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EDIÇÃO 95 | AGOSTO_2014

tribuna livre da luta de classes

BERLUSCONIZAÇÃO DA POLÍTICA
Corrupção, espetáculo, manipulação do sistema eleitoral e outros ingredientes da
crise democrática na Europa
PERRY ANDERSON
Quando os partidos perdem força, a personalização vira a condição da política; Berlusconi encarnou esse fenômeno na
Itália e transmitiu seu estilo ao premiê de centro-esquerda Matteo Renzi ILUSTRAÇÃO: FRANCESCO
SPADONI_WWW.TITOLOPROVVISORIO.IT
Europa está doente. Nem sempre é fácil determinar o grau de

A
gravidade e o motivo dessa doença. Mas existem três sintomas
claramente visíveis e relacionados entre si. O primeiro, e mais
conhecido, é a tendência de degeneração da democracia em
todo o continente, da qual a estrutura da União Europeia é ao mesmo
tempo causa e consequência.

O caráter oligárquico do arranjo constitucional do bloco, inicialmente


concebido como uma etapa provisória para a soberania popular em
escala supranacional, vem se tornando mais rígido com o passar do
tempo. Referendos são invalidados com frequência, quando
contrariam a vontade dos governantes. Eleitores rejeitam o
Parlamento Europeu que nominalmente os representa, e o
comparecimento às urnas diminui a cada eleição. Burocratas que
nunca foram eleitos policiam os orçamentos aprovados nos
Legislativos nacionais, que perderam até mesmo o poder de gastar.

Mas a União não é uma excrescência imposta a países-membros


saudáveis. Ela reflete e aprofunda tendências de longo prazo que
ocorrem dentro deles. Em nível nacional, praticamente em toda parte,
os Executivos domesticam ou manipulam os Legislativos com grande
desembaraço; partidos perdem membros; eleitores perdem a crença
na própria relevância, enquanto as opções políticas se estreitam e as
diferenças propagandeadas nas campanhas eleitorais diminuem ou
desaparecem quando os eleitos assumem o poder.

Com essa involução generalizada veio uma corrupção que se


difundiu pela classe política, tópico a respeito do qual a ciência
política – muito loquaz naquilo que, na linguagem dos contadores, é
chamado de déficit democrático da UE – silencia. As formas dessa
corrupção ainda não foram plenamente sistematizadas. Existe a
corrupção pré-eleitoral: o financiamento de pessoas e partidos por
fontes ilegais – em troca da promessa, explícita ou tácita, de favores
futuros. Existe a corrupção pós-eleitoral: o uso do cargo para obter
dinheiro pela malversação de receitas, ou por propinas em contratos.
Existe a compra de vozes ou votos nos parlamentos. Existe o roubo
direto do erário. Existe o enriquecimento resultante do exercício de
cargo público, antes, durante ou depois.

O
panorama desse malavita é impressionante. Um afresco sobre o
tema poderia começar com Helmut Kohl, governante da
Alemanha por dezesseis anos, que acumulou um caixa dois de
campanha de cerca de 2 milhões de marcos alemães [cerca de 3
milhões de reais]. Quando o caso foi descoberto, ele não quis revelar
os nomes dos doadores, com medo de que viessem à luz os favores
que eles receberam em troca. Jacques Chirac, presidente da República
francesa durante doze anos, foi condenado por desvio de dinheiro
público, abuso do cargo e conflito de interesses, depois que perdeu
sua imunidade. Nenhum deles sofreu punição. Eram os políticos mais
poderosos da Europa em sua época. Uma olhada no que ocorreu
desde então é suficiente para desfazer qualquer ilusão de que se trata
de casos isolados.
Na Alemanha, o governo de Gerhard Schröder garantiu um
empréstimo de 1 bilhão de euros à companhia russa Gazprom para a
construção de um oleoduto, poucas semanas antes de o chanceler
deixar o cargo e entrar na folha de pagamento da empresa com um
salário superior ao que recebia para governar o país. Desde que ele
saiu, Angela Merkel viu dois sucessivos presidentes da República
serem obrigados a renunciar: Horst Köhler, antigo chefe do Fundo
Monetário Internacional, por haver explicado que o contingente
militar alemão no Afeganistão estava protegendo interesses
comerciais do país; e Christian Wulff, antigo chefe democrata-cristão
na Baixa Saxônia, em razão de um empréstimo duvidoso para sua
casa feito por um empresário amigo. Dois importantes ministros, um
da Defesa, a outra da Educação, tiveram que deixar o cargo ao terem
os títulos de doutor cassados por furto intelectual. Quando esta
última, Annette Schavan, amiga íntima de Merkel (que manifestou
plena confiança nela), ainda se agarrava ao cargo, o tabloide
Bild comentou que ter uma ministra da Educação que frauda
pesquisas era como ter um ministro das Finanças com uma conta
bancária secreta na Suíça.

Dito e feito. Na França, descobriu-se que o ministro socialista do


Orçamento, o cirurgião plástico Jérôme Cahuzac, tinha de 600 mil a 15
milhões de euros em depósitos secretos na Suíça e em Cingapura.
Nicolas Sarkozy, enquanto isso, é acusado por testemunhas de ter
recebido cerca de 50 milhões de euros do líbio Muammar Kadafi para
a campanha eleitoral que o conduziu à Presidência. Christine
Lagarde, sua ministra das Finanças, agora na chefia do FMI, está
sendo investigada por seu papel na concessão de 420 milhões de
euros em “compensação” para Bernard Tapie, conhecido trapaceiro
com antecedentes penais e, nos últimos tempos, amigo de Sarkozy.[1]
A contiguidade descuidada com o crime é bipartidária. O socialista
François Hollande, atual presidente da República, ia na garupa de
uma moto para seus encontros com a amante no apartamento de uma
prostituta ligada a um gângster corso morto num tiroteio na ilha.

Na Grã-Bretanha, mais ou menos na mesma época, o ex-primeiro-


ministro Tony Blair dava conselhos a Rebekah Brooks, ex-braço
direito do magnata da mídia Rupert Murdoch, que corria o risco de ir
para a cadeia por cinco acusações de conspiração criminosa
relacionadas à época em que dirigia o extinto tabloide News of the
World. “Tenha à mão comprimidos para dormir. Isto vai passar. Seja
forte”, disse Blair a Rebekah, recomendando-lhe ainda que abrisse
uma investigação “independente” sobre o caso como ele mesmo tinha
feito para isentar seu governo de qualquer participação na morte de
David Kelly, o cientista britânico e inspetor da ONU no Iraque que
questionara as razões alegadas para a invasão do país árabe, uma
invasão que renderia a Blair – para a sua Faith Foundation, é claro –
uma profusão de gorjetas e negócios no mundo inteiro, com destaque
para doações de uma empresa petrolífera sul-coreana, presidida por
um criminoso condenado com interesses no Iraque, e da dinastia
feudal do Kuwait.

Na Espanha, o atual primeiro-ministro, Mariano Rajoy, à frente de


um governo de direita, foi flagrado recebendo propinas em obras
públicas e outros negócios, no valor total de 250 mil euros ao longo de
uma década, que lhe foram repassados por Luis Bárcenas. Tesoureiro
do Partido Popular durante vinte anos, Bárcenas está preso por
amealhar 48 milhões de euros em contas não declaradas na Suíça.
Fotocópias dos livros de contabilidade com registros à mão de suas
transferências para Rajoy e outras figuras do partido – como Rodrigo
Rato, outro ex-diretor do FMI – circularam na imprensa espanhola.
Quando estourou o escândalo, Rajoy passou uma mensagem de texto
para Bárcenas com palavras praticamente idênticas às de Blair para
Rebekah Brooks: “Luis, eu compreendo. Seja forte. Ligo amanhã. Um
abraço.” Oitenta e cinco por cento da opinião pública espanhola
acham que Rajoy está mentindo, mas ele continua firme no Palácio da
Moncloa.

Na Grécia, o social-democrata Akis Tsochatzopoulos, sucessivamente


ministro do Interior, da Defesa e do Desenvolvimento, teve menos
sorte: foi condenado a vinte anos de prisão por uma formidável
carreira de extorsões e lavagem de dinheiro. Do outro lado do mar
Egeu, o premiê turco Tayyip Erdogan – que a mídia e o
establishment intelectual da Europa costumavam louvar como o
maior estadista democrata da Turquia, cuja conduta praticamente
conquistou para o país a filiação honorária à União Europeia –
mostrou que é digno de figurar nas fileiras dos dirigentes da UE por
outras razões: numa conversa gravada, instruía o filho sobre onde
esconder 10 milhões em espécie; noutra, elevava o preço de um
suborno num contrato de construção. Três membros do seu gabinete
foram derrubados por revelações parecidas, antes que Erdogan
fizesse um expurgo na polícia e no Judiciário, para impedir que o
assunto fosse adiante.

Enquanto ele fazia isso, a Comissão Europeia divulgou seu primeiro


relatório oficial sobre corrupção na UE, cujas dimensões foram
descritas como “assombrosas” pelo comissário que redigiu o
documento: numa estimativa por baixo, a corrupção custa o
equivalente a todo o orçamento do bloco, cerca de 120 bilhões de
euros por ano. Prudentemente, o relatório cobria apenas países-
membros. A Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, com sede
em Bruxelas, foi excluída.

A
poluição do poder pelo dinheiro e pela fraude, lugar-comum
numa União que se apresenta ao mundo como guardiã da
moralidade, decorre do esvaziamento da democracia de
substância e de participação. As elites, liberadas de uma competição
real no topo, ou de uma cobrança significativa vinda de baixo, dão-se
ao luxo de enriquecer sem serem perturbadas. A revelação de
malfeitos deixa de ter grande importância quando a impunidade é a
regra. Os políticos importantes, como os banqueiros, não vão para a
cadeia. Da fauna já mencionada, só o grego Akis Tsochatzopoulos
sofreu essa afronta.

