnicos à visão da
do risco: perdas provocadas por desastres comunidade; 20 anos depois, o debate sobre
são confrontadas por ações parciais que as enchentes é realizado por grupos sociais
favorecem a ocupação de áreas de risco altamente diferenciados, que são capazes de
(Mattedi, 1999), o que é descrito como ciclo se posicionar e de desenvolver argumentos
dos desastres: desastres-danos-reparação- não somente alternativos mas também
desastre (Tobin & Montz, 1997). construtivos. A comunidade deixa de ser

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vista como uma unidade uniforme e passiva, vezes, produzindo contatos interdisciplinares
e converte-se numa entidade incerta que que geram novas perspectivas de abordagem.
pode, ao mesmo tempo, reforçar e também Essas tradições irão enfatizar mais certos
enfraquecer a insegurança. aspectos em detrimento de outros, como,
por exemplo, mais os fatores sociais em
A consideração da contingência da segurança detrimento dos naturais, ou, ao contrário,
pressupõe a aplicação de uma noção que mais os fatores naturais que os sociais. Hoje
contemple tanto o caráter híbrido dos essa área de estudo constitui um campo
eventos como a variação difusa dos impactos. de investigação consolidado e conta não
Assim, na primeira parte do texto, ocupar- somente com teorias e metodologias próprias,
nos-emos de duas tarefas predominantes: a mas também com revistas, encontros,
apresentação das diferenças e semelhanças centros de pesquisa e formação. Do ponto
entre os conceitos de desastres, hazards de vista analítico, essas tradições podem ser
e riscos e a caracterização da noção de distinguidas em três conjuntos principais,
comunidade. Em seguida, trataremos mais que são, ao mesmo tempo, opostos e
detalhadamente da compreensão da forma complementares: hazards, desastres e riscos.
como é produzido o conhecimento científico. Portanto, no que se refere à questão dos
O objetivo dessas duas operações é relacionar desastres, a compreensão da insegurança
uma definição mais flexível da insegurança pressupõe a explicitação de dois aspectos
com uma visão mais ampla da atividade analíticos relacionados à sua ocorrência: o
científica que possa basear a avaliação da primeiro diz respeito à classificação dos tipos
contribuição da Psicologia para a construção de desastres, e o segundo compreende o que
de comunidades mais seguras. se pode entender como vida cotidiana ou
rotina existencial.
Compreendendo a
Quando consideramos a questão da
insegurança insegurança, podemos enfatizar a dimensão
natural, mais precisamente, o agente
A insegurança constitui sempre uma sensação
desencadeador do evento. Nessa perspectiva,
muito difusa e resulta da ameaça de
a insegurança pode ser descrita com base
disrupção da rotina cotidiana de indivíduos
nos processos geofísicos que cercam o
ou comunidades; mais precisamente, a
mundo humano; o fator determinante da
insegurança é o produto do perfil do risco
caracterização dos desastres, portanto,
na sociedade moderna (Giddens, 1991). No
compreende a dimensão física. A insegurança
que se refere aos desastres e emergências,
é determinada, classificada e ordenada
a bibliografia especializada é ampla e
de acordo com os diversos agentes
diversificada. Os primeiros estudos nessa
desencadeadores: meteorologia (furacões,
área começaram a ser realizados no início do
inundações, avalanches, nevascas), geológicos
século passado, a respeito dos eventos que
(terremotos, vulcões e deslizamentos) e
provocaram destruição massiva nos Estados
hidrológicos (inundações, secas e incêndios).
Unidos. A intensificação das ocorrências nesse
Com base nesses pressupostos, desenvolveu-
período despertou a atenção de diversas
se uma classificação que compreende: a)
escolas disciplinares, como, por exemplo,
mecanismos físicos (magnitude, duração,
a Sociologia, a Geografia, a Psicologia, a
extensão espacial); b) distribuição temporal
Ciência Política, a administração, etc. Cada
(freqüência, sazonalidade, parâmetros
uma dessas tradições disciplinares vai traduzir
diversos); c) distribuição espacial (localização
a especificidade dos eventos segundo as
geográfica); d) dinâmica de eclosão (rapidez
teorias e metodologias que lhes são próprias,
de início, rapidez de término). Cada um desses
levando, na maior parte dos casos, à criação
de estudos ou conceitos teóricos dentro de aspectos tem sido exaustivamente pesquisado,
uma própria tradição, mas também, muitas pois acredita-se que, reconhecendo as

