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ARTES POÉTICAS EM DIÁLOGO: LONGINO E FERNANDO PESSOA.
Hoje o termo “poética”i vem sendo usado pelas mais diversas áreas do
conhecimento humano com um significado que não vai muito além de “teoria”. Porém,
no decorrer deste ensaio, o termo será focado como uma teoria geral de poesia que
define a poesia, suas várias ramificações e subdivisões, formas e recursos técnicos,
discutindo os princípios que a regem e a distinguem de outras atividades criativas
(PREMINGER e BROGAN, 1974, p. 636). Dentro dessa concepção, pode-se notar a
existência do que poderíamos chamar de duas correntes de “artes poéticas”: a que está
mais focada em formular uma regra geral para a produção da poesia e, portanto, dá mais
valor à sua definição, o que se denomina arte prescritiva, e a que dá mais ênfase à sua
discussão, ou seja, a arte descritiva.
Sejam prescritivas, descritivas ou um meio termo entre essas vertentes, pode-se
observar que as artes poéticas antigas ressoam nas poéticas concebidas posteriormente,
às vezes se somando a estas, enquanto que outras vezes; colocam-se em absoluta
contradição. Segundo Abrahmsii, tais poéticas podem ser classificadas como teoria
mimética ─ a arte como imitação de aspectos do universo – que está presente em
Aristóteles; teoria pragmática ─ em que o poema é construído com o objetivo de surtir
efeitos nos leitores – que pode ser encontrada em Horácio; teoria expressiva – a obra de
arte como resultante do processo criativo que opera sob o impulso do sentimento e
concretiza as percepções, sentimentos e pensamentos do poeta – poética de Longino; ou
ainda a teoria objetiva ─ a obra de arte como entidade autônoma, julgada somente por
critérios intrínsecos a seu modo de ser – encontrada em Landino.
Apesar de essa classificação buscar estabelecer uma clara distinção entre as
várias formas que as poéticas podem assumir, não se pode levar totalmente em conta
que essas teorias são mutuamente exclusivas, e o que Abrahms sugere é que o elemento
básico para a classificação é o elemento dominante dentro de uma poética.
Neste ensaio, a proposta é buscar uma das diversas possibilidades da relação
dialética entre uma poética antiga e uma atual, uma vez que elas ─ apesar de terem sido
produzidas com quase vinte séculos de diferença ─ parecem compartilhar de uma
poética prescritiva. Para isso, comparou-se a arte poética Do Sublime , de Longino - que
estudiosos acreditam ser datada do séc. I d.C. – com a(s) arte(s) poética(s) presentes no
Livro do Desassossego, escrito por Pessoa, publicado em .
O fato de escolhermos O Livro do desassossego − um livro inacabado que pode
ser classificado como de prosa poética e/ou poema em prosa − como fonte para
evidenciar uma poética se deve ao fato que existem fragmentos neste trabalho sobre a
arte poética de Pessoa, e também pelo fato, de apesar das poesias de Caeiro, Reis e
Álvaro de Campos, representarem concepções do mundo diversas e até opostas entre si,
todas elas apontam para um caráter prescritivo.
Todos estes ideais, essa profusão de ecos, esboços, recortes, extensões,
repetições, variações e respostas nos leva a pensar que esse Livro, espaço esquivo às
descrições fixas de nossos outros livros, é um modo de realização, em que a diversidade
parece estar em harmonia justamente pela ausência de qualquer força externa que a
impeça de se afirmar como diversidade. Considere-se que, enquanto componente de
uma obra, é para muito além da mistificação em torno da figura de “Bernando Soares”
que a prosa do Livro do Desassossego reflete a dinâmica das linguagens e idéias que se
atribui como característica da obra pessoana. Como seu grande espelho, a prosa do
Livro demonstra, para além da fabulação artificial dos nomes e das biografias, que essa
diversidade é, afinal, um movimento próprio da escrita de Pessoa. (GAGLIARDI, 2009)
Ainda é significativo a característica observada por Massaud Moisés (...) que
afirma que este livro se encontra entre o “livro-caixa” e o “livro-sensação”, o que em
nossa analise ganha a significação de razão e emoção, ou ainda, de technée e dom. É
curioso notar que assim como outras poéticas, como a própria de Longino, mas também
a de Aristóteles, também chegaram até nós como obras inacabadas.