Mas a corrupção não decorre apenas da decadência da ordem


política. É também, obviamente, sintoma do regime econômico que
criou raízes na Europa desde os anos 80. Num universo neoliberal,
onde os critérios de valor são estabelecidos pelo mercado, o dinheiro
se torna a medida de todas as coisas. Se hospitais, escolas e prisões
podem ser privatizados e transformados em empresas lucrativas, por
que não seria assim também com os cargos públicos?

Além dos efeitos culturais adversos do neoliberalismo, porém, há o


seu impacto como sistema socioeconômico – o terceiro e, na
experiência popular, o mais agudo dos sintomas da enfermidade que
aflige a Europa. Que a crise econômica desencadeada no Ocidente em
2008 foi resultado de décadas de desregulamentação financeira e
expansão do crédito até mesmo seus arquitetos de certa forma
admitem – veja-se Alan Greenspan. Com conexões do outro lado do
Atlântico, os bancos e o mercado imobiliário da Europa se
envolveram tão profundamente na debacle quanto os americanos. Na
UE, entretanto, essa crise geral também foi determinada por uma
peculiaridade: as distorções criadas pela moeda única imposta a
economias nacionais diferentes. Quando a crise geral bateu, esse
problema levou à beira da falência os países mais vulneráveis da
União.

O remédio para eles? Por insistência de Berlim e Bruxelas, não apenas


um programa clássico de estabilização, com a redução dos gastos
públicos, mas um pacto fiscal estabelecendo o limite de 3% para o
déficit público de todos os países-membros. Isso foi fixado como
cláusula constitucional, em pé de igualdade com a liberdade de
expressão, a igualdade perante a lei, o habeas corpus, a separação de
poderes e todo o resto.

N
este cenário, há um país que é visto como o caso mais agudo de
disfunção na Europa. Desde a adoção da moeda única, em 1999,
a Itália teve o pior desempenho econômico entre os países da
UE: vinte anos de estagnação quase ininterrupta, com crescimento
abaixo do da Grécia ou da Espanha. Sua dívida pública é superior a
130% do Produto Interno Bruto. No entanto, não se trata de um
desses países pequenos ou médios da recém-adquirida periferia da
União. É um dos seis membros fundadores, com população
comparável à da Grã-Bretanha, e uma economia uma vez e meia a da
Espanha. Sua base industrial é a segunda maior da Europa, superada
apenas pela da Alemanha. Seus títulos do Tesouro constituem o
terceiro maior mercado de títulos soberanos do mundo. Com sua
mescla de peso e fragilidade, a Itália é o elo realmente fraco da UE, o
ponto onde ela pode, teoricamente, quebrar.

Até agora é também, não por coincidência, o país onde a desilusão


com o esvaziamento da democracia produziu não uma indiferença
entorpecida, mas uma revolta que abalou as estruturas do seu
establishment. Movimentos de protesto emergiram em outros países
da UE, mas nada que se compare à novidade ou ao êxito da rebelião
eleitoral representada pelo MoVimento 5 Estrelas. A Itália também
oferece o espetáculo mais conhecido de todos os teatros de corrupção
do continente, e sua personificação mais celebrada: Silvio Berlusconi,
o bilionário que governou o país por quase metade da existência da
Segunda República.[2]
É inquestionável que Berlusconi se destaca de seus pares no
entrosamento de poder e dinheiro. Mas a maneira como fez isso pode
ser obscurecida pelo clamor da imprensa estrangeira contra ele,
sobretudo as ensurdecedoras denúncias da Economist e do Financial
Times.

Duas coisas fizeram de Berlusconi um caso singular. A primeira é que


ele inverteu o trajeto típico do cargo para o lucro, acumulando uma
fortuna antes de conquistar a chefia do governo, que passou então a
usar não tanto para aumentar sua riqueza, mas para protegê-la, e a si
mesmo, das múltiplas ações penais decorrentes da forma como a
obteve. A segunda é que a principal – mas nem de longe a única –
fonte de sua riqueza é um império de tevê e publicidade que o dotava
de um mecanismo de poder independente do cargo, que pôde ser
convertido em máquina de propaganda e instrumento de governo.

As conexões políticas – laços com o Partido Socialista em Milão e seu


cacique, Bettino Craxi – foram cruciais para sua ascensão política, em
particular para a construção de uma rede nacional de televisão. Mas,
apesar de Berlusconi ter adquirido consideráveis aptidões de
comunicação e manobra como político, em sua atitude geral perante a
vida ele permaneceu um homem de negócios, para quem o poder
significava segurança e glamour, mais do que ação ou projeto.
Embora expressasse admiração por Margaret Thatcher e se
apresentasse como campeão do mercado e da liberdade econômica, o
imobilismo de suas coalizões de centro-direita não se diferenciava
muito do das coalizões de centro-esquerda do mesmo período.

Esta é a principal mágoa da opinião neoliberal inglesa contra ele,


como pôde ser percebido no tratamento que ela dispensou a dois
outros emblemas de corrupção. Durante anos, Erdogan – amigo
íntimo de Berlusconi – foi brindado com reportagens lisonjeiras no
Financial Times e outros órgãos, que o apresentavam como o
arquiteto esclarecido da nova democracia turca. Diferentemente de
Berlusconi, porém, cujo governo era anódino em questões de
liberdades civis, Erdogan era e é uma ameaça a essas liberdades.
Enquanto o boom econômico estimulado por privatizações decolava
na Turquia, a prisão de jornalistas, o assassinato de manifestantes, a
manipulação de julgamentos e a intimidação de opositores – para não
falar na apropriação indébita de dinheiro público – não recebiam a
importância devida.

A mesma observação poderia ser feita a respeito de Mariano Rajoy e


seus aliados na Espanha. Mas Rajoy, diferentemente de Berlusconi, é
um intendente confiável do regime neoliberal: não carece que
suplementos da Economist esquadrinhem suas más ações, sobre as
quais a revista tem o cuidado de falar o mínimo possível, assim como
Bruxelas e Berlim. “Líderes e funcionários da União Europeia se
mostram reticentes sobre o escândalo [na Espanha], dada a
importância do país para a zona do euro”, comenta Gavin Hewitt, o
editor da BBC para a Europa. “A chanceler alemã Angela Merkel e
outros depositaram muita fé no senhor Rajoy, que é tido como
executor confiável das dolorosas reformas necessárias para revitalizar
a economia da Espanha.” Berlusconi pagaria caro por não merecer
essa confiança.

Q
uando Il Cavaliere obteve sua terceira e mais decisiva vitória
eleitoral, em 2008, a má opinião que se tinha dele no exterior
pouco lhe importava. A frente de centro-direita que ele havia
organizado desde 1994 – agora formada pelo partido Povo da
Liberdade, fusão de seu partido anterior com o de um velho aliado, o
ex-fascista Gianfranco Fini, mais a Liga Norte, de Umberto Bossi –
conquistou expressiva maioria nas duas Casas do Parlamento.
Em seus primeiros meses no cargo, um passo ao estilo Thatcher/Blair
foi dado, com a redução em 8 bilhões de euros dos gastos com
educação, da escola primária às universidades: diminuindo o número
de professores, impondo contratos de curto prazo, quantificando as
avaliações de pesquisa. Mas o ímpeto reformista parava aí. A mais
alta prioridade da coalizão de Berlusconi eram leis sob medida para
protegê-lo de ações penais ainda pendentes. Em 2003, seu partido
tinha aprovado uma lei garantindo imunidade aos cinco cargos mais
importantes do Estado, derrubada pelo Tribunal Constitucional seis
meses depois. Em meados de 2008, ele voltou a atacar com uma lei
apresentada por seu braço direito no Ministério da Justiça, o
advogado siciliano Angelino Alfano, suspendendo julgamento para
os detentores dos quatro cargos mais altos do Estado.

Poucos meses depois, a tempestade financeira do outro lado do


Atlântico atingiu a Europa: primeiro a Irlanda, depois a Grécia. Na
Itália, a Segunda República tinha sido desde o início um fracasso
econômico, apesar dos esforços de primeiros-ministros de centro-
esquerda para dar um jeito na situação. Os índices de crescimento do
PIB italiano despencaram ao longo dos anos 90. Depois de 2000,
estagnaram a uma média de 0,25% ao ano. Um ano depois da
reeleição de Berlusconi em 2008, a confiança do mercado nos títulos
do Tesouro italiano já começava a diminuir. Em 2009, a recessão era
mais profunda do que em qualquer outro país da zona do euro, com o
PIB caindo mais de cinco pontos percentuais. Para manter os
mercados financeiros sob controle, sucessivos pacotes de emergência
reduziram o déficit orçamentário da Itália, mas, com a alta das taxas
de juros cobradas para o rolamento da dívida pública, no fim de 2010
o governo estava à beira do colapso econômico.

Politicamente, Berlusconi não se saíra muito melhor. De março a


outubro de 2009, as manchetes foram dominadas por sensacionais
revelações sobre suas extravagâncias sexuais. Sempre inclinado a
enaltecer suas virtudes como macho, e agora incitado pelo orgulho a
desafiar a idade, ele deixou de lado a prudência mais elementar,
promovendo festas com atrizes de segundo escalão e flertando com
menores, a ponto de provocar um rompimento público com a mulher,
Veronica Lario. Não demorou para que Berlusconi recebesse
prostitutas em sua residência romana. Frustrada por não ter
conseguido um alvará de construção que lhe foi prometido, uma
delas narrou suas visitas.

