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RUMO A CULTURA

de
Louis Riboulet

Louis R1BOULET, nascido a 15 de


janeiro de 1871, em Saint-Alban­
d'Ay (França), fêz os primeiros
estudos na escola dos Irmãos Ma­
ristas em sua terra natal. Em 1886
ingressa no seminário da mesma
congregação religiosa em Saint-Ge­
nis-Laval, e, três anos após, obtém
o título de professor primário, atra­
vés de exame do Estado. Atenden­
do a convite, vai, em janeiro de
1890, à América do Norte, onde
permanece até 1914.
De muito lhe valeram, para a
sua formação pedagógica, as pes­
quisas e observações educacionais
realizadas nesse período no Canadá
(Iberville) e nos Estados Unidos.
Aplicando-se intensamente aos es­
tudos, diplomou-se no "Institute of
Scientific Study'', da Universidade
de Nova York.
Mobilizado, volta à França em
1914, e, anos mais tarde, retorna
ao magistério, exercendo suas ativi­
dades no Colégio de Notre-Dame
de Valbenoite, em Saint-Étienne.
Em 1925 edita "Histoire de la Pé­
dagogie'', obra premiada pela Aca­
demia Francesa no ano seguinte.
Seguiram-se "Psychologie appliquée
à l'Éducation'', "Conseils sur !e
Travai! Intellectuel'', "Discipline
Préventive" e "Méthodologie Gé­
nérale". Como trabalho póstumo
(Cont. na a.a aba)
apareceu "L'Église et i'Éducation
de l'Êre Chrétienne au XIV Siede".
Várias dessas obras foram traduzi­
das para o português.
Riboulet foi um assíduo ct1labo­
rador das revistas "Bulletin des
Études'', "Revue Catéchistique" e
"Revue Belge de Pédagogie".
Rumo à Cultura, livro que a Em­
TÔRA GLOBO agora apresenta ao
leitor brasileiro, é um trabalho pes­
soalíssimo, na expressão de F, La­
vallée, em que o Autor não ficou
ccnstrangido, como em outras de
suas obras, por um planejamento
impôsto pelos próprios fatos histó­
ricos ou pelo programa oficial de
um exame. Por isso, sua pena corre
livremente; aos que iniciam a jor­
nada da realização pessoal, mostra
os escolhos a evitar, os obstáculos
a vencer, o caminho seguro a to­
mar, para que possam caminhar de­
pressa e ir longe. Quem dentre nós,
ao lançar um olhar retrospectivo,
não lamentou o tempo perdido por
falta de um guia que o tivesse
orientado nas hesitações do cami­
nho? Rumo à Cultura é êsse guia,
por todos os títulos eficiente. Fruto
da grande experiência do Autor, e
de sua disposição para indicar os
caminhes que levam à felicidade
pessoal, a presente obra, num
estilo cativante, vem ao encontro
do interêsse da mocidade e de to­
dos os que a ela se dedicam.

Publicação da

EDITORA GLOBO
RUMO A CULTURA
L. RIBOULET
PROFESSOR DE FILOSOFIA E PEDAGOGIA
Instituição Notre·Dame de Valbeoolte, Saint·Etieooe - França

Rumo a Cultura
'

Prefácio de F. LAVALL:l!E
Reitor das Faculda1les Católicas ele Lião

Tradução de

MAURICE TEISSEIRE e ANTÔNIO DA FRAGA

2.ª EDIÇÃO
1.ª impre�são

E D ITôR A GL O B O
Ri o DE JANEIRO - PôRTO ALEGRE - SÃo PAULO
Titulo do original francês:

CONSEILS SUR LE TRAVAIL INTELLEOTUEL

publicado por EmmanU<ll Vitte, .Lllot1 • Paria

!.& EDIÇÃO
Tipografia do Centro S. A. - 1940

1900

DIBIH'l'OB UOLVBIVOB DB BDIQÃO, BK Lfli'QVA POBT1JG1Jiu., D.A.


EDITÕBA GLOBO B. A. - PÔBTO ALBGBll - BIO GBA.llDB DO BVL
B8TAD08 UNIDOS DO BB.a.SIL
Ã

MOCIDADE INTELECTUAL
BRASILEIRA
NIHIL OBSTAT

Cônego Vicente Scherer

P. Alegre, 6-11-1945

IMPRIMA-SE

Mons. Leopoldo Neis - Vigário-Geral

P. Alegre, 6-11-1945

L. IMPR.

1945/313
PREFACIO

Escrevendo estas linhas, nem me vem a idéia de que sejam uma recomen­
dação para o autor dêste volume. :tlll e já se impôs ao público por seus artigos
cm revistas diversas, mormente na llevue belge de Pédagogie, e por suas obras
anteriores como sejam a Histoire de la Pédagogie, e o Manuel de Psychologie
'lppliquée à l'éducatüm., que, publicados recentemente, atingiram já a terceira
eilição. É-me grato, porém, dizer a outros o prazer e o proveito que encontrei
na leitura dêste novo volume, riquíssimo de citações e no entanto pessoal.
Lemos nêle o testemunho de uma multidão de homens que conquistaram
fama pelo trabalho intelectual e nos contam o modo por que a conseguiram.
''Acostumai-vos a tomar notas, diz-nos o autor, em breve possuireis tesouros.''
Percebe-se que é um conselho de experiência; pois temos nesta obra um tesouro
ndquirido assentando notas ao sabor de uma imensa leitura, que abrange an­
tigos e modernos, e palmilhando todos os domínios do pensamento: literatura,
ciências e artes. Faguet emparelha com Franklin; d 'Hulst com Spalding; Joubert
'ºm Henri Poincaré; Montalembert com Veuillot. Não julgueis encontrar
páginas extraídas das obras dêstes autores, um como florilégio análogo a tantos
outros; não, é numa linguagem original, grata à memória, que o autor condensa
a experiência dêsses homens célebres. Ao acaso, no capítulo onde o autor nos
põe de sobreaviso contra a indolência que protela "para o dia seguinte os ne·
gócios graves", lembra êle que Ruskin tinha constantemente sôbre a escriva·
ninha um bloco de granito, no qual mandara gravar a palavra today (hoje), a fim
de persuadir-se de que o momento presente era o que lhe pertencia. Nem tôdas
as citações trazidas a lume são inscrições lapidares; algumas são familiares;
outras são meros repentes saídos da bôca de humoristas, mas nem por isso são
menos ricas, na sua feição paradoxal, nem deixam menor impressão, ao con­
densar a idéia numa fórmula inesperada e saborosa.
Porém o autor não se deixa levar pelo engôdo dos vocábulos retumbantes,
qual transeunte, numa pradaria, que andasse ao acaso colhendo ora esta, ora
aquela flor com o único fito de compor um belo ramalhete. Não, êle sabe onde
vai e não desvia. As citações reforçam as idéias como testemunhos a favor da
própria experiência. :tllste livro é pessoal, pessoalíssimo. O autor não estava
constrangido, como em tal ou qual outra de suas obras, a um plano impôsto
pelos fatos históricos ou pelos programas de um exame; por isso, conversa li­
\·remente, e mostra aos que encetam a carreira da vida quais os escolhos a ven­
cer e o caminho a tomar para a jornada futura. Quem dentre vós, num olhar
retrospectivo, não lamentou o tempo esbanjado, por falta de guia, que, na bi­
furcação dos caminhos, o tivesse orientado T Eis um guia excelente para os moços;
X P R EFÁC I O

êste guia apela, de início, para a ambição dos moços e a reclama; o seu livro
se abre com os dizeres de Pasteur, pronunciados no dia em que foi recebido
na Academia Francesa, e que foram, depois, gravados na cripta onde repousa
o ilustre sãbio, no Instituto Pasteur: ''Feliz de quem traz em si um deus in­
terior, um ideal de beleza, e lhe obedece: ideal de arte, ideal de ciência, ideal
da pãtria, ideal das belezas do Evangelho! São estas as fontes das ações herói­
cas e das idéias sublimes. Tôdas são penetradas de reflexos do Infinito! '' Con­
cluamos que a ambição não se define pela importância da fortuna que um moço
espera armazenar, mas pela altura do ideal a que êle visa: não querer somente
fazer algo, mas ser alguém. O homem vale não pelo seu dinheiro, mas pelo
poder de suas idéias e por sua consciência. É deprimi-lo querer, constantemente,
falar em valores econômicos. Não achais que é oportuno repetir estas coisas, e
dirigir assim para as alturas os olhares dos moços, numa época em que os ban­
ileirantes do espírito poderiam invejar o luxo que se ostenta à roda dêles' Não
friam hesitar os moços, diante da senda ãrdua das grandes escolas, quando há
tantos meios fáceis de vencer na vida f
Ainda bem que a remuneração de uma obra nem sempre se avalia em dinhei­
ro; a melhor está no saber íntimo que as boas ações trazem consigo. Não se
concebe que haja prazer na preguiça; todo êle está no esfôrço que é atividade
feliz de uma fôrça, a alegria da vitória. Nada mais oposto a uma moral tris­
tonha do que êste livro otimista. "Alegrai-vos", diz, "pois a alegria é um
tônico." "O melhor cordial", dizia um médico a seus clientes, "é a alegria e o
bom humor.'' O autor sabe que a educação não é obra negativa cujo fim seja
rorrigir más inclinações, mas é a arte de desenvolver nos moços o poder da admi­
ração. Conforme Renan, foi por ter possuído êsse talento de um modo eminente,
.'Jue Monsenhor Dupanloup foi um grande educador. ''Foi um despertador de al­
mas incomparável; no obter dos alunos a medida de que eram capazes ninguém
de lhe avantajava. :E:le repetia muitas vêzes que o homem vale pela sua capaci­
dade de admirar." Igualmente, o autor não concebe a pedagogia como sendo
uma ação do mestre violentando a entrada da mente do aluno; não, requer dêstes
um espírito aberto e indagador. Gosta dos moços curiosos, que investem conti­
nuamente com porquês. Esta curiosidade os acompanhará além do ambiente es­
�olar, até às horas de folga, em meio aos prados em flor, à beira dos regatos,
diante dos aspectos mais diversos que tingem o horizonte na hora do pôr do sol.
Regressarão de suas excursões com uma palhêta mais rica, e matizes mais va­
riegados que darão ao seu estilo veracidade e distinção.
:E:ste aspecto feliz do trabalho intelectual não dissimula o esfôrço, que é sua
alma. E por isso mesmo é-nos apresentada aqui a virtude como condição necessá­
ria ao desenvolvimento do espírito. É uma disciplina, um como dique que cana­
liza o rio, impedindo-o de estender-se, de enlanguescer, e de desaparecer total­
mente na areia. Se ela não tivesse, antes de mais nada, um valor real intrínseco,
dever-se-ia cultivá-la por seu valor pedagógico. Quem pode dizer, por exemplo,
o proveito intelectual que um estudante acha na moral cristã, a qual corta ra­
dicalmente os devaneios malsãos e desvia a mão dos maus livros, prejudiciais à
J>Ureza da alma e à limpidez do porvirt Esta obra antes de tudo derrama luz
P R E FÁC I O XI

fôbre a importâ.ncia da vida moral; é um ponto de vista absolutamente justo.


Não ir até aí, fôra condenar-se à limitação, e desconhecer a unidade do homem,
que não permite conceber a vida do espírito sem laço com a consciência.
Seria uma segunda limitação, o não assinalar as relações da moral e da fé.
Não se impõe uma disciplina dos costumes pela mera vantagem que nisso há, po­
rém sim porque se reconhece que é uma lei que a todos se impõe. ''O segrêdo
dos caracteres enérgicos", disse Caro, citado pelo autor, "é a energia das con­
vicções.'' Um estudante que tem a dita de ser católico sabe que seus atos não
�ão efêmeros e vãos, mas que êles têm um alcance eterno; que seu destino é
divino; que Deus traçou a carreira que deve abraçar; que se, por indolência, não
a segue, contribui a minimizar e rebaixar o plano de Deus. Para a realização
desta obra, êle acha, nos sacramentos, na oração e na fidelidade ao dever de
todos os dias uma fonte sempre aberta de energia divina. Aonde se não iria.
(•om tal convicção e tamanha coragem t
Eis por que êste livro, que se abre com avisos sôbre o método, termina
por uma exortação religiosa. Qualquer outra conclusão fôra superficial; pois,
o método é o caminho por que envereda o espírito; e a atividade dêste, aceita
integralmente, exige o concurso da alma. O autor não parou a meio caminho,
mas com uma vista nítida apreendeu tôda a amplitude do assunto e o trabalhou
com mão vigorosa e pena de artista.

Lião, 20 de junho de 1928.


F. LAVALLtE
Reitor das Facntldadea Cat61icas de Lião

NOTA - A tradução dos telltos em francês encontra·se ao final do volume.


lNDI CE

PREFÁCIO IX

Cap. 1 Escolhei um ideal nobre e esforçai-vos, dia a dia, por


realizá-lo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

Cap. II Fortalecei a vontade pelo cumprimento fiel dos vossos


deveres de estudante ................................ 13

Cap. III Tende no trabalho uma constância a tôda prova . . . . . • 26

Cap. IV Apreciai a imensa vantagem que tendes de ser jovens e


tirai o máximo proveito da vossa juventude ......... . i�

Cap. V Fazei bom uso do tempo que Deus vos dá . . . . . . . . . . . • 56

Cap. VI Cultivai com esmêro o sentimento que vos leva a amar os


livros e o trabalho intelectual ....................... 67

Cap. VII Dai uma direção inteligente às inclinações que vos levam
à procura do verdadeiro e prossegui vosso trabalho no
silêncio e no recolhimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • .. • 82

Cap. VIII Nunca percais de vista nos estudos o desenvolvimento


harmonioso de vossas faculdades . .... ...... .......... 100

Cap. IX Dedicai-vos de preferência aos estudos que dão ao espí-


rito uma cultura mais geral . .. ... ..... . .. . ... ....... 115

Cap. X Completai vossos conhecimentos com leituras escolhidas e


feitas com inteligência . ..... .. . ...... ..... . ... ...... 129

Cap. XI Não desanimeis se encontrardes dificuldades de ordem


material, se vos contradisserem e se vosso estado de saúde
fôr precário . . .... . ...... ... ..... . ... ... .. . .. . .. . ... 153

Cap. XII Lutai com energia perseverante contra as dificuldades de


ordem intelectual e moral . . .. . .. . ... ..... . .. . .. ... .. 167

Cap. XIII Exercitai em vós o ardor pelo trabalho considerando as


vantagens que podeis retirar do estudo! 181

Cap. XIV Não descureis nenhuma das influências que vos podem au­
xiliar no desempenho do vosso dever de estudantes 195

Cap. XV Estudai com elevado espírito de fé . . ... .. . ... ..... .. 210

Cap. XVI Santificai vosso trabalho por uma vida profundamente


cristã .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223

Tradução dos textos em francês . ........ ................ 239

Obras consultadas .. . . . . . . . . . . . . • . . • . ................... 247


RUMO A CULTURA
Capítulo I

ESCOLHEI UM IDEAL NOBRE E


ESFORÇAI-VOS, DIA A DIA, POR REALIZA-LO-

No dia de sua recepção na Academia Francesa, Pasteur pro-­


nunciou estas magníficas palavras : "A grandeza das ações humanas
se mede pela inspiração que lhes deu origem. Feliz de quem traz em
si um deus interior, um ideal de beleza, e lhe obedece: ideal de
arte, ideal de ciência, ideal da pátria, ideal das belezas do Evangelho!
São estas as fontes das ações heróicas e das idéias sublimes. Tôdas
são penetradas de reflexos do Infinito."
Desde já, venho convidar-vos, caros amigos, a vos propordes,.
nos estudos, um fim que os enobreça; que os torne fecundos t>
sustente vosso labor diário.
Já divisastes cs primeiros clarões dêste ideal: talvez o tenhais
contemplado em todo o seu esplendor. Vigny o tem na conta de
"uma idéia juvenil realizada no vigor dos anos". É isso mesmo:
uma representação clara do futuro, uma idéia luminosa da meta que
deve ser alcançada e dos m�ios escolhidos para sua consecução, uma
visão superior que determinai a maneira de viver, organiza o proce-­
dimento, canaliza o ardor para o bem, dá, cada dia, nova coragem
para prosseguir na árdua emprêsa encetada. "Regular e dirigir as
ações'', dizia um jovem sábio, Papillon, "eis a fôrça realmente pode-
10sa, que engrandece o homem e o elevól acima dos outros."
Visar à conquista de um ideal é um dever. Não é permitido a
um ser racional viver à toa sem jamais indagar qual a missão que
lhe é destinada. Nada mais funesto do que a indiferença neste ponto.
Vi da sem ideal é vida falha.
Esta preocupação perante o porvir é sinal de distinção e de
nobreza de alma. Aos quinze anos, Victor Hugo dizia: "Serei.
4 L. RIBOULET

Chateaubriand ou ninguém." Aos quatorze anos, Montalembert já


traçara o seu rumo: trabalhar na tribuna e na imprensa em defesa
<la Igreja e da liberdade. Aos dezesseis anos, Brunetiere confiava
ao seu mestre, Gustavo Merlet: "Quero ser redator na R evue des
Deux Mondes e professor no Colégio de França."
Numa questão dêste quilate, não andeis ao sabor das ilusões.
Não vos pronuncieis sem madura ponderação, sem o exame atento
de vossas fôrças físicas, de vossos recursos intelectuais, de vossas
qualidades morais, tendências, gostos e antipatias. A reflexão, o
exame de consciência, os conselhos de vossos pais, de vossos mestres
e de vosso diretor espiritual contribuirão para o conhecimento que

deveis ter de vós mesmos.


Estimai-vos a vós mesmos pelo que sois em verdade, porém não
nceeis ter ambições elevadas. "Felizes", diz Henrique Bordeaux,
..os que colocaram bem alto o sonho de sua vida!" Viver satisfeito
.com uma honesta mediocridade, comprazer-se nela é a marca de
um coração enfermiço e não raras vêzes morto. É aos jovens desta
têmpera que o poeta indignado dirigia esta virulenta apóstrofe:
"Dai-me vossos anos em flor, vós que os desperdiçais."
Pasteur dizia numa tertúlia de estudantes: "Meus amigos, qual­
quer que seja a carreira que abraceis, proponde-vos um fim nobre."
O'Connell, adolescente, escrevia ao tip: "Tenho agora em vista dois
fins: a conquista do saber, e a aquisição das qualidades que fazem o
gentleman perfeito . . . Sinto verdadeiramente uma ambição imensa
e, se me permitir a expressão, entusiasta; ambição que transmuda
.o penar em alegria. Ainda que a natureza me não tenha dado talen­

tos de primeiríssima ordem, jamais me contentarei com ser medíocre


na minha profissão." Le Verrier, sentindo suas fôrças crescerem, as
.saúda com esperança: "Já transpus muitos degraus, por que n ão
subiria mais ainda?" Eugênio Delacroix, recordando o passado, es­
creveu certo dia: "Acalentamos grandes ideais na juventude. Felizes
aquêles que os conseguiram!"

• •

Após haver determinado vosso ideal, contemplai-o longamente;


deixai-vos inundar por sua luz e impregnar por seu calor. Resumi-o
RUMO À CULTURA 5

numa fórmula breve que repetireis amiúde e que repercutirá na


vossa alma como um toque de clarim: Fazei-o viver nas minúcias
da vida; acomodai-o às proporções restritas de vosso labor cotidiano .
Acima de tudo, amai-o até o entusiasmo. Sim, sêde entusiastas
como o jovem Aymerillot que Victor Hugo apresenta:

Deux liards couvriraient fort bien toutes mes terres,


Mais tout le grand ciel bleu n'emplirait pas mon coeur.

O entusiasmo suaviza as asperezas da rota. Ruskin escreveu:


"U artista é uma pessoa que se impôs uma lei à qual é penoso obe­
decer a fim de dispensar um benefício que é delicioso dispensar . . .
Minha mão cansa de tanto segurar a pena; meu coração agoniza
de tanto pensar. Porém, não posso deixar de escrever sôbre as coisas
que me são caras."
O entusiasmo juvenil reveste-se de beleza, de delicadeza especial
que enternecem profundamente. Foi assim que Le Cardonnel fêz
brotar do coração esta estrofe:

Ak! merveüleux élan d'une âme jeune encare!


Elle peut s'en aller de sentier en sentier.
Rien ne contentera la soif qui la dévore:
A cette soif sublime, il faut le ciel entier.

Enfim, tende a firme convicção de qtte realizareis êste ideal.


Armai-vos de coragem e de tenacidade. Se o anjo vos alcandora aos
cumes, vossa má natureza vos atrai para a terra e para os prazeres
sensuais. Em dados momentos roncará a tempestade, o céu ocultará
as estrêlas e ainda assim tereis que prosseguir a vossa rota na an­
gústia e na dor. Porém, tende ânimo; subi sempre repetindo o vosso
lema. E já que tendes a enorme vantagem de crer, a vitória será
mais fácil.
Paulo Bourget apontava, faz alguns anos, como causa principal
da dispepsia moral de que sofre a humanidade, a ausência de con­
vicções e de certeza. "Ao desaparecer", diz êle, "a fé deixou nas
almas uma fresta por onde se somem tôdas as alegrias." Aliás, por
que se apegar a idéias nobres se não se acredita em nada? Não será
6 L. RIBOULET

preferível levar vida tranqüila, isenta de dor e embaraço? t bem


verdade que a incredulidade e o cepticismo são corrosivos violentos,.
inimigos do bem.
Algumas reflexões sôbre os benefícios do ideal vos leva!"ão a
prosseguir sem tréguas até a hora em que tereis de responder pela
vossa vida.

• •

O ideal é anteparo e princípio de ordem.

Quando o ideal se apodera de uma inteligência, domina-a integral­


mente. Vem a ser o princípio diretor das idéias, dos desejos, dos afetos
e dos atos. Conduz à inanição os apetites desordenados e as más
inclinações, pondo no seu lugar uma paixão mais forte.
O moço que se não mantém nas alturas por um princípio superior
se deixa fàcilmente corromper; seu coração se estreita e se fecha às
idéias generosas. Já ouvistes o verso de Musset:

Ah! frappe-toi le cceur, c'est là qu'est le génie!

t verdade: os mais nobres pensamentos brotam de um coração


profundamente enamorado do belo e do bem. Outro poeta escreveu
com não menos acêrto:

Ou ne bat plus un cceur, tout élan s'amortit;


L'esprit sautille encor, le 1:énie est sans ailes;
La foudre, au lieu d'éclairs, lance des étincelles:
Enfin, plus rien de grand, si le cceur est petit.

R. P. FouGERAY, S. J.

É assim que o ideal ordena a vida. Torna-se uma regra e até


mandamento divino. Regula as horas de trabalho e as horas de
descanso. Organiza as potências intelectuais e m:>rais na ordem
prevista por Deus. A razão se torna a soberana inconteste diante
da qual as outras faculdades se inclinam; mas sobretudo, segura
RUMO À CULTURA 7

com mão firme as rédeas dos apetites desordenados e modera aos


poucos o seu ímpeto.

O ideal é luz e fôrça.

O ideal oferece um alvo à vida, primeira condição para que esta


seja bem utilizada. Fora com as hesitações, fora com as aventuras.
O ideal clareia as nossas idéias e aspirações; capta tôdas as energias do
ser, reúne-as num feixe único e as orienta para o mesmo fim. O ideal
foi para Ozanam uma fonte de clareza, o segrêdo da fecundidade do
seu apostolado intelectual e social. Aos dezessete anos, falava com en­
tusiasmo do grande trabalho que ideava: provar a divindade da
religião pela história: "Amigos", dizia, "estou maravilhado; a em­
prêsa é magnífica e ainda sou moço. Tenho fé ilimitada e creio que
há de chegar o tempo em que, após nutrir e fortalecer as minhas
idéias, poderei expô-las dignamente." A morte ceifou êste servo da
Igreja e da Verdade. Fôra fiel, no entanto, a Deus e ao ideal da sua
juventude.

O ideal é o sol da vida e fonte de grande alegria.

O ideal regula e ordena as ações. Realça, embeleza e transforma as


minudências da vida. Encurta o trajeto da caminhada, suaviza as
agruras da existência. E, sobretudo, consagra o ser total a serviço
do bem, valoriza os talentos e as tendências inatas, desenvolve as
qualidades intelectuais e as virtudes morais. Em suma, promove a
atividade plena pela qual o homem se sente viver uma vida superior
.
que é o seu verdadeiro elemento.
Não será, porventura, uma grande alegria a de responder ao
chamamento divino; de entrar "no barco" em que a Providência
quer que levemos a cabo a "humana travessia"; de mourejar na tarefa
indicada pelo Dono da Messe; de exercer, cada. qual na sua esfera,
uma influência moral e social? O ideal porfiado corajosamente torna
a velhice e a morte consoladoras.
8 L. RrnoULET

Enfim, o ideaÍ aproxima de Deus.

Ordenando a vida, proporcionando a cada faculdade o desenvolvi­


mento que lhe convém, o ideal aperfeiçoa em nós a imagem de Deus.
Mas o ideal é sobretudo uma oblação total do ser pela qual redizemos
cada dia: "Senhor, eis-me disposto a cumprir a vossa vontade. Crias­
tes-me para um fim nobre. De boa mente quero corresponder aos
vossos desígnios: eis as minhas fôrças e a minha saúde ; as minhas
faculdades intelectuais, e enfim o que há de mais nobre no meu ser
moral; tudo consagro ao vosso serviço." E assim vos aproximais
de Jesus, Ideal supremo, cuja única preocupação foi cumprir a von­
tade do Pai.
Tende constantemente o coração aberto qual cálice destinado a .
receber o rocio celeste. lngres dizia aos seus alunos: "Haja algo de
religioso na arte, não julgueis que exista produção artística que
dispense a elevação da alma. Marchai de cabeça erguida para os
céus ! " Belas palavras! Formem vossa divisai Avante sempre com o
ideal no coração e os olhos fixos no modêlo divino.

w •

Que meios práticos ides tomar a fim de ordenar a vossa vida


em vista da realização do ideal ? Eis alguns:

Em união com Deus, cumpri cada dia vossos deveres de estu­


dante.

O estudante deve cumprir seus deveres em união com Deus, tudo


lhe atribuindo. Um moço consultara Santo Tomás de Aquino acêrca
dos estudos e dêle recebeu êste excelente conselho: "Seja vossa
oração contínua. Velai sobretudo pela pureza da vossa consciência.
Nada façais que possa manchá-la ou tornar-vos menos agradável
a Deus."
Quantos sábios têm trabalhado "em espírito de oração"! Após
fervorosa meditação, Ampere escrevia : "Estuda as coisas dêste mun­
do, mas não as observes senão com um ôlho só; estej a o outro cons-
RUMO À CULTURA 9

tantemente fixo na luz eterna! Ouve os sábios, mas com um ouvido


só; esteja o outro sempre atento aos doces encantos da voz do teu
Celestial Amigo! Escreve com uma só mão; com a outra, agarra-te
a Deus qual uma criança à roupa do pai. Sem esta preocupação.
cairás infalivelmente de encontro a alguma pedra."
Ollé-Laprune, grande filósofo católico, trabalhava também na
presença de Deus. Ei-lo à mesa de trabalho preparando as aulas
para os alunos da Escola Normal. Recolhe-se uns instantes e escreve
sôbre o seu diário íntimo: "Hoje, festa de São Jerônimo, doutor.
Quero invocá-lo especialmente. Tenho de ensinar. Esteja sempre
a minha vida de acôrdo com minha fé! Que ventura a de ensinar,
de exercer uma ação benéfica sôbre os espíritos e sôbre as almas,
de comunicar a verdade! Oxalá o faça sempre com respeito, com
amor pela verdade e pelas almas! ó Jesus, divino Mestre, gma1 o
meu ensino!"
Outros contentavam-se com escrever uma fórmula sôbre a fõlha
ou a partitura. Imitai êsses belos exemplos. Acostumai-vos a oferecer
2 Deus o trabalho diário: isto atrairá copiosas bênçãos sôbre vós.
Será um meio de cumprir fielmente o vosso dever. É questão
de consciência. A moleza, o mais-ou-menos e a covardia seriam torpes
retiradas.
Diante do porvir, todo homem tem responsabilidades. Escrutai
a missão que vos espera. Não andareis só no caminho da vida.
Topareis com almas desgarradas ou indiferentes que uma palavra
de verdade reconduziria ao reto caminho do Bem. Encontrareis almas
ignorantes a quem fareis bem dando-lhes um pouco de luz. H aveis
de encontrar, talvez, almas caídas que levantareis com uma palavra
de esperança e de confiança. Encontrareis certamente almas pusi­
lânimes que arrastareis com o vosso exemplo. Infelizes de vós se
não soubésseis dizer palavras de vida, se não désseis êste exemplo
salutar!
Não esqueçais que vossa influência se medirá de acôrdo com
vosso valor intelectual e moral. Há, na vida do homem, uma hora
decisiva, em que êle deve dar a medida do que vale. Coitado dêle
se, naquele instante Deus lhe disser: "Pesei tua ciência, pesei teu
valor moral, e fôste achado leve."
Sirvam-vos êstes graves pensamentos de aguilhão em face do
10 L. RrnouLET

trabalho penoso e "cacête", ou diante de um desgosto inexplicável


que vos quer desviar do labor diário impôsto por Deus, qual dever
sagrado. Vencei as tentações da preguiça; resisti às sugestões malsãs
que vos inclinariam à negligência e ao menos perfeito, "capitulação
miserável das almas covardes".

Em união com Deus, estudai a fim de preparar a realização


de vosso ideal.

Ouvistes esta estrofe de Victor Hugo a Napoleão:

Non, l'avenir n'est à personne


Sire, l'avenir est à Dieu!
L'avenir! l'avenir! Mystere!

Em que pêse ao poeta, o porvir pertence a Deus, sem dúvida,


porém pertence-nos também a nós, pois que êle será o que o tivermos
feito. Se assim não fôsse, de que serviria repetir-vos amiúde: Pensai
no porvir!
Os vossos mais caros interêsses estão em jôgo; e tendes à mão
os meios de preparar êste porvir. Necessitais, porém, de vontade
firme. Carlyle dizia: "O viver é uma conjugação ininterrupta do
verbo fazer."
Sois devedores à vossa família da preparação conscienciosa do
vosso futuro. Sois devedores à Pátria. Mais do que nunca precisa
ela de elites. A pátria em ponto menor, o lugar onde vivereis não
espera menos de vós. Que lástima se, por culpa vossa, não pudésseis
·

exercer esta ação benéfica!


Não, não é lícito à juventude de hoje preparar um porvir de
gôzo e egoísmo. E as almas nobres e puras jamais encararam
a vida como um passatempo alegre. Montalembert, ainda no colégio,
escrevia a Cornudet, seu amigo Íntimo: "Por que não diriam os nos­
sos concidadãos, sôbre os nossos túmulos: Não viveram para si mas
para a Pátria? Por que não nos sacrificarmos pelos nossos concidadãos?
Vivendo pela Pátria, teremos obedecido à lei de Deus que ordena
nos amemos uns aos outros; e como poderíamos amar mais :i-os nossos
concidadãos do que votando-lhes tôda a nossa vida?"
(FOTO GJRAUPON)
Chateaubriand, por Girodet
Santo Agostinho menino é apresentado por seus pais na escola de
Tagaste (Quadro de Benozzo Gozzoli, 1465)
(FOTO ALINAIU)
RUMO À CULTURA 11
O porvir eterno depende, em grande parte, do comportamento
atual. Que recepção fará o Mestre àquele que não fêz frutificar seus
talentos, que viveu sem aspiração superior? Não esqueçais a maldição
da figueira estéril. No lnferno de Dante as almas covardes sofrem
tormentos especiais. O poeta ouve-lhes os gritos de cólera e os uivos
de dor, e indaga do mestre: "Quem são êstes que parecem tão pro­
fundamente mergulhados no luto ? " - O mestre responde: "Êsse
estado miserável é o das almas tristes que viveram sem infâmia e
sem louvor; o céu as rejeita para que lhe não alterem a beleza.
Nenhuma lembrança dêles subsiste no mundo; a Justiça e a Mise­
ricórdia os desprezam. Não discorramos sôbre êles, olha e segue."

Em união com Deus, estudai para consagrar vossa inteligência


ao serviço do bem.

São Bernardo, pregando um dia aos seus religiosos, dividia os


homens em duas grandes categorias: os que querem saber a fim de
saber, que acendem suas luzes à noite e as apagam ao primeiro
clarão do dia, empalidecendo sôbre os livros para devassar os se­
gredos da natureza, ou assimilar o pensamento dos autores. E os
que trabalham para um fim mais nobre; cultivam a inteligência a
fim de a consagrar ao serviço do bem. !stes são merecedores de
encômios. O Pe. Gratry diz que é êste precisamente o ideal cristão
.10 estudo, a salvação ligada à profissão.

Um grande místico da Idade Média, São Boaventura, expressava


a mesma idéia ao dizer que a verdadeira sabedoria consiste em tirar
proveito da instrução, em saber melhor para melhor amar, e em
antepor a tudo a caridade divina "que é a jóia da terra e do céu".
O trabalho intelectual exercido em vista do serviço de Deus abre
horizontes infinitos; torna compreensível a beleza das almas, a gran­
deza e o mérito do apostolado; diminui o amor excessivo do eu,
induz a sacrificar-se e faz desabrochar as almas para a vida eterna .
Animado pelo ideal, o estudante vê a Deus em tôda a parte, o
adora e bendiz. Todos os ramos de estudo proclamam a sua grandeza
e bondade. Pasteur dizia: "Estudei muito, e vivo a fé do camponês
bretão; se mais tivesse estudado, viveria a fé da camponesa bretã."
Ele achara a Deus na ciência. "Outros o acham nas letras e artes
12 L. RrnouLET

por ser a fonte do belo; outros na história, expressão da providência


universal e nos demais conhecimentos científicos, por ser êle a causa
primeira, princípio e razão de tôdas as coisas."

• •

Tais são os benefícios e as obrigações do ideal entrevisto e aceito


na manhã da vida; tornar-vos-á um estudante consciencioso; pro­
porcionar-vos-á as mais nobres alegrias elevando-vos até Deus.
O poeta Gustavo Zidler, dirigindo-se a um estudante, escreveu
estas estrofes ardentes que não lereis sem emoção:

Oui, va vers l'idéal; Leve les yeu,x et monte;


L'effort sans le succes ne laisse point de konte;
Le ciel qu'on n'atteint pas n'offre rien que de pur.
Ckercke des clartés d'or la nuit parmi les branckes,
Pour ton réve, le jour ckercke les cimes blanckes,
Le soleil et le large azur.

A tes pensers, à tes paroles, mets des ailes!


Va, jeune pelerin des gloires éternelles,
Et levant pour banniere un morceau du ciel bleu,
Au-dessus de notre ombre, au-dessns de toi-méme,
Monte royalement jusqu'au degré suprême
Ou tu pourras contempler Dieu.

Idêntico convite, o do ilustre poeta de Laprade à mocidade do


seu tempo:

Plus kaut! toujours plus kaut! vers ces kauteurs sereines


Ou nos désirs n'ont plus de flux ni de reflux,
Ou les bruits de la terre, ou les ckants des sirenes,
Ou les doutes railleurs ne nous parviennent plus.

Plus kaut dans le mépris des faux biens qu'on adore,


Plus kaut dans ces combats dont le ciel est l'enjeu.
Plus kaut dans vos amours! Montez, montez encare,
Sur cette éckelle d'or qui va se perdre en Dieu!
Capítulo II

- FOR'fALECEI A VONTADE PELO


CUMPRIMENTO FIEL DOS VOSSOS DEVERES
DE ESTUDANTE

Desejais, caros amigos, que comecemos por uma lenda? Numa


noite de verão, certo menino contemplava as águas de um poço; ficou
maravilhado ao ver flutuar nelas estrêlas radiantes. Cintilavam como
diamantes. Observou-as por muito tempo e foi-se. No dia seguinte.
a sua primeira preocupação foi dirigir-se à beira do poço. As estrêlas.
porém, haviam desaparecido, e o garôto voltou triste para casa
dizendo a sua mãe que as estrêlas se tinham afogado.
É lenda? É realidade? Numerosas estrêlas, e de tôdas as grande­
zas, se afogaram, e se afogam todos os dias: quero falar dessas inte­
ligências fartas de promessas, carregadas como árvores vigorosas de
flores magníficas, mas que jamais deram fruto; quero falar de tantos
jovens que receberam os mais raros dons do espírito, mas que os
esbanjaram torpemente, porque lhes faltou uma coisa essencial: a
vontade. Freqüentemente ouvis falar de moços "laureados, premiados
e diplomados" que perambulam por grandes cidades mendigando um
pedaço de pão com que saciar a Tome, por falta da energia necessária
à conquista de uma colocação. Que é que lhes falta? Um caráter
resoluto; não sabem querer com firmeza e tenacidade .

• •

A vontade é pois indispensável para vencer. Define-se: a facul­


dade de agir de acôrdo com as leis da razão. Somente ela utiliza
plenamente as energias intelectuais porque as canaliza, porque dirige
14 L. R rnoULET

o nosso ser para um alvo que só ela permite atingir. Chama-se génio;
deve-se dizer vontade. Um dia, em presença de Édison, certos inter­
locutores faziam alusão ao seu gênio. "Que balela! retrucou brusca­
mente o inventor. Afirmo-vos que o segrêdo do gênio é o trabalho,
a perseverança e o bom-senso." Acrescentou ainda gracejando: "O
gênio se compõe de 1 % de inspiração e de 99% de transpiração."
Não terei o mínimo esfôrço a fazer para vos convencer de que
cada um de vossos dias de estudante oferece inúmeras ocasiões de
fortificar a vontade. Entremos em pormenores.

A vontade do estudante se forma pela continuidade do esfôrço.

Cada dia, sofreis os efeitos da grande lei do trabalho à qual todo


homem está sujeito. A cada instante, tendes que lutar contra a vo­
lubilidade de vosso espírito, contra a indolência, contra a apatia
natural para certos estudos e para o regulamento rígido que vos
constrange ao dever. O professor e o regente continuamente vos re­
lembram a lei do esfôrço. É incômodo, sem dúvida, porém eminente­
mente salutar. É a melhor escola de vontade: "A energia moral"
diz Blackie, "se adquire pelo exercício: livros, discursos, podem vos
incitar ao bem, podem fazer as vêzes de uma sinaleira que impeça
tomar atalho errado, porém não vos farão adiantar um só passo; a
viagem, vossos pés terão de empreendê-la."
A aquisição da ciência sobretudo exige um esfôrço contínuo do
espírito. Sabeis por experiência qual a tenacidade necessária para
aprofundar um assunto, coordená-lo com os precedentes conforme as
regras de um bom método, indo dos princípios às conseqüências, dos
fatos às causas e às leis.

A vontade do estudante se intensifica pela docilidade inteligente.

Encontram-se várias formas de docilidade: a do rebanho de


Panúrgio, praticada pelos alunos sem caráter; a dos escravos que
agem por receio das sanções; a dos murmuradores que caminham
resmungando e ameaçando; h á enfim a docilidade livre e consentida
do aluno ajuizado que aceita o regulamento como proteção contra seus
caprichos e sua inconstância, como guia prudente e benfazejo que
dirige e determina tôdas as ações do dia.
R U MO À CULTURA 15

Nada é mais salutar do que essa docilidade às vêzes muito penosa


"A coragem falta aos homens'', dizia o Pe. Félix, "porque a obediência
faltou aos meninos. Que é que cria vontades resolutas, másculos
caracteres? É o hábito viril da obediência generosa e espontânea. A
independência prematura não faz o homem; arruína-o."
E não digais que a disciplina destrói a energia. A torrente não é
jamais tão poderosa como quando canalizada; a árvore nunca é tão
firme como quando junto da estaca.

A vontade do estudante se fortalece por uma nobre emulação.

A emulação desenvolve as inclinações generosas, as paixões nobres,


mas sobretudo o sentimento da honra, o desejo de não ser inferior
aos demais. Santo Agostinho se estimulava ao bem com êstes dizeres:
"O que tantos e tantas fizeram, por que o não faria eu?" Esta luta
escolar dá ao caráter uma têmpera mais vigorosa. O poeta o proclamou:

. . . College, pemion, monde en miniature,


Ou l'on apprend la vie, ou, sans ménagements,
Ecoliers ont entre eux de rudes frottements

V ILLEFRANCHE

"
A emulação intelectu al não anda só. Quando um adolescente tem
o coração nobre, não imita somente os alunos mais estudiosos e
inteligentes, mas também os mais exemplares e os mais piedosos.

A vontade do estudante se fortalece pela prática razoável dos


exercícios físicos.

Um psicólogo esclarecido escreveu estas palavras: "A vontade


manifesta o seu poder na medida em que o corpo que lhe serve
de instrumento é mais são e mais vigoroso." Quando se negligencia
a saúde, a natureza se vinga. Não temais, pois, o jôgo durante os
recreios; tende estima ao passeio, ao campo, aos belos espetáculos
da natureza. Não abuseis dos desportos, mas possuí, pelo menos,
o espírito desportivo que consiste em amar e procurar o que exige
16 L . RrnouLET

esfôrço. Êste espírito desenvolve a iniciativa, ajuda a suportar os


insucessos momentâneos, ensina a mandar, dá hábitos de intrepidez
e sangue-frio.

A vontade do estudante se fortalece pelo conhecimento e prá­


tica dos deveres religiosos.

As fortes convicções são fontes de energia. A religião introduz


a Deus na inteligência para iluminá-la. Quando Jesus se retira, a
escuridão se estende sôbre os espíritos. Renan verificava que quanto
mais a ciência esclarece as coisas que nos cercam, mais ela sombreia
o nosso destino. Victor Hugo, depois de ter cantado o progresso
material do século, concluía tristemente :

Une chose, ô ]ésus, en secret m'épouvante;


C'est l'écho de ta voix qui va s'affaiblissant.

A religião introduz a Deus no coração, e quando o coração é


puro, o homem está apto às coisas da inteligência.
A religião introduz a Deus na vontade para sustentá-la. Deixada
a si mesma, ela se torna hesitante, porém, com o socorro divino, é
mais forte, mais constante. O conhecimento raciocinado das verdades
religiosas torna o querer mais robusto. "O segrêdo dos temperamentos
enérgicos", diz o filósofo Caro, "é a energia das convicções. Onde
os princípios não mais imperam, descamba a vontade para o interêsse."
Outras coisas virão completar a formação viril: são obstáculos
a dominar, tentações a vencer; é a luta contra as más inclinações,
ou a provação sob as mais variadas formas. Não ignorais, amigos,
que a dor é grande plasmadora de vontades. Lamartine o disse numa
estrofe imortal:

Tu fais l'homme, ô douleur, oui, l'homme tout entier,


Comme le creuset l'or et la flame l'acier,
Comme le gres noirci des débris qu'il enleve,
En déchirant le fer fait un tranchant de glaive.
Qui ne te connaít pas ne sait rien d'ici-bas.
RUMO À CULTURA 17

A dor nem sempre é violenta; apresenta-se, o mais das vêzes,


sob a forma de insignificantes obrigações fastidiosas. Apesar das
repugnâncias e resistências da natureza, cumpri vossas obrigações
com perfeita exatidão. Aliás, os moços corajosos desdenham a sen­
timentalidade e o diletantismo; gostam da luta; padecem quando
n ão encontram obstáculos. Aos dezoito anos, Sully-Prudhomme es­
crevia no canhenho: "Renunciai aos gozos, porém nunca aos infor­
túnios. O homem feliz é muito inferior ao que sabe sofrer."

Julgai-vos feli:zes diante do sacrifício e da renúncia.

O ânimo para cumprirdes o dever é tanto mais necessário quanto


haveis de encontrar, amiúde, jovens cujo querer é fraco. O mêdo do
esfôrço intelect1tal é uma doença bastante espalhada e seus sintomas
são fáceis de conhecer: conversas banais, leituras frívolas, moleza
no trabalho, horror ao regulamento, abuso dos desportos e do des­
canso. Não os imiteis. As sendas floridas não levam à glória. "A
coroa de louro", diz Lacordaire, "somente cingiu frontes feridas."
Abri a história e verificareis em tôdas as páginas que os homens
superiores foram homens de vontade. Gregório VII era filho de um
pobre carpinteiro da Toscana; Sixto Quinto, na juventude, apascen­
tara animais; Herschell foi flautista e organista antes de vir a ser
uma das glórias da astronomia; Bugeaud, de soldado raso chegou a
marechal de França; aos quatorze anos, Luís Veuillot mal sabia a
gramática, porém possuía uma vontade de ferro que o conduziu às
honras do apostolado e à glória literária. Napoleão deveu a mor
parte de seus triunfos à sua indomável vontade; quer ir à Itália e os
Alpes se lhe erguem em frente: "Os Alpes não existem'', diz, e ime­
diatamente o exército se embrenha pelas neves ao ritmo da Marse­
lliesa: Impossível, dizia êle a Molé, "é uma palavra cujo significado
é relativo; é o fantasma dos incapazes e o refúgio dos covardes."
Como lhe pedissem que graduasse um jovem oficial sem caráter,
responde : "Não faço meus generais com lôdo."
A vida de Lincoln me parece uma lição sobremodo eloqüente de
íôrça de vontade. Lenhador e moleiro até os vinte anos, aos vinte
(; cinco é advogado; aos quarenta, é membro do Congresso; aos
cinqüenta, Presidente dos Estados Unidos; aos cinqüenta e seis,
18 L. RIBOULET

morre assassinado. Sua firmeza derrubou sucessivamente todos os


obstáculos que se erguiam na sua rota: pobreza, ignorância, precon­
ceito, guerra, servidão, e entra na imortalidade pela porta gloriosa
do martírio.
É necessário querer e querer sempre. A capacidade no esfôrço
contínuo é a medida do valor dum homem. Victor Hugo escreveu
estas lindas palavras: "Os obstinados são os sublimes. Quase todo
o segrêdo dos grandes corações reside no vocábulo latino perseve­
rando." No aço dum machado estava gravada a seguinte sentença
que constitui vasto programa: Viam aut inveniam aut faciam: Ou
acharei ou abrirei o meu caminho.
Foch, dirigindo-se aos alunos da Escola Naval, recomendava-lhes
o trabalho intenso, fator essencial do valor pessoal: "É imprescindí­
vel trabalhar, trabalhar sempre para vos manterdes a par dos meios
que evoluem. Entrar na próxima guerra com os processos da última,
que utopia! Tereis então de improvisar soluções novas. Não esmoreçais
no trabalho. Os improvisos gerais no campo de batalha são o resul­
tado de meditações anteriores.
"Estudai com afinco a história, se assim a estudardes possuireis
algumas migalhas do que é essencial: a mentalidade dos homens."


• •

Qual será pois vossa atitude em face do dever ou de uma tarefa


escolar qualquer? Não digais: "Eu quisera", dizei: "Quero". "É por
um ato de vontade", diz Ruskin, "que se afirma a riqueza."
Quando tiverdes o hábito de despertar a vontade, não digais
"eu quero'', mas usai uma afirmação mais pura: "Trabalho, estudo,
sou aplicado, sou um ótimo aluno." Ainda que não acrediteis per­
feitamente, estas fórmulas muitas vêzes repetidas trarão, aos poucos,
as idéias que representam.
Guiai-vos logo por dois princípios simples, porém excelentes, que
nos d á Ollé-Laprune no seu belo livro Le Prix de la Vie:

O primeiro, é querer pouca coisa;


O segundo, é querer êste pouco a despeito de tudo.
RUMO À CULTURA 19

Querer pouca coisa!

Muitos moços não se contentam de querer pouco; julgam-se talha­


dos para levar de frente quantidade de estudos e de trabalhos. Caem
no defeito que tantos mestres experimentados combatem com tôdas as

fôrças: a dispersão. E o resultado não demora; dispersam a atenção,


esgotam-se em esforços sem energia precisa, habituam-se a meias reso­
luções fàcilmente formuladas e mais fàcilmente abandonadas; o seu
querer se distende, enfraquece e êles adquirem somente conhecimentos
superficiais.
Não os imiteis; qualquer coisa que façais, não abandoneis jamais
o assunto antes de o ter agarrado vigorosamente e por assim dizer
subjugado. Santo Inácio de Loiola costumava repetir que o que fax
uma só coisa de cada vez, e a faz bem, produz mais do que qualque1
outro que muito empreendr..
O grande segrêdo do sucesso foi sempre o de atacar as dificuldades
isoladamente. Hércules executou seus doze trabalhos um após outro;
vara abrir uma brecha nas muralhas da praça, concentra-se o fogo
no mesmo ponto; o modo de proceder em relacão ao estudo é idên­
tico. O importante é saber perfeitamente o que se quer e devotar­
se integralmentr..
Quantas horas desperdiçadas porque se não tinha um alvo precisot
Limitai-vos, pois, aos estudos que vos impõe o regulamento,
intérprete da vontad_e de Deus. Determinai bem o que pretendeis
estudar, examinai os melhores meios de o fazer com proveito, levando
em conta os minutos de que dispondr.s
Se o vosso ideal fôr rigorosamente determinado, ser-vos-á fáci1
evitar o flagelo da dispersão. Sereis então o homem de uma idéia,
e todos os vossos estudos convergirão para esta idéia à qual desejais
consagrar a vida.
Homem de uma idéia, tal se apresenta Ozanam. Vive com esta
idéia e com ela morre aos quarenta anos, extenuado pelo trabalho.
Seus amigos o convidam a poupar-se: "Não", responde, "tenho um
dever a cumprir, tenho que permanecer no meu pôsto; nêle morrerei
se necessário fôr."
Homem de uma idéia, tal foi ainda Brunetiere, fiel ao seu ideal
até o derradeiro instante. Bourget descreveu o labor intenso ao qual
10 L. RIBOULET

se dedicava na juventude, após um dia consagrado ao ensino: "Ac.


horas passavam, meia-noite repicava, duas, . quatro horas. Tão absor­
to andava que amiúde não percebia que a lâmpada declinara ante
os primeiros clarões da aurora. Descansava então. Quanto tempo?
Como é que um organismo de aspecto tão frágil resistia a tal excesso
de esfôrço mental ? "
Continuou até o fim esta vida extremamente laboriosa, multi­
plicando os artigos e os livros. Durante os últimos dois anos em
que luta contra a agonia, escreve as Conferências sôbre a Enciclo­
pédia, dois volumes: Balzac e São Vicente de Lérins, treze artigos,
dois capítulos da História da Literatura francesa clássica. Dirige a
Revue des deux �Mondes, o que lhe exige um labor enorme. Ao mes­
mo tempo prepara a 8.ª série dos Estudos críticos e um volume do
Discours de Combat.

Querer êste pouco a despeito de tudo!

O segundo princípio requer uma vontade firme e que não desanime


nunca. Um psicólogo arguto, Thomás, pôde dizer: "Não é a vontade
.em geral que se deve formar e fortalecer, mas sim a vontade aplicada
a tal ou qual fim definido."
Não basta começar bem, é necessário continuar até o fim. Nada
de grande se faz sem vigor e persistência de esfôrço. Certa pedagogia
pretende tirar ao trabalho tôdas as dificuldades. Não a tomeis a
"'>ério. .José de Maistre diz: "Não existem meios fáceis de aprender
coisas difíceis; o único método é fechar a porta, avisar que se está
ausente e trabalhar."
Nos primórdios da guerra de 1 914, o Gen. Hamilton ataca o
exército inimigo nos Dardanelos. Seu adversário, o Gen. Liman von
Sanders, não tem mais obuses, nem um só homem de reserva, e
sustenta a praça a despeito de tudo. Se Hamilton houvesse continuado
a luta mais um quarto de hora o adversário abandonava a partida.
M as o general inglês foi o primeiro a ceder.
Quando tiverdes dito "Quero'', não volteis atrás; uma derrota
aumentaria vossa fraqueza. Ficai firmes; se cederdes ao mais leve
mal-estar, nada conseguireis; um dia sofrereis de enxaqueca, no
outro, de reumatismo. Um dia será quente, o seguinte fr;o. O vento,
RUMO À CULTURA 21

a neve, a pressão atmosférica, os incômodos, as contradições, os


desalentos da vida, tudo serviria de pretexto para negligenciar a
tarefa. Prossegui vossa obra até seu completo acabamento.
Falando perante o monumento erigido em honra de Lesseps em
Port Said Eugênio Melchior de Vogue dizia: "Uma vontade!
Eis a definição dêste homem. Tudo fica dito após pronunciar esta
palavra. Concentrou sôbre uma idéia justa, a vontade exclusiva e
apaixonada que êle desenvolveu em todos os períodos da vida. Que
são os feitos de Hércules em comparação com as dificuldades de que
Lesseps triunfou? Eram inúmeras, pareciam invencíveis. Resistência
da matéria, resistências piores da ignorância e dos preconceitos, pâ­
nico dos capitais tímidos, ligas de interêsses contrários, fôrça de
inércia da parte de alguns, oposições violentas da parte de outros;
nada lhe pouparam. Prosseguia assim mesmo, arredava os maus
desígnios dos homrns da mesma forma que desentulhava a areia
dos fossos. As dificuldades volviam, o khamsin tornava :i trazer as
areias; não se perturbava, cavava sempre mais. Esta vontade infran­
gível não era nem dura, nem brutal; sabia amoldar-se, tornar-se
insinuante, pescadora de homens. E os homens o seguiam como que
fascina dos."
Perguntaram certa vez ao Marechal Foch qual seria o traço
<lominante de seu caráter. "Ora", respondeu, "creio que é a vontade.
Eu sei querer. Querer, querer energicamente, isto é tudo. Querer
supõe saber e implica querer."
Não esqueçais que nada se perde na vida psicológica. "Nossos
atos, ainda que insignificantes na aparência", diz Payot, "por pouco
que os repitamos, formam com as semanas, os meses, os anos, um total
enorme que se inscreve na memória sob a forma de hábitos inde­
léveis . . . Soberano e seguro do triunfo, o hábito procede de um modo
insidioso, sem pressa. Dir-se-ia que conhece a prodigiosa eficácia das
ações lentas indefinidamente repetidas. O primeiro ato, ainda que
penoso, uma vez executado, j á custa menos na repetição. À terceira
e quarta vez, o esfôrço diminui ainda e vai-se atenuando até desapa­
recer. Nem digo desaparecer . . . O ato custoso a princípio se torna
a pouco e pouco uma necessidade; e francamente desagradável no
início, é o seu abandono que vem agora a ser doloroso."
22 L. RIBOULET

• •

Assinalo um ponto importantíssimo: saber começar. Muitos moços


ignoram o que se chama o espírito de decisão. Concebem os mais belos
projetos possíveis; seus propósitos são perfeitos. Porém chegando a
hora de os executar, não têm coragem; a covardia vence e finalmente
o trabalho esmorece.
É numerosíssimo o rebanho dos indecisos; nutrem desígnios gran­
diosos; suas idéias são tão abundantes quanto as cstrêlas do céu.
Não sabem, porém, começar pelo comêço, humildemente, com fir­
meza e coragem; e permanecem eternos construtores de castelos na
lua.
Mais tarde, só sabem queixar-se: se isto me acontecera; se as
circunstâncias me houvessem favorecido; se tivesse tido tal pro­
fessor, etc. Raramente os encontrareis a tomar a única atitude que
lhes convém: bater no peito dizendo: Mea culpa.
N ão é menos importante saber recomeçar. Após esforços generosos
e constantes durante alguns dias, pouco a pouco, se não se cuidar,
a vontade cansa. Acha-se fastidioso e monótono retomar cada dia

idêntica tarefa. E então queremos tudo levar de roldão, contentando­


nos com uma honesta mediocridade. Que fazer para corrigir, para

reprimir tais movimentos de lassidão e de inconstância? Uma coisa


simples e fácil: renovar cada dia os bons propósitos e aferrar-se ao
trabalho com ardor igual. Fonsegrive dizia, de uma feita, estas pon­
derosas palavras aos alunos de um liceu de Paris: "Moços, sêde
perseverantes; não desanimeis nunca. Um cego que jamais descoro­
çoasse, chegaria a enfiar a linha numa agulha. A dificuldade n a
v i d a n ã o é fazer u m esfôrço, é fazer constantemente o mesmo
esfôrço. Querer fortemente, querer constantemente, é condição indis­
pensável do sucesso, é quase :1 condição suficiente."
Desconfiai pois da impaciência do sucesso. As repartições que
roncedem diplomas de invenção e3tão entulhadas de obras inaca­
badas; os que apresentaram tais trabalhos não tiveram a paciência
necessária para lhes dar a última mão que os tornaria perfeitos e
utilizáveis.
Ozanam dizia aos alunos do colégio Stanislas: "A posse d a verdadP.
RUMO À CULTURA 23

é exigente: requer absoluta probidade, é necessário resistir à pron­


tidão de espírito que não é senão preguiça disfarçada, que falseia os
fatos, apressa as aproximações e precipita as conclusões. É preciso
levantar questões, mergulhar nas obscuridades, desconfiar das luze:.
enganadoras, não poupar nem tempo nem fadiga. Então, da certeza
penosamente alcançada, resulta uma fôrça nova à qual nada resiste."
N ão é menos importante saber concluir. O Instituto Católico das
Artes e Ofícios de Lille tomou por lema o vocábulo: concluir. E a
canção dos estudantes assim explica a senha.

Concluir! Qual não é déste verbo a visão '


Tudo acabamos, pois nos apraz terminar.
Nada alvejamos .e queremos acertar
Tudo acabamos, mas nada com precisãnl

No entanto o fino, o ideal lavor é imorredouro;


O suor do passado é a glória do porvir.
A tarefa apressada afunda em sorvedouro,
O perfeito lavor jamais se há de sumir!

Há um par de anos, os possuidores de certo terreno mandaram


cavar um longo túnel em sua propriedade a fim de descobrir as
jazidas auríferas que se dizia conter. Após um labor considerável e
enormes despesas, não achando o ouro cobiçado, largaram a emprêsa.
Uma companhia comprou o terreno e mandou continuar as obras:
um metro mais adiante, achou ouro em abundância. Quantos alunos,
quantos homens chegam a um metro do sucesso e desanimam!
Quantos abandonam a corrida antes de atingir a meta! Alguns es­
forços a mais, e o êxito, a fortuna, a glória, talvez recompensassem
o labor desde longo tempo sustentado! Mas ai! a vontade fraquejou


• •

O maior m1m1go da vontade; é o sensualismo. Platão indicava


o perigo aos seus discípulos quando lhes dizia: "Libertai-vos dos
apetites sensuais; largai êste pêso que inclina o olhar do espírito
para tudo o que é vil."
24 L. RIBOULET

Um poeta contemporâneo, o Pe. Delaporte, encena o ilustre filó­


sofo sentado no cabo Súnio, diante das ondas iluminadas pelo sol
poente. Sua alma voa; os discípulos hauriram seu verbo inflamado
e se afastaram reconfortados. Um só permaneceu para ler no mais
íntimo da alma do mestre. :E:ste jovem efebo se sente atraído para
o infinito :

O maitre, tu l'as dit; dans les cavernes sombres,


Esclaves enchainés, que voyons-nous? . . . des ombres
Mais la réalité resplendit par delà.
Et depuis qu'à ta voix tout mon ciel s'étoila

Par delà les clartés d'A t tique ou d'lonie,


]e crois, j'aime, je veux la lumiere infinie;
Du vrai, du beau, du bien, je n'ai vu qu'un lambeau
Mais je suis fait pour voir le vrai, le bien, le beau.

Depois que Platão ouviu as aspirações desta alma enamorada


de ideal, responde com palavras sublimes em lábios de pagão: se1
puro e depois morrer!
Pureza e morte! duas idéias que não formam senão uma só.
A pureza do coração não será uma flor delicada que germina com a
morte de tôdas as aspirações baixas que arrastam o espírito e o
coração para a matéria? Urna vez quebrados os laços, a alma alça
o vôo natural para o belo e a verdade com ânimo e liberdade.
Que vontade possui o moço que se entrega ao egoísmo dos sen­
tidos? Pode ser sensível ao santo entusiasmo que a verdade suscita?
Se procura elevar-se, é com um pesar infinito onde brota a fraqueza:
as asas do gênio parecem quebradas. Se a alma ainda conserva amor
ao belo e à verdade, não sobra mais energia para realizar tão vaga
aspiração.
Os lagos situados sôbre as altitudes são notáveis pela limpidez
de suas águas. Sôbre a superfície argêntea, os raios do sol riscam
sulcos de ouro. Nas ondas as árvores refletem seus penachos de ver­
dura, os glaciares, seus cumes deslumbrantes. Até nas profundezas
se descobrem os cascalhos brancos e polidos semelhando pedras pre­
ciosas. f: a imagem da alma que o lôdo não embacia; tôdas as ins-
RuMo À CULTURA 25

pirações superiores a penetram, todos os grandes pensamentos a


fazem vibrar; é capaz de querer, de determinar-se, de prosseguir
através de tôdas as dificuldades, a tarefa empreendida, de abando­
r.ar-se a si mesma para entregar-se ao dever e a Deus. "Abandonar-se
a si mesmo ou fechar-se dentro de si", diz o Pe. Gratry, "eis todo o
problema, tôda a história, todo o drama da vida moral. É igualmente
a lei do progresso eterno: desprendei-vos de vós mesmos, subi, subi
sem parar!"

• •

Ammo, pois, amigos; fortalecei a vontade, tornai-a firme e cons­


tante. Após a conclusão do cabo submarino, festejou-se o emérito.
Ciro Field, de Nova York, organizador do magno empreendimento.
Aos brindes êle respondeu: "Senhores, faz pouco recebi um telegrama
da Irlanda e a pilha. que serviu à transmissão era do tamanho de
um dedal. Hoje, recebo uma carta de Colett, que escreve de Heart's
Content (Terranova ) . Ela diz: 'Mandei saudações ao Dr. Gould.
atualmente em Valentia ( Irlanda), utilizando uma pilha formada
de uma cápsula de fuzil n a qual derramei uma gôta de líquido do.
tamanho de uma lágrima'." Não h á nisso um símbolo do poder da
vontade? Não é ela a fonte suprema da energia, a faísca que põe
em atividade os dons do espírito? Fortalecei-a sempre mais pelo.
trabalho de cada dia, iluminai-a; mostrai-lhe o bem que é necessá­
rio praticar, e abandonai-vos à sua ação benéfica; ela elevará, eno­
brecerá e transfigurará o vosso porvir.
Capítulo 111

TENDE NO TRABALHO UMA CONSTÂNCIA


A TôDA PROVA

No capítulo precedente, dei-vos duas regras de aplicação fácil e

das quais apreciastes, sem dúvida, a simplicidade e fecundidade:

Querer pouca coisa,


Querer éste pouco a despeito de tudo.

Eu vos preveni, porém, contra a mobilidade e a inconstância de


vossa natureza. A boa vontade não falta; o que falta é recomeçar
�om ardor sempre renovado. "A maioria dos homens", diz José de
Maistre, "é antes feita para um grande esfôrço do que para uma
longa perseverança." E no entanto, é a perseverança que tem valor.
Quisera hoje, por uma série de conselhos, fortalecer em vós o desejo
de trabalhar com firmeza incansável.

Confiai antes num esfôrço continuado do que na sorte.

O que mais custa não é começar bem, é continuar bem, renovar


cada dia os bons propósitos. Após algumas tentativas generosas
muitos se abandonam à sua boa estrêla, a certa predestinação qu€
fêz que tudo lhes sucedesse bem até êste dia sem grande esfôrço
pessoal.
"Nada de pior para levarmos a cabo uma emprêsa do que a fé
na sorte ou na predestinação", diz o humorista Max O'Rell. Não deis
crédito à sorte. Erguei-vos e crede em vós mesmos. Abri passa­
gem através dos obstáculos e não permitais que ninguém vos desvie
<la rota que conduz à meta alvej ada. Imitai Carlos XII da Suécia
Napoleão aluno da Escola Militar, em 1 783, por Charlet
(FOTO D. N.)
Ozanam Montalembert

Lamartine Sainte-Bcuve
RUMO À CULTURA 27

que, olhando um dia no mapa os novos territórios que acabava de


conquistar, alvitrou : "Deus mos deu, venha o diabo arrebatá-los! "
" O talento é inútil, a menos que seja o servidor dócil d o caráter.
Com caráter, ainda mesmo sem talento, podeis ter nome. Porém com
talento e caráter, conquistareis o mundo."
Certo inglês escrevia a Max O'Rell que voltava de uma viagem
pelas colônias inglêsas: "Meu filho é moço, sóbrio, inteligente e
corajoso, e tenho um pequeno capital. Tem êle probabilidades de
ser bem sucedido nos antípodas ? " "Senhor", respondeu Max O' Reli,
"um moço que possui as qualidades referidas não precisa alcançar
os antípodas. Há de brilhar em tôda a parte, até no seu próprio país."
A constância no esfôrço, eis o ponto essencial. Se quiserdes ser
alguém, não façais como o grande número dos que andam pelos
atalhos abertos, que se acomodam com o princípio do menor esfôrço,
e ordenam uma vida que dispensa reflexão, vontade e ação. Nãc:.
procedais aos saltos e por caprichos; acostumai-vos ao esfôrço mo­
derado mas constante que é o segrêdo do êxito.
Para auferir da inteligência tudo o que pode dar, é necessário
dar-lhe cunho pessoal. O apólogo seguinte que João Batista Dumas
folgava em citar, é sempre novo: "Certo viajor encontra, à beira de
um poço, um menino debulhado em lágrimas e gritando de sêde;
admirado de ver-lhe entre as mãos um balde vazio munido de uma
corda, diz-lhe: 'Por que não forcejas por encher o teu balde, o
poço porventura não tem águ a ? ' - 'O poço tem água, porém a pro­
fundidade é demasiada' - 'A tua corda é que é curta demais, pateta;
procura outra mais comprida e beberás à saciedade'."
A história de Santo Isidoro é clássica. Seu irmão Leandro, que
lhe dava lições, o obrigava a trabalhar rudemente, mostrando-se
severo. Isidoro fugiu da casa paterna, e cansado de vaguear pelos
campos, sentou-se junto a um poço. A alvenaria estava profunda­
mente sulcada, o rapaz pensativo procura qual seria a causa. Um:i
senhora lhe explicou de que modo as gotas de água conseguem gastar
a rocha, com maior razão o roçar d a corda. Esta elucidação foi para
o rapaz um raio de luz. Dêsse dia em diante, entrou a trabalhar
resolutamente e tornou-se uma das glórias do clero espanhol.
Se é que acreditastes que os homens célebres somente trabalham
nas horas de inspiração, desenganai-vos. A inspiração, fazem-na
28 L . RrnoULET

surgir por um trabalho retomado sempre à mesma hora, pelo esfôrço


tornado hábito para o corpo e o espírito. "Para que a inspiração
seja fiel", confiava Roberto de Flers a um amigo, "é necessário
esforçar-se."
"Para conservar o talento de escrever, nota Doudan, é preciso
trabalhar regularmente, ainda mesmo nos dias em que se não sente
gôsto. Chateaubriand confessava que trabalhava um número fixo
de horas qualquer que fôsse a disposição de seu espírito. Mergulha­
va qas brenhas de suas idéias e afirmava que1 antes do término d at>
horas marcadas, tudo lhe sucedia bem. É que provàvelmente, quando
se espera pela inspiração, esta não aparece; é a tarefa ingrata e
inútil na aparência que traz êsses instantes favoráveis em que as
idéias revestem uma forma acabada e um colorido verdadeiro."
Quando Barrés empreendia uma obra, concentrava nela tôda a
atenção. Tôdas as noites, depunha perto àa cama lápis e papel; à
medida que surgiam idéias novas durante as insônias, assentava-as
cuidadosamente.
Na câmara dos deputados, caso lhe aflorasse uma idéia, rabis­
cava-a imediatamente num pedaço de papel ou num envelope. Tra­
zia, por vêzes, um apanhado considerável dos passeios em Paris,
na Provença ou na Lorena. Uma multidão de idéias e impressões
se formavam nêle, totalmente estranhas à conversa que entabulava
com o companheiro de viagem. "Isto é o meu dom", dizia.
Os irmãos Tharaud, que viveram na sua intimidade, acrescen­
tam: "Essas frases de noite, essas frases de quarto, essas frases de
passeio, êsses instantes de iluminação e também de aridez, eram
o sapatear do artista sôbre o assunto, os círculos do pássaro que
captura a prêsa."

Segui o conselho de Boileau: "apressai-vos com lentidão".