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diferentes magnitudes, freqüências e durações vitimização por meio de quatro tipos principais
dos eventos, pode-se entender melhor o de comportamento: 1) absorção passiva dos
comportamento humano frente aos desastres impactos: reflete a inexistência de consciência
e, dessa forma, estabelecer procedimentos de do risco, o que dificulta a preparação e
predição, proteção e resposta. Argumenta-se, aumenta a vulnerabilidade; 2) ajustamento
por exemplo, que, quando o intervalo de temporário: absorção dos impactos por meio
ocorrência de um evento for relativamente da solidariedade comunitária e aceitação
certo (alta freqüência), verificam-se estudos dos riscos pela população; 3) redução dos
constantes de busca de respostas, enquanto impactos: desenvolvimento de estratégias de
eventos caracterizados por um longo período atenuação individual antes, durante e depois
de retorno (baixa probabilidade) apresentam dos impactos, o que exprime a capacidade
mediações esporádicas. Acredita-se, assim, da comunidade de estimar os custos de
que esse processo gere padrões de evento- proteção e as perdas; 4) modificação radical
resposta específicos: comunidades que do comportamento: ocupação do espaço e
convivem com eventos de alta freqüência redefinição do modo de vida, que indicam a
apresentam uma tendência de respostas disposição política privativa de longo prazo.
mais sistemáticas e, com isso, menor
vulnerabilidade social, ou seja, acabam A preocupação sistemática com a relação
desenvolvendo um aprendizado social que entre os fatores pré, trans e pós-impacto
inclui dispositivos psicológicos de convívio deslocou o foco de abordagem para a relação
com os fenômenos. Portanto, a segurança que se estabelece entre a organização social e
de uma comunidade constitui o resultado o comportamento individual. Nesse sentido,
da experiência e aprendizado acumulados argumenta-se que a insegurança é resultado
no convívio com o evento. da relação de continuidade entre as condições
sociais pré-impacto e a situação pós-impacto.
Desde os anos 70, a insegurança passou a ser Não se pode tratar separadamente a situação
vista como o produto da interação de forças de emergência da situação pré-impacto:
físicas e humanas, pois o caráter ameaçador desastres constituem, primariamente, um
de um evento só pode ser avaliado, ou melhor, fenômeno social, e, portanto, deveriam ser
só pode ser precisamente dimensionado identificados em termos sociais. Trata-se,
levando-se em conta um sistema social portanto, de caracterizar as especificidades
determinado. Nesse sentido, os desastres da unidade social impactada e os padrões de
passaram a ser considerados como o ponto da resposta compreendidos. Assim, por exemplo,
interação entre fatores físicos que interagem no tempo-1, pré-impacto, destacam-se
com a realidade cultural, política e econômica ações de preparação e reação; no tempo-2,
da sociedade. Esse deslocamento do foco pós-impacto, as medidas de recuperação e
revigorou o enquadramento metodológico da mitigação. Assim, o comportamento frente aos
abordagem para os fatores que determinam o desastres vai depender dos tipos de integração
ajustamento humano. Nessa linha de pesquisa, e conflito observados na comunidade e da
existe um número verdadeiramente extenso experiência acumulada na confrontação da
de modelos técnicos desenvolvidos para crise. Nesse sentido, um desastre pode ser
caracterizar o comportamento dos indivíduos caracterizado nos seguintes termos: quanto
antes, durante e depois da ocorrência de um aos eventos, eles podem ser diferenciados
evento. Esses modelos variam em função da por sua energia (física), sua periodicidade
ênfase contida nos fatores cognitivos (variações (temporal) e sua declaração formal como
psicológicas e características atitudinais) desastre (social); os impactos podem ser
ou nos fatores situacionais (sistema social). distinguidos em termos de seus danos ao
Esquemas analíticos behaviorista, utilitarista, ambiente natural ou humano (físico), duração
marxista, etc, são utilizados para caracterizar a (temporal) e grau de disrupção da rotina de
percepção da vulnerabilidade e o processo de funcionamento (social); a unidade social varia