Na vila palaciana de Berlusconi em Arcore, nos arredores de Milão,


organizavam-se orgias com mulheres vestidas de freira, enfermeira e
policial. Quando uma das participantes, uma jovem marroquina,
acabou sendo presa por furto em Milão, Berlusconi ligou para pedir
sua soltura, alegando que era sobrinha do ditador egípcio Hosni
Mubarak. Como a moça tinha menos de 18 anos, medidas judiciais
contra Berlusconi foram tomadas. Com a degradação de sua imagem,
Il Cavaliere ficou enfraquecido. Mas ainda sobreviveu, por algum
tempo.

Uma ameaça mais séria à sua posição veio de outro lado. Por excesso
de confiança, nascido do êxito eleitoral, ele perdeu o senso dos limites
políticos, humilhando gratuitamente Gianfranco Fini, que se julgava
seu sucessor e era então presidente da Câmara dos Deputados. No
verão de 2010, percebendo que já não tinha razões para supor que
seria o herdeiro natural da centro-direita, Fini mudou de lado,
levando consigo um número de deputados suficiente para privar o
governo de uma maioria estável. Em meados de 2011, enquanto a
crise da zona do euro se aprofundava, com a Grécia à beira da
inadimplência, a pressão dos mercados sobre os títulos da Itália
aumentou. A Alemanha não fazia mais segredo de sua determinação
de derrubar qualquer resistência a medidas draconianas de
austeridade, e de eliminar líderes que hesitassem em aplicá-las, em
Atenas ou Roma. Em agosto, Jean-Claude Trichet e Mario Draghi – o
presidente do Banco Central Europeu que saía, e o que entrava –
deram praticamente um ultimato a Berlusconi.

Dois meses depois, o premiê grego George A. Papandreou foi forçado


a aceitar novos cortes nos gastos públicos e a assumir o compromisso
de executar um amplo programa de privatizações. Apavorado com a
maré montante de cólera popular que isso provocou, ele anunciou um
referendo sobre as medidas, e foi imediatamente intimado por Angela
Merkel e pelo francês Nicolas Sarkozy a esquecer a ideia. Uma
semana depois, estava fora do governo. Dentro de cinco dias,
Berlusconi também.

Mas a dinâmica da queda de Berlusconi não foi a mesma. Na Grécia,


Papandreou administrava um empobrecimento econômico
generalizado, que provocara protestos sociais em massa. Até o
momento em que lhe ocorreu a ideia de um referendo, ele tinha sido
um instrumento perfeitamente aceitável da vontade da União. Saiu
porque sua posição tinha ficado insustentável internamente.

Na Itália, não havia pauperização em andamento nem mobilização


popular. A maioria de Berlusconi na Câmara era, a essa altura,
minúscula. Mas ele ainda controlava o Senado, e não tinha sido
nocauteado nos tribunais. Sua posição interna era mais forte do que a
de Papandreou. Na UE em geral, porém, era muito maior a
hostilidade contra ele, visto como um constrangimento para a classe
política europeia; a Alemanha e o Banco Central Europeu estavam
determinados a se livrar dele, um obstáculo à indispensável faxina da
ordem econômica e social italiana.

Para a remoção de Berlusconi, no entanto, era necessário um


mecanismo que vinculasse o desgaste de sua posição na Itália, ainda
não completo, com a absoluta aversão a ele no exterior. Para azar do
primeiro-ministro, esse mecanismo já estava pronto e engatilhado. Na
Segunda República, tinha havido uma ampliação do papel da
Presidência nos assuntos políticos da Itália. Durante o reinado
anterior da Democracia Cristã, no qual um partido sempre dominava
o Legislativo, esse cargo era basicamente cerimonial. Quando
coalizões políticas rivais passaram a disputar o poder, abriu-se um
novo espaço de manobra para a Presidência.

B
erlusconi havia apoiado a eleição de Giorgio Napolitano para a
Presidência em 2006, e tinha motivos para achar que sua opção
fora sensata. Ao longo de sua carreira, Napolitano vinha
exibindo um princípio imutável: a adesão a qualquer tendência
política que lhe parecesse vitoriosa no momento. Ainda estudante,
filiou-se ao Grupo Universitário Fascista, numa época em que a Itália
despachava tropas para participar do ataque nazista à Rússia.
Quando o fascismo sucumbiu, o jovem Napolitano optou pela força
do comunismo que despontava. Ingressando no PCI no fim de 1945,
chegou ao Comitê Central em pouco mais de uma década. Quando
tropas e tanques russos esmagaram a Revolução Húngara de 1956, ele
aplaudiu. Napolitano era um severo disciplinador de dissidências
internas no partido, votando sem hesitação pela erradicação do grupo
Manifesto, pelo delito de falar contra a invasão soviética da
Tchecoslováquia. Na época, ele era considerado forte candidato à
liderança do PCI.

O cargo acabou indo para Enrico Berlinguer, visto como mais


conciliador. Mas Napolitano continuou como importante acessório do
partido durante a guinada para o eurocomunismo. No fim dos anos
70, foi escolhido para ser o primeiro emissário do PCI para
tranquilizar os Estados Unidos sobre a confiabilidade do projeto,
tornando-se “o comunista favorito de Kissinger”, nas palavras
do New York Times. Nos anos 80, a transferência de lealdade para o
novo suserano estava concluída. Com o Terceiro Reich como uma
lembrança ruim e a URSS em declínio, os Estados Unidos eram agora
a potência a ser cultivada. Responsável pela política externa do PCI,
Napolitano se encarregaria de massagear as relações com Washington
bem depois do desaparecimento do partido. Já presidente, se
desdobraria para agradar tanto a Bush quanto a Obama.

Na Itália, o fracasso da tentativa do PCI de firmar um “acordo


histórico” com a Democracia Cristã que lhe permitisse entrar no
governo e a ascensão – num clima de corrupção cada vez mais
flagrante – do Partido Socialista de Craxi como parceiro principal da
DC levaram Berlinguer a dar uma guinada para a esquerda.
Denunciando a degeneração do sistema político pelo dinheiro, ele fez
um apelo retumbante para uma faxina na vida pública. Napolitano
respondeu furiosamente, acusando-o de sectarismo e “injúrias
vazias”.

Napolitano encabeçava a corrente mais direitista no PCI da época, os


miglioristi, que sentiam certa afinidade com Craxi e não queriam
saber de hostilidades contra ele. Sua base era Milão, onde a máquina
de Craxi dominava a cidade. Ali, em meados dos anos 80, essa
corrente publicava um jornal, Il Moderno, não só subsidiado por
Berlusconi como entusiasta de sua proeza de modernizar a mídia e
fazer de Milão a capital da televisão na Itália. Isso foi em 1986,
quando Craxi era primeiro-ministro. Posteriormente, um tribunal
concluiria que a Fininvest, empresa holding de Berlusconi, financiava
ilegalmente os miglioristi.

Napolitano foi eleito senador vitalício em 2005. Tornando-se


presidente da República um ano depois, lamentaria publicamente que
Craxi – que morreu no exílio na Tunísia, depois de condenado à
revelia a 27 anos de prisão por descomunal corrupção – tivesse sido
tratado tão injustamente. Ele não teve a mesma consideração com
Berlusconi, vendo-o com afável condescendência – mas também com
alguma justiça – não como um político, pelo menos não no sentido de
homem de Estado.

S
eja como for, Napolitano e Berlusconi dificilmente poderiam ser
mais diferentes em estilo, o primeiro cerimonioso e o outro com
sua gabolice um tanto indecente. Mas partilhavam vínculos e
simpatias em torno de Craxi em Milão, e um interesse por manter o
que consideravam ganhos potenciais da Segunda República: um
sistema político bipolar, ao estilo anglo-saxão, que só tinha lugar para
uma centro-direita e uma centro-esquerda, despojado de hostilidades
contra o mercado e contra os Estados Unidos, seu guardião. Por
razões próprias, cada um também temia a persistência dos
promotores públicos, que não paravam de trazer à tona acusações
contra o líder mais popular do país, e o ressentimento de minorias
irresponsáveis que faziam cavalo de batalha dessas investigações.

Para Berlusconi, eram ameaças existenciais. Para Napolitano, apenas


causavam discórdia, assim como o moralismo de Berlinguer havia
feito antes, ameaçando o consenso moderado de que o país precisava.
Ele estava mais do que disposto a ajudar Berlusconi a se proteger
desses problemas; sancionou sem hesitação a lei proposta pelo
ministro da Justiça Angelino Alfano, que garantia, a Berlusconi como
primeiro-ministro e a si próprio como presidente, imunidade judicial.
Quando a lei foi considerada inconstitucional, endossou o
substitutivo aprovado em 2010, permitindo que ministros escapassem
de julgamentos invocando suas prementes obrigações de servidores
públicos – substitutivo esse que acabou considerado inconstitucional
em 2011.
As ações de Napolitano estavam em conformidade com as
expectativas de Berlusconi sobre o modus vivendi entre eles. Outra
manifestação desse entendimento veio quando a deserção de
Gianfranco Fini privou o governo Berlusconi de maioria na Câmara, e
a oposição colocou em pauta um voto de desconfiança, com os votos
necessários para derrubar o governo.

Em 2008, o premiê de centro-esquerda Romano Prodi passou por uma


situação semelhante, quando Berlusconi comprou votos no Senado
para derrubá-lo (um senador confessou ter recebido 3 milhões de
euros para virar a casaca). Napolitano na época demorou menos de
duas semanas para fazer uso da prerrogativa presidencial de
dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, das quais
Berlusconi saiu vitorioso. Mas agora Napolitano convenceu Fini a
esperar mais de um mês, enquanto o Orçamento era aprovado, o que
deu a Berlusconi tempo para comprar o punhado de deputados de
que precisava para recuperar a maioria.