O talento é amiúde um fator secundário no sucesso. Convencemo­


nos dêste fato ao ler a vida dos homens célebres. Todos, poetas,
oradores, historiadores, filósofos, homens de Estado, foram sobre­
tudo trabalhadores incansáveis, mais viris na labuta que os jorna­
leiros e operários; consumiam-se nos seus livros e afazeres como a
lâmpada que presidia às suas vigílias. Foram vistos trabalhar doze.
RUMO À CULTURA 29

qua torze, dezesseis horas por dia durante largos anos. Antes da
aurora levantavam; no verão, madrugavam mais d.o que a cotovia
e quando o ceifador ia colhêr paveias, já tinham amontoado tesouros.
Eis o que escreve um literato canadense-francês Artur Buies:
"Desde muito tempo estava sentado sôbre um tronco de árvore der­
rubada, quando minha atenção foi subitamente atraída por um som
misterioso, persistente, tenaz, semelhante ao ataque furioso e con­
tínuo de um ratinho de encontro a uma tênue fôlha de madeira que
o separasse àe um queijo atraente. Prestei ouvidos e reconheci um
vC'.rme de madeira que mora no cerne das mais belas árvores, as
corrói noite e dia, e acaba por perfurá-las àe lado a lado; abismei-mi!
em profundas reflexões sôbre o trabalho dêste ser solitário, que
cumpre sem tréguas a sua única função, encarcerado que está por
tôda a vida num tronco espêsso e resistente que, no entanto, é ven­
cido; e assim procura êle saída para a luz, como tudo o que vive,
como tudo o que respira. Eu meditava sôbre a onipotência da per­
severança, virtude mágica contida em trabalho pouco apreciável,
pouco perceptível, porém incessantemente dirigido para o mesmo
alvo."
A natureza nos dá, nesta altura, uma lição proveitosa. A precipi­
tação, a impaciência do êxito, não produzem bons resultados. Gou­
nod escrevia a Bizet: "Não tenha pressa. Tudo chegará na hora
oportuna. Calma sobretudo, porque a precipitação mata qualquer
empreendimento. O espírito contrai-se, irrita-se e um tal estado de
febre não traz, n a maioria das vêzes, senão o descontentamento do
dia seguinte que obriga a recomeçar o trabalho d a véspera."
Piutarco deplora a precipitação no estudo : "Conheço pais", es­
creve, "que são em verdade os inimigos de seus filhos. Ambiciosos
de progressos rápidos e de superioridade extraordinária, sobrecarre­
gam-nos com um esfôrço cujo pêso os acabrunha, dando em resultado
o desânimo que torna as ciências odiosas."
Plutarco acharia hoje êsse defeito bastante agravado. Estuda-se
com precipitação febril para acabar ele vez com os livros. Existe
verdadeira mania de tudo abreviar, de tudo simplificar. Percorre-se
um programa com rapidez do raio; expõe-se tôda a ciência em qua­
dros sinópticos. Tal ou qual língua se domina em 20, 15, 12 lições
contadas nos dedos. Queremos dobrar todos os obstáculos, nivelar
30 L. RrnouLET

todos os caminhos pedregosos. E o pior é que, alunos que têm estu­


dado com esta rapidez vertiginosa julgam possuir sólidos conheci­
mentos.
Chamfort já o notava, no século XVIII: "Hoje, um pintor apronta
um retrato em sete minutes; um outro ensina a arte da pintura em
três dias; um terceiro ensina o inglês em quatro lições. Querem
lecionar oito línguas com gravuras que representam as coisas com
os nomes escritos em oito línguas. Enfim, se se pudesse aglomerar
os prazeres, os sentimentos ou as idéias da vida inteira e reuni-los
no espaço de vinte e quatro horas, far-se-ia; e depois se minis­
traria a pílula acrescentando: adeus, passe bem."
Voltaire gastou seis dias para compor a tragédia Olímpia. "É
obra de seis dias - escrevia a um amigo ao mandar-lhe um exemplar.
'O autor n ão devia descansar no sétimo', respondeu o amigo. -
Por isso se arrependeu" - retrucou Voltaire.
Nada que seja perfeito se resolve depressa: é um dado da expe­
riência. O fruto mais saboroso é o que amadurece aos poucos. O
tempo e a paciência transformam a fôlha da amoreira em sêda, reza
um provérbio chinês. A aquisição do saber é questão de tempo; é
de bom alvitre saber esperar, n ão porém cruzando os braços.
Sim, apressai-vos com lentidão. A torrente furiosa que se des­
penha carrega uma porção mínima de terreno. "Pelo contrário",
diz Payot, "a ação lenta das geadas e das chuvas, a marcha insensível
dos glaciares, desagrega cada ano, aos poucos, as paredes rochosas
e empurra para os vales massas prodigiosas de aluviões. Tal ou
qual torrente que arrasta calhaus desgasta cada di.a o granito sôbre
o qual desliza e, com os séculos, chega a cavar na rocha boqueirões
de tamanho enorme. Assim se dá com as obras humanas; progridem
com o acúmulo de esforços imperceptíveis que encarados em si mes­
mos desaparecem dentro da obra finalizada."
"O gênio é uma longa paciência", dizia Buffon. É a linguagem
da experiência. "Eu passava de doze a quatorze horas por dia no
estudo; era um gôzo para mim. A glória vem devagar, porém nunca
falha." Quando se lhe perguntava como havia realizado suas obras
respondia: "Passando quarenta anos de minha vida na escrivaninha."
RUMO À CULTURA 31

e onsagrai-vos integralmente ao trabalho e não interrompais os


estudos a não ser por razões ponderosas.

O meio de avantaj ar-se na ciência, é concentrar demorada­


mente o espírito num assunto apenas. Esta aplicação intensa supõe
naturalmente um plano fixo que é para a vontade "o que as artérias
são para o sangue, o que os vasos são para as árvores, isto é, os
canais que difundem a vida e a espalham sem deixar perder uma
gôta".
Thierry, tendo idealizado o plano de sua obra famosa, a Con­
quista da Inglaterra pelos Normandos, pôs mãos à obra com energia
proporcionada às dificuldades da emprêsa. "No coração do inverno",
diz êle, "fazia intérminas visitas às galerias geladas da Rua Richelieu,
e mais tarde, sob os ardores do estio, corria, num só dia, de Santa
Genoveva ao Arsenal, do Arsenal ao Instituto, cuja biblioteca, por
um favor de exceção, permanecia aberta até às cinco. Nesta espécie
de êxtase que me absorvia interiormente enquanto minha mão fo­
lheava os volumes ou tomava notas, não tinha consciência do que
se passava à roda de mim. A mesa em que eu escrevia enchia-se e
se esvaziava; os empregados da biblioteca e os curiosos iam e vinha111
pela sala, eu nada ouvia, nada via, a não ser as aparições evocadas
em mim pela leitura."
Littré concentrou, durante largos anos, tôdas as suas faculdades
à preparação do seu Dicionário. Empreendeu, aos 62 anos, a obra
que exigiria os conhecimentos de todos os membros da Academia
durante uma geração, porque tal obra não é somente um dicionário
da linguagem; encerra o histórico de cada vocábulo, a nomenclatura,
a definição, a pronúncia, o significado, os sinônimos, as citações dos
grandes escritores. Jamais um só homem produziu tamanha soma
de trabalho. A obra foi começada em 1863 e os quatro volumes
somando um total de 3 000 páginas de três colunas viram a luz em
1 878. Ainda ficava para redigir um suplemento de umas 400 páginas
cheias de erudição que êle completou a despeito de uma interrupção
momentânea causada pela doença.
Alberto de Mun nos legou um dos requisitos mais importantes
dos seus sucessos oratórios: o trabalho vigoroso e constante. "A
primavera de 1874 apresentou-me um sem-número de obrigações
32 L. RrnouLET

importantíssimas'', escreve no seu livro Minha vocação social. "Os


discursos foram-se multiplicando em Paris e na província. Aprendi
então que é impossível deixar a palavra pública ao impulso do
coração e aos riscos do improviso.
"A casa da Rua des Postes foi o asilo que me acolheu, distante
do ruído e das distrações, ao abrigo das visitas e reuniões, com o fim
de exercitar-me à ginástica do espírito. Entrava cedo de madrugada,
e durante quatro ou cinco horas trabalhava com furor, lendo, no­
tando e escrevendo.
"Ler, âe lápis na mão, eis o primeiro requisito oratório. Após
isso, é necessário compor. O material está aí disperso; como escolher?
Em que ordem dispô-lo? As idéias chegam ofegantes, assediam o
cérebro; como ordená-las? Qual deve ser a exposição valorizadora?
É um combate que se fere em noite avançada; de súbito, quando
o sol vence as brumas, a inspiração surge, dissipa a escuridão, ilu­
mina o assunto. O discurso toma vulto, mas vulto fictício, fugidio
e que se deve agarrar, estreitar com vigor, até que num como delírio

do espírito, o arcabouço das idéias se fixa, luminoso, num ponto


culminante sôbre o qual em breve se deverá elevar o auditório
vencido pelo pêso da argumentação. Tendo então os nervos retesados
por êste grande esfôrço, pode o orador aparecer: está preparado."
Que belos exemplos poderia acrescentar tratando da concentra­
ção do espírito num único assunto. Limitar-me-ei aos três seguintes.
Quando se celebrou o jubileu de Pasteur, a 27 de dezembro de
1 892, o ministro Carlos Dupuy louvava nestes têrmos o ilust�e
sábio: "Quando se examina a vossa obra, fica-se desde logo admi­
rando as qualidades de trabalho, de paciência, de tenacidade que
atesta. Tivestes a faculdade de poder concentrar as idéias sôbre um
assunto e nêle meditastes durante dias, meses, anos; faculdade so­
berana que vossa face revela; poder criador de que a posteridade
lerá a expressão sôbre êste bronze em que o artista fixou com os
vossos traços, uma parte da vossa alma."
Dom Pitra, recordando os entusiasmos de estudante, nos reve­
lou como se chega a ser um dos maiores eruditos do seu tempo:
"Meus dias em Paris começavam às quatro horas da manhã, e ter­
minavam às mesmas horas. Eis três dias que transfiro, como nos
belos dias de outrora, o descanso e a comida." Eleito Cardeal, o
RuMo À CULTURA 33

s ábio beneditino s e estendia, vestido, num sofá e assim tomava seu


curto descanso.
Quando Géricault concluiu o esbôço do Radeau de la Méduse,
entendeu que devia, por uma temporada, romper de vez com v
mundo, e para êsse fim usou de um estratagema original. Mandou
o cabeleireiro raspar-lhe a metade da cabeça, das suíças, e da barba.
In terditou-se qualquer saída durante meses, continuando a crescer­
lhe a barba e o cabelo não cortados. Quando o equilíbrio mais ou
menos se restabeleceu existia Medusa.
Desconfiai das armadilhas da preguiça que vos leva a interrom­
per a tarefa iniciada. O Pe. Sertillanges apontou algumas: "Esperan­
do um têrmo que não nos ocorre, garatuja-se à margem da fôlha, e
teima-se em terminar o rabisco. Abrindo o dicionário, assalta-nos
uma curiosidade verbal, depois uma segunda, e assim nos vamos
emaranhando numa sarça. Os olhos deparam com um objeto; ides
endireitá-lo e o fútil passatempo vos retém um quarto de hora.
Eis que passa alguém, um amigo que mora no quarto contíguo; o
telefone vos tenta . . . ou então, é o jornal que chega; vosso olhar
para êle se dirige e a atenção se dispersa."
Eis um outro esquema tirado do natural por Gâche. Trata-se
de alunos que executam seus temas em casa. "Um dêles se instala,
escreve seis linhas e corre a atiçar o fogo, a aborrecer o gato; o outro
folheando o dicionário, cantarola; um terceiro não se ajeita a ler
sem bater tambor sôbre a mesa ou balançar a cadeira; caso prepare
um tema de francês, é no teto espiando as evoluções das môscas que
êle profunda o assunto. Os pais dizem depois ao professor que deu
nota baixa: 'No entanto, meu filho passou tôda a quinta-feira cur­
vado sôbre o tema.' Não, êle passou-a no encalço das môscas e do
gato; o dever mal teve alguns minutos de meia atenção! Em meia
hora de trabalho intenso, o rapaz houvera aproveitado muito mais
do que o fêz nessas perigosas horas dispersas."
Pode deduzir-se que a mais forte tentação consiste em largar o
trabalho sério para consagrar o tempo ao jôgo ou a leituras mais
divertidas. Não há ninguém a quem uma leitura recreativa não
seja oportuna em certos momentos. Porém cuidado! É escorregadiça
a enco:.tal Em breve o espírito dificilmente suporta o alimento só­
lido. Perde-se o gôsto pelo estudo: um devorador de biblioteca a
34 L. RrnoULET

mais, um bom aluno a menos. O ledor pode ter armazenado muito,


discorre desembaraçadamente sôbre a chuva, o bom tempo, os acon­
tecimentos do dia e mil outros assuntos; talvez disponha de uma
coleção de facécias, de adivinhas, de humorismos, de chistes. Não
procureis nêle a profundidade : tudo está em superfície; seu espírito
é uma terra estéril onde brotam de quando em quando algumas
flores efêmeras.

Sujeitai-vos invariàvelmente ao regulamento.

Os inconstantes não sabem sujeitar-se a normas; não os imiteis.


Fazei cada dia, à mesma hora, o mesmo trabalho. O trabalho inter­
mitente e aos arranques não leva ao êxito.
O Pe. Lecanuet revela que aos treze anos, Montalembert fre­
qüentava cursos adiantadíssimos: conferências da Sociedade dos bons
Estudos, discursos de Berryer, conferências de Rio sôbre a Arte
cristã. Rio dizia mais tarde: "Quando o encontrei pela primeira vez,
contava êle treze anos e não fiquei menos admirado de seus conhe­
cimentos precoces do que da sua impaciência em adquirir novos."
Aos quinze anos, Montalembert estava possuído de verdadeira febre
pelo trabalho. Lia grande quantidade de livros, transcrevia as mais
belas páginas, notava suas impressões e apreciações. E para não
perder nenhum minuto, seguia invariàvelmente o regulament'b. Eis
o que ideara durante os estudos filosóficos no colégio Santa Bárbara:
Levantar, 4,30 horas. Ganhando cinco minutos tôdas as manhãs
sôbre a toilette, traduzira, no final do ano, as obras completas de
Epicteto. Das 5 às 6 horas, alterna entre o estudo da filosofia grega
em Xenofonte e a história da Alemanha de Pfeffel. As 6 horas, após
breve intervalo consagrado a um poeta, redige o tema de matemá­
tica. Às 7,30 café e recreio com um condiscípulo. Das 8 às 10 horas,
aula de matemática, seguida de meia hora de recreio. Das 10,30 às
12,30 horas, aula de física. Às 12,45 horas, aula de química duas vêzes
por semana, na têrça e na sexta; nos demais dias, recreio passado
com um amigo. Das 2 às 4,30 horas, aula de filosofia. Das 5 às 6,
leitura de obras de filosofia. Das 6 às 7,30 horas, tema de filosofia.
Às 7,30 horas, recreio ou prolongação do estudo no quarto. Às 8,30
horas, jantar e oração. As 9 horas, o jovem colegial entra no quarto,
RuMo · À CULTURA 35

lê algum poeta grego o u latino, depois estuda a história grega em


Tucídides ou Xenofonte até às 10 horas; finalmente, até às 11 horas
é a vez da história da Alemanha em Pfeffel ou em Schiller. "Um tal
programa, escrupulosamente praticado", acrescenta o biógrafo, "dis­
pensa todo e qualquer comentário."
Eis outro gênero de fidelidade ao programa. O grande pianista
Henselt tinha mão pesada e pouco elástica. Combateu êstes senões
por estudos regulares e enérgicos, executáveis somente por mãos
grandes e bem feitas. Banhava assiduamente as mãos em azeite
quente. E o maior entre os maiores, Liszt, dizia de Henselt: "Se
quisesse algum dia tocar minha fantasia sôbre Lúcia, assim como a
executa Adolfo Henselt, deveria estudá-la durante três anos."
Sujeitai-vos pois ao regulamento com espírito de teimosia. Obe­
decei-lhe invariàvelmente e verificareis com grande satisfação os.
resultados maravilhosos da perseverança.

Não vos deixeis iludir por pequenos triunfos.

Quando acertastes um trabalho, uma composição, é a Providência


que vos propiciou tal sucesso para vos animar, isto é, vos convidar
a enfrentar novas dificuldades. Não é suficiente começar bem, e
continuar bem; é necessário lutar até o fim para receber a coroa.
Na marcha vitoriosa sôbre Roma, os Cartagineses fizeram mal
em acampar, e o êxito final de suas armas ficou definitivamente
comprometido.
Não pareis nunca enquanto se não finalizar a vossa tarefa!
Excelsior! Sempre mais alto! Seja vossa divisa. Neste ponto, não
indagueis qual seja o procedimento dos demais. Tende convicções
firmes, nítidas. Tende sobretudo horror à mediocridade de que Hello
aponta os caracteres. "O homem medíocre", diz êle, "é, no mundo
literário, o que se chama na ordem social o homem felizardo. Os
sucessos fáceis são seu apanágio. Anda à garupa das circunstâncias;
espreita as ocasiões; e depois disso o êxito é dez vêzes mais medío­
cre do que antes. Enquanto o homem superior sente interiormente
a sua fôrça, e sente-a sobretudo quando os demais a não experimen­
tam; 0 homem medíocre se julgaria tolo se dêle fizessem tal con­
ceito, e dêste modo encontra ousadia nos louvores que lhe dão; a
36 L . RrnouLET

sua mediocridade aumenta em razão da pouca importância que


merece."
lngres não se iiudiu com os primeiros êxitos. Jamais produziu
-0bras que não fôssem perfeitas. Ainda nos anos de penúria, de pri­
vações e de desgostos importunos, nunca se afastou de seus princí­
pios elevados. "Sou inflexível e incapaz de qualquer complacência
pelo mau gôsto", escrevia. Anos depois acrescentava: "O desejo do
lucro nunca prejudicou o perfeito acabamento de meus quadros."
Le Verrier considerava os sucessos como excitações ao trabalho
-e degraus para atingir os cumes. Deixou uma obra gigantesca. O

resumo de seus trabalhos de mecânica celeste abrange nada menos


.de quatorze volumes in-quarto da coleção das Memórias do Observa­
tório. Empreendeu a obra considerável da reobservação de 48 000
-estrêlas da História celeste de Lagrange. Assentou a história passada
e futura dos cometas. Tornou a fazer a teoria dos movimentos de

todos os planêtas, trabalho hercúleo, onde a teoria do sol exigiu


doze volumes in-fólio de cálculos os quais se estendem até o ano
3 850; a posteridade pode viver ainda por 2000 anos de seus trabalhos.

-Quando dispondes somente de alguns minutos, não digais: não


vale a pena começar.

Já vos falei do bom uso das menores parcelas do tempo. Deixai


que dêle trate novamente sob o ponto de vista da constância.
Quantos minutos desperdiçados sob o pretexto de que n ão valia a
pena começar! Quantos esplêndidos resultados se teriam obtido se
fôssem utilizados!
Conheci um estudante que, dispondo cada dia de três ou quatro
minutos, os consagrava invariàvelmente à leitura de uma página do
Pequeno Larousse ilustrado. Ao cabo de alguns anos, podia êle
.desafiar os camaradas a que achassem um vocábulo cujo sentido
ignorasse.
Conheci outro que, em menos de um ano, decorou de ponta a
ponta o Jardim das raízes gregas, utilizando os cinco minutos de
interrupção das aulas da manhã. Após isso, atacou com igual êxito
o Jardim das raízes latinas.

Não desconheceis, sem dúvida, a história de Aguesseau. Em


casa o almôço não estava nunca preparado à hora fixa e êle devia
RUMO À CULTURA 37

cada dia esperar quinze o u vinte minutos. Resolveu utilizar judi­


ciosamente êsse tempo. Quinze anos após, ofereceu à Sra. Aguesseau
três volumes in-quarto; fruto dos minutos de cada dia preciosamente
utilizados.
Por princípio, e com o fim de fortalecer em vós a constância,
não deixeis perder nem um só dos minutos preciosos de que dispondes.
Aproveitai-os, como vo-lo diz o Pe. Sertillanges, para profundar
uma idéia que vos passou pelo espírito sem deixar um sulco nítido,
para consultar no dicionário um vocábulo ou uma expressão, para
dar a última mão a algum trabalho escrito, assentar notas, classificar
documentos.

L utai contra as impressões de cansaço aparente.

Um dos ardis da preguiça contra o qual vos previno é o cansaço


aparente. Todos os estudantes experimentam sensações de mal-estar e
de cansaço tanto no espírito como no corpo. Sêde enérgicos; não vos
deixeis vencer por esta espécie de torpor. Sacudi vigorosamente o es­
pírito e assim êsse não reaparecerá. Se, pelo contrário, cederdes a êle o
fenômeno se produzirá mais vêzes e custar-vos-á dominá-lo. Dou mais
uma vez a palavra ao Pe. Sertillanges: "Ao iniciardes uma excursão,
freqüentemente o primeiro morro vos encontra ofegante e vagaroso;
a lassidão se apodera de vós, e de bom grado voltaríeis para casa.
Assim se dá com o estudo. A primeira sensação não deve ser obede­
cida; é mister avançar, forçar a expansão da energia. Aos poucor
as engrenagens funcionam, adaptamo-nos e um período de entusias­
mo pode suceder à inércia mortal."
Voltarei ao assunto quando tratar da luta contra as dificuldades.
Não vos deixeis abater por qualquer leve incômodo; guardai o do­
mínio de vós mesmos. Quando sondamos o trabalho prodigioso exe­
cutado por enfermos, valetudinários e doentes, um certo rubor sobe­
nos à fronte ao verificarmos a nossa frouxidão.
Pode-se dizer que o grande historiador Fustel de Coulanges teve
morte heróica. Acabado pela doença, dedicava nada menos de oito
a dez horas por dia ao trabalho. Uma crise sobreveio que alarmou
sua família. Deveria cingir-se a um regime mais conveniente. Mas,
pelo contrário, foi mais tenaz no trabalho. Foi passar dois invernos
38 L. RrnouLET

consecutivos em Cannes e Arcachon lembrando-se de levar consigo.


livros e notas a fim de terminar um volume de cada vez.
Ao regressar do Sul, em abril de 1889, seus dias eram visivelmente
contados. Instalou-se na casa de campo que possuía em Massy, e
de então em diante não largou o leito, prosseguindo assim mesmo
no trabalho.

Não abandoneis nunca o método de trabalho cuja eficácia veri­


ficastes.

Nunca será demasiado insistir sôbre a importância de um bom mé­


todo de trabalho. Descartes incide em êrro, sem dúvida, dizendo que
o método estabelece a diferença entre os espíritos: a experiência prova
que há espíritos desiguais em fôrça e penetração. É verdade, porém,
que o progresso das ciências está ligado aos métodos; não menos ver­
dade é que os estudos sem ordem "perturbam as luzes naturais e
cegam o espírito; quem quer que se acostume a andar nas trevas
enfraquece de tal modo a vista que não pode mais suportar o claro
dia". ( DESCARTES)
Com método impróprio o espírito se impõe fadigas inúteis; às
vêzes se extravia. E quando se praticou dt>sde a juventude tal mé­
todo dificilmente se perde.
Não é necessário descobrir métodos; vossos mestres vos dão tôdas
as diretivas necessárias para alcançar êxito. Porém não sejais dêsses
espíritos originais que julgam dar provas de superioridade de espírito
agindo a seu talante, isto é, ao avêsso do que ouvem. A experiência
demonstra que os alunos inteligentes são sempre os mais dóceis.
Logo que um bom método vos é apontado, adotai-o; fazei dêle
um hábito pela aplicação imediata, seguindo nisso a regra de Bain:
"Não perdoeis nunca uma infração enquanto o hábito novo não fôr
profundamente enraizado na vossa vi da; sucederia com a vontade
o que acontece ao novêlo de fio que se deixa cair; desenrola-se todo
e o serviço está por recomeçar."
Se fordes levado à impuljividade e à incoerência, multiplicai os
esforços para a modificação de vosso caráter. O tipo impulsivo está
à mercê d as impressõe!l que se sucedem. Seu espírito acha-se em
RuMo À CuLTURA 39

estado d e equilíbrio instável. A vontade excede-se d e tal forma que


não consegue obrigar-se ao esfôrço constante.
O tipo incoerente não se lhe avantaja muito. Faltam-lhe mor­
mente firmeza e constância. Assemelha-se ao ator Pantalone da
comédia italiana, que aparece na cena trazendo debaixo do óraço
dois enormes maços de papel. "Que levas na mão direita, diz o inter­
locutor? - Ordens, responde Pantalone. - E na mão esquerda?
- Contra-ordens."
Alguns fazem mais caso do método que do trabalho; e quando o
sucesso não surge imediatamente, é que o método não serve, aban­
donando-se então ao capricho e à fantasia.
Não os imiteis. Prossegui no trabalho com obstinação e tenaci­
dade. Há uma obstinação, que é boa e que se chama perseverança.
O Eng.0 Jorge Claude, em conferência retumbante, cita o caso do
ilustre Taylor que, aferrando-se ao problema dos aços rápidos, co­
meçou por estabelecer que a questão dependia de doze variáveis.
"'Então, trabalhando com uma só variável de cada vez, Taylor em­
;ireendeu experiências que perduraram vinte e cinco anos. Vinte e
cinco anos, é um arrendamento! No entanto, quando se faz uma
magnífica descoberta, uma invenção que revoluciona tôdas as con­
dições mecânicas do trabalho, a ninguém assiste o direito de queixa."
Em outra conferência, o mesmo sábio faz o elogio da tenacidade.
"É bom lembrar", diz, "que uma das qualidades mestras do investi­
gador é a perseverança, perseverança selvagem, filha da obstinação
e irmã d a pertinácia.

"Porque se é verdade que os pretextos de inventar são numerosís­


simos e que muitas vêzes comportam solução fácil, enganar-vos­
íamos se não fôsse acrescentado que não haveis de achar logo a
.solução, que as decepções, os homens e as coisas vos farão barreira;
e ainda que o alvo pareça próximo, ser-vos-á necessário, para alcan­
çá-lo, mais noites em claro do que se julga. Sim, os instantes deses­
peradores cavam uma brecha terrível na vida do pesquisador, e
para que haja compensação é mister que sejam vivíssimas as alegrias
do êxito."
40 L. RrnouLET

Fortalecei vossa coragem pela oração e pela visão da meta a

atingir.

Voltarei a falar da oração; o estudante cnstao não pode deixar


de pedir o auxílio de Deus para o seu trabalho. Mais do que isso,
deve tornar o seu labor uma oração contínua.
Seja o vosso primeiro pensamento do dia para Deus. Dai-Lhe o
coração, ofertai-Lhe as ações, pedi-Lhe luzes. Fazei um ato de fé à
verdade, um ato de esperança à luz celeste, um ato de amor aos
fatos já conhecidos.
Ollé-Laprune assim fazia. Antes de proferir um discurso, escreve
no caderno Íntimo: "Passarei o dia no recolhimento; tornarei a ver
êste discurso em vossa presença, ó meu Deus; proferi-lo-ei esta
noite por Vós, e se fôr acolhido com entusiasmo, defender-me-eis
contra a vaidade, o veneno corruptor do bem."
Há momentos na vida em que sentimos a coragem fraquejar e as
energias diminuírem. Depois da oração, o melhor meio de animar-se,
é a representação vívida do ideal vislumbrado, dos resultados que
se querem obter e dos meios de que nos valemos até o presente.
E mister esperar horas difíceis e não espantar-se demais quando
se apresentam. E necessário sobretudo não se fixar nelas, mas dis­
trair-se e mergulhar novamente no trabalho com mais ardor ainda.
E nessas ocasiões que se deve repetir um "quero" enérgico, dizer-se
que somente alcançará a meta o que jamais fraqueja, e caminha
com os olhos constantemente fixos no ideal entrevisto, empalide­
cendo à luz da lâmpada e desprezando os vãos prazeres em que se
compra2'l o vulgo.

Enfim perseverai no trabalho até a conclusão final da obra em­


preendida.

A perseverança ao trabalho dará a cada estudo, a cada


tarefa todos os cuidados necessários para chegar ao remate que os
consagra. Tomai desde agora êste hábito: acompanhar-vos-á tôda
a vida e vos incutirá horror ao mais-ou-menos.
Nada confra�ge mais o coração do que um moço capaz de gran­
des empreendimentos e que somente produz trabalhos negligenciados.
RUMO À CULTURA 41

"Um amigo'', diz certo autor, "me ofereceu, de uma feita. um


bloco de papéis. Eram trabalhos de algum erudito que tratara inú­
meros assuntos, nada olvidando: 'Examinai estas fôlhas', disse-me
êle, 'e dizei se podem ser impressas ou não'. Após ter percorrido
estas notas, minha resposta foi um não categórico. Com efeito. não.
continham nada de acabado. Um fragmento de poema era notável,
mas não era senão o início da introdução a uma obra mais vast:t
cujo plano estava apenas delineado. Um sonêto rutilante estava
amputado das duas últimas linhas. Um caderno encerrava o cálculo
de um eclipse: as operações eram levadas com ordem, clareza e
justeza, concluindo nos três quartos da solução; algumas fôlhas
mostravam uma dissertação filosófica incompleta; outras, fragmentos
de estudos históricos. :E:sses trabalhos anunciavam um espírito su­
perior ao qual faltara ordem, espírito de continuidade, aquela cons­
tância sem a qual se não produz coisa alguma digna de atenção."
Um poeta original fala de um seu primo que começa bem e cor.­
clui mal :

Quando escreve em verso ou em prosa


O início vem de alto füão.
Quanto a concluir qualquer coisa,
Nunca tal conseguiu, ok! não . . .
Tropeçando assim pela estrada
Achcu um meio que é pra ver . . .
De agir muito e nada fazer;
Pau pra tóda obra, homem de nada!

BoucHER DE PERTHES

Por outra, os bons exemplos n ão faltam. Inúmeros sábios pros­


seguiram no trabalho até o fim da vida e deixaram o admirável
exemplo de uma constância indefectível que auguro para vós.
O naturalista Andanson empreendera, sozinho, a enciclopédia
das ciências da natureza. Vinte e sete alentados volumes expunham
as relações dos sêres e sua distribuição; a história de quarenta mil
espécies estava classificada em ordem alfabética, em cento e cin­
qüenta volumes. Um vocabulário universal dava o significado de
42 L. Rr nouLET

duzentas mil palavras. O manuscrito compreendia, além disso, qua­


renta mil figuras e trinta mil excertos dos três reinos. Pediu em
testamento que uma grinalda de flores, escolhida entre as famílias
que classificara, fôsse o único adôrno do seu esquife.
A vida científica de Chevreul foi de uma unidade admirável. No
dia do seu centenário, podia dar êste exemplo à juventude estudiosa:
"O homem", dizia êle, "deve ter-se na conta de aluno tôda a vida,
porque deve tôda a vida tornar-se mais capacitado e melhor. Não
devemos nunca esquecer que o homem recebeu o glorioso privilégio
de ser o único animal perfectível. E é por isso que sempre tive em
alto aprêço o mais belo de meus títulos: decano dos estudantes."
Algum tempo antes de morrer, Duhem, falando aos estudantes
católicos de Bordéus, dizia: "O título de estudante é o que melhor
me convém, o que desejo merecer por largo tempo; porque quando
não fôr mais estudante, é que não terei mais nada a estudar, cons­
tituindo isso o sinal inequívoco da degenerescência senil!"
Imitai êsses exemplos. Não vos tranqüilizeis enquanto houver
em vossa produção uma perfeição que podeis atingir. Mais tarde con­
servareis tal hábito. E assim chegareis à plena realização do ideal
vislumbrado na juventude. Adormecer colocando a última pedra
no edifício sonhado: que consôlo e que motivo de esperança! Tal
foi a morte de Beda o Venerável. A crônica relata que na têrça-feira
antes da Ascensão no ano 73 5, agravou-se a doença que o devia levar
ao túmulo. Acabava de iniciar a tradução do Evangelho de São
João: "Aviai-vos", disse aos secretários, "porque o Senhor, breve,
vai chamar-me."
No dia seguinte trabalhou como sempre, a despeito do enfraque­
cimento das fôrças. Pelas nove horas, um dos discípulos, Viberto,
aproximou-se do leito do enfêrmo e lhe disse: "Mestre, falta um
capítulo ao livro que iniciastes. Cansar-vos-ia muito continuar fa­
lando ? - Não, respondeu o santo; ainda posso falar, porém, avia-te,
toma a tua pena e escreve ràpidamente."
Depois disso, conversou até a noite com os religiosos da casa.
Então Viberto acercou-se novamente e lhe disse : "Mestre, falta
ainda uma sentença. - Toma a tua pena, respondeu Beda, e es­
creve ligeiro."
RUMO À CULTURA 43

Ao cabo de alguns minutos, tendo o secretário finalizado a obra,


exclamou: "Está pronto. - Sim, respondeu o moribundo, tudo está
consumado, tudo está concluído! Ergue nas tuas mãos a minha
cabeça enfraquecida e vira-a para a igrej a."
Deitado nas lajes da cela, Beda entoou mais uma vez: "Glória
ao Padre, ao Filho e ao Espírito Santo." Ao invocar a terceira das
pessoas divinas, exalou-se-lhe a alma para terminar no céu e repetir
durante séculos sem fim a doxologia que a morte interrompera nos
seus lábios.
Cap ítulo IV

APRECIAI A IMENSA VANTAGEM QUE


TENDES DE SER JOVENS E TIRAI O MÁXIMO
PROVEITO DA VOS SA JUVENTUDE

.
Meus caros amigos, se quereis merecer o título prestimoso de
estudantes, apreciai bem a felicidade que tendes de ser jovens, nã<>
esquecendo jamais que a mocidade "passa qual uma flor". Aprovei­
tai as horas e os minutos que se sucedem e mergulham na eternidade.
Freqüentemente ouve-se dizer: "Se velhice pudesse!". Mas ela não
pode; é j á muito tarde e êste pesar n ão faz senão melhor compreen­
der quanto são preciosos os anos da juventude. "Vivei tanto quanto
quiserdes'', diz o poeta Southey, "os vinte primeiros anos são os
mais longos da vida." Um homem célebre achava-se no leito de
morte; um amigo pergunta-lhe o que lhe poderia causar prazer:
"Ah! " respondeu o moribundo, "tornai a dar-me os anos da minha
juventude!"

A juventude é a primavera da vida e a idade da esperança.

Repetidas vêzes ouvistes esta metáfora e ela n ão deixa de ser


acertada. Não espereis que vos apresente uma descrição da primavera;
conheceis-lhe os encantos; o céu "ostenta um belo azul'', o sol retomou
tôda sua fôrça, as fôlhas renascem, as flores desabrocham suas corolas
graciosas, as brisas ciciam nas ramagens, a orquestra dos pássaros
ressoa nos bosques, arvoredos e matos; a borboleta executa seus
ziguezague!! folgazões; em tôda a parte uma profusão de côres e de
perfumes; em tôda a parte, a alegria, a vida, a esperança; em tôda
a parte os traços da bcndade, da sabedoria e do poder de Deus.
Estais na primavera da vida, mas ::is belezas da Tlatureza são
RUMO À CULTURA 45

ainda apagadas comparadas às maravilhas múltiplas com que a


Providência quis ornar vosso coração. Qual o poeta que há de cantar
condignamente a alma do jovem e mormente a alma do jove!"n
cristão!
A primavera é a estação das promessas; a juventude é a idade
das longas esperanças e dos amplos pensamentos. Uma dama da
côrte, relembrando a Luís XIV o dia da sagração, lhe dizia: "Ma­
jestade, naquela ocasião, éreis belo como a esperança!"
Aproveitai a vossa juventude. Colocai bem alto vosso ideal. Dizei
de todo o coração: "Quero que minha vida seja séria e útil." Nada
vos falta para realizar êste desejo: juventude de alma, vigor das
faculdades, sensibilidade delicada, confiança serena no porvir. Es­
tais agora a salvo de tôda inquietação, de todo cuidado material,
de tôda preocupação absorvente. Nada vos desvie do trabalho sério[
Na aurora da existência, dois caminhos se vos apresentam: o d a
indolência e o d o trabalho vigoroso e perseverante. Não quereis o
primeiro, dizeis vós. Não seja somente em palavras. Se a preguiça
vencer, não passareis de um ser medíocre, semelhante às árvores
que produzem fôlhas e flores, mas nunca frutos. Que valor moral
seria o vosso?
Na mocidade, Horácio escrevia: "Preocupo-me unicamente do
que é belo e verdadeiro; a isso consagro a melhor parte de minha
existência; não é para mim um dever de recolher e preparar, se mais
tarde quero dar alguma coisa ao meu século! "
Que infelicidade para vós s e procedêsseis como jovem leviano,
despreocupado e caprichoso! "Quantos jovens", diz o Pe. Sertillanges,
"com a pretensão de se tornarem trabalhadores, esperdiçam miserà­
velmente o tempo, as fôrças, a seiva intelectual, o i deal! Ou êles não
trabalham ou trabalham mal, sem saber nem o que são, nem aonde
querem ir, nem como se chee:a à meta."
Tomai então o caminho que conduz ao sucesso pelo bom emprê­
go dos anos tão preciosos da juventude; sois jovens, vivei como
jovens; tende vida, desembaraço, entusiasmo. De um artigo de jor­
nal que falava de jovens, cortei, antes da guerra de 1914, a idéia
seguinte: "Os jovens de hoje são amorfos e desiludidos; assemelham­
se a velhos indulgentes. É o que se quer significar ao denominá-los
budistas." Na realidade, são uns amuados como alguém disse.
46 L. R rnoULET

A atitude dêles não passa de orgulhosa pusilanimidade. Vivem enfa­


dados porque não têm a coragem de enfrentar as tempestades, e de
beber o amargor da vida. "Disseram que ela é agitada e poucc
agradável de beber, qual a água do mar. :f: possível, mas como a
água do mar, assim a vida carrega aquêles que se movimentam."
( BAZIN.)
A juventude é a época mais favorável a o desenvolvimento das
faculdades e à formação dos bons costumes intelectuais.

N ão tenho a intenção de dizer-vos em que medida e por que


meios convém cultivar as faculdades. Constituirá objeto de es­
pecial estudo. Limitar-me-ei a um conselho bem simples: exercitai-as
continuadamente; não as deixeis enferrujar nem atrofiar. Em vossa
idade seria um desastre. Dai-lhes diàriamente o alimento que as
mantenha e não negligencieis nenhuma.
Para isso não é necessário que modifiqueis vosso regulamento.
Cumpri exatamente as diferentes tarefas que são para vós o dever
diário. Cada uma de vossas faculdades encontrará seu alimento nos
variados trabalhos em que se acham repartidas as horas: a memória
fortificar-se-á pelo vigor com o qual lhe confiardes novas noções;
a literatura, a história, a geografia, as ciências da natureza virão
cada uma por sua vez dar novo impulso à imaginação; a inteligência
achará alimento não somente nas ciências exatas e positivas, mas
ainda em todos os outros conhecimentos se os estudardes com aten­
ção e reflexão.
Conservai o espírito aberto à verdade, amai o estudo e cada dia
aumentareis a fôrça e o vigor de vossas faculdades intelectuais. O
espírito ativo se aperfeiçoa sem cessar.
O mesmo meio vos servirá para a formação dêsses bons hábitos
intelectuais que são a causa do êxito e vêm a ser uma bênção para
a vida. Se trabalhardes cada dia com tôda a alma, formar-se-ão, por
assim dizer, mecânicamente:
O hábito da atenção, tão necessário mas tão difícil de obter
quando falta o ideal e ainda não se é apaixonado pelo estudo. Se
tiverdes caráter chegareis, pouco a pouco, da atenção intermitente à
atenção voluntária e constante.
O hábito da observação, indispensável para o desenvolvimento
RUMO À CULTURA 47

da personalidade, a elaboração dos juízos sãos, o bom sucesso nos


estudos e até para a escolha da profissão.
O hábíto da reflexão que aguça o espírito de firmeza, dá um
conhecimento mais perfeito de si mesmo e exerce influência conside­
rável sôbre a vida moral, assim como sôbre a vida intelectual. O
exercício da reflexão é muitas vêzes contrariado pela vagabundagem
da imaginação; mas o estudo sério a fixa sôbre noções adquiridas e
sôbre tudo aquilo que é objeto de interêsse.
O hábito da prudência na expressão das idéias, que faz evitar ai>
opiniões precipitadas, as sentenças absolutas e categóricas.
O hábito da pont1taiidade ao trabalho, tão meritório, mormente
quando podemos dispor livremente do tempo.
O hábito do trabalho constante pelo qual nos submetemos à
grande lei do esfôrço, segrêdo do progresso e da perfeição. Rousseau
pretende que o único costume viável em educação "é não contrair
nenhum". Que aberração! Como se os bons hábitos não fôssem a
condição de tôda a educação! Trabalhai por aperfeiçoar em vós
aquêles de que vos falei. Se e não fizerdes agora, mais tarde inutil­
mente o experimentareis.

A juventude é a idade do progresso e da ascensão para os cimos.

Os irmãos Montgolfier tomaram como lema as duas palavras


dum dialeto francês: Mountaren toudzou! Subiremos sempre! Que
bela divisa! Seja também a vossa! Ide adiante em direção aos cimos
como o brioso jovem que vai hastear a bandeira imaculada sôbre os
cumes alvíssimos dos Alpes.
Tudo vos convida a progredir. "Sêde perfeitos como vosso Pai
celeste é perfeito", disse o Mestre por excelência. Progredir é a
lei da vida. Em redor de vós tudo progride. O humilde grão torna-se
arbusto, em seguida árvore coberta de fôlhas, de flores e de frutos.
Subi, subi sempre; todo jovem é um deus caído que se recorda
dos céus. E poderíeis vós alcançar êxito se não começásseis desde
agora a ascensão gloriosa? Julgais que depois de viver na indolência
e no esquecimento de vossos deveres, recuperareis o tempo perdi do?
O tempo perdido não se recupera nunca.
Continuai cada dia a ascensão sem fraquejar. Fixai as alturas
serenas onde resplandece uma luz mais brilhante. Não ameis senão
48 L. RIBOULET

o belo, o verdadeiro, o excelente. Que auréola tal disposição não

cinge em fronte jovem! Feliz o estudante que avança sempre com o


mesmo ardor! O Sr. Legeay, professor de Ozanam, dizia de seu ilustre
aluno que "êle pertencia ao reduzido número daqueles que era pre­
ciso moderar"!
Feliz a alma que uma centelha divina incendiou e que o fogo
sagrado devorou! Ela aumenta constantemente de valor, alarga sua
visão, enriquece seu patrimônio espiritual, acrescenta à sua luz a das
estrêlas e dos sóis.
Subi, subi sempre. Pouco vos importe o que fizerem os demais.
Estareis em contato com cépticos que vos dirão que o verdadeiro,
o belo, o bem, são ilusõe�, que é melhor estender-se sôbre a relva
que margina os caminhos e olhar passar com indiferença as almas
ingênuas que crêem ainda neste valores sagrados. Subi, subi sempre.
Achareis os utilitários e as pessoas práticas. Dir-vos-ão talvez:
para que se matar! Não estudemos senão o que pode proporcionar
dinheiro e prazeres. Dir-vos-ão ainda: Nós somos os mais sábios;
vós porém, viveis na ilusão. O entusiasmo é um fogo de palha, que
apenas deixa um pouco de cinza! Não os escuteis! Subi, subi sempre!
Encontrareis os gozadores que nada compreendem dos nobres
prazeres do espírito. Para êles, nada de verdadeiro existe a não ser
a riqueza material. Se estudam, é "unicamente para alcançar um
como que descanso dourado que é o sonho da bêsta". Não atendais
às suas vozes pérfidas. Subi, subi sempre!
Existem ainda jovens que pertencem à classe dos medíocres e
dos satisfeitos. Têm por exaltados aquêles que estudam com entu­
siasmo. Marcam o passo e julgam que tudo anda muito bem na
honesta mediocridade em que êles se comprazem. Não os imiteis;
subi, subi sempre. O músico Weber escrevia em seu Jornal íntimo:
"De maneira alguma quero pertencer ao número dos milhares de
compositores medíocres. Se não puder atingir um lugar de destaque,
resultante do esfôrço, então mais vale não viver ou mendigar o pão
dando lições como professor de piano. Não se dirá nunca que fui
infiel ao meu lema: A constância tudo alcança! Cuidar-me-ei rigo­
rosamente e o futuro dirá se eu soube tirar proveito desta verdade
sincera ! "
Ser-vos-á ainda necessário falar dos pervertidos? Talvez encon-
RUMO À CULTURA 49

treis mais de um no vosso caminho. Quando falardes de dedicação


às nobres causas, olhar-vos-ão com ares de compaixão, tomando-vos
por ingênuos e ambiciosos. Não os escuteis. Guardai vosso ideal de
cavaleiro vingador das injustiças e deixai aos vulgares Sancho­
Panças as preocupações terra-a-terra.
Não escuteis os falhos e desanimados, que dizem não haver nada
que fazer. Não vos deixeis arrastar pelos arrojos líricos dos palra­
dores; suas boas palavras se desvanecem ccimo fumaça. Continuai
vossa tarefa fitando sempre os cimos. Fechai os ouvidos às insinua­
ções malsãs. Subi, subi sempre; quanto mais vos elevardes, mais vos
aproximareis de Deus.

Dedicai-vos ao trabalho ardente e Jazei valer os talentos que


Deus vos deu.

Há uma certa precocidade que é nociva, porque se alcançou em


detrimento do corpo e da saúde. Encontram-se, às vêzes, crianças
que os pais apresentam como prodígios, que aos dez anos tocam
valsas ao piano, são as primeiras em temas, desenham com habili­
dade; no entanto o crescimento de tais crianças se faz mal, seus
olhos estão encovados e chega o dia em que o médico diz: "Esta
criança está adiantada demais para sua idade; é preciso que mude
de ares e que nada faça durante seis meses", o que significa: "Agiste
contra a natureza, a natureza vinga-se."
Certos jovens n ão guardam nenhuma das promessas feitas. Um
véu se estende, pouco a pouco, sôbre o seu espírito e as suas facul­
dades parecem atrofiar-se. Foram mal compreendidos, atribuíram­
lhes talentos quando eram apenas qualidades exteriores. O talento
precoce excita muitas vêzes a desconfiança. Não se queria acreditar
no gênio prematuro de Tennyson. Um dia, quase arrastado pela
borrasca que, no jardim, curvava as árvores e arrancava as fôlhas,
a criança que tinha cinco anos, exprimiu o seu espanto em linguagem
ritmada. Aos nove anos escreveu uma elegia sôbre a morte da avó.
O avô tendo lido a composição deu uma moeda ao precoce rimador,
dizendo-lhe: "Toma, garôto, aqui está o primeiro dinheiro com que
a musa te presentei a; mas, acredita-me, oxalá seja o último." A
criança nascera para a poesia e não desmentiu nunca as promessas
da infância. A precocidade que se esvai não é senão uma exceção.
50 L. RmouLET

Evidentemente, mesmo com as mais felizes disposições não se chega


ao sucesso sem trabalho constante. Wirth dizia aos jovens: "Vejo
que tereis de dobrar o cabo Horn durante a estação das tempestades,
e vos predigo que, se fordes enérgicos, sobrevivereis a esta prova
decisiva e chegareis felizmente ao pôrto tranqüilo das latitudi:s
calmas do Pacífico."
Aos quatro anos, Mozart improvisava ao piano graciosas melo­
dias; aos doze anos compôs a primeira ópera. Aos quatorze, fêz
representar Mitridates, que foi tocada vinte vêzes consecutivas.
Aos treze anos, Haydn escrevera a primeira Missa. Aos dezessete
anos, Haendel era já o autor de várias óperas. Aos três anos, Saint­
Saens j á compunha música; aos cinco anos improvisava valsas, que
não seriam desaprovadas por nenhum compositor exímio. Nenhum
dêles traiu as promessas de sua infância.
Mas não quero atrair sôbre mim as recriminações de ter apenas
citado músicos. Foi na infância que Bossuet descobriu a Bíblia.
Todos os encantos da literatura profana desapareceram para êle
diante do aspecto das grandes imagens e das altas concepções dêste
livro divino. Tantas vêzes o leu que o amoldou ao seu gênio. Dêle
Sainte-Beuve escreveu: "Entrou na Bíblia como Moisés entrava n a
nuvem d e fogo d o Sinai."
O matemático José Bertrand sabia ler aos quatro anos, tendo
aprendido sozinho. "Aos quatro anos uma pneumonia o reteve de­
moradamente no leito. A mãe ensinava a leitura ao filho mais velho
ao pé da cama do pequenino enfêrmo. Muito atento, sem nada dizer,
José estudava e reproduzia mentalmente as combinações das letras
e das sílabas. Deram-lhe um livro de história natural cheio de ima­
gens. A mãe admirou-se e alegrou-se grandemente quando um dia
o ouviu ler corretamente: A ovelha, o cão, o lôbo. José Bertrand
lembrava-se com prazer desta recordação do tempo de criança: 'Faço
questão', dizia êle, 'de que intercalem em meu elogio que aprendi a
ler sozinho'." (Jules Lemaitre. Resposta ao discurso de recepção de
Berthelot, sucessor de José Bertrand na Academia Francesa.) Aos
oito anos traduzia De Viris; aos onze anos conseguiria completa apro­
vação nos exames da Escola Politécnica sendo recebido aos 17 anos
como primeiro da turma. Um ano havia que se doutorara em c1en­
c1as.
RUMO À CULTURA 51

Permiti que torne a dar-vos mais exemplos: sua eficácia é muitas.


vêzes maior do que as considerações filosóficas mais sublimes. Cham­
pollion, o fundador da egiptologia, apresentou-se à idade de doze
anos diante da comissão encarregada de nomear os moços que goza­
riam das bôlsas concedidas pelo govêrno. :E:le respondeu com pron­
tidão às perguntas do programa, traduziu à primeira vista os clássicos.
latinos e gregos, e propôs modestamente aos seus examinadores ler
e explicar o texto hebraico da Bíblia. Foi admitido no liceu de Gre­
noble com pensão completa, às expensas do govêrno, e pediu como
favor consagrar os recreios ao alfabeto sírio e às raízes etiópica.s.
Sua carteira estava abarrotada de livros estrangeiros, o copto e n
caldaico o atraíam invencivelmente. Um externo trouxe-lhe certa
vez uma gramática árabe e tal estudo o apaixonou. Seus mestres
acharam algum embaraço para recompensá-lo de seus progressos e
atribuíram-lhe no fim do ano um prêmio de . . . matemática. Ao-s
16 anos foi admitido na Academia de Grenoble. Nos anos seguintes
estudou o persa, o sânscrito, o zenda, o pélvi e o parse. Foi assim
que se preparou à descoberta que o havia de imortalizar.
Aos onze anos, Ampere conhecia as matemáticas elementares e
a aplicação da álgebra à geometria. Dirigiu-se com o pai à biblioteca
de Lião, e pediram as obras de Euler e Bernouilli. O bibliotecário
fêz notar que estavam escritas em latim. A criança deixou transpa­
recer tristeza; o pai respondeu: "Eu as explicarei ao meu filho."
O bibliotecário acrescentou: "Versam sôbre o cálculo diferencial.
Já o estudou ? " Maior consternação da criança. Algumas lições lhe
bastaram para compreender os volumes.
Aos 18 anos era capaz de estudar a 111ecânica celeste de Laplace
que representava então o ponto culminante das matemáticas. Am­
pere a estudou a fundo recomeçando quase todos os cálculos.
Assim pôde êle dizer mais tarde que sabia, desde essa época, tanta
matemática quanta jamais soube.
O astrônomo Flammarion cedo ficou possuído do ardente desejo
de saber. Aos sete anos escreveu um pequeno tratado sôbre os signos
do zodíaco. Na escola da aldeia era o primeiro em tudo. Um revés
de fortuna obrigou seus pais a fixarem residência em Paris e o jovem
foi colocado em casa de um gravador. Terminado o dia, seguia
cursos livres e, por volta das 22 horas, ao entrar em casa, começava
52 L. RrnoULET

a ler e a escrever. Mas êste regime causou-lhe uma doença que teve
resultados imprevistos. O Dr. Fournier, que o tratava, viu sôbre a
mesa um manuscrito de mais de 500 páginas, intitulado Cosmologia
Universal, com prefácio em latim. Ficou surpreendido de encontrar
no jovem tantos conhecimentos matemáticos. Êle o fêz entrar no
Observatório, como calculador, aos 16 anos. Alguns meses depois,
Flammarion publicava seu primeiro livro. Aos 18 anos era célebre.
Quando se apresentou ao regimento perguntaram-lhe se era filho do
.grande Flammarion.
Paulo Bourget, interrogado sôbre seus anos de infância, declara
que tivera a paixão de escrever. O número de versos longos e curtos,
novelas, contos, memórias e recordações que redigiu entre seis e
dez anos, é incalculável. "A primeira obra importante de que tenho
lembrança é o R omance de uma formiga que terminei na idade de 9
anos . . . Fiquei estupefato pelos costumes surpreendentes dêstes
insetos que observei demoradamente no campo e lembro-me ter con­
tado pormenorizadamente a vida de uma dessas laboriosas operárias."
Quantos e quantos jovens entre milhares e milhares de outros,
que, bem cedo, acharam o rumo e não enterraram o talento que
receberam. Imitai êsses grandes exemplos. Dizei-vos as palavras
pelas quais Santo Agostinho se excitava à perfeição: "O que tantos
e tantas fizeram, por que o não farei eu ? " E se Deus vos outorgou
aptidões especiais, um gôsto acentuado para as coisas do espírito,
exprimi-lhe vosso profundo reconhecimento por êste duplo e pre­
<:ioso favor.

Mantende-vos corajosos por uma confiança razoável em vós


mesmos.

A confiança é alavanca poderosa e condição de sucesso. Mas deve


ser baseada sôbre o conhecimento inteligente de si mesmo.
Aprendei pois a vos conhecer. Vêde se sois bem sucedidos nos
estudos, quais as especialidades pelas quais tendes mais gôsto. Con­
sultai vossos mestres, a sua experiência vos ditará sábios avisos.
Quantos jovens devem a mestres clarividentes a palavra der.isiva
que lhes determinou a vocação ou a escolha da profissão!
Tende confiança em vós mesmos: o otimismo é um sol benfazejo.
RUMO À CULTURA 53

Dando esta recom�ndação a jovens, Renato Bazin acrescentava :


"Não tenhais receio de faltar, assim, à virtude encantadora para
tôdas as idades e necessária à vossa, que se chama modéstia. '\.
modéstia consiste em saber perfeitamente tudo o que se possui de
talento e de energia e saber ainda que prestaremos contas. Não es­
queçais que, no mundo, somos coisa.r passageiras, fugazes, e responsá­
veis pela luz que projetamos. E estareis dentro da verdade. Não
tenhais mêdo tampouco de vós mesmos e de nada poderdes, porquP.
as possibilidades desta coisinha são enormes e as ocasiões não VllS
hão de faltar."
Não duvideis de vós mesmos, ainda quando, a princípio, nlio
consigais o vosso intento. Notam-se anualmente alunos que após
seguir com dificuldade os demais tomam enfim a . dianteira e fazem
rápidos progressos. Apesar dos insucesssos jamais desanimaram.
Não confundais a confiança em vós mesmos com a suficiência e
a pretensão. Não quadra absolutamente, nos jovens, julgar com al­
tivez as pessoas e as coisas e se pronunciar em tom categórico sôbre
tôdas as questões. É possÍYel que tenham talentos e mesmo certos
conhecimentos, mas erram ao se julgarem possuidores da ciência
universal e ao olharem altivamente aquêles que lhes s ão inferiores
em vez de olharem no alto aquêles que lhe são superiores.
Os espíritos verdadeiramente superiores não adotam jamais tal
atitude, porque n ão atingem a perfeição sonharia.

Quand je vous livre mon poeme,


Mon cceur ne le reconnazt plus;
Le meilleur demeure en moi-même:
Mes vrais vers ne seront pas lus.

SuLLv-PRUDHOMME

Mas a raça dos pessimistas é ainda mais detestável do que a


dos pedantes e dos pretensiosos. O pessimismo congela as energia11
da alma e envenena os sentimentos generosos. Ele é contagioso por
natureza, porque adula os instintos egoístas. Assim se explica a in­
fluência de Renan numa época em que o diletantismo estava na mo­
da. Ele costumava dizer que as causas justas estão condenadas ao
insucesso. E necessário dedicar-se-lhes porque são nobres e justas,
54 L . RIBOULET

mas não à maneira dos ingênuos que se apaixonam por elas, ainda
que venham a se lamentar e a desesperar depois da derrota. Se
cometermos a loucura de nos sacrificarmos, seja com um meio sorriso
irônico, para mostrar que não somos lorpas e que conscientemente­
tomamos a defesa de uma causa perdida. Nada mais deprimente do
que tais teorias! "O homem é assim feito", diz Pascal, "que à fôrça
de dizer-lhe que é bôbo, êle o crê; à fôrça de o repetir a si mesmo�
termina convencendo-se." Mas o contrário é igualmente verdadeiro.
Tende confiança em vós mesmos; convencei-vos de que triunfa­
reis. Os homens que empreendem grandes obras estão persuadidos
de que desenvolvem enr.rgias indomávris a serviço de suas convicçi)P.s

Utilizai os meios que se acham à vossa disposição e aproveitai


os bons exemplos que vos são dados.

Estudai, tal é o vossCl dever atual. Estais desimpedidos de qual­


quer outra preocupação. 1'� uma imensa vantagem que afasta de vós
as dificuldades que seriam prejudiciais ao trabalho. Tendes o tempo
ao vosso dispor; mais tarde não tereis senão as parcelas que podereis
furtar aos outros deveres.
Tendes mestres sábios e experientes: êles conhecem a juventudf'
e lhe são profundamente devotados. Não percais nada de suas pre­
ciosas lições; segui com docilidade seus conselhos. Consultai-os como
amigos dedicadíssimos. Vêem-se, às vêzes, jovens ostentarem aquilo
que chamarei de independência intelectual, a qual, geralmente, não
depõe em seu favor. As lições não são bastante eruditas para êles
e submetem-nas ao crivo da crítica. fües têm idéias próprias sôbre
tal ou qual assunto; debalde os convenceríamos de êrro. Êles têm
método. Experiência. Só apreciam a idéia que tenha sido fruto de
seu espírito. Infelizmente, porque se julgarmos a árvore pelos frutos,
tais independentes fariam melhor em ser dóceis.
Não os imiteis. A docilidade é sinal de inteligência. A indocilidade
e a obstinação são provas evidentes de estreiteza de espírito.
Aproveitai os bons exemplos que vos podem levar ao bem. Não
é possível ler a vida dos jovens estudiosos sem sentir-se levado a
imitá-los. Emerson diz que os grandes homens são representativos
das coisas e das idéias. Das coisas, porque é por êles que a natureza
nos é revelada, que suas leis são descobertas e suas fôrças aplicadas
RUMO À CULTURA 55

a o nosso serviço. Das idéias, porque êles têm o dom de fixar os


pensamentos e as aspirações que, em cada um de nós, permanecem
no vago da imprecisão. Tôda personalidade distinta é excitado1 a de
energias.
Os troféus de Milcíades impediam Tr.místocles de dormir. Os
heróis de Corneille suscitaram numerosos atos de heroísmo. A glóna
de Napoleão produziu legiões de bravos. O exemplo de Pastem sus­
tentou numerosos estudantes na dificuldade. Os exemplos de Shack­
leton, de Guynemer, de Lindbergh, são lições de energia magnífica.
Mas, nós o sabemos, "os exemplos vivus são de outro poder".
Nada vos será tão salutar como a companhia de jovens de escol que
se dão ao trabalho com todo o ardor da mocidade. Marmontel nos
fala, em súas Mém.oires, de um excelente aluno do colégio de Mauriac
que lhe serviu de modêlo. Êle admirava-lhe o proceder sempre igual,
o porte grave, o exterior sisudo. "Eu tinha prazer em vê-lo", diz êlt:,
"e tôdas as vêzes que o via, retirava-me desgostoso comigo mesmo . . .
Eu tinha dois ou três rivais; Amalvy não tinha nenhum. Era mais
idoso do que eu, era essa a minha única consolação; minha ambiçãn
era de o igualar quando fôsse da i dade dêle. Perscrutando tanto
quanto me foi possível o que se passava em minha alma, posso dizer
com sim::e ridade que neste sentimento de emulação j amais se imis­
cuiu inveja maligna; eu não me torturava por existir no mundo um
Amalvy, mas antes teria pedido aos céus que houvesse dois e que
eu fôsse o segundo."

Não esqueçais nunca de que tôda a vossa vida será o eco da


vossa juventud11.

A árvore cai para onde pende. Vós tereis que prestar contas do
emprêgo de vossos talentos e de vossas aptidões. Não vos exponhais
à maldição da figueira estéril. Elevai muito alto vossas aspirações.
Um jovem cristão deve compreender melhor que qualquer outro a
obrigação do bom emprêgo da juventude.
Gaillard, um dos gravadores mais ilustres do nosso tempo, ao
despedir-se de um jovem que partia para a província, lhe dizia:
"Sobretudo, meu caro, não durmais! Escolhei um caminho, seja qual
fôr, mas sêde alguém; sêde o primeiro: os homens de fé devem estar
na vanguarda."
Capítulo V

FAZEI BOM USO DO TEMPO QUE DEUS VOS DA

Sôbre um quadrante solar, em Oxford, acham-se gravados êstes


dizeres: Pereunt et imputantur, as horas passam e nós prestaremos
contas.
Não há para quem o tempo não seja um tesouro precioso: êle
representa o trabalho, a aquisição dos conhecimentos, o cumprimento
do dever, o mérito. Mas êle é sobretudo precioso para vós, meus
caros amigos, que vos achais no período decisivo da juventude e da
vida. Lamennais escrevia a um moço: "Estás na idade em que se
tomam decisões. Mais tarde cada qual sofre a influência do destinCJ
que se impôs, geme na tumba que cavou, sem poder levantar a
pedra."
Os cinco anos que transcorrem dos quinze aos vinte na vida de
um homem são de importância capital para o seu futuro. "Cinco
anos", escrevia o Pe. Amado, algum tempo antes da primeira guerra
mundial, "são apenas 1825 dias durante os quais um jovem deve
lançar as bases do seu porvir. E achais talvez que não valha a pena
consagrar a essa tarefa 1 825 dias ? "
Considerai com que facilidade s e esbanja o tempo! "Tal pes­
soa que não permite a ninguém se apossar de seus campos", diz
Sêneca, "e que recorre às armas, ou ao menos aos juízes, caso a
menor contenda se eleve entre êle e seus vizinhos, no que diz respeito
aos limites recíprocos, deixa roubar o tempo por tôda a espécie de
pessoas. Não achareis ninguém que queira repartir convosco o dinhei­
ro; no tocante porém ao tempo, distribui-se à toa." Com efeito, os
mais econômicos, os mais ordeiros para tudo o mais, passam fàcil­
mente horas a fio, cada dia, �m vãs curiosidades, em conversas ocio­
sas, em leituras frívolas e divagações perigosas. Como irônicamente
RUMO À CULTURA 57

alguém disse, êles pesam solenemente ovos d e môscas e m balanças.


fabricadas com teias de aranha. O poeta lastima tal desperdício:

De stériles soucis notre journée est pleine;


Leur meute, sans pitié, naus chasse à perdre haleine,
Naus pousse, naus dévore, et l'heure utile a fui.

Goethe se indignava diante do espetáculo do enorme malbarate>


que faz a humanidade desta substância preciosa e rara : o tempo.
Com fervor tátil queria deter entre as mãos a valiosa fazenda par­
cimoniosamente medida. Ele tentava todos os meios que tornassem
a malha sensível e palpável. Cada um de seus dias estava marcado
por uma divisão exata e lúcida do tempo. Cada hora estava marcada
com o sinal positivo.
Vigny averiguava igualmente com amargura a perda de tantas
horas preciosas. "Mais eu me aàianto", dizia êle, "mais noto que a
coisa essencial dos homens é matar o tempo. Como o Pequeno Polegar�
saindo de casa, encheu a mão de grãos de milho e os ia largando pela
estrada, assim Deus nos enche a mão de .dias cujo número está
contado; nós os semeamos pelo caminho com despreocupação e sem
nos inquietar ao ver o número diminuir." Todos temos uma forma
peculiar de matar o tempo, adverte o Pe. Faber: "Permanecer deso­
cupado, brincar com uns nadas, vadiar, tagarelar, devanear, protelar
para o dia seguinte a ação que devia ser feita no dia presente, dormir
desordenadamente, prolongar o recreio em demasia, distrair-se por
assim dizer com a ocupação presente, dar-se a atividades triviais:
aqui estão apenas algumas maneiras com que habitualmente se mal­
barata o tempo."
Pensai que o tempo passa com extraordinária rapidez; é um;,
sombra, uma nuvem que se dissipa, uma cerração que os raios do
sol afugentam. O momento em que falo, em que dito, em que escrevo,
já está longe de mim.
Após haver subtraído as horas e os minutos tomados pelo sono,
pelas idas e voltas, pelas refeições, passatempos, visitas, passeios,
doença, lassidão, tristezas, luto, e conversas inúteis, verificamos que
a parte deixada ao trabalho sério é extremamente pequena. É com
êstes curtos instantes que preparamos o porvir. Gladstone dizia;
58 L. RIBOULET

··crede-me quando vos asseguro que o bom emprêgo do tempo vos


pagará mais tarde com um proveito acima de vossos mais brilhantes
sonhos e que sua perda diminuirá vossa estatura intelectual abaixo
das previsões mais sombrias."
O tempo perdido não se recupera mai;. Pelo contrário, êle se
vinga e seu aguilhão é terrível. Que tristeza ter que dizer mais tarde:
"Se soubesse! Se cu tivesse bem empregado o tempo!" Há uma me­
lancolia profunda nestas palavras de Horácio Mann. "Perdidas, entre
-0 levantar e o deitar do sol, correm duas horas douradas, enrique­

cidas com 60 pequenos diamantes. Nenhuma· recompensa se oferece


em troca, pois estão perdidas para sempre."

Examinemos de perto alguns inimigos do bom uso do tempo,

Não esqueçamos que tôda paixão é um obstáculo ao estu­


do; ela entretém na alma a agitação que a desvia dos deveres
,de estado. Trabalhai portanto para extirpar de vós tudo aquilo que
não seja conforme à lei de Deus, e o estudo se vos tornará mais
.agradável.
Na vanguarda dêstes inimigos coloquemos a indolência, � suas
<liferentes formas. Ela vos dirá que nada urge, que o trabalho pode
ser adiado para o dia de amanhã:

Demain! je te dirai, mon âme, ou je te mene,


Demain! je serai juste et fort. Pas auiour'kui.

Podemos contar com o dia de amanhã? Ora, o dia de amanhã


terá sua tarefa especial que necessitará tôda a vossa aplicação e o
trabalho atrasado será despachado às pressas, caso dêle vos lembreis.
Sentireis na alma vozes protestarem contra vossa negligência. Apro­
veitai a hora presente. Só o presente vos pertence. O passado está
morto; deixai os mortos enterrarem os mortos e cumpri o dever que
vos solicita.
Ruskin colocara sôbre sua mesa de trabalho um pequeno bloco
<le granito no qual se achava gravada a palavra today: hoje. Era
um convite discreto a fim de não deixar para a dia seguinte o que
devia ser feito no mesmo dia.
(FOTO B. N. )
Shakespeare
B/ai1e Pa1cal,
por Ph. de Champaigne
(FOTO IJULLOZ)

Má1cara mortuária
de Pa1ca!

(FOTO GIRAUDON)
RuMo À CULTURA 59

S e n ão fôr combatida, a indolência s e instala como soberana e,


sob o nome de preguiça, torna ineficaz todo esfôrço generoso. O
espírito permanece em alqueive, não para preparar uma vegetação
mais vigorosa, mas ervas daninhas. Talvez algum pensamento de
amor-próprio, alguns restos de pundonor, algumas censuras amigas
poderão excitá-lo de onde em onde, porém o enervamento e o tédio
vingarão novamente. O preguiçoso esmorece pouco a pouco; êle a�­
siste ao eclipse de suas faculdades, sobrevive à própria ruína.
A preguiça manifesta-se muitas vêzes sob a forma de amor des­
regrado pelo sono. Depois de um dia bem cheio, longas horas de
repouso são indispensáveis, mas tomai o costume de vos deitar
e levantar cedo. O mundo pertence a quem madruga, diz o
provérbio. Buffon era muito afeiçoado ao travesseiro, portanto a
preguiça prejudicava-lhe o trabalho literário. Prometeu uma recom­
pensa ao camareiro José se conseguisse fazê-lo levantar às 6 horas.
Só a muito custo conseguiu. Buffon lhe ficou grato e escreveu mais
tarde: "Devo ao bondoso José vários volumes de minhas obras."
Bossuet levantava-se às 2 horas da madrugada a fim de ganhar
tempo para a oração e para o estudo. Milton se levantava igual­
mente cedo; "no inverno", diz êle, "antes que o sino chamasse o
homem ao trabalho; no verão, com o pássaro mais madrugador ou
poucos instantes depois".

As leituras frivolas são o terrivel inimigo do trabalho sério.

Quantos minutos desperdiçados em ler os fatos diversos dos jor­


nais, os artigos, às vêzes paupérrimos, de certas revistas, os maga­
zines, as publicações esportivas, os romances em moda! Neste contato
tão fàcilmente malsão perde-se muito mais do que simples momentos
preciosos. "Eu vos desafio", diz o Pe. Amado, "eu vos desafio de
encontrar um só jovem que após ter lido, ainda que sómente alguns
capítulos interessantes de um romance fascinador, comece a resolver
um problema de matemática ou a estudar uma lição de medicina
ou de direito: n ão é possível. A imaginação excitada por situações
romanescas perturba o estudo refletido. No meio de senos e co-senos,
de equações e logaritmos pululam as imagens absorventes do roman­
ce, como êsses diabinhos que, outrora, conforme narra a hagiografia,
procuravam distrair os eremitas durante a oração."
60 L. RrnoULET

A vulgaridade, a falta de ideal, a ausência de alvo preciso, eis


ainda perigosos inimigos.