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pela localização (física), o tempo de convívio produto do próprio desenvolvimento científico


com o evento (temporal) e o nível societal e tecnológico moderno, ou seja, o perigo é
(social); as respostas envolvem a modificação manufaturado a partir do desenvolvimento
do ambiente natural construído (física), socioeconômico que caracteriza a “sociedade
implementadas antes, durante ou depois de risco” (Beck, 1996); com o “envelhecimento
da ocorrência (temporal), que resultam de da modernidade”, a produção da riqueza vem
uma variedade de processos institucionais e acompanhada da construção do risco.
não institucionais (social) (Kreps, 1989). Essa
proposta suscitou uma série de controvérsias Contudo, a intensificação da freqüência e da
que ilustram bem os desafios de definição magnitude dos impactos vem redefinindo nossa
do campo de estudo, do ponto de vista relação com a segurança. As características
sociológico (Bailey, 1989; Drabeck, 1989; principais das fontes de insegurança
Turner, 1989). contemporâneas são: 1) a invisibilidade
cotidiana das causas, pois os pontos de impactos
Nos últimos anos, observa-se uma inversão
não estão mais diretamente ligados aos seus
dessa postura metodológica, e, com isso, a
pontos de origem; 2) a escala autodestrutiva,
ênfase do estudo da insegurança deslocou-
que assume uma dimensão global; 3) as fontes
se para os efeitos negativos dos impactos
não se encontram mais confinadas a um
provocados pelo sistema humano no meio
tipo de sociedade e a determinados grupos
ambiente. A disseminação desses parâmetros
acabou despertando o interesse das ciências sociais. Esse contexto social que se concretiza
sociais em geral e da Sociologia, Antropologia pelo processo da incerteza, da ameaça e da
e Psicologia sobre as dimensões sociais, insegurança tem sido definido como sociedade
culturais e subjetivas do risco em particular, de risco. Para Beck, uma sociedade que
o que gerou profundos questionamentos concebe a si mesma como uma sociedade do
sobre o efetivo grau de generalidade desses risco constitui uma sociedade que se encontra
estudos qualitativos. Esse questionamento num processo de “modernização reflexiva”. A
A teoria cultural
sociocognitivo pode ser ilustrado pela modernização compreende, analiticamente,
do risco está
associada referência ao que se convencionou chamar um estágio de desenvolvimento no qual a
à pesquisa de teoria cultural do risco e pela teoria sociedade passa a se ocupar com os problemas
desenvolvida sociedade do risco. A teoria cultural do que o seu próprio desenvolvimento acaba
pela antropóloga
Mary Douglas, e
risco está associada à pesquisa desenvolvida provocando. Esse processo compreende duas
sustenta o caráter pela antropóloga Mary Douglas, e sustenta fases predominantes: 1) a primeira refere-se a
social de todas o caráter social de todas as noções de risco, um estágio em que os efeitos e as auto-ameaças
as noções de o que leva à diluição de sua genealogia. são sistematicamente produzidos, porém,
risco, o que leva
à diluição de sua
Segundo a autora, escolhendo um modo da ainda não são questões públicas; 2) a segunda
genealogia. vida, optamos por conviver entre semelhantes, diz respeito à conversão desses problemas
pois uma forma de vida possui seu próprio em questões políticas, ou seja, a dinâmica
portfólio de riscos. Afinal, em seu ponto de de desenvolvimento da sociedade se torna
vista, partilhar idênticos valores e constitui, publicamente problemática; mais precisamente,
da mesma forma, inversamente, partilhar os a modernização reflexiva constitui um efeito
mesmos riscos (Douglas & Wildasky, 1984). do aumento do conhecimento e da ciência
No mesmo período, paralelamente, para o sobre os efeitos da própria modernização
sociólogo Ulrich Beck a questão do risco social. Com o aumento da importância do
está associada à tendência de agravamento conhecimento, cresce também a importância
do grau de destruição do desenvolvimento
daqueles que produzem, interpretam e
tecnológico e aos impactos ambientais, e o divulgam conhecimentos.
autor ressalta que, na verdade, inexiste uma
transformação mais profunda da sociedade Com base nessas considerações, podemos
moderna. Os riscos emergem como um verificar que a insegurança constitui uma

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propriedade qualitativa dos desastres. sociedade. Com o surgimento da sociedade