E
sse foi, porém, o último favor que Napolitano prestou a
Berlusconi. No início de 2011, o governo anunciou que não
participaria do ataque à Líbia encabeçado pelos americanos, ao
qual a Liga Norte se opunha taxativamente. Para Napolitano,
corresponder às expectativas de Washington era mais importante do
que dar atenção a sutilezas constitucionais. Sem votação no
Parlamento, ele lançou a Itália na guerra, arrancando o apoio de ex-
comunistas para despachar a Força Aérea e bombardear um vizinho
com o qual o país tinha assinado um Tratado de Amizade,
Cooperação e Aliança Militar, ratificado na Câmara três anos antes.

No meio do ano, estimulado pelas crescentes lisonjas da mídia, que o


chamava de esteio da República, e com o incentivo de Berlim,
Bruxelas e Frankfurt,[3] Napolitano decidiu descartar Berlusconi. A
chave para removê-lo era encontrar um substituto que contentasse
esses parceiros e o establishment empresarial da Itália. Felizmente, a
figura ideal estava à mão: Mario Monti, ex-comissário da UE,
consultor sênior do banco Goldman Sachs e agora reitor da
Universidade Luigi Bocconi. Havia algum tempo que Monti ansiava
pela situação que agora se apresentava diante dele. “Governos
italianos só tomam decisões difíceis”, confidenciou à Economist em
2005, “se duas condições forem satisfeitas: é preciso haver uma
emergência indiscutível e forte pressão externa.” O momento tinha
chegado.

Em junho ou julho de 2011, no mais completo sigilo, Napolitano havia


preparado Monti para assumir o governo. No mesmo período,
encarregou Corrado Passera, chefe de um dos maiores grupos
bancários da Itália, de produzir um plano econômico confidencial
para o país. Passera propôs num documento de 196 páginas uma
terapia de choque: privatizações no valor de 100 bilhões de euros,
imposto predial, imposto sobre o capital, aumento no Imposto sobre o
Valor Agregado. Napolitano agora tinha o homem e o plano de que
precisava para ejetar Berlusconi. Monti jamais disputara uma eleição,
e embora uma cadeira no Parlamento não fosse requisito para sua
investidura como primeiro-ministro, seria bom ter uma.

Não havia tempo a perder: em 9 de novembro, Napolitano nomeou


Monti senador vitalício, sob os aplausos da imprensa financeira
mundial. Ameaçado de destruição pelos mercados se resistisse,
Berlusconi capitulou, e dentro de uma semana Monti tomou posse
como o novo governante do país, à frente de um gabinete não eleito
de banqueiros, homens de negócios e tecnocratas.

A operação que o instalou no poder é uma expressiva ilustração do


que os procedimentos democráticos e o império da lei significam hoje
na Europa. Foi inconstitucional de ponta a ponta. Do presidente
italiano, espera-se que só interfira nas decisões do Parlamento
quando estas violem a Constituição. Ele não tem procuração para
conspirar, pelas costas de um premiê eleito, com indivíduos de sua
preferência – nem mesmo quando estes são parlamentares – para
formar um governo do seu agrado. À corrupção dos negócios, da
burocracia e da política na Itália, somava-se a da Constituição.

Na época, as articulações não eram plenamente conhecidas. Só viriam


à luz este ano, pela boca do próprio Monti, um ingênuo nessas
questões, e foram efusivamente negadas por Napolitano. Enquanto
isso, a reação do establishment ao novo governo ia do alívio ao júbilo.
Até que enfim um governo honesto e competente estava no comando,
não só empenhado em reformar tantas coisas erradas que havia na
Itália – o mercado de trabalho pouco flexível, as aposentadorias
insustentáveis, o nepotismo nas universidades, a falta de
competitividade na indústria, a evasão fiscal –, mas também capaz de
conter a tempestade financeira que golpeava o país. Uma nova
Segunda República, a verdadeira, poderia surgir agora, depois de
vinte anos de tapeação.

M
onti – saudado pelo Financial Times como o “Super Mario” –
logo frustrou as expectativas. Instalado com a concordância
relutante da centro-direita e da centro-esquerda, sua margem
de iniciativa era limitada. Nenhum dos dois blocos estava de fato
comprometido com ele. Logo ficou claro que seus remédios não
trariam a recuperação. A combinação de altos impostos e cortes de
gastos poderia reduzir o déficit e baixar os juros da rolagem da
dívida, mas intensificou a recessão. O consumo caiu, o desemprego
entre os jovens disparou. As reformas estruturais, tais como definidas
pela Comissão Europeia e pelo Banco Central Europeu, não foram
adiante. Em 2012, o PIB encolheu 2,4%. Politicamente, havia pouco a
ganhar sustentando um governo que se tornara impopular. No fim do
ano, a centro-direita retirou seu apoio e Napolitano foi forçado a
dissolver o Parlamento, mantendo Monti no cargo até a realização de
eleições.

As pesquisas de opinião, por algum tempo, indicaram que a centro-


esquerda tinha vantagem nas intenções de voto. Monti fora uma
decepção. Berlusconi estava cada vez mais desacreditado, e a coalizão
de centro-direita sofrera divisões. A centro-esquerda, embora longe
de viver um período promissor, estava em melhor forma. O novo
Partido Democrático, nascido de uma fusão entre os remanescentes
do comunismo italiano e uma ala da Democracia Cristã, tivera
desempenho desastroso em 2008, sob o comando do insignificante
líder Walter Veltroni. Após a saída de Veltroni, o PD elegeu um novo
líder, Pier Luigi Bersani, proveniente do antigo PCI. Sem ser
inspiradora, a liderança de Bersani pelo menos impediu que o apoio
ao partido continuasse a despencar.

No outono de 2012, desafiado pelo jovem prefeito de Florença, Matteo


Renzi, que fizera seu nome sugerindo que a geração mais velha de
políticos fosse toda descartada no ferro-velho, Bersani o venceu
confortavelmente nas primárias do partido, num comparecimento
substancial que elevou a reputação do PD, aumentando sua
vantagem nas pesquisas.

Restava um curinga. Três anos antes, o comediante Beppe Grillo


havia lançado um movimento contra o establishment político que
obteve algum êxito nas eleições locais. Não se sabia ao certo até que
ponto era para ser levado a sério. Mas como nada parecido existia em
qualquer outro lugar da Europa, nem havia um precedente que
servisse como referência, não podia deixar de ser levado em
consideração. Grillo começara como comediante stand-up nos cabarés
dos anos 70, passando depois a fazer programas populares de tevê.
Em 1986, depois de contar uma piada segundo a qual, num banquete
para Craxi em Pequim, um dos seus assessores lhe perguntou,
espantado, “Se todo mundo aqui é socialista, de quem será que estão
roubando?”, Grillo foi vetado nas tevês públicas. Nos anos 90, ele
ocupou teatros e praças para apresentar monólogos que tratavam dos
inumeráveis escândalos do período com uma combinação de
grosseria rude e humor.

Seu público disparou quando ele passou a usar a internet para suas
mordazes demolições da ordem constituída e de seu pessoal – a
centro-direita e a centro-esquerda, a televisão e a imprensa. Seu blog
teve um êxito avassalador. Por essa época, ele já trabalhava em
estreita colaboração com o especialista em software Gianroberto
Casaleggio, e em 2009 os dois lançaram o MoVimento 5 Estrelas,
como uma revolta contra o sistema político. As estrelas
representavam as questões essenciais que pretendiam levantar: água
(sob ameaça de privatização), meio ambiente, transporte,
conectividade e desenvolvimento. Candidatos do M5S [MoVimento 5
Stelle, em italiano] que concorressem em eleições assumiam o
compromisso, exigência única no mundo, de não aparecer na
televisão e, se eleitos, de reduzir seu salário de parlamentar ao salário
mínimo, destinando o resto a programas públicos.

O próprio Grillo estava desqualificado para concorrer ao Parlamento:


aos 30 e poucos anos foi condenado por homicídio culposo, depois
que seu jipe derrapou numa estrada coberta de gelo e caiu numa
encosta, matando três passageiros. Mas podia fazer campanha.
Viajando pelo país numa “Turnê Tsunami” que o levou a oitenta
cidades, a juba grisalha já conhecida de todos, ele atacava não só as
“duas castas” da Itália – a dos políticos e a dos jornalistas –, mas
também o establishment burocrático e bancário europeu.
Q
uando os resultados das eleições foram divulgados, o Partido
Democrático sofreu um choque duplo. Embora o que sobrava
da coalizão de Berlusconi tivesse perdido 7 milhões de votos, a
centro-direita ficou apenas 0,35% atrás da centro-esquerda, que
também perdeu mais de 3 milhões. Nenhum dos blocos alcançou nem
sequer 30% do total de votos. Já o M5S disparou de zero para 25% da
votação, tornando-se, quando se excluíam os expatriados da conta, o
maior partido da Itália. Os grillini receberam votos de operários,
pequenos empresários, autônomos, estudantes e desempregados; a
centro-direita só prevaleceu entre as donas de casa, e a centro-
esquerda entre aposentados e trabalhadores de colarinho branco.

Essa era a aritmética eleitoral. A distribuição das cadeiras no


Parlamento era outra questão. Para a Segunda República fora
fundamental uma mudança no sistema eleitoral – a abolição da
representação proporcional em favor de um sistema distrital simples,
de modelo anglo-saxão, em que é eleito quem tenha a maioria simples
dos votos em cada distrito eleitoral.[4] Nenhuma mudança foi exigida
com mais paixão, como indispensável para um governo responsável e
eficiente, pelo pensamento único da época.

Nada parecido aconteceu. Em 2005, a coalizão de centro-direita no


poder, temendo ser derrotada nesse sistema – do qual se beneficiara
anteriormente –, aboliu-o em troca de um sistema nominalmente
proporcional, mas acrescido de uma recompensa que dava à coalizão
vitoriosa, fosse qual fosse a percentagem de votos por ela obtida, uma
maioria automática de 54% das cadeiras na Câmara.