Graças a Deus, pensais no futuro, porém, pensais nêle com e­


riedade? Impregnais o vosso espírito a ponto de perder raramente
de vista o resultado ao qual quereis chegar? Somos fortes quando
somos homens de uma idéia só. Arquimedes dizia: "Dai-me um
ponto de apoio e eu levantarei o mundo." Goethe diz ao homem d e
ação: "Faze-te u m ponto d e apoio e levanta o mundo." Fórmula ex­
celente. Querer trabalhar, mas fazê-lo sem energia, quando chega o
momento; contar os dias que separam de um feriado ou das férias
é conduzir-se como jovem inteligente? Mais tarde, crede, não se
procede diversamente. Quer-se, sem querer fortemente, e assim a
vida, ainda que não seja má, não dá o seu inteiro rendimento.
Ollé-Laprune escreveu uma página célebre sôbre o que êle chamava
o não-emprégo da vida. "Não ter senão uma vida chã, medíocre,
sem grandes faltas", diz êle, "admito, mas levar vida inútil é um
mal. É necessário ver que é mal e senti-lo, repeti-lo e dizê-lo aos
demais. Certamente, é ótimo n ão pecar, pecar raras vêzes; mas n ão
é suficiente, e se se julgar que é bastante, aí reside o mal. Uma vida
sonolenta, desocupada, cheia somente de coisas fúteis, uma tal vida,
ainda que curta e por assim dizer inocente, é certamente má. É uma
vida falha."

Evitai apaixonar-vos pelo jôgo e fugi das conversas ociosas.

Sem dúvida, é preciso distrair-se, é uma necessidade. Mas será


indispensável, como acontece às vêzes, que se percam no jôgo tardes
e noites quase inteiras? Que é que se fará no dia seguinte senão
bocejar e dormir! Um jovem que se apaixona pelos jogos de azar
pode ser considerado inútil para tôdas as ocupações sérias de sua
idade. Não é mais um jovem, "é um velho prematuro, um homem
gasto, um cadáver moral". E quantas desordens podem originar-se
desta paixão!
Sôbre as conversas ociosas, haveria muito que dizer. Encontram­
se, às vêzes, entre os estudantes, gazeteiros, curiosos que correm
atrás do inédito. Tornam-se muitas vêzes importunos e são o flagelo
RUMO À CULTURA 61

dos estudiosos. O Duque d e Newcastle tinha êste defeito e Lorde


Chesterfiefd dizia dêle: "Sua alteza perde uma hora cada manhã e
passa o dia a correr atrás dela." Afastai-vos dêstes zangãos. O pai
de Henrique Rochefort escrevera sôbre a porta do seu gabinete:

Le temps que le destin me donne,


Ce peu de temps est tout mon bien;
]e ne prends celui de personne,
Mais veux qu' on me laisse le mien.

Na sala de redação de um jornal, colocou-se o seguinte aviso para


os importunos que tinham a compreensão lenta :

Roga-se às peras, aqui não criarem bolor!

Mons. d'Hulst era inimigo das conversas inúteis. Com prazer


teria escrito à sua porta como a Senhorita de Lespinasse: "Sinto-me
honrada pelos que me visitam, e exulto quando ninguém aparece."

Até mesmo as preocupações excessivas da saúde tornam-se


obstáculo ao bom emprêgo do tempo. É grande o número de rapa­
gões gordinhos e rubicundos que se dizem sempre cansados. Dor de
cabeça, pêso no estômago, dores vagas dos membros, enfraquecimento
produzido pelas depressões atmosféricas, tarefa exaustiva que aca­
bam de realizar, tais são os graves motivos que os impedem de se
dedicar ao trabalho. O tempo corre, êles porém não se matam. Es­
gotam pouco a pouco o seu vigor intelectual.

Mencionemos ainda os minutos consagrados às coisas fúteis, às


recordações estéreis, às quimeras de uma imaginação abando·
nada aos caprichos. Sêde vigilantes. Todos êstes inimigos rodam
silenciosamente em volta de vós para vos roubar as horas de trabalho.
Mais tarde, lastimareis a exagerada condescendência que tendes
para com êles. Uma personagem de Dom Carlos de Schiller diz:
"As horas perdidas de minha juventude me exprobram continua­
mente como se fôssem dívidas de honra." Com efeito, depois de
esbanjar tantos momentos preciosos, chega o dia em que, na alma,
"um vago remorso se introduz", dizia Psichari. "Medita-se sôbre a
62 L. R rno uLET

juventude, perdida em tantas horas de ociosidade que nada produzi­


ram. São mágoas do coração que muito penalizam."

Um bom meio de empregar utilmente o tempo, é agir segundo


um regulamento sàbiamente estabelecido.

Respeitai, amai o horário do estabelecimento em que estudais;


além de ser a expressão da vontade de Deus, é o resumo da sabe­
doria e da experiência daqueles que estão encarregados de voss.l
educação. Não vos alisteis entre os espíritos independentes, quase
sempre limitados, que acham que nada está feito pelo seu diapasão.
Aceitai os sacrifícios que Deus impõe ao vosso amor-próprio e à vossa
fantasia; �!e será vosso guia, vosso apoio, vossa luz, a causa de
vossos êxitos.
"O primeiro conselho que dou aos meus filhos", dizia recentemen­
te um general, "é de ter um horário. Sem horário preciso e constante,
tôda a vida se desperdiça. Fazer cada dia o mesmo trabalho e à
mesma hora, eis o segrêdo da fôrça e do sucesso." Ao compor o seu
Dicionário, Littré impusera-se um regulamento invariável: "Levanta­
va-me'', diz êle, "às 8 horas. Enquanto preparavam o quarto, desci2
ao andar térreo levando algo que fazer. As nove horas, tornava a
subir e corrigia as cópias vindas durante o intervalo. Às 13 horas,
sentava-me novamente até às 15 preparando a colaboração para o
]ournal des Savants ao qual tinha a peito enviar regularmente minha
contribuição. Das 15 às 18 continuava o meu Dicionário. Às 18 hora;
descia para o almôço. Subindo pelas 19 horas, tomava o Dicionário
e não o largava. O primeiro intervalo me levava até meia-noite, hora
em que meus colaboradores me deixavam. O segundo me levava às
3 eia madrugada. Ordinàriamente cessava o trabalho. Caso não
estivesse pronto prolongava a vigília, e mais de uma vez, durante
numerosos dias, apaguei minha lâmpa da e continuei à luz da aurora
que surgia."

Um b om método economiza muito tempo.

"Nada parece difícil quando se quer chegar ao fim", dizia Na­


poleão, "caso se tenha achado o verdadeiro método a seguir; con­
seguido isto, o mais nada é." Dêle Roederer afirma o que segue:
R UMO À CULTURA 63

"Nunca homem algum estêve mais absorto no que fazia e dist1 ibuiu
mais sàbiamente o tempo entre as coisas que tinha a fazer. Jamais
espírito algum foi mais inflexível em recusar uma ocupação ou idéia
que n ão chegasse no dia e na hora; mais ardente em procurá-la,
mais ágil em persegui-la quando o momento propício fôsse chegado."
Cuvier deveu à inteligente distribuição das horas de trabalho
uma parte de sua imensa obra. "Quando se pensa", diz Flourens,
"nas numerosas funções de Cuvier, fica-se pasmado que um só ho­
mem bastasse. Nenhum homem fêz estudo tão acurado, e se posso
dizer, tão metódico da arte de não perder nem sequer um minuto.
Cada hora tinha um trabalho fixo, cada trabalho tinha um gabinete
próprio no qual se encontrava tud'J quanto precisasse. Tudo estava
preparado, previsto para que nenhuma causa exterior viesse deter
ou atrasar-lhe o espírito no curso de suas meditações e pesquisas."
Em seu laboratório de Meudon, Berthelot tinha disposto tudo
de maneira a não perder um minuto. Diante do visitante estupefato,
o grande químico movia uma grande escrivaninha giratória de 16
divisões aonde se acumulavam as fôlhas avulsas. "Cada uma das
repartições", dizia êle, "guarda os papéis e os documentos que se
referem a determinado assunto. Considerai êste caderno vermelho
coberto de notas, de fórmulas, de números; cada pág;ina leva uma
data e um número. Transcrevo diàriamente as experiências do dia.
No fim do caderno, eis o índice. Nêle inscrevo, à medida, o número
das dez, quinze, vinte páginas onde estão desenvolvidas. Nesta
lauda, à margem, estão os títulos dos assuntos, e vêde os sinais: ê.ste
T. R. P. significa terminado, redigido, publicado. Êste outro O. T.:
zero, resultado negativo, porém questão terminada, esgotada. Um
terceiro O significa impossibilidade de chegar a um resultado positivo
ou negativo. É uma ordem matemática. Abordar os problemas com
reflexão e método, examiná-los sem esmorecimento até esgotá-los,
não os largar senão depois de ter achado a solução ou confessar-se
incompetente. Eis o meu sistema; muito me valeu, pois é o único
que permite trabalho sério."

Recomendo-vos ainda a pontualidade.

A pontualidade desenvolve preciosos hábitos de disciplina. "Devo


todos os meus sucessos", dizia Nelson, "ao costume de me achar sem-
64 L. RIBOULET

pre adiantado de um quarto de hora." Certas pessoas deixam aos


outros a minuciosidade de tudo fazer no momento fixo. Não as to­
meis por modelos. A pontualidade é uma função da vida; ela supõe
o império sôbre si mesmo; é negócio de ordem e de consciência. Os
retardatários são fatôres de desordem; produzem a confusão e o
enervamento. O secretário de Washington desculpava o seu atraso
pelo do relógio : "Arrume outro relógio", disse o ilustre estadista,
"ou procurarei outro secretário."
Lacordaire era a pontualidade personificada. Fazia cada coisa em
seu tempo e da maneira acostumada. Todos os dias por volta das
10 horas redigia a sua correspondência. Nada lhe podia fazer esque­
cer êste trabalho regular. "Eu o vi'', dizia o Pe. Chocarne, "já re­
curvado pela doença, a fisionomia pálida e desfeita, recusar o passeio
quando o convidavam, numa dessas esplêndidas manhãs de outono.
em Provença, debaixo dêsse sol que o animava e regozijava, e res­
ponder simplesmente - 'Não posso, é hora de minha correspondên­
cia'. O corpo arranjava-se como pudesse, submetido à escravidão do
dever à hora fixa."
Não somente sereis pontuais, mas utilizareis os minutos com
cuidado ciumento. A arte de economizar o tempo permitiu a homens
absorvidos pelo rude trabalho cotidiano levar a bom têrmo em­
preendimentos consideráveis ou brilhar nas letras ou nas ciências.
Cervantes, Calderon, Camões, Descartes, Maupertuis, La Rochefou­
cauld, Vigny, foram soldados; Bacon foi homem de lei; Rabelais,
padre e médico; Beaumarchais, negociante; Schiller, cirurp;ião; Mé­
rimée, inspetor de monumentos históricos; Dumas pai, expedicionário
a serviço do Duque de Orléans; J urien de la Graviere, oficial de
marinha; de Bornier, bibliotecário no Arsenal; Emílio Augier, secre­
tário-escrivão; Huysmans, chefe de gabinete; Coppée, funcionário d�
ministério; Theuriet, coletor de contribuições; de Curie), engenheiro;
Loti, capitão de marinha. fües dispunham apenas das vigílias e dos
raros tempos livres do dia para os seus estudos prediletos. Mas
respigavam os minutos como se recolhe o fino polvilho de ouro com o
qual se consegue plasmar uma jóia. Quem foi mais sobrecarregado
de quefazeres do que os Padres da Igrej a: administração de vastas
dioceses, prédicas, viagens, direção de comunidades religiosas? Quan­
tos volumes entretanto tiveram êles ocasião de escrever! Durant�
R UMO À CULTURA 65

trinta e cinco anos de episcopado Santo Agostinho escreveu nove


volumes in-fólio.
Que homem no século XIX foi mais ocupado do que Dom Bosco?
Entretanto, êste apóstolo da juventude, pai dos órfãos, fundador de
duas Congregações, achou tempo para escrever impof!ente número
de volumes.
Mons. d'Hulst deixou uma obra considerável apesar de ocupações
absorventes: a direção do Instituto Católico ultrapassava quase as
fôrças de um homem; êle foi ao mesmo tempo deputado pelo Finis­
tere e conferencista de Notre-Dame; dirigia igualmente retiros, pre­
gava sermões de caridade, promovia e orientava progressos científi­
cos, escrevia em revistas, compunha obras. "Um homem comido pelas
formigas! eis meu retratCl", dizia êle; "não é confortável, mas já que
Deus o quer, vivam as formigas ! " Qual era seu segrêdo para levar
a têrmo tantos trabalhos? Sua grande facilidade, sem dúvida, mas
também o labor incessante. Em tôda a parte, até nas salas de espera,
entre um e outro trem, escrevia cartas. Ainda corrigia cópias na
véspera da morte.

Não sejais daqueles que esperam as ocasiões•

.Esperar as ocasiões, belo pretexto para nada empreender, nada


acabar. E assim esperam-se dias, meses, anos. As faculdades se atro­
fiam, os mais belos talentos permanecem improdutivos.
Estêvão Lamy dizia de uma feita: "Nosso grande mal é o número
de moços que se julgam feitos unicamente para deveres extraordiná­
rios e aos quais nada se pode pedir abaixo do heroísmo. A pátria
está povoada de homens que não querem matar senão o leão; êles
o procuram tôda a vida, e quando morrem, a espingarda tem ainda
a primeira bala. Colocam o porvir em eventos fora do seu alcance e

menosprezam os resultados prometidos ao esfôrço cotidiano."


Esperar as ocasiões! As ocasiões, porém, não fazem os homens;
revelam-nos. "Naturalmente", diz Roosevelt, "tudo considerado, ne­
nhum homem pode criar a ocasião. Entretanto, quando a sorte se
oferece, somente um grande homem sabe vê-la e aproveitá-la. Em
segundo lugar, é mister lembrar-se que o poder de usar bem da sorte
não é dado senão ao homem que, fielmente e durante longos anos, se
preparou para a necessidade eventual."
66 L. RrnoULET

Branly nunca houvera feito suas descobertas imortais se tivesse


esperado as ocasiões. Êle começa por trabalhar seriamente no labora­
tório. O rádio-condutor, do qual todo o mundo fala esquecendo às
vêzes o inventor, o rádio-condutor é o coroamento de três anos de
pesquisas. Não sejais portanto "o homem que espera o leão". Cumpri
cada dia, sem perder um minuto, a tarefa que vos é imposta. Assim
no labor silencioso e recolhido, preparareis vosso futuro; que importa
se outros n ão fazem como vós. O resultado compensará amplamente
vosso trabalho e sacrifícios.

Tende em alta consideração o valor do tempo.

"O valor do homem", diz Emerson, "é proporcional ao aprêço em


que êle tem o dia." Alguns minutos utilmente ocupados cada dia
produzem maravilhas ao fim de alguns anos. Gotas de água acabam
por cavar a rocha mais dura. O trabalho lento de animálculos fêz
surgir continentes. Os mais grandiosos monumentos levantam-se ti­
jolo por tijolo e pedra por pedra. Que isto vos sirva de estímulo!
Depois de respeitar a Deus, respeitai o tempo que tle vos dá.
"Esteja o sol na aurora ou no ocaso", disse Kingsley, "apoderai­
vos da ocasião que tendes de iniciar o trabalho e de não perder
nenhum minuto. Desde a madrugada fazei vosso exame de previdên­
cia. Antes de cada estudo, antes de cada dever, renovai vossa reso­
lução. De tarde, examinai como empregastes o tempo. Agi destarte
cada dia e fareis maravilhas, em vez de sonhardes sem cessar." tstes
bons costumes adquiridos durante a juventude, acompanhar-vos-ão
tôda a vida, e tornando-a mais fecunda, lhe embalarão tôdas as
etapas num ritmo poderoso e suave!
Capítulo VI

CULTIVAI COM J�SMÊRO O SENTIMENTO QUE


VOS LEVA A AMAR OS LIVROS E O TRABALHO
INTELECTUAL

Montaigne escreveu nos Essais: "O trato com os livros acompanha


a minha carreira; êlé me consola na velhice e na solidão; descarrega­
me do pêso da ociosidade enfadonha; livra-me a todo o momento
de companhias que me irritam; insensibiliza as alfinetadas da dor,
a n ão ser que seja pungente ao extremo. Para me distrair de uma
imaginação importuna, n ão há como recorrer aos livros. É o melhor
preventivo que encontrei na humana travessia."
O amor dos livros é um dos caracteres mais evidentes de nobreza
de alma. Os monges da I dade Média consideravam a biblioteca como
o santuário mais precioso depois da capela. O bibliotecário de Saint­
Riquier escrevia no fim de seu catálogo: "Nossos livros são os ali­
mentos da vida celeste, fortificando a alma pela sua doçura; é por
êles que nossa casa de Centula viu cumprir-se a sentença: 'Ama a
ciência das Escrituras, e detestarás o vício'." Os livros eram para
éles tesouros. Ao menor sinal de alarma ao se aproximarem os Lom­
bardos, os Saxões, os Sarracenos, os Normandos, o primeiro cuidado
era de carregar em lugar seguro as duas coisas que mais afeiçoavam:
as relíquias dos seus patronos e os livros.

O amor aos livros se manifesta cedo debaixo da forma de instinto.

Desde a mais tenra infância, Santo Tomás de Aquino deixava de


chorar quando se lhe apresentavam livros ou manuscritos. Erasmo
dizia na juventude: "Quando tiver dinheiro, comprarei primeiro li­
vros, em seguida roupas." Luís Veuillot antes mesmo de saber ler
experimentava grande alegria quando era presenteado com livros.
68 L. RrnoULET

Consagrou os primeiros e magros recursos à compra de autores clás­


sicos nos alfarrabistas. Mais tarde quantas horas deliciosas não passou
no cais do Sena, folheando livros curiosos! Em 1 842, escrevia a seu
irmão: "Não podes imaginar com que frenesi consulto os alfarrábios. Eu
fico ali diante das gavetas, em pé, com alfarrábios nos bolsos -
alfarrábios debaixo do braço direito - alfarrábios debaixo do braço
esquerdo - alfarrábios em minhas mãds e que alfarrábios! . . . Al­
guns eu tomo por causa do nome da editôra, outros pelo formato,
outros pelo papel, outros pela sordidez . . . Entro em casa com a
carga dêstes horrores que não sei onde encafuar e que se encontram
já à altura de três pés no centro do meu quarto. Contemplo com
vergonha êste espetáculo e ainda assim recomeço na dia seguinte!"
O Cardeal Guibert tinha também desde a juventude, em grau
extraordinário, o amor aos livros. De família pobre, saboreava aquê­
les que lhe emprestavam, esperando algum dia realizar seu sonho:
rnmprá-los por conta própria. Ainda moço, oblato, enviado a Nimes
para a fundação de uma casa, são livros que êle reclama antes de
mais nada a seu superior, Mons. Mazenod, que se diverte com isso
e escreve no seu jornal: "Não vêdes que o caro Irmão Guibert dese­

jaria ter livros quando nem sequer tem cama e marmita! É bem
dêle!" Uma não menor inclinação se manifestou no jovem Tomás
Gousset que devia ser uma das glórias do episcopado francês no
século XIX. Até os 17 anos, freqüenta a escola primária, guarda
os animais e tange os bois. Mas enquanto os cavalos pastavam no
prado, Tomás andava a ler; enquanto seu pai rasgava o sulco,
Tomás pinicava com as pontas dos dedos o pedaço de pão que trazia
no bôlso; com a outra mão sustentava o livro. Aos 17 anos foi en­
viado ao internato de Ammance. N a véspera das férias de 1810, o
prefeito dos estudos escrevia ao pai: "Tomás vai voltar para as férias,
escondei os livros, êle não é razoável, mata-se no trabalho."
Mais tarde jamais perdia um minuto. Professor de teologia no
seminário maior de Besançon sempre se encontrava com os livros
e a caneta. O ecônomo, mais de uma vez, chegada a meia noite, teve

que lhe apagar a lâmpada. Não lhe pôde imputar senão excessivo
gasto de azeite.
Quantos outros exemplos poder-vos-ia citar! Vacherot, diretor
da Escola Normal Superior, afirmava de Taine o seguinte: "O aluno
RUMO À CULTURA 69

mais laborioso, mais distinto que eu conheci na escola. Instrução


prodigiosa para sua idade. Ardor e avidez de conhecimentos dos
quais ainda não vi exemplos. tle não é dêste mundo. A sua divisa
é a de Espinosa: Viver para pensar. Nesta época, Taine escrevia:
'Contanto que meu cérebro esteja cheio, o resto pode correr como
quiser. Estou certo de não enjoar'."
Bem cedo, às vêzes, a vocação se manifesta. Escutemos Termier
que lhe definiu as características: "Principalmente e antes de tudo o
entusiasmo; a continuidade do pensamento; a alegria profunda, fácil
de ler na limpidez do olhar que subjuga aquêle que é chamado,
quando se lhe fala do objeto de suas reflexões, de suas meditações,
de suas pesquisas; é a tristeza e o desânimo que nos mesmos olhos
se lêem quando a investigação foi vã e falaz, quando a beleza cobi­
çada, entrevista, quase captada se esvaiu." (La vocation du savant.)
Bendizei a Providência, meus caros amigos, se vos deu o amor
pelo estudo. Ela dotou vossa alma de um título de nobreza. Não
deixeis apagar esta chama preciosa; alimentai-a sem cessar pelo tra­
balho constante, por resoluções enérgicas e muitas vêzes renovadas.
A vida dos grandes homens que chegaram ao sucesso e à glória
por caminhos semeados de asperezas e cobertos de obstáculos exci­
tará em vós benéfica emulação. Não esqueçais olhar em volta de
vós; o exemplo dos jovens que conheceis, com os quais viveis, vos
será talvez mais útil para manter em vossa alma a sêde ardente da
verdade.
Não negligencieis a leitura dos livros que falam da beleza e das
vantagens do trabalho intelectual, da necessidade da formação de
elites, em nossa época sobretudo em que os condutores de homens
são raros.
Eu vos aconselho ainda agrupar pela meditação todos os motivos
que tendes de trabalhar com energia: razões de ordem temporal,
ordem espiritual, ordem estética, ordem moral e social. Reuni-as
como um feixe para delas vos servirdes nas horas em que a influência
do sentimento parece ter desaparecido.
Vivei de modo a manter intato o ardor pela sêde da verdade:
hábitos de silêncio e de concentração, observação exata do regula­
mento; afastamento de tôda ocasião de dissipação: contato com estu-
70 L. RrnoULET

dantes que, como vós, se acham apaixonados pelo nobilitante traba­


lho do espírito.
Agi de tal modo que o amor ao estudo se mantenha e se avive
cada dia em vossa alma, que êle vos acompanhe não somente du­
rante os estudos, mas tôda a vida. Achareis nêle uma fonte de ale-­
gria e de prosperidade.

'
O am or ao estudo torna o trabalho mais agradável.

Estudando com amor o cansaço desaparece; fica apenas a satisfação


procurada pela aquisição da verdade. O livro torna-se um verdadeiro
amigo com o qual se passam as horas mais divertidas do dia; amigo
sincero que não trai a verdade; amigo discreto que não importuna;
amigo serviçal, que prodigaliza riquezas com incansável paciência.
Companheiro nos dias de felicidade e nos dias de provação, tor­
na-se em tôda a parte o conselheiro Íntimo e o supremo consolador.
Espalha em tôrno de si a fé, o amor, a esperança, a ternura, a bondade,
a alegria. Ele tem tesouros de sabedoria, pensamentos que orientam
o destino e desabrocham em copiosas bênçãos.
Como não amá-lo? Êle nos revela as belezas da criação, üS se­
gredos da natureza; nos faz conhecer as altas especulações do espí­
rito humano, as deliciosas invenções da fantasia, as nobres ações do
gênio e da santidade. Êle canta o belo, o verdadeiro e o bem.
Por êle, somos introduzidos na mais nobre e na mais distinta
sociedade. Os grandes espíritos da humanidade nos falam como se
estivessem vivos, instruem, consolam, prodigalizam os tesouros de
suas almas. Que digo? vivem em sua obras : Homero, nas epopéias
imortais; Platão, em sua filosofia quase divin a; Dante Alighieri, nos
tercetos sublimes da trilogia; Pascal, nos Pensées que se fixam no
espírito, resistentes como o diamante. Bossuet nos fala sempre com a
majestade de um pontífice e a autoridade de um profeta; Voltaire
com tôda a ironia de seu sorriso destruidor; Chateaubriand com tôda
a riqueza de sua imaginação; de Maistre com a clareza de sua lógica
fulgurante.
Por que, pois, nos admirarmos se as grandes almas tanto amaram
os livros? Petrarca tinha ataques de hipocondria quando não podia
ler. Certa vez o bispo de Cavaillon, pediu-lhe a chave da biblioteca.
RUMO À CULTURA 71

O poeta l h a deu ignorando a intenção do amigo. O bom do bispo


lhe disse : "Proibo-lhe o trabalho durante 10 dias." Petrarca prometeu
obedecer-lhe. O primeiro dia pareceu-lhe de interminável duração;
no segundo teve dores de cabeça contínuas; no terceiro, febre. Com­
padecido do seu estado, o bispo deu-lhe a chave e logo o poeta re­
cuperou as fôrças. Paulo Luís Courier tomando parte na ocupação
de Roma, passava dias a fio na biblioteca do Vaticano, recurvado
sôbre os manuscritos, os incunábulos e as belas impressões vene­
zianas. Achava-se de tal modo engolfado no trabalho que, tendo os
franceses que deixar Roma pela pressão dos Napolitanos, esqueceu-se
de seguir com êles e somente à noite deixou a querida biblioteca,
quando já não havia mais nenhum soldado francês em Roma e por
pouco não foi morto. Mas . . . isto lhe era indiferente! Qual a paixão
que não tem seus perigos! Courier certamente preferia morrer por
um bom livro a morrer pela perda de um reduto. ( GERARDO BAUER.)
Lacordaire louvou magnificamente Drouot por estimar os livros.
"Uma obra-prima", disse êle, "era-lhe um ser vivo com o qual con­
versava, um amigo de serão admitido às mais íntimas expansões.
O tempo se passa em agradáveis entretenimentos do pensamento com
um pensamento superior; as lágrimas afloram aos olhos; agradece-se
a Deus que foi tão poderoso para dar às rápidas efusões do espírito
a duração e a vida da verdade."
Silvestre de Sacy dizia: "Se me tornasse cego, teria ainda prazer
em ter entre as mãos um belo livro. Sentiria ao menos o veludo da
encadernação e imaginar-me-ia vê-lo." "Deixai-me então com meus
livros", diz um antigo. "O lugar que os contém é uma côrte real
onde posso entreter-me a tôda hora com sábios e filósofos."
Felizes sereis, prezados amigos, se vos comprazerdes na sociedade
dêles. "Gostaria mais", diz Macaulay, "ser pobre em uma choupana
com bons livros, do que rei poderoso que não amasse a leitura."

O amor ao estudo é a condição do sucesso.

Todos os alunos distintos são laboriosos, devoradores de livros.


Igualmente os escritores que conheceram o sorriso da honra; todos,
poetas, críticos, romancistas, dramaturgos, foram devedores de sua
fama a uma espécie de febre do trabalho que os animava. Do mesmo
72 L. RI BOULET

modo os homens de ação; êles compreenderam que o labor intenso


de preparação é o grande meio de ascendência sôbre os espíritos, e
que se quisermos conquistar os outros, não devemos ir de mãos vazias.
"Os grandes artistas são trabalhadores insanos. Lede os aponta­
mentos de Victor Hugo para um único romance; lede igualmente as
cartas minuciosas de Balzac, de Flaubert, suplicando aos correspon­
dentes técnicos que lhes dessem os esclarecimentos precisos para
fixar um pormenor . . . Napoleão antes de ser grande general, era
homem que muito trabalhara." ( MAUROIS, Diálogos .róbre o coma1 do.)•.

Mas o trabalho que exige contínuos esforços, custa muito menos


quando é empreendido com o amor natural pelo estudo, com que a
Providência brinda as almas privilegiadas, e torna-se assim mais
rendoso. Tôda dificuldade vencida serve de encorajamento para
vencer novas; todo esfôrço prepara o esfôrço seguinte; todo sucesso
torna-se prelúdio de outro sucesso.
Aquêle que ama o estudo faz pouco caso do cansaço, muitas
vêzes superficial, que se sente no princípio do trabalho. Não se exas­
pera ainda quando a inspiração falha e o espírito parece rebelde.
Por uma aplicação mais constante, êle obriga-a, por assim dizer, a
voltar e ela vem.
Sem fanfarrice, aborda o trabalho com a confiança que faz au­
gurar bom resultado, e esta quase certeza de êxito suaviza as penas
e diminui as dificuldades.
Eis um belo exemplo desta disposição de espírito. O jovem Al­
berto Sorel planejou na juventude a idéia da História diplomática
da R evolução. Para levar esta obra a têrmo, é-lhe necessária vasta
cultura. Mas êle é apaixonado pelo estudo. "No bairro latino". diz
Donnay, seu sucessor na Academia, "Sorel não é estudante vulgar
que presta exames e consegue o diploma com o fito único de ser
mais tarde honesto tabelião, escrivão esperto, desembaraçado advo­
gado, ou juiz inflexível, quem sabe ? :E:le segue os Cursos da Sorbona
e do Colégio de França, as conferências da Escola de Arquivos. Lê
os poetas e os romancistas . . . Lê também os filósofos, os sociólogo.;,
Frederico Le Play. Aos vinte anos, termina as férias lendo com pra­
zer, diz êle, L'E.rprit de.r Loi.r. Lê tudo. Mais do que isso, êle próprio
é poeta, romancista, compositor. É sensível a tôdas as impressões,
RUMO À CULTURA 73

e cada impressão lhe revela, no momento azado, sua aptidão e pre­


ferência. Em suma a mais bela aspiração!"
Foi numa hora de entusiasmo que imaginou a sua obra capital.
Ficou deslumbrado. Porém, um raio não é a luz do dia. �le constrói
pacientemente o seu plano. Durante dez anos procura nos arquivos;
possui a embri aguez da documentação. Depois de 30 anos de trabalho
está concluída a obra e pode cantar, como historiador católico, o seu
Nunc dimittis.

Fazei, se fôr possivel, que êste amor pelo estudo chegue até
o entusiasmo,

Não é entusiasta quem quer. É preciso fibra, coração, uma certa


nobreza de espírito. O entusiasmo do estudante é o amor ao estudo
em sua mais alta expressão. Transforma o trabalho em alegria. Co­
nheceis, sem dúvida, as belas palavras da Imitação de Cristo: "O
amor torna leve o que é pesado . . . Leva sua carga sem lhe sentir
o pêso .. . A tôda medida, excede o seu ardor . . . Nada lhe pesa,
nada lhe custa, quer mais do que pode, não alega impossibilidades
porque julga que tudo lhe é possível e permitido. Por isso tudo pode,
realiza e leva a têrmo muitas coisas que esmorecem e prostram a
quem não ama." (Versão do Pe. LEONEL FRANCA, S. ]., Livro III, Cap.
V, passim. Livraria José Olímpio Editôra, 1 944.)
O entusiasmo é uma fôrça incomparável. "É o grande motor,
talvez mesmo o motor indispensável", disse Spencer. "Ter entusias­
mo", diz Hervé-Bazin, "é prender aos ombros as duas asas brancas
da pomba e com elas voar, muito acima da terra em direção aos
horizontes celestes."
Experimentou-se defini-lo dizendo que se compunha de dois ele­
mentos: idéia e chama; a chama que se acende no coração em cor­
respondência à idéia que está fixa no espírito. "É um estremecimen­
to que alcança o êxtase e que arrebata: Deus, ecce Deus: diziam os
antigos. Não se enganavam; no entusiasmo há algo de divino que
surge e extasia. Eis por que quando esta aura se apodera de nós, a
personalidade cresce, estamos dispostos a tudo vencer se fôr pos­
sível: deslocaríamos montanhas e de um arranque iríamos até os
confins do mundo." ( Pe. LÉMANN.)
74 L. RrnoULET

O entusiasmo dá aos estudantes de escol o fogo sagrado que os


anima, o ardor insaciável pela verdade, o desejo de perfeição artís­
tica, literária ou científica que orientam tôda a vida.
Mais ainda, os entusiastas são semeadores de entusiasmo. Barrés
.dizia certa vez na tribuna: "Há três ou quatro dias achava-me no
Instituto Pasteur. Roux tecia elogios ao grande homem que tão
bem conhecera. As palavras por êle proferidas, sensibilizaram-me for­
temente. Disse: 'O que havia de extraordinário nêle era o entusiasmo
-constante e comunicativo . . . A alma nobre, o gênio, constrói o seu
meio, influencia e transfigura ao seu contato homens e coisas . . .
Eis um homem do mais acendrado valor dotado de radioatividade
que caracteriza o homem superior; em volta dêle se agrupam ho­
mens a quem êle comunica as emanações de sua fôrça singular.
Suscita talentos e não somente de homens cujos nomes nos são fa­
miliares, mas ainda aperfeiçoa os anônimos, conseguindo assim le­
vantar a média humana'."

O entusiasmo pode ser despertado por tôda a sorte de traba­


lhos e estudos.

Até as ciências em que a imaginação tem papel reduzido, podem


provocar entusiasmo.
Entusiasmo do historiador. Como o de Agostinho Thierry, pro­
vocado por uma página dos Martyrs e continuado por tôda a vida,
ainda à custa de cruéis enfermidades. Em 1 834, êle escrevia estas
.admiráveis palavras: "Se tivesse que recomeçar minha carreira to­
rnaria a que me levou onde estou. Cego, sofrendo sem esperança e
quase sem interrupção, posso dar êste testemunho que, da minha
parte, não será suspeito: há no mundo algo que vale mais do que
as fôrças materiais, mais que a fortuna, mais que a própria saúde:
-é o devotamento à ciência."
Mons. Plantier, bispo de Nimes, tendo resolvido refutar a Vida
de Jesus de Renan, empreendeu êsse trabalho ainda que doente e lhe
consagrou dias e noites. Nesta altura estêve ameaçado de perder
uma vista. O médico, com lágrimas nos olhos, instava para que
abandonasse completamente o estudo. O prelado concluiu a obra,
mas, apenas finda a última linha, perdeu a vista. Dizia êle sorrindo:
(FOTO .ANl>ERSON)
A Filosofia, numa pintura de Rafael

Santo Inácio
de Loyola,
por A. Bosse
(l'OTO BRAUN)
Pasteur
(Quadro de Edelfelt)
RUMO À CULTURA 75

•·Dar uma vista, não é muito para defender a divindade de Jesus


Cristo." (Cr.ASTRON, Vie de Mgr. Plantier.)
Deve-se mencionar também o entusiasmo de Fustel de Coulanges,
que se impunha um trabalho de 8 a 10 horas diárias, recusando
qualquer exercício ou mesmo repouso e morrendo na empreitada,
esgotado pelo trabalho tanto quanto pela doença.
Carlos Lenormant escrevia a respeito de Ozanam: "Diz-se vul­
garmente de um pródigo ou de um libertino que êle queima o pavio
pelas duas pontas; perdoem-me a expressão trivial! Não acho outra
mais adequada para expressar a atividade assombrosa, a febre con­
tínua pelo bem e pelo belo que foi o traço característico de Ozanam
e que explica a sua curta existência."
Entusiasmo do químico. Pasteur distinguiu-se por um entusiasmo
constante e contagioso. Na Escola Normal, cada lição de seus mes­
tres acrescia o seu ardor pelo trabalho. Nos dias de folga não pensava
senão em manipulações. Guardou-se durante muito tempo na Escola
Normal, um frasco contendo 60 gramas de fósforo obtido com ossos
que êle adquirira de um açougueiro, calcinara e reduzira enfim, depois
de uma queima que se estendera das quatro horas da manhã até às
nove horas da noite, a essas 60 gramas. Na véspera do dia em que
devia aquecer o forno, Pasteur murmurava, ao deitar-se: ''Ainda sete
horas de espera antes de descer ao laboratório."
No dia em que descobriu a vacina carbunculosa, com a fronte
radiante e lágrimas nos olhos, dizia aos seus: "Não me consolaria se
uma descoberta como esta que acabamos de fazer, meus colaboradores
t: eu, não fôsse uma descoberta francesa."

O ilustre sábio estava pois perfeitamente qualificado para reco­


mendar, no dia de seu jubileu, o entusiasmo pelas ciências aos jo­
vens que o escutavam.
João Batista Dumas foi também um entusiasta. Certo dia escre­
via ao pai: "Ah! se fôsse possível que eu viesse a perder a avidez
pelo saber e pela investigação, a sêde pela ciência que por nada se
apagará, a vida não me ofereceria mais nenhuma consolação. Que
deleites acompanham o exercício das faculdades intelectuais! Diz-se
do saber o que se diz do poder: é o banquete dos deuses."
Entwiasmo do matemático. "O sábio digno dêste nome'', diz
Henrique Poincaré, "o geômetra sobretudo, desfruta em face de sua
76 L. RIBOULET

obra a mesma impressão que o artista : sua satisfação é tão grande


quanto a dêste e da mesma natureza . . . Se trabalhamos, é menos
para obter resultados positivos, aos quais o vulgo nos julga unica­
mente apegados do que para experimentar a emoção estética e co­
municá-la aos que estão aptos a senti-la."
O grande matemático Hermite comunicava a seu auditório a
emoção que experimentava em face de uma interessante demonstra­
ção. "Apelo'', diz Pautonnier, "para o testemunho daqueles que lhe
seguiram os cursos. Quando, os olhos brilhantes, a voz comovida,
como um poeta, como um vidente, êle falava das funções, sentia-se
que elas existiam, que êle as admirava verdadeiramente."
Entusiasmo do naturalista. Tournefort, desde os seus tenros anos
tinha pela botânica uma paixão tal que muitas vêzes deixava a aula
para colecionar plantas. Ele estudava as plantas nos campos das
circunvizinhanças de Aix: certos proprietários tomavam-no por la­
drão e atiravam-lhe pedras.
Em uma viagem pela Catalunha, foi mais de uma vez vítima
de furto e, para salvaguardar o dinheiro, escondia-o no pão negro
que lhe servia de comida. Foi até sepultado debaixo dos destroços
da cabana que lhe servia de abrigo.
Em 1700 fêz uma viagem ao Levante. "O amor das plantas nos
ocupava totalmente", disse êle. Com os companheiros, êle as procura
até mesmo de noite ao luar. Em Joura sacrificam o sono, receosos
de terem as orelhas roídas pelos arganazes; em Térmia, pouco faltou
que não fôssem fuzilados. Temem os grupos de ladrões. Galgam o
Ararat com mil dificuldades. São verdadeiros mártires da ciência.
Mas a descoberta de 1356 plantas novas, lhes faz esquecer tôdas as
contrariedades. "O amor das plantas", disse Tournefort, "superou
tôdas as dificuldades."
Entusiasmo do geólogo. Como o de Marcelo Bertrand, do qual
Termier nos deu uma fotocópia inesquecível: "A primeira vez que
viajávamos com êle sôbre o terreno, em países de enigmas e de
problemas", disse êle, "achávamo-lo estranho e brincalhão. Êle ca­
minhava rápida e infatigàvelmente, olhar distante como à procura
da caça misteriosa para a qual tôdas as faculdades se dirigiam, fa­
lando todo o tempo a meia voz ou em voz alta e discutindo sempre,
mesmo que não lhe replicassem. . . O calor e o frio, a chuva e o sol,
R UMO À CULTURA 77

a neve mesmo eram-lhe absolutamente mdiferentes; a hora do almô­


ço pouco o preocupava e repetidas vêzes o dia se prolongava até
alta noite . . . Depois de cinco ou seis dias de semelhantes investiga­
ções, suas roupas sujas ao contato das sedimentações e raramente
escovadas, apresentavam um aspecto lamentável, de que não fazia
caso."
Entusiasmo do pensador e do filósofo. José de Maistre escrevia
em 1805 : "Sinto-me abrasado mais do que nunca pela febre do saber.
Os livros mais curiosos me perseguem e vêm por si mesmos colocar-se
ao meu alcance."
O jovem sábio Papillon, falecido aos 25 anos, escreveu em suas
notas íntimas: "Para satisfazer a minha inteligência, teriam sido
necessários dias de 24 horas. Minhas aspirações eram infinitas e eu
não queria recuar diante de nada para chegar ao pleno conhecimento
de tôda a verdade, de tôda a harmonia, de tôda a beleza . . O .

homem que nunca se dedicou à investigação ignora quais sejam as


doçuras e gozos incessantemente renovados."
Entusiasmo do artista. lngres, enamorado da arte, quisera viver
na solidão. "Sem a estúpida dissipação daquilo que se chama o mundo
e a sociedade", dizia êle, "vive-se com reduzido número de amigos
e cultiva-se deliciosamente as belas-artes." Delacroix exclamava tam­
bém, aos trinta anos: "Que admiração eu tenho pela pintura! Estou
na fase da vida em que o tumulto das paixões desenfreadas n ão se
mistura mais às deliciosas comoções que dão as belas coisas."
Debaixo do golpe de uma inspiração instantânea, Mozart esque­
ce os cuidados que reclama sua saúde: as iguarias mais apetitosas o
deixam indiferente. Depois de prolongado devaneio, as suas faces
coram, seus olhos projetam raios; êle exclama como Arquimedes:
"Enfim achei ! " O que êle achou é o fim do terceiro ato de Don Juan.
O grande pianista Francisco Planté foi sempre entusiasta da arte.
Desde a idade de 7 anos trabalhou 10 horas por dia. Aos 92 anos,
em 1930, tocava para os amigos que vinham visitá-lo em sua residên­
cia, perto de Mont-de-Marsan. Depois de deliciar-se com Chopin,
durante 3 horas, êle diz à sua ouvinte, a Sra. Jacquemain-Clémenceau
mostrando-lhe a mão sempre flexível: "Nesses seis anos que não
nos vimos, não lhe parece que eu fiz progresso ? "
78 L. RrnoULET

É no categoria dos entusiastas que devemos procurar os már­


tires do ciência.

A vid a do sábio à procura da verdade assemelha-se à do soldado:


ela conhece os mesmos perigos, exige o mesmo sangue frio. Em todos
os gêneros de trabalho temos que deplorar vítimas. Sully-Prudhom­
me cantou esta sublime imolação:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . La vérité suscite,
Au plus timide front que son amour visite,
Une sereine audace à l'épreuve de tout.
lmrwuable, elle inspire à ses amants la force,
Et quand, de ses beaux yeux, on a subi l'amorce,
Affamé de l'attente, on vit et meurt debout.

Dulong perdeu um ôlho e dois dedos da mão direita estudando


o cloreto de azôto, um dos mais perigosos compostos que existem.
O geômetra Euler perdeu um ôlho em conseqüência da excessiva
aplicação ao estudo. Sem mais comoção acrescentou: "Terei menos
distrações."
O químico Regnault possuía admirável coragem moral. Um dia,
o vapor de enxôfre em ebulição incendiou o laboratório. Outra vez,

um matraz cheio de mercúrio a ferver, explodiu e lhe sulcou o rosto.


Mais tarde um recipiente de ferro cheio de ácido carbônico líquido
�xplodiu como um obus entre suas mãos.
Gay-Lussac foi vítima de várias explosões. Numa perdeu as
glândulas lacrimais e seus olhos ficaram vermelhos tôda a vida
Outra vez, um balão que segurava nas mãos explodiu causando-lhe
graves ferimentos.
O aluno de Pasteur, Luís Thuilier, sacrificou nobremente a vida
ao dever por causa da sua paixão pela ciência. Corria o ano de 1 885.
A cólera grassava no Egito. :E:le procurou a causa a fim de descobrir
o remédio. Durante dois meses viveu no meio de doentes e mortos,
inclinado sôbre os cadáveres envenenados e os esquadrinhava sem
mêdo com os olhos e com as mãos. O contágio que êle parecia pro­
vocar o atingiu um dia e o levou à tumba.
RUMO À CULTURA 79

Desde alguns anos, o número das vítimas da ciência vai aumen­


tando. É o Dr. Harnack, de Londres, atacado de dermatite em conse­
qüência de experiências com raios X para a cura do câncer. É o
Dr. Radiguet que, procurando captar os novos raios para empregá-los
na cura das doenças insanáveis, contrai dolorosas enfermidades e
sucumbe depois de um ano de atrozes torturas. É o Dr. Infroit, ra­
diologista na Salpetriere, que morre aos 46 anos após 20 anos de
sofrimentos causados por perigosas experiências. É o Prof. Bergonié
da Faculdade de Medicina de Bordéus. É enfim o Pe. Tauleigne,
vitimado em conseqüência de pesquisas radioscópicas. A lista é longa
e o martirológio dos radiógrafos já é considerável.

Os artistas pagaram o mesmo tributo ao sofrimento e à morte.


Segantini, o pintor de Engadine, foi vítima de seu amor pelo belo
e pela verdade. Em 1 899, preparava êle a terceira parte da trilogi;1
intitulada: a Vida, a Natureza, a Morte. Todos os dias com um frio
de 20 graus deixava a vila e se dirigia para as solidões frias. As côres
gelavam sôbre a palhêta. Até os grandes cães de S. Bernardo abando­
navam o lugar, e Segantini pintava com furor horas a fio. Um dia,
não tendo mais água, bebeu neve derretida. Sentiu um mal estranho
que em breve o prostrou sem vida. O cortejo fúnebre a_ue trans­
ladou por entre os glaciares o corpo de Segantini, reproduziu quase
trecho por trecho, matiz por matiz o último quadro que êle termi­
nara e intitulara Tristezza ou a Morte.
O pintor russo Verestchaguine foi igualmente vítima de sua de­
dicação à arte. Faleceu a 13 de abril de 1904 no naufrágio do Petro­
pawlosk, ao lado do Almirante Makharoff quando ainda fazia esbo­
ços. Devia morrer assim, pois tôda a vida estivera beirando o perigo.
Durante o conflito russo-turco em 1 877, um dia em que os russos
bombardeavam Giurgevo, lançou-se êle em um navio abandonado
pela tripulação. Descreveu assim as suas impressões: "Era interessante
ver as bombas caírem na água, um jato de líquido elevava-se a
grande altura. Quando vi a primeira passar, pensei: o lugar em que
estou agora vai ser atingido, vou ser precipitado na água e todos
ignorarão o meu fim." Era assim que êle recolhia impressões antes
de as expressar em obras vivas, e a morte que tantas vêzes enfren-
80 L. RrnolJLET

tara, o havia de sepultar em pleno fogo da peleja em meio às vagas


agitadas violentamente pela tempestade e pelos obuses .

• •

Possam êstes exemplos, prezados amigos, incentivar cada vez mais


o amor pelo estudo e pelo trabalho intelectual. Em certa época, es­
têve em moda ostentar um cepticismo desconcertante e escarnecer
das coisas mais sagradas, ser insensível a tudo e afetar uma tal ou
qual insensibilidade: considerar a poesia como asneira; menosprezar
as obras-primas literárias; bocejar durante discursos eloqüentes; ter
horror às conversas sérias. Montalembert julgou-se obrigado, em dia
de reunião plenária do Instituto, a verberar tal atitude. "Há", dizia
êle, "no seio da nossa querida juventude, uma porção muito nu­
merosa, mais numerosa que antigamente, parecendo enlanguescer,
indiferente e gasta, os olhos afastados de todo e qualquer fim elevado,
de tôda e qualquer responsabilidade pessoal, tíbia e desconfiada em
relação a tudo quanto ultrapassa o nível comum; ela parece cansada
antes de ter combatido, desanimada pelos perigos que não conhece,
faminta do repouso que não mereceu e resignada às falsas alegrias de
uma segurança efêmera. Desejemos-lhe as delicadas sobrancerias e os
sentimentos de brio que são os característicos das almas nobres;
àesejemos-lhe as poesias da adolescência e os entusiasmos da juven­
tude que geram sacrifícios e transformam mundos. Desejemos-lhe
até paixões, se fôr preciso; sim paixões a dominar, a disciplinar, a
fecundar, porque tudo isso vale mais para ela do que a decrepitude
precoce e o cepticismo corruptor."
Provàvelmente não quereis pertencer a esta categoria de jovens.
Alimentai cada dia, por um trabalho ardente, a paixão que vos leva
a procurar mais luz e mais verdade. Aprendei a elevar-vos acima dos
interêsses grosseiros e dos prazeres passageiros. Tomai rnodélo nos
antepassados, como Ozanam, por exemplo, de quem se disse: "Nunca
em meu caminho, encontrei homem que tomasse tão fortemente a peito
as grandes coisas, a poesia, a religião, a arte, a eloqüência e a filo­
sofia. Era um espírito de escol, perseguido por assim dizer pela paixão
dos grandes ideais e dos nobres sentimentos."
R UMO À CULTURA 81

Rostand, depois d o sucesso d o Cyrano, dirigindo-se aos alunos


do Colégio Stanislas, recomendava-lhes terem brio e serem entu­
siastas:

S'il fait nuit, bat tez-vous à tâtons contre l'ombre;


Criez éperdument lorsque c'est mal: "C'est mal!"
Soyez pour la beauté, soyez contre le nombre.
Rappelez sur la plage sombre
Le flot chantant de l'idéal.

Ayez de l'âme; ayez une âme; on en réclame!


De mornes jeunes gens aux grimaces de vieux
Se sont, apres un temps de veulerie infâme,
A perçus que n'avoir pas d'âme,
e·est horriblement ennuyeux.

Le panache! et pourquoi n'existerait-il plus?


Le front bas, quelquefois on doute, on s'inquiete,
Mais on n'a qu'a lever la téte,
On le sent qui pcnuse desrns!

Une brise cforgueil le souleve et l'entoure.


Il prolonge en frissons chaque sursaut du cceur.
On l'a des que d'un but superbe on s'énamoure
Car il ajoute à la bravoure
Comme à la jeunesse sa fleur.
Capítulo VII

DAI UMA DIREÇÃO INTELIGENTE ÀS


INCLINAÇÕES QUE VOS LEVAM À PROCURA
DO VERDADEIRO E PROSSEGUI VOSSO
TRABAI.JHO NO SII.JÊNCIO E NO
RECOLHIMENTO

Já vos disse algumas palavrinhas quanto à formação dos bons


hábitos intelectuais que são "causas de sucesso e se tornam uma
bênção para a vida".
Volto ao assunto e apresentar-vos-ei algumas considerações sôbre
o bom emprêgo da curiosidade, sôbre a atenção, o espírito de obser­
vação e de recolhimento, o amor da solidão e do silêncio. Possa eu
vos fazer compreender melhor a necessidade de orientar os pendores
favoráveis ao estudo, de alcançar o domínio de vós mesmos, condição
fundamental do silêncio e do recolhimento! Nesta altura, tereis que
desconfiar de vossa própria inconstância, e obtereis resultados conso­
ladores caso procederdes com inteligência e espírito de seqüência.

Dai à curiosidade uma direção que a torne sã e fecunda.

A curiosidade é uma tendência que vai ao encontro da instrução,


uma ânsia de saber, uma aspiração para o desconhecido. Definiram-na
com acêrto "a fome e a sêde do verdadeiro".
É a fonte e o sustentáculo da atenção. "Tudo o que excita a curio­
sidade, como a surprêsa, a novidade e a variedade", diz Queyrat,
"excita ao mesmo tempo a atenção. A mobilidade ou o capricho de
uma, torna a outra fugidia e distraída, desviando-se o espírito daquilo
que o não interessa mais."
Desde a infância, ela se manifesta sutil, impaciente, alada, sem­
pre de atalaia; e êste instrumento de estudo tão delicado, tão volúvel,
tão caprichoso, tão incapaz de continuidade, de profundidade, de
Rul\10 À CULTURA 83

fixidez, é a grande mola da inteligência durante a primeira fase da


vida.
Mais tarde, tal propensão leva-nos à observação exata: queremos
ver, tocar, saborear, conhecer pelas causas. Nunca estamos fartos.
"Luz! Mais Luz!" dizia Goethe moribundo. É a exclamação de todo
ser inteligente ao encalço da verdade.
Em si, a curiosidade é excelente. É uma das manifestações d a
inteligência; por meio dela o homem aproveita todos o s instantes
de que dispõe para instruir-se e ilustrar-se sempre mais, orna seu
coração com emoções que elevam e purificam, afirma sua consciên­
cia moral e trabalha na educação da vontade.
Mas ela possui variantes que deveis afastar.
Guardai-vos da curiosidade frívola que leva a tudo ver, tudo
conhecer, tudo ler, tudo possuir. Mons. Dupanloup teme-a, pois pro­
duz, de ordinário, a mobilidade sem limites, a dissipação eterna que
arrebata os momentos, as horas, os dias. Com tal defeito nenhum
trabalho sério é possível.
Ela se compraz em notícias sensacionais: acidentes, crimes, tra­
paças, furtos; é o quinhão dos espíritos incultos e limitados. La
Bruyere esboçou em traços indeléveis o retrato do curioso por pro­
fissão. Ele no-lo apresenta assistindo a execuções, a fogos de artifício,
ao circo, à recepção dos embaixadores, às partidas de caça, às revistas
<las tropas. Nada lhe escapa: sabe que um pântano de Vincennes foi
drenado, que certa pessoa está doente, que tal ator está tão endeflu­
xado que não poderá cantar antes de oito dias.
O curioso de hoje não tem menos ocupações: são as corridas,
o futebol, o teatro, o cinema, a televisão. É a paixão, ou me­
lhor a mania de colecionar. La Bruyere dá-nos a conhecer o ama­
dor de tulipas, de ameixas, de estampas, de pássaros, de insetos. No
século XX temos os colecionadores de selos, de postais, de cachimbos,
de bengalas, de trajes. Mark Twain, como bom humorista, fala-nos
dos colecionadores de chocalhos de vacas, de lascas de tijolos, de ma­
chados de sílex, de baleias empalhadas e . . . de revistas.
Temos ainda o bibliômano - e há tantos entre os jovens - que
têm uma biblioteca atulhada de livros dos quais faz admirar a en­
cadernação, a qualidade do papel, a beleza da impressão, mas em
que jamais toca e cujas fôlhas não foram ainda abertas.
84 L. RrnouLET

Será preciso falar-vos da curiosidade do erudito? Conheceis a


página de La Bruyere. �sse Hermágoras, a quem os nomes de Heri­
gebal, de Evilmerodaque e de Mardokempad são tão familiares como
a nós os de Valois ou Orléans, crê de boa-fé que Henrique IV é filho
de Henrique III.
Outro passa a vida a decifrar as línguas orientais, as do Norte
e das duas Indias, a que se fala na lua e na estrêla polar, e ignora

voluntàriamente as coisas mais simples.


Em si, tal curiosidade é, freqüentes vêzes, muito inocente, mas
quantas horas preciosas não faz perder!
Guardai-vos da curiosidade malsã que, muitas vêzes, se relaciona
intimamente com a curiosidade frívola. É a conseqüência de certos
gostos depravados. Explica a avalanche que arrasta as multidões a
determinadas sessões de tribunal, às lutas de boxe, aos espetáculos
perigosos, às exibições públicas. Os jornais favorecem admiràvelmen­
te esta inclinação quando narram por extenso os crimes dos bandidos
de todo gênero, e procuram motivos de escândalo. O filósofo Caro
.deplorava amargamente o mal ocasionado pela imprensa de baixo
calão. "Tôdas as tardes", dizia êle, "podeis estar certos de que, em
hora marcada, a população esfaimada reivindicará a sua ração dos
acontecimentos do dia, dos escândalos da vida privada . . . atirada
sôbre esta pista, a curiosidade não pára mais. Quando triunfa a
literatura de personalidades, é o indício infalível de que a literatura
.de idéias declina. O público não pode servir dois mestres ao mesmo
tempo."
Tal tendência ainda existe. "Que jantar teria o leitor", diz Quey­
rat, "se o jornal não lhe trouxesse cada dia um escândalo? Embota­
·do, o paladar do público é cada vez mais exigente. Precisa de pi­
menta e grande quantidade de condimentos. Há certa imprensa que
lhe agrada a contento."
Qualquer atividade que prejudicar os estudos deve parecer-vos
-suspeita, pois que não está mais na ordem. Não tenho que vos pre­
venir contra a curiosidade insensata que pode levar até o absurdo,
como a procura do elixir da longa vida, da fonte de Juventa, da
pedra filosofal, da arte de fazer renascer as plantas das cinzas ou
do movimento contínuo, e outras utopias de que os homens se ocu­
pavam em épocas já remotas. Hoje, dirige-se a curiosidade para ou-
RUMO À CULTURA 85

tros problemas. Não é raro encontrar jovens, devendo preparar-se


a exames muito sérios dos quais depende o futuro, que se apaixonam
pelos fenômenos do ocultismo e do espiritismo, que passam longas
horas nas bibliotecas a ler àvidamente tôda a sorte de obras sôbre
assuntos estranhos a seus estudos. Outros querem devorar todos os
romances da moda; não falo dos amadores do teatro e do cinema.
Pobres estudantes e pobres estudos! Como depois se admirar dos
múltiplos desastres que fazem dêstes sêres sem caráter uns fracas­
sados, uns desclassificados e descontentes?
Mas há uma perversão maior ainda: é a tendência mórbida a
procurar o que é suspeito ou francamente mau. Ter-se-á um gôsto
medíocre pelos livros bons e belos do nosso patrimônio literário, mas
� literatura neutra ou perversa será objeto de predileção especial.

Tanto os mandamentos de Deus como as regras do fndex não terão


voz ativa. Não podemos ler tudo, quando atingimos certa idade? Não
temos direito de verificar se tal livro é ou não nocivo? O bom jornal
é suspeito e compra-se o mau alegando que se deseja ver os dois
lados da questão. Tais palavras magoam o coração sobretudo quando
católicos ousam pronunciá-las. Não imiteis os que se deixam levar
a tais excessos.

Tal curiosidade parece mais viva nas épocas de decadência. Que­


remos servir ao mesmo tempo a Deus e a Satanás; queremos o bem
mas conservamos apêgo ao mal. Temos disto exemplos curiosos du­
rante a segunda metade do século XVIII.
O burguês Marais é muito piedoso, detesta Voltaire e sua filo­
sofia "horrenda e digna de ser queimada". No entanto, Marais é o
amigo entusiasta de Bayle, levanta-lhe um templo, e ri às gargalha­
das dos milagres de Maria Alacoque.
O advogado Barbier é homem de ordem; crê nos milagres. E no
entanto está na pista de todos os livros suspeitos ou proibidos: En­
saio .sóbre o.s costumes, o Sermão dos Cinqüenta, a Enciclopédia.
D'Argenson considera Voltaire, Diderot, Rousseau, uns canalhas.
No entanto não tem limites o seu desprêzo pelo bigotismo, as tolices
e as lengalengas dos teólogos.

A Senhora de Frénily é piedosa, mas quer que o filho possa dizer


aos filhos de seus filhos: "Vi Voltaire! "
Cultivai a curiosidade .s ã e fecunda: aquela que está n a ordem,
86 L. Rr nouLET

aquela que será para vós o penhor de sucessos. Seus aspectos podem
reduzir-se a dois: a curiosidade prática e a curiosidade científica.
A primeira é orientada segundo a profissão, o ofício exercido ou
que se deseja exercer. Cultivai-a para que estejais a par dos pro­
grc�sos mais recentes dos estudos que seguis e conheçais as desco­
bertas, as viagens científicas, as invenções, os artigos importantes
das rtvistas. É um elemento de sucesso. "Na América", diz Huret,
"cada especialista, cada engenheiro, cada contramestre, pergunta-se
constantemente o que seria preciso fazer para que a máquina pro­
duzisse mais e mais depressa."
A curiosidade científica é de um grau mais elevado. É o apanágio
do espírito de escol; o ignorante não se admira de nada; o espírito
medíocre está sempre satisfeito; tudo lhe parece natural, e n ão pro­
cura as razões, isto é, as causas e as leis.
A ausência de curiosidade é deplorável num estudante. Não nos
apaixonamos jamais por um estudo quando não experimentamos
desejo de chegar ao âmago das questões de investigar as causas
"Temos bastantes livros aqui", declara a governanta de Sylvestre
Bonnard. "O senhor tem milhares e milhares que lhe transtornam a
cabeça, e eu tenho dois que me bastam, Meu Livro de Rezas e a
Cozinha Bu:·guesa."
A verdadeira curiosidade engrandece a alma, enobrece-a, dirigE'
sua atividade para fins realmente úteis e verdadeiramente dignos
dela. O desejo da verdade torna-se uma paixão, "paixão generosa'',
diz Maillet, "que depois de ter absorvido a juventude e a maturidade
dos homens, recusa-lhes o descanso da velhice e impele-os a con­
tinuar suas pesquisas e especulações enquanto lhes restar esperança
de conquistar qualquer coisa sôbre o desconhecido".

Disciplinai cuidadosamente a atenção: pela influência que exer·


ce sôbre tôdas as faculdades, é o primeiro fator de progresso.

A atenção consiste em ocupar-se dum assunto com exclusão de


qualquer outro. É a qualidade por excelência e, por assim dizer, a vir­
tude capital do estudante. Não é a condição da ciência, mas coloca as
faculdades nas condições favoráveis a seu exercício. O problema da
educação está quase resolvido quando se conseguiu tornar o aluno
atento.
RUMO À CULTURA 87

Seu papel é considerável sóbre as faculdades de aquisição. Ela é


uma análise, pois que concentra a atividade sôbre um assu:-ito só.
Desta forma torna as percepções mais distintas; é para o ôlho do
espírito o que o microscópio ou o telescópio é para o ôlh.:i do corpo;
é para a consciência o que a concentração da pupila é para a vista.
Ela detalha, penetra, classifica os materiais que lhe são apresen­
tados; torna permanentes as noções adquiridas, firma-as, estabili­
za-as. É o buril da memória, disse Montaigne.
Sua influência é muito grande sóbre as faculdades de elaboração.
Torna as idéias claras e distintas afastando o que não lhe interessa
e concentrando o espírito sôbre o assunto que escolheu. É o princípio
da abstração, do juízo e do raciocínio; permitindo o exame sério das
idéias e das coisas, ela preserva dos erros provenientes da precipitação.
"A grande fôrça de Pasteur'', escreve o Dr. Roux, "é que êle
podia, sem se enfadar, conservar o pensamento concentrado sôbre
o mesmo objeto. Seguia uma idéia sem se deixar distrair e a ela
relacionava tudo. Pode-se afirmar que fêz suas descobertas refletindo
sempre nelas. Seu pensamento tenaz prendia-se às dificuld:i.des e
terminava por resolvê-las como a chama intensa do maçarico cons­
tantemente dirigida sôbre um corpo refratário termina fundindo-o."
Na atividade criadora, ela vem em auxílio à imaginação.
"A meditação é a irmã do gênio", disse Victor Hugo. Foi pensando
sempre no mesmo objeto que Newton descobriu a gravitação uni­
versal. É concentrando o espírito sôbre uma idéia que se lhe percebem
tôdas as faces. "A invenção", diz Buffon, "depende da paciência.
É preciso ver, considerar demoradamente o objetivo; então êle se
aesenrola e desenvolve pouco a pouco, sentis um pequeno choque de
eletricidade que vos bate na cabeça e ao mesmo tempo vos prende o
coração: eis o momento do gênio. É então que se experimenta o
prazer de trabalhar." A atenção é, pois, indispensável para qualquer
conhecimento.
Na vida, é o primeiro elemento de êxito.
Para ter sucesso, é preciso estar atento ao que se diz, ao que se
faz, ao que dizem e fazem os outros. O estudante distraído acumu­
lará mais tarde os esquecimentos, as imperícias, as faltas. Só vencerá
aquêle que estiver totalmente entregue ao trabalho, que souber rc::­
fletir e elevar-se acima da tarefa maquinal.
88 L. RIBOULET

Mas, talvez conheçais menos o papel moral da atenção. Ela age


sôbre a sensibilidade a ponto de modificá-la profundamente e até de
suspendê-la. O artista apaixonado pela música torna-se indiferente a
qualquer outra impressão quando escuta uma bela sinfonia. Arqui­
medes, absorvido por um problema de geometria, não percebe a
tomada de Siracusa, não ouve a voz do soldado que o interpela. Ela
torna o prazer mais delicioso, a dor menos intensa, como também
pode agravar as penas físicas e morais até torná-las intoleráveis.
A atenção desenvolve a energia e a vontade; ela produz o esfôrço,
indispensável na vida moral como na vida intelectual para lutar con­
tra as más inclinações e desenvolver os bons hábitos. Afasta o espírito
do objeto que provoca as paixões e encaminha-o em outro sentido.
Afinal, é a condição de todo ato humano, pois que preside à deli­
beração, antecedente do ato voluntário.
Longe de ser uma anomalia como pretende Ribot, a atenção é a
atitude normal do homem.
Fora dela, êle não passa de um empírico, e age como os animais,
por instinto ou rotina.
E agora permiti que vos dê alguns conselhos práticos.
Vivei na calma e trabalhai para adquirir o perfeito domínio de
v6s mesmos. Tôda comoção prolongada tem por resultado uma exci­
tação prejudicial à atenção. Lutai contra tôdas as más solicitações
e desfrutareis uma calma benfazeja favorável ao estudo.
Considerai as emoções que vos podem perturbar como incidente�
passageiros aos quais é preciso ligar pouca importância. Arranjai
uma diversão e afogai em pensamentos diferentes a idéia que vo.>
deprime ou desanima.
Elevai-vos acima dos sentidos e das más inclinações; libertai-vos
de todo ódio, de todo temor, de tôda causa de excitação, de tôda
dúvida e de tôda pena se fôr possível, e a atenção vos será fácil.
A calma é criadora e acumuladora de energia. "O homem que
quer ser forte", diz o Dr. Frédault, "poupa-se, n ão se gasta na pri­
meira oportunidade, mas concentra-se, pronto para dar, quando fôr
preciso, uma energia tanto maior quanto mais condensada. É assim
que homens fracos na aparência são no entanto mais enérgicos e
poderosos que outros naturalmente mais fortes."
Tomai o hábito de concentrar o espírito sôbre um objeto até
RuMo À CULTURA 89

obterdes um conhecimento perfeito. Realizai vossa tarefa como se


fôsse apenas uma. E o segrêdo de todos os sucessos. Mesmo os gran­
des gênios só venceram pela concentração de suas faculdades sôbre
o objeto de seus estudos e pesquisas. Budé tinha o espírito absorto
por trabalhos filológicos. No dia de seu casamento trabalhava como de
costume nos Comentários. Foi-lhe enviado um embaixador para
chamá-lo à realidade.
"E a concentração do espírito'', diz Blair, "que o mais das vêzec;
diferencia da multidão o homem dotado de grandes qualidades. Os­
sêres vulgares não conhecem nem regra, nem meta na sua marcha
aventureira. Os assuntos flutuam na superfície de sua alma como a�
fôlhas que o vento faz voar em tôdas as direções."
Entregai-vos totalmente ao que: fazeis. N ão sejais partidário do
mais-ou-menos. O mais-ou-menos é uma covarde capitulação diante­
do esfôrço perseverante; quem se contenta com êle "não sabe ganhai
com o suor da fronte o pão da alma", segundo a linda expressão de
Malebranche.
No hospital S. João de Bruges há um famoso quadro de Memling,
o Relicário de Santa úrsula. O artista Memling, acrescentou à assi­
natura estas palavras: "É o melhor que pude produzir." Lição magní­
fica de trabalho consciencioso! A excelente revista, o Eco de Massillon,
destaca algumas conseqüências que dizem respeito aos estudantes.
"Pràticamente, diante duma lição a estudar, dum conhecimento a ad­
quirir, é preciso dizer, em dado instante: 'Saberei fazer isto, quero pene­
trar-lhe o sentido para compreender; quero fixar na memória o con­
JUnto e os pormenores, de maneira que o n ão perca mais de vista.
É o mesmo que dizer que só vale o esfôrço ativo e concentrado, bem
diferente do esfôrço - se é que se pode chamar esfôrço - que con .
siste em ler diversas vêzes, de modo distraído, a matéria do estudo,
ficando no entanto passivo."
Tudo o que fazeis para manter ou melhorar a saúde aproveita à
atenção. Ribot nos ensina que a atenção vem acompanhada de três
espécies de fenômenos: fenômenos de circulação: o sangue aflui aos
órgãos, particularmente aos centros cerebrais. E se a circulação é
defeituosa, se o sangue está depauperado, a atenção será menos enér­
gica; fenômenos respiratórios: a respiração regular favorece a atenção:
quando é irregular, resulta a fadiga que diminui a atenção e até a
90 L. RrnoULE'!'

torna impossível; fenómenos motores, que põem os órgãos dos sen­


tidos em estado mais favorável: convergência e acomodação dos olhos,
tensão do ouvido, privação de todo movimento. Tal atitude é penosa
e até impossível quando a saúde é má.
Tomai pois todos os meios para fortificar o corpo; praticai a
respiração profunda, procurai passatempos necessários e sobretudo
renovai as fôrças por um sono reparador.
Todo progresso da vontade é favorável à atenção. Certos psicó­
logos pretenderam ver na atenção uma inibição. Não é a atençãC'
que se fixa sôbre a idéia, afirmam; é a idéia que por sua intensidade
determina a atenção. Esta teoria encerra uma parte de verdade, mas
não leva bastante em conta a vontade que escolhe e favorece:: as
associações úteis. Sem dúvida, nossa vontade não procede sempre
com igual êxito pois que, às vêzes, o espírito está inquieto ou preo­
cupado, mas ela pode restabelecer a atenção à fôrça e obstar-lhe
fugas demoradas. Sua ação é particularmente eficaz na distração.
Renovai muitas vêzes as resoluções que tomastes de vos dedicar
inteiramente à vossa tarefa: "Quero estar atento! Hei de saber esta
lição custe o que custar! Quero adquirir a liberdade de espírito!"
Nicolau Poussin dizia que é preciso merecer a lucidez de espírito
pela assiduidade ao trabalho e nunca fugir da pista, isto é, fazer
apenas uma coisa de cada vez e não deixá-la antes que esteja pronta.
Afinal tudo o que leva a acatar o trabalho intelectual é um esti­
mulante para a atenção. O sentimento é um excitador de potência
sem igual. Caso ignoreis as alegrias do trabalho intenso, saboreai-as
uma vez, e haveis de querer renovar êste deleite.
O trabalho tornar-se-á então delicioso para vós. "Quando estamos
presos a uma série de trabalhos'', dizia Papillon, "estamos enlevados
pela contemplação sempre presente da verdade; não a perdemos mais
de vista. Abismamo-nos com tal embriaguez no trabalho que nada
nos poderia distrair."
Paulo Bourget falando do trabalho intenso de Brunetiere, dizia:
"Sua vida verdadeira não era a do professor; era a do estudante,
quando sozinho à mesa de trabalho e entre os livros, começava a
trabalhar depois de ter lidado. Estávamos maravilhados com isso,
nós, seus amigos. Quando se conheceu Brunetiere moço, os milagres
de trabalho não parecem impossíveis."
R UMO À CULTURA 91

Tornai-vos observador e disporeis d e um maravilhoso instru­


mento de formação intelectual.