Assim, podemos observar que a avaliação industrial, as origens, conseqüências e
da contribuição da Psicologia para a características dos desastres mudaram. A
construção de comunidades mais seguras forma como os riscos de ocorrência são
envolve, inicialmente, a caracterização dos entendidos e as reações a eles também
fatores que as ameaçam. Do ponto de vista mudam, passando a depender de indivíduos e
analítico, temos à disposição três abordagens forças sociais. Na sociedade industrial, a culpa
predominantes, das quais podemos derivar ou a responsabilidade pelas ameaças pode ser
elementos analíticos para caracterizar a identificada, e suas probabilidades podem ser
insegurança: 1) podemos configurar a calculadas em termos estatísticos.
insegurança com base nos estudos de hazards
e enfocar a ameaça representada pela Comunidades podem ser definidas como redes
ocorrência dos eventos desencadeadores de tradução sociotécnicas que estabilizam as
dos desastres; 2) podemos nos concentrar associações simbólicas e materiais, mantendo
nos impactos segundo a tradição dos unidos os elementos que compõem o mundo
estudos de desastres; 3) podemos pensar social e os elementos que compõem o mundo
as potencialidades em termos de estudo natural. Esses dispositivos sociotécnicos
de risco. Cada uma dessas caracterizações podem ser muito variados, como, por
pressupõe um tipo específico de intervenção exemplo, leis, equipamentos, sistemas de
e de confrontação. comunicação, energia ou alimentação, vias
de transporte, acervos artísticos, etc., mas
Reconfigurando comunidades podem também assumir diversos significados,
criando as condições por meio das quais os
Uma das características mais marcantes da indivíduos representam e manipulam, ou em
atualidade compreende a instabilidade e outros termos, constroem e reconstroem o
a proliferação da incerteza. É por isso que mundo em que vivem. Contudo, apesar de
noções como desastres, hazards e riscos se as comunidades serem formadas por atores,
tornam centrais para entender nossa época. elas não podem ser consideradas como um
Podemos considerar todo o conjunto de simples agrupamento das ações e percepções
informações produzidas e sistematizadas individuais, porque cada ator constitui, ao
nos estudos sobre desastres, hazards e riscos mesmo tempo, um ator e uma rede que
como uma espécie de introspecção que a cria e recria sua própria estabilidade. Assim,
sociedade efetua sobre o sentido do seu embora uma comunidade possa reconhecer
desenvolvimento com o propósito de criar o grau de vulnerabilidade de sua rede de
mecanismos que nos permitam conviver sustentação em termos dos fatores de risco
com os riscos, ou, mais precisamente, nos e variações sociais e espaciais dos eventuais
permitam desenvolver dispositivos materiais impactos e, além disso, identificar estratégias
e subjetivos para confrontar os desastres. de proteção, nem sempre essas medidas
As formas como os desastres foram sendo podem ser compreendidas e implementadas,
representados e enfrentados historicamente porque dependem das condições por meio
constituem um indicador por meio do qual das quais cada ator traduz o problema. A
podemos explicar o crescente interesse pelo combinação específica de cada rede gera
tema da (in)segurança na atualidade. Nas constrangimentos e oportunidades contínuos
sociedades pré-industriais, por exemplo, o de resposta e ajustamento, e, com isso, cada
risco tomava a forma de perigos naturais: modificação afeta, ao mesmo tempo, os atores
tremores de terras, erupções vulcânicas, e as redes que ele próprios formam.
inundações, secas, etc. Esses desastres não
foram criados intencionalmente, e seus Como cada comunidade é composta por
impactos são espacialmente localizados e são entidades que atuam, simultaneamente,
culturalmente atribuídos a forças externas à tanto como atores quanto como redes, as

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identidades desses atores-redes são móveis. exemplo, um ator-rede como o corpo de