O seguinte trecho do Livro talvez seja aquele que sintetize com maior riqueza o
que podemos chamar de “poética” na obra de Pessoa. Revela-se aqui a proximidade real
e latente entre “Pessoa” e “Campos”, duas vozes que ressoam por todo o Livro, e que,
em suas páginas, se misturam sob a assinatura “Soares”:
Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as emoções e sentir com o
pensamento; não desejar muito se não com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver
claro para escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, naturalizar- se diferente e
com todos os documentos; em suma, usar por dentro todas as sensações, descascando-as
até Deus; mas embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro que de aqui
estou vendo com as latas pequenas da graxa da nova marca. (p. 157-158).
(...) se examinarmos a natureza, embora quase sempre siga leis próprias nas emoções
elevadas, não costuma ser tão fortuita e totalmente sem método (...), compete ao método
estabelecer âmbito e conveniência (...), os gênios correm perigo maior, pois se às vezes
precisam de espora, muitas outras, de freio.(II,2)
Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida
humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma
sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem
passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente
a de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna
autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem,
porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à
alegria e à dor.(p. 60)
Para o poeta português, a poesia deve ser encontrada na relação dicotômica entre
o pensamento e a sensibilidade, uma vez que é, ao mesmo tempo, a linguagem de
determinados instantes, sem dúvida os mais densos e importantes da existência ─ o que
denota a importância da inspiração ─ e também o trabalho com palavras, com o
compromisso com a linguagem, isto é, baseia-se numa oposição entre o sentir e o
pensar. A partir desta oposição, tantas vezes refletida por Fernando Pessoa, convém
saber, exatamente, o que é que ele entendia por pensamento.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que qualquer sentimento natural, que
eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transtorna num sentimento da imaginação
— a memória em sonho, o sonho em esquecer-me dele, o conhecer-me em não pensar
em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser, que existir é vestir-me. Só disfarçado é que
sou eu. E, em torno de mim, todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens
que nunca verei. (PESSOA, p.163)
Pessoa confessa que os sentimentos que sente não são frutos do seu ser, que é
como se não houvesse ocorrido e fosse apenas imaginação, fazendo com que os estados
afetivos tornavam-se impressões distantes, paisagens que nunca irá ver. “[...] a vida
interior, rapidamente desgastada, só na imaginação poderia encontrar um terreno firme.
É fácil compreender o mecanismo desse desgaste” (NUNES, ).
Esta necessidade de se afastar do sensível para obter a poesia, parece também
possuir eco na poesia de Carlos Drummond de Andrade que traz a prescrição para não
se escrever sobre a sentimentalidade de uma forma direta e cotidiana, pois os temas do
dia-a-dia e da expressão verbal cotidiana devem passar pela mediação da reflexão (o
que os transcrevem para o plano das artes). O poeta mineiro quer deixar claro, é que a
simples emoção que as coisas do dia-a-dia podem evocar no chamado poeta, ou seja, o
simples falar das coisas do cotidiano, um falar sem estar sendo regido pelo método, não
pode ser confundido com a verdadeira poesia:
O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide
sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. [...] Tanto assim é que
não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou
cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente,
sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre
incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que
dizem o que sentem.
[...] Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode
ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia?
Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido
para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com
imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto
recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu.
Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda
agora senão o olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio
rosto que me contempla contemplá-lo.(PESSOA, p. 180)
Mais uma vez a advertência de que a simples emoção, sem estar fortemente
apoiada do dom e do método, jamais atingirá o sublime se faz presente. Para ele (o
poeta), a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no
universo do verbo. A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é,
significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura
do poema.
O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A
Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus
próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha
de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se
ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana. (p. 208)
Tão dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até hoje, me lembrou de meditar em
que consiste. Estou hoje, deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem apetece
a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança, de que nunca pensei em o que
fosse, em sonhar, ao longo de pensamentos meio impressões, a análise, sempre um
pouco factícia, do que ele seja. (p. 194)
Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o certo é que não distingo entre
a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim
intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol
ou se pisam com pés — maravilhas fluidas da imaginação.
Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me
de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por
hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que
têm. [...]
Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto, posso viver imaginando
sem desvantagem da inteligência. (p. 97-98)
Nessa passagem, este sonho, que pode ser aproximado como uma metáfora para
a poesia “maravilhas fluídas da imaginação”, o que para Antonio Candido (2004, p.93),
significa que:
(...) o poema é, para além das palavras, uma conquista do inexprimível que elas
não contêm e diante do qual devem capitular, mas que pode manifestar-se como
sugestão misteriosa nas ressonâncias que elas despertam, uma vez combinadas
adequadamente; e que, indo perder-se nas áreas de silêncio que as cercam e se insinuam
entre elas, são uma propriedade do poema no seu todo.