A observação, já o sabeis, concentra o espírito sôbre o objeto


para obter um conhecimento claro e preciso: é o hábito da atenção.
Ela ensina a servir-nos dos sentidos com justeza e prudência e
habitua a julgar cuidadosamente os seus dados; mas acima de tudo
ela mantém a inteligência de atalaia a fim de nos fornecer um apanha­
do exato de tudo quanto se passa em nós e ao redor de nós.
Dirigi pois em primeiro lugar o olhar da atenção sôbre vós mes­
mos. A gente é, em excesso, levada a se exteriorizar. Conhecer-se .i
si mesmo com imparcialidade, com as qualidades, defeitos, fôrças,
fraquezas, inclinações, recursos infinitos, que satisfação e que luz
para a direção dos estudos e a orientação da vida!
Observai os outros: aprendereis mais nisso do que em alentados
volumes. Tal estudo há de moderar vossos juízos; ensinar-vos-á que
ninguém está isento de defeitos, que os mais imperfeitos podem ao
menos ter os germens de excelentes qualidades. As sombras fazem
ressaltar melhor a luz. "Pintai-me tal qual sou, com minhas verru­
gas", dizia Cromwell a seu pintor Cooper.
Observai as coisas. Aprendei a bem perceber a realidade. Santo
Tomás insiste sôbre a necessidade de se apoiar sôbre o real para
julgar com acêrto, pois que, diz êle, a realidade é a última meta do
juízo. Ora o fim deve iluminar a estrada. A observação baseada sôbre
as coisas tornar-se-á para vós fonte de idéias; tudo vos instruirá: a
haste da plantinha, o arbusto florido, as gotas de orvalho, o raio de
sol, os queixumes das árvores agitadas pelo vento, as ondulações d as
searas, o murmúrio dos riachos, o cintilar das estrêlas. Onde os
outros não virem nada, descobrireis harmonias; as belezas da criação
vos extasiarão, vossa alma se arrojará para o infinito, e ouvireis os
astros proclamarem pelo espaço em fora a glória do supremo orde­
nador dos mundos.
Tal hábito de observação prestar-vos-á imensos serviços. Como
tão bem o disse o Pe. Sertillanges, ela porá vosso espírito "em per­
pétua disposição para refletir, ver, escutar, para atingir no vôo, como
o caçador, a prêsa que passa".
Se achais que o espírito de observação é necessário a certas ca-
92 L. RIBOULET

tegorias de estudantes, desiludi-vos, é indispensável a todos; mos­


tra-o a experiência à saciedade.
O espfrito de observação é indispensável às pesquisas científicas.
"As grandes descobertas", diz o Pe. Sertillanges, "não passam de
reflexões sôbre os fatos comuns a todos. Os homens passaram mi­
lhares de vêzes sem nada ver, e um belo dia o homem de gênio
observa os laços que unem ao que ignoramos o que está sob nossos
olhares a cada momento." E a história das descobertas confirma
amplamente estas palavras. Antes de Galileu notara-se perfeitamente
o balanço dos corpos suspensos; mas êle foi o primeiro a tirar con­
seqüências disso. A lenda leva-nos a crer que foi a queda de uma
maçã que encaminhou Newton a imortais descobertas. Será que antes
dêle ninguém tinha visto maçãs caírem? A primeira idéia de cons­
truir um túnel sob o Tâmisa foi dada a Brune) por um pequeno
inseto que furando a madeira com uma broca microscópica, conseguiu
passagem através de um tronco.
A maioria das descobertas de Cláudio Bernard, de Pasteur, de
Fabre tiveram por ponto de partida o seu maravilhoso tino de
observadores.
E será sempre assim. O Eng.º Jorge Claude cita dois casos em
que a observação dum fato, quase insignificante em si, haveria de
acarretar os mais admiráveis resultados.
O primeiro é a descoberta dos aços niquelados. Um dia trazem ao
Departamento nacional de pesos e medidas um pedaço de metal do
qual se desejavam fazer pesos industriais. Apresentam-se inconve­
nientes e o metal é abandonado, quando Cláudio Guillaume, jovem
físico do Departamento nacional, estaca perante um fato inespl!rado:
medindo a dilatação do metal, acha-a negativa: j á é estranho; porém
o jovem sábio percebe imediatamente algo de mais interessante.
Ser-lhe-á suficiente preparar algumas ligas com diferentes proporções
de ferro e níquel para construir a curva das dilatações em função das
proporções. Nota-se então que a curva passa por zero para uma
determinada proporção que, n ão há dúvida, corresponderá a uma
dilatação nula. Que achado para um físico! A experiência é demons­
trativa, as previsões se confirmam: é a descoberta do invar, é a
geodésia por terra, é a relojoaria renovada, é a fabricação das lâm-
R UMO À CULTURA 93

padas, livres da custosa escravidão imposta pela platina. A recom­


pensa da descoberta é o prêmio Nobel.
O segundo é a descoberta do rádio. Madame Curie observou em
algumas substâncias uma ação elétrica infinitamente tênue. Milhares
de pesquisadores teriam passado à margem dêste fenômeno, distraí­
dos ou desdenhosos. No entanto, Madame Curie com perspicácia e
ousadia admiráveis, não hesita em atribuir o caso a partículas dum
C'orpo radioativo desconhecido, presente na substância e cuja ativi­
dade seria, por conseguinte, enorme. Imagina-se o interêsse palpitan­
te que desperta o fato à luz de tal concepção. É êste o ponto d e
partida, maravilhosamente frágil, do abalo mais prodigioso que ja­
mais tiveram nossas idéias sôbre a matéria e a energia.
É também indispensável ao artista que desejar reproduzir a
natureza. Leonardo Da Vinci dizia a um jovem pintor: "Sê assíduo
tm copiar tôdas as coisas naturais. Os que elegem outro compêndio
que não seja a natureza, a mestra das mestras, em vão se afadigam.
Quem pode ir à fonte não vai ao cântaro."
É pela observação da natureza que Ruskin adquiriu o senso da
arte e do verdadeiro. Um dia teve a idéia de desenhar uma hera.
"Fiz um estudo tão meticuloso como se se tratasse de um fragmento
de escultura", diz êle, "e quanto mais trabalhava, mais o estudo me
apaixonava. Terminado o desenho compreendi que perdera o tempo
a partir dos doze anos, pois ninguém me tinha dado a idéia de de­
senhar as coisas tais quais são."
Rodin dá êste conselho aos escultores: "Olhai com simplicidade e
docilidade . . . Onde foi que compreendi a escultura? Nos bosques
observando as árvores; nas estradas, contemplando a estrutura das
nuvens; em tôda a parte, menos nas escolas." E acrescenta: "Em
tudo, obedecer à natureza: o único princípio em arte, copiar o que
se vê! "
Eis Sem, caricaturista, à cata das paixões que constituem o ca­
racterístico profundo do homem. Faz questão de ter um modêlo aca­
bado e organiza todo um sistema de espionagem e armadilhas. Es­
tuda-o em tôda a parte para surpreender o momento "em que a
fisionomia atinge o máximo de intensidade'', em que o modêlo "se
apresenta sem defesa ao olhar disfarçado que o devora em tôda a
viveza sem que o paciente se dê conta". Esboça "a imagem ainda
94 L. RIBOULET

quente". Mas deixemos falar o artista: "Reproduzo como um· espelho


os menores cambiantes de sua fisionomia, tôdas as fases de sua ex­
pressão, até o modo de andar e as atitudes. Gravo todos os seus gestos,
tôdas as contrações do seu rosto. Chego a assemelhar-me com o modêlo.
Penetro no meu fulano, meu olhar verruma-o, sonda-o até debaixo
da pele, até as falsas aparências . . . O paciente procura fugir ? Vou­
lhe ao encalço, procuro-o meticulosamente. Ah! elegante fingido,
dissimulas debaixo do chapéu tua carranca em focinho de porco! . . .
Tu, cristão fingido, esquivas teu nariz na barba! Vamos, abaixo as
máscaras! É preciso ostentar tuas taras, é preciso transpirar tua
descendência e raça! É preciso revelar-te nem que seja pelos pés.''
Ao homem de letras que desejar produzir obra de valor o espírito
de observação é indispensável. As mais belas produções da literatura
são devidas a observadores. Montaigne é um observador genial. Os
episódios da guerra picrocoliana têm por fundamento lembranças de
infância de Rabelais. Corneille h á de sempre viver por causa d a
veracidade d a s situações e dos caracteres. Ninguém melhor que
Racine observou as desvastações da paixão. Moliere era denominado
contemplador pelos contemporâneos. "Isto foi pintado! " dizia Ma­
dame de Sévigné falando das Fábulas de La Fontaine. Saint-Simon
conquistou a imortalidade porque descreveu ao vivo as cenas e per­
sonagens do grande reinado.
Todos os escritores do século XIX preocupados com sua arte,
adotaram a observação por princípio fundamental. "Dá-se a gente
muito trabalho para ser talentoso", dizia Dumas filho, "quando às
vêzes seria fácil ser genial. Pretende-se imaginar quando seria apenas
necessário olhar." Os Goncourt escreviam no seu Jornal. A melho1
educação do escritor seria, desde a saída do colégio até os vinte e
cinco ou trinta anos, a redação sem convenção do que visse ou sen­
tisse. "Flaubert escrevia a Feydeau: "Cega-te os olhos à fôrça de
olhar."
José de Maistre foi um observador incomparável. Lia no grande
livro do mundo, lia nos rostos, através dos gestos, entre as frases e
mesmo entre os vocábulos. Num recreio, num baile, num banquete,
faz ampla coleta de observações e de esboços. Penetra nas consciên­
cias e analisa-as. Folheia os homens como folheia os livros.
Luís Veuillot pertence também a esta linhagem de observadores.
RUMO À CULTURA 95

Em l'Honnéte Femme, é ao natural que êle nos delineia os traços


famosos da sociedade do Périgord. Encerra quadros que constituirão
para sempre as delícias dos apreciadores refinados. Seus Nlélanges
contêm tôda uma série de águas-fortes cujo equivalente se encontrará
dificilmente na literatura francesa. Seus Lib·res Penseurs são "La
Bruyere fortemente acidulado", pois representou admiràvelmente a
sociedade que tinha observado.
O hábito da observação vos proporcionará pouco a pouco o hábito
da reflexão, da meditação profunda. Serei breve sôbre êste assunto.
A reflexão sustenta e fortifica a memória, dá retidão ao juízo, fecunda
a razão, amadurece o espírito e decupla seu poder.
A qualidade essencial de uma inteligência superior é a reflexão.
"Se prestei alguns serviços ao público", dizia Newton, "devo-o uni­
camente ao trabalho e à reflexão constantes."
Santo Tomás de Aquino era um espírito essencialmente dedicado à
reflexão. Estava continuamente absorto pelos grandes problemas d a
filosofia e da teologia. Quando à mesa com S ã o Luís, menos atento
à grandeza dos reis da terra que à honra do rei d o céu, exclama
batendo com o punho: "Argumento decisivo contra os maniqueus!"
Falando de Ampere, Bertrand dizia: "É impossível imaginar até
que ponto concentrava o espírito quando aprofundava um assunto.
tste homem, alcunhado distraído, era visto então isolado durante
longas horas, mergulhado em profunda meditação, numa espécie de
sonambulismo, esquecendo tudo, até o momento em que a verdade
se apresentasse com todo o esplendor e o livrasse de tal obsessão."
Aprendei pois a pensar, a pensar profundamente. Nunca vos con­
tenteis com a superficialidade das coisas; ide até a medula, e nada
deixeis, se fôr possível, sem examinar atentamente e compreender
o conjunto e os detalhes.
A reflexão exerce influência n ão somente sôbre a inteligência,
mas também sôbre a sensibilidade e a vontade. Ela vigia o coração,
traça-lhe a rota a seguir; disciplina-o canalizando seus movimentos.
Torna o homem mais fàcilmente senhor de si, mais apto a cumprir
suas resoluções. Assim, amadurece a inteligência, forma o caráter e
desenvolve a personalidade.
96 L. RIBOULET

A mai a solidão e o silêncio pois que favorecem o recolhimento,


condição essencial do trabalho sério.

Para compreender e saborear o verdadeiro, é preciso apartar-se


da multidão, fugir das conversas vãs, das ocasiões de dissipação e da
perda de tempo.
Alguém disse que a solidão é a escola do gênio. "Deveríamos erigir
altares ao silêncio e à solidão", dizia Carlyle. "É no silêncio que as
grandes coisas se formam e se concentram. A palavra pertence ao
tempo, o silêncio à eternidade. O espírito só trabalha no silêncio. O
mérito trabalha apenas na solidão."
A solidão alimenta e fortifica o espírito. "Os grandes solitários",
diz o Pe. Didon, "aquêles que não ligam a nada, que vão interrogando
unicamente as estrêlas e o vasto oceano, cujas vozes dizem apenas o
que nós interpretamos, os grandes solitários são talvez os mais fortes
e os melhores."
Depois de sua estada na Chesnaie, Lacordaire apresenta-se a
Mons. de Quélen, Arcebispo de Paris. "Precisais de um segundo ba­
tismo", diz-lhe o prelado, "eu vo-lo darei." Foi o batismo da solidão
e do silêncio. É a partir dêste momento fecundo que datam as con­
ferências de Notre-Dame.
Dizia o ilustre dominicano, escrevendo a Montalembert: " A soli­
d ão é o meu elemento, é a minha vida. Só se faz alguma coisa com
a solidão, eis meu grande axioma." Escreve a um moço: "Eu disse
adeus às montanhas, aos vales, aos rios, às sombras desconhecidas
para estabelecer no meu quarto, entre Deus e minha alma, um ho­
rizonte mais vasto que o mundo."
A solidão era deveras para êle uma fonte de inspiração. "À.brindo
sua correspondência", diz o Pe. Chocarne, "reparamos muitas vêzes
que as cartas mais admiráveis de abandono, de suave alegria, de
piedade irradiante, são quase tôdas datadas dos seus retiros prediletos:
Santa Sabina, Chalais, Dijon."
A solidão do coração é superior à solidão do corpo, porque ela
pode existir até no meio da dissipação e do barulho. "A alma atenta
prepara para si uma �olidão", diz Bossuet; "mas é preciso saber
arranjar horas de solidão afetiva, caso se desejem conservar as fôrças
da alma."
RUMO À CULTURA 97
Amai o silêncio. Antes da palavra, êle é a primeira potência do
mundo. Santo Tomás d� os conselhos seguintes ao estudante: "Quero
que sejas lento em falar e lento em ir à sala de visitas. - Não te preo­
cupes de forma alguma com os atos de outrem. - Estima a tua cela
se queres ser introduzido na adega do vinho."· "A adega do vinho",
diz o Pe. Sertillanges, é o asilo da verdade, da inspiração, é o foco
"

do entusiasmo, do gênio, da invenção, das pesquisas fogosas, é o


teatro dos debates do espírito e da sábia embriaguez."
O silêncio torna o trabalho mais fácil, mantém o espírito mais
livre e mais apto para a atenção. Uma palavra que dizeis durante o
estudo, durante a explicação do mestre, desvia vosso espírito do seu
objeto e vos faz perder de vista o fio da lição.
O silêncio torna o trabalho mais fecundo. Lembrai-vos de Santo To­
más, o boi mudo da Sicília, ruminando silenciosamente os argumentos
de Alberto Magno, seu mestre, antes de assombrar o mundo por sua
ciência prodigiosa.
Segundo o testemunho do Dr. Roux, Pasteur só trabalhava cô­
modamente no silêncio; junto dêle, admitia apenas seus colaborado­
res; a presença de uma pessoa estranha às suas ocupações bastava
para embaraçar o seu trabalho. "Fôramos um dia visitar Wurt na
Escola de Medicina; encontramos o grande químico no meio de seus
alunos no laboratório cheio de atividade como uma colmeia a zumbir.
- Como - exclamou Pasteur - podeis vós trabalhar no meio de se­
melhante agitação? - Isto excita as idéias - respondeu Wurt. - Isto
afugentaria as minhas - retorquiu Pasteur."
Esforçai-vos por alcançar êste silêncio durante o trabalho da
aula ou do vosso quarto de estudante. Para tal recolhei-vos, isto é,
vivei na plena posse de vós mesmos. Emudecei em vós o orgulho, a
sensualidade, a cobiça; reprimi as inclinações perversas. Esquecei
tudo o que dissipa, e ponde vossas faculdades em presença do ver­
dadeiro, do belo, do bem; levantem elas o vôo para o mundo superior
:.>. fim de lá ostentar tôda a sua pujança: a imaginação, mantida nas

suas funções, há de encontrar lá um ideal deslumbrante; a memória


colherá flores preciosas; a razão estará plenamente satisfeita; a alm:i
matará a sêde que tem do infimto.
Mas só vos podereis comprazer neste recolhimento à custa de
vitórias. "É preciso vencer a loquacidade interior dos pensamentos
98 L. RIBOULET

frívolos, dos desejos turbulentos, das paixões, dos preconceitos, das


ocupações do século'', diz o Pe. Gratry. "São necessárias as vitórias
sobrenaturais das quais o espírito de Deus disse: Àquele que fôr
vencedor, dar-lhe-ei poder sôbre as nações. É preciso não mais ser
escravo de si mesmo."
A oração bem feita favorece a calma e o silêncio interior. Traz
à alma a doçura, a tranqüilidade e a resignação. Proporciona um
repouso semelhante à calma da tarde que se espraia na superfície
dos lagos e torna as ondas imóveis.
Foi no silêncio e no recolhimento que os maiores projetos foram
concebidos, que os mais belos livros foram escritos.
É no silêncio e no recolhimento que Nosso Senhor prepara a
Redenção do gênero humano, que os apóstolos preludiam a trans­
formação do mundo pela pregação do Evangelho.
Foi no silêncio e na solidão que se formaram os santos que mais
honraram a Igreja pela ciência e virtudes: os Basílios, os Crisósto­
mos, os Gregórios de Nazianzo, São Bento, São Colombano, o grande
Gerberto, São Bernardo, Santo Inácio de Loiola e uma multidão de
outros.
É no silêncio dos claustros que florescia nos tempos bárbaros o
amor do estudo. O "scriptorium" foi o laboratório donde jorrou a
luz que produziu o grande século XIII e preparou a Renascença.
Era ali que todos os labutadores anônimos apaixonados por sua ta­
refa, saboreavam as mais puras delícias. Também quantos lamentos
quando era preciso dizer adeus à cela querida!
É na solidão e no silêncio que Descartes leva por diante seus
estudos filosóficos e científicos. Para estar mais só, foge do tumulto
de Paris e retira-se para a Holanda onde desfruta a felicidade de se
entregar sem incômodos ao trabalho de pensamento.
É no silêncio e no recolhimento que Beethoven compõe sinfonias
imortais. Sua alma ia buscar ao céu êstes pensamentos tão vigorosos.
tão sutis, tão cheios de grandeza e de majestade, êstes sonhos mis­
teriosos duma alma em êxtase. Fugia do mundo que não o compreen­
dia e abismava-se em si mesmo para conversar com Deus.
É no silêncio e no recolhimento que se prepara o grande escritor
Carlyle. Depois de um período na Universidade, trabalha só e apren­
de quase tôdas as línguas da Europa e tôdas as ciências. Sua resi-
RUMO À CULTURA 99

dência ficava a 15 milhas de Dumfries e nenhuma carruagem pública


podia chegar até lá. Foi aí que Emerson o descobriu em 1 833, vivendo
entre os livros e planejando ir a Londres. Quando lá chegou, seu
espírito se formara no eterno silêncio das colinas solitárias da Escócia.
É no silêncio e recolhimento que Hello medita as páginas pro­
fundas de seus livros. No velho solar de Keroman, defronte do ocea­
no, barulho algum vem distraí-lo; está inteiramente entregue aos
problemas que o preocupam. É não somente filósofo, mas criador
de filosofia porque sabe deduzir das coisas passageiras princípios.
eternos. Suas últimas palavras foram: "Vou ao Princípio." Eis tôda
a sua filosofia, eis o ideal que o fascinou em suas meditações.
Entregai-vos pois aos estudos sob o olhar de Deus, com o desejo
sincero de atingir a verdade. Tapai os ouvidos aos vãos ruídos da
terra, preservai vossa alma das agitações que a sobressaltam, e o
trabalho se tornará delicioso para vós. Vossos livros serão o jardim
encantado onde o olhar divisa flores divinas: flores de ouro, de prata.
flores de púrpura e de anil. E mais ao longe e mais acima de suas
páginas percebereis o céu marchetado de estrêlas cujas cintilações
serão para vós como que fulgurações da divindade.
Capítulo VIII

NUNCA PERCAIS DE VISTA NOS ESTUDOS O


DESENVOLVIMENTO HAR.MONIOSO DE
VOSSAS FACULDADES

Eis a questão fundamental sôbre a qual chamo vossa atenção.


Se tivéssemos apenas uma faculdade, estaria depressa resolvido o
problema da educação: dar a esta faculdade o máximo desenvolvi­
mento. Mas possuímos todo um conjunto de faculdades e o problema
torna-se complexo; é impossível desenvolvê-las na mesma proporção,
é até injusto e insensato, pois nem tôdas possuem a mesma impor­
tância.
É preciso dar-lhes um desenvolvimento harmonioso. Escrevia um
dia Paulo Bourget: "Há prazer, sem dúvida, em ver uma faculdade
crescer num cérebro até ultrapassar tôda a medida." A tal respondi'
o Pe. Longhaye: "Sentiríeis prazer em ver de repente a cabeça de

um homem se tornar enorme ou um de seus braços se tornar tão


comprido e grosso como todo o corpo? Semelhante espetáculo só vos
causaria espanto e repulsa. E por que não seria assim com a alma?
Será que nela os monstros são menos hediondos ? "
:E:ste desenvolvimento harmonioso está n a ordem, pois nossos atos
intelectuais, nossas faculdades, se interpenetram e dependem umas das
outras: a inteligência concebe o fim a atingir: a sensibilidade leva-nos
a alcançá-lo; a vontade cede ou resiste aos impulsos da sensibilidade.
"Suprimi a inteligência", diz Rabier, "o homem é cego; suprimi a
sensibilidade, êle é inerte; tirai a vontade, é escravo e impote:ite."
Por conseguinte, faço apêlo ao vosso bem-querer no princípio
desta palestra, pois o assunto é de suma importância.
R UMO À CULTURA 101

O objeto principal da educação é a disciplina do espírito.

Não ignorais sem dúvida, que a disciplina consiste em dar


a cada faculdade a formação que lhe convém pelo seu valor e
importância. A razão é a soberana e merece ser tratada como tal.
A vontade ocupa uma posição quase tão elevada quanto aquela.
A memória, a imaginação, a sensibilidade, ainda que muito preciosas,
são tidas por faculdades secundárias. Não respeitar esta ordem, é
enganar-se de caminho. Encontram-se freqüentemente jovens cuja
única preocupação consiste em armazenar febrilmente noções as mais
disparatadas com o fim de aparentar erudição. Infelizmente, ainda
está muito em voga, em certas casas, o ensino da ciência por atacado.
Sem dúvída, somos levados, acossados pelo desejo de conseguir re­
sultados imediatos; mas não deveríamos sacrificar a verdadeira for­
mação a êste verniz superficial. Que restará, pois, ao cabo de alguns
meses, de todos êstes conhecimentos decorados de afogadilho? E
n ão haverá perigo de perder a personalidade sob esta superlotação
de noções não assimiladas?
Payot disse que os mais rematados tolos que encontrou eram dois
catedráticos e um dêles regia duas cátedras. A êste respeito faz
observar que colecionar fichas e dispô-las como um jogador de do­
minó que coloca um seis depois de uma sena, um cinco depois de
uma quina, é simples mecanismo, e êle tem razão.
A fôrça de trabalhar assim, o erudito é incapaz de pensar por
si; é um mendigo de idéias que não sabe produzir nada de próprio.
Será êste o objetivo a que deva visar uma educação digna de tal nome?

Todo o estudante sério deve conhecer e respeitar a hierarquia


das faculdades.

Qual é a hierarquia das faculdades? Vou expô-la muito simples­


mente e com a maior clareza possível, inspirando-me vez por outra
na Théorie des Belles-Lettres do Pe. Longhaye, obra magistral cuja
leitura vos aconselho.
Ao espírito puro pertencem duas faculdades: a inteligência e a
vontade; duas outras participam do corpo e do espírito: a imaginação
que auxilia a inteligência e a sensibilidade que ajuda a vontade. A
memória, faculdade de aquisição e de conservação dos conhecimentos,
102 L. RIBOULET

é também uma faculdade secundária, ainda que seu papel seja muito
importante no trabalho intelectual.
Para vos convencerdes de que a imaginação é uma faculdade
secundária, comparai-a à razão: "Uma penetra as coisas, lê no seu
íntimo; a outra trabalha na superfície e nunca desce em profundida­
de. Uma atinge o abstrato, o imaterial; a outra estaciona nas realida­
des concretas, determinadas, locais. Afinal, o espírito compara, julga,
define fatos a que a imaginação nem pode pretender. Por conseguinte,
ela é inferior, é serva, mas de uma servidão necessária para o espírito
e gloriosa para ela."
·
O mesmo se d á com a sensibilidade em relação à vontade. "Uma
é um puro espírito, a outra, em grande parte, carne e sangue; uma
é livre e a outra fatal. Posso impedir que a impressão prevaleça e me
dite a linha de conduta; mas não posso impedir que nasça e me
comova. Eis por que, até à palavra decisiva da vontade, as paixões
são e permanecem indiferentes. Eis por que a impassibilidade do
estoicismo é uma mentira perante a natureza humana, e a sacrílega
usurpação da imutabilidade divina. O homem verdadeiro, o homem
padrão, é Aquêle que disse com simplicidade modesta : 'Minha alma
está triste até a morte', e que no momento seguinte marchava reso­
luto para os algôzes. Tal é a superioridade do querer sôbre a sensi­
bilidade. Portanto esta existe para aquêle, para servi-lo, para pre­
parar a ação própria da faculdade soberana, para trazer-lhe anima­
ção, alegria, entusiasmo."
Eis a ordem essencial. Destruí esta hierarquia. Deixai, por exem­
plo, que flutuem as rédeas da imaginação. Imediatamente perde o
espírito parte de sua energia; contenta-se com noções incompletas,
adormece embalado pelas imagens, inebriado por um canto de sereia,
magnetizado pela música do verso. Insensibiliza-se pouco a pouco,
falsifica-se "pelo hábito de clarões confusos e juízos incompletos".
Enfim, torna-se incapaz do esfôrço necessário para refletir.
O querer se enfraquece igualmente na razão direta das usurpações
da sensibilidade. "O hábito das emoções violentas conduz pela exal­
tação à languidez, da mesma forma que se chega à prostração pela
febre."
E em tal desordem até as próprias faculdades inferiores se can­
sam e corrompem. A imaginação, entregue a fantasias, aplica-se ao
RUMO À CULTURA 103

prazer dos sentidos e excita-os. A sensibilidade cujo papel é co­


mover, enternecer, acalentar suave e fortemente a vontade, reduz-se
a imprimir abalos aos nervos. Estas duas faculdades cansam-se, gas­
tam-se sobrecarregadas desta maneira. A imaginação perverte-se.
torna-se mais exigente; o excesso de emoções diminui a sensibilidade,
endurece-a para as impressões verdadeiras e naturais, chega quase
a extingui-la, tal qual acontece ao paladar sob a influência de licores
fortes.

A violação desta lei acarretou sempre conseqüências funestas,


quer na história da educação, quer na história da literatura.

Consideremos, por exemplo, o sistema de Rabelais. Reflete o


ardor da época presente em demanda do saber enciclopédico e a gran­
de censura que se lhe faz é de se ocupar exclusivamente da memória.
A mera exposição do seu programa faria empalidecer hoje o estudante
mais intrépido.
"Exijo e quero", escreve Gargântua a seu filho Pantagruel, "que
aprendas perfeitamente as línguas: primeiro, a grega; segundo a la­
tina, e depois a hebraica para as sagradas escrituras; e igualmente a
caldaica e a arábica. Que não haja história cuja lembrança não tenhas
presente, para o que te ajudará a cosmografia. Quanto às artes libe­
rais - geometria, aritmética, e música - dei-te alguma iniciação
quando ainda eras criança, com a idade de cinco para seis anos;
aprende o restante, e quanto à astronomia deves conhecer-lhe todos
os cânones. Do direito civil, quero que saibas de cor os belos trechos
e mos exponhas com filosofia.
"E quanto ao conhecimento dos fatos da natureza, quero que os
estudes curiosamente, que não haja mar, riacho nem fonte de que
não conheças os peixes : todos os pássaros do ar, tôdas as árvores e
arbustos das florestas, tôdas as ervas da terra, todos os metais es­
condidos no seio dos abismos, as pedrarias de todo o oriente e meio·
dia, nada te seja desconhecido.
"Em seguida perlustra cuidadosamente os livros dos médicos gre­
gos, árabes e latinos, sem menosprezar os talmudistas e cabalistas,
e por meio de freqüentes anatomias, adquire perfeito conhecimento
do outro mundo que é o homem. E nas primeiras horas do dia, co-
104 L. RIBOULET

meça a manusear as sagradas escrituras: primeiro em grego, o Nov<>


Testamento e as Epístolas dos Apóstolos; depois em hebraico, o
Velho Testamento. Em suma, eu vislumbro um abismo de ciência."
Não nos cause espécie, portanto, se Montaigne reagiu desassom­
bradamente contra o paladino dos eruditos da Renascença e insiste
sôbre a necessidade de formar sobretudo o entendimento.
"Não cessam de berrar aos nossos ouvidos", diz êle, "como quem
derramasse num funil, e nosso encargo está apenas em repetir o que
nos foi dito. Não há de que se admirar se num povo de crianças,
apenas duas ou três colhem algum proveito dos seus estudos.
"Aquilo que o menino aprendeu, seja-lhe apresentado em cem
aspectos e acomodado a outros tantos assuntos diversos para ver se
de fato o aprendeu bem e assimilou . . . Que tudo passe pelo cadinho
do entendimento e nada seja confiado à memória por mera autoridade
ou a título de crédito."
No capítulo sôbre o Pedanti$mo, protesta êle ainda contra o
abuso da memória na educação: "Trabalhamos apenas para encher
a memória e deixamos o entendimento vazio . . . Nossos pedantes
debicam a ciência nos livros e guardam-na somente nos lábios para
cuspi-la e atirá-la ao vento . . . Sabemos dizer: Cícero diz assim, eis
a opinião de Platão, são as palavras de Aristóteles; mas nós, que.
opiniões temos? que julgamos? Um papagaio faria outro tanto."
Se considerarmos uma época literária, o romantismo por exemplo,
verificamos que não deu o que parecia prometer porque quis afastar­
se da grande lei da hierarquia das faculdades, dando liberdade des­
comedida à imaginação e à sensibilidade. Pedro Lasserre resumiu
tais excessos nesta frase lapidar: "O romantismo é a decomposição
da arte, porque é a decomposição do homem." E se em nossos dias
alguns críticos o julgaram tão severamente, é porque o romantismo
foi "uma deformação da alma francesa nos seus modos de pensar,
sentir, compreender a vida e vivê-la."
Com efeito, na ordem divina, êle substituiu o verdadeiro cris­
tianismo pelo deísmo, as crenças precisas por uma vaga religiosidade.
Na ordem moral, proclamou a paixão rainha e divinizou-a. Na ordem
social, experimentou reabilitar os patifes, os criminosos, os anar­
quistas, os fautores de revolução. Na ordem literária, emancipou o
"eu" e colocou na moda o uso de ostentar insolentemente os vícios
RUMO À CULTURA 105

das consc1encias mais depravadas. Julgara-o bem Goethe quando


dizia: "Denomino o gênero clássico, gênero são; e o gênero român­
tico, gênero enfermiço."
O século XVII, porém, respeitou a ordem estabelecida por Deus.
Eis por que os grandes escritores desta época serão sempre os mo­
delos do bom-senso e do bom-gôsto.

O desenvolvimento harmonioso das faculdades é facilitado por


certas disposições e hábitos.

A educação do espírito não se deve processar de um modo qual·


quer; apóia-se sôbre determinados princípios dados pela psicologia.
Exige também certas disposições e hábitos de espírito que se reduzem
a dois: retidão de alma e assimilação dos conhecimentos.
A retidão de alma é uma disposição pela qual se procura a ver­
dade "sem rodeios", sem discussão, qual uma seta que voa para o
alvo, como por instinto e sem esfôrço.
Quem a possui investiga as idéias até a sua fonte, sonda-lhes as
profundezas e só desejaria abandoná-las depois de as ter esgotado.
Tal retidão orienta o espírito nas pesquisas originais, fixa profunda­
mente as verdades e estabiliza com precisão as formas fugazes.
A assimilação consiste em tornar nosso o que aprendemos, em
mudá-lo em nossa própria substância, em "quebrar o osso e sugar
a medula substancial". Ela se realizará na vossa inteligência caso
vos esforçardes por bem compreender o que aprendeis, se ligardes
mais ao espírito que à letra, se derdes bases sólidas a vossos conhe­
cimentos recordando freqüentemente os pontos essenciais que for­
mam como que o seu arcabouço. E para vos facilitar êste trabalho
de assimilação, vou dar-vos dois conselhos práticos:
"Fixai no vosso espírito somente noções perfeitamente claras."
Não vos deixeis fascinar pelas lentejoulas das frases bonitas. Sêde
inimigos do psitacismo: não deixeis passar nenhuma expressão sem
experimentar compreendê-la. Não vos acostumeis a viver sossegados
na cerração ou neblina. Experimentai limitar as leituras que fazeis,
os discursos que ouvis, num silogismo rigoroso, e desconfiai dos ra­
ciocínios sofísticcs. Vêcie primeiro as divisões de vossa lição, e apren­
dei-as sucessivamente até que os dados estejam bem claros no vosso
106 L. RIBOULET

espírito. Recapitulai muitas vêzes os princípios; à luz dêles, tereis


mais garantias de não errar o caminho.
"Procurai em todos os vossos estudos, a solidez, a certeza." Pre­
servai-vos do espírito leviano e superficial que mal roça os problemas
e não penetra nenhum. Desconfiai da mentalidade que trata da ver­
dade em diletante, como que por intuição e instinto. Afinal, não
tenhais respeito excessivo pelas opiniões e afirmações dos outros.
Sem dúvida, não deveis rejeitar por preconceito as verdades geral­
mente aceitas, mas não vos é interdito verificar os motivos que po­
dem levar-vos a aceitá-las.

Cultivai com cuidado a memória, pois ela é o grande meio de


aquisição e conservação dos conhecimentos.

Não vos envergonheis de ter uma boa memória. Ouve-se


dizer às vêzes que ela está na razão inversa do juízo e cita-se
o famoso epitáfio de Hardouin: "Homem de feliz memória es­
perando o juízo." Mas a história prova que uma inteligência su­
perior e uma grande memória vão freqüentemente juntas. "A me­
mória", diz Mons. Crosnier, "não cura de forma alguma a estultícia
original, não enriquece a pobreza do juízo; mas tampouco aumenta a
estultícia nem transtorna o juízo bem feito." "Prefiro", dizia Mon­
taigne, "uma cabeça bem feita a uma cabeça bem cheia." Mas será
<}Ue uma cabeça vazia pode ser bem feita?
É preciso admitir que se abusou muito da memória; mas não é
motivo para condená-la. É por meio dela que o espírito aumenta
continuamente seus conhecimentos. E os esforços que fizerdes para
acrescer diàriamente vosso saber, não serão sem proveito para a
.imaginação e a sensibilidade; terão até um valor moral fortificando
4 vontade e consolidando o caráter.

Não passeis nenhum dia sem exercitar vigorosamente a memória.


Imponde-vos tarefas; confiai-lhe, o mais que puderdes, regras, textos,
exemplos. Será um tesouro incomparável que ninguém poderá arre­
batar-vos.
Mas não aprendais nada sem compreendê-lo. Sob a casca das
palavras, procurai a substância das coisas. Lançai sôbre o texto um
-0lhar pesquisador. Ilustrai com antigos conhecimentos o que é novo.
RUMO À CULTURA 107

Tôda conquista aumentará vosso vigor de espírito e facilitar-vos-á


novas vitórias.
Alguns psicólogos, entre outros William James, sustentam que a
memória que não trabalha se enfraquece; míngua na inação e cresce
na ação. Seu poder está sobretudo na riqueza das sensações. Tornai
as sensações mais vivas e a memória ganhará em fidelidade e tena­
cidade.
Há uma lei psicológica que não deveis ignorar: A persistência
da lembrança é de ordinário proporcional ao trabalho de aquisição.
Por uma atenção enérgica e continuada, gravai no espírito os conhe­
cimentos. Classificai e ordenai as idéias; as idéias que têm uma
seqüência natural dispõem-se bem na memória e estimulam-se fà­
cilmente umas às outras.
A associação facilita a fixação das lembranças: as idéias qu�
foram uma vez relacionadas tornam-se por assim dizer inseparáveis
e não aparecem mais uma sem a outra.
Podeis também empregar meios mnemotécnicos baseados sôbre
relações reais ou sôbre o método e a ordem seguida na aprendizagem:
localização das lembranças, rima ou assonância, aproximações, clas­
sificações, ordem, comparações, quadros sinópticos, etc.
Por fim. a memória sendo "uma faculdade que esquece", acostu­
mai-vos a tomar notas. Ajuntareis assim pouco a pouco tesouros de
que vos ufanareis e que utilizareis na primeira oportunidade.

Cultivai cuidadosamente a imaginação, pois seu concurso é


indispensável no trabalho intelectual.

Malebranche atribui à imaginação tôda a sorte de delitos; mas


não se deve levar a sério tudo o que êle diz a respeito, pois "empregou
muita imaginação para falar mal da imaginação".
Bossuet falou dela com mais justiça: "A imaginação e a inteli­
gência", diz êle, "unem-se e ajudam-se ou atrapalham-se mutuamen­
te. Segundo o modo de usá-la a imaginação pode grandemente pre­
judicar ou servir.
"A experiência revela que a imaginação por demais viva abafa o
raciocínio e o juízo. Fazer bom uso da imaginação consiste em tornar
o espírito atento, sustentar e fixar o pensamento. O mau uso está
em deixá-la decidir."
1 08 L. RIBOULET

Eis o seu papel bem determinado: ela é excelente em si e só se


torna perigosa quando usurpa o lugar da razão, e de simples criada,
procura tornar-se a dona da casa.
Discorrerei brevemente sôbre suas vantagens gerais. É a faculdade
do ideal; eleva-nos acima da vida real e descortina ao espírito es­
paços infinitos. Jt fonte de poesia. Jt a faculdade que deixa cair sôbre
a alma os mais suaves raios de luz e de esperança.
Jt também o princípio de inovação e de progresso e por conse­
guinte um feliz contrapêso para a rotina. Mais ainda, ela pode dar
à alma um impulso genial e tornar-se a mágica que descobre as
coisas ocultas e arquiteta planos que mudam a face da terra e as
condições da humanidade.
Com relação ao trabalho intelectual, suas vantagens são inumerá­
veis. Jt por excelência a faculdade artística e poética. A arte, sem a
imaginação, não pass à de fotografia da realidade. Leva a apreciar
as obras literárias. Transforma os materiais e cria situações, meios,
personagens.
Nas ciências, é a fonte de hipóteses e descobre relações imprev.is­
tas. Foi a arte que sugeriu uma relação entre as veias e as artérias do
organismo, e o corpo de bomba munido de válvulas, levando Harvey
à grande descoberta da circulação. Foi graças à sua intervenção que
Lavoisier assimilou a respiração à combustão, que Newton de um
fenômeno vulgar se elevou à lei da gravitação, que Papin compreen­
deu a importância do vapor.
No estudo, a sua atuação é perene: o que entra no espírito passa
pelos sentidos t: por ela; é pois a grande dispenseira da inteligência
e da memória. Ouçamos ainda o Pe. Longhaye: "Colocada a me10
caminho entre o espírito e os sentidos, a imaginação é como que a
mensageira de um para os outros. Ao espírito ela apresenta a imagem
sensível, a matéria-prima do trabalho intelectual; por outro lado,
dá às abstrações do espírito um corpo gracioso que as torna quase
visíveis aos sentidos. E sua colaboração é constante. Os sentidos não
percebem, o espírito não concebe sem que ponha em jôgo sua ação
intermediária. A razão trabalha por aproximações contínuas; mas o
que aproxima, é de ordinário o sensível e o inteligível puro. Auxiliada
pela imaginação, confronta sem tréguas as duas ordens, iluminando
uma pela outra."
RUMO À CULTURA 109

Delille compreendera bem estas relações entre a imaginação e o

espírito:

Dans les mondes divers incessamment errante,


Entre la brute et l'homme, entre l'homme et la plante,
E t la terre et le ciel, et l'esprit et le corps,
Elle cherche et saisit d'harmonieux accords.

Que meios ides tomar para cultivá-la? Digamos primeiro que


a imaginação é a faculdade que menos se presta para uma formação
direta; e isto por várias razões.
Ela é viva e espontânea; nada de exterior poderia constrangê-la.
Não podemos forçar ninguém a imaginar e exigir em determinada
hora o resultado de sua imaginação. Bain faz notar que o desenvolvi­
mento desta faculdade não entra em plano algum de educação por­
que é um trabalho à margem da escola, "ainda que todos os modos
de enriquecer a inteligência possam contribuir para isso".
Ela é pessoal, individual e provém do sentimento e desejo mais
que dos conhecimentos e dos processos lógicos. Não se deve constran­
gê-la demais: é até preciso, às vêzes, deixar-lhe a faculdade de eleger
os exercícios que lhe convêm.
Em parte ela se forma inconscientemente e subtrai-se aos métodos
rigorosos. Desenvolve-se especialmente com o que lhe serve de ali­
mento; imagens, poemas, observações sôbre a natureza, viagens, lei­
turas, reflexão, audição de peças musicais, etc.
Resulta daí que ela se desenvolve sobretudo indiretamente:
Pela cultura de seus modos de expressão: trabalho literário, de­
senho, leituras, etc. tstes trabalhos permitem à imaginação exprimir
suas imagens e dar-lhes consistência.
Pela cultura dos sentimentos que têm a raiz na imaginação. Dai
a preferência às emoções puras e simples que provêm da religião.
Amai o belo e o bem, e isto até à admiração, até ao entusiasmo. Amai
os grandes espetáculos da natureza, as palestras instrutivas, as lei-
turas das biografias edificantes, os contos de viagens, a poesia des­
critiva e moral. Não deis crédito às conversas insulsas dos positivis­
tas que pretendem suprimir todo livro de ficção.
Pelos estudos. Bom número de vossos estudos podem contribuir
1 10 L. RIBOULET

para a formação da imaginação; as ciências físicas e naturais, basea­


das sôbre a observação, hão de vos fazer admirar as maravilhas que
Deus espalhou por tôda a parte no globo; a história apresentar-vos-á
personagens, épocas, cenas; a geografia fará conhecer as admiráveis
criações do gênio e da ciência; o desenho e os exercícios literários
oferecer-vos-ão o ensejo de dar expressão a vossas concepções; o
estudo dos autores vos revelará o belo literário sob tôdas as formas;
a música e o canto proporcionar-vos-ão emoções deliciosas e desenvol­
verão em vós a idéia do infinito.

Não menosprezeis a educação da sensibilidade, pois esta facul•


dade tem influência considerável sôbre o trabalho intelectual.

Já vimos que a sensibilidade é o arrimo da vontade. Quanto mais


forte fôr, mais seu papel será considerável. Portanto se quiserdes man­
ter o ardor no trabalho, reavivai sempre os sentimentos que a isso vos
inclinam. Tende alma aberta a tôdas as impressões suscetíveis de
enobrecê-la.
Os positivistas têm pretendido que o cérebro basta para o traba­
lho intelectual. Que aberração! Mas o coração é fator decisivo, é
fôrça, é vida! Não há dúvida, Musset tinha razão quando escreveu :

Sacliez-le, e'est le cceur qui parle et qui soupire,


Lorsque la main écrit, c'est le cceur qui se fond;
C'est le cceur qui s' éte11d, se découvre et respire
Comme um gai pelerin sur le sommet d'un mont.

Na educação da sensibilidade, a luta é necessária contra o egoís­


mo e as inclinações da natureza decaída. Alimentai o coração com
afetos nobres, prazeres delicados; amai o trabalho intelectual, as
leituras, o jôgo, o esporte até, contanto que seja uma disciplina ao
mesmo tempo que um divertimento; sêde membros ativos dos cír­
culos de estudos, e dai generosamente vosso concurso às obras paro­
qma1s.
Mas lembrai-vos bem de que antes de tudo tendes que cumprir
vosso dever de estudante. Nada vos será tão salutar como o cum­
primento rigoroso dêste dever, a pontualidade em fazer cada exercí-
RUMO À CULTURA 111

cio n a hora marcada e com tôda a boa vontade. O coração habituado


a êstes pequenos sacrifícios contínuos, torna-se cada vez mais livre;
paira alegre acima das solicitações grosseiras dos sentidos; está dis­
posto a corresponder a todos os estímulos que o levam para uma
perfeição maior.
O egoísmo, eis portanto o inimigo que vos ronda. "O que paralisa
a ação do espírito'', escrevia o Pe. Didon, "o que vos torna incapazes
dos sacrifícios supremos, é a satânica preocupação do "eu". Calcai-a
aos pés, dilatai vosso coração; nunca recueis diante da ocasião da
luta, da dedicação, do sacrifício. Nunca digais: não posso. O espírito
de Deus tudo pode, e é negá-lo negar a sua soberana eficácia."
Dai ao vosso coração como derivativos, objetos que o enlevem
e enobreçam. As ciências que estudais são muito próprias para obter
êste fim. Quando a alma está dominada por uma idéia forte, fàcil­
mente é acompanhada pelo coração que se apaixona a fim de realizá­
la. O estudo proporciona o sossêgo dos sentidos; faz esquecer as agi­
tações de fora; traz doce paz ao espírito; é um oásis refrigerante,
imensamente agradável e cheio de encantos para o coração.
No estudo, o espírito encontra sua verdadeira liberdade, e as
faculdades, sua plena satisfação. A memória procura e descobre pé­
rolas para colhêr; a imaginação demanda um ideal que a deslumbra;
a razão combina, esclarece, ordena, demonstra e presta-se a si própria
o testemunfio de que o que fêz está bem. Quanto à vontade, apega-se
ao útil e necessário de que faz suas delícias.
Não falarei da vontade, pois já vos fiz conhecer sua importância
e papel no trabalho intelectual.

A tendei particularmente à formação da razão que é a faculdade


por excelência.

"O bom-senso'', diz Bossuet, "é o mestre da vida humana." De­


vemos preferi-lo ao espírito que se torna, às vêzes, perigoso e se
extravia; as saídas até as mais engraçadas podem provir dum juízo
falso. Formar a razão, é dar-lhe, pelo estudo e reflexão, o gôsto e o
discernimento do verdadeiro, a argúcia e a delicadeza para distinguir
as falsas argumentações; é inspirar aversão irredutível pelas pala­
vras desprovidas de sentido, pelas fórmulas nebulosas, é ensinar-lhe
1 12 L. RrnoULET

a manter-se à altura numa discussão, a reconhecer quando se sai d a


linha, a procurar o verdadeiro e m tudo e particularmente a s sendas
que levam à sua descoberta.
Tal formação reduz-se a dois objetivos: preservação do êrro, de­
senvolvimento da retidão natural que Deus depositou em vós.
Procedendo assim, corrigireis alguns defeitos mais ou menos gra­
ves, próprios da juventude. Reagi vigorosamente contra duas ten­
dências que vos poderiam expor a apreciações defeituosas:

julgar à pressa e sem reflexão;


julgar .sem possuir o.s dados indispensáveis.

Mas isto não é suficier-:e. Ide à raiz do mal e procurai as princi­


pais causas do êrro, a fim de vos preservardes das suas terríveis
conseqüências. Podemos reduzir estas causas a quatro:
Os preconceitos, opiniões que adotamos sem exame e sem con­
trôle. Tal modo de proceder pode vir da família, do meio, da educa­
ção, do temperamento de espírito peculiar a cada indivíduo. O moço
cristão se liberta de grande número de preconceitos por causa de sua
educação cristã.
A precipitação que leva a julgar a priori, antes de qualquer exame,
a liquidar com ares de doutor as questões mais complexas e delicadas,
a concluir afoitamente e sem apêlo segundo dados incompletos, a
tirar conseqüências gerais de uma verdade particular, ou conseqüên­
cias ilógicas de uma verdade geral.
A preguiça de espírito. Não se dá o trabalho de examinar por si;
aceitam-se as opiniões tais quais se apresentam dos que amamos,
dos que nos agradam. Ou então julga-se tudo ao clarão de certos
princípios que dizem respeito ao bem-estar de cada um. Às vêzes
revoltamo-nqs contra uma idéia porque nos vem de pessoas que não
nos agradam; é sinal certo de estreiteza de espírito. Os argumentado­
res pretensiosos, os rotineiros que nada querem mudar no seu modo
de fazer e julgar podem ser enquadrados na categoria dos espíritos
curtos.
Certas causas morais. O amor-próprio que, em primeiro lugar, nos
induz a não admitir nossos erros. Mantemos uma opinião falsa ape­
sar da evidência: deve ser verdadeira porque a formulamos. Mas há
RUMO À CULTURA 1 13

outras causas: a ignorância que se pronuncia sem ter os elementos;


o interésse, "instrumento maravilhoso para cegar os olhos agradàvel­
mente'', disse Pascal; a paixão que faz considerar as pessoas e as
coisas sob um ponto de vista exclusivo e falso : "O coração apresenta
contas ao espírito que as aumenta;" o meio, o hábito, o bairrismo,
a ir;fluéncia partidária, etc., podem igualmente tornar-se causas de
êrro.
Em última análise, é à inte1igência e à vontade que se deve
atribuir a desastrosa faculdade de errar: deixam-se elas enganar,
quando não nos precavemos, pelos sentidos, sentimento, imaginação.
Vigiai pois sôbre vós mesmos; tomai precauções contra as suges­
tões dos sentidos, da imaginação, da associação de idéias ; desconfiai
de vosso própria sabedoria; não vos apresseis para exprimir vossos
juízos; tende a paixão da verdade, e aceitai-a venha lá donde vier.
A maior parte de vossos estudos hão de contribuir para formar
a retidão do juízo. A matemática é um curso prático de lógica: re­
solver um problema é achar uma relação, é proferir um juízo. Pro­
porciona retidão ao espírito, pois exige grande propriedade de ex­
pressão, precisão, concisão, medida.
A história também é excelente. De seu ensino, segundo Mon­
taigne, haurimos maravilhosa claridade para o juízo. Mostra as cau­
sas, as conseqüências dos fatos e seu encadeamento lógico; emite
juízos sôbre os homens e acontecimentos; condena o vício, as baixe··
zas, as crueldades, as injustiças; enaltece as nobres ações e deduz
regras e máximas para o conduta da vida.
O estudo das línguas contribui igualmente para a disciplina do
espírito. A tradução, sob duas formas: tema ou versão, exige uma
atenção perseverante para exprimir até os mais delicados matizes do
pensamento. "Traduzir", diz de Bonald, "é comparar, é refletir, é
pensar."
As ciências físicas e naturais d ão o hábito da observação e da
reflexão; além disso tendem a formar o espírito científico, disposição
permanente para subir do fato à causa, da experiência ao princípio
e à lei.
A filosofia é de proveito excepcional para desenvolver a retidão
do JUÍZO. As regras da lógica ensinam ao espírito a conduzir-se segu­
ramente na pesquisa da verdade, dão-lhe os meios para descobrir os
1 14 L. RrnoULET

sofismas e refutá-los. O silogismo é um magnífico instrumento de


demonstração e de crítica, uma ginástica excelente do espírito, e
portanto um maravilhoso instrumento para a cultura da razão. Vai
ao íntimo das coisas e mostra a inanidade das imaginações e dos
sonhos. t uma esgrima poderosa que dá o hábito da precisão e do
"

rigor", dizia Cousin, e todo o raciocínio que não pode ser pôsto sob
esta forma é um raciocínio do qual se deve desconfiar.
José de Maistre exprimiu o valor do silogismo nesta fórmula la­
pidar: "O silogismo é o homem."
Mas a filosofia oferece ainda um concurso mais nobre à razão
quando aborda os problemas metafísicos. Faz desta faculdade a au­
xiliar da fé. Eleva-a até a descoberta de verdades sobrenaturais
Convencer a razão é o melhor meio de assentar sólidas bases à crença.
Bossuet bem o havia compreendido na educação do Delfim: "Depois
de ter considerado'', diz êle, "que a filosofia consiste principalmente
em chamar o espírito a si mesmo, para se elevar em seguida por
degraus mais seguros até D�us, começamos por ela como pela pes­
quisa mais fàcil como também mais sólida e útil de que possamos
lançar mão." Fénelon dirige-se unicamente à razão no seu admirável
Tratado sôbre a existência de Deus, e assim demonstra com eloqüên­
cia a autoridade da razão como primeira revelação iluminando o
homem sôbre as verdades mais elevadas.
C a.pítulo IX

DEDICAI-VOS DE PREFERÊNCIA AOS


E STUDOS QUE DAO AO E SPíRITO UMA
CULTURA MAIS GERAL

Eis aqui também um assunto muito importante. É difícil que os­


moços tenham uma idéia exata do valor educativo das matérias que
estudam. As pessoas mais idosas, às vêzes os próprios educadorei.,
não o entendem melhor, porque tal problema, embora essencial e
·
relativo ao âmago da educação, deixou-os sempre indiferentes.
O mais das vêzes é resolvido êste problema à maneira dos professôres
do Sr. Jourdain; porém êles tinham pelo menos a desculpa de procu­
rar o próprio interêsse, considerando cada qual o seu ensino como
indispensável para o bom andamento do Estado. Os homens práticos
liquidam a questão de modo peremptório, acreditando que são su­
periores aos espíritos poéticos,.. porque se acham mais perto da reali­
dade: também quantas futilidades não lhes escapam! Já os ouvistes.
Eis mais ou menos o que dizem: "Para que estudar as línguas antigas?
Para que serve a história ? a geografia? a literatura? a filosofia? o
de que precisamos, é coisa prática! algarismos! algarismos! " E como
Benoiton e seu amigo Formichel, enfatuam-se, contentes de si pró­
prios.
O prático! Aquilo que serve para ganhar dinheiro. Um moç<>
apresentou-se a Prou, diretor da Escola de Arquivos. Durante a
conversa, pergunta o postulante: "Mas, Sr. Diretor, quanto se ganha.
ao sair com o diploma?"
Furioso, levantou-se Prou: "Ide embora! Ide! Se quereis ganhar
dinheiro, não é aqui que deveis vir. Ide vender macarrão. Aqui�
estamos numa casa de trabalho, de pesquisas." E bateu a porta no
nariz do visitante.
1 16 L. RrnoULET

Pobres indivíduos práticos! O poeta canadense Crémazie denomi­


nava-os lojistas. "Chamo lojista", dizia "a todo homem que n ão tem
-0utro saber senão o que lhe é necessário. O advogado que só estuda
as pandectas e os estatutos revisados, para se tornar apto a ganhar
uma causa ruim e perder uma boa ; o médico que só procura nos
tratados de anatomia e de terapêutica o meio de viver fazendo morrer
-seus pacientes; o escrivão que só tem conhecimentos que adquiriu
com Ferriere e Massé, as duas fontes donde jorram tão abundante­
mente as obras poéticas denominadas protestos e contratos de venda;
tais pessoas não passam de lojistas. Como o vendedor de melaço
-0u de canela, só querem saber do que lhes pode tornar rendoso o
negócio. Com tais homens, fareis bons pais de família possuindo
tôdas as virtudes dum epitáfio; tereis almotacés, sacristães, membros
do parlamento, e até ministros, mas nunca obtereis uma sociedade
literária, artística, e direi mesmo, patriótica, na bela e grandiosa
acepção da palavra ! "
Dickens, n o romance Tempos difíceis, critica acerbamente o en­
sino utilitário. Imagina um pedagogo estúpido, Gradgrind, que se
enfurece diante dos alunos da aula: "Ensinai fatos a êstes rapazes
e moças, unicamente fatos. Não planteis outra coisa e arrancai todo
o resto. É só por meio de fatos que se forma o espírito do animal que

raciocina. É pautando êste princípio que educo meus alunos." Em


seguida faz a sua apresentação:
"Tomás Gradgrind, senhor. O homem das realidades; o homem
dos fatos e dos cálculos. Tomás Gradgrind com régua, balanças e
tabuada de multiplicar no bôlso, sempre pronto a medir ou a pesar
o primeiro fardo humano que se apresentar, dando exatamente a
medida."
Durante a interrogação, dirige-se à joven Sissy Jupe: "Aluna n.0
20, dai-me a definição de cavalo." (Grande espanto de Sissy Jupe
com tal pergunta.) "Aluna n.0 20, incapaz de definir o cavalo!"
exclamou Gradgrind . . . "Bitzer, qual a definição de cavalo? " -
Quadrúpede, herbívoro; quarenta dentes, dos quais vinte e quatro
molares, quatro caninos, doze incisivos. Muda de roupa na primavera
nas regiões alagadiças, também muda de cascos. A idade é reconhe­
cível por diversos sinais na bôca."
- Muito bem, diz uma terceira personagem. Eis o cavalo.
R UMO À CULTURA 1 17

Tomás Gradgrind conclui: "É preciso desterrar a palavra imagi­


nação custe o que custar. Não saberíeis o que fazer dela . . . Na reali­
dade, n ão andais sôbre as flores: portanto, não vos podemos permitir
de as calcar aos pés em cima de um tapête. Bem sabeis que borbo­
letas e pássaros de regiões afastadas não vêm pousar nos vossos
pratos; portanto não vos podemos permitir que pinteis sôbre as
faianças borboletas ou pássaros exóticos. Nunca vereis um quadrú­
pede andando de cima para baixo numa parede; portanto, não de­
veis representjr quadrúpedes nas paredes. A tais usos deveis pre­
ferir combinações de tôdas as formas geométricas. Eis a realidade,
eis o bom gôsto."
Acrescentemos que o positivismo e o materialismo exerceram in­
fluência considerável nos programas, tirando ou restringindo por
demais velhas disciplinas clássicas, dando aos jovens a idéia de estudar
apenas as ciências denominadas práticas. Um eminente professor da
Sorbona, Picard, deplorava recentemente essa tendência: "A huma­
nidade, que deseja gozar, tem precisão de realizações imediatas, e
aquêles que se dedicam à literatura, à arte, à ciência pura, expõem-se
a ser tachados de sonhadores. As causas são numerosas, mas é pre­
ciso confessá-lo, o desenvolvimento estupendo das aplicações da
ciência há um século, aumentou singularmente os desejos de prazer,
relegando para o segundo plano as nobres preocupações que em outros
tempos fizeram o encanto da vida."
Para bem julgar do assunto, é mister elevar-se acima de qualquer
partido preconcebido, de qualquer preferência pessoal, e considerar
as matérias de estudo em si mesmas à luz dos princípios que decor­
rem da natureza de cada ciência e do método que lhe é peculiar.

A matemática em si mesma é excelente disciplina do espírito ;


cultivada d e modo exclusivo, pode acarretar certos perigos.

A matemática em si é uma ciência admirável. Dá a noção de


verdades logicamente deduzidas e concatenadas. É inimiga do mais­
ou-menos e em todos seus graus dá uma impressão de certeza, um
sentimento de fôrça intelectual que não encontramos em qualquer
outro gênero de conhecimentos.
1 18 L. RrnoULET

Exige atenção seguida e obriga o espírito ao esfôrço rle síntese


"que funde os atos parciais da atenção num ato coeso e simultâneo".
Dá o hábito da demonstração rigorosa pelo raciocínio dedutivo.
Cada problema consta de três coisas: os dados, a resposta, a relação
entre os dados e a resposta. Resolver um problema é, por conseguinte,
procurar uma relação, é pronunciar um juízo e um juízo definitivo
que é orientado por uma série de juízos parciais.
Consagrai portanto a esta ciência todo o tempo que reclamam
os programas e de que precisa o ideal que desejais realizar. Mas não
sejais daqueles que lhe consagram a tarefa principal na formação do
espírito. Há hoje uma tendência positivista a referir tudo à matemá­
tica. Está certo quando se tenciona relacionar-lhes as ciências que
se exprimem quantitativamente, mas há algumas que estarão sempre
fora de sua alçada: as ciências da vida, a moral, a metafísica. Nunca
se provará por x e por y que é preciso honrar a Deus, amar o pró­
ximo, respeitar os pais.
Pestalozzi fazia da matemática a base da educação. O Pe. Girard
não aprova a idéia. Disse-lhe um dia: "Se eu fôsse pai de família,
não lhe confiaria a educação de meus filhos, porque seríeis incapaz
de lhes demonstrar que devem amar e respeitar os pais."
Acrescentemos que os cálculos encerram muito mecanismo e o
estudo por demais exclusivo da matemática habitua a considerar
tudo sob uma forma abstrata. O matemático é levado a aplicar às
coisas seu espírito geométrico, e a tratar as coisas mais diversas como
equações.
Descartes afirmava que o estudo da matemática nos torna inaptos
para a filosofia. Pascal faz troça dos geômetras que são unicamente
geômetras, achando-os ridículos, falsos, insurportáveis. Cauchy não
deixou que o filho estudasse matemática antes dos dezesseis anos.
Biot escrevia a um moço: "Aplicai-vos primeiro em amolecer o es­
pírito pelo estudo das letras. Não escuteis os que as desprezam;
nunca se teve ocasião de afirmar que fôssem mais sábios por serem
menos letrados."
Finalmente, o horizonte da matemática é limitado. Não trata das
grandes questões que interessam o destino humano. Auxilia às vêzes,
mas sem ser indispensável, na demonstração de certas verdades mo-
RuMo À CULTURA 1 19

rais. A maioria de suas aplicações relacionam-se apenai; ao progresso


material e só podem servir para estabelecer o reino da fôrça.
Em nossos dias os melhores espíritos deploram que a matemática
seja o meio preferido para a admissão às escolas superiores e admitem,
de boa mente, que ela ocupa no ensino um lugar que não merece o
seu valor educativo.
Infelizmente as escolas pnmanas, superiores e secundárias so­
frem as exigências das escolas técnicas superiores. O Eng.° Fayol
disse: "O dia em que as escolas pedirem a seus candidatos menos
matemática, maior clareza na expressão do pensamento e um pouco
de administração, os liceus colocarão o ensino em harmonia com o
programa de admissão. Faço votos que êste dia não tarde."

As ciências físicas e naturais contribuem também à formação


do espírito.

Na escola primária as c1encias físicas e naturais aparecem sob a


forma de lições de coisas. Talvez não haja função da inteligência que
elas não exercitem e aperfeiçoem. Acordam sistemàticamente e aguçam
cada um dos sentidos, dão às idéias mais clareza e precisão, desenvol­
vem o poder da atenção.
Algumas destas ciências, como a botânica, empregando a ana­
logia ensinam a observar, comparar, discernir, classificar. Outras,
indo dos efeitos às causas, ensinam além disso a fazer experiências
delicadas que requerem paciência e reflexão. tsse estudo, numa pa­
lavra, forma pouco a pouco o espírito científico, disposição perma­
nente a ir do fato à causa, da experiência à lei, das conseqüências ao
princípio. "Para o espírito formado assim", diz o Pe. Hogan, "o ho­
rizonte da ciência vai-se alargando por si mesmo: tôda colina e todo
vale, todo rochedo e todo píncaro, tôda fôlha e tôda flor ministram
seu ensino. Até as pedras do caminho e a erva dos campos contêm
preciosas indicações e suscitam problemas interessantes."
As ciências naturais elevam a alma para Deus, revelando a ri­
queza e a beleza das obras de suas mãos; manifestam seu poder,
bondade, sabedoria que tudo fêz com número, pêso e medida. Con­
tribuem portanto para a formação do sentimento moral.
Mas estas ciências não podem bastar para a educação do espírito.
120 L. RIBOULET

Chamam a atenção apenas para objetos materiais. O interêsse corre


o risco de concentrar-se unicamente sôbre tais objetos e desenvolver
além de tôda a medida o espírito positivo, naturalmente incompleto
e limitado, que encerra grandes perigos tanto para a vida privada
como social. "A fôrça de estudar apenas fatos", diz o pastor Wagner,
"os espíritos curtos terminam acreditando que os fatos são tudo.
O grande esfôrço intelectual de nosso século focalizou a vida exterior
e a vida interior foi mais ou menos desprezada."
Os sábios de primeira grandeza: Dumas, Pasteur, Berthelot,
advertem que o estudo por demais exclusivo de tais ciências pode
estreitar o espírito. .Mas o maior perigo dêsses estudos é o cientifi­
cismo, idolatria da ciência, que leva a crer que a ciência é tudo, que
ela explica tudo, e tudo substitui. Felizmente tal pretensão não se
realizou. O "novo ídolo" foi derribado do pedestal onde alguns exal­
tados o tinham erguido. A ciência sozinha pode levar à barbárie.
Blondel tinha razão de afirmar há alguns anos: "Não somente as
ciências isoladamente não educam o homem, mas êle tem necessidade
de ser educado contra elas. No intuito de desvencilhar-se do jugo
dos conhecimentos positivos, a fim de não se dispersar e perder no
objeto sempre particular de seu estudo, êle precisa de um acréscimo
de energia intelectual; para dominar todos os progressos da civilização
material, precisa de um acréscimo de consciência moral: onde poderá
a educação dita ou acreditada realista e positiva encontrar êste
acréscimo ? "
Paulo Bourget, recebendo Maurício Donnay na Academia, di­
zia-lhe: "Notastes, senhor, quase nenhuma de nossas recepções se
processa sem uma alusão ao ano doloroso; é que também êste ano
inaugurou a crise da inteligência para tôda a geração de que Taine,
Renan, Flaubert, foram os grandes predecessores, e os Sully-Prud­
homme, os Gastão Paris, os Emílio Boutmy, os Alberto Sorel, os
grandes paladinos. Todos possuíam no grau mais elevado a religião
da ciência. Todos tinham acreditado nela misticamente, por uma
contradição que prova o ardor do seu entusiasmo. Esperavam dela
o que não podia dar: uma renovação total da vida humana. Brus­
camente a dureza dos matemátic:os que comandavam a invasão ale­
mã e a ferocidade dos químicos da Comuna acordaram-nos dêsse
otimismo. Pode haver uma barbárie científica."
RUMO À CULTURA 121

A história encerra o s elementos essenciais para uma b oa forma­


ção do espírito.