Para coordenar suas ações, cada ator-rede põe bombeiros, que havia se convertido num
em operação estratégias de simplificação e de ponto de passagem obrigatório para outros
justaposição de papéis. Assim, por exemplo, atores, pode ser forçado a cruzar os pontos de
do ponto de vista de uma comunidade, o passagem que foram estabelecidos por outros
corpo de bombeiros constitui, ao mesmo atores para a manutenção da segurança.
tempo, um ator que se relaciona com outros Portanto, as comunidades diferem porque as
atores, como são os casos dos hospitais, da redes são móveis e heterogêneas.
polícia militar, da defesa civil, da prefeitura,
das indústrias, dos moradores de um bairro, Com a aplicação da noção de rede para a
etc., mas também é uma rede que pode ser caracterização das comunidades, podemos
formada por outros atores. Portanto, o papel reconfigurar a questão da segurança. Desse
que o corpo de bombeiros desempenha ponto de vista, um desastre representa uma
na manutenção da rede sociotécnica de desestabilização da rede sociotécnica por
associação do natural e social tende a variar meio da ruptura da associação cognitiva e
segundo o tipo de ator considerado. Para a material que mantinha unidas as dimensões
prefeitura e o hospital da comunidade, ele social e natural. A desestabilização dessa
pode assumir o papel de apoio ao resgate de rede de processamento tecnocientífico
pessoas, mas, para os moradores do bairro, quebra o suporte psicossocial que permite
pode assumir outro, e assim por diante, aos indivíduos assegurarem o monitoramento
mas a prefeitura, o hospital e os moradores e a manutenção simbólica e material da
também possuem significados distintos para existência. Assim, a insegurança pode ser
o próprio corpo de bombeiros, e esperam considerada uma função do grau de confiança
que ele execute tarefas que reforcem suas na estabilidade da rede que mantém unidos
posições na rede. Portanto, uma comunidade os elementos sociais e naturais. Por exemplo,
constitui, simultaneamente, um ator cuja a ocupação do leito secundário de um rio
atividade consiste em entrelaçar elementos estabelece uma associação entre o natural e
heterogêneos e uma rede que seja capaz de social, porém a ocorrência de uma inundação
transformar os atores que a compõem. redefine os termos como os indivíduos
e a comunidade traduzem as dimensões
Comunidades que são formadas por redes natural e social na rede sociotécnica. Assim,
diferentes não somente estabilizam a passam a ser problematizadas a forma como
associação entre o natural e o social de o natural foi associado ao social e a forma
forma diferente, mas se autodefinem de como o social é associado a natural, por meio
forma diferente. As comunidades distinguem- de uma tradução tecnocientífica baseada
se tanto pelo tipo de atores que compõem em enunciados científicos e de artefatos
a rede quanto pelo padrão de relações tecnológicos que estabilizam a vida do
que estabelecem entre si. Esse padrão indivíduo naquela região.
constitui o resultado da forma como cada
ator traduz e se converte em porta-voz de O comportamento e o estado mental dos
outras entidades. Quanto mais interesses são indivíduos em situações de emergência
mobilizados em torno da atuação de um ator, variam segundo a consistência da rede.
mais decisivo ele se torna na manutenção da Isso significa que a capacidade de reação e
rede, reduzindo a complexidade e tornando- processamento vai depender da capacidade
se um ponto de passagem obrigatório para de avaliar a consistência da rede, o que
os demais atores. Os papéis e a identidade envolve, entre outros fatores, a percepção
que um ator atribui ao outro podem ser dos pontos de instabilidade da rede, o nível
questionados, problematizados ou negados, de preparação, a habilidade para conviver
o que gera divergências que redefinem a com a incerteza e experiência prévia. Em
posição de cada ator na rede. Assim, por outras palavras, o comportamento constitui o