Para fazer frente a toda essa forma (espaço) inexprimível e torná-la definitiva e
concentrada, Pessoa mais uma vez recorre a um tempo que também não pode ser
contabilizado, pois é um tempo de convivência, um tempo de paciência, que encontra
eco na arte poética de Horácio, para quem não se deve contrariar Minerva, a deusa da
sabedoria: “Se (...) escrever algo, sujeite-o aos ouvidos do crítico Mécio, aos de seu pai
e aos meus e retenha-o por oito anos, guardando os pergaminhos; o que você não tiver
publicado poderá ser destruído; a palavra lançada não sabe voltar atrás” (HORACIO,
1992, p.67).
Saudades! Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e
uma doença do mistério da vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais
— se deixo de vê-las entristeço; e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a
vida.(p. 53)
Após essa breve análise, pode-se afirmar que esse compartilhamento de idéias
sobre a necessidade de uma dialética, seja entre a technée e o dom, seja entre o
sentimento e a razão, contidas nas poéticas de Longino e Pessoa podemos afirmar, que
ambos poetas são de fundamental importância, não só para o entendimento da poesia
como processo, como também para fazer um alerta aos poetas pós-modernos da
fundamental importância dessas dialéticas no sentido da frágil fronteira entre a poesia e
a “não poesia”, ou como diz Pessoa entre o poeta inferior e o poeta superior.
Enfim, as poéticas de Longino e Pessoa parecem trazer em seu cerne a
mensagem preconizada por Zaratustra” (NIETZSCHE, s/d, p.49): “Uma nova altivez
ensinou-me o meu eu, e eu a ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das
coisas celestes, mas sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido
da terra. (...) Assim falou Zaratustra”.
Entendemos a poesia pessoana como fruto de uma presença de gênio, de
uma escrita persistentemente laboriosa, e não como o resultado de uma
falta, como acredita Perrone-Moisés e provavelmente grande parte dos
psicanalistas que se aventuram em explicar o porquê da poesia. Pessoa tem
a falta, sim, de uma estética clássica que reverenciasse o pensamento
perante o sentimento, logo, de uma emoção intelectualizada, e não de um
preenchimento do desejo e das vontades inconscientes; interpretação que
poderia se adequar ao vazio de Álvaro de Campos, mas não à poética de
Fernando Pessoa. Segundo Bernardo Soares, “há dois tipos de artista: o que
exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve” (Pessoa,
1999, §230). Considerando o trabalho teórico de Pessoa em torno da
capacidade intelectual de um poeta em fabricar emoções a partir das que
ele tem, Pessoa se encontra no segundo tipo de artista; se seguirmos a
lógica da noção de falta de Perrone-Moisés, seria ele o do primeiro tipo.
Nietzsche tem um aforismo que elucida perfeitamente essa idéia: “Um
artista que não quer descarregar seu sentimento acumulado em obras e
aliviar-se, mas sim transmitir o sentimento de acumulação, é bombástico, e
seu estilo é aquele inflado” (Nietzsche, 2004, §332). (HENRIQUES, 1986)
Referencias
GAGLIARDI, Caio. O Livro do Desassossego: Uma prateleira de frascos vazios.
Disponível em http://www.criticaecompanhia.com/caio.htm em 5 de setembro de 2009.
HENRIQUES, Vitor. “O que são os eus dramáticos de Fernando Pessoa?”, in Morpheus
- Revista Eletrônica em Ciências Humanas - Ano 05, número 09, 2006.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. São Paulo: Brasiliense, 1986.
i
Usaremos durante este ensaio os termos “poética” e “arte poética” indistintamente, como sinônimos.
ii
Essa classificação diz respeito à orientação que um autor dá para a sua obra como um todo (ABRAHMS, 1953, p. 3-
29)
iii
Englobamos as diversas artes poéticas possíveis de Pessoa como se fossem uma única poética, pois o objetivo do
trabalho, mais do que discutir a diferença entre elas, é mostrar que todas possuem um caráter prescritivo.
iv
Neste trabalho apesar de cientes da grande diferença de definição entre poesia e sublime, usamos os termos como
correspondentes, pois o objetivo de ambos os poetas é a obtenção do sublime através das obras de artes (por exemplo, a
poesia).
v
Apesar da autoria de Do sublime ser ainda discutida, e podendo ter a autoria de Cassius Longinus, Dionysius Longinus
ou até mesmo Dionysius de Halicarnassus, entre outros, adotaremos Longino como o autor “anônimo” do tratado.