Considerai-vos felizes caso o s programas derem à história a im­


portância a que tem direito. "Da história", disse Montaigne, "tira-se
uma clareza maravilhosa para o entendimento. Estamos todos cons­
trangidos e retraídos dentro de nós e temos a vista reduzida ao
comprimento do nariz." Ela amplia o horizonte, ilumina o futuro
pelo passado, ajuda-nos a compreender o presente por suas lições.
Por meio dela, acompanhamos a formação, o desenvolvimento, a
queda dos impérios, a luta das raças e a preponderância sucessiva
das mais enérgicas e fortes.
Esse estudo sobrepuja em interêsse os da natureza. Não são ape­
nas as maravilhas da criação que contemplamos, mas o homem, ser
moral e rei da criação. Estudamos os atos humanos, suas causas, seu
alcance, suas conseqüências econômicas, sociais, políticas, religiosas,
literárias, científicas. Apreciamos as personagens com seu verdadeiw
valor e suas ações à luz dos grandes princípios. Ensina-nos a detestar
a perfídia, a baixeza, a deslealdade, os atentados contra a justiça.
Portanto, seu valor educativo é enorme. O Pe. Longhaye define-a
"uma introdução natural à maturidade do espírito, uma espécie de
meio têrmo entre as sutilezas da filosofia pura e os belos sonhos da
pura literatura. Não é uma abstração, pois nela vemos se movimentar
e viver homens e almas. Não é ideal ou quimera, pois é realidade e
realidade fecunda em lições práticas".
Suas lições, com efeito, são numerosas. Mostra-nos a Providência,
diretriz soberana dos acontecimentos, abençoando os povos virtuosos,
entregando os outros à decadência e à escravidão; espalha viva luz
sôbre a importância da primeira educação, sôbre a necessidade d a
religião e d o respeito para com a autoridade. Um povo que desconhe­
ce ou despreza a autoridade já enveredou pelo caminho da perdição.
Ensina-nos que o exemplo é tanto mais eficaz quanto provém d e
mais alto, que Deus castiga o s súditos pelas faltas dos soberanos,
que há crimes de Estado cuja enormidade brada aos céus por vin­
gança.
Salienta as vantagens da umao e da colaboração: o pequeno
exército de Espartanos e Atenienses paralisou as poderosas legiões
122 L. RIBOULET

dos Persas; os mesmos povos desunidos não puderam deter um


ínfimo potentado, Filipe, rei da Macedônia.
A história ensina que os sábios legisladores fazem a felicidade e a
prosperidade das nações. Que esperar de homens sem princípios ou
de maus costumes? A história contemporânea não dá a êste respeito
uma resposta evidente?
Há uma verdade que a história faz esplender com todo o seu
brilho: os povos vivem por sua civilização intelectual e moral. Que
nos resta de Tiro e de Sidão? Que fica de Cartago? Que nos resta do
Egito cuja prosperidade material foi tão grande? Algumas pirâmides,
alguns monólitos, alguns túmulos suntuosos, e no deserto de areia,
a esfinge sonhadora que parece admirar-se ela própria da imensidade
morta que nota em tôrno de si.
A Grécia conserva sempre um nome aureolado, porque em todos
os países civilizados admiramos seus escritores e artistas; seus Só­
focles, seus Eurípides, seus Fídias, seus Zêuxis, seus Aristóteles, seus
Platões, seus Demóstenes, cujas imortais obras-primas constituirão
até o fim dos séculos testemunhos irrefragáveis da elevadíssima civi­
lização dêste país.
Afinal, a história prova com evidência que nenhuma civilização
é perfeita sem Jesus Cristo. O Pe. Perreyve salienta êste pensamento
numa página admirável: "Existe alguém que é a pedra angular.
Quem quis construir sem esta pedra nada construiu que a primeira
aragem não dissipasse, que a primeira torrente não destruísse: a :E:ste
ninguém pode substituir!
"Quem adquiriu glória sem tle, apenas ensangüentou a terra com
o monstro das batalhas; quem se dedicou à indústria sem :Ele, apenas

embruteceu os homens, transformou o mundo cm caldeira e as almas


imortais em engrenagens sofredoras e exasperadas que rodam, blas­
femam e se quebram na noite; quem adquiriu a ciência sem :Ele,
sepultou-se nas areias da razão pura e da crítica arrogante; quem
conquistou autoridade sem :E:le, deslizou no sangue das vitórias re­
volucionárias; e quem adquiriu liberdade sem :Ele, acordou, em tôda
a parte, sufocado por um soldado que lhe disse carregando ferros:
eu sou a liberdade!
"Foi êste de quem vos falo que lhe faltou; é o nome do Senhor
Jesus."
Dante
1 BuJto do Jéculo XVI, que Je acha no MUJeu Nacional
de NápoleJ)
Homero
(M11sett de Nápoles)
( FOTO m:ISSOKAS)

Demóstenes
(Museu Vaticano)
( >'OTO AXffi:RSON)

Platão
(Pinacotec.i Ny Calsberg)
( Fl lT() T H \' J J E f.; )
RUMO À CULTURA 123

Os estudos literários dão aos espíritos uma cultura vastíssima,


porque os põem em relação com os mestres do pensamento
humano e requerem o concurso de tôdas as /acuidades.

Em primeiro lugar os estudos literários supõem o conhecimento das


regras da gramática e o hábito de aplicá-las sem hesitação. O estudo da
linguagem é uma disciplina que forma o raciocínio. A análise grama­
tical põe em evidência o papel das palavras e das proposições; a
análise lógica estuda as proposições nas suas relações e coordenação.
:E:stes dois exercícios, quando bem feitos, são uma aprendizagem de
raciocínio. Uma boa gramática, segundo Condillac, seria um bom
tratado de lógica. "A lógica gramatical", disse Mme de Stael,
"é tão precisa como a da álgebra, e no entanto ela se estende a tudo
o que há de vivo em nosso espírito."

O estudo dos autores não pode prescindir dos preceitos gerais d a


literatura e da teoria dos gêneros mais importantes. Mas o estudo
destas regras deve limitar-se às bases filosóficas essenciais e n ão
degenerar em decomposições mesquinhas e arbitrárias.
Convencei-vos bem, prezados amigos, da importância dos estudos
literários. São particularmente excelentes porque preparam para o
exercício da palavra e da pena. Saber escrever e falar bem, caracte­
riza imediatamente uma educação aprimorada. A álgebra e a química
nada auxiliam neste particular. Pode-se igualmente afirmar que todo
golpe contra os estudos literários é uma desgraça. Os dois inimigos
desta formação são o materialismo e o positivismo. O reino do cien­
tificismo dos quais é corolário estabeleceu-se, infelizmente, de 1 850 a
1 890, sôbre várias gerações de estudantes, e digamo-lo afoitamente,
sôbre determinadas categorias de professôres.
Com os melhores propósitos, sacrificava-se a formação literária
por uma pretensa fo1mação científica. Ainda hoje, a mesma tendên­
cia se manifesta às vêzes em alguns estabelecimentos de ensino se­
cundário moderno.
Que proveito deve haurir o jovem dêstes estudos? Um mestre
eminente, o Pe. Verest, vai no-lo dizer: "Quando sôbre qualquer
assunto ouve falar um homem que discorre bem; quando lê uma
página convenientemente escrita, apodera-se êle imediatamente e
com exatidão do pensamento que se lhe propõe: cada palavra evoca
124 L. RrnoULET

uma idéia clara, e se fôr o caso, uma imagem viva; não se limita à
f6rmula, vai até a coisa; tal coisa não somente a entende, mas sabe
expô-la por sua vez, seja de viva voz, seja por escrito, com clareza,
com ordem, com lógica, com rigor."
Eis os frutos essenciais dos estudos literários: desenvolver, aper­
feiçoar, polir as potências intelectuais; por pouco que o jovem tenha
sido orientado, seu gôsto se forma, seu ouvido se habitua à cadência
e compreende o número. Os gênios mais brilhantes fornecem-lhe as
imagens mais encantadoras, as sentenças mais nobres e os exemplos
da mais elevada virilidade. Desperta então a imaginação, a vontade
se robustece; o caráter se tempera. O coração sobe à medida que a
cabeça se ilumina. Faculdade alguma é deixada no olvido.
Ao mesmo tempo, o estudo das obras-primas se tornará um tra­
balho árduo mas essencialmente formador da composição. :E:le utiliza
todos os conhecimentos adquiridos; põe em jôgo tôdas as faculdades:
os sentidos pelos quais estamos em relação com o mundo exterior;
a imaginação que embeleza o estilo e se torna o manancial das figuras;
a memória que evoca as sensações, os pensamentos, os sentimentos,
os atos passados; o juízo, a peça principal do espírito, e que lhe d á
retidão e justeza; o raciocínio que preserva do êrro e d á à s obras
literárias fôrça e energia; a vontade que concentra as faculdades,
obriga-as a convergir para um fim que sua fôrça permite atingir e
constitui muitas vêzes a parte avantajada do talento e do gênio;
enfim, a sensibilidade que leva a admirar as obras literárias.

O estudo das línguas, principalmente das línguas antigas, cons•


titui uma das mais per/eitas disciplinas do espírito.

Não ignorais que depois da reação inteligente contra os programas


denominados humanidades modernas, cada vez mais se procuram
desterrar as velhas humanidades. E tudo isto, não há que duvidar,
não está isento de preconceito anti-religioso. René Bazin fazia notar:
"0 latim é um modo de aprender francês que ainda não foi substi­
tuído. E também um modo de estar mais perto da Igreja, de ouvir
suas orações, cânticos, teólogos, e talvez esta grande aproximação
tenha sido a causa não declarada da condenação do latim nos progra­
mas. Cícero, Virgílio, Tácito, foram suspeitados como aptos a prepa-
RuMo À CULTURA 125

rar gerações capazes de repetir o Te Deum e o Dies irae e acompanhar


a missa no ofício litúrgico."

Seja o que fôr, o tema e a versão são o melhor meio de iniciar o


estudante às grandes operações do pensamento. Pela comparação
da língua estrangeira com a língua materna, o espírito adquire idéias
mais distintas e certas, conhecimentos mais duradouros; tal trabalho
ilumina as percepçõe& e grava na inteligência, com traços mais pro­
fundos, a imagem das coisas. A preocupação de abreviar, a obrigação
de escolher as palavras, de variar as construções, de modelar a forma
com a de outrem, fazem da tradução o ensino vivo da arte de es­
crever. Pois, que é traduzir bem? Não é apenas dar o sentido das
frases; é reproduzir, segundo as medidas do possível, as surprêsas
do estilo, a audácia das palavras, o relêvo da expressão de um trecho
estrangeiro. Traduzir bem é lançar mão de todos os recursos da arte
de escrever; é enriquecer a própria língua com transposições e assi­
milações, infinitamente preciosas1•
Os temas e as versões feitas segundo o texto das línguas moder­
nas é sem dúvida um exercício útil. No entanto, os humanistas são
unânimes em confessar a superioridade das línguas antigas. E em
primeiro lugar, sendo o português uma língua neolatina, nunca pode­
remos saber português se ignoramos o latim. Examinemos detalhada­
mente as razões da superioridade das línguas antigas, servindo-nos
das idéias de um humanista célebre, o Pe. Charel, S. J.
As línguas neolatinas não têm declinações. "0 esfôrço do aluno
limita-se a substituir uma palavra por outra; o esfôrço lógico para
ver a relação entre as palavras é quase nulo."
Traduzir uma língua moderna é mais trabalho de hábito que de
reflexão. Para o latim e o grego, o esfôrço lógico é sempre necessário,
pois não existe nenhuma forma fixa para construção das frases.
As línguas modernas não ensinam suficientemente a concatenar
as idéias. Nas línguas antigas, os membros de frases são articulados,
subordinados, providos de partículas de simetria ou de oposição; as
frases são ligadas por conjunções. Os temas obrigam os alunos a
estudar as relações das idéias na frase portuguêsa para fixá-las na
frase latina.

1 Albalat, Comment on devient écrivain.


126 L. R rnouLET

"Quando se passa das frases ao conjunto do trecho, o mesmo con­


traste, contraste entre as línguas modernas e as línguas antigas, e
as vantagens pendem para o lado das últimas. Nas línguas modernas,
tôdas as frases querem ser principais, e portanto tôdas as idéias estão
no mesmo plano. O período latino ou grego é, pelo contrário, uma
composição maravilhosa, a idéia principal está na oração principal,
as idéias acessórias nas frases subordinadas. A versão obriga a ana­
lisar o edifício; o tema obriga a construí-lo, os dois exercícios impõem
um esfôrço eminentemente dedutivo!"
Mas não é tudo. As línguas modernas conduzem ao verbalismo
quando as traduzimos. A substituição das palavras se processa quase
mecânicamente, porque estas línguas possuem um tesouro de idéias
comuns, expressas por palavras estritamente equivalentes. O caso é
diverso quando é preciso passar idéias para uma língua que n ão
possui equivalente exato.
As línguas modernas têm a tendência de sugerir os pensamentos
em lugar de exprimi-los; é o reinado das elipses, dos subentendidos,
das coisas ditas pela metade. As línguas antigas dizem tudo. Dizem­
no com uma delicadeza, no emprêgo dos modos e tempos, cada dia
menos conhecida pelas línguas modernas.
Até entre os melhores escritores das línguas modernas a preocu­
pação artística e cuidado da forma nem sempre constituem a preo­
cupação dominante do autor. Os antigos n ão se limitavam a exprimir
a idéia com exatidão, revestiam-na com imagens apropriadas e esme­
ravam-se por fixar a medida do sentimento.
Por fim, o estudo dos autores antigos oferece um conjunto de
idéias sábias, nobres, belas, que se encontram sem dúvida nas lite­
raturas modernas, mas que são apresentadas com mais simplicidade
na antiguidade clássica do que nos séculos envelhecidos.

A filosofia é a condição mestra e a coroação de tôda educação


liberal.

Os partidários do cientificismo não cessaram de menosprezar a fi­


losofia. Tiveram a afetação de afirmar que ela não é ciência, que é "um
aglomerado de abstrações requintadas ou sonhos vãos, palavrório e
logomaquia pretensiosa muito adequada para obscurecer as idéias
RUM o À CuL TURA 127

mais claras, para corromper a linguagem e dividir as inteligências,


perigosa para a justeza do espírito, sem alcance prático e sem relação
com a vida".
Felizmente seu papel é bem diferente. É uma ciência racional
tendo por objeto todos os sêres considerados nos seus princípios e
relações mais gerais. É isto que constitui a sua excelência. Conhecer
as realidades superiores, descobrir as leis supremas, as primeiras
causas e os fins últimos, marcar a origem dos nossos conhecimentos
e do próprio mundo, explicar o destino do homem e da humanidade,
relacionar tudo a Deus, ideal e beleza suprema: uma ciência que
aborda tais assuntos e procura resolvê-los, não será uma ciência
muito nobre? Era o que proclamava o mais sábio dos gregos: "De
tôdas as ciências'', dizia Aristóteles, "a filosofia é a mais elevada,
a mais excelente, a mais divina."
Ela dá princípios a tôdas as ciências: à matemática, as idéias de
unidade, de número, de finito, de infinito, de extensão, de espaço;
às ciências naturais, as de matéria, de substância, de lei, de causas,
de análise, de síntese, de observação, de experimentação. Tôdas as
ciências morais assentam sôbre ela: a ciência do homem, de sua
natureza, de seu destino, de seus deveres e direitos; a ciência de
Deus e de Seus atributos, de Sua providência, de Sua justiça, etc. ; as
noções de soberania, de lei, de penalidade, de ordem, de verdadeiro,
de belo, de bem, de progresso, etc. Tôdas estas verdades fundamentais
pertencem ao seu domínio.
Não é somente a base, mas o remate das ciências: h á a filosofia
da religião, que investiga o caráter racional das verdades reveladas;
a filosofia da história, que procura explicar a marcha, o desenvolvi­
mento, as vicissitudes da humanidade através dos séculos; a filosofia
do direito que aprofunda os motivos e o valor das leis; a filosofia
da matemática, a filosofia da gramática, a filosofia das ciências e até
a filosofia das belas-artes, a qual ascende até o princípio do belo

investigando-lhe as condições essenciais.


Que dizer de sua utilidade intelectual? Desenvolve as mais no­
bres faculdades, dá retidão à inteligência, ensina a proceder com or­
dem e método, e contribui para formar o espírito filosófico, tão pre­
cioso para a direção do pensamento e da vida. Consta êste espírito
de três qualidades que todo estudante deve chegar a possuir nem
128 L. RrnoULET

que seja apenas em princípio: o espírito de observação e de análise,


o espírito de generalização e de síntese, uma sábia independência
para se elevar acima dos preconceitos e pensar por si. Um eminente
filósofo católico, Ollé-Laprune, denomina esta potência do espírito a
virilidade intelectual; quem não a tiver está à mercê dos fabricantes
de idéias, dos semeadores de banalidades e dos juízos já feitos, dos
doutôres improvisados que dogmatizam com tanto mais ênfase quan­
to ignoram a primeira palavra do assunto.
Sob o ponto de vista moral e religioso, sua utilidade é maior ainda.
Os assuntos de que se ocupa imprimem na alma uma direção ascen­
sional e predispõem-na para os nobres pensamentos e nobres ações.
Ainda mais, a filosofia dá a linha de conduta, ensina os deveres gerais
e particulares, inicia no conhecimento de nós mesmos.
A fé e a filosofia prestam-se mútuos serviços. Em contato com a
religião, a filosofia não muda de natureza: permanece uma ciência
humana· apoiada unicamente na evidência e na razão; mas fica im­
pedida de chegar a conclusões falsas, tem métodos para conduzir
a têrmo as deduções. Está subordinada à fé e à teologia, mas pres­
ta-lhe seu poderoso concurso; prova a existência de Deus, a existên­
cia e a veracidade da revelação, servindo destarte de prelúdio ao
cristianismo. "Em seguida, auxilia a teologia, que se apóia essencial­
mente sôbre a revelação", diz Mons. Elias Blanc; "explica até certo
ponto e por analogias, os mistérios da fé, a Trindade, a Encarnação,
etc. Enfim, ela defende suas objeções. Em qualquer setor que se
encontre a fé, a filosofia está lá para defendê-la e orientar-se por
sua vez, concretizando assim a aliança tão fecunda da natureza e
da graça."
Capítulo X

COMPLETAI VOSSOS CONHECIMENTOS COM


LEITURAS ESCOLHIDAS E FEITAS COM
INTELIGÊNCIA

Reservai cada dia, quanto possível, uma hora determinada para


a leitura. Nela encontrareis nobres alegrias e grande proveito in­
telectual e moral.
A leitura de um bom livro proporciona alegria indizível. Não
mais nos causa admiração o ver almas nobilíssimas desprezar honras,
orazeres e riquezas, para gozar plenamente desta satisfação. "Pro­
curei por todos os meios adquirir a paz do coração", diz Tomás de
Kempis; "encontrei-a somente na solidão levando um livro comigo."
Montaigne falando dos tesouros de sua "biblioteca" nos diz: "Gozo
como os avarentos em saber que gozarei até quando quiser; meu
coração se farta e fica contente com o direito de posse. Não empreen­
do nenhuma viagem sem levar livros comigo, nem durante a paz nem
durante a guerra."
Macaulay declarava dever aos livros os mais felizes momentos
de sua vida. Um dia escreve a seguinte carta à filha: "Nada me
agrada tanto como ver que minha filhinha gosta dos livros. Quando
tiver minha idade, verá que os livros valem mais do que todos
os bombons e bolos, mais do que os brinquedos, espetáculos e dis­
trações do mundo."
"Na calma da solidão", dizia um sábio, "divirto-me com os poe­
tas, historiadores, oradores, filósofos. Para variar minhas alegrias
falo com os reis e imperadores; pondero seus conselhos, julgo severa­
mente e condeno suas vitórias se elas for:im deslealmente ganhas;
em espírito quebro suas estátuas se lhes foram injustamente eretas.

Seja pr�ocupação vossa amontoar ouro; a minha será de aumentar o


meu saber."
130 L. RrnoULET

Éste nobre prazer de leitura corresponde perfeitamente às mais


nobres aspirações da alma, ao desejo de possuir sempre mais luzes
sôbre os assuntos que nos possam interessar. O bom livro dá essa
satisfação. Por êle podemos estar a par das mais belas aspirações
do espírito, das obras-primas literárias e artísticas. O livro é um
guia, um inspirador, um amigo. Por êle a palavra do moralista e o
verso do poeta escorrem para nossas veias. Por êle comunicam-se
as mais vivas emoções e os princípios que fazem surgir os heróis e
santos.
Éie nos faZi viver em companhia das mais nobres almas da huma­
nidade. É a fonte das idéias fecundas e da dedicação meritória.
Erasmo chegou a dizer que unicamente os livros não necessários e
que tudo o mais é supérfluo e luxo.
Examinemos, portanto, minuciosamente os benefícios da leitura.

A leitura aprimora e desenvolve as faculdades.

Abandonadas a si mesmas, nossas faculdades perdem a esponta­


neidade e a vivacidade caminhando para a decadência; a memória
enferruja-se, a imaginação apaga-se ou se extravia, a razão perde
em parte a sua solidez. Uma boa leitura, semelhante ao alimento
reparador, conserva e aumenta o vigor das faculdades. Descartes,
numa página do Discuno do método mostra a influência benfazeja
das diversas espécies de leituras. "0 encanto das fábulas anima o
espírito; os atos heróicos da história, o reanimam. Lidos com a devi­
da discrição ajudam a formar o intelecto; a eloqüência tem fôrça e
beleza incomparáveis. A poesia, delicadeza encantadora; os escritos
que tratam dos costumes contêm exortações utilíssimas para a prá­
tica das virtudes."
Muito se tem procurado o segrêdo da superioridade de um homem.
Fala-se de atavismo, de hereditariedade. Tal segrêdo consiste apenas
em alguns minutos de estudo ou leitura diária. A história, com efeito,
revela-nos que os homens que se distinguiram em todos os ramo1
do saber humano eram grandes leitores. Napoleão em Briena levava
ao desespêro o livreiro da casa. Mais tarde no paquête que o levava
às terras dos Faraós, lia a Bíblia: era o seu passaporte para a imor­
talidade. Em Santa Helena queixava-se do carcereiro Sir Hudson
RUMO À CULTURA 13 1

Lowe. "Êste carcereiro", dizia êle, "devia saber que a leitura é tão,
necessária para o espírito como o alimento para o corpo."
Os grandes clássicos liam muito. Racine leu e anotou a maior
parte dos autores gregos. Bossuet vivia em companhia da Bíblia c­
dos Padres. Quão deliciosas eram para La Fontaine as horas que-­
passava a ler e a cismar! Falando dos autores disse : "A todos leio
com o mesmo prazer, tanto do Norte como do Sul." Lia igualmente-­
a Bíblia e sabemos de que entusiasmo foi possuído quando descobriu
Baruc.
Montalembert preparava-se à carreira de escritor e defensor da.­
Igreja por meio de inúmeras leituras. Fala, em suas cartas, da quan­
tidade prodigiosa de livros que leu e releu.
O jovem Pe. Pie, que seria cardeal da Santa Igreja e uma das
glórias literárias da França, passou o ano de retórica em companhia.
de Bossuet, de Fénelon, de Bourdaloue e de Massillon. Durante êsse­
ano o jovem orador e escritor fêz inúmeras leituras.

A leitura mantém e completa os conhecimentos.

As noções mais claras, mais nítidas, mais enraigadas no espírito­


podem esmigalhar-se aos poucos se não forem entretidas por meio da
ieitura séria. Em seus livros, os autores dão a flor do seu próprio­
espírito.
Felíz o que colíma o destino eternal.
Qual viajor ao despontar da madrugada
Desperta com humor dum sonho sem igual
E reza a Deus ao começar sua jornada;
A os poucos rompe o dia entre mil resplendores,
Surgem-lhe na alma unJ arrebóis multicolores!

V1cTOR HuGo

Quantas coisas ignoradas pelos próprios sábios! Quantas ignoradas.


sobretudo pelo jovem que ainda não terminou os estudos e não tem.
tempo de aprofundar seus conhecimentos.
Estais agora no tempo em que deveis armazenar imensas provi­
sões. Felizes sereis se amardes a leitura séria! Haveis de colhêr em
132 L. RIBOULET

tão nobre companhia inspirações sublimes, ensinamentos fidedignos,


conselhos, exemplos, citações.
Hauri abundantemente nesse tesouro que tendes à mão. Não
-conseguireis esgotá-lo. Tomai a firme resolução de viver na int1m1-
-dade das almas mais delicadas da humanidade, de penetrar as suas
idéias, de lhes pedir conselho, luz e fôrça em tôdas as circunstâncias.
Os livros são mestres que se acomodam a todos os paladares .
..Instruem-nos sem vara nem palmatória, sem palavras ofensivas
nem coléricas, sem mesmo exigir honorários. Se vos aproximardes
-dêles, não os achareis dormindo; se os interrogardes para vos darem
explicações, nada vos esconderão; se os compreenderdes mal, n ão
resmungarão; se fordes ignorantes, êles não zombarão de vós."

A leitura ensina a pensar, a falar, a escrever•


......

Não há como a leitura para dar solidez ao pensamento de um


grande escritor. À lógica natural do espírito vem acrescentar-se a
dêsse espírito superior.
Aquêle que muito leu acha mais facilidade em se expressar. Viveu
numa sociedade onde a conversa é eloqüente. Sua memória é rica em
palavras e expressões. "Lendo os bons autores", disse Fillion, "adqui­
rimos a facilidade tão preciosa de nos expressarmos em qualquer
situação em que nos encontramos. Dizem que certo grande autor
francês lia e relia o dicionário para enriquecer a memória de nume­
rosos e variados têrmos, enriquecendo assim também a sua linguagem.
Outros há que recolhem dos livros de leitura, e organizam metodica­
mente lindas e felizes locuções que saberão aproveitar na ocasião
-0portuna."
A leitura ensina a escrever. A história literária no-lo confirma.
A maior parte dos grandes escritores trazem em seus escritos a
marca dos autores preferidos. Bossuet lia com assiduidade São Cri­
sóstomo, S ão Jerônimo e Santo Agostinho. Chateaubriand muito
deve a Rousseau. Lamartine inspira-se em Rousseau, Chateaubriand,
Ossiam, Byron. José de Maistre tinha Bossuet como autor preferido;
ao mesmo deve parte da magia do seu estilo. Luís Veuillot, na Con­
fession littéraire, revela-nos suas preferências pelos grandes mestres
RUMO À CULTURA 133

do século XVII. Moos. Freppel viveu dilatados anos e m companhia


dos Padres da Igreja que tanto enalteceu.
Os grandes advogados franceses do século XIX tinham seus au­
tores prediletos. Para Berryer era Bossuet; para Dufaure, Pascal;
para Jules Fabre, Cícero que sabia de cor; Rousse deleitava-se com
Montaigne, e Leão Duval, o ironista por excelência, lia constante­
mente Paulo Luís Courier.
Eles os liam não só por causa das idéias mas também pelo estilo.
A mais bela idéia expressa sem elegância tem pouca ascendência
sôbre os espíritos. t o estilo que lho dá, porque constitui a "fôrça
misteriosa que atrai, o adôrno que alegra, a inspiração que impulsio­
na, a flama que ilumina e aquece".

A leitura é um meio de formação moral.

O bom livro ensina a bem viver. Dize-me com quem andas,


dir-te-ei quem és. Dize-me o que lês, dir-te-ei o que vales. Os anti­
gos Faraós tinham razão de escrever à entrada de suas bibliotecas:
Tesouro dos remédio.r da alma.
O livro tem um poder enorme para incitar ao bem. Uma única
leitura é suficiente para transformar um homem. Paulo Bourget
disse: "Não há ninguém, entre nós, que, descendo aos refolhos de
sua consciência, não reconheça que não seria exatamente o que é
se não tivesse lido tal livro, tal trecho de história ou de filosofia."

Tomo escolhido, livro encantador,


Transparente cristal, doce licor!
Fascina o olhar seu aspecto afável,
Cativa o ouvido seu ritmar amável,

Força o intelecto o atrativo potente


Dum chiste saboroso e folgazão;
Logo ap6s é cândido meigamente
E conquista o coração!
MoNoo
"0 livro", diz Edward Montier, "ten: maior influência que o
mestre mais bem escutado, que o amigo mais íntimo. Todos nós
134 L. RIBOULET

nascemos à vida religiosa, moral ou intelectual por causa de uma


leitura. Parece, com efeito, que o pensamento escrito toma corpo e
adquire poder especial. Assim temos mais tempo para considerá-lo,
logramos animá-lo, como Pigmalião animava Galatéia, e quando assim
animamos o pensamento que não vem de nós, assimila-se e em breve
forma um todo conosco.
"Então êle nos impulsiona por sua vez, tentando sair de nós,
jorrando de nosso cérebro e de nosso coração. Podemos então pro­
pagá-lo, porque o sentimos vibrar em nós e por nós. Já não é o
plágio da palavra apegando-se ou esmagando-se sôbre nós, vinda
de fora; somos nós que agora meditamos sôbre êsse pensamento re­
cebido mais ou menos conscientemente."
Tal é a influência moral da leitura. De Bonald escrevia que, desde
o Evangelko ao Contrato Social, foram os livros :(ue fizeram as
revoluções. O Evangelho transformou o mundo. Quanto bem não
fêz a Imitação de Cristo! As Vidas paralelas de Plutarco apaixonam
ainda os espíritos jovens. Era o livro predileto de Montaigne, de
Shakespeare, de Turenne, de Schiller, de Franklin, de Napoleão.
Vauvenargues deixou-nos o testemunho do entusiasmo que nêle
produziam tais leituras. "Quanto a mim, chorava de alegria quando
podia ler essas vidas; não se passava noite sem que eu pensasse em
Alcibíades, em Agesilau e outros; eu ia pelas praças de Roma para
conversar com os Gracos, e para defender Catão quando lhe lança­
vam pedras."
Alfieri deve-lhes a vocação dramática. "Li", diz êle, "as vidas de
Timoleão, César, Bruto, Pelópidas, mais de seis vêzes, com gritos,
choros, e transportes tais que até ficava furioso. Cada vez que en­
contrava um belo rasgo dêstes grandes homens, ficava tão agitado
que nem podia sentar-me e ficar quieto."
Quantos outros h á que devem a vocação a boas leituras! A vida
dos Santos produziu inumeráveis conversões. A leitura dos Anais da
Propagação da Fé originou a dedicação de muitos ao apostolado.
Lalande tomou gôsto pela astronomia lendo o livro de Fontenelle
sôbre a Pluralidade dos mundos. Lacépede, tendo descoberto um
volume de Buffon na biblioteca do pai, o leu e releu a ponto de o
saber de cor; nêle encontrou orientação definitiva. Goethe foi reve ·

lado a si mesmo pelo Vigário de Wakefield.


RUMO À CULTURA 135

Fazei, pois, judiciosa escolha d e livros e abandonai-vos à sua


salutar influência. As idéias cairão gôta a g&ta sôbre vossa inteli­
gência e vossa alma. Os sentimentos tornar-se-ão patrimônio vosso;
comunicar-vos-ão seu valor moral e o segrêdo de sua feliz expressão.

Qualquer que seja o fim de vossas leituras, não percais nunca


de vista a formação do espírito e do coração.

O Pe. Sertillanges e Payot distinguem quatro gêneros de leituras;


leituras de formação intelectual, leituras de ocasião, leituras de estí­
mulo ou de formação moral, e leituras de repouso. Tôdas devem con­
vergir para o mesmo fim : a formação da inteligência e da sensibilidade.
Leituras de formação intelectual. Estas leituras são relativas ao
objeto de vossos estudos, porque nunca deveis perder de vista o
fim que desejais alcançar. A base essencial do trabalho sério é na­
turalmente o manual; mas é útil e mesmo necessário consultar uma
obra mais alentada. É então que a dispersão se torna temível. Em
lugar de nos limitarmos aos esclarecimentos procurados, deixamo-nos
levar pelo interêsse das questões tratadas, e não nos contemos mais.
Em vez de orientar a leitura, deixamo-nos fascinar, perdemos muito
tempo e não tiramos destas pesquisas os frutos esperados.
Leituras de ocasião. As leituras de ocasião servem de comple­
mento aos conhecimentos gerais. Devem ser abordadas somente de­
pois de ter estabelecido sólidas bases. Para delas tirar reaimente
proveito é preciso fazer uma seleção entre as obras que tratam êsse
mesmo assunto e limitar-se às de primeiro valor.
Há questões modernas que por nenhum estudante devem ser
ignoradas. São essas leituras que chamaria leituras de ocasião. Mas,
neste ponto não renuncieis à liberdade. Estas questões são muitas
vêzes cativantes, mais interessantes que os vossos estudos, e por
isso poderíeis perder tempo considerável se vos faltasse vontade
forte.
Lembrai-vos de que tudo o que excita a curiosidade malsã nunca
é moderno. Não vos deixeis levar a questões estranhas ou suspeitas.
Leituras de estímulo, ou de formação moral. Todos os homens
passam por momentos de depressão ou de esterilidade intelectual.
136 L . R rnoULET

t útil então ter alguns autores preferidos que revigoram a aima e

avivam o espírito.
Que autores escolher? Cada um é que deve fazer a escolha de
conformidade com o caráter e os sentimentos próprios. Uma página
do Evangelho, um capítulo da Imitação de Cristo, tal descrição de
Chateaubriand, tal trecho de um discurso de Bossuet ou de Lacor­
daire, uma página satírica de La Bruyere e de Veuillot, ou qualquer
outro.
Escolhei para leituras edificantes, um livro básico e vivificador,
e deixai cair gôta a gôta sôbre a alma seu licor benéfico. São Fran­
cisco de Sales meditou durante tôda a vida o Combate Espiritual.
Ampere possuía decorada a Imitação de Cristo. A vida dos santos é
particularmente poderosa para sustentar a alma. Jorge Dumesnil
dizia que o ensino da filosofia moral é deplorável porque n ão são
citados os exemplos dos santos.
A leitura das biografias é também muito própria para excitar ao
bem, e existem algumas belíssimas.
Aconselho-vos os livros doutrinários: são os melhore� . Em todo
o caso não procureis senão autores de moral reconhecidamente sã.
O contato dos doentes e dos desiludidos não vivifica. Dai preferên­
cia aos livros que estimulam o amor à vida, à virtude, aos deveres
penosos mas meritórios.
Leituras de repouso. Ainda neste gênero de leituras, fazei judi­
ciosa escolha de autores. O campo é vastíssimo. Segundo o vosso
caráter encontrareis verdadeira distração na poesia, nas viagens ou
explorações, na arqueologia, na história natural, na crítica de arte,
na literatura, nas biografias, na história civil, na história eclesiás­
tica, nos contos. Quanto aos romances consultai sempre antes de ler
algum, porque são bem poucos os que podeis ler. Por natureza, o
romance deforma o espírito. Dá unicamente utopias e transporta a
um realismo enganador. Deixai tais leituras aos calejados, aos ina•
tivos: essas leituras vos fariam perder o gôsto pelo trabalho sério.
Fazei igualmente seleção entre jornais e revistas. Não vos entre­
gueis a leitura alguma que possa prejudicar a vossa alma. E enquanto
procurais a alegria, o esquecimento das penas, o descanso do espírito,
nunca percais de vista a formação geral de vossa inteligência.
RUMO À CULTURA 137

Dei�ai d e lado todo livro mau, suspeito, m edíocre e insípido.

Sêde inflexíveis; não vos deixeis levar pela curiosidade malsã.


Preservai da corrupção vosso espírito; seja para vós um ponto de hon­
ra o dar-lhe sempre ótimo alimento. Bem sei que ouvireis certas
personagens emancipadas repetir êstes sofismas: "Porventura, não
tenho eu o direito de tudo conhecer? - Quero saber o que é ! - :E.
preciso estar em dia." Desprezai essas falsas teorias. Elas conduzem
ao abismo. Não é permitido brincar com o veneno. Respeitai vossa
dignidade pessoal abstendo-vos de tôda leitura que possa rebaixar
o espírito, manchar o coração e enfraquecer a vontade.
Lamartine, indo visitar um amigo íntimo que se achava no castelo
Bienassis, descobriu alguns livros ineptos do século XVIII e os leu
em companhia do amigo: "Mergulhamos neste oceano de água turva.
Cada um de nós levou um dêsses livros no bôlso para alegrar ou
encantar os momentos de distração no quarto ou na floresta. Entrá­
ramos inocentes e saíamos culpados; uma volta de chave nos tinha
apresentado a árvore da ciência do bem e do mal. Sentíamos o re­
morso dêste fruto proibido mas sua voz apagava-se diante de nova
paixão . . . Assim saímos da biblioteca escusa de Bienassis, onde a
corrupção nos foi revelada por êsses livros."
Conheceis, sem dúvida, a famosa página de Les Rayons et les
Ombres em que Victor Hugo põe de sobreaviso uma jovem contra as
seduções do mau livro:

Plein de ces chants honteux, dégout de la mémoire,


Un vieux livre est là-haut sur cette vieille armoire,
Par quelque vil passant dans cette ombre oublié.
R oman du dernier siecle, ceuvre d'ignominie . . .
Prends garde, enfant, cceur tendre ou rien encor ne souffre!
Voltaire, le serpent, le doute, l'ironie,
Voltaire est dans un coin de ta chambre bénie . . .
Oh! tremble! ce sophiste a sondé bien des fanges!
Oh! tremble! ce faux sage a perdu bien des anges!
Hélas! si ta main e haste ouvrait ce livre infâme,
Tu sentirais soudain Dieu mourir en ton âme;
Tu ne dormirais plus, Pu ne chanterais plus,
138 L. RrnoULET

Et ton esprit, tombé dans l'océan des rêves,


lrait, déraciné comme l'herbe des greves,
Du plaisir à l'opprobre, et du flux au reflux.

O mal que o livro pode causar é tremendo. Lavedan escreve ao


:afilhado: "Se me achas severo para com as más leituras, é porque
ainda não podes imaginar as ruínas que causam, mesmo àqueles a
,quem nada ensinam, os quais então se convencem, os impruden­
tes de 'que para êles não existem mais limites'. Elas perturbam,
preocupam, rompem o equilíbrio das fôrças superiores, e sobretudo
-enlameiam a alma, salpicam-na de lôdo. Sai-se da leitura do mau
livro com o espírito enxovalhado e manchas no coração que não se
apagam mais. Parecem sumir-se com o tempo, mas depois tornam
a voltar e sempre no instante crítico em que se desejaria possuir a

transparência do cristal."
Não serão pois estas linhas uma linda paráfrase dos famosos
versos de Musset:

Le cceur de l'homme vierge est un vase profond:


Lorsque la premiere eau qu'on y verse est impure
L'océan passerait sans laver la souillure,
Car l' abtme est immense et la tache est au fond.

Foram comparados os maus livros e a propaganda licenciosa à


praga das môscas. Cada dia seguem mil caminhos, penetrando em
tôda a parte: palácios, castelos, hotéis, reuniões, cafés, vias públicas,
oficinas de todo gênero, mansardas das cidades, casas das aldeias.
As espécies são infinitas: há môscas imundas, môscas barulhenta�,
môscas elegantes, môscas discretas, môscas astutas que escondem
mortífero dardo. Tôdas elas pertencem à mesma família: por tôda
a parte levam os germes de corrupção e de morte.
Para o católico, e mesmo para qualquer jovem que se respeita,
as normas de proceder são: observar as regras traçadas pela Igreja.
Esta toma o cuidado de nos avisar por meio do lndex: acautelai-vos,
n ão vos abebereis em fontes envenenadas. Há venenos espirituais
-que matam a alma; outros há que arruínam o espírito. Ambos se
Goethe em 1 776
(Quadro de Georg Melchior Kraus)
Pellico Carlyle

Ampere Httmboldt
RUMO À CULTURA 139

acham geralmente n a categoria dos autores chamados malfeitores


literários.
Desconfiai das obras suspeitas, isto é, das que podem levar ao
mal indiretamente pela sua frivolidade ou pela funesta influência
que exercem sôbre a imaginação e a sensibilidade. "Os leitores fracos,
levianos", disse Carlyle, "que borboleteiam em livros frívolos não
tiram bem nenhum, antes pelo contrário, saem prejudicados por to­
dos êles."
A maior parte dos romances são perigosos além de serem frívolos.
Quantos crimes não faz cometer o romance policial! Certos jovens
estão verdadeiramente intoxicados. A fôrça de lerem a narração àe
crimes, o cérebro fica abalado e os maus instintos se desenvolvem.
Os romances pseudocientíficos não deixam de apresentar peri­
gos. "Num asilo de menores", escreve Félix Hémon, "vimos três
casos de meninos que haviam fugido da casa paterna depois de
terem lido os romances de Júlio Verne. Um menino sustentou, uma
vez, erros monstruosos valendo-se do mesmo Júlio Verne; um homem
de idade madura, adepto de Flammarion, afirmou-nos, certa vez,
que as paisagens tomadas sôbre Marte e Vênus eram reais." Absten­
de-vos o mais possível das leituras dêsse jaez. Elas desorientam a
imaginação e a tornam romanesca, fazem perder a noção do real e
levam ao terreno quimérico e utópico.
Acautelai-vos contra a imprensa sensacional, a imprensa amarela,
como às vêzes é chamada, para que a eviteis cuidadosamente. Ela
descreve os crimes com todos os pormenores, ou, em artigos sàbia­
mente redigidos, em doses pequenas, vai minando pouco a pouco
todos os sentimentos nobres e conduz à indiferença e à transigência.
"Estás cheio de entusiasmo e o mal te causa indignação", diz Hé­
brard a um jovem que bebe com avidez a leitura de certo jornal.
"Em breve, predigo-te eu, serás um vencido, um derrotado e deixarás
passar sem te comoveres os mais odiosos ataques contra as convicções
e as liberdades mais sagradas. tste modo de pensar que hoje te
envergonha e horroriza parecer-te-á natural amanhã. Porque essa
imprensa, aparentemente anódina, que o criou nos outros, criá-lo-á
igualmente em ti."
Talmeyr, falando dessa categoria de jornais, diz: "O vício dessa
140 L. RrnoULET

imprensa consiste em misturar de tal modo o bem e o mal que, com


o tempo, não se sabe mais distinguir um do outro. São recomendados
os piores lugares, os livros mais obscenos são propalados com têrmos
neutros. Assim pouco a pouco parece permitido freqüentar os pri­
meiros e aconselhada a leitura dos outros. De tudo isso desprende-se
uma atmosfera em que o mal aparece sem conseqüências, o bem sem
valor nem beleza, onde todo esfôrço, todo protesto parecem forçosa­
mente inúteis e ridículos."
Aliás, se vos ocupardes seriamente de estudos, pouco tempo
ficará para lerdes mesmo os bons jornais. "Preservai-vos dessas lei­
turas com a energia que merecem a inconstância e indiscrição de
seus ataques", diz o Pe. Sertillanges. "O seu conteúdo é diminuto e
seria fácil cientificar-se dêle sem entregar-se a tão grande perda de
tempo."
Dir-vos-ei apenas uma palavra sôbre as leituras insípidas e me­
díocres. O bom-senso vo-las deve proibir. Que ganharíeis com elas
senão o aviltamento do espírito e do coração? O Ten. Dupouey es­
crevia o seguinte durante a guerra: "O tempo que se d á às leituras
insípidas não é, como se pensa, tão perdido assim para tôda a gente,
pois que é tempo roubado à leitura dos bons livros. Se os desejos
que nos levam são tão débeis, se, como diz Bossuet em suas admi­
ráveis Elevações, a imagem de Deus perdeu tanto da sua fôrça, é
porque deixamos murchar o espírito em sociedades suspeitas. Tada
a preocupação proporcionada às futilidades significa menos fôrça,
menos prudência, menos profundidade à procura da vontade de Deus.
Tirante essa consideração, elas não apresentam perigo! "

Lede unicamente livros ótimos.

Estimai sobretudo os livros eternos que ensinam verdades eter­


nas. O tempo que tendes é tão reduzido que deveis afastar tudo o
que não seja de primeira importância. Payot fala dos livros reais a
que devemos sempre recorrer. "Se tivesse que recomeçar minha
vida", disse êle, "impor-me-ia uma lei severa para não ler, na ju­
ventude, senão livros reais, escritos por pensadores enérgicos."
Schopenhauer exprimia a mesma idéia quando dizia: "O tempo
RuMo À CULTURA 141

reservado à leitura, seja êle utilizado para a leitura dos espíritos


geniais. tstes, na verdade, formam e instruem."
O Cel. Paqueron lia somente as grandes obras. Platão, que êle
tinha lido e admirado na mocidade, lhe parecia, na velhice, um génio
de segundo plano. A Bíblia de Vence, Dom Calmet, Pascal, Bossuet
e Massillon o cativam e satisfazem. Seu diário repleto de aponta­
mentos testemunha a sua estima por êsses autores e o trato freqüente
com as suas obras.
Seu biógrafo, Mons. Saivet, conta-nos que não aparecia
nenhum livro de valor sôbre questões de religião sem que êle se não
aviasse a fazer a crítica. Depois das obras imortais de José de Maistre
e de Bonald, os trabalhos do Pe. Glaire sôbre os livros sagrados, a s
Conferências d e Notre-Dame, o s livros d e Nicolas, a s edições Migne.
ocupavam-lhe, cada um por sua vez, as horas de estudos matinais
ou mesmo parte das noites.
Não vos deixeis fascinar pelas novidades. Desconfiai das propa­
gandas espalhafatosas, dos títulos aliciadores, das reportagens muitas
vêzes interesseiras pelas quais se procura engodar o leitor.
Pedi co-nselho a quem fôr competente em tais assuntos, e nunca
permitais a nenhuma obra o acesso à vossa pequena biblioteca senão
após um parecer autorizado.
Tal homem, tal biblioteca. Mostra-me tua biblioteca e dir-te-ei
quem és. A lista das obras que compunham a de Bossuet revelam­
nos até que ponto o ilustre bispo levava o cuidado na procura da
verdade e exatidão. "A biblioteca de Bossuet", diz Brunetiere, "era
uma biblioteca de trabalho. Tendo entre as mãos o catálogo de suas
obras, podemos afirmar que êle sempre se esforçou por trazer em
todos o s problemas, a luz, a exatidão e a precisão que os conheci­
mentos alheios e pessoais dos textos, secundados por uma crítica
judiciosa, podem nêles introduzir."
Que contraste com a biblioteca de Voltaire! José de Maistre que
a tinha visto no palácio de Hermitage, escreveu em Soirées: "Causa
admiração a extrema mediocridade das obras que bastaram ao pa­
triarca de Ferney. Em vão se procuraria em seu catálogo de obras
o que nós chamaríamos livros de primeiro valor. O conjunto de todos
êles dá uma idéia da biblioteca própria a distrair um camponês em
seus serões."
142 L. RrnoULET

Sêde severos e escolhei apenas os grandes livros: um único livro


bastaria, disse alguém, fôsse êste a Bíblia, Homero, Cervantes ou Sha­
kespeare. Aquêles a quem a B íblia impressionou são superiores aos
outros. Napoleão lia a Bíblia quando se dirigia ao país dos Faraós;
ainda se dava a tal leitura na última etapa de Santa Helena.
Chateaubriand evocou a Bíblia diante das gerações que se seguiram
à Pucelle e à Henriade: parecia a entrada do sol numa terra morta.
Os filhos de René guardaram-lhe o brilho. Foi talvez Lamartine,
dentre os mortais, aquêle que retomou a harpa melodiosa, quase
divina de Davi. Na obra de Vigny ouvimos gemer Moisés, "poderoso
e solitário", e rugir em meio aos soluços a ira de Sansão. Também
Victor Hugo mergulhou na Bíblia seu instrumento de bronze. "A
B íblia é meu livro" dizia êle. Racine duas vêzes foi haurir na Bíblia
e dela retirou duas jóias: Estker e A tkalie. Quando Lamennais sen­
tiu a noite da revolta aproximar-se dêle, quis imitar a Bíblia; mas as
Paroles d'un Croyant servem apenas para medir o abismo entre a
inspiração divina e a imitação humana.
Falta-me agora dizer-vos como deveis ler.

Traçai um programa para vossas leituras.

Um ótimo meio para só fazerdes leituras úteis é traçar anteci­


padamente um programa. O primeiro resultado será o de afastar
quantidade enorme de livros medíocres que vos roubariam minutos
preciosos! Fazei como José de Maistre, não vos dessedenteis com
vinho aguado mas saboreai a longos tragos o mel e a ambrosia.
Assim vos preservareis da dispersão que extravia o espírito e
conservá-lo-eis no caminho que para vós é o melhor.
Não improviseis êsse programa, e, quanto ao que diz respeito à
formação moral e religiosa, nada façais sem consultar. Perguntai
a vós mesmos quais as leituras mais vantajosas, mais conformes à
vossa vocação, à vossa posição, ao ideal que vos propondes, aos
vossos estudos, gostos e preferências.
Evitai o demasiado exc.lusivismo e a estreiteza de vistas n a es­
colha das leituras. "Há idéias, fatos que nenhum homem inteligente
pode ignorar'', diz Fillion, "seria prejudicial à nossa formação se nos
enclausurássemos, por assim dizer, num quarto escuro, sem nunca
lançar um olhar pela janela para ver o que se passa fora."
RUMO À CU LTURA 143

Logo que o programa estiver elaborado, observai-o fielmente.


Lede um autor até o fim; não sejais daqueles que lêem simultânea­
mente quatro, cinco, seis volumes. Mons. Dupanloup, jovem sacer­
dote, tomou a seguinte resolução: "Quando me tiver decidido a fazer
uma leitura e a tiver começado, terminá-la-ei ainda quando encontre
outra melhor; isto tem importância para que o espírito se não torne
leviano e para tirar o máximo proveito de cada livro."

Evitai ler em demasia.

Leituras numerosas são necessárias para alargar o espírito e com­


pletar os conhecimentos. Todavia, evitai o excesso: a tendência
irrefletida, o furor, a paixão da leitura são apenas preguiça disfar­
çada preferindo essa agradável e fácil ocupação ao esfôrço custoso
mas salutar que o estudo exige.
O primeiro inconveniente dêste defeito é de sobrecarregar o
espírito de multidão de noções incoerentes e superficiais, que podem
abalar a mente. "Nosso século", dizia Vernet, "está enfermiço por
ler muito e por ler mal. Sem uma reação voluntária do leitor sôbre
o autor, a leitura é antes um mal do que um bem. Lede mas refleti,
e abstende-vos de ler se não quiserdes refletir durante a leitura ou
depois."
O hábito de ler demais faz perder, aos poucos, o gôsto do estudo.
E o furor da leitura vem a ser destarte a mais perigosa forma da
preguiça. "Esta paixão, de que muitos se gabam como sendo pre­
ciosa qualidade intelectual, é na verdade uma tara", diz o Pe. Ser­
tillanges; "nada difere das outras paixões que assaltam a alma, pois
entretém nela a desordem injetando e entrecruzando correntes con­
fusas e esgotando-lhe as fôrças. A leitura desordenada entorpece o
espírito, não o alimenta; torna-o pouco a pouco incapaz de reflexão
e concentração, e por conseguinte de produção; exterioriza-si!, por
assim dizerr e torna-o escravo de suas imagens mentais, do fluxo e
refluxo de que êle se fêz espectador."
:E:ste abuso tem por conseqüência fatal um notável enfraqueci­
mento da personalidade. O talento aniquila-se sob a vaga inv1sora;
um pensamento estranho substitui o pensamento pessoal que murcha.
Deixa-se de ser uma personalidade; não se é senão o eco apagado da
144 L. RIBOULET

multidão de idéias estrambóticas que se entrechocam no espírito.


Lede pouco, mas bem, tomai o tempo necessário para "quebrar o
osso e chupar-lhe o substancial tutano". Permanecei vós mesmos e,
aos poucos, com prudência, formai idéias pessoais sôbre as questões
de que vos ocupais. Robertson dizia: "Eu li intensa e seriamente
mas nunca de modo superficial qualquer obra que fôsse, sem jamais
me deixar fascinar por livros apenas atraentes; por isso, Platão,
Aristóteles, Tucídides, Butler, Sterne, Edwards entraram em meu
sangue." É assim que deveis ler. Agi como os garimpeiros que cavam
o solo para encontrar nêle as preciosas pepitas: lede como os que
colhem flores para fazer um ramalhete ou frutas para encher uma
cesta. :E:les não fazem a colheita à toa; mas, tomam as flores mais
lindas e as frutas mais belas.

Não temais reler amiúde escolhido número de obras.

Faguet, em seu pequeno livro L'art de lire, diz o seguinte : "Tanto


se lê o livro sério virando as páginas da direita para a esquerda,
como virando-as da esquerda para a direita, quer dizer, voltando
ao que se leu. O homem de idéias, sendo, mais do que qualquer
outro, um homem que não pode dizer tudo de uma só vez, comple­
ta-se e esclarece-se à medida que o lemos; só fica assimilado após
a leitura completa de suas obras. É preciso, pois, à proporção que
se completa e esclarece, levar em conta o que se leu ontem para
compreender o que hoje se lê, e para compreender o que ontem se
leu, levar em conta o que se leu hoje."
Aquilo que Faguet diz de um livro é preciso aplicá-lo a um, pe­
queno número de livros escolhidos. Aliás esta recomendação n ão
é novidade. Plínio dizia: "É preciso muito ler os autores, não porém
muitos autores." Sêneca escrevia a Lucílio: "A leitura de multidão
de autores poderia provir do capricho e da inconstância. Faze uma
escolha de escritores para te fixar nêles e nutrir-te do seu gênio, se
quiseres haurir recordações que te sejam fiéis. Aquêles que passam
a vi da viajando terminam tendo centenas de hóspedes mas nenhum
amigo. O mesmo sucede forçosamente a quem negligencia o conví­
vio com autores preferidos. Vai correndo e lança um olhar rápido
sôbre todos ao mesmo tempo."
RUMO À CULTURA 145

Santo Tomás recomendou o mesmo a um estudante que o consul­


tava: "Não vos contenteis de penetrar superficialmente o que ouvis
e ledes; mas procurai penetrar ou aprofundar o sentido todo." Isto
significa que se deve voltar, amiúde, sôbre as mesmas idéias, reler
com freqüência os mesmos livros.
É muito citada a máxima: "Temo o homem de um livro'', sem
contudo pesar todo o sentido que encerra. Aquêle que possuísse per­
feitamente uma única ciência, seria, sem dúvida, um grande justador.
Mas o sentido da máxima parece ser o seguinte: "Deus me livre
do que conhece apenas um livro!" :E:sse homem teria vistas muito
estreitas e seria obstinado em suas idéias.
Não sejais homens conhecendo um livro apenas, mas certo nú­
mero de bons livros. Nada impede que entre êsses livros tenhais um
ou dois de que fareis vossos livros de cabeceira. Agindo desta forma,
imitais as maiores inteligências e as almas mais nobres da humani­
d ade.
Alexandre Magno levava sempre consigo as obras de Homero
em cofre de ouro. Demóstenes tinha predileção para Tucídides; a
fim de adquirir sua elegância de estilo copiou oito vêzes a Hist6ria
da guerra do Peloponeso. Bruto tinha tomado a Políbio por autor
preferido; consagrou parte de sua última noite a redigir o resumo que
estava fazendo de suas obras. O sultão Selim II mandou traduzir para
si os Comentários de César; essa leitura inflamava seu ardor militar.
Grócio trazia continuamente consigo uma edição de Lucano; foi
visto várias vêzes beijar com respeito êste livro.
É sabido que Carlos Magno escolhera por livro querido a Cidade
de Deus. São Francisco de Sales leu e meditou tôda a vida o Com­
bate Espiritual. Bossuet teve por mestres a Bíblia, Tertuliano e
Santo Agostinho. Bourdaloue inspirou-se unicamente em São Paulo
e em São João Crisóstomo. Montesquieu estimava sobretudo Tácito,
o historiador "que tudo resume, porque tudo vê". Voltaire tinha
sempre sôbre a mesa de trabalho A tkalie e o Petit Carême.
Diderot dizia: "Se fôsse obrigado a vender minha biblioteca,
conservaria, custasse o que custasse, Moisés, Homero e Richardson."
Rousseau serviu-se de Plutarco, Montaigne e Locke para a compo­
sição do Emile.
Ampere sabia de cor a Imitação de Cristo. Michelet deleitava-se
146 L. RIBOULET

nessa leitura. O ilustre Cauchy a trazia sempre consigo juntamente


com um Virgílio.
O grande Lincoln também tinha livros prediletos: a Bíblia que
a mãe lhe deixara; a Vida de Washington que pagara ao mestre em
troca de três dias de trabalho; o Comentário das leis inglêsas de
Blackstone, que comprara num alfarrabista. Todos êstes livros, êle
os leu e releu. A Bíblia ensinou-lhe a ser cristão; a Vida de Washing­
ton, o tornou um ilustre cidadão; o Comentário de Blackstone
deu-lhe a idéia de defender e vingar o direito e a liberdade.
Um poeta contemporâneo cantou seus autores preferidos com
graça singular. Eis a pequena obra-prima:

Meus autores de predileção:

Gosto semp1'e que me visitem:


Contam-me maravilha tanta
Que sua meiga voz me encanta.
Gosto de suas mit conversas,
Da felicidade que canta.

Quando almejo a t�rra deixar


Bossuet me arrebata aos céus,
Me apresa em suas garras de aço,
E por entre um longo trovejar
Me alcandora assim pelo espaço!

Levo Fénelon meditado,


Aniquilo-me com Pascal;
Com a História fico irritado
Unindo ao chicotear de Tácito
A Sátira de ]uvenal!

Mas não há ninguém que me encante


Mais do que Sévigné graciosa,
E ladina quando raivosa.
Em delicadeza é tocante!
E bem gaulesa em sua prosa!

ANATOLE DE SfouR
RUMO À CULTURA 147

Lede atenta e refletiáamente.

l! bem verdade que muitos n ão sabem ler: percorrem os livros


com lastimosa rapidez. As páginas passam diante dos olhos como
se fôsse uma fita de cinema. Que frutos poderão resultar de tais.
leituras?
Os devoradores de livros passam por estudiosos. Não nos iluda­
mos. "Os meninos", diz Gâche, "que a um tempo alegram os pais
e os afligem, porque numa semana de férias esgotam a biblioteca de
casa e a dos vizinhos, êstes meninos perdem mais estupidamente o
tempo, crede, do que seus amiguinhos sempre a cansar-se correndo·
pelos campos. tstes falsos trabalhadores são apenas uns enfraque­
cidos: se fôssem sãos e robustos não permaneceriam assim sôbre os
livros. Ou então, são uns distraídos, incapazes de fixar um olhar
atento sôbre as coisas ou de concentrar-se nelas."
Quando lerdes, imponde silêncio a tudo em volta de vossa alma,
afastai as causas de distração e colocai-vos em estado de solidão
interior. Concentrai a atenção sôbre a leitura, pesai as palavras e
as idéias; não deixeis passar expressão alguma que não compreendais;
parai na passagem que vos parece confusa. Depois d a leitura é pre­
ciso que possais destacar a idéia principal e as idéias particulares.
Nada vos impede de fazer como aquêle professor inteligente que,
para acostumar seus alunos a tirar fruto das leituras redigia um
pequeno questionário relativo a cada livro emprestado e o colocava
no interior do volume. Dava uma cópia do questionário a quem
solicitasse o dito livro, sôbre uma fôlha dupl � na qual deveria d ar
a resposta às perguntas. Eis alguns exemplos destas mesmas: quais
são as duas cenas mais lindas? a mais linda paisagem? o excerto
mais patético? mais cômico? assinalar o que é digno de ser imitado,
o defeito que avilta tal personagem, o defeito que acarreta tal des­
graça, uma cena romanesca, as palavras ainda não vistas, etc.
Mons. Dupanloup quando jovem sacerdote escreveu: "Nada le­
rei por simples curiosidade.-- Age quod agis. - Pouco e bem. -

Multa in labore methodus. - Multa in meth.odo constantia. - O


essencial é me alimentar dos modelos. Nunca lerei precipitadamen­
te. Em tôdas as leituras, terei em vista o nutrir-me, que as trans­
formará em minha própria substância."
148 L. RrnoULET

Estas últimas palavras de Mons. Dupanloup dão a entender que


tôda leitura deve ser acompanhada d� meditação. Meditar, é trans­
formar as idéias que lemos em pensamento pessoal; é, como disse
certo autor antigo, "retalhar, trinchar, ruminar, reduzir por assim
dizer em caldo os alimentos que os bons livros nos oferecem".
Não façais leituras passivas; parai a fim de bem assimilar o que
ledes; repeti-o em vossa própria linguagem até que estejais satisfei­
tos. Assim desenvolvereis uma originalidade de bom quilate: "Um
quarto de hora de reflexão dilata o espírito e forma muito mais que
muita leitura", disse a Senhora de Lambert.
Refleti bastante a fim de agrupar as idéias da leitura que fazeis
-e classificá-las em ordem perfeita. Era êste o proceder de Balmes.

Já aos quatorze anos, antes de empreender a leitura de qualquer


obra, percorria o índice e perguntava-se a si mesmo de que maneira
trataria o assunto se fôsse incumbido de o redigir. "Reclinado sôbre
.a mesa de trabalho, a cabeça entre as mãos, lia algumas linhas; em

seguida envolvia a cabeça com o manto, ficava durante muito tempo


.absorto; parecendo depois acordar de um sono profundo."

Lede com a caneta em mão.

O costume de ler com a caneta na mão foi o dos espíritos sérios


de todos os tempos. "Escreve o que viste", disse o anjo a Habacuc;
.a mesma recomendação foi feita pelo anjo do Apocalipse ao exilado de

Patmos. São Paulo pede a seu caríssimo discípulo Timóteo trazer-lhe


<le Tróia o manto, os livros e sobretudo os cadernos de notas.
Santo Agostinho narra nos Solil6quim uma visão que lhe disse:
••Pede fôrça, e depois socorro para encontrares o que procuras; em
seguida escreve-o para que a concepção de teu espírito te anime e
fortifique. Escreve somente os resultados, e em poucas palavras.
Não penses na multidão que lerá estas páginas; alguns hão de com­
preendê-las."
Bossuet durante longos anos estudou com a pena na mão os
teólogos, e mais ainda a Bíblia e os Padres. ll:le tomava nota dos
pensamentos que pareciam veias a explorar; esquematizava as divi­
sões e os desenvolvimentos. Mais tarde quando se deu à pregação,
hauria nos cadernos como em fontes perenes.
RuMo À CULTURA 149

É devido ao acúmulo de notas que José de Maistre preparou


as mais lindas obras. "Estais vendo êsses volumes espessos estendi­
dos sôbre a minha secretária", dizia êle. "É nêles que, desde mais
de trinta anos, anoto tudo o que as minhas leituras me proporcio­
nam de mais comovedor. Às vêzes limito-me a simples indicações;
outras vêzes transcrevo palavra por palavra os trechos essenciais;
muitas outras vêzes essas indicações são acompanhadas de notas,
ou acrescento certos pensamentos que surgem no momento, quais
iluminações repentinas que se apagariam sem fruto se não lhes fi­
xasse o clarão pela escrita . . . E agora não imaginais o prazer que
sinto quando percorro essa coleção imensa!"
Joubert deixou mais de duzentos cadernos em que êle escrevia
a cada passo tanto durante o dia como durante a noite, acontecimen­
tos, análises de leituras, reflexões, máximas. De Sacy afirmava po­
der dizer qual o acontecimento público ou privado, qual a conversação
ou leitura que originara cada uma das máximas que se encontravam
na coletânea de Joubert.
A Sra. Swetchine tinha também êste excelente hábito. Seu bió­
grafo, de Falloux, no-lo disse: "Nenhum livro saía de suas mãos que
não estivesse anotado, comentado e até copiado inteiramente . . .

A primeira data dêsses alentados excertos é de 1801 . Seus livros são


em número de trinta e cinco; . além de outros que se extraviaram.
Os menores são in-octavo; treze in-quarto."
O Pe. de Ravignan tinha empreendido um vasto repertório de
formato in-folio, distribuído segundo ordem alfabética, em que êle
Juntava e dispunha de antemão o material para o futuro. Foi êste
um dos segredos do poder de sua palavra.
Destarte é que Mons. Dupanloup se preparou ao apostolado.
"Durante dez anos sem aprender tudo de cor", disse êle, "eu escrevia
tudo: instruções, homílias, histórias, interrogações, avisos; tenho ma­
terial suficiente para publicar ao todo dez volumes in-octavo. E
hoje sinto, no púlpito, que devo tudo a êsse trabalho."
Por que tomar apontamentos? Tal prática traz numerosas van­
tagens:
Alivia a mem6ria. Uma contensão por demais intensa e demorada
cansa esta faculdade, e apesar de prolongada aplicação, deixa esca­
par muitas coisas que devia fielmente reter. "Não confieis na me-
150 L. RIBOULET

mória", diz o Pe. Gratry, "pois é uma faculdade que esquece. Quando
a luz celeste das idéias a ilumina, julga que não a pode mais perder,
e que contemplará sempre o mesmo espetáculo. Não lhe deis fé.
Quando a luz lhe fôr retirada, empalidecerá a memória, como a
natureza quando o sol se põe, porque neste caso a escuridão é o
esquecimento."
1: um descanso no estudo pela variação; desloca o cansaço fa­
zendo variar o seu objeto. "O escrever me descansa da leitura e re­
ciprocamente", dizia Lacordaire.
1: um meio de formar o juízo e o gôsto. :E:ste hábito conserva o
espírito atento, dá ordem às concepções, exatidão às idéias, concisão
à expressão, qualidades estas de grande importância.
Os apontamentos são 1im meio de autoridade. Nossa incapaci­
dade e inexperiência desaparecem sob os nomes de profundos obser­
vadores e grandes pensadores.
Que apontamentos devemos tomar? O Pe. Sertillanges e Gâche
deram sôbre êste ponto excelentes diretivas que passo a resumir.
Tomam-se apontamentos de vários modos.
Apontamentos de formação geral: aquêles que têm utilidade em
ser conservados. A quantidade varia conforme o fim que cada um
quer atingir. tste fim é-nos indicado pela profissão ou vocação.
Traçai-vos um plano vasto e compreensível, evitando, todavia, o
excesso e a acumulação. Vêem-se jovens que têm a mania de tudo
copiar e nunca utilizar suas notas; deixam-nas no fundo da mala
ou num canto qualquer. Tomai o cuidado de classificar os assuntos
tendo cadernos diferentes para cada um.
Apontamentos em vista de um trabalho determinado. É uma
documentação. Por isso torna-se necessário recorrer às melhores
fontes de informação. Anotai tudo o mais resumidamente possível e
esquadrinhai o assunto sob todos os aspectos que desejais estudar.
Impregnai-vos das idéias principais, meditando-as. Se o plano não
vos parecer, a princípio, bastante nítido, segui um provisório, segundo
o qual tomareis as informações mais úteis.
A maior parte das vêzes tereis que resumir uma obra ou parte
de obra. Eis o que nos diz Gâche: "O que foi lido é preciso não
esquecê-lo. Anotai-o. Escrevei o título do livro, e o nome do autor;
em seguida, abaixo, escrevei: 'Capítulo primeiro' e um curto resu-
RuMo À CULTURA 15 1

mo dêsse capítulo; se estais de acôrdo com tudo e por que razões;


se censurais algum ponto e porquê; se algumas passagens vos lem­
bram algum outro livro lido anteriormente e qu:tis as semelhanças
que achais nos dois. Continuai desta maneira, capítulo por capítulo
até o fim. Se encontrardes páginas que vos agradam sobremaneira
aprendei-as de cor.
"Que sucederá quando terminardes tal trabalho? f: que o livro
assim resumido, comentado, memorizado, já não é mais a obra um
tanto morta do autor; mas é obra vossa; é vosso pensar; em vós
vive, mudado, como dizia o poeta, realmente convertido em sangue
e alimento."
Como tomar êsses apontamentos? Foi dito em parte. Digamos
que suas qualidades devem ser a rapidez, a concisão, a clareza. Em
geral anotam-se apenai; as idéias. Os resumos devem ser breves,
salientes, originais.
Usar fichas. São fôlhas de papelão fino, bastante grandes. Cada
ficha traz um título especial. Quando numa literatura encontramos
alguma idéia relacionada com o assunto indicado nas fichas, escre­
ve-se ou resume-se no lugar adequado a fim de a n ão perder. O
uso das fichas é o segrêdo da ciência. "f: o único meio, em dado mo­
mento, de nos lembrarmos do que lemos'', diz Albalat: "São tesouros
que se amontoam; uma simples leitura mais tarde é suficiente para
que tudo quanto foi apontado volte com nitidez. Não é difícil ins­
truir-se desta maneira. Os sábios não o ignoram; é por isso que êles
são modestos."
Há quem prefira usar cadernos cujas páginas fazem o ofício d as
fichas tendo divisões e títulos. Outros preferem envelopes de papel,
contendo cada qual determinadas notas de determinado gênero. Ar.
de um mesmo assunto são colocadas no envelope comum. Aliás, a
melhor classificação é a que nós mesmos encontramos.

Escolhei diàriamente uma hora fixa e sêde fiéis.

Não fixeis o momento para a leitura antes de bem refletir. Vereis


o proveito desta determinação. Tomai essa resolução como um com­
promisso do qual depende vossa honra, e a hora fixa vos encontre
indubitàvelmente fiéis à vossa promessa.
152 L. RrnoULET

Trabalho curto mas constante, efetuado regularmente, vale maia


do que leituras feitas sob a inspiração da fantasia. A regularidade
vos formará a vontade. Conservai outrossim a uniformidade de ca­
ráter. Se as penas diárias, as aflições, as dificuldades vos perturbam
a ponto de vos esquecerdes do regulamento, é porque careceis de
domínio sôbre vós mesmos. Abandonai tôdas as preocupações e con­
centrai as faculdades sôbre o objeto de vossa leitura. Tomai uma
posição enérgica; dizei a vós mesmos que quereis empregar bem o
tempo.
Quando por vossa energia tiverdes conseguido fazer a leitura no
momento marcado, não podereis mais privar-vos de tal refeição que
vosso espírito exige. A regularidade entretém o interêsse e o inte­
rêsse gera o entusiasmo. Em tais condições a leitura é fonte de
poder, porque o prazer de ter relações com os grandes espíritos, de
nos sentir a alma em contato com a dêles, elimina do trabalho tôda
.a aspereza e o transforma em prazer intenso.
Capítulo XI

NÃO DESANIMEIS SE ENCONTRARDES DIFI­


CULDADES DE ORDEM MATERIAL, SE VOS
CONTRADISSEREM E SE YOSSO E STADO
DE SAüDE FôR PRECÁRIO

Nada de novo pretendo ensinar-vos, caros amigos, ao dizer que


haveis de encontrar dificuldades em vosso caminho. Não temais.
As provações são o cadinho das almas. Por elas os fortes tornam-se
heróis, como o carvalho que se robustece com os ventos tempestuo­
sos; os fracos fortificam-se ou pelo menos, como o caniço, aprendem
a nutrir-se da torrente que os agita. "A cabeça de Hércules", diz
Ruskin, "estava sempre coberta por uma pele de leão cujas garras
se juntavam abaixo dos maxilares, querendo significar que, após
têrmos vencido alguma dificuldade, ela torna-se para nós um auxílio."
A dificuldade é formadora: amadurece a inteligência, disciplina
a vontade, o caráter, a sensibilidade; faz desabrochar o gênio como
o vento faz desabrochar as flores.
A dificuJdade é estimuladora: leva ao esfôrço e à ação; usam-se
estratagemas para vencê-la, contorná-la. Faz-nos viver exuberan­
temente. Victor Hugo cantou-a nos seguintes lindos versos:

Ceux qui vivent, ce sont ceux qui luttent,· ce sont


Ceux dont un dessein ferme emplit l'âme et le front,
Ceux qui d'un haut destin gravissent l'âpre cime.