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resultado de como cada comunidade percebe de comunidades mais seguras consiste, por
e administra as ameaças de desestabilização um lado, na realização de pesquisas sobre
da rede, ou das estratégias de adaptação o comportamento individual nos períodos
psicológica. Portanto, quanto mais uma pré, trans e pós-impactos, e, por outro, na
comunidade suspeita da estabilidade de sua capacidade de preparação e recuperação de
própria rede, menor o impacto gerado pela comunidades impactadas.
desarticulação da rede. Assim, as comunidades
se diferenciam não pela capacidade de
Vivendo na insegurança, agindo
absorção dos impactos, mas pelo grau de
desconfiança que conseguem alimentar a nos desastres
respeito dos dispositivos que mantêm unidos
o mundo social e o mundo natural. Falar O que podemos notar, considerando a questão
assim de percepção, preparação e prevenção dos desastres à luz das transformações que
Portanto, a compreende tornar os membros constituintes marcaram a sociedade ocidental nas últimas
diferença entre décadas, é que a sensação de insegurança não
os atores que da rede conscientes da instabilidade das
associações que eles mesmos produzem e constitui um fato isolado e não está associada
conseguem
absorver os reproduzem. Portanto, a diferença entre os somente à questão dos desastres. Na verdade,
impactos de atores que conseguem absorver os impactos uma das características mais marcantes
dissolução da da atualidade compreende justamente a
rede e os atores
de dissolução da rede e os atores para os quais
a dissolução da rede se revela traumática está instabilidade e a proliferação da incerteza.
para os quais a
dissolução da associado ao grau de suspeita que eles nutrem Afinal, como explicar a relação ambivalente
rede se revela a respeito da estabilidade da rede. Quanto entre o aumento progressivo de recursos
traumática está
mais um ator se mostra aderente à rede investidos em medidas de monitoramento
associado ao dos desastres e, ao mesmo tempo, uma
grau de suspeita sociotécnica, mais vulnerável ele se encontra
que eles nutrem no caso de desestabilização da rede. intensificação da destruição provocada pelos
a respeito da impactos? Como explicar o fato de que,
estabilidade da
Tomando como referência a noção de mesmo durante o Decênio Internacional para
rede. a Redução de Desastres Naturais – Bulding
comunidade desenvolvida anteriormente,
um desastre pode ser definido pelo grau de a Culture of Prevention, declarado pelas
desestabilização da rede sociotécnica de Nações Unidas para o período de 1990-
associação simbólica e material dos elementos 2000 (trata-se de uma declaração da ONU
do mundo social e do mundo natural. Nesse sem referência específica) com o objetivo
sentido, a segurança constitui o produto da de fortalecer as habilidades científicas e
percepção do grau de consistência da rede, tecnológicas de confrontação, a humanidade
ou seja, quanto menos densa a rede, mais tenha testemunhado os desastres mais
problemático se torna o processamento do dramáticos e custosos de sua história? Essa
desastre. Isso significa que, quanto mais ambivalência revela as múltiplas dimensões
estável uma rede, menos ameaçada se torna do processo de construção do risco, como,
uma comunidade, ou seja, quanto mais uma por exemplo, a importância desempenhada
comunidade se conhece, mais ela consegue pela deterioração ambiental e o aumento
gerir as ameaças. Nesse sentido, a tarefa da da pobreza observado nesse período. Tal
Psicologia para a construção de comunidades fato demonstra que o agravamento dos
mais seguras constitui não somente explicar problemas dos desastres nas últimas décadas
e intervir nos efeitos que a desestabilização está intimamente relacionado aos processos
provoca no comportamento individual ou de desenvolvimento socioeconômico. Assim,
na condição mental dos indivíduos, mas, podemos considerar todo o conjunto de
informações produzidas e sistematizadas
sobretudo, revelar os mecanismos por meio
nos estudos sobre desastres, hazards e riscos
dos quais os indivíduos estão deridos as como uma espécie de introspecção que a
redes sociotécnicas. Mais precisamente, a sociedade efetua sobre o sentido do seu
contribuição da Psicologia para a construção desenvolvimento com o propósito de criar