O Porcellum, como o novo sistema eleitoral ficou conhecido,


descendia de duas notórias distorções da vontade popular na Itália: a
Lei Acerbo, de 1923, aprovada à força por Benito Mussolini para
consolidar seu governo, que concedia dois terços dos assentos do
Parlamento a qualquer partido que ultrapassasse a barreira dos 25%
dos votos, e uma lei de 1953 que premiava com 65% das cadeiras
qualquer coalizão que conseguisse mais de 50% (de tão impopular,
ela teve de ser revogada quando o governo da Democracia Cristã se
mostrou incapaz de alcançar os 50% mais um exigidos na única
eleição realizada sob suas regras).

Em 2013, a centro-esquerda, apesar da pequena margem de vitória,


angariou uma esmagadora maioria de deputados: 345 contra 125 da
centro-direita, e 109 do M5S, de um total de 630. Mas isso não lhe
abriu caminho para o governo, pois, de acordo com a Constituição, o
Senado requer uma base regional de eleição. Portanto, o prêmio em
cadeiras no Senado foi dado à coalizão mais votada dentro de cada
região. No fim das contas, o resultado foi bem menos favorável para o
PD, que só ganhou 123 dos 315 assentos. Para formar um governo,
seria preciso obter um voto de confiança nas duas Casas.

Para tanto Bersani tinha que buscar um acordo, de coalizão ou


tolerância, com Berlusconi ou Grillo. O primeiro era execrado pela
base do PD, e ele procurou o outro. Mas Grillo não demonstrou
interesse. Para o M5S, o desfecho ideal do impasse pós-eleitoral seria
um governo Berlusconi–Bersani, que comprovasse sua alegação de
que a centro-direita e a centro-esquerda eram dois lados da mesma
moeda. Restava, pois, a opção de um gabinete minoritário de centro-
esquerda, dependente da tolerância a suas medidas caso por caso.

Napolitano – a quem cabia, como presidente, convidar o líder da


coalizão vitoriosa a formar o governo – rejeitou o arranjo. Insatisfeito
com o fim prematuro do regime de Monti, ele queria reeditá-lo.
Coerente com uma carreira de adesão ao poder mais forte do
momento, para ele era imperativo, portanto, ter um governo
bipartidário que protegesse a estabilidade e a austeridade exigidas
por Frankfurt e Bruxelas contra a agitação populista.

Diante dessa possibilidade, Bersani fincou pé. Não havia solução à


vista para o impasse quando o mandato presidencial de Napolitano
chegou ao fim. Editoriais implorando que aceitasse um segundo
mandato como única barreira contra o caos tomaram conta da
imprensa. Mas havia uma regra tácita segundo a qual nenhum
presidente italiano servia por mais de um mandato, e Napolitano
repudiou a ideia. Tinha cumprido seu dever e já estava arrumando as
malas.

Enquanto o fazia, prestou um último serviço. Em 5 de abril, indultou


o coronel americano Joseph Romano, condenado à revelia a cinco
anos de prisão por ter participado, em Milão, do sequestro de um
clérigo egípcio, em seguida levado num avião militar americano para
o Cairo, onde sofreu meses de tortura nas mãos da polícia de
Mubarak. Constitucionalmente, um perdão presidencial só pode ser
concedido por razões “humanitárias”, e não “políticas”. Romano não
tinha passado um dia sequer na cadeia, pois fugira do país. Mas
Obama havia pedido pessoalmente que esse detalhe fosse ignorado, e
Napolitano não hesitou, como já o fizera tantas vezes, em
desconsiderar a Constituição, explicando que tinha indultado
Romano para “evitar uma situação de evidente embaraço para um
país amigo”.

O
presidente italiano é eleito em sessão conjunta das duas Casas
do Parlamento, mais representantes das regiões, em votação
secreta. Nas três primeiras votações, exige-se maioria de dois
terços; subsequentemente, maioria simples. Como os votos são
secretos, a disciplina partidária é fraca, e muitos turnos podem ser
necessários para que se produza um candidato bem-sucedido. Em
2013, os eleitores eram 1 007, o que requeria 672 votos na primeira
série de rodadas, e 504 em seguida. A centro-esquerda tinha 493
votos, uma posição bastante forte. Mas, como se espera que o
presidente esteja acima da divisão política, o costume determina que
um candidato de sucesso desfrute de certo grau de consenso
suprapartidário. O PD buscou, portanto, o acordo da centro-direita
para apresentar uma figura que ambos pudessem apoiar.

Franco Marini, veterano democrata-cristão e ex-presidente do Senado,


foi escolhido. Seu nome, porém, foi rejeitado por Matteo Renzi, o
prefeito de Florença, que liderou uma deserção dentro do PD. Marini
obteve 521 votos, longe dos dois terços, mas suficientes para a
maioria simples. Desanimado com o contratempo, o PD, em vez de
segurar sua aposta até o quarto turno de votação, abandonou Marini
e, de forma tumultuada, votou em branco nas duas votações
subsequentes, das quais o jurista Stefano Rodotà, proposto pelo M5S,
emergiu com 230 e 250 votos.

Grillo, deixando de lado sua recusa em negociar com o PD, pediu ao


partido que somasse forças com o M5S para eleger Rodotà no turno
seguinte, dando a entender que se isso ocorresse seria possível a
cooperação entre os dois para a formação do governo. Rodotà não era
uma escolha sectária; amplamente respeitado, havia sido presidente
dos Democratas de Esquerda, a encarnação anterior do PD. Mas, com
seu apego à legalidade constitucional, Rodotà não era aceitável para o
partido em que o PD havia se transformado, que temia que ele viesse
a impedir alterações institucionais que planejava.

Reagrupando as tropas do PD, Bersani propôs em seu lugar o ex-


premiê Romano Prodi. Agora bastava a maioria simples. A centro-
direita não participou da votação. Mas, feita a contagem dos votos,
Prodi tinha recebido apenas 395 votos – 100 a menos do que a centro-
esquerda detinha. Dessa vez, quem sabotou o candidato do partido
foram os seguidores de Massimo D’Alema, rival de Prodi nos anos 90.
O PD ficou parecendo uma turba desmoralizada. Em lágrimas,
Bersani renunciou à liderança, e debaixo do ulular da imprensa, que
alertava para o risco de o país se tornar ingovernável, o PD correu
para se juntar a Berlusconi nas súplicas para que Napolitano salvasse
a Itália, aceitando um segundo mandato. Com protestos de que o
fazia contrariando a própria vontade, ele cedeu, e na sexta votação
escorregou sem percalços de volta para o Palácio do Quirinal.

A
inda faltava formar um governo, mas, com Bersani fora do
caminho, Napolitano podia seguir em frente e criar o
governissimo que tanto queria, juntando a centro-direita e a
centro-esquerda. Para primeiro-ministro escolheu o vice-líder do PD,
Enrico Letta, ex-democrata-cristão. Angelino Alfano, responsável pela
lei que conferia imunidade a Berlusconi e Napolitano, ficou sendo
vice-primeiro-ministro. Um funcionário do Banco Central foi
instalado no Tesouro como garantia de continuidade das políticas de
Monti.

Berlusconi, porém, devia grande parte de sua recuperação eleitoral à


promessa de rescindir o imposto predial de Monti, e fez do
cumprimento dessa promessa uma condição para participar da
coalizão. O resultado foi um governo que ziguezagueava de um lado
para outro, entre compromissos incompatíveis. Pelo fim do ano, a
economia tinha caído mais 1,9% e a dívida pública crescera para 133%
do PIB.

Mas as atenções do público rapidamente se voltaram para os azares


de Berlusconi. Em junho, ele foi considerado culpado de prostituir
uma menor e condenado a sete anos de prisão. O veredicto pouco o
afetou em curto prazo: sucessivas apelações poderiam adiar o
julgamento final durante anos. Mas em agosto veio um outro
julgamento há muito adiado: quatro anos de prisão (três deles
perdoados) por evasão fiscal de 7,3 milhões de euros e a proibição de
exercer cargos públicos por dois anos. A pena de prisão deflagrou a
cláusula de uma lei aprovada no governo de Monti, alijando do cargo
por seis anos qualquer pessoa assim condenada. Sua aplicação
significava a expulsão de Berlusconi do Senado.

Ciente de que isso poderia provocar uma rebelião da centro-direita


capaz de derrubar seu governo, Letta não teve pressa em levar a
questão adiante, enquanto Berlusconi fazia apelos cada vez mais
frenéticos para que Napolitano o socorresse. Napolitano estava
disposto a conceder o indulto se Berlusconi o pedisse, admitindo sua
culpa – ele protestava inocência. Furioso com a falta de compaixão,
Berlusconi exigiu que os ministros de seu partido se demitissem do
governo. Eles inicialmente obedeceram; depois pensaram em seus
empregos e no provável destino da centro-direita, se houvesse novas
eleições naquelas circunstâncias. O resultado foi um racha público,
com Alfano tirando do controle de Berlusconi um número de
parlamentares suficiente para formar outro partido de centro-direita,
o que daria ao governo uma maioria estável não mais sujeita ao
caprichos do ex-premiê. Dez dias depois, Berlusconi foi expulso do
Senado.

A vitória de Letta parecia completa. Suas habilidades diplomáticas,


aprimoradas na tradição democrata-cristã, foram importantíssimas na
tarefa de separar Berlusconi de Alfano e seus seguidores. No entanto,
o triunfo de Letta teve vida curta. Em poucos dias, Renzi venceu as
primárias pela liderança do PD, que a renúncia de Bersani deixara
vaga, e afastou a velha guarda, abarrotando o aparelho partidário de
adeptos e fãs de sua própria geração. Ainda prefeito de Florença, e
nem sequer no Parlamento, mas já no comando de seu maior
contingente de deputados, ele detinha mais poder real do que Letta, e
apressou-se a demonstrá-lo.