A dificuJdade é preservadora: afasta as tentações da vã compla­


cência e do orgulho; impede cair nos vícios que matam o gênio. O
exército de Aníbal fortificou-se nos perigos; afrontou com êxito a
154 L. RrnouLET

perfídia dos gauleses, a neve dos Alpes, o sol abrasador da Itália,


a coragem dos romanos. Mas perden todo o seu valor guerreiro
.assim que se lhe apresentaram o gôzo e uma lauta mesa.
Não temais, portanto, as horas penosas de vossa vida de estu­
-Oante. Armai-vos cada dia com nova bravura. Se fordes corajosos
vencereis a dificuldade, e suas lições ser-vos-ão de um preço incal­
·culável. Lede as biografias dos homens de nomeada e verificareis
que a maior parte dos homens ilustres fizeram uma consumição for­
midanda desta generosa iguaria que se chama o pão que o diabo
.amassou.

.Se estiverdes em dificuldade devido à pobreza, ânim o / estais


em ilustre companhia.

Quantos sábios, literatos, artistas, lutaram contra esta provação,


·sobretudo na mocidade! Amyot estudou ao mesmo tempo que era
.empregado de seus companheiros. Cervantes nem sempre teve pão
.à vontade. Tasso foi obrigado a pedir emprestadas algumas moedas
a um amigo para subsistir uma semana mais; num sonêto confessa
.não ter sequer uma candeia para escrever versos. Camões morreu
.de miséria num hospital de Lisboa. Vondel, o Shakespeare holandês,
morreu na maior pobreza e sem deixar o necessário para enterrá-lo;
·quatorze poetas tão pobres como êle o levaram ao cemitério.
Em nossos dias certos homens ilustres não foram mais felizes.
-O químico Fourcroy suportou grandes privações durante a juven­
tude. Habitando num sótão, recebia luz por uma clarabóia estrei­
tíssima um pouco maior que sua cabeça. Junto dêle habitava um
-carregador de água, pai dr doze filhos. O jovem estudante tratava
.as numerosas doenças dessa família. Por isso o vizinho retribuía
.serviço por serviço. "Também", dizia êle mais tarde, "nunca me
faltou água." O mais, êle o conseguia a custo, por meio de lições
.dadas a outros alunos, por pesquisas para estudantes ricos ou por
.algumas traduções, aliás muito mal pagas.
Magendie, tendo conseguido, por concurso, um pôsto de interno,
-obteve o necessário para a vida, mas com que sacrifícios! "Durante
uma temporada que me pareceu bem longa", dizia êle alegremente
mais tarde, "pagas as despesas, ficavam apenas para o meu sustento
RUMO À CULTURA 155

5 vinténs por dia, e além disso, eu possuía u m cachorro; dividía­


mos . . . êle n ão estava gordo, e eu tampouco! "
Durante longos anos Francisco Coppée viveu numa pobreza vi­
zinha da miséria. Sempre se ressentiu da falta de recursos até a
idade de vinte e sete anos. Depois da morte do pai ficou encarregado
do sustento da mãe e das irmãs, não tendo senão o modesto paga­
mento de funcionário no ministério da guerra. Feita a primeira pu­
blicação do R eliquaire, a expensas suas, não conseguiu vender cem
exemplares; a segunda, as lntimités, chegou apenas a setenta exem­
plares. Enfim foi representado o Passant no Odéon: repentina mu­
dança de cenário como num espetáculo maravilhoso. De um dia para
outro tornou-se célebre.
Gastão Boissier falando das glórias da Escola Normal dizia:
"Entre êles há os que nasceram numa oficina ou numa loja e não
são os menos ilustres. O pai de Pasteur era curtidor. Debray, ainda
menino, manejou a lima e o martelo em casa de um serralheiro.
Briot se destinava a exercer uma profissão lucrativa quando, em
conseqüência de uma queda, fraturou o braço direito; assim, n ão
podendo mais servir como obreiro tornou-se sábio. Verdet começou
por ser coroinha e Weiss mascote no regimento."

Não desanimeis se não tiverdes ao vosso alcance todos os meios


que deveríeis ter.

Nem sempre são os alunos que freqüentam ricas bibliotecas os


que fazem estudos brilhantes; nem sempre tem sido nos laboratórios
mais bem montados que foram feitas as descobertas mais retumban­
tes. Não é a ferramenta que faz o operário; é a habilidade, o jeito,
a perseverança. Certo pintor aprendeu a arte da combinação do
colorido estudando com esmêro as asas das borboletas; outro fêz
os primeiros pincéis com pêlos de gato. Um astrônomo fêz os primei­
ros cálculos sôbre pedaços de couro adelgaçado a pancadas de mar­
telo na tenda de um sapateiro de quem era aprendiz. Watt esboçou
o primeiro modêlo de máquina a vapor com uma velha seringa
que um anatomista usava para aplicar injeções antes de dissecar.
Pasteur, na Escola Normal, conseguira um cantinho no desvão
de uma escada em que só de joelhos podia entrar. Foi neste local
que fêz pesquisas sôbre a geração espontânea.
156 L. RrnoULET

Foi com instrumentos fortuitos que o Pe. Roblet iniciou seus


estudos geográficos em Madagáscar. Um barômetro aneróide em­
borcado e coberto de uma fôlha de papel fixa por meio de alfinêtes
lhe servia de escrivaninha; uma péssima luneta servia-lhe de alidade.
Por falta de suporte estava a escrivaninha colocada no chão; para
fixar a luneta-alidade em relação com ela, tinha êle que tomar uma
posição incômoda. Só mais tarde estêve mais bem montado. Essa
vida de geógrafo durou vinte anos. Fêz mais de três mil ascensões.
Sôbre 920 montanhas, tomou, com seus instrumentos, 32 3 1 7 ângulos;
operou 2 000 levantamentos. Acrescentemos 3 908 ângulos azimutais
e 803 distâncias zenitais.
O exemplo do Pe. Tauleigne é recentíssimo. Seu primeiro aparelho
permitindo a inscrição ao Morse dos sinais telegráficos da tôrre Eiffel
era rudimentar e grosseiro, ainda que muito cuidado nos principais
pontos. A sala de trabalho do cura de Pontigny era a cozinha ou a
forja de um ferreiro seu vizinho a quem a comprara. Todos os seus
instrumentos eram os de um amador, um tanto esperto. Era assim
que forjava, temperava e imantava êle mesmo o aço que empregava
na construção de postos transmissores a serem experimentados.
Foi verificado há pouco que as magníficas tôrres solares do
Monte Wilson, nos Estados Unidos, não parecem produzir melhor
resultado que o simples aparelhamento de Meudon. No entanto h á
no s u l da Califórnia 300 dias favoráveis contra 1 50 em França!
Isto nos mostra que o mais luxuoso observatório n ão é automàti­
camente o melhor!
A riqueza é, com freqüência, um obstáculo ao desabrochamento
de um grande talento. Certo moço vinha da Itália onde se aper­
feiçoara na pintura. "Tornar-se-á célebre? - perguntaram a um grande
artista. - Não, respondeu. - E por quê? - Porque possui um
rendimento de cinqüenta mil francos por ano."

Nesse estado de dificuldades e pobreza, um início custoso é


desolador, mos não desanimo os olmos enérticos.

Assim se compreende o heroísmo dos que se obstinam com persis­


tência na lida diária apesar das dificuldades e da pobreza. Em geral,
o sucesso cabe aos que perseveram na luta.
RUMO À CULTURA 157

"Todo homem tem, na vida, uma hora decisiva", d i z Lacordaire,


"contanto que espere e nada faça contra a Divina Providência."
Muitos homens célebres esperaram anos a fio essa hora e, em con­
dições tão precárias que é difícil imaginá-las mais desanimadoras.
Os começos dos Flandrins ( Paulo e Hipólito) em Paris foram
penosíssimos. Seu alojamento era uma pequena mansarda no sexto
andar. Às 6 horas da manhã já se achavam trabalhando. O pão era
caro. O desjejum lhes custava 5 vinténs, e compunha-se apenas de um
pouco de carne ou de mel sôbre o pão. O almôço elevava-se a 15 vinténs.
O inverno de 1829-1830 foi rigorosíssimo. O termômetro desceu a
-14° no quarto sem calefação. Para se aquecer recolhiam-se na cama
logo após o almôço; e a fim de não perderem a tarde, liam à luz de
uma lâmpada instalada acima da cabeceira.
Os começos de Sardou parecem até lendários. Aos 20 anos estu­
dava medicina ma.e; o teatro o atraía. Estava persuadido de que
êste faria sua fôrça e sua glória. Mas quantos dissabores ainda
havia de curtir antes de atingir a glória! Foi pobre até a miséria.
Traiava um casaco cujo figurino era um insulto a todos os alfaiates,
e a côr um desafio a todos os coloristas. As calças eram um pouco
mais elegantes, mas Sardou era proprietário apenas de uma das pernas
da calça, a outra tendo sido paga por um companheiro, estudante
de medicina. Os dois amigos usavam-nas ora um, ora outro quando
tinham que ir à cidade. O êxito n ão lhe sorriu logo. Começou por
uma tragédia em verso: a Rainha Ulfra. Era uma tragédia sueca;
quarenta anos mais tarde teria sido recebida em nome de Ibsen ou
de Bjoernson. Em 1 850 foi lançada ao lixo.
Escreve então uma comédia: a Taverne des Étudiants. Foi acei­
ta; foi representada no Odéon. Mas os estudantes julgam-se insul­
tados pelo autor que faz uma de suas personagens exclamar:

"On n'a plus de jeunesse, on n'a plus de pudeur;


Et l'on se croit savant; et l'on se dit penseur."

As vaias, os assobios, as vociferações, os gritos bestiais explodem


e a confusão é tal que no fim nem sequer foi possível proclamar o
nome do autor. Nem por isso desanima e multiplica então os ensaios.
158 L . RrnoULET

Enfim a 15 de maio de 1860, apresenta as Pattes de mouche e Sardou


troca seu sambenito por um manto de glória.

Não percais ânimo por causa do insucesso e da má sorte.

Não ter a princípio bom êxito é quase sempre salutar. "Não


temais os fracassos'', diz Bazin: "o primeiro é necessário, porque
exercita a vontade. O segundo pode ser útil. Se resistirdes ao terceiro
sois como a uva que nunca é tão suculenta como quando amadurecida
sôbre os seixos."
O Eng.° Claude é do mesmo parecer. "É utilíssimo levar pau nos
exames", diz êle; "sempre se tira daí alguma lição; a êste propósito
conheço um pensamento que me sustenta nos tempos de azar e que
apesar da forma trivial, desejaria fôsse estampado em nossos labo­
ratórios. 'O sucesso é feito de muitos fracassos'."
O fracasso tem por vêzes a vantagem de desviar do falso caminho
ou de obrigar a tomar outro melhor. Corneille fracassou na advoca­
cia, mas tornou-se a glória do teatro francês.
Boileau pleiteou uma única vez e perdeu-se no meio do discurso.
Devemos a êste insucesso parte de sua obra literária.
Fontenelle foi intensamente vaiado na tragédia, mas obteve repu­
tação invejável por suas obras de divulgação científica.
Certos gênios, e não são dos menores, parecem ter sido, durante
grande parte de sua vida, vítimas da má sorte e da fatalidade. Nem
por isso deixaram de continuar seus trabalhos com a máxima cons­
tância. Que drama comovedor a vida de Berlioz! A infelicidade e
a adversidade atacam-no impiedosamente até o fim da vida. Suas
obras mais dignas de louvor não conseguiram triunfar da hostilidade
e da indiferença. A Damnation de Faust nada lhe adiantou. Os
Troyens nenhum sucesso tiveram. O Te Deum, e a Messe des Morts,
são apreciados apena s por reduzido grupo de artistas. Quantos sofri­
mentos para uma alma tão sensível! Quase morre de fome. Algumas
flores foram depositadas em seu féretro. Hoje conhecemos melhor o
seu valor; mas o esnobismo não deixou de ter influência para que a
admiração dêste grande homem fôsse tão morosa.
A invenção que outorgou a Édison o primeiro diploma ( 1 869)
consistia num contador de votos destinado a permitir à Câmara
RUMO À CULTURA 159

dos representantes votar em menos de um minuto. "O presidente


da Comissão encarregada de o examinar'', conta-nos Édison, "dep01s
de ter verificado a rapidez e a perfeição da máquina me disse: 'Meu
caro jovem, se há na terra uma invenção de que não precisamos é
esta. Uma das melhores armas entre as mãos da minoria para pre­
venir o perigo das más leis, é de falsificar a apuração com manobras,
e êste aparelho o impediria'."
Édison dirigiu sua atividade para invenções menos decepciona­
doras.
Haverá, porventura, estado mais incompatível com o trabalho
intelectual que o de ser lançado no cárcere e privado de todos os
instrumentos de trabalho? Certamente nunca vos há de acontecer
tal. Mas o exemplo de trabalhos notáveis, de obras-primas mesmo,
concebidos e executados nestas circunstâncias sobremodo desagra­
dáveis, pode servir de estímulo aos estudantes, que, nada lhes fal­
tando, se deixam levar a uma culposa indolência.
O poeta inglês Lovelace disse: "Muros de pedra não são uma
prisão como o não é uma gaiola de barrotes de ferro; os corações
inocentes e tranqüilos saboreiam nela os encantos da solidão." Foi
na prisão que Boécio compôs as imortais Consolações da Filosofia.
Foi para enganar os dolorosos momentos do cativeiro que Carlos
de Orléans escreveu comovedoras poesias. Foi durante uma tempo­
rada na Bastilha que Pellisson escreveu os Discours au Roi e seu
Mémoire, em favor de Fouquet; e que Voltaire compôs uma parte
da Henriade. Foi numa prisão que Camões escreveu os Lusíadas.
Foi durante o cativeiro em Veneza e na fortaleza de Spielberg, n a
Morávia, que Sílvio Pellico recolheu a s recordações q u e deviam for­
mar o famoso livro, Minhas Prisões.
César Cantu, lançado no cárcere duro por causa de uma pretensa
conspiração contra o govêrno austríaco, foi privado de caneta, tinta
e papel. Fabricou penas com pedaços de palha; tinta com negro de
fumo extraído da vela, e escreveu sôbre papel de embrulho. Foi
nestas condições que elaborou o esquema da famosa História Uni­
versal, que escreveu poesias, contos, novelas e o célebre romance
Margkerita Pusterla.
160 L. RIBOULET

Pairai acima da inveja, da malvadez e de certa indiferença


raiando pelo desprêzo.

A malvadez, a inveja e a indiferença são provações particularmen­


te dolorosas quando vêm dos camaradas, dos pretensos amigos e da­
queles cujo dever seria de animar. A indiferença que despreza é sobre­
maneira odiosa porque revela mesquinhez pouco comum. O Pe. Hou­
dry, no sermão sôbre a inveja, diz que as discussões entre os intelec­
tuais são mais comuns que entre os que manejam a espada. Alexandre
Dumas diz brutalmente: "No mundo das letras os homens não se nu­
trem, comem-se." Em célebre conferência o Eng.° Claude põe de
sobreaviso os jovens contra o "espantoso desconhecimento da ciência'',
e lhes diz: "A bela profissão das ciências parece-vos povoada d as mais
gloriosas misérias e atapetada de injustiças! É o triste préstíto dos in­
ventores desconhecidos, dos Forest, dos Ader, dos Ducos du Hauron;
é Tellier morrendo n a miséria, Turpin espoliado de suas mais be1as
invenções, os Curie, os Urbain, os Branly e tantos outros que esca­
param à penúria graças aos 12 ou 15 000 francos dos seus vencimen­
tos professorais, desconcertante contraste com os 700 000 francos
de um Carpentier."
Suportai estas dificuldades com destemor; armai vossos corações
e continuai com ardor maior ainda. Abandonando a obra empreen­

dida entregaríeis as armas aos mvejosos e aos malévolos. Eis uma


ilustre companhia: Sócrates foi condenado a beber cicuta por ter
rebatido vitoriosamente os erros dos sofistas. Anaxágoras foi lançado
na prisão por ter ensinado a noção do Ente Supremo. Aristóteles foi
contradito tôda a vida pelas intrigas dos ignorantes. Gerbert, no
século X foi tido por feiticeiro e mágico. Descartes, em sua solidão
na Holanda, foi acremente perseguido. Denunciado por Voetius,
reitor da universidade de Utrecht, foi citado perante o tribunal para
responder pela acusação de ateísmo. Pediu-se até que fôsse queimado
vivo sôbre uma alta colina de onde fôsse visto o seu suplício por
sete províncias.
São conhecidas as provações por que passou Galileu. Kepler
teve que suportar grandes aborrecimentos. Contestaram até as suas
admiráveis descobertas. Certo obscuro astrônomo, Longomontanus,
escreveu-lhe com insolência: "Todo o teu trabalho está baseado sô-
R Ul\'10 À CULTURA 161

bre Tycho-Brahe. Procura persuadir os ignorantes, mas não sustentes


hipóteses absurdas diante de quem conhece as coisas a fundo."
Esperai amargas contradições se sairdes dos caminhos já trilha­
dos e defenderdes idéias que incomodam e contrariam o imenso exér­
cito dos satisfeitos e dos rotineiros. Tereis contra vós todos aquêles
que tivt:rces perturbado em sua quietude; tereis contra vós a teme­
rosa seqüela dos tolos, tanto mais tolo9 que falam ex-catedra sôbre
tôda espéc1� de questões que ignoram. Nisto êles se mostrarão satis­
feitos consigo mesmos e tratar-vos-ão de maníacos.
Logo que Harvey publicou a teoria sôbre a circulação, contrária
ao que era ensinado desde Aristóteles, seus clientes o abandonaram.
Os demais médicos o atacaram impiedosamente tratando-o de doido.
É conhecida também a oposição de certos médicos rotineiros às
descobertas de Pasteur.
O grande botinico Van Tieghem soube também o que eram as
ásperas mordeduras da inveja. No momento de votar na Academia
de Ciências para a escolha do sucessor de Brongniart, um professor
de botânica do Museu distribuía pessoalmente um memorial contra
Van Tieghem em que se predizia a destruição de tôdas as coleções
botânicas do Jardim das Plantas no caso de Van Tieghem ser eleito.
Assim que foi eleito professor passou por inúmeras dificuldades.
Se por acaso pedia para ver uma planta do herbário, encontrava-se
ela como por encanto entre as mãos do professor de botânica da
Faculdade de Medicina. Outras vêzes, quando o próprio Van Tieghem
ia buscar as plantas, se lhe respondia que a amostra era por demais
preciosa. No caso em que houvesse muitas diziam ao professor que
era para duvidar do rótulo, que a qualificação da espécie era duvidosa.
Chegaram mesmo ao ponto de trocar os rótulos das plantas que
entregavam a Van Tieghem na esperança de que não se apercebesse
disso.
Mas, por que tantas urdiduras? Porque Van Tieghem n ão seguia
os caminhos já trilhados por outros e, por suas inovações, descon­
tentava os botânicos da velha escola.

A maior das provações vem muitas vêzes de uma saúde débil.

A saúde é o primeiro dos dons terrestres. "É a unidade que d á


valor a todos o s zeros d a vida", disse alguém engenhosamente. A
162 L. RIBOULET

saúde vos é necessana, mas nem sempre depende de vós mesmos o


tê-la sempre perfeita. Se fordes do número dos franzinos e doentios,
usai de todos os meios para vos fortificar. Não tenhais vergonha
de cuidar da saúde só porque certos gênios a tiveram realmente má;
o Pe. Sertillanges afirmou ser um caso de tentação de Deus muito

culpável: "Por acaso, tereis vós, como os gênios, vigor suficiente para
triunfar na luta incessante do espírito contra a debilidade da carne?
Ninguém diz, aliás, que os gênios não tenham notado que as suas
taras fisiológicas lhes desviavam ou diminuíam os talentos."
Se apesar de todos os esforços empregados para melhorá-Ia, a
saúde ficar ainda periclitante, aceitai virilmente esta provação, e
procurai consolar-vos pensando que sábios de primeiro valor, artis­
tas célebres, escritores ilustres foram valetudinários.
O sábio Humboldt, fraquinho na mocidade, fortificou-se pelo
trabalho, pelas viagens e pela firmeza em seguir um regulamento
sempre invariável. Milne-Edwards era de compleição delicada. Ber­
thelot, elogiando-o, escreveu: "Soube triunfar da doença, em grande
parte pode-se dizer graças à vontade de ferro que o caracterizava.
Não somente não se deixou vencer pela doença mas nem mesmo
temeu empreender a redação de uma vasta obra sôbre a fisiologia
e anatomia comparadas, obra esta que teve quatorze volumes e que
o ocupou durante vinte e quatro anos."
O Cardeal Newman nunca teve boa saúde. A composição da
Gramática do Assentimento quase o levou ao túmulo. A seu amigo
Ward que lhe falou um dia do profundo e consolador prazer causado
pelo trabalho intelectual, Newman respondeu: "Estou longe de negar
que haja tal prazer outorgado pela Providência. Falem, sim, aquêles
que o sentiram. Quanto a mim a experiência já foi feita e é bem
contrária. Não me lembro de ter refletido profundamente sôbre al­
gum problema ou escrito meus pensamentos sem experimentar agudo
sofrimento tanto no corpo como no espírito. Quando escrevi meu
livro sôbre os Arianos, estava tão esgotado que, no fim, mal podia
ficar em pé."
Não ignorais que certas obras de grande valor tiveram por au­
tores pessoas doentes. "Coragem, minha alma", dizia um Padre da
Igreja, "desafiemos a fraqueza do corpo." Quantos poderiam repetir
esta exclamação! Pascal sofreu imensamente quando escreveu os
RUMO À CULTURA 163

imortais rascunhos dos Pensées. Handel, atacado de paralisia e avi­


sado da proximidade da morte, compôs suas mais lindas obras.
Schiller, durante os últimos quinze anos de vida, não passou sequer
um dia sem sofrimento. Spencer era incapaz de trabalhar durante­
uma hora sem sentir indisposições que o obrigavam a descansar.
Lacordaire, já seriamente doente, dita a Notice sur le rétablisse­
ment des Freres Précheurs que causou admiração. Foisset ficou ma­
ravilhado com a leitura dos cinco primeiros capítulos e dizi a : "Di­
ficilmente se poderia citar outro exemplo em que chegue a tal ponto­
ª supremacia da alma sôbre esta porção de matéria que lhe é pró­

pria, como dizia Pascal."

Um descanso conveniente vos é necessário cada dia.

O trabalho feito com aplicação ocasiona sempre cansaço do corpo­


e do espírito: então fica-se menos adestrado, falha a energia de antes,.
a atenção já se não fixa tão bem. Acontece, às vêzes, que esta fadiga
seja artificial e se avizinhe da preguiça; convém, neste caso, não­
escutar a natureza: uma capitulação chamaria outras.
Estudai-vos de maneira a conhecer até que ponto chegam vossas.
possibilidades e n ão as ultrapasseis. O trabalho excessivo ou o esgo­
tamento não são tão comuns como se pensa, mas existem. As almas
generosas excedem-se no trabalho: prolongam as vigílias para estu­
dar, levantam cedo, privam-se de uma parte dos recreios, raramente
vão passear, ignoram quase os dias de piquenique. O corpo extenua­
do vinga-se. O trabalho intenso muito prolongado entesa os nervos,
afasta o sono e destrói a saúde. O corcel quer ganhar o prêmio:
morre porém no têrmo da carreira.
Sem dúvida, muitas vêzes a coroa do êxito é a coroa do martírio;
mas uma diversão oportuna é mais útil do que a "intemperança
intelectual".
Lacordaire fê-lo notar a um jovem: "Tendes a coragem de nada
fazer, de passear, de bem dormir? Se soubésseis quão vantajoso é,.
na vida, perder tempo de propósito! "
Volta a o assunto noutra carta: "Só vos deveis precaver contra
a desordem do trabalho intelectual. Concedei ao tempo o que lhe é
devido e o que êle n ão consente lhe seja roubado impunemente.
164 L. RrnoULET

Avançai devagar. Por mais preciosa que seja a saúde, não é Hércules
que produz o máximo; uma alma generosa em debilíssimo corpo é a
mestra do mundo."
Aprendei, pois, a abandonar os livros e a descansar. As varieda­
des de distribuições são numerosas; só tendes que escolher: a conversa,
a música, a beleza da criação. Não fiqueis insensíveis diante dos es­
petáculos encantadores: o céu azul, as nuvens brancas ou coloridas
pelo sol, o mar espumoso ou cintilante, o lago prateado, o murmúrio
<lo ribeiro, a noite estrelada, o silêncio impressionante das florestas;
tudo isto fala à alma, proporciona-lhe agradável descanso e a eleva
ao mesmo tempo Àquele que esparziu sôbre nossa pátria terrestre
tantos reflexos da beleza do céu.

Do ponto de vista intelectual as enfermidades são, por vêzes,


um beneficio.

Scarron nunca pensara em tornar-se escritor. Aos trinta anos foi


atacado de doença horrorosa que acumulou em sua pessoa todos os
sofrimentos e tôdas as misérias que nossa pobre humanidade pode
experimentar: febre e reumatismo encontraram-se neste pobre ser
tornado horripilante, desasseado, objeto de escárnio e de compaixão.
l!:le encontra em meio a todos êstes males a fonte de um gênio novo,
pessoal e muito original. Fará do burlesco um gênero nacional. Seu
]odelet e seu Don ]aphet serão tão aplaudidos quanto o Cid ou
Horace. A França comprazer-se-á com as mascaradas do Virgile
Travesti. A fronda consagrará o seu poema no autor da Mazarinade.
Esplêndida vingança essa contra a crueldade do destino!
Se Walter Scott não tivesse sido coxo, talvez não tivéssemos
<lêle nenhum livro; ter-se-ia jogado, talvez, nas guerras de seu tempo;
voltaria dos combates com o peito constelado de medalhas, mas seu
nome estaria ausente da lista dos escritores imortais.
Beethoven, por volta dos trinta anos, foi vítima de surdez quase
completa. "Se minha arte não fôsse a música", dizia êle, "ser-me-ia
bem molesto; mas, para um músico, que tormento! " Esta mesma
enfermidade serviu à sua glória: lutou para adquirir a resignação
e a calma. Suas obras nada têm de terrestre; mas são de uma pureza
sem mancha e de um idealismo sem jaça. "Uma única palavra, o
RUMO À CULTURA 165

heroísmo, resume o caráter moral do gênio beethoveniano'', disse


Bellaigue. "Beethoven é heróico em todos os tons. :E:le o é na dor
e na alegria; na ação e na contemplação. Não há nenhuma de suas
obras que não seja uma vitória. De todos os conflitos, ainda os mais
terríveis, o herói terminou vencendo." "Eu me sinto feliz'', diz Be­
ethoven, "quando venço alguma dificuldade."
Darwin disse: "Se não tivesse sido inválido, nunca teria feito
tanto trabalho." Muitos outros poderiam dizer o mesmo. Se de Ségur
não ficara cego jamais teria publicado tão grande número de obras.
Sem o acidente que lhe cui;cou a vista, à idade de nove anos,
Maurício de Sizeranne não se teria dedicado, como fêz, aos infelizes
atacados pela mesma enfermidade. Para êles tornou-se escritor, cria­
dor de bibliotecas, organizador de oficinas e de escolas. Sustentado
pela fé e pela caridade, consagrou-se até o último instante a estas
obras dignas de todo o interêsse. Feliz enfermidade que foi a causa
de tanto bem!

Esforçai-vos por aproveitar a moc1áaáe pelo exemplo de anciãos


célebres que empreenderam e levaram a têrmo trabalhos
longos e difíceis.

Catão aprendeu o grego aos 80 anos, a fim de ler os autores no


original. Cícero tinha 63 anos quando escreveu seu trabalho sôbre
a Velhice. Johnson aprendeu o holandês aos 73 anos e de uma ma­
neira perfeita. Galileu terminou os Diálogos sôbre o Movimento aos
73 anos. Franklin tinha mais de 50 anos quando começou o estudo
da física. Priestley antes dos 40 anos nunca se ocupara de química.
Rollin tinha 59 anos quando iniciou o Traité des études. Aos 67 anos
principiou a Histoire Ancienne de que publicou o 13 .0 e último vo­
lume aos 76 anos. Infatigável, iniciou logo a llistoire Romaine; tinha
escrito cinco volumes e preparado a documentação dos outros quando
faleceu.
Littré havia passado a casa dos 40 quando ideou fazer um Dicio­
nário; aos 59 anos começou a impressão. Deu o último tomo por
concluído aos 71 anos. As colunas desta grande obra colocadas umas
sôbre as outras teriam dez vêzes a altura do Monte Branco no vale
de Chamonix.
166 L. RrnoULET

Perguntou-se um dia a Palmerston a que época se pode dizer


que o homem se acha na flor da idade. "Aos 79", respondeu êle,
"mas", acrescentou espirituosamente, "talvez tenha eu ultrapassado
de um pouco a flor da idade, porque acabo de entrar no rol dos 80."
O exemplo de Luís Andrieux, antigo prefeito de polícia, antigo
embaixador, ultrapassa de muito o de Catão e de Palmerston. Aos
86 anos defendeu, na Sorbona, a tese <le doutor em letras. Quis
êle divertir-se? Ou reviver um sonho de mocidade? Diante de grande
auditório dissertou magistralmente sôbre Gassendi e sôbre o escritor
romântico Afonso Rabbe. Um dos examinadores disse: "Conhecemos
os grandes homens por meio de Plutarco, mas n ão estamos acostu­
mados a vê-los aqui." Os olhares foram de Andrieux para Clémenceau
que assistia ao exame. E o público aplaudiu o triunfo dêste candidato
invulgar.
Antes tarde do que nunca, disse alguém para consolar os traba­
lhadores da última hora. Mas vós sois jovens, lembrai-vos de que
para as almas nobres . . .

O valor não se mede pelo ciclo dos anos!


Capítulo XII

LUTAI COM ENERGIA PERSEVERANTE


CON TRA AS DIFICULDADES DE ORDEM
INTELECTUAL E MORAL

Desconfiai da faci/idade demasiada.

Dando-vos êste conselho não quero com isso gracejar. Se rece­


bestes com abundância os dons intelectuais, bendizei a Providência.
Mas devo precaver-vos contra certos perigos possíveis.
O primeiro seria a falta de aplicação. Conta-se com a fidelidade
da memória, com a vivacidade da imaginação, com a penetração d a
razão e descura-se o trabalho sério.
Quantos preciosos momentos perdidos! Quantas horas perdidas
pelas divagações do espírito. Tomai as Fábulas e relede A Lebre
e a Tartaruga. A lebre tinha apenas quatro passos a dar; a tartaruga
com seu andar pachorrento chega antes. Ah ! como essas lebres de
estudo são conhecidas pelos professôres e prefeitos! Ocupam-se de
tudo menos do trabalho. E quantas artimanhas empregam para
esconder tôda espécie de livros ou revistas, artigos esportivos atrás
de volumosos tratados de álgebra, de química ou de literatura! No
último momento, depois de terem deixado o espírito vagabundear
à vontade, passam uma vista rápida à lição para sair-se mais ou
menos bem no momento da recitação.
Que ficará dêsses estudos feitos em tais condições? Outros estu­
dantes, com talentos bem inferiores, verão seus generosos esforços
coroados de êxito; ao passo que êles, com aptidões notáveis, não
passarão de frutos secos. Tanto é yerdade que um coxo no reto ca­
minho chega mais depressa que o bom atleta que se desvia da rota.
Acautelai-vos contra essa tendência. Fazei bem tudo quanto fi­
zerdes. Pergunta-se às vêzes: "Quanto tempo levou para fazer êsse
168 L. RrnouLET

trabalho ? " Seria melhor perguntar : "Fê-lo com o maior cuidado


possível ? " :t à vossa idade que se lançam os alicerces da vida inteira.
Podem êles estar bem ocultos; nem por isso deixarão de sustentar o
edifício. Os americanos dizem que os fundamentos do monumento de
Bunker Hill medem cinqüenta pés de profundidade: os alicerces per­
mitem ao monumento resistir às tempestades e enfrentar os maus
tratos do tempo.
O segundo perigo seria a precipitação. Já vos disse uma palavra
a respeito. Quando se acha certa facilidade vem a tentação de correr;
enche-se a cabeça de fatos, de datas, de fórmulas, de resumos, jul­
ga-se com isto ter feito estudos sérios, encaram-se os exames com
êxito, a cabeça recheada de uma multidão de noções sem ligação
porque não sistematizadas. Lavisse, numa conferência, fala desta pre­
paração apressada "dos livrinhos decorados, amarelecidos por dedos
enfastiados, dos vocábulos incompreendidos entulhando memórias
distraídas, das opiniões alheias absorvidas mas não assimiladas".
Reagi contra a mania da precipitação. Ide devagar; estendei pro­
fundamente as raízes e podereis em seguida agüentar os raios do
sol e os esforços da tempestade. Os melhores frutos são os que ama­
dureceram devagar; saboreando-os parece-nos sentir o sôpro do zé­
firo, as pérolas do orvalho, os beijos do sol e as mil outras influências
que lhes deram perfeita maturidade.
Ide devagar, com o movimento comedido de um homem que se
propõe atingir os cimos mais elevados. A maré sobe aos poucos, sem
pressa, molhando todos os pontos que deve banhar.
Um estudante perguntou ao reitor da universidade se não seria
possível diminuir o tempo prescrito para os estudos. "Naturalmente
que sim", disse o reitor; "depende do que quereis fazer. Deus leva
cem anos para formar o carvalho; para fazer a abóbora bastam-lhe
seis meses."
O tempo é o elemento indispensável da perfeição. Perguntou-se
a Giardini quanto tempo era preciso para aprender violino; êle res­
pondeu: "Doze horas por dia durante vinte anos." Caríssimi, elogiado
pelo encanto e beleza de suas melodias, exclamava: "Ah! vós não
sabeis quanto trabalho me custou esta facilidade para compor! "
Goethe, nas criações poéticas sobretudo, tinha o costume de dei­
xar à inspiração plena liberdade de ação. .E:le trazia em si durante
R UMO À CULTURA 169

meses, anos, um tema, acariciando-o com amorosa e paciente medita­


ção, abandonando-o, retomando-o, não rompendo nunca o fio, sempre
fiel ao princípio da continuidade do esfôrço. A obra nascia e crescia
em seus jardins interiores qual uma linda flor. O jardineiro empe­
nhava-se unicamente em não perturbar a floração.
Em regra geral, os escritores que tiveram maiores dificuldades
no trabalho da composição são os mais sólidos e os mais perfeitos.
Chateaubriand diz, em Mémoires, a propósito dos llfartyrs: "Cen­
tenas de vêzes escrevi e tornei a escrever a mesma página. De todos
os meus escritos é aquêle em que a língua está mais correta." No
prefácio da 12.ª edição de A tala escreveu: "Pesei cada frase e cada
palavra; eliminei até as mais leves incorreções da linguagem. Passei
quatro anos na revisão de tal ou qual episódio; por isso mesmo, ficou
como deve ser."
E conhecida a lentidão de Herédia em compor sonetos. O cuidado
que teve em seu trabalho fêz das Trophées uma verdadeira Légende
des siecles em miniatura. "Em cada sonêto", disse Barres, "êle esma­
gou, concentrou a matéria de sessenta volumes muito bem escolhidos.
Meditava durante muito tempo sôbre um assunto, encontrava uma
imagem. um trecho, um verso, depois outro, que êle logo apontava.
Só no fim de dez anos é que êle encontrou o segundo terceto d<>
Vitrail."
O terceiro perigo seria a dispersão. Aprendei a conter vossa sêde
de saber para levá-la com mais fôrça ao objeto de vossos estudos.
Não procureis abarcar mais do que os braços permitem. Se perse­
guimos duas lebres ao mesmo tempo, arriscamo-nos a voltar com a
bôlsa vazia. Que pensar, então, dos estudantes que perseguem cinco.
ou seis? Concentrai todo o esfôrço de que sois capazes sôbre um
único objeto cada vez; quanto mais forem concentrados os raios do
sol num ponto só, tanto maior será a fôrça. Quanto mais largo o
ribeiro, mais probabilidade haverá de ser pouco fundo. Não vos dei­
xeis levar pela vã curiosidade. Sêde senhores de vós mesmos: do­
minai o vosso coração, o vosso espírito, a vossa vontade. Cavai pro­
fundamente o sulco sem vos deixardes desviar por outros assuntos
mais interessantes. Estudai um assunto até que tenhais dêle uma
idéia bem clara e encarai-o sob todos os seus aspectos.
1 70 L. RrnoULET

Não percais a confiança em vós mesmos se os progressos não


forem tão rápidos como o desejaríeis.

As inteligências superiores são raras; a maioria dos estudantes


não conseguem seu objetivo senão por um trabalho incessante e
.árduo. Quando a memória é vagarosa e preguiçosa é uma dificuldade
a mais, mas não é invencível nem sem compensação. Quanto mais
-custa aprender uma lição, mais difícil será esquecê-Ia; os que apren­
dem muito depressa, esquecem, às vêzes, muito depressa também.
O essencial para vós é bem compreender. Não vos apresseis.
Voltai com freqüência sôbre os princípios e as ncções fundamentais.
Não vos agasteis se vossos camaradas parecem tomar-vos a dianteira.
Ireis mais depressa se tiverdes fixado no espírito idéias claras e nítidas.
Não percais a esperança se os primeiros esforços não forem coroa­
dos de sucesso ainda mesmo quando o resultado vos parecer deses­
,perador. Confiai sempre e redobrai a atenção e o trabalho. A cons­
tância, eis o grande meio de vencer. Os jovens imaginam fàcil­
mente que tal homem não teve senão triunfos em sua vida de estu­
dante ; que tal orador não teve senão que se apresentar diante das
:multidões para produzir obras-primas de eloqüência; que tal escritor
só teve que molhar a pena no tinteiro para criar fama; que a tal
-outro sábio bastou apresentar-se num laboratório para realizar as
mais delicadas experiências. Quanta ilusão!
Montaigne confessa-nos ter tido um espírito "tardio e obtuso".
·O matemático Clavius era tido em conta de nulidade perfeita; per­
dera-se tôda esperança de lhe ensinar qualquer coisa; mas deslumbrou
a todos os que assim pensavam quando recebeu as primeiras lições
-Oe geometria; tinha encontrado a sua vocação. Lineu foi, na juven­
tude, um verdadeiro "cabeça dura". Foi julgado de inteligência por
demais limitada para o cargo de pastor protestante. Apesar disso
tornou-se o maior botânico de seu século e talvez de todos os tempos.
Walter Scott era de uma estupidez sem igual. Seu mestre disse-lhe
certo dia: "Cabeça dura és, e cabeça dura ficarás." O próprio pai
não tinha melhor opinião dêle. Disse-lhe, um dia, num acesso de
·r aiva: "Penso que não passarás de um vagabundo."
Édison pouco brilhou na escola elementar. Era, por via de regra,
<> último da aula; o professor, referindo-se a êle, qualificou-o de "cabeça
Newton

Buffon
Pe. Leonel Franca

Lacordairc
(Retrato de Chassériau)
(FOTO BCLLOZ)
RUMO À CULTURA 171

vazia". Somente quando atingiu o s onze anos, iniciando o s estudos


de química, é que se apaixonou por esta disciplina.
Os irmãos Tharaud viveram na intimidade de Barres. Eis o seu
testemunho: "Ao visitá-lo vinha-me o absurdo pensamento de que
as obras-primas jorram de um jato e milagrosamente do espírito.
Eu só acreditava então na inspiração. Nada de mais esterilizante,
nada que mais favoreça a preguiça.
"A maior, a mais preciosa lição que Barres me deu, foi a modés­
tia no trabalho. Ah! sem dúvida, êle não acreditava que a obra de
arte saísse perfeita como da cabeça de Júpiter. Quando tratava um
assunto, seu primeiro contato era de desanimadora humildade. Para
êle, nada lhe parecia bem: nem o comêço, nem o meio, nem o fim.
Havi a apenas uma vasta matéria caótica cujos contornos se desenha­
vam nitidamente em meio à cerração. A medida que os traços se
destacavam da sombra, esquematizàva-os. Às vêzes, em curta indi­
cação, uma palavra, uma passagem ligeira, que eram mais um relâm­
pago que um pensamento, um sinal que lhe indicava ter que contem­
plar êsse mesmo trecho. Tudo isto classificado em envelopes de côr
diferente se avolumava aos poucos com aquilo que os preciosos mi­
nutos de reflexão lhe traziam."
Com tôdas as idéias que se lhe apresentavam compunha o que
êle chamava "um monstro". Mas êste monstro ocultava uma divin­
dade que aos poucos descobria. "Trabalhava com muita calma a
organizar o seu caos, a domesticar o seu monstro, a lambê-lo, como
se dizia. Pouco a pouco, eu via enormes períodos nascerem de indica­
ções apenas formuladas, ou peças da mais pura música fortificarem­
se de idéias claras."
Reparai bem que os talentos e aptidões nem sempre se revelam
na infância. Há plantas que florescem no verão; outras no inverno,
e as flores não são por isso menos belas. Krylof, o La Fontaine russo,
descobriu seu gênio de fabulista somente aos quarenta anos. Pesta­
lozzi foi na infância um ignorante "chapado". Feito pastor protestan­
te, perturbou-se e parou de repente no primeiro sermão; para ocultar
a confusão, desatou a rir desmedidamente. Mais tarde ilustrou-se
como educador e teórico da educação.
José de Montgolfier ( 1 740-1810) foi dessas plantas que desabro­
cham tarde. Meio selvagem e indisciplinado fugiu por duas vêzes
1 72 L. RrnouLET

do colégio. Nenhum gôsto tinha para os estudos clássicos, e não su­


portava constrangimento de espécie alguma. Mais tarde, lastimando
a deficiente primeira formação, matricula-se, aos quarenta anos, como
estudante na Faculdade de direito civil e canônico da universidade
de Avinhão. Um dos professôres da universidade, o Pe. Galien, do­
minicano, havia publicado em 1755 um volume intitulado L'art de
naviguer dans les airs, que tivera grande divulgação. Montgolfier
leu o livro e refletiu profundamente. Um dia escreveu ao irmão di­
zendo: "Prepara grande quantidade de tafetá e cordas, e verás a
coisa mais espantosa do mundo." Os aeróstatos estavam inventados.
Fêz muitas outras invenções ainda.
Num momento de entusiasmo empreendestes uma obra que não
julgáveis acima de vossas fôrças. Mas, chegado o momento da exe­
cução ides de encontro a dificuldades que a fria realidade tende a
aumentar. Neste ponto não abandoneis fàcilmente a emprêsa. Ata­
cai vigorosamente as dificuldades, haveis de chegar ao fim. Uma
primeira vitória facilitará as demais.
Se alguém iniciou uma tarefa árdua e quimérica foi Champollion.
Mas nunca morreu nêle o desejo de penetrar o mistério da antigui­
dade egípcia. A luz relampejou aos poucos nesta obscuridade. Uma
tarde de maio de 1822, Champollion entrou em casa mais cedo que
de costume; desvairado, parecia estar fora de si ; lançando sôbre a
mesa um montão de papéis, exclamou: "Está feito, ei-lo, o negócio ! "
E alquebrado por êste supremo esfôrço, caiu nos braços do irmão.
O velho Egito ia levantar o véu que o ocultava; a língua decifrada
ia, enfim, desvendar ao mundo os segredos de sua história. E os dois
irmãos começaram com grande comoção o primeiro alfabeto egípcio.

Guardai-vos da leviandade.

A leviandade é um defeito que tem funestas conseqüências. Não


somente faz perder o tempo mas também faz perder os conhecimen­
tos adquiridos. O espírito perde o equilíbrio, pois o irrefletido só se
compraz no que o distrai. Ocupa-se muito do corpo: gravata, cabelo,
calçado. Na aula e no estudo toma do bôlso, às escondidas, o espe­
lhinho ou o pente e se alinha como se fôsse um gatinho.
Exterioriza-se demais e é incapaz de silêncio e recolhimento;
R UMO À CULTURA 1 73

solta as rédeas da imaginação e da sensibilidade. Não se aprofunda


em nada. Contenta-se com a repetição do que dizem os outros;
quando preciso fôr, salvará a situação com uma chocarrice. Só tem
gôsto pelos espetáculos exteriores, reserva seu entusiasmo e admira­
ção para os craques do desporto; tôda a ambição de que é possuído
seria de os imitar.
Não resta dúvida de que o estudo nem sempre é agradável, e o
desporto não deixa de ter atrativos. Manejar hàbilmente as armas,
puxar da espada como Porthos, cortar o caule de uma rosa a bala
de pistola, traçar sôbre o gêlo com patins as letras do próprio nome,
dirigir com elegância um cavalo fogoso que corre em turbilhões de
vento, cortar a espuma das águas num iate rápido, tudo isso é lindo,
mas somente como meio de distração e preparação ao trabalho sério.
Lutai contra essa tendência que desnorteia o espírito. Não há
estudante que não tenha experimentado uma vez ou outra o des­
gôsto do esfôrço. O essencial é remar contra a corrente.
Quando se apresentar essa tentação, lembrai os vossos propósitos,
recolocai-vos bem em face do ideal. Tais meios mantêm no dever
todos os bons estudantes. Na escola de Monte Cassino nunca foi
visto o jovem Tomás de Aquino abandonar-se à dissipação ou levian­
dade. Mas bem pelo contrário era ponderado, refletido, isento de
puerilidade. Sua aplicação ao estudo era notável.
Ozanam, pode dizer-se, n ão teve juventude. Aos dezesseis anos
delineou o- plano de uma demonstração da religião católica pela an­
tiguidade das crenças históricas, religiosas e morais. "Esta obra",
disse Ampere, "foi a ocupação e o objeto de tôda a sua vida. Aos
dezoito anos o desconhecido estudante já perseguia êste fim para o
qual o professor aplaudido devia, 20 anos mais tarde, dar o último
passo".
Fonsegrive, que conhecia muito bem a Brunetiere, diz-nos que
.
êle aborrecia os brincalhões chamando-os de saltimbancos e dançari­
nos. Quando comentava Boileau, quando criticava Zola, Goncourt
ou Richepin, quando analisava a poesia decadente, quando ralhava
Anatole France ou Jules Lemaitre, quando elevava sôbre um alto
pedestal os nobres traços de Bossuet, tinha a consciência de estar
servindo a mais nobre causa que ultrapassava de muito a alegria
estética: a causa da ordem, a causa das leis.
174 L. RIBOULET

Não contemporfaeis com defeitos que poderiam ser obstáculos


ao trabalho sério.

Em todos os tons hoje se repete: "Não nos devemos matar." E


o pior é que se põe em prática esta máxima estúpida que exprime o
horror pela ação, o mêdo de viver de que Henri Bordeaux nos deu as
características: "O mêdo de viver é a constante e única preocupação
da tranqüilidade. É a fuga das responsabilidades, das lutas, do es­
fôrço. É o desviar cuidadoso do perigo, do cansaço, da exaltação, d a
paixão, do entusiasmo, d o sacrifício. É o egoísmo passivo confinado
na mesquinhez de uma existência enfadonha e insípida."
Daí vem o horror de todo constrangimento moral. O ideal é gozar.
E êste individualismo ilimitado mata tudo o que constitui a gran­
deza humana. O mesmo escritor estigmatiza "a nova geração de
jovens que só se preocupam com a saúde, e que, digerindo apenas
com águas minerais e camomila, só abrem a bôca para criticar,
denegrir, n ão amam nada, nada louvam, nada desejam, como se
tivessem nas veias sangue de peixe. Para que tanto cuidado e tanta
reserva diante de um tão mesquinho uso da vida ? "
Cuidado com a preguiça e suas variadas formas. A preguiça é o
pecado querido de grande número de alunos, às vêzes mesmo dos
mais inteligentes. É nela que se desenvolvem todos os germes vicio­
sos, tôdas as paixões aviltantes. É a perda do corpo e do espírito,
a mãe e nutriz de todo o mal; um velho solitário chamava-a "tra­
vesseiro e cama de descansar do diabo". Mas a preguiça do espírito
é mais perigosa que a do corpo. O espírito ocioso é o ponto de encon­
tro de todos os monstros. Se lhe não derdes o alimento conveniente,
nutrir-se-á de coisas infetas. A inteligência foi comparada à uma mó
de moinho; colocai nela trigo que sairá farinha; se nada houver, a
roda gira e se gasta a si mesma.
A preguiça é a animalidade vitoriosa, a ferrugem do espírito, o
embotamento das faculdades, a ruína da alma, o prelúdio de uma
vida medíocre e não raro má. Hoje em dia aquêle que se deixa arrastar
por ela, irá quase infalivelmente aumentar a multidão dos falhos, dos
azedados, dos invejosos, multidão sombria porque anda sem ideal,
sem energia. "A luta pela vida tornou-se intensa", diz Carlyle; "os
RUMO À CULTURA 175

que correm pisam nos calcanhares uns dos outros; ai de quem pára
a fim de amarrar os cadarços do calçado."
Nenhum daqueles que nós chamamos komens ilustres foi pre­
guiçoso. "J;; pelo trabalho que se reina", dizia Luís XIV. No colégio
de Dôle, tôdas as manhãs, às quatro horas infallvelmente, o prefeito
de disciplina sacudia fortemente a cama de Pasteur dizendo: "Vamos,
Pasteur, é preciso espancar o demônio da preguiça."
f:dison completou cinqüenta e nove anos a 1 1 de fevereiro de
1907. Perguntaram-lhe como tinha êle celebrado o seu aniversário:
"Trabalhando com o mesmo ardor dos outros dias", respondeu êle.
Montalembert foi tôda a vida um modêlo de trabalho intenso e
constante. Quando escreveu os Jt,1oines d'Occident na Roche-en­
Brény, cada manhã, depois da missa, fechava-se na biblioteca até
o meio-dia e prosseguia em seu trabalho de beneditino. Sua vigília
prolongava-se muitas vêzes, até às duas horas da madrugada. "Às
vêzes'', dizia um seu velho camareiro, "quando me levantava para
pôr mãos ao trabalho, a lâmpada do senhor conde ainda estava
acesa." Quando era repreendido por causa dêste seu horário respon­
dia com a palavra de Bossuet: "O sono, êste grande inimigo do
homem . . . " ou então com êste argumento irresistível: "Arago tinha
por preguiçoso o homem que não trabalhasse quatorze horas por
dia." Em suas vigílias sentia comoções que se não podem descrever.
Lessing para fazer compreender os nefastos efeitos da inação e
da preguiça disse um dia: "Se o Todo-Poderoso, com a Verdade
numa das mãos e na outra, a busca da Verdade me dissesse: 'Es­
colhe', eu lhe diria: 'ô Todo-Poderoso, guarda para ti a Verdade e
dá-me a busca da Verdade que para mim é melhor'."

Recuar diante do esfôrço intelectual é uma forma freqüente


de preguiça.

O esfôrço é indispensável para dar ao indivíduo todo o seu valor,


para contrabalançar a sensibilidade que leva o jovem a se exteriorizar.
:E: imprescindível para afastar as divagações da "louca da casa". É
necessário para retomar cada dia e com a mesma energia o monótono
dever.
Querer atingi r o êxito sem esfôrço contínuo, é quimera. Assim
que a vontade abdica, a desordem se introduz no espírito, o trabalho
1 76 L. RIBOULET

sério desaparece, as altas aspirações se desfazem em fumaça; não fica


senão um estudante sonolento, distraído, não mais participando das
alegrias do labor intenso.
O Pe. Gillet faz notar que o número de preguiçosos verdadeiros
é relativamente pequeno; mas ao lado se acha o exército dos pre­
guiçosos que, encontrando o estudo muito desagradável passam o
tempo a ler, e cujo grau de preguiça pode ser medido pela quantidade
das obras que lêem e pelo móvel que os leva a fazer tais leituras.
"Há tantos jovens que julgam ser estudiosos pelo simples fato de
muito lerem! A verdade é que são grandes preguiçosos e que as
leituras a que se entregam escondem apenas o mêdo inato do es­
fôrço."
Tal leitura está longe de concorrer para a formação geral do
leitor. Pelo contrário, dá e entretém o desgôsto pelo trabalho sério
e não raro alimenta uma tendência à divagação cujos resultados n ão
podem deixar de ser maus, como nos diz eminente psicólogo, o Pe.
Eymieu: "Ela enfraquece e desequilibra a inteligência; a rebaixa e
falseia deixando que se compraza em imagens vagas e absurdas."
A divagação leva fatalmente ao mal. A vontade, neste caso, abdi­
ca fàcilmente; a consciência normal baixa, e as idéias mais incoerentes
se atropelam no espírito.
"Privado da razão e da liberdade", acrescenta Eymieu, "o deva­
neador só sente fôrça para viver a vida animal. Segue-se, pelo menos
geralmente, que é a afeição dominante que orientará a divagação.
� pois como se disséssemos que é o defeito dominante."

O sensualismo, eis o mais perigoso inimigo do trabalho inte·


lectual.

Já disse que o sensualismo destrói a vontade; volto ao mesmo


assunto e vos digo que êle assassina o gênio em flor. O jovem que
não luta contra seus instintos perversos está perdido para a vida
intelectual como para a vida moral. A regra a seguir consiste em
reagir contra a má natureza, em retificá-la constantemente, em im­
por-lhe a lei superior da inteligência e da alma.
"Cada homem é um domador de feras", diz Amiel; "e estas feras
são as paixões. Arrancar-lhes os dentes e as garras, amordaçá-las,
RUMO À CULTURA 177

amansá-las, torná-las animais domésticos, enraivecidos talvez, mas


submissos, isto se chama educação pessoal."
O jovem que se abandona a êsses monstros pode fechar os livros.
Sainte-Beuve escreveu uma página tremenda que aqui transcrevo:
"Quem dirá quantos tesouros de gênio naufragam numa grande cida­
de, a certas horas do dia ou da noite, quantas ricas e brilhantes obras,
extintas na essência, lançadas ao vento com uma prodigalidade in­
sensata? Alguém, talvez, nascido para deixar ao mundo obra monu­
mental não deixará senão fragamentos. Outro que deveria, quem
sabe, produzir, sob austera continência, uma sublime criação do
espírito, desprezará a hora, o instante da passagem do astro, o mo­
mento propício que não volta mais. O gênio interior perdido, diminui
o homem, empobrece-o nas suas virtualidades secretas, seca suas
fontes mais profundas e recônditas. Arcanos insondáveis da justiça!
Solidariedade do nosso ser. Mistério da vida e da morte!"
Acrescei às tendências da natureza decaída as excitações do in­
terior. Encontram-se por vêzes companheiros cuja missão satânica
é a de iniciar nos segredos do mal. Certos quiosques oferecem à
vista jornais ineptos e produções contaminadoras. Enfim, o mal é
apresentado com uma desfaçatez singular.
Acautelai-vos contra êsses perigos. Imponde severas leis aos sen­
tidos. Que vosso corpo e alma sejam instrumentos para o bem;
amordaçai os apetites e paixões; controlai vossos pensamentos, de­
sejos e sentimentos. Tal mortificação favorecerá imensamente os
estudos. Vêde o que Descartes faz. Não somente se retira para a
Holanda, longe daqueles que o poderiam distrair, mas também age
de tal maneira que paixão alguma perturbe seu espírito; foge de
tôda preocupação, impõe-se severo regime de vida e só . pensa em
seus trabalhos científicos.
O sábio Dodart, médico do rei, de quem Fontenelle escreveu
o Éloge, observava escrupulosamente os jejuns prescritos pela
Igreja. Lacépede tinha adotado um regime severo para a nature­
za mas muito favorável ao trabalho intelectual. Nunca tomou vinho
desde a idade de dezessete anos. Uma única refeição bem frugal,
era-lhe suficiente. O traje não era menos simples que sua alimentação,
pois só tinha um terno.
Luís XIV perguntava a Colbert porque é que um país tão pe-
1 78 L. RIBOULET

queno como a Holanda era tão difícil de vencer. Colbert respondeu:


"Majestade, o valor de um povo não depende da extensão de seu
território mas do valor moral dos habitantes."
Sêde delicadíssimos quanto à consciência. Evitai as menores fra­
quezas e assim tereis horror das fraquezas aviltantes que extinguem
o gênio e imp rimem nas frontes ainda jovens os estigmas da velhice.
Sêde fiéis a todos os vossos deveres, para resistirdes com maior ener­
gia às sugestões do comum inimigo. Há momentos de desgôsto e de
tempestade em que o dever se apresenta árido, repugnante; a cons­
ciência formada desvia os obstáculos do caminho, impõe silêncio às
paixões e às repugnâncias; resiste com intrepidez aos impulsos mal­
sãos, porque acima do nevoeiro terrestre percebe um raio de luz
divina.

Quaisquer que sejam as penas e dificuldades não vos abondo·


neis à tristeza.

Houve tempos em que ficava bem, num jovem, afetar ares de


melancólico e desanimado. Chateaubriand, depois de Rousseau, é
que divulgou êst,e "gênero chorão". "Eu me aborreço, eu me aborreço,
passo a vida a bocejar", dizia êle. E ainda: "minha alma está farta
de viver." Em René, colocou-se em cena, e aí temos o tipo do jovem
cansado antes de trabalhar, desgostoso da vida antes de a ter expe­
rimentado. Mais tarde, queria êle destruir o livro; era tarde, e várias
gerações foram vítimas dessa influência perniciosa. A literatura lhe
deve o Cliilde Harold e o Manfred de Byron, o Hernani de Victor
Hugo, o Antony de Dumas. Musset sofreu dessa influência. Aos de­
zessete anos já dizia: "Daria minha vida por dois vinténs se para
abandoná-la não fôsse necessário morrer. São essas as tristes reflexões
que entretenho." A tristeza de Vigny ainda é mais profunda e o autor
de Eloá parece saborear êsse miserável divertimento.
Enfim, como dizia de Lescure, "os R ené pulularam no mundo,
em conseqüência da imitação contagiosa do traje azul, da pistola e
até do suicídio de Werther que produziram tantas edições com fal­
sificações da realidade, salvas do ridículo por um desenlace trágico".
Graças a Deus! a mocidade de nossos dias não tem essa tendência
exorica. Faguet escrevia em 1913 : "A geração que segue a dos ho-
RUMO À CULTURA 1 79

mens de minha idade é enérgica, nobremente apaixonada." Lavedan


saudava nõ jovem de amanhã "um ser de combate, de vontade, d e
audácia refletida, herói d e potencial crescente". Psichari escrevia ao
autor de ]eunes gens d'aujourd'hui: "Os jovens não serão simples
am � dores e cépticos. Sabem o que dêles se espera."
A guerra encontrou-os prontos para qualquer heroísmo. E após
a guerra o escol da mocidade despreza o sonho melancólico, a ironia,
o cepticismo. A Sra. Mary Duclaux fala com admiração dos jovens
que se interessam pelos grandes problemas contemporâneos. Escutam
com deferência seus maiores, e quando queremos conhecer-lhes os
sentimentos, respondem que o inimigo é o espírito crítico, o diletan­
tismo, a dúvida e a negação. "Para nós é preciso", exclama um dêles>
"um sistema e uma fé. Temos ainda tanto que fazer. Somos cons­
trutores."
Magnífico exemplo para vós, meus amigos. Construir é afrontar
o trabalho, a dificuldade, a dor; é obedecer a uma lei pesada que
constrange e escraviza. Mas trabalhar é agir; agir é viver, e viver
é a alegria. Mau grado as penas que podem juntar-se às do labor
cotidiano, permanecei alegres; que as dificuldades do estudo e as
dores da vida não façam perder à vossa alma a paz e a tranqüilidade.
Sêde joviais! A alegria reconforta, faz ver o lado mais fácil e
consolador do trabalho.
S�de joviais! A alegria é um tônico. "O melhor cordial para o
coração", dizia um médico a seus pacientes, "é a alegria e o bom hu­
mor." O riso é uma higiene física e moral.
Sêde joviais! A alegria produz a harmonia na alma; põe tudo
cm ordem; estabelece uma tranqüilidade que não perturba nem as.
dificuldades da vida, nem os ataques dos ímpios, nem as tentações,
nem as perseguições e as lágrimas.
Sêde joviais! A alegria é o penhor do sucesso. "Ah! " dizia Napo­
leão a Metternich, "não sabeis que poder tem a felicidade. Por si
só, dá coragem. Nada ousando, nada se faz que preste e ousa-se
somente quando a felicidade acompanha. A desgraça deprime e des­
bota a alma, e dali por diante nada se consegue."
A alegria é por conseguinte soberanamente vantajosa ao estudo.
Mas não seja ela confundida com certa exuberância completamente
exterior. Antes de mais nada é calma, suave, serena, feita de placidez.
180 L. RIBOULET

e impassibilidade. A fonte principal d a alegria é o testemunho da

boa consciência.
Se, por vêzes, uma tempestade interior tentar turvar vossa alma,
recorrei aos meios naturais e sobrenaturais que abrandam as vagas
e trazem a tranqüilidade. Um meio entre muitos outros é a contem­
plação dos espetáculos da natureza: o sol, as florestas, os campos,
os córregos, o cantar dos passarinhos, as gotas de orvalho, as ervinhas,
são inspiradores de alegria e felicidade por serem reflexos da beleza
divina: "Felizes", diz o Pe. Gratry, "essas almas que, pela contem­
plação de uma flor, de um riacho, de um raio de luz vindo do céu
<:>u de um vapor subindo da terra, ou pelo odor do ca.npo carregado
<!e espigas, se deixam sensibilizar e exultam de amor."
Capítulo XIII

EXERCITAI EM VóS O ARDOR PELO TRABA­


LHO CONSIDERANDO AS VANTAGENS QUE
PODEIS RETIRAR DO ESTUDO !

As vantagens do estudo! O assunto, a fim de ser tratado em tôda


a sua extensão, exigiria volumes e mais volumes. Limitar-me-ei a
relembrar os benefícios que traz ao estudante brioso: vantagens para
o corpo, vantagens para o espírito, vantagens para o coração e para
o caráter.

Vanlotens para o corpo.

As vantagens para o corpo são, sobretudo, indiretas. Lembro-me de


um pequeno volume intitulado: O Dr. Gendrel, ou trabalko é saúde.
tste bom médico Gendrel hospeda na própria casa de campo, situa­
da nos arredores de Paris, meninos doentios e incapazes de seguir
um curso regular de estudo. Dá-lhes um regulamento onde o jôgo
está de tal modo intercalado com o trabalho de aula que a saúde
destas crianças ràpidamente melhora. Depreende-se disso uma ver­
dade: é que o trabalho regular contribui para o melhoramento da
saúde. Por outra verificou-se que nada debilita mais do que nada
fazer ou empreender.
O regulamento deve levar em conta o estado de saúde. Não se
deve exagerar: quando a fadiga se faz sentir, o trabalho é de quali­
dade inferior; apresenta-se com rastos de irritabilidade e de inaten­
ção. Mas um trabalho moderado faz esquecer os pequenos incômodos.
Afasta o aborrecimento e a ociosidade, mais prejudiciais do que um
rude labor. Acalma a imaginação e a impede de exagerar a dor.
Quase nunca, sobretudo na mocidade, a doença é incurável en-
1 82 L. RIBOULET

quanto o espírito não fôr atingido. Aquêle que é capaz de concentrar


o espírito e governar a vontade saberá livrar-se de multidão de
penas. A ociosidade matá-lo-ia; o trabalho moderado devolver-lhe-á
a saúde.

A aplicação ao estudo apazigua as paixões, do mesmo modo que


a tristeza e o temor deprimem a vitalidade. Ela faz esquecer os in­
cSmodos e as penas. Muitas doenças são provenientes do espírito.
Bem o sabem os médicos. Muitas vêzes devem responder à pergunta
de Macbetk:

Tu ne peux donc pas traiter un esprit malade,


A rracher de la mémoire un chagrin enraciné,
Effacer les ennuis écrits dans le cerveau,
Et, grâce à quelq11.e doux antidote d'oubli,
Débarrasser le sein gonflé des dangereuses matieres
Qui pesent sur le cceur?

Um regulamento diário, inteligentemente ordenado, é, pois, um


bem, tanto para o corpo como para o espírito. Valoriza todos os
instantes deixando de autorizar certos excessos que se tornariam
prejudiciais. O excesso de trabalho é uma falta, mas esta falta é
maior ainda quando aquêle que a comete tem razões imperiosas de
poupar as fôrças.
O trabalho regular, seguido de recreios ao ar livre, quanto possí­
vel, proporciona um sono calmo e reparador que dá ao corpo e ao
espírito um novo vigor.
Spencer tinha a saúde precária e podia trabalhar apenas algumas
horas; mas, fazia-o com uma perfeita regularidade de que sentia
vantajosos efeitos para o seu bem-estar físico.
O sábio Humboldt, de quem já vos falei, possuía uma saúde deli­
cada. Restaurou sensivelmente tal estado seguindo com a mais estrita
fidelidade o regulamento que se traçara.

Vantagens para o espírito.

O estudo é uma possante ginástica que fornece à memona mais


vigor e tenacidade, à imaginação mais frescura e audácia, ao juízo
mais retidão e lógica.
RUMO À CULTURA 183

Dá vigor como se concentrasse em um foco ardente todos os


raios d a inteligência, considerando um assunto nos seus elementos
e no seu conjunto, em todos os aspectos que pode apresentar. Êle
fornece aos poucos os hábitos preciosos de análise e de síntese, de
indução e de dedução. Aos poucos isola da ganga material, o elemen­
to mais precioso do novo ser, fá-lo resplandecer de intenso brilho;
eleva-nos, espiritualiza-nos.
Dá ao espírito um vigor cada vez mais forte. Nêle grava as ver­
dades de tal modo que se tornam partes integrantes; conserva-as em
todo o seu viço por incessante e necessário rejuvenescimento. Sem
êle, a inteligência só poderia decair; a água dormente perde a lim­
pidez, os frutos murcham e caem quando a seiva da árvore se esgota;
os mais suntuosos palácios ruem quando se deixam de concertar as
pequenas brechas; a charrua encostada se cobre de ferrugem. Eis
fracas imagens do nosso espírito se não fôr constantemente entretido
pelo estudo e pela leitura suas luzes se enfraquecem e seu horizonte
se estreita.
Luís Veuillot diz que um autor que não alimente constantemente
a inteligência está exposto desde a segunda obra a repetir a primeira.
E acrescenta: "O terreno mais fértil, quando não é cultivado, amanha­
do, regado por suores contínuos, produz apenas espinhos, plantas
daninhas e inúteis. Estudemos: somos apenas o campo; o estudo é
a rêlha que rasga o terreno, a semente que fecunda, a chuva que faz
crescer, o sol que faz amadurecer. O estudo fortifica o que existe,
renova o que se esgota; cria o que não existe."
O estudo dá ao espírito maior retidão e justeza. Aos poucos, faz
desaparecer as idéias falsas ou errôneas, aceitas sem exame; os pre­
conceitos, as opiniões antecipadas. Todo conhecimento é um raio de
luz que afasta as trevas e os nevoeiros do espírito.
O estudo faz sobretudo desaparecer as causas dos nossos erros.
O orgulho que se exalta na meia-ciência, diminui gradativamente à
medida que os conhecimentos se combinam; quanto mais sabemos,
mais percebemos a nossa ignorância. Os sentidos que não são disci­
plinados estão inclinados a julgar de acôrdo com os seus desejos; o
trabalho intelectual cede a primazia ao espírito, corrige os seus des­
vios e retifica os seus erros. A preguiça intelectual inclina a aceitar
sem contrôle tôda espécie de idéias; o estudo ensina a aceitar com
1 84 L. RrnouLET

devida cautela as idéias e as opiniões. Outra causa de êrro é a preci­


pitação; não nos damos ao trabalho de examinar as questões, julga­
mos sem as devidas informações. O espírito formado pelo estudo,
julga friamente e com a conveniente lentidão; controla e critica o
testemunho e toma posição após maduro exame.
O trabalho intelectual eleva o espírito. Temos tendência a nos
deixar invadir por um sem-número de preocupações mesquinhas e
vulgares. Sem dúvida alguma, em primeiro lugar devemos viver,
e a vida tem muitas vêzes preocupações terra-a-terra. Mas um estu­
dante, um jovem professor geralmente delas está isento, ou pelo
menos pode, nos momentos de trabalho intenso, esquecer os peque­
nos incômodos que delas procedem.
O estudo eleva o espírito fazendo esquecer as feridas do amor­
próprio, as contrariedades que resultam do choque das idéias e d a
diversidade dos caracteres.
O estudo eleva o espírito preservando-o de pensamentos e desejos
indignos de um homem e de um cristão.
O estudo eleva o espírito relacionando-o com almas mais nobres;
sacia-lhe a sêde às mais límpidas e mais puras nascentes; estabelece
um convívio íntimo com autores de escol, com obras admiráveis,
com páginas saborosas e fortificantes. Acostuma às alturas onde se
respira um ar puro e vivificante, de onde se descortinam amplos
horizontes.
O estudo é um meio de autoridade e de êxito. O saber impõe. É
por meio de pretensões científicas que se divulgaram entre o público
erros grosseiros e perigosos. Bem conhecido é o poder de certas pa­
lavras, de certas fórmulas e sua ação sôbre as massas. Por conseguin­
te, se tal é o prestígio da falsa ciência, bem maior deve ser o d a
ciência verdadeira.
O homem, o sábio, goza de incontestável autoridade e isso por
várias razões:
Dispõe de um vocabulário mais extenso que lhe permite dar às
coisas o nome, a expressão própria.
Adquire idéias e fatos em profusão. Ora, nada substitui os fatos:
alumiam, impressionam, servem de consagração a uma doutrina. Mais
fàcilmente o sábio leva a convicção aos espíritos; êle prova, defende
a verdade contra aquêles que a atacam. Sua conversação é um en-
Rul\-10 À CuLTURA 185

canto devido à feliz mistura de solidez, de conveniência, de justeza


e de tino.
A ciência aumenta o poder do homem. É por ela que êle doma os
elementos e os utiliza para o seu bem-estar; mostr ando-se dêste
modo o rei da natureza. Quantas maravilhas não realizou até hoje?
Quantas palmas não conquistou?
Animai-vos ao trabalho com a idéia de que a vossa influência
estará na razão direta do vosso valor intelectual. Quanto mais ins­
truídos fordes, maior será a vossa autoridade, maior será a luz e a
convicção que espalhareis em redor de vós.