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mecanismos que permitam conviver com dos indivíduos e suas disposições mentais
os riscos, ou, mais precisamente, permitam em situações de vulnerabilidade e desastres,
desenvolver dispositivos para confrontar os talvez o maior desafio consista na integração
desastres. As contribuições da Psicologia para desse tipo de preocupação nos processo de
a construção de comunidades mais seguras formação e atuação profissional. Nesse sentido,
dependem muito do modelo por meio do a principal contribuição da Psicologia para a
qual se desenvolve a questão da segurança construção de comunidades mais seguras
das comunidades. é tornar as comunidades mais conscientes
da insegurança da rede sociotécnica; afinal,
A produção do conhecimento quanto maior a desconfiança de uma
comunidade em sua rede de sustentação,
A primeira e mais importante contribuição da maior desenvolvimento de dispositivos de
Psicologia para a construção de comunidades segurança. Isso pressupõe uma “psicologia
mais seguras consiste, evidentemente, na reflexiva”, um tipo de investigação que parta do
produção de conhecimento autocrítico, mais exame das contribuições da própria Psicologia
precisamente, o estabelecimento dentro para a produção da insegurança. Assim,
dessa disciplina de uma subcomunidade de ao mesmo tempo em que o conhecimento
especialistas que sejam capazes não somente produzido pela Psicologia se converte
de compartilhar as mesmas técnicas, os numa ferramenta para adequar as ações de
mesmos saberes incorporados e que sejam preparação e recuperação, os desastres se
capazes de comparar experimentos, de avaliar transformam num “laboratório privilegiado”,
e capitalizar os resultados, mas, sobretudo, que permite à Psicologia avaliar os próprios
de reconhecer o caráter ambivalente do limites dos instrumentos, técnicas e teorias
conhecimento científico. Esse processo que são aplicados. A progressiva aplicação
envolve a compreensão dos mecanismos da Psicologia aos desastres contribuiu,
de tradução disciplinar dos desastres e das por exemplo, para desmistificar a imagem
situações de emergência: 1) como cada freqüentemente veiculada pelos meios de
desastre é único, a operação tem início com comunicação de massa de que as situações de
a redução da diversidade e complexidade emergência se caracterizam pela desintegração
do mundo pela transposição do fenômeno física, e são acompanhadas da desintegração
ao laboratório, o que permite produzir mental e moral das comunidades. A pesquisa
equivalência entre os casos; 2) segue pela em psicologia dos desastres tem mostrado que
constituição de um grupo de pesquisa que, comportamento das vítimas e dos indivíduos
com o apoio de competências e instrumentos, atingidos por desastres não pode ser reduzido
explica o desastre simplificado em termos de a ações anômicas, como, por exemplo,
comportamento individual e condição mental pânico, comportamento irracional e antisocial
frente à crise; 3) finaliza com o retorno ou crimes. As vítimas não são seres incapazes
ao mundo dos conhecimentos e técnicas que dependem passivamente da ajuda
produzidas no laboratório, fornecendo externa e que se encontram sem condições de
alianças com o mundo. Portanto, falar das administrar as condições de subsistência. Na
contribuições da Psicologia para a construção maior parte dos casos, as pessoas demonstram
de comunidades mais seguras envolve, muita habilidade para enfrentar os problemas
inicialmente, um acompanhamento dessa gerados pela redefinição da rede sociotécnica
operação. e para encontrar alternativas de atuação na
situação. A desarticulação de uma rede é
Como os estudos de desastres constituem acompanhada ou substituída pelo surgimento
uma área de pesquisa consolidada de uma rede emergente que redefine as
internacionalmente e já existe o formas de significação e manipulação da
desenvolvimento de uma “psicologia dos subsistência. A pesquisa em Psicologia mostra
desastres”, que investiga o comportamento que a desestabilização da rede sociotécnica

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de mediação, ou seja, a perda da rede de com o passar do tempo e a reconstituição


mediação não converte os indivíduos de Dr. da rede, costumam emergir novas e antigas
Jekill em Mr. Hyde. clivagens sociais na comunidade a respeito
da pertinência e da adequação da assistência.
Aplicação do conhecimento Nesse sentido, uma segunda contribuição da
Psicologia para a construção de comunidades
Com a produção desse tipo de informação, mais seguras consiste na produção de
a Psicologia pode mostrar que comunidades informações e no desenvolvimento de técnicas
não são receptores passivos de impactos de intervenção que permitam administrar os
negativos, mas redes dinâmicas capazes de mecanismos que favorecem ou bloqueiam a
aprendizado. O desastre ensina que toda formação de comportamentos cooperativos
rede sociotécnica é provisória, contingente, e competitivos no processo de reconstrução
e que as redes que sustentam a vida de uma da rede.
comunidade são continuamente construídas
O desastre ensina e reconstruídas; mais precisamente, que o Do ponto de vista prático, a melhor forma
que toda rede mundo no qual vivemos não é conhecido e de aplicar o conhecimento da Psicologia no
sociotécnica nem controlável, o que nos torna conscientes processo de confrontação de situações de
é provisória,
de nossa vulnerabilidade. Assim, todas desastre consiste em integrar esse tipo de
contingente, e
as práticas de preparação pré-impacto informação no Programa de Saúde da Família.
que as redes Esse programa é formado por uma equipe
que sustentam pressupõem que os indivíduos se adaptem
ou concordem com os planos e programas de especialistas que permite a integração
a vida de uma
comunidade são de proteção. Por exemplo, um plano de da questão dos desastres e das situações de
continuamente proteção que requer uma mudança drástica emergência. A vulnerabilidade das condições
construídas e da rotina cotidiana ou do comportamento de moradia constitui um fator decisivo não
reconstruídas; mais
típico dos grupos ou membros de uma somente para as condições materiais de
precisamente,
comunidade apresenta muita resistência. O vida mas também para a avaliação subjetiva
que o mundo no da qualidade de vida. Pode, por exemplo,
qual vivemos não grau de adequação do plano vai depender
da adequação do comportamento cotidiano regionalizar a tematização das fontes mais
é conhecido e
nem controlável, ao comportamento típico em situações freqüentes de desestabilização da rede ou de
o que nos torna de emergência. Mais precisamente, os insegurança de cada família, fazendo com que
conscientes planos precisam se ajustar às pessoas, e a percepção das famílias sobre questões como
de nossa
não as pessoas aos planos. Por outro lado, enchentes, secas, deslizamentos e queimadas
vulnerabilidade.
esse plano não precisa ser formalizado, se converta em indicadores da percepção
mas incorporado na prática cotidiana da subjetiva da qualidade de vida das pessoas.
comunidade. Nesse sentido, a Psicologia Esse tipo de intervenção da Psicologia permite
pode auxiliar na diminuição das decalagens que os indivíduos se tornem mais reflexivos,
entre as características técnicas das medidas ou melhor, permite que os indivíduos ampliem
de proteção e a percepção do risco da as condições de monitoramento das fontes de
comunidade. Dessa forma, a segurança insegurança de sua rede de subsistência.
depende da confiança na estabilidade da
rede. Desastres assustam, mas também fascinam,
porque revelam o quanto a existência
Uma das questões mais importantes na humana é precária e frágil. Os desastres
confrontação dos desastres diz respeito aos rompem a capacidade da rede sociotécnica
consensos e conflitos que surgem nas situações de manutenção da vida e também a
de emergência quanto aos padrões ou à capacidade de processamento da experiência
dinâmica de reestabilização da rede. Situações de morte. Esta foi seqüestrada pela operação
de emergência costumam desencadear um alto de instituições especializadas como, por
grau de flexibilidade associativa das instituições exemplo, os sistemas médico e mercantil,
comunitárias, que favorece o reconhecimento que afastam a morte do cotidiano e impedem
mútuo e a integração social. Assim, durante e que a morte afete a rotina produtiva dos
imediatamente após os impactos, as relações indivíduos. Um desastre desarticula essa
sociais costumam caracterizar-se por um alto forma de processamento e impõe às pessoas o
nível de solidariedade e cooperação, porém, processamento direto da perda e da morte. A