Berlusconi podia ser um criminoso condenado, mas não era um pária


– continuava à frente do segundo maior partido do país. A solução
era um acordo com ele. Renzi apressou-se a manter conversas
confidenciais com Berlusconi, e os dois chegaram a um acordo sobre
mudanças constitucionais e eleitorais, a serem impostas a um
Parlamento ao qual nenhum dos dois pertencia. E onde ficava o
primeiro-ministro Letta nisso tudo? Em tuítes, como um adolescente
acalmando a namorada prestes a ser descartada, Renzi lhe escreveu:
“Sossegue, Enrico, ninguém quer tomar o seu lugar.” Um mês depois,
ele ejetava Letta e se instalava pessoalmente na condição do mais
jovem primeiro-ministro da Itália.

A
ssim como sua vítima, Renzi tem antecedentes familiares
democrata-cristãos – o pai foi vereador da dc. A família tinha
uma empresa de marketing que lhe deu emprego até que se
dedicasse à política em tempo integral; entre suas contas estava a do
jornal local La Nazione. Renzi ingressou num dos resíduos da
dissolução da DC, e foi parar no partido centrista A Margarida, que,
no devido tempo, se fundiu com os remanescentes do comunismo
italiano para formar a ala direita do PD. Quando tinha 29 anos, foi
escolhido pelo partido para ser presidente da província de Florença,
cargo que ele posteriormente denunciaria como desperdício de
dinheiro e procuraria abolir. Mas, na época, aproveitou o máximo
possível, montando um aparato de assessores e projetando-se com
uma série de eventos midiáticos, orquestrados por uma empresa que
ele criou como órgão de propaganda da província.
Depois de cinco anos, o PD propôs Renzi como candidato a prefeito
de Florença, um dos bastiões da centro-esquerda na Itália. Numa
decisão muito aplaudida, sua administração transformou o centro
histórico em área reservada a pedestres, e deu uma engraxada em sua
imagem turística: os cidadãos puderam novamente se orgulhar da
cidade. Mas houve pouco progresso na redução da poluição. Fora do
centro, o tráfego piorou, e ônibus foram privatizados a despeito da
oposição de sindicatos.

Aplaudido inicialmente como o melhor prefeito do país, a reputação


de Renzi caiu, em parte devido ao fato de que muitas realizações de
que se jactava acabaram se mostrando vazias. Mas ele mirou mais
longe. As atividades municipais eram concebidas como um
trampolim para o palco nacional. Renzi priorizava shows de alta
visibilidade, com celebridades de todo o país protagonizando eventos
multimídia e festanças político-culturais na antiga estação ferroviária
Leopolda, com rock e vídeos no volume máximo, empresários, atores,
filósofos, músicos e escritores proferindo frases lapidares para a
multidão, e um finale estrondoso a cargo do próprio prefeito.

Desde sua época como chefe da província, Renzi vinha construindo


uma rede de conexões com o mundo dos negócios local. Seu principal
financiador era um chefão do setor da construção, Marco Carrai.
Quando Renzi ganhou a prefeitura de Florença, Carrai foi incumbido
de cuidar do lucrativo complexo de estacionamentos e do aeroporto
da cidade, enquanto Renzi se instalava de graça num apartamento à
disposição de Carrai – arranjo atualmente sob investigação judicial.

Concorrendo a líder do PD três anos depois, com sua campanha


recebendo até 600 mil euros da Fundação Big Bang, cujos doadores
permaneceram em grande parte no anonimato, Renzi não poupava
despesas. Uma das grandes contribuições veio do maior gerente de
fundos especulativos da Itália, Davide Serra, cujo Algebris
Investments inclui um esconderijo nas ilhas Cayman. Residente em
Londres, Serra se tornou o batedor que abre caminho para Renzi no
grande mundo das finanças. Em Florença, a Cassa di Risparmio, o
instituto municipal de poupança, tem, sem dúvida por pura
coincidência, investido em títulos da Algebris.

As empresas talvez se beneficiassem de uma troca de favores em


nível municipal, mas nacionalmente foi a mensagem ideológica de
Renzi que conquistou os sorrisos do dinheiro graúdo. Os males da
Itália advinham de um Estado gastador e do corporativismo,
sobretudo dos sindicatos, que obstruía o mercado. Eles precisavam
ser desmantelados. A palavra de ordem da esquerda esclarecida
deveria ser inovação, em vez de igualdade, por mais que esta última
seja um ideal meritório, se entendida corretamente como uma
abertura de caminhos para o talento, sobretudo o empresarial. Tony
Blair foi um líder que entendeu bem tudo isso, dando um exemplo
inspirador do tipo de política de que a Itália necessitava
urgentemente.

O culto a Blair reflete, em certo sentido, as limitações provincianas de


Renzi: é evidente que ele não tem consciência de que o objeto de sua
admiração mal ousa mostrar o rosto em público no país que um dia
governou. Mas, noutro sentido, ele se aproveitou das benesses
aferidas pelo cartão de visitas como o melhor amigo de Blair na Itália.

Renzi estabeleceu contatos informais com a centro-direita desde que


começou a decolar em Florença. Mais ou menos nessa época, fez
amizade com um banqueiro florentino, Denis Verdini, que se tornaria
seu interlocutor primordial na centro-direita. Quando prefeito, Renzi
esteve na vila de Berlusconi em Arcore para um jantar discreto,
peregrinação que era tabu no PD àquela altura, e que só foi revelada
posteriormente. Mas o que os unia não era apenas a simpatia por
Blair ou o reconhecimento do valor do empresário. Berlusconi
costuma explicar que vê em Renzi uma versão mais jovem de si
mesmo, um sujeito com a audácia e o charme com que tinha cativado
o país vinte anos antes.

Em estilo político, os dois têm, de fato, muita coisa em comum. Acima


de tudo, uma inabalável autoconfiança na habilidade única de liderar
o país. A personalização da política é um traço legendário de
Berlusconi. Renzi se projeta num registro diferente, mas comparável.
Exibido em pôsteres colados em todo o trajeto de sua turnê pela Itália,
seu lema de campanha para conquistar o comando do PD prescindia
de mensagem política que não fosse sua própria personalidade. Dizia
simplesmente: “Matteo Renzi Já!” Como no caso de Berlusconi, isso
bastava. Essa autoconfiança os situa acima das dúvidas e dos
escrúpulos de seus pares. Ambos também, é claro, ganharam
notoriedade em situações de crise, prometendo ao país um novo
começo, quando a ordem política caíra em descrédito geral.

H
á também óbvias diferenças entre os dois. Dessas, quatro são
mais significativas. Berlusconi entrou na política à frente de um
império comercial, fazendo uso de sua vasta fortuna para
conquistar um poder que pudesse proteger seus interesses. Tinha
quase 60 anos àquela altura. Seu principal instrumento para
conquistar e manter o poder era o controle da televisão. Suas
habilidades de comunicador eram as de um profissional da telinha,
um expert de seus rituais e recursos.

Já Renzi é cria da política pura. Sua ascensão pode ter deixado um


vago rastro de fedor – pecunia non olet [dinheiro não tem cheiro] não
se aplica bem ao seu caso. Mas o dinheiro, de origem duvidosa ou
honesta, tem sido apenas um meio para realizar sua ambição: a
riqueza não é um fim. O objetivo é o poder. Esse poder – esta é a
segunda grande diferença – foi conquistado por um indivíduo que
chegava aos 40, e não aos 60 anos. Uma geração mais jovem.

Berlusconi lastreava grande parte do seu apelo inicial na afirmação de


que, além de ser um outsider do sistema político, já demonstrara sua
capacidade de criar riqueza como empresário e administrador:
poderia governar a Itália tão bem como fizera com suas emissoras de
tevê e seu clube de futebol. Renzi apela à idade, não à experiência. Em
si, a juventude é uma carta banal, jogada por políticos em ascensão
em qualquer sociedade pós-moderna. Mas Renzi fez da juventude
algo além do atributo individual: o emblema de um iminente
rejuvenescimento coletivo. Esse tipo de promessa não tem as
credenciais tangíveis de sucesso material que Berlusconi reivindicava,
mas é um apelo igualmente poderoso para duas gerações de italianos
sufocados pela imobilidade e decadência da Segunda República.

Além do contraste de mensagens, há uma variação de veículo. Renzi


chamou a atenção do público pela primeira vez como vencedor de
um popular programa de perguntas e respostas. Jamais perdeu o
gosto de aparecer na televisão, onde sua boa aparência e seu jeito
petulante fizeram dele uma atração natural quando entrou na
política. Mas o tempo mostrou que seu verdadeiro ponto forte era a
internet: o Facebook projetou sua imagem e cultivou as bases de
modo muito mais rápido do que o fizeram as aparições programadas
da tevê, e sob controle muito mais completo; o Twitter lhe serviu para
propagar um fluxo contínuo de declarações e opiniões sobre as
questões do momento.

Berlusconi, apesar do gosto de contar piadas pesadas em ambientes


informais, tendia à formalidade bombástica em seus discursos
políticos, que proferia de terno, num estúdio forrado de livros em sua
mansão. Renzi é ostentosamente informal, no trajar e no falar. Ao
tomar posse, fez um discurso no Senado com as mãos nos bolsos. Não
caiu bem. Mas em geral é muito superior a Berlusconi como
comunicador, muito mais esperto politicamente, com um talento
excepcional para frases de efeito e réplicas mordazes. Renzi não é
apenas muito mais rápido no saque verbal. Diferentemente de quase
todos os demais líderes ocidentais de hoje, não precisa de
marqueteiros para manipular a opinião pública. Ele é, naturalmente,
seu próprio relações-públicas. O risco que corre é o de uma
arrogância demasiado explícita, que provoca zombarias. Ao longo da
carreira, soube transformar as piadas sobre si em divertida
autoironia. Resta saber se vai continuar assim, agora que chegou ao
topo, onde muitas das farpas que distribui a torto e a direito podem
irritar e ofender.