Vantagens para o coração.

As vantagens para o coração são de ordem moral. O jurisconsulto


Terrat, recém-chegado da província a Paris, achou-se naturalmente
desviado dos perigos que se poderiam temer, pelos múltiplos empenhos
que o seu gôsto pelo trabalho e a necessidade de atividade o levaram a
empreender. Achou o meio de freqüentar assiduamente a escola d e
Direito, o s cursos da escola de Arquivos e a s conferências d o círculo
de Luxemburgo.
Instalou-se na proximidade das escolas, e entretanto longe do
barulho do "bairro latino". Saía pouco e raras vêzes à noite, escreve
um antigo seu companheiro. Lembram-se ainda seus amigos da cla­
ridade da sua lâmpada que até bem tarde brilhava à janela do quarto
de trabalho. O jovem estudante compreendia que o trabalho é o
custódio da virtude. Com efeito, é um preservativo e um derivativo.
O estudo é um preservativo. "Imoralidade, incredulidade, pregui­
ça, formam um círculo; o início está onde se quer", disse Pascal.
São Jerônimo escrevia a Nepociano : "Que o demônio te encontre
sempre ocupado." Já o vimos, a ociosidade é o início de todo mal.
Instintivamente, o espírito reclama um alimento: dai-lho são e abun­
dante. Se o não fizerdes, procurá-lo-á êle mesmo ainda que, muitas
vêzes, possa ser-lhe nocivo.
O trabalho afasta a tentação que assalta o ocioso terminando por
vencê-lo. Afugenta o aborrecimento, o inexorável aborrecimento que
constitui o apanágio da natureza humana. A ociosidade gera o mal­
estar, a inquietação, o desgôsto da vida real: leva à busca dos pra-
186 L. RIBOULET

zeres ruidosos e das frivolidades. "Quando a nossa vida deixa de ser


a expressão da lei de Deus", diz Santo Agostinho, "torna-se seme­
lhante a uma haste separada do tronco; a seiva misteriosa da graça
desaparece e com ela a fôrça, o desenvolvimento, a beleza."
No declínio da vida, Dionísio o Cartuxo, depois de ter enumerado
as imensas leituras que fizera, acrescentava: "O trabalho a que me
entreguei, ainda que puramente intelectual, foi para mim a causa
de grandes fadigas; mas, precisamente em conseqüência disso, os
meus estudos se tornaram sempre mais salutares para a alma: mor­
tificavam a sensualidade e domavam os desejos desregrados; o estudo
foi a causa de eu permanecer com mais gôsto na cela."
Opondo-se à formação dos maus hábitos, o trabalho intelectual
conserva o espírito na mais favorável disposição para a aquisição de
conhecimentos.
Os maiores sábios e os maiores filósofos levaram vida retirada,
sóbria, isenta das paixões que prejudicam a vida do espírito. Imitai­
os. Guardai vossa alma sempre pura a fim de que nela a verdade
se reflita como num espelho.
O estudo é um derivativo. Fornece ao espírito um objeto digno
de ocupá-lo, propondo-lhe as verdades eternas, as leis contingentes
do universo; o conhecimento do coração, as maravilhas da criação,
ou expondo ante êle o inventário das riquezas do globo, dos tesouros
literários e artísticos, dos acontecimentos da história. Será que o
espírito que prova dêsses manjares opíparos, pode tomar assento
.à mesa dos prazeres malsãos?
Santo Agostinho, no seu retiro de óstia, esquecia os prazeres d a
<:idade entregando-se a o estudo. São Jerônimo, absorto no estudo dos
Livros Sagrados não prestava ouvido às voluptuosas imagens que
até na solidão de Belém o assaltavam.
Lecoy de la Marche faz notar, no seu belo tomo sôbre o século
XIII artístico e literário, que a prosperidade intelectual e espiritual
das antigas congregações pode ser avaliada pelo aprêço em que tinham
os seus manuscritos; ao tempo em que êles os venderam a vil preço,
como se viu, segundo Tritemo, na abadia de Hirsauge e em outras,
a decadência invadiu sob tôdas as suas feições o instituto monástico.
O fervor sempre voltou aos mosteiros em que o superior restaurou
os estudos. O trabalho intelectual tornava-se aí um derivativo contra
Marcelino Champagnat
(Quadf'o de Ridolfi, Roma, 1 955)
Nasceu em Rosey ( França) aos 20 de maio de 1 7 89 e faleceu aos 6 de junho de
1 840. Em 1 8 1 7 fundou a Congregação dos Irmãos Maristas, a fim de levar a
infância e a juventude no caminho do bem e da · cultura, pela devoção a Nossa
Senhora. A Congregação dos Irmãos Maristas está espalhada em 56 países, num
total de 7 7 5 estabelecimentos de ensino, com 9 1 5 3 Irmãos professôres, 6494 ele­
mentos em formação. Freqüentam as escolas maristas - primárias, médias, secun­
dárias, profissionais e superiores - 298.003 alunos. O Padre Marcelino Cham­
pagnat foi proclamado Bem-aventurado pelo Papa Pio XII, a 29 de maio de 1 95 5.
Victor Hugo Beethoven

Lincoln Edison
R UMO À CULTURA 187

tôda espécie de perigos gerados pela ociosidade e pelas preocupações


dignas da vocação monástica.
Da mesma forma, pode-se avaliar a prosperidade intelectual de
um educandário, pelo amor dos alunos aos estudos sérios.
Logo que para o belo e o verdadeiro êles se entusiasmam, desapa­
rece a praga das más conversas e das leituras clandestinas; o espírito
é melhor, a virtude torna-se mais fácil, pois o trabalho afasta os peri­
gos, as idéias perversas e desenvolve os pensamentos salutares que,
para desabrochar, necessitam do olhar do céu.
O estudo é igualmente um derivativo para os sofrimentos e as
penas. Suaviza o estímulo do sofrimento. Impede a obsessão do espí­
rito causada pelas tristezas e os aborrecimentos. Montesquieu afirma
que uma hora de leitura sempre conseguiu acalmar suas contrarie­
d ades. Quantas não foram as almas para quem o estudo foi um meio
de quietude e de esquecimento! "Ocupai-vos em leituras", aconse­
lhava Afonso Daudet a um aflito.
Gounod escrevia a Bizet: "O nosso mais constante amigo é o
trabalho. Só êle possui a voz assaz grave e a mão bastante suave
para participar das dores profundas como das maiores alegrias, pois
só êle está isento das manchas e das imperfeições da nossa pobre
humanidade. Trata de acolher tão maravilhoso e inalterável sustento;
deixar-te-á boas recordações e há de curar somente o que houver de
amargo na dor."

O estudo honra o homem.

Para o homem, o estudo é como uma auréola que o adorna, o ilumi­


na e lhe dá prestígio. Com que respeito e veneração são escutadas as
lições e os conselhos daquele que é mestre numa ciência ou numa arte!
Com que orgulho nos comprazemos em chamá-lo de Mestre! De que
autoridade gozaram Platão, Aristóteles, Zenão, entre o povo grego!
Quintiliano e Sêneca entre os romanos; na Idade Média, Boécio, Ger­
berto, Pedro Lombardo, Alberto Magno, Tomás de Aquino, Duns Sco­
to, Rogério Bacon, Gerson; e desde o século XVI essa plêiade de artis­
tas e sábios que representaram o gênio sob tôdas as formas e varie­
dades! Qual o motivo dessa veneração? É que se apresentavam como
que revestidos da majestade que outorgava às suas palavras, aos
188 L. RIBOULET

seus escritos, aos seus atos, um potencial maior para o bem, e às vêzes,
infelizmente, para o mal.
De modo particular, a Igreja sempre demonstrou estima parti­
cular para os homens de ciência. São Paulo exortava os primeiros
cristãos a que valorizassem os dons especiais que receberam de Deus.
"Possuímos dons diferentes de acôrdo com a graça que nos foi dada'',
dizia êle aos romanos: "aquêle que recebeu o dom de profecia faça
dêle uso segundo a analogia da fé; aquêle que foi chamado ao minis­
tério; aquêle que deve conduzir seus irmãos, desempenhe o seu múnus
com vigilância."
Através dos séculos, como ela se ufana de tôdas as suas glórias!
Dos Padres da Igreja, defensores de sua doutrina e vingadores das
calúnias que eram espalhadas contra ela; dos grandes fundadores e
dos diretores de comunidades ou de escolas; dos grandes escritores
e dos ilustres doutôres da Idade Média, da Renascença e dos séculos
que se seguiram; da magnífica plêiade do século XIX que constituiu
para ela um diadema cujo brilho é sem igual!
S. Gregório Magno recebendo Gregório de Tours, pai da história
francesa, cujo exterior estava longe de refletir inteligência tão distin­
ta, dirigiu-lhe o seguinte elogio: "Como pôde Deus conceder seme­
lhante habitação a uma alma tão grande, tão bela e tão iluminada?"
E cumulou-o de um sem-número de finezas.
Nunca deixou a Igreja de favorecer as escolas e o desenvolvi­
mento da ciência pelos métodos que produziram os melhores resulta­
dos. Várias vêzes Leão XIII voltou ao assunto. Na sua Encíclica de
8 de setembro de 1 899 ao clero francês, lembrava a importância das
belas letras que formaram na França homens eminentes: tais os Bos­
suet, os Petau, os Thomassin, os Mabillon, e mostrava como elas
desenvolvem ràpidamente na alma dos jovens, quando ensinadas por
mestres cristãos, todos os germes da vida intelectual ao mesmo tempo
que contribuem para dar retidão e amplitude, elevação e distinção
à linguagem.

O estudo é fonte de felicidade.

Em primeiro lugar o estudo satisfaz a nossa sêde de atividade. So­


mente na ação encontramos a felicidade, pois a ação desenvolve as nos-
RUMO À CULTURA 1 89

sas faculdades e nos aproxima da perfeição. Abençoemos pois o regula­


mento que nos prende ao labor; ser-nos-á um auxiliar precioso e fonte
de felicidade. Assegura a ordem, princípio de todo bem, disciplina
da inteligência, fonte de energia. Cada dia êle nos convida suave­
mente ao dever. É amparo contra o esmorecimento e vacilação da
vontade. Semelhante a um guia caritativo sustêm-nos pela mão im­
pedindo que hesitemos no caminho a seguir.
O estudo é fonte de felicidade, pois nos preserva do mal. A pre­
guiça, a indolência, os prazeres malsãos não deixam senão remorsos
e pesares. O estudo nos faz saborear a felicidade no cumprimento
do dever, no desenvolvimento das faculdades, na busca apaixonada
da verdade, na intensiva preparação à missão para a qual fomos
criados.
Para as almas de elite, é a fonte das satisfações mais delicadas.
Pode dizer-se do trabalho intelectual o mesmo que Montaigne dizia
a respeito da virtude: Por na tureza ela é "bela, triunfante, inimiga
figadal e irreconciliável da aspereza, odorífica e deliciosa".
A pesquisa da verdade causa alegrias indizíveis. O jovem Papillon
de quem vos falei, dizia: "Nesta encarniçada perseguição, nessa
árdua viagem à procura do que é, as melhores faculdades se entusias­
mam; esquecem-se as negras preocupações e as frívolas necessidades,
sentimo-nos de certa maneira mais nobres, mais dignos, mais felizes.
É que realmente vivemos a vida em tôda a sua plenitude; a atividade
do ser alcança o seu máximo; o corpo e o espírito trabalham de
comum acôrdo e esta harmonia é, talvez, o segrêdo da felicidade."
O ilustre Chevreul celebrou também as alegrias do estudo. "A cul­
tura da ciência", dizia êle, "oferece alegrias sempre novas. A vista
de um horizonte cujos limites recuam à medida que se adianta no
campo do desconhecido, os novos objetos que constantemente des­
pertam a atenção têm para nós um encanto incomparável."
O historiador Camilo Rousset partilha conosco as emoções que
experimentou quando lhe foi dado penetrar nos Arquivos do Minis­
tério da Guerra, onde tantos tesouros estavam escondidos. "Os anos
que lá gastei", diz êle, "são certamente aquêles que me proporciona­
ram mais felicidade intelectual e alegrias perfeitas. Estabelecer um
contato íntimo com os mais ilustres homens de um grande século;
manusear cartas originais de Luís XIV, de Louvois, de Turenne, de
190 L. Rr nouLET

Condé, de Vauban, de Luxemburgo e de tantos outros cuja escrita


parece tão recente como se fôsse de ontem; desemaranhar sem es­
fôrço todos os segredos da política e da guerra; assistir à concepção
e ao desabrochar dos acontecimentos; surpreender, por assim dizer,
a história no estado nativo, que fortuna e que alegria! Eu vivia im­
pregnado, penetrado, inebriado."
Mas a alegria da descoberta é maior ainda. Estais a par dos gritos
sublimes daqueles que, no meio do entrosamento de idéias, de opiniões,
de fatos até então jogados desordenadamente no espírito, percebem
de repente um relâmpago que tudo ordena e alumia. Galiano, ter­
minando o estudo da admirável organização do corpo humano, ex­
clama: "ó Criador do universo, que admirável hino acabo de cantar
em teu louvor." Kepler, ao terminar suas imortais descobertas, entoa
um hino de entusiasmo e de agradecimento a Deus. "Há oito meses,
eu vi o primeiro raio de luz: desde três meses, vi o dia e afinal, desde
alguns dias avistei o sol candente da mais admirável contemplação:
nada me detém. Amo o meu entusiasmo, quero desafiar os mortais
confessando que roubei os vasos de ouro dos Egípcios para, com êles,
erigir longe das fronteiras do Egito um tabernáculo ao meu Deus.
Céus, louvai ao Senhor, louvai-o, harmonias celestes, louvai-o vós
que descobris e medis as harmonias; e tu também, minha alma, en­
quanto eu viver, louva ao Senhor teu Criador, pois dêle tudo vem,
tudo por êle existe, nêle tudo está, tanto as coisas sensíveis como as
coisas inteligíveis; tanto o que ignoramos profundamente como a
parte ínfima das coisas que conhecemos, porque �le se acha ainda
mais além. A Ele louvor, honra e glória nos séculos dos séculos.
Amém."
O estudo é fonte de felicidade porque permite realizar maior bem.
O bem que o homem faz está em proporção do seu valor intelectual
e moral. Mais tarde, ocupareis na sociedade uma situação privilegiada,
e será grande a vossa influência se fordes realmente o que deveis ser.
Vossas palavras e exemplos irradiarão em tôrno de vós, e o vosso sa­
ber lhe duplicará a eficácia. Dirão: êle é instruído e crê firmemente
nas verdades da religião, reza, aproxima-se dos sacramentos; eis para
o ignorante, para a vítima da dúvida e até para o indiferente uma
demonstração prática da verdade.
Mas não é somente do ponto de vista religioso que tereis esta
RUMO À CULTURA 191

influência. Do ponto de vista social, sois chamados a fazer grandes


coisas pelas luzes que podereis espalhar, em volta de vós. Nada
descureis do que pode auxiliar vosso apostolado.
Um pregador de grande fama, o Cônego Gendron, de Rennes,
dizia aos ordenandos: "Senhores, no que toca à ciência eclesiástica
não fui buscar um ideal muito longe, tomei-o sôbre a tabuleta de um
sapateiro. Durante muito tempo tive que passar diante de uma loja
cuja inscrição era a seguinte: 'João Amorim, sapateiro, possui tudo
quanto requer o seu ofício.' Nunca li tal inscrição sem uma certa
inveja; e dizia para meus botões: Eis um homem feliz, êle possui
tudo o que é do seu ramo. Bem quisera poder dizer outro tanto e
dar-me o testemunho de que possuo tudo quanto se refere ao meu
ministério. Que mais podeis pedir a um homem? E, porventura,
dêle poderemos exigir menos ? "

Vantagens para o caráter.

O estudo contribui à educação do caráter. Quanto mais iluminado


está o espírito, tanto mais a vontade é guiada por suas luzes. "Onde
se encontra inteligencia encontra-se livre arbítrio", disse Santo Tomás.
Os erros e desfalecimentos da vontade provêm, o mais das vêzes,
de uma falta de luz. Dar conhecimentos, formar as faculdades é
fortificar e dirigir a vontade. Dizia igualmente Descartes: "Tôda luz
do entendimento é seguida de grande inclinação na vontade.'' É mister
notar no entanto que o caráter é a própria vontade, não pelo fato
de manifestar-se num ato isolado, mas tal qual resulta do conjunto
dos atos, ou melhor, de acôrdo com a expressão de Malapert, é a
vontade concentrada em si mesma tal como ela aspira a ser, e não
somente tal como ela é. Tudo o que contribui à formação da vontade
forma também o caráter; todo esfôrço é como uma gôta de sangue
que sustenta e aumenta as fôrças.
O estudo fortifica o caráter, pois é sobremodo libertador. Ordena
o espírito dando a cada faculdade a cultura adequada, classificando
os conhecimentos e associando-os numa síntese harmoniosa. Preserva
o espírito das ilusões da ignorância e da meia-ciência.
Liberta-nos da opressão do corpo e nos procura o sossêgo do co­
ração e do espírito. O estudante frívolo deixa-se fàcilmente desviar
192 L. R rnoULET

do trabalho pelos ruídos e as novidades estranhas, e quando satisfez


a curiosidade, o seu coração e os seus sentidos permanecem num
estado de agitação mais ou menos febril. Pelo contrário o estudante
sério experimenta a quietude divina que assegura ao espírito fôrça
e liberdade.

O estudo fortifica o caráter aumentando-lhe a delicadeza moral.


Leva-nos a detestar o mal porque êste espalha a desordem na alma,
torna o trabalho mais difícil e menos frutuoso. Estende-se tal deli­
cadeza até à fidelidade nas coisas pequenas. É isso que o Espírito
Santo quer dar a entender quando nos diz que a justiça e a paz se
abraçaram. Procurai a justiça por uma grande pureza de consciência
e assim possuireis a harmonia da alma que tanto favorece o traba­

lho intelectual.
O estudo enobrece o caráter dando-lhe aspirações elevadas, dignas
do homem, desenvolvendo nêle o atrativo por tudo quanto é imutá­
vel e eterno.
"Quando se tem em casa Platão, Davi, São Paulo, Santo Agos­
tinho, Bossuet e Pascal, não se deve esperdiçar o tempo em ninha­
rias", dizia Lacordaire. As faculdades encontram no trabalho sério
um alimento escolhido. A imaginação cria um ideal que a encanta;
a memória procura e descobre pérolas a cada passo; a razão combina,
alumia, ordena, demonstra e dá-se o testemunho de que o que fêz
está bem feito. Quanto à vontade, a faculdade mãe e mestra, nada
impede que se prenda ao útil e necessário, encontrando novos encan­
tos nessa união.
O estudo enobrece o caráter livrando-nos da vulgaridade na lin­
guagem. O estudante que não está completamente absorto pelo pró­
prio trabalho, deixa-se levar fàcilmente à banalidade nas conversa­
ções. Encontra prazer em conversas ruidosas, nos casos realistas e
"rabelaisianos", nos trocadilhos de baixo calão, e gosta da gargalhada
do folgazão satisfeito de si mesmo, imitando assim aquêles com quem
vive. Santo Agostinho vivendo em Cartago no meio de jovens liber­
tinos assevera que corava de não se lhes assemelhar e acrescenta:
"ó amizade inimiga, incompreensível sedução do espírito! . . . bastava
que alguém dissesse: Vamos ali, façamos isso, todos teriam ficado
envergonhados de não passar por desvergonhados."
O estudante sério não vive em semelhante companhia. Acha suas
RUMO À CU LTURA 193

delícias ao contato dos grandes escritores. Sua alegria não é por isso
menos profunda; mas é de ordem mais elevada.
O estudo dá nobreza aos modos. "Sejamos distintos", dizia o
jovem Xavier de Ravignan ao irmão. Que dignidade não se via ou­
trora nos grandes magistrados, escritores e artistas! Dizem que a
distinção está morrendo. Talvez nisso haja qualquer coisa de certo,
e estaríamos inclinados ao pessimismo neste ponto, ao ver os modos
e a sem-cerimônia de certos estudantes: mãos nos bolsos, chapéu de
lado, ar melancólico, enfastiado, ou ainda fisionomia insolente com
o olhar brutal e perverso, fronte listrada por rugas precoces. O estu­
dante sério, em geral, não aceita êste modo desalinhado. O convívio
com pessoas distintas pelo espírito e pelo saber, imprime ao exterior
uma certa nobreza que vem a ser como natural e reflete a distinção
do coração e do espírito.
O estudo dá também nobreza aos pensamentos. Viver em contato
com as mais altas inteligências, é nutrir-se da sua alma, impregnar-se
de tudo quanto nelas há de distinção. Como não amar as nobres
idéias quando se viveu com Bossuet, José de Maistre, Lacordaire,
Veuillot? "Um entretenimento com os letrados", disse Lucas de Pena,
"é um vaso cheio de sabedoria, uma árvore de vida cujos frutos estão
maduros, um acréscimo para a inteligência, um socorro para a memó­
ria, uma consolação no infortúnio, uma lâmpada acesa que alumia a
carreira, uma escola onde se entra envergonhado da própria ignorân­
cia e de onde se sai com o espírito culto, uma espécie de poço onde
mergulhamos o nosso balde."
O estudo produz a diJtinção dos atos. Na vida moral tudo se
encadeia. Os nobres pensamentos, os desejos nobres levam a atos
nobres. Na história da mocidade francesa no século XIX, que re­
tumbante confirmação desta verdade! Os moços do Círculo de estu­
dos e depois dêles Ozanam e os membros das Conferências de São
Vicente de Paulo, Montalembert, de Mun, os membros da Juventude
Católica apaixonados por nobres desejos, elevaram-se aos sublimes
atos da caridade e do devotamento a tôdas as causas santas. Em
vez de levar uma vida egoísta e preguiçosa viveram para os outros.
E dedicaram-se na medida em que os seus estudos lhes haviam des­
vendado a beleza da verdade e da justiça.
O estudo aperfeiçoa o caráter formando em n6s costumes salu-
194 L. RIBOULET

tares. Será o espírito outra coisa do que um feixe de costumes na­


turais e adquiridos que, como o disseram, se tornaram uma segunda
natureza? Ora, muito contrib�i o espírito para formar em nós exce­
lentes costumes, hábitos de pontualidade, de regularidade pela fide­
lidade ao regulamento.
Hábitos de constância e de perseverança sem os quais não há
nada de perfeito.
Hábitos de atenção, de reflexão, de recolhimento.
Hábitos de vida superior e de nobreza nas idéias.
Hábitos de julgar de acôrdo com os princípios, os homens e os
acontecimentos, de examinar um assunto sob todos os seus aspectos,
de não aceitar senão com perfeito conhecimento de causa as opiniões
e as idéias.
Por essa visão rápida das vantagens do estudo, quis apresentar­
vos um pequeno assunto de reflexão para quando aparecer a tentação
de desânimo. As penas e as dificuldades hão de passar: os conhe­
cimentos adquiridos, a cultura por êles proporcionada ao vosso es­
pírito, os hábitos preciosos que dêles resultarão, nada se perderá e
achareis nisto a vossa maior recompensa.
Capítulo XIV

NÃO DESCUREIS NENHUMA DAS INFLUÊN­


CIAS QUE VOS PODEM AUXILIAR NO
DESEMPENHO DO VOSSO DEVER DE
ESTUDANTE S

Saber aproveitar a s ocasiões é um raro talento.

Somente aquêle que está preparado sabe tirar proveito das ocasiõe&·
quando estas se apresentam. A maioria não compreende o seu valor
ou percebe-o muito tarde. Permanecei alerta para tudo quanto vos
pode ser útil. Preparai-vos para grandes fadigas e conservai acesa a
vossa lâmpada.
Não alegueis que hoje a sorte não favorece como outrora; as.
ocasiões de ter êxito são sempre as mesmas; mas, como outrora, bem
poucos são os que sabem aproveitá-las.
Quantos homens se celebrizaram em virtude de uma ocasião que
souberam aproveitar! Lineu sentiu gôsto para o estudo das plantas
incentivado pelo pai que gostava de cultivá-las. O acaso revelou-lhe a
vocação, mas a Providência o dotara dos dons essenciais ao botânico
e ao sábio: o gôsto pelas pesquisas; o olhar perspicaz que capta o
que merece ser observado; o espírito de síntese que une fatos esparsos.
para formar uma verdade geral.
Foi por acaso que Lamarck se dedicou à observação científica ..
Morava em Paris, num andar elevado. Como êle mesmo conta, as
nuvens, que constituíam o seu único espetáculo, inspiraram-lhe, pelos.
seus diversos aspectos, as primeiras idéias meteorológicas.
O naturalista Bonnet, de Genebra, tendo lido no Spectacle de la
Nature a história da indústria singular do inseto chamado "formiga­
leão'', não descansou enquanto não tivesse achado um espécime.
196 L. RrnouLET

Ao procurá-lo, descobre outros insetos que o interessam. Em


seguida vai à cata de livros de entomologia, lê ràpidamente o de
Réaumur, estuda insetos de que Réaumur não falara e, na idade de
16 anos, já é naturalista de nota. Apressou-se a Academia de Ciências
de Paris em inscrever êste jovem observador na lista dos seus cor­
respondentes.
Foi a uma circunstância fortuita que Arago deveu um redobra­
mento de ardor no estudo das ciências. !le estudava o livro de "Álge­
bra" de Garnier. Uma fôlha impressa encapava o volume: leu-a e a
tornou a ler; em seguida, pensando que a continuação estava debaixo
do papel azul que cobria o papelão de encadernação, umedeceu-a um
pouco e conseguiu destacá-la. Era um fragmento de uma carta de
.d'Alembert dirigida a um moço que lhe confiava as dificuldades que
experimentava nos estudos: "Prossegue, amigo", escrevia o filósofo,
"prossegue, encontrarás a fé." Encontrou êste conselho um terreno
propício, ao cair na mente de Arago. Desde então, é êle mesmo que
o conta, seguiu, qual uma luz, esta palavra de d'Alembert, e caminhou

sem se atemorizar com os enfados da ciência.

Quanto possível, vivei num ambiente propício ao estudo.

O ambiente, é aquêle que nos envolve: a família, os mestres, e


até mesmo a paisagem e as condições de vida. A habitação, o ali­
mento, o trajar, as viagens exercem sôbre nós influência considerável.
Os objetos materiais que nos cercam não deixam de influenciar o
nosso organismo. Não é indiferente morar sôbre um solo calcário
ou granítico, de sílica ou de alumínio, de carvão, de ferro ou de
magnésio. Não é indiferente um lugar carregado ou não de eletrici­
dade, onde a bússola fica louca ou tranqüila.
O mesmo acontece sob o ponto de vista intelectual, e sem mesmo
cair no determinismo pode-se dizer com acêrto: "Dize-me com quem
andas e dir-te-ei quem és ! " Essa lei da influência do meio é constatada
em todos os estados de consciência psicológica; o cataléptico, o his­
térico, o neurastênico em todos os graus fatalmente a sofrem; o
próprio homem normal lhe está sujeito a tal ponto que nem mesmo
se apercebe.
E essa influência nos penetra, nos modela; bom grado, mau grado,
RUMO À CULTURA 197

experimentamo-la; o ambiente estudioso dá-nos o gôsto pelo estudo;


a conversa distinta nos eleva e enobrece.
Formula-se em Física a lei dos vasos comunicantes. A penetração
das almas e dos espíritos é ainda mais perfeita. Postos em contato,
o seu ideal tende a elevar-se ao mesmo nível e êste resultado pode
ter repercussão na vida inteira. É em conseqüência disso que se
nota um cunho peculiar a tal família, tal profissão, tal país, tal so­
ciedade, pois o contato contínuo induz aos mesmos modos, às mesmas
idéias, à mesma mentalidade, e isso com intensidade tanto mais
pronunciada quanto estas idéias não nos ferem e as deixamos tomar
posse do espírito sem mesmo pensar em lhes impedir o acesso.
Procurai viver, pois, quanto possível, num meio favorável ao es­
tudo; freqüentai a sociedade dos estudantes de escol; deixai-vos im­
pregnar de sua influência salutar. Elevai o vosso espírito, se puder­
des, à altura onde se acha o dêles.
Gounod escrevia a um jovem músico: "Deixa-te impregnar como
a esponja, abre-te às influências de tôda espécie que te envolvem e
te protegem, sem entretanto renunciar à reflexão, sem nunca esquecer
os direitos imprescritíveis do trabalho pessoal."
Sentireis talvez a necessidade de acautelar-vos em certas circuns­
tâncias. Fazei-o com hesitação, à luz dos princípios cristãos. Joubert,
o pensador tão delicado, apresentado a Diderot, experimentou um
momento o prestígio dêste fascinador mal equilibrado. Mas, a edu­
cação cristã que recebera impediu a sua queda no turbilhão de
idéias incoerentes que se agitavam nesse celebrado filósofo inovador.
Em tudo quanto escreveu Joubert, não transparece nada de Diderot.
Não demorou muito em fugir dêsse templo erigido a uma filosofia
tão perigosa e voltou aos seus mestres preferidos: Platão e os Padres
da Igreja.

Tende em alta estima a sociedade dos homens superiores se


tiverdes a dita de encontrá-los.

Disse o poeta: "A amizade de um grande homem é a bênção dos


deuses." E isso é pura verdade. Existem homens junto dos quais nos
rebaixamos. São os maus, cujas idéias, palavras, atos, conduzem ao
mal; são os medíocres, que vivem ao deus-dará, sem que uma idéia
superior os entusiasme, os dirija, os transforme; são os preguiçosos
198 L. R rnoULET

e os amadores de frivolidades cuja conversação não sai das cho­


carnces.
Mas há também os corações nobres, as inteligências superiores
junto das quais nos sentimos crescer. Depois de visitar Washington,
Chateaubriand escrevia: "Sinto-me feliz porque os seus olhares des­
cansaram sôbre mim. Sinto-me alentado para o resto da vida. Há
um poder misterioso no olhar de um grande homem."
O convívio com os grandes espíritos e os grandes corações cria
um ambiente onde nascem fàcilmente pensamentos nobres e gene­
rosas resoluções, onde os jovens espíritos, como disse Platão, parecem
antes tornar a encontrar conhecimentos possuídos numa vida anterior
do que aprender coisas novas.
Tyndall, ao voltar de um sarau em casa de Faraday, escrevia:
"Sua obra excita a admiração; mas o contato com êle aquece o co­
ração. Eis ali certamente um homem de fibra. Estimo a energia, mas
quisera jamais esquecer sua união com a modéstia, a ternura e a
mansidão do caráter de Faraday."
Os homens de valor são modelos. É um dos segredos da sua in­
fluência. À vêzes estamos expostos a não utilizá-los como tais. "Prà­
ticamente", diz o Pe. Sertillanges, "nós os assimilamos aos espíritos
simplistas, tomamos o que êles têm de comum, não o que êles têm
de raro. Estamos em frente de um tesouro e brincamos com a chave
sem abri-lo. Rimos, às vêzes, das suas esquisitices, das suas menores
extravagâncias próprias dos homens abstratos . . . Os grandes valores
são por demais reduzidos para que os deixemos assim desconhecidos.
Incalculável número de santos, de grandes capitães, exploradores,
sábios, artistas chegaram às culminâncias por terem encontrado uma
personalidade eminente e terem ouvido o som de uma alma."
Depois de visitar Lenormant, Luís Veuillot escrevia: "Encon­
trei-me, depois de conversar com êle, no mesmo estado de alma que
experimento ao sair da igreja depois de imponentes cerimônias em
que ouvi os salmos, rezei, chorei lágrimas que embaciavam o vidro
dos meus óculos."
Os grandes homens são inspiradores e condutores. Pasteur falou
com emoção da primeira entrevista entre a mocidade e o talento em
todo o seu esplendor. Avistar enfim aquêles arrebatadores de almas,
RUMO À CULTURA 199

ouvi-los, falar-lhes, dizer-nos seus discípulos e não nos sentirmos


i ndignos de o ser. Oh! qual o momento, qualquer que seja a nossa
vocação, que deixe comoções mais profundas? As almas de escol con­
servam eternamente estas primeiras impressões. Ao inaugurar a es­
tátua do seu estimado mestre João Batista Dumas, Pasteur escrevia:
"Posso afirmar que durante quarenta anos sempre trabalhei tendo
diante da mente êste rosto venerando de quem uma palavra recon­
fortante e depois mais outra, e em seguida muitas mais do que
ousava esperar, eram uma recompensa e uma felicidade que excediam
tôdas as demais. O seu ensinamento deslumbrou minha mocidade;
eu fui o discípulo dos entusiasmos que êle inspirou."
A influência dos homens superiores é de uma fecundidade tanto
maior quanto, em geral, se mostram de grande benevolência para
com os moços. Apontaram Baudelaire como sendo uma raríssima
exceção. Quando Herédia, jovem principiante, lhe foi apresentado,
disse: "Eu não gosto dos jovens." Outros estão demasiadamente
elevados e não querem caminhar com os moços; o papel que desem­
penham limita-se apenas a ser o de socadores de crânios. Mas a
maioria compreende a sua missão; acompanham com solicitude os
trabalhos e progressos dos seus alunos, preocupam-se com o seu por­
vir e orientam os seus estudos e pesquisas. São êsses despertadores
de almas, de quem fala Bourget, que experimentam, ao discernir os
talentos, essas emoções de inventores e artistas. Determinar acelerar
a conclusão do esbôço, cooperar ao desabrochamento dessas nobres

flores humanas; eis as delícias de tais mestres. O ilustre mineralo­


gista Haüy consentia em receber os moços no seu próprio aposento,
abria-lhes suas coleções e não recusava a mínima explicação. Mon­
talembert possuía uma grande simpatia pelos moços. "Mesmo quando
não me contam nada, sinto-me levado a gritar-lhes: 'Coragem e con­
fiança! Trabalhai energicamente pela boa causa, pela verdade, pela
Justiça, pela liberdade, e certificai-vos de que jamais vos arrepen­
dereis'."
É desnecessário acrescentar que os moços são, de um modo parti­
cular, sensíveis a êste bom acolhimento. Que poderoso estímulo esta
simpatia! Experimentar um olhar que alenta, ouvir uma palavra que
reanima nas angústias, nas dificuldades, nos insucessos, tudo isso
duplica o destemor e decupla as fôrças. Desaparece a dificuldade,
200 L. RrnouLET

sentimos asas crescerem e nada se apresenta que não estejamos


prontos a enfrentar.
Se tiverdes a felicidade de encontrar um homem superior, não
permaneçais passivos e indiferentes; ouvi-o, interrogai-o, fazei vossas
suas idéias e os seus sentimentos.
Temperai o vosso caráter e ampliai vosso valor intelectual e moral,
na companhia dêle.
Os heróis da santidade e da ciência são os luzeiros da humani­
dade. Carlyle dizia com muito acêrto que, no fundo, a história uni­
versal não era mais do que a história dos homens célebres.
Não foi a história militar, escrita quase por completo pelos gran­
des capitães e homens de Estado: Péricles, Alexandre, César, Carlos
Magno, São Luís, Washington, Napoleão, Bolívar, Garcia Moreno?
Não se agrupa a história literária em redor de alguns nomes ilus­
tres: Ronsard, Malherbe, Corneille, Bossuet, Voltaire, Chateaubriand;
Shakespeare e Tennyson; Goethe e Schiller; Dante e Tasso; Cer­
vantes e Lope da Vega ?
Não poderíamos resumir os progressos das ciências assinalando
os seus mais conhecidos representantes: Arquimedes, Kepler, Des­
cartes, Pascal, Newton, Pasteur, Branly?
Vêde, por exemplo, o que se tornou Dante para os seus compa­
triotas. "Os italianos", dizia Byron, "falam de Dante, escrevem sôbre
Dante, pensam em Dante e sonham com Dante." Mas sua influência
ultrapassou as fronteiras; veio a ser pai espiritual de uma família
de grandes espíritos: Milton lhe deve a resignação nas enfermidades
e sofrimentos; Byron lhe deve as mais lindas inspirações; Klopstock,
a idéia da Messíada, Vondel, o realismo das descrições do Lúcifer.
E quantos não foram os artistas que se nutriram da sua obra desde
Giotto, Orcagna, Miguel Ângelo e Rafael até Delacroix e os moder­
nos artistas cristãos!
Os grandes homens são formadores. Vivos, sua irradiação é muito
grande. Tal foi, por exemplo, a ação de Mons. Dupanloup sôbre os
alunos de S. Nicolau. Quantos homens distintos não saíram dêsse
educandário! Já velho, o Cardeal Lavigerie, comovidíssimo, lembra­
va a sua estada nesse instituto cujo aspecto, a princípio, dava uma
idéia de tristeza e desgôsto. Chegou aí no mês de outubro deixando
Bayonne, região suave e encantadora; assim no-lo conta êle: "Um
RUMO À CULTURA 201

nevoeiro de inverno já escurecia êsse triste lugar. Que contraste!


Pouco faltou para que não sucumbisse. Mas aos poucos, nas sombras,
vi aparecer um sol que animou a minha alma e que cedo a inundou
de tôda a sua luz. Era êle, êle em todo o fogo de seu espírito, do seu
coração alierto a todos os santos entusiasmos, que nos transportava,
mestres e alunos, aos cumes mais puros das coisas divinas e humanas."
Os grandes homens que nos precederam exercem influência pelas
suas biografias. A leitura das belas ações da sua vida inspira senti­
mentos nobres e generosos; provoca resoluções que valorizam a
existência. Émerson dizi a : "Não posso ouvir falar em vigor pessoal,
em grande poder de ação, sem experimentar em mim o revigoramento
da minha resolução." Um sábio chinês, Mêncio, expressa a mesma
idéia: "O sábio é o mestre de um centenar de séculos. Ouvindo falar
dos costumes de Lao, os estúpidos tornam-se inteligentes e os inde­
cisos se fixam." Até a estátua de um grande homem serve de lição.
Horácio e Ovídio se gabaram de ter adquirido pelas suas obras
fama mais duradoura que o bronze; mais alta que as pirâmides de
Tebas e Mênfis. A estátua é uma lição constante ao alcance de todos.
Eis o grande homem, com as suas feições e sua atitude. Ei-lo quase­
vivo, pois está erguido, altaneiramente colocado sôbre o pedestal.
Mas somente é digno de tal distinção aquêle que pode ser apresentado
como tipo de honra, de caráter e de virtude.
Os grandes homens nos influenciam pelos seus livros. Não insis­
tirei sôbre êste ponto, pois já vos falei da leitura: Volto a recomen­
dar-vos que escolhais somente os grandes livros. Richepin, em uma
poesia célebre, cantou o bem que lhe fizeram os livros de prêmio­
com que fôra presenteado na infância:

Béni soit le semeur dont le geste entendu


Sut me jeter au vent, au hasard des étrennes,
Les bons grains bien triés des vénéneuses graines!
Béni sois-tu, mon pere, ô tendre ami perdu!

Oui, tes cadeaux d'un jour pour toujours m'ont comblé.


De ces livres germant dans ma jeune âme en friche,
La seve fut si vive et la moisson si riche,
Que j'y moissonne encare, et c'est mon meilleur blé.
202 L. RrnoULET

A h! les chers livres! Quoi que ie réve, que i'ose,


Jamais ils ne m'ont dit que c'était hasardeux.
Tout ce que j'ai de bon, de noble, me vient d'eux,
Et tout ce que ie vaux, si je vaux quelque chose.

Do mesmo modo que há livros mentores para as crianças, tam­


bém os há para a humanidade. Escolhei os mais nobres, os mais
eloqüentes; muito haveis de lucrar com a sua douta convivência.
Os gênios descortinam largos horizontes e falam acertadamente; os
seus escritos são o esplendor da verdade; amai a sociedade dêstes
ilustres desaparecidos, fazei-vos um ambiente ancestral.
Sêde amigos da sala de estudos e da biblioteca. Três santuários
_possuíam os monges da Idade Média: a capela, a sala capitular e o
scriptorium. Nêles guardava-se rigoroso silêncio. Na porta do scripto­
rium, onde trabalhavam os monges, Alcuíno colocara êste dizeres:
""'A ninguém é lícito juntar ao trabalho as frivolidades do discurso,
com receio de que a mão se extravie." Prezai o convívio dos livros;
sejam êles os vossos mais preciosos tesouros. A estima dos livros é
para o estudante o termômetro do fervor intelectual.

Escolhei amigos cujas palavras e exemplos possam excitar-vos


ao trabalho e à virtude.

Fazei escolha dos amigos com prudência. Não deis confiança ao


:primeiro que vier; às vêzes, as aparências enganam. Não vos asso­
·cieis fàcilmente com os medíocres se desejardes viver numa atmosfera
·que vos eleve.
Julgai a árvore pelos frutos. As amizades, por vêzes, são portado­
ras de germes de morte. Não vos deixeis entusiasmar por certas
;Seduções que não passam de ilusões.
O vosso coração encerra tesouros de afeto; oferecê-los a indignos
seria profanação. A verdadeira amizade consiste na união das almas.
Os seus sinais a fazem fàcilmente reconhecer.
A verdadeira amizade é leal, não pactua com o mal e não fecha
os olhos sôbre os defeitos e as faltas. Escrevia Montalembert a
-Cornudet: "Exijo de ti que sejas inexorável sôbre tudo quanto no­
:tares de repreensível em mim."
RUMO À CULTURA 203

Ela é confiante e induz a partilhar as alegrias e as penas. Escreve


'
Cornudet a Montalembert: "Já que estou pronto a abrir-te o meu
coração, não quero somente confiar-te meus pensamentos mas até
as minhas boas ou más ações; quisera que tôdas elas fôssem boas,
pois adorno com muito mais cuidado o meu coração do que meu
espírito."
Ela é fraternal e amparada pela oração. Depois de apreciar Cor­
nudet, Montalembert lhe escrevia: "É nos teus braços que me atiro,
prezado amigo; é no teu coração que eu quero refugiar-me para
achar consôlo nos meus pesares." Em outra carta, acrescenta: "Muito
rezei por ti. Nossa união será santificada pela religião, sem isso, tudo
é vaidade e insignificância."
Ela nos instiga ao bem e ao trabalko sério. "Minha alma se dilatou
desde que te conheço", diz Cornudet ao amigo. "Consigo triunfar
um pouco da minha preguiça habitual. Parece-me que aprecio me­
lhor o belo e que o meu fervor reacendeu-se um tanto." Por sua vez,
Montalembert submete-lhe projetos de livros e artigos, solicita um
aviso e críticas, pede-lhe algumas informações acêrca dos professôres
da Sorbona e do Colégio de França; e por seu intermédio permanece
a par das idéias e dos escritos dos grandes periódicos.
Pedi a Deus que vos dê um amigo sincero ou um pequeno grupo
de amigos cujos conselhos e exemplos vos hão de excitar ao cum­
primento dos vossos deveres. "O amigo fiel é poderosa muralha",
diz a Sagrada Escritura, "quem o achou, encontrou um tesouro. Nada
é comparável ao amigo fiel; nem o ouro nem a prata podem ser-lhe
comparados. Os bons conselhos de um amigo são o rejuvenescimento
da alma."
Mas essa amizade não deve de forma alguma assemelhar-se a
•mla banal admiração. Sabemos quanta inveja e fel escondem os
cumprimentos dos Trissotin e dos Vadius. O amigo verdadeiro me­
deia entre a tôla bajulação e a crítica acerba. Com cuidado assinala
êle tanto os defeitos como as qualidades, e tais avisos vindos antes
do coração do que do espírito, reerguem, elevam, alentam e dão à
alma um novo impulso para o bem e o belo. Para têrmos amigos,
devemos merecê-los. "O afeto de um amigo", disse Lacordaire, "é o
maior tesouro dêste mundo após a amizade de Deus: coisa rara e
204 L. RrnouLET

divina, sinal infalível de uma grande alma e a mais alta das recom­
pensas divinas inerentes à virtude."

A conversação é igualmente um meio pelo qual as inteligências


e as almas se comunicam.

Carlos de Sainte-Foi fala deliciosamente da fusão das inteli­


gencias e das almas pela conversação. "A palavra'', diz êle, "esta­
belece entre aquêles que se falam uma associação muito mais ín­
tima do que geralmente se pensa; e poucas são as pessoas que
suspeitam tudo quanto passa de uma alma para outra, na con­
versa . . . As almas estão unidas pela palavra como se estivessem
irmanadas."
Desempenha, portanto, a conversa nobre e inteligente um papel
importante. Bem o compreenderam os antigos. Os gregos e os ro­
manos deixaram incomparáveis exemplos nos Diálogos de Platão e
de Cícero. Não poderíamos reconstituir pela conversação a história
da literatura, a história social, diplomática, literária e artística? Os
grandes assuntos foram discutidos, e sem dúvida mais de uma obra
mestra teve o seu princípio tanto na conversa como na meditação
solitária.
A conversa mede o grau de elevação das faculdades da alma e o
grau de cultura das faculdades da inteligência; tal palavra, tal con­
versa, às vêzes, é o resumo de imensas leituras e de profundo conhe­
cimento da humanidade. "Revelamo-nos as nossas almas", dizia
Royer-Collard pensando nas suas conversas com de Serre. Algumas
tardes passadas com pessoas espirituosas representam voluptuosi­
dades deliciosas; e só assim podemos explicar facilmente a influência
dos salões nas grandes épocas da literatura.
Procurai portanto a sociedade daqueles que sabem conversar de
modo interessante e instrutivo e, a fim de tirar bom proveito da
conversação, observai os seguintes preceitos que foram ditados pela
experiência:
Saber escutar. Walter Scott dizia que aprendera coisas novas
conversando com homens vulgares. Anotava ràpidamente as expres­
sões originais e as palavras pitorescas; e várias vêzes encontrou nes­
tas circunstâncias o que êle procurava desde vários meses. Quanta
RUMO À CULTURA 205

coisa se não pode aprender escutando! Um escritor dizia: "Sôbre


dez coisas que conheço, devo nove à conversação."
Saber interrogar. "Aquêle que muito indaga", diz Bacon, "há de
aprender muito e geralmente agradará, sobretudo se faz perguntas
adequadas ao espírito das pessoas mterrogadas." Tais conversas
valem ouro. Nada agrada mais a um especialista do que encaminhar
a conversa para o ramo do seu saber. Em pouco tempo êle pode
fornecer visões luminosas acêrca da ciência que cultiva.
Saber falar. A arte da conversação é difícil. Consta de quatro
elementos: a preocupação da verdade, o bom-senso, o bom humor,
o espírito.
Não procureis ofuscar; falai simplesmente do que tendes estu­
dado, do assunto especial que vos preocupa, de um acontecimento
científico, de uma descoberta, do livro que terminastes de ler. Se não
fordes a alma da conversação, colocai acertadamente uma palavra,
uma observação, uma aprovação.
Evitai aborrecer os ouvintes contando sempre os mesmos assuntos,
pois que provocaria sorrisos a repetição das mesmas expressões.
Que as vossas conversas revelem grande nobreza de alma e aspirações
elevadas. Destarte sereis mais apreciados.
Saber tirar proveito das conversas. Quando a conversa se tornou
séria e instrutiva, notai o que vos impressionou, o que vós quereis
reter. Mais tarde sentir-vos-eis felizes em poder reavivar vossas
lembranças. Neste gênero temos uma imensa literatura: Dangeau,
Saint-Simon, Barbier e sobretudo Goncourt.

A correspondência pode servir para estimular-vos ao trabalho.

A correspondência é uma conversa à distância; dela podemos


tirar os mesmos proveitos que da conversação. Torna-se um meio
de informação e de formação. :E:ste gênero foi sempre apreciado.
Talvez em nossa época de relações fáceis, o telégrafo e o telefone
lhe tenham diminuído os encantos. Seria no entanto uma lástima
se o número de correspondentes se tornasse escasso.
A primeira vantagem da correspondência é servir de exercício de
estilo exigindo qualidades especiais: simplicidade, variedade, natu­
ralidade. Possuímos modelos incomparáveis na literatura.
206 L. RrnouLET

É ainda um meio de estimular-se ao trabalho e à virtude. Monta­


lembert escrevia a Cornudet: "Levo sempre comigo a tua última
carta como preservativo contra a impureza, até que outra fique em
seu lugar." As cartas de Lacordaire exerceram um apostolado magní­
fico; quantos moços lhe devem a perseverança no estudo e na prá­
tica do bem ?
A correspondência pode tornar-se um meio de completar os conhe­
cimentos, de esclarecer certos pontos obscuros, encher lacunas, obter
suplementos de informação.
As vêzes, devido à distância, tornamo-nos mais atrevidos. "Quan­
do estás junto de mim", dizia Edmundo Rousse ao amigo, "não tenho
coragem de dizer-te a metade do que te escrevo sem cerimônia, e
serias talvez menos amigo se tivesses ficado junto de mim: existem
muitas coisas que estupidamente te obriguei a ouvir e que, por mil
motivos, eu nunca houvera tido a idéia de contar-te junto à lareira."
A correspondência faz com que os amigos se conheçam melhor.
A despeito de tudo, a alma aparece nas cartas. Na verdade pode­
ríamos conhecer Voiture, Sévigné, Fénelon, Rousseau, Voltaire, de
Maistre, Lacordaire, Veuillot e outros mais, se não possuíssemos
suas obras epistolares?
O essencial está na boa escolha dos correspondentes. Se fôr amigo,
que êle saiba animar-vos ao trabalho. Se fôr uma competência, que
se mostre feliz por auxiliar-vos a vencer as dificuldades, aplaudir
os vossos êxitos e ser para vós um guia sempre solícito.

A redação de um diário intimo pode ser-vos de grande utilidade.

Estudantes de escol costumam estabelecer diàriamente o balanço


intelectual e moral do dia, e encontram nêle grande proveito. É o
exame de consciência feito por escrito. Se têm cumprido perfeita­
mente as obrigações escrevem-no e alegram-se; se as cumpriram
com negligência, acusam-se francamente tomando em seguida, para
o dia seguinte, sérias resoluções.
Este diário é também uma análise de alma. Reflete as esperanças
e as decepções, os arrependimentos e as resoluções viris, o temor e
a alegria, a esperança e o entusiasmo. É o eco de uma alma que sente
as responsabilidades. Mas não deve ser uma análise por demais
minuciosa; a crítica constante da vida paralisa a vontade. Amiel,
RUMO À CULTURA 207

no seu ]ournal, assinala tal perigo. "A análise extremada devora-se


a si mesma como a serpente egípcia. Por isso é que precisa receber
um alimento externo que ela possa moer e dissolver se quisermos
impedir a sua autodestruição . . . Melhor é dilatar-lhe a vida, estendê­
la em círculos progressivos, do que amesquinhá-la, restringi-la obs­
tinadamente pela contração solitária. O calor tende a fazer de um
ponto um globo, o frio a reduzir o globo à dimensão de átomo."
Goethe, quase tôda a vida, foi fiel à redação do seu diário. Era
para êle uma medida de higiene moral, que aconselhava constante­
mente aos outros. "Só gostamos realmente", dizia êle, "daquilo que
fazemos no momento em que lhe damos importância, e só mesmo
quando os mínimos pormenores se tornam para nós o objeto de uma
constante atenção."
O diário deve ser também o eco da vida externa. Trata dos
parentes, amigos, mestres; resume uma conversa, anota uma palavra
espirituosa; conserva a lembrança de uma leitura interessante.
Mais tarde sente-se prazer ao voltar a estas notas que fazem
reviver dias passados, impregnados com os perfumes das flores da
juventude.

As viagens são excelentes meios de educação.

Conheceis as máximas do bom La Fontaine:

Quem pelo globo viajou,


Na mente, com certeza, algo guardou!

Montaigne aconselha as viagens como sendo o complemento ne­


cessário à formação. A permanência no estrangeiro facilita o estudo
das línguas vivas e dilata o espírito. Ao ver os diferentes povos,
percebemos que os modos de agir são diversos e esta averiguação
diminui o bairrismo e o espírito de mesquinhez.
Bacon chegou mesmo a delinear um programa que possa tornar
as viagens instrutivas. Recomenda observar a côrte dos príncipes,
sobretudo em dias de audiência aos embaixadores; os tribunais assim
como os consistórios eclesiásticos; as igrejas e os conventos; as mu­
ralhas e as fortificações das cidades; os portos, os museus, as biblio­
tecas, os colégios; a marinha mercante e a marinha militar, as casas
208 L. RIBOULET

e os jardins de diversões, os museus de armas, os tesouros de ouri­

vesaria e marcenaria, os objetos preciosos. O programa é imenso e


só pode ser realizado quando dispomos de muito tempo.
Hoje, as distâncias estão quase supressas. Com rapidez prodi­
giosa, somos transportados às maravilhas naturais ou artísticas do
nosso país ou dos países vizinhos. Mas, as condições para que se
tire algum proveito das viagens são as mesmas: precisamos prepa­
rá-las com cuidado. "O louco vagueia, o sábio viaja", dizem.
As grandes viagens não estão ao alcance de todos. Mas não existe
passeio que não reverta em proveito pessoal, por pouco que se de­
seje. Se tendes interêsse pela história, os monumentos por si falarão
e vossa imaginação há de reconstruir, nos lugares onde se deram, os

acontecimentos do passado. Poeta, vossa alma exaltar-se-á à vista


dos montes recobertos de neve, dos lagos, dos ribeiros, dos panoramas,
dos crepúsculos, das messes doiradas, das florestas agitadas pelos
ventos. Geógrafo, podereis admirar as formas exteriores da terra;
a vegetação, a sabedoria com a qual o homem se adaptou ao meio,

os modos tão sortidos da atividade humana. Psicólogo, podereis re­


colher do vosso contato com a sociedade, um sem-número de observa­
ções. Nada é tão formador como a realidade. Isso pode ser dito
tanto das coisas mais simples como das belezas naturais e das mara­
vilhas da arte e da ciência. Que colheita de pensamentos, de senti­
mentos, de fatos não haveis de fazer se o desejardes, ao mesmo
tempo que procurais agradáveis descansos! Então podereis repetir
com Tennyson: "Sou uma parte de tudo quanto vi."

Sereis muito mais sensíveis a tais influências se desenvolverdes


o sentido da admiração.

Na verdade, nem todos experimentam emoções profundas à vista


de um belo espetáculo, de uma obra de arte, de uma verdade pro­
curada que se manifesta enfim em todo o seu esplendor.
A admiração é o sinal de uma grande alma. Gounod escrevia a
Bizet: "Aamira, admira, tanto quanto puderes; a admiração é uma
nobre faculdade e ao mesmo tempo uma das mais vivas alegrias do
homem, talvez a mais intensa de tôdas. Admirar é crescer."
O espírito mesquinho nada admira; olha tudo quanto o ultrapassa
RUMO À CULTURA 209
como ofensa. Procura num espírito superior os pontos mais fracos;
aumenta-os, troça dêles com os seus semelhantes.
Não procedais assim. A apreciação sincera do valor dos outros
tornar-vos-á estimados; mostrais assim um caráter leal, nobre e cheio
de generosa cordialidade.
A admiração é um elemento da educação. Como conseguir educar
o moço cuja alma não vibra nem se entusiasma ?

Houve u m a época e m q u e era praxe aparentar ares de desgostado,


de pervertido, de crítico inexorável. Felizmente êsse tempo passou.
A admiração é um elemento de educação de primeira grandeza.
Disso Mons. Dupanloup estava convicto; era mestre em desenvolver
essa faculdade. Dêle escrevia Renan, nos So1wenirs: "Era um des­
pertador de almas incomparável; ninguém o igualava no obter dos
alunos o máximo que podiam dar . . . Amiúde, repetia que o valor do
homem é proporcional à faculdade de admirar."
A admiração é uma condição de êxito. Leva à imitação. São inú­
meros os grandes homens cujo gênio se inflamou ao contato de um
homem ilustre ou de uma obra-prima. Vendo o quadro de Santa
Cecília, de Rafael, o Corrégio exclamou: "Eu também sou pintor!"
Haydn não esconde a admiração que tem por Mozart, Beethoven e
Haendel. ":Este contém tudo", dizia êle apontando as obras do último.
Ollé-Laprune escolheu um dia a admiração, como tema de dis­
curso numa distribuição de prêmios. "Admirar", dizia êle, "é sair
de si para cumprimentar o que é maior do que si próprio. A admi­
ração arranca-nos de nós mesmos e de nossos pensamentos mes­
quinhos para, comovidos e arrebatados, atirar-nos ao seio do grande
e do belo. Ela aspira e eleva-se a algo de divino; é por isso que nos
soergue da terra e nos engrandece. É por isso que nos faz exultar
de alegria Íntima e que espalha em nós a paz e a fôrça. Ai de quem
permanecesse insensível diante do que é grande. Ai daquele, cujo
prazer mesquinho de mofar levaria a insultar, gracejando, as coisas
que devemos admirar . . . Aprendei a sempre mais admirar, assim
aprendereis a ser homens e a aproximar-vos de Deus . . . A admiração
dá ânimo para o bem; por ela, a alma se desfaz das pequenas paixões,
dos interêsses mesquinhos e se aproxima de Deus."
Prezados amigos, cultivai a admiração em vossa vida; ela afastará
do vosso coração o egoísmo e a mesquinhez. O entusiasmo bafejará
a vossa alma como a brisa do alto mar.
Capítulo XV

E STUDAI COM ELEVADO ESPíRITO DE FÉ

Um estudante delineara o seguinte programa. "Seis horas de sono,


seis horas de estudo, quatro horas de oração; as outras serão empre­
gadas na contemplação da natureza."
Outro modificou êste regulamento da seguinte forma: "Seis horas
de estudo, oito horas para o sono reparador, dez para os afazeres da
vida e tôdas para o céu."
Essas últimas palavras são de uma grande beleza; revelam raro
espírito cristão e projetam sôbre o trabalho reflexos do infinito que
lhe dão o seu verdadeiro título de nobreza. Agir por Deus, estudar
por Deus, eis o supremo ideal. A isto vos convidei no comêço destas
palestras. Pela mesma recomendação hei de terminar.

Em que consiste o espírito de fé?

O espírito de fé consiste numa fé viva e operosa tornada norma


dos pensamentos, das palavras, juízos e atos; é o móvel e como
que a mola de tôda a vida.
Ter espírito de fé, é portar-se como cristão, viver do Evangelho
e de conformidade com o Evangelho. Excelente disposição para dar
à inteligência, ao coração, à vontade do estudante cristão, uma dire­
ção superior e uma fôrça moral incomparável. O espírito de fé dirige
a intenção, leva a estudar tendo a Deus em mira, por motivos sobre­
naturais. Torna-se um poderoso incentivo na pesquisa do verdaCleiro
e à procura do bem; um sustentáculo nos momentos de tentação e
de tédio. Favorece a liberdade de espírito pela calma e quietude
que introduz na alma.
Vicente de lndy, ao se perguntar se o artista deve viver vida
superior, responde sem hesitação: "Sim, o artista deve ames de tudo
ter fé, fé em Deus; deve cada vez mais chegar-se a tle.
R UMO À CULTURA 21I

"Sim, o artista deve praticar a esperança, pois não espera n ada


do tempo presente, sabe que a sua missão é de servir.
"Sim, o artista deve estar embebido da sublime caridade. O prin­
cípio de qualquer criação é o grande, o divino, o excelso amor."
Os ecos da crença, neste grande artista, são múltiplos em sua
obra. Em Fervaal, no fim do drama, o herói, que renunciou aos.
deuses antigos para abraçar a nova verdade, simboliza a ascensão
para a religião do amor que doravante há de ocupar as antigas.
práticas dos druídas. A Légende de Saint Ckristopke está inteira­
mente impregnada de misticismo e de fé. Certas cenas são verdadeiros.
hinos em honra da religião.
O astrônomo Herschell escreveu um dia estas lindas palavras:
"Entrega-te a Deus. Não tens tu a certeza do Seu amor e do teu
perdão ? "
Eu vos convido também, meus caros amigos, a vos entregar a
Deus, a glorificá-Lo pela Fé, pela Esperança e pela Caridade. A
vossa vida seja um hino de adoração e de louvor; cada um de vossos
atos suba para o céu como puro incenso.
Um grande bispo americano que é ao mesmo tempo um pensador�
Mons. Spalding, dizia aos moços: "Quem desejar empreender grandes
coisas deve ter uma grande esperança, e é da fé que vive a esperança.
As épocas de florescimento foram invariàvelmente épocas de fé."'
A história literária confirma estas palavras. Que século mais
fecundo do que o décimo-terceiro e o décimo-sétimo? E quais os
séculos que foram mais cristãos? Estais mais do que convictos destas
verdades. Examinemos agora algumas conseqüências do espírito de fé.

O espírito de fé enobrece e santifica as ciências referindo-as·


a Deus.

Não mais é necessário dividir as ciências em profanas e religiosas.


Tôdas se tornam cristãs, tôdas conduzem a Jesus Cristo. A literatura
volve a :Rle como à fonte de tôda a beleza; o direito como à nascente
de tôda a justiça; a história como Àquele que maneja os fios secretos.
dos acontecimentos; as ciências, como à origem eterna da verdade.
"Tudo o que instrui leva a Deus por um caminho encoberto",
diz o Pe. Sertillanges. "Qualquer verdade autêntica é por si eterna�
2 12 L. RIBOULET

e a eternidade de que é portadora orienta para a verdade, de que


é a revelação. Por meio da natureza e da alma, aonde podemos ir
senão à nascente? Se a não atingimos, é porque nos extraviamos."
A busca da verdade, feita com o fim de glorificar a Deus é uma
espécie de sacerdócio: "Santa é a obra divina, santa é a ciência que
se apresenta para conhecê-la cada vez mais e que, pela majestade
com que se revela, admira os planos gigantescos do seu autor. Em
tôda a parte se ostentam o seu poderio e a sua bondade e, tomado
.de um arrebatamento que o entusiasma, o sábio cai de joelhos. É
.assim que faziam todos os sábios que honramos; Copérnico e Ma­
riotte, Descartes e Kepler, Pascal e Newton, Lineu e Haüy, Biot e
Volta, Cauchy e Leverrier, Ampere e Cláudio Bernard, Secchi e de
Rougé, Rossi e Harlez, Pasteur e Mendel, e mais recentemente ainda,
Branly e Duhem, de Lapparent e Sabatier, Flahaut e Aclocque,
Pervinquiere e Wintrebert." ( DENIS MARTIN.)
Imitai os verdadeiros sábios; admirai a obra divina que as ciências
tentam compreender e explicar. E acima de tudo escutai a voz do
Mestre. No silêncio da meditação, segredar-vos-á estas belas pala­
vras: "Sêde puros; os corações puros têm mais· facilidade para se ele­
varem à verdade e à beleza." Repetir-vcs-á: "Sêde humildes; os espí­
ritos orgulhosos são condenados à cegueira."
Será por acaso tão extraordinário assim tudo referir àquele que
é a fonte da verdade? Não é obedecer a uma doce inclinação? Não é
também o meio de achar a felicidade perfeita?
B ach trabalhava com grande espírito de fé. Suas partituras
tinham sempre como cabeçalho: S. D. G.: Soli Deo Gloria. Na capa
do Orgelbüchlein lê-se o verso seguinte: "Ao Todo-Poderoso, para
honrá-10; aos homens para instruí-lcs." O seu espírito, profunda­
mente religioso, se exterioriza até no Klavierbüchlein de Friedmann:
No alto da página onde estão os primeiros trechos fáceis, lê-se: ln
nomine ]esu. A piedade fazia parte integrante da sua natureza de
.artista. Se enfeitava dêste modo tôdas as partituras com seu S.D.G.
é que tinha uma idéia essencialmente religiosa da música. Esta con­
cepção profundamente religiosa da arte está tôda ela na concepção
que êle tem de harmonia: "O baixo cifrado", diz êle no seu curso,
4'é a base mais perfeita da música. A mão esquerda toca as notas
RUMO À CULTURA 2 13

prescritas e a mão direita executa consonâncias e dissonâncias de


modo que resulta do todo uma harmonia agradável em louvor a
Deus."
Tendo Wagner, pelo fim de 1833, terminado a primeira ópera,
as Fadas, escreveu no fim da partitura: "Finis, Laudatur Deus.
Ricardo Wagner."
Os estudantes católicos devem ter a peito glorificar a Deus em
seus trabalhos. O Côn. Ulisses Chevalier, neste ponto de vista, é um
modêlo. O primeiro volume do Repert6rio das fontes kist6ricas da
Idade Média termina louvando a Deus: Laus Deo. No fim do su­
plemento do Repertório lê-se: Laur iterum Deo. E, ulteriormente,
no colofão da última parte, escreveu: Laus semper Deo. Parabeni­
zado pelos seus trabalhos, o ilustre sábio respondia: "Deus nos con­
ceda vida, fôrça e coragem para conservar as nossas faculdades in­
telectuais a serviço da Igreja!"
O estudo feito com espírito de fé não pode ser inimigo da piedade
e da vida interior, como o pretende certa escola para a qual a igno­
rância é um preservativo. "Nos desígnios da Providência", diz o Pe.
J anvier, "a ciência e a fé, assim como a razão e a fé, são duas irmãs
destinadas a se prestarem apoio mútuo."
Não somente o espírito de fé refere tudo a Deus, mas ainda vê
a Deus refulgir na Criação.
Beethoven costumava dizer: "Nos campos, parece-me ouvir cada
árvore dizer: 'Santo! Santo! Santo!' "
Newton, depois de descobrir que os mundos estão submetidos a
uma única lei, escreveu esta frase digna de admiração e peculiar a
todos os que pensam: "Pois que tudo leva a marca do mesmo de­
sígnio, tudo deve ser submisso a um só e mesmo Ser."
Lineu também percebia a Deus nos esplendores da Criação.
"Ante o Deus imenso, que tudo sabe e tudo quer, despertei", diz
êle. "Eu O vi passar de mansinho, qual sombra crepuscular, e fiquei
estupefato. Reconheci nas criaturas alguns vestígios de sua passagem.
Em tôdas e nas mínimas, e até mesmo nas que parecem nulas, que
fôrça, quanta sabedoria, que inexplicável perfeição! O universo é obra
admirável de um Ser cujo poder não tem limites."
2 14 L. R rnoULET

O espírito de fé torno o estudo delicioso e transformo o quarto


do estudante em santuário.

Ingres dizia aos seus alunos: "Disseram, senhores, que o meu


'atelier' era uma igreia. Pois bem, seja uma igreja, um santuário
consagrado ao culto do belo e do bem."
Aquêle que trabalha com espírito de fé vive na presença contínua
de Deus. Reboul, recebendo Dumas no seu modesto gabinete, lhe
dizia: "Eis-nos aqui afastados do mundo material. Êste quarto é um
santuário: só a oração, a inspiração e a poesia têm o direito de entrar.
É neste quarto bem modesto, vós o vêdes, que passei as horas mais
doces de minha vida."
Ampere, depois de uma fervorosa meditação, escrevia: "A ima­
gem dêste mundo passa. Se te nutrires de suas vaidades hás de
passar como ela. Mas a verdade de Deus permanece eternamente.
Fique a minha alma, a partir de hoje, unida a Jesus Cristo. Meu
Deus, abençoai-me."
O delicado pensador, Joubert, vivia igualmente do espírito de fé.
Alguns dias antes da morte, escrevia num canhenho estas palavras:
"22 de março de 1 824. O verdadeiro, o belo, o justo, o santo."
Traduziam a orientação da sua existência, o alvo de suas ações,
o resumo dos grandes pensamentos de fé que fizeram dêste escritor
um modêlo de probidade literária, de nobreza moral.
Quanto mais o estudante aperfeiçoa a sua vida sobrenatural
tanto mais experimenta esta presença divina no trabalho. A um
moço que lhe pedia conselho deu um escritor a seguinte resposta:
"Tomai como companheiras as três virtudes teologais."
Sabemos que Vicente d'Indy dá o mesmo conselho aos artistas.
E como foram bem inspirados! A fé transporta os montes. Que rudes
trabalhos ela fêz empreender e levar a têrmo. Suscitou os heróis da
santidade, mas produziu também os mártires do estudo e da ciência.
A esperança enaltece o trabalho, desperta o contentamento no
coração e faz cantar de alegria. A caridade resume tudo. Unindo-nos
a Jesus Cristo, fornece-nos um acréscimo de luz, pois Jesus Cristo
é o esplendor do Verbo e nêle estão contidos todos os tesouros da
sabedoria divina.
RUMO À CULTURA 2 15

A idéia sobrenatural adorna com os seus raios a existência inteira;


ela iluminou a do ilustre mestre César Franck que era organista na
igreja de Santa Clotilde. Tocasse êle para convidados escolhidos, para
os seus alunos ou mesmo para os simples fiéis que assistiam ao
ofício, seus improvisos eram todos profundamente pensados, e tão
bem executados uns como os outros, pois tocava para cumprir um
dever para com Deus.
Millet, o admirável artista, era sustentado pela fé religiosa que
possuía. Na própria casa, a Escritura Sagrada era lida em família.
O Angelus foi-lhe inspirado por uma lembrança de fé: "Pintei",
dizia êle, "pensando nos trabalhos campestres de outrora; minha
avó, ouvindo tocar as ave-marias, sempre fazia com que cessásse­
mos nossa ocupação, a fim de rezar o Angelus, com piedade e de
chapéu na mão, na intenção dos mortos."
Foram certamente pensamentos de fé que animaram ao traba­
lho, nos seus cubículos ou no "scriptorium", os monges da Idade
Média. "É no mais rigoroso silêncio", diz de Castegens, "que os
copistas, iluminadores, teólogos, filósofos, cronistas, poetas, místicos,
físicos, astrônomos e alquimistas experimentaram inefáveis alegrias,
trabalhando sob os olhares de Deus, cercados por volumosos manus­
critos gregos ou latinos, inundados de luz proveniente de largas
janelas ou de lâmpadas, impregnados de solidão e de silêncio e avi­
sados da rapidez do tempo pelas areias das clepsidras, pelos reló­
gios solares, transfigurados pela irradiação da inteligência que a
pureza do coração e a vizinhança de Deus iluminam."
Que dor quando é mister dizer adeus a êste retiro amigo! Alcuíno,
abandonando o claustro para ir à Côrte de Carlos M agno, se lamenta
desta forma: "ó cela querida, adeus para sempre! Nunca mais te
hei de ver, nem os bosques que te cercam de seus ramos entrelaçados,
nem os teus prados, nem os teus pomares, nem os teus jardins onde
o lírio vive ao lado da rosa. Cela querida, eu choro e sempre terei
saudades de ti!"
Imitai tão santas personagens. Trabalhai sob os olhares de Deus;
nisto encontrareis alegrias inefáveis, e o vosso quarto de estudante
parecer-vos-á um recanto do paraíso.
2 16 L. RrnoULET

O espírito de /é é o inspirador e o sustentáculo do ideal.