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Psicologia descobriu isso, e os psicólogos não em compreender e intervir sobre os efeitos


se cansam de repetir: as pessoas são diferentes, que a eclosão de um desastre exerce sobre
e pessoas diferentes reagem de forma o comportamento individual e sobre as
diferente. Em síntese, as contribuições da condições subjetivas dos indivíduos afetados
Psicologia para a construção de comunidades pelo desastre. Nesse sentido, a intervenção
mais seguras estão relacionadas à matriz da Psicologia consiste em produzir e aplicar
analítica por meio da qual configuramos não conhecimentos que possam ser utilizados
só a insegurança e os desastres, mas também para cuidar dos efeitos negativos que a
a segurança e a comunidade. Por um lado, se disrupção da vida cotidiana desencadeia
tomarmos uma matriz epistemológica realista, sobre o comportamento individual e o estado
os desastres se transformam analiticamente
mental dos indivíduos que são afetados direta
numa ameaça para a comunidade em função
ou indiretamente. Por outro lado, a adoção
de sua magnitude e freqüência, e os impactos
de uma matriz epistemológica construtivista
constituem o produto da capacidade de
processamento social do problema. Essa converte e reposiciona analiticamente
caracterização é o resultado da combinação a tarefa da Psicologia na construção de
de uma configuração do problema que comunidades mais seguras. O sentido desse
separa as dimensões humanas (social) e tipo de intervenção visa, por um lado, a evitar
não-humanas do problema (natural), com a disrupção e a estimular a recomposição
uma representação estrutural-funcionalista do padrão de vida pré-impacto, porém
de comunidade como organização/resposta. isso, é claro, depende muito da plataforma
Na divisão do trabalho disciplinar, a Psicologia epistemológica por meio do qual a Psicologia
vai ocupar um papel específico, que consiste define a si mesma.

Marcos Antônio Mattedi


Doutor em Ciências Sociais, professor titular do Mestrado em desenvolvimento Regional da Fundação
Universidade Regional de Blumenau.
E-mail: mam@furb.br

Endereço para correspondência:


Rua Antônio da Veiga, nº 140 – Itoupava Cep: 89012-900, Blumenau-SC

Recebido 17/04/07 Reformulado 05/09/07 Aprovado 20/09/07

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