P
or enquanto, Renzi vive uma fase boa. Durante vinte anos, os
descendentes do comunismo italiano buscaram em vão o cargo
de premiê que ele, com um aperto de mãos, conseguiu de
Berlusconi em duas semanas. Para o PD, como para seus antecessores,
a praga de toda votação na Itália era a presença de rivais menores à
esquerda, ou, dor de cabeça mais tolerável, de aliados um pouco à
direita. O partido achava que, se eliminasse esses competidores com
um segundo turno nas eleições legislativas segundo o modelo francês
– no qual, depois de um show de proporcionalidade no primeiro
turno, a vitória no segundo é por maioria simples –, poderia assumir
seu lugar de direito como partido governante da centro-esquerda
num sistema político restringido a ele e a um homólogo de centro-
direita.

Essa reforma do sistema eleitoral nunca tinha sido possível, em parte


devido à relutância natural dos partidos que desapareceriam com ela
ao aprová-la. E também, e mais criticamente, porque Berlusconi, mais
capaz do que a centro-esquerda de manter uma ampla coalizão de
forças, tinha menos a ganhar com a drástica redução dos partidos
representados no Parlamento.

A representação parlamentar justa da opinião política na Itália, uma


característica da Primeira República, tinha sido descartada na
Segunda. Mas os sistemas eleitorais híbridos posteriores não foram
satisfatórios para ninguém. Desses, o Porcellum era tido como o pior.
Napolitano, quando voltou à cadeira presidencial, pressionou o
Parlamento para se livrar dele. Não era segredo que ele também
considerava os dois turnos o arranjo ideal. O resultado da eleição de
2013 e a grita contra o impasse institucional que veio em seguida
tornaram mais fortes as demandas por uma reforma eleitoral. Essa era
a situação na primeira semana de dezembro do ano passado, quando
o Tribunal Constitucional finalmente declarou o Porcellum
inconstitucional, por duas razões: a maioria absoluta concedida ao
partido com mais votos, por menos numerosos que fossem, era uma
distorção da vontade democrática; e as listas fechadas apresentadas
pelos partidos, engessando os candidatos numa hierarquia de
importância em cada distrito eleitoral, negavam aos eleitores a
liberdade de escolha na seleção dos representantes.

A decisão foi um balde de água fria para o PD. Se isso não mudasse,
as eleições seguintes seriam disputadas num sistema proporcional,
sem qualquer prêmio ao vencedor, e os eleitores teriam o direito de
escolher os candidatos que preferissem na lista – uma abominação
para caciques partidários, por enfraquecer seu poder sobre as tropas.
Essa era a hipótese que o PD tinha mais razões para temer. Era
indispensável eliminá-la. Providencialmente, o homem capaz de fazê-
lo tinha chegado. Cinco dias depois da decisão do tribunal, Renzi
assumiu o PD. Em poucas sessões a portas fechadas, Renzi e
Berlusconi chegaram a um acordo para dividir o bolo eleitoral. Juntos,
imporiam ao Parlamento um sistema destinado a lhes garantir a parte
do leão da representação política no futuro.
As cláusulas do projeto de lei negociado pelos dois dão um prêmio de
15% das cadeiras da Câmara para qualquer partido que alcançar pelo
menos 37% dos votos na primeira votação, com um teto de 55% dos
assentos; no caso de nenhum partido obter 37%, qualquer dos dois
partidos com maior número de votos na primeira votação que chegar
na frente, na segunda votação, receberá 52% das cadeiras. Em cada
distrito eleitoral, dos quais haverá um número bem maior,
continuarão existindo listas de partido fechadas, porém reduzidas
(três a seis candidatos), facilitando a escolha dos eleitores.

O propósito do plano é contornar as objeções do Tribunal


Constitucional ao Porcellum, especificando um limite abaixo do qual
não haverá prêmio, ao mesmo tempo que preserva a essência do
Porcellum – ou seja, uma flagrante distorção da opinião eleitoral,
disfarçada por um aceno à maior liberdade de escolha entre os
candidatos. Completando o pacote, apelidado de “Renzusconi” por
seus detratores, há outra garantia contra tentações imprevisíveis do
eleitorado. Três barreiras para a representação parlamentar foram
estabelecidas: o partido que concorrer sozinho terá que conquistar ao
menos 8% dos votos; o partido que concorrer numa coalizão, 4,5%; e
qualquer coalizão, 12%.

O pacto entre os dois líderes estipula também que o Senado, no


devido tempo, será abolido como corpo eleito, dando lugar a uma
assembleia impotente de figurões regionais – a rigor, uma folha de
parreira para acobertar um Legislativo unicameral.

O cálculo de Renzi ao fazer o pacto com Berlusconi tinha duas partes.


Havia uma meta de curto prazo: mostrar que Letta se tornara
irrelevante e poderia ser despejado sem dificuldade da chefia do
governo. De importância maior e mais duradoura era a nítida
vantagem que o acordo dava ao PD, permitindo-lhe mover-se mais
para o centro, penetrando gradualmente no eleitorado de Berlusconi,
sem temer perdas à esquerda. Durante muito tempo, os dois turnos
haviam sido o seu Santo Graal: o partido agora o conseguira.

A
manipulação de sistemas eleitorais para torcer resultados não é
nenhuma raridade nas democracias liberais – é até mais
provável que seja a regra do que a exceção. Na Inglaterra e nos
Estados Unidos, sistemas distritais de maioria simples datam dos
arranjos pré-modernos de uma sociedade aristocrática hierarquizada,
na qual poucas eleições eram de fato disputadas. No começo do
século XVII, apenas de 5 a 6% dos distritos tinham mais de um
candidato. Sua manutenção nos tempos modernos diz muito da
natureza da democracia anglo-saxônica. A Quinta República na
França e a monarquia restaurada na Espanha são outros exemplos
conhecidos de sistemas eleitorais manipulados para impedir a
competição indesejada da esquerda.

Na Itália, quando a democracia foi restaurada depois da Segunda


Guerra Mundial, a Constituição que emergiu da Resistência foi
projetada para prevenir qualquer retorno ao regime autoritário. Na
Primeira República, uma Presidência honorífica de poder limitado,
duas Casas legislativas de peso igual se equilibravam reciprocamente
– primeiro-ministro sem direito a demitir ministros, voto secreto em
projetos de lei parlamentares, referendos populares sobre petições de
cidadãos e representação proporcional andavam juntos.

Com a Segunda República, essa configuração começou a perder a


forma, em duas pontas. Na ponta de baixo, a representação
proporcional acabou anulada, com a introdução do prêmio às forças
mais votadas, mais ou menos como na Lei Acerbo. Na de cima, a
Presidência acabou se tornando o cargo mais poderoso do país,
fazendo e desfazendo governos. O pacto entre Renzi e Berlusconi
introduzirá uma Terceira República, concentrando poder nas mãos do
Executivo e reduzindo as escolhas dos eleitores muito mais
drasticamente. Por qualquer critério, o novo sistema eleitoral, que
passou pela primeira discussão no Parlamento, é um monstrengo.
Não contente com o prêmio que concede ao vencedor, ele vai até além
do regime de Mussolini nos obstáculos criados para qualquer partido
ou coalizão menor que tente garantir uma cadeira parlamentar que
seja.

C
om o novo sistema eleitoral, a força de que Renzi desfruta
atualmente pode ser estendida por um bom tempo. Da noite
para o dia, seu partido se tornou em grande parte uma dócil
falange à sua disposição. Ele promete um poder que o PD nunca teve.
O partido finalmente encontrou um vitorioso, e por ora as resistências
serão poucas. Toda a grande imprensa o apoia, às vezes com rasgos
de lirismo. Mas, se esse entusiasmo faz lembrar a euforia da mídia
britânica em torno do Blair dos primeiros tempos, o contexto mudou.
Na época de Blair, a maré do neoliberalismo estava chegando ao nível
máximo. Hoje a maré continua vindo, mas a exuberância
desapareceu. O primeiro-ministro britânico David Cameron talvez
esteja dando continuidade a Thatcher, mas não há euforia popular
com seu programa político. Sob o comando de Hollande ou Rajoy, os
cortes de gastos prosseguem, mas num espírito de casmurra
necessidade, e não de vibrante emancipação.

O estilo de Renzi não permite isso. Sua mensagem de esperança e


entusiasmo requer medidas que vão um pouco além de um aperto de
cintos. Tendo chegado ao poder por intermédio de um golpe dentro
do partido, sem mandato popular, ele precisa de confirmação nas
urnas. No passado, variações de centro-esquerda do neoliberalismo
eram tipicamente compensatórias, oferecendo benefícios a setores
estratégicos do eleitorado para atenuar seu impacto social. Com a
crise, a margem para essas concessões encolheu. Para Renzi, é
essencial que volte a ser alargada. As compensações devem ser
adiantadas, sem demora, antes que os eleitores se desiludam. Por isso
seu pacote inaugural de medidas sociais combina leis que facilitam a
demissão, criando um novo contrato de trabalho, com um abatimento
de mil euros no imposto dos trabalhadores menos bem pagos.

Para financiar essas e outras despesas de estímulo ao crescimento,


Renzi já deixou claro que o espartilho do pacto fiscal europeu terá de
ser afrouxado. Levando em conta que os cálculos da Alemanha, da
Comissão Europeia e do Banco Central Europeu – as três autoridades
que importam – são em última análise mais políticos do que técnicos,
é provável que ele consiga o que quer. O zelo de Renzi por reformas
estruturais é confiável, de um jeito que o de Berlusconi não era, por
isso não há sentido em lhe criar dificuldades na questão dos limites
admissíveis de déficit. As regras da UE, caso se mostrem
inconvenientes, estão aí para serem flexibilizadas, e não aplicadas
mecanicamente. Não se sabe até que ponto esses ajustes injetarão
força e energia na economia italiana em longo prazo. O que conta em
curto prazo é o oxigênio eleitoral para seu novo governante. Por ora,
Renzi tem todas as razões do mundo para se sentir confiante.