O ideal que não tem por alicerce o espírito de fé é rasteiro. As


vistas sobrenaturais o elevam até Deus e lhe dão por expressão esta
fórmula do Evangelho: "Buscai em primeiro lugar o reino de Deus
e a sua justiça e o restante vos será dado por acréscimo." O reino
de Deus não é senão o amor da verdade, o desejo de possuí-Ia para
espalhá-la em tôrno de si com o fim de aprontar a vinda do Senhor
nas almas.
Era êste o ideal que Mons. Dupanloup expunha em suas notas
íntimas. "Jesus Cristo de quem sou o bispo, e cuja obra realizo!
Não devo pensar em outra coisa a não ser Nêle! Tudo para Jesus."
Alguns dias depois da sua recepção na Academia francesa, repetia
com júbilo: "Obriguei-os a aplaudir o Evangelho! Obriguei-os a acla­
mar Jesus Cristo!" E não consentia que se salientasse outra coisa no
seu discurso.
Assim o ideal tem o seu princípio em Deus. E faz que encontre­
mos a Deus no estudo, segundo Santo Agostinho: "As palavras são
como espelhos; atrás das palavras, vemos as almas passarem, e nelas
Deus." O conhecimento que se afasta dêste ideal é estéril, e o mesmo
Santo Agostinho acrescenta que devemos reprová-lo porque se limita
a lançar sôbre a natureza um olhar curioso que é incapaz de desa­
pêgo, em vez de elevar-se até à causa primeira.
É aliás o caráter do verdadeiro sábio: subir até o princípio das
coisas.
O eminente químico Wurtz terminava desta forma um discurso
pronunciado em Lille, perante a Associação científica: "Quanto às
causas primeiras, são inacessíveis. É em vão que a ciência revelará
a estrutura do mundo e a ordem de todos os fenômenos. O sábio
quer subir mais alto e, n a convicção instintiva de que as coisas não
têm em si a razão de ser, seu suporte e sua origem, êle é levado a
subordiná-los a uma causa primeira, única, universal: Deus."
Faraday em suas lições, apesar de profundamente religioso, nunca
pronunciava o nome de Deus. Um dia, pronunciou-o, e o auditório
aplaudiu. Faraday interrompeu a lição com estas palavras: "Estão
admirados de que proferi aqui o nome de Deus. Se isto ainda n ão
aconteceu, é que eu sou, nestas lições, um representante da ciência
RuMo À CULTURA 217

experimental. Mas a natureza e o espírito d e Deus alcançam meu


espírito por vias tão certas como as que nos conduzem às verdades
de ordem física."
Em certa ocasião, Arago evidenciava aos seus ouvintes do Colé­
gio de França a regularidade do movimento dos céus, e a ordem que
preside às evoluções dos astros. Repentinamente exclama: "Na se­
mana próxima teremos um eclipse de sol visível em Paris. A lua
estará em conjunção com o sol, e a luz do astro-rei estará interceptada
por ela. Tal dia pois, senhores, a tal hora, tal minuto, tal segundo,
três grandes astros responderão, não às nossas predições, mas às
ordens de Deus." E acrescentou: "Somente os homens é que são
recalcitrantes."
Em longos e pacientes estudos, o entomologista Fabre nunca
perdera de vista o supremo ideal. "Depois de oitenta e sete anos de
observações e de reflexões", dizia êle, "não posso dizer que creio em
Deus, vejo-O. Sem füe, não compreendo nada; sem !le tudo é escu­
ridão . . . Cada época tem os seus caprichos. Considero o ateísmo
como o capricho da nossa época . . . Seria mais fácil esfolar-me do que
tirar-me a crença em Deus."
Assim compreendida, a ciência intensifica cada vez mais nosso
ideal. Pasteur, pelo estudo dos infinitamente pequenos exalçou-se
até o infinito: "Aquêle que proclama a existência do infinito", dizia
êle, "afirma existir mais sobrenatural do que nos milagres de tôdas
as religiões; pois a noção do infinito possui êsse duplo caráter de
impor-se e de ser incompreensível. Quando esta noção invade o
entendimento, só há uma coisa a fazer: prosternar-se."
Hipólito Violeau, o casto e religioso poeta, pôde escrever estas
belas estrofes que são a expressão do seu mais nobre ideal:

Que toujours ma lyre rappelle


Les premiers serments de mon cceur;
Et que partout ou Dieu m'appelle,
]e dise: Me voici, Seigneur!

]e dirai, sachant me soumettre


A la puissance du trépas:
]e n'ai pas oublié le li! aítre,
Le .Maitre ne m'oubliera pas.
2 18 L. R rnoULET

O espírito de fé excita ao estudo quando se visa um aposto­


lado mais fecundo,

Conhecer Deus e fazê-10 conhecer, eis dois motivos excelentes


.que nobilitam o trabalho intelectual. Ter em mente Deus só, a Sua
glória, a defesa dos Seus interêsses, a extensão do Seu reino, o cumpri­
mento dos Seus desígnios sôbre o mundo, que programa, e que he­
roísmo para um moço de vinte anos! Estudar, não somente para si,
mas para os outros, dizer-se: "Eu quero instruir-me para servir a
Deus, e fazê-10 conhecer; quero ser um conquistador", que nobre
.ambição! Ainda bem que não é rara; é mesmo natural nesta idade
em que se experimentam magníficos entusiasmos, em que, por pouco
que se possua uma alma bem dotada, sente-se inclinação quase
instintiva para o apostolado. "Sondai vossos corações", diz aos jo­
vens o Pe. Rouzic, "e descobrireis nêles êste excesso de vegetação
e de vida que Quintiliano se comprazia em descobrir nos seus dis­

·CÍpulos e que o escritor sacro vislumbrava no coração adolescente


-Oe Benjamim."
Assim foi Lacordaire na adolescência, e eis o programa que nlti­
.damente se traçara: "Fazer conhecer Jesus Cristo àqueles que O
:ignoram, contribuir à perpetuidade da religião divina, suavizar o
maior número de misérias, e exterminar o maior número de corrup­
·ÇÕes que puder, eis o meu intento."
Foi a fé que levou Ozanam ao apostolado. Apiedava-se ao ver a
multidão que ignorava a verdade, e poderia dizer com Gratry: "Até
.quando, aquêles que receberam com abundância alguns dons do sol
de Deus, poderão ver sem comoção reinar sôbre a multidão imensa
a fome da alma, da inteligência e do corpo? Até quando ignoraremos
que no mundo das almas o Verbo feito carne sofre e espera ? "
Mons. Dupanloup sempre concebeu a vida como sendo u m apos­
tolado constante. Os catecismos que fazia na igreja da Madeleine,
seu ministério paroquial, o seminário menor, as cátedras de tôdas as
igrejas, o leito mortuário de Talleyrand, a Sorbona, os escritos sem
.conta, as lutas pela liberdade do ensino e a soberania temporal do
Papa, as obras do seu episcopado em Orléans, sua entrada na Aca­
demia francesa, tudo isso tinha apenas um único fim: conquistar
.almas, corações, pátria e o século, a Jesus Cristo.
RUMO À CULTURA 2 19

Espalhar a verdade é a característica comum a tôdas as grandes


almas. Mons. Gay, um dos maiores escritores ascéticos, teve como
programa durante a vida inteira pregar a doutrina de Jesus Cristo:
Omnia et in omnibus Christus, era a sua divisa.
Escrevendo um dia a Gounod, afirmava: "Farás muitas obras,
mas escreverás apenas uma música. Eu, também, faço e publico
muitas obras, mas escreverei apenas um livro. O meu livro é Jesus
Cristo."
Qualquer cristão, animado de espírito de fé, torna-se apóstolo.
Brunetiere, depois de ter encontrado a verdade, quis fazê-la
conhecer. O seu sucessor na Academia no-lo mostra, a princípio,
procurando através de todos os sistemas a solução da dúvida que
faz a grandeza e o tormento do homem. Encontrando-a, afinal, na
fé, o ilustre convertido "julgou que a luz não lhe fôra dada para êle
só, e, durante dez anos, arrostou o ridículo, a impopularidade, as
injúrias e as iniqüidades e mostrou, reunidos assim na sua obra e
na sua pessoa, o brilho da eloqüência máscula e a beleza do dever
cumprido".
Mais perto de nós, quantos belos exemplos de apostolado não
encontramos entre os jovens. Citemos, por exerr.plo, André Lafont,
célebre autor de L'Éleve Gilles que se constitui o mestre dos iletrados
no quartel, em princípios da guerra de 1914. Depois de dias estafantes,
a luz frouxa de sua vela atraía a todos, e êle lhes comunicava um
pouco de sua coragem, de sua fé. Citemos também Pedro Poyet,
aluno da Escola Normal superior que teve vida breve, mas foi
uma das mais fecundas da jovem geração universitária. A primeira
influência que exerceu foi a do exemplo; era o argumento decisivo.
Int�rrogaram-no, quiseram conhecer o segrêdo de sua vida. Conquis­
tou os jovens amigos por meio da oração, do bom procedimento, da
caridade. A idéia do apostolado o penetrava cada vez mais. Aspirava a
uma vocação mais elevada. Mas Deus se contentou com a sua boa
vontade. Durante tôda a vida, tão curta ( morreu aos 26 anos), fêz
realmente "da palavra de Deus a sua luz, do amor de Deus a sua
alegria, da graça de Deus a sua fôrça, do serviço de Deus a razão
do seu viver".
A revista argentina Estudios, tendo feito um grande elogio da
obra poética de Claudel, recebeu dêle a seguinte resposta endere-
220 L. RIBOULET

çada ao autor do artigo: "O generoso eco despertado por mim no


vosso tenro coração de futuro sacerdote me causou grande alegria.
Quando venho a saber que alguma alma piedosa se serviu da minha
via-sacra, que alguns dos meus versos foram utilizados como assunto
de meditação e deram asas à oração, então sinto que não foi debalde
que escrevi e vivi.
"Quanto aos parabéns de artistas ou de pessoas indiferentes, são
para mim uma humilhação, a menos que, sob o véu de um fraseado
ôco e demais enfeitadl), eu sinta que a seta aguda da verdade tenha
penetrado num coração cautelosamente defendido."

O espírito de fé vos servirá de estimulo no cumprimento dos


vossos deveres.

Deus pedirá muito a quem tiver muito dado. Não vos deu talen­
to para deixá-lo improdutivo, nem longos anos de estudos para
serem desperdiçados. Eis idéias capazes de inspirar sérias reflexões.
São Paulo dizia: "Ai de mim se não pregar o Evangelho!" Todos
aquêles que podem exercer uma missão devem aplicar-se estas pa­
lavras. Ozanam as repetia a seu modo : "É da nossa alçada, católicos,
reavivar o calor vital que se está apagando, é da nossa alçada re­
começar a era dos mártires . . . Ser mártir, é entregar ao céu tudo
quanto recebemos: o ouro, o sangue, a alma." Dizia ainda: "Escrevo
porque, não me tendo Deus fornecido fôrça de guiar uma charrua,
é forçoso entretanto que obedeça à lei do trabalho e faça minha
jornada."
É o egoísmo que leva a cumprir com moleza e negligência o dever
de estado. Se trabalhardes em espírito de fé, será êsse o primeiro
defeito que extirpareis. Como poderíeis ser covardes perante o dever,
se tendes intenção de servir a Deus, de trabalhar pela palavra e pelo
exemplo à extensão do seu reino?
:f::stes motivos serão para vós um poderoso estímulo para o tra­
balho constante. Podeis dizer-vos: "Os talentos recebidos, o tempo
que está ao meu dispor, tudo isso pertence a Deus. Se esbanjasse
esta hora, talvez ficasse no meu espírito uma lacuna que me tornaria
incapaz de dissipar uma dúvida, de firmar uma crença, de expulsar
o êrro das almas que encontrasse no caminho da vida."
RUMO À CULTURA 22 1

Um professor católico da Universidade, Henrique Gustavo Mo­


reau, morto no campo de batalha em 1918, compreendera o papel
que deve desempenhar na sociedade do século XX qualquer católico
instruído. Num caderno de notas íntimas êle tinha escrito o seguinte:
"O católico hodierno deve ser para a época em que vive o que foi o
beneditino para a Idade Média, o franciscano para o século XIII
e o jesuíta para a Renascença. Qualquer cristão que vive entre in­
crédulos deve considerar-se como um religioso. E para execer êste
apostolado duas coisas são suficientes: 1 .0 Não desunir as fôrças
( foi isto que causou maior mal à Igreja, na França ) . 2.0 Ter vida
sobrenatural intensa, constantemente alimentada pelos sacramentos.
Possuindo realmente esta vida, a nossa presença é suficiente para
operar conversões, e valerá mais que discussões estéreis."
O espírito de fé vos instruirá sôbre a importância relativa dos
estudos dando-vos ao mesmo tempo ânimo para o estudo. Far-vos-á
conhecer a verdadeira hierarquia que consiste em dar o primeiro
lugar às ciências que têm por fim a formação sobrenatural: as ciên­
cias religiosas.
Hoje mais do que nunca a fé do carvoeiro é insuficiente para os
moços letrados; êles precisam de uma fé sólida, baseada sôbre prin­
cípios fixos, que permite apresentar as razões da crença e despertar
ou avivar nos outros convicções apagadas ou fracas.
Eis a causa da multiplicação dos Círculos de estudos; eis por
que as elites dos colégios, dos liceus, das grandes escolas, das facul­
dades, se obrigam a estudar a teologia e a filosofia a fim de tornar
mais fecundo o apostolado que se propõem desenvolver.
O espírito de fé inspirar-vos-á igualmente um ardor extremo para
os estudos profissionais. É um dever para os católicos conquistar o
primeiro lugar em todos os ramos da atividade intelectual. Hoje,
mais do que nunca, a influência está em razão direta do valor moral
e intelectual.
Renovai pois vossa resolução de estudar com espírito de fé, de
procurar Deus no estudo, de viver em sua presença e trabalhar
tendo como objetivo fazê-lo conhecer e amar em tôrno de vós. Res­
pondendo à carta do pai que lhe dizia: "Suplico-te não descuidares
a tua alma", Mozart respondeu: "Beijo as mãos do meu extremado
222 L. RrnouLET

pai e agradeço-lhe os votos. Pode ficar descansado; Deus está sempre


diante dos meus olhos, reconheço-Lhe a onipotência, temo-Lhe a có­
lera, mas também conheço-Lhe a bondade e a clemência para com
as criaturas. Se as coisas andarem de acôrdo com a vontade divina
também o esta.i:ão com a minha."
Capítulo XVI

SANTIFICAI VOSSO TRABALHO POR UMA


VIDA PROFUNDAMENTE CRISTÃ

Para que o espírito de fé viva e cresça em vossa alma, sêde


francamente, generosamente cristãos. A prática de vossos deveres
sob êste ponto de vista consiste na oração, na fuga do mal, n a
prática das virtudes cristãs e na recepção freqüente dos sacramentos.

Orai antes do trabalho.

O Pe. Gratry jamais olvidou as palavras que um sacerdote lhe


confiou quando ainda estudante: "Meu filho, quando tiveres alguma
dificuldade no estudo, eleva o espírito a Deus e pede-Lhe auxílio,
tle não faltará."
Deus, na base de vosso trabalho, é a ordem em tudo! A oração
dará à vossa alma a paz, a facilidade, a limpidez; nas horas de
amargura, introduzirá um raio de sol que dissipará as nuvens e vos
dará energias novas.
Nosso Senhor não convidou a pedir-Lhe auxílio? "Sem mim, nada
podeis." - "Chamais-me de mestre e tendes razão, pois Eu o Sou."
Precisamos do auxílio de Deus. O autor da Imitação de Cristo tra­
duziu numa página imortal êste apêlo da alma: "Não me fale Moisés
ou outro profeta; falai Vós, Deus e Senhor, que inspirastes e ilumi­
nastes todos os profetas; Vós só, sem êles, podeis ensinar-me perfei­
tamente; êles, sem Vós, de nada me serviriam.
"Expõem a letra, mas Vós explicais o sentido.
"Propõem os mistérios, mas Vós abris a inteligência do que nêles
se esconde.
"Promulgam os mandamentos, mas Vós ajudais a cumpri-los.
224 L. RIBOULET

Mostram o caminho, mas Vós dais a fôrça para o trilhar. Regam a


superfície, Vós dais a fecundidade.
"Claman com palavras, Vós concedeis inteligência para enten­
dê-las." (Versão do Pe. LEONF.L FRANCA S.J. )
Penetrado de tais sentimentos o estudante cristão se ajoelha
antes do trabalho a fim de implorar a luz divina "que alumia todo
homem vindo a êste mundo". Foi costume de todos os sábios cris­
tãos. Ozanam antes de se apresentar à cátedra sempre se ajoelhava
humildemente.
Ollé-Laprune, o eminente filósofo cristão, não agia diferentemente.
Uma série de cadernos Íntimos encontrados após sua morte revelam
que o primeiro pensamento do dia era para Deus. Condensava o
resultado de suas conversas com Deus nesta sentença tirada dos
Livros Sagrados. Ckristianus alter Christus . . . Oportet illum regnare.
Como não seria êle eloqüente ao apresentar-se a um auditório
após haver escrito estas palavras ardentes: "Iluminai-me, ó Pai das
luzes, iluminai o meu entendimento, e penetrai até os refolhos mais
íntimos do meu ser. Conheça-me eu fraco, impotente, miserável,
porém semelhante a Vós pela faculdade de conhecer e de amar, re­
mido pelo sangue de Jesus Cristo, animado de Vosso espírito vivifi­
cador. Conheça-Vos eu, ó meu Deus, tão grande, tão bom, meu
Criador e meu Redentor, meu Santificador, o Santo dos Santos."
Mons. Dupanloup se achava incapaz de qualquer trabalho de
valor caso não recorresse à oração: "É minha grande e humilde re­
solução", escreve, "a de ter um pouco de vida interior, de vida de
oração; quatro horas de oração, duas de manhã, duas de tarde, de
portas fechadas a chave, como numa tôrre, como na Grande Cartuxa;
senão nada farei, sendo infiel a Deus e à Igreja."
Imitai êstes belos exemplos. Cada dia, antes do estudo, pedi ao
Mestre infunda em vossa alma os raios da sapiência eternal e da
verdadeira luz.

Orai durante o trabalho e depois.

Estudai aos pés do crucifixo e quando a verdade foge, dizei-lhe:


"Senhor, não entendo; minha alma está entorpecida; acordai-a do
seu sono; mandai-lhe abundantes luzes." Era a prática de Santo To-
RUMO À CULTURA 225
más. Dirigia-se a Jesus Sacramentado tôda vez que se lhe apresentavam
dificuldades a resolver, ou quando elas se ofereciam ao seu espírito
ao compor suas obras imortais. Depunha freqüentemente o caderno
diante do Santíssimo Sacramento e afirmava o seu confessor, o
beato Reginaldo, que aprendera mais na cela aos pés do crucifixo,
do que em todos os livros que consultara.
O pintor Lippi Dalmasio vivia em união contínua com Deus.
Só pintava Virgens, e somente depois de haver jejuado e rezado.
Há nas Virgens de Lippi algo de supra-sensível, e nenhum artista
moderno, diz Rio, chegaria a reunir num retrato tanta santidade,
modéstia e pureza.
Alberto Dürer estava convencido de que o artista abandonado
à própria inspiração não poderia produzir obra-prima: "Só Deus
conhece êste segrêdo", dizia, "e aquêle a quem o revela." Fra An­
gélico exclamava: "Para pintar Cristo, é mister viver com êle."
O ilustre músico Weber nunca iniciara obra importante sem estar
previamente preparado com uma fervorosa comunhão. No manuscrito
de Oberon, conservado em Leningrado, lêem-se no final de uma parti­
tura estas palavras: "Terminado em Londres, a 7 de abril de 1826 . .
.

Soli Deo Gloria."


Haydn tinha o mesmo costume: tôdas as ·suas composições se
iniciam com a sentença: "ln nomine Domini", ou ainda: "Soli Deo
Gloria", e terminam com esta outra: "Laus Deo." Um compositor foi
visitá-lo e lhe pediu o segrêdo de escrever tanto e com tamanha
originalidade; Haydn lhe respondeu: "Eis! levanto cedo; apenas
vestido, ajoelho e peço a Deus e à Virgem Maria me concedam o
êxito em meus trabalhos; isso feito vou ao piano. Caso nada consiga,
torno a ajoelhar e torno a rezar até que chegue a inspiração."
Overbeck, grande artista católico, fazia do trabalho uma oração
contínua. Após a visita ao seu salão de trabalho, Montalembert es­
crevia: "Overbeck é Perugino redivivo, ou melhor é um composto
do que há de mais delicado em Perugino, Fra Angélico, e êste Lo­
renzo Lotto que foi morrer em Loreto pintando um quadro da Vir­
gem. Ele toma o pincel depois que a oração o aproximou de Deus.
Nunca pintou quadros que não inspirassem santidade, e não quer
pintar outros. Por isso os miseráveis caiadores que temos aqui na
Escola de França dizem, quando êle passa: "Aí vem Jesus Cristo."
226 L. RIBOULET

Como é belo ver êstes homens ilustres dobrarem o joelho di:mte


de Deus pedindo luzes! Como praticam admiràvelmente o que Am­
pere chamava "trabalhar em espírito de oração"! Por isso, quando
o êxito lhes coroava os esforços, sabiam dar a Deus ação de graças.
Era convicção de Haydn que o auxílio sobrenatural lhe conservara
o gênio. E quando, pela última vez, era aclamado, quando a nobreza
da Áustria, reunida na grande sala da Universidade de Viena, lhe
fazia uma entusiástica ovação, após a execução de uma de suas mais
belas produções, Haydn levantou-se, apontou para o céu com o dedo,
e disse compassadamente: "Tudo isto me veio do alto."
Não esqueçais a oração após o trabalho. Lançai um olhar de
amor para a fonte do belo, da verdade e do bem, cuja contemplação
fêz vibrar a vossa alma, e dizei com amor: "Senhor, agradeço-vos.
Meu trabalho começou, continuou e acabou sob vossos olhares; fazei
que me sirva da verdade para minha salvação e a dos outros; que
jamais a utilize para vos desagradar."

Fazei Jiàriamente o exame de consciência.

O exame de consciência vos prestará inúmeros serviços. Tantas


vêzes somos desconhecidos para nós mesmos: somos levados a
nos julgar perfeitos. Se alguma falha emerge, descobrimos logo
mil desculpas e atenuantes. Comparamo-nos aos imperfeitos e nos
comprazemos n a mediocridade.
O exame vos revelará vossos defeitos, más tendências e hábitos;
aperfeiçoará o vosso valor intelectual: desenvolvimento das facul­
dades, aptidões, talentos particulares.
Para que assim seja, traçai, antes de mais nada, um plano de
batalha; sondai bem o que colimais; determinai a marcha que deveis
seguir para alcançar a meta e nada mudeis sem razões ponderosas.
Dividi as dificuldades. Não ataqueis de vez todos os defeitos.
Enfrentai de início o mais nocivo que se chama o defeito dominante.
Foi a tática de David depois que derrotou Golias, todo o exército
dos Filisteus foi tomado de pânico. Franklin queria adquirir treze
virtudes ou qualidades; consagrava uma semana a cada uma delas n o
s e u exame de consciência e recomeçava assim quatro vêzes ao ano.
RUMO À CULTURA 227

A prática do exame particular é mais comum do que muitos


pensam. Inúmeros estudantes o cumprem regularmente e tiram exce­
lentes resultados. Não digais: "É inútil experimentar; a gente não
se transforma; eu sou assim; o caráter não se modifica . . ." São
palavras de covardia e por vêzes de má vontade. Sócrates nascera
com as piores inclinações; à fôrça de dominar-se tornou-se o mais
sábio dos gregos. Sêneca recomendava sondar cada dia o bom em­
prêgo do tempo, e dava o exemplo: "Depois de levarem a luz do
meu quarto", dizia "examino o meu dia; volto aos meus atos e às
minhas palavras. Nada dissimulo nem deixo passar." São Francisco
de Sales era de um temperamento colérico; pelo exame de consciência
e vigilância contínua, veio a ser, aos poucos, o mais manso dos
homens. Garci 'I Moreno fêz largos progressos na perfeição devido
à fidelidade inviolável ao exame de consciência, duas vêzes por dia.
A mãe do músico Massenet, tendo êste dez anos, lhe disse: "Toma
esta agenda, e tôdas as noites, antes de deitar, assentarás o que
fizeste, disseste e viste durante o dia. Se praticaste uma ação ou
disseste uma palavra repreensível, confessá-lo-ás nestas páginas. Com
isso talvez hesites em tornar-te culpado dum ato repreensível du­
rante o dia." E o músico confessa que esta prática produziu um
efeito salutar.
Pedro Poyet aconselhava aos amigos fizessem todos os dias uma
sondagem interior. "Devemos ter a peito", dizia, "enxergar claro em
nós mesmos. Por isso fazer exames de consciência, ainda que penosos.',.
Quanto a êle, volvia à origem de suas faltas. "Falto à paciência",
escreve. "Sou muito apegado às próprias opiniões . . . Não tenho
generosidade, sigo a voz da carne, sou guloso. Isto me oprime às.
vêzes, porém tais aborrecimentos passam, e creio que é preferível
vislumbrar a verdade, ainda quando não seja lisonjeira para mim.''
Experimentai; percebereis que haveis de ter uma idéia mais exata
àe vossas qualidades, defeitos, inclinações e fraquezas, dos obstá­
culos que encontrais no cumprimento dos deveres de estado. Cada
dia entrareis novamente na trilha segura, e segundo a bela compa­
ração de Belécio, imitareis o geômetra que, por meio de vários pontos,.
consegue fixar o centro de origem do raio que leva à circunferência,.
a imagem da bem-aventurada eternidade.
228 L. R1BOULET

Dedicai, cada dia, alguns minutos à meditação das grandes


verdades.

Não vos espante o têrmo meditação. O estudante seno medita


quase todo o dia. Quando refletis, quando coligis as idéias de uma
<:omposição literária ou buscais a solução de um problema, fazeis
meditação; meditai aplicando os sentidos a uma verdade funda­
mental, como sejam: o juízo, o inferno, o paraíso. Medita-se igual­
mente quando se faz uma leitura espiritual demorando-se nos pen­
samentos que mais comovem.
Meditai para vos compenetrar das verdades eternas. Compreen­
dereis melhor a brevidade da vida, a vaidade àa maior parte das
coisas às quais se afeiçoam os humanos, a necessidade de fixar-se
só em Deus. "Tenho saudades da eternidade", dizia o jovem Dupin
no seu Diário íntimo . . ."A única alegria que se deve procurar al­
cança o além das esferas humanas; esta alegria é a eternidade. Mamãe
me dizia, certa vez, que esta idéia, Eternidade, a atormentava.
Quanto a mim, é minha vida."
Meditai para entender melhor. A maior parte dos homens des­
conhecem o seu eu. Nunca baixaram às profundezas do coração.
Meditai para compenetrar-vos de vossas obrigações. Quantos
deveres a desempenhar! Deveres para com Deus, para com o pró­
ximo, para convosco; deveres particulares que resultam de vossa
qualidade de estudantes.
Meditai para pedir a Deus Suas graças e bênçãos, e as recebereis
abundantemente.
Não digais que não tendes tempo. O tempo vos é dado para
preparar a eternidade. Achais tempo para o estudo, para os diverti­
mentos, para os prazeres. Por que o não achareis para fortalecer a
vossa fé?
Para vos animar, recordai que os grandes sábios se ajoelhavam
diante de Deus. Euler orava amiúde pelo dia em fora. Tôdas as
noites congregava a família, os empregados e os alunos que eram
hóspedes. Lia um capítulo da Bíblia e, às vêzes, entremeava a lei­
tura com uma exortação.
Ampere incitava-se a viver em espírito de oração. Escrevia:
"Feliz o homem que calca aos pés a vã sabedoria a fim de possuir a
RUMO À CULTURA 229

de Deus . . . Não pautes a tua vida pela dos demais se quiseres que
esteja conforme à verdade."
Henrique Moreau, professor da Universidade, fazia meia hora
de meditação por dia. Muitas vêzes a esboçava por escrito. De modo
idêntico procedia Pedro Poyet, o apóstolo da Escola Normal. Assim
fizeram tantos outros que procuravam antes de tudo o reino de Deus
e sua justiça. Hoje é elevado o número de professôres da Universidade
e alunos das Escolas Superiores que principiam o dia com uma fer­

vorosa meditação, e guardam o coração abrasado após essa conversa


com Deus.

A borrecei o mal e vivei na amizade de Deus.

Na Carta sôbre os estudos, Santo Tomás de Aquino faz a seguinte


recomendação: "Velai com o máximo empenho pela pureza de vossa
consciência e nada façais que a possa manchar ou tornar-vos menos
agradável aos olhos de Deus." Avaliava com retidão o preço da pu­
reza da alma; é graças a ela que seu olhar penetrou tão fundamente
a ciência divina.
O estado de graça livra a alma do que a perturba e inquieta;
deixa às faculdades a sua plena liberdade, o seu largo esplendor. O
estado de graça é a luz de Deus nas almas, se a possuímos, ela
expulsa as trevas e as sombras; colore, vivifica, anima tudo; é uma
nívea luz. O estado de graça é a fôrça de Deus na alma; com ela o
bem torna-se mais fácil, o coração é como um turíbulo ardente de
onde se expandem perfumes suaves que sobem aos céus para ale­
grar os anjos e os santos. "Compreendo", diz o Pe. Gratry, "o estado
de um corpo puro e santo que chega a penetrar o espírito e a alma
e por êstes entra a graça de Deus; existe um estado luminoso e fluido
para o corpo; existe igualmente para a alma e por meio dêle o ser
interior parece renascer incessantemente das águas da graça e das
chamas do Espírito Santo."
Quando se destrói tal estado, a consciência está inquieta, o es­
pírito descontente e agitado; no coração estrondeiam as tempestades.
As trevas substituíram a luz. Como entregar-se assim ao estudo?
"Quando a alma morreu", diz ainda o Pe. Gratry, "só se experimenta
miséria, inanidade, tortura e desespêro . . . Quando a alma resvala,
230 L. R rnoULET

perde sucessivamente o sentido da realidade, de sua fôrça, de sua


substancialidade, de sua simplicidade, de sua unidade, de sua liber­
dade e de sua imortalidade. Recobra novamente tudo ao elevar-se."
Não a deixeis nunca resvalar; e se, por surprêsa, vos acontecer
tal desgraça, recorrei ao sacramento da Penitência, "tribunal es­
tranho'', diz Dumesnil, "em que o acusado se revela, e cuja finali­
dade é sempre a absolvição". Ali achareis a luz e a fortaleza. "Quando
a alma largou o fardo de suas faltas aos pés de Deus'', diz Eugênia
de Guérin, "parece que possui asas. Que alívio, que luz, que fôrça
acho em mim depois de dizer: mea culpa!"

A proximai-vos freqüentemente da Satrada Mesa.

Os sacramentos são focos divinos onde se retemperam tôdas as


energias, onde se acalentam todos os santos entusiasmos. A Euca­
ristia é, por excelência, o arsenal da fôrça moral, dos sacrifícios
heróicos, dos devotamentos mais absolutos às causas nobres. Santo To­
más de Aquino considerava a Comunhão como o mais divino dos
atos de piedade, o mais excelente, o mais adequado para encher a
alma de bênçãos celestes. Seu olhar interior se abria na fração do
pão e solucionava, voltando do santo altar, o que ainda não com­
preendera pelos estudos. É na Eucaristia que hauriu êsses tesouros
de sabedoria que, desde a Idade Média, fizeram a admiração dos
teólogos.
O Pe. Gratry atribui à Primeira Comunhão o desabrochar inte­
lectual que lhe adveio pouco depois. "Eu acabava'', diz êle, "de
começar o estudo do latim. Não esquecerei nunca que certa noite,
num só instante, surgiu em mim o sentido do gênio do latim . . .
Sem dúvida, não creio que a Comunhão dê faculdades inexistentes.
Porém seus efeitos intelectuais são imensos. Movimenta as facul­
dades que se possui, as abençoa, as desenvolve e vivifica. Orienta-as
e as dirige para seu verdadeiro pólo, dando-lhes movimentos celestes
mais extensos, mais úteis, mais duradouros."
O religioso que orientava a alma de Pasteur dizia de uma feita:
"Pasteur não é cristão pela metade, é piedoso; não comunga uma
vez ao ano; porém muitas vêzes."
José Lotte, o amigo de Péguy, tombado gloriosamente em de­
zembro de 1 914, buscava na comunhão diária o alimento de sua
RUMO À CULTURA 23 1

fé e a fôrça de praticar o bem. Foi a comunhão que lhe inspirou a


idéia de criar um Boletim dos professôres católicos da Universidade;
era depois "de uma comunhão fervorosa que escrevia seus brilhantes
artigos. Em suas notas íntimas se revela a alma de apóstolo: "Cada
um de nós está num pôsto de guerra. A magna questão consiste em
saber como se alcançará o triunfo de Deus." A comunhão conserva
nêle a chama do apostolado: "Agrupamo-nos", escreve, "a fim de
criar entre nós um laço de amizade, uma ajuda mútua de fé e de
orações. Queremos que esta comunidade de vida espiritual dê à
nossa fé uma irradiação mais viva, e faça frutificar em nossas almas
a influência de nosso caráter e de nossa dedicação."
Pedro Poyet, o modêlo dos estudantes, comungava diàriamente.
Cristo recebido na aurora do dia n ão o abandonava mais. Pensava,
falava, escrevia, agia de acôrdo com Jesus. Escrevia a um amigo:
"Não esqueças que Cristo nos deixou seu Corpo divino como ali­
mento. Qual a significação do fato? Que é mister visitá-10 e rece­
bê-10 quando nos sentimos fracos, para que sejamos fortes; quando
pusilânimes, para que sejamos valentes; quando distraídos, para
que sejamos atentos e vigilantes."

Tende uma filial devoção a Nossa Senhora.

Não vos admireis se disser que muitos estudantes adotam a


sublime divisa: Tudo a Jesus por Maria; tudo a Maria para Jesus!
Pedro Poyet, que cito freqüentemente, escrevia a um amigo: "Ore­
mos juntos ao divino Mestre para que nos conduza ao Pai e oremos
a Maria a fim de sermos fiéis ao Filho de Deus, que é o seu Filho
e nosso Irmão."
Invocai Maria todos os dias. Lembrai-vos dEla quando se apre­
senta uma dificuldade. E nessa altura estais em boa companhia. Haydn
e Mozart rezavam o têrço ao falhar a inspiração. Gluck guardou
preciosamente o têrço que um religioso lhe havia dado; rezava-o
piedosamente e o chamava seu breviário de músico.
Weber, nomeado diretor da capela católica de Praga, inaugurou
suas funções entoando as Ladainhas de N aumann.
César Franck, em Santa Clotilde, improvisava cada domingo os
versículos pares do llfagnificat. :E'.ste Magnificat era um sorriso per­
pétuo, um sorriso amplamente desabrochado, um sorriso repleto de
232 L. RrnoULET

confiança e isento de dúvida. O Con. Gardey, coadjutor da paróquia,


numa visita ao gênio moribundo, evocava êstes improvisos do do­
mingo, quando o artista, voltando para êle a cabeça emagrecida que
um sulco de alegrias de outrora ainda iluminava, lhe respondeu:
"Ah! êste Magnificat, amei-o tanto! Quanto versículo improvisado
sôbre o texto! . . . transcrevi um certo número, venho de dar uns
sessenta e três ao meu editor; porém quero chegar a cem. Continuarei
quando estiver curado, ou então", concluiu, "Deus permitirá que os
componha na eternidade."
A devoção de Péguy à Virgem foi comovente. Assim pormenoriza
êle ao amigo Lotte, a peregrinação a Nossa Senhora de Chartres:
"Pedrinho caiu doente. Então, meu velho, senti que era coisa grave.
Fiz um voto; fui em peregrinação até Chartres. Andei 144 quilô­
metros a pé em três dias. Enxerga-se a tôrre de Chartres a 17 qui­
lômetros de distância. Logo que a vi, caí num êxtase. Nada mais
percebia, nem a fadiga, nem os pés. Rezei uma hora na catedral,
sábado à noite. Rezei uma hora no domingo de manhã . . . Meu
pirralho está salvo; confiei meus três filhos a Nossa Senhora para que
os ampare."
As palavras de sua última conversa com Lotte ressumbram sua
confiança em Maria. Diz-lhe: "Fui em peregrinação a Chartres; todos
os anos voltarei . . . As orações que faço a Maria, são orações de
reserva. Não há uma só na liturgia, nem uma só, repito, nem uma
só que não possa ser rezada pelo mais lamentável pecador. No me­
canismo da salvação a Ave-Maria é o último recurso. Com êle, nin­
guém se condena."
A Virgem o inspira magnificamente. Num poema que é uma
obra-prima ( PÉGUY, Présentation de la Beauce à N-D. de Ckartres)
êle apresenta à Nossa Senhora de Chartres o país de Beauce:

Étoile de la mer, vaiei la lourde nappe


Et la profonde koule et l'océan des blés,
Et la mouvante écume et nos greniers comblés;
Voici votre regard sur cette immense plaine . . •
RUMO À CULTURA 233

Quand on nous aura mis dans une étroite fosse,


Quand on aura sur nous dit l'absoute et la messe,
Veuillez nous rappeler, R eine de la promesse,
Le long cheminement que nous faisons en Beauce.

Nous ne demandons rien, refuge du pécheur,


Que la derniere place en votre purgatoire,
Pour pleurer longuement notre tragique histoire,
Et contempler de loin votre jeune splendeur.

Não são êstes os cantares de um Villon cristão?

Era também admirável a devoção que o Bem-aventurado Marce­


lino Champagnat professava para com a Mãe de Deus. Costumava
repetir a seus discípulos, em harmonia sempre com a Tradição e a
Doutrina da Igreja e dos Santos Padres: "Se tiverdes a felicidade
de fazer com que a devoção a Maria penetre no coração de vossos
alunos - êles estarão salvos."
tle próprio, devotíssimo à Virgem Mãe de Deus, deveu a esta
excelsa Rainha não só a sublimação de sua vida e de seu apostolado,
mas também a realização de tôdas as suas emprêsas. Costumava
chamar a Virgem seu RECURSO ÜRDINÁRIO. E a Congregação por
êle fundada denominou-a Irmãos de Maria, ou Maristas. A êstes.
seus religiosos dizia em suas conferências sabatinas: "Não nos arre­
ceemos de recorrer muitas vêzes a Maria; com efeito, é sem limites
seu poder, sua bondade e seu tesouro de graças são inexauríveis.
Ademais, Ela está encarregada de nós, pois é nossa MÃE, nossa
Padroeira e nossa primeira Superiora, e nós confiamos nela."
Arquitetou todo o seu sistema educativo sôbre o espírito mariano.
A educação é sempre obra do amor, e quem terá mais amor que a
MÃE ? Práticas educativas maristas, tôdas elas estão impregnadas
de suave marianismo: a recitação do têrço do Rosário no início das
aulas, a celebração do mês de maio, o catecismo do sábado, a pre­
paração das festas de Nossa Senhora . . O Marista, numa palavra,
.

vai formando o coração da infância e da juventude no modêlo usado


por Nossa Senhora na formação e educação de Jesus Menino e de.
Jesus Adolescente.
234 L. R rnouLET

A divisa de Champagnat e dos Maristas permanece um lema e


um programa: Tuno A jEsus POR MARIA; TUDO A MARIA PARA ]Esus.

Vivei humildes e modestos.

São Bernardo, falando das finalidades do estudo, reprova a con­


duta dos estudantes que buscam a ciência com o fim de dar-se a
conhecer e de passar por sábios. Há neste fato uma baixa vaidade,
.diz êle. Não vos mova motivo tão pouco confessável.
Os jovens são levados a considerar os seus pequenos dotes como
uma tôrre inacessível e a observar com desdém e arrogância tudo
o que lhes anda em derredor. "Não se notou amiúde", diz o Pe.
Gratry, "o que acontece quase inevitàvelmente ao moço, na hora
em que alcança a madureza de espírito? Um imenso orgulho se de­
clara . . . O horizonte se ilumina para o novo sábio, e, sendo êle
-0 centro, descreve a temível forma esférica; êle enxerga a aparência

decepcionante de uma esfera precisamente igual ao alcance do seu


olhar . . . Neste momento, levanta-se para êle o sol interior; o sol
da inteligência surge no espírito. Como é realmente grandioso tal
espetáculo, parece impossível que uma alegria sobranceira e um or­
gulho desmedido não assaltem a alma quando se diz a si mesma:
Esta luz deslumbrante, sou eu!"
Tais pretensões são desastrosas; só se tem confiança nas próprias
luzes, não dando nenhum valor às idéias dos outros. O moço se
torna independente, crítico, zombeteiro, esnobe. A idade não logra
corrigir completamente êste defeito, e os moços que o trazem, per­
manecem, quase todos, espíritos mesquinhos "que enxergam claro
em suas idéias e nada vêem nas dos outros; espíritos de horizonte
restrito, espíritos tenebrosos que vêem de perto o que é obscuro e
.de longe não vêem o que é luminoso".
O orgulho e a tolice andam igualmente de mãos dadas. O orgu­
lhoso tem sêde de louvores, o que o torna desajeitado; estampa o seu
eu em tôda a parte e quer ter a conclusão de tôda e qualquer

discussão. Falará do que ignora com a firmeza de um entendido.


Querendo dizer coisas notáveis, afirmará coisas extravagantes. Se
propuser um parecer é com a condição de que será aceito sem dis-
Rul\10 À CuLTURA 235

cussão. Se a gente se subtrai por prudência, se se bate em retirada


por polidez, êle triunfa, aplaudindo mais uma vitória.
A modéstia é o caráter inseparável do verdadeiro saber, da mesma
maneira que a suficiência e a pretensão formam o cunho especial
da ignorância e da meia-ciência. Os verdadeiros sábios são modestos
porque sabem que ignoram muitas coisas; os tolos são orgulhosos
e arrogantes porque julgam saber tudo. A modéstia cresce no homem
de talento na medida da fama e das honras. Gounod exclamava
certa vez: "Eu dizia antigamente: Eu só; mais tarde disse: Eu e
Mozart; depois disse: Mozart e eu; hoje digo: Mozart."
Alberto Magno se considerava como o último de seus irmãos,
almejando ser desprezado.
Santo Tomás de Aquino, em Colônia, passou muito tempo por um
espírito lento em compreender. Uma circunstância fortuita revelou
inopinadamente a profundeza do seu gênio e a extensão do seu saber.
Um moço encolerizado lhe disse de uma feita: "Irmão Tomás, sois
na verdade menos sábio do que muitos julgam. - Tendes razão,
meu filho, respondeu o santo, e é para desenganar o mundo desta
falsa opinião a meu respeito que estudo sem tréguas."
Alguns dias antes da morte, exclamava: "Graças a Deus, nunca
minha ciência, meu título de doutor, nem nenhuma vitória escolás­
tica fêz nascer em mim a mais leve impressão de glória vã, capaz de
destronar em minha alma a virtude da humildade."
Newton, após imortais descobertas, dizia: "Não sei o que o mun­
do vai pensar de mim; quanto a mim, assemelho-me ao menino
que brinca na praia e se diverte coligindo, de onde em onde, uma
conchinha mais rara, enquanto que o grande oceano da verdade se
estende majestoso e insondável diante dêle."
O ilustre beneditino Mabillon foi um lídimo modêlo de humildade.
E no entanto, se jamais um sábio teve tentações de vaidade, foi êle.
Os bispos, os príncipes, os cardeais são seus amigos. Luís XIV quer
vê-lo e lhe paga as viagens com o tesouro real; os papas o tratam
com estima. Suas viagens científicas na Lorena, na Alemanha, na
Itália são verdadeiras marchas triunfais. Os embaixadores lhe man­
dam carruagens, os sábios saúdam nêle um mestre, os cardeais da
Congregação do índex lhe pedem respeitosamente seu parecer. No
236 L. RIBOULET

meio de tantos testemunhos de consideração, continua a ser o mais


humilde religioso; quer ser tratado como o último dos irmãos; à
mesa, na sala do capítulo, no côro, nada deve distingui-lo dos demais.
Conserva até o fim uma pobre cela.
Quando Luís XIV o denominara o mais sábio do seu reino, Bos­
suet acrescentara: "E o mais humilde." Sua humildade tinha raízes
profundas no temor de Deus. Escrevera esta belíssima oração: "Se
os anjos, que nunca prevaricaram, tremem na vossa presença, Senhor,
que sentimentos devem ser os meus, eu que tanto vos ofendi ! "
Que lições para nós, caros amigos. Que temos q u e o n ã o tenhamos
recebido de Deus? O menor sôpro pode empalidecer nossas facul­
dades, apagar êste facho que julgamos luminoso e que, no entanto,
tem claridades amortecidas com sombras grosseiras e que se asse­
melha à luz intermitente e fugidia dos insetos que percebemos duran·
te as lindas noites de verão.

Praticai a mortificação a fim de conservar como um tesouro


precioso a pureza do coração.

A ciência humana, disseram, só é acessível aos homens mortifi­


cados. A luta, eis para vós o dever atual. Se fordes enérgicos, tereis
êxito, sereis felizes! Se fordes pusilânimes, nada espereis a n ão ser
êxitos efêmeros ou derrotas. Tendo Hércules alcançado a idade crí­
tica, apresentaram-se-lhes duas donzelas que lhe queriam granjear
as simpatias. A primeira, bela e sedutora, lhe propôs o prazer. A
segunda, enérgica, o convidou à austeridade, ao trabalho, aos com­
bates; após uma vida de sofrimentos, augurava-lhe a glória. Hércules,
narra a fábula, desdenhou as seduções da primeira e seguiu a segun­
da. Assim, eni vez de um vulgar sibarita, perdido no ócio e nos
prazeres vis, tornou-se o herói nacional da Grécia.
Até hoje, cumpristes talvez vossos deveres de estudante de ma­
neira quase inconsciente. Porém, na vossa idade, é a liberdade, é a
vontade que decide. E a vontade é livre e forte na medida do des­
prendimento dos prazeres grosseiros pela prática da mortificação. A
mortificação é o abecê da vida intelectual e da vida sobrenatural.
Ela nos mantém no pleno domínio de nós mesmos e de nossas fa­
culdades. Felizes os puros de coração porque verão a Deus! Já o
RUMO À CULTURA 237

contemplam. Grandes mistérios s ã o revelados aos meninos porque


são puros. Santo Agostinho, com todo o seu gênio, não conseguiu
captar a verdade, enquanto não se prontificou a purificar o coração.
Recordemos os dizeres de Platão: Ser pu.ro e depois morrer! É
isto mesmo. Ser abnegado, sujeitar-se a uma tarefa árdua, crucifi­
car-se ao cálamo sendo escritor, a um estudo ingrato mas necessário,
eis o segrêdo do sucesso e a marca das almas nobres.
Aos alunos da Escola Normal, o Pe. Gratry mostrava, de um
modo singelo e elevado, as relações íntimas da pureza da alma com
a fecundidade intelectual. Heinrich, antigo normalista, assim resume
êste ensino no seu belo livro sôbre a Perseverança: "Ele nos paten­
teava que uma lucidez extraordinária de concepção procedia da paz
da consciência e da retidão do juízo. Não medeia grande espaço
entre o equilíbrio de nossos sentimentos e a harmonia de nossas
idéias. Pelo contrário, o tédio e o marasmo que é seu fruto imediato
são para a inteligência causa de perturbação e de languidez. Quantos
moços, portadores de opulentas esperanças, fenecem intelectualmente
quando entram no limiar da adolescência, unicamente porque, des­
truído o equilíbrio normal do coração, o espírito recebe funestos
golpes! . . .
Lutai, pois, com energia contra as inclinações perversas da vossa
natureza. Não se deixe vossa inteligência invadir por maus pensa­
mentos; não tenha vosso coração senão desejos nobres, não pronuncie
vossa bôca palavras indecorosas que não são aprovadas em boa
sociedade!
O pintor Corot aborrecia os têrmos chulos, as frases ambíguas,
as conversas escabrosas. Estava convencido de que a sujeição ao
animal que em nós reside, atrofia a inteligência, e que um homem
dissoluto pode, às vêzes, ser pintor porém nunca artista.
Dionísio Cochin escrevia ao pai em setembro de 1 871 : "Julgo-me
feliz porque me ensinastes a crença em Deus, pois no mais, rastejo
horrivelmente; e sem a tábua de salvação que a religião estende,
afogar-me-ia numa loucura e bestialidade insondáveis."
O pai, Agostinho Cochin, respondeu: "Atravessei horas agitadas
e melancólicas; somente as almas nobres conhecem tais horas, porém
enobrecem-se depois de as vencer. Sim, aos vinte anos, ofegamos
238 L. RrnoULET

por nos expandir pela palavra, pela ciência, pela eloqüência e pelo
amor. Porém, metade dêsses desejos vêm do céu, metade da terra;
temos asas e patas, uma fronte erguida, e um ventre rastejante,
pensamentos sublimes e sentidos grosseiros. É cada vez mais neces­
sário libertar a alma e reduzir o corpo a uma doce servidão: a do
trabalho e da pureza."
Nada mais prejudicial, com efeito, do que o gôzo. Todo e qualquer
prazer descomedido, e tendente a lisonjear os sentidos exerce in­
fluência funesta. O sensualismo afoga o espírito e o torna incapaz de
vôo seguro. É o meio que usou Nabucodonosor para que os jovens
hebreus que êle afeiçoava perdessem o gôsto das letras e das artes.
Ordenou ao chefe dos eunucos servir-lhes cada dia viandas e vinhos
da mesa re:tl, durante três anos. Eis o ideal proposto a êstes moços:
come, bebe, engorda! Ainda bem que não observaram o conselho;
viveram de legumes e de água conservando no entanto boa aparência
e entusiasmo juvenil.
As mais meritórias mortificações na vossa idade são as do coração,
da imaginação, da memória, da língua e dos olhos. Quantas ocasiões
tereis de as praticar diàriamente se quiserdes ser alguém!
É pelo sacrifício que o homem se renuncia e conquista Deus.
"Renunciar-se ou não", diz o Pe. Gratry, "nisto está o ponto central,
a história, o drama da vida moral." f: igualmente a lei do progresso
eterno. Malebranche nos mostra em página admirável a necessidade
de morrermos para nós mesmos a fim de gozarmos as verdades
divinas:
"É mister morrer para ver Deus e chegar à umao com êle,
pois ninguém pode viver e contemplá-lo a um tempo, diz a Sagrada
Escritura. Só se morre verdadeiramente, porém, n a medida em que
se mortifica o corpo, se domam os sentidos, a imaginação e as pai­
xões. A sabedoria eterna está oculta aos olhos de todos os vivos, os
que porém morreram ao mundo e a si mesmos, os que crucificaram
a carne com seus desejos enganadores, os que se crucificaram com
Cristo, e para os quais o mundo está crucificado, em suma, os que
têm o coração puro, e cuja imaginação não está maculada, estão
em estado de contemplar a verdade."
TRADUÇÃO DOS TEXTOS EM FRANCtS
TRADUÇÃO DOS TEXTOS EM FRANC!S

pág. 5 - Duas árvores cobririam bem tódas as minhas terras,


mas nem todo o céu azul encheria meu coração .

• • •

Ok! Maravilhoso ardor de uma alma jovem! Ela pode


ir de vereda em vereda. Nada satisfará a sêde que a
atormenta, pois, para essa sêde sublime, é necessário o
céu inteiro.

pág. 6 - Bate em teu peito, é aí que está o gênio!

• • •

Onde um coração já não vibra, o vigor enfraquece,· o


espírito saltita ainda, o gênio não tem asas; em lugar
de relâmpagos, o raio emite centelhas. Enfim, nada de
sublime, quando o coração se apequena.

pág. 10 - Não, o porvir não é de ninguém; Sire, o porvir é Deus!


O porvir! o porvir! Mistério!

pág. 12 - Sim, progride no ideal; ergue os olhos e sobe. O esfôrço


sem sucesso jamais envergonha. O céu que se não atinge
não oferece nada de mais puro. À noite, procura em
teu sonho, raios de luz entre as folhagens; de dia, os
cumes brancos, o sol e o azul dos céus.
242 L. RrnoULET

Coloca asas em teus pensamentos, em tuas pa/,avras.


Vai, jovem peregrino de glórias eternais, e, levando como
estandarte um pedaço do céu azul,, acima de nossa
sombra, acima de ti mesmo, sobe, como um rei, ao de­
grau supremo onde poderás contemplar a Deus.

• • •

Mais alto, sempre mais a/,to! em direção a essas tran­


qüilas alturas onde nossos desejos não sofrem mais
mutações; onde os ruídos da terra, onde os cantos das
sereias, onde as dúvidas escarnecedoras não mais nos
alcançarão.

Mais alto no desprêzo dos falsos bens que se adoram;


mais alto nesse combate em que o céu está em jôgo.
Mais alto em vossos amôres! Subi, subi ainda, nessa
escada de ouro que se vai perder em Deus!

pág. 15 - . . . Colégio, pensão, mundo em miniatura, onde se


aprende a viver, e onde, sem mágoas, escolares têm entre
si intensos embates.

pág. 16 - Especialmente uma coisa me espanta, 6 Jesus: o eco


da tua voz que se vai enfraquecendo.

• • •

Plasmas o homem, 6 dor, sim, o homem inteiro, como


o cadinho o ouro, e a chama o aço; como o grés ene­
grecido, ao retalhar o ferro com os fragmentos que
arranca, faz um fio de espada. Quem não te conhece
nada sabe dêste mundo.

pág. 24 - Ó mestre, tu o afirmaste; nas cavernas escuras, escravos


aco"entados, que vemos? . . . sombras. E a realidade
resplandece além. E desde que ouviu tua voz meu cé11
se encheu de estrêlas.
RUMO À CULTURA 243

Além das claridades da Atica e da ]ônia, creio, amo,.


quero a luz infinita; do verdadeiro, do belo, do bem, não
vi mais que fragmento, mas existo para ver o verda­
deiro, o bem, o belo.

pág. 53 - Quando vos comunico meu poema, meu coração não o


reconhece mais; o melhor permanece em mim mesmo
e meus verdadeiros versos não serão lidos.

pág. 57 - Nosso dia está repleto de estéreis cuidados; sua vora­


cidade, sem compaixão, nos persegue até perder o fôlego,
nos ataca, atormenta, e o tempo útil nos foge.

pág. 58 - Amanhã! eu te direi, minh'alma, onde te levarei. Ama­


nhã, não hoje, serei justo e forte.

pág. 61 - O tempo que o destino me deu, êste pouco tempo é


todo o meu haver; não abuso do tempo de outrem, e

quero que respeitem o meu.

pág. 78 - A verdade suscita na mais humilde fronte que seu amor


visita, uma calma audácia à prova de tudo. Imutável,
inspira a seus amantes a fôrça, e quando de seus belos
olhos se experimenta a atração, faminto de esperança,
vive-se e morre-se sobranceiro.

pág. 81 - Se é de noite, sacudi-vos tateando contra as sombras;


gritai com destemor quando existe o mal: "É o mal!"
Sejais pela beleza contra o número. Tornai a chamar
sôbre a praia sombria a onda sonora do ideal.

Tende alma; tende uma alma; é preciso. Jovens tristo­


nhos com rugas de velho, ficam, depois de uma malícia
vergonhosa, apercebidos de que não ter alma é terrivel­
mente fastidioso.
244 L. RrnouLET

O pendão! e porque êle não existirttJ mais? a fronte


baixa, algumas vêzes duvidamos, inquietamo-nos, mas
não se tem mais que levantar a cabeça, e sente-se que
êle impele para cima!

Uma brisa de orgulho o levanta e rodeia. Prolonga em


estremecimentos cada movimento do coração. Nós 0
possuímos logo que nos enamoramos de um alvo sublime.
Porque êle se une à coragem como a juventude à sua flor.

pág. 109 - Em mundos diversos inceuantemente e"ante, entre o


bruto e o homem, entre o homem e a planta, e a terra
e o céu, e o espírito e o corpo, ela (a imaginação) pro­
cura e apreender harmoniosas uniões.

pág. 110 - Sabei, é o coração que fala e suspira, quando a mão


escreve, é o coração que se derrama; é o coração que se
expande, se descobre e respira como um alegre peregrino
sôbre o cume de um monte.

pág. 137 - Cheio dêues cantos vergonhosos, tédio da memória, um


velho livro se encontra nesse velho armário, esquecido
por algum vil transeunte nessa sombra. Romance do úl­
timo século, obra de ignomínia . . . Toma cuidado, criança,
coração tenro que ainda não sofreu! Voltaire, a serpente,
a dúvida, a ironia, Voltaire está num canto de teu
quarto bendito . . . Oh! treme! êste sofista bem remexeu
os lamaçais! Oh! treme! êste falso sábio desencaminhou
muitos anjos! Alerta! se tua casta mão abrir êste livro
infame sentirás depressa Deus mo"er em tua alma;
não dormirás mais, não cantarás mai.r, e teu espírito,
tombado no oceano dos sonhos, irá, arrancado como
erva dos areais, do prazer ao opróbrio, e da certeza à
insegurança.

pág. 138 - O coração do homem puro é uma ânfora profunda: quan­


do a primeira água que nêle se derrama é impura, o
RUMO À CULTURA 245

oceano passará sem lavar a mancka, porque o abismo


é enorme e a nódoa está no fundo.

pág. 153 - Os que vivem, são os que lutam; são aquéles em que
um firme ideal encke a alma e a fronte, aquéles que de
um elevado destino sobem penosamente o áspero cume.

pág. 157 - Não ká mais mocidade, não ká mais pudor; e ainda ká


quem se acredite sábio e quem se diga pensador!

pág. 182 - Não podes tratar um espírito enférmo, arrancar da


mem6ria uma dor en.raizada, apagar as mágoas grava­
das no cérebro, e, graças a um doce antídoto de olvido,
livrar o peito intumescido de matérias perigosas que
pesam sôbre o coração?

pág. 201 - Bendito seja o semeador cuja mão kabilidosa soube lan­
çar ao vento, ao sabor da ocasião, os bons grãos sele­
cionados já das venenosas sementes! Bendito sejas, meu
pai, 6 terno amigo perdido!

Sim, teus presentes para sempre me alegraram. Esses


livros germinando em minka alma sem cultivo, a seiva
foi tão poderosa e a messe tão rica, que eu colko ainda,
e é o meu melkor trigo.

Ak! os queridos livros! qualquer coisa que eu sonke,


' que eu ouse, jamais éles me dizem que isso é temerário.
Tudo o que tenko de bom, de nobre, déles kerdei, e
tudo o que valko, se alguma coisa valko.

pág. 217 - Que sempre minka lira recorde as primeiras promessas


de meu coração, e que para onde Deus me ckame, eu
diga: eis-me aqui, Senkor! Direi, sabendo submeter-me
ao poder da morte, eu não esqueci o Mestre, o Mestre
não me esquecerá.
246 L. RrnouLET

pág. 232 - Estréla do mar, eis a pesada rêde, a profunda vaga e


o oceano dos trigais, a espuma flutuante e nossos celeiros
repletos; lançai vosso olkar sôbre esta imensa planície.

Quando formos colocados numa estreita vala, quando


já nos tiver sido dada a absolvição e rezada por n6s a
missa, lembra-nos, Rainha da Promessa, a longa pere­
grinação que fizemos em Beauce.

Nada pedimos, refúgio do pecador, a não ser o último


lugar em vosso purgatório, para muito chorar nossa
triste vida e contemplar de longe o vosso juvenil es­
plendor.
OBRAS CONSULTADAS

ALBALAT: La formation du .rt'Yle par CHOCARNE, R . P.: Le P. Lacordaire,


l'auimilation de.r auteur.r; Comment 2 vols. De Gigord.
il faut lire ler auteurr cla.r1ique1; Clas.rical inve.rtigation, The: Universi­
Comment on devient écrivain. Plon. dade de Princeton, Estados Unidos,
AusERT: Méthode pédagogique appli­ 1924.
cable à la phüorophie. Beauchesne. Contemporain.r, Le.r (biographie.r) . Bon­
AMADO, R. P.: La Educaci6n intelec­ ne Presse.
tual; La Educación moral (Barcelo­
na) ; Le Secret du 1ucce1, trad. Ger­ DELAPORTE, R. P . : A traver.r le.r âge.r,
beau. De Gigord. Le.r Classiquer paien.r et chrétien.r.
AMIEL: ]ournal intime. Téqui.
DusRUEL, R. P.: L'école -unique,· Le
BAIN: La Science de l'lducation. Alcan. regne de.r pédagogues.
BAUDIN: Prychologie; Qu'ert-ce que la DuPANLOUP, Mgr.: L'ld-ucation; La
phüorophie? De Gigord. Haute lducation; ]ournal intime.
BAUDRILLART, Mgr. A.: Mgr. d'Hul.rt, DuPIN: ]ournal. Brassart, Montbrison.
2 vols. De Gigord.
BAUNARD: Le College chrétien, 2 vols., EMERBON: Representative men, trad.
Le cardinal Pie, 2 vols. De Gigord. lzoulet.
BAZIN, René: Page.r religieure.r. Mame. EYMIEU, R. P. : Le gouvernement de
BÉNARD: De la Philosophie danr l'éd11,­ 10i-même. 1. Perrin.
cation cla.r.rique. Ladrauge.
BLANC, Mgr.: Traité de phüo.rophie .rco­ FAGUET: L'art de lire. Hachette.
la.rtique, 3 vols. Vitte. FAURE-GOYAU, L. F. : Chose.r d'âme.
BLONDEL, M.: Ollé-Laprune. Bloud et Perrin.
Gay. F1LLION: Le.r Lecture.r; Le bon emploi
BoRDEAUX, Henri: Préface de la Peur du temps. De Gigord.
de vivre. De Boccard. Fou1LLÉE: La Réforme de l'enseigne-
BauNETIERE: Bo.rsuet. Hachette. ment par la phüo.rophie.
Bulletin des professeur.r catholique.r de FosTEa: Deci.rion of Character.
l'Univer.rité. FRANKLIN: Autobiograph'Y.
FRARY: La question du latin. Cerf.
CASTEGENs: Les Horizon.r intellectuel.r, FaÉDAULT: Le.r Passion.r. Bailliere.
2 vols. Bellet, Clermont-Ferrand.
CHAMP, Mme. De : Michel-Eugene. GÂCHE: Collégien.r et famille.r. Privat
Editions Spes. et Didier.
248 L. RrnoULET

GAULTIER: L'ldéal moderne. Hachette. MAISTRE, Joseph de: Soirées de Saint­


GAY, Mgr.: Lettres. Mame. Pétersbou.rg; Lettres choisies.
G1LLET, R. P. : La Peur de l'effort in­ MALAPERT: Les éléments du caractere
tellectuel. Lethielleux. et leurs lois de combinaison. Alcan.
GoDINEAU: Perle; et joyaux; Quelque; MATTHEWS : Getting on in the world;
pensées pou.r les jeunes gens. Gautier. Conquering success. Nova York.
GRATRY : Les Sources; La Connaissance MAUROIS : Dialogue; sur le commande­
de l'âme. Téqui. ment.
MoNFAT: Les urais príncipes de l'édu­
HEINRicH : Le livre de la perséuérance. cation, 4 vols. Téqui.
Mame. MoNTALEMBERT: Lettres à un ami de
HELLo: l'Homme. Perrin. col!ege; Les Moinei d'Occident.
HÉMON: Prychologie pédagogique. De­ MoNTHEUIS: La falou.sie. Gabalda.
laplane. MoussARD: Le prêtre et la uie á'étude.
HocAN: Les études du clergé. Lethiel­ Téqui.
leux. MuN, A. de : Ma uocation sociale. Le­
Hurr : Ozanam. Vitte. thielleux.

]ANVIER, R. P. : Carême de 1?24. 3 .ª NoBLE: R. P.: ldéal et ieunesse d'âme.


conferência. Lethielleux.
JouBERT: Pensées. Perrin.
ÜLLÉ-LAPRUNE: Le prix de la uie; La
LA BRUYEaE: Les Caracteres. Vitalité chrétienne; Lei Sou.rces de
LACORDAIRE: Lettres à des ieunes gens; la paix intellectuelle. Belin.
Pensées choisies. De Gigord. ÜZANAM: Discou.rs sur la puissance du
LAISANT: L'éducation par la science. trauail.
Alcan. ÜZANAM: Mgr.: Vie de Frédéric Or.a­
LAVALLÉE, Mgr.: So!itu.de et Union à nam.
Dieu. Vitte.
LAVEDAN : M01I filleul. PASCAL: De re1prit géométrique.
LECANUET: Montalembert. De Gigord. PAYOT : L'tducation de la volonté; Le
LEcoY DE LA MARCHE: Le treizieme Travai/. intellectuel; L'Apprentissage
siecle artistique et littéraire. Desclée. de l'art á'écrire. Alcan.
LE GoFF1c: Me1 entretiens avec Foch. PERREYVE: Pensü1 choisies; Préface des
Spes. "Lettres à des feunes gens" de La­
LÉMANN, abbé: Panégyrique des B. cordaire.
Chanel et Perboyre. POINCARÉ, Henri : la ualeur de la
LHANDE: Le R. P. Longhaye. Science. Flammarion.
LITTRÉ: Com.me11t j'ai fait mon dic­ PaÉvosT, Marcel: L'art d'apprendre.
tionnaire. Delagrave.
LoNGHAYE: Théorie dei belles-lettres. QuEYRAT: La Curiosité. Alcan.
Téqui.
LoRIDAN : Les Sauants. Mame. RoosEVELT: La Vie intense, trad.
lzoulet.
MAILLET: Prychologie appliquée à l'é­ RouoEs: Pou.r faire son chemin dans
ducation. Belin. la uie.
R UMO À CULTURA 249

RoussE, Edmond: lettres publiées· par TERMIER: la ioie de connattre; la Vo­


le Correspondant. cation du savant. Desclée.
Rouz1c: la iournée sanctifiée; Essai sur T1ss1n, Mgr.: la parole de l'Evangi­
l'amitié; Pierre Puyet; Pour être un le au College; les Grands iours du
caractere, etc. college. Téqui.
THIERRY, Augustin: Dix ans d'études
SAINT-QUAY : Vivre ov se laisser vivre. historiques, préface.
Téqui. THAllA U D: Mes années chez Barres.
ToDD: Student's Manual. Boston.
SAIVET, Mgr.: le colonel Paqueron.
Desclée.
VAISSIERE, R. P. de la : Psychologie pé­
ScHWALM, R. P. : Au:1: sovrces de l'ac-
dagogique. Beauchesne.
tivité intégrale. Lethielleux.
VALLERY-RADOT : la vie de Pasteur.
SÉNEQUE: lettres à lvcilius. Flammarion.
SERTILLANGES : la vie intellectuelle. VEREST, R. P.: Manuel de littérature.
SMILES: Self Help; Character; Duty; Bruxelas.
life and labor. Nova York. VEUILLOT: Rome et lorette: Sur la

SPALDING, Mgr.: Opportunity and other nécessité du travail. Lethielleux.

essays; Aphorisms and reflections, VuILLERMET, R. P.: la Mission de la

Chicago. ieunesse contemporaine. Lethielleux.

STAEL, Mme de: De la littérature


WAGNER: Jeunesse.
considérée dans ses rapports avec les
Wo1LLEZ: l'Abeille institutrice. Mame.
institutions sociales.
SuLLY-PRUDHOMME: le Zénith. Le- ZmLER: le !rançais par le latin. Vui­
merre. bert.
�ste livro foi composto e impresso nos oficinas gráficas
do Livr::iria do Globo S. A. em Pôrto Alegre
F i l iais: So:ito Maria, Pelotos e Rio Grande

1!DIÇÃ0 2125 A - P•ra pedidos telegráficos dêste livro, basta indicar


o número 2125 A, antepondo a ésse número a quantidade desejada. Por
exemplo, para pedir 5 exemplares, baata telegrafar aOBim: Dicionário -
Pôrto Alesn - 52125 A. Desejando-se encomendar 10 ou mais exempla·
res, não é necessário transmitir a letra A.

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