E
o que dizer do inverno do patriarca? Numa farsa típica da
Justiça italiana, sua condenação por multimilionária evasão
fiscal terminou com o promotor desistindo de pedir sua prisão
domiciliar e o tribunal, comovido com sua mudança de atitude,
aplicando-lhe a onerosa pena de quatro horas por semana de
prestação de serviços comunitários, num asilo de velhos, perto de seu
palácio em Arcore: o desfecho necessário para mantê-lo a bordo do
projeto Renzusconi, que ele tinha ameaçado pôr a pique se uma
punição pior lhe fosse imposta – mas quem suspeitaria de conivência
entre os governantes do país e os agentes da lei?

Por enquanto, Berlusconi conseguiu preservar sua liberdade pessoal.


No entanto, corre o risco de receber um castigo muito mais severo
quando a sentença de sete anos de prisão por prostituição de menor,
dada em junho de 2013, se tornar definitiva num tribunal superior.
Com isso, é provável que sua vida política chegue ao fim. O seu
partido, o Força Itália, já afundando nas pesquisas, afundará ainda
mais se ele não puder mais gerenciá-lo numa base diária.

Com o nome de Berlusconi como único patrimônio real do partido,


haverá pressão em suas fileiras para trazer um dos seus filhos como
porta-bandeira. Ele é mais chegado à filha mais velha, do primeiro
casamento, Marina, que lidera as partes Fininvest e Mondadori do
seu império. Mas ela é muito reservada e não dá sinais de querer
segurar o bastão. Barbara, a do meio, de 30 anos, ajuda a administrar
o clube de futebol de Berlusconi, o AC Milan. É glamorosa,
extrovertida. Menos popular do que a meia-irmã, tem mais apetite
para a política. No devido tempo, uma chapa Barbara Berlusconi não
seria impensável.

Mas os herdeiros biológicos serão a parte menos importante do


legado histórico de Berlusconi. Durante os vinte anos da Segunda
República, a Itália marcou passo, numa espécie de equivalente
peninsular do “período de estagnação” da União Soviética. A
corrupção praticamente não diminuiu, e o país entrou em declínio
econômico e social. Os governos de Berlusconi foram piores do que os
de seus oponentes, mas não significativamente, uma vez que nenhum
deles deixou muita marca. A principal mudança do período veio com
o ingresso da Itália na união monetária europeia, sob o comando de
Romano Prodi. Ela foi ambígua: reduziu os custos de financiamento
do país, mas também suas exportações. Como Berlusconi governou
um pouco mais de tempo do que a centro-esquerda, sua
responsabilidade é um tanto maior.

Mas seria um erro concluir que ele não conseguiu nada, nem mesmo
a imunidade em busca da qual ingressou na política. A grande
conquista de Berlusconi foi transformar seus adversários em sua
imagem. A Itália tem uma longa tradição de ciência política de alta
qualidade. No ano passado, uma de suas melhores cabeças, Mauro
Calise, publicou um livro intitulado Fuorigioco [Impedimento]. Sua
tese é que a personalização da política não é um fantasma
antidemocrático que evoca as tentações de um passado
desacreditado, como a esquerda italiana temia, mas a forma
hegemônica de governo em todas as democracias do Atlântico Norte,
exceto a Itália.

O sociólogo Max Weber achava que a liderança patrimonial ou


carismática estivesse em declínio no Ocidente. Mas a rigor era a
autoridade racional-legal, que ele julgava característica das formas
modernas de governo, que estava fora de moda. A videopolítica
recriou a liderança carismática e isso não é um perigo, pois a
macropersonalização do poder hoje é pública, obrigada a dar
explicações e criticável. Ela presta contas a um mundo no qual a
comunicação não é mais um instrumento da política, mas sua
essência, da qual não há motivo para ter medo. A videopolítica define
seus próprios limites, produzindo líderes que são ao mesmo tempo
muito poderosos e muito frágeis, vulneráveis às pesquisas de opinião
e às urnas. O que essa política ergue, ela pode derrubar com a mesma
rapidez.

A verdade é que a macropersonalização não é a antítese da


democracia, mas sua condição, numa época em que os partidos
perderam força. A esquerda italiana se recusava a entender isso,
associando equivocadamente a norma liberal do “presidencialismo
monocrático” a lembranças do fascismo, e estigmatizando-a então
como berlusconismo. Recolhendo-se a formas coletivas de liderança,
desprovidas de qualquer carisma, ela entregou o campo da
competição que importa para Berlusconi, um mestre no assunto.

Calise publicou seu livro dois meses antes da captura do PD por


Renzi, e a obra pode ser lida como um programa de exemplar lucidez
do espetáculo que viria em seguida, quando a centro-esquerda
encontrou um líder capaz de superar Berlusconi em seus próprios
termos. O que se deixa temporariamente de lado, é claro, neste
diagnóstico frio das formas necessárias da vida democrática atual, é
qualquer reflexão sobre sua substância. A macropersonalização não é
ideologicamente neutra. Para adotar os termos de Calise, ela
responde a um mundo no qual as personalidades se tornam
grotescamente ampliadas – lembrem-se do Super Mario –, enquanto
as diferenças partidárias, e com isso as escolhas do eleitor, encolhem
na mesma medida.

A realização duradoura de Berlusconi, da qual ele está ciente, é ter


reproduzido em Renzi não apenas um estilo de liderança, mas uma
forma de fazer política comparável à sua própria, assim como
Thatcher fez com Blair. É graças a ele, como ele mesmo tem dito, que
Renzi virou o PD pelo avesso, sepultando de vez qualquer vestígio de
um passado socialista-comunista. É uma afirmação legítima.

M
as a Itália, que desde a Segunda Guerra passou por mais
rebeliões políticas contra a ordem estabelecida do que
qualquer outra sociedade europeia, ainda não está livre delas.
Enquanto Berlusconi e Renzi buscam um acordo do qual cada um
possa tirar o máximo proveito, as rebeliões assumem formas atuais. O
M5S dificilmente escapa ao diagnóstico de Calise, embora não
represente a videopolítica.

Grillo personifica o MoVimento 5 Estrelas como seu líder e fundador.


Autocrata que não tolera dissidência, ele, como Berlusconi, opera de
fora do Parlamento, seguindo atentamente seus partidários lá dentro,
e expulsando sumariamente aqueles que saem da linha. Ao mesmo
tempo, o número dos que votam nas deliberações online do
movimento continua pequeno, no máximo 30 mil. A grosseria de
certas intervenções de Grillo repele tanto quanto atrai; o mesmo
acontece com a indeterminação ideológica de grande parte do seu
apelo, permitindo inflexões tanto à direita como à esquerda. Sua
recusa geral a entrar em qualquer tipo de entendimento com outros
partidos também tem sido um tiro no pé. Tivesse ele decidido, depois
do êxito do M5S na eleição do ano passado, emprestar apoio a
Bersani, em troca de um acordo sobre a reforma política, hoje o
Quirinal estaria livre de Napolitano, Renzi continuaria na prefeitura
de Florença e a Itália teria evitado um neo-Porcellum.

Para ser eficaz, o protesto requer manobras da inteligência,


juntamente com a intransigência da vontade. Talvez Grillo,
aprendendo com a experiência, se revele mais prático e menos
mandão no futuro, e o movimento que criou venha a ser mais do que
uma turbulência passageira. É importante para os italianos que isso
aconteça, pois, com o desaparecimento de qualquer esquerda
significativa, o M5S pode muito bem emergir como a única oposição
relevante no país. Com todos os seus defeitos e paradoxos, o
movimento ainda representa o único esboço, em qualquer parte da
Europa, de contrapeso ao que tomou conta da democracia
representativa. Felizmente, no deserto conformista da mídia, a Itália
tem um jornal, Il Fatto Quotidiano, fundado quatro anos atrás por um
grupo de jornalistas independentes, que não tem medo de nada e
quebra todos os tabus: caso único de uma ponta a outra do
continente. Em geral simpático ao M5S, Il Fatto também costuma ser
agudamente crítico ao movimento: exatamente como deve ser.

Na época de Federico Fellini e da motocicleta Vespa, falava-se no


“Milagre Italiano”. Ele há muito se converteu em seu oposto. Durante
décadas, os italianos, mais que os estrangeiros, lamentaram o
“Desastre Italiano”, com uns poucos e bravos espíritos preservando
alguns bolsões de qualidade aqui e ali – a moda, a Ferrari, o Banco
Central. Não há dúvida de que o país hoje ocupa lugar especial no
conjunto de países europeus ocidentais. Mas, como costuma
acontecer, isso é mal interpretado. A Itália não é um membro normal
da União. Tampouco é um desvio de qualquer padrão a que possa ser
ajustado. Há uma frase consagrada que descreve sua posição, e é
muito usada dentro e fora do país, mas que está errada. Em vez de ser
uma anomalia na Europa, a Itália está mais para um concentrado da
Europa.

[1] Nicolas Sarkozy, ex-presidente da França, foi detido para


interrogatório em 1º de julho sob suspeita de ter tido acesso a
informação privilegiada no processo em que é acusado de receber
doação ilegal de campanha, inclusive de Kadafi.
[2] Período iniciado em 1993, depois que sucessivos escândalos de

corrupção levaram à dissolução da Democracia Cristã, que tinha


governado o país, geralmente em coalizão com o Partido Socialista,
durante a Primeira República, instaurada depois do fim da Segunda
Guerra Mundial.
[3] Frankfurt é sede do Banco Central Europeu.

[4] Este sistema tende a eliminar os partidos que representam correntes

de pensamento minoritárias e, por isso, favorece a formação de


maiorias parlamentares.

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